Biblio VT
No meio da dança, Frank lançou um olhar para o seu relógio de pulso.
- Ainda vinte minutos. - disse.
Sentiu a mulher que apertava nos seus braços pesar um pouco - um instante somente - e depois tornar-se outra vez leve.
- Na verdade? -preguntou ela, um pouco depois. Ele baixou os olhos para ela, sorrindo. Era muito mais pequena do que ele. Todas as mulheres eram mais pequenas do que ele. Tinha sido sempre assim, desde o dia em que começara a ser mais alto do que sua mãe. Os cabelos de Evelina roçavam-lhe a boca, cabelos louros, de um louro mate que fazia lembrar estanho, um louro sem brilho, mas natural. Tudo nela não tinha artifício; não estava nem muito bem vestida, nem muito cuidada. Frank sentia uma leve emoção ao respirar esses cabelos. O rosto escapava ao seu olhar; ela baixava a cabeça emquanto dançava, séria, atenta em seguir, de perto, com as pernas os movimentos do seu par. Ouviu-lhe dizer qualquer coisa que não chegou a compreender, porque a pequena orquestra fazia, justamente nesse momento, um barulho apaixonado de saxofones. Ela repetiu:
- Mais vinte minutos. e depois partirás. e não te tornarei a ver.
Frank pensou: "Como são sentimentais, estas alemãs!" Mas ele estava apaixonado por Evelina e essa sentimentalidade agradava-lhe. Nada tinha que responder. Apertou-a
um pouco mais fortemente contra si. O pedacinho de pele nua, que tinha debaixo da mão direita que assentava nas suas costas decotadas, dava uma impressão de frescura.
A mão esquerda dela parecia arder, como a sua. A noite estava quente; a sala, onde dançavam, escaldava: branca e doirada, de uma superficial elegância de clube.
Era uma noite demasiado febril e precoce. Um calor de verão, emquanto que, em redor de Berlim, as macieiras ainda estavam em flor. Quando Frank a apertou mais contra
si, Evelina levantou a cabeça e olhou-o.
Mais uma vez o abandono que pairava no seu rosto, o encantou.
- Darling ! - exclamou - Darling!
- Darling!-murmurou ela.
Frank não falava alemão, mas ela sabia inglês, um, inglês correcto, muito britânico, que tinha, naturalmente, aprendido em qualquer colégio. Subitamente, Frank sentiu-se
invadido por um descontentamento violento, de si próprio: "Escangalhei o negócio, estraguei tudo.
- pensou, encolerizado - Muito lento. muito hesitante . muito. não sei como." Procurou, sem encontrar, a palavra para designar a estranha circunspecção com que se
havia aproximado de Evelina. Isto podia ter sido outra coisa e ficara em nada. Acabou-se. Já , tinham passado cinco minutos sobre os vinte que restavam. Alguns beijos
no automóvel, uma lágrimasinha nos olhos de Evelina. Sim, uma lágrima verdadeira. E, ás dez horas e quarenta e cinco, o seu comboio partia para Paris. All rigt!
Talvez fosse assim melhor para ela. "Tu és como uma encomenda na qual está escrito por baixo, por cima, por toda a parte: "Cuidado! Vidro!
Frágil!" - disse-lhe, quando pôs ponto final às suas
meditações. A dança tinha acabado. Evelina, antes de
se separar de Frank, ficou um momento encostada ao seu
ombro. Ele sacudiu levemente as bandas de seda do seu
smoking onde havia um pouco de pó. Gesto maquinal e
habitual. Os pares de dançarinos eram talvez uns vinte.
Demais, para uma sala tão pequena. A presença dessa
gente aborrecia Frank que, amparando o cotovelo de
Evelina com a mão, a encaminhou para o terraço.
Lá fora sentia-se o cheiro do pequeno lago, na margem do qual estava construído o Clube, um pouco suave e um pouco acre - odor de canas em água estagnada.
- É como na Virgínia. - disse Frank, assim que chegaram à balaustrada.
- O quê? - preguntou ela, surpreendida.
- Nada. O cheiro. Gostas da caça aos patos?
- Não. - replicou, sorridente.
Ficou de boca aberta, como que espantada. O terraço também estava cheio de gente, de lampiões, de toldos em várias cores. As mulheres abanavam-se com guardanapos
de papel.
- Olá, Frankl - gritou um rapaz magro, o campião americano de tennis, que tinha tomado parte no campeonato de Berlim.
- Olá, Jorge! - replicou Frank.
- Vais realmente ainda hoje para Paris?
- Infelizmente. Já estou atrazado.
- Podes ir na próxima semana a Antibes? Os Pascal estão lá, assim como os Sutherland. Depois iremos todos juntos no "íle de France" para casa.
- Quando?
- A dezassete, em Cherbourg.
- É muito distante, preciso de tomar o "Berengária", no próximo sábado.
- É pena . Estás em New-York em Junho? Vem ver-nos a Westport. Combinado? Felicidades.
- Igualmente! - respondeu Frank, impelindo Evelina diante de si.
Ela tinha-se conservado de pé, sorridente, como se estivesse prestes a desmaiar. Frank lançou um rápido olhar para o relógio.
- Quanto tempo resta ainda ? - preguntou ela. Não respondeu imediatamente mas meteu, sorrindo o braço no seu.
- Vamos ver, ainda uma vez, o nosso court? preguntou.
Ergueu o vestido para descer as escadas e seguiu-o docilmente.
Os coarts ficavam em baixo, todos brancos, sob a claridade dos candeeiros, mas já ninguém jogava. "Ó nosso court" era aquele onde, oito dias antes, Frank tinha conhecido
Evelina.
Jorge levara-o na semana anterior ao clube, afirmando-lhe que as berlinenses tinham melhor aspecto do que geralmente se imaginava e, que falavam todas inglês melhor
do que os bebés novaiorquinos. Era verdade até certo ponto. A campiã alemã de tennis era maravilhosamente feita: um belo pedaço de mulher, cheio de vida. Frank julgou-a
com um olhar, ela fez o mesmo e ambos se puseram a rir como conspiradores. Apresentaram-no a seguir a outra mulher; esta tinha uma voz grave, maravilhosa, pernas
nuas de cetim castanho e chamava-se Mariana. Ambos manejavam a raquette a primor. Frank não gostava de jogar com pessoas muito mais fortes do que ele, isso punha-o
de mau humor. Mariana emprestara-lhe uma das suas raquettes, que ele achou muito leve, e arranjou-lhe um single com a sua amiga Evelina. Esta jogava regularmente,
desculpando-se e dizendo que estava ennervada.
- Ennervada? Porquê? -preguntara Frank e, por delicadeza tinha servido a bola brandamente - Mas não obteve resposta. Fez o possível por a deixar ganhar, mas assim
que ela o percebeu, recusou-se a apanhar as
bolas que lhe enviava. Só lhe viu a cara no fim da partida, quando tirou a viseira de pique branco. Pareceu-lhe extraordinariamente vivo esse rosto, de tal forma,
que ficou a olhá-la um momento, em silêncio. Afigurou-se-lhe de-repente que as caras da maior parte das mulheres que ele conhecia eram de porcelana, emquanto que
a de Evelina era de uma outra matéria mais natural. Foi assim que aquilo começou, como começam todas as aventuras masculinas: por curiosidade. Por uma pregunta:
"Como é esta mulher por dentro? Como será ela quando a beijam? Como seránua? Como se entregará?" Ela não era dessas mulheres a propósito de quem o homem pense imediatamente
na posse; isso vinha mais tarde, depois do primeiro beijo. Evelina tinha os lábios muito arqueados, sem pintura, de uma cor pálida, de coral.
- Quem se atrever a beijá-la não fica com marcas de rouge espalhadas pela cara e atrás das orelhas. - tinha dito Frank, quási logo a seguir.
Depois disto, Evelina olhou para ele, como se não compreendesse o inglês.
Tinha longas pestanas, muito longas, da mesma cor prateada mate que os cabelos. Estas pestanas claras davam-lhe ao rosto um aspecto sonolento. Assim que Frank a
beijou pela primeira vez, ficou quási assombrado pela violência com que lhe restituiu esse beijo. Ficou assombrado, porque essa impetuosidade estava a-par-de uma
extranha inexperiência, de um singular acanhamento. Dir-se-ia que essa boca cerrada, pálida e trémula, não compreendia o que se esperava dela, não se abria, não
cedia. Toda a mulher se recusava de olhos fechados, lábios fechados, punhos cerrados, um tremor crispado, silencioso - e tudo isto era qualquer coisa de novo. E
Frank decidiu apaixonar-se.
Sucedera isto havia cinco dias, num táxi. Depois, houve uma pequena festa, à tarde, em casa de Mariana, em qualquer parte, no campo, numa variegada casa, espantosamente
pequena. Portas vermelhas, janelas azuis,
móveis de alumínio, cocktails leves e um pouco quentes, e Evelina, com um vestido de linho com tendência a escorregar nos ombros. Frank, por sua vez, ofereceu cocktails
no hotel Adlon. Foi aí que apareceu pela primeira vez o marido de Evelina. Frank, no primeiro momento, simpatizou com ele. Era um rapaz de cerca de trinta e cinco
anos, esbelto e ágil. Expressão amável, embora um pouco distraída, nos olhos muito metidos nas órbitas. Via-se imediatamente que esse Droste era um cavalheiro, embora
não falasse nada inglês, o que excluía qualquer entendimento. A presença desse marido simpático e atraente, impediu Frank de se ocupar de Evelina mais do que das
outras mulheres. Na manhã seguinte, antes das nove horas, chamou-o ao telefone para lhe preguntar "se estava zangado com ela".
- Que diz? Zangado? -respondeu, rindo, surpreendido.
Ela já tinha desligado, sem responder. E, agora, era a última noite .e não tinha mais do que doze minutos diante de si - pois entretanto já haviam passado três.
- Conservavam-se de pé, no court, à luz crua dos projectores, contra os quais as borboletas da noite batiam com as cabeças peludas.
- Espero que faças boa viagem. - disse Evelina, amavelmente.
- com certeza. Escrevo-te de Paris. - respondeu. Sabia que as mulheres têm a mania de receber cartas.
- Não, peço-te, não faças isso.
- Não? Porquê?
- Porque. queria ter sossego.
Isto parecia indelicado, mas talvez não fosse. Tinha, por vezes, certa dificuldade em se exprimir em inglês. Olhava-o, esperando qualquer coisa.
- Todos os americanos são assim como tu ? preguntou.
- Assim como?
- Assim belos como tu?
Ela tinha dito beautiful em vez de handsom e isso fê-lo rir.
- Não. Eu, com certeza, sou o homem mais belo da América. - declarou com toda a seriedade.
Depois riu e, com delicadeza, acrescentou:
- De-resto, teu marido tem uma bela aparência.
- Tem. - respondeu Evelina.
Emquanto que Frank passava de novo o braço pelo dela e a arrastava para longe do court, preguntava a si mesmo, com certa impaciência se, no fundo, lhe agradava esta
mulher, mas não encontrava uma resposta satisfatória. Afastaram-se sem falar e, através das relvas bem tratadas, dirigiram-se para o lago. Lá em baixo, coaxavam
as rãs. Estava muito escuro, só o caminho ensaibrado formava uma fita mais clara até aos salgueiros. Do outro lado do lago, brilhavam luzes em casas iluminadas.
No lago, lá em baixo, nadavam leves rumores, ruído de remos, um riso abafado, o murmúrio da água.
- Há quem nade às escuras. - disse Evelina. De-repente, Frank percebeu que ela tremia; ainda não tinha dado por isso.
- Tens frio?
- Não.
Estavam agora no meio dos salgueiros, à beira da água. Ele procurava-a na escuridão e tomou-a silenciosamente nos braços. Outra vez se assustou com a veemência com
que ela se precipitava para os seus lábios. As americanas não eram como ela; as francesas também não. Sentiu uma espécie de vertigem quando, emfim, a boca de Evelina
se entreabriu na sua. Desprendeu-se, olhando em redor; ele não gostava de beijar de pé. Os seus olhos estavam agora habituados à escuridão; viu a sombra de uma pequena
barraca de banho, cheirava a tinta fresca, a alcatrão, a água. Arrastando Evelina, procurou, às apalpadelas, o fecho da
porta que, com um gemido de ferrugem, cedeu. No interior estava negro como carvão e muito quente. Frank puxou Evelina para o estreito banco. Cobriu-a de beijos loucos.
Ouvia bater o seu próprio coração e admirou-se do estado em que se encontrava. A mão de Evelina deslisou pela sua manga e foi apoiar-se-lhe sobre o coração, que
batia surdamente. "Como a Lídia", pensou num sonho.
Lídia fora a sua primeira paixão. Era uma mulher de cor que estava em casa de seus avós em Nova Orleans, uma rapariga de pele clara e de cabelos negros, crepitantes.
com nenhuma outra das suas numerosas aventuras, ele tinha sentido a mesma alegria primitiva do que com esse abraço, tão severamente interdito e repreensível. Na
inexperiência apaixonada de Evelina encontrava qualquer coisa semelhante.
Fez um movimento involuntário e a mão de Evelina retirou-se do seu coração em fúria.
- Deves ir-te embora - balbuciou ela, que se tinha afastado um pouco, na obscuridade.
- Impossível deixar-te agora! -respondeu ele, sem
respiração.
Esperou, mas Evelina ficou silenciosa e não se aproximou. Nesse momento ouviu as gotas de água caindo com intervalos regulares.
"Fatos de banho, molhados, ali pendurados, sem dúvida". - pensou. Evelina, perto da porta, procurava o
fecho.
- Ouve. -pediu -Acompanha-me a Paris,queres?
Peço-te, vem.
- Isso é impossível!
- Porquê? Paris fica a dois passos. Poderás ir
de avião.
Evelina tinha conseguido abrir a porta. Uma luz pálida, de noite primaveril, aparecia, recortando um rectângulo. O rosto dela era apenas uma breve mancha branca.
Adeus! Adeus - disse ele, em alemão.
Compôs maquinalmente os cabelos, e sacudiu mecanicamente as bandas do smoking que tinham algum pó. O alvoroço do seu sangue acalmou-se em grandes ondas lentas que
se escapavam do coração. Frank olhou para o relógio de pulso. Pegou num cigarro e, ao clarão do fósforo, procurou a hora exacta.
- Santo Deus! - murmurou, e pôs-se a seguir Evelina.
- Passa à frente. - disse, ela fechando a porta atrás dele.
Acariciou-lhe os cabelos com um leve sentimento de piedade; causava-lhe pena, com o seu vestidinho branco e o seu sorriso. Quis abraçá-la outra vez, mas ela fugiu,
a correr. Em cima, nas salas do clube, a música tinha recomeçado a tocar. Havia apenas alguns pares a dançar, no momento em que atravessaram a pequena sala. Frank
fez um gesto de adeus a duas ou três pessoas com quem havia travado conhecimento. Tentou ver-se a um espelho, pois não tinha a certeza de não estar despenteado.
Evelina parecia indiferente e ensonada; nada no seu exterior traía a pequena cena que acabava de se passar na barraca. Frank viu que ela era um pouco sardenta. Estava
mais pálida que de costume, com a boca maior e os olhos mais sombrios.
- O sr. Davis queria despedir-se. - disse, parando atrás da cadeira de seu marido, na sala do bridge.
Droste pousou as cartas e levantou-se, amavelmente, procurando as palavras inglesas que convinha dizer.
- Adeus! - exclamou Frank, apertando-lhe a mão. Era uma das cinco palavras alemãs que conhecia. Um dos jogadores pareceu descontente com a interrupção; Frank, para
si, deu-lhe razão. Era um senhor de pêra branca.
- Quem leva Davis à estação?-preguntou Mariana em pé, a um canto, com um copo de laranjada na mão.
- vou tomar um táxi até Charlottenburg.
- Disparate. vou levá-lo.
- Sim, mas é preciso ser de-pressa.
- Pronto, pronto. Tu vens?
- Não sei.-murmurou Evelina, olhando para seu marido, que voltara a embrenhar-se nas cartas.
- O sr. Conselheiro não se opõe. Venha, Davis. É preciso honrar o nosso hóspede, mesmo quando ele nos aborrece, diz Peter Panter. Vamos lá.
O carro de Mariana estava parado à entrada ensaibrada do clube. Era um pequeno animal que bufava maldosamente. Lá se meteram os três, Frank, entre as duas mulheres.
Mariana tinha um perfume violento e amargo, que Frank respirava com precaução.
- A pequena tem um ar fatigado! -disse ela, com a sua voz profunda e enérgica.
Já o carro zunia pelos candeeiros de Grímewald.
- Você estafou a Evelina. O ritmo americano não lhe faz bem.
- És tola, Mariana. - ralhou Evelina, do seu canto.
- Ela ocultou-lhe, sem dúvida, que precisa de ser cautelosamente tratada. Ficou um tanto fatigada depois do nascimento dum herdeiro. Desde esse momento já não é
tão sólida e o juiz, seu marido, tem fundados receios.
- Tem um filho?-preguntou Frank, surpreendido. Evelina fez sinal que sim.
- Dois! - respondeu Mariana - Dois pequenos selvagens que assassinam a mãe, muito bulhentos e que eu adoro.
Fez uma curva sem afrouxar.
- Mas eu tratei-a com precaução, não é verdade? preguntou Frank.
Tinha passado o braço por trás das costas de Evelina, para ocupar menos lugar. Os seus pensamentos saltavam dos filhos dela para o marido.
- Que estranho título deu você ao sr. Droste? preguntou.
- Conselheiro do Tribunal. Isto representa entre nós uma categoria superior de magistrados. Droste é quási o mais novo juiz da sua espécie, é um homem espantoso
e que tem um futuro formidável.
Frank não soube que responder. A mão de Evelina veio de-repente, às escondidas, colocar-se na sua.
- É pena que já se vá embora. - disse Mariana Que tem você de tão urgente a fazer em Paris?
- Sempre a mesma coisa. Negócios.
- Explique-nos o seu género de negócios. Será você, por acaso, um dos reis da indústria de quem se lêem histórias maravilhosas nos Jornais?
Frank não pôde deixar de rir.
- De maneira alguma. Vendo laranjas. Mas não gosto de falar de negócios com senhoras.-acrescentou, retendo, na sua, a mão de Evelina.
- Os negócios são a única coisa interessante nos homens. - disse Mariana.
Ela própria era arquitecta e entregava-se com amor à sua profissão. Parou o carro, tão bruscamente que Frank quási caía do seu lugar. Evelina largou-lhe a mão. Não
tinha dito uma única palavra. Ele lançou um rápido olhar ao relógio da pequena estação; tinha ainda que esperar seis minutos. Evelina saiu do carro para o deixar
passar. Um polícia fêz-lhe sinal; atrás, um táxi buzinava. Mariana obrigou Evelina a entrar, outra vez, no carro.
- Vai haver barulho, se não parto imediatamente. Adeus, Davis. Divirta-se em Paris e faça bons negócios.
- gritou Mariana - Nós não podemos acompanhá-lo até ao cais, os nossos vestidos de noite dariam muito nas vistas. Vamos, Evelina, fecha a porta.
Frank estendia a mão para o carro. A porta estava ainda aberta, o motorista do táxi, atrás deles, recomeçava a zangar-se, um indivíduo, que parecia um oficial, meteu-se
no caso. A última impressão que Frank levou foi que a mão de Evelina estava gelada e não correspondera à sua pressão. O pequeno carro pôs-se a bufar e fugiu dali.
Frank tirou o seu bilhete da carteira e entrou, à pressa, na estação. Tinha mandado pôr as bagagens no compartimento, em Berlim, e viera tomar o comboio a esta estação
por ser mais perto do Clube e poder estar mais meia hora com Eveline. E agora, acabara-se.
No interior, reinava essa luz trémula que faz de todas as estações do mundo lugares tão dolorosos. Indicaram-lhe uma escada. As pessoas que esperavam no cais, pareciam
muito pálidas. Olhavam para Frank, como se na vida nunca tivessem visto um cavalheiro de smoking numa estação. O ar cheirava a erva molhada e a terra. Frank teve
a impressão de que só uma estação alemã podia cheirar assim. O alto talude era arrelvado: um pequeno parque alongava-se dos dois lados. Frank ia e vinha num sentimento
de impaciência e descontentamento. Começava agora a perceber que estava fatigado. Bocejou longamente. De-repente, o comboio
chegou.
Frank encontrou o seu compartimento e passou-o em revista, sorrindo. As suas bagagens estavam lá, o criado do hotel tinha cumprido o seu dever. O leito estava preparado.
"Tratemos de dormir, pensou. Era uma dessas pessoas felizes que podem dormir, maravilhosamente, em viagem. Tirou as suas coisas que exalavam um perfume de alfazema:
tinha-se, com certeza, como era seu hábito, esquecido de fechar o frasco da água de Colónia.
A sua cabine possuía um pequeno lavatório que deixou a escorrer água depois de se ter lá recreado. A-pesar-das abluções frias e agradáveis estava descontente, sem
saber exactamente porquê. Em suma, estava satisfeito por ter deixado Berlim. Sentia-se lá um estranho. Em Paris, pelo contrário, era como se estivesse em sua casa.
Tinha na boca o sabor refrescante e agradável da água dentífrica. Mas isso nada fazia.
Acendeu um cigarro, para ver se se punha, de melhor humor. Não! Também não era isso. Afastou, com certa dificuldade, a cortina e pôs-se a olhar para fora. O comboio
passava entre pinheiros. Ao longe, atrás, o céu estendia-se sobre o clarão de Berlim. Frank Davis estendeu-se na estreita cama, manejou os interruptores e meteu
a cabeça debaixo da sua almofada de viagem, em couro. Assim que se sentiu bem à vontade, tirou a carteira e puxou alguns papéis. Às duas horas tinha um encontro
com Farrère. Estava quási certo dele. Os franceses sabem calcular, não fazem caso do reclame. Para eles as cifras é que contam. com Gobin, procurador da Chambre
Syndicale des Importateurs de Fruits é que seria mais difícil. Frank fechou os olhos e pôs-se a calcular exactamente. Se lhes pudesse pedir, por caixa, menos dois
cents do que os espanhóis, faria o negócio. Tirou a caneta do bolso e começou a cobrir o papel com números de quatro algarismos. "Impossível encontrar um meio de
pagar os direitos franceses, pedindo menos do que os espanhóis!" Calculava, resmungando. Entretanto o comboio parou de-repente e tornou a partir com um encontrão.
Frank viu que tinha muito sono para poder calcular bem. Afastou os papéis e apagou a luz.
No corredor, duas vozes continuavam certa monótona conversa, em alemão. "An! Berlim era assim"pensou Frank meio adormecido.-Diante dos seus olhos fechados apareciam
imagens redondas, linhas entrecruzadas. "Evelina" pensou. e de novo sentiu em si mesmo esse descontentamento torturante. Todos os nervos estavam irritados de tal
forma que a pele se crispava. Reteve a respiração e diligenciou ver representada a imagem de Evelina. De olhos fechados, via todos os rostos que tinha encontrado
durante a sua curta permanência em Berlim: Mariana, o advogado dos negociantes de frutas do sul, o porteiro do Adlon, o garoto que apanhava as bolas no court, o
polícia que estava diante da estação. Rostos, vozes, corpos, barulhos, caleidoscópio de cidade estrangeira. Evelina não estava. Ela escapava à sua memória. Como
sentira calor na barraca de banho!
Os seus músculos contraíram-se um instante, depois, subitamente, distenderam-se. "Esperemos - pensou ainda - que Marion nSo me arraste outra vez a qualquer desses
horríveis teatrinhos franceses."
Depois, de-repente, adormeceu.
Têrça-feira
ELA
No meio da dança, Frank lançou um olhar para o relógio de pulso.
- Ainda vinte minutos. - disse.
Durante alguns instantes, Evelina não viu mais nada; a sala de dança tinha-se esbatido diante dos seus olhos. "Isto é quási como morrer" - pensou ela, surdamente.
Havia três dias que esperava o momento em que Frank a abandonasse, como teria esperado a hora da sua execução. Não tinha tido ainda coragem de imaginar como seria
depois, quando Frank partisse e tudo estivesse acabado.
- Ainda vinte minutos - pensava ela - e depois vais-te embora. e depois, eu nunca mais te verei!
Ele inclinou-se e no momento em que o seu hálito quente lhe roçava os cabelos, Evelina notou que tinha falado alemão.
- Ainda vinte minutos - repetiu em inglês - e depois, nunca mais te verei!
A música, no pequeno estrado perturbou as suas palavras e transformou-as numa despedaçadora melodia de saxofone. E nunca mais te verei. nunca mais. te verei. nunca
mais.
Evelina sentia-se aturdida, ficava sempre assim quando dançava; e o doutor tinha muito que objectar contra isso. Havia muito tempo que não sentia o chão debaixo
dos pés. Encostava-se muito contra Frank, farejava-o em toda a parte, em cada centímetro quadrado da sua pele. Encostou por um momento a cabeça ao ombro dele. Como
lhe era familiar o perfume de alfazema e dos cigarros que impregnavam todos os objectos pertencentes a Frank! A própria boca dela já tinha apanhado esse cheiro.
"Porque choro eu? No entanto, sou feliz!" pensava. Cerrou as pestanas para livrar os olhos das lágrimas que os velavam e para poder vê-lo.
- Darling!- disse Frank, sorrindo - Darling!
"Não sabes que morrerei assim que isto acabar!" pensava ela. Apiedava-se mesmo um pouco dele, desse homem para quem tudo era fácil e alegre, que não sabia nada e
não compreendia nada das coisas difíceis, essa querida essência de homem. A orquestra parou de tocar.
Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais dançarei contigo. Nunca mais te verei. Doía-lhe a garganta por todas as lágrimas que não tinha podido verter. Frank passou-lhe
uma das mãos por baixo do cotovelo e levou-a.
Ela ia-se curvando e endireitando para que não reparasse que tinha uma vertigem. Nunca, na sua vida, se sentira assim tão fortemente protegida, como por esse gestosinho
de Frank para a conduzir. Ela tinha-lho dito uma vez e ele fizera troça. "São coisas que todo o garoto aprende nos Estados Unidos" respondera.
Lá fora, no terraço cheio de frescura, Evelina sentiu-se daí a pouco um tanto mais acordada e segura. Frank falava-lhe da Virgínia e da caça aos patos. Isto parecia-lhe
espantosamente estranho e aventuroso. Sentia de novo, com uma surpresa deliciosa, de que distância e de que imensidade esse homem tinha vindo perturbar a sua vida,
enchê-la duma tempestade de felicidade, para a abandonar outra vez.
Algumas pessoas juntaram-se a eles; contava os segundos que corriam, aproximando-a do minuto que lhe arrancaria Frank. A conversa vibrava de nomes estrangeiros,
de países e de barcos. O universo inteiro ia passando, e Frank acompanhava indolentemente esse universo. Em pé, junto dele, ela contava os segundos.
- Vem até ao nosso court.- pediu o rapaz.
- Quando parte o teu comboio? - preguntou. Depois, acrescentou: - Espero que faças uma boa viagem.
Era impossível dizer "amo-te". Viviam, ai deles, num século onde não se saberiam dizer semelhantes coisas. O courtt estava iluminado e deserto. Sentiram-se como
num palco, visíveis a todos quantos se encontravam no terraço. Ela desejou ardentemente estar só com Frank, em qualquer parte, num sítio silencioso e sombrio. Pareceu
adivinhar esse desejo pois arrastou-a para a margem do lago. Estava completamente escuro; ao longe, banhavam-se alguns nadadores retardatários. Evelina sabia que
Frank ia beijá-la; esperava esse beijo, mas tinha medo ao mesmo tempo. Já a tinha beijado duas vezes -num táxi e em casa de Mariana e isso tinha-a posto fora de
si. Transformara-a dolorosamente, tornara-a selvagem e sem defesa: um ser diferente, quási como durante um parto.
Evelina não compreendia nada disso a que chamam amor. Na verdade, ela não tinha acreditado nunca que esse amor, de que tanto falavam, existisse realmente.
Lia nos jornais a descrição de crimes passionais; sabia que seu marido condenava pessoas que tinham assassinado por paixão. Os livros, as peças de teatro, as óperas,
estavam cheias dessa coisa: amor. Evelina esboçava um leve sorriso, um pouco superior, um pouco surpreendido, pensando que o amor era só imaginação, ficção. Tinha
a certeza de amar seu marido e de que ele a amava. Mas não havia lá dessas loucuras, desses
exageros, dessas brutalidades que lia e de que ouvia falar todas as vezes que se tratava de amor. Às vezes, quando observava as suas amigas, as suas lágrimas, as
suas cenas, os seus divórcios, parecia a Evelina que o mundo inteiro jogava um jogo de que ela não conhecia as regras. Um jogo pouco razoável, em todo o caso, que
não se podia tomar a sério, em que as paradas só tinham o valor de fichas.
Assim havia estado até ao momento em que Frank Davis viera dar a tudo isso, que parecia estúpido, um sentido, um novo alcance, luminoso, ardente, entusiasta. Imediatamente,
sem a menor hesitação, Evelina tinha-se precipitado nesse sentimento, com uma violência em que havia um pouco de desespero.
- Quanto tempo se demora em Berlim?
- Seis dias, talvez uma semana.
Uma semana. Era pois um amor que trazia, à nascença, a sua condenação à morte. Uma semana de amor numa ilha dos mares do Sul, poderia ser uma eternidade. Mas uma
semana em Berlim? Aí, constantemente no meio de gente, de tennis, de cocktails, de bridges, de conversas, de clubes, os dias esgotavam-se num vácuo. Havia a fome
de estar só, de viver tudo, de sentir tudo - era um sentimento que aumentava até se tornar insuportável. Um beijo no automóvel, uma conversa ao telefone, uma dança,
eram para Evelina verdadeiras redenções. Mas a grande redenção não se produziu. Adormecer uma vez no ombro de Frank em vez de adormecer no de Kurt, uma vez, uma
só!
Assim que Frank a arrastou para a barraca de banho, ela despertou um pouco desse atordoamento em que a sua última noite decorrera. Alguma coisa nela se defendia:
a lembrança das criadas surpreendidas no corredor da casa com os seus namorados, o cheiro a fatos de banho, molhados, toalhas a secar, madeira queimada pelo sol.
O banco para onde ele a atirou estava húmido, a água entrava através do vestido leve 25
de Evelina. Ela teve medo, percebendo o que Frank queria. Era feio, vulgar e degradante.
- Nein. nicht so. nicht so! (Não, assim não!) -murmurou, em alemão, numa voz suplicante.
Contorceu-se e pôs-se fora do alcance das suas mãos. Não, não era por isso que ansiava, não, isso não, assim não. O quadrante luminoso do relógio de Frank planava
no escuro como o rosto redondo de um minúsculo fantasma.
-Tens que te ir embora já. - disse, levantando-se e tentando alcançar a porta, às apalpadelas.
O barulho das rãs coaxando fora, no lago, guiava-a. Atrás dela, ouvia-se a respiração dura e pesada do homem, na noite.
- Ouve, Vem até Paris comigo.- ouviu ela dizer, de súbito.
Assim segredado nas trevas, fazia o efeito de qualquer coisa absolutamente louca. Era uma dessas coisas pouco razoáveis, maravilhosas, doidas, estúpidas, de que
se compõe o amor. Evelina não pôde deixar de sorrir. Encontrou por fim o fecho, um pedaço enferrujado de metal e conseguiu abrir a porta. Acometeu-a uma súbita vertigem
no momento em que entrava no ar fresco, essa espécie de atordoamento que precedia os desmaios de que ela sofria, desde o nascimento do segundo filho. Corajosamente,
lutou para não perder a consciência, encostando-se contra a porta e estendendo o rosto para o ar como para procurar socorro.
No céu, lá em cima, as nuvens acumulavam-se estranhamente; atrás delas escondia-se a lua. "Tudo passou". - pensava Evelina. Sentiu esse instante com uma precisão
extraordinária e dolorosa. Fazia-lhe imensamente mal, de tal maneira experimentava quáse orgulho por esta grande dor perdida na sua vida obscura. Sentiu de novo
essa estranha sensação de parto; qualquer coisa que ultrapassava as suas forças, que não Podia suportar.
- Adeus.-balbuciou.
Frank saiu por sua vez. Ela deixou-o passar. Ele compunha os cabelos, sorridente; era um belo homem, muito elegante, um perfeito clubman. Evelina não quis que lhe
visse o rosto, não teria força de dominar os olhos e as comissuras dos lábios.
- Passa à frente - disse-lhe ela. Continuavam ali, muito perto um do outro. Os ombros dele estavam mesmo diante dos seus olhos. O saibro rangia sob os passos. Ele
parou para acender um cigarro. Isso era ainda felicidade: ver-lhe o rosto ao reflexo do fósforo. "Adeus, rosto querido; nunca mais, rosto querido, querido!" O fumo
do cigarro. Nenhuma espécie de cigarro, em Berlim, tinha este perfume: nele se encontrava tudo: o estrangeiro, a aventura, o homem que viera de longe e que desaparecia
por onde tinha vindo.
Emquanto ela atravessava a sala de dança, muito hirta, muito direita, pareceu a Evelina que todos os pares deviam ver em que estado se encontrava. Chegou ao salão
de bridge inteiramente aniquilada, sempre atrás de Frank, correcto, senhor de si, que abria amavelmente as portas, dando-lhe passagem.
A primeira coisa que viu foram os olhos de Mariana fixos nela, interrogadores e irónicos. Em pé, a um canto, com o seu vestido vermelho-fogo, bebia laranjadas. Mariana
tinha a mania das cores selvagens. As casas frias e modernas, de alumínio e betão, que ela construía para os snobs de Berlim, surgiam sempre em qualquer lado, numa
orgia de cores. Evelina contemplava esse vestido; de súbito, viu tudo negro. Nos seus ouvidos elevava-se um canto e ruído de sinos. "-vou desmaiar". - pensou, com
susto. Deu alguns passos para o marido, a-fim-de encontrar nele um apoio. Não, não era a Frank que ela se agarrava; agarrou o ombro de Kurt e susteve-se solidamente.
Assim que se encontrou nessa vizinhança habitual
e familiar, a obscuridade começou a dissipar-se diante dos seus olhos, tornou-se menos espessa e Evelina pôde, de novo, ver o salão de bridge. Kurt tinha boas cartas
e parecia só se separar a muito custo da dama de paus, que Evelina entrevia através do nevoeiro. No entanto, voltou-se, ao contacto da mão de sua mulher e olhou-a
com ar interrogador.
- O sr. Davis quere despedir-se.
Evelina ouviu-se a si própria dizer estas palavras. Tinham um som bastante inverosímil e estranho.
Apertos de mão, sorrisos, mesuras, troca de palavras em alemão e em inglês. Alguém se despedia: um estrangeiro, um americano. Como tinha podido esse estrangeiro
aproximar-se mais dela do que ninguém, até ali? Era possível que tudo agora se fosse com ele, tudo quanto tinha para ela um sentido, um brilho?
Evelina viu que Mariana lhe preguntava qualquer coisa. Não compreendeu imediatamente. Depois correu para ela com um alegre receio.
- Não sei. - disse, sem força, fixando seu marido. Não, era evidente que Droste não se oporia a que
ela acompanhasse Frank à estação. Acolheu com um pálido sorriso essa graça inesperada de mais uns preciosos minutos. Já Mariana, através dos jardins que precediam
o clube, a arrastava para o carro. Ela conversava alegremente. Não parecia provável que lhes fosse possível, a Frank e a ela, trocarem uma palavra de confidência.
De-resto, não tinham nada a dizer. As palavras dizem sempre o que não é, o que é falso. Todos se metem com as palavras, porque atrás delas se escondem casualidades.
Mariana falava a torto e a direito; mas Evelina sabia muito bem que ela não tinha nunca uma falta de tacto. Provavelmente procedia assim de propósito. Ela sublinhava
a fraqueza de Evelina, os seus filhos, o difícil nascimento de Ursinho.
Já o carro atravessava a ponte de Halenses. Em baixo, estendiam-se os entre-cruzamentos dos tails; não
muito longe, brilhava a torre do posto de T. S. F. ornado de grinaldas luminosas. Durante alguns segundos, Evelina afastou-se de Frank, para voltar aos filhos. Ursinho,
o rapazinho tão barulhento, tão forte, tão impaciente, Ursinho no seu carro, Ursinho mergulhado profundamente na contemplação dos seus numerosos dedos cor de rosa.
Ursinho ennervadíssimo, olhando de soslaio, assim que via a sua garrafa de leite.
Mariana passava as curvas sem afrouxar; Evelina encontrava-se assim mais estreitamente apertada contra Frank sempre que chegavam a uma curva. O último prazo expirou.
- Daqui a um minuto chegamos. - disse Mariana,
tranquilizadora.
Frank acabava de lançar um olhar nervoso para o relógio de pulso. Evelina compreendeu subitamente que este relógio tinha tomado uma excepcional importância na sua
vida; era qualquer coisa que não se esquecia nunca. Era um relógio estranho, em aço polido e de bela forma. Frank usava o mostrador na parte interior do pulso, coisa
que em Berlim ninguém fazia. Na barraca escura, Evelina tinha visto os números pairarem no ar como fantasmas, quando Frank tentara agarrá-la. Procurou a mão de Frank
e pôs a sua na dele. Estavam já na estação. Dentro em pouco tudo ia acabar. Coisa estranha, o adeus supremo e decisivo afogou-se num turbilhão de coisas banais.
Carregadores, polícias, passageiros, motoristas, tudo isso à luz cinzenta de candeeiros, diante da pequena gare. A jovem luz das árvores lançava uma sombra sobre
o rosto de Frank. Foi a última coisa que ela viu dele. Assim que se voltou para olhar pelo vidro de trás, viu-o em pé diante da estação com a mão meia levantada
num gesto de adeus, sorrindo em ar indeciso e com o rosto coberto de sombra. Ele continuava ali quando Mariana, depois de uma brutal meia volta, se embrenhou na
passagem subterrânea.
- Um rapaz muito simpático. - disse, minutos
mais tarde.
- É.
- O americano típico.
- Não sei. Tenho a impressão de que. ele não
é como toda a gente.
- É, sim. Os nossos homens são muito mais inteligentes, mas são menos mexidos, se é isso que queres dizer? Lá são todos como Davis. Mercadoria em série, lindamente
apresentada.
Mariana tinha estado na América para construir para um germano-americano de Loerrach, em Bade, uma cópia da sua casa de família.
- Sabes lá! - pensava Evelina, solitária e orgulhosa. Era como se partilhasse com Frank um grande, um profundo segredo, como se ninguém no mundo o conhecesse como
ela o conhecia.
- Sim? Que dizes tu? - preguntou.
Não tinha ouvido as preguntas que Mariana acabava de fazer.
- Kurt parece-me um pouco nervoso. - repetiu Mariana, um tanto impaciente - Não achas?
- Sim. talvez. - respondeu Evelina, em tom indeciso, que traía a sua consciência pouco tranquila.
Nesses últimos dias, tinha deixado de observar o mundo a que Kurt pertencia.
- Naturalmente o seu processo não caminha como ele deseja. - acrescentou.
- No entanto, a Rupp confessou. Todo esse caso marcha em ritmo regular e monótono e exala um cheiro acre a gente pobre. Assisti ontem, durante uma hora, ao julgamento.-
continuou Mariana, em resposta a um olhar admirado de Evelina.
Mariana tinha a mania dos casos psicológicos. Adorava as salas de audiência e dedicava uma grande afeição a Kurt. Ambos eram capazes de ficar horas a discutir espinhosos
problemas psicológicos. Kurt trouxera Mariana
em dote - era assim que Evelina costumava dizer. Mas, pouco a pouco, Mariana tinha posto de lado o juiz e voltara para Evelina a sua afeição violenta e solícita.
A delicadeza e a doçura de Evelina agradavam ao vigor másculo de Mariana.
Passavam agora pelo Kurstendamm; os teatros fechavam; os carros apinhavam-se debaixo das árvores. Mariana segurava o volante com as duas mãos.
- Acende-me um cigarro, se fazes favor. estão na bolsa esquerda do carro.-disse ela, apontando com
o queixo.
Esta palavra cigarro despertou em Evelina uma dor e uma queimadura, como se estivesse a dormir desde que Frank partira. Pensou: "Frank partiu, não o tornarei a ver!"
Mergulhou a mão na bolsa e encontrou um maço de cigarros, cigarros americanos que Frank tinha deixado. Ficou um momento imóvel, com o cigarro apagado na boca como
se estivesse a escutar alguma coisa. A ponte de Halensee. Em baixo, continuava a ver-se o sulco dos rails; ao longe, resplandecia ainda a torre da T. S. F. como
anteriormente, e Frank já não estava lá. Elas voltaram pelo mesmo caminho e tudo permanecia como dantes e Frank já não estava lá. Evelina pegou no isqueiro e aspirou
o gosto do cigarro: era como uma carícia proibida e profunda.
Mariana, que esperava com impaciência apaixonada, receber entre os lábios o cigarro aceso - era um velho hábito entre elas - viu de-repente, com um olhar de revés,
o cigarro cair ao chão. O acendedor deslizou no cordão elástico para o seu lugar e Evelina pesava contra o braço de Mariana. "Cá estamos!" pensou ela.
Nos últimos meses, desde o nascimento do Ursinho, acontecia muito a Evelina desmaiar. Sem nenhuma causa visível, caía e tinham muito trabalho para a fazer voltar
lentamente a si. E havia outra coisa de fantástico e de aflitivo nestes acidentes; ao fim de muitas horas, ela
tornava a si, não sabendo quanto tempo tinha andado perdida nas regiões ignoradas do inconsciente. O médico dava a isto nomes vagos: fraqueza, fadiga, consequência
de partos difíceis. Ordenavam-lhe repouso, precauções e não ter contrariedades. Mas toda a vida de Evelina tinha sido assim: tranquila, cheia de precauções e sem
contrariedades. O conselheiro tinha preguntado ao médico se não havia motivo para se inquietar, se não havia perigo. E o médico respondera que não, mas num tom em
que todas as apreensões eram possíveis.
Mariana carregou no travão, o carro chiou e parou. O corpo de Evelina afundou-se um pouco mais no assento, mas o choque não a acordou. Mariana apanhou o cigarro
e acendeu a lâmpada, sempre amparando Evelina com a outra mão e dando-lhe uma posição melhor.
Praguejava baixinho, ao mesmo tempo, porque lhe aborreciam as regiões confusas da alma onde se abrigava essa fraqueza que ela, Mariana, chamava histeria, acudiu
Evelina, acariciou-lhe a testa. Em vão. "Está bonito isto!" - murmurava, inquieta - "Pode durar horas". Descobriu a água de Colónia na bolsa do carro e pôs a rolha
de cristal nas narinas da sua amiga. Nada. Tirando do cigarro vigorosas fumaças, pôs-se em marcha mantendo com o braço direito o corpo de Evelina. "No entanto, não
posso levá-la a Kurt, assim." pensava, inquieta. Parou de novo e pôs-se a reflectir. Havia já dez minutos que Evelina estava desmaiada. Parecia até que tinha prazer
nisso. Os seus lábios continuavam pálidos, mas tinham um sorriso que Evelina, acordada, não conseguia ter. Mariana tirou outro cigarro. De-repente, com resolução
impaciente, aproximou a extremidade inflamada, do braço de Evelina. Esta voltou a si. Parecia consciente da sua culpa.
- Aqui tens para que serve dançar. - disse logo Mariana, num tom de censura - Evelina não se desculpou. Assim que a nuvem negra e brumosa a tinha
invadido, tinha-se-lhe entregue com prazer. Fora como uma pequena morte, muito agradável. Desmaiar era bem mais agradável do que despertar. A partida de Frank causava-lhe
um sofrimento, que ultrapassava as suas forças. O desmaio era para ela uma fuga, uma saída.
- Era tempo que o campeonato acabasse e que esses americanos nos deixassem em paz!-resmungou Mariana - Era uma vida muito fatigante para ti. Devias meter-te na cama
às sete horas, como o Ursinho.
Evelina esfregava a pequena queimadura do braço. Sentia-se muito mal. De-repente, chegaram ao Clube.
- Não contes nada a Kurt, peço-te. - disse ela, à pressa.
- É claro que não.
- Ouve. peço-te. - repetiu Evelina, emquanto seguiam pelo caminho ensaibrado - Sentemo-nos ainda um momento ao pé da barraca.
Mariana acabava de parar o carro.
- Olha, - disse ela - põe a minha capa.
E envolveu a amiga na seda vermelha, aquecida. Deram uma volta ao clube e ficaram um momento sentadas ao pé do balneário, sem trocar palavra. As rãs coaxavam, depois
paravam, recomeçando outra vez. Fazia muito escuro, só o céu estava claro. Era o mesmo céu que dantes.
- Bem, agora podemos entrar. - disse Evelina, por fim.
A orquestra tinha-se ido embora, mas um membro bondoso do clube tocava no piano um velho fox-trott para alguns pares que, meios a dormir, continuavam a redopiar
sobre si mesmos e não queriam parar de dançar. Eram três: uns recém-casados acabados de chegar da sua viagem de núpcias, dois esperançosos jogadores juniores de
tennis, muito contentes da descoberta que acabavam de fazer do seu primeiro amor e
uma bela actriz, em declínio, com um jovem ofuscante que era seu amante. Evelina compreendeu de-repente, ah! sim, compreendeu, esta vontade de não parar de dançar,
de respirar, de se ficar ao pé um do outro!
Na sala de brídge, continuavam a jogar, mas Kurt já não entrava na partida. Sentado diante do fogão de sala, sem lume, estava mergulhado numa conversa. O homem com
quem ele conversava era o professor Senftenberg, o grande cirurgião.
O juiz nem deu pela entrada de sua mulher. Foi somente quando, com o seu gesto habitual, ela veio por trás da cadeira e lhe pôs a mão no ombro, que levantou os olhos.
- É essa justamente a questão, meu caro professor, a grande questão. - concluiu ele, ainda embrenhado no seu assunto.
- Evelina está fatigada, fariam melhor se se fossem embora. - disse Mariana, posta como uma sentinela ao pé da sua amiga.
Droste voltou-se bruscamente e pegou na mão da esposa.
-Não estás bem, pequenina?-preguntou, inquieto.
- Estou. Isto vai bem. - respondeu a boca pálida de Evelina.
- Tens um ar um tanto abstracto. - constatou Droste - Não devias ter dançado.
- Agarra-a e leva-a. - ordenou Mariana.
- Eu gostava de ficar ainda aqui. - respondeu Evelina.
Era uma alegria que lhe despedaçava o coração, ficar ainda ali, onde se tinha encontrado com Frank. As palavras que ele dissera pairavam na atmosfera, a sua pessoa
enchia o vão das portas, o seu rosto subsistia em todos os espelhos.
Droste despediu-se de Senftenberg e de Mariana.
- Volto no fim da semana e levo Evelina para o campo comigo e o Ursinho também. - disse Mariana.
Evelina, em pé, esfregava a pequena queimadura que tinha no braço. Seria bem possível que desmaiasse mais uma vez ali, mesmo no meio da sala de bridge. Sentia no
peito uma impressão estranha, como se todo o sangue lhe tivesse fugido.
Evelina estava habituada a que dispusessem dela. Encontrou-se, uns minutos mais tarde, num táxi a caminho de Wilmersdorf, onde moravam.
Droste pôs-lhe a mão na nuca como era hábito e ela apoiou, com gratidão, a cabeça contra o seu ombro. Era um bom lugar para repousar, este ombro de Kurt.
- Então, minha filha? - preguntou ele, num tom vago.
E, de súbito, começou a assobiar o Coro dos Peregrinos do Tannháuser; era a prova de que estava mergulhado nas suas meditações jurídicas.
"Um banho bem quente" - implorava em pensamento Evelina, emquanto desciam, sacudidos no táxi, em KurfUrstendamm. O banho era do que ela mais gostava, acima de tudo.
Calor, descarregar os nervos, repousar, esquecer. Infelizmente, havia sempre dificuldades para conseguir água quente; é o aborrecimento quotidiano dos inquilinos
que pagam rendas moderadas. A água quente só corria a certas horas do dia; às vezes estava tépida, outras, parava completamente. Mal chegou a casa, Evelina foi para
a sala de banho e deu volta à torneira. A água quente jorrou. Evelina teve um suspiro de alívio. Sentiu obscuramente que tudo corria agora bem. Kurt, fazia barulho
na dispensa, provavelmente procurava fruta. Evelina, com o seu vestido de baile, estava inclinada para a banheira e deixava a água escaldante correr-lhe sobre as
mãos.
Assim que a banheira ficou cheia e que o quarto de banho começou a encher-se de um vapor tépido, foi-se despir para o quarto de cama. Kurt continuava as suas buscas
na cozinha.
- Não há fruta?-preguntou ele, através do corredor - Não encontro nada no guarda-comidas.
Evelina foi à sala de jantar, tirou de cima do aparador uma fruteira cheia de fruta e trouxe-a para o quarto de cama. Pô-la junto do marido, que estava a tirar o
smoking com ar pensativo.
- Bananas? - disse, desiludido.
- Posso fazer-te uma limonada. - propôs Evelina. Parecia ter já esquecido o que queria.
- Como ? - disse - Sim. Agradeço-te. Não. Não vale a pena.
Evelina queria estar só. Queria pensar em Frank. Era importante e urgente. Deixou o marido a meditar diante das bananas e foi para o quarto de banho. Â água quente
estava boa e fez-lhe óptimo acolhimento. Pequenas pérolas de prata espalhavam-se aqui e acolá sobre a sua pele, subindo à superfície e desaparecendo. Evelina contemplava-se
com um ligeiro espanto. O seu corpo era tão novo! Sentia um peso nos joelhos, um tremor nos braços, uma tensão, quási dolorosa, na ponta dos seios. Não sabia o que
havia de fazer desse corpo novo e insatisfeito. Meteu-se na sua solidão, como numa gruta bemfazeja e bem protegida, pensando em Frank. "Escrever-te-ei" tinha ele
dito. Provavelmente nem sequer sabia a sua morada.
Franziu as sobrancelhas, vendo entrar Kurt. Vestia o seu pijama azul e portava-se como se não estivesse ninguém na casa de banho. Foi, pelo menos, essa a impressão
que Evelina teve. Pegou na sua escova de dentes e, num ar profundamente sério, começou a limpar a boca. Evelina nunca tinha reparado, que não havia um único lugar
da casa onde pudesse estar só consigo mesma e com os seus pensamentos. Maquinalmente, pegou na toalha e cobriu o peito. Mas Kurt não a olhava. Trabalhava com a sua
escova de dentes como se qualquer coisa importante dependesse disso. Fora ela que lhe escolhera aquele pijama e lhe fizera presente
dele. No entanto, nessa hora, fazia-lhe lembrar um uniforme de presidiário, pelo seu corte, as suas riscas e a maneira como Kurt o usava.
- Então, minha filha?- preguntou o marido, quando a cerimónia da lavagem dentária acabou. Aproximou-se da banheira e olhou para sua mulher, sorrindo.
- Estes bailes no clube são, na verdade, mortalmente aborrecidos.- declarou, acariciando com a ponta dos dedos o braço que Evelina estendia na borda da banheira
- Senftenberg joga lamentavelmente o bridge.
- Também queres tomar banho?-preguntou Evelina.
Não gostava dos dedos do marido nos braços. Era a primeira vez que sentia não gostar de ser tocada por ele, mas, por delicadeza, deixava o braço onde estava, como
um objecto.
- Um banho, não, mas um duche frio. - respondeu ele.
Evelina tinha horror à água fria. A preferência de Kurt pela água fria fora sempre uma coisa que lhe causara admiração. com um suspiro, decidiu-se a abandonar a
banheira. Kurt estendeu-lhe um imenso roupão e viu-a limpar-se, mas parecia não a ver.
- Tu conheceste a mulher Rupp?-preguntou, de-repente.
Evelina enfiava, justamente, a camisa de noite pela cabeça.
- Conheci. - respondeu, surpreendida.
- Que impressão te causou? - preguntou Kurt, em tom um tanto severo.
Era provavelmente assim que ele interrogava as testemunhas pouco dignas de fé e as constrangia a concentrarem os pensamentos sobre a verdade. Evelina franzia a custo
as sobrancelhas, esforçando-se por se lembrar da mulher Rupp.
Ela vinha, habitualmente, uns dias para a lavagem da roupa e para as limpezas grandes. Evelina recordava
o seu rosto pálido e cheio de sardas. "Cabelos ruivos", pensou indecisa. Depois, feliz por a sua memória se ligar a alguns factos precisos, anunciou:
- Ela teve uma vez uma bolha de água num joelho. por ter encerado tanto sobrado.-acrescentou.
Kurt esperava que a água corresse da banheira. Preguntou:
- Roubava?
- Meu Deus!-disse Evelina, pouco segura-Tu sabes como são as mulheres a dias.
Efectivamente, a mulher Rupp tinha levado no seu saco de oleado todas as coisas que pudera encontrar. Evelina lembrou, com horror, a cena que se dera quando a cozinheira
descobrira nesse saco, sabão, açúcar, dois pares de meias - e lhe chamara ladra e intrujona. Desde então a Rupp não voltara. E eis que era acusada de ter assassinado
a sogra e tinha confessado. "Como é estranho que cada um tenha o seu segredo, mesmo a mulher Rupp!" pensava Evelina, franzindo as sobrancelhas. Parecia-lhe compreender
melhor as pessoas desde estes últimos dias.
De-repente, adivinhou porque a mulher Rupp tinha roubado e, talvez mesmo, assassinado. Esta inspiração foi tão violenta que deu meia volta no corredor e voltou à
casa de banho para contar ao marido. Kurt, agora completamente nu, estava de pé, debaixo do duche. Evelina considerou com impaciência esse belo corpo molhado e fino,
esperando que acabasse o barulho do duche.
- Ela tinha um marido que era um bonito rapaz e por quem estava apaixonada. - disse.
- Quem?
- A Rupp.
- E ainda tem. - respondeu o Conselheiro, começando a esfregar-se.
Evelina saiu da casa de banho e foi maquinalmente ao quarto dos filhos. Fazia isto todas as noites antes de se meter na cama.
Não acendeu a luz, com medo de os acordar, mas através dos vidros da porta, uma claridade vinha da antecâmara. O quarto exalava um bom cheiro a sabão de crianças
e à macela suave e um pouco acre. A Clarinha, a pequena de três anos, estava deitada como sempre, com a cabeça ao pé da grade. Tinha os cobertores ridiculamente
amarrotados. Uma miserável boneca, a que faltavam os braços, dormia com os olhos escancarados na almofada abandonada. Clarinha era uma pessoa exaltada; parecia ter
muito calor, dir-se-ia que o sono era para ela um esforço. Evelina, levantou o corpito e colocou Clarinha na sua almofada, como devia ser. Todas as noites se admirava
ao ver como ela era pesada.
Ursinho,-a rima entre Clarinha e Ursinho (*) era, com grande alegria da primeira, utilizada em muitas poesias e canções - Ursinho quando dormia, fazia um barulho
assombroso. Respirava e ressonava como uma locomotiva, com os dois punhos apertados simetricamente nos dois lados das faces, pois estava ainda nesse estado inferior
da vida dos bebés, em que as duas mãos devem sempre fazer a mesma coisa. As suas faces estavam tão vermelhas que, à frouxa claridade que se filtrava pela porta,
Evelina podia vê-las brilhar. Esta criança era ainda tão nova, tão cheia de encantos, que sua mãe não se podia aproximar dela, sem se sentir penetrada por uma felicidade
apaixonada e muito corporal. Inclinou-se e colou os lábios contra essas facezinhas quentes e húmidas que cheiravam a leite e a pêssego. Por um instante, pareceu-lhe
que não era assim tão absolutamente infeliz, que o futuro não era tão vazio nem tão desesperador, como lhe parecia desde a partida de Frank. Pegou na pequena cabecinha
e colocou-a na palma da sua mão, sentindo-lhe o latejar das fontes. Ursinho fez uma careta: parecia o
(1) Ursinho, em alemão: Barchen; e Clarinha: Clarchen.
rosto de um velhinho de mau humor. Evelina deixou-o e saiu, aflita, para fora do quarto, antes que ele acordasse e se pusesse a chorar.
Era mais de meia-noite. Fora, viam-se brilhar relâmpagos de calor. As janelas do quarto de dormir estavam abertas; os cortinados de tule inchavam levemente. Kurt
não se tinha ainda ido deitar. Evelina chamou-o. Da sala, ele respondeu:
- Já vou.
Evelina sabia que isto representava um prazo de tempo impreciso e foi ao encontro do marido.
Estava diante de uma das suas estantes, com uma banana na mão e um grande livro na outra.
- Vou-me deitar. - participou ela.
Levantou os olhos e olhou-a, como se não pudesse lembrar-se exactamente de quem ela era.
- Bem; - concordou - eu vou já. E continuou a leitura.
Uma vez na cama, Evelina sentiu-se feliz por estar só. Sentia-se espantosamente cansada como depois de uma operação difícil, como depois do nascimento, tão desastrosamente
complicado, de Ursinho. Nela, até a dor estava cansada. "Dormir! Dormir!" Deixou a luz acesa para seu marido e fechou os olhos.
Imediatamente, sem ser chamado, foi o rosto de Frank que se apresentou em lugar do sono desejado. Rosto lindo, rosto querido, rosto único, rosto perdido. Cabelos
negros, lustrosos e aconchegados à roda da cabeça. Uma fronte bem desenhada onde, às vezes, uma veia aparecia saliente, sinal de ennervamento, de impaciência, de
domínio de si próprio. Olhos claros, sob os cabelos negros, boca grande e firme. A sua pele tinha um tom dourado que Evelina nunca vira a ninguém.
- Foi na Califórnia que o apanhei. Tenho plantações de laranjas na costa.
-. Esta cicatriz? Cai um dia com o meu avião. Fui aviador durante a guerra.
- Sim, sou uma mistura exquisita; avós franceses, minha mãe é de Nova Orleans, meu pai era irlandês, mas a mãe dele descendia de uma velha família espanhola da Califórnia.
- Sim, tenho, tenho más maneiras. Isso vem de ter passado um ano em Cuba. Toda a delicadeza que aprendi na China esqueci-a em Cuba.
Emquanto que, de olhos fechados, Evelina estava estendida no seu leito e se recordava de fragmentos de conversas, sentiu de-repente faltar-lhe a respiração, o Conselheiro
Droste, Dílsseldorperstrasse, 47, moradia de quatro aposentos, família honesta, boa burguesia! Como pode ter acontecido esta monstruosidade de um Frank Davis ter
aparecido, que a aventura, a imensidade e todo o universo desconhecido tenham vindo e depois tenham ido, sabe-se lá para onde?
- Já pagaste a conta do gás ?-preguntou o Conselheiro, entrando.
Evelina assustou-se, como se tivesse podido ver o que ela pensava.
- Não. - murmurou, confusa. E depois acrescentou:
- Não sei como hei-de fazer.
Kurt pôs as calças no esticador e pendurou-o no caixilho da janela. Colocou as pantufas no seu lugar, bem em frente da cama. Não era um maníaco mas gostava da ordem.
As molas gemeram docemente no momento em que se deitou.
- Posso apagar a luz ? - preguntou ele.
- É favor. -respondeu ela, aliviada.
A escuridão caiu, franca e suave, sobre as suas pálpebras fechadas.
- Escuta agora bem, minha filha. - disse Kurt, do seu leito - Se eu escrever o cheque-postal e o deixar amanhã em cima da minha secretária, tu encarregas-te de o
mandar à Companhia do gás?
Evelina reflectiu no caso e teve medo. Isto parecia-lhe um negócio complicado e cheio de responsabilidades.
- Não creio. - respondeu, por fim.
- Se tornarmos a atrazar, mais uma vez, a conta, a Companhia corta-nos o gás.- avisou ele, da cama.
Evelina guardou um silêncio teimoso. Que tivessem ou não gás. isso era-lhe completamente indiferente.
- bom, está bem, minha filha.-concluiu o marido, num tom que parecia comovido, o que era ridículo.
O seu braço avançou para ela e passando-o pelas costas, abraçou-a, amigavelmente.
- Fatigada ? - preguntou.
- Muito.
- Então. boa noite. - disse Kurt.
Evelina colocou-se confortàvelmente sobre o seu braço, como de costume, e disse:
- Boa noite.
Passou ainda muito tempo em que ela ficou estendida, sem dormir. Tinha que reflectir sobre tantas coisas, mais do que havia feito em toda a sua vida.
"As crianças - pensava - Clarinha e Ursinho, é um caso diferente. É terno e encantador, mas não pode servir de nada. Não é verdade que os filhos signifiquem alguma
coisa para quem ama. Kurt, os filhos, são assuntos diferentes. Nada têm de comum com o resto, nada. É exquisito. Eu não sou má. Amo Kurt, amo os meus filhos. Não
tenho remorsos pelo que se passou." Abriu os olhos e reflectiu neste problema.
Fora, brilhavam os relâmpagos do calor: durante algumas fracções de segundo, o quarto ficou cheio de luz. Em qualquer parte, numa rua ao lado, ouviu-se a
sineta dum carro de bombeiros. "Que aconteceu?"
- pensou Evelina - Mas não tinha acontecido nada, absolutamente nada. .
Por fim, vieram as lágrimas que se precipitaram dos seus olhos e de-repente inundaram a almofada.
- Não dormes, minha filha ? - preguntaram da
outra cama. .
Evelina reteve a respiração e não respondeu. "Nem sequer posso chorar sozinha!"-pensou, desesperada. Ouviu seu marido suspirar, depois fêz-se silêncio no quarto.
Têrça-feira
O MARIDO
O americano que dançava com Evelina olhou para
o relógio de pulso.
O Conselheiro Droste tinha vindo até à porta da sala de baile para ver a mulher; depois de umas voltas, descobrira-a entre os pares que dançavam. Ele tinha, por
costume, procurar um vestido preto, mas viu que ela trazia um vestido branco, um vestido fino, caindo em pregas pelo seu corpo frágil. Droste não tinha reparado
neste vestido no momento em que vieram para
o clube.
Evelina parecia estar fatigada e ter sono, quando ela e o americano passaram pela frente de Droste. Sentiu alguma pena, pois sabia que ela não gostava de frequentar
a sociedade.
- Estou desesperado contigo. - disse ele a Mariana, que encontrou na sala de bridge, toda de vermelho-fogo e com os braços castanhos-escuros.
- Que fiz eu, meu querido?
- É disparate arrastar-nos sempre para aqui. É muito fatigante para Evelina.
- Agora que consegui obter para vocês este belo e caro cartão de convite, é preciso aproveitar. - disse Mariana que, no fundo, pensava outra coisa.
De-facto, a cota de sócio seria muito elevada para os ganhos de Droste. Mariana, pelo contrário, havia ganho o primeiro prémio e a adjudicação para a construção
de uma colónia popular; estava actualmente numa situação brilhante e, bondosamente, obrigava os amigos a tomarem parte no seu êxito.
- Um pouco de natação e de tennis não pode fazer mal a Evelina. Ficar todo o tempo em casa a ouvir palrar o Ursinho, não é grande coisa para os seus nervos.-acrescentou
ela, arrastando Droste pela manga,
- Queres que te arranje uma mesa de bridge?
- Sim, mas sem estrangeiros. Não posso jogar tão forte. - respondeu Droste.
Na realidade, gostava muito das noites que passava no clube. Eram para ele um verdadeiro repouso, depois da fadiga dos debates. Mas, no decurso das provas de campeonato,
o clube tinha tomado uma fisionomia nova. A colónia inglesa e a colónia americana, de Berlim, encontravam-se ali, assim como o embaixador de Espanha e o cônsul da
Turquia. Falavam mais inglês do que alemão e ladies, de chapéus britânicos, extraordinários, apareciam na tribuna. Droste ficava incomodado com a presença de todos
esses estrangeiros barulhentos, um tanto sem cerimónia e de tão brilhante humor, de modo que, por simples espírito de oposição, era impelido para o pessimismo.
Impossível pensar no xadrez, durante o tempo em que, na sala ao lado, o jazz tocava. Pessoas razoáveis com quem, noutras ocasiões, se podia ter longas conversas
agradáveis, tornavam-se ridículas a dançar o fox, na sala de baile. E Evelina, muito meiga e muito amável para recusar, dançava por simples cortezia com esses garotos,
turbulentos e meio civilizados, da América, embora ela não suportasse a dança e, além disso, lhe fizesse mal à saúde.
Droste estava descontente e nervoso, engulia violentamente o fumo do cigarro.
- Então, querido, que é que te corre mal? - preguntou Mariana, que o conhecia melhor do que ele a si mesmo.
- Assististe aos debates de hoje?
- Não. Não tive tempo. Porquê?
- Por nada. Gostaria de conversar contigo.
Mariana frequentava há muito e com prazer, as salas de audiência. Tivera, com Droste, dois anos antes de ele casar, uma ligação estreita mas breve, que rapidamente
se tinha transformado numa sólida amizade. Guardara dessa época o hábito de assistir aos processos dirigidos por Droste e ele nunca deixara de conversar com ela
a respeito dos assuntos que o preocupavam.
- Então diz lá. - disse ela.
Sentaram-se diante do fogão de sala. Mariana tinha tomado a sua posição predilecta, uma perna dobrada por baixo de si, como se vê nas mulheres das miniaturas persas.
Olhava-o, ávida do que ele ia dizer.
- É por causa dessa Rupp. Ela confessou ter envenenado a sogra. - disse Droste, tratando o seu cigarro como se fosse um adversário - Tudo está perfeitamente claro,
acreditando nela. Mas há qualquer coisa que não soa bem. O que essa mulher conta é mentira, tenho tanto a certeza como .
Droste pôs-se a reflectir. Mariana olhava-o, profundamente interessada. Ela gostava da fina rede de rugas que lhe cobriam a testa, conhecia-o como um mapa geográfico
que se leu muitas vezes. Era como se, através da fina parede do seu crânio, pudesse ver-lhe trabalhar o cérebro. Nele, tudo era fino e ágil: a estatura, a cabeça,
as mãos e os cabelos. Era de boa raça, um alemão do norte, afinado, filtrado ao excesso por numerosas gerações.
- Vamos, diz lá o que aconteceu, Puschel? preguntou Mariana, lembrando-se do antigo nome familiar.
- Se esta mulher está inocente, o menor castigo será ainda muito rigoroso para ela. - disse Droste, arrancando-se de-repente aos seus pensamentos.
- Mas tu não dizes que confessou? - observou Mariana, surpreendida.
- Precisamente. - replicou Droste, que se afastou. Mariana seguiu-o com um olhar espantado, pôs-se
a assobiar e, depois, levantou-se e foi reUnir-se a uma mesa de bridge.
Maquinalmente, Droste tinha voltado à sala onde dançavam. O ennervamento que lhe causara este dia de infrutíferos debates, juntou-se ao descontentamento de estar
a perder a noite no clube. Acabava de se lembrar, de-repente, de um livro que tratava de crimes de envenamento e onde queria procurar qualquer coisa.
No momento em que entrava na sala de dança, a sua intenção era chamar a mulher e voltar para casa para se entregar ao seu processo e aos seus documentos. Mas não
conseguiu descobrir Evelina. Causou-lhe um certo prazer verificar que ela já não estava ocupada em guiar, através dos pares de dançarinos, um jovem estrangeiro a
suar. Encontrava-se ainda na porta e já tinha esquecido totalmente a mulher. Emquanto olhava para os pares bem vestidos, a Rupp metia-se entre eles. A Rupp, uma
mulher já de idade, no fim dos quarenta anos, de cabelos ruivos, muito secos, com um grande nariz chato coberto de sardas, mãos estragadas pelo trabalho, pregadas
sobre o ventre de mulher grávida.
Ela era amável, sempre disposta a dar explicações e a ajudar a justiça a acelerar as discussões que se arrastavam. Os seus depoimentos, feitos em voz fraca, eram
claros, precisos e bem ordenados. Tinha quatro filhos e esperava o quinto. Seu marido estava desempregado, havia ano e meio.
"E o andar ao alto não faz um homem melhor" tinha ela declarado. A família empilhava-se toda num quarto e numa cozinha. Tinham consigo, até ao assassinato,
a mãe de seu marido, muito doente, velha e insuportável. A Rupp não era simpática mas tinha boa fama. Esfregava os sobrados por casa de uns e de outros, cosia, fazia
limpezas e lavava a roupa para ganhar qualquer coisa. Uma pobre criatura, esta Rupp, que confessava tão claramente ter assassinado a sogra.
Droste estava descontente consigo próprio. compreendia que fazia arrastar as discussões desmedidamente, apenas porque tinha medo, um medo extraordinário, de deixar
pronunciar a sentença emquanto não tivesse uma certeza. Esta Rupp perseguia-o, com o seu rosto pesado e imóvel, de feições imprecisas de mulher grávida, voz fraca
e velada, com as palavras desajeitadas de que se servia para se acusar a si própria.
"E, como já lhes disse, deitei de-repente na sopa todo o remédio de matar ratos, para obter a paz, pois a vida com ela era um inferno."
Havia três noites que Droste tinha de tomar veronal para se desembaraçar daquela mulher. O seu processo era para ele uma tortura. Adivinhava que não ia ainda poder
dormir nessa noite.
- O senhor está convidado para uma mesa de bridge. - disse Mariana, por trás dele - A não ser que queira dar-me a honra de uma dança.
- Conheces os meus talentos de dançarino.-respondeu.
Mas, vendo-a de pé diante de si, de tal forma que a seda vermelha do vestido roçava os seus joelhos, decidiu-se a cingir-lhe a cinta e pôs-se a dançar distraidamente.
- Não está de todo mal para um juiz! -notou Mariana, com ironia.
Durante esse tempo, levado talvez pelo ritmo, ele tinha achado uma fórmula.
- Existem dois pecados mortais para um jurista: deixar fugir um culpado e condenar um inocente. Não sei qual dos dois é mais grave para um homem que tem por profissão
fazer justiça.
Deu depois, sem dizer palavra, uma volta à sala. O seu cérebro trabalhava. E de-repente:
- Tenho a impressão - disse-- que neste malvado processo se passam as duas coisas.
Mariana parou.
- Mas quem? - preguntou ela - Quem queres tu que tenha sido senão a Rupp?
- O marido, claro! - respondeu o juiz, a meia voz.
- O marido, como? Descobriste alguma coisa contra ele?
- Não. Nada. É justamente o que me põe maluco. Onde está Evelina? Quero ir para casa.
- Vamos, deixa-a em paz. Tu és uma verdadeira governante de meninos. Tiras-lhe todo o espirito de iniciativa. Conta-me, antes, tudo o que sabes desse Rupp.
Droste parou de dançar e, arrastando Mariana para o terraço, começou:
- Imagina tu isto, Mariana: sete pessoas vivendo num quarto, numa cave: o marido, a mulher, quatro filhos e a sogra. O homem só casou com a mulher, depois de lhe
ter dado três filhos. Ele era a beleza da rua, moço de talho, um desses biltres por causa de quem todas as criadas vão à loja, quando as mandam às compras. Tem o
ar de um tocador de trombeta numa orquestra de estância termal. A mulher Rupp era uma dessas criadas. Parece adorar o homem e sentir-se devedora para com ele de
uma eterna gratidão, não somente por a ter engravidado, mas ainda por ter casado com ela. Logo ao princípio do casamento: gritos de criança e miséria. O leite ferve,
os cueiros estão pendurados a secar por cima do fogão, os garotos têm tosse convulsa. A mulher, todas as vezes que seu marido se aproxima, fica grávida. A casa é
húmida; pelas janelas só se vêem os sapatos das pessoas que passam fora. Desde o princípio que o dinheiro não chega. Ele nunca roubou, não briga com ninguém, nem
sequer bate na mulher. Ela só diz bem dele. o que não impede esse
sr. Rupp de ser para mim um indivíduo soberanamente antipático. Um desempregado numa casa é qualquer coisa de terrível. Acaba por perder a dignidade, por se desesperar
a si mesmo. É infeliz e a sua natureza, pouco complicada, de magarefe, não pode exprimir o seu aborrecimento senão fazendo sofrer, torturando a familia. No entanto,
o inferno só começa na realidade, quando a sogra vem morar com eles. A velha Rupp é um verdadeiro demónio. Desespera-se, porque conheceu melhores dias: já teve uma
loja sua. Como o filho não pode ajudá-la, vem com armas e bagagens para casa dele e é o diabo. Despreza a criada que casou com o seu maravilhoso rebento. Toma o
lugar da mulher no quarto, no fogão, ao pé dos filhos, ao pé do marido. A mulher faz o que pode: lava, esfrega, trabalha, ganha qualquer coisa, tem desmanchos, fica
anémica, envelhece, torna-se feia. Luta pelo seu homem. Mas a outra tem nas mãos um trunfo de primeira ordem: o testamento. A velha Rupp tem um seguro de vida de
mil marcos, pagáveis por sua morte. Será uma fortuna para os Rupp, na sua cave. A mulher suporta muitas coisas. Cede à sogra o seu próprio leito, dorme num banco
da cozinha e, quando as crianças não a deixam dormir, passa horas a pensar na morte da velha. Esta é doente dos intestinos, mas não morre. Dir-se-ia que é por espírito
de contradição, mas continua viva. Serve-se das suas dores para torturar a nora, com as suas desagradáveis enfermidades, com as suas exigências, mas não morre. A
mulher Rupp vai ter outro filho; emquanto a velha viver, não haverá lugar para a criança que espera; ela não tem dinheiro para as fraldas, nem mesmo para mandar
fazer um aborto. A mulher Rupp está doida, os seus nervos chegaram ao fim. Compra um pacote de remédio para matar ratos e deita-o na sopa da velha. Esta morre. Tudo
correrá bem. Mas a Companhia de seguros põe-se a fazer preguntas, a fazer inquéritos. A ausência de um médico parece suspeita. Faz-se a
autópsia: encontram arsénico. A mulher Rupp confessa. Passa quatro meses em prisão preventiva. Agora já está grávida de mais de sete meses.
Droste calou-se, olhando para as mãos. Estava com Mariana como numa ilha. Todos os outros dançavam, riam, flartavam.
- Não sei-acrescentou, um pouco acanhado-se podes imaginar a situação exacta.
Mariana olhou-o, pensativa, com uma expressão de profundo respeito.
- Para alguma coisa me serviu estudar cinco anos as casas operárias. - disse negligentemente, sem deixar de o olhar--Mas se confessou tudo, que te preocupa? Tens
pena dela?
- Pena? Um juiz não tem o direito de ter pena. Não. O que me preocupa, é isto: o marido é acusado de cumplicidade. Ele e a mulher pretendem que ele nada soube do
caso. Ouvido. Um homem sabe exactamente o que a mulher faz. Não posso deixá-lo absolver.
- Não é agradável representar nesse processo os interesses da Companhia de seguros. - disse Mariana, imprevistamente.
Droste piscou os olhos a este ataque repentino. Sentira-se melhor, ao traçar-lhe o quadro da vida dos Rupp.
- Porque não casei eu contigo, Mariana ? - exclamou, com grande surpresa sua.
Mariana continuou a contemplar as suas próprias mãos.
- Regozija-te. O casamento com as mulheres da minha espécie é muito ennervante.
- O casamento com qualquer mulher é sempre ennervante. - replicou Droste.
Logo se arrependeu. "Como sou injusto para com Evelina!" pensou. Ele amava sua mulher imensamente, pela sua fragilidade e delicadeza. Sentia o olhar de
Mariana pousado sobre ele, um olhar espantosamente penetrante e perscrutador. Ficou um instante sem dizer nada, depois, agarrou-o pelo braço e guiou-o através das
pessoas que estavam na sala de bridge.
- Agora, - disse em tom severo - vais jogar até teres sono e esqueceres a Rupp.
- Sim, talvez. - respondeu, um pouco aliviado. Mariana era boa. Conhecia pelos seus olhos
quando ele abusava do veronal e sabia dissuadi-lo de o tomar.
A mesa de jogo era composta por Mariana, ele, o cirurgião Senftenberg e a velha Lungstroem. Esta última tinha sido, na sua juventude, uma grande cantora de Wagner.
Desde que envelhecera, só se interessava por duas coisas: o bridge e as corridas de cavalos. Parecia um homem, um velho violoncelista com a cabeleira grisalha, o
vasto peito, os vestidos de tweed e com um estranho charuto, pequeno, ao canto da boca.
Droste sentiu os nervos distenderem-se levemente, assim que cortou as cartas que lhe fugiam dos dedos com extrema facilidade. Mas ainda não jogavam havia dez minutos,
quando os seus pensamentos se puseram a correr ao acaso. Certas preguntas e respostas do interrogatório cruzavam-se-lhe no cérebro e misturavam-se-lhe nos lábios
com as curtas exclamações dos jogadores. Duas vezes a senhora Lungstroem bateu na mesa, com os dedos ossudos, para o convidar a concentrar os seus pensamentos. "Ao
trabalho, senhores. - exclamou ela - Não estamos aqui para nos divertirmos". Era este um dos seus tradicionais gracejos de bridge.
Droste esqueceu-se de jogar e Mariana, suavemente, tocou-lhe na perna. A dama de paus tinha um rosto sarcástico e maldoso. De-repente, ele voltou em cheio ao seu
processo. Mas tinha boas cartas e bastou-lhe jogar maquinalmente para ganhar.
A partida estava um pouco desarranjada, quando um desses fogosos tenistas americanos veio buscar Mariana
para a levar ao bat. Para o seu lugar foi o velho jogador conselheiro Regen que, havia meia hora já, rodava como um leão, rugindo, à procura de parceiros. Um pouco
mais tarde, Evelina apareceu por um instante e pôs a mão no ombro do marido, justamente no momento em que este devia fazer um anúncio astucioso de quatro sem trunfo.
Parecia que se tratava de acompanhar à estação os americanos. Pensou que o Clube exagerava um pouco a cortesia para com os jogadores estrangeiros, mas não era a
ele que competia protestar.
Assim que o grupo partiu, sentiu um pouco de mau humor. Tinha más cartas e todo o seu entusiasmo havia desaparecido. Deixou de jogar e sentou-se a um canto com Senftenberg.
Este também estava de mau humor: um dos seus doentes tinha morrido, uma velha, duma simples apendicite e isso enraivecia-o. Era uma conversa de homens que os satisfazia
a ambos, embora cada um falasse para si. Droste discutia a respeito da mulher Rupp e Senftenberg do apêndice. Evelina voltou e Droste lamentou tê-la deixado ir à
estação. Tinha um ar nervoso emquanto que Mariana, a seu lado, respirava energia como um fogão aquecido ao rubro.
O Conselheiro embrulhou a mulher e prepararam-se para partir. Ele queria ir de metro, mas quando viu mais de perto a cara de Evelina, que traía a sua fadiga e abatimento,
fez sinal a um táxi.
- Não é pequena coisa - disse, instalando-se no carro - falar inglês toda a noite com pessoas que não se conhecem e que ainda por cima não têm nada a dizer.
Evelina sorriu vagamente. Mal o carro se pôs em movimento, logo a mulher Rupp se impôs de novo ao seu pensamento. Era ridículo deixar-se assim torturar por essa
história. Para falar sinceramente, ele tinha pena dessa mulher. Mas a piedade era um sentimento indigno de um juiz. Não havia que duvidar: a mulher Rupp obteria
circunstâncias atenuantes. Mas, mesmo
nesse caso, não escaparia a trabalhos forçados. Daria à luz o seu quinto filho no hospital da prisão e seria autorizada a tê-lo com ela durante o tempo da amamentação.
Depois, a criança iria para a assistência. Os outros quatro também. O marido vadiaria ainda mais e ficaria perdido. E a Companhia de seguros teria ganho os seus
mil marcos. Não, na verdade, este negócio não era nada satisfatório. E, o que era inquietante, era ver a acusada oferecer-se tão claramente à condenação, ficar para
ali completamente inerte, indiferente, impossível de penetrar.
O marido, esse, era outra coisa. Sanguíneo, estava sempre de bom humor, sempre disposto a rir ao menor gracejo feito na audiência. Era suspeito de estar ao facto
do crime ou mesmo de ter tomado parte nele. Por isso figurava como acusado. Droste estava absolutamente convencido da sua cumplicidade. Mas não tinha a mínima prova
contra ele. Dir-se-ia que a mulher, com a sua grande barriga, se punha diante dele para o esconder e proteger. Mas isso era da sua parte um erro profundo, absoluto.
O táxi parou. Droste desceu, ajudou sua mulher a sair, pagou maquinalmente, abriu a porta também maquinalmente. Acendeu a luz da escada. Aí respirava-se esse cheiro
bafiento das casas onde, em todos os andares, vivem dois locatários que, todas as sextas-feiras comem peixe e, todas as semanas, cozem couves.
Evelina subiu em passo fatigado. Era como uma criança que tinha querido ficar a pé tanto tempo como seus pais e não tinha saúde para o fazer. O clube, a dança, os
americanos, tudo isso não valia nada para Evelina. Droste abriu a porta de casa e fez entrar sua mulher.
A antecâmara era apenas um longo corredor onde estavam alinhados o carro do Ursinho, a bicicleta da criada Verónica e o arco da Clarinha. Os aposentos de Droste
nunca estavam absolutamente em ordem. E isso aborrecia um pouco o Conselheiro, que era um
homem muito metódico. Evelina era demasiado inerte para dirigir uma casa. Passou, como cega, do corredor para o quarto de cama. A meio caminho, deixou cair uma luva
que nem sequer apanhou.
Droste tinha na boca um gosto seco e amargo. Era do veronal.
- Temos fruta ? - preguntou.
Mas sua mulher não o ouviu. Atravessou a cozinha e dirigiu-se ao guarda-comidas e à geleira.
Era um erro, um erro absoluto da parte dessa Rupp assumir toda a culpa para salvar o marido, da prisão. Durante o interrogatório, tivera momentos em que chegara
a convencer o Conselheiro. Se a mulher fosse presa, era a ruína da família. Um erro. Era o contrário do que devia ser: o homem devia assumir toda a responsabilidade
e desaparecer. A mulher, impassível, pesada e trabalhadora, lá se arranjaria e mais os filhos. Havia força nela como num campo areento, de batatas. Droste olhava
para as batatas em que, sem dar por isso, mexia. No guarda-comidas, como de costume, não havia fruta.
Finalmente, chegaram a encontrar umas bananas e Evelina pareceu muito orgulhosa. Droste, de mau humor, começou a descascar uma. Cheirava bem, mas quando ele a mordeu
foi, como sempre, a mesma decepção pastosa e sem gosto.
Droste andava pelo que eles chamavam a sala de estar, mas que, no fundo, era o seu gabinete de trabalho. Não que quisesse afastar a esposa, mas Evelina era uma dessas
mulheres que edificam toda a sua vida privada na cama. Os seus livros, as suas revistas, as suas cartas, os seus bonbons, coisas que deviam ser feitas, o livro das
despesas que Droste lhe tinha preparado e que nunca estava em dia, de tal forma que as importâncias que faltavam deviam ser inscritas nos Diversos-tudo isso e outros
pequenos nadas, se encontravam na cama da Evelina transformando-a numa espécie
de escritório particular. Não podendo encontrar o livro que procurava, Droste vagueava ao acaso. Foi parar ao quarto de dormir e descobriu, finalmente, o que desejava:
um bom duche frio.
Tinha já tirado o casaco, acabou de se despir e envergou o pijama procurando sempre, de sobrancelhas franzidas, em que livro tinha lido esse interessante capitulo
sobre os envenenamentos, e que não conseguia encontrar. Pinot? Pindol? Bintop? Procurava ainda o nome do autor francês, no momento em que entrou no quarto de banho.
O cheiro tépido e perfumado de uma mulher a banhar-se, feriu-o em cheio. Era uma das coisas de que não gostava, mas a que se tinha habituado.
Evelina passava o seu tempo na banheira; se pudesse, demorava-se lá dias inteiros, como os loucos no banho permanente. Droste reprimiu a sua impaciência e trocou
com a mulher algumas palavras insignificantes e indiferentes. Pôs-se a lavar os dentes com ostentação e a gargarejar ruidosamente. Era, tinha a experiência disso,
um meio eficaz de afastar Evelina e de se apoderar da casa de banho. Efectivamente, ela soltou um suspiro de despedaçar o coração e saiu da banheira.
No mesmo instante, Droste sentiu-se tomado de um violento sentimento de ternura para com a pequena pessoa abandonada, sentimento que era o essencial da sua união
com ela. Esta punha, no tapete, um pèzinho de criança, inquieto e hesitante, tremendo ao sair da água quente. Apressou-se a pegar num roupão e a envolvê-la. Ela
teve um sorriso cheio de gratidão. Droste notou que emmagrecera muito desde o nascimento de Ursinho. O seu corpo era semelhante ao das mulheres pintadas por Lucas
Cranach, esbelto, com a bacia saliente e, como essas mulheres, ela olhava-o, emquanto se secava, com um olhar de lado, pueril e manhoso. De-repente, sem que a chamasse,
a Rupp apareceu outra vez diante dele.
Como estava direita, sentada nos bancos dos réus, sem olhar uma única vez para o lado do marido! No entanto, grossas gotas de suor caíam-lhe da testa amarela, emquanto
o interrogavam a ele. O seu advogado teve que pedir para lhe darem um copo de água.
- Tu conheces bem a Rupp?- preguntou o Conselheiro, no momento em que Evelina, depois dos seus graciosos ombros estarem cuidadosamente enxutos, vestia a camisa de
noite.
Teve de-repente a impressão de que, a despeito da sua ignorância, Evelina podia dizer-lhe coisas mais importantes sobre a acusada, do que o faria Mariana, com toda
a sua inteligência em assuntos sociais e psicológicos. Todavia, Evelina não sabia mais nada do que já era sabido ou seja, que a Rupp vinha lavar roupa a casa deles
e que era pobre. Logo que conseguiu emfim pô-la fora da casa de banho e se entregou às delícias do duche frio, Evelina voltou para lhe fazer, da porta, uma comunicação
sensacional. "A Rupp tinha um homem pomposo, por quem estava muito apaixonada". Droste acolheu esta informação com um sorriso impaciente, sacudindo a cabeça e parando
o duche. Pensava com antipatia nesse molho de carne vigorosa sentada no banco dos réus.
Ouvindo o ranger da porta do quarto dos filhos, compreendeu que Evelina acabava de fazer as suas orações da noite ao pé da cama de Ursinho e dirigiu-se para a biblioteca.
Roberto Pinchot, História de envenenamentos. Não era um livro, mas uma série de estudos na Revue Générale du Droit, de La Législation et de la Jurisprudence.
Folheou os velhos fascículos que cheiravam a fumo de cachimbo. No escritório, fumava sempre cachimbo; só em casa se resignava aos cigarros mais discretos. Depois
de várias buscas, acabou por encontrar o que queria e aquilo de que tinha guardado certa lembrança: uma psicologia geral do envenenamento. Leu:
".O envenenamento é o crime típico da mulher.- . Na história dos envenenamentos célebres, que atingiram o seu apogeu uma vez durante a Renascença, outra na França
de Luís XV, vários desses crimes foram cometidos por mulheres. Os motivos vulgares são: o ciúme, uma vingança de mulher desprezada, aavareza."
Droste suspirou. Que ligação podia haver entre os crimes da Renascença e a mulher Rupp, essa mulher a dias que se matava a trabalhar na sua cave ? Fez um gesto de
impaciência assim que Evelina veio perturbá-lo e pôs-se a ler. Tinha começado a folhear a sua revista, de pé, em frente da estante. Instalou-se depois numa funda
poltrona e pôs os óculos. Pinchot tinha consagrado um capítulo inteiro aos envenenamentos dos pobres, a esses crimes desajeitados e cruéis, cometidos com a ajuda
de veneno dos ratos.
Um mundo selvagem, primitivo e infernal, no qual camponeses assassinavam os seus apaixonados; as filhas, para serem livres, matavam os pais, em que operárias se
desembaraçavam, pelo veneno, de crianças indesejáveis. Droste não deu pelo tempo que durou esta leitura; o assunto interessava-o. Quando levantou os olhos, estava
frio na casa e os relâmpagos enchiam as janelas, fazendo sobressair por instantes, sob o céu, as árvores da rua, com uma claridade e uma precisão surpreendentes.
Droste espirrou duas vezes. Não podia permitir-se o luxo de uma constipação durante um processo tão importante. Bocejou e pôs de lado o seu Pinchot. Depois ficou
ainda um momento diante da escrivaninha, leu as notas para o dia seguinte, que tinha tomado, e lembrou-se de que a conta do gás ainda tinha de ser paga.
Finalmente apagou a luz e dirigiu-se para o quarto da cama.
O candeeiro estava aceso ainda na mesa de cabeceira, mas Evelina parecia dormir. Só depois de lhe ter lembrado a conta do gás ficou com muita pena de a ter
acordado. O seu rosto, na almofada, desenhava-se pequenino e fatigado. A vista desses cabelos eram, para ele, todas as noites, uma causa de admiração, e Ela usara-os
compridos até ao nascimento de Ursinho, duas longas tranças prateadas pelo muito escovar é que pendiam da cama. Tinham-lhos cortado na casa de saúde, porque dava
muito trabalho conservar esse cabelo em ordem. Agora só havia uma auréola prateada, como musgo suave, em volta do rosto. Droste considerava isto com ternura, fazendo-lhe
sempre censuras por causa da conta do gás, esquecida. Quando apagou a luz, sentiu o desejo ardente e vago de tomar a mulher nos seus braços e de se entregar completamente
a ela. Esquecer a Rupp, esquecer tudo, fatigar-se ao contacto de Evelina e adormecer.
De-facto, o corpo quente e leve de Evelina estava estreitamente encostado a ele e descansava no seu braço. Droste sentiu-lhe a curva delicada das ancas, na curva
do seu cotovelo, quando a cerrou acauteladamente. Escutou esse corpo familiar, mas nenhuma vibração lhe respondeu.
- Fatigada? - preguntou, com precaução.
- Muito. - foi a resposta.
Droste limitou-se a suspirar. Vigiou a sua própria respiração, as pancadas do seu coração que, desiludido, acalmou. Sentiu-se invadido de saudades.
Eram saudades de Mariana, como o verificou subitamente. Mariana era forte. Mariana era boa. Ao pé dela podia uma pessoa fatigar-se e adormecer. Á mão, pousada sobre
o peito de Evelina, que respirava brandamente, ficou frouxa. Ela afastou-se um pouco dele.
Relâmpagos na janela. A Rupp. Os debates. Mariana. Evelina. Querida Evelina, querida! A Rupp. A almofada começava a estar quente. A tempestade pairava no ar. Não
podia adormecer. As 59
testemunhas de acusação. "Onde estava o acusado, no dia em que sua mãe foi morta?" Estado crepuscular.
Droste estendeu a mão com extrema prudência. pôs a língua entre os dentes e, sem barulho, abriu a gaveta da mesa de cabeceira. Procurava veronal. Escutou a respiração
de Evelina. Não a ouvia. Tinha agora um comprimido de veronal na mão; procurou água, pôs o comprimido na boca, engoliu-o de-pressa, como quem faz qualquer coisa
vergonhosa e proibida. Escutou de novo. A respiração de Evelina era agitada, não parecia dormir.
- Evelina, dormes? - segredou ele.
Não obteve resposta. A respiração também se extinguiu no leito vizinho.
Droste suspirou, voltou-se e tentou adormecer.
Quarta-feira
ELE
Chovia, quando Frank Davis chegou, pelo meio-dia, a Paris; uma doce e garrida chuva de prata, que dizia bem com a cidade. Frank acertou o relógio pela hora francesa.
Só tinha duas horas até à sua conferência.
O hotel, onde habitualmente ficava, estava situado por trás da Chambre des Deputés, na pequena e sonolenta Place de la Bourgogne. Frank antipatizava com os grandes
hotéis do bairro de l'Étoile que regorgitavam de americanos. Havia um certo snobismo nesta predilecção pela margem esquerda, talvez até uma hereditariedade da sua
avó francesa. Ele não queria passear em Paris com a etiqueta de americano. De-resto, já lá tinha passado um ano e desde então, voltava regularmente. Encontrava-se
por isso perfeitamente à vontade na cidade e falava o francês correctamente, com um leve acento da Nova Orleans.
A dona do hotel recebeu-o com entusiasmo, assim que pôs pé na minúscula entrada. Tinha deixado parte da bagagem em Paris, quando foi dar um salto a Berlim e isto
era, como que um feliz regresso ao lar. O porteiro entregou-lhe cartas e cabogramas. O elevador estava justamente em reparação, fenómeno frequente no Hotel de la
Bourgogne e Frank subiu a escada
a correr, a-fim-de ir para o seu quarto. O cabograma vinha de Santa Bárbara. Pearson, seu secretário, comunicava-lhe o preço mais baixo que era possível oferecer
para introduzir em França as laranjas da Califórnia. Frank contemplou o cabograma, franzindo as sobrancelhas, e pôs-se a calcular. As maçãs do Estado de Colúmbia
tinham escorraçado do Continente todas as outras maçãs, não havia portanto razão para que as laranjas da Califórnia não fizessem o mesmo. Frank, é certo, não tinha
uma alta opinião das laranjas que queria vender; considerava-as como frutos de um sabor medíocre e boas, quando muito, para misturar com outros sumos de frutos.
Mas eram doces e baratas e uma campanha de publicidade bem organizada seria capaz de convencer o povo de bebedores de café com leite, da utilidade de um copo de
sumo de frutas, tomado antes do pequeno almoço. Frank imaginava já o texto de uma grande página de reclame emquanto preparava o seu estojo de barba.
Havia uma carta de Londres: Pearl. Ali tudo parecia estar em ordem. Uma carta garatujada por Marion: ela esperava que ele a chamasse ao telefone. Um telegrama de
Pearl que também o chamava ao telefone. "Espero chamada sete horas noite no Claridge." Era bem Pearl: disposições claras e raciocinadas. O preço das laranjas da
Califórnia era ainda mais elevado do que o das espanholas e sicilianas e, além disso, as laranjas da Europa eram melhores. Havia também as importações das colónias
da África do Norte. Era preciso tomar uma decisão: ou trabalhar o primeiro ano para perder, ou então abandonar inteiramente a idea. Frank não gostava de abandonar
um projecto. Tinha um fraco pelos negócios arriscados; eram mais excitantes: como uma bela partida de poker.
Banho, barba e, durante todo esse tempo, cifras, cálculos. Frank, embora não tivesse nunca triunfado em matemáticas, tinha a faculdade de operar rápida e
seguramente, sem escrever, com seis algarismos. Laranjas, caixas, dólares, francos, eram coisas com que ele sabia calcular. Frank, emquanto passeava nu pelo quarto
de cama e casa de banho, escrevia números numa folha de papel, que tinha em cima a gravura do hotel e um mau retrato da proprietária.
Houve uma avalanche rápida e entusiasta de amabilidade da parte do criado de quarto, André, que trazia uma leve refeição. Frank vestiu-se, comeu sem se sentar e
acendeu um cigarro. Sentia-se bem, tinha esquecido o seu mau humor de Berlim. com a Alemanha era absolutamente impossível fazer negócios nesse momento: era um país
muito pobre. Frank, emquanto pedia Passy, envergou o casaco.
Marion respondeu imediatamente:
- Está? És tu, foujou?
Era uma das habilidades das mulheres francesas, encontrarem-se quando se desejava e estarem sempre prontas a fazer o que se queria que elas fizessem.
A gralhada ao telefone fez sorrir Frank, mas não desfitou o seu relógio de pulso, emquanto falava com Marion.
- Não posso almoçar contigo, - disse ele - bem sabes que tenho uma aborrecida conferência com Farrère. Mas depois. peço-te que me reserves a tua tarde.
- O pachá manda, a odalisca obedece.-respondeu Marion lá longe, em Passy.
Frank pôs os papéis na algibeira, deitou umas gotas de água de alfazema no lenço, lançou um rápido olhar para o espelho e saiu do hotel.
A chuva tinha cessado; um sol pálido reflectia-se no pavimento molhado. Uma primavera violenta, um poucochinho melancólica, reinava em Paris. Quando o seu táxi passava
pela ponte, diante das gordas floristas, Frank lembrou-se, de-repente, da mulherzinha de Berlim: Evelina. Devia ter sido por causa dos ramos de mimosas
que ali estavam amontoados em feixes. Depois lembrou-se que Evelina gostava de mimosas. tinha pensado mandar-lhas em despedida e esquecera-se. Que pena!
A casa da rua Meyerbeer apresentava um aspecto um pouco deprimente. Era a quarta conferência de Frank com os franceses e o seu regatear tenaz e mesquinho, impacientava-o.
Ele era muito americano para compreender que um grande sindicato pudesse estar instalado num prédio tão miserável. À entrada, escudos pretos cobertos de letras douradas.
Nada de elevador numa escada escura, com luzes de gás, degraus de madeira que rangiam debaixo dos pés.
Farrère era um homenzinho de barbicha. Tudo nele era quadrado, tão alto como largo, a fronte, a barba, as mãos, o busto. Usava por cima do colete uma corrente de
relógio, de senhora, fina e fora de moda. Quando pensava, tirava um palito de ouro com o qual coçava os ouvidos.
Era extraordinariamente amável; apertava o braço a Frank chamando-lhe Mon cher e mon vieux, mas era tenaz e desconfiado. Dubarreaux estava sentado à secretária,
silencioso, tendo diante de si uma caixinha e fios nos ouvidos, pois era surdo. Frank devia gritar para essa caixinha todas as suas propostas, o que o divertia imensamente.
Eles tinham levado o seu advogado, monsieur Franchetot, que usava uma fita vermelha na lapela e tinha maneiras de excelente actor que deixava cair as palavras, em
vez de falar de uma vez.
A discussão prolongou-se durante duas horas, sem resultado. Farrère e Dubarreaux escudavam-se atrás de um poder desconhecido a que chamavam nos amis. Pelo que diziam,
os nos amis eram absolutamente hostis às laranjas da Califórnia; e nos amis não queriam arriscar-se a experiências perigosas e Farrère e Dubarreaux não podiam assumir
a responsabilidade de levar nos amis a experimentar novidades inteiramente por
verificar. Frank, com as mãos nas algibeiras das calças, andava de um lado para o outro, admirado pelos três homens como se fosse um fenómeno de Jardim Zoológico.
Esforçava-se por vender. Mas, a França, diziam os seus interlocutores, não tinha grande necessidade de laranjas.
- Ninguém, - respondeu Frank Davis - precisa muito seja do que for. É preciso fazer nascer a necessidade. Prometo-vos que, dentro de um ano, nenhum parisiense se
sentirá bem, sem beber, ao pequeno almoço, um copo de sumo de laranja.
Os franceses sorriram, compassivos.
- Não acredito. - respondeu Dubarreaux, depois de lhe terem cantado na caixinha a ária publicitária de Davis-Não creio que esses métodos americanos sejam aplicáveis
em França.
Frank lançou um olhar à sua volta e pensou que realmente Dubarreaux tinha razão. A casa onde eles estavam era forrada de um papel verde sujo e gorduroso. Nada de
diagramas nas paredes nem sequer cartazes, dizendo:
"Comam fruta para gozarem boa saúde, como convinha à Chambie Syndicale des Impottateuis de Fruits. Frank preparava-se para mandar o seu projecto de presente ao diabo.
Paris era encantador para cá vir de passeio, mas muito aborrecido, quando se vinha tratar de negócios. Lançou um rápido olhar para o relógio e decidiu que era melhor
interromper a discussão e ir a casa de Marion. No momento em que se levantava, Franchetot esboçou uma proposta. Não gaguejava na verdadeira acepção da palavra, mas
tinha grande dificuldade em pronunciar as palavras começadas por M ou por P. Não era certamente devido à sua eloquência, que ganhara a Legião de honra. Pediu que
se realizasse uma nova conferência no dia seguinte, de manhã. Precisavam ver. precisavam pôr-se em comunicação com os nos amis e talvez pudessem encarar uma possibilidade de experimentar as tais laranjas da Califórnia se o sindicato americano, de que Frank Davis era presidente, quisesse tomar a seu cargo os direitos
de alfândega.
Separaram-se bons amigos. Os três homens pareciam apressados. Já tinham soado as quatro. Era a hora em que todo o parisiense que pode, tem uma entrevista com uma
mulher.
Mal chegou à rua, Frank abandonou logo o mal estar e a impaciência em que esta conferência o tinha lançado. Podia concentrar o seu pensamento nos negócios, quando
fosse necessário e esquecê-los completamente, quando quisesse. Tinha cultivado e desenvolvido esta aptidão. Era uma das qualidades que lhe granjeavam a simpatia
das mulheres. Ao canto da rua, tomou um táxi. Uma mulher de cerca de quarenta anos que ali estava com um grande embrulho, subiu apressadamente para o lado do motorista.
- Se não incomoda o senhor, - disse este, num tom amável - posso levar a minha tia?
Era um bonito rapaz e a sua "tia" parecia tão apaixonada, que nem podia despregar os olhos do seu rosto. Frank riu alegremente. Todas as vezes que vinha a Paris
divertia-se ao ver a franqueza com que tudo se passava. As mulheres davam de mamar aos seus bebés nos bancos dos jardins, os homens largavam, com uma palavra de
desculpa, as senhoras que acompanhavam, para entrarem num mictório, havia amor a todos os cantos da rua, uma espécie alegre e muito natural de amor que não parecia
tomar-se muito a sério.
Ele mandou parar o táxi diante duma loja de flores e comprou umas violetas para Marion: ela gostava muito dos ramos de violetas de Parma, claras e dobradas. Ao pagar,
o seu olhar caiu num vaso cheio de mimosas. Ao princípio, só teve a impressão de ter Aquecido qualquer coisa de agradável e bonito. Assim, às vezes, chegam até nós
uma melodia e um
perfume carregados duma recordação, antes mesmo que a recordação se precise. Estava ali de sobrancelhas franzidas esperando o troco, quando de-repente se lembrou:
Evelina. Procurou à pressa o livrinho onde anotava as direcções. Se por acaso tivesse tomado nota da morada de Evelina, queria que ela recebesse um braçado de mimosas.
- Espere.-disse à caixeira, que lhe sorria em espectativa.
Encontrou a direcção, mas como não tinha escrito o apelido de Evelina precisou ainda de pensar um momento para o recordar. Esse nome tinha um som estranho e muito
alemão. Assim que recordou tudo: Evelina Droste, Dusseldorferstrasse, 47, Berlim - Wilmersdorf, deu ordem telegráfica para lhe mandarem um grande ramo de mimosas,
pagou, de bom humor, e voltou ao seu táxi. A tia" tinha uma expressão animada e satisfeita como se esta curta ausência lhe tivesse causado muito prazer.
Marion morava numa casa distinta, antiga e adormecida de Passy-rue de la Pompe. A porteira levantou a cortina e preguntou do lado: "É para casa de madame Guermont?"
Frank fez sinal que sim. Ele tinha quási amestrado este dragão, à força de grandes gorjetas, embora não fosse francês nem tivesse nenhuma décoration.
Flora, a velha gorda que desempenhava as funções de criada para todo o serviço, em casa de Marion, recebeu-o com antipatia. Ela não gostava de estrangeiros.
- Alo, darling! - disse Frank, entrando na horrível salinha Luís xv, de Marion.
- bom dia, meu filho, senta-te, como vais tu? Fizeste boa viagem ? Os teus negócios como vão ? preguntou Marion, sem tomar fôlego, levantando-se na ponta dos pés
para o beijar.
Era um beijo de delicadeza como os que os monarcas em visita trocam com os dos outros países amigos.
- Vestido novo? -preguntou Frank; e segurou, com os braços estendidos, Marion diante de si.
- Isto é que é um homem! Vê tudo, este menino. E sabes donde é? Da Patou. Sabes quanto custou? Adivinha. Não, não podes adivinhar. 500 francos. Fui lá ontem de manhã
antes das nove. Havia bicha em frente da casa, só te digo isto. Mas eu fui uma das primeiras. Bem vês, eu posso usar modelos, os tamanhos dos manequins são sempre
um pouco estreitos no tutu, mas como sabes eu tenho um tutu pequeno. Que mais é preciso dizer-te? Provei-o, agradou-me, ficava-me bem, mas custava 900 francos. Eu,
que não sou de orgulhos, regateei, a Susana tomou o meu partido,-voilà, é meu. Vem tomar um cognac. E tu, como passaste? Trouxeste-me de Berlim um elefante cor de
rosa?
Frank tinha-se instalado no pequeno sofá e achava-se pouco à vontade, emquanto Marion tratava de o distrair. Bebeu o cognac e fez com a cabeça sinal que não. Tinha
prometido a Marion um elefante cor de rosa, caso fizesse em Berlim o seu negócio de laranjas, da Califórnia.
- Infelizmente, não. - disse ele-Nada de elefante cor de rosa.
Esquadrinhou a pasta onde, ao lado de cálculos e projectos da conferência, estava um presente para Marion.
- bom gosto. - disse ela, depois de o ter contemplado com atenção - Eram dois colchetes não muito preciosos, mas feitos em minúsculas pérolas em volta de um jacinto.
Deu outro beijo a Frank que ele acolheu com um agradável picar de nervos. Flora apareceu, trazendo as violetas de Parma numa jarra; os móveis puseram-se a tremer,
os bibelots a tilintar. Lançou por cima do ombro de Marion um olhar avaliador sobre a jóia e retirou-se.
- E como são as mulheres de Berlim? - preguntou Marion, sentando-se ao pé de Frank e passando a
ponta dos dedos por detrás das orelhas dele, numa leve caricia - São horríveis? Usam sempre galochas?
Frank resmungou. Revia a campeã berlinense, de tennis, essa maravilhosa mulher, revia as pernas e braços morenos da Mariana e, finalmente, apareceu-lhe Evelina,
delicada e frágil, um rosto cheio de vida, com os seus olhos, a sua boca ardente.
- Não sei. - disse ele - Não olhei para nenhuma mulher.
- Oh! Oh! Sim, senhor. - exclamou Marion, divertida e céptica.
- Palavra! Vivi como um frade. Marion olhou-o e ficou séria.
- Mas isso é interessante. - disse, lentamente. Frank bebeu outro cognac.
De-repente, Marion apareceu-lhe nos braços, sentada nos seus joelhos. com a boca húmida colava-lhe pequenos beijos trocistas, no rosto.
- Um leão que está sem presa uma semana inteira. . - murmurou sem fôlego.
Ele instalou-a comodamente nos joelhos, inclinou-se para ela e beijou-a muito, observando-a.
- Pensou-se em mim lá em Berlim? Alegravas-te ao pensar em mim? Esperavas-me?
- Não, de maneira nenhuma.
Marion levantou-se e espreguiçou-se. Sorriu-lhe manhosamente e encaminhou-se para a porta. Frank levantou-se, assim que ela desapareceu no quarto de dormir, respirou
profundamente e seguiu-a.
A casa de madame Guermont compunha-se de três aposentos. Além da sala bem iluminada por três janelas onde se encontravam horríveis móveis dourados, cobertos de seda
cor de morangos levemente podres, havia uma pequena sala de jantar, sombria, que Marion afirmava estar mobilada em estilo normando e o quarto de cama com o faustoso
móvel: a autêntica cama inglesa. Era um leito de quatro altas colunas, com
pequeno docel e um excelente colchão. Na América faziam desse mobiliário em todos os armazéns, mas Frank soube com gratidão que esse género de cama, inglês autêntico,
era em Paris uma peça preciosa e rara. Ele tinha, com o correr dos anos, adquirido uma espécie de preferência por esse leito como se tem por um lugar onde se vai
em vilegiatura, com regularidade. As relações de Frank com Marion eram, ao mesmo tempo, passageiras e duráveis: já se prolongavam havia mais de quatro anos. Ele
tinha herdado madame Guermont do correspondente de um jornal americano e conservara-a como uma diversão, uma comodidade de viagem. Frank Davis tinha o horror típico
do americano pela solidão. Marion nunca o deixava só quando ele estava em Paris. Empregava uma forma amável e diligente de o servir. Era bem feita, um pouco curta
de pernas, muito larga de ancas, é certo, comparada com as mulheres americanas, mas era justamente por isso, muito francesa. Marion não considerava o amor como uma
coisa de importância; os seus encontrozinhos amorosos estavam incrustados na sua vida como as idas ao cabeleireiro, à massagista e as provas à modista. Marion não
tinha nada dessas pegajosas raparigas que, por profissão, fazem caça aos estrangeiros de passagem, em Paris. Alegrava-se com os presentes que ele lhe fazia, mas
não ligava ao dinheiro. Tinha qualquer coisa a que chamava os seus rendimentos: um cheque que lhe mandava um velho, regularmente, todos os meses, em lembrança das
suas antigas amabilidades. Marion fazia gala em retribuir, a seu modo, os pequenos presentes que Frank lhe punha na mesa de cabeceira. Convidava-o para jantar e
tinha excelentes cognacs. Uma vez mesmo fizera-lhe a surpresa de lhe oferecer uma lapiseira de prata com o seu monograma. Quanto ao amor, ela praticava-o orgulhosa
e alegremente, com uma alegria objectiva na técnica desta arte. Como um virtuose que queria conquistar os aplausos do seu público.
Tudo isto era bonito e divertido. Frank não podia explicar a si próprio porque motivo, nessa tarde, isto lhe fazia mal aos nervos. Ficou aborrecido por verificar,
ao entrar no quarto, que as gelosias estavam cuidadosamente corridas e a cama aberta. De-resto, o hábito francês de consagrar as tardes ao amor, era-lhe antipático.
Ele não podia suportar que, de-repente, ao findar um abraço, lhe chamassem mon petit choux. A-pesar-disso, portava-se bem e mostrava-se paciente. Era um desses raros
homens que têm um talento e um instinto naturais para lidarem com as mulheres.
Elas tinham-no confessado tantas vezes, que se envaidecia um pouco, esforçando-se por merecer esse elogio. Violetas de Parma e jacintos para Marion, mimosas e delicada
discreção para Evelina.
Evelina! O seu fantasma pairou, ténue e vago, pelo quarto de dormir de Marion, e Frank afastou-o logo. Marion tinha pelo perfume da madeira de sândalo um fraco que
Frank não podia partilhar de forma alguma. O seu quarto estava cheio de objectos estranhos, semelhantes ao depósito de um teatro dos arrabaldes. Frank teve, pela
primeira vez, a sensação de que os seus cabelos não estavam em ordem. Tinha essa sensação sempre que acontecia qualquer coisa que não o satisfazia e não corria como
ele queria. Sentiu-se contente por se encontrar de novo na sala, emquanto Marion continuava no quarto ocupada com a sua toilette.
Marion tinha telefone e isso orgulhava-a. Em Paris não era uma coisa vulgar ter telefone. Fora o correspondente dos jornais americanos, que lho tinha instalado,
na sua época.
- Importavas-te que eu chamasse por minha mulher?- preguntou Frank, cortesmente.
Isso não incomodava absolutamente nada Marion.
Foi preciso algum tempo para conseguir comunicação com o Claridge em Londres e para chegar até ao quarto de Mrs. Davis. No entanto, Frank acabou por
ter Pearl no outro lado do fio e ouvir a sua voz ressoar clara e perto.
- Alo, darling ?
- Alo, darling.
- Chamaste-me tarde; tenho que ir jantar com os Sutherlands, antes do teatro.
- Desculpa. Tive uma conferência. Alguma coisa de extraordinário?
- Sim. Qualquer coisa de muito importante. Acabei por encontrar o cão que eu queria. Estive ontem no canil e fiquei doida. Uma beleza . é filho de um campeão inglês.
não sei como hei-de esperar o momento de to mostrar.
- Quanto ? - preguntou Davis.
Era económico como toda a gente rica.
- Eles pedem cinquenta libras, mas tenho a certeza de que posso oferecer menos. Achas bem que eu o compre?
- Se isso te diverte tanto!
No telefone de Londres houve uma tossezinha.
- Mas para isso precisava que me mandasses telegràficamente mais quinhentos dólares.
- Arruínas-me.-disse Frank-Estamos falidos, eu não vendi ainda uma única laranja e tu.
Era visível que ele gracejava. Imaginava já a cara divertida de Pearl, lá em Londres. Deu-lhe ainda alguns conselhos relativos aos bilhetes do barco e às bagagens.
O Berengária partia sábado de manhã para Southampton. Ele tomaria o vapor de tarde em Cherburgo. Pearl lamentava-se baixinho por ter de embarcar, ela e o cão, sem
a ajuda de um homem. Frank riu, disse-lhe qualquer coisa amável e desligou. Pearl era o ente mais independente que viera ao mundo. Logo a seguir, a menina do telefone
anunciou que a conversa tinha custado 246 francos. Ele tirou três notas de cem francos e meteu-as debaixo da jarra das violetas.
Emquanto telefonava, Marion saiu do quarto e veio sentar-se ao pé dele. Tinha um ar amável e gentil que significava: "Não te quero mal por teres uma mulher, meu
querido. Sei o que é a vida". Marion compreendia o inglês, o correspondente dos jornais americanos tinha-lho ensinado. Possuía uma outra qualidade: interessava-se
por negócios. Se existe alguém melhor informado do que os banqueiros, sobre os negócios da Bolsa, com certeza são as mulheres mantidas pelos banqueiros.
Flora entrou pesadamente e anunciou:
- O jantar está na mesa.
Desde os hors-d'eeuvres, viu-se envolvido numa conversa minuciosa sobre a marcha dos seus negócios.
- Que comissão me dás se eu te der um bom conselho ? - preguntou Marion.
A alimentação era boa, Marion teimava para que Frank comesse mais omelette, que era a glória de Flora.
- Dou-te dez por cento do que o teu conselho me fizer ganhar.
- Tu tens de untar esse Franchetot.
- Como? E quanto?
- Creio que 10.000 francos bastarão. Escusas de lhe meteres isso na pasta como a qualquer empregadito. Oferece-lhe um estojo de cigarros e põe-lhe as notas dentro.
Convida o Franchetot a jantar com a amante e manda flores à mulher. Não, faz antes o contrário. É preciso tratar as mulheres honestas como cocottes e as cocottes
como senhoras. Isso dará prazer a umas e a outras. É preciso .
Marion continuou a dar conselhos a Frank, esses bons e razoáveis conselhos de uma mulher que não tem ilusões. As violetas, em cima da mesa, tinham um perfume já
fatigado. O vinho era leve e bom. Dava a Frank, que estava habituado aos cocktails, certa vontade de dormir. Marion vestia o uniforme da parisiense; um vestido preto
com um pouco de branco à roda
do pescoço. Depois do jantar ela pôs uma audaciosa boina branca e o que Frank receava aconteceu: teve de a levar ao teatro.
Frank Davis não cessava de preguntar a si próprio porque se sentia tão pouco à vontade e tão aborrecido, durante o jantar, no automóvel, no teatro. Aquilo tinha
começado no quarto de dormir de Marion, no momento em que pulverisava os seus lindos membros com pó de sândalo. Tudo lhe parecia tão bem ordenado, tão burguês, tão
natural, tão "casado" no mau sentido da palavra! Pearl, sua mulher, tinha bem mais desenvoltura do que essa pequena parisiense que vivia de homens. O táxi estava
húmido e cheirava a bolor. Marion zangou-se com o motorista, que andava às voltas julgando poder enganar um americano. A peça pareceu horrível a Frank. Era a eterna
história: o marido, a mulher e o amante. Sentado, ele maldizia a sua situação, tinha medo de adormecer e desejava veementemente encontrar-se no seu leito de cómicas
e pequeninas almofadas, do Hotel Bourgogne.
Depois da representação, quando se encontravam no Café Royal e toda a espécie de amigos e amigas de Marion tinham vindo sentar-se ao pé deles, sentiu-se de-repente
invadido pela recordação de Evelina. Foi uma sensação tão violenta, que lhe pareceu quási dolorosa. Em todo o dia só tinha pensado duas vezes em Evelina e fugitivamente.
De súbito, ela ali estava, quási em carne e osso: o seu rosto, a sua mão, a sua voz. A barraca de banho asfixiante e a sua respiração nervosa. Evelina. Preciso de
lhe falar ao telefone - pensou. Levantou-se. Mas não, era idiota, passava da meia-noite. estava louco. Voltou a sentar-se. Marion olhava-o surpreendida. Tinha empalidecido
um pouco, sob a sua pele crestada pelo sol da Califórnia. Marion despediu-se dos seus amigos e meteu-se com Frank num táxi. Chovia.
Outra vez a fonte da Praça da Concórdia; de novo os Campos Elísios, o Arco do Triunfo, o Soldado desconhecido.
O táxi dava saltos impiedosos, afastando-se cada vez mais do hotel de Frank. Este não sabia exactamente o que queria. Mas sabia muito bem que não desejava voltar
para casa de Marion. Já tinha falado muito francês, nesse dia.
- Espere-me - disse ao motorista quando pararam na rua de la Pompe.
- Pode seguir, -ordenou Marion-não precisa de esperar.
O motorista teve um sorriso cúmplice e afastou-se. Não queria estragar os negócios da sua compatriota. Frank sentiu a pele do crâneo contrair-se-lhe de cólera. Marion
abriu e fê-lo passar diante da porta do porteiro. Â escada estava escura. Marion tirou da malinha uma lâmpada de algibeira e alumiou os degraus.
- vou adormecer assim que vir uma cama. - disse ele, sincero. Sentia a cabeça ennevoada.
- Pois bem, dorme. - respondeu Marion, amavelmente.
Chegado ao quarto de cama Frank, encheu um grande copo de água que engoliu de um trago e pensou: "Estes parisienses não sabem que se pode pôr gelo na água; a água
que bebem é mole e não sabe a nada".
Marion fazia barulho na sala de banho. Frank deitou-se e pôs-se a calcular o preço das laranjas, para se conservar acordado.
- Estás aborrecido, meu filho? -interrogou Marion, indo ter com ele.
-Não, porquê?-preguntou num tom vago olhando o docel do leito, sobre a sua cabeça, onde três irmãos chinesinhos, estavam sempre a tirar um peixe da água.
- Não quero saber os teus segredos - disse Marion, em tom razoável.
Arranjou com o ombro uma almofada brandamente côncava, onde encostou a cabeça de Frank.
- Vem cá. Tu não deves falar, nem mexer-te. Dorme de-pressa - segredou.
Frank teve um suspiro profundo e reconhecido.
- Tu és boa. - murmurou - Porque és tão boa ?
- Vocês, homens, não compreendem mesmo as coisas mais elementares. - respondeu Marion, no escuro.
Frank quási dormia já, mas, para ser amável, preguntou com voz indecisa:
- Não ? O quê, por exemplo ?
Marion esperou um pouco, antes de responder.
- Por exemplo: que eu gosto de ti.
Mas Frank agora dormia profundamente e já não ouviu nada. Marion ficou calada para não o incomodar. Ela sentiu o braço entorpecer-se e por fim adormeceu também.
- Esta tarde não te posso ver. - disse Marion, ao pequeno almoço.
- Porque não ? - preguntou Frank, lutando com uma chávena quente.
Tinha sempre a impressão de ser um gato de luxo, quando de manhã lhe davam chocolate e pãesinhos doces.
- É quinta-feira. - respondeu simplesmente Marion. Ela tinha um ar fresco e limpo, toda em crepe da
China cor de rosa, como a mulher do terceiro acto da comédia de adultério, que haviam visto na véspera. Frank reflectia. Engoliu. Queimou a língua. Quinta-feira
era o dia consagrado ao serviço do "velho". Era evidente que o velho" entrara há muito no estado platónico. Mas tinha conservado o hábito de vir ver Marion uma vez
por semana, assim como o de lhe mandar um cheque mensal. Frank despediu-se, um pouco frio, e saiu de casa com horríveis sentimentos. Não lhe importava nada sustentar
mulheres, já isso lhe havia acontecido quatro ou cinco vezes na vida; mas era-lhe desagradável ser amante de uma mulher sustentada por outro. Lamentou, por um momento,
ter dado a Marion apenas um jacinto e não um brilhante. Mas, por outro lado, Marion não valia um brilhante.
Frank voltou mais à vontade ao seu hotel, ao seu correio, aos seus esforços para inundar o mercado europeu de laranjas da Califórnia. De resto, seguiu os conselhos
de Marion. Foi visitar o senhor Franchetot, o advogado dos negociantes de fruta e encontrou um pretexto aceitável, não para lhe entregar dinheiro, mas um pacotinho
de acções que tinham sérias probabilidades de subir na Bolsa. Almoçou com o surdo Dubarreaux e convidou para jantar Farrère e sua mulher. Mandou flores à sr.a de
Blaincourt a dama por quem o velho Farrère se interessava e com quem ele, Davis, tinha travado conhecimento quinze dias antes.
- Mimosas? - preguntou a caixeira, que o reconheceu.
- Não, nada de mimosas.-respondeu, contrariado. Só depois se lembrou de Evelina; fora absolutamente
expontâneo. Não pôde deixar de rir de si mesmo. "É engraçado.-pensou -Creio que estou apaixonado." Das duas às quatro horas teve uma conferência com os três personagens.
Concentrou os seus pensamentos sobre o negócio, cedeu ainda 2 pences por caixa e berrou uma porção de coisas sedutoras no aparelho acústico de Dubarreaux. Ele tinha
fama de ser um az da venda, mas nunca encontrara pessoas tão tenazes como estes três excelentes homens. Alguns instantes antes das quatro horas, parecia, finalmente,
que eles estavam dispostos a encomendar, para experiência, quarenta mil caixas de laranjas de Navel. Frank interrompeu logo a conferência antes que pudessem voltar
com a palavra atrás. O contracto da entrega devia ser redigido no dia seguinte, de manhã. Estava um dia fresco e Frank verificou com surpresa, que a camisa se lhe
colava à pele, de tal maneira tinha trabalhado. Quatro horas, uma chuva fina e ao mesmo tempo sol. Nas margens do Sena viu gente parada olhando na mesma direcção.
Havia um arco-íris.
Frank bateu no vidro do seu táxi.
- Siga para a íle Saint-Louis - ordenou.
A chuva tinha parado quando desceu. Seguiu lentamente pelo cais. Estavam ali alguns pescadores, dir-se-ia que não se tinham mexido do talude durante os anos que
haviam decorrido desde que Frank era estudante.
Sua mãe tinha-o então mandado para Paris. Era uma mulher de sociedade e nas suas veias corria sangue francês. Queria que Frank aprendesse o francês e, no fundo do
seu coração, desejava que fossem as francesas que fizessem a sua educação amorosa. Foi de resto o que se deu. Frank sorriu, pensando na mãe, tão orgulhosa do seu
lindo filho que, mesmo nessa matéria, tinha querido para ele uma educação de primeira ordem. Parecia que a sua linda mamã não fazia grande caso da maneira como na
América tratam do amor, a sua linda mamã, tão sensata, tão distinta, com as pálpebras pesadas e fatigadas.
Frank censurava-se por estes pensamentos um tanto chocantes a respeito de sua mãe. Olhou para o Sena; passavam dois pequenos barcos; o céu estava cheio de nuvens
nacaradas que pareciam ter pressa de fugir. As árvores, na outra margem, tinham poucas folhas e tudo isso formava um quadro sentimental. Lembrou-se da deliciosa
aventura que tivera, quando estudante com uma pequena pintora. Ela pintava horríveis quadros, com medíocres girassóis e podia estar meia hora a rir-se com Frank.
De-repente, teve a impressão de ser velho e inútil. Nada tinha que fazer no mundo até ao jantar. Como todos os homens que têm muito trabalho, não podia suportar
nem a ociosidade nem a solidão. Afastou-se desse Sena que o tornava melancólico, fez sinal a um táxi e voltou para o hotel.
Curta conversa com a patroa, que tinha a fisionomia de um velho e sábio papagaio e conhecia a vida. Conversa com o porteiro; telefonema. Mandou reservar uma mesa
no Boeufsur lê Toit, pediu bilhetes para uma
revista da moda, soltou um profundo suspiro pensando na noite que ia passar com o senhor e a senhora Farrère. Subiu ao seu quarto e diligenciou desembaraçar-se da
inquietação que aumentava em si. Despiu-se. Duche frio, cigarros, café, cognac. Estendeu-se em cima da cama. Nada. O descontentamento aumentava.
Esse descontentamento começara em Berlim, à noite, no Clube, no momento de partir, e durante os outros dias não tinha deixado de crescer. Frank defendia-se de chamar
amor a esse descontentamento, a essa preocupação. Tivera na vida muitas paixonetas para acreditar no amor.
Fechou os olhos e tentou dormir. Impossível. Em vez disso, pôs-se a sonhar. Desejava coisas, numerosas coisas, bonitas, agradáveis, alegres, capazes de satisfazerem
o seu descontentamento.
E, nesses sonhos e nesses desejos, Evelina entrava sempre. Não dormia. A todo o instante abria os olhos, fumava um cigarro, via as duas altas janelas à francesa
com as minúsculas varandas que as precediam, os tectos de ardósia em frente, os pombos nos beirais e ouvia o businar dos automóveis na rua. Fechou os olhos e foi
com Evelina à estranha casa da rua de Sèvres onde ele morava quando era estudante.
No fim de tudo, devia ainda assim ter dormido. Quando acordou, o sol já não brilhava. Tinha as fontes a arder. Ficou um momento quási sem pensar. Depois, pegou no
livro de apontamentos que tinha posto em cima da mesa de cabeceira com as chaves e a carteira. Procurou um número de telefone. Sem se levantar, pegou no auscultador
e pediu Berlim, Oliva 03784. Droste. Urgente.
"Doido" pensou, embora se alegrasse. Ficou assim estendido, esperando a comunicação. De súbito, sentiu palpitações de coração. Sorriu, surpreendido, e enterneceu-se
um pouco consigo mesmo.
A comunicação não foi tão fácil de obter como para pearl, em Londres. No entanto, depois de tocar muitas vezes e de complicada conversa entre as meninas de Paris
e as de Berlim, depois de uma estúpida voz de criada se ter ouvido, de súbito, apareceu Evelina.
- Frank ?
- Evelina ?
- Sim.
- Estás só ?
- Não . quero dizer. sim.
- Ouve, querida, preciso que venhas ter comigo. É preciso. Estou abandonado e penso constantemente em ti. Não posso mais.
Silêncio.
- Recebeste as minhas flores ?
- Sim, recebi.
- Gostas de mim, Evelina? Um silêncio.
- Sim, Frank.
- Então, é preciso que venhas imediatamente. Quási não nos pudemos ver em Berlim. Aqui, seria maravilhoso! Vens?
- Mas não pode ser.
- Não há nada mais fácil. Tomas o comboio das
10 e 45 em Charlottenburg e estás em Paris amanhã às
17 e 30. vou esperar-te à estação. Passaremos um dia maravilhoso. No dia seguinte embarco-te num avião e voltas para casa. Vem. Arranja as coisas para que seja possível.
Não queres?
Uma voz no telefone. Frank pensou que se ela dissesse que não, a sua permanência em Paris ficaria completamente estragada. Sentia já na língua o gosto insípido da
decepção.
- Sim, se tu me chamasses.-gritou ele à pressa, no receptor - eu iria até ao fim do mundo.
Depois, houve alguns segundos de silêncio.
- Falam ainda? - preguntou a telefonista.
- Bem, eu vou. - foi a resposta.
- Escuta Evelina, escuta! -gritou ele, fora de si Eu estou na estação. Mas se por acaso faltar, vai ao Hotel de Bourgogne, Place de la Bourgogne. compreendes? Apresentas-te
como minha mulher. Entendes? É melhor tomares nota.
- Adeus. - disse a voz ao telefone.
Frank gritou ainda qualquer coisa mas a telefonista anunciou: "Cortaram do outro lado".
Frank respirou profundamente. com os dez dedos tamborilava no peito que estava cheio de ar e de alegria. Pôs-se a colocar os botões de pérola na camisa da casaca.
Assobiava. Teve de-repente a impressão de que podia impingir a esse Farrère todos os quintais de laranjas que quisesse.
Evelina vinha. Conseguia-se ainda tudo, quando se queria.
Quarta-feira
ELA
A manhã, para Evelina, começava regularmente por uma derrota. Ao que ela queria proceder todas as manhãs era ao seguinte: levantar-se às sete horas, fazer gimnástica
diante da janela aberta; tomar um duche frio e sentar-se, alegre, à mesa do pequeno almoço para fazer companhia a seu marido. Depois, tomar o governo da sua casa.
E quando tudo estivesse em ordem, ir passear com os filhos. fizesse o tempo que fizesse.
O que todas as manhãs acontecia era o seguinte; dormindo, ela tinha medo de acordar e, ao mesmo tempo, sentia o sono tornar-se cada vez mais leve e o quarto mais
claro. Sentia a cabeça fatigada, pesada e inverosimilmente grande. O Conselheiro, nos dias de audiência, submetia a garganta a um tratamento complicado, como o faria
um tenor célebre. Assim que Evelina o ouvia na casa de banho, vizinha, a tossir, fazer gargarejos e cuspir, fechava os olhos e metia-se para debaixo da roupa. Levantar-se
e viver como toda a gente, parecia-lhe uma coisa impossível e sobrehumana. Diligenciava tornar a adormecer emquanto seu marido saía do quarto em bicos de pés. Quando
acordava, era quási meio-dia, a criada Verónica estava ao pé da cama com as suas vassouras e os seus panos, anunciando,
com uma severidade indignada, que precisava de arranjar o quarto. A casa era posta em movimento sem Evelina e os pequenos iam passear com a criada deles. Ela não
tinha mais nada a fazer do que, lamentando-se em voz baixa, escorregar para fora da cama, deslizar com os pés nus para o quarto de banho, onde passava o tempo, indolentemente,
durante a hora que se seguia.
Para as pessoas infelizes, o tempo nunca está bem. A chuva aumenta a sua desgraça, o sol causa-lhes, pelo contraste da sua violência, uma dor cruel. Evelina estava
sentada na banheira, em uma dessas deploráveis manhãs em que a água não está quente mas morna e só a custo corre. O sol ia buscar mil pequenas faíscas ao vidro da
janela. Evelina, entristecida e quebrada, estava metida na água, com os joelhos levantados até ao queixo, reflectindo, de sobrolho franzido.
Frank, a essa hora, já devia ter chegado a Paris. Ela bem gostaria de saber que fato e que gravata ele levava; e então ser-lhe-ia fácil idealizá-lo. Tinha um trabalho
infinito para recordar o seu rosto e toda a sua pessoa. Era um trabalho semelhante ao do medium que faz surgir na cabeça os teleplasmas. A sua respiração parara,
de tal forma era difícil: mas, de súbito, Frank apareceu-lhe sob as pálpebras fechadas. Vestia um fato cinzento e uma gravata de pintas que ela tivera tão perto
dos olhos quando a beijara pela primeira vez no táxi entre a Dusseldorfstrasse e a Kaiserwilhelmgedãchtniskirche.
Ela ensaboava, pensativamente, os joelhos. Era-lhe impossível reter por mais tempo essa imagem. Esforçou-se por se ver com ele em Paris. Tinha lá ido quando da sua
viagem de núpcias. Tudo o que ela podia lembrar-se era de um calor ardente, da história de arte, das nevralgias, de intermináveis passeios através do Louvre que
os levavam sempre às mesmas salas com os minúsculos quadros holandeses, de segunda classe. A sensação de ter parecido ridícula a dois criados de café,
muito elegantes. Carros para estrangeiros, curiosidades, um Paris onde lhe era difícil colocar Frank Davis.
Evelina rastejou para fora da banheira e limpou-se vivamente. Tentava viver. Estava num estado deplorável. Nada mais podia fazer do que sentar-se a um canto e lembrar-se,
pedaço a pedaço, minuto a minuto, palavra a palavra, do que Frank lhe tinha dito e feito. Tudo estava ainda muito próximo, muito suave e muito triste. Era como se,
na sua vida, nada de importante se tivesse passado senão essa semana em que Frank tinha vindo a Berlim. Evelina troçava de si mesma e sorria. Não que ela ignorasse
a estupidez e a loucura deste impulso. Mas era tudo quanto queria nesse momento.
Entretanto, fazia grande número de coisas razoáveis. Lembrou-se, por exemplo, de ter ouvido Kurt resmungar a propósito da conta do gás que não fora paga. Procurou-a
na secretária e nas gavetas. mas em vão. Limpou as luvas, desmanchou a gola de pique de um dos seus vestidos e lavou-a, bruniu-a e tornou a cosê-la, ainda húmida
como estava. Contou as bandejinhas do bridge. Finalmente, pôs-se a fazer uns carapins para Ursinho. Ela já tinha, verdade seja, uma gaveta cheia destes sapatos,
mas gostava de pensar nos pequeninos pés para os quais trabalhava. Verónica espiava, com ar espantado, a actividade de que a patroa dava prova nessa manhã. Evelina
recusou-se a comer. Mordeu uma banana e deixou ficar a casca e o resto na casa de jantar. Encostou a cabeça à janela e olhou para fora, sem ver nada. Assim passou
o dia.
Foi um dia sem fim. Quando Evelina olhou para o relógio, eram apenas duas horas. Foi-lhe impossível imaginar que tinha de suportar toda esta tortura uma semana,
um mês, um ano. Essas primeiras horas, passadas sem Frank, tinham-na esgotado inteiramente. Há quem pretenda que o tempo mitiga este género de sofrimentos. Evelina
não acreditava. Agora possuía ainda
a recordação muito fresca: a sua voz, as suas palavras, o seu rosto, o cheiro dos seus cigarros. Sabia ainda exactamente, como o seu relógio de pulso tinha brilhado
na barraca de banho, recordação que era um tesouro. Mas tudo isso empalideceria um dia, deixá-la-ia pobre e tudo ficaria pior. Evelina pensava que as mulheres que
tiveram um verdadeiro amor e o perderam, eram bem mais felizes do que ela. O que a fazia sofrer era a insatisfação, o facto de não ter tido plenitude. Tivera tido
tantos sonhos, tantos desejos no decorrer dessa semana! Preguntava a si própria quanto daria para tornar a ver Frank e encontrar-se com ele. Dizia a si mesma: "Tudo".
E era uma palavra grande e imprecisa como uma nuvem.
Os filhos voltaram. O carro do Ursinho rangeu no corredor. Clarinha sapateava pela casa. Evelina encaminhou-se para o quarto deles, como se a sua alma perturbada
pudesse encontrar ali a salvação. Clarinha correu para ela e contou-lhe, na sua voz profunda e rouca, de criança, uma imprecisa história. Tinha visto um pássaro
que era florido atrás. Ela apontava para o seu rabito pavoneando-se pela casa para imitar o pássaro florido. Evelina olhou, confusa, para a criada.
- Era um pavão. - explicou esta, condescendente. Ao que parecia, tinham ido ao Jardim Zoológico e
por isso se demoraram. Evelina teve a impressão de dever fazer observações à criada. Mas tinha medo dela.
Esta, toda em cretone azul e com uma luneta encarrapitada no nariz, tratava de Ursinho. Desenfaixava-o, enchia-o de pó, colocava ao alto as suas perninhas, pegando-lhe
pelos tornozelos. Evelina estava com certa pena do Ursinho, mas ele parecia gostar destas manipulações.
- Ah! - dizia ele, amavelmente - Ah, ah! Evelina, em pé, via a criança voltar a transformar-se num embrulho redondo e limpo.
- Posso pô-lo a dormir?-preguntoutimidamente.
Ursinho engulia, olhando de soslaio a sua garrafa de leite. Clarinha fora sentada na sua cadeira e tamborilava, impaciente, com a colher, na mesita. Quando acabou
a garrafa, Ursinho pareceu satisfeito. Dir-se-ia que, agora, a mínima gota de leite não encontraria lugar nele. Uma gotinha tinha ficado no lábio superior. Evelina
recolheu-a, admirou-se mais uma vez do peso e da vitalidade do filho e pô-lo na cama. No próprio momento em que pousava o satisfeito embrulho, este começou a chorar.
Evelina, confusa, olhou para a criada, que estava ocupada a dar espinafres à Clarinha. A pequenina tinha um ar infeliz, mas tímido. Armazenava os espinafres nas
bochechas, sem os engolir. Assim que a criada se aproximou com a esponja, para a lavar, começou também a gritar. Evelina fugiu do quarto das crianças, sentou-se
na borda da sua cama e voltou-se para Frank como se ele a tivesse chamado.
Três horas. As crianças dormiam ainda. Evelina vestiu-se e tomou um eléctrico para ir ao médico. Sentou-se na sala de espera, pegou numa revista e, sem a ler, esperou.
Sentia-se completamente vazia de pensamentos. Recebeu a sua injecção de arsénico, mas estava tão distraída, que nem deu pelo que se passava.
Ficou um momento parada diante de uma vitrina de meias, não porque quisesse comprar meias, mas porque não sabia que fazer.
"- Preciso dominar-me. - pensou - Preciso esquecer. Acabou-se. Frank partiu e nunca mais o tornarei a ver. É tolice consagrar a este caso um só pensamento."
Sentiu-se um pouco mais aliviada pela severidade que mostrava para consigo própria. Subiu a pé a avenida do Kurftiorstendamm, olhando para as montras. Tinha saudades
de Mariana. Talvez ela lhe falasse de Frank ou dissesse apenas que ele tinha boas maneiras,
ou qualquer coisa que se referisse de qualquer forma a esse passado, para sempre perdido.
O seu desejo de falar de Frank era tão violento que Evelina decidiu-se a uma empresa absolutamente extraordinária. Entrou no primeiro Café que encontrou e telefonou
para Mariana, primeiro para casa dela, em Geltow, depois para o escritório, na cidade. Tudo isto representava um esforço assombroso. Evelina estava em pé de guerra
com todas as conquistas mecânicas do seu tempo. A T. S. F. o telefone, o automóvel, eram inimigos misteriosos e inquietantes. Leu três vezes a seguir as instruções
para o uso do automático e, por fim, os seus dedos tremeram, quando introduziu a moeda na frente do aparelho que só respondia por um murmúrio ritmado. Custou-lhe
a perceber que o número que pedia estava ocupado.
Desistiu. Saiu do Café. Depois desta derrota, diante da incapacidade de fazer face aos incidentes mais simples cia vida, continuou o seu passeio. A chuva tinha começado
a cair e isso dizia bem com o resto. Foi juntar-se a um grupo de gente molhada e, com ele, esperou um omnibus menos cheio do que os outros que vinham. Chegou a casa
sob a forma de um embrulho extenuado, a pingar água e foi sentar-se na borda da cama.
O Conselheiro não tinha ainda voltado.
- Ovos mexidos com arenques? - preguntou Verónica que apareceu, de rosto severo, entre portas.
- Sim. Está bem. - respondeu Evelina, confusa
- Diga à criada dos meninos para me mandar a Clarinha. - acrescentou, quando Verónica se afastava.
- A senhora devia mudar de sapatos. - aconselhou a criada das crianças assim que entrou.
Estava habituada a falar na terceira pessoa. Ela era para Evelina um motivo de perpétua inquietação e, além disso, carregava o orçamento doméstico a ponto de quási
o fazer estalar. Conselheiros de tribunais territoriais
não estavam na situação de ter uma criada de meninos. Mas não podiam também passar sem ela e Evelina empregava a maior parte do subsídio que lhe dava seu pai, a
pagar esta desagradável necessidade: a criada das crianças.
Obediente, Evelina tirou os sapatos molhados. Clarinha trepou para cima da cama, para o meio dos livros, dos jornais, das caixas e dos objectos que Evelina tinha
por hábito conservar ali. Evelina desejava vivamente que a criada consentisse em deixá-la só com a filha, mas a outra não pensava nisso.
- Não quere ir ver o que está a fazer o Ursinho ?
- propôs Evelina, em voz hesitante.
- O Ursinho dorme. - respondeu a criada, firmemente.
Ursinho tinha um horário muito seu. Dormia regularmente quando queriam que ele estivesse acordado, e berrava quando os outros tinham necessidade de repouso.
- Eu tenho tosse. - anunciou Clarinha, olhando para a caixa dos bonbons.
Evelina sentou-a nos joelhos e deu-lhe um bonbon.
- Vais guardá-lo até depois do jantar. - declarou a criada.
Clarinha, sem nenhum aviso prévio, começou logo a chorar. Ela fazia tudo com igual entusiasmo: dormir, comer, estar contente e chorar. Evelina olhou-a com inveja.
As lágrimas corriam, queixas ardentes e soluços saíam da sua boca vermelha. E, no íntimo, Evelina sentia tantas coisas comprimidas, acumuladas, que ela não dizia,
que ela não tinha chorado! Tirou outro bonbon e meteu-o na boca de Clarinha. Foi como se tivesse metido uma moeda num autómato. No mesmo instante, a criança deixou
de chorar e pôs-se a soltar gritos de alegria.
- A senhora dá muito mimo à menina. - censurou a criada, ofendida, retirando-se.
Não bateu com a porta, porque era bem educada e filha de um oficial, mas a porta fez por si um ruído atrás das suas costas descontentes. Evelina pegou em Clarinha
ao colo, meteu a cara nos seus cabelos finos e quentes e pôs-se a embalá-la:
- Clarinha. - dizia - Gatinha, oh, Clarinha.
Um pouco antes das sete horas deu-se a história das flores. Tocaram. Evelina só teve disso uma consciência vaga. Estava estendida em cima da cama, Clarinha havia-se
retirado, saltitante; a noite tinha caído, a luz dos candeeiros da rua entrava no quarto. Evelina meteu-se no sono, como numa caverna, para se esconder dos seus
pensamentos e da sua dor. Tocaram; depois alguém acendeu a luz do corredor e nos vidros da porta apareceram quadrados luminosos. Verónica sapateou da cozinha para
a porta da entrada e abriu; houve um murmúrio de vozes, depois Verónica bateu à porta do quarto de dormir.
- Aqui estão flores para a senhora. - disse ela, em tom excitado.
Todo o aposento ficou cheio do perfume das mimosas. Evelina sentou-se na cama e acendeu a luz da mesa de cabeceira.
Verónica estava ali com o seu avental de cozinha, azul, tendo nos braços uma enorme caixa de mimosas.
- Está bem. - disse a voz fraca de Evelina.
O seu coração batia, as fontes latejavam, sentia os joelhos pesados.
- Ponho-as na jarra azul, em cima do piano? preguntou Verónica.
- Não, obrigada, dê-mas.
Ela não queria nada. Nada senão estar só com as suas mimosas.
No bilhete da florista vinha escrito: "com os melhores cumprimentos do sr. Frank Davis, Paris". Evelina apagou a luz, tomou as flores nos braços e tornou a deitar-se.
Qualquer coisa de estranho, qualquer coisa de absolutamente inverosímil, tinha acontecido. Frank mandava-lhe flores de Paris! Evelina precisou de um longo momento
para deixar esta idéa penetrar bem no seu espírito. Frank mandava-lhe flores de Paris! Isto queria dizer que Frank tinha a sua direcção, que estava em ligação com
ela. Provavelmente, isto queria dizer que pensava nela. Tudo tinha estado acabado e morto. Agora, tudo revivia e refloria nesses inúmeros ramos perfumados e húmidos
que apertava contra as faces.
Evelina não tivera, até então, nenhuma ilusão quanto às suas relações, tão hesitantes e imprecisas, com Frank Davis. Não possuía nenhuma experiência em amor, mas
muito instinto. Sentia que, para ele, isso que fora para si a única essência da vida, representava somente um flírt sem consequências. Perturbada pelo seu sentimento
e alvoroçada como por um tremor de terra, tentara fazer-lhe crer que, para ela, também não passava de um flirt.
As flores mudaram tudo. Na vida de Evelina não tinha havido, até então, mimosas. Nem podia imaginar que fosse possível encomendar flores por telegrama, de Paris
para Berlim. Tudo estava mudado pelo simples facto de Frank ter pensado em semelhante coisa. Para Evelina, a chegada daquelas flores era um milagre, que só um homem
que ama podia realizar.
Quando o Conselheiro entrou, as mimosas estavam espalhadas em pequenos ramos, pela casa inteira. Perfumavam todos os aposentos; mas já tinham perdido o seu primeiro
encanto nubloso e caiam em pequenas bolas amarelas e duras. Evelina sentiu-se quási feliz. Tinha dividido o grande ramo em outros pequenos porque tinha a impressão
de que o grande chamaria muito a atenção. Mas o Conselheiro nem sequer reparou que todas as jarras estavam cheias. Tinha um ar cansado e abatido. Foi direito à casa
de banho para gargarejar.
- Estou um pouco constipado. - disse ele - Queria, depois, fazer uma inalação.
O inalador representava um grande papel na casa dos Droste. O Conselheiro constipava-se facilmente e isso provinha do facto de fumar muito, ou dos seus nervos, ou
duma excessiva sensibilidade á mudança de temperatura.
Era um problema sério, pois precisava da voz para as audiências. Um juiz rouco fica muito inferiorizado em face de um réu robusto, a gritar. Evelina foi à cozinha
e deitou no aparelho a necessária quantidade de água e óleo de pinheiro. Estava cheia de ternura para com Kurt; contemplava o seu rosto fino e fatigado e sentia-se
cheia de afeição por ele. Sentou-se no braço na sua poltrona e acariciou-lhe a testa, por um momento.
- Como vai a audiência? - preguntou. Para ela, fora um dia terrível; tinha-se sentido como que sepultada em vida, como que coberta com a tampa de um caixão e separada
do mundo. Mas, desde que as flores haviam chegado, tudo parecia estar bem. Evelina passava a sua felicidade à sua volta, como uma bola redonda, quente, luminosa
e irisada. Amava todas as coisas, queria ser boa.
- Vai devagarinho, mas amanhã tudo estará acabado. - respondeu Kurt.
Ela já tinha esquecido a pregunta. Estavam sentados um em frente do outro, tendo entre ambos, sobre a mesa, ovos mexidos e arenques defumados; falavam do que os
casados costumam falar.
O tempo ia mau para o mês de Maio. O preço do leite tinha descido meio pfennig por litro, o que, sob o ponto de vista de economia nacional, era mau si- ; naldizia
o Conselheiro. O desemprego aumentava constantemente. Evelina preguntou se em Paris também havia gente desempregada. Era quási tão bom como falar de Frank. Droste
desejava cordealmente que os franceses também tivessem os seus aborrecimentos.
- Evelina encheu pela segunda vez o prato do marido; sentia a necessidade de tratar dele. Graças a Deus e aos bons cuidados da Verónica, havia fruta em casa; o Conselheiro
teve um sorriso aprovador. Evelina descascou-lhe uma rosada maçã. Teria gostado bem de lhe falar dos frutos da Califórnia, mas conteve-se.
- Queria, - explicou ela - convidar a Mariana para jantar, mas não consegui ligação.
O Conselheiro respondeu:
- Foi pena.
Evelina trouxe-lhe o inalador à sala, acendeu a lâmpada de álcool, embora tivesse medo e não pudesse deixar de pensar vagamente, que aquilo um dia explodiria. Olhou,
com simpatia, para seu marido a inalar, e saiu logo que o viu bem sentado diante do aparelho, aspirando pela boca, avidamente. O cheiro do óleo começava a suplantar
o das mimosas.
Assim que chegou ao quarto dos filhos, encontrou Ursinho a fazer aquilo a que a criada, num tom acre, chamava o seu passeio da noite. Deitado em cima da mesa ensaiava
no ar, com as pernas redondas, muito vermelhas, movimentos absolutamente frustrados. Clarinha estava já sentada na sua cama e dava a impressão de uma menina bem
educada. O seu pequeno carrapito tinha sido levantado por meio de uma escova molhada e a criada, em pé ao lado dela, contemplava com orgulho a obra das suas mãos.
- O capuchinho vermelho.-disse perentòriamente Clarinha, no momento em que Evelina entrou - O capuchinho vermelho!-continuou, um pouco mais violentamente, vendo
que a mamã se dirigia primeiro para a mesa onde estava Ursinho.
- Agora zango-me.- anunciou ela.
Clarinha era ciOmenta. Tinha a alma ardente e ciosa de uma mulherzinha de três anos. Assim que se ocupavam mais do irmão pequeno, isso fazia-lhe mal,
apertava os punhozitos e não tendo para estas manifestações nenhum nome, chamava a isto zangar-se. Evelina abandonou então Ursinho e aproximou-se do leito de Clarinha.
- Era uma vez uma menina . - começou ela que tinha recebido de sua avó um barretinho vermelho e era por isso que lhe chamavam.
- O capuchinho vermelho!-gritou Clara, triunfante.
O truque deste recitativo da história era que Clarinha sabia-a de cor por isso ficava suspensa, atentamente, dos lábios de Evelina e em dado momento inseria uma
palavra. Pelo meio do conto também se punha a vaguear, metendo-se pela das bonecas dos coelhos. As bonecas dos coelhos constituíam uma família fantástica da sua
própria invenção e que comiam sempre que falava deles.
"E então, as bonecas dos coelhos comeram gelados e depois comeram cerejas e depois o pai tinha trazido bonbons aos filhos e eles comeram e depois abriram a barriga
à criada dos pequenos, encheram-na de pedras e quando a criada foi à fonte, as pedras pesavam tanto que a criada caiu na fonte. E então as bonecas dos coelhos ficaram
contentes".
Depois que Clarinha acabou assim a misturada da sua história do lobo com a das bonecas dos coelhos e com os seus próprios impulsos secretos, bocejou duas vezes.
Evelina pôs a mão na almofada e teve a alegria de sentir a criança deitar a face quente nessa mão e adormecer. Deu um beijo no caracolinho da filha, retirou a mão
e voltou-se para Ursinho.
Durante esse tempo, a criada tinha feito milagres. Correndo daqui para ali com os sapatos virginais, virtuosos e rangedores, fizera nascer a ordem por toda a parte,
a limpeza e o ar puro. Ursinho, todo empoado e enfaixado de fresco, estava deitado no seu berço, chuchando activamente os dedos como se agora mesmo estivesse a fazer
a maior descoberta da história
do mundo. Evelina sabia que a sua criada, por razões de higiene, era contrária a que beijassem as crianças, por isso esperou que saísse do quarto para beijar, à
pressa e às escondidas, a boquinha de Úrsinho que, a esse contacto, se pôs logo a chupar.
- Então? - preguntou o Conselheiro, quando voltou para junto dele.
- Dormem. - respondeu.
O marido olhava-a. Por um momento, ela preguntou a si própria se o rosto não traía o seu segredo, mas quási imediatamente teve um sorriso céptico. Acabava de fazer
recentemente uma experiência; o marido, seu próprio marido, vivia tão espantosamente longe dela que não sabia nem adivinhava nada a seu respeito. Seu marido, sentado
diante do aparelho da T. S. F. ouvia, emquanto olhava para ela.
- Furstwaengler. A pastoral. - disse ele, respeitosamente.
Fazia-lhe pena que estivesse tão alheio. Sentou-se no braço da poltrona e encostou-lhe a cabeça contra o peito. As artérias dessas fontes batiam rapidamente, dir-se-ia
que o seu cérebro trabalhava intensamente.
- Foste ao médico ? - preguntou Droste.
- Fui.
Ela ia lá três vezes por semana para levar uma injecção de arsénico.
- E então ?
- Nada. Tudo vai bem.
A T. S. F. lançava pacificamente a Cena do Ribeiro. Droste concentrou de novo toda a sua atenção. Era grande conhecedor de música e podia falar à vontade com qualquer
técnico. Evelina admirava-o, quando discutia acerca de contraponto, abreviaturas e leit-motiv. Para ela a música era qualquer coisa como um banho quente de que muito
gostava. Qualquer coisa repousante, sonhadora; qualquer coisa que nos torna, algumas vezes
alegres, outras tristes e sempre saudosos. Dirigiu-se depois para o seu piano e pegou num ramo de mimosas. A delicada haste de um verde cinzento tocava-lhe a pele
como uma terna e doce carícia.
Nessa noite, Evelina reconheceu, com assombro, que o seu amor por Frank Davis tinha completamente diminuído o valor do resto da vida. Tudo perdera o seu contorno
e ficara sem importância.
Fez uma pregunta a si mesma. "Também os filhos?" Apertou os punhos e respondeu, teimosa: "Sim, também os filhos." Tinha procurado a salvação nos braços do marido,
violentamente, com gratidão, como teria corrido para ele ao sair de uma casa em chamas. Havia tanta agitação no seu corpo de que tinha de se libertar! Mas, assim
que se foi abandonando às carícias discretas e delicadas, deu-se uma derrocada.
Pensar num ser e dar-se ao mesmo tempo a outro, era um dos pecados capitais e o castigo era uma dor cruel. Eveiina ignorava-o até ali. A sua vida tinha sido despida
de todas as complicações sentimentais. Amava o marido como amava os filhos com toda a força, ardor e constância. Tudo nele lhe era querido: a sua maneira de ser,
o seu longo corpo magro, o fino rosto, a voz sempre um pouco atacada e enrouquecida. E agora, ela ali estava nos braços desse ente tão amado e sentia-se num estado
de espírito horrível, de tal maneira que a custo podia abafar um grito. Tinha a boca aberta como se sofresse uma dor violenta; sentia o seu próprio rosto posto ali,
na sombra, sobre a almofada e, sem dizer nada, pedia socorro com a boca aberta.
- E agora boa-noite, meu amor.-disse finalmente o leito do lado, emquanto uma mão lhe acariciava os cabelos.
-"O que será de mim?"-pensava ela, desesperada.
Nem deu por ter acabado por adormecer. Mas acordou ouvindo uma voz que dizia:
- Que fizeste tu da conta do gás?
Evelina que, numa paisagem de sonho, falava com Um ser nubloso o qual, naturalmente, era Frank, voltou à pressa para a rua Dusseldorf e tentou estar no seu posto.
- Estás rouco ? - preguntou ao marido.
- Estou. - respondeu ele, lacònicamente. E pela terceira vez, indagou:
- Que fizeste da conta do gás?
- Como ? Tu não disseste que irias pagá-la ? Droste soltou um leve suspiro:
- Da Companhia tiveram a amabilidade de telefonar dizendo que iam cortar o gás se não pagássemos hoje.-recriminou, em tom de censura.
Falava sem nenhum esforço, a-fim-de poupar a sua voz para a audiência.
-vou pagar imediatamente! -disse Evelina, confusa.
E, para mostrar a sua boa vontade, pôs os pés fora da coberta e pôs-se a pé. O momento temido de levantar tinha passado.
- Calça ao menos as pantufas - disse o Conselheiro, saindo do quarto.
Dizia isto todos os dias mas ela nunca o fazia. Andava de pés descalços, porque lho tinham proibido quando era pequenina. Olhou para o relógio, antes de entrar na
casa de banho. Eram oito horas menos um quarto. Passou no corredor e chamou Verónica.
- Há correio para mim ? - preguntou.
Era uma pregunta tão inesperada que Verónica se imobilizou com à sua escova de encerar.
- O correio só vem às nove horas. - disse e, abanando a cabeça, seguiu com o olhar a patroa que desapareceu na casa de banho.
Nunca Evelina esperava cartas e não recebia, por assim dizer, nenhuma. Hoje, ela esperava uma. Tinha o sentimento preciso de que as mimosas eram apenas um princípio.
Agora ia chegar o resto: cartas,
telegramas, coisas maravilhosas. Nem ela sabia o quê. Mas esperava.
Assim passou todo o dia, à espera. Numa espera absolutamente louca, pois não se fundava em coisa nenhuma. Mas a Evelina, impunha-se a idea de não querer viver mais
tempo se esta espera não fosse satisfeita.
Desde o nascimento de Ursinho, estava tão cansada e exangue que as pessoas que a rodeavam pareciam muito preocupadas a seu respeito. Ora! Morrer, devia ser a coisa
mais fácil do mundo. Bastava, parecia-lhe, deitar-se e deixar de querer. Depois, o resto viria por si. Só podia manter a vida por um esforço, por muita aplicação
de energia, e de sentimento de dever. A vida era feita de tantas coisas fatigantes! Pagar a conta do gás! Lutar com a criada das crianças e, todos os dias, ser vencida
por ela. "Kurt, o dinheiro não chega". Que vamos comer hoje? Verónica? Parece-te que é tempo de lavar as cortinas, Verónica? "Não te esqueças de trazer fruta para
o sr. Conselheiro". "Não posso dar o leite a Ursinho, Fraulein?" "As meninas bonitas devem ter juízo e irem deitar-se, Clarinha." "A água quente da casa de banho
não funciona". "O aspirador precisa de ser concertado". Aborrecimentos com a lavadeira: depois que a Rupp foi posta na rua, porque roubava, há sempre aborrecimentos
com a lavadeira. Ao que parece, era a única que não punha cloreto na água da roupa, mas pôs arsénico na sopa e o Juiz vai condená-la por assassinato.
O telefone tocou quatro vezes, nesse dia. Uma, era o "senhor" de Verónica. Ela tinha um "senhor" muito fino que lhe tinha dado de presente, no dia dos seus anos,
uma guarnição em pele de coelho, podendo, talvez, passar por boa. Era empregado num escritório e quando estava aborrecido chamava Verónica ao telefone. Da segunda
vez era o Conselheiro. A audiência estava no intervalo do meio dia e, em voz rouca avisava que os
debates se prolongariam até muito tarde. Da terceira vez era uma senhora histérica a quem haviam dado um número errado. Todas as comunicações causaram a Evelina
sobressaltos, pondo-lhe as artérias do pescoço, a bater. De todas as vezes ela voltava para a cama onde tinha entre mãos um trabalho ou um livro e imaginava ler
ou trabalhar quando não fazia outra coisa senão esperar.
As mimosas já não cheiravam e pareciam secas e artificiais.
O crepúsculo caía quando, mais uma vez, o telefone soou na antecâmara. Os passos pesados de Verónica percorreram o corredor. Evelina sentiu de novo as pancadas do
seu coração. Sorriu de si própria. Depois deste caso com Frank ter começado, ela observava-se, julgando-se e rindo de si mesma. Mas para que servia isso?
- Há três pessoas que falam ao telefone, ao mesmo tempo, não percebo nada. - anunciou Verónica, da porta, muito zangada.
O coração de Evelina parou, o que se chama literalmente parar, depois começou a bater como um tambor.
- Já vou. - disse inconscientemente.
A criada das crianças abordou-a no corredor.
- As meias da Clarinha já não lhe servem, é preciso comprar outras.
Evelina não respondeu e pegou no auscultador. A criada estava ao pé dela. Ao telefone, uma voz de mulher falava em francês, muito alto. Depois foi o empregado alemão
que preguntou em tom desagradável:
- É Oliva 03784 ? Comunicação urgente de Paris. Droste?
- Sim. - respondeu fracamente Evelina. Vergavam-se-lhe os joelhos. Puxou à pressa o bengaleiro e sentou-se na beira.
- Está?- preguntou ao telefone uma voz de homem que não parecia nada a de Frank.
Evelina lançou um olhar suplicante para a criada de crianças, que estava pespegada em frente dela. A criada pareceu lembrar-se que tinha recebido a educação de uma
filha de oficial. Abandonou o seu posto de escuta e foi, hesitante, até ao quarto das crianças.
- Frank? - murmurou Evelina.
- Evelina?
- Sim. - disse ela, em alemão.
Em pensamento, era sempre nesta língua que lhe falava.
- Estás só? - preguntaram de lá.
Ele falava francês o que era tão natural que, durante um instante, ela julgou estar enganada, numa estúpida confusão. Depois, pôs-se a sorrir, aquilo agradava-lhe
e mesmo falava o francês um pouco melhor do que o inglês.
- Não . quero dizer, sim. - respondeu, pois a porta do quarto das crianças acabava justamente de se fechar sobre a criada.
Depois o telefone disse tudo quanto os seus sonhos exagerados tinham imaginado. Entoava uma ária musical, como um canto de amor, e era completamente inverosímil
que Frank pudesse dizer-lhe semelhantes coisas. Prestava ainda atenção a essas palavras, mas o telefone já tinha deixado de falar.
- Recebeste as minhas flores?-preguntou Frank.
- Sim. Obrigada.
- Gostas de mim, Evelina?
Era uma pregunta ridícula, ela não podia responder. Frank tinha recomeçado a falar; não tinha percebido as primeiras palavras porque havia ruídos na linha. De-repente,
compreendeu o que ele queria dela. Sentiu a boca tornar-se-lhe fria, tão fria que não podia dizer nada. "É provável que eu tenha agora os lábios muito brancos",
pensou. E oxalá que não desmaie".
O telefone falava, falava. Uma voz. outra voz. Tudo isso distante, aventuroso, e, no entanto, tão natural.
- vou. - disse ela - Adeus.
Não compreendeu o que ele dizia mais, ouviram-se pancadas no telefone; a telefonista francesa meteu-se de permeio e tudo acabou, confuso e caótico. Evelina já tinha
pousado o auscultador havia muito tempo e ainda o contemplava.
Voltou a fechar-se no seu quarto. Já estava escuro. Ficou dez minutos sentada sem se mexer, na borda da cama, com os braços à volta dos joelhos. Depois voltou ao
telefone e chamou Mariana.
- Preciso que venhas falar comigo imediatamente.
- Há fogo? Vem antes tu comigo ao cinema.
- Não. Preciso que venhas cá imediatamente.
- Que aconteceu? Estás doente? - preguntou Mariana, inquieta.
- Não, mas vem.
- Há qualquer coisa com o Kurt? Evelina não respondeu.
- Estou em tua casa daqui a meia hora. - disse Mariana.
Era uma pessoa com quem se podia sempre contar. Evelina voltou para o quarto, à espera de Mariana.
Esta, quando chegou, cheirava a chuva e a cal. A noite tinha vindo. A claridade dos candeeiros caía sobre os leitos. Mariana, mal abriu a porta, preguntou:
- Estás desmaiada ?
- Escuta, Mariana, - respondeu Evelina - preciso que me ajudes, só tenho esperança em ti.
- Isso parece de Schiller! A quem se dirigem "ssas belas frases?-preguntou Mariana, em tom irónico.
Entretanto, sentou-se na cama de Evelina e rodeou-lhe os ombros com o braço.
- É para mim uma questão de vida ou de morte.
- continuou Evelina - Se assim não fosse não to pedia.
Ela falava em voz clara e um pouco alta. Tinha preparado tudo nos últimos vinte minutos. Mariana divertia-se.
- Falai, senhor. - declarou, rindo à gargalhada.
- Eu preciso partir, mas Kurt não o deve saber. Mariana deixou de rir. O seu braço tornou-se mais
pesado no ombro de Evelina.
- Partir, minha filha? Sozinha ? - preguntou em voz baixa.
- Sim. Preciso que me convides para ir a Geltow e que me leves esta noite depois de jantar. Preciso que faças crer a Kurt que estou em tua casa, compreendes?
- Sim.-respondeu Mariana, depois de um silêncio. Ela estava ali, sentada, inclinada e reflectindo profundamente.
- Bem.-disse-Preciso de lhe fazer engolir isso. E, na realidade, onde vais, minha filha ?
- A Paris. - respondeu Evelina, de má vontade.
- Levo-te ao comboio. Às 10 e 25, não é ? Mandaste reservar cama ?
Evelina nunca tinha feito uma viagem sozinha. Teve um olhar reconhecido para Mariana que sabia tudo.
- E. não podes dizer-me com quem te vais encontrar ?
- Não. Mariana.
- Mas posso adivinhar, não é verdade ? Evelina encolheu os ombros, De-repente, sentiu-se
abraçada por Mariana que a beijou entre os olhos.
- Pobre pequena! Foste apanhada! E com tanta força! - disse, para a consolar.
Antes que Evelina pudesse sair deste embaraço, ouviu-se na escada uma tosse, que anunciava sempre o regresso do Conselheiro. Verónica atravessou a entrada a trote
curto e acendeu a luz. Da cozinha, cuja porta estava aberta, chegava até ao quarto de cama o cheiro da couve-flor. Evelina levantou-se e fitou Mariana nos olhos.
- Confia em mim e não leves as coisas para a tragédia. Não é um caso de vida ou de morte. - disse Mariana, sorrindo - Vocês têm concepções demasiadamente monógamas,
o Kurt e tu.
Dirigiram-se à antecâmara e cumprimentaram o Conselheiro.
- Queria fazer uma inalação, - disse ele - primeiro que tudo.
Estava completamente áfono. Evelina foi à cozinha preparar o inalador. Ela tinha, como em sonhos, o sentimento de ter sempre feito a mesma coisa, sempre a mesma
coisa em seis anos que durava o seu casamento. Sempre estar na cozinha a preparar o inalador. "Pela última vez", pensou, deitando o óleo. Era um pensamento inexacto,
ilógico. Ela ia, por dois dias, a Paris, depois voltaria e todas as coisas retomariam o seu curso. Coisa surpreendente: não podia imaginar que voltaria a viver a
vida antiga. Só via uma coisa precisa: partir, ir a Paris. Frank tinha-a chamado. Ela ia ter com ele. Não havia hesitação nem escolha.
Encontrava-se numa sala de jantar de sonho, sem paredes: havia couve-flor em cima da mesa e compota de maçã. Mariana falava muito. O Conselheiro falava pouco; Evelina
não dizia nada. O relógio da sala de jantar deu oito horas, mas adiantava-se um pouco.
- Evelina, - disse Mariana - é preciso ires preparar a trouxa, senão chegamos muito tarde a Oeltow.
Disse isto com soberana indiferença, como o teria feito uma actriz sem talento e Evelina suspendeu a respiração. Sempre imaginara que os juizes eram mais difíceis
de enganar do que as outras pessoas. Kurt, surpreendido, levantou os olhos do seu prato de compota. Mariana apressou-se a explicar.
- Levo Evelina a passar o fim de semana em Geltow.
- Então, para vocês, mulheres, o fim de semana começa à quinta-feira ? - preguntou ele em voz rouca mas de muito bom humor.
- Podes bem conceder-me uma vez um fim de semana um pouco mais prolongado. - disse ela - Um pouco de sol não fará mal a Evelina. Tu sabes que.
- Julgava que ias amanhã passar uma hora na minha audiência. - censurou ele, com certa decepção.
Evelina ouvia; a conversa parecia não lhe dizer respeito.
- És um egoísta. - respondeu Mariana. Kurt baixou os olhos.
- Se Evelina o deseja. poderei ir buscá-la no domingo. Tu terás cuidado para que ela não molhe os pés?
- Levo-a a passeio duas horas por dia e o resto do tempo deito-a ao sol.
Evelina ouvia a conversa que lhe dizia respeito, como se fosse um objecto. Abandonou o marido com o seu inalador à companhia de Mariana e saiu da sala. "É o destino,
pensava. Era uma palavra bem singular. Ela nunca pôde pensar que semelhante palavra lhe pudesse ser aplicada. "É o meu destino. Tomei o meu destino nas minhas mãos."
Tinha o sentimento do perigo, de um perigo enorme, mortal. As mentiras, em que ela se agitava, eram finas como uma teia de aranha, o menor peso podia despedaçá-las.
Se seu marido soubesse a verdade, tudo estava acabado. Bem. Tanto pior. "O destino!" pensava, teimosa.
Fez a mala. Um vestido preto, outro de baile, (só tinha um), a sua linda camisa de noite, de rendas autênticas que lhe deram pelo seu casamento. "Dinheiro?"
- pensava, franzindo as sobrancelhas - Não sabia quanto podia custar o bilhete. Foi à cozinha, deu vinte marcos à Verónica e guardou na malinha o resto do dinheiro
do mês.
- vou passar o fim de semana a Qeltow. - disse ela - Cuide bem de tudo, veja que haja sempre fruta em casa. E que o sr. Conselheiro faça bem a sua inalação todas
as tardes.
Verónica olhava-a com espanto. A senhora Droste ia frequentemente passar dois dias a Geltow, e nunca o fazia com tanta solenidade.
Oito horas e meia. O quarto dos filhos. Não os tinha ido deitar. Do corredor, a luz entrava pelos vidros da porta, o quarto estava cheio com a respiração dos pequenitos.
Evelina desceu com cuidado a grade da cama de Ursinho. De-repente, começou a chorar. Isto parecia-se realmente muito com um adeus. Parecia-lhe que a mulher que no
sábado voltaria de Paris, já não seria a mesma. Porque esta que ali estava ajoelhada ao pé de Ursinho, não voltaria mais. Destino. Perigo. Tinha de ser. Não havia
que escolher.
A partir desse momento, tudo foi irreal, rápido e cheio de dificuldades que era preciso vencer. "Adeus, Kurt - Adeus, minha filha. Vejo-te no domingo. Talvez te
telefone amanhã para Geltow". -Kurt tem mau parecer - A escada. - Adeus, Fraulein - Adeus, escada. Adeus rua Dusseldorf. Tudo isto não é verdade. Tudo isto não passa
de um sonho. Parto para Paris, vou ao encontro de um homem que não é meu marido.
- Mariana, e se Kurt telefonar para Geltow?
- Eu cá me arranjarei.
Gedãchtniskirche. Luz. O rio. Trevas. Adeus Berlim.
- Mariana, se eu desmaiar quando estiver só?
- A gente nunca desmaia quando está só.- disse Mariana, em tom irónico.
A estação. Os carregadores. "Um bilhete. Sim, se faz favor, uma cama". Evelina nunca tinha comprado um bilhete de caminho de ferro, não sabia quanto havia de dar
ao carregador, não se atreveu a pedir informações aos empregados. Sentia-se feliz por Mariana estar ali.
- A criança começa a emancipar-se. O ratinho parte à aventura. - disse Mariana, com uma alegria fictícia - Se qualquer coisa não correr bem, manda-me um telegrama.
- Sim. Obrigada.
- Preferia ter a tua direcção de Paris.
- Não sei qual é a minha direcção em Paris.
Evelina sentiu-se penetrada de temor. Frank indicara-lhe uma direcção, mas ela estava muito alvoroçada para compreender. Teve uma visão horrorosa. Viu-se chegar
a Paris: Frank não estava na estação, ela encontrava-se só, perdida, não o vendo, não tendo dinheiro para o regresso, desmaiando em plena rua.
- Lá vem o comboio.- disse Mariana, um pouco nervosa, por sua vez.
Uma enorme locomotiva entrou. Mariana içou Evelina para a carruagem. No compartimento onde ela entrou, estava asfixiante. Noite e respiração de muita gente. Uma
senhora gorda estava deitada na cama de-baixo, no compartimento de Evelina. Mostrou-se ofendida como todos os viajantes por junto de quem se passa para subir. Mariana
estava ainda no corredor. Ela preguntou:
- Quando voltas? Parecia agora pálida e febril.
- Sábado. Irei directamente a Geltow.
No último momento, Mariana beijou-a. Um beijo rude e violento.
- Faz boa viagem.-disse ela.
O condutor afastou-a do comboio. Evelina ficou ainda um momento sem saber que fazer, depois, descobriu o seu compartimento, subiu para a cama e acendeu a luz, colocada
à cabeceira. As redes estavam cheias de bagagens da senhora gorda. De cada mala pendia um letreiro "Selma Rabbinowitz, Bucarest." O comboio pôs-se em marcha. Os
letreiros oscilavam. O casaco de Selma Rabbinowitz, as meias ao pé do
lavatório, o chapéu azul de Evelina, tudo isso baloiçava e oscilava. Era de causar vertigens.
Sem se despir, Evelina apagou a lâmpada. Â sua pele receava o contacto de uma cama estranha. Nas trevas, o ruído do comboio tornava-se cada vez maior.
- Amanhã - cantavam as rodas, aço contra aço amanhã, amanhã, amanhã, amanhã, amanhã, amanhã.
Mas, esse amanhã, Evelina não podia imaginá-lo.
Quarta-feira
O MARIDO
Um pouco depois das onze horas, a acusada Rupp teve uma crise. Deixou cair a cabeça nas mãos, abateu-se sobre o banco dos réus e pôs-se a gemer:
- Peço-lhes, não posso mais. Peço-lhes.
O Conselheiro previra isso. Emquanto que, distraídamente, seguia as aborrecidas considerações dos peritos, relativas à autópsia do cadáver da velha, não tinha deixado
de observar a acusada. Ele conhecia essa cor estranhamente amarela, esses lábios dos acusados já exgotados, que se tornavam cinzentos, o suor apareceu na testa da
Rupp: longas gotas espantosamente compactas caíam-lhe ao longo das fontes e juntavam-se no queixo.
Houve um momento em que o marido da Rupp, sentado a pouca distância do banco dos réus, lançou um curto olhar sobre a mulher, que quási logo se voltou. Um olhar interessado
e, ao mesmo tempo, ingénuo que lhe tornava agradável o rosto cheio de saúde.
A prisão preventiva parecia não lhe ter feito mal: estava bem barbeado, vestia uma espécie de fato domingueiro e tinha colarinho de goma.
Assim que a mulher tombou, o polícia que estava ao pé dela se apressou a sustê-la, e o seu jovem advogado
se voltou, com nervosismo, levantando a mão como um polícia de trânsito que dá ordem de parar, foi sobre o marido que caiu o olhar de Droste. O seu rosto, esse rosto
vermelho e luzidio tomou uma expressão de angústia rígida que se reflectiu nos olhos vítreos, desaparecendo logo.
Droste deu um salto:
- Senhor defensor,- disse ele - não torturaremos mais a acusada, se ela nos disser agora a verdade inteira. Faça-lhe compreender que isso é melhor para ela e para
o marido.
O advogado murmurou algumas palavras ao ouvido da mulher, que continuava com a cabeça metida entre as mãos. Tinha os cabelos ruivos húmidos e inundados de suor.
A sala estava cheia e os auditores ennervavam-se. Na tribuna reservada à imprensa, os jornalistas cochichavam. Havia lá duas mulheres que olhavam com piedade para
a acusada.
Essas palavras descabidas, amáveis "Peço-lhes" repetidas duas vezes seguidas, tinham causado uma impressão de piedade e enternecimento. Rupp, o marido, continuou
sentado, hirto, e olhando para o júri, ou antes, fitando a única mulher que se encontrava nele e que estava sentada ao pé dos juizes. Rosa Budecker era uma mulher
de cerca de quarenta e cinco anos; era viúva de um coronel morto durante a guerra e tinha agora uma loja de tabaco na Bulowstrasse.
Desde o começo dos debates, o acusado Rupp havia procurado conscientemente ou, talvez melhor, inconscientemente, pôr-se em contacto com esse membro do júri. Era
a ela que dirigia os seus depoimentos emquanto evitava os olhos do juiz e, assim que se dava um destes incidentes cómicos que surgem, sem que se queira, nas salas
de audiência, ria e olhava-a alegremente como se ele próprio tivesse concorrido para a distrair. Droste sentia aumentar em si uma impaciência
e um sentimento de animosidade contra esse homem de tão boa saúde - impaciência e animosidade indignas de um juiz.
Nada se podia provar contra Rupp: era isso que o tornava antipático. Droste sentia-se um pouco abatido, quando o incidente se deu sem trazer nada de novo. Estava
fatigado, mas reanimou-se.
A acusada também se reanimara, não chegara a desmaiar, já não corava, não teve nenhum ataque histérico. Levantou-se e disse claramente:
- Peço-lhes. Sempre disse toda a verdade. Tínhamos em casa veneno por causa dos ratos que havia na cave, andavam na cozinha onde eu dormia. Não foi meu marido que
comprou, fui eu só. peço-lhes, queria que isto acabasse e que me deixassem em paz.
Ela fitava as mãos e apenas no momento em que pronunciou as últimas palavras, é que olhou para o Presidente. Coisa estranha, este, justamente nesse momento, lembrou-se
de que tinha um dia encontrado a Rupp na escada da sua casa na DUsseldorferstrasse. Ela vinha de lavar, estava grávida, a escorrer suor como agora, encostando-se
ao corrimão, por delicadeza, para o deixar passar. Mais tarde, roubara; agora assassinara. Se o seu jovem advogado a livrasse da condenação por assassinato, e os
jurados e o perito chegassem a acordo nalgumas circunstâncias atenuantes, seriam ainda assim dez, doze ou quinze anos de trabalhos forçados. Droste sentia-se feliz,
como muitas outras vezes, de não ser por sentimento que condenava ou absolvia, mas apenas por se agarrar solidamente às leis. Era a lei que ditava o castigo e não
o homem, não um juiz, que podia estar fatigado ou nervoso, mal disposto e complacente. Tanto melhor.
Uma vez passado esse momento de desfalecimento, sem que a acusada tivesse modificado as suas declarações, Droste interrompeu a sessão e suspendeu a audiência por
duas horas: tinha necessidade de repouso.
Estava descontente consigo próprio. Desde manhã que dirigia mal as discussões, lentamente, de uma forma aborrecida, sem resultado, secamente. "É do veronal", pensou
ele, passando diante da multidão de pessoas, agrupadas no corredor, para ir para o seu gabinete. É ridículo tomar veronal à uma hora da manhã para me levantar às
sete. Desde que depois do veronal não haja oito horas de sono, fica o dia todo estragado, a cabeça pesada, a língua grossa, a garganta seca".
Mal chegou ao gabinete, pegou no seu pequeno cachimbo e pôs-se a fumar devagarinho. Sabia que lhe fazia mal: tirava-lhe o apetite e secava-lhe ainda mais a garganta,
mas não podia deixar de o fazer. Era a mesma coisa do que com o veronal. Tinha calor com a sua toga e não podia decidir-se a tirá-la. Estava muito aborrecido para
descer à cantina e comer qualquer coisa. Deixou-se cair numa cadeira e ficou, com as pernas afastadas, como um boxeur fatigado depois de um round difícil.
O oficial de diligências Perlemann entrou e pôs-se a arranjar a mesa do Conselheiro.
- Isto durará, sem dúvida, até às cinco horas?
- preguntou ele -Hoje é quarta-feira.-acrescentou sem outra explicação.
Perlemann era presidente de um clube de jogadores de quihas, e ligava grande importância a não sair tarde de Moabit (1) às quartas, à tarde.
- Veremos . - respondeu Droste, em tom vago.
- É preciso ir buscar alguma coisa à cantina?
- Não, obrigado.
- Um copo de Porto e uma sandwich. - disse Perlemann, sem ligar importância à resposta de Droste.
Depois saiu.
(1) Praça principal e palácio da Justiça, da Berlim.
- Do homem nunca se tira nada.-disse ele, ainda, da porta.
Isto era, traduzido em termos vulgares, o que pensava o Conselheiro. Sentia-se aborrecido com o caso. Se a mulher Rupp teimava em assumir todas as responsabilidades.
só tinha que deixar o marido em paz. Ninguém se interessava por este processo de pobres cujo resultado não teria a mais pequena influência sobre a sua carreira jurídica.
Não era o sentimento de ter de deixar cometer um erro judicial que torturava Droste, esse verdadeiro juiz, como um acorde mau tortura um verdadeiro músico. Acariciou
com a mão o arminho da toga. Steiner, um dos adjuntos, entrou, obeso e alegre.
- Não temos grande probabilidade de chegarmos hoje aos debates, meu caro colega ? É idiota que esta . mulher minta assim para salvar semelhante indivíduo.
Todos pareciam estar fartos. Todos queriam acabar. Droste também.
- Bruhne fez uma interminável lista de testemunhas.
Bruhne era o jovem defensor que tinham dado à acusada.
- Bruhne é um idiota de primeira classe. - declarou Steiner.
Ele tinha uma cara redonda, cheia de cicatrizes e uma calva reluzente.
- Apostamos em como vai falar duas horas. Ah! estes advogados novos!
Steiner soltou um suspiro de despedaçar o coração.
- Venha, Droste, - disse - vamos embora desta caixa de pedra. Temos tempo de ir até ao Nettelbeck.
- Obrigado, como na cantina. - disse Droste, olhando pela janela.
O que ele via de melhor não era senão as paredes sujas da prisão.
- Bem, cada um tem o direito de fazer o que quiser. - disse Steiner, saindo.
Droste esvaziou o cachimbo, meteu-o na gaveta e pôs-se a fumar cigarros.
Nettelbeck era um restaurantezinho fino que tinha uma cozinha particularmente boa, onde os advogados célebres, os juizes e os assessores que não tinham de viver
só do seu vencimento, iam almoçar à pressa. Antes de casar, Droste também ia ao Nettelbeck com frequência, durante as suspensões de audiência e mesmo á noite.
Agora, esse paraíso de homens, fumarento, com bancos de velho veludo encarnado, com o maravilhoso cabrito assado e o Borgonha, já não eram para ele. Suspirou, contemplando
as paredes da prisão que lhe ficavam em frente. A-pesar-da mesada que o pai de Evelina dava, era preciso regular prudentemente as despesas. Já se tinha, outra vez,
gasto de mais: o tratamento de arsénico de Evelina, a criada das crianças e depois o nascimento de Ursinho.- o orçamento ainda não se tinha equilibrado-E depois
Mariana, com todas as suas boas intenções, arrastava-os a divertimentos muito caros. Na semana passada tomara três táxis. O Conselheiro pensou que teria outra vez
de passar sem sapatos novos. Sentiu uma certa comiseração por si próprio. Renunciava a muitas coisas para dar a Evelina e às crianças o que eles precisavam. "E depois,
- pensava - Evelina é tão inhábill" Dizia isto com emoção e ternura, como se esta incapacidade de Evelina fosse uma qualidade particularmente preciosa e rara. De
Evelina, os seus pensamentos saltaram para a Rupp. Depois, Perlemann voltou e pôs diante dele um cálice de Porto e uma sandwich de presunto muito gordo.
À tarde, as discussões continuaram a arrastar-se, a sala estava cheia de ar viciado. Lá fora, em qualquer parte, havia tempestade, obscurecendo o ar. Acenderam as
luzes e todos os rostos empalideceram. As testemunhas, num interminável cortejo, desfilaram. Droste lamentou ter cedido e ter permitido ao nervoso defensor, todas
essas inúteis testemunhas. O agente do ministério
público, fazia reparos irónicos e tinha razão. Existia entre Droste e ele um leve mal entendido. O dr. Rodnitz punha-se sempre em evidência com discursos de acusação
que eram muito pretensiosos para serem objectivos. Queria fazer uma carreira rápida e brilhante. Pertencia a essa categoria de rigorosos, de implacáveis e, com ele,
os acusados não tinham ocasião para rir.
Droste compreendia a ambição; ele mesmo queria subir. Efectivamente era considerado como um dos jovens magistrados de futuro, mas tinha também um sentimento de equidade
penetrante, quási exagerado. Distinguira-se em dois grandes processos. Fora ele quem desembaraçara o famoso caso do roubo por arrombamento do Banco Nacional e levara
o chefe da quadrilha a confessar o seu crime diante dos jurados. No processo da actriz Koegel que, por ciúme, tinha assassinado o amante, a tiro, ele obtivera uma
condenação severa que tinha primeiro surpreendido e depois convencido. Conseguiu, nesse caso, convencer o júri que mostrava uma simpatia pela criminosa e pelo seu
ciúme, que o ciúme era um movimento primário e que os crimes passionais não deviam ser tolerados. Ele representava a convicção de uma geração nova de juizes ou de
magistrados mais modernos e mais liberais. O seu rasgo brilhante, de que, de resto, se sentia orgulhoso, foi o processo do estudante do liceu Wiener. Wiener, um
pálido rapaz de desassete anos, era acusado de ter morto a sua amiga de desasseis anos, a pequena estudante Meyerheim. Droste conseguiu por entre um matagal de declarações
embrulhadas em mentiras de colegiais medrosos, de testemunhos pouco claros de pais e professores, provar que a pequena Meyerheim se tinha suicidado e que Wiener
estava inocente. Wiener foi absolvido. Era agora empregado numa fábrica de Dantzig e, em cada dia de ano novo mandava as boas festas ao Conselheiro.
No caso Rupp ele não tinha nem glória, nem satisfação pessoal a obter. Droste ouvia os testemunhos vazios e via que enrouquecia cada vez mais. Bebeu água. Estava
morna, insípida e sabia a poeira.
Certas testemunhas declaravam que a acusada era uma pobre mulher e o marido um indivíduo brutal. Outras afirmavam que o marido era muito bom e tinha sido mudado
pela mulher. Havia testemunhas que pareciam sentir-se felizes, por a velha Rupp essa megera, ter morrido, mesmo graças a uma avultada dose de remédio para matar
ratos. E havia emfim quem considerasse a velha como uma santa e uma pobre mártir, que, antes de ser assassinada, tinha sofrido maus tratamentos e injúrias sem conta.
Depois veio o médico que declarou que a velha sofria de um cancro no estômago e, de qualquer forma, morreria daí a pouco. Os filhos dos Rupp apareceram também, um
após outro: três raparigas e um rapaz. Antes de cada palavra que pronunciavam, deitavam um olhar inquieto para a mãe, sentada no banco dos réus e que não parecia
preocupar-se com eles. A ocasião era boa para agir em face dos jurados a favor de uma pobre mãe separada de seus filhos e encerrada numa prisão. Mas a Rupp perdeu
essa ocasião. Indiferente, pesada, ali estava, com a cabeça inclinada para a grande barriga, como se os filhos, no seu uniforme da assistência pública não tivessem
nada que ver com ela. De-resto, as suas declarações foram insignificantes; dois deles tinham os cabelos ruivos e as sardas da mãe. A senhora Budecker, no seu lugar
do júri, apiedava-se e Rupp trocava com ela olhares sentimentais. Droste interrompeu bruscamente o depoimento do mais velho e mandou entrar o jovem empregado da
drogaria. Todas estas testemunhas deviam servir para demonstrar se se tratava de morte natural ou de assassinato.
Seria verdade que os ratos da cave dos Rupp fossem uma calamidade tão grande como a mulher afirmava?
Seria verdade que ela se servia sempre e constantemente do remédio de matar ratos para se desembaraçar deles e deitou esse veneno, de que tinha sempre provisão,
na sopa da sogra por desespero e sem, por assim dizer, saber o que fazia? Ou teria ela ido ao droguista comprar o veneno na intenção bem nítida de assassinar a velha?
A Rupp pretendia não ter dormido durante trinta e duas horas antes do crime. Durante o dia, tinha lavado a roupa em casa de uma freguesa. À tarde, tratou dos filhos,
do marido, da casa. À noite, a sogra gemia e gritava, reclamava que a tratassem e que lhe fizessem companhia. Os pequenos e os vizinhos confirmaram isto.
Era verdade: a Rupp trabalhava todos os dias, e era verdade também que a velha gritava todas as noites. Os vizinhos e os filhos estavam tão habituados que não faziam
caso.
O jovem droguista suava muito e sabia pouco. Não se lembrava de ter vendido alguma vez remédio para matar ratos à acusada. Mas isso não provava que ela não o tivesse
comprado. Ele servia tantas senhoras chamava à Rupp senhora, - e não tinha a memória precisa para fixar as caras das freguesas. Além disso, tinham encontrado o pacote
com o restante do veneno dos ratos e a etiqueta da drogaria, em casa dos Rupp. Por conseguinte, o seu testemunho não tinha valor. Droste mandou-o embora. Tinha o
pressentimento de que este processo podia continuar até ao infinito. Inclinou-se para Steiner e disse em voz baixa:
- É melhor chamar os peritos hoje ou continuar amanhã?
- Pra hoje já tenho que bonde. - respondeu Steiner, afectando uma linguagem vulgar.
Dos seis jurados, dois pareciam dormir. Droste tinha mandado embora os filhos da acusada, que foram levados por uma vigilante, de severo rosto masculino.
Conservara três testemunhas que ali estavam sentadas no seu banco, na forçada atitude das pessoas que se sabem observadas. Toda a gente parecia fatigada. Só Rupp
o co-acusado, estava bem disposto. Pôs a mão, de dedos quadrados, no ombro do seu defensor e segredou-lhe qualquer coisa, sorrindo. De-repente, Bruhne, o defensor
da mulher, levantou-se.
- Pois bem. - disse ele, mexendo nervosamente nos óculos - não se poderá, sem dúvida, demonstrar se o veneno já estava em casa na manhã de dezasseis de Outubro ou
se foi só comprado nesse dia. Mas, senhor Presidente, mas, senhores Jurados, mesmo que tivesse sido comprado nesse dia, provava isso o assassinato? Não, três vezes
não: Tendes diante de vós uma pobre mãe, uma mulher que espera um filho, uma mulher que trabalha penosa e duramente. Ela não dormia trinta e duas horas seguidas,
sabemo-lo da sua própria boca e as testemunhas confirmaram-no. Senhoras e senhores: um ser humano que não dormiu trinta e duas horas pode saber o que faz? Pode ser
tornado responsável seja pelo que for? Ah! não compreendeis o peso intolerável sob o qual vivem as classes trabalhadoras e eu.
Droste tinha escutado primeiro com surpresa, depois com aborrecimento. Os factos apontados por Bruhne eram, não somente exactos, mas conhecidos até à saciedade.
Droste era um homem delicado e fino, não podia suportar a fraseologia de Bruhne. Sentiu subir-lhe calor à cabeça.
- Senhor defensor: - disse secamente-não quere reservar essas considerações para os debates?
Estava já quási áfono, a sua voz mudou-se. Houve risos na sala. Droste não sabia se riam dele ou do defensor. Pegou na garrafa e deitou água num copo; essa água
tinha a aparência de óleo de rícino, e não tinha melhor sabor. Bruhne pôs-se a discutir. Droste quis responder-lhe, mas conteve-se. Amavelmente, declarou :
- Quando o senhor defensor tiver acabado de falar, desejava fazer uma pregunta à acusada.
Bruhne calou-se bruscamente e sentou-se. Riram outra vez. Droste olhou para a sala: os bancos tinham clareiras. Daria tudo para saber se Mariana lá estava, mas foi
em vão que tentou descobri-la. Ela usava habitualmente um chapéu que não se parecia com nenhum outro, uma espécie de sinal vermelho-fogo que servia para indicar
a sua presença.
- Acabamos de ouvir que a sr.a Rupp esteve trinta e duas horas sem dormir antes de comprar o veneno.
- disse o Presidente - Foi acudir a sua sogra doente, que se queixava. Porque não fez o acusado o necessário para que sua mulher pudesse dormir? Que fez nessa noite?
Porque não tomou o lugar de sua mulher?
Rupp levantou-se e olhou para a sr.a Budecker sentada entre o júri. As suas orelhas andavam sempre para a frente e para trás, quando reflectia. Finalmente, respondeu:
- Não estava em casa.
- Quando sua mãe morreu, não. Mas antes? Todo o resto do tempo, onde esteve?
Rupp mexeu as orelhas e disse:
- com um amigo.
A Rupp fez um movimento como se quisesse falar.
- Sr.a Rupp? - preguntou Droste.
A acusada levantou-se, cruzou as mãos sobre o ventre como para o suster e disse a meia voz:
- Senhor Presidente: meu marido esteve em casa de um amigo. Ele ia todos os dias à colónia Verde Prado, ia ajudar a arranjar o jardim e recebia em troca legumes
e ovos.
- Como se chama esse amigo?
- Broesig. -respondeu Rupp-José Broesig, colónia Verde Prado. Desta vez tínhamos apanhado batatas, eu até trouxe alguns arráteis mas quando cheguei a casa, a desgraça
tinha acontecido.
- Bem. - declarou Droste -Amanhã mandaremos comparecer o sr. José Broesig.
- Peço-lhe. - disse a acusada.
Voltou a sentar-se e olhou para as mãos, com satisfação. No mesmo momento, seu marido levantou a mão, como um colegial. Droste tinha de novo notado uma expressão
passageira de angústia nesse rosto vermelho. O advogado declarou:
- Rupp diz-me que não tem a certeza de poderem ainda encontrar Broesig nessa morada.
- Bem. - disse o Presidente - Procurá-lo-emos. Levantou-se, suspendeu a audiência e adiou-a para a manhã seguinte. Tinha desenhado numa folha de papel, que estava
diante de si, toda uma série de grandes bagos de uva. Era uma das suas manias. Tomou nota do nome e da morada de Broesig. Tinha uma memória quási incómoda para nomes,
algarismos, números de telefones e moradas.
A sala esvaziou-se com um ruído de pés e de tosses. A acusada saiu a pequenos passos, seguida do seu guarda, como uma vaca paciente que mandam para o estábulo.
Rupp, antes de se ir embora, puxou as calças, num gesto grosseiro, brutal e másculo, que lhe era habitual.
Droste seguiu-o com o olhar e mandou escrever a intimação para Broesig. Esperou o seu eléctrico, assobiando o Coro dos Peregrinos. Estava fatigado mas sentia um
entusiasmo novo. Tinha a impressão de que esse Broesig ia trazer nova luz ao caso Rupp. O eléctrico ia cheio e o Conselheiro estava entalado na plataforma da frente,
oscilando, pendente da correia. Ardia-lhe a garganta. Deitou fora o cigarro que acabara de acender. Sentia-se feliz por voltar a casa.
Assim que chegou, foi-lhe impossível descobrir Evelina. Não estava no quarto onde, habitualmente, se encontrava a essa hora, encolhida na cama como uma gata. Procurou,
sorrindo, entre o caos das caixas
dos objectos de costura e dos livros, levantou, sem pensar, uma flor que estava sobre a mesa de cabeceira e tornou a colocá-la, depois foi gargarejar para a casa
de banho. Ouviu os filhos no quarto ao lado. Gostaria de os ir ver, mas não se atreveu. A criada dizia que ele levava milhões de bacilos da sala de audiência e talvez
tivesse razão. Sentiu prazer em inundar a garganta durante uns instantes com água fresca, agradável, num gargarejo anisado. Parou como apanhado em falta, quando
Evelina entrou na casa de banho e pediu-lhe o seu inalador. Tinha conseguido passar dez minutos sem pensar no processo.
Mas, quando ia ao quarto dos filhos, descobriu na antecâmara o jornal da noite. Folheou-o de pé, leu o resumo do julgamento da manhã, protestou contra um certo número
de mentiras e, assim que entrou no quarto dos filhos, sentiu-se outra vez ao pé da Rupp e desse Broesig.
- Meu Kurtzinho - disse Clarinha, estendendo-lhe os braços.
Ela estava presa à sua cadeira com uma grande quantidade de cubos de madeira diante de si; todo o seu rosto estava banhado de sumo de framboesa.
- bom dia, senhorinha. - respondeu Droste, apertando-lhe a mãosita.
Ela teimava absolutamente em lhe chamar meu "Kurtzinho"; ainda não tinha compreendido bem o grau de parentesco existente na família e continuava a olhar seu pai
como outro filho de sua mãe.
- Quem encontraste, Kurtzinho?-perguntou, prestes a rebentar num riso claro.
Kurt sabia efectivamente mentir às mil maravilhas. Respondeu logo:
- Encontrei um polícia que era tão alto como uma casa, não. ainda maior e, por isso, podia ver por cima dos telhados.
Parou bruscamente, fatigava-o falar e de-resto, não achava mais nada para dizer. Dirigiu-se para Ursinho
e olhou-o timidamente. A-pesar-de tudo, tinha medo desse lactante frágil, e que era um poucochinho nojento. Clarinha tamborilava na mesa e queria saber mais coisas
do polícia grande. A criada disse em tom azedo:
-Não conte histórias às crianças antes de se irem deitar, porque as excita.
Droste retirou-se. Estava fatigado e tinha fome.
- Adeus, até amanhã, minha senhorinha.-disse ele.
Passeou impaciente, na sala, ouvindo Verónica fazer barulho com a louça, sentindo cada vez mais fome, esperando que Evelina viesse chamá-lo para jantar. Desejava
ardentemente não ser obrigado a falar. No fundo tinha esperado que Mariana lá estivesse. Mariana era capaz de falar sempre. Quando ela entrava numa casa era como
se trouxesse consigo uma corrente de ar fresco; mas passados momentos, a casa ficava quente como se lá estivesse um pequeno fogão aceso. Hoje, Mariana não tinha
vindo.
Era quarta-feira e, por conseguinte, tinha ovos mexidos com arenques, uma coisa com que Droste antipatizava solenemente. A alimentação, para ele, não tinha o valor
preciso para que falasse alguma vez desta pequena antipatia. Mas as minúsculas espinhas pareciam arranhar-lhe a garganta inflamada e enrouquecê-lo ainda mais. Comia
por delicadeza e por delicadeza conversava.
Sentiu-se feliz quando Evelina começou a descascar-lhe a maçã e lhe passou a mão pelos cabelos. Seguiu-a com o olhar, quando ela saiu para lhe ir preparar o aparelho
de inalações. Ela, a figura mais delicada e o andar mais leve que jamais vira numa mulher, era sempre meiga e amável.
Ele não tinha a consciência tranquila, como lhe acontecia muitas vezes quando olhava para Evelina. A sua profissão absorvia-o, sabia-o, e o que restava não era grande
coisa.
Não bastava andar de sapatos velhos e comer uma sandwich ao meio-dia. Não era capaz de se desembaraçar,
em face de Evelina, do sentimento da sua dívida em aberto para com ela.
Sentado diante da pequena coluna de vapor do seu inalador, respirava profundamente e com gratidão, pensando: "Foi uma tolice citar Broesig. Como se não tivéssemos
bastantes testemunhas inúteis. Não houve outra razão para esta citação além do movimento de orelhas de Rupp, quando o nome de Broesig foi pronunciado". De-repente,
Droste viu claramente, diante de si, o rosto da acusada, os seus cândidos olhos azues transparentes como o vidro, e teve a convicção de ter feito bem, citando a
testemunha. Tapou a lamparina do inalador e respirou mais à vontade e mais satisfeito. O ar agora estava impregnado de óleo de pinheiro que era agradável respirar.
Antes havia uma atmosfera adocicada e poeirenta de flores, como depois de um enterro. O serão tornou-se mais agradável e mais simpático. O rádio tocava Beethoven:
a delicada, clara e equilibrada alegria da Pastoral.
Evelina voltou. Tinha entrado sem barulho e, quando ele levantou a cabeça, viu-a de-repente diante de si e por um instante, olhou-a com surpresa. Pareceu-lhe tão
bela que se pôs a contemplá-la sem poder explicar de onde vinha essa mudança. Não estava pintada, como ao princípio julgara, não tinha mesmo mudado de penteado,
tinha o vestido do costume. No entanto, pareceu-lhe que havia muito tempo não a via, era como se, vivendo constantemente ao lado dela, tivesse esquecido a sua fisionomia.
Ela aproximou-se pela parte de trás e ele encostou contra ela a cabeça fatigada. Sentiu bater o coração de sua mulher, fraca e rapidamente, como um coração de passarinho.
"Pobre pequenina! - pensou enternecidamente.
O Conselheiro tinha tido antes do seu casamento algumas ligações-as quatro ou cinco habituais em todo o homem vulgar. Mariana não fora como as outras. Tinha sido
uma paixão breve entre a inimizade e a
amizade e, de súbito, tinha acabado. Droste nunca percebeu se fora ele que renunciara a Mariana ou ela a ele.
Depois, encontrara Evelina e tinha-se apaixonado pela sua delicadeza com reflexos de prata. Droste estabelecia uma grande diferença entre as suas relações com Evelina
e o que se tinha passado com outras mulheres. Ela aparecia-lhe como um instrumento no qual se não devia tocar senão suavemente. Era tão delicada, tão benévola, tão
ignorante e tão cândida! Ele próprio reprimia os seus desejos; receava que uma palavra demasiadamente apaixonada, um contacto demasiadamente brutal, pudessem assustá-la
e afastá-la dele. A sua vida conjugal era toda feita de cores pálidas e finas, de pastel. Droste habituara-se a isso e esquecia que tinha conhecido tons mais violentos:
Azul, vermelho e verde vulgar. Nessa noite, entusiasmado pela música que vinha pela T. S. F. sentia no ar uma estranha e vibrante tensão. Eram coisas que se haviam
tornado raras: era-se casado, tinha-se filhos. Antes e depois do parto, era preciso deixar sua mulher em paz durante meses.
Evelina sentou-se no braço da cadeira de Droste e, como ela se apertasse contra ele, pareceu-lhe sentir leves pulsações em todo o corpo. Isto excitava-o de uma forma
suave e delicada sob a qual se ocultava a violência. Olhou para Evelina com admiração como tinha feito havia pouco. Ela oferecia-se-lhe sem o saber.
- Minha filha ? - preguntou ele, com voz hesitante
- Minha filha ?
Foi muito feliz nessa noite, ficou mais satisfeito do que nunca desde o seu casamento. Deitado ao lado de Evelina com o braço passado, num gesto familiar em torno
da sua cinta, reflectia com admiração, no que seria a sua vida comum se Evelina se revelasse mais. Muitas mulheres, só começam a viver depois do
segundo filho. Ele acariciou-lhe o rosto; ela tinha a boca ainda aberta. Ele desejaria vê-la com esse novo rosto, com a boca aberta, mas não ousou acender a luz.
- Boa-noite, minha filha. - murmurou.
Estava-lhe agradecido pela calma que lhe tinha dado e por poder adormecer sem veronal.
Como não tinha tomado veronal, acordou cedo. As cortinas oscilavam suavemente em frente da janela aberta; por fora tudo estava ainda pardo e tranquilo, tão tranqQilo
que se poderiam ouvir os pardais pipilar e uma carroça de leiteiro, rodando no asfalto, parecia fazer na rua um barulho formidável e estranho. Droste ficou deitado
um momento, sereno, olhando para sua mulher adormecida. Ela tinha ainda o aspecto mais fatigado quando dormia. A sua almofada estava amarfanhada e o lençol tinha
escorregado. com precaução, cobriu Evelina, depois, durante vinte minutos, reflectiu nas preguntas e respostas que faria no decurso da audiência. Construía diálogos
em que testemunhas e advogados lhe traziam as palavras justas, de que tinha necessidade. Depois levantou-se, retendo a respiração para não acordar Evelina, pegou
nas pantufas e passou à casa de banho para se ocupar da sua garganta rouca e ardente.
Depois de vestido, entrou na casa de jantar para tomar o seu primeiro almoço. Clarinha estava já ali sentada no lugar do pai, à espera.
O pequeno almoço tinha todos os dias o mesmo cerimonial. Ele ia como um cego e um distraído para a sua cadeira e sentava-se, como por acaso, nos joelhitos quentes
de Clarinha. Então, tinha um sobressalto, como picado por uma tarântula, olhava com ansiedade à sua volta, via Clarinha e enfurecia-se contra esta pequena senhora.
A pequena senhora, encantada, gritava e ria até chorar. Depois, punha-a nos joelhos e metia pequenas colheres do seu próprio almoço, na boca ávida da criança, que
limpava a gema do ovo que lhe sujava o queixo. Depois, dando-se a mão, iam para o
quarto das crianças para inspeccionar o irmãosinho que, todo húmido de vapores, parecia estar a cozer nos seus cueiros.
Todos os dias indignavam-se ambos contra essa criança ainda tão malcriada. Então, Droste beijava Clarinha e Ursinho e voltava para a sala a guardar os seus documentos
na pasta e dirigia-se para o tribunal. Era a hora durante a qual as crianças lhe pertenciam e delas ficava-lhe sempre, para as primeiras horas da audiência, um equilíbrio
delicado e quente.
Naquela manhã, esse equilíbrio foi perturbado. Tocou o telefone. Verónica apresentou-se. Apareceu com a "sua cara", como dizia Evelina. Verónica sofria de constantes
desconfianças em relação aos amos. Tinha servido toda a vida, exclusivamente, em casas de gente fina. Não compreendia exactamente se os Droste eram na verdade finos.
Um nada bastava para despertar nela a suspeita, de que cozinhava para pessoas menos distintas do que os Hemmels, da rua de Goettingen e os Bottelheim de Alsemstrasse.
O Conselheiro e sua mulher tinham sempre trabalho em convencer Verónica de que eram pessoas honestas, bem criadas e de boas famílias.
- O gás telefonou. - disse ela - Se a conta não se paga, vão fechar o contador.
- com a breca! - exclamou Droste - Então não se pagou? No entanto, eu .
Verónica olhou-o, como ele olhava para os gatunos que tentavam fazer-lhe aceitar as suas falsas justificações. A porta fechou-se ruidosamente atrás dela. Droste
precipitou-se para a secretária. A conta do gás lá estava, tranquilamente, ao lado do cheque que ele tinha escrito.
Estava tão descontente, que se precipitou para o quarto e acordou Evelina. Em seguida, arrependeu-se. Ela tinha um aspecto tão inocente. Obediente, fez um esforço
para se levantar imediatamente e ir regular o assunto. Logo que ele se meteu no ómnibus que, o levava
ao Tribunal, atravessou-lhe o espírito a idea de que o casamento era uma coisa mal equilibrada.
À noite, tinha-se nos braços uma mulherzinha amada e vibrante; de manhã fazia-se-lhe uma cena por causa de uma conta do gás. Mal equilibrada!
Em cada processo que dura vários dias, a sala da audiência toma um aspecto espantosamente familiar. As mesmas caras no banco dos jurados, na tribuna da imprensa,
no público. Os acusados são trazidos com o mesmo ritmo e é todos os dias a mesma mosca que incomoda o delegado do ministério público.
Naquela quinta-feira, a primeira verificação foi que se não encontrara Broesig. Esta testemunha, como se dizia numa nota deposta em cima da mesa de Droste e também
como o declarou o oficial de diligências encarregado das convocações, tinha possuído, na verdade, uma pequena propriedade na colónia Verde Prado, mas tinha-a vendido
havia mais de cinco semanas e tinha partido para Wittenberg onde trabalhava numa fábrica de papel.
O defensor da Rupp saltou.
- Creio - exclamou ele - que o tribunal pode rerenunciar a essa testemunha. O acusado já me fez saber que não passou a noite na casa de Broesig. Era uma mentira
pateta e ridícula. Mas não se tratava de um alibi. Sabemos, de-facto, que Rupp não estava em casa durante a noite que precedeu a morte de sua mãe. Sabemos também
que estava em casa quando ela comeu a sopa fatal. É realmente supérfluo para os debates convocar a testemunha Broesig. Isto não trará senão novo atrazo.
- Sou inteiramente da sua opinião. - respondeu a voz complacente e enrouquecida de Droste - No entanto, desejamos saber onde o acusado passou realmente a noite de
14 para 15 de Outubro.
A Rupp tinha-se endireitado e olhava para o marido, de boca aberta. Era evidente que a mentira deste a assombrava.
Rupp levantou-se lentamente e declarou-se pronto a responder. O seu defensor tomou uma expressão ofendida e, ao mesmo tempo, satisfeita que queria dizer: "Vocês
vão ver!"
- Se o sr. Presidente quere saber, muito bem; passei a noite num banco do Tiergarten.
- Ah! E porque não recolheu a casa?
- Simplesmente porque não podia mais ver a pobre mulher gritar toda a noite.
- Quere dizer que já não podia ver sofrer sua mãe?
- traduziu Droste, em linguagem de processo.
- Não, não era isso que eu queria dizer, referia-me a minha mulher. Por minha mãe, pouco me importava.
- disse Rupp, olhando para a sr.a Budecker, sentada no banco dos jurados.
A estas palavras o rosto amorfo da Rupp foi iluminado por um olhar tão claro e humanamente reconhecido, que parecia uma outra mulher. Tirou o lenço e pôs-se a rolá-lo
entre os dedos.
- Porque contou, então, que estava em casa de Broesig?
- Por causa de minha mulher. Ela julgava, não é verdade? que eu trabalhava em casa de Broesig e eu não quis enganá-la.
- Quere dizer: não quis desenganá-la!-replicou o defensor.
- Bem. Mas então de onde vieram as batatas que trouxe para casa?
Rupp ficou silencioso, começou a transpirar. E preguntou:
- Sou obrigado a responder?
- Não.-declarou Droste - Mas, sem dúvida, que é preferível para si.
Houve um momento de espera até que Rupp formulou a sua resposta. Rugas profundas apareceram na sua testa baixa, os lábios agitaram-se como se soletrasse uma carta.
- As batatas. roubei-as, sr. Juiz.-acabou por dizer- Agora já não tem importância que o saibam. A prisão preventiva já basta. Roubei as batatas no mercado de Wittenbergplatz,
quando vinha do Tiergarten, de manhã, no momento em que estavam a descarregar. Lembro-me ainda exactamente: estava inteiriçado e arrefecido por ter dormido no banco
e pensava: "Preciso de arranjar comida para a mulher e para os garotos, de qualquer maneira."
Rupp, agora, falava correntemente. Sua mulher olhava-lhe para a boca com a expressão de alguém que é meio surdo e que está iluminado, como se ouvisse música.
Droste fez ainda outras preguntas. O seu assessor Muller animou-se e pediu explicações mas, por fim, teve-se de deixar este assunto. Rupp sentou-se tendo, à volta
da cabeça redonda, uma auréola de mártir. Também nesse dia não chegaram ao discurso da defesa, pois um dos peritos perdeu-se em considerações sobre a mentalidade
das mulheres grávidas. Era impossível fazê-lo calar. De-resto, era claro que essas considerações de ordem geral e muito vagas teriam uma influência favorável no
caso especial da Rupp. Droste tinha sono, a custo não adormecia. Esforçava-se por ouvir com atenção, mas, sem querer, o seu pensamento ia para outras coisas. A conta
do gás surgiu-lhe através do cérebro. Evelina passou como uma sombra desamparada e branca. Depois, o título de uma fita da qual tinha lido uma crítica. Queria ir
nessa noite ao cinema com Evelina para ver essa fita. Finalmente, viu que estava a pensar no orçamento de segunda-feira, emquanto o perito se embrenhava na psicanálise.
Droste anunciou uma suspensão de audiência e telefonou para casa dizendo que a sessão duraria muito tempo. Esperava ainda conseguir resolver o assunto nesse dia.
O Procurador do Estado, às sete da noite, estaria fatigado e acabaria. De-resto, via já claramente
qual seria a sentença. Assassinato com circunstâncias atenuantes para a mulher Rupp, absolvição para o homem. Droste desceu ao bar e bebeu uma garrafa de água,de
Seltz. Estava descontente e aborrecido.
Às quatro horas, no momento em que se preparava para preguntar à Rupp se tinha alguma coisa a alegar, o oficial de diligências, Perlemann, entregou-lhe uma carta.
- "Urgente". - segredou ele.
Droste voltou a carta que parecia uma denúncia anónima. Sobrescrito barato, letra disfarçada, erros de ortografia na direcção. Abriu a carta, pedindo, com um sorriso,
desculpa ao Delegado.
"Senhor Presidente.
"Em consequência do assassinato, queria fazer-me ouvir como uma testemunha importante. Não quero saber do dinheiro e não é isso que me faz falar. É, pelo contrário,
o desejo de ser útil à justiça, porque posso demonstrar qual é o verdadeiro assassino. Estou na sala de audiência sempre pronto a apresentar-me, se me chamarem.
"Peço ao senhor Presidente para não considerar o meu depoimento como de pouca importância.
"Emquanto espero, os meus cumprimentos.
Martin Kern."
Droste estava habituado às palavras pomposas que as pessoas sem cultura empregam, ao escrever. Sorriu e encolheu os ombros. Depois mostrou a carta aos assessores;
não tinha a mínima intenção de chamar mais uma testemunha para lhe fazer contar histórias aborrecidas. Houve um ligeiro debate. A senhora Budecker agitou-se no banco
dos jurados. Ela parecia julgar que o depoimento dessa testemunha voluntária poderia transformar num caso encantador e delicioso
as deploráveis circunstâncias da família Rupp, da sogra e do remédio dos ratos, e que o verdadeiro assassino surgiria, de imprevisto, negro como o carvão. Tinha
vindo a esta sala de audiências com o desejo ardente de viver coisas sensacionais e passaria de boa vontade mais duas semanas com o processo Rupp.
Droste soltou um profundo suspiro; depois foi dada ordem de procurarem Martin Kern na sala.
Martin Kern era um homem médio, magro, com um olho de vidro, que se apressou a declarar na audiência, ser uma recordação da guerra. Não o fizeram prestar juramento,
o que pareceu aborrecê-lo e foi convidado a contar, sem demora, o que sabia.
Martin Kern declarou pois que, na tarde, ou antes, na noite de 14 para 15 de Outubro, tinha visto o acusado Rupp com um embrulho que podia ser o mata-ratos.
Algumas preguntas bastaram para demonstrar que a afirmação respeitante ao veneno dos ratos era apenas uma ridícula suposição. No entanto, um ponto estava estabelecido:
Rupp tinha estado na noite de 14 para 15 de Outubro na loja da viúva Ohnhausen, na Rittergasse Martin Kern tinha sido algum tempo criado nesta loja. Vira Rupp muitas
vezes, parecia mesmo ter tido contra ele, sem motivo, um ódio profundo. Lembrava-se exactamente desta data porque tinha sido despedido no dia seguinte, 15 de Outubro.
Rupp, depois de acareado, acabou por confessar que era verdade. Tinha ido ao "Ouriço Azul". O embrulho, que a testemunha lhe tinha visto, era uma garrafa de remédio
que o seguro tinha fornecido a sua mãe. Um dos seus amigos havia-o convidado a tomar um cálice de aguardente antes de ir para o Tiergarten onde dormira, num banco.
- Esse seu amigo também partiu para Wittenberg?
- preguntou sarcàsticamente o delegado.
Droste olhou para a carta da testemunha. tinha-a coberto de pequenos desenhos representando bagos de
uva. com os olhos baixos observava a Rupp. Tinha saído da sua inércia. No seu rosto havia mais sardas do que dantes.
Segredava com o defensor e acenava com a cabeça. O seu rosto estava crispado como pela dor, apertava as mãos contra o ventre como se este lhe doesse especialmente.
"Esperemos que ela não dê à luz em plena audiência".-pensou Droste - Sentia que havia qualquer coisa no ar, qualquer coisa que apenas podia pressentir, mas não fixar.
Já passava das cinco. Suspendeu a audiência.
- A acusada não pode mais. - disse ele com um olhar de desculpa, aos jornalistas - Amanhã iremos até aos debates. Arreliava-se com a linguagem do tribunal a que
se tinha habituado. Ele era um amante das coisas belas e finas: livros, música, a meiguice desajeitada de Evelina.
Olhava com um olhar um tanto perturbado para a Rupp que, por sua vez, contemplava as próprias mãos. O guarda foi obrigado a tocar-lhe no ombro para que ela compreendesse
que a levavam. A sala esvasiou-se rapidamente como um teatro depois de uma representação má.
Quando Droste chegou a casa, alegrou-se por encontrar Mariana. À entrada, cheirava a couve-flor: Verónica tinha deixado outra vez aberta a porta da cozinha. Mariana
falava alto e estava de bom humor. Contou uma quantidade de anedotas que inventava à medida que as ia atribuindo a toda a espécie de gente célebre. Droste ria: doía-lhe
a garganta e a carne picada estava muito puxada.
Olhou para Evelina e julgou que ela não compreendia os melhores pontos das histórias de Mariana. Parecia-lhe de melhor aspecto nessa noite que de costume. Tinha
as faces mais rosadas e os olhos muito brilhantes, como antes do nascimento dos filhos. Droste era um artista. Esses pequenos pormenores é que constituíam
para ele o maior prazer. A Sinfonia Pastoral. Uma paisagem cinzenta de Corot. Os olhos de Evelina. Os seus ombros finos e sempre um pouco inclinados para a frente.
Justamente no momento em que Droste queria convidar as duas mulheres para irem ao cinema, elas anunciaram-lhe que desejavam passar o fim de semana em Geltow.
Ele teve um momento de decepção. Ficaria contente, retendo Mariana e fazendo-a assistir ao seu processo. Ao mesmo tempo ficou aliviado.
Suspendera a audiência porque sentia, de uma forma pouco clara e pouco precisa, que no dia seguinte lhe era preciso pôr ordem e claridade na situação criada pela
descoberta do facto de Rupp enganar, não somente os juizes, mas ainda a mulher. Precisava da sua noite para tratar do caso.
Mariana fez-lhe companhia um momento, emquanto Evelina desapareceu. Pôs-se logo a explicar-lhe o que
era o processo.
- No teu lugar, mandava chamar essa viúva Ohnhausen. - disse-lhe Mariana fumando um cigarro com a sua longa boquilha verde.
- Porquê? - preguntou Droste.
Mariana reflectiu um instante e a sua resposta pareceu não corresponder à pregunta.
- Não és forte em psicologia, Puschel. - acabou
ela por dizer.
Isto parecia um pouco irónico e reservado, mas o nome que tinha empregado, era aquele que lhe dava no tempo da sua ligação e ele sentiu de-repente o desejo de a
tocar, de a sentir nas suas mãos.
- Porquê? - preguntou, estupidamente.
- Tu pertences à raça feliz das pessoas que não compreendem o que é o ciúme.- disse Mariana, olhando-o com ar pensativo.
Não teve tempo de responder, pois Evelina apareceu
à porta, pronta para a partida. Estava nervosa e isso via-se. Droste sorriu ternamente: comovia-o que uma excursão a Geltow fosse uma coisa tão importante para ela.
Murmurou algumas palavras de adeus, atrás das duas mulheres, quando elas já desciam a escada.
Droste entrou em casa.
- Abra a janela, Verónica. - ordenou.
Lutou um momento consigo próprio, depois cedeu e acendeu o cachimbo. O aposento parecia-lhe maior e mais agradável agora, que o tinha só para si. Deu volta ao botão
do rádio, pescou no éter a "Quarta Sinfonia" de Tchaikowski, começando o passeio pela sala.
Já passava das nove e meia quando vestiu o sobretudo e saiu.
Era uma noite fresca, um pouco poeirenta, trazida pelo vento do noroeste.
Droste parou ao pé do primeiro polícia que encontrou e preguntou-lhe onde ficava a Rittergasse. Não era longe de Alexanderplatz. Dirigiu-se então para o metro, esperou
um instante e subiu. O vagão estava vazio. Foi, desceu, mudou de comboio, partiu, saiu. Todo o tempo, a sua cabeça tinha estado vazia de pensamentos. Repetia na
cabeça, como um estribilho, os estúpidos versos que serviam de reclame, no carro, a uma graxa para calçado. Não pensava em nada. Era um momento de descanso como
raramente lhe era concedido.
Finalmente chegou a Alexanderplatz e, descendo um pouco as pálpebras, olhou à sua volta. Nesse sítio batia um dos numerosos corações de Berlim: luzes, barulho, tráfico,
gente, empurrões, caras, vozes, buzinas, jornais, reclames. Uma borboleta perdida ziguezagueava por ali. Droste tomou um táxi e foi ao número 10 da Rittergasse.
Atravessou ruas desconhecidas, medíocres e aborrecidas, de que não sabia os nomes; mas, ao passar, reconheceu a prisão das mulheres, que uma vez tinha visitado como
assessor. Dando volta à rua, tinha-se a impressão de estar num bairro burguês. Um pouco mais longe, raparigas de vida fácil, passavam. Depois, a rua tornou-se mais
triste e o carro parou. Droste lançou um olhar à sua volta e descobriu o "Ouriço Azul".
Era uma pequena casa de bebidas situada num subterrâneo.
Parecia-se com milhares de outras, de Berlim. Descendo os seus quatro degraus, o Conselheiro lamentava já esta expedição pelo norte da cidade. Era uma dessas empresas
que ele fazia em estado de sonambulismo, um produto da fadiga. A porta envidraçada tinha uma cortina amarelada. Assim que Droste a abriu, um cheiro característico
de batatas fritas arrefecidas, de cerveja entornada e de fumo de cigarro feriu-o no rosto. A primeira sala tinha um balcão. Atrás, estava o empregado a encher copos
de cerveja. Era sólido e bem humorado; os seus braços vigorosos, nus até ao cotovelo, estavam tatuados. Parecia-se com Rupp, não na cara, mas no tipo. Alguns homens
que rodeavam o balcão, deitaram um olhar sobre Droste e voltaram a beber. O Conselheiro fez um leve cumprimento acanhado e apressou-se a caminhar para a segunda
sala. Aí estavam cinco mesas: uma redonda no meio, uma comprida, encostada à parede e três mais pequenas colocadas ao acaso. Em duas dessas mesas jogavam-se cartas.
Na maior, encontrava-se o símbolo de uma associação: um rapaz, em ferro fundido, segurando uma bandeira. Nesta mesa estavam sentados, numa roda, fregueses certos,
pequenos burgueses a falar de política e a dizer graças, de permeio.
Droste sentou-se à mesa que estava livre e pediu cerveja. Um criado, horrivelmente vesgo, serviu-o. Depois, três outros homens entraram e sentaram-se na mesa redonda.
Um deles gritou:
- Sr.a Ohnhausen!
Ao fundo da casa abriu-se uma porta envidraçada
ornada de um cretone de quadrados vermelhos - e a patroa fez a sua entrada.
A sr.a Ohnhausen era uma próspera pessoa, de cerca de trinta e cinco anos. A sua feminilidade era exagerada até à obscenidade, sem que parecesse dar por isso. Tudo
nela eram curvas, covinhas, pele e sexo. Estava um pouco mais bem vestida do que convinha à sua situação. Todos os homens se voltaram para a ver. Cumprimentou os
três que estavam â mesa redonda, pondo a mão no ombro de um deles emquanto falava com os outros. Depois dirigiu-se para a mesa dos fregueses certos e, ao que parecia,
começou a contar-lhes uma história engraçada. Um deles, divertia-se de tal maneira que dava murros na mesa; outro, magro e velho, engasgou-se a rir.
Droste olhava de revez para esse lado, semi-cerrando os olhos, e a sua pupila contraía-se até não ser mais do que uma cabeça de alfinete. Não havia nada de provocante
nas maneiras desta sr.a Ohnhausen. Mostrava apenas a amabilidade comercial de uma dona de taberna para com os seus clientes. Mas produzia o efeito de uma indecência.
Droste seguia-a com o olhar emquanto o seu largo corpo parava um momento na moldura da porta, quando foi para a sala de entrada. Para ele, esta abundância e esta
animalidade excessiva tinham qualquer coisa de repugnante, como um perfume muito forte ou uma cor demasiado berrante. Entretanto, debruçou-se e, por cima do seu
copo de cerveja olhou para o que se passava na sala da frente.
A sr.a Ohnhausen colocara-se agora ao pé do empregado. Estava ali, leve, bem feita, quási graciosa na sua gordura. Olhava, sorrindo, os braços do rapaz. Era o sorriso
com o qual as mulheres preguiçosas e bem alimentadas vêem brincar os pequenos animais.
Droste sentiu a sua respiração parar. Esta mulher e
o criado. Esta mulher e Rupp. Respirou profundamente e começou a tossir. Doía-lhe a garganta. Apressou-se a beber a cerveja e teve prazer em lhe sentir a frescura
e o amargor.
Pagou e levantou-se.
Sabia agora o que ia tentar no dia seguinte.
Sexta-feira
ELE
As conversas com a gente da Chambre Syndicale des Importateurs de Fruits tinham durado toda a manhã, insuportáveis e difíceis. Quando se chegou emfim à assinatura
do contracto, Frank estava tão impaciente que não deu mesmo tempo a deixar secar a assinatura. O sr. Franchetot, meticulosamente, pegou num mata-borrão e pôs tudo
em ordem. Frank Davis desceu a escada, saltou para um táxi para ir à estação do Norte. Tinha na boca como que um travo desagradável. Ter emfim feito comprar aos
franceses quarenta mil caixas das suas laranjas de Navel a um preço irrisório, era uma dessas vitórias que custavam mais dinheiro do que uma franca derrota.
Emquanto se encaminhava no carro, continuava nos seus cálculos. Mas, de-repente, conseguiu desembaraçar-se de todos esses pensamentos e preparar-se para a chegada
de Evelina. Sentia prazer em tornar a vê-la. Tinha acumulado uma alegria tão intensa no seu coração, que ele próprio se observava, estupefacto. O caminho até à estação
pareceu-lhe interminável e os seus olhos fixavam-se, com impaciência, no relógio de pulso, esperava arreliadamente não faltar à chegada do comboio
e dirigiu ao motorista toda a espécie de súplicas e de promessas encorajadoras.
A impressão que tinha guardado de Evelina era a sua falta de iniciativa. Se ele faltasse, ela estava em risco de se perder. Sorriu ao lembrar a frágil pessoa que
parecia ser sempre levada pelo vento. "Se não chego a tempo, à estação, as senhoras de A liga de protecção às raparigas sós tomam-na sob a sua guarda". Depois, sem
transição, os seus pensamentos saltaram de Evelina para Pearl, sua mulher.
Pearl não podia suportar que a fossem esperar à estação. Afirmava que, quando alguém chega, tem sempre um ar mal lavado e que é cruel vir ao encontro duma mulher
que não esteja correctamente em ordem. Pearl era de uma independência turbulenta e incisiva. Era fria, enérgica e alegre. Dizia e fazia muitas coisas que não são
costume, mas nunca nada de incorrecto. Frank tinha casado com ela por ser a mais bonita rapariga que tinha encontrado. Era uma mulher exigente e isso não desagradava
a Frank. Ser seu marido, era uma coisa absorvente e que não dava muita tranquilidade. Havia, neste casamento, frieza, franqueza, qualquer coisa de cristalino. A
própria Pearl chamava à sua casa de Long Island, o Aquaríum. Além de tudo, era muito bonito ser marido de Pearl, e Frank era um marido que não merecia censura. lá,
na América. Na Europa, por exemplo, já se sentia um pouco mais à vontade. A maior parte dos seus amigos fazia o mesmo e as pequenas aventuras que se passavam deste
lado do Oceano não tinham importância.
Frank não podia viver sem mulher e, como todos os homens desse género, orgulhava-se dessa qualidade.
"Uma semana sem mulher, basta para me pôr doente" - dizia em confidência aos seus amigos.
Agora, havia mais de três semanas que estava separado de Pearl e sentia uma louca alegria pensando
que, no dia seguinte, sábado, ia encontrá-la no Berengária.
Uma vez chegado a este ponto dos seus pensamentos, Frank parou. Sorriu indulgentemente para si mesmo. O automóvel estacou diante da estação. Evelina! A espectativa
em que se encontrava da sua aventura com Evelina, estava misturada e impregnada pela alegria de tornar a ver Pearl. O seu coração batia; sim, na verdade, batia.
Sentiu-se bem, de uma forma invulgar; com duas tensões contraditórias que se cruzavam em si em vez de uma só, aborrecida, honesta, muito recta.
Pagou ao motorista e precipitou-se para a estação. Fez um gesto para compor o cabelo e a gravata. Tinha passado dez sérios minutos a escolhê-la. Era azul com pintas
douradas que iam bem com o tom da sua pele. Era vaidoso, como todos os homens, de uma forma forte e infantil e, como em todos os homens, essa vaidade concentrava-se
nesse pedacinho de pano variegado que a moda permitia. Essa gravata era uma homenagem a Evelina, uma tentativa de lhe agradar absoluta e completamente.
Pearl, pelo seu lado, conhecia-lhe todas as gravatas e fazia espírito a esse respeito; eles eram casados.
Havia já dois minutos que o comboio tinha chegado, quando Frank entrou. Ao longo do comboio todos se beijavam e celebravam os encontros. Moços com bagagem, choros,
risos, gritos, assobios. Os franceses viajam pouco, por isso as chegadas e as partidas são para eles acontecimentos importantes, que têm de ser festejados.
- Alô! - disse Evelina.
Ele voltou-se, rápido. Tinha, estupidamente, procurado um vestido branco, embora ninguém, nesse dia nubloso de Maio, vestisse de branco. Mas, tinha-a visto assim
três vezes contando a última. Estava de branco na sua memória.
- Alo! - disse ele, sorrindo.
Era uma senhora estranha que ali estava, muito correcta, com um tailleur preto e uma blusa branca. Não tinha posto rouge nos lábios que estavam exangues.
- Minha senhora, - disse ele em francês e num tom um pouco acanhado - está encantadora.
- Onde está a tua bagagem?-preguntou, voltando ao inglês.
Indicou com um gesto o carregador que estava ao pé, segurando amavelmente a sua mala de fim de semana. Frank deu-lhe o braço e lá foram.
Ela era, na verdade, ainda mais distinta do que ele a imaginava; dir-se-ia que nunca tinham estado juntos numa asfixiante barraca de banhos.
Mas, emfim, distante ou não, viera ter com ele a Paris e tinham diante de si um dia e uma noite para melhor se conhecerem. De momento, trocaram banalidades. "Conheces
Paris?" e "Fizeste boa viagem?" e finalmente: "Foi muito gentil da tua parte, teres vindo."
A isto, as pestanas de Evelina tremeram levemente e, com uma ponta de frivolidade, respondeu:
- Pensei que uma pequena excursão me faria bem.
No táxi foram calados. Frank pegou-lhe cautelosamente na mão que estava fria e segurou-lha energicamente. Ela olhava com atenção pelas janelas como se essas ruas
intermináveis e pouco atraentes por que passavam, tivessem qualquer interesse.
- Darling! - disse ele, hesitante. Ela sorriu.
- Tudo irreal. - respondeu.
Ele não a tinha beijado ainda. O seu casamento com Pearl levara-o a não fazer exibição dos seus sentimentos.
A dona do hotel acolheu discretamente Evelina, de uma forma amável e comedida. Evelina portou-se exactamente como Pearl o teria feito. Frank observou intimamente
que era agradável ter aventuras com mulheres bem educadas. Lembrou-se, com desagrado, de
ter estado várias vezes na sua vida sobre brasas, porque uma companhia mal escolhida o comprometia.
Excepcionalmente, o elevador funcionava, mas parou no segundo andar e tiveram de subir a pé o resto da escada. Frank seguia Evelina. Foi durante esses minutos, do
segundo ao terceiro andar que ele viu, pela primeira vez, aquela que o acompanhava. Era muito mais bonita do que ele pensava. Frank tinha muito gosto para o que
era de alta qualidade.
Evelina possuía todas as características de uma boa raça, as articulações, o andar, a cabeça fina, as ancas alongadas.
- É aqui que ficamos. - disse ele, abrindo uma porta.
Estava um pouco embaraçado e esforçava-se por não o mostrar. Uma pequena sala de móveis vulgares. Em cima do fogão de sala, de mármore fingido, um busto, também
de mármore fingido, Frank sentia um certo mal estar, pois essa sala tinha toda a mediocridade de um velho hotel de fama, orgulhoso de ser conservador. Evelina aproximara-se
rapidamente da janela, olhando para fora. Frank recebeu das mãos do criado a maleta e fechou a porta.
- Os tetos de ardósia! - disse ela, da janela. Tudo isto era loucura. Um instante depois, Frank
cingia-a nos braços. Ela tremia. Ele também começou a vibrar. Evelina desprendeu-se e dirigiu-se rapidamente para o fogão de sala.
- Josefina. - disse ela, como se cumprimentasse uma parente.
- Quem? -preguntou Frank, admirado.
- Josefina Beauharnais. - respondeu Evelina, acariciando as faces de gesso, do busto.
- Vocês, as alemãs, são realmente instruídas.- murmurou Frank.
Evelina sorriu-lhe com os seus lábios pálidos.
- Quanto tempo podes cá ficar ? - preguntou ele.
Era apenas uma frase amável pois, em qualquer hipótese, ele tinha de embarcar no dia seguinte no Berengária.
-Amanhã, à tarde, tenho de estar de volta.-disse Evelina.
- Podes ir de avião e assim tudo será fácil e chegarás a tempo.
Evelina olhou-o pensativa, como se não o tivesse ouvido.
- Não pensemos em amanhã. - disse ela, então. Depois, calou-se.
Frank pegou na maleta e levou-a para o quarto que lhe destinava. Quando abriu a porta, o pesado perfume das rosas acolheu-os. Todo o quarto estava cheio desse cheiro.
Frank descobriu, com a testa enrugada, que a patroa tivera a tocante atenção de pôr um ramo de rosas vermelhas na mesa de cabeceira. Era dessas flores de um vermelho
escuro que murcham mais de-pressa e cheiram mais do que as outras. Evelina mergulhou o seu rosto nas rosas.
- Obrigada. - disse em tom violento e um pouco exagerado.
Frank sentiu-se feliz por as flores lhe agradarem. Esta decoração simbólica com as rosas parecia-lhe absolutamente falha de gosto. Preguntava a si próprio, estremecendo,
o que não diria Pearl a respeito desta espécie de alusão galante.
Evelina afastou-se e passou ao outro lado do quarto. Os estores estavam meio fechados o que era também uma impertinência da patroa. A cama não era ali um objecto
de madeira, mas um terceiro ser vivo e pretensioso. Frank abriu uma portada de reposteiro.
- Só temos-disse ele - uma casa de banho para os dois. Estes hotéis franceses não estão à altura. O meu quarto é do outro lado.
Tossiu e terminou:
- Julgam-nos casados.
Evelina olhou-o com um sorriso quási apiedado.
- É verdade? -preguntou - No entanto, tu não te pareces nada com um homem casado!
- Porquê?
Justamente nesse momento ele teve a percepção clara de que Evelina o julgava solteiro. Só o acaso tinha feito com que ele nunca falasse de sua mulher. Hesitou apenas
um segundo. Não era, no entanto, o momento de falar de Pearl a Evelina. E de-resto, decidiu, ela não tem nada com isso. Absolutamente nada.
Foi à casa de banho e abriu a torneira de água quente.
- Naturalmente queres tomar banho?-preguntou.
Evelina aceitou com alegria. Abriu a maleta e levou as suas coisas para a sala de banho. Agora o dentífrico dela estava ao pé do dentífrico dele, a sua esponja estava
ao pé da dele. Evelina observou essa vizinhança com uma estranha expressão. A ele, parecia-lhe nesse momento que já eram bem mais Íntimos. Seguiu-a do quarto de
banho ao de cama e depois, de novo, ao de banho. Uma camisa de noite fina e branca, cheia de rendas, saiu da mala e foi posta em cima da cama. Frank teve um sorriso
surpreendido e alegre. Alimentara no seu íntimo extravagantes ideas a respeito da roupa de baixo das alemãs e era alegre e tranquilizador, verificar que Evelina
possuía os mesmos acessórios de garridice que Pearl ou Marion.
- Pronto! - disse ela, deitando um olhar inquieto. Ele tinha-se ajoelhado e tentava tirar-lhe os sapatos.
- Queres que te ajude? - preguntou.
- Não.
- Não?
- Não, peço-te.
Frank pensou nisto um momento. Às vezes, estraga-se tudo cedendo a uma mulher, outras, não lhe obedecendo. Olhou para o rosto de Evelina; os seus
olhos eram sombrios, azuis, mais claros do que ele julgava, mais cheios de inquietação. Beijou-lhe rapidamente os tornozelos e levantou-se.
Um homem de joelhos tinha-se de resto tornado qualquer coisa de ridículo na nossa época saciada.
- Avia-te, darling. - disse ele, meigamente - Não devemos perder a hora sagrada do almoço.
Ela pegou-lhe rapidamente na mão e beijou-lhe a palma, depois fechou-lhe os dedos como se se tratasse duma moeda. Ele tinha ainda essa pequena surpreendente queimadura
nos nervos da mão no momento em que, do quarto, telefonou a Marion.
Agora que Evelina tinha realmente chegado, era preciso desembaraçar-se de Marion à noite.
Não o tinha feito mais cedo com medo de acabar por ficar sentado entre duas cadeiras vasias. Emquanto esperava a ligação, sentia-se pouco à vontade. "Não é correcto",
- pensou um instante-mas não saberia discernir se era com respeito a Marion ou a Evelina que sentia a inconveniência. A prudência tem sempre qualquer coisa de pouco
delicado, mas, no comércio das laranjas, aprende-se a ser prudente.
- Alo! Alio! És tu, Joujou?- preguntou a voz apressada de Marion, ao telefone - Há um século que não te vejo! A Flora está a fazer grandes preparativos para o jantar
de hoje.
Frank engoliu a saliva. Arrepiava-se sempre um pouco quando Marion lhe chamava nomes de brinquedos, de animais ou de legumes.
- Darling, aconteceu-me uma desgraça.-disse ele.
- Meu Deus! -exclamou Marion aflita-Alguma coisa de desagradável ?
- O mais possível. Chegou minha mulher. Não poderei ver-te esta noite e nós partimos amanhã de manhã. Nem sequer me poderei despedir de ti!
Marion não respondeu imediatamente. No entanto, tomou a coisa a rir.
- Como deve ser agradável teres a tua mulher aqui! - disse ela, em tom alegre - Quando parte o barco? Em que comboio sais de Paris? Quando voltas à Europa? Manda-me
um telegrama quando vieres.
Frank segredou ao telefone umas palavras de gratidão e de ternura. Estava apressado. Justamente no meio da conversa a porta da casa de banho abriu-se e Evelina apareceu,
olhando-o surpreendida. Ele calou-se e deixou Marion tagarelar.
- Adeus, meu amor. Foste muito amável. Diverte-te. Boa viagem.
Ele mal a ouvia. Pertencia já todo a Evelina.
Ela pareceu-lhe um pouco mudada, mais explendorosa que antes. Quando a beijou, sentiu o gosto do seu bâton.
"Ah! Ah! - pensou - Há qualquer coisa de novo nesta berlinensezinha. No momento menos oportuno, acudiu-lhe a lembrança do marido e deixou-a afastar-se.
- É tempo de irmos almoçar. - disse, levando-a consigo.
Em baixo, esperaram um pouco. A patroa entregou-lhe um telegrama. Era de Londres. De Pearl. "Corsário ansioso por te conhecer". Era o texto. Frank, de pé, com o
telegrama na mão, preguntava a si próprio quem seria o corsário. "O novo cão. Lembrou-se, não pôde deixar de rir. Evelina estava ao pé dele e observava-o com ar
sério.
- Negócios. - disse.
-As mulheres amimam-te por toda a parte.-notou ela, de-repente.
Frank olhou-a, estupefacto. Em Berlim achara-a mais meiga e mais sentimental. O bâton na boca tinha tornado mais picante não somente o seu rosto, mas toda a sua
pessoa.
- Ciumenta? - preguntou, admirado.
Ela não respondeu. Ele atirou o telegrama para o cesto de papéis.
Como todo o bom americano, orgulhava-se de conhecer um pequeno restaurantezinho onde não iam os seus compatriotas. Conseguiu colocar Evelina no banco comprido do
"Chez Rosset" compôs seriamente uma ementa e pôs-se a conversar, um pouco de mais e apressado, como ele próprio reparou. Estava um tanto nervoso, era ridículo, mas
a situação não lhe parecia tão simples como tinha imaginado.
Evelina viera a Paris por um amável convite feito pelo telefone. Era uma prova de boa-vontade que significava muito. Mas, ao mesmo tempo, era uma senhora tão distinta,
tão delicada que ele tinha medo. Não era uma aventura banal. e Frank sentia mais a impressão de estar no primeiro dia de uma viagem de núpcias.
- Madame, - disse Frank - está toda embrulhada em celofane limpo e intacto.
Evelina bebeu vinho e sorriu. Parecia encontrar-se completamente à vontade nesta situação.
- Sou um idiota, - pensou Frank-é provável que estas boas berlinenses façam destas excursões a Paris muitas vezes. Por baixo da mesa, pegou na mão de Evelina. Ela
tinha a sua aliança de casamento. Essa mão estava fria e tremia ligeiramente. Uma leve agitação de desejo surgiu nele, depois, desapareceu imediatamente. Evelina
começara a falar francês e isso agradou-lhe.
De-repente, de um canto da sala de jantar, aproximou-se da mesa deles um senhor de aparência claramente germânica. Cumprimentou Evelina. Frank olhou-o com aversão.
Tinha uns cabelos finos, cor de areia; usava luneta e tinha as faces cheias de horríveis cicatrizes. Falava a Evelina em voz alta e com uma super-abundância de sons
guturais. Esta respondia-lhe com manifesto desagrado.
Um reposteiro discretamente colocado diante da porta do toilette reservado às senhoras, foi afastado e uma pessoa jovem, mas extraordinariamente pouco sedutora,
foi ao encontro do antipático senhor. Assim que ela se apresentou, Frank lamentou Evelina de ter tais pessoas entre os seus conhecimentos. Quando se despediram,
ela tinha um ar fatigado.
Frank pagou a conta e levou Evelina para a rua. O sol, um pouco pálido, tinha aberto caminho através das nuvens.
- E agora ? - preguntou Frank, com hesitação.
- Sim. E agora ? - repetiu Evelina.
- Tu sabes o que todos os pares de apaixonados fazem a esta hora, em Paris?- preguntou ele, à pressa.
Esta pregunta fez-lhe subir um pouco de cor às faces. "Todavia - pensou Frank - Não era isto que ela esperava?"
- Sei. Os estores baixos e o resto.-disse ela
- E agrada-te, esta forma de amar em plena tarde?
Ela falava do amor à tarde, como um conhecedor, da temperatura de certas espécies de vinho. Frank pegou-lhe no braço e cingiu-a contra si.
- Mas eu não sou desse tipo. - acrescentou. Ele sentiu-se perturbado.
- De que tipo é que tu não és? E de que tipo és? Isto tinha-o tornado um pouco nervoso.
- "Vamos ao Bois" - pensou.
A experiência tinha-lhe mostrado que o Bois exerce uma influência extremamente favorável sobre o desenvolvimento dos assuntos de amor.
Uma vez sentados no táxi, o céu escureceu e uma nova chuvada caiu. As gotas batiam contra o teto do carro. Evelina, silenciosa, olhou através dos vidros molhados.
Lentamente, as laranjas apoderaram-se outra vez do espírito de Frank. O contrato. quarenta mil caixas. cada uma com um prejuízo de dois cents e um terço. isso fazia
novecentos e trinta e três dólares e alguns cents. quási mil dólares, sem contar as despesas da viagem. Mas era um princípio com a Europa, no fim de contas, valia
a pena.
Tentava voltar a si quando o carro parou. A chuva tinha cessado, mas estava tudo molhado. Frank deu o braço a Evelina e os seus dedos entrecruzaram-se com os dela,
emquanto que, pelo passeio húmido, se dirigiram para o Pré-Catelan. Era uma coisa automática. Pena que, em amor, as mesmas coisas se repitam sempre. Por outro lado
era bom que se estabelecesse uma certa rotina. Frank sentia-se impaciente e parecia-lhe um pouco ridículo estarem a perder tempo no Bois, escorrendo água. Sentaram-se
nas cadeiras frias e molhadas. Encomendaram chocolate para Evelina. Amanhã tudo estaria acabado. "Que pena!"-pensou Frank, de novo - Talvez aquilo se transformasse
em qualquer coisa boa e extraordinária se ele tivesse tempo para dar a Evelina. Que lindas pestanas de prata ela tinha!
- Como tu és estranho!-disse ela, interrompendo o curso dos seus pensamentos.
Olhava-o com atenção, com o rosto perto dele; a sua pele, vista assim de perto, era polida como um metal mate.
- Conta-me, - pediu - como é a tua vida? De onde vens? Para onde vais? Não sei nada a teu respeito.
- Meu Deus,-exclamou ele-maséumaentrevista!
Depois, hesitante, pôs-se a falar de si. Era a primeira vez. Emquanto contava, as coisas coloriam-se um pouco e pareciam mais interessantes do que ele pensara. O
seu escritório em New York, as viagens de negócios, o seu barco com motor no golfo de Long-Island. A velha propriedade em Carolina, o Natal e os pretos cantando
em volta de fogueiras ao ar livre. caçadas, cavalos, plantações de laranjas na Califórnia do Sul, casa em Santa Bárbara. Anos de mocidade na China, nas Filipinas,
em Cuba, durante a guerra. "Não está mal de todo", pensava, emquanto ia contando. Finalmente pôs-se a falar só das laranjas. Tinha feito uma plantação de experência
onde se produziam, constantemente,
novas qualidades. As suas laranjas já eram doces. Faltava ainda dar-lhes a acidez e o aroma das laranjas espanholas e então .
- Não pensas em mais nada quando tratas dos teus negócios?
- Como ? Não. provavelmente não. Todos os homens são assim. - disse ele.
Ela tirou-lhe subitamente o cigarro da boca e depois de ter dado algumas fumaças, restituiu-lho. Havia nesse gesto uma espontaneidade, uma intimidade inesperada
que o tornaram de contente, impaciente e ansioso.
- Conta mais. - disse ela.
- Não chega? -preguntou ele, sorrindo.
- Não. - insistiu ela, abanando a cabeça - Quero dizer: há tantas coisas que é preciso que eu saiba para poder pensar em ti mais tarde!
Ela calou-se um instante, fitando-o.
- Alimento para a fantasia. - disse a sorrir.
- Para que eu te possa imaginar. mais tarde. quando tu tiveres partido.
- Disparate! - replicou ele, vivamente - Estamos juntos, o "mais tarde" não existe.
Ela não o deixou desviar o pensamento.
- Preciso, por exemplo, de conhecer os teus fatos. Só conheço esse e o smoking. Quando penso em ti, vejo-te sempre de smoking. Precisava ver-te uma vez a cavalo
. tu tens cavalos ? És muito rico?
- Oh! não. Pobre não sou e é tudo.- Não pôde deixar de sorrir.
Ela reflectiu um instante.
- Vocês, americanos, têm outras maneiras de ver. Ele encolheu os ombros.
- E depois, lá também há mulheres.
Frank estava justamente a contemplar-lhe o nariz. Ela tinha as narinas rosa pálido como costumam ter os jovens cavalos árabes.
- Como? - preguntou, perturbado no seu exame. Ela não repetiu a pregunta, contentando-se em
olhá-lo.
- Sim, bem entendido, há também mulheres, às vezes. - disse ele, de má vontade.
- Diz-me. há lá uma que seja mais importante do que as outras? Quero dizer, enganas hoje alguma comigo? - preguntou, a custo.
Frank teve, de súbito, a impressão de que ela tinha olhos de criança. Não tinham mais de cinco anos, aqueles olhos.
- Sim. - respondeu.
Não gostava de mentir. Evelina acolheu a sua resposta sem dizer palavra, no entanto, um pouco mais tarde, concluiu:
- Bem.
- Tu também tens um marido, - disse ele.
- Sim, também.
- Teu marido sabe que estás em Paris?
- Pois claro que sabe.
- E também sabe que eu estou?-preguntou Frank. Não obteve resposta. Pegou na mão de Evelina
que se tinha afastado dele. Estava fria e foi-se aquecendo lentamente ao seu contacto, emquanto ele a retinha sem dizer nada.
No decorrer dos minutos seguintes, emquanto ali estavam sentados a contemplar os prados de onde subia uma bruma prateada, Frank Davis sentiu, de uma forma estranhamente
forte, que estava vivo. Era um sentimento ao mesmo tempo de à vontade e contracção. Sentia-se ele mesmo, descobria em si um silêncio que quási tinha esquecido.
Vivia-se. Cultivavam-se laranjas e vendiam-se laranjas, viajava-se, ganhava-se dinheiro, gastava-se, era-se ambicioso, casado, obtinha-se resultado. A Bolsa, o automóvel,
o Clube, o póker, o golf, o rádio: bem,tudo bem. Mas o que sentia agora, era esse desejo e essa
satisfação profunda, essa respiração, essa calma, no mais Intimo de si mesmo, a quietação que se misturava a isso tudo. Tudo o que se chama vida: eram coisas que
se esqueciam à medida que se iam vivendo. Vivia-se muito ?ruidosamente e muito de-pressa para se sentir. E, de-repente, sentia a vida ali na bruma que cobria os
prados, na mão de Evelina que aquecia ao seu contacto, na respiração silenciosa de Evelina, que se misturava à sua. - Põe outra vez a tua mão no meu coração. - ouviu-se
ele dizer, de súbito - Amo-te. - disse, vendo que Evelina o olhava com surpresa.
Eis que esta palavra ridícula lhe tinha vindo aos
lábios sem ele querer. Mentira espontânea.
- Eu sei, eu sei. - respondeu ela, acalmando-o, como se acalma uma criança.
O minuto encantador partiu-se ao meio e passou.
Frank olhou para o relógio de pulso. Quási cinco horas, já. E, no dia seguinte, às oito horas, partia no comboio especial para Cherburgo. Caía a noite. Para Evelina,
parecia que tinham ainda cem anos de tempo para se irem deitar. Ele suspirou. Chamou o criado e pagou. O Bois estava cheio de vozes de crianças, de gritos de pássaros,
de businas de automóveis, de pares de namorados. Paris era um sítio maravilhoso para se amar.
-Vamos? - preguntou Frank, por pura delicadeza.
Mas viu que Evelina tinha, realmente, ideas de proveniência alemã.
- Quero ir ainda à Sainte-Chapelle.-disse. E ela própria deu ordens ao motorista.
Frank sentiu-se profundamente mal humorado. Preguntou-lhe, assim que ele se sentou a seu lado:
- Estás mal disposto?
- Não, apenas impaciente. - respondeu, diligenciando sorrir.
Ela ouvia-o com tal expressão, como se ele cantasse uma ária.
Frank tinha a vaga impressão de ter já ouvido falar na
Sainte-Chapelle. Revoltou-se intimamente contra esta mania de saber, que têm os alemães. Teria, de-certo, resmungado em voz alta se Pearl não o tivesse educado a
não contrariar ninguém. Seguiram pela margem do Sena, atravessaram a ponte Saint Michel e pararam diante do velho edifício.
- Já vim mais de trezentas vezes a Paris e nunca aqui entrei. - disse ele em tom de queixa.
- E eu não viria uma vez a Paris sem cá vir. respondeu ela.
Precedeu-o, como se entre essas paredes de pedra cinzenta se sentisse em sua casa. Atravessou o pequeno pátio da entrada. Frank deu uma fumaça violenta, deitou fora
o cigarro e seguiu-a.
Uma vez na capela vazia, pelos vitrais azuis dos quais corria a última luz do dia, ele tirou o chapéu num gesto maquinal e passou a mão pelos cabelos. Estava-se
ali como no interior de um cristal. Silencioso, sagrado, sem altar. Evelina ficou uns instantes sem dizer nada, com as sobrancelhas franzidas como que por um esforço.
Depois, passou à frente dele, subiu a escada de caracol para ir à sala de cima. A luz entrava a jorros mais pura e ainda mais azul. Eram os últimos e únicos visitantes.
Frank sentiu-se prisioneiro do silêncio e do encanto cristalino da sala e defendeu-se. Sentia-se ridículo, com o seu fato azul e a tão linda gravata.
-"bom e bonito,- pensou ele, revoltado - mas o bar do Ritz também não é feio".
Depois, distendeu-se um pouco e deixou vir até si todo esse brilho azul.
Evelina nem se mexia; os seus cabelos que, habitualmente eram prateados, estavam também azuis. Ele colocou-se atrás dela e pegou-lhe nos cotovelos com as mãos.
No mesmo instante, qualquer coisa se desencadeou em si, uma necessidade impaciente e brutal, quási indomável de a possuir. Era como no outro dia na barraca
de banhos. Ela ficou imóvel nas suas mãos. Na porta esculpida que ia dar a um pequeno sótão, apareceu um homem vestido de preto, que parecia querer fechar a capela.
Evelina voltou-se. Em pé, junto de Frank, fixava-lhe o rosto; não os olhos, mas a boca. - Queria dormir ao pé de ti. - disse, em voz baixa. - Não - acrescentou antes
que ele pudesse responder qualquer coisa - dormir realmente. Creio que
nunca mais dormi desde que.
- Isso é verdade, darling? - preguntou ele. Mas ela deixou a frase por acabar. Sem falar,
meteu-a num táxi. Não era a aventura do costume
"Isto é mais terno, mais meigo".-pensou ele procurando
a palavra justa.
É certo que no carro, as quarenta mil caixas de
laranjas voltaram-lhe à memória e lembrou-se que as
tinha vendido dois cêntimos e meio abaixo do preço
mínimo.
De-repente, ao longo do Sena, todos os candeeiros
se acenderam. Evelina, leve e quente, encostou-se-lhe
ao ombro. Ele reuniu toda a sua energia e conseguiu
esquecer as laranjas.
Sexta-feira
ELA
De manhã, quando o compartimento foi arrumado, tornou-se evidente que a sr.a Selma Rabbinowitz, embora muito gorda, era uma mulher extraordinariamente simpática,
bondosa, experiente e que tinha em volta dos olhos as rugas irónicas de quem conhece bem a humanidade. Sem a conversa e a ajuda desta mulher, Evelina não saberia
como passar a última hora, essa hora que lhe crispava os nervos e lhos quebrava, antes da sua chegada a Paris. Desde o momento em que tinha falado com Frank, pelo
telefone, Evelina encontrava-se num estado catastrófico, num perigo sério e mesmo mortal. Não era um passageiro dos leitos de segunda classe que chegava a Paris,
mas alguém que se encontrava intelectualmente projectado por uma explosão, para a gare do Norte, para o fumo, o barulho das vozes estrangeiras, o cheiro da cidade
desconhecida, para o borborinho de um futuro imprevisto e impossível de imaginar. Foi M.me Rabbinowitz que, nesta chegada, fez qualquer coisa de quási normal e ordenado.
M.me Rabbinowitz estava em Paris como em sua casa. Vinha quatro vezes por ano comprar os novos modelos destinados à sua casa de modas, de Bucarest. Encheu Evelina
de chá e de sandwichs, arranjou-lhe um
carregador, meteu-lhe na mão a direcção de um hotel e um número de telefone para o caso de precisar de qualquer coisa. E, vendo Evelina na estação, com o rosto alterado
e inquieto, passou o seu braço pelo dela e arrastou-a para a saída.
- Não a vêm buscar ?- preguntou-lhe. Os lábios pálidos de Evelina responderam:
- Não sei. Creio que não.
Evelina tinha pago o seu bilhete com o dinheiro da casa e restavam-lhe dezanove marcos, que não chegavam para pagar o regresso. Mas, coisa estranha, não tinha pensado
no regresso, não, os seus pensamentos, ao sair de Berlim, não estavam suficientemente ordenados para isso. Se Frank não a viesse buscar, estava perdida em Paris
e sem dinheiro. Tinha imaginado isso tão vivamente, havia-o tanto receado toda a noite, que tinha quási a certeza de que aconteceria. Quanto ao que necessariamente
se passaria, se Frank a viesse buscar, nem seria capaz de o imaginar.
E assim, com esta estrangeira, esta M.me Rabbinowitz, de Bucarest, ela ia de braço dado, um pouco inconsciente
- pobre pequeno pedaço de vida de mulher lançado fora do seu caminho.
De-repente, viu Frank. Viu-o todo inteiro, num único golpe de vista, até ao mais íntimo pormenor. Vestia um fato azul-escuro que ela ainda não conhecia e tinha um
chapéu enterrado até à testa. Fumava um cigarro e estava num grupo ao fim do cais. Evelina esquecera quanto as mãos dele eram morenas. Elas eram morenas! Parou e
respirou profundamente. Que felicidade!
- Lá está ele! - disse.
M.me Rabbinowitz seguiu-lhe o olhar e o sorriso, examinou Frank e sorriu também. Evelina achou esse sorriso muito bom e maravilhosamente experiente.
- Nesse caso - disse M.me Rabbinowitz - ei-la em segurança. Divirta-se em Paris. Já não precisa de mim, minha senhora.
E, dizendo isto, desapareceu. Evelina estava sobre uma estrela brilhante e inflamada, sozinha com Frank.
Ele relanceava o olhar pelo cais. Evelina teve a impressão de que esperava outra pessoa que não ela Não a viu, nem quando já estava ao pé dele. Tinha os ombros americanos,
largos e maleáveis. Andava outra vez à roda dele o estranho perfume dos seus cigarros. O carregador de Evelina parou com a sua pequena maleta e preguntou-lhe qualquer
coisa que ela não compreendeu. O homem sorriu amavelmente e esperou. Agora ela tremia toda, queria dizer qualquer coisa mas não conseguiu à primeira tentativa. Esperou
mais, um pouco atrás de Frank. A felicidade, em largas ondas, vinha do corpo dele para o dela. Ele não a via. com o gesto, compôs a gravata e depois o chapéu.
- Alô! - disse Evelina.
- Alo! - respondeu Frank.
Durante os dois minutos que levou a ir ao lado dele até ao táxi, Evelina envelheceu alguns anos, tornou-se mais prudente, mais experiente. Sentia um choque estranho
e doloroso na sua alma. Pela primeira vez na vida, foi capaz de se dominar. Frank falava francês, ela assim lhe respondia. Ele foi amável, ela também. Nada que se
parecesse com uma aventura, nada de explosões, de agradecimentos balbuciados, nada dessas coisas extraordinárias que Evelina tinha vagamente esperado. Antes mesmo
de ter chegado ao carro, havia compreendido que a sua chegada a Paris tinha para Frank uma significação diferente do que para ela. Sem dúvida, passavam através de
uma cidade de sonho, sobre nuvens de vidro e ruas que lhe apareciam como se realmente não existissem e não fossem senão imagens em movimento num écran cinematográfico;
mas ele parecia achar natural que ela tivesse vindo a Paris. Estava alegre e tomava a coisa a rir. Parecia não ter a menor idea do que havia de monstruoso no facto
de ela ter abandonado atrás de si o casamento, seu marido, os
filhos, a sua casa de quatro divisões da Dusseldorfestrasse, tudo que era a sua vida, tudo para que existia. Mas, pensava a Evelina que se tornara prudente, êle
era assim. Os homens não compreendem nada. Nada, aquele que se deixa; nada, aquele ao encontro de quem se vai.
Era este pensamento que a envelhecia e lhe dava uma segurança nova e desconhecida. Estava sentada, olhando pela portinhola. Sentindo que Frank procurava a sua mão,
apressou-se a tirar a luva. O contacto dos dedos dele, contra a sua mão aberta, feriu-a como uma pancada brutal e ardente. Por um momento, deixou de respirar para
melhor sentir o contacto. Entretanto, trocaram palavras inúteis e ridículas.
"-Sim, a viagem tinha sido agradável. Não, obrigada, ela não estava fatigada. Ontem, em Berlim, chovia."
"Ontem". - pensou Evelina. - "Ontem estava em minha casa. Hoje estou em Paris. Onde estarei amanhã?-preguntou a si mesma, de-repente.- Amanhã tornarei a partir."
Mas, ao mesmo tempo, sabia com uma precisão nova e a que era alheia, que não poderia voltar. Via-se em pé, na ponte de um navio, indo com Frank. Nunca tinha entrado
num navio. Tinha pena da sua maleta colocada no banco da frente. Só tinha colada uma etiqueta de hotel, e para mais, era um hotel de Dortmund. Essa maleta não estava
habituada a mais do que aos fins de semana em Qeltow e ia arrastada, com a sua dona, para a aventura. Evelina iria para onde Frank a mandasse. Às escondidas, segurava
com força a argola da malinha, como se fosse a mão de um modesto mas fiel camarada.
Numa pequena praça cinzenta, prateada pelo sol adormecido, os pombos passeavam no asfalto. O carro parou. Evelina passou por uma estreita porta giratória que Frank
pôs em movimento para ela. Ignorava que atitude se deve tomar quando se entra num hotel com um amante. Nem ela supunha quanto a sua atitude era
altiva e soberana. Encontrou os olhos pesados e interrogativos da patroa. O elevador, a escada, o corredor, o quarto. De-pressa, aproximou-se da janela. Respirou
profundamente. Tinha medo de qualquer coisa que devia vir, qualquer coisa de grande, de desconhecido, de violento: o amor.
- Queres com certeza tomar banho. - tinha dito Frank, entrando no quarto atrás dela.
- Sim, quero. - respondeu.
Esperou um segundo, antes de se voltar. Coisa estranha, foi justamente nesse momento que teve a sensação real e física de estar em Paris, muito real. Foi a alta
janela com a sua minúscula varanda que lhe deu esta sensação. Estivera diante de janelas semelhantes quando da sua viagem de núpcias com Kurt. Dessa vez também sentira
medo. "É esquisito; - pensou - é sempre com homens que a gente vem a Paris."
- Preciso desmanchar a mala.-disse ela a Frank.
- Bem.-respondeu ele. - Posso ajudar-te?
Um segundo mais tarde ela estava nos seus braços e ele cobria-a de beijos. Atravessou rapidamente nevoeiros de um vermelho púrpuro. Depois, foram altas florestas
virgens, finalmente chegou outra vez ao seu quarto de hotel.
Pareceu-lhe que alguém tinha visto os seus beijos loucos. Voltando-se, deparou com o rosto mundano de Josefina Beauharnais, que sorria com todas as suas covinhas.
Uma cópia má do busto de Houdon estava sobre o fogão de sala. Evelina, com os joelhos ainda trémulos do peso daquele abraço, dirigiu-se para ela como para procurar
apoio numa irmã mais experiente. Lembrou-se nitidamente, nesse minuto, de uma lição de história da arte, no decurso da qual o professor Dannhauser tinha apresentado
esse busto e o tinha julgado de maneira desdenhosa. Lembrava-se do fru-fru do vestido de alpaca que vestia nessa ocasião. A vida era uma coisa estranha e o caminho
que ia da Evelina que aprendeu
história de arte num liceu à Evelina que vinha encontrar o amante num hotel parisiense, era inimaginável, fantástico. Parecia-lhe ter encontrado esta Josefina Beauharnais
em sociedade e vi-la encontrar agora num sítio duvidoso e suspeito - encontro humilhante e doloroso para uma e para outra. Tinha uma consciência estranhamente dupla
como se, em pé junto de si mesma, se observasse.
Aqui está o que se passava em Evelina: sabia que se perdia, que se aviltava nessa viagem a Paris tão facilmente consentida. Mas não podia dominar-se, fosse qual
fosse o fim para que era arrastada, e era-lhe totalmente indiferente. Só queria uma coisa: ela não sabia como seria, estava disposta a aceitar toda a humilhação
para que essa desconhecida satisfação aparecesse. com um leve sentimento de vergonha, sentiu que Frank a estimaria um pouco menos de futuro, porque viera. Todas
as coisas lhe apareciam agora com um duplo sentido e um pouco sujas. A patroa, no vestíbulo, com as suas pálpebras roxas, a seda velha dos móveis, o avental verde
do criado e a discreção marcada com que ele se retirou mal chegou à porta, o próprio papel de pássaros azuis, volitando sobre ramos de flores cor de rosa. No teto
havia uma larga mancha escura, proveniente de uma canalização de água, danificada. Josefina contemplava tudo isto com um ignóbil sorriso.
Frank, no outro lado do aposento, pegou na maleta e levou-a para o quarto de cama. Ela seguiu-o e viu que os seus músculos, dentro do casaco azul, estavam contraídos.
Agora era assim: todas as vezes que olhava para Frank, era o seu corpo que via e não a sua roupa. Tudo se tinha tornado material, tudo era impregnado de um veneno
doce e apaixonado. Frank murmurou algumas explicações; ele estava embaraçado e isso tranquilizava um pouco Evelina.
O quarto estava carregado do cheiro de um grande ramo de rosas escuras, colocadas ao pé da cama.
De-repente, tudo correu melhor. Efectivamente, as rosas eram como essas mimosas que tinham feito a sua entrada na Dusseldorfestrasse. Estavam cheias de significação
e de importância. Talvez fosse essa a maneira que Frank usava para declarar o seu amor. Talvez lhe faltassem as palavras, talvez, a despeito da sua audácia exterior,
fosse tímido.
- Obrigada. - disse ela, ternamente-Possuía um quarto só seu, era mais agradável. Ela tinha medo da cama e tentava nem a ver. Frank também fazia como se não houvesse
no quarto nenhum móvel desse género.
A primeira novidade que ela soube foi que ele a tinha inscrito como sua mulher. Isso melhorava a sua opinião sobre o hotel, mas causou-lhe a impressão de uma leve
e insultante chicotada. Tudo se tornou duplo e impenetrável. De-resto, era qualquer coisa de grotesco imaginar Frank no papel de um marido.
- Tu és exactamente o contrário de um marido .
- tinha-lhe ela dito, emquanto a ajudava a esvasiar a maleta e levava os pequenos objectos para a casa de banho.
- Achas? - preguntou ele, parando entre as portas com a pasta dentífrica na mão-E, como é, não me dirás, o contrário de um marido?
- Como tu. - respondeu ela, rindo.
Tu, queria dizer para ela: o estrangeiro, o homem de quem nada se sabe, aquele com quem tudo se passa ao contrário das outras pessoas. O amante. Ela não podia exprimir-se,
recuava diante dessa palavra como um potro diante do primeiro obstáculo. Depois, passou à frente, "pois bem, pensou, tenho um amante"-havia orgulho e desprezo neste
pensamento. Dirigiu-se para a casa de banho. O pijama de Frank estava pendurado na porta, era de uma pesada seda chinesa, de um verde deslavado. Ele empurrou o estojo
da barba para dar lugar ao creme dela. Agora, os seus utensílios de toilette estavam uns ao pé dos outros. Ela olhou-os. Havia naquilo qualquer
coisa de muito íntimo . Dir-se-ia até que tudo já tinha acontecido. Evelina apressou-se a entrar no seu quarto.
Assim que Frank lhe pegou no pé, para a ajudar a descalçar os sapatos, estremeceu e recuou. Verificou, com surpresa, que estava longe de se sentir disposta para
o que devia vir. Olhou-o, suplicante. Desejava ardentemente que ele a atacasse, que a forçasse, que a quisesse, que a arrastasse. Mas ele levantou-se, sacudiu levemente
os joelhos, e deixou-a só, delicadamente, com toda a cortezia e como que um tanto vexado.
A água na banheira estava quente e boa. Evelina pediu a Frank um punhado dos seus sais de banho era um luxo que na Dusseldorferstrasse não se podia permitir - e
estendeu-se num inútil esforço para distender o corpo contraído. Ao sentir esse acre perfume da alfazema, pôs-se a reflectir. Uma mulher elegante não teria utilizado
os sais de Frank. Teria escolhido um outro perfume, um contraste, o mais violento possível, qualquer coisa de exótico, o âmbar, - pensou ela ingenuamente - ou o
almíscar. Tinha lido em qualquer parte que as mulheres levianas preferem essa espécie de perfumes. Sentiu-se subitamente contrita emquanto esfregava o sabão nos
joelhos. Compreendeu que estava vergonhosamente desarmada para o que lhe estava preparado.
A expressão "requintes de amor" atravessou-lhe o espirito . Eram coisas que lia nos livros. De-facto, não fazia a menor idea do que isso significava. As experiências
do seu casamento nada tinham de requintes de amor. Havia mulheres que arruinavam os homens com os seus requintes amorosos e ainda por cima os homens pareciam aceitar
gostosamente essa ruína. Se Frank esperava dela requintes de amor, estava perdida, completamente perdida. Contemplou com um sorriso melancólico e irónico o pedaço
de sabão que segurava na mão. Era um sabão para crianças,
da mesma qualidade do que servia para Ursinho e Clarinha, o único que a sua pele suportava. Tinha uma pele fina e delicada - Evelina olhava-a com ar de censura-
através da qual, por todas as partes se filtrava o azul das veias, não chegando a perceber se era uma qualidade se um defeito. Era, em suma, uma espécie de pele
que não a satisfazia de forma alguma: tinha uma tendência para se arrepiar nervosamente, contraindo-se em "pele de galinha".
Ouviu Frank telefonar no quarto e, de um salto, saiu da banheira. No espelho da porta viu o seu corpo e considerou-o com severidade. Isso tirou-lhe quanto lhe restava
da sua energia.
- "Sim, - disse ela, enfiando a roupa - é uma espécie de cólica de exame."
Este encontro com Frank parecia-lhe uma "prova", para a qual estivesse mal preparada. Acendeu a luz, pegou à pressa na caixinha de rouge que tinha trazido e, com
um ar concentrado pintou nas faces um pequeno triângulo. As parisienses pintavam-se tanto! Evelina suspirou tristemente porque não tinha bâton e, finalmente, esfregou
outra vez a ponta dos dedos na caixa e passou-os pelos lábios. De-repente, teve um ar francês. Apertou com nova energia a gola da blusa e enterrou o chapéusito,
inclinando-o para a esquerda.
Justamente nesse momento veio-lhe uma idea que a gelou. A conta do gás! Tinha-se esquecido outra vez de a pagar. Deixara-a, ameaçadora, em cima da secretária de
Kurt. A Companhia ia arranjar complicações, Kurt encontraria a conta, telefonaria para Geltow e Evelina não estava. Avalanches cinzentas rolaram diante dos olhos
de Evelina e sepultaram a Dusseldorferstrasse. Em voz alta ordenou a si mesma: "Nada de desmaios". Era uma ordem severa e rude. Não desmaiou. De-resto, Mariana estava
lá, para inventar uma desculpa. Pôs pó à pressa, mordeu os lábios pintados e frios, tomou a expressão descuidada
de uma mulher na sua situação e foi ao encontro de Frank.
Ele falava em francês, telefonava a uma mulher. Evelina não poderia dizer o que a fez compreender que havia uma mulher do outro lado do fio, mas teve a certeza e
isso deu-lhe uma picadela. Tão pouco sabia de Frank!
Ele parecia estar satisfeito com ela. Deu-lhe o braço e encaminhou-a através do hotel, diante dos olhos radioscópicos da patroa, até à Place de la Bourgogne. Lá
fora, fazia fresco; uma alegria clara que parecia subir da calçada húmida, das folhas das árvores, do pipilar dos pardais, apoderou-se dela. Não pôde deixar de rir
da importância que Frank dava ao almoço, mas ele respondeu que era isso exactamente uma particularidade parisiense. Levou-a a um restaurantezinho da margem esquerda,
de que falou como se se tratasse de um misterioso lugar de conspirações proibidas ou de uma das ilhas do sul, antes da descoberta. Mas tratava-se apenas de um local
comprido e sombrio, com bancos encostados às paredes, cheirando a peixe e manteiga quente. Frank cochichou com o chefe de mesa. Depois, vieram os hors d'euvres;
a seguir, passou bastante tempo, antes que o resto do almoço se seguisse. Evelina teve certa dificuldade em se manter natural: via-se como uma amadora dramática
num palco de terceira ordem e num papel que não lhe ia bem. Ao mesmo tempo sentia-se feliz, de uma forma nova, impertinente e atrevida. Frank, sentado ao pé dela,
no banco, pegava-lhe de vez em quando na mão, por baixo da mesa e apertava-lha com força, de tal forma que o anel de casamento lhe magoava a carne.
Justamente no momento em que Evelina começava a comer rodovalho com um molho de creme que Frank parecia apreciar muito, ela sentia que alguém a fixava. O olhar vinha
de um canto um tanto escuro, da extremidade do banco onde estava sentada.
- Que aconteceu, darling? - preguntou Frank.
- Não sei, é um senhor que está a olhar para mim.
- Mas isso é natural. Todo o parisiense que se preza, considera uma indelicadeza não olhar para uma mulher tão bonita como tu.
Evelina abanou com a cabeça.
- Não é isso. - disse, com uma sensação de mal estar - Eu conheço aquela cara sem saber donde.
Frank deitou-lhe vinho.
- Ninguém vem aqui.-disse ele, com indiferença
- Não sei se gostas de Borgonha. Não é um vinho para mulheres.
Evelina bebeu docilmente, depois pôs-se a olhar para o fundo:
- É o dr. Eckhardt. - disse ela. Sentiu gelar-se-lhe a boca, os lábios debaixo do rouge e até o céu da boca. Crispou-se-lhe a pele.
O dr. Eckhardt era um dos assessores com quem seu marido trabalhava constantemente. Acabava de se casar e Evelina lembrava-se de que tinha discutido se lhe haviam
de mandar uma prenda de casamento ou um simples cartão de felicitações. A pessoa morena que estava ao seu lado era, com certeza, a mulher e faziam a sua viagem de
núpcias. Não podia esperar que o dr. Eckhardt não a reconhecesse. Febrilmente e em voz alta, pôs-se a falar francês, o seu francês correcto e bem aprendido no convento,
quando era menina. Esforçou-se por parecer a esse Eckhardt uma verdadeira parisiense. Mas não serviu de nada. Já o dr. Eckhardt se aproximava com a sua risca, as
suas cicatrizes e batendo com os tacões à maneira de um antigo estudante alemão.
- Em Paris, minha senhora! ,Que surpresa! E seu marido também está? Não? Em Berlim, é claro, já sabia. A nossa viagem também está a acabar. Os bons dias acabam de-pressa,
não é verdade? Nós estivemos na Algéria, minha mulher tornou-se absolutamente árabe.
E aquilo continuava, inevitável como o destino.
- Dê-me licença, dr. Eckhardt, que lhe apresente o sr. Frank Davis? - murmurou ela com os lábios crispados.
Frank inclinou-se com amabilidade americana e Eckhardt repetiu a sua reverência de oficial da reserva. Dir-se-ia que esperava que lhe explicassem a situação. Mas
Evelina disse apenas uma mentira insignificante.
- Estou em Paris com a minha amiga. - disse ela em tom suplicante - Lembra-se da Mariana?
O dr. Eckhardt não se acalmava.
- Mas que acaso! - repetia - A primeira pessoa conhecida que encontro ao fim de três semanas. Disse logo a minha mulher: "Não é a sr.a Droste?" Quanto tempo se demora?
Oh, só uns dias! Uma cidade encantadora! . Oui, c'estParis. Tornaremos a ver-nos em Berlim. Mas que acaso!
A sr.a Eckhardt tinha aproveitado o ensejo para ir à toilette. Voltou. Seu marido apresentou-a com muita palavra e retirou-se por fim. Bateu os tacões, apertaram
as mãos, houve reverências e disseram adeus até Berlim.
- Pronto! - murmurou Evelina esforçando-se por ingerir o crepe Suzette de que o chefe de mesa e Frank pareciam tão orgulhosos. Tudo tinha acabado. Nada podia evitar
que o dr. Eckhardt, quando encontrasse seu marido em Berlim, lhe falasse do encontro que tivera em Paris. No último momento, ela tinha preguntado em que hotel os
Eckhardt estavam alojados. Era no Athene. Preguntava a si própria se não poderia ir ter com ele e suplicar-lhe que não contasse nada desse encontro inesperado; mas
já imaginava a cena dramática emquanto queimava a língua com o creme Suzette, doce e quente: uma mulher de joelhos aos pés de um homem, soluçando, emquanto se ouvia
uma ária de ópera. Não. Era teatro. Tosca.
"Bem - pensou ela, revoltada - talvez seja melhor assim. Ao menos tudo acabará". E esse tudo incluía também o cheiro da cozinha da rua Dusseldorf, a conta do gás,
esquecida, a inalação e os sapatos rangedores da criada. Mas os filhos não estavam incluídos, assim como também não, a ternura atenta de Kurt.
- É verdade que os alemães ainda se batem realmente em duelo, à espada? - preguntou Frank que só tinha reparado nas cicatrizes da cara correcta do assessor.
- Como? - preguntou ela.
Precisava sempre de um momento para se concentrar, assim que Frank começava a falar inglês. Emquanto ele pegava na conta e punha o dinheiro no prato, ela olhava-o.
De-repente, pareceu-lhe tão estranho como se nunca o tivesse visto antes. Ele devia ter sentido o mesmo, pois assim que se encontrou na rua já não sabia que fazer
dela. Sugeriu algumas propostas alegres que caracterisavam bem a viagem que ela tinha feito a Paris como uma aventura sem importância. Evelina estava ali, sem defesa,
esforçando-se por se adaptar à sua maneira de falar. Ouviu-se responder um pouco desesperada:
- Não é o meu género.
- Que género não é o teu? E qual é o teu ? preguntou ele, de bom humor.
O braço que passava no seu, estava quente e encostava-se docemente contra o seu peito.
- "Partir. - pensava ela, no seu desvaire - Tomar o primeiro comboio. Partir antes que nada se tenha passado. Confessar tudo a Kurt. Não, eu não sou o género que
convém a esta aventura. Dezanove marcos I Não posso dizer agora: dê-me o dinheiro para o regresso. E depois, eu não tenho a menor intenção de o deixar. Meu Deus,
como sou feliz! É o Frank. Amo-te, Frank, mas estou um pouco doida de medo. Frank, protege-me, Frank, isto não é uma coisa tão simples, é pesado como uma montanha!
E tu não compreendes."
Ele tinha-a feito novamente entrar num táxi e partiram. Seguiram pelas margens do Sena, depois atravessaram uma ponte, passaram diante da fonte da Place de la Concorde
e tomaram lugar na fila de carros que seguiam os Champs Élysés.
- Onde vamos? - preguntou ela.
- Ao Bois, ao Pré-Catelan. - respondeu ele, alegremente.
Evelina compreendeu, de-repente, o que queria e onde se sentiria bem. Devia haver em Paris uma igreja vazia, de vitrais maravilhosos, uma capela encantada onde,
durante a sua viagem de núpcias, ela tinha ido chorar de emoção. Pareceu-lhe que uma visita a essa igreja tornaria tudo claro, tudo decidiria, tudo poria em ordem.
Mas o nome não lhe acudiu e o automóvel ia já longe, estava já nas avenidas do Bois. Passaram diante de um lago, no qual deslizavam barcos e Frank mandou parar,
ajudando Evelina a descer.
Mal ela começou a passear numa das avenidas, segurando a mão de Frank, toda a opressão e toda a angústia desapareceram. Os castanheiros estavam em flor, os codessos
começavam a entreabrir os seus cachos de ouro. O mundo é bom quando apenas se vê e sente e não se imagina minuciosamente. A mão de Frank na sua mão e nada mais.
Um leve chuveiro tinha caído, emquanto eles iam no carro; agora o sol brilhava outra vez. Os ramos gotejavam, sentia-se o cheiro do cascalho molhado. As cadeiras
de ferro pintado estavam frias e húmidas. Evelina olhou para a boca de Frank, que se calava. Era a mais bela boca que ela alguma vez tinha visto. Na comissura dos
lábios formava-se uma linha forte que lhe parecia deliciosa. Todas as vezes que respirava, o movimento do seu casaco parecia-lhe também qualquer coisa de extraordinário.
Desejava, com maravilhosa violência, poder entrar nele, como numa casa fechada, como numa concha.
- Conta-me a tua vida. -disse, desastradamente.
Ele sorriu com ar condescendente mas um pouco aborrecido.
- Como? Que vida? Mas não tem interesse nenhum, é uma vida americana e normal, cem por cento, sabes? Que desejas tu saber? Todos os pormenores? Bébésinho curioso.
Pois bem, vá lá. De manhã, bebo sumo de laranja. É uma coisa que vocês fazem muito pouco na Europa e a que vos hei-de obrigar, prometo. Depois, tomo o metropolitano
e vou para o meu escritório, em New York. de automóvel leva muito tempo, porque moramos em Long Island. Como é? Mas quásí como a Inglaterra. Tu conheces a Inglaterra?
Pois bem, parece-se, só há mais bombas de gazolina e muita porcaria antes de entrar na cidade. No meu escritório. mas tu sabes o que é um escritório: quadros nas
paredes, uma mesa de escrita, o correio, a assinatura, etc. E depois, há um dragão que me vigia, Mrs. Mitchell, a minha secretária particular. É, pois, aí que estou
e que faço a diligência por vender as minhas laranjas.
Acendeu um cigarro, lançou um olhar pelos prados e pareceu reflectir sobre o que poderia ainda contar. Evelina, durante esse tempo, esforçou-se, sem o conseguir,
por imaginar o escritório, a cidade e a secretária particular.
- Tenho dois cães, - declarou Frank-um pequeno scotch-terrier, muito engraçado que se chama Jerry e um grand danais. Também tenho cavalos, mas estão na minha propriedade
de Carolina, no Sul, compreendes? Hás-de lá ir um dia pelo Natal, queres? Agradar-te-á, com certeza .
Evelina fez um sinal de aprovação ouvindo este convite cheio de enorme ingenuidade, assim como ouvia as tagarelices da Clarinha. Frank estava agora quási a achar
muito natural que a senhora Droste, mulher de um Juiz, de Berlim, fosse a Carolina.
- Levo sempre comigo uma porção de amigos e divertimo-nos espantosamente: caça, cavalo, compreendes?
E, no Natal, os negros vêm de todos os lados a cavalo. Os que não têm cavalo pedem um, ou arranjam qualquer muar. Depois nós acendemos grandes fogueiras em frente
de casa e ali ficamos sentados à volta delas durante toda a noite do dia primeiro do ano. Os negros cantam. Cantam muito bem, sabes? À meia noite toda a gente salta
para a sela e parte à rédea solta através das florestas até ao nascer do sol. Gosto muito de lá estar. Quando for velho devo desejar ficar lá para sempre: é uma
grande casa que foi de meus avós, em estilo colonial, compreendes? com grandes colunas brancas em frente e velhos carvalhos no jardim. Na primavera, as magnólias
estão floridas, mas nessa época não se pode lá ir porque está tudo cheio da cobra cascavel. Perdeu-se em meditações sobre a cobra cascavel emquanto Evelina se absorvia
na contemplação do seu perfil. Era a isto que ele chamava uma vida normal e sem interesse. A ela parecia-lhe tão aventurosa que deixava de respirar emquanto ele
contava:
- Que estranho! Sim, estranho!
- Na primavera, estou habitualmente em Santa Bárbara. Sabes onde fica? Não? É um pequeno buraco na Califórnia, do lado do Pacífico; delicioso. Minha avó ainda lá
mora; ela é muito velha, perto de 90 anos, uma verdadeira Senorita. Quando lhe quero dar prazer falo-lhe espanhol. Falo-o muito mal, ainda pior do que o francês.
A casa é inteiramente espanhola, é uma das mais antigas construções de Santa Bárbara: escadas, varandas e um bonito pátio. Quando eu era pequeno gostava de lá estar;
lembro-me que, quando havia uma fiesta, a minha avó envergava os seus vestidos de gala: mantilha, pente e o resto a dizer. À noite havia serenata. Agora não vou
lá senão obrigado. Para inspeccionar as plantações de laranjas e todos os trabalhos que lá tenho. É engraçado . meu pai era absolutamente inglês, não tinha nada
de sua mãe. Em mim, dá-se um pouco o mesmo.
Olhou pensativamente as mãos, que eram de um moreno dourado e brilhante. Evelina olhava-as também. Defendia-se a custo do desejo de as beijar; já o tinha feito muitas
vezes e tinha provocado com isso, em Frank, o mesmo sorriso acanhado.
- Que aconteceu ao teu dedo? - preguntou, apontando o indicador esquerdo, que, rígido e um pouco curvo, segurava o cigarro.
- Recordação de guerra. - disse ele, distraídamente - O tendão foi partido, mas não me incomoda quási nada. Passei esse tempo como aviador. Mais tarde, fui um pouco
intérprete. Agora, não se faz mais do que falar de paz, e, é claro, a guerra, vista em conjunto, é um disparate. Mas, para cada um, em particular, é muito bom e
muito instrutivo; quero dizer, que, quando se é novo, gosta-se. Sentia-me lá bem. É pena que tenha agora poucas oportunidades de fazer aviação. Dantes julgava que
isso viria a ser a minha profissão. Estive na China onde ajudei a criar as primeiras carreiras de aviação. Tu deves lá ir comigo fazer uma viagem. eu vou de dois
em dois anos, aproximadamente. Aquilo agradar-te-á. Meu Deus! Changai, que cidade! Emfim, agora estou enterrado até ao pescoço nas laranjas, que ninguém quere comprar.
Tenho uma pequena manta, uma plantação-modêlo no Sacramento-Valley. Se chego aos resultados que quero .
Isto continuou assim. O mundo inteiro estava lá dentro, e, no entanto, o tom era tão simples como o de uma criança a contar. Evelina interessava-se e ele encontrava
ainda um pormenor ou outro. Mas ela não encontrava maneira de fazer uma idea de conjunto. Tudo isto era sem limites e dava-lhe a mesma impressão que o bater de asas
de uma ave gigante. Era como se quisessem ver uma paisagem imensa pelo pequeno buraco de uma parede.
A conta do gás. - pensava ela, com ironia.-A rua Dusseldorf, a promoção de Kurt. Ouvia a tosse
seca e nervosa de Kurt mas, por nada do mundo se poderia lembrar da cara dele, nesse momento. Não, Evelina Droste não podia nesse momento lembrar-se da cara do homem
com o qual estava casada havia sete anos. Voltou à pressa para Frank. Como o amava! Como o amava!
com a ponta do dedo acariciava-lhe o índex paralizado. Desejava beijar-lho mas não era possível nesse .momento. Tirou-lhe da boca o cigarro e deu três fumaças violentas.
Ele considerou esta espécie de carícia com um franzir de sobrancelhas, admirado.
- Tens as pestanas como um gigolô. - disse ela, ironicamente.
Eram sedosas essas pestanas e abrigavam-lhe os olhos, de uma claridade surpreendente. Frank não percebeu este reparo. Estava agora entregue às suas laranjas.
- Se elas tivessem um pouco mais de acidez!- disse, num tom rabujento.
Pareceu a Evelina que, ele lhe tinha escondido a coisa mais importante da sua vida. Engoliu saliva.
- E lá também há mulheres. - disse.
Não tinha o ar de ser uma pregunta, mas uma afirmação. De-resto, ele não negou. Voltou os olhos para ela e fez sinal que sim. No seu olhar, Evelina reconheceu que
não pensava em mulheres, mas numa determinada mulher. Isso chocou-a numa dor penetrante, inesperada. Olhou-o e preguntou:
- Uma mulher?
Ele hesitou um momento e disse por fim:
- Sim.
Nos seus olhos, Evelina via agora reflectir-se o seu próprio rosto, minúsculo e claro. Foi para ela um pequeno alívio, doloroso, ao verificar que não lhe mentia.
A queimadura afrouxava e ela sentia, sem poder defender-se, que as lágrimas lhe vinham aos olhos e ficavam fixas e frias, húmidas e ligeiramente ardentes na ponta
das pestanas.
- Tu também tens o teu marido. - disse Frank, nesse momento.
Aquilo parecia pueril mas Evelina percebeu, com uma alegria subitamente explosiva, que também ele tinha ciúmes.
- Teu marido sabe que estás em Paris? - preguntou.
Era uma pregunta tão surpreendente e tão absolutamente louca que Evelina não soube que responder. Depois, no fim de contas, num tom arrogante e orgulhoso, disse:
- Sim.
Começara a ter frio e sentira a odiada pele de galinha, desde que Frank tinha confessado que havia mulheres na sua vida. uma mulher. Ardia em desejos de fazer outras
preguntas sobre essa mulher. Mas isso era uma das coisas que não é permitido fazer. Sempre, na vida, se diz o que é secundário; sempre se cala o essencial.
Nesse momento, passou-se qualquer coisa. A mão de Frank veio pousar por cima da mesa, sobre a sua que a humidade fria do crepúsculo de Maio e todas as suas inquietações
e o seu ciúme tinham gelado e tornado hirta.
Protecção, consolação, quentura amor, união. A mão de Evelina repousava sob o peso acariciador da de Frank. O prado, por baixo deles, adormecia por trás dos véus
de lágrimas, mas as pessoas destacavam-se como alegres manchas de cor, como nos quadros dos impressionistas. Da relva molhada, subia o nevoeiro; duas meninas corriam
no caminho, jogando o pilha. Ouviu-se gritar a uma mesa: "Juliette, depêche-toi!"
De imprevisto, Evelina pensou: "Oxalá que a Clarinha não molhe os pés." Era um pensamento absolutamente insensato no momento em que os pulsos de Frank latejavam
contra a palma da sua mão e que tudo se terminava harmoniosamente. Nunca a Clarinha molharia
os pés emquanto a criada a estivesse vigiando implacàvelmente na rua Dusseldorf. De-repente, tudo surgiu diante dela: o quarto das crianças, a temperatura de estufa
em volta do berço de Ursinho, o seu cheiro, o seu contacto. Numa dor penetrante e doce, Evelina sentiu as pontas dos seios endurecerem de saudade pelo Ursinho. Tinha
amamentado durante seis semanas essa criança exuberante e ávida, depois tivera de desistir. Mas ainda hoje estava estreitamente unida ao seu corpo.
Cheia de susto, pensava: "Não, isto não pode ser, não é verdade, eu não deixei os meus filhos, não sou eu que estou aqui em Paris, com um estranho. Sonho. Kurt vai
acordar-me daqui a um instante e preguntar-me que fiz da conta do gás". Esta sensação de sonho era tão forte, que ela fechou os olhos e pôs-se a mexer a cabeça da
direita para a esquerda, para encontrar o calor da almofada.
Quando voltou a Frank, perturbada e alarmada como depois de uma longa viagem, descobriu no seu rosto uma expressão nova. Era como se, antes, uma camada o cobrisse
e agora a tivessem levantado, de tal maneira que a sua alma aparecia toda nua.
- Agora, - disse ele meigamente - a tua mão está quente.
E depois de um momento, acrescentou mais baixo:
- Queres pô-la outra vez sobre o meu coração? Tôcia trémula, ela preguntava a si própria: "Ah!
Então eu já fiz isso?" Tinha a impressão de não ter começado a amar Frank senão nesse minuto. Não conseguia afastar o peso do sonho. Nos momentos que precediam os
seus desmaios, acontecia-lhe sentir assim todas as coisas afastarem-se de si. É preciso que eu não desmaie" - pensou mais uma vez e conseguiu-o.
Frank, depois de ter pago, guiou-a através das mesas e saindo do Pavilhão, foi até ao parque onde estacionavam os táxis. Ela entrou. Toda esta história de
amor estava impregnada de um cheiro de táxis: cheiro de coiro velho, de gente, de cigarros apagados. "Tens que vir comigo à China".-tinha-lhe dito Frank-"Tens que
vir comigo a Carolina". E havia nestas palavras a promessa de um futuro melhor. É estranho. - pensava Evelina-como, quando se ama, se dizem poucas palavras assim
tão felizes". Paciente, sentou-se no gasto banco do carro.
- Ficas contente, não é verdade, se voltarmos ao hotel? - preguntou Frank, subindo para o carro.
Subitamente, Evelina caiu de muitos céus multicores para a árdua realidade.
- Não. - pensou ela encarniçada na sua defesa "Isso não, isso não". Diante dos seus olhos apareceu o papel do Hotel Bourgogne, o sorriso da patroa, o leito.
- Não, - disse ela - quero ir à Sainte Chapelle. A inquietação e a necessidade tinham-na feito lembrar
de-repente do nome esquecido. Os vitrais multicores! E depois, era ainda um adiamento. Evelina teve em relação ao seu próprio corpo um sentimento superficial de
espanto e descontentamento. Ela tinha tão ardentemente desejado Frank! Agora contraía-se, muito fria, todas as vezes que ele se aproximava. Frank tinha um ar arreliado
e irritado. Ele tratou rapidamente com o motorista e o caminho fêz-se sem falar.
Evelina contemplava as mãos e as luvas grandes e brancas pousadas sobre o regaço como brinquedos esquecidos. Frank agarrou-as. Fumava. "Se eu pudesse falar alemão
com ele".- pensou Evelina. Era fatigante procurar contacto com outra pessoa numa língua estrangeira. De-resto, mesmo quando ele falava, ela não compreendia senão
metade e incompletamente. Precisava ainda pedir-lhe dinheiro para o regresso e isso pesava-lhe no coração. Lançou um olhar para o relógio: eram seis e um quarto.
Calculou quanto tempo tinha ainda a passar com ele. Depois, timidamente preguntou:
- Como hei-de fazer para voltar a Berlim? Frank deu-lhe a impressão de estar a pensar nas suas laranjas. Mas respondeu amavelmente:
- Oh! é fácil, pelo avião das 10 e 30. Já encomendei o teu bilhete. Hás-de encontrá-lo no hotel quando chegarmos.
- Obrigada. - respondeu Evelina, amavelmente. Frank olhou-a, sorrindo.
- Não penses em amanhã. - acrescentou com nova meiguice.
O carro parou.
Pareceu-lhe que a idea de ir à Sainte Chapelle não fora feliz. Muitas lembranças de Kurt erravam nos vitrais e na abóbada. Kurt, fantasma fino, delicado, indefeso
e sofredor, Kurt, com quem nesta sala tinha vibrado em comum de entusiasmo e emoção, Kurt a quem ela estava unida por um laço mais profundo, mais puro e mais forte.
Evelina tinha de tal forma conseguido afastar da sua memória a imagem e a recordação de Kurt, que a sua aparição na claridade bela e cristalina da capela esmagava-a.
"Porque não hei-de poder ir ter com Kurt e contar-lhe o que me aconteceu?" preguntava a si própria. "Talvez fosse capaz de me compreender e de me elucidar". Durante
um momento, pareceu-lhe muito natural e muito simples que Kurt lá estivesse para a consolar, quando ela entrasse, esmagada, depois da partida de Frank.
Era o azul fluido, as proporções elegantes e incomparavelmente nobres deste edifício que inspiravam semelhantes ideas. As coisas, neste mundo, não eram assim tão
puras e tão claras. Por um instante, um segundo apenas, Evelina viu-se entre esses dois homens que seguiam cada um seu caminho diferente e que nenhum sabia como
ela pensava. "Não", murmurou, fechando-se em si própria como entre duas conchas nacaradas.
Frank estava silencioso atrás dela, na sombra da
abóbada. Nesse momento, aproximou-se. A luz azul da capela brincava-lhe no rosto e resplandecia sobre os seus cabelos lisos. Evelina afastou-se dele e pôs-se a examinar
a capela como se esperasse uma ajuda daquelas paredes. Ele aproximou-se dela por detrás e esperou.
Nesse momento, uma vaga precipitou-se dele para ela, de tal forma ardente que podia imaginar encontrar-se no seio de uma casa em chamas. Lentamente, pôs-se a tremer,
a sentir, a arder. Era isso que ela esperava.
Disposição, abandono, renascimento, satisfação. Ela sentia já a violência da tempestade e depois, a grande, a vibrante fadiga. Voltou-se e encontrou os olhos de
Frank - pela primeira vez, desde que se conheciam, ela percebeu que experimentavam os mesmos sentimentos e pensavam as mesmas coisas.
- Queria dormir ao pé de ti. - imaginou ela, em alemão - Mas foi obrigada a traduzi-lo, antes de o pronunciar.
Emquanto que, outra vez no carro, se dirigiam para o hotel, Kurt surgiu de novo. Mas ela afastou a sua sombra fina para trás das pálpebras fechadas.
Sexta-feira
O MARIDO
Quando o presidente do tribunal propôs fazer comparecer a viúva Ohnhausen, produziu-se um rumor. O delegado do ministério público opôs-se, com palavras irritadas,
a que citassem, sem descanso, novas testemunhas. Os seus óculos cintilavam, a voz quebrava-se, o que o tornava mais furioso, e viu-se, coisa extraordinária, o defensor
tomar o partido do delegado. Bruhne parecia que abafaria se fosse forçado a reter, por mais tempo ainda, a defesa que tinha preparado. Rupp tirou um lenço azul e
limpou o rosto; a mulher, como cega, olhava para as suas mãos, de boca aberta, com essa expressão que têm, às vezes, os surdos-mudos. Droste percorreu com os olhos
a sala de audiências e sentiu as mãos tremerem ligeiramente. Andava nervosismo no ar. Alguns minutos mais cedo o presidente do senado tinha tomado lugar na pequena
tribuna, por cima da porta de entrada, em companhia de um desembargador. Droste sabia o que isto queria dizer. Era provável que, por qualquer informação, tivesse
chegado ao conhecimento do presidente que Droste prolongava e arrastava exageradamente a audiência.
O delegado era casado com uma irmã do presidente
do senado. Era lamentável que, mesmo no tribunal, não se tratasse unicamente da sorte dos acusados, mas também da sorte dos juizes. Cada processo significava qualquer
coisa para estes últimos, êxito ou derrota, subida ou paragem, títulos, situações, honrariasou o contrário.
"Não posso nada contra isto! - pensava Droste, obstinadamente - Sei que sou muito minucioso, muito preciso, muito aborrecido: um maníaco. Mas é esta afinal a minha
maneira de descobrir o direito e a verdade".
Os jornalistas, na tribuna, bocejavam e isso contaminou-se até aos bancos do júri.
"Se esta Ohnhausen não nos conta nada de novo, fico mal." - pensou Droste, inquieto.
Entre o público ouvia-se um sussurro, uma espécie de pequeno turbilhão, como aparece em volta duma pedra que cai na água.
- Nós investigámos os mínimos factos deste caso.- ouviu Droste dizer ao delegado - Estou convencido de que os jurados têm há muito tempo uma opinião sobre o assassinato.
Estamos a perder tempo.
- Peço ao sr. delegado para não decidir muito precipitadamente, se se trata dum assassinato ou de um homicídio. - disse Droste, maquinalmente.
Acabava de ver em baixo, justamente nesse momento e com um sentimento de alívio, o chapéu vermelho de Mariana. Ela estava na terceira fila e tinha os olhos fitos
nele. com o queixo apoiado sobre o index da mão direita, os olhos quási fechados, ela cerrava o polegar na mão esquerda. Era a sua atitude, assim que concentrava
o pensamento sobre um ponto determinado. Ao encontrar o seu olhar, pôs-se a sorrir, emquanto a ele lhe custava manter o rosto oficial. Depois ela voltou a cabeça
para o lado esquerdo da sala onde acabava de se dar um pequeno movimento.
- Exijo em todas as circunstâncias a intimação da testemunha Ohnhausen. - disse Droste.
Nesse mesmo momento, verificou que, como por milagre, a viúva Ohnhausen se encontrava na sala. Ela formava o centro de um pequeno movimento que se tinha produzido
entre os espectadores da esquerda; em pé, agitou a mão levantada, como um colegial. Esse facto foi decisivo.
Os protestos do delegado e do defensor eram inúteis e um oficial de diligências trouxe a viúva Ohnhausen pelo caminho normal, quere dizer, pela saída, depois por
um corredor, e pela entrada lateral até ao lugar das testemunhas. O delegado do ministério público lançou um curto olhar para o presidente do senado, na sua tribuna.
O defensor de Rupp fez uma cara que parecia indicar que o caso era mau e que esta aparição Inesperada da nova testemunha ocultava qualquer maquinação. A viúva Ohnhausen
fez a sua entrada, vestida de azul-celeste, um pouco cingida no peito e nas costas, com um ramo de margaridas no chapéu azul, numa atitude bem equilibrada de mulher
senhora de si e afeita a mandar. Coisa estranha, a sala inteira, ao ver esta mulher alegre, pareceu acordar e despertar para uma nova vida. Um dos jurados tirou
o lenço e assoou-se: foi como uma fanfarra. A viúva Budecker, no banco do júri, olhava com desdém e antipatia, a viúva do botequineiro Ohnhausen.
O seu desagrado manifestou-se ao primeiro olhar e, caso extraordinário, uma expressão análoga apareceu no rosto sardento da acusada. A Rupp tinha primeiro lançado
um olhar interrogador para o marido, depois dirigiu a sua atenção, uma atenção penetrante e singularmente profunda, para a mulher de azul-celeste. O delegado e o
defensor ouviam com ar resignado, Droste, que procedia ao interrogatório a respeito da identidade da nova testemunha. Um perfume de junquilho emanava desta mulher
e subia até ao banco dos jurados.
Droste absteve-se de fazer prestar juramento à testemunha, convidando-a só a dizer a verdade.
- com muito gosto, - respondeu ela, precipitadamente, o que pôs nos lábios do presidente do senado, um furtivo sorriso. l
- Antes de começar o interrogatório propriamente dito, eu queria, - disse o delegado com animação - fazer uma pregunta à testemunha. Porque se encontrava na sala
A sr.a Ohnhausen voltou-se para ele e respondeu amavelmente: - É natural que me interesse saber o que acontece ao sr. Rupp.
- Conhece o acusado? - preguntou o delegado.
A sr.a Ohnhausen, como surpreendida pela estupidez desta pregunta, respondeu em tom, por assim dizer, protector:
- Naturalmente!
Droste retomou a direcção do interrogatório e preguntou :
- Lembra-se se o acusado esteve em sua casa na noite de 14 de Outubro?
- A 14? Não, não sei. É provável que estivesse. Nessa época ele ia lá quási todas as noites, por isso é natural que também lá estivesse a 14. - respondeu, em ar
um tanto sarcástico.
- Diga-me qualquer coisa sobre as suas relações pessoais com o acusado.
A mão de Droste tremia agora mais, pegou nas folhas do processo como para se segurar. Nada havia mais excitante no mundo, do que a caça à verdade. Mesmo o amor não
dava senão uma pálida satisfação, comparada com esta febre.
- Não tenho grande coisa que contar. - declarou a viúva Ohnhausen - O sr. Rupp agradou-me logo de-repente. Isso não é nenhum segredo. Quanto aos mexericos da Rittergasse,
não me preocupam. Afinal, eu não dependo de ninguém, não é verdade? Sou viúva e posso fazer o que me agradar, não é verdade?
O adjunto Steiner sorriu. Droste traduziu em linguagem protocolar a resposta da sr.a Ohnhausen:
- O acusado Rupp ia com frequência, durante o último outono, ao "Ouriço Azul" e a senhora gostava de o ver.
Os jornalistas estenografavam.
- Nessa época ele ainda não era acusado, bem entendido. - fez observar, sensatamente, a testemunha.
- Rupp agradou-lhe. - disse Droste - E como se desenvolveram depois as suas relações com ele?
Houve a primeira pausa.
- Se a resposta pode causar-lhe qualquer prejuízo moral tem o direito de se calar. - acrescentou ele.
A viúva encolheu os ombros; uma nova onda de perfume se exalou da sua pessoa.
- Que prejuízo moral? -preguntou ela - Não há razão para acanhamentos, eu o que faço, faço. Olhei para o homem e gostei dele. Era ele que nos trazia a carne, quando
era ainda moço de carniceiro, e é um homem extraordinário o sr. Rupp, sabe? Sou eu que lho digo. Assim que nos conhecemos melhor, resolvemos casar. Dávamo-nos bem
e eu precisava de um homem na minha loja. O sr. Rupp era justamente o que me faltava.
- E Rupp estava ao facto dos seus planos de casamento?- preguntou Droste.
- Que quere dizer, se faz favor? - preguntou a testemunha, surpreendida.
- Pregunto-lhe se Rupp sabia que queria casar com ele e se estava de acordo sobre esse ponto. - repetiu o juiz.
Desta vez a sala despertou, atenta. Ouviu-se o ruído de um pedaço de papel que o acusado estendeu por cima do ombro, ao seu defensor.
- Naturalmente. - respondeu a viúva Ohnhausen, sorrindo - Ficaria de-repente livre de todos os seus aborrecimentos, assim que fôssemos marido e mulher.
- Sabia que Rupp era casado?-preguntou Droste, rapidamente.
A viúva Ohnhausen lançou um rápido olhar sobre a mulher Rupp.
- Sabia. - respondeu.
Os olhares de toda a sala seguiram o seu olhar. A Rupp lá estava como nos dias anteriores, a olhar para as mãos, como se fosse surda e não compreendesse nada. Droste
teve a impressão de que os cabelos vermelhos da acusada se tornavam de-repente castanhos, de qualquer forma, mais escuros que dantes. Numa súbita clarividência,
compreendeu que esses cabelos estavam molhados de suor e que a mulher, nesse momento, sofria uma verdadeira angústia. Houve um momento de torpor que a testemunha
interrompeu sem ser interrogada.
- É que, sr. juiz, as relações entre Rupp e sua mulher tinham acabado há muito tempo; mas muito, antes de isto começar entre nós. O sr. Rupp andou sempre atrás das
mulheres e toda a rua o sabia. Mas se nós nos casássemos, eu cá o guardaria. Sua mulher não podia, e mesmo, quando uma pessoa não tem nada, nada se lhe pode tirar,
não é verdade?
Encostou-se negligentemente contra a barreira, de tal forma que o oficial de diligências, no seu canto, fez um movimento de indignação.
Depois, acrescentou, confidencialmente:
- Não, sr. Juiz, quando se agarra bem um marido, não há mulher que no-lo possa tirar. Meu marido nunca iria ter com outra, nem que ela fosse a própria Vénus e o
convidasse. Que quere? Esta mulher não convinha ao sr. Rupp e ele disse-mo centenas de vezes. Ele dar-lhe-ia uma indemnização, ela ficaria livre do marido e ele
a mim convinha-me por causa da loja. e do resto também .
- Onde iria o acusado buscar dinheiro para dar à mulher? - interrompeu o delegado - Sabe que ele está
desempregado e não tem meios pessoais. A senhora dava-lhe dinheiro para ele obter o divórcio? A viúva Ohnhausen olhou-o com surpresa.
- Eu? Eu não. Ele tinha a herança da mãe. com isso poderia desembaraçar-se da mulher.
- Eu queria dizer uma coisa. - declarou a Rupp, de imprevisto.
Toda a sala se voltou para ela. A voz monótona, essa voz que lhe conheciam há muitos dias, estava modificada; havia como que uma quebra, um soluço. Droste, profundamente
comovido, pegou em qualquer coisa, num lápis, no que encontrou diante de si. Daria muito para ter um cigarro. O coração batia-lhe violentamente no peito.
- A seguir, - disse ele - quando o depoimento da testemunha estiver terminado.
A Rupp não se sentou, ficou de pé, no banco dos réus, com as mãos crispadas na madeira que estava diante de si, baloiçando-se regularmente para a frente e para trás,
como um colegial que recita uma poesia. Droste voltou rapidamente à testemunha.
- Ainda uma palavra. - disse ele, e, furioso, sentiu como estava rouco - As suas relações com o acusado eram íntimas?
A isto, a Ohnhausen calou-se. Ficou uns segundos silenciosa e olhou para Rupp. O homem não lhe retribuiu o olhar. Tinha posto a mão no ombro do seu defensor, como
para lhe contar qualquer coisa urgente.
- Pode recusar-se a responder. - disse Droste à Ohnhausen.
A viúva fez um gesto amável como para se pôr de acordo com ele e respondeu:
- Recuso-me a responder.
Na sala, subiu um risinho que logo findou. Agora Droste respirava profundamente, o ar passava, fresco, através da sua garganta inflamada.
- Há mais alguém que tenha qualquer coisa a preguntar
à testemunha ? - interrogou, olhando fixamente o rosto anguloso da Rupp onde se adivinhava um trabalho, uma luta.
No banco das testemunhas, a sr.a Budecker segredou qualquer coisa a Steiner e este transmitiu a comunicação a Droste.
- O Tribunal deseja saber se a testemunha mantém ainda a disposição de casar com o acusado.
- Não, bem entendido que não. - respondeu a viúva, sem hesitar.
O defensor deu um salto, parecia realmente desesperado.
- Sou obrigado a protestar contra a tentativa de utilizar histórias sentimentais que o meu constituinte possa ter tido, para criar ambiente que lhe seja desfavorável.
Estas histórias nada têm que ver com a acusação gritou ele para o banco dos jurados.
Na sua tribuna, o presidente do senado tinha-se levantado. A sala tremia de nervosismo. Só a Ohnhausen ficou tranquila e quási divertida, no seu lugar, com boa aparência,
quási graciosa com a sua abundância e o seu peso, como quando na véspera estava por trás do seu balcão.
- Bem. Não há mais preguntas?-indagou Droste, lançando um olhar circular - Obrigado. A testemunha pode retirar-se.
A Ohnhausen fez uma reverência e o oficial de diligências indicou-lhe o lugar no banco das testemunhas. Droste voltou-se para a Rupp. Não era culpa sua se o seu
rosto tinha, nesse momento, uma expressão pouco jurídica de bondade e de compaixão. Sentia tão bem o que se passava nela, que o seu próprio peito lhe começava a
doer. Tinha posto esta mulher num banco de tortura e oxalá isso a fizesse falar.
- Acusada, queria dizer alguma coisa? - preguntou, brandamente.
A Rupp continuava a balouçar-se no banco dos
réus. Gotas de suor caíam das pontas dos seus cabelos, o que dava a impressão de fadiga e tensão extremas. Tentou falar, mexeu a boca sem chegar a formar palavras.
Droste sentia a emoção que se apoderava dele sempre que um réu era levado a confessar, uma espécie de embriaguez, qualquer coisa que lhe apertava a garganta e lhe
fazia passar calafrios gelados na pele e nas costas.
- Não estava ao facto das relações de seu marido com a testemunha ? - preguntou a meia voz.
A Rupp abanou a cabeça. Os seus lábios dilataram-se e, quando, emfim, abriu a boca, saiu qualquer coisa inarticulada, como a tentativa de um mudo.
- Nada soube, - disse ela - senhor juiz, nada soube. Nada soube, de tudo isso. Vive-se como se pode, a gente esfalfa-se, tudo para o marido. e êle. Nada soube, senhor
juiz, nada soube.-murmurou e fechou os olhos-Senhor juiz. foi ele quem fez aquilo. fê-lo sozinho e eu não soube absolutamente nada: é um assassino, um criminoso
e, se for enforcado, merece-o, será de justiça! - gritou ela.
Agora, era como uma irrupção, como se uma montanha de dor se tivesse posto em movimento e corresse como lava em fusão.
- Será justiça. O que eu fiz por ele! Senhor Juiz, o que eu suportei por ele! E ei-lo que se quere ir embora com a primeira porca. e não se sabe absolutamente nada.
Quando a velha morreu, então ele veio ter comigo, abraçou-me e disse: Querida - disse-me ele-agora tudo vai correr bem." Ele chamava-me muitas vezes assim; era um
hábito antigo, - disse ela, e a sombra louca de um sorriso percorreu-lhe o rosto durante um segundo e foi qualquer coisa de horrível, ver brilhar nesse rosto magoado
o reflexo de uma ternura desaparecida.-"Tudo vai correr bem" disse-me ele-e eu, idiota, acreditei. E depois, quando a questão com os seguros começou, e que mandaram
fazer nova autópsia, eu entro do meu trabalho, de lavar, e encontro-o na cozinha ao pé do balde, em jeitos de vomitar. "Tu comeste qualquer coisa que te fez mal?"
- preguntei - E fiz-lhe uma chávena de café, muito forte. E ele disse: "Isto vai passar." Mas estava pálido como um morto e à noite, emquanto as crianças dormiam,
disse-me: "Vem aqui comigo, para diante da casa, preciso dizer-te uma coisa". E eu respondi: "És louco, agora de noite!" E ele disse-me: "Estou perdido! E deitou
a cabeça nos meus joelhos e pôs-se a chorar como um garoto.
Nesse momento a Rupp abriu os olhos. Lágrimas pesadas corriam-lhe até aos lábios e ela enxugava-as com as costas da mão.
- Como um garoto, ele estava para ali apertado contra mim e contou-me tudo: como tinha deitado o veneno na sopa e como a mãe dissera: "Tem um gosto esquisito, um
gosto a queimado!" E ele respondeu: "Vá comendo, tem um remédio dentro". E então ela comeu. Eu não estava em casa, sr. Juiz, justamente nesse dia estava em casa
dos Hoennecke que andavam a fazer a mudança e quando a velha morreu, foi durante a noite. Então, fiquei sentada perto dela e mandei o meu marido chamar um médico,
mas ele só veio no dia seguinte de manhã e disse: "A velha morreu e pode-se agradecer a Deus, porque, com o cancro, quando se não morre a tempo, há ainda muito mais
sofrimento." E eu então, voltei para casa dos Hoennecke. Quando ele me contou depois, durante a noite o que tinha feito, fiquei, por assim dizer, morta de pavor
e disse-lhe: "Porque fizeste isso?" E então ele pôs-se a chorar mais e respondeu: "Foi por ti, para que tenhas uma vida mais fácil, porque eu já não podia suportar
ver como ela te torturava." Então, disse-lhe: "Fica descansado, não te acontecerá nada." De tal modo lhe estava reconhecida por ter feito uma coisa assim, por mim.
Como poderia eu deixá-lo ir para a forca, ou
para a cadeia, quando ele tinha feito aquilo por mim? E, por fim, ele adormeceu encostado a mim como uma criancinha e eu pensei no que deveria fazer para que lhe
não acontecesse nada. Foi comigo que ele veio ter! exclamou ela, depois duma pausa, e havia nesse grito uma estranha mistura de altivez e de profunda dor Foi comigo
que ele veio ter; para isso soube procurar-me, para isso não foi à Rittergasse a casa dessa criatura, foi a mim que ele deixou sofrer tudo. Tudo o que eu confessei.
Tudo o que eu confessei, sr. Juiz! - repetiu ela, a meia voz.- O medo, por causa de meu marido, por meus filhos e pelo pequeno que trago dentro de mim!
Passou as mãos sobre o ventre pesado, deixando correr as lágrimas, sem as enxugar:
- Como é que não enlouqueci ? E tudo por este homem. E ele mentiu porcamente, ele enganou-me sempre! Comprar-me com o dinheiro do crime e casar com esta criatura!
Foi por causa dela que ele o fez e não por causa de mim, e eu não soube nada. Não soube de nada. Estamos todos colados uns aos outros, seis num quarto, e não sabemos
o que se passa. Ele fez tudo sozinho, e se o quiserem enforcar, só terá o que merece.
A sala tinha ouvido sem respirar, como se ouve a cena culminante, num teatro. O próprio Droste não respirava. Nesse momento, soltou um profundo suspiro e o sangue
subiu lentamente às suas mãos e faces que estavam geladas. A Rupp tinha caído de-repente no seu banco. Colocara a cabeça entre as mãos e chorava alto com gritos
dilacerantes, com gemidos de animal. Droste sentia-se como que gelado na sua cadeira, gostaria de descer até junto da acusada para tomar nas mãos, e acarinhar, a
sua cabeça molhada. O defensor Bruhne tentava dar coragem à acusada com as suas palavras. Um murmúrio enchia a sala desde que ela tinha cessado de falar. Os jurados
tinham-se
posto a falar baixinho. Os jornalistas gesticulavam, Droste sentia um alívio profundo. De-repente, reflectiu nas formalidades que decorriam da confissão da Rupp.
Lançou um olhar ao delegado . Era ele agora quem devia falar.
Em todo este caso, o marido ficara imóvel, Tinha um olhar espantado, como se nada compreendesse de toda a questão. Droste voltou-se para ele:
- O réu Rupp,- disse, e tentou tornar cortante a sua voz enrouquecida - tem alguma coisa a alegar?
Rupp levantou-se pesadamente e balouçou-se no banco; os gritos da mulher ultrapassavam o barulho da sala.
- Ela tem muitas vezes acessos destes, - disse, desastradamente, olhando para a senhora Budecker, como se fosse ela agora quem devesse ajudá-lo.
- Confessa ter envenenado sua mãe? - preguntou Droste.
Rupp reflectiu um momento sobre esta pregunta e sacudiu a cabeça.
- Não é absolutamente assim. Minha mulher tem ciúmes e por isso quere mandar-me para o degredo.
Um murmúrio de desagrado e um cochichar indignado subiram da sala. Rupp sentou-se rapidamente. O delegado levantou-se.
- Peço o adiamento da audiência. - disse ele em voz sonora e cheia de efeitos. - Retiro a acusação de cumplicidade e inculpo Alois Rupp no crime de assassinato.
- A audiência fica adiada até nova ordem - anunciou Droste.
A sua voz já não lhe obedecia e teve de repetir esta frase muitas vezes, antes que alguém na sala a entendesse. Os jurados, estupefactos, continuaram sentados. Barulho
de pés, vozes, gritos, movimento de partida, agitação: a sala esvasiou-se rapidamente. A viúva Ohnhausen levantou-se e aproximou-se.
- Naturalmente já não precisam de mim? - preguntou amavelmente.
- Não, minha senhora, por hoje pode ir-se embora.
- respondeu o adjunto Steiner.
O oficial de diligências e os polícias rodearam a Rupp, caída no seu banco e que continuava a soltar gritos histéricos. Droste reuniu os seus papéis e saiu do seu
lugar. Desceu, contra todas as regras, até à acusada; sentia vagamente a necessidade de lhe dizer uma palavra humana para a acalmar depois de tantos sofrimentos
que lhe tinha causado. Mas a Rupp não via nem ouvia nada, gritava em palavras soltas a sua desolação de ver seu marido enganá-la miseravelmente e ela não saber de
nada.
- Dêem-lhe morfina e façam-na dormir. - disse Droste, a meia voz.
Pegou na barra de veludo da sua toga, com ambas as mãos, e saiu da sala. O corredor estava cheio do cheiro e do murmúrio da multidão. Droste sentiu que os joelhos
se lhe vergavam, de tal maneira a sua vitória o tinha exgotado.
Que fora uma vitória, não havia que duvidar. Os assessores felicitaram-no, velhos magistrados paravam para lhe baterem nos ombros, emquanto ele voltava para o gabinete.
O repouso do meio dia estava já acabado; advogados e juizes, testemunhas, acusadores e acusados, invadiam outra vez, depois do almoço, o palácio da justiça. Já os
técnicos da casa recebiam as minutas da audiência.
Perlemann teve o cuidado de preparar um copo de água quente, de Seltz. Droste engoliu com reconhecimento o gosto insípido pela sua garganta inflamada. Lavou as mãos
com o sentimento de que elas não deviam estar muito limpas. Imediatamente, ouviu bater, e o presidente do senado fez a sua entrada. Droste ainda tinha a toga mas
já havia tirado o cabeção. Estava de pé em frente do pequeno lavatório mal colocado a um canto e
apressou-se a limpar as mãos ensaboadas para receber felicitações e cumprimentos. O presidente do senado era um velho magistrado de bigode pintado; usava sempre
uma gravata em forma de plastron e, com a sua sobrecasaca estreita à moda antiga, parecia vir sempre de dar um passeio a cavalo pelo Tiergarten.
- Perfeito, meu caro colega, - disse ele - foi na verdade perfeito. A escola psicológica moderna acaba de alcançar mais um triunfo. Nós, os velhos, não sabemos nada
disso. Muito sinceramente, onde vai você arranjar essa paciência inexgotável ? Foi maravilhoso, e agora o processo vai recomeçar de fio a pavio. Sabe que isto me
lembra um caso em que eu estive metido quando jovem Juiz em Míilhausen, na Alsácia, que era então uma cidade alemã?
Droste tornou a abotoar o colarinho e ouviu a descrição do caso que nada tinha que ver com o processo Rupp. Finalmente, o presidente do senado, depois de ter murmurado
mais cumprimentos, foi-se embora e Droste ficou, hesitante, a respirar com precaução o cheiro dos papéis poeirentos, inseparável do seu gabinete. Perlemann entrou
e pôs o processo Rupp sobre a secretária, Droste olhou-o com desagrado.
- Vá pedir ao dr. Eckhardt para cá chegar. Preciso que me ajude.
Perlemann pôs-se a rir.
- O senhor Conselheiro tornou-se a esquecer de que o senhor assessor faz a sua viagem de núpcias. disse ele, alegremente.
A distracção de Droste nas coisas elementares era uma fonte inexgotável de divertimento para Perlemann que gostava de distrair a mulher e a sogra contando-lhe a
"última" do seu Conselheiro.
O assessor Eckhardt andava há três semanas em viagem e era preciso, quási todos os dias, lembrar isso a Droste.
O Conselheiro fez uma careta. Estava habituado a
trabalhar com Eckhardt. O jovem assessor Straube, que substituía Eckhardt, não lhe agradava. Leu ainda, suspirando, algumas notas que tinha garatujado na margem
do processo.
- Segunda-feira que vem, o senhor assessor Eckhardt, terá chegado. - disse Perlemann para o consolar. Depois pendurou a toga no armário e saiu do gabinete.
Droste tirou o cachimbo da gaveta, encheu-o, pô-lo de parte e acendeu um cigarro. Fumava avidamente e engulia o fumo. O telefone tocou. O delegado chamava.
- Precisamos, com certeza, de nos encontrar esta tarde para se decidir em que data a audiência pode continuar. - disse ele em tom entristecido.
Parecia que, a verdade finalmente descoberta, só significava incómodos para o tribunal.
- Sim. - respondeu Droste arrastando as palavras, precisamos de nos encontrar.
Não desejava nada mais ardentemente do que ir passear à fresca com Clarinha segurando na sua a mão confiante da senhorinha. Olhou para o relógio, eram quási três
horas.
- Além de tudo, já é quási fim de semana. disse o delegado do outro lado do fio.
- Por minha vontade também preferia ficar em casa, estou um pouco mal disposto. - respondeu Droste, precipitadamente.
Do outro lado, disseram-lhe com entusiasmo, que estavam de acordo.
- Perlemann! -gritou Droste, pois a campainha do gabinete não funcionava.
Esperou um momento antes que Perlemann chegasse. Entretanto, Droste pôs em ordem a sua secretária. Escreveu algumas notas, rasgou outras e, por fim, Perlemann chegou.
- Onde está o meu chapéu?
- O senhor Conselheiro veio esta manhã sem chapéu. - respondeu Perlemann.
- Mas chove!-replicou Droste olhando pela janela. A grossa muralha da prisão estava molhada e a
chuva caía em fios de prata.
- Esta manhã estava bom tempo. - constatou Perlemann.
Droste já se via correndo, de cabeça nua até à paragem do carro.
- Terei que tomar um táxi. - disse ele, indeciso. Perlemann apresentou-lhe um cartão; era de Mariana e dizia: "Posso convidar-te para tomar café?" Droste tinha esquecido
completamente, na excitação desta sessão extraordinária, a presença de Mariana. A alegria subiu-lhe ao coração. Café e Mariana era tudo quanto ele precisava. Vestiu
rapidamente o sobretudo.
- A senhora espera-o na escada 2. - avisou Perlemann.
- Preciso de ter amanhã de manhã uma cópia do processo de hoje e dos jornais da noite. - disse Droste.
Depois saiu rapidamente.
Mariana tinha-se sentado no corredor, num dos bancos de madeira onde as testemunhas e os habituais frequentadores das audiências matavam o tempo. Tinha travado uma
conversa animada com um rapaz de aspecto violento que trazia na orelha uma espécie de cravo de ouro. Ela gostava de conversar assim com toda a gente, nos eléctricos,
nos ómnibus, no mercado. Divertia depois os seus amigos reproduzindo-lhes, com um espírito mordaz, essas conversas. Vestia um fato de tweed com um chale de lã, vermelho
e azul, em volta do pescoço e uma boina que parecia um disco - sinal de caminho de ferro.
Vendo Droste, precipitou-se para ele.
- Estás morto, meu pobre Puschel? - preguntou.
- Sim, quási morto.
- Tenho a Puffi lá em baixo, podemos ir.
Puffi era o nome amigo que ela dava ao seu carrinho esbaforido.
- Está bem, vamos. - disse Droste.
- Isto é só uma chuva de Maio, quente e amável,- tranquilizou Mariana quando saíram o portão para afrontar a chuva.
Era a sua forma de ver as coisas.
- Onde preferes ir? - preguntou-lhe ela, quando já estavam no carro -A um Café ou ao meu escritório?
- Preferia que fôssemos à Dusseldorferstrasse.
- Que perdeste tu, na Dusseldorferstrasse?
- Evelina. - respondeu ele, num tom hesitante.
- Esqueceste-te que Evelina está comigo em Geltow. - notou ela, severamente.
Droste começou a rir e terminou a tossicar com precaução, o que Mariana ouviu, franzindo as sobrancelhas.
-Completamente rouco,-disse ela-Tu não deves fumar. Os cigarros estão na algibeira do lado.
Droste acendeu o cigarro, cheio de gratidão, e meteu-o nos lábios de Mariana; depois tirou um para ele.
- Tinha-me esquecido que vocês estão as duas em fim de semana.-disse, bem humorado-Como é então que estás na cidade?
- É isso que eu também pregunto a mim própria. Chamaram-me esta manhã pelo telefone às 9 horas e não era nada. Um pequeno aborrecimento com a gente do cimento. Depois
fui assistir à tua audiência, estive lá. e. e. e tenho que ficar até às 6 horas na cidade, pois tenho ainda outra conferenciasita. - acabou ela, rapidamente.
Olhava para a rua emquanto contava esta história.
- Foste amável. - disse Droste, sentando-se à vontade - Que faz Evelina?-preguntou, um pouco mais tarde.
- Quando eu saí ainda dormia, enrolada como um ouriço. Penso que não acordará antes da uma hora. Tu conhece-la bem.- disse Mariana, sorrindo.
Droste retribuiu-lhe o sorriso.
- Deixei-lhe o seu horário escrito na mesa do pequeno almoço. Espero que esteja justamente a acabar o seu café com leite. Das quatro às cinco deve brincar com o
gato e depois, se estiver bom tempo, Ir passear até ao Jardim Zoológico.
- Vai aborrecer-se mas isso há-de fazer-lhe bem.
- declarou Droste.
- Perfeitamente! - respondeu Mariana.
Já não preguntou a Droste onde ele queria ir e dirigiu-se simplesmente para o seu escritório.
O asfalto, molhado da chuva, brilhava como um espelho, mas o sol já aparecia. O escritório de Mariana ocupava uma casa rodeada por um jardim; Mariana abriu a porta.
No interior, ficava um aposento que não tinha a mínima semelhança com um escritório; sobre uma mesa imensa estavam estendidos vários planos. Cheirava a cigarro e
ao perfume violento de Mariana. A um canto, ficava um leito monumental cheio de almofadas de couro, vermelhas, verdes, amarelas, cor de laranja em fundo de cetim
preto. As quatro paredes estavam pintadas a quatro cores diferentes e, assim que Mariana deu volta ao comutador, quadrados e círculos de vidro apareceram iluminados
em diversos sítios, na parede. Mariana foi primeiro dar os bons dias a um peixe japonês que nadava num largo aquário, numa mesinha baixa.
- bom dia, Lao-Tsé.- disse ela, com respeito Como vai isso? Continuas num dos teus estados de depressão?
Droste encontrava-se perfeitamente à vontade no meio de todas estas loucuras. Estendeu-se no leito e pôs os braços debaixo da cabeça. Mariana, que passeava com a
sua máquina de fazer café, de vidro, em forma de esfera, acariciou-lhe furtivamente a fronte.
- Não precisas de falar.- disse ela, vendo-o abrir os lábios.
Ele fechou, reconhecido, a boca e os olhos e pôde ouvir com a maior precisão os movimentos delicados que ela fazia com a máquina de vidro. A água começou a ferver,
o vestido de Mariana tinha um frú-frú seco e grave, pairava sobre ele um pouco de calor.
- Sabes, Mariana, - disse preguiçosamente, sem abrir os olhos - durante o tempo que dura uma história assim, um processo como este. é como se não fosse eu que vivesse.
É uma espécie de inconsciência. Mesmo agora sinto o espirito perturbado, como se acabasse de sair de um desmaio. Não sei como exprimir-me; tomo as coisas muito a
peito. Foi o que aconteceu agora, parece que nem vivia. Mas só assim é que pode ser, só assim se obtêm resultados. Por fim, cheguei a saber antecipadamente o que
a mulher sentia e pensava e que reacção teria e o que iria dizer. mas era uma espécie de fakirismo, sabes ?
- Aqui tens o teu café. - disse-lhe Mariana, e de
?súbito, ele encontrou perto do rosto o cheiro ardente,
amargo e excitante.
Abriu os olhos e sorriu:
- Agora tudo corre outra vez bem.- disse, em voz rouca e cansada.
- Felizmente,- respondeu Mariana deitando os dois pedaços de açúcar no café dele- que não estendes o teu talento psicológico às pessoas que te rodeiam.
Droste bebeu e pôs-se a rir. O café era para ele uma delícia, uma festa, uma solenidade.
- Para mim tu és muito complicada. - respondeu ele, alegremente.
E estendeu-lhe a chávena para que tornasse a encher-lha.
- E, quanto a Evelina, não vale a pena. Ela é como um pedaço de cristal. - acrescentou ele.
Bateu com a unha do indicador contra a máquina de café, que respondeu com uma nota fina e sonora.
- Eis Evelina: - disse, satisfeito - redonda e transparente.
- Achas? - replicou Mariana. Mas, entretanto, tinha encontrado em cima da mesa um livro que abrira.
- Vaihinger? - preguntou ele, severamente - Roubaste-me isso da minha estante.
Mariana sentou-se ao pé dele e pôs-lhe o braço em torno do ombro. Esse contacto foi-lhe tão espantosamente agradável que se afastou e ela retirou imediatamente o
braço.
- É evidente que to roubei, meu querido. - disse amavelmente - É preciso que alguém leia os teus livros sobre os quais queres discutir com qualquer pessoa.
Os pensamentos de Droste tinham marchado, emquanto folheava o livro.
- No fundo, é idiota que Evelina não esteja na cidade. Agora que tenho emfim a cabeça mais livre, podíamos aproveitar a noite em qualquer coisa. Tu vais também para
lá.
- Não te restituo Evelina em caso algum antes de amanhã à noite.-disse Mariana, com uma violência que pareceu exagerada ao Conselheiro.
- Não me podes levar contigo? Podia vir amanhã de manhã com Evelina. - propôs ele - Parece-me que sou um saco vasio, uma toalha que torceram.- disse, para se desculpar.
- Infelizmente, não posso. Impossível. Não tenho cama para ti, meu querido. - disse Mariana, amavelmente.
Desenhou-se-lhe uma ruga na testa, emquanto reflectia.
- Podes ir jogar o bridge ao Club. - propôs ela. Levantou-se e dirigiu-se para o espelho negro, esquisito, pregado na parede verde-clara do aposento. Penteou os
cabelos com os cinco dedos da mão direita. O conselheiro olhou para ela, viu a sua imagem duas vezes, uma viva, a outra num reflexo mais sombrio que lhe vinha do
espelho.
- O melhor que tinhas a fazer era ires deitar-te cedo e tentares dormir. -declarou a imagem do espelho, com severidade.
- Não posso dormir. - respondeu o Conselheiro. Mariana voltou-se e veio ter com ele.
- Podes dormir se quiseres. - disse, com violência - Podes! Não vais recomeçar outra vez com as tuas crises e o teu veronal, entendes?
- Não tens tacto nenhum, Mariana. Não tens o mínimo respeito pelos segredos dos outros, lá porque tu não tens segredos. - disse ele a meia voz.
Uma estranha expressão desenhou-se no rosto de Mariana, mas logo desapareceu. Ajoelhou-se e pôs-se a olhar para o peixe Lao-Tsé que, preguiçosamente, atirava para
trás os seus véus transparentes.
-Vá, fala, que te aconteceu?-preguntou ela como se não fosse a Droste mas ao peixe que se estivesse dirigindo.
- Queria dormir mas tenho que pensar. - disse o Conselheiro, lentamente.
- Isso faz pensar numa velha canção. não sei qual.
"Queria dormir,
Mas tu tens de dançar.
- Pobre Puschel! Afasta a Rupp da cabeça, sê um homem. Conta cem vezes até oito. Toma as pastilhas que te dei. Lê a "Decadência do Ocidente". Mas, pelo amor de Deus,
não toques no veronal.
- Não é só a Rupp. A essa consegui fazê-la sair do apuro e ela não me ajudou muito. Tenho também outras preocupações. Evelina não está como devia estar.
- Que queres dizer com isso?-preguntou Mariana. Droste levantou a colher que tinha deixado cair.
- A composição do seu sangue não é como devia ser. Fabrica poucos glóbulos vermelhos. e muitos
brancos. O Doutor insiste em chamar a isso anemia perniciosa e tu sabes o que quer dizer. E depois, com o meu ordenado, não nos podemos arranjar emquanto tivermos
uma criada de crianças. Evelina é muito fraca para estar só com elas. Quando fecho os olhos não tenho diante de mim senão preocupações, cifras. e.
- Evelina há-de curar-se. Foi exactamente o mesmo quando nasceu o vosso primeiro filho, não foi? De-resto. tu serás aumentado. e muito breve mesmo. Mais um par de
prestidigitações, como a de hoje.
Droste teve um sorriso.
- Não foi prestidigitação. - disse ele - No momento em que descobri que havia na vida desse homem qualquer coisa que a mulher não sabia, tive a certeza de que ela
ficaria revoltada, quando o soubesse. Sabia que ele tinha mentido desde que me contara ter roubado as batatas na praça de Wittenberg, em 15 de Outubro. A 15 de Outubro
era quinta-feira, não era? E à quinta-feira não há mercado na praça de Wittenberg. E, depois, vi logo pela cara dele, que havia atrás de tudo isto uma história de
mulher. Depois, tudo mais foi fácil.
- Formidável! - disse Mariana, estupefacta, como tinha ficado várias vezes ante essa mistura de precisão estatística e de intuição do cérebro de Droste.
Ele bateu com o dedo contra a prisão de Lao-Tsé. onde a cara do peixe aparecia deformada pela muralha de vidro e fixava, imóvel, os seus olhos redondos.
- Aquela mulher mostrou-se firme como um rochedo, na defesa do marido. Não se acreditaria que um pobre ente, tão miserável, pudesse ser capaz de semelhante sacrifício.
Como ela construiu bem, aquilo tudo! E, depois, de-repente, tudo ruiu!
Ele ficou um instante silencioso, dando pequenas pancadas na direcção da cabeça de Lao-Tsé.
- O ciúme é uma coisa animal. - acrescentou.
- O que te parece o ciúme? - preguntouMariana, lançando-lhe um olhar de revés.
- É canibalismo! Um método mais civilizado de antropofagia. - respondeu ele.
- Nunca foste ciumento, Kurt, sinceramente?
A resposta do Conselheiro fêz-se esperar um momento.
- Algumas vezes, talvez. - disse finalmente Muitas, quando tu me mostras, muito nitidamente, que gostas mais de Evelina que de mim.
Acabando de dizer estas palavras, logo se arrependeu.
- Não se trata de saber se tu és ciumento de mim, mas se o és da tua mulher.-replicou Mariana, de-pressa e secamente.
- Ah! A Evelina. - respondeu Droste, sorrindo
- Evelina não se presta ao ciúme.
Mariana olhou-o com atenção, depois, deu-lhe cigarros. Droste sentiu um ruído nos ouvidos, como sempre quando estava fatigado.
"-Talvez possa adormecer.realmente."-pensou ele.
Os seus olhos, sem querer, seguiam Mariana emquanto ela ia e vinha na sala, pondo tudo em ordem. Um profundo contentamento espalhou-se por ele, sentindo como os
músculos, um a um, se distendiam.
"-Os nós no cérebro vão-se desfazendo."-pensava muito satisfeito.
- Eu posso, hoje à noite, telefonar-vos. - disse, e sentia como estava a ficar com sono.
Pressentia-se já na cama, com uma chávena de chá na mesinha de cabeceira, um livro em cima da coberta, apagando a luz e adormecendo. Afinal era bom que Evelina estivesse
em Geltow. Havia sempre uma espécie de tensão nervosa, que vinha da outra cama, quando sua mulher lá dormia.
- É melhor telefonar imediatamente. - disse Mariana, de-repente. Acabava de tornar a parar diante do
espelho escuro - À noite não devemos ser incomodadas nem alarmadas, é preciso que deixes Evelina em paz para que ela possa fazer uma boa plantação de glóbulos vermelhos.
Droste encontrava-se, nesse momento, realmente muito preguiçoso para entrar numa conversa telefónica, mas Mariana tinha já pedido o seu número de Oeltow e agora
esperava a comunicação com a mão no auscultador e os olhos postos em Droste, com uma expressão louca e garota. Droste lembrou-se de lhe ter visto essa expressão
no dia em que eles correram de automóvel, em Avus, a 120 quilómetros à hora. Mas não compreendia o que essa expressão de aventura e de perigo pudesse ter com uma
simples chamada telefónica.
- Está? Evelina? És tu? -dizia Mariana -Dormiste muito, an? Está bem. Achaste o teu almoço? Brincaste com o gato ? Estava muito húmido para ir passear? Não, se não
queres, não é preciso. Volto esta noite às oito e jantamos. Escuta: Kurt está aqui, manda-te muitas saudades. Um momento. Mariana pôs a mão no auscultador e voltou-se
para Droste. "Ela também te manda muitas saudades. E pregunta se o Ursinho tem estado mau". Droste abanou a cabeça, sorrindo.
- Não, não tem estado pior do que de costume.- respondeu ela, ao telefone-Está bem, sim. Tens qualquer coisa a dizer a Kurt? Que não trabalhes muito fez ela saber
ao Conselheiro. Então adeus, minha pequena, adeus. Se o homem do gelo vier, fica com dez arráteis. Até breve.
Pousou o auscultador e olhou para Droste. O brilho dos seus olhos estava esmaecido.
- Não queres falar com ela?
Estava na atitude de uma dançarina sobre a corda. A respiração erguia-lhe o vestido no peito. Droste encolheu preguiçosamente os ombros. Depois, finalmente, fez
um esforço e dirigiu-se para o telefone. O aparelho
ainda estava quente da mão de Mariana. Havia ruídos nos fios.
- Alo, minha filha. -disse ele, inclinando-se. "Não respondem." - respondeu a voz oficial da
telefonista.
- Já deve ter desligado. - disse Droste. E pousou o auscultador no descanso.
Mariana estava ao pé dele, em pé, segurando na mão um fósforo inflamado; acendeu por fim o cigarro e tirou uma profunda baforada que soou como um suspiro. O crepúsculo
caía. Na penumbra, ela viu o rosto do seu amigo mais pálido que de costume. Mais pálido do que jamais o tinha visto.
- O mais importante, Puschel, é que tiveste hoje um dos teus grandes dias, sinto-me orgulhosa de ti.
- Sim, só vale a pena ser Juiz, trabalhar, fatigar-se a gente para, de-repente, a verdade nua aparecer.
Mariana acariciou-lhe os cabelos e voltou-se.
- A verdade é uma coisa complicada, Puschel. disse ela, docemente - Mais complicada do que o imaginam os jovens Conselheiros.
Havia na sua voz tanta piedade, que Droste seguiu-a com um olhar inquieto.
- Que queres dizer com isso ? - preguntou ele.
- Ah! nada. - respondeu Mariana - Mas quem te diz o que é verdade? Quem te diz que a Rupp hoje disse a verdade? Talvez esse homem tenha razão, e que ela queira simplesmente
metê-lo no degredo, porque tem ciúmes? Verdade! O que é verdade?
Disse isto com um riso breve.
Assim que Droste se encontrou por trás de Mariana e viu as suas poderosas espáduas e ouviu a sua clara razão e as ternas ironias contidas nas suas palavras, sentiu
um desejo violento de a agarrar e de a beijar. Recalcou o seu desejo como recalcava tantas coisas.
- Dá-me mais uma chávena de café, antes de me ir embora. - pediu apenas.
Sábado
ELE
Um carro passou em baixo, com o bater das ferraduras de dois cavalos, no asfalto da Place de la Bourgogne. A cidade ainda se encontrava silenciosa. Estava sombrio,
mas ainda bastante claro para que se pudesse reconhecer a janela alta.
Frank Davis acordou ao eco desse barulho; descobriu a janela em questão, do outro lado do seu quarto. Estava ainda meio adormecido. Foi somente quando ouviu Evelina
respirar ao pé dele, que se lembrou onde estava. A cabeça da sua amiga repousava, quente e doce, no seu ombro. Frank reprimiu o desejo que tinha de se mexer. Estava
fresco e a janela ficara aberta. com precaução, levou a mão esquerda aos olhos e fitou o mostrador luminoso do seu relógio. Quási cinco horas. Procurou, às apalpadelas,
a coberta que tinha caído e puxou-a devagarinho para cima de si e de Evelina. O seu corpo estava repousado, estendido, cheio de maravilhosa satisfação. Frank sorriu
ternamente na sombra.
Estava ali deitado, silencioso, recordando a noite, essa noite que tinha sido mais cheia de paixão e de doçura do que qualquer outra de que ele guardasse lembrança.
"Evelina!-pensou - Evelina, querida Evelina!" Sentia o hálito da bem-amada contra os músculos do seu peito, fresco quando aspirava, quente quando expirava. "Mas
eu amo-te, Evelina". - pensou ele, estupefacto Tinha contado com uma pequena aventura e não compreendia como encontrara uma satisfação tamanha e tão emocionante.
Esforçou-se por não a acordar. Ele próprio fechou os olhos e tentou dormir. Foi só então que, sem dizer nada, Evelina lhe deitou os dois braços ao pescoço e que
ele descobriu que ela estava acordada.
Quando a beijou, a sua boca estava fresca, fria e perfumada, "como um canteiro de flores depois da chuva". - pensou ele - Era um pensamento surpreendente. Tudo que
acabava de passar-se com Evelina era surpreendente, estranho, novo. Parecia uma coisa que nada tinha com a sua vida. O seu coração, dentro do peito, estava grande
e satisfeito, sentia-se outra vez jovem, tinha dezassete anos. Eram estas coisas que ele não podia exprimir. Assim que Evelina se desprendeu dele, ficou um momento
silencioso, acariciando-lhe as costas e procurando uma palavra para dizer. A que por fim encontrou, nada tinha de extraordinário.
- Como estás tu, darling?- preguntou. Evelina respondeu-lhe:
- Bem, obrigada.
Em baixo, um homem passou, assobiando uma valsa. A janela iluminou-se um pouco. Ficaram muito tempo deitados, sem falar, quási adormecidos: estavam como numa barca
a que tivessem tirado os remos. A pele de Evelina era lisa, semelhante a um metal aquecido, a vidro ardente. As suas pestanas, de vez em quando, batiam contra o
ombro de Frank, como minúsculas borboletas. Frank admirava-se de reparar nesses pormenores.
- Foi bom? - preguntou Evelina mais tarde. Esta pregunta tinha um acento pueril.
- Foi, - respondeu ele - bom, melhor do que . melhor do que tudo .
E relembrou as coisas belas da sua vida.
- Melhor do que . do que a pesca das trutas,- disse ele - melhor que nadar nu, de costas, sabes, deixar-se a gente levar pelas águas e ver as nuvens sobre nós.-
Sentia ainda a frieza da água, o balouçar brando, a vermelhidão da tarde, em cima, no céu, nas margens das nuvens.
- Somos tão raramente felizes! -disse ela, em conclusão.
Evelina, com a ponta dos dedos, esfregou os lábios e as pestanas, assim como a parte da testa onde nascem os cabelos. Pegou-lhe no pulso esquerdo, olhou para o relógio
e suspirou.
- com nenhuma outra foi assim. - disse ele, cheio de gratidão - Duma outra maneira. tu submetes-te mais. tu prendes mais. tu és. não sei como dizer.
- Alemã? - disse ela, com futilidade.
- Se alemã é isto? - preguntou ele, sorrindo. Nalguns sítios, a aurora já desenhava os contornos
dos móveis e sobre a almofada, o rosto de Evelina tomava forma.
- Não sei ser de outra forma. Simplesmente, amo-te mais do que as outras mulheres. - disse ela.
- Não o deves fazer. - respondeu Frank, à pressa
- E também assim pensava.
Cinco horas dadas. Às sete e meia, o comboio partia e tudo estaria acabado. O que se passara ali, encantador como tinha sido, não devia ter importância nem para
ele, nem para Evelina. Ela tinha um marido. Viu nesse momento o Conselheiro com uma precisão espantosa. Um homem esbelto e simpático, de rosto fino que dava a impressão
de usar óculos, embora não os usasse. O tipo do gentleman. O marido de Evelina. Evocando assim esse simpático marido, sentiu-se
apossado de um sentimento de ciúme inútil, ridículo e tanto mais doloroso que era o do amante pelo marido. Uma vaga de paixão ergueu-o. Apertou os dentes e tomou
Evelina nos braços.
- É o adeus. - murmurou ele.
Ela apoiou as mãos contra os seus ombros e o rosto sério e brilhante, na obscuridade, dominava o de Frank.
- Queria ter um filho teu. - disse, em voz imperceptível.
Isso feriu-o como uma bala e transtornou-o. Já tinha ouvido o mesmo dos lábios das prostitutas em Changai, em Havana, na rectaguarda francesa, durante a guerra.
Parecia um truc internacional, um uso de todas as mulheres fáceis do mundo e que não significava nada. As outras mulheres, as honestas, eram cheias de inquietações
e preocupações. O medo histórico que Pearl manifestava por ter filhos, minava o seu lar. comprendia-o pela primeira vez nesse momento, com uma claridade penetrante.
Depois, deixou de pensar. As ondas invadiam-no, ondas, ondas, ondas, até ao momento em que foi atirado dos braços de Evelina para uma praia quente e acolhedora.
Ele aconchegou Evelina comodamente nos seus braços e cobriu-a.
- Querida! - disse em voz baixa e sem parar darling, darling.
Tinha as pálpebras pesadas dessa noite sem sono mas mantinha-as abertas à força para ver o rosto de Evelina.
- Durmo depois no comboio de Cherburgo. pensava ele.
O quarto agora já estava claro e Paris acordava, com um ruído a distância e buzinas de automóveis nas ruas vizinhas. De boa vontade teria acendido um cigarro, mas
receava magoar Evelina. Assim que o telefone se pôs a tocar na mesa de cabeceira, para o acordar, é que ele percebeu que tinha tornado a adormecer.
204
Evelina estava sentada na cama, muito direita, com os cabelos caídos para a frente, cobrindo-lhe a cara. Frank pegou no auscultador.
- Seis horas. - anunciou o telefone.
Ficou perturbado ao ouvir falar francês. Um segundo antes ele estava estendido numa praia da Flórida com uma mulher que não era Pearl nem Evelina, e que, no entanto,
era uma e outra reunidas. Dominou-se e conseguiu sair do ambiente encantado da noite que passara.
- Que foi ? - preguntou Evelina, olhando o telefone com ar assustado.
- Nada. Fui eu que mandei que me acordassem às seis horas. - respondeu ele.
Evelina suspirou.
- Tudo acabado!
Depois, daí a pouco, acrescentou:
- Também gostava de ser homem.
Ele resolveu-se a acender um cigarro e ofereceu-lhe outro. Ela abanou a cabeça. Estava sentada na cama, com as mãos em volta dos joelhos e parecia extraordinàriamente
jovem. Pearl não tinha a beleza da manhã. Ela mesma dizia que, salvo à noite, entre as 9 horas e a meia noite, era uma ruína. Frank não pôde deixar de comparar Evelina
a Pearl e em prejuíso desta. Era uma experiência que nunca tinha feito, com nenhuma das suas pequenas aventuras. Corou um instante. Não tinha remorsos de enganar
sua mulher, mas compará-la assim era desleal, bem o sentia. Afastou esta impressão desagradável e foi para a casa de banho. O duche frio lavou a noite do seu corpo.
Encheu a banheira de água quente até acima, fechou os olhos e mergulhou primeiro a cabeça. Era uma banheira antiga, enorme e funda. Depois de ter vestido o pijama
verde e escovado os cabelos, voltou à sala onde se pôs a guardar as suas coisas. Em cima do busto de Josefina estavam pendurados o colarinho e a gravata, o casaco
fora atirado
para cima do sofá e o resto permanecia no quarto, em cima da cama, que não tinha utilizado. Riu brandamente ao contemplar a horrível desordem. Voltou à casa de banho
e consagrou-se com ardor à cerimónia da barba. Tinha fome. Estava contente.
Precipitou-se para o telefone e encomendou o almoço : uma multidão de coisas. Bateu à porta de Evelina anunciando-lhe em francês que a senhora precisava de levantar-se.
O sol matinal entrava no aposento e desenhava no chão quadrados movediços. Como Evelina não chegasse, ele foi buscá-la ao quarto.
- Sinto-me como um dos pequenos balões encarnados, estou capaz de subir ao ar e rebentar. - disse ele.
Evelina estava no meio do quarto com a sua longa camisa de noite, parecia uma criança perdida numa floresta.
- Não tens pantufas ? - preguntou ele, severamente.
Ela abanou a cabeça, desolada. Tinha uns pèsitos inocentes, sem defeitos, como ele nunca tinha visto numa mulher. Pearl pintava as unhas, Marion também. Pearl aparecia
outra vez. Frank pegou em Evelina e levou-a para a casa de banho. Tinha feito um esforço considerável e ela era espantosamente leve.
- Quanto pesas ?- preguntou.
Ela encolheu os ombros. Ele deixou-a com a sua toalha azul-celeste e foi arranjar a mala.
Os seus cabelos estavam alisados e satisfeitos, na cabeça, quando se sentou à mesa para almoçar. Não havia nele nada desse sentimento de desordem que experimentava
várias vezes depois de uma noite assim. André, o dedicado criado de quarto, tinha empurrado a mesa com o seu natural entusiasmo saltitante, através da sala. Evelina
não havia ainda acabado de se vestir. André tirou de cima do fogão de sala um pequeno vaso de flores e pô-lo sobre a mesa entre o mel e o creme.
- Estou convencido-disse ele, acabando -que a senhora gosta de flores.
E o seu olhar traiu um alegre entendimento de homem para homem. Frank baixou-se e apanhou do tapete um pequeno alfinete que Evelina tinha perdido na véspera, à noite.
Era uma jóia simples e modesta, um pouco de ouro tendo ao meio uma minúscula pérola redonda. Quando ela entrou, ele segurava-o ainda na mão e contemplava-o afectuosamente.
Aquilo ficava bem a Evelina. Ela estava inteiramente vestida, correcta, de preto, com uma blusa branca. Já tinha até o chapéu, e os seus cabelos brilhavam por baixo
como prata, com um pouco mais de brilho e de à-vontade que de costume, segundo pareceu a Frank.
- bom dia, darling.-disse, oferecendo-lhe uma cadeira.
com um gesto largo, André deitou café nas chávenas. Depois afastou-se, sem esperar que Frank lhe fizesse sinal. Sentia uma certa curiosidade a respeito daquela que
o sr. Frank Davis trouxera para o hotel como sua mulher.
Frank pegou imediatamente na mão de Evelina e beijou-a.
- bom dia, querida.- disse ele mais uma vez. Teria querido despejar sobre ela uma avalanche de
ternuras, mas não podia. Tinha que dizer: "bom dia" "Como passaste?" Deitou três pedras de açúcar na chávena, como se esse desperdício de açúcar pudesse exprimir
um pouco da sua ternura. Preparou-lhe uma torrada com mel.
- Sentes-te cansada, darling?- preguntou. Evelina estava pálida e tinha uns grandes olhos, uns olhos imensos. Era uma idea desesperante querer mandá-la imediatamente
para o seu Conselheiro. Comia, obsecada.
- Obrigada, não quero mais. - disse ela.
Na intimidade desta noite, essa pressa de estar pronta, esse desejo de servir, tinha desabrochado nela
como uma grande flor misteriosa. Agora estava de novo fechada como um cálice num pequeno botão.
- Um pouco de ovos mexidos? - preguntou Frank.
- Não, obrigada. - respondeu Evelina - É muito americano para mim.
Ele puxou da carteira e tirou o bilhete de avião que a patroa lhe tinha entregue na véspera.
- Escuta, darling. Não te posso levar ao Bourget. O teu avião parte às oito e trinta. vou contigo até à Place Lafayette. Os carros para o aeródromo estão parados
ao pé do Grand Hotel. Está bem assim?
- Está. - respondeu Evelina, submissa.
Tudo ia bem. Ela pegou no bilhete que estava
metido num sobrescrito, olhou para a gravura elegante que fazia a publicidade das linhas aérias, e meteu-a na
? malinha que tinha trazido consigo para o almoço, uma simples malinha em couro preto, um pouco usada nos cantos. O alfinete de pérola estava agora outra vez modestamente
preso na gola de Evelina.
- Já andaste muitas vezes de avião? - preguntou II Frank.
- Muitas não. Uma vez meia hora, numa viagem
à volta de Berlim. Ganhámos o bilhete numa tômbola.
no baile dos juristas. - respondeu Evelina.
- Mas não tens medo ?
- Medo de voar ? Não.
Eram sete horas e dez e o ponteiro do relógio
corria. Frank levantou-se e, dando a volta à mesa
aproximou-se de Evelina. Tirou-lhe cautelosamente o
chapéu e acariciou-lhe os cabelos.
- Vai ser custosa esta separação, querida! - disse
ele, em voz baixa. - Vai. - respondeu ela.
Teria querido poder aquecê-la, protegê-la, envolvê-la em qualquer coisa de grande. De-repente, uma idea atravessou o seu espírito e dirigiu-se à pressa para o quarto.
Tinha na mala um remédio contra o
enjoo que trouxera para Pearl, quando tinham vindo para a Europa, embora Pearl pertencesse a essa categoria de pessoas que nunca estão doentes.
- Toma. - disse ele a Evelina, quando voltou É melhor tomares duas dessas pastilhas antes de subires para o avião. Ficarei mais tranquilo.
Ele vigiava-a emquanto ela pegava nas pastilhas. Sete horas e vinte.
- Temos de nos separar, darling. - disse ele, com doçura.
-Estou pronta imediatamente.-respondeu Evelina, voltando ao quarto.
Frank fechou as malas. Esteve um momento diante da pasta, procurando o contracto que tinha assinado com a Chambre Syndicale des Importateurs de Fruits. Quarenta
mil caixas. Dois dólares e cinquenta a caixa, mais a alfândega e as despesas de transporte. Surpreendeu-se a si mesmo no espelho, fazendo cálculos, de sobrolho carregado.
Apressou-se a meter os documentos na pasta, que fechou à chave.
Quando chegou, encontrou Evelina em pé, no meio do quarto, com um sapato na mão e uma expressão desesperada:
- Não consigo fazer caber este sapato. - disse ela. Não pôde deixar de rir.
- Vai ser uma catástrofe. - exclamou.
Pegou no sapato, meteu-o na maleta e fechou-a. Evelina seguiu a operação com um olhar sério.
- Não esqueces nada, aqui? - preguntou ele.
Olhou à sua volta, lentamente, com a mesma atenção e o mesmo respeito, muito séria. As rosas da mesa de cabeceira estavam murchas. Quási pretas pendiam da haste
e o quarto encontrava-se cheio do seu aroma, levemente podre. Na mesa de cabeceira havia uma fruteira cheia de fruta que Frank se lembrou de ter ido buscar à sala,
durante a noite. Ele passou rapidamente a mão pelos cabelos e saiu do quarto. André, no aposento ao lado, levantava a mesa. Estava resplandecente de brilhantina e do desejo de merecer uma importante gorgeta, pelo tacto, discreção e pela tradicional
cortesia do criado parisiense. Frank deitou algumas notas num dos pratos e logo a mesa e o criado desapareceram. Frank telefonou para mandar vir o groom que devia
levar as bagagens ao carro e foi ao quarto buscar o chapéu e o sobretudo. Sete horas e vinte e oito.
Assim que ele apareceu, Evelina, de pé, na estreita varanda da sala, contemplava, com uma expressão espantada pensativa, a rua. Frank disse-lhe meigamente:
- É preciso partir.
- Bem sei. - respondeu ela.
- Lamentas ter vindo ter comigo?-preguntou ele. Esperou que respondesse: não. Mas, sem voltar
o olhar para ele, disse:
- Só serviu para tornar tudo ainda pior!
Ele pegou-lhe nas mãos e atraiu-a para o interior.
- Ouve, querida,- disse-é preciso não lamentar. É preciso que não penses que isto foi uma bagatela para mim. Foi. a minha vida seria incompleta se não tivesses vindo.
Teria perdido qualquer coisa de maravilhoso e de importante. "E é verdade".-pensou ele nesse momento, surpreendido. - Tu, não ? - preguntou com ternura.
- Como ? E tu ? - preguntou Evelina.
- Não terias também perdido qualquer coisa de importante se não tivesses vindo ?
Ela pegou-lhe vivamente na mão, deitou nela a face e fez deslizar o rosto pelos dedos dele, deixando sempre o fugitivo calor de um beijo. Ele apertou-a ao peito,
delicadamente e sem nenhum desejo. Eram sete horas e meia.
Desta vez, por acaso, o elevador funcionava. Adeus à dona da casa. Conta de hotel. Gorgetas, táxi. Au revoir, au revoir, bon voyage. O sol brilhava, na Place de
la Bourgogne, os pombos corriam atrás das pombas
e faziam propostas de amor. Um barulho claro e cantante de venda, elevava-se das ruas. O Sena. A rue Castiglione. A Place Vendôme. Frank segurava a mão de Evelina
nas suas; ela apressou-se a tirar a luva.
- Que esquisito chapéu o teu! - disse ela. Tateou, um pouco descontente, a aba dura do seu chapéu redondo.
- Que tem de esquisito o meu chapéu ? - preguntou.
- Nada. Mas não estou habituada. Nunca te tinha visto de chapéu.
- Olha para aquele homem .
À esquina da rua, estava um homem, desde manhã, soprando num saxofone.
- É cego. - disse Evelina.
A pobre melodiazita acompanhou-os um instante, depois desapareceu entre o ruído das buzinas dos automóveis e dos autóbus.
- Chegámos. - disse Frank.
Dois carros cinzentos estavam parados diante do Grand Hotel, um pouco melhores que ómnibus, um pouco piores do que carros particulares.
Frank mandou levar a maleta de Evelina para um dos carros e ficou ao pé dela emquanto tirou o bilhete. Tinha a certeza que ela não lhe faria cenas de despedida,
mas, ao mesmo tempo, parecia-lhe desolador e lastimoso que o deixasse de uma forma tão pouco dramática.
-Não tens frio?-preguntou-lhe. Depois:-Tens dinheiro contigo? E por fim: -Às cinco horas estarás em Berlim. Ela disse-lhe:
- Dá-me um cigarro.
Acendeu um para si, outro para ela e meteu o maço na malinha de Evelina. Ela olhava-o, atenta e séria, como dantes.
-Partimos, minha senhora.-disse um homem amável que tinha o boné dos empregados-Se deseja subir.
- Good bye. - despediu-se Evelina, estendendo-lhe a mão fria.
Ele teria querido beijá-la, a essa mão, mas tinha vergonha de o fazer diante da gente que subia para o carro e diante do motorista de bela libré de couro.
- Auf Wiedersehen (até à vista). - disse ele, em alemão.
- Leb wohl und danke, (adeus e obrigada) - respondeu ela.
Não compreendeu bem o que ela dizia.
- Evelina, - disse, no último momento - vais dar-me notícias? Escreves-me?
Ela abanou a cabeça. Já estava no estribo e sorriu um pouco melancolicamente.
- Não. - disse - É preciso não arrastarmos este caso.
Ela olhava-o. Ele sentia esse olhar deslizar pelo seu rosto como qualquer coisa de material. O sorriso que Evelina lhe dirigiu tornou-se mais profundo.
- De-resto, tu não me deste a tua direcção . notou, com certa ironia - Agarrou-lhe a mão e soprou rapidamente na palma.
- Em vez de um beijo. - disse ela.
Antes mesmo que Frank tivesse compreendido o sentido desta delicada e mimosa carícia, já ela tinha subido para o carro. A partida fêz-se no meio de um grande ruído
de primeira velocidade, que passou a segunda, depois a terceira, até desaparecer na esquina.
Ela, graças a Deus, não tinha chorado! Não tinha chorado! Frank descobriu que sentia a garganta contraída. Doce, querida e pobre querida Evelina! Sentia-se um pouco
orgulhoso por ser capaz de sentimentos tão profundos.
Pusera as suas bagagens num táxi e acompanhara-a noutro. Os dois táxis esperavam diante do Grand Hotel. "Gare de l'Est". -disse ao jovem motorista, que enrolava
um cigarro. - Subiu para o carro.
Nunca chegava tarde de mais ao comboio, mas sempre nos últimos três minutos.
Na estação, teve o tempo preciso para mandar dois telegramas, um a Pearson, para Santa Bárbara e outro ao criado de sua casa de Long Island. No cais, havia o público
típico dos comboios especiais que vão tomar os grandes transatlânticos a Cherburgo. Americanos, uma família de japoneses, alguns jovens ingleses, que pareciam ir
a qualquer desafio desportivo além Atlântico, uma estrela de cinema que partia de Paris para Hollywood, pessoa nova, loura platinada, em volta da qual se viam dois
ou três fotógrafos de jornais. O pessoal falava inglês. "Adieu Paris". - pensou Frank, avançando tranquilamente através da multidão - Emquanto mostrava o seu bilhete,
pareceu-lhe que alguém o fitava e, voltando-se descobriu Marion. Tinha um vestido azul escuro, de bom corte. Estava tão fresca como se tivesse dormido até ao meio
dia como era seu hábito . Passou com o olhar, por ele, como se nunca lhe tivesse sido apresentado. Ele olhou para o relógio, tinha ainda minuto e meio. Dirigiu-se
rapidamente para ela, que estava em pé, junto à pequena barreira por onde tinham que passar os que partiam.
- Alo, Marion!
- Alo I Joujou. - respondeu ela.
- Que fazes aqui?
- Uma gentileza para contigo, meu filho, mais nada.
- Foste amável em vir mais uma vez .
- És imprudente estando a falar comigo.
- Que queres dizer com isso?
- Tua mulher não é tão ciumenta como todas as americanas?
Foi só nesse momento que Frank se lembrou que Marion devia julgá-lo com a mulher. Fez um gesto com a mão e disse, imitando a voz de Marion:
- Oh! la, la.
- Prefiro confessar-te sinceramente: estava cheia de curiosidade. Queria ver de longe e sem me dar a conhecer, a dona do teu coração. -declarou Marion, ironicamente.
Os seus olhos percorriam a multidão de pessoas que subiam para o comboio. Frank não pôde deixar de rir. As mulheres são, na verdade, seres cheios de surpresas. Pensar
que Marion saía da cama às sete horas da manhã para ver Pearl, que não estava em Paris!
"Partida! Partida!" - gritaram os condutores com o nervosismo particular da sua raça.
- Adieu, Marion. - disse Frank, correndo.
- Qual é? - preguntou uma voz atrás dele. Então, acudiu-lhe uma idea extravagante, emquanto
se dirigia para o vagão. Lançou os olhos para as senhoras que iam subir para o comboio. Descobriu uma sem encantos, nada nova, estritamente vestida à inglesa. Tirou
o chapéu e apressou-se a ajudá-la a subir o estribo. Subindo atrás dela, lançou rapidamente um olhar por cima do ombro. Marion lá estava, de boca aberta. Ele piscou
o olho e começou a rir. Ela retribuiu-lhe a sua pequena e impertinente careta. O comboio pôs-se em andamento.
Ele pensou: "Agora Marion está contente pensando que tenho uma mulher feia."
Este episódio tinha-o divertido.
De-resto, foi apresentado à senhora sem encantos, no momento em que, pelas dez horas, chegava ao vagão-restaurante. Era uma poetisa inglesa, muito conhecida, que
ia à América fazer uma tournée de conferências. Era inteligente e interessante. Frank disse-lhe que sua mulher estava já a bordo do Berengaria e ficaria muito contente
por ter tão agradável companhia para a viagem.
O vagão-restaurante era quente, pleno de alegria e um pouco cheio em demasia de: Alo, Bill! Alo, Bob! Alo, Frank!
Muita daquela gente era sua conhecida e era como se entrasse já no seu país. Frank encontrou Hugh Bennett
e Dan Webster. Iam no mesmo compartimento e entregavam-se a uma boa conversa sobre a Bolsa. Dan tinha trazido de Inglaterra uma garrafa do verdadeiro Highland Black
Label.
Às onze horas, não havia três horas mas uma eternidade que Frank estava separado de Evelina. Já vivia num outro continente diverso do dela. Uma única vez, a sua
sombra pálida e delicada apareceu, quando Hugh se pôs a contar anedotas picarescas sobre as experiências do Paris nocturno, emquanto, lá fora, deslizava um prado
constelado de florinhas amarelas.
- As mulheres, na Europa, sabem melhor que as nossas o que é o amor. - disse Frank, olhando para fora - É um dom de nascença.
- As mulheres na América são apenas mais honestas. - disse Dan, que não podia desembaraçar-se de certas ideas sectárias.
- Amem. - acrescentou Dan, lançando a garrafa pela janela fora.
Não lhes fora preciso muito tempo para a esvaziar. Ela caiu sobre o prado florido.
Frank pensou que Evelina tinha sido muito razoável. É bom não estender muito as coisas. Acabou-se. Nada de direcção, de cartas, de mentiras sentimentais e aborrecidas.
As coisas muito belas não suportam repetição.
- Estive uma vez em Bagdad. - disse ele-Uma cidade formidável. Durante cinco anos desejei lá voltar. Mas quando emfim voltei, o que vi? Um buraco do Oriente como
qualquer outro. Nunca se deve voltar.
Os outros olharam-no estupefactos. Depois, começaram a falar de Tamany Hall.
Para longe de Evelina. Para longe de Evelina. O comboio corria para longe de Evelina. A bruma tinha-se dissipado, tudo era encantamento, essa doçura que não se dava
com a vida de Frank. É certo que não esquecerá Evelina. Mas não pensará nela. Talvez um
dia, mais tarde, ela lhe acuda ao espírito como lhe veio nessa manhã a lembrança da nuvem debruada de vermelho pelo crepúsculo que tinha visto um dia quando era
pequeno e nadava de costas. Assim como Lídia lhe tinha vindo ao pensamento quando Evelina lhe colocara a mão no coração. Assim, talvez mais tarde Evelina voltasse
ao seu pensamento, um dia, nos braços de outra mulher.
Imaginando isto, adormeceu. Fez um sono curto e profundo até a costa e as casas de Cherburgo estarem próximas. Assim que desceu do comboio sentiu o ar fresco. Meteu-se
através do escritório da alfândega, cumprimentou uns amigos e dirigiu-se com eles até à ponte. Todos quantos encontrava tinham feito maus negócios na Europa. Isso
parecia deixá-los bastante frios. Frank respirou energicamente o ar do mar. Sentia-se feliz por entrar no barco, feliz de voltar para casa, por ver Pearl. Tinha
pressa de conhecer o cão que ela tinha comprado. Em Long Island devia agora florir o dodgwood. Mandara forrar de novo o quarto de cama, seria uma surpresa para Pearl.
Ficou na pequena ponte inclinado para trás, segurando solidamente o chapéu e recebendo no rosto a frescura salgada. A costa recuava; a água, contra o barco, espumava,
verde e branca.
No Berengaria, a música tocava em honra dos recém-chegados. Pearl, em pé, estava no tombadilho B encostada à amurada.
Vestia um fato branco e um chapéu azul.
Frank sentiu bater o coração ao tornar a ver sua mulher.
Sábado
ELA
Um carro passou em baixo com o bater das ferraduras de dois cavalos no asfalto da Place de la Bourgogne. Frank bocejava, suspirou e pareceu acordar. Evelina tentava
tornar-se o mais leve possível. O seu corpo estava hirto e doíam-lhe os rins.
com um leve suspiro, Frank aproximou do rosto o pulso onde tinha o relógio. O pequeno quadrante luminoso passou através da obscuridade, - iam dar quatro e meia e
o ponteiro dos segundos marchava, como uma espécie de ponto minúsculo, no cinzento escuro sem limites.
Evelina estava mais fatigada do que nunca estivera na vida. Não, nem mesmo depois do nascimento de Ursinho se tinha sentido tão mortalmente fatigada. Era como se
tivesse empregado toda a noite a subir uma alta montanha e tivesse escorregado constantemente sem conseguir atingir o cume.
Tinha saudades de Frank, agora que estava tão perto dele, em cujo ombro palpitava a sua face; as saudades eram mais fortes do que dantes quando eles estavam ainda,
ela na rua Dusseldorf e ele em Paris.
Milhares de anos haviam decorrido depois desse dantes. Evelina sentia muito bem, que tinha envelhecido
mil anos. No seu ennervamento e cansaço, tudo lhe parecia imensamente aumentado - espaço e tempo. A cama era incomensuràvelmente grande como um mundo. Os seus calcanhares
encostavam-se aos pés de Frank, ela não sabia onde, em qualquer outra parte do Universo. Agora ele levantava cautelosamente a coberta caída, para a tapar. Ela nem
deu por que tivesse frio. E era com reconhecimento que sentia o calor.
Há uma convenção - Evelina tinha lido isto em muitos livros e muitos romances - que diz que, certos gestos que no casamento são um dever habitual não muito desagradável
e que se cumprem com delicadeza, se tornam muitas vezes um reino maravilhoso, um fogo de artifício e um encantamento sem igual, desde que seja o amante que entra
em jogo. Evelina agora sabia que isso não era verdade. Em suma, tudo se passa no amor como no casamento e fica-se só, mesmo no abraço mais profundo.
"Até nisto eles mentiram" - pensava Evelina.
"Eles" eram, desde a infância, os outros, os grandes, as pessoas de idade que fingiam conhecer todos os segredos. Coisa verdadeiramente estranha, a sr.a Droste embora
tivesse mais de vinte e sete anos e fosse mãe de dois filhos, não tinha ainda deixado de se julgar na infância. Muitas vezes ficava muda, debruçada sobre si própria
e parecia-lhe fantástico não ser já a mesma menina de bibe azul que tinha sido vinte anos antes. Os seus olhos, os seus ossos, a sua pele, o seu sangue, haviam-se
sem dúvida desenvolvido ligeiramente, mas eram os mesmos. Idênticas coisas a afligiam ainda, as mesmas coisas a alegravam. E ela podia, durante horas, pensar: "Eu.
Eu, Evelina." Era um pequeno "Eu", inteiramente isolado e solitário que muitas coisas enchiam de inquietação mas que não era menos corajoso, pois se calava muito,
calava muitas coisas e nunca se lamentava. Evelina pensava muita
vez que as flores eram mais corajosas do que os leões. Porque os leões urravam e defendiam-se com grande barulho. Mas as flores não fazem o mínimo barulho, mesmo
quando lhes fazem o maior mal. As flores sofrem terríveis operações, perdem o seu sangue e morrem em jarras - e tudo se passa em silêncio. As rosas da mesa de cabeceira
morreram sem barulho. Toda a noite, Evelina tinha sentido o seu odor doentio-toda a noite. Ela dizia a si própria, que nunca mais poderia encontrar, sem pensar em
Frank, o cheiro das rosas prestes a murcharem. Isso e o pequeno rosto de fantasma do quadrante luminoso que, durante o abraço, fazia tique-taque ao pé do seu ouvido.
A cortina que, ao vento da noite tinha enfunado num dado momento. A sombra chinesa desenhada no tecto claro até cerca das três da manhã quando se tinham apagado
os candeeiros em frente do hotel. O gosto dos frescos bagos de uva moscatel que Frank lhe tinha trazido antes de adormecer.
Eram coisas inolvidáveis, importantes, indestrutíveis. A forma como ela sentia os cabelos de Frank quando os tocava na obscuridade, a impressão da pele estirada
sobre os músculos que a sua mão tinha sentido, deslizando sobre o peito de Frank. Eram os únicos pormenores valiosos, esses de que mais tarde seria possível lembrar-se.
"São coisas que se vêem, quando se morre". - pensava Evelina.
Ela esperava de todo o coração morrer nova, morrer em breve. Uma longa vida, na Dusseldorferstrasse, longe de Frank, era para ela qualquer coisa de desesperado e
impossível de imaginar. Sentia-se como chumbada a ele, como se tivesse atravessado o fogo e lhe ficasse soldada. Assim que ele ergueu a coberta, a sua mão afastou-se
do ombro de Evelina sobre o qual repousava até então. Esse pequeno lugar vago sentiu, só por si, saudades e começou a doer. Evelina meteu então cautelosamente o
ombro outra vez debaixo da mão de Frank.
Não sabia como poderia mais desprender do lado de Frank o seu corpo insubordinado, insatisfeito e saudoso e levá-lo para Berlim. Esforçou-se por ver Frank através
das pálpebras semi-cerradas. Mas estava muito escuro e a janela fornecia pouca claridade. Sabia, mesmo no escuro, que Frank era belo. Tinha sido para ela qualquer
coisa de novo e de emocionante descobrir que o corpo de um homem era qualquer coisa de belo, um edifício robusto e bem ordenado, formado de uma pele mate brilhante
e de uma carne resplandecente. Tentou lembrar-se do corpo de Kurt, mas, como ela nunca tinha notado que ele possuía um corpo, não sabia como esse corpo era feito.
O de Frank, pelo contrário, era-lhe familiar como um continente novo que ela mesma tivesse descoberto e percorrido. Sorriu com mais força. No seu peito aparecia,
a claro, no escuro da noite, um desenho, o do fato de banho que usava durante o verão. No ombro direito tinha algumas sardas. Uma cicatriz no braço esquerdo, lembrança
de uma queda de cavalo. "Homem. - pensava, encantada - Homem. Homem". Saiu dos seus amplexos da noite mais cheia de saudades do que nunca e mais cativa. Sentia-se
ao mesmo tempo estranhamente feliz e desiludida.
Nesse momento, Frank começou a bocejar. Mexia a cabeça na almofada em todos os sentidos, esfregando os olhos e abrindo a boca. Finalmente, Evelina decidiu mexer-se.
Desde que Frank viu que ela estava acordada, tomou-lhe o rosto nas mãos e beijou-a. Foi um longo beijo como se a quisesse escutar até ao fundo de si própria. Havia
nesse beijo uma intimidade e uma confiança prodigiosas.
- Como estás, darling? - disse ele, em seguida, em voz baixa.
Evelina teve a impressão de nunca ter ouvido nada mais terno do que essas palavras.
- Bem, obrigada. - respondeu, sorridente.
Ele pôs-se a acariciar-lhe os ombros e a falar-lhe
com palavras apenas perceptíveis. Ela pouco compreendia. Estava fatigada, mal acordada para compreender o inglês. Tudo era delicado e embalador como numa rede. "Ainda
durmo." - pensava Evelina. Numa rede, num barco. Numa rede, numa floresta virgem. Durante alguns minutos julgou-se em Bornéo, deitada na areia, ao lado de Frank.
"vou contigo, - pensava ela - de futuro estarei sempre ao pé de ti." Havia gigantescas giestas vermelhas sob as quais passeavam. "Mas eu estou a dormir!"-pensava
Evelina. Sentiu que Frank a beijava. "Gostava de ter um filho teu" - murmurava ela. Quási a seguir, viu a criança brincar ao pé de si, na areia. Estava ali sem que
tivesse tido parto nem dores. Sobre o seu pequeno peito moreno, estava desenhada, a claro, a forma de um fato de banho. O filho de Frank brincava com as conchas
e com os corais e falava inglês, a-pesar-de ter acabado de nascer. "Estou a dormir."-pensava Evelina, feliz-"Gostava de ter um filho teu" - sonhava ela; mas, de-repente,
acordou.
- É a hora de partir. - murmurou Frank.
Ela teve medo e apoiou-se nele para lhe ver a cara; parecia-lhe pálido e sério nesse amanhecer. Era bom que o amor fizesse tanto mal, a ela e a ele também. Ela estava
agora perdida no seu sonho de um minuto.
- Gostava de ter um filho teu. - disse, porque isso lhe parecia, de momento, ser a única coisa que podia levar dessa noite para a sua vida.
Depois, lentamente, através do seu abraço, ela caiu, de novo, no sono. Adormeceu profundamente, sem dúvida, pois quando a campainha do telefone a acordou, encontrava-se
na rua Dusseldorf. "É preciso levantar-me". - pensou ela, alarmada - "A conta do gás. Verónica, Ursinho, a criada das crianças, Kurt. Desanove marcos para a casa.
É tudo o que me resta." Abriu os olhos, horrorizada, pois era impossível com desanove marcos chegar ao fim do mês. Depois, foi-lhe preciso ainda meio minuto para
se encontrar.
Rosas murchas, hastes vergadas, papéis desconhecidos, manchas de humidade no tecto, um hotel parisiense. "Aqui, eles chamam a isto o lendemain." - pensava ela, ironicamente
-Obrigava-se a olhar para Frank e diante da claridade muito forte, fechou novamente os olhos. Ele era belo, vigoroso e as fadigas da noite não o tinham tocado. Sentou-se
e observou-o, andando de um lado para o outro, pelo quarto, e pondo tudo em ordem. Invejou-o. Ele bem sabia que ela estava exausta, fatigada, aniquilada e não podia
tornar a ser o que fora dantes. Já não se podia lembrar de como tinha sido dantes.
Frank dançava lá atrás no quarto com as suas pantufas de coiro encarnado que tinha trazido, mas, aparte isto, estava nu. Cantarolava. "E agora o duche frio!" "Agora
o duche frio!" Emanava dele tanta alegria sã, que Evelina começou a rir.
Ele respirava defronte da janela aberta batendo no peito, fazendo alguns passos de dança, como os negros no Varietés. Os cabelos caíam-lhe para a testa e de-repente,
Evelina soube como ele fora aos vinte anos. No mesmo momento, ele tornou-se sério, aproximou-se dela e sentou-se na borda da cama:
- É preciso, - disse - que tenhamos, um dia, mais tempo para nós. Isto não é nada. Precisamos de ir juntos a qualquer parte passar duas ou três semanas, para um
lugar tranquilo onde haja uma cascata.
Evelina preguntava a si mesma, com espanto, para que era precisa uma cascata, mas já ele tinha dado um salto e desaparecido. Ela ouviu-o cantar na casa de banho,
assobiar, tomar o duche, debater-se com a água.
As suas primeiras palavras tinham feito nascer nela uma esperança delirante e feliz. Talvez não fosse o fim, mas o princípio. Talvez Frank não pensasse em se despedir
dela e deixá-la; talvez tivesse já preparado e disposto tudo no seu espírito e agarrado tudo nas suas mãos poderosas. Mais uma vez se via subindo com
ele para um barco, indo com êle - para ficar. Emquanto ela ali estava sentada na cama com as mãos cruzadas em volta dos joelhos e os olhos fitos no papel de pássaros,
via-se já a viver ao lado de Frank. Já se tinha divorciado; Kurt ficava sendo o seu melhor amigo; ficava ele com Clarinha, a senhorinha e ela guardaria Ursinho porque
era pequenino e precisava dela. Pode ser até que não precisasse, que ninguém precisasse dela além de Frank que a amava. "Kurt pensa no seu tribunal, na sua carreira,
na T. S. F. e nos seus livros. E depois lá está a Mariana. eu não sou a mulher de que ele precisa". Este pensamento humilhava-a um pouco, embora não se referisse
à sua infidelidade, mas apenas à conta do gás, que tinha esquecido.
Agora o sol entrava no quarto e tudo parecia melhor do que nunca. Frank tamborilava na porta e anunciava, com a voz cava de um criado francês, que ela devia levantar-se.
Envolveu-se toda na sua coberta para levar ainda um pouco de calor. Depois, com grande esforço, conseguiu sair da cama.
Frank entrou. Trazia o pijama verde, bordado com o seu monograma, no bolso esquerdo; um rio de alfazema penetrou fresco e moço, com ele.
- É preciso que te apresses um pouco, darling. disse alegremente - Senão perdes o teu avião para Berlim.
Tremor de terra, desabamento, catástrofe. Os sonhos de Evelina caíram ao chão, em bocados. Ela ouviu-se responder:
- Apronto-me imediatamente.
Frank tinha-se aproximado da janela e olhava para o céu por cima dos tectos de ardósia.
- Não tens pantufas ?-preguntou ele, severamente.
Era tal qual como Kurt, em casa. Isso tranquilizou-a um pouco por verificar que os homens mais diferentes se pareciam em muitas coisas. Rigorosos para os factos
sem importância, amáveis no momento
em que menos se espera; distraídos quando há necessidade deles. A sua maneira de bocejar era a mesma, assim como a sua maneira de comer e de adormecerem no momento
de saírem do abraço.
E, sobretudo, a sua inexcedível aptidão em não compreenderem o que pensam as mulheres.
Frank ergueu-a, levou-a para a casa de banho e depô-la na banheira, como um objecto. Logo que ele fechou a porta, ela pôs-se a chorar. Chorou desesperadamente até
não ter mais lágrimas, até ao mais profundo do seu desgosto. Despedia-se realmente de Frank e do amor e fazia-o sozinha, durante esses dez minutos passados na banheira.
Depois, lavou os olhos com a grande esponja de Frank, esmagando no rosto a água fria a que se misturavam as lágrimas.
Depois disto, sentiu-se melhor. Pintou-se e empoou-se com mais cuidado do que nunca e foi almoçar. Já Frank se tornara o gentleman estrangeiro que, três semanas
antes fora a Berlim e a tinha arrancado ao que era a base da sua vida.
Depois do banho quente ela teve um pouco de frio e tremia. Esperava que Frank o não visse e também que não notasse que ela tinha chorado. Ele tomava conscienciosamente
o seu pequeno almoço que ela achava horrivelmente abundante. Também isso era estranho, americano. Ela tinha dificuldade em comer como se cada bocado estivesse cheio
de arestas e asperezas. Muitas vezes preguntara a si própria como faziam os actores que comem em cena. Engoliam, na verdade, os alimentos, ou estes eram apenas de
papelão? Agora ela sabia quási como isso se fazia. Estava sentada num pequeno palco que representava um quarto de hotel, em Paris. Conversava, o tempo estava bom,
em todo o caso melhor do que na véspera; a comida era verdadeira mas tinha o gosto do papelão. O criado, que tinha um papel mudo, exagerava. O seu silêncio era tão
eloquente, o
seu sorriso tão cúmplice, retirava-se com tanta discreção que mesmo a geral devia ver o que se passava.
com este pequeno divertimento a que Evelina se entregava inteiramente, o almoço acabou. Ela gostava de brincar: havia ainda na rua Dusseldorff uma das suas bonecas,
Margarida Pummel, que, às vezes, saía às escondidas da sua gaveta para brincar com ela. Lançou um olhar rápido para a Josefina que estava em cima do fogão.
Josefina sorria. Evelina sorria também. Frank não deixava de olhar para o relógio de pulso. Entregou-lhe o bilhete do avião e preguntou-lhe se tinha medo de voar.
Tinha um medo terrível. mas era uma das coisas que se não confessam. Além disso, este medo não era senão um fraco elemento do terror com que ela teria de arrostar
logo que Frank a deixasse.
Andar de avião, voar, chegar, ir a Geltow, tornar a ver Kurt, mentir. Neste caos só havia uma coisa estável: Mariana.
- Chegas a Berlim às cinco horas. - disse Frank.
- A minha amiga deve ir esperar-me, - respondeu ela - a Mariana, lembras-te?
-É aquela que tem uma linda pele?-preguntou ele.
Evelina encolheu os ombros. A pele da Mariana era-lhe completamente ignorada e constituía uma dolorosa surpresa, que Frank soubesse qualquer coisa a esse respeito.
Daria tudo para saber se Frank a amava, não com esse amor inevitável que era o seu, não, ela sabia que não podia ser. Mas, ainda assim, ele podia amá-la. Desde que
lhe tinha mandado as mimosas, desde que lhe tinha telefonado para Berlim desde que tinha dormido com ela, de noite, tinha a certeza desse amor. Agora, à claridade
do dia, agora que a mesa do pequeno almoço estava entre os dois, já isso lhe parecia duvidoso. Lutou um momento para reter a pregunta que nenhuma mulher pode reter
e, finalmente, não pôde mais.
- Diz-me . gostas de mim?
Frank parou de comer e, pegando-lhe na mão, respondeu:
- Gosto muito, darling.
Não procurou convencê-la. Que mais poderia, na verdade, dizer? No amor nunca se chega a saber o que é a verdade.
Os dedos de Evelina estavam pegajosos do mel, foi ao quarto de banho para os lavar. Debateu-se um momento com a maleta, tinha ainda mais pena dela do que na véspera.
Ficou ali uns momentos contemplando com hesitação o seu passaporte. A fotografia estava já um pouco amarela: o passaporte e o retrato datavam da sua viagem de núpcias.
Era uma linda Evelina com um vestido de quadrados; o alfinete de pérola que seu pai lhe tinha dado, de presente, estava preso no peito. Uma Evelina com mais saúde,
mais feliz, um pouco delicada é certo, mas não tão magra, não tão desesperadamente fatigada, como se tinha tornado depois. "É estranho.- pensava - Nas fotografias
velhas temos sempre um ar mais idoso do que no presente." E pensou ainda: "O casamento não me fez bem."
Pôs o passaporte na maleta, mas já não encontrou lugar para os sapatos de baile que tinha trazido e que haviam sido perfeitamente inúteis. Por fim, Frank veio em
seu auxílio e troçou dela. Correu para a varanda. Tinha um pouco de vertigem e queria respirar o ar livre, mas, olhando para cima, para os tectos em frente, depois
para baixo, para a Place de Ia Bourgogne, sentiu-se ainda menos à vontade. O vácuo atraía. "Se eu me deixasse cair!"-pensou vagamente - Muitas vezes, nos seus sonhos,
tinha caído através de uma negrura clara e transparente; era um sentimento melodioso e agradável. Também desmaiar era qualquer coisa de parecido. "Ah! o amor." -
pensou ela, em conclusão - Compreendeu que a morte devia ser assim: cair através de uma obscuridade cantante e chegar fosse onde fosse.
Desde que Evelina tinha traduzido a algaraviada do seu médico e estudara, num Dicionário de Medicina que havia em casa, o parágrafo curto e fatal consagrado à anemia
perniciosa, havia pensado muitas vezes na morte. Era uma das raras coisas de que ela não tinha medo. A vida era um assunto difícil, exigia actividade, vitória, esforço.
A morte, por comparação, era uma coisa fácil. Só se tinha de a deixar obrar.
- É preciso partir. - disse Frank, atrás dela. Voltou-se, pois aquela voz era doce e acariciante como durante a noite. A vertigem desapareceu, deixando atrás de
si uma agradável claridade.
- Eu sei. - disse. E seguiu-o ao quarto.
De súbito, ele disse qualquer coisa que a petrificou, com a mão no ar e a cabeça inclinada para o lado, como um animal que encontra uma coisa inesperada. Frank fazia-lhe
uma espécie de discurso de despedida resumindo todas as coisas.
- Não imagines que isto para mim foi uma bagatela. A palavra francesa bagatelle alojou-se à vontade
mesmo no meio da frase inglesa. Evelina pôs-se a sorrir. Havia tanta inconsciência nesta segurança que ele lhe dava, era tão estranha, tão distante, que só podia
rir. Estavam cada um de seu lado do fogão de sala, um grande e confortável abismo os separava. Não era,- dizia ele - uma bagatela que ela tivesse vindo a Paris.
Na verdade, nenhuma bagatela. A sua ignorância era tão grave que lhe fazia mal. Ela foi para ele e acariciou-lhe a mão, a que tinha o indicador paralizado. Entortou
o chapéu nessa ocasião, foi arranjá-lo diante do espelho.
- Adeus, Josefina. - despediu-se.
Bateram. Era o criado que vinha buscar as bagagens. Trazia um avental verde e apresentava-se também à maneira de um actor que representasse um pequeno papel. Pequeno,
mas não sem importância. Foi ele que abriu a porta a Evelina para ela sair do quarto.
Frank tinha as bagagens pesadas e impressionantes de um homem que viaja. A maleta dela tinha um aspecto lamentável e comprometedor no meio de tudo aquilo. Era a
maleta de uma mulher que arruma à pressa alguma roupa para ir passar um fim de semana com o amante.
- Obrigado, Maurício. - disse Frank, dando uma gorgeta ao criado de quarto.
- Au revoir, Jorge; obrigado, Franchon; obrigado, Guy.
Parecia saber os nomes de toda aquela gente que fez alas até ao automóvel.
- Au revoir, Mrs. Davis. - disse a Madame-Espero que estivesse tudo a contento.
Evelina olhou-a, surpreendida. Não tinha compreendido imediatamente que era dirigido a ela esse nome estrangeiro.
- Espero que nos tornem a dar a honra para a outra vez.-continuou a patroa, afastando um pouco o pequeno groom para pôr em movimento a porta giratória.
- Au revoir, Bon voyage.
Ela ficou no passeio, diante do seu hotel, a vigiar o carregamento das bagagens e a partida dos hóspedes. Ainda fazia sinais e já o táxi virava à esquina. Era à
antiga e como nas aldeias.
O trajecto foi curto. Apenas trocaram algumas palavras. A separação não foi tão dolorosa quanto Evelina tinha receado. Em primeiro lugar, Frank levava um chapéu
que lhe ficava mal e lhe dava um ar desconhecido.
De tal forma, que o homem de quem se despedia era um outro, diferente do Frank, sem o qual ela julgava impossível viver. Depois, havia nevoeiro, uma espécie de narcótico
benéfico, pairando sobre os últimos minutos. Também quando se tem filhos dá-se clorofórmio se as dores se tornam muito fortes. Por um momento, esse nevoeiro foi
tão espesso que Evelina pensou:
"Agora vou sentir-me mal". Segurou-se à porta do carro para que ia subir e pediu a Frank um cigarro.
Nesse momento, ele tirou o chapéu e olhou-a. Os seus cabelos estavam lisos como um capacete de metal luzidio. E a sua cabeça era muito pequena comparada com os largos
ombros. Assim que ele deitou fora o cigarro, Evelina pôde ver com uma espécie de alegre emoção, que ele também sofria. Ele também. Ela via os seus olhos, uma contracção
do seu rosto que não podia dominar. Disse-lhe umas palavras de adeus em alemão, com uma pronúncia desajeitada e terna. Ela respondeu-lhe também assim. Alguém a empurrou
para o carro que partia. A despedida estava terminada. Frank tinha partido para sempre sem que ela soubesse como isso tinha sido feito. Sentia lágrimas na garganta
mas não nos olhos. "Podemos realmente suportar muito mais do que julgamos!" - pensou, com certo orgulho.
O carro tinha bancos de couro. Estavam lá mais algumas pessoas. O trajecto foi longo e aborrecido. Ao princípio, era ainda Paris, mas em breve as ruas perderam cor
e fisionomia e tornaram-se apenas ruas de bairros populosos e muito pobres, como em toda a parte. Evelina olhou pela janela. Sentia-se completamente vazia e repousava
no vácuo.
Um senhor olhou por momentos e depois falou-lhe em alemão.
- Desculpe, minha senhora, mas vai também tomar o avião de Colónia?
Evelina só nesse momento notou como estava cansada de falar sempre línguas estrangeiras.
- vou para Berlim. - disse.
- Pois é, o avião de Colónia, às nove e trinta. Colónia, Hanovre, Tempelhof. Temos bom tempo para voar. - disse ele.
- Tenho um certo mêdo! - confessou Evelina, pois agora já não lhe importava mais, não se mostrar corajosa - Um amigo deu-me umas pílulas .
Percebeu que a secura que sentia no céu da boca, o atordoamento da cabeça, eram de-certo causados pelas pílulas de Frank.
- Pílulas Vasano?
- Não, americanas.-respondeu ela - O meu amigo é americano.
Fazia-lhe bem falar de Frank, mesmo de uma forma indirecta. O senhor inclinou-se para lhe apanhar o resto do cigarro que Frank lhe tinha dado. Ela pegou-lhe.
- Obrigada. - disse.
Aproveitou um momento durante o qual o senhor voltou os olhos, para fazer desaparecer a ponta do cigarro no bolso do casaco. Era o último presente que havia recebido
de Frank. Tinha a intenção de a conservar na sua caixinha de relíquias, que guardava ao pé de Margarida Pummel.
- Tem voado muitas vezes? - preguntou quando o senhor tornou a olhar para o seu lado.
- Muitas. - respondeu ele - Sou um velho cliente. Sou obrigado a ir muitas vezes a Paris, por causa dos meus negócios. O avião é bem mais agradável do que o caminho
de ferro, não acha? Fiz um pouco de aviação durante a guerra; nesse momento, ainda se arriscava qualquer coisa.
Evelina ficou um pouco surpreendida e até um pouco ofendida. Como estava apaixonada por Frank, tinha-se aplicado a acreditar que, a despeito de toda a lógica, ele
fora o único aviador da guerra. O amor faz sempre do seu objecto qualquer coisa de único. A aviação de Frank e as suas cicatrizes, eram uma parte do encanto exótico,
aventuroso e másculo que tinham seduzido Evelina. Olhou para o senhor que tinha ao lado e que também fora aviador na guerra: talvez tivesse atirado sobre Frank.
- Chamo-me von Gebhardt;-disse ele,esboçando uma reverência - parecia sentir-se pouco à vontade por não ter cumprido ainda esta obrigação de delicadeza. Tinha uns
olhos claros sob umas sobrancelhas loiras; era
alto e largo de ombros, mas notavelmente mais velho do que Frank. Evelina notou com uma certa repulsa que tinha agora uma forma nova de considerar os homens. Via
músculos, pele, figura, corpos, onde dantes só tinha notado um fato. Voltou-se e olhou de novo pela janela. Um terreno sem erva, semelhante a um prado, sobre a miserável
selva em que estava instalado um circo. Do outro lado, as paredes traseiras de grandes prédios de habitação. Das janelas, pendia roupa.
- Mais dez minutos. - disse von Gebhardt.
O nome desse viajante tinha feito nascer em Evelina um sentimento extraordinariamente desagradável. Tentou, franzindo as sobrancelhas, lembrar qualquer coisa: "Gebhardt,
pensava ela. Eckhardt, Eckhardt". Isso horrorisou-a. Tinha esquecido o dr. Eckhardt, ou antes não deixara essa lembrança desagradável reaparecer, emquanto estivera
ao pé de Frank. Mas agora, o dr. Eckhardt, esse inofensivo e um tanto estúpido adjunto, ali estava de novo diante dela, grande como o destino. Que lhe aconteceria,
que deveria fazer de si se o dr. Eckhardt contasse que a tinha visto em Paris ? Nem ela sabia.
- Talvez isto a interesse, minha senhora. - disse ele, dando-lhe um jornal alemão.
Evelina olhava, sem ver, a fotografia de uma fábrica em chamas e, alarmada e de coração confrangido, pensou em Kurt. Que faria ele quando soubesse a verdade por
Eckhardt, ou quando a descobrisse com a sua perspicácia de Juiz ou então. quando ela mesma lho confessasse? "Talvez Mariana seja capaz de me ajudar".- pensou. Depois,
quási a seguir: "Não é tão importante como isso". O que esperava agora, desde que Frank tinha partido, não era viver, mas vegetar, acontecesse o que acontecesse
- pouco importava que fosse um pouco melhor ou pior.
O carro parou. Ò sr. von Gebhardt pegou na maleta de Evelina e ajudou-a a descer.
- Permita, minha senhora, que tome as feições de guia.-disse, com uma delicadeza um pouco fora de moda.
Evelina aceitou, de bom grado. Abrindo a malinha, descobriu o maço de cigarros americanos que Frank lá tinha metido antes de partir. Acendeu à pressa um cigarro
e aspirou o cheiro exótico e familiar. Era quási tão bom como se Frank tivesse ainda a mão dela entre as suas, como se tinha tornado seu hábito-hábito de um só dia
muito breve. O sr. von Gebhardt guiou-a através de diversas cerimónias da partida, falando sempre, explicando-lhe, contando-lhe. O sol brilhava, fazia frio. Toda
a gente parecia de bom humor.
- Dá-me licença que lhe apresente o nosso piloto, minha senhora? - preguntou von Qebhardt - O sr. von Trump. a senhora Droste.
- Como sabe o meu nome? - preguntou Evelina. O Universo inteiro parecia saber que ela tinha dado
um salto a Paris. O sr. von Qebhardt respondeu:
- Sou uma espécie de detective, querida senhora. e além disso li na sua maleta.
O piloto deu-lhe um aperto de mão enérgico: era um rapaz gracioso, de olhos castanhos e rosto moreno. O seu fato de aviador estava muito junto ao corpo. Evelina
encaminhou-se para a porção de bagagens que um rapaz acabava de trazer e considerou a sua maleta. Sim, o seu nome e título viam-se ali escritos com todas as letras:
o seu cartão de visita estava cuidadosamente enquadrado em celulóide e couro. Perto, exibia-se, redonda e grande, a etiqueta do hotel, a azul-branco-vermelho. Evelina
ficou aterrorisada. Inclinou-se para tentar tirar essa etiqueta traidora, mas foi-lhe impossível. Teve um pensamento de cólera a respeito do criado de avental verde,
que tinha feito isto a ela e à mala. "A Mariana tem que a tirar. - pensou. De-repente, o universo encontrou-se cheio de buracos, de armadilhas e de aflições. Esse
sentimento de perigo em que ela se encontrava não tinha de-facto abandonado
Evelina, senão por instantes, desde a sua partida de Berlim. No azul da Sainte Chapelle; quando Frank, no meio da noite, lhe levara uvas e de manhã, quando ele tinha
dito que deviam habitar ao pé de uma cascata. Mas agora, de novo o perigo estava por toda a parte e Evelina voltou os olhos perturbados para a mala, para o céu soalheiro
e fresco, para o vasto espaço no qual os aviões iam e vinham ou paravam para esperarem, como pássaros de prata, bem amestrados.
A partida conseguiu distraí-la um pouco dos seus pensamentos. Era bom elevar-se assim, como se houvesse um caminho invisível mas sólido sobre o qual o avião se apoiasse
com segurança. Evelina olhou para baixo, sentiu a vertigem e agarrou-se com o olhar à cabine. Além dela havia três jovens passageiros. Um casal que falava uma língua
que ela tomou por tcheca e o sr. von Gebhardt em frente dela. Estava calor. O barulho do motor tornava toda a conversa impossível. O sr. von Gebhardt, sorrindo,
estendeu de novo o seu jornal a Evelina. Ela abaixou a cabeça. Procurou com o seu olhar a maleta. O sr. von Gebhardt seguiu esse olhar, e indicou-lhe pela janela
o sítio onde as asas brilhavam ao sol. Evelina encolheu os ombros. De vez em quando o piloto voltava para eles o seu bonito rosto moreno e olhava para trás de si,
na cabine, através de um pequeno vidro. Num momento, mostrou qualquer coisa em baixo, sorrindo. O sr. von Gebhardt retribuiu-lhe o sorriso e olhou para a terra.
Evelina imitou-o. A terra estendia-se, oblíqua e pequena, mas gentilmente dividida em quadrados, bem por baixo deles. Estava tão claro que podiam distinguir um cão
correndo numa estrada, a não ser que fosse um cavalo. Evelina pegou no jornal. Acolhia tudo quanto lhe evitava de pensar. Um pouco depois a senhora tcheca sentiu-se
mal. Tranquila e sem barulho, vomitou num pequeno saco de papel. Evelina sorriu, compadecida. Imaginava-se preservada e couraçada contra todo o mal como se tivesse
sido temperada pelo fogo contra todas as contingências da vida. O avião voava quási sem balouçar. Em baixo, viam-se aldeias, fechadas em redondo sobre si mesmas.
Evelina pôs-se a fumar um cigarro: ainda havia tanto de Frank neste aroma! O sr. von Gebhardt mostrou-lhe, com o dedo, um aviso que proibia fumar. com pena, separou-se
do seu cigarro e pôs-se a ler. Fazia isto sem pensar, sem saber exactamente o que lia. Uma frase do folhetim captivou o seu pensamento.
"Todos nós, emquanto existimos, morremos num dado momento da nossa vida sem que nos enterrem. O nosso destino está cumprido; recebemos tudo quanto a vida tinha para
nos dar, e nós demos tudo quanto havia em nós. O que vem mais tarde não merece o nome de vida. O mundo está cheio de pessoas que estão mortas sem o saberem. Apenas
a um pequeno número é permitido morrer no próprio momento em que a sua existência acaba."
"Como é verdade" - pensou Evelina, deixando cair o jornal no regaço - "Como é verdade, absolutamente verdade! Via diante de si o seu futuro, correcto e aborrecido
como a rua Dusseldorf. A senhora Droste. Ursinho há-de ser parecido com Kurt. Clarinha receberá uma boa educação como teve sua mãe: línguas vivas, inglês, francês,
história de arte. Ela própria, Evelina, festejará os seus 72 anos sendo sempre a mesma. Talvez tenha esquecido que um dia foi para Paris onde lhe aconteceram coisas
incríveis. No entanto, ela lembra-se ainda do dia em que, com cinco anos de idade, fugiu de casa para correr atrás de um regimento. Simplesmente esta grande aventura
da sua infância não teve importância e só mereceu um sorriso. Talvez que a história que ela acabava de viver com Frank perdesse igualmente toda a importância e se
tornasse até um tanto cómica. Pensamento tranquilizador e triste ao mesmo tempo. Estar morta e não o saber. Morrer e não ser enterrada! Eis o que era.
Procurou o nome daquele que tinha escrito estas linhas: H. Hirschbach. Não era um grande escritor. Um nome desconhecido de um som mate e burguês. Leu ainda algumas
linhas mas o que se seguia desiludiu-a. Tratava da primavera e não lhe dizia respeito a ela. O sr. von Gebhardt ofereceu-lhe um chewing-gam. Meia hora mais tarde,
Evelina adormecia num sonho magnífico. Estava ao pé de uma baía azul, a água era clara e profunda e o fundo azul como a água. Peixes de formas e cores encantadas
passavam em cardumes através de uma claridade de prata, de ouro e de um vermelho ardente, de um vermelho que, na realidade, não existia. Um hino imenso subia das
profundezas e tudo pairava. Como pairavam as estrelas no céu, tudo, nas profundezas, pairava com a mesma facilidade. Um barco aproximou-se; era puxado por golfinhos,
tinha velas luminosas, da cor dos peixes vermelhos. O próprio barco cantava, tinha uma voz forte e tranquila. Evelina estava no barco, no meio da gente nua. Iam,
a plenas velas, para uma ilha que saía da água, nascida da profundeza, emquanto êles se aproximavam. Sobre a própria ilha havia gente nua mais bela do que são os
homens verdadeiros. Colhiam frutos de grandes árvores e atiravam-nos ao ar. Os frutos reluziam como metal e não caíam no chão. Sem a acção da gravidade, subiam e
desapareciam no céu, subindo constantemente e desaparecendo.
Evelina não sabia quanto esse sono e esse sonho tinham durado. Quando acordou, estava ainda toda penetrada da sua leveza e da sua alegria. Eram,-disse-lhe alguém,
quando ela estava ainda nesse crepúsculo estreito que separa o sono do despertar-eram os seres raros, aos quais é concedido morrer no momento em que a sua vida se
realizou. Era H. Hirschbach que falava, um homensinho de óculos e mal barbeado. Ela teve, reabrindo os olhos, um sorriso indulgente para tanta confusão.
No avião reinava o silêncio e foi o silêncio que a acordou. Nenhum barulho de motores. Molemente, desciam, com a impressão de um vácuo sem atritos.
- Voo planado.- disse o sr. von Gebhardt no silêncio.
Depois, o avião pôs-se a cambalear. A senhora tcheca disse qualquer coisa incompreensível em voz alta e calou-se logo. O sr. von Gebhardt levantou-se num salto,
agarrou-se ao avião, vacilante, e olhou através dos vidros.
- Uma panne no motor. - disse ele, a meia voz. Evelina sorriu. O piloto, fora, voltou o rosto para
a cabine: já não era moreno, mas pálido, esverdeado, reluzente de palidez, quási fosforecente. O senhor e a senhora tchecos deram-se as mãos. O silêncio, um silêncio
surpreendente, reinava no avião que caía, que se precipitava para terra. Evelina continuou sentada, imóvel, e admirou-se de não ter medo. O sr. von Gebhardt voltou-se
para ela. Também estava verde. Era um homem alto e forte, mais velho que Frank, mas um pouco como ele, vigoroso e másculo. Emquanto caíam, titubeando, afundando-se,
ele tomou Evelina entre os seus braços, escondeu-lhe o rosto no ombro para que ela não pudesse ver nada.
-Não tenha medo.-disse - Ainda não está tudo perdido.
Evelina tinha-se encostado contra a gola do seu casaco, tranquila, protegida por este homem que não conhecia. E viu: sua mãe, os pequenos pés de Ursinho. O papel
do quarto do hotel, Mariana toda de vermelho, um ribeiro em que esteve quando era criança. Via as mãositas que tinha aos quatro anos e a sua sombra de criança. Não
viu Kurt. Frank também não. Clarinha, sim. Negro. Vermelho. O vermelho do sonho.
Depois, foi um choque surdo, formidável, uma pancada, um ruído. Em seguida, uma formidável claridade e um frio glacial e ardente. Depois, uma dor imensa, mais forte
do que um parto, intolerável. Depois, mais nada.
Sábado
O MARIDO
Um carro passou, com o bater das ferraduras de dois cavalos, no asfalto da Dusseldorferstrasse. Ainda era noite; mas, em roda das duas janelas, havia já um pouco
de claridade cinzenta. O barulho tinha acordado o Conselheiro Droste e o seu espírito, de-repente, sentiu-se lúcido. Ficou um momento imóvel para não incomodar Evelina;
depois voltou-se cautelosamente. Foi só, então só, quando reparou que o outro leito estava silencioso e sem respiração, é que ele se lembrou de que sua mulher estava
em Geltow.
Verónica não se tinha dado ao trabalho de arranjar a cama de Evelina, cujos contornos se desenhavam lentamente através do dia cinzento, bem unidos sob a colcha estendida.
Droste bocejou alto e acendeu o candeeiro para ver as horas. Ainda não eram quatro e meia. Na mesa de cabeceira estava uma porção de jornais que tinha percorrido
na véspera, antes de adormecer. Droste pegou no último jornal que tinha lido. Desdobrou-o com barulho. Era muito agradável ter assim o quarto de dormir só para si
e poder fazer barulho, bocejar, acender a luz, fazer barulho, ler e, adormecer outra vez. Folheou as últimas minutas do processo. Depois, procurou a Vossische Zeitung,
de
quinta-feira; e seguiu uma série de artigos do jovem escritor Hirschbach que o interessavam. Leu certo tempo e achou o artigo mais fraco que os precedentes, depois
os seus olhos fixaram-se na luz até se porem a chorar. Era um mau hábito que ele tinha conservado da infância e que sua mãe sempre tinha censurado .
Por fim, apagou-a outra vez, suspirou profundamente com prazer e tornou a adormecer emquanto o quarto aclarava.
Às sete horas acordou pela segunda vez, levantou-se, tomou banho, barbeou-se cuidadosamente, assobiando com os lábios fechados a bela melodia da Sinfonia Incompleta
de Schubert. Era uma bela manhã clara, fria, mas cheia de sol. Droste sentiu-se à sua vontade, como não estava há muito tempo; o sono tinha feito desaparecer a fadiga
e a sua rouquidão e agora começava a alegrar-se realmente com o seu êxito no caso Rupp. Foi ao quarto dos filhos e recebeu mesmo a agradável licença de tomar nos
seus braços o rapazinho, emquanto lhe preparavam leite.
Tirou do bolso o velho relógio chato, de seu pai, que usava sempre e pô-lo ao pé do ouvido de Ursinho. O bebé saudou aos gritos o objecto reluzente, mas o fenómeno
acústico parecia ultrapassar o seu horizonte. Pôs-se a fazer beicinho, o que fez com que Droste, assustado, o largasse.
- É um estúpido.- disse Clarinha, em tom superior.
Ela era já muito grande para ouvir o relógio, mas gostava bem que lhe abrissem a caixa para ver a roda do tique-taque e como o relógio andava. Arfava por concentrar
a sua atenção e Droste sentia a fina e quente cabeleira da senhorinha tocar ternamente a sua testa, quando ambos inclinavam a cabeça para o relógio.
O pequeno almoço correu segundo o rito costumado. O Conselheiro sentou-se sem dar por isso no colo da pequenita que gritou, com força: protestos e gritos de surpresa,
demonstrando que estava ali uma coisa
estranha. O café era fraco como sempre, pois Verónica
- ela mesma o reconhecia - não sabia fazê-lo. A enceradeira trabalhava ruidosamente, o aspirador roncava na sala e, no corredor, ouvia-se a criada das crianças gritar:
- Fraulein Verónica, água!
Do quarto das crianças vinham os gritos de alegria de Ursinho a quem davam banho. Uma porta, fechando-se, cortou ao meio esse alegre barulho. Droste pôs-se a fumar
o seu cigarro da manhã e divertiu-se a fazer rir Clarinha com os seus anéis de fumo. Sentada nos joelhos a pequena tentava convencê-lo de que descera à cave e vira
dois elefantes cor de rosa em açúcar, tão grandes como os elefantes do Zoológico. Uma campainha soou. Verónica, num passo pesado, foi abrir a porta. Depois, teve
lugar uma cena desagradável.
- Pronto, - disse Verónica, entrando sem bater eu bem tinha dito que isto aconteceria!
- Que aconteceu? - preguntou Droste.
- É o homem do gás, para fechar o contador, porque não pagaram a conta. Eles preveniram várias vezes, não é de admirar que tenham perdido a paciência.
Havia na sua voz uma espécie de triunfo amargo.
- com a breca! - disse o Conselheiro, afastando Clarinha. Depois, precipitou-se para a sala e foi à secretária. Evidentemente a conta do gás lá estava, tendo ao
lado o vale telegráfico de seis marcos e setenta e quatro pfennigs. Mas não tinham pago.
- vou falar com o empregado. - disse ele.
- Experimente.-disse Verónica com uma funda ironia.
Droste abriu a gaveta onde Evelina guardava habitualmente o dinheiro da casa, mas não encontrou nada. Impaciente e furioso, tirou, peça a peça, do seu porta-moedas
a quantia de que precisava; ficavam-lhe ainda uns marcos para seu uso pessoal. Foi com o dinheiro ao outro quarto onde estava o homem da blusa azul, a
cortar o gás. O homem recusou-se a aceitar o dinheiro e a deixar o gás em paz.
- Não tenho autorização. - disse ele, e essa palavra solene parecia encher de prazer a sua língua - Não tenho licença para receber dinheiro, só os cobradores é que
têm essa autorização. Eu só posso cortar o gás.
Cortou o gás e foi-se embora, não sem deixar atrás de si numerosas pegadas por toda a casa e um cheiro agridoce.
Verónica sofria sem dizer nada. seu rosto dizia que era isso que acontecia a quem está a servir em casa de pessoas que não eram de categoria.
-Hoje não há almoço.- declarou ela, lacónicamente.
- Vá ao restaurante. - disse Droste, furioso.
- Ursinho não pode ir ao restaurante. - disse a criada das crianças, aparecendo no momento das recriminações - Se Ursinho bebe o leite natural frio, apanha diarreia,
doença a que se deve atribuir setenta e dois por cento da mortalidade infantil.
Ouvindo estas reminiscências do tempo em que a criada das crianças preparava o seu concurso, para ama diplomada, o Conselheiro rebentou. Bateu com a porta atrás
de si, ouviu Clarinha e Ursinho que começaram a gritar quási ao mesmo tempo e precipitou-se para o telefone.
Toda a sua raiva se tinha voltado contra Evelina. Em voz irritada, pediu comunicação para Qeltow.
- Preciso de falar já a Evelina. - disse, assim que Mariana atendeu - Esse leve incidente tinha feito voltar a sua rouquidão nervosa. Mariana não respondeu imediatamente.
- A Evelina ainda está a dormir. - disse por fim em tom amável.
- Pois bem, acorda-a. Preciso falar-lhe.
- Vamos, vamos. - disse Mariana - Há fogo? Deixa-a dormir, pobre criança. Ainda é muito cedo para ela.
Esta resposta tornou o Conselheiro ainda mais furioso.
- Evelina não é um bebé. Nós tratamo-la sempre como um bebé, mas ela já o não é. Também tem um pouco de responsabilidade. - gritou ele, desesperado.
O telefone ficou um momento silencioso, como se Mariana tivesse ido acordar Evelina. Mas, na verdade, ela reflectia, depois disse:
- Explica-me primeiro o que aconteceu e eu verei se vale a pena acordá-la.
Droste pôs-se a contar a história da conta do gás, esquecida há muitas semanas em cima da sua secretária e nunca paga. Repetiu as ameaças de Verónica que não podia
fazer o almoço e as preocupações da criada das crianças a respeito de Ursinho, lamentando-se amargamente da falta de senso prático de Evelina.
Mariana sorriu docemente.
- Ora vamos, Puschel. - disse ela - Se têm o gás cortado, que pode Evelina fazer? Deixa-a dormir. Eu vou falar para a Companhia, conheço lá gente, as pessoas como
eu estão sempre em negócios com eles. Prometo-te que Ursinho terá o seu leite quente. Estás melhor agora?
A prudência resoluta expressa pela boca de Mariana, acalmou o Conselheiro.
- Mas - confessou ele, pouco depois - confessa que é difícil não nos encolerizarmos muita vez com Evelina, tão pouco prática ela é e tão pouco se pode descansar
nela.
- Se queres queixar-te de Evelina-disse Mariana
- não é a mim que deves dirigir-te.
- Em todo o caso - gritou Droste, de melhor humor - ataca-a um pouco quando ela acordar. Eu vou jantar a Geltow e trago-a.
- Telefono-te ainda a dizer se isso nos convém.- replicou Mariana.
Droste ficou um momento aturdido com esta resposta. As visitas e os jantares na pequena casa de Mariana, eram uma tradição permanente e para a qual não era necessária
prévia combinação.
- Adeus, até às seis horas-disse ele ao aparelho.
- Antes das sete, não.- disse Mariana, desligando. Droste pegou no sobretudo e, evitando o aspirador
de Verónica, encaminhou-se para a porta.
- O assunto está arrumado. Vão abrir o gás. Verónica tinha o ar de não acreditar uma palavra
do que ele dizia. Dirigiu-se à estação postal mais próxima onde teve de esperar numa bicha de aprendizas e empregaditos de escritório o momento de se desembaraçar
dos seus seis marcos e setenta e quatro.
Pelas onze horas Mariana telefonou-lhe para o gabinete a dizer-lhe que o assunto do gás estava arrumado. Ela tinha falado aos empregados superiores e depois telefonara
a Verónica. Sim, o homem do gás voltara a abri-lo, o almoço estava ao lume: croquettes de batata e purée de maçãs.
Ursinho tinha cenouras.
- E Evelina? - preguntou o Conselheiro.
- Evelina continua a dormir. - acrescentou Mariana - O repouso faz-lhe bem.
O Conselheiro sorriu involuntariamente quando Mariana fez passar diante dele o quadro de Evelina adormecida. Sorriu e suspirou, ao mesmo tempo. Mariana desligou
tão rapidamente como de manhã.
Droste trabalhou um pouco na quantidade de correio e cartas que se tinham amontoado durante o processo Rupp. Depois, teve uma conversa fria e quási demasiadamente
amável com o delegado. Um pouco depois do meio-dia deu-se um facto sensacional. Uma borboleta amarela e ébria, volitou através do pequeno pátio que separava o gabinete
de Droste da muralha vermelha do Depósito. Perlemann foi tomado por uma alegria
histérica e infantil; abriu a janela de par em par e debruçou-se. Fugiu a correr e voltou com algumas flores que tinha ido buscar à cantina. Eram umas flores miseráveis,
como só se podiam encontrar na varanda da cantina dum tribunal. Perlemann colocou-as na janela aberta, como um convite à borboleta perdida. No andar superior e nos
dois andares inferiores, apareciam cabeças.
Do outro lado, na prisão, as janelas por detrás das grades, eram de vidro baço, o que impedia os presos de verem em liberdade a borboleta nascida cedo demais. Um
guarda que atravessava o pátio, voltou a bondosa cara vermelha para o céu e sorriu. Nesse momento, Droste começou a preguntar a si próprio, com interesse, se Perlemann
conseguiria atrair a borboleta com as flores da janela. Sentado à sua mesa, tinha empurrado a papelada e deixado apagar o cachimbo, olhando para a nesga de sol onde
volitava o delicado ser amarelo. Assim que a borboleta desceu, batendo as asas e pousou numa das pobres flores meio murchas, ele aproximou-se em bicos de pés para
contemplar essa pequena maravilha na prisão de Moabit. Os olhos eram minúsculos como pedrarias, as antenas vibrantes, estremeciam. Perlemann estendeu a grossa mão.
- Cá a temos. - disse, excitado.
Droste reteve-o e exclamou, em tom violento:
- Não lhe toque.
Era a ele agora que pertencia proteger contra ferimentos, as asas inexperientes da borboleta. Esta ergueu-se, e, hesitante, voou. A sua visita deixou por muito tempo
no rosto de Droste o reflexo de um sorriso maravilhado e satisfeito.
- Se chove, ela vai morrer. - disse Perlemann, ofendido.
- Se morrer, isso não é connosco. - respondeu o Conselheiro.
O velho Juiz de Instrução, Berger, chegou logo a
seguir para convidar Droste a ir almoçar com ele ao Nettelbeck. Droste, num súbito acesso de alegria, decidiu acompanhá-lo. O orçamento do mês parecia tão perturbado
e tão caótico que era indiferente gastar dois ou três marcos a mais ou a menos. Ficavam-lhe ainda seis marcos depois de ter pago a conta do gás. Abriu a porta ao
velho Juiz, para o deixar passar. Tinha trabalhado com ele como assessor e aprendera muito. Havia anos que Berger fora afastado um pouco para a sombra, mas Droste
tinha por ele uma cordial simpatia e sabia que Berger era dos raros, entre os velhos Juizes, que se alegravam com o seu rápido avanço.
O restaurante Nettelbeck quási só recebia homens. Não se via uma única mulher além da velha Nettelbeck que fazia o efeito de um general reformado e mantinha uma
disciplina de ferro na cozinha e na adega.
Droste estudou a lista ao lado dos preços e encomendou cautelosamente. Sentia-se à vontade nessa cadeira de veludo encarnado, gasto, e deixou que Berger lhe deitasse
um copo de vinho fresco do Palatinado. Era para ele um bom dia com toda a espécie de satisfações e alegrava-se antecipadamente ao pensar no serão a passar com Mariana
e Evelina.
- Ouvi um passarinho dizer que vai ser encarregado do caso Hoffmann. - disse Berger - Vai-se divertir. Hoffmann é um dos tipos mais engraçados que tenho encontrado
na minha carreira. Não é um pedaço duro como esses Rupp. Dá pouco trabalho e muita honra. Sinto-me feliz se for encarregado do caso.
Embora Droste não ligasse grande importância aos mexericos que corriam no Palácio, esta alusão foi-lhe agradável. Se lhe entregassem o caso Hoffmann, significava
muito. Significava reconhecimento, publicidade e depois, seria interessante. Hoffmann era um desses financeiros de aventura que, tal como os vagabundos, acompanham
o recuo do capitalismo e aproveitam-se da desordem dessa retirada.
- com a breca!-disse ele, com animação - O que devia era pôr-me a estudar história financeira.
O velho Juiz de Instrução pôs-se a rir.
- Pois sim, meu amiguinho. - disse alegremente
- Eu mesmo tive muita vez de abrir bem os olhos. Não devemos deixar que nos atirem assim ao nariz uma porção de milhões, a nós que temos os nossos oitocentos marcos
de vencimento e os nossos cinquenta e seis marcos de gratificação. Pois sim, leia um pouco a "Evolução do dinheiro". É um livro muito bom para o esclarecer.
Fora o próprio Berger que tinha dirigido a primeira instrução contra Hoffmann. Droste tomou nota do título do livro na sua memória vasta e bem ordenada. O vinho
tinha-o tornado ainda mais subtil do que ele era. O bouquet fresco e aromático do vinho do Palatinado, a borboleta amarela e os cabelos de Clarinha ao pé da sua
fronte, tudo isso era bom e fazia um todo. "E depois, Evelina . naturalmente. Evelina." - pensou pouco depois. Era um pensamento que lhe vinha mais por dever do
que por expontaneidade. No entanto, alegrava-se de ver Evelina voltar de Geltow. Já não lhe queria mal por causa da conta do gás, embora se sentisse forçado a fazer-lhe
censuras se não queria que a sua falta de iniciativa se tornasse cada vez mais grave.
Voltando para casa, saiu do carro à esquina da rua e foi à livraria comprar a "Evolução do Dinheiro". Era um grosso livro, brochado a cinzento, e cujo índice prometia.
Foi obrigado a comprá-lo a crédito. Os Droste tinham conta corrente na livraria, pois, embora fossem económicos e, para eles, tomar um táxi representasse uma prodigalidade,
nem por isso deixavam de fazer grande consumo de livros: a biblioteca circulante de Evelina, as revistas técnicas do Conselheiro e as obras de história que assinavam.
Os livros, a cultura era, uma parte importante e típica da vida oficial da rua Dusseldorff.
Droste fez a pé os vinte minutos de caminho que o separavam de sua casa. Atravessando o pequeno jardim da praça Oliva, olhou para ver os seus filhos; não estavam
lá. Também não estavam em casa. A casa cheirava a cera de encerar; Verónica tinha a deplorável qualidade de dar todos os dias um cheiro à casa. Droste abriu a janela.
Aquecera um pouco. Aproximou-se do rádio e ligou-o. Depois de lhe mexer várias vezes encontrou o que procurava: um concerto do quarteto renano, de instrumentos de
corda, que se realizava às duas da tarde em beneficio dos cegos. Tocavam Haydn. Sentou-se à vontade e pôs-se a cortar as folhas do seu novo livro. Gozava o seu descanso,
a sua solidão, a música; mesmo o barulho que fazia a faca de papel separando as páginas, dava-lhe prazer.
O telefone tocou. Era a secretária do Professor Senftenberg, pois o grande cirurgião tinha travado conhecimento com ele, no clube. Preguntava se Droste e sua mulher
podiam ir no domingo seguinte jantar com ele à sua casa de solteiro. A sua casa de solteiro era uma das mais belas residências de Dahlem. Droste aceitou impetuosamente.
Gostava muito de Senftenberg e estava certo que Evelina iria ter muito prazer. "Mariana também vem".-acrescentou o professor-Nessas condições, ainda melhor. O Conselheiro
agradeceu, recebeu os cumprimentos do professor e pousou o auscultador; logo o telefone tornou a tocar. Droste meteu a faca de papel nas páginas do livro, pois acabava
de começar um capítulo interessante: "Valor do dinheiro, ficção e símbolo". Pegou no auscultador com certa impaciência.
- Está? -disse.
- Aqui Lufthansa, a Companhia de Navegação Aérea, director Breitenstein. Desejava falar ao senhor Conselheiro Droste.-disse uma voz de baixo, com um acento do norte
da Alemanha.
- Sou eu próprio. - disse Droste, um pouco nervoso.
O homem tossicou:
- Tenho que lhe dar, infelizmente, uma notícia má. Creio que é melhor resumir tudo em poucas palavras. Senhor Conselheiro, o nosso avião Nº 36 sofreu um grave acidente.
- A quem deseja falar? - preguntou Droste.
- É o sr. Droste que está ao aparelho?
- Perfeitamente.
- O nosso avião que vinha de Paris, despenhou-se e incendiou-se entre Arraumière e Desancourt, perto da fronteira francesa. Infelizmente tenho que lhe participar
uma triste notícia; sua esposa está gravemente ferida.
Houve um silêncio ao telefone e, como o Conselheiro não respondesse, ouviu-se acrescentar:
- Temos um avião às suas ordens em Tempelhof, caso queira ir por via aérea ao locai do sinistro.
- O quê? O quê? - disse o Conselheiro. A voz de baixo, ao telefone, continuou:
- Consinta que lhe apresente, em nome da Lufthansa as nossas mais profundas condolências. Faremos tudo que seja possível para.
- Alto! -disse o conselheiro - O seu avião de Paris despenhou-se? É lamentável, tenho muita pena mas é um engano telefonar-me. Minha mulher não estava nesse avião.
A voz de baixo pareceu reflectir um momento, trocou algumas palavras em voz baixa com uma terceira pessoa no outro lado do fio. Depois, continuou:
A asa onde estavam instaladas as bagagens desprendeu-se, caiu e, por conseguinte, não foi queimada como o resto. Encontrámos o passaporte e a morada de sua pobre
esposa.
Subitamente, Droste sentiu-se exasperado de ouvir a voz estranha chamar a Evelina sua esposa e ainda por cima "sua pobre esposa".
- Minha mulher está em casa. - disse mais secamente do que desejaria.
- Teria alguém por acaso utilizado o passaporte de sua esposa?
Toda esta confusão tornou o Conselheiro tão furioso que a sua cólera fê-lo esquecer-se de lamentar o incidente de que acabava de ter conhecimento. "Participarem
uma notícia assim alarmante para uma direcção errada ! -pensava ele, raivoso. - Repetiram-lha no entanto, insistindo que ele devia ir a Tempelhof e que um avião
estava às suas ordens. O caso complicava-se cada vez mais. Finalmente, desligou.
Tornou a pegar no seu livro; a faca de papel caíra da página. Esse estranho telefonema tinha-o deixado nervoso e deprimido. Leu algumas linhas sem as perceber, depois
fechou o livro e telefonou para Geltow.
- Quero falar a Evelina. - disse ele, quando Mariana respondeu -Está?-insistiu vendo que não respondiam imediatamente.
- Evelina foi passear. - disse então Mariana.
- Sozinha?-preguntou ele e notou, com particular desagrado, que estava outra vez rouco.
- Sim . - disse Mariana.
- No entanto, preciso falar-lhe. Quando chega? Não a podes mandar chamar? Sempre que lhe quero falar surge uma dificuldade.
Estava agora muito nervoso.
- Não te ennerves assim, Puschel.-disse Mariana
- Que aconteceu mais? O gás marcha ou não? Queimaram o leite do Ursinho? A vossa criada dos meninos torceu o pescoço?
Ouviu o riso de Mariana e ficou irritado.
- Pois bem, estou nervoso. - disse ele, impaciente - Acabo de receber uma terrível comunicação telefónica da Lufthansa; um dos seus aviões caiu e uma mulher está
morta. Imaginam que é Evelina. Calcula
uma coisa destas. aflige, mesmo, tratando-se duma falsa notícia.
Mariana não deu por ele ter acabado, gritou:
- O avião de Paris despenhou-se?
- Sim. -respondeu ele.
Só um segundo mais tarde, a sua lógica recomeçou a funcionar e preguntou a Mariana como sabia ela de que avião se tratava.
- Mariana! - disse ele, aflito.
- Não ouviu mais a voz, mas um grande barulho, como se tivesse caído qualquer coisa ou ela mesma tombasse.
- Mariana!-chamou ele, angustiado.
Fêz-se ouvir um murmúrio no auscultador que tinha no ouvido. Depois, tornou a ouvir a voz de Mariana.
- Oh! Kurt. - disse ela muito baixo - Oh. Kurt. Oh! Kurt.
- Onde está Evelina?- gritou Droste.
Tudo lhe parecia despido de sentido, enchendo-o de angústia.
Mariana repetiu:
- Oh! Kurt. Oh! Kurt. Oh!Kurt.
O Conselheiro pôs-se a tremer. Era mais que tremer, era uma coisa que o sacudia, batiam-lhe os dentes uns contra os outros, os dedos seguravam a custo o auscultador.
Dobravam-se-lhe os joelhos e teve apenas tempo de agarrar a poltrona e deixar-se cair. Durante uns minutos que pareciam não ter fim, só foi nevoeiro, vertigem, angústia,
terror, loucura. "Mas é uma doidice!"
- pensava. "Eu estou louco!
Era como se Dusseldorffertrasse, se tivesse afundado num tremor de terra, saltado numa explosão, desaparecido no impossível. Era loucura pensar que Evelina estivesse
a passear em Geltow e ao mesmo tempo tivesse caído dum avião na fronteira francesa. Tudo se dividia em dois, tudo se dobrava, se transformava em
camadas de vidro sobreposto, caleidoscópio de imagens diante dos olhos fechados de Droste. Passou a mão pelo queixo, onde se amontoavam gotas de suor, como via com
tanta frequência nos acusados, no momento em que se afundavam. Era como se dois cérebros trabalhassem ao mesmo tempo no seu crânio.
Um, demolido, desvairado, furioso e que parecia louco, emquanto que outro o observava e tirava conclusões lógicas.
Evelina estava morta, pensava este cérebro lúcido, e isso não era doloroso, mas uma pancada abafada. Ela estava por consequência em Paris, emquanto ele a julgava
em Geltow. Isso queimava-o bem mais e com maior dureza do que a certeza da sua morte. "Que fez ela em Paris?" Como é possível que eu não tenha dado por nada?"
Pensava: "Terei eu vivido numa mentira, numa fina camada de gelo e não numa casa? Talvez de-resto ele não pensasse nada, isto foi pensado nele, dolorosamente, indestrutivelmente.
Olhava as paredes, o chão; tudo oscilava, nada estava sólido. Mas ela tinha medo de tomar o metro sòzinha! Como pode ter caído de um avião?" Este pensamento fazia-lhe
mal. Ela não estava só. Tal era a resposta fria e terrivelmente cruel que lhe era dada do fundo do seu infatigável cérebro, que não deixava de trabalhar.
Durante todo esse tempo, tinha conservado contra o ouvido o auscultador que a sua mão trémula segurava. Mas não ouvira mais do que um murmúrio. Talvez mesmo não
lhe tivessem dito nada.
- Fica muito quieto até que eu chegue. vou já ter contigo. - disse agora a voz de Mariana.
Isto vinha de longe, como de uma outra estrela ou do fundo de um mau sonho.
Houve então um intervalo em que Droste não deu por nada, embora não tivesse perdido os sentidos. Depois o telefone tocou e uma voz de mulher preguntou, aborrecida.
- Ainda fala? Não? Bem, então desligue, se faz favor.
Droste pôs o auscultador no descanso. Olhou para a pasta da sua secretária colocada diante de si, lentamente os seus olhos desenharam com a mais minuciosa exactidão
os contornos de várias nódoas de tinta. Depois pegou num lápis e acrescentou certo número de bagos de uva aos que já estavam desenhados no mata-borrão. Apanhou o
livro que tinha caído ao chão. Leu uma linha que ficou junto do seu dedo indicador: "Tal como o sonho dos fabricantes de ouro de todos os tempos, era absurdo e ilógico.
Se o ouro pudesse ser fabricado, perdia em seguida e automaticamente o seu valor e o seu papel de."
Leu e releu esta passagem sem compreender. Ao lado, Ursinho chorava e Clarinha acompanhava-o cantando na sua voz agreste e profunda de criança. Droste teria querido
ir ao quarto dos filhos mas teve medo. Tinha a impressão de que o mínimo movimento podia quebrar o vaso da insensibilidade em que parecia sentir-se fechado. Tentou
igualmente pensar em Evelina, mas a imagem não conseguiu formar-se em si. Evelina estava na sua cama de Geltow, tinha as faces vermelhas e dormia há muito tempo.
Uma Evelina correndo a aventura, através do mundo, em avião e que tinha caído em terra, era para Droste uma desconhecida e não era capaz de a representar. Mas mesmo
nas salas de audiências ele tinha surpreendido coisas que desnorteiam. Mulheres delicadas assassinando fria e calmamente, escondendo os cadáveres nas malas e indo
dançar nessa mesma noite. Assassinos gostando de crianças e de passarinhos. Uma senhora de idade que fazia bem a toda a gente, tinha sido reconhecida culpada de
um incêndio. Um anjo louro de doze anos tinha, por acusações mentirosas e inexplicáveis, levado a trabalhos forçados um pai de família.
"O homem é feito de matéria opaca". - pensava
Droste - A mulher Rupp acudiu-lhe ao espírito, assim como os seus cabelos que se iam molhando emquanto ela ia sabendo os segredos do marido. Os seus também estavam
molhados. Ele também não soubera nada. Eram três horas menos cinco. Clarinha tinha deixado de cantar. Evelina estava morta. Droste pôs-se a andar de um lado para
o outro até que Mariana chegou.
Mariana estava muito pálida. Entrou, de chapéu e casaco, não lhe estendeu a mão, mas agarrou-o pelos ombros.
- Está frio,-disse ela-tens que vestir o sobretudo. Ele olhou-a e ela acrescentou:
- Tenho o meu carro lá em baixo. Falei com a gente do Lufthansa. Preparam-nos um avião. Vai buscar o teu passaporte, é do outro lado da fronteira.
Droste tinha a impressão de ter esperado até então que aquilo não fosse senão um sonho ou que tivesse endoidecido e pudesse curar-se. Acordar para a antiga e certa
realidade onde passava uma Evelina desastrada e sem iniciativa, que lhe causava grandes cuidados e lhe dava pequenas e delicadas alegrias! Agora, era irreparável.
Afastou os ombros das mãos de Mariana.
- Ela estava em Paris? - preguntou - com quem? Mariana não respondeu, olhava-o apenas estranhamente pensativa.
- E tu sabias, tu estavas feita com ela?!-disse Droste.
Mariana fez vagamente o gesto de erguer os ombros. Droste julgou mesmo adivinhar nos seus lábios, como que a sombra de um sorriso. De súbito, viu a sua mão atravessar
o ar e bater na cara de Mariana. Ela recebeu a pancada, sem fazer um movimento. Contentou-se em atirar um pouco os cabelos para trás.
- Porque permitiste isso, Mariana ?
- Ninguém podia deter Evelina. - respondeu ela. Era monstruoso pensar em Evelina como um ente
dotado de uma força e vontade particulares. Ele estava
ainda de pé, com o rosto interrogador e os olhos fixos que reflectiam, quando Mariana saiu do aposento. Voltou logo trazendo-lhe o sobretudo e o chapéu. Vestiu-o
como a uma criança.
- Vem, Puschel.-disse-lhe meigamente - Precisamos de nos despachar.
- Os pequenos ? - disse ele, sem saber porquê.
- Tudo está em ordem, vem.-respondeu Mariana.
Não trocaram mais uma palavra. Partiram e pararam diante de uma bomba de gazolina, tornaram a partir e chegaram ao campo de aviação de Tempelhof.
- Não posso falar com essa gente.-disse Droste.
- Não, Puschel, não. - murmurou Mariana, acalmando-o.
Colocou-se como uma muralha entre ele e os empregados da Lufthansa. O piloto, que os levou para o avião, era um rapaz silencioso e magro de rosto.
- Fui eu que pedi para os levar. - disse ele, no momento em que atravessavam a pista asfaltada da partida - Trump, que pilotava o avião de Paris, era o meu melhor
amigo. É o terceiro que se vai. De cada vez é como se nos arrancassem um braço ou uma perna. Pior ainda.
Droste compreendeu que devia ser uma consolação exprimir a sua compaixão. Isso não queria dizer grande coisa. "Um amigo" pensava - é simples. Mas uma mulher que
morre e a quem nós conhecemos menos do que se conhece um desconhecido, que se senta ao nosso lado no ómnibus!
Mariana mostrou-lhe um pequeno estribo pelo qual ele podia subir para o avião e ajudou-o. Ele teve pena de lhe ter batido. Mariana era bondosa.
- Tu és boa. - disse ele.
Descolaram. Por baixo de Berlim estendia-se uma luminosa poeira; ao alto, brilhava o sol.
Droste tentou analisar o caso de sua mulher. Não; ela não era feliz ao pé dele e não o tinha amado. Ela tinha
amado outro. "Porque não mo disse?" - pensou. E teve a impressão de sentir uma grande piedade. Ela estava sempre em casa, quando ele chegava e todas as noites dormia
ao pé dele. Mentia-lhe e era paciente com ele e ia fabricando glóbulos brancos. Mas, em qualquer parte, ela tinha uma vida sua, que vivia violentamente e com força.
Ninguém. - dizia Mariana - E, em qualquer parte ela tinha tido uma morte muito sua. Não lhe queria mal.
Depois procurou quem podia ser o homem por causa de quem ela partira para Paris. Procurou lógica e sistematicamente, como para um caso judiciário. Mas não conseguiu
encontrar, entre os homens que conhecia, um único que pudesse ter sido. Acudiu-lhe uma idea que o encheu de alegria ardente e bárbara e que exprimiu logo a Mariana
que olhava fixamente pela janela. Ela sacudiu a cabeça quando ele lhe fez a pregunta, que, com o ruído dos motores, ela não ouviu. Tirou a caneta e escreveu numa
página da sua agenda. "O homem também morreu?" Mariana leu lentamente a linha de letras finas. Voltou-se, olhou outra vez pela janela e reflectiu. Depois pegou na
sua caneta e escreveu por baixo: "Não sei mais do que tu". Mariana tinha uma bela letra direita, vigorosa. Coisa estranha, uma espécie de calma saiu dessas letras
robustas. Era como se as coisas não fossem assim tão ilimitadas.
Voavam. O ar tornou-se mais pálido e menos cheio de sol em volta do avião.
Droste tinha perdido a medida do tempo e da distância. De-resto, ele não pensava sempre em Evelina, longe disso, na sua terrível traição, no seu enigmático acidente.
O espírito humano é feito de maneira que possué a virtude e a faculdade, não somente de se submeter à dor, mas também de evitar e esquecer as mais terríveis dores.
Droste via a paisagem por baixo deles, lembrava-se da borboleta amarela que, nessa mesma manhã tinha repousado um instante as suas asas
trémulas sobre as flores da cantina. Também o caso Hoffmann absorveu grande parte dos seus pensamentos, emquanto eles voavam sem parar e se aproximavam da fronteira,
no crepúsculo. Estava de tal maneira mergulhado no caso Hoffmann, de que ele conhecia os traços gerais pelas descrições dos jornais, que Mariana teve de lhe meter
a mão no braço e indicar-lhe da janela o momento em que começaram a descer. O motor calou-se, mas Droste estava ainda ensurdecido, quando desembarcaram.
Em baixo, estava muito mais escuro que lá em cima. Tarde de campo, com um cheiro a madeira queimada e a campo. O campo de aviação, onde aterraram, também parecia
um campo. Estavam Já dois homens que cumprimentaram com uma palavra. Ambos eram franceses, mas um deles sabia algumas palavras em dialecto da Alsácia. Tinham um
automóvel preparado, um alto carro verde, fora de moda. Droste subiu e sentou-se em silêncio, ao lado de Mariana. O piloto tinha tomado lugar do outro lado, mas
também não dizia nada. O carro cheirava a palha molhada. Atravessaram os campos por um mau caminho, que passava diante de uma aldeiazita. Algumas casas estavam ainda
iluminadas. Afastaram-se da aldeia e pararam ao pé de um poste indicador. Um dos franceses desceu, fez um sinal diante de si e pôs-se a andar na frente. O outro
ficou ao pé do carro.
- Não os incomoda que eu vá? -preguntou o piloto.
Droste lembrou-se que esse homem tinha perdido o seu melhor amigo e fez sinal que não. O piloto avançou a grandes passos ao lado do francês. Um cheiro de incêndio
e de terra pairava no ar. Droste pôs-se a tiritar. Tinha medo. Atravessaram agora obliquamente por caminhos que cediam ante os seus passos. O piloto voltou-se e
disse:
- Ficou tudo no mesmo sítio por causa do inquérito.
Emquanto Droste percorria assim a campina, enterrando-se por vezes na terra, com o terror frio do que ainda o esperava, de súbito. o sentimento do sonho invadiu-o.
Levantou a cabeça tão bruscamente que Mariana parou. Ele pensava: "Do outro lado do campo há três ulmeiros e um carreiro entre moitas de espinheiros. Já vim a este
sítio." Era fantástico de ver, na noite que escurecia, surgirem esses três ulmeiros e voltar depois a um caminho bordado de moita. Depois, ouviu os abutres, como
sempre faziam ao pé do pequeno pântano, que bordava o bosque. Mas o bosque não estava lá e o campanário também não. "Nós destruímo-lo a tiro de canhão". - pensava
Droste. Era outra vez soldado, um jovem soldado que, cheio de angústia, tropeçando nos campos de França.
- Como se chama esta aldeia? - preguntou ele. O piloto voltou-se e respondeu:
- Arraumière.
Era um nome desconhecido. "Nestes sítios há, por toda a parte, ulmeiros à margem das estradas".- pensou Droste, levado pelo sonho do passado -Por toda a parte se
batiam: por toda a parte os ciprestes cresciam sobre os cadáveres dos camaradas. O cheiro do incêndio era já mais forte e amargo. Alguns homens, munidos de lanternas,
estavam em volta da imensa carcassa destroçada. Metal, negro e torcido e alguns farrapos agitando-se no ar como se vivessem ainda.
Mariana pegou na mão de Droste e apertou-lha com força. Ela falava francês com os homens. Ele não compreendia. Os homens retiraram-se, um deles cumprimentou. Abriram
uma passagem para um sítio onde, coberto com uma lona, jazia no chão um montículo negro.
A inquietação de Droste transformou-se em horror; como dantes, quando viu continuar a correr diante de si o seu cabo, que tinha perdido metade da cabeça e
era apenas um crânio sangrento e quebrado por um estilhaço de granada. com o mesmo horror via agora o piloto inclinar-se e levantar uma ponta da lona. Agarrou-se
à mão de Mariana, mas esta também tremia. Deu uma ordem a si próprio e aproximou-se, à luz insuficiente da lanterna, que um dos homens segurava com o braço estendido.
Demorou-se a ver Evelina.
Uma Evelina desconhecida, incompreensível, ferida, espantosamente desfigurada. Ele avançava no nevoeiro, à sua volta havia nevoeiro, só a mão de Mariana estava ainda
ali. No entanto, Evelina estava ainda ali, mas Mariana tinha desaparecido.
Obrigou-se a ver. Recomeçou a respirar, pois não viu nada de horroroso. Um montão de ossos queimados, escuros como a própria terra e que, em certos sítios, brilhavam
fracamente, incorpóreos e leves. Nada tinham de comum com a morte, tal como as pedras, a terra não tem em si nada da morte. Nada tinham com Evelina.
"- Não se pode sequer enterrar Evelina!" - pensou ele.
O pior estava passado. O piloto estendeu outra vez a lona sobre os restos frágeis. Esses ossos eram tão finos! Isto podia ser Evelina; podia ser também um grande
pássaro ou animal delicado, um cabrito, um potro recém-nascido. Os homens continuavam silenciosos, com a cabeça inclinada para o peito. Depois, um deles baixou a
lanterna; Droste deu meia volta e voltou para o carro. Agora não era só a mão de Mariana que se encontrava ao pé dele, mas a própria Mariana reconfortando-o; ele
tremia, tiritava.
- Quantos foram queimados? -preguntou instantes mais tarde Droste, ao piloto que, com a sua lâmpada de algibeira, iluminava o caminho.
- Mais quatro. O meu amigo Trump e um casal de Varsóvia. Também um fabricante de Colónia, o
dr. von Oebhardt, a esse também o conheci. Andava bastante de avião.
- Gebhardt? -disse o Conselheiro - O dr. von Gebhardt?
- Foi pena. - disse o piloto - Tinha cinco filhos, mostrou-me uma vez o retrato. Dois já são grandes, isso é verdade. Também tem filhos?
- Tenho. - respondeu Droste, vagamente. Depois, continuou:
- Sim, tenho filhos.-Foi-lhe preciso fazer um esforço para se lembrar da existência dos filhos e pôs-se a sorrir. Eles apareciam reais e duráveis entre todos esses
fantasmas que o rodeavam.
- A bagagem de sua mulher está depositada na mairie. É por causa das formalidades que ainda falta preencher. Entregam-lha mais tarde. - disse o piloto.
Voltaram para o automóvel. O homem que esperava, pegou na mão de Droste e apertou-a, murmurando algumas palavras em francês.
- Obrigado,-respondeu Droste-obrigado. Merci. Agora já era noite.
- Quere regressar esta noite? - preguntou o piloto
- ou acha melhor passar aqui a noite e partir amanhã de manhã? Era melhor repousar.-acrescentou ele, lançando um olhar sobre o rosto de Droste.
- Passaremos cá a noite. - respondeu Mariana, em seu lugar.
Um grupo sombrio e cochichante de pessoas estava parado diante da porta da pequena estalagem. Recuaram e abriram alas para deixar passar Droste. Uma rapariga levou-o,
com Mariana, por um corredor, para um vasto quarto. Havia uma alcova e alguns móveis de mogno. Num armário estavam frascos cheios de compota. A mulher deixou Mariana
um momento só com Droste, depois entrou, após ter batido. Trazia uma botija de água quente, que pôs aos pés da cama. Depois de ter
trocado algumas palavras em francês com Mariana, ela deu a mão a Droste sem dizer nada e saiu.
Em pé, no meio do quarto, Droste olhava para o
armário.
- Verdadeiro Império. - disse ele - Como pode uma peça destas ter vindo perder-se para uma aldeia?
Mariana olhou o armário e sorriu. Esse sorriso ficava espectral no seu rosto pálido.
- É preciso que durmas agora. - disse ela. Automaticamente, ele respondeu:
- Não posso dormir.
- Vem. E começou a despi-lo como a uma criança. Isso foi-lhe desagradável: afastou-lhe as mãos e
despiu-se ele sozinho.
- Quanto veronal costumas tomar? - preguntou Mariana, dirigindo-se para a mesinha, entre duas janelas, na qual estava a garrafa de água.
- Não tomo veronal. - replicou ele, teimoso. só muito raramente.
Ela voltou com o copo de água no qual tinha deitado três comprimidos.
- Eu sei. - disse ela.
Ele deitou-se na cama e ela sentou-se ao lado dele, na borda.
- Fecha os olhos. - disse ela.
Ele obedeceu. Sentiu-se mais quente e melhor, desfazendo-se tudo à sua volta.
- Julgas que foi o dr. Qebhardt? - preguntou ele depois de um instante.
- Não. - disse Mariana.
Ela acariciou mais uma vez a mão de Droste, estendida sobre a coberta e acrescentou:
- Foi um dos americanos.
- Qual?
- Não sei.
Droste tentou lembrar-se dos americanos que tinham vindo ao clube, mas não tinha nenhum na memória.
Nada senão barulho, um barulho inofensivo e um pouco aborrecido que fazem as crianças alegres.
- Como saberá esse homem o que aconteceu? preguntou ele, ainda.
Mariana não respondeu imediatamente.
- Talvez nunca.-disse ela mais tarde-E depois, que importa? Precisas dormir agora.
Droste fechou os olhos. Era bom, o veronal. Mariana era boa. Evelina também fora boa. "Gosto de Evelina" - murmurou ele. Tinha, ao adormecer, a impressão que Evelina
estaria ali de novo na manhã seguinte.
- Sim, Puschel. - disse Mariana. Ele despertou outra vez um pouco.
- Aquilo não era nada de horrível. - disse ele Não se sabe o que é estar morta. Talvez seja agradável. Talvez ela tivesse de morrer cedo.
- Sim, Puschel. - repetiu Mariana.
- O pior, não é ela estar morta. O pior é que eu não saberei nunca, o que se passou com ela. - disse ele ainda.
Mas já sentia o sono estender as asas sobre ele e as aves de sonho vinham pairar sob o céu da alcova.
- Hás-de esquecer, Puschel, tens a tua profissão e os teus filhos, e. tantas outras coisas. importantes. . - ouviu ele Mariana dizer-Ainda não dormia.
- Não sabemos nada uns dos outros! - lamentou-se ele - É tudo.
Tornou a abrir os olhos e fitou Mariana.
- É tudo. - repetiu, num tom sério, meneando a cabeça.
- Não. Não sabemos nada uns dos outros. disse Mariana.
- Posso ter a tua mão ? - preguntou ele pouco depois.
Sentiu-se bem. Dormia já.
Durante um momento ainda ele imaginou que estava outra vez na guerra. Cheiro a uma aldeia francesa, a fonte sussurrava lá fora. Depois lembrou-se que a guerra tinha
acabado. Tudo passava, tudo. A mão de Mariana repousava na sua testa. Ela apagou a luz.
- Boa noite. - disse ela meigamente - Ela ficou ao pé dele.
Não Evelina.
Mariana.
Vicki Baum
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