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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ELOGIO DA VELHICE / Hermann Hesse
ELOGIO DA VELHICE / Hermann Hesse

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Surgem reunidos pela primeira vez neste volume os mias belos textos dos últimos anos de Hermannn Hesse. Cumprida boa parte da obra que o consagrou, Hesse dedica-se aqui ao último desafio da sua longa vida de escritor: aceitar graciosamente a velhice e a proximidade da morte.
Recordações íntimas, pequenos poemas em prosa e em verso, retratos, aforismos, breves tratados filosóficos: tal é a naturez variada dos textos aqui presentes.
O primeiro texto desta colectânea foi escrito aos 43 anos de idade e consiste em impressões acerca da Primavera, o renascer e a renovação da natureza, representadas por um homem a meio da sua vida, consciente da efemeridade e transitoriedade do mundo. A regeneração da vida que anualmente se repete não é vista como motivo de entristecimento, precisamente porque ele próprio não se encontra já nesse estádio da vida, e sim como uma oportunidade para proceder à transformação e à regeneração interior.
"À medida que conquistamos a maturidade tornamo-nos mais jovens. Comigo passa-se isso mesmo... pois mantive sempre o mesmo sentimento perante a vida desde os anos de rapaz; nunca deixei de encarar a minha vida adulta e o envelhecimento como uma espécie de comédia."

 

 


 

 


PASSEIO DE PRIMAVERA
As pequenas lágrimas claras envolvem de novo os resinosos rebentos das folhas e, iluminadas pelo sol, as primeiras borboletas com olhinhos de pavão abrem e fecham os seus delicados trajes de seda. A Semana Santa está à porta, repleta e recheada de sons, carregada de recordações das garridas cores dos ovos de Páscoa, de Jesus no jardim de Getsémani, de Jesus no Gólgota, da Paixão segundo São Mateus, das alegrias de outrora, das primeiras paixonetas, das primeiras melancolias da juventude. Anémonas balançam para a frente e para trás sobre o musgo, os dentes-de-leão resplandecem viçosos na orla dos ribeiros que atravessam os prados.
Caminhante solitário, não distingo entre os ímpetos e as pressões do meu interior e o concerto de elementos em crescimento fora de mim que com mil vozes me rodeiam. Venho da cidade, passado muito tempo estive novamente na companhia dos humanos, estive sentado num comboio, vi quadros e esculturas, escutei novos e maravilhosos Lieder de Othmar Schoeck. O vento alegre e ligeiro afaga-me o rosto, do mesmo modo que faz balançar as anémonas, e ao soprar sobre mim um tropel de recordações como um turbilhão de poeira, ressoa a lembrança da dor e da efemeridade directamente do sangue para a consciência. Pedra com que me deparo no meu caminho, és mais forte do que eu! Árvore no meio do campo, sobreviver-me-ás, e talvez também tu, pequeno ramo de framboesas, e tu também, anémona de laivos róseos.
Na duração de um sopro da respiração sinto, mais profundamente do que alguma vez o sentira, a fugacidade da minha forma e sinto-me atraído para a metamorfose, para as pedras, para a terra, para o ramo da framboesa, para a raiz da árvore. A minha sede agarra-se aos sinais do tempo que passa, à terra e à água e às folhas mortas. Amanhã, depois de amanhã, em breve, não tardarei a ser como tu, serei folha seca, serei terra, raiz, deixarei de escrever palavras no papel, deixarei de poder cheirar os magníficos goiveiros, já não trarei a conta do dentista no bolso, deixarei de ser importunado por perigosos funcionários que me pedem para apresentar a autorização de residência, nado qual nuvem no azul imenso, fluo qual vaga no ribeiro, broto qual folha no arbusto, caio no esquecimento, mergulho numa transformação mil vezes ansiada.
Dez e cem vezes hás-de tu ainda prender-me, encantar-me e aprisionar-me, mundo das palavras, mundo das opiniões, mundo dos seres humanos, mundo do gozo intenso e do medo febril. Mil vezes hás-de deleitar-me e assustar-me, com Lieder cantados ao piano, com jornais, telegramas, obituários, formulários de inscrição e toda a tua maravilhosa tralha, mundo repleto de gozo e medo, graciosa ópera cheia de absurdos melódicos! Mas nunca mais, assim queira Deus, te perderei, devoção pela efemeridade, paixão musical da transubstanciação, prontidão para morrer, vontade de renascer. A Páscoa voltará sempre, sempre o gozo se transformará em medo e o medo em redenção, sempre a canção da efemeridade me acompanhará sem pesar por onde eu seguir, afirmativamente, com plena prontidão, plena esperança.
1920
ESCUTAR

Um som tão suave, exalação tão nova
Percorre o dia que cinzento era
Tímido como o bater de asas de uma ave
Hesitante como o aroma da
Primavera.
Vinda de longe, da aurora da vida
Sopra a recordação que não se esquece,
Como chuva prateada sobre o mar
Faz estremecer e desaparece.
Entre o hoje e o ontem é grande a distância,
Próxima do há muito olvidado
Aí, diante de nós, qual jardim aberto
As épocas fantásticas, o tempo passado.
Talvez o meu bisavô esteja hoje desperto,
Depois de mil anos repousar,
De se aquecer com o meu sangue,
E através da minha voz falar.
Talvez lá fora esteja um mensageiro,
Que não tardará a entrar;
Talvez eu esteja de regresso a casa
Antes mesmo de o dia findar.

O FIM DO VERÃO

Esteve um Verão muito bonito e resplandecente aqui no Sul dos Alpes e de há duas semanas para cá que tenho sentido todos os dias um estranho medo que este chegue ao fim, medo esse que tomo como o mais forte e secreto condimento de tudo o que é belo. Receio sobretudo o mais ligeiro indício de uma trovoada, já que logo a partir de meados de Agosto qualquer trovoada pode começar a lançar a confusão, pode durar dias a fio, e lá se acaba o Verão, mesmo que depois o tempo ainda volte a melhorar. Precisamente aqui no Sul a regra é quase sempre ser uma dessas trovoadas a dar o golpe de misericórdia ao pino do Verão, de tal modo que este acaba por morrer ali, apaga-se após um rápido e ardente estertor. Depois, quando também as violentas e demoradas convulsões de uma tal trovoada deixam de se fazer sentir no céu, quando as centenas de relâmpagos, os infindáveis concertos de trovões, a louca torrente das tépidas chuvas passa a correr e se dissipa, uma bela manhã ou tarde, de entre as nuvens que desvanecem, espreita um céu fresco e suave, de uma cor alegre, repleta de Outono, e as sombras na paisagem tornam-se menos nítidas e mais escuras, perdem um pouco de cor mas ganham em contornos, como um homem de meia-idade, que ainda ontem parecia robusto e cheio de vigor e frescura, mas que após uma doença, um período de sofrimento ou uma grande desilusão, começa a ganhar pequenas rugas no rosto e em cada uma delas um pequeno indício da trovoada. É terrível esta última trovoada de Verão e medonha a agonia do Verão, a enorme relutância em se entregar à morte, a louca e dolorosa raiva que exprime, o modo como se debate e esperneia, porém tudo é debalde e após alguma fúria entrega-se sem forças e apaga-se.
Este ano o pino do Verão não parece estar destinado a este fim dramático e rude (muito embora ele ainda seja bem possível), parece antes querer desta vez entregar-se a uma morte semelhante à da velhice, suave e vagarosa. Nada é tão característico destes dias, como nenhum outro indício sinto esta singular forma de o Verão acabar, infinitamente bela, de modo tão íntimo como ao cair da noite, ao regressar a casa vindo de um passeio ou de uma ceia campestre: pão, queijo e vinho numa das umbrosas adegas da região. Notável nestas noites é o calor que permanece, a lenta e vagarosa redução da temperatura, o orvalho nocturno que se vai condensando e a calma e irremediavelmente dócil aceitação da derrota e consequente fuga por parte do Verão. Em mil ligeiras vagas apercebemo-nos deste combate, quando passamos duas ou três horas fora de casa depois de o Sol se pôr. Ainda então em qualquer floresta densa, em qualquer silvado, em qualquer desfiladeiro o calor do dia se mantém preso, escondido, vai-se mantendo vivo durante toda a noite, procura cada espaço livre, cada sítio abrigado do vento. Nessas horas a floresta é um verdadeiro acumulador de calor, assolada de todos os lados pelo frio da noite, e não apenas cada depressão do terreno, cada curso de cada ribeiro, não, cada diferente tipo e densidade de arborização se torna patente ao caminhante, nítida e infinitamente evidente, em cada uma das gradações do calor. Do mesmo modo que para um esquiador, ao atravessar determinada região, se torna evidente toda a estrutura do terreno, cada elevação e cada depressão, cada nervura que percorre a paisagem montanhosa por onde passa é absorvida de modo puramente físico e sensorial pelos seus joelhos baloiçantes, a ponto de, após algum treino, ser capaz de descrever por intermédio da sensação transmitida aos joelhos durante a descida toda a configuração do declive de uma colina, do mesmo modo sou eu capaz de aqui, na profunda escuridão de uma noite de novilúnio, ler uma imagem da paisagem a partir das suaves vagas de calor que desta se soltam. Penetro numa floresta, dados três passos sou recebido por uma torrente de calor que aumenta de súbito, como se procedente de um forno que arde suavemente, vou sentindo este calor aumentar e diminuir à medida que a floresta se adensa ou se rarefaz. Cada curso de cada ribeiro que já secou, onde com efeito já não corre água, mas em que ainda se conserva um ligeiro vestígio de humidade no solo, anuncia a sua presença pela frescura que irradia. Ao longo das estações do ano, é certo que as temperaturas de diversos pontos de uma dada região variam, mas só nestes dias de transição entre o Verão e os primeiros vestígios do Outono é que se sente essas variações de modo tão notório. Do mesmo modo que no Invemo a visão dos tons avermelhados e róseos das montanhas despidas, que na Primavera a sensação da pujante humidade do ar e o crescimento das plantas, que nos primeiros tempos do Verão a visão do tropel nocturno dos pirilampos, também perto do fim do Verão estes curiosos passeios nocturnos por entre as vagas de calor de diferentes intensidades se contam entre as experiências sensoriais mais inesquecíveis, que efeito mais forte têm sobre a disposição e o ânimo para viver.
Ontem à noite, quando regressava a casa de um jantar numa adega na floresta, no sítio onde o desfiladeiro desemboca no cemitério de Sant'Abbondio, como a fresca e húmida brisa dos campos e dos vales em torno do lago veio ao meu encontro! Como o agradável e aconchegante calor da flo-resta se deixou ficar para trás e se manteve timidamente escondido sob as acácias, os castanheiros e os amieiros! Como a floresta se defendia do Outono, como o Verão lutava contra a sentença de morte que o condena! Assim se defende o ser humano nos anos em que o seu Verão cede o lugar à estação seguinte, contra o definhamento e a morte, contra a penetrante frieza do cosmos, contra a penetrante frieza no próprio sangue. E com renovada cordialidade entrega-se aos pequenosjogos e sons da vida, às mil graciosas belezas da sua superfície, aos suaves aguaceiros de cor, às furtivas sombras das nuvens, agarra-se sorridente e angustiado às coisas transitórias, assiste à sua própria morte, ganha daí medo e retira daí consolo e, receoso, aprende a arte de poder morrer. É aqui que se traça a fronteira entre a juventude e a velhice. Certas pessoas cruzaram já essa fronteira aos 40 anos ou até mais cedo, outros há porém que só se dão conta dela aos 50 ou aos 60 anos. Mas é sempre assim: em vez da arte de gozar a vida, é agora esta outra, a de poder morrer, que começa a interessar-nos, em vez da formação e aperfeiçoamento da nossa personalidade é agora a sua degradação e desintegração que nos preocupa e de repente, quase de um dia para o outro, começamos a sentir-nos velhos, tomamos as ideias, os interesses e os sentimentos da juventude como estranhos. É nestes dias de transição que espectáculos pequenos e singelos, como o do Verão que se vai apagando e morrendo, são capazes de nos tocar e comover, preencher-nos o coração de espanto e temor, fazer-nos estremecer e sorrir.
A floresta não tardará a deixar de exibir o verde que ainda ontem tinha, as folhas de videira amarelecem, abaixo delas as bagas começam já a ganhar tons azuis e purpúreos. Ao entardecer os montes ostentam tons de violeta, o céu fica da cor da esmeralda, transportando-nos cromaticamente para o Outono. E depois, o quê? Depois disso acabar-se-ão os fins de tarde nas grutas, as tardes de banhos no lago de Agno, as tardes de sestas e de pintura, sentados sob os castanheiros. Bem-aventurado aquele que pode regressar a casa, a um trabalho de que gosta e que é razoável, para as pessoas que ama, para uma qualquer terra que chame sua! Quem não tem isto, aquele para quem estas ilusões se partiram em mil pedaços, rasteja então diante do frio que se aproxima, refugia-se na cama ou foge para outras paragens, contempla como viajante aqui e ali as outras pessoas, as que têm pátria e vivem em comunidade, que acreditam nas respectivas profissões e actividades, fica a vê-los, como trabalham, como se esforçam e se cansam, e como, para lá de toda a sua sã crença e todo o seu esforço, a pouco e pouco e sem se dar por elas, as nuvens da guerra que está próxima, da revolução e do declínio, se acercam, apenas visíveis aos ociosos, aos descrentes e aos desiludidos - aos envelhecidos, que colocaram a sua mesquinha predilecção de velhos por realidades amargas no lugar do optimismo perdido. Nós, os velhos, ficamos a ver como sob o agitar das bandeiras dos optimistas o mundo vai, de dia para dia, ficando mais perfeito, como cada nação se vai tornando cada vez mais à imagem de Deus, vai cometendo menos erros, se vai sentindo cada vez mais justifcada a exercer actos de violência e de agressão, como na arte, no desporto e na ciência as novas modas e novas estrelas se impõem, como os seus nomes brilham, como os superlativos parecem gotejar das páginas dos jornais, e como tudo fica incandescente de vida, de calor, de satisfação, de uma impetuosa vontade de viver, de uma arrebatada e obstinada recusa em morrer. Vaga após vaga, inflama-se como as vagas de calor na flo-resta estival de Tessin. Eterno e grandioso é o espectáculo da vida, desprovido de conteúdo mas em eterno movimento, em eterna resistência à morte.
Ainda nos aguardam algumas coisas boas antes de o Inverno se voltar a instalar definitivamente. Os cachos de uvas azuladas ficaram doces e tenros, os jovens rapazes cantarão ao colhê-los, ao passo que as cabeças das raparigas, envoltas em lenços coloridos, aparecerão entre as folhas de videira como belas flores campestres. Ainda nos aguardam algumas coisas boas, e algumas delas que hoje nos parecem amargas afigurar-se-nos-ão doces, uma vez que tenhamos aprendido melhor a arte de morrer. Entretanto esperamos que as uvas amadureçam, que as castanhas caiam, fazemos votos de poder desfrutar o próximo plenilúnio, vamos ficando visivelmente velhos, é certo, mas ainda assim olhamos a morte bem de longe. De acordo com as palavras de um poeta:

Como é magnífico para os velhos
Um tinto da Burgúndia, o lume de um fogão,
E, por fim, uma morte suave -
Mas mais tarde, hoje ainda não!
1926

FICAR VELHO
Todas as futilidades que a juventude preza
Também por mim foram ambicionadas,
Em primeiro lugar as mulheres belas
Depois caracóis, gravatas, elmos e espadas.
Mas só agora vejo com clareza,
Agora que para mim, já velho,
Tudo isso inatingível se tornou,
Só agora vejo com clareza,
Como era sensata essa ambição de outrora.
É certo que depressa desaparecerão
As fitas, os caracóis e toda a magia;
Mas o que de resto conquistei,
Sabedoria, virtude, meias quentinhas
Ah, também isso em breve se desvanecerá
E sobre a terra o frio reinará.
Como é magnífico para os velhos
Um tinto da Burgúndia, o lume de um fogão,
E, por flm, uma morte suave -
Mas mais tarde, hoje ainda não!
NOS ÚLTIMOS DIAS DE
VERÃO
Dia após dia, ainda o Verão tardio nos vai concedendo
A graça de um doce calor. Sobre as umbelas das flores
Paira por aqui e por ali, com um bater de asas cansado,
Uma borboleta que cintila como veludo dourado.
As noites e as manhãs exalam um vapor húmido,
Neblinas rarefeitas, uma humidade ainda morna.
Solta-se da amoreira, com o súbito brilho de um clarão,
Paira, grande e amarela, uma folha sobre o azul suave.
Um lagarto descansa sobre a pedra quente do sol,
Cachos de uvas escondem-se à sombra da folhagem,
O mundo parece enfeitiçado, como que encantado,
Adormecido, a sonhar, insta-te a acordá-lo.
Assim embalada, ao longo de muitos compassos,
A música entorpece, solidifica numa áurea eternidade,
Até que desperta e a custo se furta ao feitiço,
Regressa ao presente, ao devir.
Nós, os velhos, diante da latada colhemos os frutos,
Aquecemos as mãos bronzeadas do sol do Verão,
O dia continua a sorrir, ainda não terminou,
Mantêm-se o hoje e o aqui, lisonjeantes.
AQUISTA

Mal tinha o meu comboio chegado às termas, mal tinha eu descido com alguma dificuldade os degraus da carruagem, e já se notava o encanto das termas. Parado no húmido chão de cimento da plataforma, a ver se descobria o empregado do hotel, vi saírem do mesmo comboio em que eu tinha viajado três ou quatro colegas, sofrendo de ciática, nitidamente reconhecíveis como tal pelo puxar angustiado das nádegas, pela maneira pouco segura de pôr o pé no chão e pela mímica compungida e desamparada que acompanhava os seus cuidadosos movimentos. Cada um deles tinha, de facto, a sua especialidade, a sua própria maneira de sofrer, e daí também o seu modo característico de andar, de hesitar, de lançar as pernas, de coxear, e cada um tinha também a sua mímica própria, mas no entanto, o que havia de comum sobrepu-nha-se a tudo, reconheci-os a todos logo à primeira vista como doentes de ciática, como irmãos, como colegas. Quem conhecer os jogos do nervo ciático, não através de compêndios, mas pela sua própria experiência, que os médicos denominam de "sensação subjectiva", entende perfeitamente. Fiquei imediatamente parado a observar estes estigmatizados. E vejam lá, todos os três ou quatro faziam piores caretas do que eu, apoiavam-se mais pesadamente nas bengalas, levantavam trémulos as pernas, punham os pés no chão mais angustiados e com menos vontade do que eu, todos eles sofriam mais, eram mais coitados, mais doentes e mais dignos de dó do que eu, e isto fez-me extremamente bem e, durante o tempo que passei em tratamento nas termas, isto foi para mim uma consolação infinita e sempre recorrente: o facto de em redor haver gente a coxear, gente a arrastar-se, gente a suspirar, gente a ser transportada em cadeiras de rodas, que estavam muito mais doentes do que eu, que tinham muito menos razão para terem boa disposição e esperança do que eu! Tinha portanto descoberto logo no primeiro instante um dos grandes mistérios e encantos de todas as termas e foi com verdadeiro prazer que sorvi a minha descoberta: a sociedade da dor, a socios habere malorum.
E quando saí da plataforma e me entreguei de boa mente a uma rua que descia suavemente para o vale em direcção às termas, então cada passo confirmou e aumentou a valiosa experiência: por todo o lado havia aquistas a andar devagari-nho, havia os que estavam sentados nos bancos pintados de verde, com ar cansado e um pouco curvados, e os que passavam em grupo a coxear e a falar uns com os outros. Passou uma mulher numa cadeira de rodas, com um sorriso cansado e uma flor a murchar na mão doente, com a enfermeira viçosa a trotar atrás dela, cheia de energia. Um senhor de idade saiu de uma das lojas em que os doentes reumáticos costumavam comprar postais ilustrados, cinzeiros e pisa-papéis (precisam de muitos e eu nunca consegui descobrir a razão) - e este senhor de idade que saiu da loja precisou de um minuto para descer cada um dos degraus e olhava para a rua, que se estendia à sua frente, como um homem exausto e tornado inseguro olha para uma grande tarefa que tem pela frente. Uma pessoa ainda nova, com um boné de militar verde-cinza na cabeça de cabelo à escovinha, avançava com duas bengalas, com força mas cansado. Oh, só estas bengalas, que se vêem por todo o lado, estas malditas e sérias bengalas de doentes que acabam em baixo em grandes virolas de borracha e que se pegam ao asfalto como sanguessugas! Também eu, de facto, andava com uma bengala, uma elegante bengala de Malaca, que me ajudava imenso, porque só por necessidade é que era capaz de andar sem ela e nunca ninguém me tinha visto andar com uma dessas lamentáveis bengalas de borracha! Não, era claro e devia logo dar nas vistas a toda a gente a maneira rápida e elegante com que eu descia esta rua agradável, como fazia pouco uso da bengala e como brincava com ela, que não era mais do que um puro ornamento, como eram extremamente leves e inofensivos em mim os sinais de padecer do nervo ciático, o angustiado levantar da coxa, que apenas se pressentia, apenas se esboçava fugazmente, em resumo, como eu fazia este caminho direito e como deve ser, como parecia jovem e saudável, comparado com estes irmãos e irmãs mais doentes, mais lastimáveis, mais velhos, cujas enfermidades se exibiam ao olhar tão às claras, tão abertamente, tão inexoravelmente! Suguei reconhecimento, sorvi afirmação de cada passo, sentia-me já quase bem, de qualquer modo infinitamente menos doente do que todas estas pobres pessoas. Sim, se estes semicoxos e mancos ainda tinham esperanças na cura, estas pessoas com bengalas de borracha, se as termas também podiam aliviar esta gente, então os meus pequeninos sofrimentos que ainda se encontravam em fase inicial iriam desaparecer como a neve ao vento quente do Sul, então o médico devia ver em mim um exemplar maravilhoso, um fenómeno altamente gratificante, um pequeno milagre de cura.
Ora bem, gozei esta felicidade do primeiro dia em toda a plenitude, entreguei-me a orgias de auto-afirma-ção naïve, e isso fez-me bem. Desci em ar de passeio a rua, aquela rua tão agradável, tão lisonjeira e cómoda, pela qual os doentes que chegam são levados da estação para as instalações termais e que numa suave agitação, em declive uniforme conduz às velhas termas e, lá em baixo, semelhante a um braço de rio, se perde nas entradas do hotel; ia atraído pelas figuras que surgiam por todo o lado dos meus colegas aquistas, lisonjeado por ver aqueles aleijões, levado a uma compaixão alegre, a uma auto-satisfação totalmente participativa por todas as cadeiras de rodas que encontrava. Cheio de bons prenúncios e de alegres esperanças aproximei-me do Heiligenhof, onde pensava hospedar-me. Deveria ficar aqui umas três ou quatro semanas, teria de tomar os banhos diariamente, sempre que possível passear, manter-me afastado de enervamentos e de preocupações. Seria por vezes monótono, não haveria de faltar tédio, porque o regulamento aqui era o contrário da vida intensa, e para mim, velho solitário, que odeio do fundo da minha alma toda a vida de hotel e de rebanho, iriam surgir alguns obstáculos e haveria que ultrapassar sérios sacrifícios. Mas sem dúvida esta vida nova, que me era totalmente desconhecida, apesar dos traços burgueses e um pouco insípidos, have-ria de me proporcionar experiências alegres e interessantes - não estaria eu de facto profundamente necessitado de, após anos de uma vida imersa em estudo, pacificamente anárquica, de isolamento rústico, me encontrar durante um certo tempo de novo entre os homens? E, o que é fundamental: para lá dos obstáculos, para lá destas semanas de termas que já tiveram o seu início, ficava o dia em que eu subiria vigorosamente esta mesma rua, deixaria o hotel em que tinha rejuvenescido e em que me tinha curado, com joelhos e ancas elásticas, me iria despedir destas termas e, dançando, seguiria pela bonita rua que vai dar à estação. (1) {(1) Tradução de Maria Adélia Silva Melo, retirada de Hermann Hesse, Aquista, Difel, Lisboa, 1997, págs. 13-16, 18-19. (N do T.)}

ENSINAMENTO

De uma maneira ou de outra, meu caro rapaz,
Todas as palavras humanas não passam de logros.
A bem dizer, probos e honestos apenas somos
Quando de fraldas e, mais tarde, quando enterrados.
Deitamo-nos então a descansar junto dos nossos pais,
Somos enfim sábios e repletos de inabalável lucidez,
Os ossos desnudados matraqueiam a verdade,
Muitos mentiriam de novo e voltariam a viver.

(A DÉCADA)

A década que medeia entre os 40 e os 50 anos é para as pessoas temperamentais, para os artistas, sempre uma época crítica, de inquietação e frequente insatisfação, uma altura em que é comum haver dificuldades em lidar com a vida e com nós mesmos. Depois disso, sobrevêm tempos de acalmia. Pude experimentar isto não só em mim mesmo, como também o observei em muitos outros. Por muito bela que seja a juventude, uma época de efervescência e de combates, também o envelhecer e o amadurecimento possuem a sua beleza própria e proporcionam felicidade.
i
Com 50 anos, o ser humano começa a pôr de lado certas criancices como a obtenção de fama, reputação e estatuto, passando a olhar retrospectiva e desapaixonadamente a sua vida passada. Aprende a esperar, a calar-se, a escutar; ainda que porventura alguma destas virtudes venha a ser corrompida por quaisquer debilidades ou por algumas fraquezas, nunca deixará de considerar proveitoso este processo.

O HOMEM DE CINQUENTA ANOS
Do berço ao esquife
distam cinquenta anos,
depois começa a morte.
Tornamo-nos imbecis, embrutecemos,
tornamo-nos labregos, desleixamo-nos
e os cabelos vão para o diabo.
Também os dentes damos por perdidos
e em vez de, em deleite,
apertarmos uma moça contra o peito,
lemos um livro de Goethe.
Mas uma vez mais, antes do fim,
quero ter uma dessas pequenas
de olhos claros e caracóis encrespados,
tomá-la nas minhas mãos,
beijar-lhe boca, seios e face,
despir-lhe saia e calci-nhas.
E depois, em nome de Deus,
A morte pode levar-me. Ámen.

[.MORRE-SE TÃO LENTAMENTE E AOS POUCOS/]

Morre-se tão lentamente e aos poucos: cada dente, cada músculo, cada osso despede-se individualmente, como se fosse nosso amigo íntimo.
i

A juventude escapa-se,
Para longe a saúde vai-se.
E eis que a reflexão a tropel
Assume o principal papel.
i

Anseio pela morte, mas não por uma partida prematura e antecipada; com toda a ânsia por maturidade e sabedoria que sinto, vejo que estou ainda profunda e seriamente apaixonado pela doce e temperamental insensatez da vida. Queremos ter tudo junto, uma bela sabedoria e uma doce ignorância, meu querido amigo! Haveremos ainda com frequência de querer caminhar juntos, de rolar pelo chão um com o outro, ambas as coisas devem com certeza ser deliciosas.
***
Costumo ficar espantado com a grande tenacidade com que a nossa natureza se prende à vida. É com um gesto de submissão, ainda que sem qualquer prazer, que nos habituamos a situações que ainda ontem se nos afigurariam totalmente insuportáveis.
***
Conseguir lidar com dores físicas, sobretudo quando estas se prolongam pelo tempo, é com certeza das coisas mais difíceis. As naturezas heróicas defendem-se contra a dor, tentam negá-la e cerram os dentes, bem ao jeito dos estóicos romanos, mas por todo o encanto que esta atitude tenha, temos tendência para duvidar da possibilidade real de superar a dor. Pela parte que me toca, sempre lidei melhor com as dores fortes ao não tentar combatê-las, mas sim entregando-me a elas, como se de uma embriaguez ou uma aventura se tratasse.

ENVELHECER

Envelhecer é assim mesmo: o que outrora alegria foi
É hoje fadiga, a fonte deixa de brotar e fica turva,
A própria dor está desprovida das suas nuances Consola-nos a ideia de que em breve tudo acabará.
Aquilo que outrora combatemos com veemência,
Compromissos, fardos e obrigações impostas,
Converteu-se em refúgio e consolo;
Gostaríamos cada dia de cumprir uma tarefa.
Mas também esse consolo não leva longe,
A alma anseia por voos alados.
Bem para lá do Eu e do Tempo, pressente a morte,
Inspira-a, em ávidos influxos, profundamente.

REENCONTRO COM NINA
Quando, depois de meses de ausência das minhas que-ridas colinas de Tessin, aí regresso, sou sempre surpreendido pela sua beleza e fico comovido. Não me sinto só como se regressasse a casa, tenho primeiro de ser transplantado e de deixar crescer novas raízes, tenho de restabelecer laços, retomar hábitos e, aqui e ali, reencontrar o contacto perdido com o passado e a terra que me adoptou antes de poder voltar a saborear a vida campestre das terras do Sul. Não é só desfazer as malas, separar as roupas estivais e ir buscar as botas rústicas, há também que certificarmo-nos se durante o Inverno não choveu no quarto de dormir, se os vizinhos ainda estão todos vivos, há que ver o que se passou por estas bandas ao longo de meio ano, o que por cá se alterou, quantos passos avançou o processo que dita que paulatinamente também estas paragens adoradas vão sendo despidas da sua inocência preservada durante tanto tempo e agraciadas com as bênçãos da civilização. Com efeito, no desfiladeiro mais abaixo há toda uma vertente que viu as árvores que a cobriam ser abatidas para aí ser construída uma villa; numa dada curva do seu percurso, a nossa estrada foi alargada, tendo como consequência o fim de um encantador e velho jardim que ali havia. Acabaram com as últimas mala-postas desta nossa região e substituíram-nas por automóveis, só que os carros são demasiado grandes para as estreitas e velhas ruas por onde têm de circular. Quer isso dizer que não mais verei o velho Piero com os seus dois cavalos pujantes, vestido no seu uniforme dos correios azul e montado na diligência amarela, a chocalhar monte abaixo, não mais poderei desencaminhá-lo do seu traba-lho para vir apreciar uma pausa não regulamentar e uma taça de vinho no Grotto del Pace. Ah, nunca mais poderei voltar a sentar-me acima de Liguno, junto à orla da floresta, o meu local favo-rito para pintar: um qualquer estrangeiro comprou os campos e o bosque em redor e mandou construir uma cerca de arame, para além de que onde costumavam estar aqueles belos freixos irá agora ser construída a sua garagem.
Apesar de tudo, mantêm-se verdes as faixas de erva debaixo das videiras, sempre frescas, e sob as folhas secas agitam-se, como sempre, os lagartos verde-esmeralda, todo o bosque enche-se dos tons brancos e azulados das pervincas, das anémonas e das flores do morangueiro; todo o bosque verdejante resplandece e nele cintilam os reflexos frescos e suaves do lago...
Ainda assim tenho todo um Verão e um Outono diante de mim, espero poder voltar a passar aqui uns quantos meses agradáveis, longos dias despreocupados ao ar livre, poder novamente libertar-me um pouco da gota, brincar com as minhas tintas e viver a vida de modo mais alegre e inocente do que aquele que o Inverno e as grandes cidades possibilitam. Os anos passam rapidamente - as crianças descalças que há anos, ao entrar pela primeira vez nesta aldeia, vi a dirigir-se para a escola, estão já casadas ou sentadas, em Lugano ou Milão, em frente a máquinas de escrever ou atrás de balcões de lojas, enquanto os velhos de outrora, os anciãos da aldeia, entretanto já morreram.
De repente lembro-me de Nina - será que ela ainda está viva? Meu Deus, que eu só agora me tenha lembrado dela...! A Nina é minha amiga, uma das poucas boas amigas que tenho por estas bandas. Tem 78 anos de idade e vive numa das mais remotas aldeolas da região, um sítio onde os tempos mo-dernos ainda não deixaram a sua marca. O caminho que leva até essa aldeia é íngreme e difícil, tenho de descer algumas centenas de metros do monte à torreira do sol e voltar a subi-lo mais à frente. Ponho-me, porém, imediatamente a caminho e começo por percorrer os vinhedos e descer o bosque, monte abaixo, atravesso depois o vale estreito e verdejante a direito, fazendo-me de seguida à subida íngreme, através de encostas que no Verão se enchem de cíclames e no Inverno de heléboros. Pergunto à primeira criança que vejo na aldeia o que é feito da velha Nina. É-me contado que esta ainda tem por hábito encostar-se à tardinha ao muro da igreja a tomar rapé. Satisfeito, prossigo a minha caminhada: quer dizer que continua viva e de saúde, ainda não a perdi, receber-me-á com simpatia e, se é certo que se queixará e resmungará um pouco, não deixará de me dar o exemplo acabado de um ser humano velho e solitário que suporta a sua idade, a gota, a pobreza e a solidão com tenacidade e grande sentido de humor, não fazendo perante as coisas do mundo quaisquer vénias ou pantominices; ao invés disso, ri-se delas e faz questão de até ao último momento não consultar nem médico nem padre.
Saio da estrada encandeante e chego-me perto da capela, imersa na sombra projectada pelo antiquíssimo e obscuro muro que ali surge entalado e hesitante sobre o rochedo no cume e não conhece outro tempo que não este, outro hoje que não o do Sol que sempre regressa, nenhuma mudança que não a das estações. Década após década, século atrás de século. Algum dia também estes muros ruirão, estes belos, sombrios e insalubres recantos serão remodelados e devidamente dotados de cimento, chapa, águas correntes, higiene, gramofones e outros bens da sociedade da cultura. Sobre os restos mortais de Nina erguer-se-á um hotel com a ementa em francês ou um qualquer berlinense decidirá construir aí a sua villa de veraneio. Hoje, porém, ainda se mantém de pé e eu trepo a alta soleira de pedra e os degraus já tortos e gastos que sobem para a cozinha da minha amiga Nina. Sou aí recebido pelo eterno aroma de pedra e frescura e fuligem e café, bem como pela intensa fragrância do fumo de madeira verde. Sobre um banco baixinho colocado no chão de pedra diante da enorme chaminé está sentada a velha Nina, vigia o lume, e dos seus olhos soltam-se lágrimas devido ao fumo. Os seus dedos deformados pela artrite vão acrescentando ao lume pedaços de madeira.
- Olá, Nina, que Deus a guarde! Ainda está lembrada de mim?
- Oh, signor poeta, caro amico, son contenta di rivederla!
Levanta-se, muito embora eu queira evitá-lo, mas ela ergue-se, muito a custo e demoradamente, pois não é fácil com as articulações dos membros rígidas como estão. Na trémula mão esquerda segura a caixa de madeira do rapé, em redor do peito e das costas traz um xaile de lã. Do velho e formoso rosto de ave de rapina espreitam, simultaneamente tristonhos e trocistas, os seus olhos penetrantes e judiciosos.
Olha-me de um modo trocista e como minha camarada, conhece o Lobo das Estepes, ela sabe que embora seja um artista, um signore, nada de muito especial se passa comigo que não se passe com ela. Sabe que ando a vaguear sozinho ali por Tessin e que fui tão pouco bafejado pela fortuna como ela própria, muito embora não haja dúvida que qualquer de nós bastante o desejaria. É uma pena, Nina, que tivesses nascido quarenta anos demasiado cedo para mim. Que pena! Poderás não parecer bela aos olhos de alguns, muitos considerar-te-ão antes uma velha bruxa, com olhos um pouco raiados de sangue, os membros tortos, os dedos sujos e rapé no nariz. Mas que nariz nesse pregueado rosto de ave de rapina! Que postura, logo que ela se levanta e em toda a sua magra altura se endireita! Como é esperto e orgulhoso o teu olhar, parece lançar desprezo, porém não é maldoso; como é belo o desenho dos teus olhos livres e intrépidos! Como deves tu, velha Nina, ter sido uma bela menina, que mulher bonita, temerária e garbosa terás sido! Nina faz-me lembrar o Verão passado, os meus amigos, a minha irmã, a minha amada, conhece-os a todos, deita entretanto uma espreitadela à panela, vê que a água está a ferver, despeja café já moído da gaveta do moinho de café. Serve-me uma chávena, oferece-me rapé para tomar e ficamos agora sentados em frente à lareira, a beber café, a cuspir para o fogo, contamos histórias, fazemos perguntas, a pouco e pouco vamos ficando calados, queixamo-nos da gota, do Inverno, das incertezas da vida.
- A gota! É uma puta, uma puta maldita! Sporca puttana! O Diabo que a carregue! Que arda no Inferno. Mas bem, deixemo-nos de injúrias. Estou muito satisfeita por ter vindo, muito satisfeita mesmo. Vamos ficar bons amigos. Sabe, quando vamos para velhos, já não há muita gente que se lembre de vir visitar-nos. Tenho agora setenta e oito anos.
Levanta-se novamente a custo, dirige-se para a sala ao lado, para o espelho onde as fotografias já desbotadas estão presas. Percebo agora que está à procura de um presente para me oferecer. Não encontra nada que lhe agrade e acaba por me estender uma das fotografias mais antigas. Ao recusar-me a levá-la, obriga-me a pelo menos tomar mais algum rapé.
A cozinha enfumarada da minha amiga não é muito asseada nem particularmente higiénica, o chão está cheio de cuspidelas e a palha da cadeira está partida e a cair, pelo que poucos de entre os leitores gostariam de beber desta cafeteira, deste velho recipiente de lata, enegrecido pela fuligem e acinzentado com os restos de cinza, em cujas bordas o café seco formou já uma firme e grossa crosta. Vivemos aqui longe do mundo dos dias de hoje, longe dos tempos actuais, um pouco andrajosos e esfarrapados, é certo, em condições algo decadentes e nada higiénicas, mas em compensação bem perto dos bosques e dos montes, próximo das cabras e das galinhas (que se passeiam tagarelantes pela cozinha), por entre bruxas e histórias de encantar. O café daquele recipiente de lata todo torcido sabe maravilhosamente, um café forte e muito escuro com um suave e aromático indício do sabor acre do fumo das madeiras, as nossas reuniões acompanhadas de café, e bem assim as imprecações e palavras carinhosas e o velho e destemido rosto de Nina são-me infinitamente mais caros que doze convites para chás seguidos de dança, que doze serões literários nos mais afamados círculos intelectuais - muito embora não possa negar o valor relativo destes eventos mais elegantes.
Lá fora o Sol põe-se, o gato de Nina entra na sala e salta-lhe para o colo. O brilho quente do fogo reflecte-se nas paredes de pedra caiadas. Como deve ser tremendamente frio o Inverno nestas grutas de pedra altas e vazias, nada mais há no seu interior para além de um pequeno lume trémulo na lareira e da pequena e solitária mulher com artrites nas articulações, sem mais que lhe faça companhia para além de um gato e três galinhas.
O gato desce novamente do seu colo. Nina levanta-se, na penumbra afigura-se desmesurada e espectral, com a sua figura magra e ossuda de cabelos brancos e com o olhar austero de ave de rapina. Não me deixa partir, pois convidou-me para ficar mais uma hora por ali com ela, e prepara-se para ir buscar pão e vinho.
1927

AO ENVELHECER

Ser jovem e fazer o bem é fácil,
Manter-se longe de tudo o que é mesquinho.
Sorrir, porém, quando o coração custa a bater,
Isso sim, é algo que é preciso aprender.
Aquele que o consegue jamais será velho,
Nele a chama mantém-se sempre bem viva,
E com a força do seu pulso consegue dobrar,
Consegue unir os pólos do mundo.
Se vemos a morte ali à espreita,
Não nos fiquemos parados a aguardá-la.
Melhor será escapar-nos dela,
Melhor será afugentá-la.
A morte não está só aqui ou ali,
Mas antes por toda a parte.
Está em ti e está em mim
Assim que atraiçoamos a vida.

(PRECISAMENTE AS PESSOAS QUE DURANTE A JUVENTUDE)
Precisamente as pessoas que durante a juventude temos dificuldade em imaginar velhas são aquelas que acabam por se tornar os melhores velhos.
***
Que os jovens gostem de se exibir um pouco e que, ao fazê-lo, ousem experimentar coisas que os velhos não poderão já acompanhar não é, afinal de contas, de modo algum insuportável. Mal fica a coisa no desditoso momento em que o velho, a parte mais fraca, mais conservadora, o mais careca, o partidário das coisas à moda antiga, aplica tudo à sua própria pessoa e diz para si mesmo: "Com certeza estão a fazer isto só para me aborrecer!" A partir desse momento a situação torna-se insustentável e aquele que assim pensar está perdido.
***
A tendência para colocar uma ênfase especial ou organizar a juventude nunca me foi cara; para mim, a noção de pessoa velha ou nova só se aplica às pessoas vulgares. Todos os seres humanos mais dotados e mais diferenciados são ora velhos ora novos, do mesmo modo que ora são tristes ora alegres. É coisa dos mais velhos lidar mais livre, mais jovialmente, com maior experiência e benevolência com a própria capacidade de amar do que os jovens. Os mais idosos apressam-se sempre a achar os jovens precoces demasiado velhos para a idade, mas são eles próprios que gostam de imitar os comportamentos e maneiras da juventude, eles próprios são fanáticos, injustos, julgam-se detentores de toda a verdade e sentem-se facilmente ofendidos. A idade não é pior que a juventude, do mesmo modo que Lao-Tsé não é pior que Buda e o azul não é pior que o vermelho. A idade só perde valor quando quer fingir ser juventude.
***
Algo que desde há décadas me causa repulsa é, desde logo, a imbecil adoração da juventude e da jovialidade, tal como este fenómeno floresce na América, para além do facto de se estabelecer a juventude como uma condição social, uma classe, um "movimento".
***
Sou um velho e gosto da juventude, mas estaria a mentir se dissesse que ela me interessa sobremaneira. Para as pessoas idosas, sobretudo em tempos de prova-ção como estes, apenas uma questão se revela revestida de interesse: a questão do espírito, da fé, do seu significado e da devoção comprovada, capaz de estar à altura dos padecimentos e da morte. Estar à altura dos padecimentos e da morte é a grande tarefa da velhice. Entusiasmar-se, deixar-se arrebatar, sentir-se excitado são estados de espírito da juventude. Podem ser amigos uns dos outros, mas usam linguagens essencialmente diferentes.
***
A história do mundo é, no essencial, feita pelos primitivos e pelos jovens, responsáveis pela progressão em frente e pela precipita-ção dos factos, no sentido da expressão de Nietzsche, algo teatral, segundo a qual "aquilo que já de si quer cair, devemos nós ajudar a derrubar". (Ele mesmo, altamente sensível, jamais conseguiria ter derrubado uma pessoa ou um animal que estivesse velho ou doente.) Porém, para que a história possua também ilhas de paz e harmonia e se mantenha suportável, é necessário exercer o movimento contrário de retardamento e conservação e esta é uma tarefa que recai sobre os ombros dos mais cultos e mais velhos. Ainda que o ser humano que todos nós idealizamos e pelo qual ansiamos siga caminhos diferentes dos nossos e se transforme num animal selvagem ou numa formiga, continua a ser tarefa nossa abrandar o mais possível esse processo. Até os poderes militantes deste mundo fazem valer inconscientemente esta contratendência, ao defender, ainda que de modo acanhado, as suas empresas culturais a par da produção de armamento e dos altifalantes da propaganda.

FOLHA DE ESQUISSOS

O vento frio outonal faz ranger o tubo esguio
Que encaneceu ao cair da noite;
Gralhas esvoaçam para longe do salgueiro rumo aos campos.
Solitário, um velho descansa na praia
Sente no cabelo o vento, a noite e a neve que se aproxima.
Da margem banhada em sombra contempla a luz,
Onde entre as nuvens e o lago uma faixa de terra distante
Reluz ainda quente, plena de luminosidade:
O além dourado, ditoso como um sonho e um poema.
Mantém firme no olhar a imagem resplandecente,
Pensa na terra natal, nos seus melhores anos,
Vê como o ouro empalidece, como o seu brilho se extingue,
Dá meia volta e afasta-se lentamente
Para longe do salgueiro rumo aos campos.

(O PATHOS)
O pathos é uma coisa bonita e é algo que fica muito bem aos jovens. Às pessoas mais velhas adequa-se mais o humor, o sorriso, o não levar a sério, a conversão do mundo numa dada imagem, a contemplação das coisas como se fosse uma brincadeira fugaz semelhante à da passagem das nuvens à tardinha.
***
Envelhecer não se resume apenas a uma decomposição e um definhamento. Possui, tal como qualquer dos estádios da vida, os seus próprios valores, o seu próprio encanto, a sua própria sabedoria, a sua própria triseza; em tempos de um cultura em certa medida florescente foi com alguma razão que se demonstrou um determinado respeito pela idade, sentimento esse que hoje é granjeado pela juventude. Deixemos de lhes levar isso a mal, porém não devemos permitir que ninguém nos convença de que a idade não vale de nada.
***
Envelhecer é, em si mesmo, um processo natural e um homem de 65 ou 75 anos, desde que não queira ser mais jovem, será tão saudável e normal como um de 30 ou de 50. Infelizmente nem sempre estamos de bem com a nossa idade, no nosso íntimo é frequente andarmos adiantados, mas ainda mais frequente é sermos apanhados e ultrapassados - a consciência e a disposição íntima estão menos amadurecidas do que o próprio corpo, reagem contra as suas manifestações naturais, exigem dele algo que este já não consegue cumprir.
***
À medida que conquistamos a maturidade tornamo-nos mais jovens. Comigo passa-se isso mesmo, muito embora tal não queira dizer muito, pois mantive sempre o mesmo sentimento perante a vida desde os anos de rapaz; nunca deixei de encarar a minha vida adulta e o envelhecimento como uma espécie de comédia.
***
Aquele que envelhece e que segue atentamente esse processo poderá observar como, apesar de as forças falharem e as potencialidades deixarem de ser as que eram, a vida pode, até bastante tarde, ano após ano e até ao fim, ainda ser capaz de aumentar e multiplicar a interminável rede das suas relações e interdependências e como, desde que a memória se mantenha desperta, nada daquilo que é transitório e já se passou se perde.
ÍNDICE
Passeio de Primavera.. 15
Escutar................ 20
O fim do Verão........ 22
Ficar velho............ 37
Nos últimos dias de Verão.................. 39
Aquista................ 42
Ensinamento............ 55
A década............... 56
O homem de cinquenta anos................. 58
Envelhecer. ........... 63
Reencontro com Nina... 65
Ao envelhecer.......... 81
Folha de esquissos..... 89

FOLHA SECA

Todas as flores aspiram a ser fruto
Todas as manhãs a ser noite,
Nada há de eterno na Terra
A não ser a mudança, a fuga.
Mesmo o mais belo dos Verões anseia
Por conhecer o Outono, o deinhar.
Aguenta-te, folha, mantém-te calma,
Quando o vento te quiser arrebatar.
Deixa estar, não tentes defender-te
Que aconteça o que tiver de ser.
Deixa o vento, que te arranca e parte,
De regresso a casa conduzir-te.

(HARMONIA DO MOVIMENTO E DO REPOUSO)
Para a maioria das pessoas de idade, a Primavera não é das melhores épocas do ano, e também de mim exige muito. Os pós medicinais e as injecções não ajudaram grande coisa: as dores aumentavam com a mesma exuberância com que as flores cresciam entre a erva, pelo que as noites se tomavam dificeis de suportar. Ainda assim, cada dia, nas poucas horas que conseguia passar ao ar livre, proporcionava-me uma pausa que me permitia esquecer e entregar-me às maravilhas da Primavera, bem como, de vez em quando, momentos de deleite e de revelação, qualquer deles digno de ser retido, se tal fosse possível, se estas maravilhas e revelações pudessem ser captadas, descritas e comunicadas a outros. São impressões que nos assaltam de surpresa, duram segundos ou mesmo minutos, são expe-riências em que um processo na vida da natureza nos diz algo e se nos revela; e quando já se tem alguma idade, parece-nos então que toda a vida, com as suas alegrias e padecimentos, com o amor e o reconhecimento, com as amizades e os namoros, os livros, a música, as viagens e os trabalhos, nada mais foi senão um longo desvio para a maturidade destes momentos, nos quais na imagem de uma paisagem, de uma árvore, do rosto de alguém, de uma flor se reconhece que é Deuss que se manifesta, que se torna patente o sentido e o valor de toda a existência e de todos os acontecimentos. É bem possível que também na nossa juventude tenhamos experimentado a contemplação de uma árvore em flor, das nuvens em formação, de uma trovoada, e que o tenhamos vivido de modo bastante intenso e impetuoso, mas para a experiência a que me refiro é necessário ter uma idade avançada; é necessária uma soma interminável de coisas vistas, experimentadas, pensadas, sentidas, sofridas, é necessária uma certa diluição dos instintos vitais, uma certa debilidade e proximidade da morte, para numa ínfima revelação da natureza sermos capazes de reconhecer a presença de Deus, de uma alma, de um segredo, a coincidência dos opostos, a grande unidade. Também os mais jovens podem experimentar isso, é cero, mas é muito mais raro e a experiência carece desta coesão e reflexão, desta unidade sensorial e intelectual, de estímulo e consciência.
Ainda durante esta nossa Primavera seca, antes da chegada das chuvas e de uma série de dias de trovoada, passei algum tempo num dado local da minha pequena vinha, onde por esta altura, num pedaço de terra ainda não revolvido, costumo fazer uma fogueira. Aí, numa sebe de pilriteiro que envolve todo o jardim, tem desde há anos vindo a desenvolver-se uma faia. Começou por ser um pequeno pé, resultante de uma semente que teria vindo a voar desde o bosque até ali. Durante anos mantive-a a título provisório e um pouco contra a minha vontade, pois fazia-me pena pelo pilriteiro; a pequena e tenaz faia acabou por fazer-se tão bonita que finalmente a aceitei e hoje em dia é já uma arvorezinha de tronco bem grosso. É-me duplamente cara, pois a grande e poderosa faia, a minha árvore preferida em todo o bosque das redondezas, foi há pouco tempo abatida; ainda lá estão, pesados e poderosos como colunas, alguns pedaços do seu tronco retalhado. A minha arvorezinha deve com certeza ser uma filha dessa faia.
Sempre me satisfez e me impressionou a tenacidade com que a minha pequena faia se prende às suas folhas. Quando de resto já tudo está despido, ainda ela anda vestida com as suas folhas secas; passa Dezembro, Janeiro e Fevereiro, passam por ela tempestades, fica carregada de neve, que dela volta a escorrer depois de derretida, e as folhas mortas, primeiro castanho-escuras, começam por fcar mais claras, vão fcando mais finas, mais sedosas, mas a árvore não as dispensa, pois terão ainda de proteger os jovens rebentos. A dada altura em cada Primavera, de cada uma das vezes sempre mais tarde do que se esperava, chegava um belo dia em que a árvore aparecia transformada, pois perdera as folhas velhas e, no seu lugar, exibia os novos rebentos, ainda húmidos e tenros. Desta vez, porém, fora testemunha desta metamorfose. Foi pouco depois de a chuva transformar a paisagem num todo verde e fresco, a uma determinada hora da parte da tarde, num dia de meados de Abril; ainda nesse ano não ouvira nenhum cuco e não encontrara qualquer narciso nos prados. Ainda há poucos dias estivera diante dela, exposto a um forte vento de nortada, quase enregelado e de colarinhos levantados, enquanto contemplava a impassibilidade com que a faia enfrentava o vento que a fustigava e não largava uma folha que fosse. Pertinaz e corajosa, firme e obstinada, manteve a folhagem empalidecida.
E hoje, num dia de suave calor e sem vento, enquanto eu estava junto da fogueira e rachava lenha, vi-o acontecer: levantou-se uma brisa meiga, não mais que um brando fôlego, e eis que às centenas e milhares foram separadas as folhinhas, durante tanto tempo poupadas, silenciosamente, sem resistência, de livre vontade, já cansada de tanta perseverança, cansada da teima e da valentia demonstradas. Aquilo que durante cinco ou seis meses se manteve firme e ofereceu resistência, foi abatido numa questão de minutos, ficou em nada, apenas vestígios, porque o seu tempo fora chegado, porque aquela dura perseverança deixara de ser necessária. Foram levadas dali, espalharam-se, adejantes, sorridentes, já maduras, sem contestar. A brisa era demasiado fraca para conseguir levar para muito longe as folhinhas que se haviam tornado tão leves e delgadas, como um aguaceiro suave pousaram no chão e cobriram a erva em redor dos pés da arvorezinha. Uns quantos dos seus rebentos, já verdes, estavam a começar a aparecer. Qual a revela-ção contida nesta surpreendente e comovente representação que teve lugar diante dos meus olhos? Seria a morte, a lenta e voluntariamente cumprida morte da fo-lhagem de Inverno? Seria a vida, a impetuosa e rejubilante juventude dos rebentos, que com uma força de vontade subitamente despertada tinham procurado espaço para se desenvolver? Seria motivo de tristeza ou de satisfação? Seria uma advertência a mim, ao velho, para também me deixar esvoaçar e cair pelo chão, talvez um aviso que também eu estava a roubar espaço aos mais jovens e mais fortes? Seria antes um desafio para aguentar firme como as folhas da faia, pertinaz como elas, enquanto fosse possível manter-me de pé, fazer oposi-ção, defender-me, pois assim, quando fosse chegada a hora certa, a despedida seria mais fácil e mais alegre? Não, era uma manifestação do grandioso e do eterno, da coincidência dos opostos, da sua fusão no fogo da realidade, não tinha qualquer significado, não constituía uma exortação a nada em particular; em vez disso, significava tudo, significava o segredo da existência e era belo, era felicidade, sentido, dádiva e descoberta para o espectador, do mesmo modo que um ouvido cheio de Bach, um olho cheio de Cézanne o é. Estes nomes e interpretações não constituíam a experiência em si, apenas se seguiam a ela; a experiência em si mesma era apenas uma aparição, um milagre, um mistério, tão belo quanto grave, tão amável quanto inexorável.
No mesmo local, junto do pilriteiro e próximo da faia, depois de o mundo inteiro parecer ter adoptado uns laivos de um suculento verde e de no Domingo de Páscoa o chamamento do cuco se ter feito ouvir pela primeira vez no nosso bosque, um daqueles dias de trovoada ventosos, cheios de vicissitudes e quentes e húmidos, em que já se anuncia e prepara o salto da Primavera para o Verão, fui tocado pelo grande mistério no decurso de uma experiência visual não menos alegórica. No céu fortemente carregado de nuvens, que ainda assim permitia a passagem de uns quantos raios de sol bem ofuscantes que se projectavam no verde que brotava por todo o vale, decorria uma representação teatral gran-diosa. O vento parecia soprar ao mesmo tempo de todas as direcções, prevalecendo porém as rajadas de sul para norte. Grande agitação e arrebatadas paixões preenchiam a atmosfera e criavam fortes tensões. Bem no centro da acção, despertando subitamente e à força a minha atenção, estava de novo uma árvore, nova e bonita, um choupo do jardim vizinho que recentemente se cobrira de folhas. Como se fosse um foguetão parecia ser projectado para cima, agitando-se, elástico, com a copa pontiaguda, de ramagem fechada sob o efeito das rajadas de vento como se fosse um cipreste, gesticulando com as suas centenas de ramos delgados e dispostos de modo ligeiramente desordenado. A copa daquela magnífica árvore balançava de um lado para o outro, a folhagem murmurava sob o efeito do vento, parecia orgulhosa da sua força e verde juventude. Este movimento de vaivém, que parecia produzir um ligeiro rumor, assemelhava-se ao movimento da agulha de uma balança, que ora cedia às carícias do vento, ora recuperava a postura num acesso de força de vontade. (Só mais tarde me apercebi de já em tempos, há algumas décadas, ter descrito a observação deste jogo de movimentações num ramo de pessegueiro, num poema chamado Der Blitenzweig.)
Alegremente e sem receios, quase intencionalmente, o choupo parecia entregar os seus ramos e a sua folhagem ao vento húmido que soprava cada vez com mais força, o seu canto naquele dia de trovoada e a escrita que gravou no céu com a sua copa pontiaguda eram belos, perfeitos, tão alegres quanto graves, tanto fazer quanto sofrer, tanto jogo quanto destino, continha de novo em si todos os contrastes, todos os sentidos contrários. O vento não era o vencedor nem o mais forte só por conseguir abanar e fazer vergar a árvore, do mesmo modo que também esta o não era, por num gesto triunfante e elástico conseguir recuperar a posição inicial depois de cada flexão; era antes o jogo de ambos, a harmonia do movimento e do repouso, de forças celestiais e terrenas, a interminável e expressiva dança das copas no meio da tempestade, já só imagem, já só revelação do mistério do mundo, para além da força e da fraqueza, do bem e do mal, do fazer e sofrer. Durante alguns instantes, uma pequena eternidade, li nessa dança aquilo que de resto está coberto e escondido e ali estava ex- presso de forma pura e perfeita, mais pura e mais perfeita do que se estivesse a ler Anaxágoras ou Lao-Tsé. Uma vez mais fiquei com a impressão que, para contemplar esta imagem e ler esta escrita, seria necessária não apenas a dádiva daquela hora primaveril, como também dos caminhos e labirintos, da insensatez e da experiência, dos prazeres e dos padecimentos de muitos anos e décadas; o próprio choupo, que me proporcionara essa visão, afigurava-se-me como se mais não fosse que uma criança, inexperiente e confiante. Seriam precisas ainda muitas geadas e nevões para o quebrar e desmoralizar, precisaria de ser sacudido por umas quantas tempestades e perseguido e fe-rido por uns quantos relâmpagos para talvez também ele ser capaz de contemplar e escutar e sentir vontade de conhecer o grande mistério.
De "Aprilbrief", 1952

SOL DE MARÇO

Embriagada pela luz intensa
Esvoaça uma borboleta amarela,
Descansa e dormita, dobrado,
Um velho sentado à janela.
Andava outrora a canta-rolar
Pelo meio da folhagem primaveril,
Recobre já os seus cabelos
A poeira de estradas mil.
Tanto as borboletas amarelas
Como as árvores que florescem
Afiguram-se hoje ainda as mesmas,
Pouco envelhecidas parecem.
Mas tanto a cor como o aroma,
Rarefeitos, quase sem significado.
A luz arrefeceu e bem assim o ar,
Difícil de respirar, mais pesado.
A Primavera sussurra de mansinho
Suas graciosas canções adoradas.
O céu oscila entre o branco e o azul
Voejam borboletas, nuvens douradas.

ACERCA DA IDADE

A velhice é uma fase da nossa vida e, como todas as outras fases da vida, tem um rosto próprio, uma atmosfera e uma temperatura próprias, as suas alegrias e as suas tristezas. Nós, os velhos de cabelos brancos, temos, tal como os nossos irmãos mais jovens, uma tarefa a cumprir, algo que confere um sentido à nossa existência; mesmo os moribundos e aqueles que estão doentes, à beira da morte, a cuja cama já mal consegue chegar uma invocação proveniente deste nosso mundo, têm um dever, têm algo de importante e indispensável para cumprir. Ser-se velho é uma tarefa tão bela e tão sagrada como ser-se jovem, aprender a morrer e morrer é uma função tão valiosa como qualquer outra - desde que seja cumprida com respeito pelo sentido e inviolabilidade de toda a vida. Um velho que deteste e tema a sua condi-ção, os cabelos brancos e a proximidade da morte não é um digno representante dessa fase da vida humana, do mesmo modo que não o é um jovem vigoroso que detesta e tenta fugir às obrigações respeitantes ao seu emprego e ao seu trabalho de todos os dias.
Em poucas palavras, para enquanto velhos cumprirmos o sentido da nossa existência e estarmos à altura da tarefa a desempenhar, há que estar de acordo, há que aceitar a idade e tudo aquilo que esta acarreta, há que dizer-lhe que sim. Sem esta atitude de aceitação, sem esta entrega àquilo que a natureza de nós exige, dei-xamos escapar o valor e o sentido dos nossos dias, sejamos nós velhos ou novos, enganamos a própria vida.
Qualquer pessoa conhece os achaques que vêm com a idade avançada e sabe que no fim está a morte. Ano após ano, temos de sacrificar-nos e prescindir de coisas. Temos de aprender a desconfiar dos nossos sentidos e forças. O caminho que até há bem pouco tempo era um pequeno passeio torna-se longo e cansativo e chega o dia em que já não o podemos trilhar. Temos de renunciar a pratos e comidas que apreciámos toda a vida. As alegrias e os prazeres que o nosso corpo sente vão sendo cada vez mais raros e o preço que se paga por eles é cada vez mais alto. E depois os padecimentos, as doenças, o embotamento dos sentidos, os órgãos que começam a falhar, as muitas dores, as noites longas e repletas de receios - tudo isto não é de desprezar, trata-se de realidade, nua e crua. Seria, porém, atitude triste e mesquinha entregar-mo-nos em exclusivo a este processo de decadência e não ser capaz de ver que também a idade avançada tem as suas partes boas, as suas vantagens, os seus consolos e alegrias.
Quando dois velhos dão de caras um com o outro não deveriam limitar-se a falar da maldita gota, dos membros rígidos e da falta de ar ao subir as escadas; não deviam apenas falar dos sofrimentos e desgostos, haveriam também de trocar as suas boas experiências, partilhar com os outros os momentos felizes que lhes servem de consolo. E desses também há muitos.
Quando penso neste lado positivo e belo da vida dos velhos, no facto de nós, os que têm cabelos brancos, também conhecermos fontes de força, de paciência e de alegria que não têm para os jovens qualquer expressão, apercebo-me que não me compete falar do consolo que a Igreja e a religião representam. Isso é tarefa que cabe ao padre, mas com todo o gosto e reconhecidamente poderei nomear algumas das dádivas que a idade nos concede. Destas dádivas, a que me é mais cara é a imensa riqueza em imagens que, no decurso de uma vida longa, se vai podendo armazenar na memória, às quais, com a diminuição do ritmo da actividade, vamos podendo passar a dedicar mais atenção e interesse do que até então. As figuras e rostos de pessoas que há já sessenta ou setenta anos não habitam esta terra sobrevivem em nós, pertencem-nos, fazem-nos companhia, contemplam-nos com o seu olhar vigilante. Casas, jardins e cidades que entretanto desapareceram ou estão completamente transformadas, vemo-las intactas como outrora, e costas marítimas e montanhas longínquas, que vimos há décadas em viagens que por lá fizemos, reencontramo-las agora de cores frescas e garridas neste nosso livro ilustrado. A observação, a meditação e a contemplação tornam-se cada vez mais um hábito, um exercício, e, sem disso nos darmos conta, a disposição presente naquilo que é observado influencia e perpassa cada vez mais o nosso próprio estado de alma. Tal como a maioria das pessoas, fomos assolados por desejos, sonhos, ânsias e paixões, percorremos apressadamente os anos e décadas da nossa vida, cheios de impaciência, de ansiedade, de expectativas, estimulados por desapontamentos e sensações de satisfação - e hoje, folheando com desvelo o grande álbum ilustrado que é a nossa vida, surpreendemo-nos ao ver como pode ser belo e agradável, abandonada toda a azáfama, toda a correria, vermo-nos chegados à vita contemplativa.
Aqui, neste jardim dos anciãos, desabrocham flores de que outrora jamais nos apercebemos, das quais antes nunca tratámos. Há, por exemplo, a flor da paciência, uma espécie de grande nobreza: tornamo-nos mais serenos, mais tolerantes, e quanto menor vai ficando a ânsia pela intervenção e pela acção, tanto maior se torna a nossa capacidade de observar e escutar a vida da natureza e daqueles que nos rodeiam, deixando-a passar ao nosso lado, sem críticas e sempre com redobrado espanto pela diversidade demonstrada, por vezes com um misto de compaixão e silencioso pesar, por vezes divertidos, com grande alegria, com bom humor.
Ainda não há muito tempo, estava eu no meu jardim, a fazer uma queimada, alimentando uma fogueira com folhas mortas e ramos secos, eis que apareceu uma velha senhora, que deveria ter por volta de uns 80 anos, passou perto da sebe de pilriteiros, estacou e pôs-se a observar-me. Saudei-a, após o que ela sorriu e declarou: "O senhor tem toda a razão, com essa fogueirinha que aí está a fazer... Na nossa idade temos, a pouco e pouco, que nos ir familiarizando com o inferno!" Foi o bastante para dar o tom e encetarmos uma conversa, durante a qual nos fomos queixando, cada um dos respectivos padecimentos e privações, mas sempre em tom de brincadeira. Lá para o fim da nossa cavaqueira, confessámos um ao outro que apesar de tudo ainda não éramos assim tão velhos e que nem sequer poderíamos ser vistos como verdadeiros anciãos, pelo menos enquanto na nossa aldeia existisse aquela ve-lhota centenária.
Quando as pessoas mais jovens, com a superioridade das suas forças e da sua atitude confiante, se riem de nós nas costas e acham engraçado o nosso penoso andar, os nossos cabelos brancos e os nossos pescoços emagrecidos e tendinosos, também nós nos lembramos de ter em tempos idos, em posse de igual vigor e confiança, rido da mesma maneira; não nos sentimos derrotados nem inferiores, em vez disso alegramo-nos por ter atingido esta fase da vida e por nos termos tornado um bocadinho mais espertos e mais tolerantes.
1952

CHUVA NO OUTONO

Oh, chuva, chuva de Outono,
Montanhas cobertas por véus cinzentos,
Árvores com folhas velhas e cansadas!
Através de janelas embaciadas, já adoentado,
Espreita o ano que acaba, despede-se triste.
Arrepiada, envolta no teu manto encharcado,
Sais para a rua. Na orla da floresta,
Sobre a folhagem empalidecida, avançam pesadamente
Tartarugas e salamandras já embriagadas.
Pelos caminhos daquela floresta
A água corre e gorgoleja sem cessar,
É retida na erva junto à figueira,
Forma aí pequenos charcos pacientes.
Da torre da igreja mais ao fundo no vale
Os sinos, hesitantes e cansados,
Gotejam sons por alguém da aldeia,
Alguém que agora vai a enterrar.
Mas, caro amigo, não chores a morte
Do vizinho que é enterrado,
Ou do ditoso Verão que passou,
Nem das alegrias festivas da juventude!
Tudo perdura nas devotas recordações,
Perpetuado em palavras, imagens, canções,
Sempre pronto a celebrar o regresso
Com vestes renovadas, mais nobres.
Ajuda a conservar, ajuda a transformar,
E no coração brotar-te-á
A flor da alegria confiante.

(A IDADE TRAZ CONSIGO)

A idade traz consigo muitos achaques, mas também tem as suas dádivas, sendo uma delas este escudo protector que é o esquecimento, o cansaço, a conformação, um escudo que se forma e se vai desenvolvendo entre nós e os nossos problemas e padecimentos. Poderá resultar em indolência, esclerose e numa horrível indiferença, mas, num outro momento, a uma luz diferente, poderá também ser sinónimo de serenidade, paciência, humor, grande sabedoria e Tao.
***
A idade ajuda a ultrapassar determinadas situações, e quando um velho abana a cabeça e murmura umas quantas palavras, alguns adivinham nesta atitude uma profunda sabedoria e esclarecimento, ao passo que outros mais não vêem senão esclerose. Se o seu relacionamento com o mundo é, no fundo, resultado da sua experiência e sabedoria ou mera consequência de perturbações circulatórias, ainda ninguém conseguiu esclarecer, nem o próprio velho.
***
Só ao envelhecermos nos damos conta da singularidade do belo e do milagre que efectivamente é quando entre as fábricas e os canhões também desabrocham flores e quando entre os jornais e boletins da bolsa ainda sobrevivem poemas.
***
Para eles, os jovens, a sua própria existência, a sua busca e os seus padecimentos revestem-se de grande importância. Para aquele que envelheceu, a busca terá sido infrutífera e a vida um falhanço se não tiver encontrado nada de objectivo, nada superior a si próprio e às suas preocupações, se não tiver descoberto nada de indispensável ou divino passível de ser venerado, a cujo serviço se tenha colocado, sendo esse mesmo serviço o único que confere sentido à sua vida...
A necessidade da juventude consiste em conseguir levar-se a si própria a sério; a da velhice, por seu turno, em poder sacrificar-se, pois existe algo supe-rior a que esta atribui grande importância e seriedade. Não é de bom grado que profiro dogmas de fé, mas acredito realmente que a vida espiritual tem de decorrer e desenrolar-se entre estes dois pólos. A tare- fa, o anseio e a obrigação da juventude é o devir, ao passo que a do homem maduro é "desembaraçar-se de si mesmo", o "desdevir". Seria preciso ser-se primeiro um ser humano completo, possuir uma personalidade a sério e ter sofrido na pele as consequências dessa individua-ção antes de se poder fazer o sacrifício dessa mesma personalidade.

DIA DE INVERNO CINZENTO

Está um dia de Inverno cinzento,
Pouco luminoso e sem barulho no ar,
Um velho rabugento que não aprecia
Que com ele se insista em falar.
Escuta o rio a correr impetuoso
Cheio de vigor e de uma paixão juvenil
A impaciente força da juventude
Parece-lhe petulante e inútil.
Trocista, fecha ainda mais os olhos
A claridade é agora menor no céu
Suavemente começa então a nevar
Diante da face parece corrido um véu.
Nesse sonho de velho parece não encaixar
Uma gaivota que lança o seu grito estridente,
Nas fustigadas e despidas sorveiras
Os melros bulham constantemente.
Em vista da sua importância
Parece-lhe ridícula tanta afectação
A neve continua a cair, a cair,
Até que se instale a escuridão.

(NÃO DEVEMOS ESFORÇAR-NOS POR RETER OU COPIAR O PASSADO)

Não devemos esforçar-nos por reter ou copiar o passado; em vez disso, devemos estar preparados para a mudança, experimentar a novidade, vivendo-a com todas as nossas forças. Nesta perspectiva, o luto, na medida em que significa mantermo-nos presos àquilo que se perdeu, não é positivo, não respeita o sentido da verdadeira vida.

RAPAZINHO

Quando me castigam
Calo-me bem caladinho
Choro ao adormecer
Acordo em folha novinho.
Se me castigarem
Vão chamar-me pequenito
Já não tenho de chorar
Rio-me enquanto dormito.
Os grandes vão morrendo,
O tio e o avôzinho,
Eu, porém, hei-de ficar
Sempre aqui no meu cantinho.

(A MINHA VIDA)

A minha vida, assim a entendia eu, devia ser um percurso de transcendência, uma progressão de etapa em etapa. Dever-se-ia atravessar os espaços, deixá-los para trás, uns após os ou-tros, do mesmo modo que a música vai cumprindo, tocando, completando e deixando para trás tema após tema, compasso após compasso, nunca cansada, nunca a dormir, sempre desperta, sempre actual. Juntamente com a experiência do despertar reparei na existência deste tipo de etapas e espaços e que a última parte de uma vida costuma carregar spertar reparei na existência deste tipo de etapas e espaços e que a última parte de uma vida costuma carregar em si um tom de debilidade e de inclinação para a morte, as quais conduzem depois a uma passagem para um novo espaço, a um despertar, a um começo renovado.

DEGRAUS

Assim como as flores murcham e a juventude
Cede à velhice, também os degraus da vida,
A sabedoria e a virtude, a seu tempo,
Florescem e não duram eternamente.
A cada apelo da vida deve o coração estar pronto
A despedir-se e a começar de novo
Para, com coragem e sem lágrimas, se dar
A outras novas ligações.
Em todo o começo reside um encanto
Que nos protege e ajuda a viver.
Serenos transponhamos espaço após espaço,
Não nos prendendo a nenhum como a um lar;
Ser-nos corrente ou parada não quer o espírito do mundo
Mas de degrau em degrau elevar-nos e aumentar-nos.
Mal nos habituamos a um círculo de vida,
Íntimos, ameaça-nos o torpor;
Só aquele que está pronto a partir e parte
Se furtará à paralisia dos hábitos.
Talvez também a hora da morte
Nos lance, jovens, para novos espaços,
O apelo da vida nunca tem fim...
Vamos, coração, despede-te e cura-te. (2) {(2) Tradução de Carlos Leite, retirada de Hermann Hesse, O Jogo das Contas de Vidro, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1989, págs. 356-357. (N do T.)}

A LINGUAGEM DA PRIMAVERA
Qualquer criança sabe o que diz a Primavera:
Vive, cresce, floresce, ama, confia
Alegra-te e segue os teus novos impulsos
Entrega-te e não temas a vida!
Qualquer ancião sabe o que diz a Primavera:
Deixa-te disso, velho, entra para a cova,
Cede o teu espaço aos rapazes viçosos
Entrega-te e não temas a morte!

(ENVELHECER DE MODO DIGNO)

Envelhecer de modo digno e manter a atitude e a sabedoria condizentes com a idade que se tem é uma arte que não é de todo fácil; a maioria das vezes a nossa alma está adiantada ou atrasada em relação ao corpo, e para corrigir estas diferenças é necessário abalar a disposição íntima, causar um certo estremecimento e temor nas fundações, os mesmos que sempre nos momentos decisivos da vida e durante a doença nos assolam. Parece-me normal que nos sintamos pequenos diante deles e nos portemos como tal, do mesmo modo que as crianças, através do choro e da afirmação da sua fraqueza, recuperam o equilíbrio perdido após um incidente que perturba o decurso da sua vida.
***

Quando se tem uma idade avançada, é através de singulares observações que se faz a retrospectiva sobre uma vida longa e preenchida. A segunda metade da minha vida foi a mais dramática, plena de lutas, de inimizades, de insuficiências, e, já para o fim, rica em desmesurados sucessos. A força necessária para conseguir e saber enfrentar esta segunda metade tão turbulenta decorre precisamente da vivência mais tranquila da primeira metade, dos quase quarenta anos de paz e sossego que pude experimentar. Falava-se da guerra como de um reconstituinte banho termal em águas férreas; a minha experiência, porém, demonstrou que só a paz fomenta e fortifica.
***
O que seria de nós, os velhos, se não tivéssemos esse livro ilustrado que é a memória, toda essa riqueza de experiências vividas! Seria uma situação lamentável, seríamos uns miseráveis. Deste modo, porém, somos imensamente ricos e não nos limitamos a arrastar uma carcaça cansada, de encontro ao fim e ao esquecimento; somos guardiães de um tesouro que viverá e resplandecerá enquanto nós próprios respirarmos.
***
Com a sabedoria acontece-nos o mesmo que a Aquiles com a tartaruga: esta está sempre um pouco mais à frente. Vale a pena fazermo-nos à estrada para a encontrarmos, deixarmo-nos levar pela força de atracção que esta exerce.
***
Maravilhoso encanto, triste e impetuoso fascínio da efemeridade! Ainda mais maravilhoso, o não ter passado à história, o não expirar do que já aconteceu, a sua secreta sobrevivência, a sua secreta eternidade, a possibilidade de ser chamado à memória, o estar enterrado vivo na palavra que repetidamente se invoca!

NOITE CANSADA

O vento do fim de tarde balbucia,
Lamenta-se, abafado pela folhagem.
Sobre a poeira, uma a uma,
Pesadas gotas de água caem.
Das fendas dos muros enfraquecidos
Brotam o musgo e os fetos
Acocorados, os velhotes juntam-se
Sobre as soleiras, circunspectos.
As mãos deformadas dos velhos
Estão assentes sobre joelhos rígidos,
Entregam-se agora ao descanso
Murcham, estiolam, ficam lívidos.
Sobre o cemitério esvoaçam os corvos,
Batem as asas pesadas, gigantes.
Sobre as colinas despidas de árvores
Vicejam fetos e musgo, abundantes.

O VELHO E AS SUAS MÃOS
A custo arrasta-se, percorre o caminho
Que se estende na interminável noite,
Aguarda, escuta e vela, de vigia.
Diante de si tem sobre a manta
As mãos, a esquerda e a direita.
Rígidas e desajeitadas, servas cansadas,
Eis que ele se ri bai-xinho,
Bem de mansinho para não as acordar.
De bom grado e incansáveis
Trabalharam mais do que muitas,
A seiva corre-lhes com vigor.
Muito haveria ainda para fazer,
Porém estas obedientes companheiras
Querem descansar, tornar-se poeira.
De ser escravas e submissas
Estão exaustas, começam a secar.
Bem de mansinho, para não as acordar,
Contempla-as o homem sorridente
O longo percurso de uma vida
Parece breve, mas a noite, essa,
É interminável... E as mãos de uma criança,
De um jovem, de um homem
À tardinha, próximo do fim,
Têm este aspecto assim.

O PEQUENO LIMPA-CHAMI NÉS

Na terça-feira de Carnaval, à tarde, a minha mu-lher teve de ir a Lugano. Conseguiu convencer-me a ir com ela, depois talvez pudéssemos ficar um bocadinho a ver o desfile das máscaras ou o corso carnavalesco. Não tinha grande disposição para isso, pois já há semanas que andava a sofrer com dores nas articulações e me via meio tolhido, pelo que senti desde logo uma certa relutância só com a ideia de ter de vestir o casaco e subir para o carro. Depois de alguma reticência, lá acabei por ganhar coragem e aceitei ir. Descemos até Lugano, eu fui deixado junto ao cais e a minha mu-lher seguiu caminho, em busca de um lugar para estacionar. Eu fiquei à espera com Kato, a cozinheira, iluminado por um sol fraco mas ainda assim agradável, bem no meio da multidão agitada, que andava animada mas ia fluindo descontraidamente. Em dias normais Lugano é já de si uma cidade bastante alegre e amigável, mas nesse dia lançava-nos em todas as suas ruas e praças um sorriso atrevido e folgazão, as roupas coloridas riam-se para nós, os rostos também, tal como as casas na Piazza com janelas repletas de pessoas e de máscaras. O próprio barulho sorria nesse dia. Consistia em gritos, em vagas de gargalhadas e chamamentos, em farrapos de música, no estranho guinchar de um altifalante, em gritos agudos e falsas exclamações de medo de meninas que se viam cobertas por mãos-cheias de confetti que os rapazes lhes atiravam. A principal finalidade deste exercício parecia ser a de encher a boca da vítima o mais possível com os papelinhos. Por todo o lado a rua estava coberta com estes pedaços de papel de cores variadas, sob as arcadas caminhava-se sobre este tapete, suave como musgo ou areia.
Mal a minha mulher veio ter connosco, fomos colocar-nos a um canto da Piazza Riforma. Aquele lugar pa-recia bem ser o centro das festividades, pois tanto a praça como o passeio estavam cheios de gente. Por entre a multidão movimentavam-se constantemente grupos de pessoas coloridos e baru-lhentos, formando um contínuo vaivém humano, de pares que desfilavam e de crianças mascaradas que se exibiam. Do outro lado da praça estava montado um palco, sobre o qual e diante de um microfone umas quantas pessoas representavam animadamente: um comentador-apresentador, um trovador com uma guitarra, um palhaço bem nutrido e outros. Quer se ouvisse ou não o que diziam, entendesse-se ou não, toda a gente se ria, sobretudo quando o palhaço teimava em encontrar mais um célebre prego na sua célebre cabeça; os actores e o povo representavam em conjunto, o palco e o público animavam-se mutuamente, era uma troca constante de benquerença, incitamento, vontade de se divertir e pre-disposição para a gargalhada. Houve também um jovem que foi apresentado pelo comentador aos seus concidadãos, um jovem artista, diletante dotado de considerável talento, que nos encantou com as suas virtuosas imitações de vozes de animais e outros sons.
Eu havia decidido de antemão que fcaríamos na cidade no máximo um quarto de hora. A verdade, porém, é que passámos lá uma boa meia hora, a ver, a ouvir, todos satisfeitos. Para mim, só o facto de me encontrar numa cidade, entre uma grande quantidade de pessoas, e para mais numa cidade em festa, é algo tão pouco usual, quase inquietante, embriagante mesmo; vivo e passo semanas e meses sozinho na minha sala de trabalho e no meu jardim, muito poucas são as vezes que consigo reunir forças para ir até à aldeia ou mesmo até ao limite do nosso terreno. Aqui estava eu, rodeado por uma grande multidão, bem no meio de uma cidade que ria e se divertia, ria-me também e saboreava o momento, a visão dos rostos das pessoas, tão variados e surpreendentes, novamente um entre muitos, parte integrante, em consonância. Claro que não demoraria muito até que os meus pés frios começassem a doer, até que as pernas cansadas dissessem basta e me fizessem ansiar por regressar a casa; em breve também o gracioso êxtase de ver e ouvir me cansariam e deixariam exausto, e bem assim a observação de todos aqueles milhares de rostos tão estranhos, belos, interessantes e adoráveis, o escutar de todas aquelas vozes diferentes, vozes essas que falavam, riam, gritavam, vozes atrevidas, honradas, graves, agudas, quentes ou penetrantes. Àquela feliz entrega à abundante quantidade de sensações visuais e auditivas seguir-se-ia o esgotamento e um medo próximo da vertigem, o receio de não conseguir suster o ímpeto dos sentimentos. "Bem sei, bem sei", diria Thomas Mann a propósito, citando o senhor Briest, pai. Enfim, se nos déssemos ao trabalho de reflectir um pouco, entenderíamos que não era apenas a debilidade própria da idade a responsável por este medo do excesso, da abundância do mundo. Para falar com a linguagem dos psicólogos, não se tratava apenas da apreensão que experimenta o introvertido quando se vê confrontado com a necessidade de prestar provas perante o mundo que o rodeia. Havia também outras razões, em certa medida melhores, para este medo silencioso e tão parecido com uma vertigem, para esta fadiga. Quando observava os meus vizinhos, aquelas pessoas que durante meia hora haviam estado comigo na Piazza Riforma, quis-me parecer que andavam por ali como peixes na água, numa atitude indolente, cansados mas satisfeitos, sem se sentirem obrigados fosse ao que fosse; quis-me parecer que os seus olhos e os seus ouvidos apreendiam as imagens e os sons como se por detrás do olho não estivesse uma película, um cérebro, um armazém e um arquivo, como se por detrás do ouvido não estivesse um disco ou um gravador de banda magnética, a cada segundo ocupado a registar, a recolher com rapidez, a esboçar, obrigado não apenas a saborear mas também a conservar, para mais tarde reproduzir, obrigado a uma extrema exactidão, a prestar a máxima atenção. Em suma, eu próprio uma vez mais não estava ali como fazendo parte do grande público, não estava ali na qualidade de espectador desprovido de qualquer responsabilidade, mas antes como um pintor com o caderno de esboços na mão, a trabalhar, empregando todas as minhas forças naquela tarefa. Esta é, afinal, a maneira de nós, artistas, apreciarmos, de saborearmos e festejarmos: trata-se de trabalho, de um compromisso, mas ainda assim de um prazer - contanto que as forças cheguem, que os olhos aguentem o constante vaivém entre a cena observada e o caderno de esquissos, que os arquivos no cérebro ainda possuam espaço e maleabilidade. Creio que não conseguiria explicar isto aos meus vizinhos, mesmo que mo exigissem. Se quisesse tentar fazê-lo, provavelmente rir-se-iam e diriam: "Caro uomo, não se queixe assim tanto do seu trabalho! Consiste numa observação e num eventual relato de episódios engraçados, o que o leva a achar-se muito laborioso e diligente, ao passo que nós, para si, somos meros basbaques, andamos a gozar as férias e somos uns mandriões. A verdade, porém, é que estamos mesmo de férias, senhor vizinho, e não estamos aqui para trabalhar, como você. O nosso trabalho pode não ser tão bonito como o seu, signore, mas se tivesse de acompanhar qualquer um de nós nas nossas oficinas, lojas, fábricas e escritórios, o mais certo é que rapidamente ficaria de rastos." E o meu vizinho tem razão, toda a razão, mas não há nada a fazer, pois também eu julgo ter a minha. Sejamos então sinceros uns com os outros, digamos as nossas verdades, sem ressentimentos, amigavelmente e de bom humor; cada um de nós tem o desejo de se justificar, mas não a vontade de magoar o próximo.
Em todo o caso, a emergência de tais ideias, o imaginar de tais diálogos e justificações, era já indício de cansaço. Não tardaria a ser hora de regressar a casa e de tentar recuperar o descanso, a sesta perdida. E quão poucas das imagens bonitas testemunhadas nesta meia hora puderam ficar retidas e a salvo no arquivo! Quantas centenas, porventura as mais belas, se teriam escapado aos meus olhos e ouvidos inaptos sem deixar qualquer vestígio, quantas delas semelhantes àquelas que eu julgava dever reter na minha qualidade de apreciador e observador!
Ainda assim, uma de entre esses milhares de imagens ficou presa na minha memória, devendo para gáudio dos meus amigos ser incluída no livrinho de esboços.
Durante quase todo o tempo da minha permanência naquela praça em festa esteve, muito próxima de mim, uma figura deveras sossegada, não ouvi que durante aquela meia hora da sua boca saísse uma palavra que fosse. Lá estava, envolta numa estranha solidão ou arrebatamento, no meio daquela colorida multidão e azáfama, tranquila como um quadro e muito bela. Era uma criança, um rapazinho pequeno, não devia ter mais do que sete anos, uma criatura pequena e graciosa com um inocente rosto de criança, para mim o mais amoroso entre as centenas ali presentes. O petiz estava disfarçado, envergava uma roupa preta, trazia à cabeça uma pequena cartola preta e num dos ombros um pequeno escadote. Nem tão-pouco a escova negra de limpa-chaminés lhe faltava, tudo havia sido preparado ao pormenor e com gosto, até o pequeno rosto gracioso fora esfregado com um pouco de fuligem ou qualquer outra coisa preta. Acontece, porém, que ele disso nada sabia. Ao contrário de todos os Pierrots, chineses, ladrões, mexicanos e cavalheiros já crescidos que por ali andavam, e em gritante contraste com as figuras que se movimentavam no palco, o rapazinho não parecia ter qualquer consciência de que estava disfarçado, que representava um limpa-chaminés e, muito menos ainda, que isso era algo diferente e engraçado e que lhe assentava muito bem. Nada disso, lá estava ele, pequenino e sossegado, no seu lugar, com os pés pequeninos em sapatinhos castanhos, a escada pintada de preto ao ombro, cercado pelas vagas de multidão que por vezes o afastavam com um encontrão, sem no entanto a isso ligar grande importância; de pé, dirigia os olhos espantados, sonhadoramente deleitados e de um azul bem claro, olhos que dominavam o seu rosto de criança de bochechas enegrecidas, para uma janela da casa diante da qual nos encontrávamos. Nessa janela, à altura de um homem acima das nossas cabeças, estava reunido um grupo de crianças bem-disposto, um pouco mais velhas que ele, que riam e gritavam, todas elas trajadas com coloridos disfarces, e de tempos a tempos precipitava-se das suas mãos e dos pacotes que seguravam uma chuva de confetti sobre nós. Ingénua e arrebatadamente, em ditosa contemplação, os olhos do garoto dirigiam-se para cima, como que fascinados, numa expressão de espanto impossível de desfazer, pregados na janela. Não havia naquele olhar qualquer ânsia, qualquer exigência ou cobiça, apenas espanto, uma entrega incondicional, um grato deleite. Não fui capaz de identificar o que seria que tanto arrebatava a alma daquele rapaz, o que tanto lhe despertava o solitário prazer de ver e deixar-se encantar. Seria o esplendor cromático dos fatos ou a primeira tomada de consciência da beleza dos rostos das raparigas? Seria o rapaz filho único e, não tendo irmãos, contemplaria a animada chilreada daquelas formosas crianças ali em cima? Talvez aquele olhar infantil apenas estivesse enfeitiçado por aquela chuva de cores que brotava mansamente, que de vez em quando era lançada das mãos daqueles que eram objecto de admiração, que caía sobre as nossas cabeças e se acumulava sobre o passeio de pedra, já coberto como que por uma fina camada de areia.
Sentia-me como o pequeno rapaz. Do mesmo modo que também ele não se apercebia dos atributos e objectivos daquilo que trazia vestido, da multidão que o rodeava, do teatro de palhaços e das vagas de gargalhadas e aplausos que percorriam o povo ali reunido como uma espécie de pulsação, sujeito exclusivamente à contempla-ção daquelajanela, também o meu coração e o meu olhar, no meio da agitada aglomeração de tantas imagens que se ofereciam, se concentravam e entregavam apenas a uma única, o rosto da criança emoldurado pela cartola e pelas roupas pretas, a sua inocência, a sua receptividade ao belo, a sua instintiva felicidade.
1953

RECORDAÇÃO DO PASSADO

Nas encostas floresce a urze,
A giesta fita-a em tufos acastanhados
Quem se lembra hoje de como em Maio
Os bosques estavam de verde banhados?
Quem sabe ainda como é o canto do melro,
Como soava a chamada do cuco?
O que antes soou tão encantador e belo
Está já esquecido e caduco.
No bosque a grande festa da noite de Verão,
A lua cheia sobre o monte além,
Quem foi que as descreveu, que as fixou?
Tudo foi disperso, tudo debandou.
Em breve também de ti e de mim
Ninguém se lembrará e terá o que contar
Vivem já outras pessoas aqui
Não haverá a quem possamos faltar.
Pela estrela da tarde e as primeiras neblinas
Iremos então aguardar,
De bom grado no imenso jardim de Deus
Iremos florescer e murchar.

(REGRESSO AO ESTADO SELVAGEM)
Faz parte da disposição própria e da consistência curiosamente relaxada dos tempos de vida mais tardios que esta última perca bastante em termos de realidade, ou pelo menos em termos de proximidade ao real; em si mesma já uma dimensão da vida algo incerta, a realidade torna-se mais rarefeita, mais translúcida, aquilo que de nós exige já não se apresenta com a mesma força e a mesma irreverência de antes, é já possível falar, brincar e negociar com ela. A realidade para nós, os velhos, já não é a vida, mas antes a morte, que aguardamos não como se de algo exterior se tratasse, mas sim como algo que sabemos habitar de ntro; é certo que tentamos defender-nos das dores e padecimentos que a sua proximidade nos causa, mas não contra ela mesma. Aprendemos a aceitá-la, e se acaso cuidamos mais de nós e nos preservamos mais que anteriormente, o certo é que dela cuidamos e a preservamos, pois esta está connosco, está dentro de nós, é o ar que respiramos, a nossa tarefa, a nossa realidade.
Entretanto aquilo que outrora nos rodeava perde realidade, perde mesmo em verosimilhança, já não é evidente e incontestadamente válido, podemos ora aceitá-lo ora rejeitá-lo, detemos um certo poder sobre o que nos rodeia. A vida quotidiana ganha assim uma espécie de surrealidade folgazã, os velhos e rígidos sistemas já não são assim tão válidos, os pontos de vista e as entoações são deslocadas, o valor do passado sobe em flecha em relação ao do presente e o futuro já não nos interessa verdadeiramente. O nosso comportamento do dia-a-dia, do ponto de vista da razão e das velhas regras, torna-se irresponsável e brincalhão, perde seriedade, é aquilo a que correntemente se chama "voltar a ser criança". Muito disso é verdade e n_F_o tenho dúvidas que, sem me dar conta e sem poder evitá-lo, tenha muitas reacções infantis. Certo é, porém, que nem sempre, de acordo com o que a observa-ção me diz, elas se sucedem sem que me dê conta delas ou que as não controle. Também os velhos, em posse de toda (ou apenas metade?) da sua razão, poderão fazer coisas infantis, pouco práticas, pouco rentáveis e em tom de brincadeira, de modo seme-lhante ao que a criança emprega quando fala com a boneca, com o mesmo prazer de brincar com que a criança, pela simples acção da sua disposição fantasiosa, transforma a horta que a mãe cultiva numa selva povoada de tigres, cobras e tribos índias de intenções pouco amistosas.
Um exemplo: um destes dias à tarde, depois de ler a correspondência, dirigi-me ao jardim. Digo "jardim", muito embora na realidade se trate de uma encosta muito íngreme que rapidamente recupera o seu estado silvestre, mantendo alguns socalcos de vinha. Embora as videiras sejam mantidas em boas condições pelo nosso velho jornaleiro, tudo o resto demonstra uma vigorosa tendência de se transformar de novo em floresta. Onde há dois anos atrás ainda havia um relvado, a relva está agora fraca e rala, em vez desta abundam as anémonas, os selos-de-salomão, os arandos, aqui e ali também amoras silveshes e urze, e, um pouco por todo o lado, um musgo deveras lanudo. Este musgo, bem como todas as plantas vizinhas, deveria ser pastado por ovelhas e o terreno pisado pelas suas patas, de modo a que o prado pudesse ser salvo, mas como não temos ovelhas e, por isso mesmo, também não te-ríamos estrume para espalhar no prado salvo, a tenaz rede formada pelas raízes dos arandos e das plantas suas camaradas vai avançando ano após ano e instalando-se cada vez mais naquele relvado, sendo o terreno progressivamente devolvido à flo-resta.
De acordo com a disposição que me anima, observo este regresso ao estado selvagem com azedume ou satisfação. Por vezes lanço-me furiosamente sobre uma sec-ção do prado moribundo, lanço-me ao pescoço daquele crescimento silvestre, arranho-o com ancinho e unhas, arranco sem dó nem piedade os tufos de musgo que se desenvolvem entre os apertados montículos de relva, encho um cestinho com restolho de arando, juntamente com as raízes que também puxo, sem no entanto depositar grande fé na utilidade de tal acto. Ao longo dos anos a minha actividade de jardinagem tem vindo a tornar-se uma espécie de actividade de eremita, sem qualquer sentido prático; o único aspecto prático que daí decorre beneficia-me a mim apenas, a minha higiene mental e física, mantendo-me ocupado. Quando as dores nos olhos e na cabeça se tornam insuportáveis, preciso de uma mudança na actividade física, tenho de variar a actividade mecânica. Este trabalho de faz-de-conta como jardineiro e executante de queimadas, desde há tantos anos inventado por mim próprio para atingir esse propósito, não é apenas uma desculpa para mudar de actividade física, serve para me descontrair, para meditar, para urdir mais alguns fios da minha fantasia, para me concentrar no estado de alma que então me anima. De vez em quando, porém, tento dificultar um pouco o processo de florestação. Outras vezes fico diante daquele aterro que fizemos no extremo sul do terreno há mais de vinte anos. Compõe-se da terra e das inúmeras pedras que foram retiradas aquando da construção de um fosso que visava travar o avanço da floresta, tendo logo então sido plantados framboeseiros.
Este fosso está agora coberto de musgo, ervas do bosque, fetos e arandos, bem como algumas árvores de porte já imponente, de entre as quais se destaca uma umbrosa tília, que aí se erguem como postos avançados da floresta que teima em progredir lentamente. Nessa tarde, em particular, não nutria qualquer sentimento contrário ao musgo e ao silvado, ao processo de regresso à floresta; em vez disso olhava a medrança de todas aquelas plantas silvestres com um misto de espanto e satisfação. Por todo o lado no pequeno prado se via os jovens narcisos, com a sua folhagem carnuda, ainda não completamente floridos, com cálices fechados, ainda não brancos, mas suavemente amarelados.
Avancei então lentamente pelo jardim, ia observando a folhagem da roseira, jovem, vermelho-acastanhada e translúcida, iluminada pelo sol da manhã, e os caules nus das dálias acabadas de transplantar, entre os quais, com uma indomável força vital, se enrolavam e elevavam os robustos pedúnculos de martagão, até que ouvi um pouco mais abaixo o dedicado vinhateiro Lorenzo a matraquear com os regadores para a frente e para trás, decidindo então ir ter com ele e pedir-lhe conselho nas delicadas questões da política da jardinagem. Desci cuidadosamente, um socalco após o outro, pela encosta, armado com alguma ferramenta, fiquei satisfeito ao reparar nos jacintos-das-searas que cresciam no meio da erva, os mesmos que eu em tempos idos espalhara às centenas sobre toda a encosta, detive-me em considerações sobre qual seria naquele ano o tipo de canteiro mais adequado para as zínias, alegrei-me ao ver os belos goivos-amarelos e foi com algum desconforto que reparei nos buracos e falhas da cerca improvisada com ramos entrelaçados que servia para delimitar os montes de folhas e ramos velhos que iriam servir de adubo. Estes amontoados vegetais estavam agora cobertos com o bonito vermelho das flores de cameleira sobre eles caídas. Acabei de descer a encosta até à horta, situada já em terreno plano, cumprimentei Lorenzo e encetei a conversa que tinha planeado perguntando-lhe como se encontravam de saúde ele e a sua senhora. Para além disso, trocámos opiniões sobre o estado do tempo. "Ainda bem que finalmente parece vir aí alguma chuva", dizia eu. Lorenzo, por seu turno, que tem quase a minha idade, apoiou-se na pá que estava a utilizar, lançou um breve olhar de soslaio às nuvens que cruzavam o céu e abanou a cabeça coberta de cabelo grisalho. Nesse dia não choveria. Nunca se sabe, por vezes pode haver surpresas, se bem que... E uma vez mais desviou o olhar astuto para o céu, abanou a cabeça energicamente e deu por encerrada a conversa sobre a chuva: "No, signore."
Passámos então para as hortaliças, para as cebolas acabadas de plantar, teci encómios a tudo e dirigi a conversa para a verdadeira razão da minha presença ali. A cerca do monte de adubo ali em cima com certeza não aguentaria muito mais tempo, parecia-me aconselhável proceder à sua recuperação, claro que não nesta precisa altura, quando toda a gente estava bastante atarefada e havia muito que fazer, mas talvez lá para o Outono ou o Inverno? Lorenzo estava de acordo e combinámos que quando ele lançasse mãos a essa obra, seria mais acertado não se limitar a substituir os ramitos de casta-nheiro entrelaçados ainda verdes, mas sim mudar logo as estacas também. É certo que as que lá tinha ainda durariam um anito, mas assim era melhor... "Sim, sim", respondi eu, e uma vez que estávamos a falar do monte de adubo, já agora também gostaria que ele fizesse o favor de no Outono não colocar aquela terra boa toda nos socalcos lá de cima, mas que me deixasse um tanto de parte para pôr nos canteiros das flores, pelo menos uns dois caminhos de mão. Pois sim, e já agora também não deveríamos esquecer-nos de tratar dos morangueiros este ano. O último canteiro dos morangueiros, aquele junto à sebe que já estava em pousio há alguns anos, deveria ser limpo. E assim foram surgindo, tanto a mim como a ele, ideias e sugestões, boas e úteis, para o Verão, lá para Setembro ou mais para o Outono. Depois de discutirmos tudo isso em pormenor, segui o meu cami-nho, Lorenzo voltou ao trabalho, e ficámos ambos satisfeitos com os resultados desta nossa conferência.
Nenhum de nós se lembrou de mencionar algo que ambos sabíamos perfeitamente, mas que, a ter sido dito em voz alta, perturbaria a harmonia desta conversa e torná-la-ia meramente ilusória. Tínhamos acabado de estar a negociar um com o outro despretensiosamente e de boa-fé, ou quase... Não obstante, Lorenzo sabia tão bem quanto eu que esta conversa, por muito bons e justos que fossem os planos e resoluções dela emanados, não perdura-ria na sua memória nem na minha, que não seriam precisos quinze dias para que ambos tivéssemos esquecido de todo as combinações feitas a propósito da cerca do monte de adubo e dos morangueiros. A nossa cavaqueira matinal sob o céu pouco inclinado para largar chuva constituíra apenas um fim em si mesmo, tratara-se de um jogo, de um divertimento, um empreendimento puramente estético sem quaisquer consequências na prática. Para mim fora um prazer poder observar o rosto do bom e velho Lorenzo durante aqueles breves momentos, poder ser objecto da sua diplomacia, que oferece ao interlocutor uma fachada da mais polida cortesia sem no entanto este ser levado a sério. Tendo ambos aproximadamente a mesma idade, nutrimos um pelo outro um sentimento fraterno, pelo que, de cada vez que um de nós coxeia de maneira mais pronunciada ou parece estar mais aflito dos dedos inchados, não se troca palavra alguma sobre o assunto, mas o outro produz um sorriso compreensivo e ligeiramente soberbo e, por essa vez, ainda que numa base de simpatia e solidariedade, fica animado pela satisfação de poder considerar-se quem nesse momento apresenta mais robustez e vigor. Para além disso, antecipamos então com pesar o dia em que um de nós já não poderá estar presente e junto do outro.
Extraído de Notizblätter um Ostern, 1954

ÍNDICE
Folha seca........ 3
(Harmonia do movimento e do repouso) ...... 5
Sol de Março ......... 21
Acerca da idade....... 23
Chuva no Outono....... 33
Dia de Inverno cinzento............. 40
Rapazinho............. 43
Degraus.................46
A linguagem da Primavera .................49
Noite cansada.......... 54
O velho e as suas mãos. 56
O pequeno limpa-chaminés.................. 58
Recordação do passado.. 75
(Regresso ao estado selvagem) ............. 77

OUTONO ANTECIPADO

O odor das folhas mortas anda no ar,
As searas secas, quais olhos sem expressão,
Sabemos não tardar que uma mudança no tempo
Dê golpe de misericórdia ao cansado Verão.
As vagens dos tojos crepitam. Não tarda
Parecer-nos-á já fabuloso e distante
Tudo o que hoje julgamos ter como certo;
Uma simples flor parecer-nos-á errante.
Na alma atemorizada cresce o desejo
De que ao seu Outono não falte cor e alegria,
De presa à existência por muito mais não se manter,
De, como uma árvore, assistir ao próprio fenecer.

(O ÊXTASE DA PROSPERIDADE E A FEBRE DA ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA)
Quando eu, depois de uma guerra mundial e de alguns reveses do destino, vim para Montagnola há quarenta anos, náufrago mas com vontade de lutar e de recomeçar, esta era uma aldeola adormecida, situada no meio de vinhedos e florestas de castanheiros. Assim permaneceu ao longo de muitos anos, até que também a nossa colina se viu afligida por aquela doença que Knut Hamsun tão impressionante e inquietantemente descreve em Filhos da Época e Segelfoss By (A Cidade de Segelfoss). Onde ainda ontem passava um caminho pedestre que serpenteava caprichosamente por entre filas de videiras e sebes de madressilva e se perdia encosta abaixo, vê-se hoje um camião parar sobre terra revolvida e descarregar tijolos e sacos de cimento; daí a algum tempo, em vez das flores do prado, das videiras e das figueiras erguiam-se casinhas de subúrbio de cores berrantes, rodeadas de cercas de arame. Da cidade e do vale chegavam até nós, ininterruptamente e sem cessar, o parcelamento, as novas construções, as estradas, os muros, as betoneiras, o êxtase da prosperidade e a febre da especulação imobiliária. A floresta, os prados, os vinhedos em socalco iam morrendo. As máquinas da construção civil matraqueavam e o martelo de rebitar estrondeava quando eram cravados os rebites nos tanques de óleo. Ninguém podia dizer nada contra, as pessoas estavam no seu direito; também eu há algumas décadas atrás chegara aqui, delimitara um pedaço de terra plantando sebes, construíra uma casa e um jardim e abrira caminhos para os servir. É certo que não fora considerado então um dos "filhos da época", mas sim um maluco solitário, alguém que se lembra de vir morar para longe da aldeia, que planta árvores, que declara guerra às ervas daninhas e que olha com alguma altivez a cidade e as povoações vizinhas lá em baixo. Não tardei a largar essa altivez, até porque a nossa aldeola se tornou uma "cidade de Segelfoss", foi sendo construída casa após casa, estrada após estrada, foram abertas novas lojas ou ampliadas as existentes, passou a haver uma nova estação de correios, um café, um quiosque onde se vendiam revistas e centenas de novas ligações telefónicas; desapareceram os caminhos por onde passeávamos outrora, os locais onde costumava pintar, onde nos tempos de Klingsor se descansava. A grande vaga tinha-nos alcançado, deixáramos de ser uma aldeia e as redondezas haviam deixado de ser mera paisagem. Por muito recôndita que tivesse sido a localização da casa que construíramos havia quase trinta anos, a grande vaga chegava agora até ali e molhava-nos os pés, prado após prado era vendido, emparcelado, urbanizado e cercado.
A localização sobranceira a uma encosta íngreme e a serventia de um caminho estreito e em más condições protegiam-nos ainda um pouco, mas os socalcos abaixo do nosso terreno, com as suas fileiras de videiras e árvores e o velho e pitoresco estábulo, aliciavam já alguns potenciais compradores, em parte construtores, em parte especuladores, a ponto de, de quando em vez, se ver gente desconhecida a trepar por ali com um ar examinador, entretidas a ver as vistas e a medir distâncias com passos compridos. No dia seguinte ou no próximo também este restinho de natureza e tranquilidade nos seria roubado. Não se trata apenas de dois velhotes e do seu bem-estar; esta casa era algo que os nossos patronos aqui tinham construído, planeado e posto à nossa disposição, que nos havia sido entregue para dela usufruirmos e que sabíamos agora não poder restituir incólume.
Extraído de Bericht an Freunde, 1959

( O MUNDO JÁ POUCO TEM PARA NOS OFERECER)
O mundo já pouco tem para nos oferecer, parece muitas vezes constituir-se de pouco mais do que barulho e receio, mas o certo é que a erva e as árvores continuam a crescer. Quando um dia a terra estiver completamente coberta de caixotes de betão, as nuvens continuarão a correr no céu e adquirir sempre novas formas, e aqui e ali as pessoas, por intermédio da arte, precisarão de manter uma porta aberta para o divino.

FIQUE BEM, SENHOR MUNDO

O mundo está hoje em pedaços,
Outrora amámo-lo com ardor,
Agora, porém, já nem a morte
Desperta em nós qualquer temor.
Não devemos ofender o mundo,
Sempre foi colorido e variado,
Em redor dele, como véus ao vento,
Agitam-se encantos do passado.
Reconhecidos, queremos despedir-nos,
Abandonamos o grande palco sem rancor,
Que nos deu alegrias e tormentos,
Mas deu-nos, sobretudo, muito amor.
Fique bem, senhor Mundo, e não deixe
De engalanar-se, manter-se jovem e belo,
Tivemos a nossa conta de satisfação
E da sua miséria, da sua desolação.

(UM CLAMOR DO LADO DE LÁ DAS CONVENÇÕES)

Há alguns dias um jovem que me enviou uma carta di-rigiu-se-me como "velho e sábio". "Deposito confiança em si", escrevia ele, "pois sei que o senhor é velho e sábio." Estava nessa altura a viver momentos em que me sentia particularmente bem e peguei nessa carta, que de resto era muito semelhante a centenas de outras de muitas outras pessoas. Não me pus a lê-la de enfiada, antes pesquei aqui e ali uma frase ou outra, algumas palavras, observei-a com a máxima atenção e pus-me a tentar extrair dela a sua essência. "Velho e sábio" estava lá escrito, algo que era capaz de despertar uma gargalhada num velho cansado e que se tornara resmungão, que julgara em tempos e por várias vezes, durante a sua vida longa e rica em experiências, estar infinitamente mais perto da sabedoria do que nesse momento, na sua presente e pouco animadora situação, reduzido que estava a menos do que fora. Velho, sim, sou-o sem dúvida, velho e consumido, decepcionado e cansado. E, no entanto, a noção de idade, de velhice pode ter um sentido bem diferente! Quando se fala de lendas antigas, casas e cidades antigas, árvores antigas, sociedades antigas, cultos antigos, a ideia de idade contida neste adjectivo nada possui de depreciativo, não possui um tom trocista ou de desprezo. A mim próprio apenas conseguia aplicar as boas qualidades da idade de modo muito limitado; sentia-me inclinado a aproveitar apenas a carga negativa do significado da palavra. Enfim, para o jovem correspondente a palavra "velho" poderia, no que me diz respeito, ter um valor e um sentido pitoresco, imaginando-me de barba grisalha, de sorriso brando, entre o enternecedor e o venerável; este era, pelo menos, o sentido adjacente que a palavra sempre teve para mim nos tempos em que eu próprio ainda não era velho. Muito bem, podemos perfeitamente aceitar a palavra, entendendo-a e tomando-a como uma forma de tratamento respeitosa.
Mas e a palavra "sábio"?! Sim, qual o significado disso? Se o sentido em que foi empregue era geral, algo indistinto e nebuloso, se era um epíteto de uso corrente, se no fundo não significava nada, o melhor seria então pô-lo de parte, não o utilizar. Se não fosse esse o caso, se aquela palavra fosse mesmo usada para significar aquilo que designava e não um sentido oco, como haveria eu de saber, como poderia distinguir? Lembrei-me de um método antigo, frequentemente aplicado por mim, o método da associação livre. Descontraí-me e descansei um pouco, dei alguns passos pela minha sala de trabalho, repeti para mim mesmo a palavra "sábio" e fiquei à espera de qual seria a pró-xima palavra a vir-me à mente. O que em primeiro lugar me veio à cabeça foi Sócrates. Não se tratava de uma mera palavra, mas sim de um nome, e atrás desse nome não se escondia uma abstracção, mas uma figura, a figura de uma pessoa. Qual seria então a relação entre a vaga noção de "sabedoria" e o nome tão real e cheio de conteúdo que era "Sócrates"? Não era difícil de descobrir. A sabedoria era precisamente a característica que os professores de escola e do liceu, que as sumidades discursantes perante salas repletas de ouvintes, que os autores dos artigos de fundo nas revistas académicas associavam de imediato a Sócrates quando começavam a falar dele. Sócrates, o sábio. A sabedoria de Sócrates, ou, como diria essa sumidade dos meios académicos, "a sabedoria socrática". Nada mais havia a dizer sobre essa sabedoria. Mal se ouve essa expressão, porém, logo se anuncia uma realidade, uma verdade, isto é, o verdadeiro Sócrates, uma figura bastante forte e convincente apesar da ornamentação inerente a todas as lendas a ele associadas. E esta figura, este velho ateniense de rosto feio mas bondoso, pronunciou-se acerca da sua própria sabedoria de modo perfeitamente inequívoco: afirmou, com todo o vigor e terminantemente, reconhecer que nada sabia, absolutamente nada, pelo que não tinha qualquer pretensão ao título de sábio...
Ali estava eu, o velho sábio, diante do velho Sócrates, que não era sábio, e não me restava senão defender-me ou envergonhar-me. Razão para me envergonhar tinha mais do que muita, pois independentemente de todas as manhas e todas as subtilezas utilizadas, eu sabia muito bem que o jovem, que se dirigia a mim chamando-me sábio, não o fazia apenas motivado pela sua imprudência e pela sua igno-rância, próprias da sua condição de jovem, mas sim porque eu próprio tinha dado azo a que tal acontecesse, porque eu o cativara a ponto de ele o fazer, porque na realidade para tal lhe concedera poderes através de algumas das minhas palavras poéticas, nas quais se poderá entrever algo parecido com experiência e reflexão, com ensinamentos e sabedoria de velho. Se bem que eu próprio tenha mais tarde vindo a colocar entre aspas a maioria das minhas "máximas de sabedoria" formuladas poeticamente, se bem que tenha expressado dúvidas, repudiado ou mesmo declarado sem efeito coisas que anteriormente afirmara, a verdade é que durante toda a minha vida produzi mais afirmações do que negações, certo é que dei mais o meu acordo ou o meu silêncio do que combati, demonstrei frequentemente grande reverência pelas tradições do espírito, da fé, da língua e dos usos e costumes. Nos meus escritos é incontestável a presença aqui e ali de alguns relâmpagos sem trovão, rasgões nas nuvens e nas ornamentações das tradicionais figuras de altar e imagens de culto, fissuras por detrás das quais se escondiam ameaçadores fantasmas apocalípticos. Aqui e ali surge a alusão que aquilo que de mais certo se possui é a miséria, que o pão mais verdadeiro do ser humano é a fome; a verdade, porém, é que feitas as contas, tal como os demais seres humanos, acabei por optar por consagrar-me aos mundos da beleza formal e das tradições, escolhi os jardins das sonatas, das fugas e das sinfonias em detrimento dos céus de fogo apocalípticos, os jogos mágicos e o consolo da reconfortante linguagem em vez daquelas experiências em que a linguagem se esgota e se transforma em nada, porque por um momento simultaneamente belo e terrível, porventura feliz, porventura mortal, somos contemplados pelo indizível, pelo impensável, pela essência do mundo que apenas deve ser apreendida enquanto mistério e ferimento. Se o meu jovem correspondente não viu em mim um Sócrates que nada sabe, mas antes um sábio no sentido das sumidades académicas e das publicações da especialidade, terei afinal de contas sido eu mesmo a conferir-lhe esse direito...
A investigação minuciosa em torno da expressão "velho e sábio" não pareceu trazer-me grandes proveitos. Para conseguir terminar e de alguma maneira ver-me livre desta carta, decidi mudar a abordagem, invertendo-a. Em vez de pegar em certas palavras individualmente e tentar esclarecer o seu sentido, experimentei explorar o teor da carta, perceber qual o objectivo que levara o jovem a escrever a sua carta. Esta fora então motivada por uma pergunta, uma pergunta à primeira vista bastante simples, portanto de resposta à primeira vista igualmente simples. Rezava assim: "Terá a vida um sentido? Não seria melhor apontar logo uma arma à cabeça e dispará-la?" À primeira vista, esta pergunta não parece admitir muitas respostas. Poderia responder do seguinte modo: "Não, meu caro, a vida não tem sentido, e na realidade é melhor... etc., etc..." Poderia, por outro lado, dizer "A vida, meu caro, tem com certeza um sentido, e essa solução da bala na cabeça nem sequer devia ser equacionada". Ou então: "A vida pode até não ter um sentido, mas isso não é razão para darmos um tiro na cabeça." Ou ainda: "A vida tem um sentido, mas é tão difícil fazer-lhe jus ou sequer entrevê-lo, que o me-lhor a fazer é mesmo colocar uma bala na cabeça... etc., etc."
Estas seriam, logo assim à primeira, as respostas possíveis à pergunta do rapaz. Mas mal eu continuo em busca de mais possibilidades, cedo chego à conclu-são que não são quatro, nem oito, mas cem ou mil respostas. E, no entanto, quase se poderia jurar, para esta carta e para este correspondente parece só haver uma resposta possível, apenas uma única porta para a li-berdade, uma única liberta-ção do inferno que é o seu sofrimento.
Para encontrar esta única resposta possível não há sabedoria nem idade que me valham. A questão levantada pela carta deixa-me sozinho no meio da escuridão, pois estes pedaços de sabedoria que tenho à disposição, bem como aqueles que outros curadores de almas, ainda mais velhos e experimentados, podem dispensar adequam-se perfeitamente a livros e prédicas, a conferências e ensaios, mas não a este caso específico e verdadeiro, não a este doente sincero e leal, que por um lado sobrestima demasiado o valor da sabedoria e da idade, mas que o faz com toda a seriedade e que me rouba das mãos quaisquer armas, manhas ou truques através da simplicidade de palavras como "deposito confiança em si".
Como poderá então esta carta, com uma pergunta simultaneamente tão infantil e tão séria, obter a sua resposta?
Da carta chegou até mim, veio qual relâmpago ao meu encontro, algo que eu apreendi mais com os nervos do que com a razão, que sinto e processo mais com o estômago ou com o sistema simpático do que com a experiência e a sabedoria: um sopro de rea-lidade, um relâmpago produzido por uma nuvem fendida bem a meio, um clamor do lado de lá das convenções e da tranquilidade, para o qual não há remédio senão anular-se e guardar silêncio, ou então obedecer e aceitar a invocação. Talvez eu ainda tenha a possibilidade de escolher, talvez ainda possa dizer que não consigo ajudar o pobre rapaz, que sei tão pouco quanto ele, talvez possa esconder essa carta debaixo de um maço de muitas outras cartas e esperar, ainda meio consciente da sua presença, que acabe por me esquecer dele, que vá progressivamente desaparecendo. Mas, ao pensar nisso, uma coisa é-me já certa: só conseguirei esquecê-lo verdadeiramente quando conseguir responder-lhe ou, melhor dizendo, quando conseguir responder-lhe em condições. Saber isso, estar convencido disso não é resultado de experiência ou sabedoria, mas sim da força dessa mesma invocação, do reencontro com a realidade. A força que dará forma à minha resposta já não brota de mim mesmo, da minha experiência, da minha esperteza, do exercício, das minhas qualidades humanas, mas sim da própria realidade, da ínfima fracção de realidade que esta carta me trouxe. A força que vai possibilitar dar resposta a esta carta está encerrada na própria missiva, ela própria dará resposta a si mesma, o jovem responderá a si mesmo. Se conseguir extrair de mim, a pederneira, o velho e sábio, uma faísca, terá sido o seu martelo, a sua pancada, a sua necessidade, terá sido toda a sua força que deu origem a essa faísca.
Não posso ocultar que já por várias vezes recebi cartas com esta mesma pergunta, lendo-as todas e tendo respondido ou não. A força da necessidade, porém, nem sempre é a mesma, não são sempre as almas fortes e puras que a determinada altura se colocam estas questões, há também os jovens ricos com as suas meias misérias e a sua entrega por metade. Já houve uns quantos que me escreveram e anunciaram que estavam a colocar nas minhas mãos a decisão sobre o seu futuro: um sim da minha parte e eles teriam melhoras e recuperariam ou, por outro lado, um não e não tardariam a morrer. Por muito premente que tudo isso soasse, não deixava eu de perceber aí um apelo à minha vaidade, às minhas próprias fraquezas, decidindo então proceder do seguinte modo: esses correspondentes não só não recuperariam com o meu "sim" como não morreriam com um "não" meu; em vez disso continuariam a cultivar essa sua problemática e dirigiriam as suas perguntas a outros pretensos "velhos e sábios", consolariam e alegrar-se-iam um pouco com as respostas destes, acabando por recolher numa pasta toda uma colecção de respostas.
Se eu não achar este jovem correspondente que ora me escreve capaz de tal coisa, se o levar a sério, se corresponder à confiança em mim depositada e tiver o desejo de ajudá-lo, tudo isto não acontecerá por meu intermédio, mas através dele, será a sua força que me guiará a mão, será a sua realidade que dominará a minha convencional sabedoria de velho, será a sua pureza que desencadeará também a minha sinceridade; não será por uma qualquer virtude minha, por amor ao próximo, por sentimentos humanitá-rios, mas por amor à vida e à realidade, do mesmo modo que depois de expirarmos, sejam quais forem os nossos desígnios e mundividências, teremos sempre de voltar a inspirar passados alguns instantes. Não somos nós que o fazemos, acontece-nos.
E se eu, arrebatado pela necessidade, iluminado pelos relâmpagos sem trovões da verdadeira vida, obrigado pela quase insuportável ra-refacção do ar, se me deixar instar a tomar uma atitude precipitada, deixarei de poder contrapor quaisquer ideias ou dúvidas a esta carta, deixarei de ter de sujeitá-la a qualquer exame ou diagnóstico; poderei apenas responder à invocação nela contida, abstendo-me de dar o meu conselho ou a minha opinião e dando a única coisa que poderá ajudar o jovem, isto é, a resposta que ele quer ouvir e que apenas precisa de ouvir pronunciada pela boca de outra pessoa para sentir que é a sua própria resposta, que foi a sua própria necessidade que ele invocou.
Não é fácil conseguir que uma carta, que uma pergunta colocada por um estranho chegue realmente ao destinatário, pois o remetente, apesar de toda a veracidade e urgência da sua necessidade, apenas poderá exprimir-se de modo convencional. A sua pergunta é "Terá a vida um sentido?", mas essa é uma questão vaga e insensata, um pouco como o tédio da vida experimentado por um jovem. A verdade, porém, é que ele não pretende dizer "a vida" - não está preocupado com filosofias, dogmatismos ou direitos humanos -, o que realmente o preocupa e motiva é apenas a sua vida. O que ele quer ouvir da minha pretensa sabedoria não é uma qualquer máxima ou uma indicação acerca da arte de conferir sentido à vida; pretende, ao invés disso, que a sua verdadeira necessidade seja contemplada e por momentos partilhada com um ser humano de verdade, sendo assim, e por esta vez, superada. Se lhe prestar esta ajuda, não terei então sido eu a ajudá-lo, mas sim a realidade da sua necessidade, terá sido ela que por uma hora me terá despido da sabedoria e velhice, a mim, que sou velho e sábio, ba-nhando-me com uma vaga glacial e incandescente de realidade.

Extraído de Geheimnisse, 1947

FIM DE AGOSTO

O Verão a que já renunciámos
Recuperou uma vez mais o seu vigor
Resplandece, condensado em dias breves,
Jactante, exibe céu limpo, sol e calor.
Assim pode um homem, no fim do grande esforço,
Depois de por decepção se haver retirado,
Uma vez mais subitamente confiar nas vagas,
Atrever-se a viver o que da vida tenha restado.
Se se desperdiça em nome de um amor
Ou se guarda para um projecto último,
Ressoa a consciência que tem do fim
Nos seus actos, no desejo mais íntimo.

VIVÊNCIAS OUTONAIS

O incomparável Verão deste ano, um ano que para mim foi recheado de presentes, festas e momentos gratos para o coração, mas também de tormentos e traba-lhos, começou, lá para o fim dos seus dias, a perder alguma da sua disposição alegre, agradável e compassiva, passou a sofrer de acessos de melancolia, desgosto e desinteresse, dir-se-ia mesmo de tédio e vontade de morrer. Se de noite nos fôssemos deitar com o céu brilhante de tão estrelado, seriamos de manhã por vezes surpreendidos por uma luz rarefeita, cinzenta, cansada e doente, a varanda estaria encharcada e dela emanaria um frio húmido. O céu deixava nuvens frouxas e disformes avançar e pairar baixas sobre os vales e a todo o momento parecia estar disposto a largar novos aguaceiros. O mundo, que há não muito tempo respirara o pino do Verão e a segurança que este proporciona, exalava agora o medo e a amargura do Outono, da decomposição e da morte, muito embora os bosques e mesmo os prados e encostas, que de resto nesta altura do ano já estariam queimados e castanho-amarelados, mantivessem ainda firmemente o seu verde. Adoecera, o nosso Verão ainda não há muito tão robusto e de confiança, ficara com aquele ar cansado, o temperamento tornara-se instável e "tristonho", como se diz na Suábia, mas ainda estava vivo. A quase cada um desses acessos de frouxidão, de deixar-se ir, de quase tédio, seguia-se uma reacção de defesa, um desabrochar, uma tentativa de regresso à beleza dos dias anteriores. E estes dias - muitas vezes já só horas - em que as coisas renasciam e se revigoravam possuíam uma beleza especial, comovente e quase aterradora, um sorriso de Setembro transfigurado, em que se combinavam maravilhosamente o Verão e o Outono, a força e o cansaço, a vontade de viver e a debilidade. Em certos dias, a beleza própria da idade, da idade deste Verão, debatia-se com lentidão e de espaço a espaço, com pausas para recuperar o fôlego, pausas de exaustão, a luz suave e resplandecente conquistava hesitantemente o horizonte e os cumes das montanhas: à noite, o mundo e o céu estavam em perfeita serenidade, calmos e alegres, frescos e claros como que a prometer outros tantos dias soalheiros. No entanto, a noite deitava novamente tudo a perder, pois de manhã já o vento arrastava pesadas nuvens de aguaceiros por sobre a paisagem encharcada, esquecido estava já o alegre e promissor sorriso da noite, apagadas as aromáticas cores e de novo extinta e exausta a viva bravura e a coragem resultantes do combate do dia anterior.
Não é apenas por mim que observo com desconfiança e alguma inquietação estas oscilações e reviravoltas estranhamente excêntricas. Não era apenas a minha vida quotidiana que era posta em causa por estas irrupções e que se via obrigada a preparar-se para enfrentar uma temporada de encerramento em casa e no escritório. Estava também prestes a acontecer algo importante, acontecimento esse que por si só justificaria plenamente o desejo de um céu mais amigável e de algum calor: a visita de um velho e caro amigo da Suábia. Esta visita, já por diversas vezes adiada, estava marcada para daí a poucos dias. Muito embora esse amigo apenas quisesse ser meu convidado por uma única noite, seria para mim uma perda irremediável se a chegada, a estada e também a partida tivessem de acontecer debaixo de condições meteorológicas lúgubres e melancólicas. Por essa razão observava com apreensão os achaques e as melhoras, os inquietos altos e baixos do tempo. O meu filho, que me fizera companhia durante uma prolongada ausência da minha mulher, ajudava-me a pôr o jardim e a vinha em ordem; em casa eu cumpria as tarefas quotidianas, fui também à procura de um presente para oferecer à visita que esperava e, ao serão, contava ao meu filho um pouco acerca da pessoa que esperava, da nossa amizade, do génio e da obra do meu amigo, do quanto ele era na sua terra reverenciado e amado por aqueles que o conheciam como legado vivo e personificação das melhores tradições, como um dos mais valorosos talentos da sua terra. Como me teria sido penoso se Otto - que, tanto quanto eu sabia, desde há décadas não voltava às terras do Sul e nunca antes vira a minha casa, o meu jardim e a vista sobre o vale e o lago - tivesse de observar tudo isto ao frio e à luz molhada e tenebrosa de um dia de chuva. Secretamente havia ainda uma outra ideia que me ocupava e atormentava, uma ideia estranhamente limitadora e humilhante. O meu amigo de juventude começou por ser advogado e depois disso burgomestre de uma cidade, ao que se seguiu um período como funcionário do Estado, após o qual, já na reforma, se viu assoberbado com todo o tipo de cargos honoríficos, alguns deles de importância, mas nem por isso viveu alguma vez em condições de abastança ou sequer confortáveis. Sob o regime de Hitler e por não querer submeter-se a este enquanto funcionário, sofreu, juntamente com a família, um período de fome e privação, depois a guerra, os bombardeamentos, a perda da casa e dos bens; suportara sempre com coragem e alegria as condições de vida espartanas e despretensiosas a que se viu obrigado. Qual seria a sua reacção ao ver-me aqui, poupado pela guerra, ao encontrar-me numa casa espaçosa e agradável, com duas salas de trabalho, moço de recados e outros tantos confortos que só dificilmente dispensaria, tudo coisas que lhe pareceriam de um luxo antiquado?
É certo que ele também sabia um pouco acerca da minha vida, sabia que todas estas coisas agradáveis e porventura faustosas que actualmente eu possuía tinham sido adquiridas à custa de privações e renúncias ou que me haviam sido oferecidas. Ainda assim, sei que o meu bem-estar não despertaria nele, talvez o mais sincero dos meus amigos, qualquer inveja, mas com certeza este não deixaria de ter no final de reprimir um sorriso, motivado por todas as coisas supérfluas e inúteis que encontrara em minha casa e que me pareciam ser indispensáveis. A vida leva-nos por estranhos caminhos: outrora tivera inibições e uma certa dificuldade em aceitar o facto de ser pobre e de andar com as calças um pouco esfarrapadas, mas agora era a posse de algo e as condições de vida prazenteiras de que dispunha que me provocavam vergonha. Experimentara pela primeira vez essa sensação ao albergar os primeiros emigrantes e refugiados.
Contei ao meu filho como e quando nos encontrámos pela primeira vez e nos tornámos amigos. Há sessenta e um anos, estávamos então também em Setembro, havíamos sido deixados pelas nossas mães no convento de Maulbronn para aí frequentarmos a escola, episódio esse por mim descrito num dos meus livros (3); {(3) O episódio referido encontra-se descrito em Hermann Hesse, Hans (tít. original Unterm Rad), Difel, Lisboa, 2000. (N. do T.)}
trata-se de uma cerimónia bastante conhecida por toda a Suábia. Otto começou por ser meu colega, antes ainda de nos tornarmos amigos. Tal só veio a verifcar-se em reencontros posteriores, mas o certo é que se desenvolveu uma amizade cordial e firme, porém desprovida de sentimentalismos. O meu amigo tinha com a criação poética uma relação imediata e muito forte, herdada já do seu pai, culto e dotado de considerável erudição, cuidada e alimentada ao longo de toda uma vida, o que o tornava bastante receptivo à obra e à personalidade de um poeta de quem ainda guardava recordações. Pelo seu firme enraizamento no solo natal e o forte sentido de identidade nacional, este amigo afigurava-se-me digno de toda a minha admiração e por vezes também de uma certa inveja, pois essa sua natureza conferia ao seu carácter já de si calmo e reflectido uma segurança e uma base de sustentação que me faltavam. Estava bastante longe de qualquer sentimento nacionalista e era talvez ainda mais susceptível do que eu a qualquer gabarolice e clamor patriótico, mas na sua identidade suábia, no seu conhecimento da paisagem e história da sua terra, da língua e da literatura, nos adágios que sabia e nos hábitos e costumes de que era conhecedor, Otto sentia-se como se estivesse em casa. Aquilo que começara por ser uma herança natural, o à-vontade com os segredos e mistérios da existência, com as leis do crescimento e da vida, também com as enfermidades e perigos dessa identidade nacional, desenvolvera-se ao longo de décadas de estudo e experiência e tornara-se um conhecimento profundo, invejado mesmo por alguns eloquentes patriotas. Em todo o caso, para mim, alheio que estava, consistia na personificação da verdadeira identidade suábia, naquilo que esta possui de melhor.
Finalmente ele chegou e teve lugar a festa do reencontro. Estava apenas um pouco mais velho, os seus movimentos pareciam algo lentos desde a última vez em que nos encontráramos, mas, tal como todas as vezes até então, ele parecia-me sempre admiravelmente robusto e vigoroso para a sua idade, que de resto era a mesma que a minha. Erguia-se firmemente sobre as suas pernas de caminhante, como sempre via-me a seu lado muito mais precário e débil. Não veio sem trazer um presente para o anfitrião. Feito emissário dos meus parentes suábios, trouxe-me uma pesada encomenda que continha todas as cartas que eu próprio enviara à minha irmã Adele entre 1890 e 1948, pelo menos todas aquelas que ainda se conservavam. Deu-me deste modo não só a oportunidade de evocar tempos idos no decurso da nossa conversa, como também toda uma arca cheia de passado, condensado e documentado. Apesar de o pequeno presente que para ele preparara, à vista daquele que me trouxera, parecer agora quase insignificante, o certo é que, desde o momento da sua chegada, pus de lado quaisquer sensações de vergonha e, alegremente e de consciência tranquila, mostrei-lhe a casa. Estávamos ambos felizes por nos reencontrarmos, ele mostrava-se bem-disposto apesar da viagem. A presença deste convidado representava para mim um regresso aos tempos de rapaz e ao país da minha juventude. Fui também bem-sucedido no meu intento de demovê-lo de partir logo na manhã seguinte, pois ele concordou em adiar a partida um dia. Para com o meu filho desempenhou o papel de um senhor de idade afável e educado, para quem, apesar dos seus 75 anos, uma pessoa recém-conhecida não constitui um fardo, mas sim um estimulante motivo de alegria. Também Martin se apercebeu que estava ali diante de uma oportunidade de conhecer um homem invulgar e de grande valor; por várias vezes, munido da sua câmara fotográfica, se aproximou de nós e discretamente nos fotografou enquanto conversávamos diante da casa.
Daqueles para quem eu escrevo este relato, poucos serão tão velhos quanto eu. A maioria deles porventura não poderá saber a importância que tem para os velhos, sobretudo quando a sua vida foi passada longe dos espaços e imagens da sua juventude, rever um objecto que é capaz de testemunhar a rea-lidade desses tempos, seja uma velha peça de mobília, uma fotografia empalidecida ou uma carta, cuja caligrafia e papel, ao serem "revistos" muito mais tarde, são capazes de abrir e encher de luz verdadeiras câmaras repletas de tesouros da vida passada, nas quais reencontramos alcunhas e expressões familiares que hoje em dia já ninguém entenderia e cujo tom e conteúdo nós próprios só depois de um pequeno e agradável esforço somos capazes de reconhecer. E muito mais, muito mais ainda do que esses documentos de tempos longínquos significa o reencontro com uma pessoa ainda viva, que outrora foi menino e jovem connosco, alguém que também conheceu os nossos professores que há muito estão sepultados, alguém que também guarda recordações deles, algumas delas que nós mesmos já esquecemos. Olhamo-nos, eu e o meu velho camarada da escola, e cada um de nós vê no outro não apenas os cabelos brancos e os olhos cansados sob as pálpebras pregueadas e hirtas, cada um de nós vê o outrora por detrás do hoje. Não são apenas dois velhos que cavaqueiam; para além disso conversam também o seminarista Otto com o seminarista Hermann, e cada um deles, para lá dos muitos anos que se acumularam em ambos, observa no outro o camarada de 14 anos, continua a ouvir a mesma voz de rapaz dos velhos tempos, vê-o sentado nos bancos da escola a fazer caretas, vê-o a jogar à bola e a fazer corridas, de cabelos ao vento e olhos faiscantes, entrevê no rosto ainda infantil os traços iniciais da satisfação, comoção e devoção com que foram brindados os primeiros encontros com o espiritual e com o belo.
Em jeito de comentário à parte: o facto de, com o avançar dos anos, as pessoas desenvolverem frequentemente o gosto pela história, gosto esse que na juventude não tinham, prende-se com o reconhecimento da existência de diversas camadas que se vão sobrepondo no rosto e no espírito dos seres humanos à medida que as décadas de experiências e sofrimentos vão passando. Regra geral, ainda que disso não tenham plena consciência, todos os velhos partilham de um modo de pensar histórico. O aspecto exterior das coisas não chega para satisfazê-los, como acontece com os jovens; não é que queiram prescindir dele ou anulá-lo, mas debaixo dele pretendem encontrar e apreender mais profundamente a sucessão de estratos que se formaram com as experiências, aquilo que confere ao presente todo o seu peso.
Enfim, o primeiro serão foi uma verdadeira festa. Não apenas trocámos recordações da juventude, não nos ficámos por meros relatos sobre a vida de cada um, sobre o estado em que nos encontramos ou sobre a morte recente de um qualquer camarada de Maulbronn, houve também lugar a conversas e confissões de carácter geral, sobre assuntos referentes à Suábia e à Alemanha, sobre a vida cultural por aquelas bandas, sobre os feitos e os padeceres de contemporâneos importantes. As conversas foram acima de tudo alegres, mesmo quando falávamos de coisas sérias o tom era mais de brincadeira e de distanciamento, o que aliás até é natural e fica bem a velhos como nós quando se trata de assuntos da actualidade. Para mim, o eremita, tudo isso constituiu uma excitação a que não estou habituado, havíamos ficado sentados à mesa mais tempo do que o habitual, falara e ouvira falar durante três horas seguidas, havia sido brindado com calorosos cumprimentos da pátria de outros tempos e ficara firmemente enredado na teia de recordações, pelo que pres-senti desde logo que a noite que se seguia não iria ser pacífica. Não me enganei, mas de bom grado pagaria esse preço pela bela experiência que me tinha sido dada a viver. Na manhã seguinte estava doente e cansado, mas feliz por o meu filho se revelar tão solícito e prestável, por ele me apoiar. O meu amigo estava bem-disposto e descontraído, como sempre, nunca antes o vira doente, nervoso, aborrecido ou exausto. Nas primeiras horas da manhã deixei-me ficar quietinho, tomei um remédio e a partir do meio-dia comecei a sentir-me melhor. O tempo estava bonito e pude então convidar o meu visitante para realizar um passeio em redor da nossa colina. Não me provocou quaisquer sentimentos de vergonha ou sequer de inveja vê-lo tão robusto, tão restabelecido pelo sono, tão receptivo a tudo; pelo contrário, fez-me até bem, ao notar que uma aura de tranquilidade envolvia este amável homem, uma espécie de ataraxia própria da antiguidade clássica, que, de boa vontade e grato, eu divisava nele e deixava também actuar sobre mim. Como foi bom, como foi belo e autêntico, constatar que ambos somos tão distintos de temperamento, constituição e aptidões! Mais, como foi belo constatar que cada um de nós se mantivera fiel à sua essência e que se tornara precisamente aquilo que a sua natureza lhe ditara; o descontraído mas incansável funcionário público com uma forte inclinação para a literatura e a erudição e o literato nervoso, que rapidamente se encontra num estado de fadiga, mas ainda assim rijo e tenaz. Feitas as contas, cada um de nós tinha logrado atingir e pôr em prática aquilo que podia exigir de si próprio e aquilo que devia ao mundo que o rodeia. Talvez a vida de Otto tivesse sido a mais venturosa, mas não pensávamos grandemente em termos de ventura, em todo o caso não fora esse o sentido da nossa busca.
Pelo menos num aspecto considero que lhe levava vantagem. Era três meses mais velho que ele e experimentara já o jubileu do meu septuagésimo quinto aniversário; tinha-o superado, o meu agradecimento fora feito e começara a ser dispensado de comparecer pessoalmente em eventos festivos pelos organizadores mais compreensivos. Ele, porém, o meu galhardo amigo suábio, tinha tudo isto diante de si, e não gozaria de qualquer dispensa; em breve teria de submeter-se a toda aquela estafa festiva, e não seria uma estafa pequena, pois aguardavam-no umas quantas homenagens. Da minha parte, um pequeno presente alusivo ao seu jubileu estava já nas mãos de amigos que residiam em Estugarda, pronto a ser entregue, um pequeno manuscrito ilustrado. Não tinha qualquer dúvida que ele estava perfeitamente à altura daquilo que o aguardava, saberia com toda a dignidade e gentileza presenciar as ce-rimónias, alocuções e distinções, retribuindo com desvelo as centenas de apertos de mão e vénias. Muito embora não tivesse estado tão na mira das luzes da ribalta como eu, também não escolhera como lema da sua vida a sábia expressão "Bene vixit qui bene latuit"; era um homem conhecido por muitos, que, para além dos nazis, teria possivelmente tido vários inimigos e travado várias batalhas, e que agora, no crepúsculo da sua vida de dedicação e trabalho, representava para os entendidos um dos mais indispensáveis expoentes do espírito suábio. Não falámos dos dias de homenagem que se acercavam, mas apesar disso referimo-nos às instituições culturais da nossa terra para as quais a sua colaboração, em certos tempos dificeis, havia sido decisiva, chegando em alguns casos a salvá-las. Falámos também um pouco das respectivas mulheres, uma vez que a dele há bem pouco tempo estivera adoentada e a minha aproveitara para se ausentar duas semanas e passar umas férias bem merecidas a realizar um velho sonho e visitar Ítaca, Creta e Samos.
Também o nosso segundo e último serão decorreu de modo completamente jovial e harmónico, trouxe-me uma grande quantidade de achados do baú de riquezas do passado, bem como umas quantas expressões decorrentes da experiência do meu amigo. Era demasiado consciencioso e amava de mais a língua para poder ser um tagarela verboso, mas falava sem esforço, só que vagarosamente e escolhendo as palavras com cuidado.
Despedimo-nos mais tarde do que pretendíamos, pois ele queria partir no dia seguinte a uma hora a que o meu dia normalmente ainda nem sequer teria começado e eu sabia que o meu filho lhe faria boa companhia. No momento da despedida trocámos um sorriso, sem que qualquer de nós pusesse por palavras aquilo que lhe passou pela cabeça: "Talvez esta tenha sido a última vez."
Os dias começavam a ser cada vez mais outonais, os dias de chuva cada vez mais sombrios, os dias bonitos cada vez mais frios, de tal modo que em muitos cumes até já havia neve. O domingo que se seguiu à partida do meu convidado foi particularmente bonito, subimos até um ponto alto de onde se consegue avistar as monta-nhas do cantão de Wallis. Na maioria das aldeias em redor andavam as pessoas ocupadas nas vindimas. Sentimos uma grande satisfação por poder presenciar todas estas imagens coloridas e desejámos que o meu amigo pudesse também ter assistido àquele dia, ao azul, ao dourado, ao branco dos cumes das montanhas à distância, à cristalina serenidade do ar, aos grupos coloridos de vindimadores nas vinhas em socalcos.
E precisamente nesta altura em que no cimo das montanhas pensávamos nele, o meu amigo morreu.
Regressara a casa satisfeito e de perfeita saúde, tivera mesmo oportunidade de enviar postais a uns quantos amigos onde mencionava a visita a Montagnola, entre os quais a minha irmã, avisara-me da sua chegada e retomara rapidamente a actividade, pois um dos cargos que desempenhava reclamara a sua atenção. Naquela mesma tarde em que fôramos brindados com uma luminosidade tão invulgarmente magnânima ele morrera, sem qualquer resistência, após uma breve e ligeira indisposição. Fui avisado logo na manhã seguinte por um telegrama, onde me era pedido que fizesse um breve elogio fúnebre, e por uma pequena missiva enviada pela sua mulher logo de seguida. Dizia assim: "Ontem, domingo, às duas horas da tarde, o meu marido morreu, de forma inesperada mas pacífica. Teve a oportunidade de testemunhar, aquando da visita que lhe fez, o amor e amizade que por ele nutre, razão pela qual pretendo agradecer-lhe. Acompanhe-o também agora com os seus pensamentos."
Sim, com todo o meu co-ração dirigi os meus pensamentos para ele. Esta era uma perda extremamente dolorosa, mas antes do mais parecia-me que este homem, que em vida muita gente de bem e de valor comprovado tinha considerado um exemplo a seguir, tivera uma morte também ela exemplar. Demonstrara sentido de responsabilidade e dedicação ao trabalho até ao último dos seus dias, não se entregara doente ao leito de morte; morrera sem quaisquer queixumes, sem fazer qualquer apelo à compaixão nem exigindo assistência, tivera uma morte singela, tranquila e suave. Era uma morte com a qual, a despeito de todo o pesar, não se poderia deixar de estar de acordo, uma morte que punha suavemente um fim a uma vida de coragem e de serviço, uma morte que gentilmente poupava o meu amigo - que talvez não se tivesse apercebido do seu próprio cansaço - àquilo que o mundo dele reclamava, às fadigas que o jubileu que comemoraria dentro de poucos dias lhe traria.
Considero uma dádiva, uma graça divina, que ele tenha passado alguns momentos comigo antes de se entregar ao descanso eterno, que se tenha sentado à minha mesa, que me tenha trazido cumprimentos e presentes da nossa terra natal, que eu tenha possivelmente sido o último com quem ele, longe do quotidiano e das actividades que o reclamavam, tenha tido uma conversa, que ele me tenha abençoado com a sua presença próxima e amiga com a tranquilidade, calor humano e alegria que dele emanava. Sem esta última experiência é bem possível que não tivesse conseguido entender o porquê da sua partida, ou, porque "entendimento" ainda assim é uma palavra demasiado grande, pelo menos deste modo pude aceitá-la como boa, como justa, como um desfecho harmonioso. Possam muitos dos seus amigos partilhar dessa mesma felicidade, e possam eles e eu, quando disso tivermos necessidade, encontrar na sua figura, no seu carácter, na sua vida e no seu fim um consolo e um exemplo reconfortante.
1952

ÍNDICE
Outono antecipado...... 3
(O êxtase da prosperi- dade e a febre da especulação imobiliária)................ 5
Fique bem, senhor Mundo............... 13
(Um clamor do lado de lá das convenções).. 15
Fim de Agosto.......... 36

PASSEIO NO FINAL DO OUTONO

A chuva de Outono agitou o bosque cinzento,
O vento matinal faz estremecer o vale de frio,
Os frutos caem do castanheiro com um baque,
Estalam e esboçam um sorriso, molhado e castanho.
O Outono agitou também a minha vida
O vento arranca-lhe folhas dilaceradas
Abana cada um dos ramos - onde está o fruto?
Floresci amor, mas o fruto foi a mágoa.
Floresci fé, mas o fruto foi o ódio.
O vento fustiga os meus ramos infecundos,
Rio-me dele e resisto às tempestades.
Que frutos são esses? Qual o meu desígnio!
Floresci, e florescer foi o meu propósito.
Agora feneço, e fenecer, nada mais, é meu intento
Modestos são os fins que o coração se propõe.
Deus vive em mim, morre e sofre em mim,
No meu peito, isso basta-me como desígnio.
Bom ou mau caminho, flor ou fruto,
Não importa, não passam de nomes.
O vento matinal faz estremecer o vale de frio,
Os frutos caem do castanheiro com um baque,
Esboçam um sornso, firme e límpido. Eu também.

(A PROPENSÃO PARA OS HÁBITOS INALTERADOS E AS REPETIÇÕES)
[..../] Um pouco diferente é a maneira de as pessoas de idade viverem as coisas e quanto a isto não me permito nem gosto de ter ilusões ou inventar quaisquer ficções; em vez disso mantenho-me agarrado à certeza que uma pessoa mais nova ou mesmo um jovem não faz a menor ideia acerca do modo como as pessoas de idade vivem e experimentam as coisas. Na realidade, para estes não parece haver novas experiências, uma vez que já tiveram o seu quinhão, já há muito viveram a maior parte daquilo que lhes estava reservado. As suas experiências "novas" são cada vez menos frequentes, não passando muitas vezes de repetições de coisas já várias vezes vividas, são novas camadas de tinta num quadro aparentemente já há muito completado. Sobre as velhas experiências existentes recebem novas e finas camadas de tinta ou de verniz, camadas essas aplicadas sobre dez ou cem outras camadas preexistentes. Possuem em si um elemento de novidade, e muito embora não sejam experiências primárias são verdadeiras, pois acabam por representar, entre outras coisas, sempre um reencontro consigo mesmo, um teste a si mesmo. A pessoa que vê pela primeira vez o mar ou que ouve pela primeira vez As Bodas de Fígaro experimenta algo diferente e com certeza mais forte do que aquela que o faz pela décima ou quinquagésima vez. Essa última terá para o mar e para a música olhos e ouvidos menos activos, mas mais experimentados e apurados; não apenas assimilará essa impressão que já não lhe é nova de modo diferente e mais diferenciado do que aqueles que o fazem pela primeira vez, mas também ao experimentar novamente determinada impressão reviverá as vezes anteriores, não se limitará a experimentar apenas o mar e o Fígaro, que já lhe são conhecidos, de uma nova maneira, antes encontrar-se-á consigo própria, com o seu Eu mais novo, deparará de novo com as muitas fases anteriores da sua vida que serviram de enquadramento à experiência, tanto faz se com um sorriso, com um ar trocista, se com superioridade, comoção, vergonha, alegria ou arrependimento. Em geral, o mais comum na idade avançada é que relativamente àquilo que experimentou e ao modo como o fez, a pessoa tenda mais para a comoção e a vergonha do que para um sentimento de superioridade. Em especial com pessoas produtivas, como é o caso dos artistas, quando nos últimos estádios da sua vida se lhes voltam a deparar o vigor, a intensidade e a plenitude próprias dos seus melhores anos, do apogeu da sua existência, apenas raramente são despertados sentimentos como "Oh, que fraco e imprudente que eu era antes!"; comum é, em vez disso, o desejo "Oh, tivesse eu ainda alguma da energia de outrora!"...
Nós, poetas e intelectuais, tendemos a dar grande importância à memória: este é o nosso capital, vivemos dele. Quando, porém, algo proveniente do submundo do esquecido e deitado fora nos surpreende, seja isso agradável ou não, fá-lo sempre com uma força e um ímpeto tais que não se comparam com as recordações que cuidadosamente cultivamos. De vez em quando penso ou forma-se em mim a conjectura que o impulso de andar de um lado para o outro e conquistar o mundo, a sede de novidade, de coisas ainda não vistas, de viagens e de exotismo, tudo coisas que a maioria das pessoas com alguma fantasia experimentou de certo modo na juventude, poderia ser uma espécie de sede de esquecimento, uma tentativa de expulsar e repelir aquilo que se passou e que nos atormenta, de cobrir imagens vividas com a maior quantidade possível de novas imagens. Ao invés disso, a propensão dos idosos para os hábitos inalterados e as repetições, para a sempre renovada procura dos mesmos lugares, pessoas e situações, seria então uma ambi-ção de reunir um património de recordações, uma necessidade jamais satisfeita de se assegurar daquilo que a me-mória preservou e talvez também um desejo, uma leve esperança, de ver este tesouro de recordações preservadas até aumentado. Talvez um dia esta e aquela expe-riência, este e aquele encontro, esta e aquela imagem ou rosto que foram esquecidos ou para sempre perdidos, possam assim ser reencontrados e acrescentados ao património de recordações existente. Todas as pessoas idosas, ainda que disso possam não se aperceber, estão em busca do que já se passou, do que parece irrecuperável, mas que não é necessariamente irrecuperável nem passado, pois sob determinadas circunstâncias, por exemplo a poesia, pode ser recuperado e para sempre arrancado das garras do passado.
"Extraído de Engainer Erlebnisse, 1953

(A VERDADE)
A verdade é um ideal tipicamente jovem, o amor, por seu turno, um ideal das pessoas maduras e daqueles que se esforçam por estar preparados para enfrentar a diminuição das energias e a morte. As pessoas que pensam só deixam de ambicionar a verdade quando se dão conta que o ser humano está extraordinariamente mal dotado pela natureza para o reconhecimento da verdade objectiva, pelo que a busca da verdade não poderá ser a actividade humana por excelência. Mas também aqueles que jamais chegam a tais conclusões fazem, no decurso das suas experiências inconscientes, um percurso semelhante. Ter consigo a verdade, a razão e o conhecimento, conseguir distinguir com precisão entre o Bem e o Mal, e, em consequência disso, poder julgar, punir e sentenciar, poder fazer e declarar a guerra - tudo isto é próprio dos jovens e é à juventude que assenta bem. Se, porém, quando envelhecemos, continuamos a ater-nos a estes ideais, fenece a já de si pouco vigorosa capacidade de "despertar" que possuímos, a capacidade de reconhecer intuitivamente a verdade sobre-humana.
***
A idade e a esclerose fazem progressos, por vezes o sangue já não quer circular pelo cérebro como devia. Porém, estes males têm também o seu lado positivo: já não apreendemos tudo com a nitidez e o ímpeto de antigamente, muito do que nos dizem passa-nos ao lado, já nem sequer sentimos certos golpes e alfinetadas que recebemos e uma parte do nosso ser daquilo que outrora foi o Eu, já está algures, lá onde o todo não tardará a estar.
***
Temos curiosidade em conhecer certas enseadas dos mares do Sul que estão por descobrir, os pólos da Terra, queremos entender os ventos, as correntes, os relâmpagos e as avalanchas - mas a curiosidade em relação à morte é ainda maior, à derradeira e mais ousada experiência desta existência. É que julgamos saber que, de todas as experiências e descobertas do entendimento, apenas são satisfatórias e justas aquelas pelas quais não hesitaríamos em dar a vida.
***
Quando ficamos velhos e fazemos o que havia a fazer, pertence-nos em silêncio estreitar a amizade com a morte. Já não precisamos dos outros seres humanos. Conhecemo-los bem, já os vimos em número suficiente. Precisamos é de sossego. Não é de bom-tom procurar-se alguém nessas condições, abordá-lo e torturá-lo com tagarelices. Mais conveniente será passar frente à porta de sua casa e agir como se ninguém lá morasse.

A ANTIQUÍSSIMA FIGURA DO BUDA
CORROÍDA PELO TEMPO E ABANDONADA NUM DESFILADEIRO NO MEIO DE UMA FLORESTA JAPO NESA

De contornos suavizados e macilento, vítima
De muitas chuvas e geadas, de musgo verde
Cobertas, a tua doce face e as grandes pálpebras
Cumprem silenciosamente o objectivo,
A decadência voluntária, a decomposição
No Universo, no informe Ilimitado.
Ainda o teu gesto que lentamente se desfaz
Revela a antiga nobreza da tua real missão,
Na humidade, na lama, na terra, das formas livre
Procura o cumprimento do seu sentido.
Será amanhã raiz e murmúrio da folhagem,
Será água, onde a pureza do céu se reflecte
Franzir-se-á, será hera, alga e feto
Imagem da mudança na unidade eterna.

PARÁBOLA CHINESA
Um velho, de seu nome Chunglang, que quer dizer "Mestre Rochedo", possuía um pequeno terreno nas montanhas. Certo dia aconteceu-lhe perder um dos seus cavalos. Vieram então os vizinhos para lhe demonstrarem o pesar que sentiam pela desgraça sucedida.
O velho, porém, perguntou-lhes:
- Como sabeis vós que tal foi um revés?
E, alguns dias mais tarde, lá voltou o cavalo, mas acompanhado de uma manada inteira de cavalos selvagens. Apareceram novamente os vizinhos que queriam felicitá-lo pela boa ventura.
O velho da montanha, por seu turno, retorquiu:
- Como sabeis vós que tal foi uma sorte?
Uma vez que tinha agora tantos cavalos à disposição, o filho do velho começou a desenvolver o gosto pela equitação e certo dia acabou por partir a perna. Lá voltaram eles, os vizinhos, para demonstrar ao velhote a sua tristeza pela desdita sofrida. Uma vez mais respondeu-lhes este:
- Como sabeis vós que tal foi um revés?
No ano seguinte apareceu por aquelas bandas a Comissão dos Granjolas, em busca de homens corpulentos e bem constituídos para servirem de criados descalçadores do imperador e para carregar a liteira. O filho do velho, que ainda não recuperara do problema da perna, ficou para trás.
Chunglang sorriu.

O DEDO APONTADO

O mestre Dju-dschi era, segundo nos contam,
De jeito calmo, suave e tão modesto
Que evitava de todo a palavra e o ensinamento,
Pois a palavra é aparência
E evitá-la era o seu grande intento.
Quando alguns estudantes, monges e noviças
O sentido do mundo, o bem supremo
Com palavras belas e rasgos de iluminação
Tentavam compreender, guardava ele silêncio,
Receoso de cometer qualquer excesso.
Quando junto dele tanto os vaidosos
Como os sensatos indagavam
Pelo sentido das velhas escrituras, do Buda,
Da iluminação, do início e fim do mundo,
Guardava sempre o seu silêncio,
Apenas erguia o dedo, apontava para cima.
Este dedo calado, para cima apontado,
Cada vez mais cordial, como a advertir,
Louvava e punia, ensinava, falava
Tão certeiro ao coração do mundo, da verdade
Até que a simples e lenta elevação do dedo
Era já entendida, temida e respeitada.

(EXPERIMENTÁMOS SOFRI MENTOS E DOENÇAS)
Experimentámos sofrimentos e doenças, vimos amigos ser levados pela morte e ela já nos bateu à janela, não apenas do lado de fora, mas também cá dentro, também em nós cumpriu o seu dever e fez os seus avanços. A vida, que antes nos era tão evidente, tornou-se um bem precioso e sempre escasso, a posse outrora inquestionável transformou-se num empréstimo a termo incerto.
Contudo, este empréstimo de que não se conhece a data de vencimento nem por isso perdeu um pouco sequer do seu valor; a perigosidade do empreendimento apenas veio aumentá-lo. Continuamos a amar a vida como até hoje sempre sucedeu e queremos manter-nos fiéis a ela, entre outras razões em nome do amor e da amizade, que, à semelhança de um vinho de boa cepa, com o passar dos anos em nada diminui o seu teor e valor, antes os incrementa.
***
Tenho no que respeita à morte a mesma atitude de antes: não a odeio nem tão-pouco a temo. Se me pusesse a investigar com quem, para além da minha mulher e dos meus filhos mais gostaria de poder conviver, chegar-se-ia à conclusão que são sobretudo pessoas mortas, mortos de todos os séculos músicos, poetas, pintores. O seu génio, concentrado nas suas obras, sobrevive-lhes, é-me muito mais presente e mais real que a maioria dos meus contemporâneos. O mesmo se passa com os mortos que conheci ao longo da minha vida, que amei e "perdi", os meus pais e irmãos, os meus amigos de juventude - pertencem-me, a mim e à minha vida, hoje tanto como outrora, quando ainda estavam vivos, penso neles, sonho com eles, faço deles parte integrante da minha vida quotidiana. Esta relação com a morte não é, pois, uma mera ilusão nem uma bela fantasia, é real e faz parte da minha vida. Conheço bem o pesar causado pela transitoriedade, sinto-o em cada flor que fenece; trata-se, porém, de uma tristeza sem desespero.
***
À medida que, a pouco e pouco, todos vão desaparecendo e que, já para o fim, temos mais afinidades e nos sentimos mais próximos "do lado de lá" do que daqui, subitamente começamos a sentir uma certa curiosidade por esse Além e esquecemos mesmo o temor próprio daqueles que sempre a negam.
***
Os que já foram permanecem, naquilo que de essencial teve efeito em nós, vivos e na nossa companhia, enquanto nós próprios vivermos. Por vezes conseguimos até conversar melhor com eles, consultá-los e escutar o seu conselho, do que poderíamos junto daqueles que ainda vivem.
***
Cada percurso, seja ele rumo ao Sol ou rumo à noite, conduz à morte, a um novo nascimento, e as dores a ele associadas amedrontam a alma. Mas todos seguem esse percurso, todos morrem, todos nascem, pois a eterna Mãe devolve-os eternamente ao dia.

TODAS AS MORTES

Morri todas as mortes possíveis,
Voltaria a morrê-las de bom grado.
Morreria a morte da madeira na árvore,
Morreria a morte da pedra na montanha,
A morte da terra na areia,
A morte das folhas na crepitante erva do Verão,
E a miserável, sanguinolenta morte humana.
Quero renascer como uma flor.
Quero renascer como árvore e erva
Peixe e gamo, pássaro e borboleta,
E de cada criatura a saudade
Me fará saltar os degraus
Que levam aos últimos sofrimentos
Aos últimos sofrimentos dos homens.
Oh, arco retesado e fremente,
Quando o punho furioso de saudade
Exige que ambos os pólos da vida
Sejam dobrados e se toquem!
Ainda muitas vezes e outras tantas mais
Me perseguirás desde a morte ao nascer,
O caminho doloroso das metamorfoses,
O esplêndido caminho das metamorfoses.

(A AGONIA É TAMBÉM UM PROCESSO DE VIDA)

A agonia é também um processo de vida, não o é menos do que um nascimento, e por vezes podemos mesmo confundi-los.
***
A dor e a lamentação são a nossa primeira e mais natural resposta à perda de uma pessoa amada. Ajudam-nos a ultrapassar os primeiros momentos do luto e de infelicidade, mas não são de todo suficientes para reforçar a nossa ligação à pessoa que morreu.
É nisto que consiste o culto dos mortos numa primeira fase, mais primária: as oferendas, a decoração das sepulturas, as lápides, as flores. A celebração dos mortos deve, porém, ter também lugar ao nível da nossa própria alma, através da recordação, da evocação de lembranças com exactidão, de uma espécie de reconstrução do ente querido no nosso interior. Se formos capazes disso, a pessoa morta continuará a acompanhar-nos, a sua imagem ficará em nós guardada para sempre e ajudar-nos-á a tornar a dor frutuosa.

A MORTE, MINHA IRMÃ

Também a mim me visitarás um dia,
Decerto não cairei no esquecimento.
A corrente será quebrada,
Terá então fim o meu sofrimento.
Ó morte, minha cara irmã,
Imagino-te distante e sombria
A pairar sobre a minha miséria,
Pareces-me uma estrela fria.
Virá o dia em que te aproximarás
Repleta de um desejo abrasador
Vem, minha amada, aqui me tens,
Leva-me, sou teu, meu amor.

OUTRORA, MIL ANOS ATRÁS
Acordado de um sonho incoerente
Inquieto, sempre ávido de viagens,
Escuto noite fora a sua canção,
O sussurro dos meus bambus selvagens
Não consigo descansar ou ficar deitado,
Os velhos hábitos tenho de largar,
Faz-me voar, projecta-me para longe,
Viajo para onde o infinito me levar.
Houve uma pátria, um jardim,
Outrora, mil anos atrás.
Por entre a neve espreitava o açafrão
No canteiro onde o pássaro jaz.
Gostaria de poder estender asas
Escapar-me aos feitiços que me assombram
Voltar a viver os bons tempos,
Cujas riquezas ainda hoje me deslumbram.

PEQUENA CANÇÃO
Poema multicolor,
Magia de luz morredoira,
Felicidade desvanecida como música,
Sofredor rosto de madona,
Amargas delícias da existência...
Flores varridas pela tempestade,
Coroas colocadas sobre os túmulos,
Alegria sem duração
Estrela que cai na escuridão:
Véu de beleza e luto
Para lá do abismo do mundo.

POSFÁCIO

Hermann Hesse pertence àquele grupo de artistas que teve a sorte de envelhecer e assim experimentar todas as fases da vida, representando-as de um modo característico. Que uma índole como a dele, tão complicada e susceptível, desenvolvida ao longo de uma vida de tão grande intensidade e produtividade, atingisse a idade de 85 anos não deixa de ser surpreendente. Regra geral, quanto maior o talento, maior também é o perigo que se corre, quanto maior a intensidade da vida, tanto menor é a sua duração; a maior parte das vezes aqueles que se desviam da norma e que percorrem caminhos próprios e independentes, face aos obstáculos que os seus semelhantes lhes colocam à frente ou à resistência que lhe oferecem, deixam-se ficar pelo caminho bastante mais cedo do que é habitual, ao contrário dos que se contentam com "o mundo, tal como ele é", que a ele se conseguem adaptar e sujeitar. Pelo menos por duas vezes, aquando da sua tentativa de suicídio aos 14 anos de idade e mais tarde, com 46 anos, na crise que enfrentou antes mesmo da redacção de O Lobo das Estepes, de modo algum ficou claro se ele teria conseguido sobreviver às depressões que o assolavam, não fossem o acaso e aqueles que o rodeavam terem vindo atempadamente em seu auxílio.
Hermann Hesse conseguiu sobreviver, paralelamente a todos os conflitos interiores, também aos perigos que se lhe apresentavam do exterior, à época histórica de características hostis em que viveu e, sobretudo, à ameaça que o nacional-socialismo constituía, e deve-o unicamente à sua capacidade de antevisão política que logo em 1912 o levou a tornar-se o "primeiro emigrante voluntário" (Joachim Maass) e em 1924 fez com que adoptasse a cidadania suíça. Quem se depara com os testemunhos que Hesse deixa na sua vasta correspondência, por vezes seme-lhantes a confissões a um diário constata um exasperado contraste com as tendências suas contemporâneas, mas fica surpreendido ao ver durante quanto tempo ele aguentou esta existência plena de conflitos e quão pouca dessa amargura se espelhou na sua obra, que apresenta não tanto o tumulto da efervescência, da agitação, mas mais a frequentemente surpreendente simplicidade da clarificação.
Esta colectânea de textos acerca da idade começa com impressões fixadas por Hesse aos 43 anos. Trata-se de observações da Primavera, sobre o renascer e a renovação da Natureza, apresentadas por um homem que está precisamente a meio da sua vida, com plena consciência da transitoriedade e efemeridade do mundo das aparências, no qual se sabe incluído sem no entanto a ele se opor. A regeneração da vida que se repete ano após ano não é motivo de queixume, Hesse não se ressente de ele próprio não se encontrar já no estádio da vida que corresponde àquele que torna a Natureza tão resplandecente e prometedora; em vez disso, toma-o como incentivo para a sua própria mudança e regeneração. Já há muito que sabe o quanto as noções de idade e juventude são relativas, pois "todos os seres humanos mais dotados e mais diferenciados são ora velhos ora novos, do mesmo modo que ora são tristes ora alegres"... "Infelizmente nem sempre estamos de bem com a nossa idade, no nosso íntimo é frequente andarmos adiantados, mas ainda mais frequente é sermos apanhados e ultrapassados - a consciência e a disposição íntima estão menos amadurecidas do que o próprio corpo, reagem contra as suas manifestações naturais, exigem dele algo que este já não consegue cumprir."
Os inúteis combates entre a consciência, que de crise em crise vai rejuvenescendo, e o corpo que vai decaindo também se encontram em Hesse. Enquanto "homem de 50 anos" tem por um lado necessidade de frequentar termas, mas por outro é impulsionado por uma grande sede de viver: assim, tem pela primeira vez na sua vida lições de dança, passa alguns serões a dançar em bailes de máscaras, mas ao mesmo tempo observa-se com uma boa dose de humor negro, consciente que está da inutilidade desta fuga para a frente. Só depois de experimentar esta revolta contra o gradual desaparecimento das alegrias e prazeres do corpo e os levar até ao fim é que ele consegue apreender processos semelhantes que decorrem em seu redor. Quando, por exemplo, após uma trovoada as sombras das coisas se tornam mais nítidas e mais escuras do que anteriormente, quando banhadas pelo sol perdem em cor mas ganham em contornos, esta imagem apresenta-se-lhe como uma metáfora do processo de envelhecimento. Em vez de se queixar pela perda da cor e da sensualidade, alegra-se pelo que ganhou em termos de definição dos contornos e do perfil. Daí vai um pequeno passo até à tomada de consciência de que "a idade não é pior que a juventude, do mesmo modo que Lao-Tsé não é pior que Buda e o azul não é pior que o vermelho". A idade só se torna ridícula e indigna "quando quer fingir ser juventude".
Hesse fica cada vez mais consciente dos aspectos agradáveis do processo de envelhecimento a partir do momento em que desiste de combatê-lo: o aumento da serenidade e do autodomínio, que nos torna menos susceptíveis a certos golpes e alfinetadas; toda a riqueza em experiências, imagens e recordações do passado, que graças à benéfica acção selectiva da memória muitas vezes se nos afigura mais satisfatório e digno de ser vivido do que o próprio presente; a perspectiva de em breve nos vermos livres dos constrangimentos do corpo e de finalmente nos reunirmos com todos os amigos e pessoas amadas e reverenciadas que nos precederam na morte; por fim, também a curiosidade simultaneamente angustiada e confiante em relação àquilo que nos aguarda do lado de lá. "Talvez também a hora da morte /, Nos lance, jovens, para novos espaços, /, O apelo da vida nunca tem fm... /, Vamos, coração, despede-te e cura-te."
Quem, para além dos textos de quatro décadas de produção do autor, souber ler as magistrais fotografias do seu filho Martin Hesse, conseguirá perceber o sentido do comentário do colega Ernst Penzoldt, que achava que "o objectivo de todo o esforço de criação literária é, no crepúsculo das nossas vidas, ter o mesmo aspecto que Hermann Hesse. Já nem seria preciso lê-lo, bastaria olhar para ele para interiorizarmos a sua vida e a sua obra, pois a pessoa que se entrevê na sua escrita e o seu rosto real são idênticos. A verdade, porém, é que sem o lermos não o veríamos verdadeiramente!"

 

 

                                                                  Hermann Hesse

 

 

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