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Dois dias depois, foram de carro até Berkshire para comparecer aos cinco dias do evento hípico do Royal Ascot. Hazel era membro, portanto eles tiveram acesso irrestrito
ao camarote real. Entre as corridas, a rainha da Inglaterra e o duque de Edimburgo circulavam entre os membros na arena dos desfiles. Hazel e Henry tinham sido hóspedes
frequentes da rainha em Sandringham, portanto ela se deteve por um momento para conversar com Hazel e dar aos parabéns a ela e Hector pelo casamento. O príncipe
Philip segurou uma das mãos de Hector e o fitou com um de seus famosos olhares penetrantes.
- Você é africano, não é, Cross? - perguntou e os olhos dele cintilaram, travessos. - Como conseguiu entrar aqui?
Hector piscou uma vez, mas logo se recompôs e soltou em resposta:
- Esses africanos e gregos! Estão por toda parte. Não estão, senhor?
O príncipe Philip bufou em absoluto deleite.
- Terceiro batalhão do SAS, não foi? Ouvi dizer que você é um bom atirador, Cross. Temos de convidá-lo para ir a Balmoral dar uma mão com os faisões - ele olhou
para o seu secretário.
- Tomarei as providências necessárias, senhor - o homem murmurou.
Eles continuaram caminhando, e Hazel sussurrou para Hector:
- Estou tão orgulhosa de você! Você deu ao velho diabo o que ele merecia. Mas, a rainha não é senhorinha mais fofa que você já viu?
No quinto dia, o cavalo de Hazel, The Sandpiper, venceu o prêmio Golden Jubilee Stakes, e ela resolveu, afinal, que não iria demitir o treinador. Ela ofereceu um
jantar comemorativo no Annabel's para vinte pessoas. O embaixador norte-americano estava entre os presentes e, em retribuição, ele os convidou para uma recepção
na Winfield House, sua residência oficial, na semana seguinte. Notoriamente, o governo norte-americano havia comprado a casa de Barbara Hutton em 1955 pela quantia
simbólica de um dólar. Hazel decidiu que essa era uma ocasião apropriada para retirar os autênticos diamantes Hutton do cofre do banco, onde estavam definhando.
O embaixador norueguês era um dos outros convidados. Era sabido que ele e Hector se davam bem e, quando ouviu dizer que Hector e Hazel praticavam a pesca com mosca,
convidou-os para tentar a sorte nos oito quilômetros de águas que ele possuía no rio Namsen, na Noruega, um dos mais famosos para peixes graúdos na Europa. Quando
Hazel contou a Cayla sobre a oferta, ela soltou um grunhido tão agudo que Hazel teve de afastar o telefone do ouvido.
- Ah, eu queria estar lá com você, minha mãe querida. Amo tanto você. Por favor! Por favor me leve!
- E quanto à sua resolução de esfregar o nariz de Soapy Williams na sujeira no final do ano?
- Isso foi há séculos. Se você me deixar ir, vou trabalhar o dobro quando voltar e amar você pelo resto da vida.
Hazel enviou o BBJ para buscá-la.
As águas do Namsen eram amplas e profundas. No último dia, Hector e Cayla estavam pescando em ambas as margens do mesmo lado. Cayla fez um longo arremesso com a
vara Spey, de trinta pés e com cabo para duas mãos, e deixou a mosca boiar. Hector viu o clarão prateado bem abaixo da mosca, como um espelho apanhando a luz do
sol.
- Fique firme! - ele gritou alto. - Há um salmão monstruoso no seu rastro. Não faça nada. Deixe-o passar. Quando ele apanhar a isca, pelo amor de Deus, não ataque.
Você vai tirar o anzol da boca dele. Deixe-o levar a mosca para baixo e depois suspenda.
- Eu sei! Você me disse isso cem vezes - Cayla gritou de volta.
- Firme! Lá vem ele de novo - ele observou a ponta da vara.
O enorme flanco prateado reluziu nas profundezas do rio.
- Calma, Cay. Ele ainda está aí. Mas que inferno, ele recusou! Puxe a mosca e troque-a. Aja depressa, Cay, ele não vai ficar de bobeira o dia inteiro.
Ela estava com a água fria pela cintura, mas decapou a mosca e mordeu o tirante com os fortes dentes brancos.
- Que mosca devo colocar?
- Qual é a menor e mais escura que você tem na caixa?
- Tenho uma Munro Killer nº 14. É minúscula!
- Amarre-a e arremesse no mesmo lugar de antes.
Devido à pressa, o arremesso dela foi um pouco desajeitado e ficou um pouco aquém.
- Devo puxá-lo, Heck?
- Não. Deixe-o passar.
Ele aguardou tensamente. Não havia nenhum vislumbre na água, mas, de repente, a linha parou de balançar.
- Espere! - ele gritou. - Não faça nada.
Ele viu a ponta da vara se agitar e mover para cima e para baixo.
- Ele está brincando. Não ataque. Por favor, não ataque, Cay.
A seguir, a ponta da vara se abaixou lenta e propositalmente. - Suspenda! Agora.
Ela se reclinou para trás devagar, colocando o peso sobre o peixe, a vara se curvando como um longo arco. Nada se moveu por um longo momento.
- Acho que estou enganchada numa rocha no fundo - ela gritou.
- É um peixe, um brutamontes monstruoso. Espere. Ele ainda não percebeu que foi pego.
De repente, a carretilha guinchou como uma alma no purgatório, e a linha sibilou dentro das águas escuras.
- Tire os dedos da linha ou ele vai machucar você! Ele vai pular.
A superfície se partiu, e o salmão surgiu em uma explosão de respingos, como um projétil de prata saindo da boca de um canhão. Hector gelou quando viu o tamanho.
A menina magrinha deles estava lutando contra um adversário superior. Ela estava se segurando com dificuldade quando a linha se desenrolou, e o peixe disparou rio
abaixo.
- Segure-se, querida! Estou indo! - ele gritou, arrancando as botas impermeáveis. E então, descalço e trajando apenas ceroulas, ele mergulhou na correnteza, atravessando-a
com braçadas poderosas. Ele chegou à margem em que ela estava e emergiu atrás dela. Ele colocou as mãos sobre seus ombros para mantê-la estável sobre o chão de pedregulhos.
- Não encoste na minha vara - ela o alertou possessivamente. - Este peixe é meu, está ouvindo?
Ela sabia que, se ele encostasse na vara, isso invalidaria a pesca. Hazel, que estivera pescando no trecho acima deles, foi alertada pelo tumulto e desceu correndo
pela margem com a vara em uma mão e a câmera na outra.
- O que está acontecendo? - gritou, mas ambos estavam ocupados demais para responder.
- Você tem de fazê-lo voltar, Cay - Hector avisou. - Há uma cascata depois da curva. Se ele chegar lá, adeusinho! Puxe-o com firmeza e devagar. Não force a linha.
Ele agora segurava Cayla pelo cinto das calças impermeáveis para evitar que fosse arrastada para as profundezas do rio. Ela apoiou a vara na dobra do braço esquerdo
e manuseou a carretilha com a mão direita para deter o peixe em fuga. O salmão começou a desacelerar e, finalmente, quando restavam apenas uma dúzia de voltas na
linha da bobina da carretilha, parou. A vara foi puxada de um lado para o outro quando o peixe sacudiu a enorme cabeça. De repente, ele se virou e voltou na direção
dela com a mesma velocidade com que havia fugido.
- Tire a linha da água - Hector lhe disse. - Rebobine!
- Você não precisa gritar no meu ouvido - Cayla protestou. - Estou rebobinando.
- Mas não está indo rápido o suficiente. Não discuta. Rebobine, garota, rebobine! Se você der uma laçada de folga, ele vai quebrar a linha como se fosse algodão.
Simultaneamente, da margem, Hazel contribuía com seus conselhos e tentava fazer os dois posarem para a câmera.
- Olhe para mim, Cayla, sorria!
- Não ouse dar ouvidos à maluca da sua mãe! Mantenha os olhos no maldito peixe! - Hector a avisou. O peixe disparou rio acima como uma estrela cadente prateada.
Hector enganchou um dos braços ao redor da cintura dela e a arrastou, respingando e tropeçando nos pedregulhos. Uivando como um par de fugitivos do hospício, eles
foram atrás do salmão. O peixe se virou de novo, e eles foram obrigados a dar meia-volta com ele e persegui-lo rio abaixo. Ele os levou para cima e para baixo. De
repente, após quase uma hora de caos, o peixe parou, e eles puderam vê-lo finalmente, parado no fundo do meio do rio, balançando a cabeça como um buldogue com um
osso na boca.
- Você o arrebentou, Cay. Ele está quase pronto para vir até você agora.
- Não estou nem aí para ele. Esse merda quase me arrebentou - ela choramingou.
- Se você falar de novo desse jeito, vou contar para a sua avó, menininha.
- Pois conte. Depois disso, não tenho medo de nada, nem mesmo da vovó Grace.
Devagar e com delicadeza, ela direcionou o salmão para perto da margem, suspendendo-o alguns centímetros do fundo com movimentos de vara, e depois abaixando a ponta
para rebobinar a sobra da linha.
- Quando ele nos vir, vai fugir pela última vez. Esteja preparada. Deixe ele puxar quanta linha quiser. Não tente segurá-lo.
Mas o peixe estava quase acabado. Sua última escapada durou menos de vinte metros, e então ela conseguiu virar a cabeça do bicho e trazê-lo de volta na direção da
margem. Na água rasa, ele de repente ficou de costas, submisso e exausto, as fendas branquiais abrindo e fechando como pulmões enquanto lutava por oxigênio. Hector
se moveu com dificuldade para a frente e deslizou dois dedos sob as brânquias do peixe e, com cuidado para não rasgar as delicadas membranas, levantou gentilmente
a cabeça dele até colocá-lo nos braços como se fosse uma criança. Ele carregou o peixe até a margem, e Cayla permaneceu ao lado dele, mergulhada até a cintura nas
águas gélidas.
- Quanto ele pesa? - ela perguntou.
- Mais de quinze quilos, mas menos de vinte - ele respondeu. - Mas não tem importância. Ele é para sempre seu. É o que conta.
Hazel se ajoelhou diante deles e os fotografou com o grande salmão no colo, os rostos radiantes de felicidade.
Hector e Cayla carregaram o peixe juntos até a parte mais funda e o viraram de frente para a correnteza para que a água fluísse através das brânquias. Ele recuperou
o equilíbrio e força rapidamente e começou a se remexer para se libertar. Cayla se inclinou para beijar o nariz frio e escorregadio.
- Adieu! - ela se despediu dele para sempre. - Vá e faça vários peixinhos para eu pescar.
Em seguida, Hector abriu os braços, e, após sacudir o rabo de um lado para o outro, o peixe mergulhou rapidamente nas profundezas. Eles riram e se abraçaram de pura
alegria.
- É estranho como coisas boas sempre acontecem quando você está conosco, Heck - Cayla disse com uma seriedade repentina.
Hazel registrou o momento com sua Nikon. Era assim que ela sempre se lembraria da filha.
Eles foram de avião até Paris e colocaram Cayla num voo comercial direto até Denver. Seguiram-se quatro longos dias de discussões com funcionários da Câmara de Comércio
Francesa a respeito de tarifas e de outros problemas relacionados à importação de gás para a França. Mesmo assim, encontraram tempo para passar uma tarde no Musée
d'Orsay, admirando Gauguins, e mais um dia inteiro no Musée de l'Orangerie com as ninfetas de Monet. Em seguida foram para Genebra participar de mais um leilão de
arte. Havia um item à venda que Hazel desejava desesperadamente - um quadro encantador de Berthe Morisot, retratando uma florista parisiense. Dessa vez, Hazel se
viu em uma disputa acirrada de lances com um príncipe saudita. No final, ela teve de se render, mas ficou furiosa.
- Você estava certo, Hector, querido. Essas pessoas são perigosas.
- Menina levada! Levada! - ele a repreendeu. - Isso não é politicamente correto, de maneira alguma.
Secretamente, ele não ficou chateado com o resultado. Tinha de haver um limite para as despesas dela, com certeza!
- Não estou fazendo objeções à cor da pele dele. É o tamanho da carteira que me deixa estupefata.
Foram necessárias algumas palavras carinhosas e muito amor para que ela recuperasse o bom humor.
A Rússia era a próxima escala na festa móvel da lua de mel. Como sempre, o Museu Hermitage, em São Petersburgo, os encantou com sua variedade de tesouros de aristocratas
malfadados, saqueados pelos revolucionários bolcheviques. No entanto, as coisas saíram um pouco dos trilhos novamente em Moscou. Nos últimos dois anos, a Bannock
Oil estivera envolvida numa disputa judicial com a gigante empresa petrolífera russa Gazprom. O projeto proposto era um empreendimento conjunto na exploração de
depósitos de gás nas águas profundas do Golfo de Anadyr, no mar de Bering. A Bannock havia gasto milhões para levar a proposta à mesa de negociações. Agora, ela
tinha ido de encontro ao icebergue da intransigência russa e afundado sem deixar rastros.
- Russos insuportáveis! Tenho de encontrar uma maneira de castigá-los - Hazel esbravejou para Hector quando se acomodaram mais uma vez no luxo tranquilizador do
salão do BBJ e decolaram rumo a Osaka. - Acho que vou ter de fazer um boicote sério ao caviar e à vodca.
- Pense em todos os lindos bebezinhos russos que vão morrer de fome se você destruir a economia russa dessa maneira.
- Deus! Você é uma manteiga derretida, sr. Cross! Ok. Eu desisto. De qualquer jeito, eu nunca gostei do mar de Bering. Ouvi dizer que faz um frio terrível lá.
Hector ligou para o comissário-chefe pelo interfone.
- Por favor, traga a costumeira vodca Dovgan com suco de limão da sra. Cross.
- Nada mau - foi a opinião de Hazel ao prová-la. - Mas não vem mais nada depois? - ela olhou para a porta da suíte Versace.
- Eu tinha algo em mente - ele admitiu.
- Ótimo! Ótimo! - ela disse.
O poderoso navio-tanque estava na rampa do estaleiro de Osaka, pronto para o lançamento. Todos os membros da diretoria da Bannock Oil, mais um número de dignatários
- incluindo o primeiro-ministro japonês, o emir de Abu Zara e o embaixador norte-americano no Japão - estavam reunidos para testemunhar o evento.
O interior do navio ainda não estava completo. Ele iria navegar com uma tripulação reduzida até Chi-Lung, o porto marítimo de Taipei, em Taiwan, onde passaria pelos
arranjos finais e a instalação dos novos tanques de carga. Um elevador levou os convidados até o topo dos andaimes da popa, onde eles se sentaram no auditório suspenso.
Eles aplaudiram quando Hazel foi até a extremidade frontal da plataforma para batizar e lançar o grande navio. De tal altura, ela sentiu como se estivesse no pico
de uma montanha, com o mundo bem abaixo dela. O substituto do champanhe que ela iria espatifar no casco de aço foi uma garrafa de quase um litro e meio de chardonnay
espumante australiano.
Quando Hector questionou a escolha do vinho, ela respondeu com um tom sério:
- Não é para beber, querido. Vamos espatifá-lo. Não quero ganhar uma reputação de perdulária.
- Extremamente comedido da sua parte, meu amor - ele concordou.
Cinquenta fotógrafos tinham suas lentes focalizadas em Hazel quando ela fez o discurso na alta plataforma. A voz dela foi ampliada pelos alto-falantes até ecoar
e reverberar no pátio abaixo, onde milhares de operários estavam reunidos.
- Este navio é um monumento em homenagem à genialidade do meu falecido marido, Henry Bannock. Ele criou e controlou a Bannock Oil Corporation por quarenta anos.
Seu apelido era Ganso. Portanto, eu batizo este navio de Ganso Dourado. Que Deus o proteja e todos aqueles que nele navegarem.
O Ganso Dourado escorregou de lado pela rampa de lançamento e, quando entrou na água, ergueu uma grande onda que balançou todas as outras embarcações na bacia. Eles
acionaram as buzinas de nevoeiro, e todos os espectadores aplaudiram com exclamações de entusiasmo. Havia mais três dias de reuniões e banquetes antes que Hector
e Hazel conseguissem escapar de novo.
Eles voaram até o templo xintoísta, que trazia lembranças auspiciosas, embaixo do Monte Fujiyama. O itinerário frenético havia deixado ambos à beira da exaustão,
portanto depois da visita obrigatória à cerejeira sagrada no arvoredo do templo, eles retornaram à suíte e tomaram banho juntos na banheira. Enquanto estavam mergulhados
nas águas quase escaldantes, Hazel alcançou o celular e o ligou.
- Quatro mensagens perdidas de Dunkeld - murmurou preguiçosamente enquanto movia os dedos dos pés nas costas dele. - O que será que minha mãe quer? Ela não costuma
ser tão persistente. Qual será a diferença de fuso?
- Estamos cerca de sete horas adiante do fuso da Cidade do Cabo. Começo da tarde.
- Certo, vou tentar retornar as ligações - Hazel discou os números e foi atendida após cerca de doze toques.
- Alô, tio John. É a Hazel - ela disse e então se calou, escutando com um espanto crescente. Então, o interrompeu.
- Tio John, por que você não deixa eu falar com ela? - a raiva dela estava aumentando acentuadamente. - Certo! Dane-se. Fale com ele.
Ela cobriu o bucal com uma das mãos.
- Ele não quer me transferir para minha mãe, e não me diz o que está acontecendo. Só quer falar com você.
Hector pegou o telefone da mão dela.
- John? Sou eu, Hector. O que está acontecendo?
Houve um silêncio no outro lado da linha, mas depois ele ouviu os elaborados e dolorosos sons de um homem adulto chorando.
- Pelo amor de Deus, John! Fale comigo.
- Não sei o que fazer. Ela se foi, e agora não há ninguém para assumir o seu lugar.
- O que está dizendo não faz sentido, John. Componha-se!
- Grace. Ela está morta. Você e Hazel têm de vir para cá. Agora. Imediatamente. Por favor, Hector. Você precisa trazê-la. Não sei o que dizer a ela. Não sei o que
fazer.
A linha ficou muda. Hector olhou para Hazel. O rosto dela estava mortalmente pálido, e os olhos azuis, arregalados, tão escuros que quase pareciam negros.
- Eu ouvi - ela sussurrou. - Ouvi o que ele disse. Minha mãe está morta.
Ela começou a soluçar como seu coração tivesse sido atravessado por uma flecha, e ela o alcançou com os braços abertos. Eles se abraçaram em meio aos vapores do
banho. Depois de um tempo, Hazel se recompôs.
- Querido, eu preciso de um pouco de tempo para me recuperar disto. Você pode falar com Peter por mim?
Peter Naughton era o capitão do BBJ.
- Diga que temos de partir imediatamente para a Cidade do Cabo. Diga para estar na pista em duas horas no máximo.
Eles reabasteceram perto de Perth, no oeste da Austrália, mas estavam de novo no ar em uma hora. A próxima e última parada para reabastecimento foi nas Ilhas Maurício.
Eles tentaram contatar o tio John repetidamente, mas ele não estava atendendo ao telefone. Hazel enviou um SMS das Ilhas Maurício, informando-o da hora estimada
de chegada na Cidade do Cabo, mas quem respondeu foi a secretária de Grace, que confirmou que haveria um carro à espera deles no aeroporto de Thunder City. Quando
aterrissaram na Cidade do Cabo, os nervos deles estavam em frangalhos. Desde a partida do Japão, tinham falado praticamente apenas sobre a morte de Grace e, no final,
Hector teve de insistir para que Hazel tomasse uma pílula para dormir. Quando pousaram, ela ainda estava um pouco zonza devido ao remédio. Hector nunca a tinha visto
tão cansada e abatida.
Assim que se sentaram no Maybach e seguiram pelas montanhas em direção a Dunkeld, Hazel tentou extrair informações do motorista. No entanto, se ele sabia de algo
além do fato de a sra. Grace estar morta e do corpo ter sido levado por uma ambulância, não estava dizendo. Claramente alguém havia mandado que ficasse de boca fechada,
e era óbvio que esse alguém era o tio John. No final, ele deixou escapar uma pequena informação.
- Mas pelo menos a polícia já foi embora, sra. Hazel.
Hazel se agarrou a essa informação e tentou extrair mais dele, mas o motorista parecia aterrorizado e se retraiu para trás de uma barreira de fingida ignorância.
No final, até mesmo Hazel foi forçada a desistir de importunar o rapaz.
O tio John estava à espera deles na varanda da casa. Quando desceu as escadas para cumprimentá-los, eles mal o reconheceram. Parecia ter envelhecido uns vinte anos.
O rosto tinha uma expressão devastada. Hazel não se lembrava que os cabelos dele eram tão brancos. Ele se movia como um homem muito velho. Ela o beijou rapidamente,
e eles o fitaram nos olhos.
- O que está acontecendo, tio John? - ela perguntou. - Por que você não me diz o que aconteceu com a minha mãe? Sei que não estava doente. Como pode ter morrido?
- Aqui fora não, Hazel. Vamos para dentro, e eu conto o que sei.
Quando chegaram à sala de estar, John a levou até um dos sofás.
- Por favor, sente-se. O que tenho a dizer é chocante. Não consigo compreender direito.
- Não consigo mais esperar. Conte logo!
- Grace foi assassinada - ele soltou de uma vez e começou a soluçar.
Ele se deixou cair no assento ao lado dela, seu corpo inteiro convulsionava de dor. A expressão no rosto de Hazel mudou, e ela o abraçou para tentar confortá-lo.
Ele se agarrava a ela como uma criança desorientada.
- Grace era minha única irmã. Era tudo que eu tinha, e agora se foi.
- Conte o que aconteceu. Quem a matou? - Hazel estava sendo gentil com ele, controlando o próprio sofrimento.
- Não sabemos. Um intruso. Ele envenenou os cães e, de algum modo, conseguiu causar um curto-circuito no sistema de alarme. A seguir, entrou no quarto dela. Eu estava
dormindo a dois quartos de distância e não escutei nada.
Hazel o encarava, muda. Deixou que Hector fizesse a próxima pergunta.
- O que ele fez, John? Estrangulou-a? Matou-a a pauladas?
John balançou a cabeça.
- É horrível demais - o velho abaixou a cabeça e soluçou.
- Você tem de nos dizer, John - Hector insistiu.
John ergueu a cabeça devagar e a voz dele era tão baixa e trêmula que eles mal conseguiam entender o que estava dizendo.
- Ele a decapitou. Cortou a cabeça dela - ele disse.
Hazel engasgou.
- Meu Deus, não! Por que alguém faria uma coisa dessas?
- Ele roubou alguma coisa? - Hector perguntou bruscamente. O tom de voz dele foi duro e frio.
John balançou a cabeça.
- Então você está dizendo que ele não roubou nada? Ele não levou nada da casa? - Hector insistiu.
John levantou a cabeça e olhou diretamente para ele pela primeira vez.
- Não levou nada exceto... - fez mais uma pausa.
- Vamos, John! Diga. O que ele levou?
- Ele levou a cabeça da Grace.
Até mesmo Hector perdeu a fala por um longo momento.
- Ele levou a cabeça dela? A polícia a encontrou?
- Não. Desapareceu. Foi por isso que não consegui contar antes. É horrível demais.
Hector virou o rosto para encarar os olhos de Hazel. Ela entendeu o que a expressão no rosto dele queria dizer e ficou de pé, cobrindo a boca com uma das mãos, encarando-o.
- Jesus Cristo! - ele disse baixinho. - É a Besta novamente!
Ela tirou a mão da boca.
- Cayla! Meu Deus, salve o meu bebé! Cayla! - ela caiu de joelhos e enterrou o rosto nas mãos em concha. - Temo tanto pelo meu bebê. Preciso ir até ela.
Hector colocou um dos braços ao redor dos ombros dela e a colocou de pé. Ele olhou para John no sofá.
- Temos de ir, John. Sinto muitíssimo, mas, os vivos têm prioridade sobre os mortos. Cayla corre um perigo mortal. A menos que consigamos fazer tudo para prevenir,
a mesma coisa pode acontecer a ela.
Ele se encaminhou para a porta, ainda conduzindo Hazel.
- Vocês não podem me deixar sozinho. Por favor, fiquem comigo até pelo menos depois do funeral - John foi atrás deles chorando.
Hector não tinha nada a dizer. Ele e Hazel desceram os degraus da entrada correndo até onde o Maybach ainda estava estacionado. Ele colocou Hazel carinhosamente
no banco de trás e se sentou ao lado dela abraçando-a. Depois, ordenou bruscamente ao chofer:
- Leve-nos de volta ao aeroporto imediatamente!
Assim que estavam voando, fizeram a primeira chamada no viva-voz. Para o celular de Cayla, mas foi diretamente encaminhada para a caixa de mensagens. A próxima ligação
de Hazel foi para o dormitório de Cayla na Faculdade de Veterinária em Denver. Ela foi atendida por uma animada jovem voz feminina.
- Cayla Bannock? Certo! Não a vi hoje, mas ela deve estar por perto. Pode esperar enquanto tento encontrá-la?
Foram sete minutos de uma espera angustiante até que a menina retornasse à linha.
- Ela não está na sala comunitária. Bati na porta do quarto dela mas ninguém respondeu. Nenhuma das outras meninas do dormitório a vê desde a segunda. Você pode
ligar para o secretário do bloco principal? Vou passar o número.
Eles fizeram mais quatro ligações até localizarem Simon Cooper na Escola de Medicina.
- Alô, sra. Bannock. Perdão! Esqueci que agora está casada. Alô, sra. Cross.
- Simon, preciso falar com a Cayla. Você sabe onde ela está?
- Ah, não nos vemos desde a noite de sexta-feira. Estou estudando para as próximas provas. Cayla não está muito contente comigo. Diz que estou sendo negligente com
ela. Ela não me ligou e não atende as minhas chamadas. Acho que estou sendo punido. Eu presumi que ela estivesse com vocês em Houston por causa do fim de semana
do feriado.
- Não, Simon, não estamos em Houston. Estamos viajando. Cayla está desaparecida. Por favor, tente encontrá-la. Quando conseguir, por favor, peça para ela ligar urgentemente
para mim.
- Claro que sim, sra. Cross.
Hazel desligou, e ela e Hector se olharam.
- Não podemos tirar conclusões precipitadas - ele a tocou no braço.
- Não - ela concordou. - Deve existir uma explicação completamente lógica. Vou ligar para a Agatha em Houston.
- A secretária de Hazel atendeu sem demora. Tinha reconhecido o número de Hazel no visor.
- Boa noite, sra. Cross - disse no costumeiro tom de voz profissional. - Ou talvez não seja noite onde a senhora está.
Hazel não tinha tempo nem vontade para trocar gentilezas.
- Agatha, você viu Cayla?
- Não, infelizmente não. Em nenhum evento desde o casamento.
- Por favor, tente encontrá-la, e diga a ela para entrar em contato comigo imediatamente.
Ela desligou e olhou para Hector. Os olhos dela estavam se enchendo de lágrimas.
- Ela desapareceu - disse, desolada. - E aqui estamos nós, presos e impotentes nesta maldita máquina imbecil sobre o Atlântico. O que podemos fazer?
- Paddy está em Vancouver. Participando de um seminário. Ele me passou o número.
Ele fez uma busca rápida na lista de contatos do celular.
- Aqui está - ele discou o número, e em alguns instantes o sotaque familiar de Paddy ecoou dos alto-falantes.
- O'Quinn falando. Quem é?
- Paddy, é o Heck. Temos um alerta vermelho.
- Estou escutando. Diga o que é, Heck.
- A mãe da Hazel foi assassinada na Cidade do Cabo. O corpo foi decapitado, e a cabeça, levada pelo assassino. A coisa toda cheira à Besta. Agora é Cayla que parece
ter desaparecido da faculdade em Denver. Estamos voltando o mais depressa possível, mas acabamos de decolar da África do Sul. Você tem de pegar um voo charter para
Denver, Colorado. É onde Cay foi vista pela última vez há quatro dias. Vá para lá e a encontre, Paddy!
- Imediatamente, chefe - disse Paddy. - A primeira coisa a ser feita é declara-lá desaparecida. Quem foi a última pessoa que a viu?
- Até onde sabemos, o namorado, Simon Cooper - Hector passou o número de telefone dele para Paddy.
- Diga à Hazel para não se preocupar. Nunca ajuda.
- Ligue de hora em hora, Paddy, mesmo que não haja novidades.
Em oito horas, Paddy se encontrou com o Chefe de Polícia de Denver. Um alerta geral havia sido emitido em relação ao caso de Cayla. Todas as estações de rádio e
TV locais estavam transmitindo apelos por informações e exibindo uma foto de Cayla. Os agentes da polícia tinham sido enviados para interrogar Simon Cooper e todos
os demais alunos da classe de Cayla e do dormitório.
- Nada concreto ainda, Hector. Mas todo mundo está trabalhando no caso. Cayla não passou a noite do dormitório nos últimos três dias e não vai às aulas desde a segunda-feira.
Acabei de falar com o Chefe de Polícia de Houston. Ele conhece bem a Hazel. Tem grande respeito por ela. Vai mandar o pessoal dele checar todos os lugares frequentados
pela Cayla.
Assim que o BBJ aterrissou em Atlanta para lidar com a alfândega e o departamento de imigração, Hector ligou para Paddy.
- Precisamos tomar uma decisão, Paddy. Vamos para Houston ou Denver? Qual é seu conselho?
- Meia hora atrás recebemos uma pista da estação de TV local. Uma pessoa ligou e disse que acha que reconheceu a Cayla pela foto. Acha que viu uma menina parecida
com ela num voo de Denver a Houston há dois dias. Portanto, a busca principal muda para Houston.
- Por favor, Deus, permita que seja ela - Hazel suspirou. - Diga ao Peter para preparar um plano de voo para Houston. Vou ligar para a Agatha providenciar um carro
para nos pegar no aeroporto. Vamos chegar depois da meia-noite.
Ambos conseguiram algumas horas de sono entrecortado na última etapa do voo, mas estavam exaustos quando finalmente chegaram à propriedade dos Bannock. Todas as
luzes da casa estavam acesas, e Agatha foi ao encontro deles na porta de entrada.
- Alguma novidade? - Hazel perguntou.
- Sinto muito, sra. Cross. Não fiquei sabendo de nada desde que nos falamos da última vez. Eles estão tentando entrar em contato com todos os passageiros do voo
em que a Cayla pode ter sido vista.
Assim que chegaram à suíte, ligaram novamente para Paddy.
- Nada de novo no momento - disse a Hector. - Por que vocês dois não tentam dormir um pouco? Parece que os próximos dias serão frenéticos. Ligo de novo assim que
tiver alguma novidade para contar. Prometo.
- Tudo bem. É o que faremos, Paddy.
Ainda dormindo, Hector esticou o braço em direção a Hazel, mas embora o lençol ainda retivesse o calor do corpo dela, o lugar na cama estava vazio. Ele despertou
por completo imediatamente e alcançou a pistola que ficava sempre na mesa de cabeceira.
- Hazel! - disse energeticamente.
- Estou aqui.
Ela estava de pé ao lado da janela.
- Venha para a cama - ele pediu.
- Achei que tinha ouvido um barulho.
- O quê? Não ouvi nada.
- Você estava dormindo - ela disse. - Talvez eu estivesse sonhando.
- Venha para a cama, meu amor.
- Tenho que ir ao banheiro, estou apertadíssima.
Ela atravessou o quarto, a silhueta esguia em contraponto à luz do luar que vinha das janelas. Ela entrou no banheiro e acendeu a luz. Ela se deteve, surpresa. Havia
algo sobre a bancada de mármore que não estava lá antes dela ir para a cama. Era um objeto grande, com um pano branco e dobrado sobre ele. Ela atravessou o aposento
devagar e cautelosamente, e então viu que havia um envelope apoiado no pacote. Estava gravado em relevo, do tipo que normalmente contém um cartão ou uma mensagem
de quem deu o presente, de um amante.
- Hector! - ela suspirou em voz alta. - Ele me conhece tão bem, sabe como amo seus presentes. Meu querido está tentando me confortar.
Ela pegou o envelope. Não estava endereçado, e a aba não estava selada. Ela o abriu e retirou o cartão que estava dentro, e então olhou para ele perplexa. Não estava
escrito em inglês, mas em alguma caligrafia oriental.
- Árabe? - ela não tinha certeza.
Ela olhou para o objeto coberto e a seguir pegou uma das pontas do tecido. Ela afastou o pano para o lado, revelando duas grandes redomas de vidro, do tipo em que
espécimes de laboratório são preservadas. Ainda perplexa, abaixou-se para examinar o conteúdo das redomas de perto.
E então, ela gritou. Foi a expressão selvagem e profunda de uma alma angustiada. Ela vacilou para trás e caiu sobre o piso de ladrilhos brancos. Com as mãos e os
joelhos, arrastou-se para o canto mais afastado do recinto, e se encolheu como um animal selvagem em uma jaula. Um jorro quente de urina escorreu pelas suas pernas.
Ela abriu a boca para gritar de novo, mas uma poderosa enxurrada de vômito amarelo saiu de sua boca, e cascateou até o chão de ladrilhos.
O grito dela havia eletrizado Hector. Ele saltou para fora da cama e agarrou a pistola. Enquanto atravessava o quarto, carregou o pente da arma. Ele invadiu o banheiro
apontando a arma com as duas mãos. Agachou-se na entrada bloqueando o acesso ao quarto. Ele a viu encolhida no canto, e sentiu o fedor recente de vômito e urina.
Ficou enjoado de pavor.
"Ela está machucada", pensou, "ferida". Foi rapidamente até ela e se ajoelhou ao seu lado.
- Hazel, o que aconteceu? Havia alguém aqui? Por que você está tão assustada?
Ele tentou colocar uma das mãos sobre ela, que se encolheu evitando o toque, balançando a cabeça e apontando para a prateleira sobre a bancada. Ele se virou depressa,
com a arma apontada e o dedo sobre o gatilho preparado para um disparo rápido.
E então ele viu as duas redomas. Ele demorou um pouco para compreender o que estava vendo. Uma cabeça humana decepada flutuava na redoma preenchida por líquido conservante
incolor. No lado esquerdo, estava a cabeça de Grace Nelson. Os olhos estavam fechados, e a pele dela estava amarela devido à idade, caída e estufada. As finas mechas
prateadas de seus cabelos estavam grudadas no rosto como algas marinhas. Ela parecia muito velha, como se tivesse morrido há cem anos.
Na redoma à direita, estava a cabeça de Cayla Bannock. Os olhos estavam abertos. Pareciam estar olhando diretamente para ele. Não eram mais azuis cintilantes. Estavam
tão apagados e impassíveis como pedregulhos. Os lábios estavam ligeiramente entreabertos, e os dentes brancos mostravam o vestígio de um sorriso cínico. O tom da
pele era pálido, mas a textura era lisa e perfeita. Os cabelos flutuavam ao redor do rosto como uma nuvem dourada. Ela parecia ter acabado de despertar de um sono
profundo. Ele sabia que se continuasse a olhar para sua beleza encantadora por mais um instante, seu coração ficaria partido.
Ele se agachou e pegou Hazel nos braços, carregando-a até a cama e a colocou sobre ela. Ele alcançou o interfone ao lado da cama e ligou para Agatha. Ela atendeu
quase imediatamente.
- Diga para os seguranças revistarem a casa e o terreno em busca de um intruso. Chame a polícia. Houve um assassinato. E precisamos de um médico para Hazel - ele
fez uma pausa. - É uma emergência.
Ele rasgou a camisola de Hazel e limpou o rosto e o corpo dela com uma toalha úmida. Depois, cobriu-a com o edredom e foi para baixo das cobertas com ela, tomando-a
nos braços. Ela se agarrou a ele. Seu corpo inteiro tremia, e ela batia os dentes. Soluços terríveis, perturbadores, saíam de dentro dela. Ele a abraçou e suspirou
palavras de ternura até a chegada do médico.
- Minha esposa perdeu a filha. Foi um choque terrível - Hector explicou.
O médico aplicou uma injeção que a jogou num buraco profundo de inconsciência.
- Quero levá-la para a minha clínica e colocar uma enfermeira de plantão dia e noite até que ela se recupere totalmente - ele disse.
- Ótimo! - Hector concordou. - Há coisas que acontecerão aqui em que ela não deve ser envolvida... - ele interrompeu o que estava dizendo ao ouvir as sirenes da
polícia acelerando pelos cercados em direção à casa.
- Vou chamar uma ambulância imediatamente.
Após Hazel ser carregada de maca para o térreo, Hector beijou seu rosto inconsciente e observou a ambulância ir embora. Em seguida, voltou ao banheiro e cobriu as
duas cabeças patéticas com o pano branco. Abriu o envelope e leu a mensagem em árabe do cartão.
"A dívida de sangue são quatro. Duas cabeças e mais duas a serem cortadas antes que a dívida seja quitada."
Sete dias depois, a polícia de Denver resgatou o corpo decapitado de Cayla Bannock de um bueiro de escoamento de águas pluviais, nos fundos de uma arena esportiva
da universidade. Pessoas haviam ligado reclamando do cheiro. O cadáver estava em um estágio avançado de decomposição. Os agentes funerários o colocaram dentro de
um sarcófago de mármore branco, selado com bainhas de chumbo, juntamente com as cabeças embalsamadas de Cayla e da avó. Ambos os nomes foram gravados na tampa. Um
voo charter o levou até Steam Boat Springs, e um carro fúnebre o carregou até o mausoléu dos Bannock na Montanha da Lupa. No mesmo dia, na África do Sul, os restos
mortais de Grace Nelson foram cremados, e o tio John espalhou as cinzas pelo vinhedo de Dunkeld.
Apenas um punhado de familiares e amigos próximos compareceram ao enterro na Montanha da Lupa. O sarcófago foi depositado sobre um pedestal de mármore cor-de-rosa
à direita do pai de Cayla. O padre que havia batizado Cayla realizou a cerimônia simples. Não houve discursos. Depois, cada um dos presentes colocou uma rosa vermelha
sobre a tampa do caixão e saiu em fila. Simon Cooper estava entre eles, chorando descaradamente.
- Jamais vou conhecer uma menina como ela. Íamos nos casar e ter uma casa e filhos. Ela era maravilhosa - ele interrompeu. - Desculpe, sra. Bannock, não queria dar
show.
- Estou tão contente que tenha vindo, Simon - ela disse.
Quando Hector e Hazel ficaram a sós, eles desceram pelo gramado e se sentaram no banco de pedra. Hector olhou para o céu. Hazel sorriu com tristeza.
- Infelizmente Henry não vai aparecer - ela disse. - Não tem tempo para ficar voando por aí na forma de ganso. No momento, está ocupado demais com a Cayla e a Grace.
- Você leu meus pensamentos. Estava esperando pelo Henry - Hector admitiu. - Acho que é a primeira vez que vi você sorrir desde que tudo começou.
- Minhas lágrimas secaram - ela lhe disse. - A hora do choro ficou para trás. Vamos deixar Henry e Cayla em paz por enquanto para que possam se acostumar de novo
um ao outro.
Ela se levantou e deu a mão para ele, e os dois começaram a descer pelo caminho da montanha até a casa ao lado do lago. Enquanto caminhavam, ele não parava de olhar
de lado para o rosto dela.
"Ela não é como nenhuma mulher que já conheci", ele pensou. "As outras teriam ficado completamente destruídas por uma perda tão cruel. Mas é quase como se tivesse
ganhado forças e determinação. Consigo ver agora como foi que ela realizou tantas conquistas num curto período de tempo. Ela é uma lutadora e nunca desiste. Ela
nunca sucumbe à autopiedade. É possível que ela vá viver de luto por Cayla para sempre, mas jamais vai deixar que isso a debilite. Ela perdeu o Henry em um momento
crítico. Ela ainda sente a falta dele, mas continuou lutando sozinha e assumiu seu manto lendário. Sinto-me profundamente honrado por ter recebido o presente que
é o seu amor. É a minha armadura. Com ela ao meu lado, eu nunca mais vou conhecer a solidão."
Nenhum dos dois estava com apetite para jantar. Eles mandaram os pratos de volta para o chef na cozinha. Hector abriu uma garrafa de claret, e eles a levaram, juntamente
com as taças, para a beirada do píer e se sentaram com as pernas balançando sobre a a água. Beberam o vinho em silêncio e observaram a lua surgir por sobre o lago.
Hazel foi a primeira a falar.
- A polícia ainda não conseguiu rastrear a pessoa, ou as pessoas, que colocaram as cabeças das minhas pobres queridas onde pudéssemos encontrá-las - ela suspirou.
- Não é surpreendente - Hector retorquiu. - A segurança do seu rancho em Houston não é muito rigorosa. Há, literalmente, centenas de prestadores de serviço com acesso:
equipes de jardinagem contratadas, pessoal de entrega trazendo provisões, empregados contratados diariamente, leitores de relógios de água e eletricidade, encanadores,
pintores e eletricistas e todos os demais.
- Mas como Adam pode ter tido acesso a eles estando na África, a tantos milhares de quilômetros de distância? Com certeza essas pessoas são todas norte-americanas.
- Mais: latinas, europeias, asiáticas, africanas e imigrantes de vinte nacionalidades diferentes... incluindo somalis da Puntlândia.
Ela se virou para ele.
- Somalis? Como isso é possível?
- O Canadá tem cerca de 250 mil somalis que entraram legalmente no país, e a fronteira com os Estados Unidos é amplamente aberta. Seu país natal, a África do Sul,
está cheio de refugiados do norte do continente. Não apenas zimbabuenses e malavianos, mas quantidades enormes de nigerianos e somalis. A maioria dos somalis é da
Puntlândia, e ainda estão sob a influência de Tippoo Tip. Se a polícia chegar a capturar os envolvidos nos assassinatos da Grace e da Cayla, eles serão peixes tão
pequenos que nem sequer saberão quem encomendou a matança - Hector fez uma pausa e colocou um dos braços ao redor dos ombros de Hazel. - Então, meu amor, como vê,
este não é o final da história. Adam só está começando. Ele tem milhares de subordinados para enviar contra nós. É inútil cortar os tentáculos da Besta. Elas crescem
de volta rapidamente. Tenho de voltar e cortar a cabeça dela.
- Você não vê que é isso exatamente que ele o está forçando a fazer? É por isso que deixou aquele aviso ultrajante dizendo que iria cortar mais duas cabeças. Você
não pode se deixar levar pela armadilha dele. Não pode ir - ela colocou uma das mãos no antebraço dele e falou num tom sério e passional. - Se eu perder você, perderei
tudo.
- Não temos escolha - ele lhe disse.
- Se você vai, então eu vou junto - o tom de voz dela foi definitivo, não deixando espaço para argumentos. Um curto silêncio caiu sobre eles.
- Não, meu doce. Não posso permitir que venha. Você sabe o que aconteceu da última vez. Estaremos de novo no terreno da Besta.
- Mande o Paddy então. É para isso que ele é pago. É a especialidade dele - ela disse.
- Jamais poderia mandar um outro homem fazer algo por eu ter medo de fazê-lo. Se eu não for, então a Besta virá atrás de nós, conforme ameaçou.
- Sim, esta é a melhor solução. Deixe que ela venha. Deixe que venha ao nosso encontro em nosso território, para variar. Desta vez, você pode se preparar.
Hector a encarou sob o luar.
- Sim! - disse pensativo, e a seguir balançou a cabeça. - Não, ela jamais virá em pessoa. Mandará assassinos contratados, exatamente como fez antes. Existem hordas
de fanáticos religiosos que podem ser convocadas por ele.
- Então temos que atraí-lo com algo irresistível - ela disse baixinho -, algo tão tentador que ele não será capaz de resistir.
- Está sugerindo lançar uma isca? É uma ideia inteligente - ele assentiu. - Mas o que seria capaz de trazê-lo pessoalmente para o mundo exterior?
- O Ganso Dourado - ela respondeu.
- Meu Deus! Você tem razão - ele murmurou. - Sabemos que ele é ganancioso. Sabemos que é vingativo. Podemos deduzir que ele está também inflado de poder e vaidade
devido à nova posição: xeique do clã. O Ganso Dourado pode ser a única coisa que fará a Besta sair da caverna.
Agora que tinham algo tangível para distraí-los do desespero do sentimento de luto, tanto Hector quanto Hazel estavam reabastecidos de energia e determinação. Quando
Hector conseguiu entrar em contato com Paddy, ele estava no portão de embarque do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, à espera do seu voo para Dubai e o Oriente
Médio.
- Mudança de planos, Paddy. Queremos você de volta ao quartel-general da Bannock Oil em Houston o mais rápido possível.
- Por Deus, Heck! Algo o trouxe de volta à vida. Posso sentir na sua voz. Você não é mais o desgraçado triste e lamentoso de quem me despedi há alguns dias.
- Preparar, apontar, disparar, meu filho! Nós dois estamos mais uma vez a caminho da guerra - Hector lhe disse, e seu tom de voz foi claro e incisivo.
Hector e Hazel tinham debatido entre Abu Zara ou Tapei como base da operação. No final, concordaram que ambos os locais eram próximos demais do covil da Besta, e
suscetíveis à infiltrações dos agentes de Adam. Por fim, resolveram usar a Bannock House, a sede da corporação em Houston. A Bannock House ficava na Dallas Street,
perto do Hyatt Hotel. O 25º andar no topo do edifício tinha vista para o parque. O andar inteiro era domínio pessoal de Hazel. A segurança era rigorosa, as instalações,
abrangentes, e o conforto, hedonista. Hazel havia ponderado sobre um codinome para a operação. Ela finalmente decidiu por Operação Lampos. Em grego, a palavra significava
luz brilhante. Lampos não era apenas o nome do cavalo de guerra de Hector no clássico mito de Virgílio e Homero, mas também o escolhido por Cayla para a sua égua
palomina predileta.
- O nome tem uma conexão forte com você e Cayla - Hazel explicou. - Mas apenas para quem os conhece intimamente.
- Operação Lampos, gostei. Temos um nome. Agora precisamos de homens. Paddy deve chegar amanhã. Então poderemos discutir quem serão os outros.
Quando Hector propôs a Operação Lampos a Paddy, ele escutou sem fazer comentários e, mesmo quando Hector terminou, ele não respondeu imediatamente. Ele continuou
a rabiscar no bloco de anotações que tinha diante de si. Por fim, deixou o lápis cair e ergueu os olhos.
- O Ganso Dourado? De quem foi a ideia? - ele perguntou, e em seguida seu olhar se voltou para Hazel, que tinha permanecido sentada em silêncio à ponta da mesa.
- Tem um quê feminino.
- Você não gosta da ideia, Paddy? - ela perguntou.
- Amo. É simplesmente brilhante - ele gargalhou alegremente.
- Quem precisamos recrutar, Paddy? - Hector perguntou.
- Quanto menos, melhor - Paddy respondeu, ainda rindo. - Para princípio de conversa, Dave Imbiss. Ele é o nosso nerd de TI e ultraeficiente no planejamento e aquisição
de equipamentos e materiais. Depois, precisamos da nossa velha cara-metade, Tariq. Precisamos de um guerreiro, de um falante nativo de árabe que possa pensar como
a Besta, alguém que conheça o inimigo e o campo de batalha intimamente.
- Onde Tariq está agora? - Hector perguntou. - Você pode entrar em contato com ele?
Paddy assentiu.
- Sim. Tariq e eu criamos um sinal de contato. Ele ainda está escondido na Puntlândia, mas posso tirá-lo de lá rapidamente.
- Muito bem. Até aqui somos eu, a Hazel, você, David Imbiss e Tariq. De quem mais precisamos a bordo?
- Isso dá para o começo. Eu vejo as coisas assim: nós quatro e, claro, a Hazel, bolamos o plano básico. Enquanto vamos aperfeiçoando, talvez seja preciso chamar
especialistas para lidar com os detalhes. Quanto tempo temos até que o Ganso Dourado esteja preparado para partir?
- A primeira viagem levando um carregamento de gás natural de Abu Zara está agendada para o início de outubro - Hazel respondeu.
- Daqui a quatro meses e meio. Temos de nos mexer depressa.
- Traga Dave e Tariq para cá o mais depressa possível - Hector ordenou.
Dave Imbiss e Tariq Hakam chegaram a Houston quatro dias depois em voos provenientes de Paris e Dubai. Uma hora após a chegada deles, a primeira sessão de planejamento
da Operação Lampos teve início no último andar da Bannock House. Hector resumiu o conceito básico para os dois:
- O objetivo desta operação é atrair Adam para fora da fortaleza do Oásis do Milagre. Vai ser relativamente fácil atrair seus seguidores, mas se queremos colocar
um fim a essa rixa de sangue que ele está travando contra nós, então temos de tirá-lo de lá - ele olhou para os rostos ao redor. Todos estavam concentrados e sérios.
- Sabemos que a campanha de pirataria conduzida contra todo tráfego marinho estrangeiro no Oceano Índico está sendo orquestrada e controlada pelo xeique Adam Tippoo
Tip. A campanha se intensificou e se tornou mais sofisticada desde que Adam sucedeu o avô como xeique.
Hector pressionou o botão de controle na mesa, e o telão na parede à frente deles se acendeu exibindo fileiras de datas e números.
- Estas são as estatísticas dos números de ataques piratas no último ano do reinado do avô. Como podem ver, houve 28 ataques a navios, e todos eles ocorreram no
Golfo de Adem. Apenas nove foram bem-sucedidos, mas eles arrecadaram uma quantia de resgates estimada em 120 milhões de dólares - ele mudou de página no telão. -
Estas são as estatísticas dos últimos doze meses.
David Imbiss soltou um pequeno assovio de surpresa.
- Você tem razão de assoviar, Dave. 120 ataques, dos quais 91 obtiveram êxito. A quantia de resgates recolhida está estimada em 1,25 bilhões de dólares.
Eles ficaram perplexos e calados.
- Sim, é muito dinheiro. Quase tudo vai para os cofres de Adam. O que é interessante é que os barcos de ataque de Adam agora estão operando até mil milhas náuticas
ao largo da praia. E estão agindo assim com impunidade. Com todo o dinheiro que tem, Adam agora pode comandar navios-mãe para sua equipe de ataque. Sabemos por meio
do Tariq que ele está utilizando traineiras capturadas russas e taiwanesas para esse propósito. Todas elas possuem equipamentos eletrônicos sofisticados, mas o que
é mais significativo é que ele construiu campos de pouso para helicópteros nos conveses. Ele agora tem dois, possivelmente três, helicópteros Bell Jet Ranger em
serviço. Isso permite que esquadrinhe as águas num raio de centenas de quilômetros para avistar tanto navios de guerra perigosos quanto alvos mercantis fartos e
suculentos.
- Por que a marinha das nações poderosas do Ocidente não destroem os navios de ataque quando os encontram? - perguntou Dave.
- Há dois motivos - Hector respondeu. - Primeiro, não é fácil encontrar um barco pequeno em centenas de milhares de quilômetros quadrados de oceano. Para fazer isso
de maneira eficaz, os custos dos recursos de vigilância seriam proibitivos. E, mesmo que conseguissem encontrá-los, teriam de pegá-los em flagrante no ato da pirataria.
Eles não podem simplesmente explodir os navios do Adam na água enquanto estão ancorados na Baía de Gandanga. Eles são cerceados pelas complexas leis marítimas e
as sensibilidades aguçadas de muitos dos países estridentemente socialistas que estão mais preocupados com os direitos humanos dos piratas capturados no ato de sequestrar
navios em alto-mar do que com suas vítimas. Eles temem que um pirata capturado possa não receber um julgamento justo, na verdade, que possa ser executado no ato.
É tão comovente e politicamente correto da parte deles. Enquanto isso, Adam causa um pandemônio pelos oceanos e coloca bilhões de dólares em seu cofrinho.
- As tripulações dos navios mercantes não carregam armas, em acordo com os termos das apólices de seguro dos donos, que os proíbem de se armarem, e com o próprio
senso de auto-preservação que lhes diz que, se atirarem primeiro, os piratas irão revidar e com um poder superior de fogo. Para Adam, a festa é contínua, Natal e
Réveillon todos os dias da semana - Hector deixou que refletissem sobre isso por um momento.
- Então, o que vamos fazer a respeito disso? Dave e Tariq, vocês perderam o que foi decidido até aqui, portanto, vou repassar para vocês.
Sem se estender, ele explicou o que esperavam conseguir com a Operação Lampos.
- Como sabem, minha mulher sofreu com o assassinato e a mutilação tanto de sua mãe quanto da única filha. Tariq também perdeu sua mulher, Daliyah, e o filho nas
mãos dos trogloditas de Adam. Adam colocou minha cabeça e da minha mulher a prêmio, e jurou diante de Alá que irá nos matar, assim como matou os outros membros inocentes
das nossas famílias. Buscamos uma retaliação pelos mortos, e segurança para nós mesmos e para os outros homens e mulheres cumpridores da lei que navegam os oceanos.
Fomos convencidos de um falso sentimento de segurança, acreditando que estávamos protegidos pela distância de seu pequeno império na Puntlândia e protegidos também
pelo conjunto de leis desta terra em que vivemos. Adam mostrou que tem o poder de nos atacar onde quer que esteja. Não nos deu nenhuma alternativa que não seja matá-lo
antes que nos mate.
Todos murmuraram em concordância.
- Após muita discussão, foi decidido que não devemos montar uma expedição contra Adam em sua fortaleza no Oásis do Milagre. Já tentamos uma vez e perdemos a maioria
dos nossos homens de bem, incluindo Ronnie Wells. Tariq teve sorte de sobreviver à experiência - Hector sorriu para ele. - Como foi a cicatrização da ferida?
- A cicatriz é bem bonita - Tariq disse num tom sombrio. Ele não sorria mais com facilidade.
- Se formos para a Puntlândia, haverá imponderabilidades demais. Temos de trazer Adam e seu tenente Uthmann Waddah para o campo aberto. Temos de colocar uma isca
e atrair os dois para uma armadilha.
Até mesmo Paddy, que tinha estado presente nas primeiras discussões, ficou intrigado ao ouvir tudo explicado em detalhes tão ordenados. Estava assentindo em concordância
com os outros ao redor da mesa.
- Nós ponderamos sobre qual seria o tipo de isca a que Adam não seria capaz de resistir. Minha mulher sugeriu que usássemos o Ganso Dourado.
Tanto Dave como Tariq pareciam perplexos. Paddy falou em nome deles.
- Acho que você deixou Dave e Tariq atordoados, Heck. Sei do que está falando. A segurança no estaleiro de Osaka é de minha responsabilidade, mas você terá de explicar
para eles.
Hector se virou para Hazel.
- O Ganso é sua cria. Gostaria de falar sobre ele para nós, Hazel?
- Ok, deixem-me explicar - ela disse ansiosa. - Na verdade, é bem simples. A Bannock Oil está no processo de construir uma das maiores e mais valiosas embarcações
que já navegou pelos mares. É um super navio-tanque para o transporte de gás natural. Ele já foi inaugurado e rebocado para Taiwan para a instalação dos equipamentos
finais. Até aqui, conseguimos manter o projeto em segredo, por isso que nem vocês estão cientes. O navio recebeu o nome de Ganso Dourado. Ele foi assegurado em mais
de um bilhão de dólares.
Até Paddy parecia profundamente impressionado. Era a primeira vez que alguém lhe revelava as cifras.
- Agora o Hector vai contar mais sobre os nossos planos.
- Uma vez que o Ganso Dourado esteja pronto para a sua viagem inaugural, vamos organizar uma campanha de divulgação enorme, incluindo a cobertura do Al Jazeera em
árabe, que deve chegar diretamente ao Adam. A primeira viagem do navio-tanque será até a França, partindo dos novos terminais de gás de Abu Zara. O Ganso Dourado
é grande demais para atravessar o Canal de Suez, portanto não pode seguir a rota através do Golfo de Adem, debaixo do nariz de Adam. No entanto, já discutimos o
fato dele utilizar navios-mãe como base para os barcos de ataque e os helicópteros de busca, portanto, sabemos que ele tem a capacidade de operar os barcos de uma
distância de até mil e duzentos milhas náuticas do grande Chifre da África. A rota que o Ganso Dourado tem de seguir para chegar ao Cabo da Boa Esperança, a partir
do estuário do Golfo Pérsico, o deixará a cerca de trezentas milhas náuticas da base dele na Baía de Gandanga. Vamos cuidar para que o Adam fique sabendo quando
e onde o Ganso Dourado vai passar por sua base. Ele saberá qual é o valor do navio e quem são os donos. A oportunidade será irresistível. Ele vai ter que atacar,
e nós estaremos prontos para enfrentá-lo.
Eles refletiram sobre a enormidade do plano em silêncio. A seguir, Tariq falou em voz baixa.
- Adam não irá. Os homens dizem que ele se tornou mais cauteloso devido à riqueza e ao poder. Ele não vai se colocar em perigo. Ele é um suíno covarde que extrai
prazer da tortura e do assassinato de mulheres e crianças, mas não assume mais riscos pessoalmente.
- Você acha que ele não vai atacar o Ganso Dourado? - Hazel perguntou.
- Não, não vai. Porque ele é um covarde. Tampouco Uthmann Waddah, pois como o Hector sabe muito bem, ele tem medo do mar. Adam enviará o tio, Kamal Tippoo Tip, que
é o comandante da flotilha de ataque. Mas Adam não irá capturar o Ganso Dourado pessoalmente. Vai permanecer em segurança na Baía de Gandanga até que lhe tragam
o prêmio. Somente então subirá a bordo para tomar posse.
Os homens se mexeram desconfortavelmente na cadeira, e Paddy e David trocaram olhares. Hazel foi até a janela e ficou olhando para o parque. Crianças brincavam nos
gramados, observadas pelo olhar amoroso dos pais, e uma fanfarra ensaiava no campo de jogos. Tudo parecia tão tranquilo e banal, tão diferente da realidade selvagem
que estavam discutindo. Hazel sentiu a tristeza do luto surgir mais uma vez, mas ela a abafou forçadamente e se virou para encarar os homens à mesa.
- Muito bem. Temos de deixar Kamal capturar o Ganso Dourado e levá-lo para a Baía de Gandanga.
Todos ficaram calados e inertes, olhando para ela espantados. Ela começou a sorrir, e, de repente, Hector irrompeu numa gargalhada.
- Então! O cavalo de guerra do Hector, Lampos, se torna o Cavalo de Troia! Você vai enviar um pouco mais do que apenas um navio de um bilhão de dólares e um milhão
de metros cúbicos de gás natural.
Nesse momento, Paddy bateu com uma das mãos na mesa e riu alto.
- Encantador! Somente a senhora poderia ter sonhado uma coisa dessas, sra. Cross. Você vai ter de ficar de olho na senhora sua esposa, Hector. Duplicidade, seu nome
é mulher.
Então, Dave Imbiss percebeu o que estava acontecendo e riu juntamente com Paddy.
- Você vai esconder nossos homens em algum lugar do navio até que Adam suba a bordo, e depois vamos todos pular gritando "surpresa, surpresa!" - ele abafou o riso.
- Assim que capturarmos Adam, podemos enviar um grupo de abordagem. Eles irão destruir todos os navios-mãe piratas, os helicópteros e a flotilha de barcos de ataque.
Irão libertar todos os marinheiros estrangeiros cativos. Vamos colocá-los a bordo dos próprios navios, e oferecer cobertura enquanto fogem para o mar.
Mas Tariq parecia em dúvida.
- Vamos precisar de cem homens ou mais para fazer todas essas coisas que você estão planejando. Há espaço no navio para esconder tanta gente?
- Tariq, esse é provavelmente o maior navio de carga já construído - Hector explicou. - Espere até vê-lo! É possível esconder um exército a bordo.
- Por Deus! Isso me dá uma ideia. Podemos muni-lo com bateria de artilharia escondida, exatamente como os Q-ships da Segunda Guerra Mundial - Paddy estava exultante.
- Podemos bombardear a cidade e afundar quaisquer outras embarcações que tentarem resistir ou escapar.
- Não! - Hazel disse com dureza. - Nada de bombardear a cidade. Há centenas de mulheres e crianças vivendo em habitações improvisadas. Seria um massacre. Isso nos
faria piores do que Adam. No entanto, concordo que temos de enviar um grupo por terra para libertar os marinheiros estrangeiros cativos.
- Quanta água o Ganso Dourado arrasta quando está completamente carregado? - Hector perguntou e respondeu à própria pergunta. - Provavelmente mais de cem pés. Os
piratas não irão conseguir trazer o Ganso a uma milha da praia. Não podemos enviar barcos pequenos dessa distância. Eles ficariam expostos a disparos vindos da praia
durante todo o percurso. Seria suicídio.
- Se o navio é tão grande assim, poderíamos esconder alguns VAAs nos porões - Disse David Imbiss pensativamente.
- VAAs? - Hazel perguntou. - O que é isso?
- Veículos de Assalto Anfíbios é a designação oficial. É uma nova geração de tanques náuticos, como os que foram usados como reforço pelas Forças Aliadas quando
chegaram às praias da Normandia em 1944.
- É possível lançá-los de um navio de laterais altas? - Hazel insistiu.
- Com certeza. Eles podem cair na água de uma altura de nove metros - David garantiu.
- Mesmo completamente carregado, o bordo livre do Ganso será maior que isso. E depois como os recuperariam? - Hazel queria saber.
- Vamos equipar o navio com guindastes hidráulicos em pontes móveis que permanecem discretamente na horizontal no porão de carga até serem acionados na lateral do
navio. Os VAAs podem deixar o Ganso e retornar dessa maneira - Hector disse sem tirar os olhos do esboço da ideia que estava desenhando em seu bloco de anotações.
- Com certeza! - Dave concordou. - Ninguém vai querer abandonar os VAAs quando partirmos da Baía de Gandanga. Eles custam uns duzentos mil dólares cada.
- Descreva um desses brinquedinhos para mim - disse Hazel.
Eles se parecem muito com tanques de batalha convencionais com esteiras e um torreão, tirando o fato de que as laterais são muito mais altas. O tipo de que precisamos
é o de transporte de pessoal, que pode levar 25 soldados de infantaria completamente armados, mais uma tripulação de três pessoas. O torreão vem armado com metralhadoras
pesadas calibre .50 montadas no anel e um lança-granadas. A blindagem é à prova de disparos de rifles e de metralhadoras pesadas. Em terra, tem uma velocidade de
quarenta quilômetros por hora e na água, de quase 16.
- Você consegue adquirir algumas dessas máquinas para nós, Dave? - Hazel perguntou.
- Seria muito difícil colocar as mãos em uma direto da fábrica. Mas tenho certeza de que consigo encontrar umas duas com alguns anos de uso que tenham sido bem cuidadas
e estejam funcionando direito. Coreia do Sul, Taiwan, Indonésia e vários outros países no Extremo Oriente as utilizam. Devo conseguir fazer negócio com um deles.
Hazel olhou para Hector e Paddy.
- De quantos precisamos? - ela perguntou.
- Se conseguirmos pegá-los completamente de surpresa e enviar cinquenta homens para a praia, podemos ocupar a cidade por pelo menos um dia até que o inimigo consiga
se reagrupar. - Dois VAAs devem ser suficientes.
- Isso não deixa margem para erros ou acidentes - Paddy argumentou. - Três veículos e 75 homens devem cobrir todas as possíveis eventualidades.
- Paddy normalmente mantém a cabeça fria - Hector se desculpou por ele.
- Faz a cabeça doer um pouco, mas pelo menos me mantém vivo - Paddy sorriu de volta para ele.
- Dave, por favor encontre esse terceiro VAA para Paddy. Queremos que ele continue a viver - Hazel riu com eles.
"Tenho tanto orgulho da força e da resiliência dela", Hector pensou com prazer, "ela retornou à vida. Consegue rir. A dor foi colocada de lado para dar lugar a pensamentos
construtivos. Jamais vai desaparecer, mas agora ela a tem sob controle. 'Se você for capaz de ir ao encontro do triunfo e do desastre e tratar esses dois impostores
da mesma maneira.' O velho Rudyard poderia ter escrito isso com ela em mente."
Então, ele ficou sério novamente.
- Acho que chegamos ao estágio em que temos de convocar uma equipe de engenheiros de design chineses do estaleiro de Taipei, para podermos reconfigurar o casco do
Ganso - ele disse.
Os três engenheiros chegaram cinco dias depois trazendo todos os desenhos da estrutura do Ganso Dourado em vários tubos de plástico. Assim que foram informados dos
requisitos do cliente, Hazel ofereceu a eles um conjunto de salas no andar abaixo do dela, e eles se puseram a trabalhar nos projetos com enorme energia e concentração.
No décimo dia, reemergiram para apresentar os novos designs para avaliação.
Os tanques de carga vazios mais próximos à superestrutura da popa do navio eram tão cavernosos quanto um grande hangar de aviões. Os designers haviam separado essa
seção do resto do navio para formar uma área secreta. A seguir, dividiram esse espaço lateralmente em três níveis diferentes. O mais alto seria reservado à armazenagem
de equipamentos militares, incluindo munições e armas que precisassem ser carregadas rapidamente. Eles tinham incluído uma cabine simples e menor, de doze pés quadrados,
em que havia dois beliches estreitos, um sobre o outro, e um banheiro e uma cabine com chuveiro atrás de uma porta de ligação. Essa cabine seria usada por Hazel
e Hector. Ao lado, estava o espaço livre para estacionar os três VAAs. Logo acima, o teto móvel se abriria para permitir que os veículos fossem suspensos para o
convés por meio de um guincho hidráulico. O guincho ficaria montado numa ponte móvel que poderia levar um VAA de cada vez até a lateral do navio e abaixá-los até
a superfície do mar. Quinze minutos após a abertura do compartimento do teto, todos os três VAAs poderiam estar na água e a caminho na praia a dezesseis quilômetros
por hora, carregando 75 homens armados até os dentes para o ataque.
O segundo andar da área camuflada do casco compreendia o alojamento dos homens, o refeitório, área de abluções, banheiros e os aparelhos de ar condicionado para
manter a constante circulação de ar fresco em todos os compartimentos. Também nesse andar ficaria a área de agrupamento de onde os homens se dispersariam em direção
às suas estações de ação. O andar inferior alojaria as cozinhas e os refrigeradores. Mas a maior parte desse andar seria tomada pela sala de situação operacional
e o equipamento eletrônico. Em todas as partes do navio acima deles, câmeras de CCTV e microfones de escuta escondidos seriam instalados. Não havia um único canto
do navio inteiro, da ponte aos porões, que não poderia ser monitorado dessa posição. Uma das câmeras seria colocada no pequeno mastro do rádio sobre a ponte de comando.
Isso proporcionaria aos homens da sala de situação uma visão panorâmica dos arredores do navio e do horizonte.
Irradiando da área de agrupamento no segundo andar, havia uma rede de túneis e escadas escondidos. Eles seriam ardilosamente construídos atrás das anteparas. Por
meio desses túneis, os homens prontos para a ação poderiam chegar rapidamente a todas as partes da embarcação sem se expor até que pulassem para fora pelas escotilhas
camufladas, pegando o despreocupado inimigo desprevenido.
Os cinco - Hazel, Paddy, Dave Imbiss, Tariq e Hector - estavam sentados à longa mesa da diretoria de frente para os três chineses, debatendo os méritos e desméritos
do layout planejado. Uma das preocupações que recebeu total atenção foi o isolamento acústico dos espaços clandestinos. 125 homens vivendo confinados em compartimentos
de metal fariam barulho nem que fosse simplesmente se movimentando. Esse barulhos poderiam alertar o inimigo quanto à sua presença a bordo. Os tetos, as anteparas
e particularmente os conveses teriam de ser revestidos com placas espessas de poliuretano. O barulho de tudo o que se movesse dentro da área camuflada - as portas
dos fornos de micro-ondas e dos refrigeradores, até mesmo as torneiras d'água e os mecanismos de descarga dos banheiros - teria de ser completamente abafado. Os
homens comeriam em pratos de papel e usariam canecas e utensílios de plástico, para não haver nenhum tilintar de metal ou louça. Somente sapatos com solas macias
seriam usados. Quando o comando "navio silencioso" fosse dado, falariam apenas quando necessário, e sussurrando. O equipamento eletrônico seria colocado no mudo,
e os operadores utilizariam fones de ouvido para escutar todos os ruídos nas outras partes do navio. As bombas de circulação de gás no compartimento de carga vizinho
seriam programadas para operar em turnos contínuos, e assim encobrir quaisquer barulhos da área camuflada do meio do navio. Quando tudo foi providenciado para assegurar
uma operação silenciosa, eles voltaram a atenção para o ajuste de armamentos e o equipamento de observação. As câmeras de CCTV teriam de ser completamente disfarçadas
e escondidas, mas colocadas onde pudessem cobrir todas as partes do navio. As mesmas preocupações se aplicavam ao posicionamento dos microfones de escuta.
A ponte de comando do navio ficava no topo da torre da popa, quase trinta metros acima do convés do compartimento de carga. Isso dava ao capitão, ao oficial de navegação
e ao timoneiro um claro panorama de 360 graus dos arredores. No andar sob a ponte, ficavam os aposentos do capitão, as salas de comunicação e navegação e a luxuosa
suíte do dono. No andar logo abaixo, estavam as cabines dos oficiais juniores e dos engenheiros do navio, a cozinha e o refeitório do navio. Os designers propuseram
a construção de um andar adicional no topo da ponte existente e a conversão do andar superior em ponte principal, deixando o convés abaixo vazio. Esse espaço vazio
teria de ser completamente isolado. O único acesso seria via a escada-túnel subindo da área camuflada abaixo do convés principal. Atrás das paredes lisas de aço
desse convés superior, um par de canhões leves MK44 Bushmaster 40 mm, com uma capacidade de duzentos disparos por minuto, seriam montados. Ao acionar uma alavanca,
os painéis de camuflagem se abririam, e os canhões seriam revelados, prontos para a ação imediata, direcionando seu devastador poder de fogo para qualquer alvo hostil.
Assim que todos os planos foram aprovados, o grupo se dispersou. David Imbiss pegou um voo para a Coreia do Sul, onde em três semanas ele conseguiu adquirir três
VAAs e o par de canhões Bushmaster, ambos propriedade do exército. Todo esse equipamento já estava a caminho do porto de Chi-Lun em Taiwan, onde seria instalado
nas áreas escondidas do Ganso Dourado. Durante a viagem de Taiwan ao terminal de gás de Abu Zara, os condutores e os tripulantes selecionados para operar os VAAs
receberiam treinamento sobre essas máquinas de aparência pesada mas extraordinariamente eficazes. Na mesma etapa da viagem, os artilheiros seriam treinados para
usar os canhões Bushmaster.
Todos esses homens seriam selecionados entre o pessoal de 125 homens e uma mulher que Paddy estava reunindo em Sidi el Razig. Setenta dos homens estavam vindo de
operações da Cross Bow por todo o globo. Os restantes foram escolhidos da extensa lista de mercenários e de seguranças contratados como freelancers por Paddy, dispostos
a aceitar até a mais perigosa das missões pela adrenalina e pelo dinheiro. A única integrante feminina do grupo foi selecionada não apenas por suas aptidões em artes
marciais, mas, o mais importante, por sua semelhança com Hazel. Era uma jovem russa que havia sido treinada pela Spetsnaz. Seu nome era Anastasia Voronova, mas ela
atendia por Nastiya.
Tariq pegou um voo até Meca e, de lá, se juntou a um grupo de peregrinos muçulmanos e retornou à Puntlândia. Ele fez a travessia de balsa com eles até Mogadishu,
e depois viajou de ônibus até a Baía de Gandanga. Assim que chegou, se misturou à população local, disfarçado como um viajante à procura de emprego. Dormiu ao relento
com outros mendigos e indigentes. Hector o instruíra para não anotar nada, mas ele depressa obteve um mapa mental do desenho da cidade e da baía. Avaliou a exata
posição em que cada um dos navios capturados estava ancorado. Encontrou as áreas cercadas onde os marinheiros cativos estavam detidos. Observou e registrou mentalmente
os movimentos dos navios-mãe e barcos de ataque de Adam. Uma de suas tarefas mais importantes nessa missão era observar os movimentos de seu arqui-inimigo, Uthmann
Waddah. Era vital que Hector soubesse se Uthmann estaria em qualquer um dos navios-mãe ou barcos piratas quando eles deixassem a baía ou retornassem de um dos ataques.
Os planos de Hector dependiam dessa informação porque Uthmann seria o único entre os piratas capaz de reconhecer Hazel se a visse de novo. Porém, Hector tinha quase
certeza de que Uthmann jamais iria para o mar. O simples motivo era o fato de que, conforme Tariq havia apontado, Uthmann Waddah, o guerreiro invencível, tinha um
pavor patológico do mar aberto. Um sofredor crônico de enjoos, algumas poucas horas sobre as ondas do oceano o reduziriam a um caco prostrado que não pararia de
vomitar e reclamar, incapaz de erguer a cabeça, quanto mais ficar de pé. A água do mar era a sua única fraqueza.
Nas poucas semanas em que permaneceu na Baía de Gandanga, Tariq assistiu a quatro navios mercantes capturados serem trazidos por Kamal Tippoo Tip e testemunhou a
alegria selvagem dos piratas bem-sucedidos e da multidão que lotava a praia para recepcioná-los no retorno de suas incursões. Em todas as ocasiões, Adam e Uthmann
Waddah estavam na praia para observar a chegada dos navios. Porém, quando o xeique Adam partiu em seu esplêndido saveiro real para embarcar no navio capturado e
distribuir sua generosidade aos piratas bem-sucedidos, Uthmann permaneceu na praia. Era óbvio que até mesmo as águas calmas da baía o deixavam apavorado.
Hector e Hazel voaram de BBJ para Taipei, onde o capitão do Ganso já estava a bordo. Seu nome era Cyril Stanford. Ele havia se aposentado da marinha norte-americana
dez meses antes, aos compulsórios 62 anos de idade. Ávido por continuar a trabalhar em navios grandes, ele havia comandado um cruzador de batalha e ainda tinha a
mente aguçada e uma saúde robusta.
O homem pertencia a uma longa linhagem de combatentes norte-americanos. Um de seus antepassados havia servido na guerra contra os piratas de Barberia no norte da
África de 1800 a 1805. Cyril mostrou a Paddy uma carta antiga e valiosa, que seu antepassado remoto, o Capitão Thomas Stanford, havia escrito para a esposa da Tunísia
em 1804. Ele leu a seguinte frase, em tinta envelhecida, em voz alta:
"Estava escrito em seu Corão que todas as nações que não reconheciam o Profeta eram pagãs, infiéis e pecadoras, e que podiam, por direito, ser escravizadas e saqueadas
pelos fiéis, e que todo maometano que fosse morto nessa batalha certamente iria para o paraíso."
- Os Stanfords lutaram contra a tirania, a intolerância e a anarquia em duas guerras mundiais - Cyril prosseguiu com orgulho. - Mais recentemente, Robert, meu filho
mais velho, perdeu a vida nas montanhas do Afeganistão, após ser capturado por essas pessoas e torturado da maneira mais horrível. Minha marinha me tirou de campo,
mas, por Deus, eu adoraria ter mais uma chance contra esses desgraçados assassinos.
Antes de confirmá-lo no comando do Ganso Dourado, Hector explicou qual seria seu papel secreto, e os perigos que enfrentaria. Cyril aceitou a incumbência com alegria.
Dez dos seguranças da Cross Bow Security, com especialização náutica, seriam treinados por ele para serem seus tripulantes. A casa das máquinas do Ganso e a ponte
denavegação estavam equipadas com controles eletrônicos tão sofisticados que uma tripulação desse tamanho seria perfeitamente capaz de operar o navio e navegar de
maneira eficaz.
Dave Imbiss também estava a bordo supervisionando as obras finais do Ganso Dourado - a instalação do canhão nos compartimentos escondidos e a reconfiguração das
baías do porão para comportarem os três VAAs.
O Ganso Dourado se encontrava em uma das bacias externas do porto, e a capa de segurança que os homens de Paddy haviam jogado sobre ele proporcionavam cobertura
total. Telas de lona haviam sido hasteadas sobre a torre da popa, atrás das quais todo o trabalho estava sendo realizado. O canhão, os VAAs e todos os demais artigos
confidenciais foram trazidos à noite em semirreboques, enfaixados em camadas disformes de capas de plástico preto.
Quando as obras da embarcação estavam quase terminadas e os alojamentos a bordo, habitáveis, Paddy O'Quinn chegou a Taipei. Em poucos dias, os primeiros quarenta
homens de sua força expedicionária também chegaram à cidade em grupos pequenos, fingindo ser turistas. O grupo incluía os técnicos que iriam operar os sofisticados
equipamentos de escuta e o sistema de CCTV. A seguir, vieram os artilheiros responsáveis pelo canhão Bushmaster, e os 12 motoristas e tripulantes dos VAAs. O homem
que Paddy havia escolhido para comandar os tanques era um antigo oficial que tinha sido seu subordinado no exército. O nome dele era Sam Hunter, e ele era um homem
forte com vasta experiência no uso de veículos anfíbios blindados.
A última chegada, mas de maneira nenhuma menos importante, foi a de Nastiya Voronova. Em um carro alugado, Hector e Hazel foram buscar Paddy e a jovem russa no hotel
para levá-los até os estaleiros. Ao se encontrar pela primeira vez, as duas mulheres se estranharam, completamente cientes dos atributos uma da outra. Hazel pressentiu
de imediato que a outra mulher era uma felina selvagem, elegante e formosa na superfície, mas puramente feroz e primitiva no âmago. Por sua vez, Nastiya estava desacostumada
a não ser a mulher mais deslumbrante em todas as ocasiões.
Hazel e Nastiya se sentaram no banco traseiro do carro alugado e conversaram reservadamente. Enquanto esperavam na zona portuária pela balsa que os levaria ao ancoradouro
do Ganso, Hazel pegou Hector pelo braço e o levou para o lado para suspirar em seu ouvido:
- Paddy e a russa já estão se pegando como dois castores na primavera.
- Pelo amor de Deus! Como você sabe? Ela contou para você?
- Ela não precisou dizer uma única palavra, seu bobo. O doce odor do desejo ao redor dos dois é como o da flor de laranjeira. Não reparou?
- Sim, mas o engraçado é que pensei que fosse mesmo flor de laranjeira - Hector riu.
Tomar conhecimento de que Nastiya estava profundamente envolvida com Paddy abrandou sua atitude em relação a ela. Agora que sabia que não teria de proteger Hector
dos poderes exóticos de atração da outra mulher, ela se viu começando a gostar da russa.
A primeira coisa com que os recrutas de Paddy tiveram de se acostumar foi o tamanho gigantesco do navio. O convés de carga era do comprimento de cinco campos de
futebol. Quando foram levados para a área escondida do reconstruído porão de carga número um, eles se viram num labirinto de compartimentos e túneis de aço interconectados.
Os túneis eram tão mal iluminados e ventilados, baixos e estreitos que um homem mais alto teria de se curvar. Uma vez dentro dos túneis, não havia ponto de referência,
e não era difícil se sentir confuso. Por exemplo: chegar à ponte a partir do ponto de agrupamento no segundo andar envolvia uma subida vertical claustrofóbica de
mais de 27 metros, respirando ar viciado e passando por escotilhas de saída idênticas no andar de cada convés. Consequentemente, os homens chegavam à ponte desorientados
e sem fôlego.
Hector ordenou que os operários melhorassem os sistemas de iluminação e ventilação. Além disso, ordenou a sinalização clara do interior dos túneis, com diferentes
cores de tinta para demarcar cada andar. Depois, Hector concentrou a atenção nas escotilhas. De acordo com o design original, abri-las do lado de dentro envolvia
destrancar duas maçanetas gêmeas. Era um processo barulhento e demorado que alertaria o inimigo do outro lado. Hector criou um novo sistema. As dobradiças das escotilhas
eram articuladas por molas, então, quando um pino de retenção fosse extraído com um único golpe de martelo, a escotilha seria escancarada com uma força considerável,
e os combatentes conseguiriam sair imediatamente, pegando quem quer que fosse do lado de fora completamente de surpresa.
Na altura em que o Ganso estava pronto para partir de Abu Zara, todos os homens conheciam o desenho do navio intimamente. Assim que ficaram fora do alcance da vista
de quem estivesse em terra firme, Hector mandou o Capitão Stanford virar o navio contra o vento. Enquanto navegavam em uma onda lenta e oleosa, Sam Hunter e a tripulação
dos VAAs se posicionaram em suas estações de batalha, e os motoristas deram ignição. A seguir, da sala de situação na barriga do navio, as escotilhas acima dos veículos
foram abertas remotamente, e o guincho hidráulico suspendeu o primeiro VAA até o convés principal, transportou-o para a lateral do navio e o depositou do lado de
fora.
Os poderosos motores a diesel do VAA roncaram e foram impulsionados para a frente com Sam no torreão, abrindo caminho para os outros veículos. Um após o outro, foram
baixados pela lateral do navio. Eles caíram na água, afundando por um momento sob a superfície e então sendo impelidos novamente para fora numa lufada de espuma
branca. Em formação, as três embarcações desengonçadas contornaram o Ganso retornando à sua lateral, onde foram içados novamente para o convés de carga. Quando o
último foi fixado ao chão em segurança sob o convés, a escotilha sobre eles se fechou. Os guinchos foram colocados horizontal e discretamente no convés de carga
até que se precisasse deles novamente. Nos quatro dias a seguir, o mesmo procedimento de treinamento foi repetido várias vezes. Os artilheiros nos torreões dos VAAs
tiveram a oportunidade de disparar suas metralhadoras pesadas de diversas distâncias contra alvos flutuantes antes de retornar ao Ganso.
Quando o navio ficou a cerca de 240 quilômetros de Taiwan, e não havia nenhuma outra embarcação na tela do radar, Hector comandou um exercício com os canhões do
convés sob a ponte. Ao seu comando, os capitães das armas abriram as portas de aço que escondiam a armazenagem bélica. As portas oscilaram em suas dobradiças e revelaram
os dois canhões Bushmaster com seus longos canos apontados para a frente.
Os canhões foram carregados com projéteis de explosão aérea. Cada uma continha centenas de bolas de aço. O temporizador no nariz dos projéteis havia sido ajustado
eletronicamente pelo capitão das armas de acordo com a distância requerida, usando um computador embutido. O atirador escolheu o alvo na lente do visor ótico e então
apertou o cabo disparador. O computador começou a calcular continuamente a distância do alvo e transmitiu essa informação para o fuso do projétil. Quando o atirador
soltou o disparador, a distância foi fixada e, no mesmo instante, o canhão disparou. O projétil explodiu no ar precisamente acima do alvo.
Enquanto Hector, Paddy e as duas mulheres assistiam da ponte, a tripulação do navio jogou tambores de petróleo vazios pela lateral para servir como alvos. Os canhões,
um de cada vez, realizaram uma salva de artilharia de cinco disparos sobre os tambores. Os resultados foram espetaculares. A nuvem de bolas voadoras de tungstênio
transformou a superfície do mar numa grande coluna de espuma e borrifos, engolfando os tambores e tudo ao redor em um raio de trinta metros numa tempestade de metal
voador. Quando a superfície voltou ao normal, não restou nada a não ser ondulações.
- Por Deus e Begorrah! - Paddy gritou. - Mal posso esperar para ver isso acontecer a um dos barcos de ataque do Adam.
- Eu diria que estamos quase prontos para partir e fazer uma visita à Baía de Gandanga - Hector comentou.
- Bendito seja, você está corretíssimo - ele concordou com um sorriso.
- Paddy disse "bendito" - disse Hazel cutucando Hector. - Você reparou que o Paddy nunca fala palavrões na frente da Nastiya? Você podia aprender uma lição de bons
modos com ele, meu garotão.
Paddy parecia consternado. Até esse momento, acreditara piamente que seu promissor relacionamento com a sensual russa era um segredo militar ultrassecreto. O rosto
de Nastiya, de pé ao lado dele, manteve a expressão remota e inescrutável.
Por necessidade, Hazel e Nastiya passaram várias horas juntas na suíte principal no convés sob a ponte, dedicando-se a aumentar a semelhança física entre elas. Hazel
cortou e secou o cabelo de Nastiya no mesmo estilo do seu.
- Como você pode ser tão boa com a tesoura? - Nastiya perguntou ao se admirar no espelho.
- Houve uma época em que eu mesma tinha de arrumar meu cabelo.
Nastiya parecia espantada, e Hazel explicou:
- Eu estava dura. Mal tinha dinheiro para comer, muito menos para ir a um salão de beleza.
- Que tolice! Com uma aparência como a sua, não há porque ficar dura, nunca.
- Talvez eu fosse exigente demais.
- Ser exigente demais também é tolice - Nastiya expressou sua sábia opinião.
Assim que aperfeiçoaram o estilo do penteado, Hazel abriu os grandes armários em cada lado do espelho que continham seus cosméticos e começou a trabalhar. As reservas
de Nastiya ruíram, e ela começou a rir como uma colegial ao observar a própria transformação no espelho. Depois, elas se concentraram em escolher roupas adequadas.
Nastiya estava fascinada pelo conteúdo do confortável closet de Hazel. Era uma câmara de tesouros de seda, cetim e rendas. É claro, os tamanhos de vestido e sapatos
das duas eram semelhantes - Nastiya havia sido escolhida por essa semelhança. Os sapatos Chanel e Hermès caiam quase tão bem nos pés de Nastiya como nos de Hazel.
Quando Hazel acabou de arrumá-la, elas deram um pequeno show para os homens. Nastiya desfilou pelo saguão com a desenvoltura da modelo que fora um dia, e o com a
mesma expressão de desdém em seu rosto encantador. Hector e Paddy se reclinaram para trás nas poltronas com copos de uísque nas mãos e a aplaudiram entusiasticamente,
enquanto Hazel observava sua criação com orgulho de proprietária.
A missão de Nastiya requeria que ela reproduzisse os maneirismos de Hazel: o modo de andar, de manter a cabeça ereta e o jeito expressivo como usava as mãos. A russa
era uma atriz natural e rapidamente se encaixou no papel. Por fim, Hazel tentou afiar a dicção dela. Isso logo demonstrou ser uma perda de tempo para todo mundo.
Graças ao treinamento de Spetsnaz, Nastiya falava inglês bem o suficiente, exceto por uma ou duas pequenas fraquezas. A ordem das palavras que utilizava era normalmente
confusa, e ela não conseguir impedir sua língua de transpor as letras W e V.
"You are very welcome" era uma frase frequentemente utilizada por Nastiya, e quando ela falava, Hazel mal podia conter o riso todas as vezes em que Nastiya dizia
com todas as letras: "You are werry velcome".
Uma de suas pronúncias idiossincráticas era a da palavra "okay", que saía de seus lábios carnudos como "hokay!". Finalmente foi decidido que ela teria de manter
a boca fechada enquanto fosse prisioneira dos piratas. Felizmente, essa restrição não iria incomodá-la muito. "Navio silencioso" era o modo operacional preferido
de Nastiya.
Para terem certeza absoluta de que Adam atacaria o navio, eles teriam de levá-lo a acreditar que tanto Hazel como Hector estariam a bordo. Teriam de permitir que
a equipe de reportagem do Al Jazeera filmasse os dois no navio quando ele chegasse ao terminal de gás em alto-mar. Mesmo após a partida do Ganso do terminal, Hector
teria de permanecer a bordo para comandar a Operação Lampos. Porém, quando tentou convencer Hazel a abandonar o navio antes que partisse e ir para um lugar seguro
fora do alcance de Adam, enquanto Nastiya assumia o seu lugar, os argumentos dele tiveram tanto efeito quanto uma pequena garoa sobre as Agulhas de Cleópatra.
- Por favor, não seja idiota, Hector Cross - disse diretamente.
Hector não podia se deixar ser capturado quando os piratas subissem a bordo no navio. Não poderia comandar a Operação Lampos acorrentado e vigiado por uma gangue
de piratas armados até os dentes. Portanto, teriam de escolher um sósia para substituí-lo também. Havia alguns homens entre os recrutas de Paddy que se encaixariam
no papel por terem cabelos escuros e uma constituição forte. De qualquer forma, todos geralmente sabiam que para um árabe, todos os caucasianos eram parecidos, e
vice-versa. Quando o sósia de Hector fosse aprisionado pelos piratas, era possível que levasse uma surra, mas Paddy ajudou Hector a escolher, optando por Vincent
Woodward, um homem durão que podia suportar os castigos. Como Paddy apontou para Vincent, ao ser capturado, ele não corria o risco de ser estuprado, ao contrário
de Nastiya. Por uma quantia extra de dez mil dólares, Vincent ficou contente em se tornar o alter ego de Hector.
No entanto, nessa altura decisiva dos preparativos, Hazel de repente se tornou reticente quanto a enviar Nastiya para as garras do demônio em seu lugar. A jovem
russa havia-se tornado sua amiga. Ela expressou seus receios para Paddy.
- Eu sinceramente tenho muita, mas muita pena de qualquer árabe que tentar abaixar as calcinhas da Nastiya sem seu total consentimento e cooperação - Paddy disse
com um sorriso.
Isso não bastou para Hazel, e ela insistiu para discutirem o assunto abertamente com Nastiya. Eles se reuniram na sala de estar da suíte principal. Hazel dissertou
longamente sobre os perigos que Nastiya poderia enfrentar se fosse capturada. Ela expressou a afeição e o respeito que havia desenvolvido por Nastiya, e deu a ela
a chance de desistir da missão. Nastiya permaneceu em silêncio, bela e inescrutável durante todo o recital, observando Hazel com atenção.
Quando Hazel terminou, ela perguntou:
- Então, cem mil dólares que você não vai me pagar?
- Não, não - Hazel respondeu -, não é justo com você, Nastiya. Levando em conta que vai colocar a sua vida em risco por mim, acho que deveria pagar pelo menos o
dobro da quantia.
Nastiya quase sorriu.
- Todos sabemos que essa gente não vai tentar me matar não importa o que eu faça para eles, contanto que acreditem que sou mesmo você, da ou nyet?
- Não achamos que matariam você. Eles querem o pagamento do resgate. Mas talvez tentem machucá-la. Talvez tentem forçá-la, talvez a estuprem.
- Bem, quero ver eles tentarem - disse Anastasia Voronova, o que colocou um fim à discussão sobre o assunto.
Três dias depois, o Ganso Dourado adentrou o Golfo de Oman e se encaminhou ao Estreito de Hormuz e à entrada do Golfo Pérsico. Assim que ficaram a uma distância
acessível da terra firme, o helicóptero da Bannock Oil Corporation foi ao encontro deles. Era um grande Sikorski, com 26 assentos, uma substituição do velho MIL-26
russo que havia sido perdido na Puntlândia. Levou os homens para a terra firme, aterrissando no campo de treinamento em uma parte remota do deserto de Abu Zara,
onde o restante da tropa estava em intensiva preparação para a expedição à Puntlândia. Sem os supernumerários, o Ganso Dourado partiu em direção ao terminal de gás
natural para buscar seu carregamento.
O diretor de publicidade da Bannock Oil Corporation convidou o Al Jazeera Television a enviar uma equipe de cinegrafistas ao novo terminal de gás natural do Golfo,
nas águas do Emirado de Abu Zara, para filmar e registrar a viagem inaugural do Ganso Dourado. Eles aceitaram com entusiasmo, e Bert Simpson colocou o Sikorski à
disposição. O helicóptero foi buscar a equipe de cinegrafistas quando chegaram a Sidi el Razig, e os levou até o Ganso Dourado, interceptando-o enquanto passava
pelo Estreito de Hormuz. Ao circundar ao navio, a equipe de TV viu que ele era verdadeiramente impressionante. Os tanques de gás estavam vazios, portanto, ele se
erguia em sua altura máxima na água - uma montanha altaneira de aço. Os cinegrafistas ficaram satisfeitos com as imagens que haviam obtido.
Quando o Ganso aportou no terminal de gás, uma sucessão de visitantes subiu a bordo. Todos os demais meios de comunicação do Oriente Médio enviaram jornalistas para
cobrir o evento. Quando foram embora, o emir e seu séquito, incluindo a maioria dos ministros, chegaram para o banquete real que Hazel havia organizado em homenagem
a ele.
Uma grande tenda beduína foi erguida no convés de carga do Ganso Dourado, e o convés, por sua vez, coberto de tapetes turcos coloridos. O emir, suas três esposas
adornadas com joias deslumbrantes e todos os demais convidados se sentaram em almofadas de seda, e o chefe de cozinha mais famoso da Arábia, com cinquenta assistentes,
preparou o banquete. Ao fundo, uma banda de instrumentos de corda tocou músicas tradicionais. O ministro das relações exteriores era um dos irmãos mais novos do
emir. Ele havia se formado na Universidade de Oxford e fez um discurso num inglês belamente modulado, exaltando as virtudes da Bannock Oil Corporation e o papel
que a companhia desempenhava no desenvolvimento dos recursos dos Emirados.
A seguir, Hazel se dirigiu ao distintos convidados. Ela listou algumas informações sobre o Ganso Dourado e sua capacidade de carga. Falou sobre os custos e o planejamento
envolvidos na construção e inauguração do navio, e o que isso representaria para Abu Zara. Explicou que o navio era grande demais para trafegar pelo Canal de Suez,
e que a viagem inaugural seria até a costa leste do continente africano, e ao redor do Cabo da Boa Esperança. Depois, ele seguiria no sentido norte para o Oceano
Atlântico e o porto de Brest, na França, para descarregar o gás. Hazel disse aos presentes que esperava que a viagem tivesse início em quinze dias. Ela prosseguiu
dizendo que esse era um acontecimento tão importante para a Bannock Oil, que ela e o marido, o sr. Hector Cross, permaneceriam a bordo do navio até a Cidade do Cabo,
na extremidade sul da África.
Os cinegrafistas no fundo da tenda filmaram discretamente a cerimônia inteira. Na sala de situação, nas entranhas do navio, Paddy e Nastiya acompanharam o desenrolar
dos acontecimentos pelas telas de CCTV e, beirando a perfeição, Nastiya imitou todos os movimentos e gestos feitos por Hazel. Cinco noites depois, Hector e Hazel
se sentaram juntamente com Nastiya e Paddy na sala de situação e assistiram à transmissão do Al Jazeera, um programa de sete minutos que cobria todos os principais
elementos da viagem do Ganso Dourado. As imagens do enorme navio eram instigantes, e os trechos do discurso de Hazel continham a maioria dos elementos vitais: o
valor enorme do navio e de sua carga, a rota proposta ao redor da África, a data estimada de partida e o fato de que tanto Hazel quanto o marido estariam a bordo
durante a primeira etapa da viagem, prosseguindo até a Cidade do Cabo. No final do programa, Hector olhou para Paddy no outro lado da sala de situação.
- Bom, o que você acha?
- Acho que a sra. Cross deveria começar a atuar no cinema - o irlandês respondeu. - Ela seria capaz de deixar a Nicole Kidman sem trabalho, ah, se seria.
- Obrigada, Paddy - Hazel disse sorrindo. - Vindo de um grande entendedor de mulheres, é sem dúvida um grande elogio. Então, você acha que o Adam vai cair na armadilha?
- De cabeça para baixo e bunda para cima, sem dúvidas.
- O que significa "de bunda para cima"? - Nastiya perguntou.
- Exatamente a mesma coisa que de cabeça para baixo - Hector explicou, e Nastiya olhou para Paddy com um olhar pesaroso.
- Então, por que tantas palavras você tem sempre que estar usando?
Hazel sorriu diante dessa demonstração da autoridade que Nastiya já estava exercendo na relação.
Agora já totalmente carregado de gás e navegando com o casco mais submerso, o Ganso retornou ostensivamente via Estreito de Hormuz para iniciar a etapa de ida da
viagem até a França. Assim que saíram da vista da praia, o Sikorski começou a transportar os homens de Paddy do campo de treinamento do deserto, depositando-os no
convés de carga. Ao embarcarem, receberam armas e equipamentos. Cada um carregaria uma pistola automática Beretta 9 mm e um rifle de assalto Beretta SC 70/90. Todos
receberam coletes à prova de balas e um rádio Falcon compacto e portátil de ondas curtas. Aqueles que haviam chegado ao navio provenientes de Taipei iniciaram uma
intensiva doutrinação dos recém-chegados, que logo memorizaram o desenho dos túneis escondidos e aprenderam como usá-los para alcançar qualquer ponto do Ganso rapida
e silenciosamente, sem serem vistos. Praticaram o embarque e o desembarque nos VAAs. O navio se virou contra o vento, e os VAAs foram novamente acionados no mar,
mas dessa vez com as tropas completas a bordo, e depois foram recolhidos e armazenados sob o convés.
Os homens já estavam no auge da forma física, e Paddy os manteve assim usando o amplo convés de carga como campo de treinamento. Todos os homens completavam vinte
voltas de corrida ao redor do convés duas vezes ao dia, com Hector e Paddy logo atrás estimulando-os. Paddy os dividiu em dois times de dez homens que se enfrentavam
em competições de tiro e partidas barulhentas de rugby. Todos os dias, Paddy realizava corridas de revezamento, ida e volta, desde o nível inferior do porão de carga
até a ponte, usando as escadas dos túneis de aço. Ele cronometrava, e Hazel oferecia um prêmio de mil dólares todos os dias para o time mais veloz. Ela e Nastiya
criaram um time feminino e registraram os melhores tempos individuais em três dias consecutivos, para o profundo desgosto dos homens.
O Ganso Dourado estava ainda a seiscentas milhas náuticas leste do grande Chifre da África quando o alerta de perigo eminente foi emitido pelas sirenes no meio de
uma disputada partida de rugby. Todos deixaram o convés apressados. Hector e Hazel alcançaram a ponte em poucos minutos.
- O que foi? - Hector perguntou ao Capitão Stanford.
- Recebemos um sinal pelo radar aos 67 quilômetros, a 27 graus. Parece uma aeronave lenta, quase certamente um helicóptero pequeno. Está vindo nesta direção.
- Ele provavelmente já nos captou no próprio radar - Hector disse. - Somos um alvo suficientemente grande. Não temos como passar despercebidos. Mantenha o curso
e a velocidade, por favor, Cyril.
A seguir, ele se virou para Hazel.
- Se é quem pensamos que é, talvez seja uma boa ideia nós dois ficarmos à vista no convés.
- Isso não seria tarefa dos nossos sósias?
- Não, há uma possibilidade de que Uthmann esteja a bordo do helicóptero. Ele enxergaria a diferença imediatamente. Venha!
Eles desceram rapidamente até o deserto convés principal e correram por toda a sua extensão até chegar à proa. Lá, recostaram-se na grade e observaram a mancha distante
se materializar sobre o horizonte oeste. A mancha foi ficando cada vez maior até se transformar em um helicóptero Bell Ranger. Eles olharam para cima. Hector estava
atrás de Hazel e deslizou os braços ao redor de sua cintura, rindo e a apertando, quando ela começou a cantarolar a canção tema do filme Titanic, "My heart will
go on". Eles imitaram a famosa pose de DiCaprio e Winslet no filme, no gurupés do malfadado transatlântico.
Hector havia ordenado que uma pequena seção à meia nau do casco do Ganso fosse pintada com tinta vermelha primária à base de chumbo, e escadas de cordas e um suporte
ficassem dependurados na lateral do navio logo acima do nível da água, para dar a impressão de que a pintura era um trabalho em progresso. O equipamento pendurado
era um convite aberto ao embarque. Isso certamente seria notado pelo piloto do helicóptero e relatado a Kamal.
O helicóptero sobrevoou o navio-tanque em círculo uma vez, a baixa altitude. O piloto era o único ocupante. Ele usava óculos de proteção escuros, e o rosto estava
coberto por um lenço keffiyeh. Hazel acenou para ele. Ele ignorou a saudação, mas virou a máquina no mesmo sentido em que tinha vindo, e logo sumiu de vista. Paddy
e David Imbiss estavam à espera deles na ponte.
- Certo. Restam poucas dúvidas de que eram eles, e que o contingente principal não está longe - Hector disse. - A distância ida e volta que aquele helicóptero pode
percorrer fica abaixo dos 240 quilômetros. Em menos de uma hora e meia ele estará aterrissando no convés no navio-mãe dos piratas.
Ele estava passando ao modo "preparado para a batalha", a mente funcionando de maneira afiada.
- De agora em diante, fica proibido ao pessoal de serviço circular pelo convés principal. Todos devem retornar aos seus alojamentos na área escondida, e permanecer
ali até o próximo movimento do inimigo. Todas as escotilhas escondidas devem ser fechadas e verificadas. O modo "navio silencioso" deve ser mantido o tempo todo.
Hazel e eu vamos nos mudar da suíte principal para a pequena cabine no convés dos VAAs. A Nastiya e o Vincent assumirão os nossos lugares na suíte.
- Mas, espero sinceramente, que eles não sigam seus padrões de comportamento enquanto estiverem lá - disse Paddy acidamente.
- Você pode ficar de olhos e ouvidos atentos neles pela câmera de CCTV do quarto - Hector sugeriu, e Paddy assentiu pensativamente.
Embora Paddy fosse cavalheiro demais para espionar a mulher que amava, foi por acaso que logo depois, enquanto verificava o funcionamento da câmera da suíte principal,
testemunhou um episódio entre Nastiya e Vincent Woodward enquanto os dois se acomodavam. Com um tom de voz ameaçador, Nastiya deixou clara a sua posição perante
a Vincent.
- Se você acha que pode me tratar como uma esposa de verdade, Wincent Voodvard, eu vou contar para o sr. O'Quinn, e ele vai matá-lo, mas primeiro vou remover essas
coisas redondas penduradas entre as suas pernas à força e puxá-las até suas narinas.
Paddy se sentiu bastante confortado ao ouvir sem querer essa tocante manifestação dos sentimentos dela em relação a ele.
O tio de Adam, Kamal Tippoo Tip, estava de pé na casa do leme da traineira tailandesa capturada de 33 metros de comprimento, e observou seu helicóptero roçar o topo
das ondas ao voltar de sua missão de reconhecimento. Ele virou a popa na direção da brisa suave para facilitar a aterrissagem. O mastro e a maior parte da superestrutura
haviam sido removidos da traineira não apenas para auxiliar a operação do helicóptero, mas também para que não fosse um alvo tão fácil para os radares das outras
embarcações. Em frente à casa do leme, uma plataforma de aterrissagem de madeira tinha sido colocada sobre o convés. A escolha do material também visava diminuir
os ecos de radar. Agora o Bell Ranger pairava sobre ela e, em seguida, foi descendo gentilmente até se acomodar com uma sacudidela quase imperceptível sobre a plataforma.
A tripulação saiu correndo com cabos de amarração para prender a aeronave.
Kamal assentiu em aprovação. O piloto era um iraniano treinado pela força aérea de seu país, e um alistado entusiasta da jihad contra os infiéis. Assim que a aeronave
foi amarrada, ele desligou os motores e desceu para o convés da traineira. O homem correu até a casa do leme, arrancando os óculos de proteção e desenrolando o lenço
que cobria a parte inferior de seu rosto.
- Louvor e gratitude a Alá e Seu nobre Profeta - assim saudou Kamal.
- Todo louvor e toda devoção a Eles - Kamal concordou. - Quais são as novidades, Mustafá, meu irmão?
- O infiel será entregue às suas mãos. O navio está apenas 185 quilômetros adiante de nós, e perlongando a uma velocidade bem acima dos vinte nós.
- Você tem certeza de que é o navio que estamos caçando?
- Não é possível que exista um igual a ele nos oceanos. Ele é maior do que uma montanha, e o nome está na popa e na proa. É o Ganso Dourado. Louvado seja Alá, Seu
Profeta e todos os Seus antos.
- Todo louvor e toda devoção a Alá! Conte-me o que viu.
- Havia três homens visíveis na ponte, mas no convés dianteiro estavam um homem e uma mulher. A mulher tinha cabelos amarelos e não era velha. Os cabelos e o rosto
estavam descobertos.
- Louvado seja Alá! É a puta Bannock! E o homem?
- Ele é alto e de cabelos escuros. Estava acariciando a mulher abertamente, do jeito mais obsceno e desavergonhado.
- É o assassino Hector Cross! Desta vez ele não escapará da nossa justa ira.
Mustafá prosseguiu descrevendo os detalhes da estrutura do navio e os possíveis pontos fracos, sem se esquecer do suporte convenientemente dependurado na lateral
do navio.
- Devo informar o xeique imediatamente sobre a nossa sorte grande - disse Kamal, virando-se para o equipamento eletrônico no fundo da casa do leme e ligando o telefone
por satélite. Houve uma demora durante a transferência da ligação, mas ele finalmente escutou a voz do sobrinho.
- Quem fala?
- Kamal. Saudações e que Alá o abençoe, poderoso xeique!
- Que Ele o abençoe também, venerado tio - Adam respondeu.
- Encontramos aquilo que você procura, meu estimado xeique. Será entregue às suas mãos juntamente com o homem que matou tanto o seu pai quanto o meu.
- Como você sabe com certeza que o porco do Cross está a bordo no navio? - Adam perguntou com um tom de insistência.
- O Mustafá o viu no convés, com a prostituta, louvado seja Alá.
- Todo louvor a Deus e Seu Profeta. Mas não houve engano? É a mulher Bannock? Tem certeza?
- Tenho, meu xeique. A cabeça dela estava descoberta. Os cabelos eram amarelos. É ela! O navio está completamente carregado e rebaixado na água. A carga vale tanto
quase a própria embarcação. Aqueles marinheiros infiéis idiotas deixaram escadas de corda dependuradas sobre a lateral. Será muito fácil nos apossarmos dele, meu
estimado e amado sobrinho e xeique.
- Se assim for, você nos fará muito ricos, meu tio. Quando você irá alcançar o prêmio?
- O navio está numa rota de interceptação, navegando diretamente na nossa direção a vinte nós. Se Alá for gentil, estaremos lado a lado em menos de cinco horas.
Ao raiar do sol amanhã, o navio e seu conteúdo estarão nas suas mãos. A dívida de sangue poderá finalmente ser quitada. Assim como você, eu também sofro pelo assassinato
do meu pai e do seu avô.
- Que Alá e Maomé, Seu Profeta, abençoem sua empreitada, venerado tio. Cuide para que aquele cachorro infiel do Cross e a puta dele sejam trazidos vivos até mim.
Quero conversar com eles antes de morrerem.
Tudo o que se ouvia na sala de situação na seção camuflada do Ganso Dourado era o barulho suave do mar ao lado do casco, as pancadas e os chiados das bombas de gás
nos porões adjacentes e o leve zumbido do equipamento eletrônico. Hector, Paddy e David Imbiss estavam sentados à longa mesa de frente para as telas do computadores.
Tariq tinha arrastado a cadeira para trás e estava de braços cruzados sobre o peito. Eles raramente falavam e, quando falavam, era em murmúrios. Hazel estava encolhida
no banco estofado e estreito no fundo da cabine com um cobertor ao redor dos ombros. Ela dormia tranquilamente. A maior parte da iluminação vinha do brilho das múltiplas
telas de CCTV. O relógio de parede mostrava que faltavam dez minutos para a meia-noite. Os sensores infravermelhos em cada uma das câmeras escondidas detectavam
qualquer movimento ao redor do navio. Quando isso acontecia, a câmera era automaticamente ligada, e as imagens apareciam nas telas. Num momento, uma tela mostrou
a ponte e Cyril Stanford andando para cima e para baixo do convés, olhando para a escuridão além da proa. A tela ao lado mostrou dois de seus tripulantes no refeitório,
tomando café e fumando. Uma outra tela passou de repente a mostrar as imagens da câmera no quarto da suíte principal. A suíte estava imersa em escuridão, mas a câmera
estava no modo infravermelho. As imagens na tela eram monocromáticas. Nastiya Voronova afastou as cobertas e se levantou. Ela vestia um macacão. Ao atravessar o
aposento em direção à porta do banheiro, eles tiveram um vislumbre de Vincent ao fundo. Estava dormindo sozinho no sofá encostado na antepara oposta.
- Não há motivos para ansiedade, Paddy - Hector murmurou.
Nastiya entrou no banheiro e fechou a porta. A câmera naquele banheiro em particular havia sido desativada de acordo com as ordens de Hazel. Era como assistir um
reality show como Big Brother, Hector pensou, e tão entediante quanto. Paddy fechou os olhos e abaixou a cabeça entre os braços dobrados no tampo da mesa diante
dele. Hector se levantou e espreguiçou. Foi pegar uma caneca de café da garrafa térmica e voltou à cadeira.
- Não temos de esperar muito. Quase posso sentir o cheiro deles - disse em voz baixa a Paddy, que abriu os olhos e assentiu, abaixando a cabeça novamente depois.
Hector se virou para Hazel que, quase como se tivesse sentido os olhos dele sobre ela, abriu os dela e sorriu para ele. A seguir, ela mudou de posição e ajustou
o travesseiro sob a cabeça. Na suíte principal, a porta do banheiro se abriu, e Nastiya retornou para a cama king size. Ela puxou as cobertas sobre a cabeça e sumiu
de vista.
- Ela sempre dorme como se fosse uma toupeira? - Hector perguntou.
- Não é da sua conta, Cross - Paddy respondeu fingindo indignação. Hector sorriu e ficou observando o ponteiro dos segundos se mover incessantemente ao redor do
relógio. Era meia-noite e quinze. Então uma das telas escuras no final da fileira de repente se acendeu. Ela mostrava a imagem do convés de carga principal do navio-tanque.
Hector se endireitou na cadeira e a expressão no rosto dele mudou, seu olhar se estreitou e os lábios se contraíram formando uma linha rígida. Essa câmera, situada
no topo da torre de popa, havia detectado um movimento, mas a imagem no convés dianteiro era escura, monocromática e distante.
- Dave! - Hector disse bruscamente. - Ajuste o foco da câmera número quatro. Algo está se movendo na grade do convés de bombordo.
David piscou para afastar o sono e digitou uma mensagem no teclado dos controles das câmeras. Ele focalizou no convés abaixo. Eles agora podiam enxergar o pórtico
onde estavam suspensos o suporte e as escadas de corda. De repente, um homem surgiu por detrás do cabo de guincho onde estivera escondido. Ele estava todo de preto,
e seus traços, escondidos por um lenço enrolado ao redor do rosto. Ele virou a cabeça e olhou para trás. Deve ter dado uma ordem ou feito um sinal porque, imediatamente,
uma fileira de várias figuras vestidas de maneira semelhante pulou sobre a grade e desceu correndo até a torre de popa. Todos carregavam uma arma.
- A Besta chegou - Hector disse baixinho.
Paddy, Tariq e Hazel se levantaram de um salto e se aglomeraram em frente à mesa, de onde encaravam a tela em silêncio. Hector apertou o botão "Enviar" no rádio
Falcon de batalha.
- Ponte! Cross! - disse ao microfone e, numa das outras telas de TV, Cyril Stanford se levantou da cadeira de comando e alcançou seu aparelho.
- Cross! Stanford falando.
- Eles estão a bordo - disse Hector, ainda olhando para a tela. - São quinze até o momento, mas outros mais estão subindo pelas escadas a cada segundo que passa.
Estou perdendo a conta. Não reaja. Eles tem de acreditar que nos pegaram totalmente de surpresa.
A ordem foi redundante, Stanford e sua tripulação haviam ensaiado o procedimento várias vezes.
- Positivo - ele disse. - Retaliação mínima e submissão rápida.
- Essa é a receita - disse Hector e mudou a frequência no rádio.
Na outra tela, viram Nastiya se sentar afastando as cobertas e pegar o aparelho de rádio.
- Voronova.
- Os piratas estão a bordo. Vão chegar à sua cabine em alguns minutos. Não acenda as luzes. Vá para a cama com o Vincent. Depressa.
- Hokay!
Lembre-se: não reaja.
- Hokay! - ela disse, e Hector mais uma vez mudou a frequência.
Ele sorriu para Paddy.
- Essa sua menina é uma tagarela, não é mesmo?
- É uma de suas várias virtudes - Paddy respondeu com seriedade.
Eles voltaram a atenção novamente para as telas de TV que se acenderam em rápida sucessão, acompanhando os piratas que invadiam a escada do tombadilho da torre da
popa em direção à ponte. Cinco deles entraram nos alojamentos da tripulação. Os dois homens sentados à mesa do refeitório foram agredidos até se deitarem no convés,
os demais, arrastados dos beliches e forçados a ficar de joelhos enquanto seus pulsos eram amarrados à frente do corpo com amarras de fio de náilon. Uma outra gangue
de piratas invadiu a casa da ponte gritando ameaças e ordens em árabe.
Cyril Stanford se levantou em um pulo e correu na direção deles gritando:
- Que diabos são vocês? Vocês não têm permissão para estar aqui. Saiam, já disse para saírem!
Um dos piratas o derrubou no chão acertando-o com a coronha de sua AK-47, e outros dois pularam para cima dele e amarraram os pulsos com cabos. O timoneiro e o operador
de rádio receberam o mesmo tratamento. Um dos piratas foi rapidamente até a mesa de controles e desligou todos os aceleradores.
- Vai demorar pelo menos uns 16 quilômetros até o navio parar - disse em árabe, e removeu a máscara, revelando seu rosto. Os traços dele eram agressivos e ameaçadores,
a barba, grisalha.
- É o Kamal Tippoo Tip! - Tariq exclamou, olhando para a imagem. - É o tio de Adam e o comandante da flotilha pirata. Eu o reconheceria em qualquer lugar.
- Estávamos esperando por ele - Hector disse. - Quem me preocupa é Uthmann Waddah. Ele é o único da gangue que saberá que Nastiya não é Hazel, e que eu não sou Vincent.
Veja se consegue encontrá-lo.
Na tela, Kamal ainda dava ordens aos seus homens.
- Encontrem a prostituta Bannock e o assassino cristão. Eles com certeza estão em uma das cabines do convés abaixo. Prenda-os, mas não os machuquem. Se vocês têm
apreço pela própria vida, cuide para que eles sejam mantidos vivos.
Cinco homens saíram correndo da ponte para obedecê-lo. Kamal se virou para os outros.
- Dividam-se em grupos de cinco. Espalhem-se e revistem todas as partes do navio. Certifiquem-se de que não há mais tripulantes infiéis escondidos a bordo!
Da sala de situação, eles observaram o alvoroço dos piratas pelo navio. Se encontravam uma porta fechada, arrombavam. Eles quebraram as portas dos armários dos coletes
salva-vidas e dos depósitos. Dispararam saraivadas de tiros nos armários trancados nas cabines. Nos alojamentos da tripulação, havia um crucifixo pregado à antepara
acima de um dos beliches. Um pirata o arrancou às gargalhadas e o jogou na privada.
Enquanto isso, os homens que Kamal havia enviado para a suíte principal tinham derrubado a porta com chutes e golpes de coronha. Assim que ela foi ao chão, eles
invadiram a suíte e assolaram as cabines. Com uma violência descabida, destruíram móveis e ornamentos, até por fim irromperem no quarto onde Nastiya e Vincent estavam
amontoados em um canto, fingindo estar aterrorizados. Assim como os outros, eles foram arrastados para fora e amarrados com cabos. Os piratas os fizeram agachar
à força no meio da cabine principal. Dois árabes ficaram de pé sobre eles com as AKs apontadas para a cabeça dos dois, enquanto um outro voltou correndo à ponte
e relatou alegremente a Kamal:
- Venerado príncipe, é com grande alegria que posso informar que capturamos o assassino de seu santo pai e a prostituta. Graças e louvor a Alá e Seu Profeta!
Kamal deu uma olhada para o painel de controle para se certificar de que o navio havia parado e que estava deslizando de lado ao vento sem problemas, e depois disse:
- Vou descer para inspecionar os cativos.
Quando entrou na cabine da suíte principal, foi diretamente até Vincent Woodward e o chutou no rosto.
- Você é o animal que matou meu pai e três dos meus irmãos. Quando chegarmos ao porto, você enfrentará uma morte tão requintada que, no final, vai choramingar como
um cachorrinho, implorando para ser libertado de sua agonia.
Kamal falava inglês fluentemente, ainda que com um sotaque forte. O chute havia quebrado o nariz de Vincent, e uma gota de sangue deslizou sobre seus lábios e pingou
do queixo com a barba por fazer. Vincent não demonstrou nenhuma emoção e encarou Kamal. Isso o irritou de maneira insuportável. Ele gritou no rosto erguido de Vincent:
- Você está calado agora, mas vai gritar alto o bastante quando sentir o ferro incandescente no seu ânus.
Ele o chutou no rosto mais uma vez, mas Vincent abaixou o queixo e o golpe acertou a testa. Kamal o deixou de lado e foi até onde Nastiya estava ajoelhada e ficou
de frente para ela. Ele agarrou um punhado de seus espessos cabelos loiros e torceu a cabeça dela para trás. Ele a encarou. A expressão em seu rosto era vingativa
e rejubilante. Na sala de situação, Hazel assistia ao que mais temia começando a se materializar. Ela agarrou uma das mãos de Hector e a sacudiu violentamente.
- Temos de interromper isto! Ele vai matá-la! - ela soltou.
- Não. Ele não vai. Ele tem medo demais do Adam - Hector a tranquilizou.
Ela reprimiu o próximo protesto, mas apertou ainda mais a mão dele devido à ansiedade que sentiu ao observar Kamal se curvar para encarar Nastiya.
- Os olhos dela são azuis - disse em árabe. - Os olhos de um demônio. São como me disseram que seriam, mas Uthmann Waddah deveria estar aqui para verificar a identidade
dessa porca.
Na sala de situação, Hector assentiu e deu um sorriso sombrio.
- Bom, isso dá conta da minha maior preocupação - disse à sua mulher. - Uthmann não está com o grupo a bordo. Não há ninguém a bordo do navio que possa nos reconhecer.
- Como podemos saber que alguns dos trogloditas de Kamal não nos viram na TV ou em fotos da imprensa? - Hazel perguntou ansiosamente.
- Não temos que nos preocupar com isso. Não existe cobertura televisiva na Puntlândia, e nenhuma publicação em inglês. Adam Tippoo Tip tem a mídia inteira sob controle,
sob ameaça de morte.
Todos viram Kamal cuspir no rosto erguido de Nastiya.
- Vejam a insolência dessa cadela! Acho que deveria deixar alguns dos meus homens exorcizar o demônio dentro dela com suas varas de carne.
Os homens ao redor dele sorriram em expectativa e se aproximaram para olhar para o rosto de Nastiya. Ela retribuiu com uma expressão tão fria que eles abaixaram
os olhos e se afastaram.
- Putinha suja! - Kamal colocou uma das mãos sobre o rosto dela e a empurrou para trás.
Tão veloz quanto um crocodilo ao capturar um cervo à beira de sua lagoa, Nastiya projetou a cabeça para a frente e fincou os dentes na mão dele. Com a outra mão,
ele a acertou no rosto, tentando fazê-la soltar.
- Sua cadela venenosa. Solte ou eu mato você!
Ela sorriu pelos dentes cerrados, e o sangue dele se misturou à saliva ao escorrer pelo queixo. Ele ergueu a mão livre para desferir mais um golpe, mas de repente
a mão ferida foi solta, e ele cambaleou para trás segurando-a contra o peito. Kamal olhou para ela horrorizado. As duas articulações superiores do mindinho haviam
desaparecido. Ela as tinha arrancado com a mordida.
- Sua vaca! Sua porca - ele soluçou -, seu animal imundo.
Nastiya abriu a boca e cuspiu o dedo nos pés dele. Ela sorriu de novo para ele, os dentes manchados de sangue.
- Ela é um demônio do inferno - Kamal se afastou. - Matem-na! Cortem a cabeça dela e deem de comer aos cachorros.
Dois dos homens desembainharam as adagas, mas Kamal se acalmou e os deteve no último momento:
- Esperem! Não, não a matem - arquejou. - O xeique mandou que ela fosse levada até ele com vida.
Ele fez uma careta ao retirar o keffiyeh do pescoço e enrolá-lo ao redor do toco do dedo.
- Não vamos matá-la ainda, mas humilhá-la e castigá-la. Vocês, homens, façam um sorteio e os vencedores vão cobri-la como um cão faz com uma cadela no cio. Mas,
primeiro, falarei com o xeique. Agora tranquem esse homem chamado Cross numa cabine separada. Coloquem cinco homens para vigiar a prostituta. Depois, tenho de colocar
o navio em curso novamente rumo à Baía de Gandanga.
Kamal deu meia-volta e, segurando a mão machucada contra o peito, deixou a suíte principal e retornou à ponte. Caminhou devagar e desengonçadamente como um velho.
Na sala de situação, eles tinham assistido ao episódio violento inteiro e ainda encaravam a tela de CCTV. Hector quebrou o silêncio estupefato.
- Retaliação mínima e submissão rápida - ele repetiu as instruções que passara a Nastiya em voz baixa. - Será que eu devia ter dito em russo para ela entender, Paddy?
- Deixe a coitada da moça em paz. Ela se conteve bastante. Você não tem do que reclamar. Ela só arrancou o dedo dele, pelo amor de Deus.
- Acho que ela foi esplêndida - disse Hazel em tom de admiração. - Um pouco travessa por não ter obedecido você, mas esplêndida mesmo assim.
- Isso não foi nada. Você precisam ver quando ela está realmente enfurecida. Acho que deve ter sangue irlandês nas veias - Paddy disse com orgulho.
Kamal se sentou na cadeira do capitão na ponte do Ganso Dourado. Ele tinha o rosto desfigurado pela dor e aninhava a mão com carinho quando mandou que Cyril Stanford
fosse trazido.
- Vou soltar suas mãos - disse a Cyril. - Se você fizer qualquer tentativa de fugir, será espancado. Você vai obedecer às minhas ordens. Vai conduzir o navio para
onde e como eu mandar. Compreende?
- Se tirar as amarras das minhas mãos, eu manobrarei o navio - Cyril concordou.
Kamal assentiu e mandou que um dos homens cortasse o fio de náilon ao redor dos pulsos do capitão. Cyril foi até a mesa de controle e acionou os aceleradores. Depois,
olhou para Kamal.
- Diga qual é o curso a seguir.
- O rumo magnético é 28 graus - disse Kamal, e Cyril confirmou e digitou no computador de navegação. Ele estabeleceu as revoluções do motor em 120 rpm. O Ganso começou
a se virar majestosamente para a esquerda na direção estipulada. Kamal verificou a bússola e a seguir acenou para um dos homens com um estalar dos dedos da mão que
não estava machucada. Obedientemente, o homem entregou a ele um telefone portátil via satélite. Kamal digitou alguns números, e a ligação foi atendida quase imediatamente
pelo próprio Adam.
- Capturamos o navio, poderoso xeique! - Kamal se levantou da cadeira de comando e foi para a asa de bombordo da ponte, onde a recepção do sinal do satélite seria
melhor.
- Graças e louvor a Alá! - Adam exultou. - E a prostituta Bannock e o vilão Cross?
- São meus prisioneiros. Vou levá-los ao senhor juntamente com o navio, meu lorde e mestre.
- Vou recompensá-lo com o que quiser, meu tio.
- Há um dádiva sua que desejo, grande cacique.
- Peça, e eu a concederei.
- A prostituta Bannock é um demônio em forma de mulher, um monstro com alma de cérbero. Ela arrancou um dos meus dedos com os dentes!
Adam gargalhou alto, e Kamal ergueu o tom de voz repentinamente, fervendo de raiva.
- Meu xeique, desejo puni-la. Quero humilhá-la do mesmo modo que ela me humilhou na frente de todos os meus homens.
Adam parou de rir.
- Já lhe disse diversas vezes que a execução da mulher é um privilégio exclusivamente meu, tio! Sinto prazer em pensar em como irei matá-la. No momento, estou indeciso
entre caçá-la com os cães e esticá-la entre dois caminhões pesados, com um pulso e um calcanhar amarrado a cada um. Quando se distanciarem devagar, os membros dela
serão arrancados da carcaça como as asas de um frango assado - Adam riu ao imaginar a cena. - Você estará ao meu lado assistindo a tudo.
- Será algo bastante interessante e divertido de assistir - Kamal assegurou. - Não estou pedindo permissão para matá-la. Quero dá-la aos meus homens para que se
divirtam. Estarei presente o tempo todo para garantir que a brincadeira não passe dos limites.
- Por que não quer se divertir você mesmo? - Adam o provocou, e Kamal deu de ombros diante do pensamento.
O sobrinho sabia muito bem que a preferência dele era por meninos novinhos, e só de pensar em deixar a prostituta chegar perto o suficiente para tocá-lo fez o dedo
machucado latejar de dor, esfriando qualquer resíduo de ardor que Kamal fosse capaz de nutrir por uma mulher.
- Ela está abaixo da minha dignidade, mestre. Prefiro copular com um porco raivoso.
- Muito bem, meu venerado tio. Deixe os homens currá-la por ambos orifícios, o da frente e o de trás. Porém, você precisa detê-los assim que ela começar a sangrar
copiosamente.
- Meus leais agradecimentos ao senhor, meu magnânimo xeique e mestre.
- Que diabos Kamal está fazendo agora? - Hector pensou em voz alta ao observá-lo em uma das telas entrando pela asa da ponte.
Eles não tinham conseguido monitorar a conversa com Adam da sala de situação. Enquanto isso, viram Kamal falar novamente com Cyril Stanford.
- Vou deixar quatro dos meus homens aqui de olho em cada movimento seu. Não altere a velocidade nem o curso. Nem você nem nenhum membro da sua tripulação deverá
encostar no equipamento eletrônico ou transmitir quaisquer mensagens. Entendeu?
- Entendi - Cyril respondeu com aspereza.
Na sala de situação, Hector assentiu em aprovação.
- Muito bem, Cyril. Pelo menos alguém a bordo está seguindo as minhas instruções.
Eles observaram Kamal reunir o restante de seus homens e conduzi-los até a suíte principal no convés abaixo. Os homens estavam rindo e conversando animadamente.
Quando se amontoaram na sala de estar, Kamal se sentou em uma das poltronas e passou uma série de instruções aos homens. Eles arrastaram a mesa da sala de jantar
ao lado e a colocaram em frente ao chefe no centro da cabine. Assim que se mostrou satisfeito com o arranjo, Kamal deu mais uma ordem, e quatro homens entraram no
quarto da suíte onde Nastiya ainda estava ajoelhada no meio da cabine. Os guardas a vigiavam com precaução. Eles viram como Kamal perdera o dedo. Eles tinham fixado
baionetas aos rifles e se mantinham bem afastados, mesmo que ela estivesse com as mãos amarradas à frente do corpo.
- Kamal mandou levarmos a prostituta até ele - disseram aos guardas, que pareciam aliviados.
Dois árabes se aproximaram de Nastiya e, a um sinal, levantaram-na pelos braços. A seguir, a levaram correndo até a sala de estar e a jogaram na mesa no centro da
sala. Ainda segurando os braços da mulher, eles a deitaram de costas com os pés balançando para fora da mesa. Enquanto a mantinham imobilizada, um outro homem veio
até a mesa com sua adaga curvada na mão direita. Ele passou dois dedos pela abertura frontal do macacão que ela usava e, afastando o tecido da pele, deslizou a ponta
da adaga dentro da abertura, rasgando a roupa até a altura da virilha. A seguir, arrancou o macacão, deixando-a nua sobre a mesa. Os braços dela ainda estavam amarrados
nos pulsos com o cabo verde de náilon. Os que estavam assistindo na sala de situação abaixo estavam calados devido ao choque causado pela cena que se desenrolava
na tela da TV.
Kamal estava sentado na beira da poltrona, acariciando a barba encaracolada e observando com fascinação os homens prepararem Nastiya para o castigo. De vez em quando,
dizia a eles como proceder, e os homens obedeciam prontamente. As luzes do teto incidiam sobre o corpo pálido, esguio e musculoso de Nastiya. Os cabelos estavam
emaranhados ao redor do rosto, os lábios, inchados, assim como um dos olhos, semiaberto e arroxeado, onde Kamal a acertara. Ela parecia bastante jovem e frágil em
comparação aos homens debruçados sobre seu corpo. Eles riam e brincavam uns com os outros, excitados por sua nudez. O homem que a havia despido apertou um dos seios
dela, depois, beliscou o mamilo e o puxou até o limite permitido pela elasticidade da pele. Os demais gargalharam e, a seguir, um após o outro acariciou e beliscou
os seios dela. Eles urravam de alegria enquanto ela permanecia imobilizada pelos dois homens que a seguravam. Seus algozes ficavam se instigando, fazendo palhaçadas,
um tentando ser melhor do que o outro. Um deles segurou o mamilo entre suas unhas sujas, beliscando-o com tamanha crueldade que uma gota de sangue saiu do corte.
Ele lambeu o sangue dos dedos, para o deleite dos companheiros. A seguir, um outro alcançou os pelos púbicos e segurou um dos cachos dourados. Com um puxão violento,
ele arrancou um tufo, cheirando-o como se fosse um buquê de flores. Ele o passou adiante, para que os demais pudessem desfrutá-lo. Nastiya não se mexeu nem gritou.
- Ela consegue fazer isso - Paddy sussurrou. - Auto-hipnose. Ela consegue bloquear a dor.
- Isso é horrível - disse Hazel. - Não pretendia que isso acontecesse. A culpa é toda minha.
- Não! - Hector interviu. - Não é sua. Kamal e Adam são os culpados. Mas logo haverá um ajuste de contas.
A um comando brusco de Kamal, os homens que estavam agrupados ao redor de Nastiya se afastaram, e ele se debruçou sobre ela e mostrou a mão ferida.
- Escute o que vou dizer, sua puta cristã. Vou castigar você pelo ferimento que infligiu a mim. Cada um dos meus homens vai arrombar seu corpo imundo e inundá-la
com jorros de bom esperma muçulmano. Você vai sangrar, vadia. Você vai chorar pedindo misericórdia, sua porca suja.
Nastiya não olhou para ele. Os olhos dela estavam focalizados num ponto distante, e a expressão em seu rosto era tranquila e remota.
- Ela está se preparando para agir - Paddy disse quase inaudivelmente.
Na tela, eles viram que Kamal estava ficando enfurecido e frustrado com a calma distanciada de Nastiya. Ele se virou para os homens com o olhar em chamas.
- Quem vai ser o primeiro a cavalgar esta potranca? - ele gritou.
- Bayhas, o leão! - eles gritaram. - Bayhas, o dono do mastro poderoso. Ele foi o primeiro a montar na filha dessa vadia no Oásis. Ele tem que ser o primeiro a sulcar
a Puta Mãe.
Eles empurraram Bayhas para a frente. Ele riu e abriu a braguilha da calça, colocando seu monstruoso órgão sexual para fora. Ele endureceu e se estendeu ao comprimento
máximo enquanto Bayhas o puxava e massageava.
- Segurem a cadela - ele ordenou ao homens ao redor dela. - Vai ficar maluca de desejo quando sentir esta coisa dentro dela. Abram as pernas dela.
Os homens nos dois lados da mesa afastaram as pernas de Nastiya grosseiramente, e Bayhas se colocou entre elas. Ele cuspiu em uma das mãos e ungiu a cabeça do pênis
com saliva.
- Temos de dar um basta nisso - Hazel soltou. - Temos que entrar na suíte e tirá-la de lá.
- Espere! Você não pode interromper a guerra diante da primeira casualidade - Hector disse.
- A Nastiya não é um soldado - Hazel estava zangada.
- Sim, ela é - Paddy a contradisse. - Ela nunca a perdoaria se você a tirasse de lá agora. É para isso que foi treinada. É a profissão dela. Observe-a! - ele apontou
para a tela.
Bayhas, o leão, estava esfregando o pênis lubrificado na abertura do sexo de Nastiya, mudando de um pé para o outro, posicionando-se para a primeira impelida para
dentro dela. De repente, o corpo ágil de Nastiya formou um ângulo de 90 graus sob ele. Ela conseguiu soltar os tornozelos das mãos dos dois árabes. Ela moveu os
joelhos até a altura dos ombros com uma graciosidade aparentemente natural, projetando-os para a frente de novo com tal força que o movimento pareceu um borrão.
Os calcanhares desnudos golpearam a base do púbis de Bayhas. Pelos microfones, foi possível ouvir com clareza o osso púbico se quebrando, partindo-se na articulação
da sínfise em duas partes separadas. O pênis intumescido ficou preso entre os calcanhares de Nastiya, e a ponta afiada da cinta que ele tinha ao redor da pélvis.
Ele foi esmagado pela força do golpe, e os corpos cavernosos, as câmaras que detêm o sangue no pênis, se romperam, o que o fez esguichar sangue em vez de esperma
enquanto o homem era arremessado de costas contra a antepara. Ele uivou, os joelhos se dobraram, e ele deslizou pela antepara até o chão enquanto segurava os órgãos
danificados.
Nastiya suspendeu as pernas novamente, e dessa vez cada uma se enganchou ao redor dos pescoços dos dois homens que prendiam os ombros dela. Usando o próprio impulso
e força de suas pernas atléticas, ela se moveu para a frente mais uma vez e arremessou os homens para a parede oposta da cabine como se fossem pedras de uma catapulta.
Eles também bateram contra a antepara. Um deles foi de cabeça, e a parte posterior do crânio foi perfurada. O outro conseguiu suspender um braço para proteger o
rosto, mas o cotovelo recebeu a maior parte do impacto e a junta se partiu. Ele rolou sobre o chão choramingando, pedindo misericórdia ao seu deus.
Nastiya ergueu as pernas de novo e saltou para a frente, caindo de pé com um equilíbrio perfeito. Ela se inclinou sobre o corpo do homem morto e, com os pulsos ainda
amarrados, retirou a adaga da cinta do cadáver estendido, girando nos calcanhares para enfrentar o ataque dos outros guardas. Ela cortou a barriga do primeiro e,
quando ele se dobrou para tentar evitar que as vísceras se projetassem para fora do longo ferimento, Nastiya usou o punho de prata e chifre de rinoceronte da adaga
para golpear a base de seu crânio. Ele estava morto antes de se esparramar no chão. Um dos outros guardas surgiu atrás dela, obedecendo aos rugidos raivosos de Kamal.
Nastiya não se virou para encará-lo, mas deu um coice que o atingiu sob o queixo e dobrou sua cabeça para trás tão violentamente que a vértebra do pescoço foi esmagada,
e ele despencou no chão como uma camisa descartada. Seus companheiros se aglomeraram na entrada da suítes ávidos por escaparem.
Ainda segurando a adaga entre as mãos atadas, Nastiya saltou sobre o primeiro corpo e foi até Kamal. Ele percebeu a aproximação dela e se levantou da poltrona de
um pulo, deu meia-volta e saiu correndo. Ele foi o último homem a sair pela porta. Ao alcançá-lo, Nastiya enfiou a ponta da lâmina da adaga em uma das nádegas dele
através do macacão justo que usava. Com mais um uivo de dor e raiva, ele se lançou pela entrada, e um de seus homens bateu a porta, fechando-a. Nastiya passou o
trinco e retornou ao salão, pisando com cuidado entre os corpos, e se empoleirou na beirada da mesa. Ela encaixou a adaga entre os joelhos, deslizou a ponta da lâmina
por baixo do cabo de náilon e, puxando rapidamente os pulsos para cima, cortou as amarras. Quando elas caíram no chão, ela massageou os vergões deixados ao redor
dos pulsos, levantou-se e foi até onde sabia que a câmera estava posicionada. Ficou diante dela completamente nua e sem pudores e olhou para os observadores da sala
de situação nas profundezas do navio. A expressão dela era calma e insondável. Então, deu uma piscadela de um jeito conspiratório e depois sorriu. O sorriso foi
angelical e sereno, como se ela não sentisse nada em relação aos homens mortos espalhados pelo chão da cabine como flores cortadas de um canteiro por um jardineiro
demente.
Durante o tempo todo, os que assistiam da sala de situação permaneceram calados, estupefatos. Por fim, Hazel conseguiu falar.
- O que ela está fazendo agora? - ela perguntou ao ver que Nastiya estava concentrada no painel de ar condicionado na aparata ao lado da porta.
- Ela está diminuindo a temperatura ao máximo - Paddy explicou.
- Por que ela faria isso? - Hazel estava confusa.
- Ela é muito minuciosa - Paddy explicou num tom de total aprovação. - Imagino que não queira que os corpos comecem a feder, não se ela tiver de compartilhar a suíte
com eles.
- E eu estava preocupada, quase tendo um colapso nervoso, com a segurança dela! - Hazel riu, quase histericamente de alívio. - Ela é especial!
- Não é perfeita? - Paddy concordou. - Eu estava hesitante, mas depois dessa pequena apresentação, vou pedi-la em casamento com certeza.
Nastiya deu as costas para os controles do ar condicionado e perambulou pelo quarto da suíte, as nádegas oscilando como um par de sacos de seda cheios de serpentes
vivas.
- Deus! Ela é linda demais - David Imbiss disse num tom de admiração quase religioso.
- Linda demais para você, meu rapaz - Paddy afirmou. - No futuro, quando for olhar para ela, mantenha os olhos firmemente fechados.
Quando Nastiya entrou no quarto, a próxima câmera capturou novamente a imagem. Ela trancou a porta e foi até a penteadeira. Sentou-se em frente ao espelho e, com
uma das escovas de Hazel, arrumou o penteado que Kamal havia desfeito. Quando ficou satisfeita com o resultado, cobriu os hematomas do rosto com pó compacto, e usou
o batom e o perfume Chanel de Hazel. Ela estava brincando com seus espectadores escondidos, completamente ciente de que todos os olhos estavam sobre ela. Ela se
levantou e examinou o guarda-roupa do closet no outro lado da cabine. Sem pressa, olhou as prateleiras de lingerie e, por fim, escolheu um conjunto de calcinha e
sutiã Janet Reger de seda e renda veneziana. Ela segurou a calcinha na frente do corpo e olhou para a câmera com a cabeça dourada inclinada para o lado, obviamente
em busca de aprovação. Eles não podiam quebrar o silêncio e aplaudi-la, mas Dave colocou dois dedos na boca e deu um assovio quase inaudível.
- Perfeito! Eu mesma não poderia ter escolhido melhor! - Hazel murmurou baixinho.
Quase como se pudesse escutá-los, Nastiya sorriu mais uma vez.
Uma das unidades do equipamento de navegação eletrônica no topo do mastro acima da ponte do Ganso Dourado tinha uma conexão com a sala de situação na área escondida.
O operador nas entranhas do navio era capaz de monitorar o radar e o GPS. Na sala de situação, eles eram mantidos tão informados a respeito dos avanços do navio
quanto os homens na ponte.
Uma atmosfera de tensão impregnava a área escondida inteira. Os homens praticamente não diziam nada e, quando falavam, era em murmúrios. Na maior parte do tempo,
eles verificavam e preparavam seus equipamentos: afiavam as facas de trincheira, descarregavam os pentes de munição, poliam e lubricavam cada projétil para se encaixar
com facilidade no pente, limpavam os buracos dos canos dos rifles até brilharem e ajustavam os gatilhos para que funcionassem com suavidade e perfeição. Hector e
seus agentes mantinham total atenção na sala de situação, monitorando as telas de navegação e de CCTV.
Vincent Woodward permanecia trancado em uma das cabines menores no mesmo andar da suíte principal. Tinha os pulsos amarrados por cabos, e dois guardas armados até
os dentes estavam sentados no beliche estreito cobrindo-o com suas AK-47. Outros três guardas estavam posicionados no lado de fora da porta da cabine. Duas vezes
ao dia, Kamal descia da ponte para ventilar sua cólera em Vincent. Começava cuspindo nele e invocando a ira de Alá sobre o pagão imundo que tinha assassinado seu
pai e seus irmãos, e então o chutava de novo, mirando a barriga e a virilha. Vincent se dobrava numa bola para proteger os órgãos vitais e rolava para evitar a intensidade
dos golpes. Quando Kamal finalmente se cansava, pegava a AK de um dos guardas, que acompanhavam a demonstração com prazer, e encerrava a surra com duas ou três pancadas
da coronha revestida de aço do rifle na cabeça de Vincent. Porém, a mão ferida de Kamal doía tanto que os golpes não tinham muita força. Vincent conseguia se proteger
do maior impacto com facilidade.
- O Vincent está trabalhando por seus dez mil dólares - David comentou.
- Devo adicionar um bônus ao pagamento dele por serviços prestados além do dever - disse Hazel, abalada pela selvageria do temperamento de Kamal.
- Bobagem! - Paddy argumentou. - Para o Vic, uma cocegazinha assim é tão pesada quanto o beijo de uma mulher feia.
Ele pensou por um momento e então adicionou:
- Ele provavelmente preferiria a surra à uma mulher feia.
Havia mais cinco homens vigiando a porta da cabine de Nastiya. Nenhum deles tinha ousado entrar no salão onde ainda jaziam os corpos de seus camaradas. Eles reforçaram
as trancas e empilharam móveis pesados contra a porta para se protegerem. Eles não disfarçavam a trepidação. Mantinham-se tão afastados da porta barricada quanto
permitido pelos limites da cabine, e nunca tiravam os olhos dela. De dedos nos gatilhos, estavam preparados para repelir mais um redemoinho repentino de chutes,
golpes e quebras de dentes.
Kamal emergiu da cabine oposta onde estivera espancando Vincent e se virou para os próprios homens, bradando furiosamente:
- Vocês deixaram os corpos de seus valentes companheiros com aquela demônia? Não têm respeito pelas leis e pelos costumes? Eles devem ser enterrados ou jogados ao
mar antes do anoitecer. Tragam-os já para fora!
Ninguém parecia ter pressa de fazer mais uma incursão à suíte principal, mas eles finalmente juntaram coragem suficiente para remover a barricada cuidadosamente
e deixar a porta levemente aberta. Quando espiaram cautelosamente pela fresta e descobriram que Nastiya não estava à espera deles, entraram correndo juntos no quarto,
pegaram os corpos e arrastaram-os segurando pelos calcanhares. Depois, trancaram rapidamente a porta e empilharam a mobília diante dela.
Enquanto isso, na cabine interna, Nastiya relaxava em uma das poltronas de couro de bezerro, comendo chocolates da caixa que encontrara na geladeira da cozinha e
folheando preguiçosamente uma das revistas de moda da pilha da mesinha de centro. Ela mal ergueu o olhar quando ouviu os árabes resgatarem seus mortos na cabine
ao lado. Nastiya vestia calças verde-claras, lindamente confeccionadas em lã pura, e sobre elas, um vibrante top Emilio Pucci do guarda-roupa de Hazel.
- A moça tem um gosto excêntrico - David Imbiss observou.
- Certamente tem - Hector concordou. - Ela está com Paddy, não é? Isso faz o excêntrico parecer mundano.
Houve mais um incidente significativo, e eles puderam acompanhá-lo nas telas de CCTV da sala de situação. Depois das vítimas terem sido lançadas ao mar com uma breve
cerimônia, Kamal permanecia agitado. Ele começou a deixar a ponte em diferentes horas do dia e da noite. Um de seus tenentes vigiava Cyril Stanford, enquanto Kamal
rondava pelo resto do navio examinando as anteparas entre os compartimentos e os diferentes andares. Kamal parecia ter um sentimento insistente de que tinha deixado
passar algo importante.
Quando começou a bater com a adaga em algumas seções do casco e a escutar o eco com atenção, Hector foi ficando cada vez mais alarmado. O andar sob a ponte que tinha
sido convertido para armazenar o canhão Bushmaster recebeu a investigação minuciosa de Kamal. Ele o examinou cautelosamente, chegando mesmo a descer até o convés
de carga para espiar a antepara externa que escondia o convés de canhões. Quando Kamal retornou à ponte, Hector escutou uma conversa entre Kamal e Cyril Stanford
sobre essa seção. Como sempre, Cyril tinha uma explicação plausível mas totalmente fictícia. Ele explicou que a área armazenava maquinaria delicada e controlava
o bombeamento nas profundezas do navio. As bombas controlavam a temperatura e distribuição de gás nos tanques de carga. Acima de uma certa temperatura, o gás se
tornava tão volátil que podia explodir espontaneamente e destruir o navio inteiro. Cyril explicou que a maquinaria era controlada remotamente por satélite de uma
dos departamentos técnicos nos Estados Unidos. Até mesmo ele, como capitão, não podia entrar na área sensível enquanto o navio estivesse no mar.
- Então essas pessoas vão conseguir ler a nossa mudança de curso? - Kamal perguntou.
- Isso o preocupa, Capitão? - Cyril perguntou.
- De forma alguma - Kamal sorriu e balançou a cabeça. - Dentro de poucas horas estaremos em segurança em águas territoriais. Não há nada que eles possam fazer.
No entanto, as explorações prosseguiram, e ele cutucou e espiou cada canto. Uma tarde, descobriu a escotilha que levava até os túneis de serviço, que conectavam
os diferentes porões de gás e alojavam as enormes bombas que faziam a carga de gás circular e esfriar, transferindo-a de um tanque para outro para manter o equilíbrio
e a posição do navio na água se necessário.
Em Taiwan, quando o casco foi reconfigurado para criar espaço para a área escondida, tinha sido necessário mover essa escotilha de acesso do meio do navio para o
bombordo da torre da popa, um sacrifício complicado e insatisfatório que atrairia a atenção de um marinheiro do calibre de Kamal. Kamal abriu a escotilha e se enfiou
pelo labirinto de túneis embaixo dos tanques de armazenamento de gás, explorando-os exaustivamente. Os espectadores na sala de situação logo acima dele acompanhavam
seus avanços com ansiedade pelos sensores de infravermelho. Num determinado momento, Kamal bateu com o punho da adaga em uma das tubulações de gás, e o som das pancadas
se propagou tão claramente que a impressão foi de que ele estava na sala com eles. Eles prenderam a respiração até que, para seu alívio, pareceu que Kamal tinha
finalmente decidido que essa área do Ganso Dourado não continha nada de sinistro. Ouviram os passos nos degraus de aço da escada quando ele subiu de volta ao convés
de carga, além da sala de situação.
O Ganso percorria os quilômetros de águas tropicais reluzentes sob sua proa gigantesca, e a cada hora eles se aproximavam mais do continente africano.
- Você tem uma estimativa de quando vamos chegar à Baía de Gandanga? - Hazel perguntou quando estavam à mesa do refeitório.
- A hora estimada de chegada fornecida pelo GPS são nove horas da manhã da quinta-feira, dia catorze: em três dias - David respondeu à pergunta dela.
Eles estavam comendo filés de bisonte canadenses e batatas fritas com ketchup. Apenas Hector deu uma chance ao molho apimentado de jalapeños. Embora essa refeição
rústica fosse servida em pratos e talheres de plástico, os copos de poliestireno estavam cheios de vinho Malconsorts Burgundy vintage. Hazel estava guardando a bebida
para uma ocasião bastante especial, e decidira que era aquela. Hector saboreou o vinho com reverência.
- Um dos vinhos mais raros e divinos deste mundo - disse com tristeza - sendo bebido nas condições mais insalubres neste mesmo mundo.
- Coma, beba e seja feliz - Paddy aconselhou. - Pois amanhã...
- Cale a boca, Paddy! - David exclamou logo em seguida.
- Pois amanhã prosperaremos? - Hazel sugeriu erguendo o copo. - Progrediremos? Seremos bem-sucedidos?
- Pois amanhã os bandidos irão morrer - Hector disse, e todos beberam após o brinde com uma solenidade adequada.
Ao colocarem os copos na mesa, Tariq subiu da sala de situação até a escada do tombadilho.
- Hector! Paddy! Venham depressa!
- O que foi, Tariq? - Hector perguntou ao se colocar de pé.
- Novo sinal no radar. Navio desconhecido se aproximando de nós. Cheira a problema.
Eles abandonaram a refeição, até mesmo o vinho Malconsorts, e desceram em grupo pela escada do tombadilho até o convés inferior, onde se reuniram em frente aos monitores.
O contato exibido pelo repetidor do radar do navio era brilhante e consistente.
- Navio grande - disse Dave. - Vou verificar a velocidade.
Ele operou o medidor e então se recostou na cadeira.
- Quarenta e três ponto seis nós. Navios mercantes não queimam combustível assim. É um navio de guerra - ele checou os outros instrumentos. - Cyril está mantendo
um curso e uma velocidade constantes.
- Pode acreditar que sim! - Hector disse com amargura. - Ele não tem como fugir de um galgo inglês a essa velocidade. Espero que não seja uma das cavalarias norte-americanas
atacando para nos resgatar e estragando tudo.
Ansiosamente, eles assistiram às imagens sendo transmitidas da câmera no topo do mastro de comunicações do Ganso. O estranho navio surgia rapidamente no horizonte.
Era cinza e austero, funcional como a lâmina de um machado de batalha.
Da ponte do Ganso Dourado, o navio que se aproximava ainda estava abaixo da linha do horizonte. Kamal não possuía a mesma vantagem conferida pela altura da câmera
escondida na ponta do mastro, mas estava analisando a imagem no radar com avidez. Quando não tinha mais dúvidas, ele se virou para Cyril Stanford.
- Você é ianque, não é? - perguntou.
Cyril era da região ao sul da linha de Mason-Dixon, mas não achou que era sensato começar a discutir.
- Sou norte-americano, sim.
- O navio desconhecido vai nos interceptar. É com certeza um navio de guerra infiel, talvez inglês, mas mais provavelmente norte-americano. Você fala com eles -
ele agarrou Cyril pelos ombros e o fez virar para ele, encarando-o ameaçadoramente. - Se eles quiserem vir a bordo nos revistar, você vai detê-los. Não me importa
o que ou como, mas você vai dizer algo que os faça ir embora. Entendeu direito?
- Entendi direito - Cyril disse em voz baixa.
- Se um grupo de abordagem vier até nós, você morrerá antes que eles cheguem.
Kamal tirou a adaga da cintura e picou a garganta de Cyril. Uma gota de sangue vermelho-vivo transbordou do ferimento minúsculo.
- Você compreende que estou falando sério?
- Compreendo - Cyril concordou.
Ele não se mexia, mas virou os olhos e falou no mesmo tom baixo de voz:
- O navio desconhecido já está à vista.
Kamal se virou rapidamente e olhou para a porção do estibordo. A superestrutura do navio que se aproximava surgiu com clareza acima do horizonte e, nesse momento,
o canal de frequência marinha 156.5 Mhz crepitou na sala de rádio do Ganso no fundo da ponte de comando.
- Navio-tanque na amura de bombordo! Aqui é o Comandante Robins a bordo do destróier USS Manila Bay da Marinha dos Estados Unidos. Que navio é você? - Cyril olhou
para Kamal.
- Quer que eu responda?
- Sim. Mas lembre-se de que será o primeiro a morrer se cometer um erro.
Cyril assentiu. Ele foi até a sala de rádio e desenganchou o microfone. Fez uma pausa. Não queria parecer muito disposto a agradar nem eficiente. O outro capitão
esperaria uma atitude um pouco mais relaxada vinda de um navio mercante.
- Olá! Manila Bay. Aqui é o Ganso Dourado. Capitão Stanford. Seguindo de Sidi el Razig, no Golfo Pérsico, a Jedá, na Arábia Saudita.
Houve um prolongado silêncio, e então Robins voltou à linha.
- Capitão Stanford! O senhor por acaso não seria um cidadão norte-americano, seria?
- Filho da mãe! Como sabe? - Cyril exagerou um pouco o sotaque. - Pode ter certeza que sou. Cyril Stanford, antigo comandante do cruzador Reno da marinha norte-americana.
Fui aposentado por ser velho e decrépito demais - ele deu uma risadinha.
O destróier demorou alguns momentos a responder.
- Qual é o seu porto de registro e o nome do seu dono?
- Meu dono é a Bannock Cargoes, e o porto de registro é Taipei.
- Ok! Confere. Capitão Stanford: o senhor por acaso tem um filho que se formou em Anápolis em 1996?
- Com certeza tive, comandante.
- O nome dele é Timothy?
- Tenho certeza absoluta de que não é! O nome dele era Bobby. E o seu é Andy. Vocês dois eram companheiros de navio. Bobby o levou a um churrasco na nossa casa certa
vez. Esqueceu?
- Não, senhor, capitão. Eu me lembro muito bem. Só estava conferindo. Sua esposa faz uma excelente torta de maçã.
- Obrigado. Ele teria ficado contente de ouvir isso, Andy. Mas, infelizmente, faleceu há quatro anos.
- Sinto muito, senhor.
- Eu também, Andy.
Na sala de situação, Hector deu um assovio baixinho.
- Onde você encontrou esse cara, Paddy? Ele é um príncipe.
- Afiado como a espada de um samurai - Paddy concordou. - Vamos ver o que vai fazer para que um grupo de abordagem não venha a bordo.
Sutilmente, Andy Robins retornou ao motivo da conversa.
- Capitão Stanford, o senhor está no comando absoluto do seu navio?
Cyril deu uma risada descontraída.
- Espero que sim! Ainda não estou senil, independente do que a Marinha pensa de mim.
- Se precisar, posso enviar um grupo de abordagem até o senhor e prestar assistência.
- Muito gentil da sua parte, Andy, mas isso atrapalharia tanto a minha rotina quanto a sua. Garanto que não é necessário. Está tudo sob controle. Tenho um cronograma
apertado.
Mas Andy voltou a falar:
- O senhor está ciente de que está navegando em uma área do Oceano Índico perigosa devido a atividades de pirataria? Há apenas quatro dias um baleeiro japonês foi
capturado por piratas no Golfo de Adem.
- Fiquei sabendo - Cyril concordou. - No entanto, meus donos negociaram com os governantes da Puntlândia. A Puntlândia nos garantiu passagem livre por suas águas.
Penso que estaremos suficientemente protegidos contra qualquer molestação.
- O senhor acredita na palavra de um pirata, Capitão?
- Meus donos acreditam - Cyril respondeu. - Isso basta para mim.
- A decisão é sua, senhor - Andy Robins aquiesceu relutantemente. - Boa viagem, Capitão. Mas me diga, antes de nos despedirmos, como está o meu velho camarada Bobby?
- O Taliban o pegou no Afeganistão, Andy.
- Filhos da mãe! - disse Andy em voz baixa, mas com intensidade.
Na sala de situação, eles observaram o Manila Bay dar meia-volta e retornar na direção em que havia surgido. Hector se levantou e espreguiçou.
- Aqui está, senhoras e cavalheiros. Passagem livre para a Baía de Gandanga, com os cumprimentos do Capitão Cyril Stanford. Agora vamos dar cabo daquela garrafa
de Malconsorts antes que também seja roubada pelos piratas.
O xeique Adam decidiu mudar a estrutura doméstica do Oásis do Milagre inteira para a Baía de Gandanga, para recepcionar o Ganso Dourado quando Kamal Tippoo Tip conduzisse
o prêmio infiel para dentro da baía. A chegada dos prêmios capturados tinha se tornado tão lugar-comum que Adam raramente se movia da segurança e do conforto de
sua fortaleza.
Ele tinha sete esposas. Três mais do que o permitido pelo Corão. O mullah havia lhe garantido que um governante de sua estatura poderia ter mais mulheres do que
um plebeu. Além das esposas, ele possuía mais de cem concubinas. Ele nunca sabia ao certo quantas, pois os números mudavam continuamente. Seus alcoviteiros esquadrinhavam
o país inteiro em busca de jovens meninas solteiras. Com o avançar da idade, o gosto de Adam se tornava cada vez mais pedofílico em relação às mulheres. Qualquer
menina acima de treze anos pouco o atraía. Elas o interessavam apenas até demonstrarem os primeiros sinais de puberdade. Ele gosta de senti-las rasgando por dentro
quando as penetrava à força. Gostava da sensação do sangue quente se espalhando em sua barriga e do som dos gritos e do choro das meninas. Naquele presente momento,
ele tinha treze dessas coisinhas trancadas em seu harém, à espera de receber sua atenção. Ele gostava de usá-las apenas uma vez, e depois as enviava de volta à família
no vilarejo, com cem dólares de presente para o pai. Seu gosto peculiar e sua generosidade eram tão largamente conhecidos que, quando os alcoviteiros chegavam em
qualquer uma desses vilarejos remotos, havia sempre várias famílias esperando por eles para oferecerem suas filhas. Adam havia discutido a maneira como tratava as
meninas com o mullah, que havia garantido que todas as mulheres foram postas neste mundo por Alá com um único propósito: satisfazer todos os desejos do homem, incluindo
a provisão de filhos, mas que a obrigação não se limitava a isso.
Adam havia reunido uma equipe pessoal de seguranças de quase duzentos homens, alistados e treinados por Uthmann Waddah. Sua rede de espiões se estendia por todo
o Oriente Médio, do Cairo à Jordânia e além. Ele possuía uma central de comunicações equipada com aparelhos eletrônicos de ponta, através dos quais estava em constante
contato com seus banqueiros e consultores de investimentos no Irã, na China, Taiwan e em outros países dos Extremo Oriente que estivessem a salvo das presas dos
cães de guarda da Reserva Federal Norte-Americana e de outros órgãos reguladores ocidentais. Havia muito tempo que Adam aprendera a abrir portas secretas com grandes
quantias de dinheiro.
Ele tinha construído uma pista de aviões no deserto, perto da fortaleza. Diariamente, seu jato pessoal voava a fim de satisfazer quaisquer indulgências ou extravagâncias
que ele imaginasse ou desejasse. Não havia muitos motivos para que deixasse o Oásis e se aventurasse por um mundo que não controlava completamente. Especialmente
por estar ciente de que Hector e sua meretriz norte-americana estavam à espera dele com um desejo ardente de vingança em seus corações. Poucas razões mesmo para
se aventurar no exterior, exceto para dar as boas-vindas ao maior prêmio que já navegara os oceanos na Baía de Gandanga: o Ganso Dourado e seus dois inimigos mais
virulentos, conduzidos amarrados até ele e completamente à sua mercê.
Seus subordinados haviam erguido uma cidade de tendas coloridas no ponto mais alto com vista para a Baía de Gandanga. Todos os membros mais próximos da família,
seus empregados domésticos e seguranças mais leais, cavalos, cães e falcões de caça com seus adestradores, e quatro de suas menininhas ainda intocadas haviam sido
transportados para a costa num comboio de caminhões. Quando estavam todos acomodados na cidade de tendas e os preparativos em ordem para recebê-lo, Adam e Waddah
voaram do Oásis do Milagre à Baía de Gandanga em um dos helicópteros Bell Jet Ranger. Uthmann assumiu os controles. Ele havia treinado com a força aérea do Irã,
que tinha boas relações com a Puntlândia e o novo xeique. Os iranianos aprovavam totalmente a devoção de Adam ao Islã e apoiavam com entusiasmo sua guerra não declarada
aos navios das nações infiéis. Nos anos mais recentes, Uthmann tinha se transformado num habilidoso piloto de helicóptero. Ele demonstrara uma aptidão natural para
a função e possuía a coordenação visomotora exigida.
Ele contornou a baía a uma baixa altitude, pairando sobre cada um dos navios capturados para que Adam os admirasse, enquanto um de seus oficiais de milícia sentado
no fundo do helicóptero recitava a tonelagem, o valor do casco e o carregamento de cada um deles. Havia várias centenas de milhões de dólares em navios ancorados
abaixo deles. No entanto, Adam não estava satisfeito. O olhar dele passou avidamente dos navios para as águas vazias do oceano a leste.
"Logo! Kamal chegará muito em breve, trazendo não apenas uma fortuna imensa, mas também o homem que assassinou metade da minha família. Será o dia mais delicioso
da minha vida quando eu assistir ao Ganso Dourado adentrar a baía. Tudo o mais que conquistei não será nada em comparação a esse tesouro."
Ele estava consumido pela impaciência. Olhou de lado para Uthmann Waddah no assento do piloto e pensou em mandar que deixasse a baía e voasse ao encontro do navio-tanque.
Poderiam aterrissar no convés, e ele gozaria seu triunfo dois dias antes. Então, ele sacudiu a cabeça. Sabia que seria inútil pedir que Uthmann voasse até o mar.
Uthmann era um piloto altamente engenhoso e capaz. Porém, a intensidade de sua aquafobia era tanta que só de se afastar da praia e sobrevoar as águas a uma baixa
altitude, ele ficaria paranoico ao ponto de se tornar incapaz de pensar ou agir racionalmente. Como se fosse possível, esse terror pioraria ainda mais se avistassem
os enormes tubarões cruzando as águas da baía abaixo deles. Esses carniceiros haviam sido atraídos pelos detritos e outros tipos de lixo dos navios capturados que
haviam sido despejados no mar. A seguir, Adam pensou em usar um dos barcos de ataque e fazer a tripulação levá-lo até o navio-tanque. Se fosse dez anos mais jovem,
não teria hesitado, mas ultimamente havia amolecido e se acostumado a uma existência segura e confortável. Um barco veloz pequeno em qualquer tipo de mar seria extremamente
desagradável - ele sentiu uma leve solidariedade pela aversão que Uthmann sentia pela água.
Não, decidiu, havia várias distrações no acampamento de tendas para que ele passasse o tempo de maneira agradável o suficiente até a chegada de Kamal. De distâncias
de até 160 quilômetros, todos os capitães e chefes tribais das redondezas já haviam chegado para prestar homenagem. Adam tinha desenvolvido um apetite por elogios
exuberantes e subserviência bajuladora. Para completar, Uthmann prometera a execução de vários criminosos que haviam sido capturados por seus homens, ou trazidos
pelos capitães que sabiam de seu interesse na aplicação da justiça e de castigos. Ele podia confiar em Uthmann quanto a ser criativo e inventivo. Isso era na verdade
um ensaio para as sentenças que ele dispensaria a Cross e sua meretriz. Uthmann providenciaria para que o cães de caça se divertissem. Quando essa brincadeira se
esgotasse, havia sempre suas menininhas. Ele se remexeu de prazer no assento do helicóptero e a seguir bateu no ombro de Uthmann, apontando para o agrupamento de
tendas coloridas na encosta. Uthmann assentiu e inclinou o helicóptero de lado. Adam sorriu ao ver a multidão que aguardava para lhe dar as boas vindas. Eles estavam
dançando, balançando bandeiras e faixas e descarregando suas armas no ar em uma feu de joie.
O mar sob o casco do Ganso mudou de cor e de temperamento com a aproximação do navio do continente africano. Perdeu o brilho cor de safira das águas profundas e
se tornou pardo e sombrio, as ondas eram mais verticais e corriam em fileiras mais próximas diante do vento. Havia aglomerados de algas marinhas e outros detritos
à deriva na correnteza e pássaros pairando e mergulhando por sobre revoltos cardumes de pequenos peixes. Enquanto o sol se punha e extinguia suas chamas nas águas,
o sistema de GPS mostrava que a distância até a entrada na Baía de Gandanga era de 68 milhas náuticas.
Durante a noite, a quarta desde a tomada do navio, Hector e Hazel estavam de vigília na sala de situação. Uma das câmeras escondidas estava focada na ponte, e eles
ouviram Kamal mandar Cyril diminuir a velocidade e alterar o curso em quatro graus sentido oeste. Desde que Cyril conseguira apaziguar a situação com o capitão do
navio de guerra norte-americano, fazendo-o ir embora, a maneira como Kamal tratava seus cativos se tornara, se não exatamente magnânimo, pelo menos um pouco mais
condescendente. Nas últimas 48 horas, ele não tinha ido até a cabine onde Vincent Woodward estava aprisionado para xingá-lo, chutá-lo e dar coronhadas em sua cabeça.
Ele chegara até mesmo a permitir que os guardas lhe dessem uma caneca d'água e um prato de restos de comida. Ninguém tinha coragem de levar comida nem bebida para
Nastiya. As portas da suíte permaneciam trancadas e barricadas, mas atrás delas Nastiya estava confortavelmente acomodada. Ela havia descoberto várias latas grandes
de caviar Beluga na geladeira da cozinha, juntamente com pacotes de carne seca apimentada em fatias Biltong, salmão defumado e chocolates suíços.
Na ponte, Cyril sugeriu a Kamal que enviasse um de seus homens até o ambulatório do navio para buscar o kit de primeiros socorros; ele concordou, e Cyril desinfetou
e enfaixou o toco do dedo de Kamal, e o fez engolir um punhado de antibióticos e analgésicos fortes. O humor de Kamal melhorou dramaticamente. Ele até ficou de vigia
no lugar de Cyril Stanford e permitiu que ele se esticasse e dormisse no beliche da sala do rádio por algumas horas. Quando mandou um dos homens ir acordar Cyril
e trazê-lo de volta ao seu posto, em vez de forçá-lo a ficar de pé sob a mira de uma arma, ele deixou que se sentasse no banco do capitão e conversou com ele bastante
amigavelmente sobre as características de navegação e manejamento do Ganso Dourado, a operação do console navegacional e as configurações dos motores do navio. Ele
pareceu particularmente interessado no equipamento de sondas de profundidade. Agora, quando ordenava uma mudança de curso e velocidade, ele fazia a concessão de
discuti-la com Cyril.
- Estamos chegando bastante perto do nosso destino, mas não quero chegar quando estiver escuro. É difícil usar as vias e a entrada do porto na escuridão. Além disso,
meu amado xeique e milhares de pessoas do meu povo estarão reunidos para dar as boas-vindas à nossa chegada. Quando virem o tamanho e a importância dessa embarcação,
vão ficar cheios de felicidade. Não quero privá-los desse prazer. Eles têm de ver o esplendor do prêmio que estou levando em plena luz do dia, com o nascer do sol
de fundo. Tenho de conseguir levá-lo o mais próximo da praia que seja seguro.
- Estou muito contente pelo senhor - Cyril não havia cometido o erro fatal de demonstrar que estava ciente da identidade de Kamal. - No entanto, pode me dizer que
acontecerá ao meu navio, meus passageiros, minha tripulação e comigo quando alcançarmos o porto?
- Seus passageiros se tornarão convidados de honra do meu xeique - Kamal deu um sorriso calmo diante do próprio eufemismo. - Você, sua tripulação e seu navio permanecerão
conosco por um tempo, mas vamos entrar num acordo com os donos e a seguradora. Quando isso acontecer, você estará livre para continuar sua viagem sem sofrer nenhum
dano. Inshallah!
Se é o desejo do seu Deus - Cyril concordou.
Kamal pareceu espantado e depois sorriu.
- Estou gostando da sua companhia, ianque. Vou lamentar quando nos despedirmos.
- Talvez, se Deus for bom, nós nos encontraremos de novo? - Cyril retribuiu o sorriso. Um de seus dentes da frente havia caído quando o pirata o golpeara com a coronha
do rifle. O buraco vazio em sua boca lhe conferia uma expressão suspeita.
- Eu o adoro, você não? - Hazel sorriu ao observar Cyril na tela de vídeo. - Ele é tão superlegal, como Cayla teria dito.
- Ele é durão, nosso camarada - Hector concordou.
Ele ficou contente de ouvir Hazel mencionar o nome de Cayla tão naturalmente. Estaria ela aceitando finalmente o fato de que filha partira, ele se perguntou.
"Não!", disse a si mesmo em resposta. "Não vai acabar, não para a Hazel, não para mim, até concluirmos o que viemos fazer aqui."
Embora soubesse a hora exata em que entrariam na Baía de Gandanga, Hector deixou que a tropa dormisse por mais quatro preciosas horas. Quarenta minutos antes do
amanhecer, ele passou adiante o comando "levantar". Discretamente, cada um dos homens foi acordando o que estava à sua frente e, em dez minutos, estavam todos reunidos
e completamente equipados e de coletes à prova de balas no segundo andar. Eles observavam avidamente o rosto de Hector, que estava diante das fileiras proximamente
agrupadas. Ele gesticulou para que colocassem os auscultadores dos rádios Falcon nos ouvidos, e depois, com as mãos em forma de concha ao redor do microfone do próprio
aparelho, falou em voz baixa. Embora estivesse falando diretamente nos auscultadores dos homens, não seria possível que qualquer som de voz humana ecoasse através
das anteparas e alertasse um pirata na escuta.
- Estamos prestes a adentrar o porto dos piratas. Vocês todos estudaram os mapas que Tariq Hakam desenhou para nós, portanto sabem, em geral, o que esperar. No entanto,
não temos como saber exatamente qual será a ancoragem escolhida por Kamal para o Ganso. Sam, talvez o percurso nos VAAs até a praia seja longo, mas os artilheiros
de Dave irão manter o inimigo de cabeça baixa até que vocês aportem em segurança. Como todos sabem, nosso objetivo principal é capturar ou neutralizar dois homens
em particular. Vocês já viram os rostos em vídeo várias vezes, mas vou mostrar pela última vez. Esses nobres cavalheiros são o primeiro prêmio.
Hector ligou o telão de vídeo na antepara atrás dele e iniciou a projeção. As primeiras imagens a surgirem eram dos arquivos da Cross Bow Security. Eram várias tomadas
excelentes de Uthmann Waddah, conversando com Hector, dando uma palestra sobre armas de fogo na zona de tiro e treinando novos recrutas.
- Muitos de vocês conhecem esse homem - Hector disse. - Ele já foi um dos membros da Cross Bow. Ele é extremamente perigoso. Marquem bem o rosto dele. O prêmio pela
cabeça dele, vivo ou morto, é de cinquenta mil dólares.
Houve um burburinho de entusiasmo entre os homens que assistiam. Hector mudou as imagens projetadas. Primeiro, foram mostradas as diversas fotos de passaporte obtidas
por seu contato na Interpol francesa. Eram retratos de frente e de lado do sujeito.
- O nome dessa pessoa é Adam Tippoo Tip, e ele é um homem de importância na Puntlândia, um xeique e o chefe de sua tribo. Ele é também o líder dos piratas - Hector
explicou. - Não se esqueçam de que essas fotos foram tiradas há quase sete anos. Tariq o viu recentemente e disse que a barba está totalmente crescida e escura.
Ele também engordou um pouco.
Hector projetou mais uma imagem na tela.
- Agora este vídeo, que foi filmado há pouco mais de quatro anos.
Hector começou a mostrar o clip do pedido de resgate que Adam havia enviado do celular de Cayla. Ampliado na tela cheia, estava um pouco granulado e embaçado. Adam
estava olhando para câmera e falando, mas o som havia sido extraído da gravação, e ele pronunciava suas ameaças silenciosamente. No fundo da área de agrupamento,
Hazel se levantou e saiu correndo, incapaz de assistir mais uma vez ao rosto do assassino de Cayla. Hector repetiu as cenas três vezes. Então, desligou o aparelho
de vídeo e falou ao microfone, diretamente nos ouvidos dos homens.
- O prêmio pela cabeça de Adam é de cem mil dólares.
Os ouvintes sorriram maliciosamente, e alguns assentiram. Hector olhou para eles com satisfação. Estavam tão excitados quanto uma matilha de cães com o cheiro da
caça nas narinas, ansiosos para serem soltos da coleira. Ele mandou Tariq ir buscar Hazel e, quando ela voltou, Hector continou a falar pelo rádio.
- Vou mudar agora para a câmera no topo do mastro do navio. Ao vivo.
A imagem mudou para um visão panorâmica da costa africana diante do Ganso Dourado. Ainda estavam a cerca de cinco a oito quilômetros de distância. O relógio na parte
inferior da tela mostrava que eram seis horas e dezessete minutos. A neblina do calor ainda não havia obscurecido a linha de montanhas azuladas no horizonte a oeste.
O sol nascente destacava seus contornos. Eles estavam olhando para a embocadura ampla e aberta de um porto extenso e natural, protegido em ambos os lados por dois
promontórios baixos. Nas profundezas da baía, havia um agrupamento desordenado de navios.
- Chegamos afinal ao adorável e prazeroso resort da Baía de Gandanga, Joia da Costa Africana! - disse Hector num tom bastante irônico. - Temos até mesmo um comitê
de boas-vindas a caminho para recepcionar vocês todos.
Uma flotilha de embarcações piratas de ataque jorrou da entrada da baía e se encaminhou a alta velocidade na direção do Ganso. A esteira de espuma causada pelos
poderosos motores fazia a superfície borbulhar como leite fervente. Todos os barcos estavam lotados de homens barbudos de pele escura. Quando se aproximaram mais,
puderam ver que trajavam o uniforme da milícia jihadista, calças folgadas e turbantes pretos, e que brandiam seus rifles ou cimitarras.
- Hora de se dirigirem aos seus postos, cavalheiros - Hector lhes disse. - Lembrem-se! Não vamos sair do esconderijo até sabermos exatamente onde estão Uthmann Waddah
e seu chefe, Adam. Isso pode demorar devido à grande quantidade de pessoas circulando, mas quando conseguirmos avistá-los no meio da multidão, teremos de agir depressa.
Tentem capturar os dois alvos com vida. No entanto, se escaparem de vocês, não hesitem em matá-los. Receberão o prêmio mesmo assim - Hector fez um gesto girando
o braço direito. - Ok! Posição de combate!
As equipes de artilheiros de David Imbiss se agruparam num silêncio sombrio, e Dave os conduziu até a entrada do sistema de túneis escondidos. Eles subiram a escada
rapidamente até a plataforma dos canhões embaixo da ponte. Em alguns minutos, Dave se comunicou com Hector pelo rádio de batalha.
- Os dois canhões carregados e tripulados, Heck - Hector aprovou e a seguir se dirigiu a Sam Hunter.
Embora estivessem de frente um para o outro, ele usou o rádio de batalha para manter os níveis de barulho absolutamente mínimos.
- Ok, Sam. Coloque seus homens nos VAAs. Mas ainda estamos operando no modo "navio silencioso". Não dê partida nos motores até receber minha ordem.
Sam assentiu brevemente e depois conduziu os noventa homens do grupo de desembarque pela escada do tombadilho, subindo até o andar sob o convés de carga. Foi um
pouco mais demorado do que posicionar os homens atrás dos canhões, mas finalmente a voz de Sam foi ouvida pelo rádio.
- Todas as tripulações dos VAAs a postos. Cabos de suspensão acoplados e prontos. Escotilhas dos torreões fechadas e motores desligados. Estamos prontos para o lançamento.
- Certo, Sam - Hector aprovou.
Então, eles olharam para os homens restantes na área de agrupamento. Eram os soldados ofensivos. Eles encabeçariam o ataque a bordo do navio. É claro, Hector era
o comandante geral, mas seus tenentes eram Paddy e Tariq.
Os seis homens de Hector formavam um grupo variado. Dois gêmeos, Jacko e Bingo MacDuff, de Glasgow, dois iraquianos, um australiano de Queensland e um afrikaner
alemão da Namíbia. Eram todos combatentes e assassinos. Se a sorte estivesse do lado dos atacantes, e Adam e Uthmann viessem de saveiro real recepcionar o Ganso,
e se fossem diretamente para a ponte cumprimentar Kamal, tudo seria cem vezes mais simples. Hector e seu grupo seriam capazes de capturá-los de uma vez só.
Mas, quaisquer que fossem os desdobramentos, Hector e seu grupo tinham de capturar Kamal e os quatro jihadistas que o acompanhavam na ponte. Assim, poderiam libertar
Cyril Stanford e os outros membros da tripulação que estavam sendo mantidos ali. Do alto da ponte, Hector poderia ter uma visão geral da baía inteira e avistar o
paradeiro de Adam e de seu braço-direito. Ele seria capaz de direcionar os artilheiros de David Imbiss até os alvos principais. Depois, destruiriam a frota de barcos
de ataque de Kamal e dariam cobertura ao desembarque dos três VAAs na praia, e ao seu retorno das áreas de encarceramento trazendo os marinheiros dos navios capturados
pelos piratas.
Paddy e sua equipe atacariam o segundo andar. Seu primeiro objetivo seria subjugar os guardas da suíte principal e da cabine menor, no mesmo andar onde Nastiya e
Vincent estavam detidos. Uma vez que resgatassem os reféns, estariam preparados para se deslocar rapidamente até qualquer área do navio em que Hector precisasse
deles.
Tariq e seu grupo atacariam o andar mais baixo dos alojamentos do Ganso, onde os outros tripulantes estavam sendo mantidos pelos piratas. Quando conseguissem o controle
do andar, teriam também o comando do convés de carga principal. Depois que os homens de Paddy descessem também para reforçar o grupo, poderiam concentrar todas as
forças na tarefa principal, que era capturar Adam onde quer que estivesse.
Levando em conta a aversão patológica que tinha pela água do mar, era extremamente improvável que Uthmann Waddah acompanhasse o xeique, mas ele com certeza estaria
na praia para testemunhar a entrada triunfante do Ganso Dourado na Baía de Gandanga. Hector estava confiante de que conseguiria avistá-lo através das poderosas lentes
telescópicas da câmera na ponta do mastro do navio. Depois, talvez tivesse de ir atrás dele e persegui-lo.
Durante todo o decorrer da ação, Hazel e seus quatro assistentes manteriam Hector e seus agentes informados dos desdobramentos e do paradeiro exato de todos os piratas
a bordo. Os cinco permaneceriam na sala de situação para monitorar todos os equipamentos de escuta e câmeras. Os homens sob o comando de Hazel eram todos falantes
nativos de árabe e traduziriam cada palavra proferida por Kamal e sua gangue para ela.
Ao amanhecer, o Ganso Dourado se locomovia devagar e com cuidado entre os promontórios de areia da Baía de Gandanga. Sob a direção de Kamal, tateava o caminho até
o canal de águas profundas. Hector, Paddy e Tariq observavam o cenário adiante na tela repetidora da antepara da área de agrupamento. A superfície da baía estava
inundada de pequenas embarcações. A matilha de barcos de ataque já estava rodeando o navio-tanque. O rugido dos motores, os estalidos dos disparos de rifle, os gritos
e a cantoria eram tão altos que Hector conseguia ouvi-los até mesmo nas profundidades do casco do navio.
Hector falou ao microfone do rádio:
- Hazel? Você viu Adam? Ele deveria estar vindo na nossa direção no saveiro real. De acordo com Tariq, ele estará vestindo uma túnica branca e uma faixa dourada
ao redor do turbante. Será fácil reconhecê-lo.
- Negativo, Hector. Não estou vendo ninguém que corresponda a essa descrição - Hazel respondeu.
Hector tinha absoluta certeza de que Adam iria querer ser o primeiro a pisar a bordo do Ganso Dourado. Seu plano inteiro se baseava nessa premissa, mas agora ele
sentia uma pontada dolorida de dúvida.
"Merda! Se a primeiríssima coisa der errado", ele pensou, "então todo o resto dará errado!"
Mas ele não podia deixar que suas dúvidas afetassem os demais, então disse calmamente:
- Hazel? Onde está Kamal? Ele aparece nas suas telas?
- Afirmativo, Hector. Kamal está na asa de estibordo da ponte com três piratas. Está acenando para os homens nos barcos pequenos, que estão aplaudindo. Cyril Stanford
está ao leme do navio. Tudo está ficando, de certa forma, confuso.
- Ok, Hazel. Fique de olho no porco do Kamal. Não posso esperar mais. Temos de nos posicionar nos túneis para saltar para fora das escotilhas.
Hector assentiu para Paddy e Tariq. A seguir, foi para a entrada do túnel e subiu depressa. A largura da escada não permitia a passagem de mais do que um homem de
cada vez. Os seis homens de seu grupo o seguiram de perto. Assim que o último desapareceu pelo túnel, Paddy conduziu o grupo dele logo atrás. Eles pararam no andar
da suíte principal. Paddy conseguia ver os coturnos de solado macio dos homens da equipe de Hector nos degraus de aço acima dele. Quando olhou para baixo, viu o
topo do capacete de Tariq. Ele estava no andar dos alojamentos da tripulação e do convés de carga. A escada estava carregada de homens armados preparados para a
ação.
Hector recostou um dos ombros na entrada clandestina da ponte e suspirou ao microfone.
- Hazel, onde está Kamal neste momento?
- Ele voltou da asa de estibordo. Está com Cyril ao leme. Acho que está se preparando para lançar a âncora.
- A que distância estamos da praia?
Houve uma pausa enquanto Hazel fazia a leitura do telêmetro.
- Setecentos e trinta e quatro metros - ela disse. - Kamal nos deixou bem perto.
Hector estava ciente de um estrondo e de uma vibração leves, e imediatamente Hazel prosseguiu:
- Sim! Consigo ver que Kamal soltou as duas âncoras da proa.
- Nenhum sinal ainda do saveiro do Adam?
- Não. Nenhum.
- Os homens dos barcos de ataque estão subindo a bordo do Ganso?
- Não, estão gritando e atirando para o ar, mas estão mantendo distância do nosso navio. É quase como se estivessem esperando algo acontecer.
- Consegue ver algum sinal de Adam ou de seu saveiro na praia?
- Há centenas de pessoas ali, mas não não vejo sinal dele ou de Uthmann Waddah.
- Onde está esse desgraçado? Não podemos fazer nada até que ele dê as caras - Hector se queixou.
- Espere! Kamal saiu de novo para a asa de estibordo - Hazel disse baixinho. - Está fazendo mais uma ligação no telefone via satélite.
- Pode apostar todo o seu dinheiro que ele está falando com seu mestre - Hector deduziu.
Com as saias da túnica enfiadas entre os joelhos, Uthmann Waddah se agachou na clareira na periferia da cidade de tendas acima da Baía de Gandanga. Ele pressionava
o telefone via satélite contra a orelha e, à sua frente, tinha uma excelente vista do ancoradouro onde o grande navio estacionara. Embora o tivesse observado durante
a hora e meia em que havia entrado tranquilamente pela baía e ancorado perto da praia, ainda estava espantado com o tamanho enorme. Não parecia possível que nada
de tal magnitude fosse capaz de flutuar. O convés ao ar livre parecia maior do que a pista de pouso que Adam construíra no Oásis do Milagre. Dava a impressão de
ser espaçoso o suficiente para que um 737 aterrissasse sobre ele e, além disso, o navio estava a menos de um quilômetro da praia. Uthmann se sentiu muito mais confiante
em relação às ordens que Adam havia dado. Ele estava escutando a voz de Kamal no telefone via satélite e, ocasionalmente, confirmando as ordens que recebia.
- Como quiser, nobre príncipe! Passarei sua mensagem a ele imediatamente, Alteza.
Eram títulos extravagantes para um herdeiro sem importância de uma família medíocre de bandidos, mas Kamal parecia aceitá-los como se os merecesse. Uthmann encerrou
a ligação e se levantou. Ele ajustou a bandoleira de munição sobre o ombro e empunhou o rifle de assalto. Depois, caminhou rapidamente em direção à maior tenda do
acampamento. Adam olhou para cima quando Uthmann se prostrou diante dele.
- Falou com meu tio? - Adam estava sentado em uma almofada de lã de carneiro da montanha. A túnica dele era esvoaçante e branquíssima. O turbante era feito do mesmo
tecido. E a faixa da cabeça era de filigrana de ouro de dezoito quilates.
- Neste exato momento! - Uthmann respondeu. - Ele me pediu para assegurar ao senhor que está tudo bem. Ele tem controle total do navio. Revistou cada centímetro,
e não há nenhum inimigo escondido a bordo. Todos os cativos infiéis estão amarrados e indefesos. Mas a notícia que irá alegrar seu coração é que Hector Cross e sua
meretriz, Hazel Bannock, permanecem prisioneiros. Estão totalmente rendidos, esperando seu julgamento e a execução de mãos atadas. Seu tio implora humildemente para
que vá até ele e tome posse do grande tesouro trazido.
- Você ainda deseja me levar de helicóptero até o navio, Uthmann?
- Desejo e estou ansioso para ser útil da maneira que for, meu xeique.
- Você não estava com tanta vontade assim ontem e anteontem - Adam o lembrou.
- Ontem o navio estava no oceano a centenas de léguas. Temia apenas pela sua segurança, meu xeique. Se a aeronave falhasse tão longe da terra firme, o senhor correria
um grave perigo. Mas hoje o navio está a menos de um quilômetro da praia. Sua pessoa sagrada estará segura. Mesmo que haja algum problema com o motor do helicóptero,
serei capaz de levá-lo a um ponto seguro de pouso em terra firme.
- Estou profundamente tocado pela sua preocupação com a minha segurança - Adam zombou dele, e Uthmann se prostrou mais uma vez para esconder a raiva nos próprios
olhos.
Adam extraía prazer em debochar do terror que Uthmann sentia em relação à água. Essa única fraqueza de certo modo o rebaixava ao mesmo nível que o próprio Adam -
não mais o guerreiro perfeitamente intrépido e invencível.
Adam estava com sua pasta de couro preto no colo. Era quase como se fizesse parte de seu corpo. A pasta o acompanhava a todos os lugares. Ele nunca a perdia de vista.
Não confiava em ninguém para carregá-la. Uma corrente de aço inoxidável estava acoplada à estrutura, e dela se dependurava uma algema do mesmo metal. Adam prendeu
a algema no pulso esquerdo. Uthmann sabia que era uma fechadura de combinação. Segurando a pasta, Adam se pôs de pé e, com a mão direita, fez um gesto pomposo em
direção à entrada da tenda.
- Muito bem, Uthmann Waddah. Leve-me até o meu inimigo de sangue, Hector Cross. Minha vingança foi adiada por tempo demais.
- Hector! As coisas estão acontecendo - a voz de Hazel era suave nos ouvidos do marido. - Kamal deixou a ponte. Cyril Stanford está sendo vigiado por quatro membros
da milícia. Eles o amarraram pelos pulsos e cotovelos e o forçaram a sentar-se no chão. Kamal foi para o segundo andar. Os homens dele amarraram Vincent e o trouxeram
para fora da cabine. Agora a gangue inteira está reunida em frente à suíte principal. Lá vão eles! Eles arrombaram a porta e estão invadindo a suíte. Nastiya está
de pé no meio da cabine. Não está fazendo nada para se defender. Eles estão amarrando os braços dela para trás pelos pulsos e cotovelos. Agora estão segurando-a
abaixada e amarrando uma tira curta ao redor dos tornozelos. Estão com um medo irracional dos lindos pezinhos dela. Com a tira, a Nastiya mal vai conseguir andar.
Meu Deus! Eles agora estão colocando uma corda-trela ao redor do pescoço dela. Kamal não vai correr mais nenhum risco em relação a ela. Agora, Nastiya está sendo
arrastada por seis brutamontes para fora da suíte. Dois homens a estão segurando pela corda. Kamal não se aproxima a menos de dez passos dela. Parece que estão levando
Nastiya e Vincent para o elevador. Nastiya está se comportando de maneira muito dócil...
A voz de Paddy interrompeu a transmissão:
- Hector! Posso ouvi-los pela escotilha. Kamal está a poucos passos de mim. Consigo ouvir a voz dele claramente. Poderia entrar agora e tirar Kamal e seus homens
da jogada numa só tacada.
- Negativo, Paddy! Repito: negativo! Temos de esperar até que Adam apareça antes de agir. Acate essa ordem!
- Recebida e entendida! - Paddy disse com a voz atormentada.
"Coitado", pensou, "estão com a mulher dele, e ele está de mãos atadas." Hector sentia por ele.
- Hector, eles estão descendo de elevador - Hazel disse. - Eles deixaram o segundo andar abandonado. Agora, alcançaram o andar do convés de carga. Os homens de Kamal
estão levando os dois prisioneiros à força para o lado de fora.
- Paddy! Desça de novo pela escada e se junte ao grupo do Tariq no andar abaixo de você - Hector ordenou.
- Cumprirei a ordem! - Paddy respondeu formalmente.
"Ele está verdadeiramente puto comigo", Hector pensou com um sorriso sem graça.
De repente, a voz de Hazel perfurou seus tímpanos. O tom era agudo de entusiasmo.
- Hector, um helicóptero está se aproximando da praia. Parece ser a mesma máquina que sobrevoou o Ganso antes de o Kamal subir a bordo.
- Hazel, vá comentando - Hector ordenou. - Consegue ver quem está na cabine?
- Negativo! O sol está batendo sobre a cabine e refletindo diretamente nas minhas lentes. No entanto, todos os piratas dos barcos de ataque estão totalmente concentrados
no helicóptero. Estão acenando com faixas e gritando como um bando de babuínos na hora da refeição. Os quatro homens que Kamal deixou de vigia sobre Cyril se amontoaram
na asa da ponte para observar o helicóptero e participar do tumulto e da gritaria! - Hazel tomou fôlego e prosseguiu logo em seguida. - Espere, o helicóptero está
se inclinando para o lado oposto ao sol. Agora consigo ver quem está dentro da cabine. Dois homens nos bancos da frente. O piloto e um passageiro. O passageiro no
banco da direita está de turbante branco e tem uma faixa dourada na cabeça. Posso jurar que é o Adam!
- Vamos dar graças por isso - Hector disse aliviado. - Agora me escutem, vocês todos. Vou invadir a ponte de comando. Se todos os homens estiverem olhando para o
outro lado, conseguirei capturá-los sem grande alvoroço. A partir daí, verei o que é melhor fazer. Paddy e Tariq: mantenham-se em seus postos no túnel do andar do
convés de carga, mas estejam preparados para agir. Dave, fique alerta. Vamos precisar logo, logo dos seus Bushmasters.
Todos aceitaram as ordens, e Hector se moveu para a borda estreita sob a escotilha. Havia espaço para mais três homens se juntarem a ele, e os outros três estavam
amontoados no topo da escada de aço logo abaixo deles. Hector soltou a faca de trincheira na bainha de seu cinturão, fez um sinal de positivo com o polegar para
os homens e depois deu um tapa nos ombros do homem que segurava o martelo ao seu lado. Ele moveu o martelo numa linha curva e, com um único golpe, o pino que trancava
a escotilha de aço se soltou, e ela se abriu. Liderados por Hector, todos passaram apressados pela escotilha. Os quatro piratas estavam aglomerados na ala oposta
da ponte. A atenção deles estava totalmente voltada para o helicóptero que se aproximava e, como seus camaradas dos barcos de ataque, gritavam, berravam e atiravam
para o ar. Estavam tão absorvidos que não tinham sequer ouvido a escotilha se abrir atrás deles. Hector tinha chegado ao meio da ponte quando um dos piratas se virou
e olhou por sobre os ombros. Ele encarou Hector completamente embasbacado. Antes que conseguisse se recuperar, Hector cortou o pescoço dele de lado com a faca em
suas mãos. Ele caiu no chão e ficou totalmente imóvel. Hector pulou sobre ele e usou o cabo da faca de trincheira para golpear o somali inclinado sobre a grade da
ponte ao lado. Ele despencou sobre a primeira vítima de Hector. O pesado cabo da faca deixou uma depressão do tamanho e no formato de um porta ovo quente na parte
de trás do crânio. Os homens atrás de Hector, os irmãos MacDuff, esfaquearam os dois piratas restantes, mas fizeram um serviço um pouco atrapalhado. Um pirata estava
no chão chutando o ar, deitado numa poça crescente do próprio sangue. O último saiu cambaleando em direção à escada do tombadilho que descia até o próximo andar.
O sangue jorrava da ferida que tinha nas costas, e ele gritava selvagemente em árabe:
- Cuidado! Os infiéis estão aqui!
Ele chegaria ao fundo da escada antes que Hector conseguisse atravessar a extensa ponte e alcançá-lo. Hector extraiu a pistola 9 mm do coldre de liberação rápida.
Ela era como uma extensão de seu próprio corpo, e o disparo foi exatamente na direção em que estava olhando. Ele mal percebeu o soltar do gatilho, mas foi um tiro
perfeito no cérebro da vítima. A cabeça do pirata estremeceu e o corpo dele pareceu derreter como uma barra de chocolate no micro-ondas. O corpo mole escorregou
pela escada e despencou sobre o primeiro patamar. Do momento em que invadiram a ponte até o disparo da pistola de Hector tinham se passado menos de cinco segundos.
- Você acha que eles ouviram o disparo? - perguntou o agitado baixinho escocês ao lado de Hector, enquanto limpava a lâmina manchada de sangue nas calças.
- Duvido, Bingo - Hector balançou a cabeça. - Não com todos esses caras lá fora atirando a esmo com as AK.
A seguir, ele olhou para o pirata no chão que ainda estava gemendo e se arrastando de barriga para baixo.
- Diga ao seu irmão para concluir o que começou. Depois, você pode libertar o Capitão Stanford e a tripulação.
Jack se curvou sobre o homem ferido e agarrou um punhado de sua barba. Ele puxou a cabeça para trás para que o pescoço ficasse à mostra. Hector virou as costas e
foi até a asa da ponte. Atrás dele, ouviu o árabe arfar e gorgolejar pela última vez após Jack fazer um corte preciso em sua garganta.
Sob o teto da ponte, mantendo-se totalmente fora do alcance da vista, Hector olhou para o céu em busca do helicóptero. Ele o avistou sobrevoando baixo, aproximando-se
bem devagar da proa do navio-tanque, os rotores batendo contra o vento enquanto o piloto desligava o comando coletivo e iniciava uma descida controlada. Hector assistiu
à aeronave pousar gentilmente sobre o convés de aço.
A porta da cabine do passageiro se abriu, e uma figura de aparência marcante desceu para o convés. Um homem alto, vestindo uma túnica e um turbante brancos e reluzentes.
A barba dele era cheia, negra e encaracolada. A barriga sob a túnica branca, ligeiramente protuberante. Na mão esquerda, carregava uma pequena pasta de couro preta.
Ele ergueu o outro braço num gesto de benção ao avançar sobre o convés na direção de Kamal e seus homens. Todos se puseram de joelhos e arrastaram os dois cativos.
- Ave, grande xeique! - Kamal exclamou. - Guerreiro filho de guerreiros!
Na asa da ponte, olhando o grupo de piratas no convés de carga, Hector falou com os lábios a poucos centímetros do microfone do rádio.
- Paddy, onde está você?
- Estou com o Tariq, a postos na escotilha de entrada número um!
- O helicóptero aterrissou. Adam desembarcou. Kamal está no convés de carga para saudá-lo. Nastiya e Vincent estão com eles. Kamal irá entregá-los a Adam. Estão
todos desprevenidos. Este é o momento de atacá-los, antes que percebam que Nastiya e Vincent são impostores. Vá, Paddy! Vá!
- Positivo! - Paddy gritou com intensa alegria. - Lá vamos nós!
Hector verificou a situação no convés de carga abaixo dele uma última vez. Muito pouco havia mudado desde que falara com Paddy, exceto pelo fato de que o piloto
do helicóptero de Adam havia descido da cabine e estava recostado na fuselagem. Ele segurava um rifle de assalto de um jeito casual. Hector olhou para ele de relance.
Kamal e Adam eram suas principais preocupações. E então, em um reflexo atrasado, ele se conscientizou de quem era o piloto. O olhar dele disparou de volta ao homem,
e ele sentiu o coração ser perfurado por um pingente de gelo.
- Não! Não é possível. Uthmann não sabe pilotar helicópteros. Mas é ele. É Uthmann!
Enquanto pensava, Kamal gritou uma ordem, e dois homens se ergueram do chão de um salto, arrastaram e colocaram tanto Nastiya quanto Vincent de pé, empurrando-os
na direção de Adam que se aproximava.
- Veja, poderoso xeique! - Kamal exclamou. - Conforme mandou, trago ao senhor o assassino Cross e sua meretriz.
Adam se deteve e olhou para os dois cativos com um ar incerto.
E então, de trás dele, veio o grito de Uthmann Waddah:
- Esse não é Cross! Essa não é Hazel Bannock! É uma armadilha, meu xeique. Cuidado! O infiel está prestes a atacar.
Ele correu de volta ao helicóptero sem esperar por Adam e arremessou o rifle pela porta aberta, rápido como um furão entrando pela toca de um coelho. Ele tinha deixado
os motores ligados e os rotores girando a esmo. A seguir, sentou-se curvado no banco do piloto, mantendo a cabeça bem abaixada enquanto agarrava os controles e acelerava
os motores. O helicóptero se levantou do convés e rodou em seu eixo na direção da praia.
Adam ainda estava correndo no convés abaixo, gritando em árabe:
- Espere por mim, Uthmann! É uma ordem. Não me deixe aqui à mercê do Cross!
Uthmann não ergueu a cabeça uma única vez para olhar para ele. Em vez disso, abaixou o nariz da aeronave e partiu, sobrevoando as águas da baía a uma baixa altitude.
Hector tinha uma visão distorcida dos poucos centímetros do topo da cabeça de Uthmann pela cobertura de acrílico. A aeronave estava subindo e se inclinando acentuadamente.
O alvo era infinitesimal, os ângulos, impossíveis. Desesperado, Hector atirou e viu o acrílico da cobertura quebrar, deixando um buraco afastado demais para conseguir
deter Uthmann. O helicóptero não oscilou e acelerou diretamente em direção à praia, ganhando altitude e velocidade. Hector levou o microfone do rádio aos lábios.
- Dave, Dave! Mostre suas armas. Dispare contra aquele helicóptero. Uthmann é o piloto. Não o deixe fugir. Derrube-o, pelo amor de Deus, derrube-o!
- Positivo! - Dave respondeu imediatamente.
Do convés embaixo dele, Hector ouviu o estrondo das dobradiças das portas de aço que escondiam o compartimento das armas se desprenderem e revelarem os dois canhões
Bushmaster. Mas o helicóptero já estava se aproximando da praia a setecentos metros de distância. Hector o observava avidamente. Ele ouviu Dave gritar ordens no
andar de baixo. A seguir, vieram clarões e os fantásticos estalidos causados pelos disparos de três projéteis de explosão aérea de cada um dos canhões gêmeos na
direção da aeronave em fuga. Hector viu as lufadas de fumaça e de chamas das explosões surgirem no céu acima do helicóptero. Aquela única saraivada fora suficiente.
Ele viu o helicóptero dar uma sacolejada e trepidar em voo quando a tempestade de bolas de aço rasgou a fuselagem. O piloto deveria ter morrido instantaneamente,
e o motor, sido destruído, pois os rotores pararam de funcionar em pleno ar. O nariz da aeronave embicou para baixo e iniciou um mergulho descontrolado em direção
à superfície do mar.
E então ocorreu o milagre. Hector viu o helicóptero recuperar o controle, o nariz se erguendo em posição para auto-rotação. O rotor começou a girar mais uma vez,
mas agora o fluxo de ar sob as hélices havia revertido. Não estava conduzindo a aeronave para a frente, mas brecando sua queda bruscamente. Estava planando em direção
à praia, e Hector deu uma ordem para Dave pelo microfone, para que continuasse a disparar contra o helicóptero. Não houve resposta. A voz de Hector fora abafada
pelo estrondo de canhão. David Imbiss não havia captado a ordem de Hector. Em vez disso, havia trocado de alvo, e ambas as armas agora disparavam contra o cerco
de barcos de ataque.
Os projéteis de fragmentação explodiram no ar acima deles, e as balas de aço reduziram os frágeis cascos de madeira a lascas, abatendo os homens nos barcos. As embarcações
sobreviventes deram meia-volta a toda velocidade e se dirigiram para a segurança da praia. O helicóptero continuou a planar em auto-rotação em direção à praia, mas
diante dos olhos de Hector, despencou na água um pouco antes de chegar, jogando uma nuvem de borrifos para o alto. Por alguns momentos, desapareceu, mas então emergiu
de novo na superfície e flutuou de lado.
"Com certeza nem mesmo Uthmann poderia ter sobrevivido a isso", Hector pensou, mas a porta de cima do helicóptero se abriu devagar, e uma figura humana engatinhou
para fora e se agarrou à fuselagem. A distância era grande demais para que fosse possível reconhecer o rosto, mas ele sabia que era Uthmann. As mãos dele estavam
vazias. Ele havia deixado o rifle na cabine. De qualquer modo, a linha de tiro era de seis ou sete mil metros, extensa demais até mesmo para a Beretta.
- O filho da mãe não sabe nadar e morre de medo da água - Hector disse em voz alta, mas sem muita convicção. Ele observou a figura distante cair da fuselagem do
helicóptero para o mar, e esperava que ele afundasse. Mas a água batia só até as axilas de Uthmann. De mãos atadas, Hector o viu debater-se em movimentos frenéticos
e descoordenados, e então chegar cambaleando até a praia.
Hector se virou para o convés de carga atrás dele e viu as equipes de ataque combinadas de Paddy e Tariq saírem de repente pelas portas inferiores da torre da popa
e correrem na direção do grupo de árabes ao redor de Kamal. De imediato, as duas forças se viram envolvidas numa luta acirrada. O número de homens de cada lado era
praticamente igual, e a briga foi cara a cara e no braço. Ninguém podia correr o risco de atirar por receio de acertar os próprios homens.
Hector viu Paddy tentando abrir caminho até Nastiya em meio a confusão, mas uma dúzia de homens interveio, e ele teve de atacá-los para se proteger. No lado oposto
ao tumulto, Kamal havia agarrado a ponta da corda ao redor do pescoço de Nastiya e a estava puxando de marcha-ré, ao mesmo tempo que chamava Adam desesperadamente
em árabe.
- Por aqui, meu xeique. Siga-me. O helicóptero e os barcos nos abandonaram. Siga-me!
Adam passou por um dos homens de Paddy que agarrou uma das dobras do turbante solto do xeique, mas ele se virou e o espetou no olho com sua adaga curvada. O homem
foi ao chão com o tecido enrolado ao redor dos dedos, e Adam correu atrás de Kamal e Nastiya com a cabeça descoberta.
Hector estava a uma altura muito grande acima do convés de carga para poder intervir de maneira ativa. Ele tentou adivinhar o que Kamal faria a seguir, e depois
o viu correr para a escotilha no canto da torre da popa. Kamal sabia muito bem que aquele era o acesso para os túneis de serviço entre os tanques que alojavam as
enormes bombas que faziam circular o gás natural. Havia poucos dias que, do sistema de CCTV da sala de situação, eles tinham visto Kamal explorar esse labirinto
úmido e entrelaçado das entranhas do casco. Kamal devia ter decidido usá-lo como esconderijo. Ele arrastou Nastiya, que se debatia, pela ponta da corda através da
escotilha, e Adam foi atrás, empurrando Nastiya escada abaixo atrás de Kamal. Ele bateu a porta de aço da escotilha, fechando-a com o trinco.
- Paddy! - Hector chamou pelo rádio de batalha e viu que ele olhou para cima. - Kamal e Adam levaram Nastiya para o túnel de serviço das bombas. Kamal tem um rifle,
mas Adam, apenas uma adaga. Coloque um guarda em ambas extremidades do túnel. Não há como Kamal e Adam saírem. Eles estão presos lá embaixo. Podemos tirá-los à força
de lá mais tarde. Mas primeiro você tem de lançar os VAAs do Sam e mandá-los para a praia para dominar a cidade e soltar os marinheiros capturados das barricadas.
Estou passando o comando do Ganso Dourado a você. Vou para a terra firme lidar com Uthmann.
Enquanto falava, Hector estava tirando o pesado colete à prova de balas e todos os outros equipamentos que dificultariam sua mobilidade na água. Ele ficou apenas
com a faca, o rádio e a pistola Beretta 9 mm que estavam acoplados ao arnês do cinto. Ele olhou ao redor e viu que Jack estava logo atrás.
- Vou para a praia, Jacko. Assuma o comando do grupo. Nossa missão aqui em cima está encerrada. Desça e se coloque sob o comando de Paddy O'Quinn juntamente com
os outros homens no convés de carga. Boa sorte, Jacko - disse Hector.
Enquanto falavam, ele pensava no passo seguinte. A maioria dos barcos de ataque havia fugido para a praia numa tentativa de escapar dos disparos dos Bushmasters
de David Imbiss. No entanto, havia alguns piratas ardilosos que estavam usando o próprio casco do Ganso como escudo. Eles abraçavam as laterais do navio tão perto
que os canhões montados no alto da torre da popa eram incapazes de disparar contra eles. Naquele momento, um desses barcos de ataque estava se escondendo diretamente
embaixo de onde Hector se encontrava, na asa da ponte. Embora a queda da ponte para a água fosse amedrontadora, Hector não hesitou. Ele tomou distância caminhando
de costas até onde estava o console de navegação, no meio da ponte. Bingo MacDuff havia acabado de libertar Cyril Stanford, que estava ao lado do console. Cyril
compreendeu de imediato o que Hector estava prestes a fazer, e disse com uma voz rouca de respeito:
- Você tem uns belos colhões, sr. Cross.
- Olhe quem está falando! - Hector deu um sorriso sério para Cyril e então começou a correr.
Ao alcançar a grade na asa da ponte, ele estava se movendo à velocidade máxima. Mergulhou o mais distante que a força e o impulso o puderam levar. Daquela altura,
não podia arriscar um mergulho de cabeça. Se se virasse no ar e caísse de costas, sua espinha se partiria como um pretzel. Em vez disso, quando estava no ar, ele
se encolheu numa bola, com os joelhos apertados contra o peito, a cabeça abaixada e os dedos de ambas as mãos entrelaçados atrás da nuca. Os intestinos dele foram
arremetidos para cima sob as costelas durante a queda e, a seguir, ele atingiu a água. O impacto fez o ar se esvaziar dos pulmões e adormeceu suas nádegas, que tinham
atingido a água primeiro. Ele submergiu com o ímpeto de uma bala de canhão. Do fundo da água, olhou para cima e viu a silhueta oscilante do escaler contra a luz.
Lutando contra a necessidade de respirar, nadou em sua direção. Ele impeliu para cima nos últimos metros e emergiu ao lado do longo casco do navio de ataque. Enganchando
os dedos na amurada, ergueu o corpo de lado, ao mesmo tempo que inalava uma poderosa lufada de ar puro.
Havia dois piratas no barco. Estavam nus exceto pelos panos ao redor da cintura e o turbante imundos. Eles olharam para Hector espantados. Um deles ficou de pé em
um pulo, e tinha um rifle de assalto nas mãos. Antes que conseguisse erguer a arma, Hector se projetou com força contra ele, atirando-o para o mar com um dos ombros.
Hector sentiu um arrependimento momentâneo pelo rifle ter ido junto. O outro homem estava agachado atrás dos controles do motor externo, vermelho e prateado, de
duzentos cavalos, na popa. Ele começou a se levantar, mas não foi rápido o suficiente. Hector saltou sobre a bancada do escaler e deu mais dois passos ligeiros em
direção a ele, chutando-o no queixo erguido como se fosse uma bola de futebol. A cabeça do homem foi jogada bruscamente para trás, e ele caiu esparramado sobre a
cobertura do enorme motor externo, deslizando a seguir para o fundo do escaler, debatendo-se no porão como um peixe capturado e indefeso. Hector se abaixou sobre
ele, agarrou-o pelos calcanhares e rolou o homem para o lado. O pirata caiu chafurdando com o rosto na água. Hector se voltou para o motor externo. Ainda estava
ligado, o ruído dos exaustores borbulhando sob a proa. Ele fez a mudança de marcha e girou o cabo do acelerador. O barco foi impelido para a frente.
Porém, nesse momento, um corpo humano mergulhou da lateral mais alta do navio-tanque, espirrando água bem em frente à proa do escaler. No instante da queda, Hector
reconheceu o homem que saltara. Ele desacelerou e retornou a marcha ao ponto morto, depois correu até a proa e olhou para as águas turvas onde o corpo havia caído.
Ele viu o homem subir nadando do fundo, e então a cabeça irrompeu a superfície. Ele afarva em busca de ar.
- Tariq! Seu idiota, a hélice podia facilmente ter transformado você em carne moída!
Ele se debruçou sobre uma das laterais e conseguiu agarrar Tariq pelo braço, puxando-o para dentro do barco. Em seguida, correu de volta ao motor externo da proa
e girou o acelerador até o máximo. Lá embaixo, o barco saltou para a frente, e ele o alinhou na direção dos destroços do helicóptero que ainda chafurdava na beira
da praia. Por sobre a proa, Hector olhou para o Ganso Dourado logo atrás e, alarmado, viu o cano dos dois canhões Bushmaster girando na direção deles, começando
a rastreá-los e a encontrar a linha de tiro.
Ele gritou para Tariq sobre o ronco do motor:
- Depressa! Levante-se e acene para o David Imbiss. Ele está prestes a cometer um pequeno erro e nos mandar pelos ares.
Tariq ficou de pé em um pulo e se equilibrou no escaler oscilante, acenando com ambas as mãos acima da cabeça. Imediatamente, os canos dos canhões se desviaram,
e eles viram a cabeça de Dave surgir detrás do canhão da esquerda. Ele acenou com o capacete, num gesto de desculpas. Depois, desapareceu atrás do escudo de proteção,
e o canhão virou na diagonal para a direita e voltou a disparar em alguns dos outros barcos de ataque que estavam se dispersando pelas águas da baía. Tariq engatinhou
ao longo do escaler, que balançava ao ritmo das ondas, até Hector na popa.
- O que está acontecendo, Hector? Enquanto ainda estava no túnel, ouvi você mandar o Dave disparar contra o helicóptero. Você disse que Uthmann estava dentro. Quando
cheguei ao convés de carga com Paddy, não consegui ver nenhum helicóptero. Eu estava envolvido na luta. Depois, ouvi você avisar Paddy pelo rádio de que Kamal e
Adam tinham escapado pelo túnel de serviço das bombas. Nessa altura, os outros piratas já haviam sido subjugados. Não havia motivos para eu ficar, especialmente
quando vi você saltar da asa da ponte de comando. É claro que tinha de vir atrás - Tariq parecia ansioso. - Fiz a coisa certa, Hector?
- Totalmente certa como sempre, Tariq - Hector respondeu em árabe, e Tariq passou a falar na mesma língua.
- Obrigado, Hector. Mas onde está Uthmann agora? O que aconteceu ao helicóptero? Aonde vamos?
- Dave abateu o helicóptero, e ele caiu na beira da praia - Hector apontou adiante. - Ali, dá para ver os destroços flutuando nas ondas.
- Mas e Uthmann? O que aconteceu com ele?
- Ele conseguiu sair dos destroços. Eu o vi caminhando com dificuldade na praia. Pulei da ponte para vir atrás dele.
- Fico contente de tê-lo seguido. Quero pegá-lo ainda mais que você - Tariq disse em voz baixa.
- Eu sei - Hector assentiu. - Ele pertence a você. Vamos caçá-lo juntos, mas a vingança ficará para você.
- Obrigado, Hector - Tariq respirou fundo para se acalmar. - Ele está sozinho? Está armado? Nenhum de nós tem um rifle.
- Sim, Uthmann está sozinho. Ele tinha um rifle quando decolou do convés de carga, mas depois da queda do helicóptero, eu o vi caminhando na praia. Longe demais
para ter certeza, mas não acho que ainda o estivesse carregando. Ele provavelmente entrou em pânico quando atingiu a água, e se esqueceu completamente da arma. A
única coisa em que estaria pensando seria como chegar à terra firme. Faremos uma breve busca na cabine do helicóptero, se ainda estiver boiando quando chegarmos
lá.
Eles estavam rasgando as águas da baía a oitenta quilômetros por hora, deixando uma longa esteira cremosa para trás rumo à aeronave destroçada. A expansão de barracos
que constituíam a cidade estava a cerca de oitocentos metros além da praia da baía. Hector ficou de pé e estudou o terreno atrás dos destroços, para onde Uthmann
tinha escapado. Não havia nenhuma moradia, mas sim dunas onduladas de areia cobertas por densos matagais de planta sal áspera.
- Não é um bom lugar para rastrear um leão ferido - decidiu.
Uthmann era tão perigoso quanto qualquer outro animal selvagem. Hector desacelerou o escaler ao alcançarem o helicóptero flutuante. A proa bateu contra os destroços.
O ar estava impregnado do cheiro da gasolina de aviação que vazara. Tariq subiu na fuselagem amassada e se ajoelhou para espiar através da porta aberta.
- Ali está - ele exclamou e desapareceu pela porta.
Ele emergiu novamente poucos segundos depois, brandindo um rifle de assalto Beretta.
- Munição? - Hector perguntou.
- Nenhuma - Tariq respondeu -, apenas o que está no pente.
- Talvez vinte balas, com sorte. Isso deve bastar.
Hector engatou a marcha do motor externo e seguiu lentamente em direção à praia. Ambos viram a série de pegadas de Uthmann havia deixado na areia amarelada. Eles
correram da beira da água até o morro da primeira duna, e desapareceram em meio ao matagal de planta sal no topo. Não perderam tempo ancorando o barco. Hector desligou
o motor, mas deixou o barco à deriva. Eles pularam na água, que batia pelos joelhos, e Hector conduziu Tariq correndo até a base da primeira duna. Aqui, eles pararam
brevemente para examinar os rastos e verificar as armas que carregavam.
- Ei, pegue esta! - disse Tariq, oferecendo o rifle. - Você atira melhor do que eu com rifle. Me dê a pistola.
Eles trocaram de armas. Tanto o rifle quanto a pistola estavam encharcados de água do mar. Eles sacudiram os pentes o melhor que puderam e se certificaram de que
os canos não continham areia nem qualquer outra obstrução.
- É o melhor que podemos fazer. Elas foram projetadas para funcionar em todas as condições extremas - Hector grunhiu. - Você vai na frente, Tariq. Rastrear é a sua
tarefa. Ficarei do seu lado esquerdo.
Eles escalaram até o topo da primeira duna, onde encontraram o lugar onde Uthmann havia se deitado entre os arbustos. Tariq se ajoelhou ao lado da marca deixada
por seu corpo. Os grãos secos de areia ainda escoava para dentro dela. Ele devia tê-los visto chegar à praia antes de partir. Algo mais chamou a atenção de Hector:
um par de sandálias sob o arbusto de planta sal mais próximo. Ainda estavam encharcadas, e a tira de uma delas havia arrebentado na fivela. Uthmann as tinha descartado
e seguido descalço. Os rastos que deixaram confirmavam isso.
- Ele não está muito na frente - Tariq suspirou. - Provavelmente está nos observando neste exato instante.
- Tenha cuidado. Ele pode ter perdido o rifle, mas carrega sempre uma faca - Hector avisou.
Por um breve momento, ambos pensaram nos quatro companheiros cujos corpos haviam deixado para trás no Oásis do Milagre. Depois, concentraram-se totalmente na tarefa
que tinham pela frente. Seguiram em formação sobreposta para que pudessem cobrir as respectivas laterais assim como a frente. Não podiam deixar que o ódio que sentiam
por Uthmann superasse o respeito que tinham por Uthmann como guerreiro. Não ousariam deixar que ele se aproximasse o suficiente para usar sua lâmina.
O matagal era denso, os espinhos, enganchados, tenazes. Eles tinham de se mover com todo o cuidado, fazendo o mínimo barulho possível. De acordo com o relógio de
pulso de Hector, eles levaram seis minutos e dez segundos para cobrir os primeiros cem metros. Nesse ponto, depararam-se com o próximo local de descanso de Uthmann,
onde tinha esperado que fossem para cima dele. Se tivessem mostrado o menor descuido, ou dado a ele qualquer vantagem nesse estágio, sabiam que teriam sido atacados
ali. Mas ele tinha prosseguido mais uma vez, logo à frente dos dois. Os rastos de pegadas deixados na areia onde ele havia-se agachado ainda estavam frescos.
"Agora Uthmann sabe que não vamos tropeçar sobre ele", Hector pensou com pesar. "O próximo truque dele será nos cercar e tentar atacar por trás."
Hector estalou os dedos discretamente, e Tariq olhou brevemente para ele. Ele fez um gesto circular para preveni-lo. Tariq assentiu, ele compreendia o perigo. Eles
prosseguiram. Duas vezes mais fizeram Uthmann deixar seu local de parada. Em ambas, ele seguiu silenciosamente logo adiante deles.
"Agora ele está pensando que nos amorteceu com suas ações repetidas. É quando vai tentar nos cercar."
Antecipando-se, Hector mudou a própria tática. Após cada série de vinte passos lentos, ele parava e se virava devagar, analisando o terreno que já havia atravessado
de um novo ângulo. Depois, agachava-se de cócoras, estudando o mesmo terreno atrás deles de uma perspectiva rebaixada, concentrando-se nas bases das árvores, onde
as raízes estavam emaranhadas e retorcidas, atrás das quais um homem poderia se deitar com uma lâmina estreita e afiada em punho.
De repente, Hector piscou, como se algo estranho tivesse atraído seu olhar. Ele o encarou totalmente concentrado. Houve um ligeiro movimento, e a imagem inteira
entrou em foco. Ele estava olhando para um pé humano descalço, projetando-se detrás de um emaranhado de raízes contorcidas. A sola do pé era cor-de-rosa suave, mas
a pele acima era morena tom de tabaco. Hector sentiu os pelos da nuca se arrepiarem. Por Deus, Uthmann estava perto! Ele quase pisara nele.
Estava a menos de cinco passadas largas de Hector. Hector sabia que ele era capaz de cobrir aquela distância à velocidade de uma chita caçadora. Quase podia sentir
os olhos de Uthmann sobre ele, observando-o por uma das minúsculas fendas da densa vegetação de planta sal. Uthmann tinha um truque: ele mantinha os olhos semicerrados
ao observar um inimigo, os cílios escuros ocultando o branco revelador. Hector viu os tendões do pé esquerdo de Uthmann se esticando orgulhosos enquanto ele enterrava
os dedos na terra macia, usando-a como ponto de apoio para se lançar sobre Hector.
Hector estava agachado com o rifle no colo. Havia uma bala na culatra e o rifle estava destravado. Ele estava com uma das mãos no cabo, mas sabia que não conseguiria
posicionar a coronha sobre o ombro antes de Uthmann cobrir a distância e atacá-lo. Se isso acontecesse, o rifle seria um estorvo. Teria de atirar sem pensar, e rápido.
O pé de Uthmann era tudo em que podia mirar e teria de atirar sem erguer a arma do colo. Ele não podia mirar. Teria de deixar o instinto dominá-lo completamente.
"Era o momento de obter o retorno por todas as centenas de horas passadas no campo de tiro", disse a si mesmo. Ele fez um ligeiro movimento, como se estivesse prestes
a se levantar, mas abaixou um pouco o cano do rifle e o girou, desenhando um arco estreito na direção do alvo, disparando em seguida como se fosse um ato de reflexo.
Ele viu o calcanhar do pé descalço de Uthmann se rasgar numa explosão de lascas de osso, tecidos e sangue voando.
Uthmann grunhiu tão selvagemente como um leão baleado e se levantou detrás do arbusto de planta sal. Mas o pé aleijado o manteve onde estava. A dor o fez agachar
sobre um dos joelhos. Hector viu a faca na mão direita e o desespero em seus olhos. Uthmann sabia que havia perdido, mas continuou tentando. Ergueu-se de novo com
uma das pernas e tentou ir pulando até Hector para usar a faca. Mas agora Hector estava de pé partindo para o ataque. Com um giro, acertou a coronha do rifle no
cotovelo de Uthmann. O golpe foi sólido, e ele sentiu a articulação se partir. Dessa vez, Uthmann gritou, e a faca caiu de seus dedos enfraquecidos. O pé aleijado
cedeu, e ele caiu esparramado sobre a areia. Tariq chegou correndo por trás e agarrou o pulso do braço danificado de Uthmann. Ele o torceu, e os ossos quebrados
rasparam uns nos outros. Tariq pisou com a bota na nuca de Uthmann, forçando seu rosto para dentro da areia, que entrou nos olhos, no nariz e na boca. Ele começou
a sufocar.
- Espere! - Hector ordenou a Tariq.
- Você disse que a vingança era minha - Tariq protestou. Ele soluçava violentamente de ódio.
- Isso é bom demais para ele, Tariq - Hector o puxou para trás. - Rápido demais. Esta criatura queimou sua mulher e seu filho. Ele assassinou nossos companheiros.
Ele nos entregou à Besta. Tem de pagar na mesma medida por esses pecados.
Tariq balançou a cabeça e ergueu a pistola, empurrando a boca contra a nuca de Uthmann.
- Não existe punição apropriada. Qualquer coisa que façamos não vai ser suficiente.
Ele espremeu a boca da pistola carregada no couro cabeludo de Uthmann, mas embora o rosto dele estivesse contorcido de agonia, ele se recusava a gritar.
- Foi você quem incendiou minha casa - Tariq disse ofegante -, foi você quem botou fogo em Daliyah e no meu filho! Negue se puder, Uthmann Waddah.
Uthmann tentou sorrir, mas foi uma tentativa caricata e dolorosa, a voz dele fustigada pela dor. Ele cuspiu a areia da boca.
- Eles fediam a porco queimado enquanto cozinhavam - suspirou -, mas eu me deleitei no fedor.
Tariq soluçou e olhou para Hector com lágrimas jorrando pelo rosto.
- Você escutou! O que podemos fazer que se iguale a tanto mal assim?
- Água - Hector respondeu em voz baixa. - Somente a água do mar irá apagar esta mancha da face da terra.
Eles viram a chama de terror nos olhos de Uthmann, e Tariq se regozijou.
- É claro, você está certo, Hector. A água do mar dará um jeito nele. Levante-se, Uthmann Waddah! Fique de pé. A sua última caminhada será até a praia em direção
ao mar.
Tariq abaixou a pistola e o agarrou pelo punho. Ele o torceu violentamente contra a articulação quebrada do cotovelo. Uthmann deu mais um grito agudo. A oposição
ameaçadora e coragem temerária foram erodidas pela ameaça da única coisa que ele temia acima de tudo.
- Eu o desafio a fazê-lo aqui, se tiver estômago para isso, Tariq. Atire e encerre o assunto, seu covarde medroso!
- Você é muito apressado! - disse Tariq. - Este é o último ato da sua existência podre. Você tem de saborear cada momento. O gosto da água do mar na garganta, a
queimação em seus pulmões ao se encherem, a ardência nos olhos ao perder gradualmente a visão.
Ele o puxou pelo braço quebrado, e Uthmann não conseguiu resistir à pressão. Deixou que o suspendessem e tentou se equilibrar na perna que não estava ferida, mas
Hector segurou o outro braço, e os dois o arrastaram de volta à praia. Finalmente, enxergaram a baía abaixo do topo da última duna.
O Ganso Dourado permanecia ancorado no mesmo lugar em que o tinham visto da última vez, mas a maioria dos escaleres piratas sobreviventes estavam abandonados ao
longo da praia como detritos deixados por uma tempestade. Os canhões do Ganso Dourado estavam disparando intermitentemente em alvos que estavam fora do alcance da
vista deles, e o estrépito distante de tiros automáticos chegava dos arredores da cidade. Alguns dos edifícios estavam pegando fogo, e a fumaça pairava sobre a baía.
Logo abaixo deles, o escaler que tinham abandonado se rebatia num vaivém contra a praia.
- Venha, Uthmann - Tariq torceu seu braço violentamente. - Não falta muito.
Uthmann caiu de joelhos e agora o terror o dominava completamente. Ele choramingava e balbuciava sem parar e sem muita coerência.
- Não, Tariq! Atire em mim aqui. Encerre o assunto. Há algo que quero contar. Eu joguei seu moleque malcriado nas chamas primeiro. Depois, fodi sua mulher. Pensei
em você cada vez que estocava dentro dela. Quando acabei, joguei-a em cima do bastardo. Os cabelos compridos dela pegaram fogo como uma tocha. Agora você tem de
atirar em mim. Senão, essa lembrança o acompanhará até o final de seus dias - a voz dele se ergueu em um lamento desesperado.
Hector o agarrou pelo outro braço, e Uthmann foi arrastado de barriga no chão, gemendo e guinchando duna abaixo para dentro do mar. Quando chegaram ao ponto em que
a água batia pelos joelhos, Hector o virou de cara para baixo e o suspendeu com os tornozelos juntos para trás. Tariq montou em seus ombros e, com todo o peso do
corpo, forçou o rosto dele para baixo da superfície. Uthmann estava tentando prender a respiração embaixo d'água e, ao mesmo tempo, externar seu terror. Os movimentos
dele se tornaram mais violentos e menos coordenados e, depois, começaram a enfraquecer. A boca dele se abriu sob a superfície, e uma lufada de bolhas prateadas saiu
de seus lábios. Ele tossia, arfava e vomitava, e os sons eram abafados pela água acima da cabeça. Quando parecia quase terminado, Hector o arrastou pelos calcanhares
e o colocou com o rosto na areia molhada. Tariq saltou sobre as costas dele. Água do mar e vômito jorravam de sua garganta, e ele conseguiu respirar entrecortadamente
antes que seu corpo inteiro convulsionasse em mais um paroxismo de tosse. Ele vomitou de novo, e metade da bílis amarela foi sugada de volta aos pulmões na inspiração
seguinte. Lentamente, muito lentamente, Uthmann conseguiu expelir toda a água e todo o vômito dos pulmões, mas estava cansado demais para se sentar ou falar. Hector
e Tariq se agacharam um de cada lado dele e o observaram lutar pela vida.
- Você ouviu ele se gabar do que fez com Daliyah e meu menino? - Tariq suspirou.
- Ouvi.
- Deve haver algo que possamos fazer para igualar um mal tão horrendo. Um simples afogamento é misericordioso demais.
- Tem uma coisa - Hector disse assentindo. - Há uma corda para âncora no escaler. Amarre uma ponta no painel de popa e traga a outra até aqui.
Parecia que Tariq ia fazer uma pergunta, mas sem verbalizá-la, ele se levantou de um pulo e correu até o escaler. Voltou desenrolando a corda sobre a areia molhada.
Uthmann tentou se sentar quando Tariq se debruçou sobre ele, mas Tariq o chutou nas costas e olhou para Hector.
- Amarre os pulsos dele - Hector ordenou, e Uthmann começou a se debater e gritar de novo.
Tariq torceu o braço quebrado para subjugá-lo enquanto Hector deslizava um laço de corda sobre os pulsos, apertando até que as fibras os cortassem.
- Você sabe o que é agora, Uthmann Waddah? - Hector perguntou em voz baixa e imediatamente respondeu à própria pergunta. - Você é isca viva.
- Não entendo - Tariq admitiu, e Hector prosseguiu com a explicação.
Todos esses barcos cativos estão ancorados há meses aqui na baía. Os homens que vivem a bordo jogam todo o lixo e os detritos no mar. Isso atrai tubarões, um monte
de tubarões grandes, tubarões-tigres principalmente, pois são carniceiros, mas há outros também: tubarão-baleeiro, tubarão-cabeça-chata e o gralha-preta.
Tariq sorriu, e o terror surgiu nos olhos escuros de Uthmann.
- Você está sangrando profusamente, Uthmann - Hector chutou seu pé machucado, e Uthmann gemeu. - Você sabia que o sangue atrai tubarões? Vamos pescar!
Eles empurraram o escaler encalhado para fora da areia, enquanto Uthmann lutava debilmente na extremidade da corda. Todas as vezes em que conseguia se erguer de
joelhos, Tariq puxava a ponta da corda e o fazia se esparramar de novo. Assim que o escaler começou a flutuar, Hector saltou a bordo e deu partida no motor. Ele
virou a proa no sentido oposto à praia e começou a acelerar gradualmente. Uthmann foi puxado e arrastado pela areia molhada, gritando de medo e de dor.
Tariq correu pela água e subiu no escaler sobre a amurada. Ele e Hector olharam para a popa, e Uthmann foi suspenso em cheio sobre as ondas baixas. A corda o arrastava
sob a superfície, mas ele emergia em meio a uma lufada d'água como uma baleia, e então rolava para baixo de novo. A pressão da água do mar bloqueava seu nariz e
sua garganta. Ele conseguia tossir um pouco da água para fora antes de submergir de novo, mas agora a torrente em seu ouvido direito havia perfurado o tímpano. A
agonia certamente era cegante, mas ele não tinha mais fôlego para gritar. O caminho que deixava ao longo da superfície estava tingido de sangue, e assim que o escaler
adentrou o canal de águas profundas, as barbatanas do primeiro tubarão nadaram no rastro da mancha de sangue. Hector viu as listras nas costas largas do animal.
- Uthmann, tem um tubarão-tigre vindo atrás de você - ele gritou. - Não é muito grande, tem um pouco menos de três metros. Mas grande o suficiente para arrancar
um pedaço grande.
O animal não atacou de imediato, mas acompanhou Uthmann cautelosamente até que um tubarão maior surgiu das águas esverdeadas. Um instigou o outro e juntos eles atacaram.
O maior abriu a boca cavernosa e depois mordeu o tornozelo destroçado de Uthmann. Ele gritou ao perceber o que estava acontecendo. Os tubarões o arrastaram para
baixo, e Hector desligou o motor externo e deixou que o barco derivasse na maré. Não queria que Uthmann afundasse antes que os tubarões o liquidassem. Não demorou
muito. Cada vez que Uthmann vinha à superfície, ele se debatia menos, e seus gritos eram mais fracos. A água ao redor dele ficou escura por causa do sangue. Então,
ele submergiu mais uma vez, mas não retornou à superfície. Quando Tariq puxou a corda para cima, as duas mãos decepadas de Uthmann ainda estavam presas ao nó da
ponta. Ele as jogou para o lado e foi se agachar ao lado de Hector, que virou bruscamente o escaler e retornou atravessando a baía na direção do Ganso Dourado. Ambos
permaneceram calados por um momento, e então Hector ergueu a voz sobre o ruído do motor.
- Não consegui perguntar antes, mas me diga agora: qual era o nome do seu filho?
- O nome dele era Tabari.
- Fizemos o que tínhamos de fazer. Mas não ajuda muito, não é? - Hector refletiu. - A vingança é um prato insosso.
Tariq assentiu e virou o rosto. Não queria que nem mesmo Hector enxergasse as profundezas de sua alma, onde os fantasmas de Daliyah e Tabari viveriam para sempre.
Enquanto aceleravam de volta sob o imponente casco do Ganso Dourado, Hector ficou de pé sobre a popa do escaler, equilibrando-se com o auxílio da corda para âncora
amarrada ao redor do pulso. Ele estava tentando adivinhar o rumo dos acontecimentos desde que ele e Tariq haviam saído à caça de Uthmann. Viu que a formação dos
três VAAs sob o comando de Sam Hunter estava se aproximando da praia diante da cidade. Ele sentiu uma faísca de raiva. A essa altura, eles já deveriam ter alcançado
o cativeiro além da cidade e libertado os prisioneiros. Ele vociferou no microfone do rádio de batalha, o tom de voz refletindo sua raiva:
- Sam, que diabos você está fazendo? Você está quase uma hora atrasado em relação ao cronograma.
- Um dos guindastes de suspensão foi danificado pelos disparos de metralhadoras pesadas vindos da praia. O conserto foi demorado. Desculpe, Hector.
- Ok, agora, chega de perder tempo - Hector desligou e concentrou a atenção nos VAAs.
As águas quebravam sob as proas enquanto eles aceleravam ao máximo em direção à praia. Disparos de armas de baixo calibre provenientes dos barracos acima da praia
fustigavam o mar ao redor deles. Embora as escotilhas dos torreões estivessem trancadas, as metralhadoras calibre .50 varriam o vilarejo com munição traçante. Os
projéteis dos Bushmasters de Dave Imbiss se juntaram ao bombardeamento, explodindo no céu acima dos frágeis edifícios. Alguns dos telhados de chapa ondulada desabaram
sob o impacto dos disparos, e os piratas sobreviventes escalavam para fora dos destroços e fugiam de volta às montanhas. O vendaval de estilhaços de granada explodiu
sobre suas cabeças, e a maioria dos homens foi abatida.
Enquanto Hector os observava, os três VAAs chegaram ao mesmo tempo e rolaram sobre a praia revolvendo a areia com suas esteiras de aço, que os conduziram morro acima
até o vilarejo. As ruas sinuosas eram estreitas demais para os enormes veículos blindados, e eles seguiram em frente através dos barracos frágeis, sem parar, achatando-os
e depois sumindo de vista ao acelerar rumo às barricadas onde os marinheiros estavam aprisionados.
Quando Hector e Tariq chegaram de escaler à lateral do Ganso Dourado, os guindastes que haviam lançado os VAAs ainda estavam dependurados ao nível da água. Eles
abandonaram o barco e saltaram até os suportes. Hector contatou o operador de guindaste pelo rádio Falcon. Ele os suspendeu até o convés de carga, onde Paddy os
esperava. Ele parecia agitado.
- Conte-me o que está acontecendo, Paddy - Hector ordenou.
- Nós contabilizamos todos os piratas do Kamal trazidos a bordo por ele. Oito estão mortos, contando os quatro que você abateu na ponte - ele fez uma pausa e respirou
fundo. - Como sabe, Adam e Kamal estão enfurnados no túnel de serviço das bombas. Levaram Nastiya. A Hazel está monitorando os movimentos deles nos sensores infravermelhos.
Hector apertou o botão de transmissão do rádio de batalha.
- Hazel, onde eles estão agora?
- Hector, eles estão na seção número dois, logo atrás da intersecção das tubulações do fluxo de saída. Não se mexeram nos últimos doze minutos.
Hector franziu o cenho. O túnel de serviço era a seção do navio mais difícil de agir. Confinado e claustrofóbico, o espaço era, em sua maioria, tomado por séries
de tubulações de aço assim como enormes bombas de gás. O barulho das bombas era ensurdecedor, e havia pouca ventilação. Lá embaixo, um defensor teria uma clara vantagem
sobre um atacante que estivesse tentando abatê-lo. Todos estavam olhando para Hector à espera de ordens, até mesmo Paddy parecia desprovido de sugestões sobre como
deviam proceder. Hector estava tentando visualizar o desenho da área.
- Certo! - ele finalmente tomou uma decisão. - Existem apenas duas entradas para o sistema, e Paddy colocou guardas em ambas, certo?
Paddy assentiu.
- Ok, então nós vamos agir nas duas entradas simultaneamente, em duas equipes, e tentar pegar Adam e Kamal entre elas. Há quase um quilômetro e meio de túneis. Vai
ser uma tarefa dos infernos fazê-los sair, a menos que... - Hector fez uma pausa para pensar. - A menos que... - ele repetiu.
- A menos que o quê? - Paddy perguntou ansiosamente, mas Hector não respondeu de imediato.
- Venha comigo, depressa. Não podemos perder tempo - Hector ordenou e, de dois em dois degraus, ele subiu a escada de tombadilho que levava até a ponte. Paddy foi
correndo atrás dele. Cyril Stanford os esperava na ponte.
- Muito bom dia, capitão - Hector o saudou. - O navio está novamente sob seu total comando?
- Sob o meu comando ele está - Cyril deu um sorriso distorcido. O rosto dele ainda estava inchado e decorado de hematomas roxos e esverdeados onde havia sido atingido
pela coronha do rifle de Kamal. - Os motores estão em funcionamento, e estamos ancorados por uma única corrente, prontos para zarpar ao seu comando.
- Há algumas tarefas a serem cumpridas primeiro, Cyril. Por favor, descreva os procedimentos de combate a incêndios no túnel de serviço das bombas para mim e para
Paddy.
- Tive um estranho pressentimento de que ia me pedir isso quando soube que Kamal tinha se trancado com o chefe dele e a encantadora senhorita russa - Cyril respondeu.
- Venham para o camarim de navegação.
O camarim de navegação ficava no fundo da ponte. Hector sabia que as plantas do casco do Ganso Dourado estavam guardadas e desenroladas nas gavetas largas sob a
mesa das cartas de navegação. Mas, assim que entraram na cabine, Hector viu que Cyril já havia estendido os desenhos do convés inferior na mesa. Hector e Paddy se
debruçaram sobre eles, enquanto Cyril explicava o desenho dos oito compartimentos que constituíam o túnel de serviço das bombas.
- Todos os compartimentos podem ser vedados com portas herméticas e impermeáveis, correto? - Hector sabia a resposta, mas perguntou para o bem de Paddy. - É possível
também desligar o circuito elétrico, a iluminação e a ventilação do túnel?
- Correto - Cyril confirmou.
E você pode controlar as portas a partir da ponte?
Em resposta, Cyril apontou para o vão da porta aberta.
- Aquele é o painel de controle, na apara de estibordo. Acima do console de navegação - afirmou.
- É possível também controlar o fluxo de dióxido de carbono a partir daqui?
- Afirmativo! - Cyril assentiu de novo. - Posso inundar um compartimento de cada vez ou todos juntos.
- Gás carbônico? - Paddy peguntou. - Para quê?
- Controle de incêndio. Extingue as chamas - Hector respondeu bruscamente -, mas é venenoso para os humanos.
Ele se virou novamente para Cyril.
- Onde você guarda o equipamento de combate a incêndios?
- No primeiro andar. Temos macacões à prova de fogo...
- Não precisamos disso - Hector interrompeu. - E os kits de oxigênio?
- Sim! Temos respiradores autônomos de circuito fechado da Draeger. Quatro horas de suporte vital em ambientes tóxicos.
- E os óculos de visão noturna?
- Eles vêm com o equipamento da Draeger. Permitem que você enxergue na escuridão total ou em meio à fumaça.
- Quantos kits você tem a bordo?
- Apenas dois.
- Merda! - disse Hector. - Então seremos só nós dois, Paddy.
- Não estou certo do que você tem em mente, Heck. Mas posso fazer isso sozinho, com os pés nas costas.
- Todos nós sabemos que você tem uma forte motivação russa, mas vamos fazer isso juntos, Paddy.
Hector não esperou ele argumentar.
- Ok, Cyril, vamos fazer o seguinte: eu entro no túnel pela escotilha dianteira. Paddy, pela traseira. Ele vai se posicionar assim que alcançar o convés inferior.
Eu volto pelo túnel. Você vai inundar cada um dos compartimentos com gás carbônico quando eu entrar. Depois, vai fechar as portas impermeáveis depois que eu passar.
Hazel vai monitorar os desdobramentos da sala de situação. Ela vai nos manter informados sobre a posição exata dos fugitivos e da refém o tempo todo.
- Estou tão contente que tenha se lembrado da existência da Nastiya. Você é tão caridoso - Paddy disse sarcasticamente. - Ela vai estar lá embaixo quando o gás vazar.
Estará desprotegida. Qual é o tempo de sobrevivência dela?
- Com a Hazel nos orientando, vamos conseguir manter um contato próximo com Nastiya e chegar até ela rapidamente. Vamos levar um cilindro de oxigênio a mais para
ela.
- Isso não responde à minha pergunta. Quanto tempo antes que o gás a prejudique?
- Quatro ou cinco minutos para perder a consciência - Hector respondeu em voz baixa.
- E...? - Paddy insistiu.
- E oito a doze minutos para morrer.
- Que se dane o seu maldito gás, Hector Cross. Não preciso dele. Deixe eu ir sozinho. Posso dar um jeito no Kamal e trazer Nastiya de volta sem asfixiá-la.
Desculpe, Paddy. Mas vamos fazer do meu jeito - Hector disse num tom definitivo. - Já perdemos tempo demais tagarelando. Mãos à obra!
Hector estava no andar da corrente da âncora na proa do navio-tanque. Tariq, que estava atrás dele, verificou o armamento - o posicionamento da pistola Beretta,
os pentes sobressalentes e a faca na bainha. Ele cuidou para que tudo estivesse à mão para Hector.
Nos quadris, Hector pendurou uma pequena garrafa de oxigênio de emergência de dois litros com uma máscara embutida. Ela daria uma garantia de vinte minutos a quem
estivesse em um ambiente impregnado de gás carbônico. Paddy carregava um cilindro idêntico. Um dos dois tinha de chegar até Nastiya antes que o gás a matasse.
O respirador Draeger era grande e desengonçado, e nem ele nem Hector haviam operado um antes. No entanto, um dos tripulantes de Cyril conhecia bem o equipamento
e havia oferecido um breve curso introdutório. O capacete tinha uma aparência extraterrestre, e os olhos protuberantes da visão noturna o tornavam ainda mais estranho.
O tripulante plugou o rádio Falcon na extensão de microfone dentro do capacete.
- Tudo pronto, senhor - ele disse a Hector. - Lembre-se de ligar a torneira de oxigênio antes de fechar a máscara facial, não depois. O senhor ficaria surpreso com
a quantidade de novatos que esquecem isso.
Hector assentiu e ligou primeiro para Hazel.
- Hazel, estou prestes a descer pela escotilha dianteira agora.
- Hector, estou vendo você na tela. O caminho está livre. O alvo continua parado no compartimento número dois.
- Obrigado, Hazel - Hector agradeceu. - Cyril, está me ouvindo?
- Alto e claro, Hector - Cyril respondeu da ponte.
- Paddy, está me ouvindo?
- Sua voz melódica acaricia meus ouvidos, Heck - o humor de Paddy estava obviamente melhorando diante da promessa de ação e do iminente resgate de Nastiya.
- Fique onde está até segunda ordem - Hector pisou no degrau superior da escada de aço e fez um sinal de positivo para Tariq e os tripulantes.
Em seguida, ele desceu rapidamente pela escada até o andar inferior. O ambiente era apertado e confinado, ainda mais claustrofóbico devido ao tom de verde venenoso
e proibitivo das paredes de aço. Apesar de Hazel ter garantido que não havia ninguém no túnel, ele afrouxou a pistola no coldre e a segurou com as duas mãos, apontando
para o chão do túnel à frente.
- Ok, Cyril, pode apagar as luzes agora.
Apesar de ter dado a ordem, a escuridão foi tão repentina e intensa que Hector teve de reprimir um suspiro. Ele ligou a visão noturna infravermelha, e o entorno
ressurgiu num monocromo vermelho e monótono.
- Hazel? - ele perguntou.
- Nenhuma mudança, Hector. O alvo permanece parado no número dois.
Hector avançou pelo túnel estreito e ficou espantado com o comprimento dos compartimentos. Andando rápido, ele levou quatro minutos para alcançar a primeira porta
hermética. Passou pelo vão e então ligou mais uma vez para Cyril.
- Cyril, passei pela portinhola número oito. Feche-a - ele observou a porta deslizar e fechar com um silvo dos pistões hidráulicos.
- Devo soltar o gás no compartimento atrás de você, Hector? - Cyril perguntou.
- Negativo - Hector o deteve. - O compartimento está deserto. Nada a lucrar.
Ele passou por mais uma das enormes bombas, que chiava e sacudia ao circular o gás. Logo acima, havia uma coluna vertical e estreita, que conduzia a tubulação de
saída da bomba até o topo do tanque principal. Havia mais uma escada que acompanhava essa coluna, mas não levava a lugar nenhum. Não havia saída nem escapatória
por meio da extremidade superior da coluna.
Hector passou por mais oito bombas enormes e mais quatro portinholas. Cada vez que chegava a uma das portinholas, ele ligava para Hazel, que dizia que o alvo ainda
continuava parado no compartimento número dois. Hector passou pela escotilha e entrou no número quatro e, da ponte, Cyril a fechou. Mas ao alcançar a próxima escotilha
e entrar no número três, houve uma mudança abrupta. A escotilha estava se fechando atrás dele quando Hazel exclamou pelo rádio:
- Hector, fique atento! O alvo está se espalhando. Dois elementos estão estacionários, mas o terceiro está avançando pelo túnel na sua direção.
Hector foi pego de surpresa. Quem tinha se separado dos outros? Não podia ser Kamal, ele jamais abandonaria a refém e seguiria sozinho. Não podia ser Nastiya exatamente
pelo mesmo motivo - Kamal jamais a deixaria escapar. Só podia ser Adam. Que impulso individualista o fizera abandonar a proteção de Kamal? Provavelmente a escuridão
que havia esgotado seus nervos, fazendo-o explodir. Era por isso que Hector havia pedido a Cyril que apagasse todas as luzes.
- Ótimo! - Hector grunhiu. - Cyril, abra a escotilha atrás de mim novamente. Depressa!
Assim que ela se abriu, Hector voltou pelo compartimento que acabara de deixar.
- Ok, Cyril. Estou de volta ao compartimento número quatro. Feche a escotilha de novo.
Ele esperou em silêncio por quase seis minutos, e então Hazel ligou novamente.
- Hector, o terceiro homem chegou à sua posição. Ele está do outro lado da escotilha de onde você se encontra. Ele parece estar examinando a escotilha, tentando
encontrar a fechadura e abrir a porta.
- Ok, Hazel, tenho certeza de que o terceiro homem é Adam Tippoo Tip, e agora ele está onde queremos que esteja. Cyril, feche a escotilha atrás do Adam, e me informe
quando o fizer.
Apenas um minuto mais tarde, Cyril voltou a falar.
- Escotilha fechada, Hector - ele informou. - Adam está engarrafado no compartimento número três.
- Ok, Cyril, agora preencha o compartimento com gás carbônico.
Houve mais uma longa pausa, e Cyril explicou o atraso.
Demora até o gás permear o compartimento inteiro.
Ninguém falou de novo por alguns momentos, e então Hazel ligou:
- Agora está funcionando! Adam está correndo de volta por onde veio. Está obviamente em pânico. O gás carbônico está fazendo efeito nele.
- Cyril, abra a escotilha para eu poder passar - Hector ligou a torneira de oxigênio e fechou a máscara facial. Ele passou pela escotilha para o compartimento cheio
de gás carbônico e correu pela passarela atrás de Adam. Tinha de alcançá-lo antes que o gás o matasse. Ele o encontrou caído e encostado em uma das bombas de gás
em posição de prece e reconheceu a túnica branca antes de ver o rosto. Quando Hector o virou para o lado, viu que ele já estava inconsciente, mas arfando profundamente.
Hector viu que ele trazia uma pasta de couro preta acorrentada ao pulso esquerdo e tentou removê-la, mas a corrente era de aço inoxidável e o fecho, de qualidade
superior, similar aos usados por mensageiros diplomáticos. Seria preciso uma tocha para corte para soltá-la. Não havia tempo a perder, então ele arrastou Adam até
uma das tubulações verdes de gás que acompanhava uma das laterais do túnel horizontalmente, onde o colocou de rosto para cima. Hector colocou os membros dele ao
redor da tubulação, incluindo a pasta, e o prendeu com cabos pelos pulsos e pelos tornozelos. Adam estava bem preso à tubulação de gás como um pedaço de carne de
porco em um espetinho.
- Isso vai segurar você - Hector disse em voz baixa e alcançou o cilindro de dois litros de oxigênio pendurado em seu cinto. Ele colocou a máscara de poliuretano
moldada sobre o nariz e a boca de Adam e abriu a torneira. O oxigênio foi assoviando suavemente até a boca arfante de Adam. Hector segurou a máscara no lugar prendendo
a tira de elástico na parte de trás da cabeça de Adam, e então ligou para Cyril.
- De fato, o fugitivo é Adam. Eu o prendi. Ainda está inconsciente, mas coloquei a máscara de oxigênio nele. Ele deve recuperar a consciência em alguns minutos.
Acenda as luzes deste compartimento e então acione os ventiladores para expulsar o gás carbônico.
Quando o oxigênio começou a fazer efeito, Adam engasgou e fez uma careta. Abriu os olhos e grunhiu, os membros convulsionaram, e ele se debateu contra as amarras.
Então, olhou para cima, viu Hector no monstruoso capacete Draeger e deu um grito selvagem e incoerente. Ele tentou arrancar a máscara de oxigênio, mas quando descobriu
que não podia, começou a soluçar:
- Onde estou? O que está acontecendo comigo?
Hector o ignorou. Ele esperou por mais dez minutos, cronometrados no relógio, e então abriu a própria máscara facial e testou a qualidade do ar. Em baixas concentrações,
o gás carbônico é inodoro, mas em altas, tem um cheiro bastante acídico, deixando um gosto azedo na língua. Os ventiladores haviam eliminado o gás venenoso e purificado
o ambiente. O ar era puro.
Hector arrancou a máscara de oxigênio do rosto de Adam e fechou a torneira antes de pendurá-la de novo no cinto.
- Quem é você? O que vai fazer comigo? - a voz de Adam tremeu.
- Discutiremos isso mais tarde - Hector prometeu em árabe, enquanto checava os cabos em seus punhos e tornozelos.
- Eu sei quem você é! É o assassino, Hector Cross! - Adam falou num tom alto e agudo. - Você matou meu pai, meu avô e agora vai me matar.
- Sim. Há uma boa chance que isso aconteça - Hector concordou com ele enquanto se levantava e contatava Cyril pelo rádio. - Adam está preso e recuperou a consciência.
Abra a escotilha para o compartimento número dois. Vou atrás do Kamal e da Nastiya agora. Feche a escotilha após eu passar.
A escotilha se abriu, e ele se abaixou para entrar no compartimento número dois. Então, se deteve.
- Hazel, onde está Kamal? - perguntou.
- Hector, ele não se mexeu. Está ainda no número dois, logo à sua frente. Acho que ele encontrou um buraco seguro para se esconder e está esperando que você vá até
ele.
- Então não podemos decepcioná-lo - Hector disse. - Ok, Cyril, feche ambas as escotilhas do compartimento número dois e esteja preparado para enchê-lo de gás ao
meu comando.
- Positivo, Hector. Kamal está enjaulado. Não tem como sair.
- Paddy, entendido?
- Positivo, Hector.
- Suba e espere em frente à escotilha do número dois do seu lado. Estarei esperando no meu. Cyril vai bombear o gás e, assim que Kamal ficar incapacitado, nós entramos
ao mesmo tempo para agarrar Nastiya antes que ela inale o gás.
- Você vai ter de agir depressa para chegar na minha frente, Hector. É com a minha garota que você está brincando.
- Ela vai ficar bem, Paddy. Ela é durona e bonita demais para morrer jovem.
- Chega de lero-lero, Cross. Vamos agir!
- Hazel, checando pela última vez. Onde está o alvo?
- Hector, eles não se mexeram. Ainda enfurnados no meio do compartimento. Não gosto disso. Acho que Kamal tem um último truque guardado na manga. Ele está à sua
espera. Por favor, tome cuidado, meu amor.
- Cuidado é o meu nome do meio - Hector a tranquilizou. - Mas acho que um sopro de gás carbônico vai deixar Kamal mais simpático. Dê o gás a ele, Cyril.
- Positivo, Hector. Estou abrindo os cilindros de gás carbônico agora.
- Paddy, nós vamos entrar em exatos quatro minutos. A essa altura, Kamal deverá estar desacordado.
- Com certeza, Nastiya também - Paddy respondeu com amargura.
Hector fingiu que não escutou enquanto observava o ponteiro dos segundos de seu Rolex. Ele se movia ao redor do mostrador com a calma de uma geleira alpina. Ele
alcançou o auge e começou a segunda volta quando Hazel falou novamente, com a voz tensa de ansiedade.
- Perdemos contato! Kamal e a Nastiya desapareceram da nossa tela.
- Isso não é possível. O sensor de infravermelho do túnel ainda está funcionando? Talvez Kamal o tenha encontrado e desativado.
Quando teve certeza de que a situação estava sob controle, tudo começou a se desvendar.
- Afirmativo. Ainda está funcionando. Mas Kamal sumiu. Nenhum contato! - Hazel repetiu num tom de urgência.
Hector se preparou para dominar a onda de pânico que sentia tomar conta dele.
"Pense como a raposa!", ele aconselhou a si mesmo. "Pense como Kamal! O que o filho da mãe está fazendo?" A intuição veio, ele descobriu a resposta para a própria
pergunta e falou pelo rádio de batalha.
- Paddy, Kamal provavelmente sentiu o cheiro do gás. O odor é inconfundível. Ele sabe que é gás carbônico, e que o gás é mais pesado do que o ar. Sabe que, para
sobreviver, tem de se colocar acima dele. Mas como ele faria isso?
Demorou alguns segundos antes que encontrasse a resposta.
- A coluna de escape do número dois! O filho da mãe escalou até o topo da coluna e levou Nastiya junto. Não há sensor de infravermelho na coluna, e o ar puro fica
preso ali. Lá dentro, é possível respirar, e ele está usando Nastiya como escudo. Não podemos atirar para cima sem atingi-la.
- Temos de entrar agora, Hector - a voz de Paddy se ergueu num grito. - Deixe-me ir! Pelo amor de Deus, deixe eu ir buscá-la.
- Você está certo, Paddy. Temos de entrar - Hector disse decisivamente. - Cyril, abra todas as escotilhas! Depois, desligue o gás e comece a ventilar o compartimento.
Ele respirou fundo e então prosseguiu:
- Hazel, traga o médico até aqui. Alguém vai se machucar.
- Estou indo com o médico - Hazel disse.
Hector pensou em discutir, mas sabia, pela experiência, que era inútil. Além disso, a escotilha estava se abrindo, e ele precisava ir. Ele baixou a cabeça ao passar
pela escotilha aberta e saiu correndo pela passarela. Não havia tempo para cautela. Ele sabia exatamente onde Kamal estava. A coluna se erguia do centro do compartimento
acima da bomba de gás - a essa velocidade, poderia chegar em dois minutos. Sem quebrar o ritmo das passadas, ele ligou novamente para Paddy.
- Paddy, quando chegar, esconda-se atrás da bomba de gás. Eu estarei do outro lado. Diga quando estiver a postos. Temos de agir juntos. Não dê uma de cavaleiro solitário
para cima de mim.
Paddy não respondeu, e Hector viu o volume escuro da bomba de gás começando a surgir. Acima dela, a entrada da coluna de escape se abria como a boca desdentada de
um monstro. Hector se enfiou sobre o abrigo da bomba e se ajoelhou. A Beretta 9 mm estava em suas mãos e apontada para a entrada da coluna.
- Ok, Paddy? Você está a postos?
- A postos, Hector!
- Cyril, entendido?
- Positivo, Hector.
- Quando eu contar até cinco, acenda todas as luzes. Um. Dois. Três. Quatro. Luzes!
Da mais profunda escuridão, o compartimento se iluminou com o brilho elétrico. Havia uma lâmpada de 180 watts na gaiola de arame no topo da coluna de escape. Ela
retroiluminava Kamal e Nastiya como um efeito cênico. Kamal estava agachado no estreito patamar de aço. Nastiya estava de pé no degrau da escada abaixo dele. As
mãos dela estavam amarradas com cabos, juntas, à frente do corpo. Ela tinha uma corda ao redor do pescoço. Kamal segurava a outra ponta da corda em uma mão e um
rifle automático na outra. O rifle estava apontado para baixo da coluna e, assim que viu Hector e Paddy na coluna, nove metros abaixo dele, disparou uma saraivada
de tiros com uma mão. Ambos se abaixaram atrás da bomba um momento antes dos tiros.
O estampido do rifle foi ensurdecedor na área fechada da coluna. As balas ricochetearam nas aparas de aço e nas pesadas tubulações de gás, despejando duchas cintilantes
de faíscas. Assim que os disparos do rifle cessaram, Hector arriscou uma olhadela rápida na cúpula da bomba. Não havia como atirar em Kamal. O corpo de Nastiya o
cobria quase completamente, ainda assim, ele viu que ela havia de certa forma conseguido enrolar uma laçada da corda de Kamal ao redor dos pulsos amarrados. Ele
não poderia mais usá-la como garrote. Ela estava se equilibrando precariamente no degrau da escada, sem apoiar as mãos. Hector percebeu imediatamente o que ela planejava
fazer, antes mesmo que Nastiya gritasse selvagemente:
- Me pegue, Babu!
A seguir, ela se jogou de costas para dentro da coluna. Num puxão, a corda se esticou, mas a tensão se concentrou nos pulsos e não no pescoço de Nastiya. A ponta
foi puxada das mãos de Kamal, que quase foi desalojado de seu poleiro. Ele lutou desesperadamente para manter o equilíbrio.
"Quem diabos é Babu?" Hector pensou sem dar muita importância. A pergunta não verbalizada foi respondida de imediato por Paddy, que saiu correndo detrás da bomba
e ficou embaixo da entrada da coluna com os braços bem abertos, olhando para Nastiya, que caía na direção dele. Ela tinha se encolhido como uma bola, com os cotovelos
e os joelhos contraídos, e a queda era de quase nove metros. A descida atingiu uma velocidade vertiginosa, mas Paddy não recuou. Ele a pegou no ar e foi derrubado
pelo impulso dela no chão de aço, absorvendo a maior parte do choque da colisão com o próprio corpo. O impacto soou como um saco de carvão jogado da caçamba de uma
carreta em uma rua de pedra, e Hector ouviu o estalar de ossos se quebrando. Mas Paddy não a largou uma única vez. Ele abraçava Nastiya contra o peito.
Hector nem sequer olhou para os dois corpos entrelaçados sob seus pés, mas concentrou tudo o que restava de sua mente e seus músculos na figura acima dele, na coluna
de aço.
Kamal estava se agarrando a um dos degraus da escada, chutando e se debatendo para manter o equilíbrio. O primeiro disparo de Hector com a Beretta ricocheteou de
um dos degraus da escada de aço logo abaixo dele. A bala deformada perdeu apenas um pouco da velocidade ao girar no ar, e então subiu para entre as pernas de Kamal,
perfurando o períneo e se alojando profundamente nos intestinos. O corpo inteiro de Kamal sacudiu e convulsionou. Ele se agarrou à escada com firmeza, mas não conseguiu
manter o rifle na outra mão. A arma caiu, rebatendo nas anteparas e quicando nos degraus da escada. Hector abaixou a cabeça quando o rifle passou voando por ele,
e então deu mais três tiros em rápida sucessão. Todos acertaram carne, ossos e vísceras. Lentamente, os dedos de Kamal se abriram até ele soltar a escada de aço
e despencar pela coluna, com a túnica solta esvoaçando ao seu redor até o corpo atingir o chão aos pés de Hector, que se debruçou sobre ele e atirou mais duas vezes
na cabeça, antes de se virar para onde se encontravam Paddy e Nastiya.
O túnel ainda estava inundado de dióxido de carbono que não havia sido expurgado pelos ventiladores. Nastiya corria risco. Hector se ajoelhou ao lado dela e desenganchou
a garrafa de dois litros de oxigênio do cinto. Abriu a torneira e espalmou a máscara sobre o nariz e a boca dela.
- Atenda o Paddy primeiro! - Nastiya pediu, e a voz dela foi abafada pela máscara de plástico. Paddy estava tentando se sentar, mas estava ferido. O corpo dele estava
disforme, um dos ombros, caído.
"A clavícula já era e, provavelmente, algumas costelas", Hector pensou. "Certamente algumas torções e distensões musculares, mas houve algo um dano cerebral?"
A seguir, ele disse em voz alta:
- Venha, Babu. A senhorita diz que preciso cuidar de você.
- Um dia desses, Cross, você vai passar dos limites - ele alertou, mas sem nenhum rancor. Seu rosto se contorceu num misto de dor e adulação quando Nastiya se debruçou
sobre ele, que a encarou nos olhos.
- Nenhum dano cerebral! O rapaz ainda é ligeiro como uma pistola! - Hector disse com um sorriso e ligou o microfone do rádio. - Agora escutem todos! Kamal está fora
da jogada. Assim como Uthmann Waddah. Adam foi capturado. Paddy quebrou alguns ossos, mas é forte, e eles vão sarar. O principal é que Nastiya e eu estamos bem.
Portanto, não precisam se preocupar!
Hector e Hazel estavam na asa da ponte de comando do Ganso Dourado. Ela estava nos braços do marido, recostada ao peito dele. Em silêncio, observavam os últimos
barcos que chegavam da praia, lotados de marinheiros que a coluna de Sam Hunter havia libertado dos cativeiros. Os homens estavam sendo levados aos seus barcos na
baía.
Os homens de Sam estavam incendiando os edifícios da cidade, após se certificarem de que nenhuma viúva ou órfão tinha sido deixado para trás pela população em fuga.
Hazel fora categórica quanto a isso. A maioria dos navios capturados da baía já estava com a tripulação original a bordo, e havia ligado os motores em preparação
para zarpar. Oito navios que ficaram ancorados por vários anos tinham se deteriorado tanto que os motores haviam emperrado devido à ferrugem, que também atingira
os cascos em grandes proporções, tornando-os totalmente incapazes de navegar. Hector ordenou que fossem afundados, para privar os piratas até mesmo dessa escassa
recompensa. Quando as válvulas de drenagem foram abertas para transbordarem, vários cascos viraram, enquanto outros afundaram de pé, deixando apenas o cordame à
mostra na superfície. Por fim, o esquadrão de VAAs desceu pela praia em direção ao mar e começou a nadar de volta ao Ganso, abandonando a cidade em chamas. Hazel
quebrou o silêncio:
- Então, meu querido, missão cumprida e encerrada - disse no que foi praticamente um suspiro.
- Quase, mas não totalmente encerrada. Há apenas mais uma coisa que temos de fazer - Hector respondeu, e ela se virou dentro do abraço dele para encará-lo.
- Eu sei. É a parte que estou temendo - suspirou. - Onde ele está?
- Tariq o trancou na sala de armamentos da área escondida do navio.
- Temos de lidar com isso imediatamente, liquidar o assunto antes que eu perca a coragem.
- Nós só vamos agir quando estivermos em alto-mar - ele argumentou. - Mas nenhum de nós vai perder a coragem. Devemos isso a Cayla e Grace.
- Eu sei - Hazel suspirou e se aconchegou no peito dele -, temos de fazer justiça por elas. Sem isso, ninguém ficará em paz. Quando, meu querido? Quando devemos
fazê-lo?
- Vamos zarpar hoje à noite. Faremos ao nascer do sol, amanhã, quando estivermos longe da terra firme.
- Só nós dois? - Hazel perguntou baixinho. - Ninguém mais?
- Outros sofreram - Hector a fez lembrar. - Tariq, Paddy e Nastiya.
- Muito bem. Mas a tarefa fica ao meu encargo. É o meu dever sagrado.
O sol estava se pondo, e a iluminação foi suficiente para que o Ganso Dourado manobrasse para fora do canal, liderando o comboio variado e estranho de navios na
saída da Baía de Gandanga. Eles navegaram rumo ao sudeste durante a noite. Na manhã seguinte, Hector e Hazel tomaram banho e vestiram roupas limpas enquanto ainda
estava escuro. Em seguida, em silêncio, tomaram uma caneca de café forte de pé na cozinha da suíte principal. Às cinco em ponto, Tariq bateu na porta, que foi aberta
por Hector.
- Está tudo pronto - Tariq disse.
- Obrigado, velho amigo.
Hector o deixou na porta e voltou, encontrando a esposa sentada na cama. Hazel ergueu o olhar até ele. O azul dos olhos dela eram de um tom que ele nunca tinha visto
antes, frio e desprovido de sol como o mar Ártico.
- Pronto? - ela perguntou.
- Pronto! - disse e, pegando-a pela mão, a colocou de pé. Ele a levou até o elevador, e eles desceram até o andar mais baixo. Quando as portas se abriram, ele a
levou pelo cotovelo e a conduziu ao convés da popa. Uma seção do convés havia sido isolada por uma tenda de lona pesada. Tariq seguiu adiante deles e manteve a entrada
da tenda aberta. Depois que passaram, ele a fechou.
Paddy e Nastiya estavam à espera deles. Paddy estava sentado em uma cadeira dobrável de lona. O peito dele estava enfaixado com fita cirúrgica, e o braço esquerdo,
apoiado numa tipóia. Nastiya estava de pé ao lado dele, com uma das mãos delicadamente pousada em seus ombros. Hector e Hazel se posicionaram do outro lado. Hector
olhou para Tariq.
- Vá pegar o Adam - ordenou.
Tariq saiu pela abertura da tela de lona e retornou quase imediatamente. Dois homens da Cross Bow o acompanhavam. Adam estava entre eles. As pernas dele estavam
paralisadas de terror. Os guardas ao mesmo tempo o arrastavam e carregavam. Eles o deixaram cair de joelhos em frente a Hazel. Hector fez um sinal afirmativo com
a cabeça para os guardas, que foram ficar de vigia na entrada do cercado.
Adam se ajoelhou em frente a Hector e Hazel. Os olhos dele estavam escurecidos e inundados de lágrimas. A pasta preta ainda estava acorrentada ao seu pulso, e ele
a apertou contra o peito com ambas as mãos.
- Por que ele ainda está com essa pasta? Tire-a dele - Hector exigiu.
- A corrente tem uma fechadura de combinação - Tariq respondeu. - Ele não nos diz qual é. Não podemos tirá-la dele.
- Corte a mão na altura da articulação do pulso, Tariq. A corrente vai deslizar do toco com facilidade - Hector ordenou. - Use sua faca de trincheira.
Tariq se debruçou sobre Adam, pegou a faca e agarrou o braço dele. Adam guinchou como um leitão prestes a ter a garganta cortada.
- Não! Não use essa faca. Eu dou a pasta para vocês.
Ele a colocou no colo e, com dedos trêmulos, alinhou os números da combinação da fechadura. Após a segunda tentativa, a corrente caiu do pulso, e ele engatinhou
pelo convés até Hector, oferecendo-a com as duas mãos.
- Você e eu podemos entrar num acordo - ele soluçava. - Sei que é um homem de palavra, Hector Cross. Nesta pequena bolsa, estão códigos e senhas da internet para
acessar quase dois bilhões de dólares depositados em 26 bancos ao redor do mundo. Nós podemos compartilhá-los, você e eu. Liberte-me e pode ficar com metade do dinheiro.
- O dinheiro não é seu, Adam. Foi roubado de pessoas cujos barcos e mercadorias você saqueou.
- Então, pode ficar com tudo - Adam implorou. - Dois bilhões de dólares! Fique com tudo, mas me liberte.
- Sim! Eu vou ficar com todo o dinheiro, Adam - Hector disse com um aceno de cabeça -, e vou mandar você para Iblis, o espírito do mal. Ele está à sua espera. Tire
a pasta dele, Tariq.
Adam gemeu e tentou resistir, agarrando-se à corrente. Tariq virou a faca para cima na bainha, e o acertou na têmpora com o punho. Adam soltou a corrente para segurar
a cabeça com as duas mãos. Tariq entregou a pasta a Hector. Ele a colocou de lado e concentrou a atenção no miserável encolhido a seus pés.
- Adam, você é o autor de incontáveis atos de pirataria, estupro e assassinato. Mesmo sob a lei da Sharia que você professa honrar, esses são todos crimes capitais.
Você é declarado culpado. Porém, uma de suas vítimas era um jovem chamada Cayla Bannock. Você a estuprou e torturou sem misericórdia. Por fim, assassinou Cayla e
a avó dela, Grace, ao mandar que seus lacaios a decapitassem. A seguir, você enviou as duas cabeças a Hazel Cross com uma mensagem sarcástica. Hazel Cross, que é
filha de Grace Nelson e mãe de Cayla Bannock, está diante de você agora exigindo uma retratação.
Adam ergueu a cabeça e olhou para Hazel. O sangue gotejava pelo seu rosto devido ao golpe desferido por Tariq. Ele estava chorando, e as lágrimas diluíam o sangue
e pingavam na túnica branca.
Hector prosseguiu em voz baixa:
- A mãe de Cayla Bannock está diante de você. Ela reivindica o direito de retaliação garantido a ela sob a lei da Sharia. Uma vida por uma vida.
- Por favor! - ele juntou as mãos em concha e as estendeu da direção de Hazel em súplica como um mendigo. - Era o meu dever. Fiz apenas o que era o meu dever perante
a Alá e os meus antepassados. Por favor, compreenda. Por favor, tenha misericórdia.
Hector olhou para Tariq e assentiu. Tariq tinha um pedaço de lona dobrado aos seus pés. Ele o estendeu no convés. A seguir, dois homens da Cross Bow carregaram um
pesado saco de areia e o depositaram no centro da lona.
- Adam, vá até a lona e deite com a cabeça sobre o saco de areia - Hector ordenou.
- Não! - Adam balbuciou. - Eu lhe dei o dinheiro. Eu paguei pela dívida de sangue sob a lei da Sharia, e você aceitou. Você tem de me libertar.
Hector retirou a pistola do coldre do cinto, girou-a e a entregou com a coronha voltada para Hazel. Ela a pegou, colocou uma bala no pente e apontou o cano para
o convés. Em seguida, Hector foi até onde Adam estava ajoelhado. A voz de Adam se ergueu em um grito agudo.
- Misericórdia! Eu imploro, misericórdia!
Hector agarrou um dos pulsos de Adam e, aparentemente sem esforço, torceu a mão dele para trás das costas e o colocou de pé. Ele o levou até a lona e forçou para
que se deitasse sobre ela de bruços.
- Coloque a cabeça no saco de areia - Hector ordenou em voz baixa. - Isso vai deter a bala depois que ela atravessar o crânio. Depois, o saco de areia vai servir
de peso para afundar seu corpo quando for jogado ao mar.
Adam gritou, um som disforme e incoerente. Hector forçou a cabeça dele contra o saco até que o grito fosse abafado. Então, olhou para Hazel.
- Está pronta? - perguntou, e ela assentiu.
Hazel, que chorava em silêncio, foi se posicionar ao lado de Hector, apontando a pistola para a cabeça de Adam, mas os ombros dela sacudiam, e a pistola oscilava
e tremia em seu punho. Ela a ergueu e apontou para o céu. Hazel balançava a cabeça e arfava como uma mulher se afogando. Nastiya Voronova saiu do lado de Paddy e
foi até ela. Ela tocou gentilmente um dos ombros de Hazel.
- Eu farei isso por você, Hazel. Sou treinada, você não - Nastiya disse, mas Hazel balançou a cabeça de novo.
- Não - ela suspirou -, é o meu dever perante Deus, minha mãe e minha filha.
Ela abaixou a pistola e mirou a parte de trás da cabeça de Adam. As mãos dela se estabilizaram, de repente, e ela não soluçava mais. Foi um um único disparo. Depois,
não se ouviu nenhum barulho, a não ser a batida ritmada dos motores.
Hector retirou a pistola da mão de Hazel e retirou o pente, ejetando a bala. A seguir, colocou um dos braços ao redor dos ombros da esposa e disse:
- Acabou, agora. Tarefa cumprida, e bem cumprida. Grace e Cayla estão livres, assim como nós.
Ela enterrou o rosto no peito dele e não olhou quando Tariq e os dois guardas se aproximaram. Eles enrolaram Adam e o saco de areia no pedaço de lona e, com uma
corda de nylon, amarraram o embrulho habilmente e de forma segura. Depois, os dois levaram o pacote até a popa e o deslizaram por cima da grade, jogando-o na borbulhante
esteira branca deixada pelo navio. Ele desapareceu sem deixar traços.
O USS Manila Bay interceptou a flotilha a trinta milhas náuticas de águas territoriais. O tom de voz do Comandante Andrew Robins era de incredulidade ao contatar
o Ganso Dourado.
- Ganso Dourado, aqui é o Manila Bay. Capitão Stanford pode falar?
- Olá, Andy, aqui é Cyril Stanford.
- Bom falar com o senhor novamente. Houve relatos de problemas no Golfo de Adem. Em um lugar chamado Baía de Gandanga particularmente.
- Não me diga, Andy! Do que será que se trata?
- Bem, contanto que o senhor não tenha se envolvido em qualquer incidente desagradável. Estava um pouco preocupado com o senhor - ele fez uma pausa. - Vejo que tem
companhia.
- Que coisa mais engraçada, Andy, o jeito que esses sujeitos grudaram em mim. Parece que se perderam.
- Quantos, senhor?
- Dezenove desde a última vez que contei.
- As ordens que recebi são para prestar auxílio a quaisquer embarcações emergindo do Golfo de Adem que requeiram assistência.
- Então vou passá-los a você, Andy, e seguir meu rumo.
- Na última vez que nos falamos, pensei que o senhor tinha dito que seu destino era Jedá, na Arábia Saudita, certo, Capitão Stanford?
- Mudança de planos, Andy. Meus patrões não conseguem decidir para onde querem que eu vá. Agora estou a caminho de contornar o Cabo da Boa Esperança.
- Parece que o boato de confusão na Baía de Gandanga foi um exagero. O último relatório do satélite diz que a baía está completamente deserta.
- Para você ver, Andy, que não dá para acreditar em tudo o que se ouve.
- Vamos dedicar essa ao seu menino, o Bobby?
- Deus o abençoe, Andy Robins!
- Mares calmos e ventos gentis o acompanhem, tio Cyril!
Após um prolongado debate, Hazel, Hector e Paddy decidiram que, independente dos custos, eles deveriam se livrar de quaisquer equipamentos incriminadores deixados
a bordo do Ganso Dourado. De acordo com essa resolução, os canhões Bushmaster foram desmontados de seus locais de armazenagem e, juntamente com toda munição, jogados
numa profundidade de 1.500 metros na Bacia de Mascarene. Os três VAAs os seguiram com os torreões e as válvulas totalmente abertos.
Assim que tudo foi descartado, o Ganso Dourado fez uma parada no ancoradouro do porto de Dar es Salaam, e 146 homens foram transportados para terra firme. Todos
os passageiros vestiam trajes civis e carregavam um gordo cheque administrativo em nome do Hongkong and Shangai Banking Corporation. Bernie e a Grande Nella Vosloo
esperavam por eles no aeroporto de Dar es Salaam para levá-los de Hércules ao Qatar. De lá, eles se dispersaram pelo globo em voos comerciais. Paddy ainda não estava
em condições de viajar, portanto permaneceu a bordo, com sua enfermeira russa particular. Eles navegaram até a Cidade do Cabo, onde o BBJ os esperava. O jato levou
o casal a Moscou, onde Nastiya queria receber a aprovação da mãe para o que os dois tinham em mente.
Hector e Hazel passaram uma semana no Dunkeld Estate para experimentar a última safra do tio John e oferecer conforto e apoio em relação à perda de sua amada irmã
Grace. Quando ficou sabendo que as contas haviam sido ajustadas e que a própria Hazel realizara a execução, John melhorou e iniciou sua total recuperação. O BBJ
retornou de Moscou e levou Hector e Hazel de volta a Houston.
Durante o voo de volta, eles discutiram o que tinha de ser feito com o conteúdo da pasta de Adam Tippoo Tip. Finalmente, concordaram que os fundos poderiam ser recuperados
das contas bancárias com os nomes de usuário e as senhas adquiridos, e que depois teriam de ser devolvidos aos verdadeiros donos. Assim que estavam de volta ao Texas,
fizeram a primeira tentativa de recuperação. Primeiro, abriram uma conta numerada na Suíça. A seguir, Hector entrou na internet e usou seu árabe fluente para digitar
o nome de usuário e a senha da conta de Adam no Banco Central da República Islâmica do Irã.
- Merda! Funciona! - ele respirou fundo, e os arquivos se abriram na tela com uma rapidez miraculosa.
- Não pragueje, querido - Hazel disse afetadamente -, vai dar azar.
Hector apontou para o saldo da conta bancária.
- Você acha que 857 milhões de dólares são azar?
- Vão ser, a não ser que você consiga transferi-los para a conta numerada na Suíça.
- Prenda a respiração e reze - ele disse, e digitou os dados. - Lá vamos nós!
Ele clicou o botão "enviar", e depois deixou escapar um grito de triunfo:
- Aceitou os dados! O dinheiro foi transferido!
- Verifique se caiu na conta - Hazel sugeriu.
- Ele abriu a conta suíça rapidamente.
- Entrou! - ele comemorou. - Olhe! Oitocento e cinquenta e sete milhões de dólares! - ele tomou Hazel nos braços e valsou com ela duas vezes ao redor da sala.
- Agora é sério - ela finalmente o fez parar. - Vamos pegar o resto da bolada.
Eles se sentaram novamente em frente ao computador e trabalharam pelas três horas seguintes. Ao final, encararam a tela maravilhados.
- Raspamos o tacho - disse Hector num tom sombrio. - Pegamos tudo. Até o último dólar. Cada um dos míseros dois bilhões de dólares.
- Ok! Pode xingar! Eu estava errada. Parece que nos trouxe sorte.
- Há uma garrafa de um litro e meio de champanhe Roederer Cristal na geladeira. O que você acha? Que tal?
- Acho que é obrigatório - ela concordou.
Eles brindaram e também aos amigos ausentes, e então passaram ao próximo item da tarefa.
- Certo! - disse Hazel. - É possível estabelecer quem depositou dinheiro nas contas do Adam?
- Sim, é claro. Só precisamos abrir os extratos. Está tudo ali.
- E nós temos os números da contas para devolver todo o dinheiro? - ela perguntou.
- Não todo. Temos de reembolsar a Bannock Oil por todas as despesas de montar e equipar a expedição à Baía de Gandanga.
- Sim, é claro. Mas temos de manter a discrição em relação a tudo isso. Jamais poderemos admitir que tivemos qualquer participação no ataque aos piratas. Nós quebramos
quase todas as leis quando fizemos isso.
- Quanto ao reembolso das despesas da Bannock Oil, vou conversar com o príncipe Mohammed em Abu Zara. Nós podemos conseguir o dinheiro através dele, como royalties
de petróleo.
- Ele fará isso por nós?
- Não por nós, mas por uma boa comissão - Hector disse dando de ombros. - Além de ser o primeiro ministro e Ministro das Minas e Energia, ele também é o cabeça do
Exército e da Força Policial, e governador do Banco Central de Abu Zara. As pessoas tendem a cumprir as ordens do pequeno príncipe sem reclamar muito.
Hazel riu.
- Ele parece ser o meu tipo de cara. Mas como devolvemos o dinheiro que Adam Tippoo Tip roubou aos outros?
- Nós temos um advogado realmente de confiança?
- Um pelotão inteiro deles - ela afirmou.
- O advogado da sua escolha entrará em contato com cada um, separadamente, sob um acordo de confidencialidade. Ele irá explicar que seu cliente anônimo negociou
com os piratas e recebeu um reembolso substancial dos fundos extorquidos. Se eles assinarem uma garantia de sigilo, terão direito a uma parcela da quantia. Pode
apostar que não deixarão a oferta escapar.
Hector estava certo. O príncipe Mohammed canalizou o dinheiro para os cofres da Bannock Oil, e os donos dos navios e as seguradoras que tinham perdido dinheiro agarraram
a oportunidade com a rapidez de um atleta olímpico.
Enquanto tudo isso estava em progresso, Hector e Hazel encontraram tempo para voar até Moscou para o casamento de Nastiya Voronova e Paddy. No caminho, pegaram Cyril
Stanford em Taiwan, onde o Ganso Dourado estava sendo reformado. Cyril estava agora oficialmente empregado como capitão da embarcação em período integral, e a própria
Nastiya pediu a Hazel para que providenciasse a presença dele no casamento. Hector não conseguia entender por que a presença de Cyril estava sendo planejada tão
cuidadosamente pelas duas. Foi apenas quando Nastiya apresentou Cyril à mãe que tudo ficou mais claro. Galina Voronova era uma senhora alta e imponente de 57 anos,
cujos cabelos compridos haviam se tornado loiros platinados. Olhando para ela, ficava óbvio de onde Nastiya tinha herdado a própria beleza espetacular.
Cyril e Galina trocaram um aperto de mão, e ela disse em um inglês excelente:
- O senhor é um capitão do mar. Que romântico!
Cyril balbuciou algo ininteligível e ficou pálido sob o bronzeado. Ele na verdade pareceu cambalear ao olhar para ela. Hazel apertou o braço de Hector e murmurou
alto o suficiente apenas para ele ouvir:
- Bingo!
A seguir, ela e Nastiya trocaram olhares, satisfeitas.
Após a cerimônia de casamento na catedral de Cristo, o Salvador, Hazel entregou a Nastiya um contrato com a Cross Bow Security. Ela nomeou Nastiya a nova diretora-assistente
da empresa. Quando Hector e Hazel pegaram o voo de volta a Houston, Cyril Stanford não estava a bordo do jato. Levaria pelo menos mais três meses até que o Ganso
Dourado estivesse pronto para navegar, e ele tinha tempo de folga. Por razões que ingenuamente acreditava serem apenas de seu conhecimento, Cyril decidiu passar
um tempo em Moscou.
Hector e Hazel tinham uma montanha de trabalho esperando em Houston, incluindo a Bannock Oil AGM e uma delegação japonesa ansiosa por discutir a perfuração em águas
profundas em Mariana Trench no Oceano Pacífico, portanto, foi apenas quase um mês após a volta que tiveram a oportunidade de voar até o rancho no Colorado. Depois
do café da manhã do primeiro dia de estadia, eles subiram até o mausoléu no topo da Montanha da Lupa. O velho Tom os saudou à entrada.
- Disseram que vocês estavam vindo, dona Hazel e seu Hector - ele disse -, por isso eu trouxe as flores. Lírios africanos para o sr. Henry e rosas para a srta. Cayla,
como sempre.
- Você é um homem bondoso, Tom.
Hector observou Hazel arrumar as flores da entrada. Quando terminou, ela o chamou. Eles se ajoelharam lado a lado nas almofadas de veludo roxo que Tom havia colocado
na cabeceira do sarcófago de mármore de Cayla.
- Eu não sou muito bom nessas coisas de rezar - Hector a avisou com gentileza.
- Eu sei. Deixe essa parte comigo - ela respondeu.
Ela era muito boa de reza. As lágrimas subiram aos olhos de Hector ao escutá-la.
Quase duas horas depois, eles saíram novamente para o gramado. Os céus estavam cinzentos com densas nuvens de neve. Eles se sentaram juntos no banco de pedra. Um
floco de neve aterrissou delicadamente no nariz de Hazel. Ela sentiu cócegas e o afastou do nariz.
- O inverno está chegando cedo este ano - ela disse. - Dickie me disse que os gansos já voaram para o sul.
- Cayla e Henry foram com eles - Hector afirmou. - Eles não estavam lá hoje - ele olhou para o mausoléu.
- Você também sentiu isso?
- Eles não vão voltar, Hazel. Eles se foram para sempre. Apenas a lembrança vai permanecer conosco.
- Eu sei.
- Não fique triste, minha querida.
- Não estou triste. Estou feliz por eles. Nós finalmente os libertamos.
Hazel se aconchegou mais ao marido, que pôs um dos braços ao redor dela. A noite se aproximava rapidamente, e tinha esfriado bastante.
- Hector? - ela disse.
- Ainda estou aqui - ele respondeu. - Não tenho planos de ir a lugar nenhum sem você.
- Eu parei de tomar a pílula este mês.
- Meu Deus, por que você fez isso? - ele estava espantado.
- Quero mais um bebé. Essa é a minha última chance. Eu passei dos quarenta. Logo, será tarde demais. Eu preciso ter um bebé. Tenho de ter um pedaço de você dentro
de mim. Essa vai ser a confirmação final do nosso amor. Ah, meu querido, você não entende? Eu preciso ter um bebé para assumir o lugar da Cayla. Você também não
quer?
- Diabos! Sim! É claro que quero - ele disse.
- Então você não está mesmo bravo comigo?
- Não! - ele se levantou e tomou as mãos de Hazel, ajudando-a a se levantar.
- Venha comigo, mulher! - ele disse.
- Onde vamos?
- De volta à terra da paternidade, onde mais? Você e eu temos importantes assuntos a tratar.
De mãos dadas, eles desceram correndo pela Montanha da Lupa, rindo durante todo o caminho de volta à casa no Lago da Guitarra.
Dois dias depois, foram de carro até Berkshire para comparecer aos cinco dias do evento hípico do Royal Ascot. Hazel era membro, portanto eles tiveram acesso irrestrito
ao camarote real. Entre as corridas, a rainha da Inglaterra e o duque de Edimburgo circulavam entre os membros na arena dos desfiles. Hazel e Henry tinham sido hóspedes
frequentes da rainha em Sandringham, portanto ela se deteve por um momento para conversar com Hazel e dar aos parabéns a ela e Hector pelo casamento. O príncipe
Philip segurou uma das mãos de Hector e o fitou com um de seus famosos olhares penetrantes.
- Você é africano, não é, Cross? - perguntou e os olhos dele cintilaram, travessos. - Como conseguiu entrar aqui?
Hector piscou uma vez, mas logo se recompôs e soltou em resposta:
- Esses africanos e gregos! Estão por toda parte. Não estão, senhor?
O príncipe Philip bufou em absoluto deleite.
- Terceiro batalhão do SAS, não foi? Ouvi dizer que você é um bom atirador, Cross. Temos de convidá-lo para ir a Balmoral dar uma mão com os faisões - ele olhou
para o seu secretário.
- Tomarei as providências necessárias, senhor - o homem murmurou.
Eles continuaram caminhando, e Hazel sussurrou para Hector:
- Estou tão orgulhosa de você! Você deu ao velho diabo o que ele merecia. Mas, a rainha não é senhorinha mais fofa que você já viu?
No quinto dia, o cavalo de Hazel, The Sandpiper, venceu o prêmio Golden Jubilee Stakes, e ela resolveu, afinal, que não iria demitir o treinador. Ela ofereceu um
jantar comemorativo no Annabel's para vinte pessoas. O embaixador norte-americano estava entre os presentes e, em retribuição, ele os convidou para uma recepção
na Winfield House, sua residência oficial, na semana seguinte. Notoriamente, o governo norte-americano havia comprado a casa de Barbara Hutton em 1955 pela quantia
simbólica de um dólar. Hazel decidiu que essa era uma ocasião apropriada para retirar os autênticos diamantes Hutton do cofre do banco, onde estavam definhando.
O embaixador norueguês era um dos outros convidados. Era sabido que ele e Hector se davam bem e, quando ouviu dizer que Hector e Hazel praticavam a pesca com mosca,
convidou-os para tentar a sorte nos oito quilômetros de águas que ele possuía no rio Namsen, na Noruega, um dos mais famosos para peixes graúdos na Europa. Quando
Hazel contou a Cayla sobre a oferta, ela soltou um grunhido tão agudo que Hazel teve de afastar o telefone do ouvido.
- Ah, eu queria estar lá com você, minha mãe querida. Amo tanto você. Por favor! Por favor me leve!
- E quanto à sua resolução de esfregar o nariz de Soapy Williams na sujeira no final do ano?
- Isso foi há séculos. Se você me deixar ir, vou trabalhar o dobro quando voltar e amar você pelo resto da vida.
Hazel enviou o BBJ para buscá-la.
As águas do Namsen eram amplas e profundas. No último dia, Hector e Cayla estavam pescando em ambas as margens do mesmo lado. Cayla fez um longo arremesso com a
vara Spey, de trinta pés e com cabo para duas mãos, e deixou a mosca boiar. Hector viu o clarão prateado bem abaixo da mosca, como um espelho apanhando a luz do
sol.
- Fique firme! - ele gritou alto. - Há um salmão monstruoso no seu rastro. Não faça nada. Deixe-o passar. Quando ele apanhar a isca, pelo amor de Deus, não ataque.
Você vai tirar o anzol da boca dele. Deixe-o levar a mosca para baixo e depois suspenda.
- Eu sei! Você me disse isso cem vezes - Cayla gritou de volta.
- Firme! Lá vem ele de novo - ele observou a ponta da vara.
O enorme flanco prateado reluziu nas profundezas do rio.
- Calma, Cay. Ele ainda está aí. Mas que inferno, ele recusou! Puxe a mosca e troque-a. Aja depressa, Cay, ele não vai ficar de bobeira o dia inteiro.
Ela estava com a água fria pela cintura, mas decapou a mosca e mordeu o tirante com os fortes dentes brancos.
- Que mosca devo colocar?
- Qual é a menor e mais escura que você tem na caixa?
- Tenho uma Munro Killer nº 14. É minúscula!
- Amarre-a e arremesse no mesmo lugar de antes.
Devido à pressa, o arremesso dela foi um pouco desajeitado e ficou um pouco aquém.
- Devo puxá-lo, Heck?
- Não. Deixe-o passar.
Ele aguardou tensamente. Não havia nenhum vislumbre na água, mas, de repente, a linha parou de balançar.
- Espere! - ele gritou. - Não faça nada.
Ele viu a ponta da vara se agitar e mover para cima e para baixo.
- Ele está brincando. Não ataque. Por favor, não ataque, Cay.
A seguir, a ponta da vara se abaixou lenta e propositalmente. - Suspenda! Agora.
Ela se reclinou para trás devagar, colocando o peso sobre o peixe, a vara se curvando como um longo arco. Nada se moveu por um longo momento.
- Acho que estou enganchada numa rocha no fundo - ela gritou.
- É um peixe, um brutamontes monstruoso. Espere. Ele ainda não percebeu que foi pego.
De repente, a carretilha guinchou como uma alma no purgatório, e a linha sibilou dentro das águas escuras.
- Tire os dedos da linha ou ele vai machucar você! Ele vai pular.
A superfície se partiu, e o salmão surgiu em uma explosão de respingos, como um projétil de prata saindo da boca de um canhão. Hector gelou quando viu o tamanho.
A menina magrinha deles estava lutando contra um adversário superior. Ela estava se segurando com dificuldade quando a linha se desenrolou, e o peixe disparou rio
abaixo.
- Segure-se, querida! Estou indo! - ele gritou, arrancando as botas impermeáveis. E então, descalço e trajando apenas ceroulas, ele mergulhou na correnteza, atravessando-a
com braçadas poderosas. Ele chegou à margem em que ela estava e emergiu atrás dela. Ele colocou as mãos sobre seus ombros para mantê-la estável sobre o chão de pedregulhos.
- Não encoste na minha vara - ela o alertou possessivamente. - Este peixe é meu, está ouvindo?
Ela sabia que, se ele encostasse na vara, isso invalidaria a pesca. Hazel, que estivera pescando no trecho acima deles, foi alertada pelo tumulto e desceu correndo
pela margem com a vara em uma mão e a câmera na outra.
- O que está acontecendo? - gritou, mas ambos estavam ocupados demais para responder.
- Você tem de fazê-lo voltar, Cay - Hector avisou. - Há uma cascata depois da curva. Se ele chegar lá, adeusinho! Puxe-o com firmeza e devagar. Não force a linha.
Ele agora segurava Cayla pelo cinto das calças impermeáveis para evitar que fosse arrastada para as profundezas do rio. Ela apoiou a vara na dobra do braço esquerdo
e manuseou a carretilha com a mão direita para deter o peixe em fuga. O salmão começou a desacelerar e, finalmente, quando restavam apenas uma dúzia de voltas na
linha da bobina da carretilha, parou. A vara foi puxada de um lado para o outro quando o peixe sacudiu a enorme cabeça. De repente, ele se virou e voltou na direção
dela com a mesma velocidade com que havia fugido.
- Tire a linha da água - Hector lhe disse. - Rebobine!
- Você não precisa gritar no meu ouvido - Cayla protestou. - Estou rebobinando.
- Mas não está indo rápido o suficiente. Não discuta. Rebobine, garota, rebobine! Se você der uma laçada de folga, ele vai quebrar a linha como se fosse algodão.
Simultaneamente, da margem, Hazel contribuía com seus conselhos e tentava fazer os dois posarem para a câmera.
- Olhe para mim, Cayla, sorria!
- Não ouse dar ouvidos à maluca da sua mãe! Mantenha os olhos no maldito peixe! - Hector a avisou. O peixe disparou rio acima como uma estrela cadente prateada.
Hector enganchou um dos braços ao redor da cintura dela e a arrastou, respingando e tropeçando nos pedregulhos. Uivando como um par de fugitivos do hospício, eles
foram atrás do salmão. O peixe se virou de novo, e eles foram obrigados a dar meia-volta com ele e persegui-lo rio abaixo. Ele os levou para cima e para baixo. De
repente, após quase uma hora de caos, o peixe parou, e eles puderam vê-lo finalmente, parado no fundo do meio do rio, balançando a cabeça como um buldogue com um
osso na boca.
- Você o arrebentou, Cay. Ele está quase pronto para vir até você agora.
- Não estou nem aí para ele. Esse merda quase me arrebentou - ela choramingou.
- Se você falar de novo desse jeito, vou contar para a sua avó, menininha.
- Pois conte. Depois disso, não tenho medo de nada, nem mesmo da vovó Grace.
Devagar e com delicadeza, ela direcionou o salmão para perto da margem, suspendendo-o alguns centímetros do fundo com movimentos de vara, e depois abaixando a ponta
para rebobinar a sobra da linha.
- Quando ele nos vir, vai fugir pela última vez. Esteja preparada. Deixe ele puxar quanta linha quiser. Não tente segurá-lo.
Mas o peixe estava quase acabado. Sua última escapada durou menos de vinte metros, e então ela conseguiu virar a cabeça do bicho e trazê-lo de volta na direção da
margem. Na água rasa, ele de repente ficou de costas, submisso e exausto, as fendas branquiais abrindo e fechando como pulmões enquanto lutava por oxigênio. Hector
se moveu com dificuldade para a frente e deslizou dois dedos sob as brânquias do peixe e, com cuidado para não rasgar as delicadas membranas, levantou gentilmente
a cabeça dele até colocá-lo nos braços como se fosse uma criança. Ele carregou o peixe até a margem, e Cayla permaneceu ao lado dele, mergulhada até a cintura nas
águas gélidas.
- Quanto ele pesa? - ela perguntou.
- Mais de quinze quilos, mas menos de vinte - ele respondeu. - Mas não tem importância. Ele é para sempre seu. É o que conta.
Hazel se ajoelhou diante deles e os fotografou com o grande salmão no colo, os rostos radiantes de felicidade.
Hector e Cayla carregaram o peixe juntos até a parte mais funda e o viraram de frente para a correnteza para que a água fluísse através das brânquias. Ele recuperou
o equilíbrio e força rapidamente e começou a se remexer para se libertar. Cayla se inclinou para beijar o nariz frio e escorregadio.
- Adieu! - ela se despediu dele para sempre. - Vá e faça vários peixinhos para eu pescar.
Em seguida, Hector abriu os braços, e, após sacudir o rabo de um lado para o outro, o peixe mergulhou rapidamente nas profundezas. Eles riram e se abraçaram de pura
alegria.
- É estranho como coisas boas sempre acontecem quando você está conosco, Heck - Cayla disse com uma seriedade repentina.
Hazel registrou o momento com sua Nikon. Era assim que ela sempre se lembraria da filha.
Eles foram de avião até Paris e colocaram Cayla num voo comercial direto até Denver. Seguiram-se quatro longos dias de discussões com funcionários da Câmara de Comércio
Francesa a respeito de tarifas e de outros problemas relacionados à importação de gás para a França. Mesmo assim, encontraram tempo para passar uma tarde no Musée
d'Orsay, admirando Gauguins, e mais um dia inteiro no Musée de l'Orangerie com as ninfetas de Monet. Em seguida foram para Genebra participar de mais um leilão de
arte. Havia um item à venda que Hazel desejava desesperadamente - um quadro encantador de Berthe Morisot, retratando uma florista parisiense. Dessa vez, Hazel se
viu em uma disputa acirrada de lances com um príncipe saudita. No final, ela teve de se render, mas ficou furiosa.
- Você estava certo, Hector, querido. Essas pessoas são perigosas.
- Menina levada! Levada! - ele a repreendeu. - Isso não é politicamente correto, de maneira alguma.
Secretamente, ele não ficou chateado com o resultado. Tinha de haver um limite para as despesas dela, com certeza!
- Não estou fazendo objeções à cor da pele dele. É o tamanho da carteira que me deixa estupefata.
Foram necessárias algumas palavras carinhosas e muito amor para que ela recuperasse o bom humor.
A Rússia era a próxima escala na festa móvel da lua de mel. Como sempre, o Museu Hermitage, em São Petersburgo, os encantou com sua variedade de tesouros de aristocratas
malfadados, saqueados pelos revolucionários bolcheviques. No entanto, as coisas saíram um pouco dos trilhos novamente em Moscou. Nos últimos dois anos, a Bannock
Oil estivera envolvida numa disputa judicial com a gigante empresa petrolífera russa Gazprom. O projeto proposto era um empreendimento conjunto na exploração de
depósitos de gás nas águas profundas do Golfo de Anadyr, no mar de Bering. A Bannock havia gasto milhões para levar a proposta à mesa de negociações. Agora, ela
tinha ido de encontro ao icebergue da intransigência russa e afundado sem deixar rastros.
- Russos insuportáveis! Tenho de encontrar uma maneira de castigá-los - Hazel esbravejou para Hector quando se acomodaram mais uma vez no luxo tranquilizador do
salão do BBJ e decolaram rumo a Osaka. - Acho que vou ter de fazer um boicote sério ao caviar e à vodca.
- Pense em todos os lindos bebezinhos russos que vão morrer de fome se você destruir a economia russa dessa maneira.
- Deus! Você é uma manteiga derretida, sr. Cross! Ok. Eu desisto. De qualquer jeito, eu nunca gostei do mar de Bering. Ouvi dizer que faz um frio terrível lá.
Hector ligou para o comissário-chefe pelo interfone.
- Por favor, traga a costumeira vodca Dovgan com suco de limão da sra. Cross.
- Nada mau - foi a opinião de Hazel ao prová-la. - Mas não vem mais nada depois? - ela olhou para a porta da suíte Versace.
- Eu tinha algo em mente - ele admitiu.
- Ótimo! Ótimo! - ela disse.
O poderoso navio-tanque estava na rampa do estaleiro de Osaka, pronto para o lançamento. Todos os membros da diretoria da Bannock Oil, mais um número de dignatários
- incluindo o primeiro-ministro japonês, o emir de Abu Zara e o embaixador norte-americano no Japão - estavam reunidos para testemunhar o evento.
O interior do navio ainda não estava completo. Ele iria navegar com uma tripulação reduzida até Chi-Lung, o porto marítimo de Taipei, em Taiwan, onde passaria pelos
arranjos finais e a instalação dos novos tanques de carga. Um elevador levou os convidados até o topo dos andaimes da popa, onde eles se sentaram no auditório suspenso.
Eles aplaudiram quando Hazel foi até a extremidade frontal da plataforma para batizar e lançar o grande navio. De tal altura, ela sentiu como se estivesse no pico
de uma montanha, com o mundo bem abaixo dela. O substituto do champanhe que ela iria espatifar no casco de aço foi uma garrafa de quase um litro e meio de chardonnay
espumante australiano.
Quando Hector questionou a escolha do vinho, ela respondeu com um tom sério:
- Não é para beber, querido. Vamos espatifá-lo. Não quero ganhar uma reputação de perdulária.
- Extremamente comedido da sua parte, meu amor - ele concordou.
Cinquenta fotógrafos tinham suas lentes focalizadas em Hazel quando ela fez o discurso na alta plataforma. A voz dela foi ampliada pelos alto-falantes até ecoar
e reverberar no pátio abaixo, onde milhares de operários estavam reunidos.
- Este navio é um monumento em homenagem à genialidade do meu falecido marido, Henry Bannock. Ele criou e controlou a Bannock Oil Corporation por quarenta anos.
Seu apelido era Ganso. Portanto, eu batizo este navio de Ganso Dourado. Que Deus o proteja e todos aqueles que nele navegarem.
O Ganso Dourado escorregou de lado pela rampa de lançamento e, quando entrou na água, ergueu uma grande onda que balançou todas as outras embarcações na bacia. Eles
acionaram as buzinas de nevoeiro, e todos os espectadores aplaudiram com exclamações de entusiasmo. Havia mais três dias de reuniões e banquetes antes que Hector
e Hazel conseguissem escapar de novo.
Eles voaram até o templo xintoísta, que trazia lembranças auspiciosas, embaixo do Monte Fujiyama. O itinerário frenético havia deixado ambos à beira da exaustão,
portanto depois da visita obrigatória à cerejeira sagrada no arvoredo do templo, eles retornaram à suíte e tomaram banho juntos na banheira. Enquanto estavam mergulhados
nas águas quase escaldantes, Hazel alcançou o celular e o ligou.
- Quatro mensagens perdidas de Dunkeld - murmurou preguiçosamente enquanto movia os dedos dos pés nas costas dele. - O que será que minha mãe quer? Ela não costuma
ser tão persistente. Qual será a diferença de fuso?
- Estamos cerca de sete horas adiante do fuso da Cidade do Cabo. Começo da tarde.
- Certo, vou tentar retornar as ligações - Hazel discou os números e foi atendida após cerca de doze toques.
- Alô, tio John. É a Hazel - ela disse e então se calou, escutando com um espanto crescente. Então, o interrompeu.
- Tio John, por que você não deixa eu falar com ela? - a raiva dela estava aumentando acentuadamente. - Certo! Dane-se. Fale com ele.
Ela cobriu o bucal com uma das mãos.
- Ele não quer me transferir para minha mãe, e não me diz o que está acontecendo. Só quer falar com você.
Hector pegou o telefone da mão dela.
- John? Sou eu, Hector. O que está acontecendo?
Houve um silêncio no outro lado da linha, mas depois ele ouviu os elaborados e dolorosos sons de um homem adulto chorando.
- Pelo amor de Deus, John! Fale comigo.
- Não sei o que fazer. Ela se foi, e agora não há ninguém para assumir o seu lugar.
- O que está dizendo não faz sentido, John. Componha-se!
- Grace. Ela está morta. Você e Hazel têm de vir para cá. Agora. Imediatamente. Por favor, Hector. Você precisa trazê-la. Não sei o que dizer a ela. Não sei o que
fazer.
A linha ficou muda. Hector olhou para Hazel. O rosto dela estava mortalmente pálido, e os olhos azuis, arregalados, tão escuros que quase pareciam negros.
- Eu ouvi - ela sussurrou. - Ouvi o que ele disse. Minha mãe está morta.
Ela começou a soluçar como seu coração tivesse sido atravessado por uma flecha, e ela o alcançou com os braços abertos. Eles se abraçaram em meio aos vapores do
banho. Depois de um tempo, Hazel se recompôs.
- Querido, eu preciso de um pouco de tempo para me recuperar disto. Você pode falar com Peter por mim?
Peter Naughton era o capitão do BBJ.
- Diga que temos de partir imediatamente para a Cidade do Cabo. Diga para estar na pista em duas horas no máximo.
Eles reabasteceram perto de Perth, no oeste da Austrália, mas estavam de novo no ar em uma hora. A próxima e última parada para reabastecimento foi nas Ilhas Maurício.
Eles tentaram contatar o tio John repetidamente, mas ele não estava atendendo ao telefone. Hazel enviou um SMS das Ilhas Maurício, informando-o da hora estimada
de chegada na Cidade do Cabo, mas quem respondeu foi a secretária de Grace, que confirmou que haveria um carro à espera deles no aeroporto de Thunder City. Quando
aterrissaram na Cidade do Cabo, os nervos deles estavam em frangalhos. Desde a partida do Japão, tinham falado praticamente apenas sobre a morte de Grace e, no final,
Hector teve de insistir para que Hazel tomasse uma pílula para dormir. Quando pousaram, ela ainda estava um pouco zonza devido ao remédio. Hector nunca a tinha visto
tão cansada e abatida.
Assim que se sentaram no Maybach e seguiram pelas montanhas em direção a Dunkeld, Hazel tentou extrair informações do motorista. No entanto, se ele sabia de algo
além do fato de a sra. Grace estar morta e do corpo ter sido levado por uma ambulância, não estava dizendo. Claramente alguém havia mandado que ficasse de boca fechada,
e era óbvio que esse alguém era o tio John. No final, ele deixou escapar uma pequena informação.
- Mas pelo menos a polícia já foi embora, sra. Hazel.
Hazel se agarrou a essa informação e tentou extrair mais dele, mas o motorista parecia aterrorizado e se retraiu para trás de uma barreira de fingida ignorância.
No final, até mesmo Hazel foi forçada a desistir de importunar o rapaz.
O tio John estava à espera deles na varanda da casa. Quando desceu as escadas para cumprimentá-los, eles mal o reconheceram. Parecia ter envelhecido uns vinte anos.
O rosto tinha uma expressão devastada. Hazel não se lembrava que os cabelos dele eram tão brancos. Ele se movia como um homem muito velho. Ela o beijou rapidamente,
e eles o fitaram nos olhos.
- O que está acontecendo, tio John? - ela perguntou. - Por que você não me diz o que aconteceu com a minha mãe? Sei que não estava doente. Como pode ter morrido?
- Aqui fora não, Hazel. Vamos para dentro, e eu conto o que sei.
Quando chegaram à sala de estar, John a levou até um dos sofás.
- Por favor, sente-se. O que tenho a dizer é chocante. Não consigo compreender direito.
- Não consigo mais esperar. Conte logo!
- Grace foi assassinada - ele soltou de uma vez e começou a soluçar.
Ele se deixou cair no assento ao lado dela, seu corpo inteiro convulsionava de dor. A expressão no rosto de Hazel mudou, e ela o abraçou para tentar confortá-lo.
Ele se agarrava a ela como uma criança desorientada.
- Grace era minha única irmã. Era tudo que eu tinha, e agora se foi.
- Conte o que aconteceu. Quem a matou? - Hazel estava sendo gentil com ele, controlando o próprio sofrimento.
- Não sabemos. Um intruso. Ele envenenou os cães e, de algum modo, conseguiu causar um curto-circuito no sistema de alarme. A seguir, entrou no quarto dela. Eu estava
dormindo a dois quartos de distância e não escutei nada.
Hazel o encarava, muda. Deixou que Hector fizesse a próxima pergunta.
- O que ele fez, John? Estrangulou-a? Matou-a a pauladas?
John balançou a cabeça.
- É horrível demais - o velho abaixou a cabeça e soluçou.
- Você tem de nos dizer, John - Hector insistiu.
John ergueu a cabeça devagar e a voz dele era tão baixa e trêmula que eles mal conseguiam entender o que estava dizendo.
- Ele a decapitou. Cortou a cabeça dela - ele disse.
Hazel engasgou.
- Meu Deus, não! Por que alguém faria uma coisa dessas?
- Ele roubou alguma coisa? - Hector perguntou bruscamente. O tom de voz dele foi duro e frio.
John balançou a cabeça.
- Então você está dizendo que ele não roubou nada? Ele não levou nada da casa? - Hector insistiu.
John levantou a cabeça e olhou diretamente para ele pela primeira vez.
- Não levou nada exceto... - fez mais uma pausa.
- Vamos, John! Diga. O que ele levou?
- Ele levou a cabeça da Grace.
Até mesmo Hector perdeu a fala por um longo momento.
- Ele levou a cabeça dela? A polícia a encontrou?
- Não. Desapareceu. Foi por isso que não consegui contar antes. É horrível demais.
Hector virou o rosto para encarar os olhos de Hazel. Ela entendeu o que a expressão no rosto dele queria dizer e ficou de pé, cobrindo a boca com uma das mãos, encarando-o.
- Jesus Cristo! - ele disse baixinho. - É a Besta novamente!
Ela tirou a mão da boca.
- Cayla! Meu Deus, salve o meu bebé! Cayla! - ela caiu de joelhos e enterrou o rosto nas mãos em concha. - Temo tanto pelo meu bebê. Preciso ir até ela.
Hector colocou um dos braços ao redor dos ombros dela e a colocou de pé. Ele olhou para John no sofá.
- Temos de ir, John. Sinto muitíssimo, mas, os vivos têm prioridade sobre os mortos. Cayla corre um perigo mortal. A menos que consigamos fazer tudo para prevenir,
a mesma coisa pode acontecer a ela.
Ele se encaminhou para a porta, ainda conduzindo Hazel.
- Vocês não podem me deixar sozinho. Por favor, fiquem comigo até pelo menos depois do funeral - John foi atrás deles chorando.
Hector não tinha nada a dizer. Ele e Hazel desceram os degraus da entrada correndo até onde o Maybach ainda estava estacionado. Ele colocou Hazel carinhosamente
no banco de trás e se sentou ao lado dela abraçando-a. Depois, ordenou bruscamente ao chofer:
- Leve-nos de volta ao aeroporto imediatamente!
Assim que estavam voando, fizeram a primeira chamada no viva-voz. Para o celular de Cayla, mas foi diretamente encaminhada para a caixa de mensagens. A próxima ligação
de Hazel foi para o dormitório de Cayla na Faculdade de Veterinária em Denver. Ela foi atendida por uma animada jovem voz feminina.
- Cayla Bannock? Certo! Não a vi hoje, mas ela deve estar por perto. Pode esperar enquanto tento encontrá-la?
Foram sete minutos de uma espera angustiante até que a menina retornasse à linha.
- Ela não está na sala comunitária. Bati na porta do quarto dela mas ninguém respondeu. Nenhuma das outras meninas do dormitório a vê desde a segunda. Você pode
ligar para o secretário do bloco principal? Vou passar o número.
Eles fizeram mais quatro ligações até localizarem Simon Cooper na Escola de Medicina.
- Alô, sra. Bannock. Perdão! Esqueci que agora está casada. Alô, sra. Cross.
- Simon, preciso falar com a Cayla. Você sabe onde ela está?
- Ah, não nos vemos desde a noite de sexta-feira. Estou estudando para as próximas provas. Cayla não está muito contente comigo. Diz que estou sendo negligente com
ela. Ela não me ligou e não atende as minhas chamadas. Acho que estou sendo punido. Eu presumi que ela estivesse com vocês em Houston por causa do fim de semana
do feriado.
- Não, Simon, não estamos em Houston. Estamos viajando. Cayla está desaparecida. Por favor, tente encontrá-la. Quando conseguir, por favor, peça para ela ligar urgentemente
para mim.
- Claro que sim, sra. Cross.
Hazel desligou, e ela e Hector se olharam.
- Não podemos tirar conclusões precipitadas - ele a tocou no braço.
- Não - ela concordou. - Deve existir uma explicação completamente lógica. Vou ligar para a Agatha em Houston.
- A secretária de Hazel atendeu sem demora. Tinha reconhecido o número de Hazel no visor.
- Boa noite, sra. Cross - disse no costumeiro tom de voz profissional. - Ou talvez não seja noite onde a senhora está.
Hazel não tinha tempo nem vontade para trocar gentilezas.
- Agatha, você viu Cayla?
- Não, infelizmente não. Em nenhum evento desde o casamento.
- Por favor, tente encontrá-la, e diga a ela para entrar em contato comigo imediatamente.
Ela desligou e olhou para Hector. Os olhos dela estavam se enchendo de lágrimas.
- Ela desapareceu - disse, desolada. - E aqui estamos nós, presos e impotentes nesta maldita máquina imbecil sobre o Atlântico. O que podemos fazer?
- Paddy está em Vancouver. Participando de um seminário. Ele me passou o número.
Ele fez uma busca rápida na lista de contatos do celular.
- Aqui está - ele discou o número, e em alguns instantes o sotaque familiar de Paddy ecoou dos alto-falantes.
- O'Quinn falando. Quem é?
- Paddy, é o Heck. Temos um alerta vermelho.
- Estou escutando. Diga o que é, Heck.
- A mãe da Hazel foi assassinada na Cidade do Cabo. O corpo foi decapitado, e a cabeça, levada pelo assassino. A coisa toda cheira à Besta. Agora é Cayla que parece
ter desaparecido da faculdade em Denver. Estamos voltando o mais depressa possível, mas acabamos de decolar da África do Sul. Você tem de pegar um voo charter para
Denver, Colorado. É onde Cay foi vista pela última vez há quatro dias. Vá para lá e a encontre, Paddy!
- Imediatamente, chefe - disse Paddy. - A primeira coisa a ser feita é declara-lá desaparecida. Quem foi a última pessoa que a viu?
- Até onde sabemos, o namorado, Simon Cooper - Hector passou o número de telefone dele para Paddy.
- Diga à Hazel para não se preocupar. Nunca ajuda.
- Ligue de hora em hora, Paddy, mesmo que não haja novidades.
Em oito horas, Paddy se encontrou com o Chefe de Polícia de Denver. Um alerta geral havia sido emitido em relação ao caso de Cayla. Todas as estações de rádio e
TV locais estavam transmitindo apelos por informações e exibindo uma foto de Cayla. Os agentes da polícia tinham sido enviados para interrogar Simon Cooper e todos
os demais alunos da classe de Cayla e do dormitório.
- Nada concreto ainda, Hector. Mas todo mundo está trabalhando no caso. Cayla não passou a noite do dormitório nos últimos três dias e não vai às aulas desde a segunda-feira.
Acabei de falar com o Chefe de Polícia de Houston. Ele conhece bem a Hazel. Tem grande respeito por ela. Vai mandar o pessoal dele checar todos os lugares frequentados
pela Cayla.
Assim que o BBJ aterrissou em Atlanta para lidar com a alfândega e o departamento de imigração, Hector ligou para Paddy.
- Precisamos tomar uma decisão, Paddy. Vamos para Houston ou Denver? Qual é seu conselho?
- Meia hora atrás recebemos uma pista da estação de TV local. Uma pessoa ligou e disse que acha que reconheceu a Cayla pela foto. Acha que viu uma menina parecida
com ela num voo de Denver a Houston há dois dias. Portanto, a busca principal muda para Houston.
- Por favor, Deus, permita que seja ela - Hazel suspirou. - Diga ao Peter para preparar um plano de voo para Houston. Vou ligar para a Agatha providenciar um carro
para nos pegar no aeroporto. Vamos chegar depois da meia-noite.
Ambos conseguiram algumas horas de sono entrecortado na última etapa do voo, mas estavam exaustos quando finalmente chegaram à propriedade dos Bannock. Todas as
luzes da casa estavam acesas, e Agatha foi ao encontro deles na porta de entrada.
- Alguma novidade? - Hazel perguntou.
- Sinto muito, sra. Cross. Não fiquei sabendo de nada desde que nos falamos da última vez. Eles estão tentando entrar em contato com todos os passageiros do voo
em que a Cayla pode ter sido vista.
Assim que chegaram à suíte, ligaram novamente para Paddy.
- Nada de novo no momento - disse a Hector. - Por que vocês dois não tentam dormir um pouco? Parece que os próximos dias serão frenéticos. Ligo de novo assim que
tiver alguma novidade para contar. Prometo.
- Tudo bem. É o que faremos, Paddy.
Ainda dormindo, Hector esticou o braço em direção a Hazel, mas embora o lençol ainda retivesse o calor do corpo dela, o lugar na cama estava vazio. Ele despertou
por completo imediatamente e alcançou a pistola que ficava sempre na mesa de cabeceira.
- Hazel! - disse energeticamente.
- Estou aqui.
Ela estava de pé ao lado da janela.
- Venha para a cama - ele pediu.
- Achei que tinha ouvido um barulho.
- O quê? Não ouvi nada.
- Você estava dormindo - ela disse. - Talvez eu estivesse sonhando.
- Venha para a cama, meu amor.
- Tenho que ir ao banheiro, estou apertadíssima.
Ela atravessou o quarto, a silhueta esguia em contraponto à luz do luar que vinha das janelas. Ela entrou no banheiro e acendeu a luz. Ela se deteve, surpresa. Havia
algo sobre a bancada de mármore que não estava lá antes dela ir para a cama. Era um objeto grande, com um pano branco e dobrado sobre ele. Ela atravessou o aposento
devagar e cautelosamente, e então viu que havia um envelope apoiado no pacote. Estava gravado em relevo, do tipo que normalmente contém um cartão ou uma mensagem
de quem deu o presente, de um amante.
- Hector! - ela suspirou em voz alta. - Ele me conhece tão bem, sabe como amo seus presentes. Meu querido está tentando me confortar.
Ela pegou o envelope. Não estava endereçado, e a aba não estava selada. Ela o abriu e retirou o cartão que estava dentro, e então olhou para ele perplexa. Não estava
escrito em inglês, mas em alguma caligrafia oriental.
- Árabe? - ela não tinha certeza.
Ela olhou para o objeto coberto e a seguir pegou uma das pontas do tecido. Ela afastou o pano para o lado, revelando duas grandes redomas de vidro, do tipo em que
espécimes de laboratório são preservadas. Ainda perplexa, abaixou-se para examinar o conteúdo das redomas de perto.
E então, ela gritou. Foi a expressão selvagem e profunda de uma alma angustiada. Ela vacilou para trás e caiu sobre o piso de ladrilhos brancos. Com as mãos e os
joelhos, arrastou-se para o canto mais afastado do recinto, e se encolheu como um animal selvagem em uma jaula. Um jorro quente de urina escorreu pelas suas pernas.
Ela abriu a boca para gritar de novo, mas uma poderosa enxurrada de vômito amarelo saiu de sua boca, e cascateou até o chão de ladrilhos.
O grito dela havia eletrizado Hector. Ele saltou para fora da cama e agarrou a pistola. Enquanto atravessava o quarto, carregou o pente da arma. Ele invadiu o banheiro
apontando a arma com as duas mãos. Agachou-se na entrada bloqueando o acesso ao quarto. Ele a viu encolhida no canto, e sentiu o fedor recente de vômito e urina.
Ficou enjoado de pavor.
"Ela está machucada", pensou, "ferida". Foi rapidamente até ela e se ajoelhou ao seu lado.
- Hazel, o que aconteceu? Havia alguém aqui? Por que você está tão assustada?
Ele tentou colocar uma das mãos sobre ela, que se encolheu evitando o toque, balançando a cabeça e apontando para a prateleira sobre a bancada. Ele se virou depressa,
com a arma apontada e o dedo sobre o gatilho preparado para um disparo rápido.
E então ele viu as duas redomas. Ele demorou um pouco para compreender o que estava vendo. Uma cabeça humana decepada flutuava na redoma preenchida por líquido conservante
incolor. No lado esquerdo, estava a cabeça de Grace Nelson. Os olhos estavam fechados, e a pele dela estava amarela devido à idade, caída e estufada. As finas mechas
prateadas de seus cabelos estavam grudadas no rosto como algas marinhas. Ela parecia muito velha, como se tivesse morrido há cem anos.
Na redoma à direita, estava a cabeça de Cayla Bannock. Os olhos estavam abertos. Pareciam estar olhando diretamente para ele. Não eram mais azuis cintilantes. Estavam
tão apagados e impassíveis como pedregulhos. Os lábios estavam ligeiramente entreabertos, e os dentes brancos mostravam o vestígio de um sorriso cínico. O tom da
pele era pálido, mas a textura era lisa e perfeita. Os cabelos flutuavam ao redor do rosto como uma nuvem dourada. Ela parecia ter acabado de despertar de um sono
profundo. Ele sabia que se continuasse a olhar para sua beleza encantadora por mais um instante, seu coração ficaria partido.
Ele se agachou e pegou Hazel nos braços, carregando-a até a cama e a colocou sobre ela. Ele alcançou o interfone ao lado da cama e ligou para Agatha. Ela atendeu
quase imediatamente.
- Diga para os seguranças revistarem a casa e o terreno em busca de um intruso. Chame a polícia. Houve um assassinato. E precisamos de um médico para Hazel - ele
fez uma pausa. - É uma emergência.
Ele rasgou a camisola de Hazel e limpou o rosto e o corpo dela com uma toalha úmida. Depois, cobriu-a com o edredom e foi para baixo das cobertas com ela, tomando-a
nos braços. Ela se agarrou a ele. Seu corpo inteiro tremia, e ela batia os dentes. Soluços terríveis, perturbadores, saíam de dentro dela. Ele a abraçou e suspirou
palavras de ternura até a chegada do médico.
- Minha esposa perdeu a filha. Foi um choque terrível - Hector explicou.
O médico aplicou uma injeção que a jogou num buraco profundo de inconsciência.
- Quero levá-la para a minha clínica e colocar uma enfermeira de plantão dia e noite até que ela se recupere totalmente - ele disse.
- Ótimo! - Hector concordou. - Há coisas que acontecerão aqui em que ela não deve ser envolvida... - ele interrompeu o que estava dizendo ao ouvir as sirenes da
polícia acelerando pelos cercados em direção à casa.
- Vou chamar uma ambulância imediatamente.
Após Hazel ser carregada de maca para o térreo, Hector beijou seu rosto inconsciente e observou a ambulância ir embora. Em seguida, voltou ao banheiro e cobriu as
duas cabeças patéticas com o pano branco. Abriu o envelope e leu a mensagem em árabe do cartão.
"A dívida de sangue são quatro. Duas cabeças e mais duas a serem cortadas antes que a dívida seja quitada."
Sete dias depois, a polícia de Denver resgatou o corpo decapitado de Cayla Bannock de um bueiro de escoamento de águas pluviais, nos fundos de uma arena esportiva
da universidade. Pessoas haviam ligado reclamando do cheiro. O cadáver estava em um estágio avançado de decomposição. Os agentes funerários o colocaram dentro de
um sarcófago de mármore branco, selado com bainhas de chumbo, juntamente com as cabeças embalsamadas de Cayla e da avó. Ambos os nomes foram gravados na tampa. Um
voo charter o levou até Steam Boat Springs, e um carro fúnebre o carregou até o mausoléu dos Bannock na Montanha da Lupa. No mesmo dia, na África do Sul, os restos
mortais de Grace Nelson foram cremados, e o tio John espalhou as cinzas pelo vinhedo de Dunkeld.
Apenas um punhado de familiares e amigos próximos compareceram ao enterro na Montanha da Lupa. O sarcófago foi depositado sobre um pedestal de mármore cor-de-rosa
à direita do pai de Cayla. O padre que havia batizado Cayla realizou a cerimônia simples. Não houve discursos. Depois, cada um dos presentes colocou uma rosa vermelha
sobre a tampa do caixão e saiu em fila. Simon Cooper estava entre eles, chorando descaradamente.
- Jamais vou conhecer uma menina como ela. Íamos nos casar e ter uma casa e filhos. Ela era maravilhosa - ele interrompeu. - Desculpe, sra. Bannock, não queria dar
show.
- Estou tão contente que tenha vindo, Simon - ela disse.
Quando Hector e Hazel ficaram a sós, eles desceram pelo gramado e se sentaram no banco de pedra. Hector olhou para o céu. Hazel sorriu com tristeza.
- Infelizmente Henry não vai aparecer - ela disse. - Não tem tempo para ficar voando por aí na forma de ganso. No momento, está ocupado demais com a Cayla e a Grace.
- Você leu meus pensamentos. Estava esperando pelo Henry - Hector admitiu. - Acho que é a primeira vez que vi você sorrir desde que tudo começou.
- Minhas lágrimas secaram - ela lhe disse. - A hora do choro ficou para trás. Vamos deixar Henry e Cayla em paz por enquanto para que possam se acostumar de novo
um ao outro.
Ela se levantou e deu a mão para ele, e os dois começaram a descer pelo caminho da montanha até a casa ao lado do lago. Enquanto caminhavam, ele não parava de olhar
de lado para o rosto dela.
"Ela não é como nenhuma mulher que já conheci", ele pensou. "As outras teriam ficado completamente destruídas por uma perda tão cruel. Mas é quase como se tivesse
ganhado forças e determinação. Consigo ver agora como foi que ela realizou tantas conquistas num curto período de tempo. Ela é uma lutadora e nunca desiste. Ela
nunca sucumbe à autopiedade. É possível que ela vá viver de luto por Cayla para sempre, mas jamais vai deixar que isso a debilite. Ela perdeu o Henry em um momento
crítico. Ela ainda sente a falta dele, mas continuou lutando sozinha e assumiu seu manto lendário. Sinto-me profundamente honrado por ter recebido o presente que
é o seu amor. É a minha armadura. Com ela ao meu lado, eu nunca mais vou conhecer a solidão."
Nenhum dos dois estava com apetite para jantar. Eles mandaram os pratos de volta para o chef na cozinha. Hector abriu uma garrafa de claret, e eles a levaram, juntamente
com as taças, para a beirada do píer e se sentaram com as pernas balançando sobre a a água. Beberam o vinho em silêncio e observaram a lua surgir por sobre o lago.
Hazel foi a primeira a falar.
- A polícia ainda não conseguiu rastrear a pessoa, ou as pessoas, que colocaram as cabeças das minhas pobres queridas onde pudéssemos encontrá-las - ela suspirou.
- Não é surpreendente - Hector retorquiu. - A segurança do seu rancho em Houston não é muito rigorosa. Há, literalmente, centenas de prestadores de serviço com acesso:
equipes de jardinagem contratadas, pessoal de entrega trazendo provisões, empregados contratados diariamente, leitores de relógios de água e eletricidade, encanadores,
pintores e eletricistas e todos os demais.
- Mas como Adam pode ter tido acesso a eles estando na África, a tantos milhares de quilômetros de distância? Com certeza essas pessoas são todas norte-americanas.
- Mais: latinas, europeias, asiáticas, africanas e imigrantes de vinte nacionalidades diferentes... incluindo somalis da Puntlândia.
Ela se virou para ele.
- Somalis? Como isso é possível?
- O Canadá tem cerca de 250 mil somalis que entraram legalmente no país, e a fronteira com os Estados Unidos é amplamente aberta. Seu país natal, a África do Sul,
está cheio de refugiados do norte do continente. Não apenas zimbabuenses e malavianos, mas quantidades enormes de nigerianos e somalis. A maioria dos somalis é da
Puntlândia, e ainda estão sob a influência de Tippoo Tip. Se a polícia chegar a capturar os envolvidos nos assassinatos da Grace e da Cayla, eles serão peixes tão
pequenos que nem sequer saberão quem encomendou a matança - Hector fez uma pausa e colocou um dos braços ao redor dos ombros de Hazel. - Então, meu amor, como vê,
este não é o final da história. Adam só está começando. Ele tem milhares de subordinados para enviar contra nós. É inútil cortar os tentáculos da Besta. Elas crescem
de volta rapidamente. Tenho de voltar e cortar a cabeça dela.
- Você não vê que é isso exatamente que ele o está forçando a fazer? É por isso que deixou aquele aviso ultrajante dizendo que iria cortar mais duas cabeças. Você
não pode se deixar levar pela armadilha dele. Não pode ir - ela colocou uma das mãos no antebraço dele e falou num tom sério e passional. - Se eu perder você, perderei
tudo.
- Não temos escolha - ele lhe disse.
- Se você vai, então eu vou junto - o tom de voz dela foi definitivo, não deixando espaço para argumentos. Um curto silêncio caiu sobre eles.
- Não, meu doce. Não posso permitir que venha. Você sabe o que aconteceu da última vez. Estaremos de novo no terreno da Besta.
- Mande o Paddy então. É para isso que ele é pago. É a especialidade dele - ela disse.
- Jamais poderia mandar um outro homem fazer algo por eu ter medo de fazê-lo. Se eu não for, então a Besta virá atrás de nós, conforme ameaçou.
- Sim, esta é a melhor solução. Deixe que ela venha. Deixe que venha ao nosso encontro em nosso território, para variar. Desta vez, você pode se preparar.
Hector a encarou sob o luar.
- Sim! - disse pensativo, e a seguir balançou a cabeça. - Não, ela jamais virá em pessoa. Mandará assassinos contratados, exatamente como fez antes. Existem hordas
de fanáticos religiosos que podem ser convocadas por ele.
- Então temos que atraí-lo com algo irresistível - ela disse baixinho -, algo tão tentador que ele não será capaz de resistir.
- Está sugerindo lançar uma isca? É uma ideia inteligente - ele assentiu. - Mas o que seria capaz de trazê-lo pessoalmente para o mundo exterior?
- O Ganso Dourado - ela respondeu.
- Meu Deus! Você tem razão - ele murmurou. - Sabemos que ele é ganancioso. Sabemos que é vingativo. Podemos deduzir que ele está também inflado de poder e vaidade
devido à nova posição: xeique do clã. O Ganso Dourado pode ser a única coisa que fará a Besta sair da caverna.
Agora que tinham algo tangível para distraí-los do desespero do sentimento de luto, tanto Hector quanto Hazel estavam reabastecidos de energia e determinação. Quando
Hector conseguiu entrar em contato com Paddy, ele estava no portão de embarque do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, à espera do seu voo para Dubai e o Oriente
Médio.
- Mudança de planos, Paddy. Queremos você de volta ao quartel-general da Bannock Oil em Houston o mais rápido possível.
- Por Deus, Heck! Algo o trouxe de volta à vida. Posso sentir na sua voz. Você não é mais o desgraçado triste e lamentoso de quem me despedi há alguns dias.
- Preparar, apontar, disparar, meu filho! Nós dois estamos mais uma vez a caminho da guerra - Hector lhe disse, e seu tom de voz foi claro e incisivo.
Hector e Hazel tinham debatido entre Abu Zara ou Tapei como base da operação. No final, concordaram que ambos os locais eram próximos demais do covil da Besta, e
suscetíveis à infiltrações dos agentes de Adam. Por fim, resolveram usar a Bannock House, a sede da corporação em Houston. A Bannock House ficava na Dallas Street,
perto do Hyatt Hotel. O 25º andar no topo do edifício tinha vista para o parque. O andar inteiro era domínio pessoal de Hazel. A segurança era rigorosa, as instalações,
abrangentes, e o conforto, hedonista. Hazel havia ponderado sobre um codinome para a operação. Ela finalmente decidiu por Operação Lampos. Em grego, a palavra significava
luz brilhante. Lampos não era apenas o nome do cavalo de guerra de Hector no clássico mito de Virgílio e Homero, mas também o escolhido por Cayla para a sua égua
palomina predileta.
- O nome tem uma conexão forte com você e Cayla - Hazel explicou. - Mas apenas para quem os conhece intimamente.
- Operação Lampos, gostei. Temos um nome. Agora precisamos de homens. Paddy deve chegar amanhã. Então poderemos discutir quem serão os outros.
Quando Hector propôs a Operação Lampos a Paddy, ele escutou sem fazer comentários e, mesmo quando Hector terminou, ele não respondeu imediatamente. Ele continuou
a rabiscar no bloco de anotações que tinha diante de si. Por fim, deixou o lápis cair e ergueu os olhos.
- O Ganso Dourado? De quem foi a ideia? - ele perguntou, e em seguida seu olhar se voltou para Hazel, que tinha permanecido sentada em silêncio à ponta da mesa.
- Tem um quê feminino.
- Você não gosta da ideia, Paddy? - ela perguntou.
- Amo. É simplesmente brilhante - ele gargalhou alegremente.
- Quem precisamos recrutar, Paddy? - Hector perguntou.
- Quanto menos, melhor - Paddy respondeu, ainda rindo. - Para princípio de conversa, Dave Imbiss. Ele é o nosso nerd de TI e ultraeficiente no planejamento e aquisição
de equipamentos e materiais. Depois, precisamos da nossa velha cara-metade, Tariq. Precisamos de um guerreiro, de um falante nativo de árabe que possa pensar como
a Besta, alguém que conheça o inimigo e o campo de batalha intimamente.
- Onde Tariq está agora? - Hector perguntou. - Você pode entrar em contato com ele?
Paddy assentiu.
- Sim. Tariq e eu criamos um sinal de contato. Ele ainda está escondido na Puntlândia, mas posso tirá-lo de lá rapidamente.
- Muito bem. Até aqui somos eu, a Hazel, você, David Imbiss e Tariq. De quem mais precisamos a bordo?
- Isso dá para o começo. Eu vejo as coisas assim: nós quatro e, claro, a Hazel, bolamos o plano básico. Enquanto vamos aperfeiçoando, talvez seja preciso chamar
especialistas para lidar com os detalhes. Quanto tempo temos até que o Ganso Dourado esteja preparado para partir?
- A primeira viagem levando um carregamento de gás natural de Abu Zara está agendada para o início de outubro - Hazel respondeu.
- Daqui a quatro meses e meio. Temos de nos mexer depressa.
- Traga Dave e Tariq para cá o mais depressa possível - Hector ordenou.
Dave Imbiss e Tariq Hakam chegaram a Houston quatro dias depois em voos provenientes de Paris e Dubai. Uma hora após a chegada deles, a primeira sessão de planejamento
da Operação Lampos teve início no último andar da Bannock House. Hector resumiu o conceito básico para os dois:
- O objetivo desta operação é atrair Adam para fora da fortaleza do Oásis do Milagre. Vai ser relativamente fácil atrair seus seguidores, mas se queremos colocar
um fim a essa rixa de sangue que ele está travando contra nós, então temos de tirá-lo de lá - ele olhou para os rostos ao redor. Todos estavam concentrados e sérios.
- Sabemos que a campanha de pirataria conduzida contra todo tráfego marinho estrangeiro no Oceano Índico está sendo orquestrada e controlada pelo xeique Adam Tippoo
Tip. A campanha se intensificou e se tornou mais sofisticada desde que Adam sucedeu o avô como xeique.
Hector pressionou o botão de controle na mesa, e o telão na parede à frente deles se acendeu exibindo fileiras de datas e números.
- Estas são as estatísticas dos números de ataques piratas no último ano do reinado do avô. Como podem ver, houve 28 ataques a navios, e todos eles ocorreram no
Golfo de Adem. Apenas nove foram bem-sucedidos, mas eles arrecadaram uma quantia de resgates estimada em 120 milhões de dólares - ele mudou de página no telão. -
Estas são as estatísticas dos últimos doze meses.
David Imbiss soltou um pequeno assovio de surpresa.
- Você tem razão de assoviar, Dave. 120 ataques, dos quais 91 obtiveram êxito. A quantia de resgates recolhida está estimada em 1,25 bilhões de dólares.
Eles ficaram perplexos e calados.
- Sim, é muito dinheiro. Quase tudo vai para os cofres de Adam. O que é interessante é que os barcos de ataque de Adam agora estão operando até mil milhas náuticas
ao largo da praia. E estão agindo assim com impunidade. Com todo o dinheiro que tem, Adam agora pode comandar navios-mãe para sua equipe de ataque. Sabemos por meio
do Tariq que ele está utilizando traineiras capturadas russas e taiwanesas para esse propósito. Todas elas possuem equipamentos eletrônicos sofisticados, mas o que
é mais significativo é que ele construiu campos de pouso para helicópteros nos conveses. Ele agora tem dois, possivelmente três, helicópteros Bell Jet Ranger em
serviço. Isso permite que esquadrinhe as águas num raio de centenas de quilômetros para avistar tanto navios de guerra perigosos quanto alvos mercantis fartos e
suculentos.
- Por que a marinha das nações poderosas do Ocidente não destroem os navios de ataque quando os encontram? - perguntou Dave.
- Há dois motivos - Hector respondeu. - Primeiro, não é fácil encontrar um barco pequeno em centenas de milhares de quilômetros quadrados de oceano. Para fazer isso
de maneira eficaz, os custos dos recursos de vigilância seriam proibitivos. E, mesmo que conseguissem encontrá-los, teriam de pegá-los em flagrante no ato da pirataria.
Eles não podem simplesmente explodir os navios do Adam na água enquanto estão ancorados na Baía de Gandanga. Eles são cerceados pelas complexas leis marítimas e
as sensibilidades aguçadas de muitos dos países estridentemente socialistas que estão mais preocupados com os direitos humanos dos piratas capturados no ato de sequestrar
navios em alto-mar do que com suas vítimas. Eles temem que um pirata capturado possa não receber um julgamento justo, na verdade, que possa ser executado no ato.
É tão comovente e politicamente correto da parte deles. Enquanto isso, Adam causa um pandemônio pelos oceanos e coloca bilhões de dólares em seu cofrinho.
- As tripulações dos navios mercantes não carregam armas, em acordo com os termos das apólices de seguro dos donos, que os proíbem de se armarem, e com o próprio
senso de auto-preservação que lhes diz que, se atirarem primeiro, os piratas irão revidar e com um poder superior de fogo. Para Adam, a festa é contínua, Natal e
Réveillon todos os dias da semana - Hector deixou que refletissem sobre isso por um momento.
- Então, o que vamos fazer a respeito disso? Dave e Tariq, vocês perderam o que foi decidido até aqui, portanto, vou repassar para vocês.
Sem se estender, ele explicou o que esperavam conseguir com a Operação Lampos.
- Como sabem, minha mulher sofreu com o assassinato e a mutilação tanto de sua mãe quanto da única filha. Tariq também perdeu sua mulher, Daliyah, e o filho nas
mãos dos trogloditas de Adam. Adam colocou minha cabeça e da minha mulher a prêmio, e jurou diante de Alá que irá nos matar, assim como matou os outros membros inocentes
das nossas famílias. Buscamos uma retaliação pelos mortos, e segurança para nós mesmos e para os outros homens e mulheres cumpridores da lei que navegam os oceanos.
Fomos convencidos de um falso sentimento de segurança, acreditando que estávamos protegidos pela distância de seu pequeno império na Puntlândia e protegidos também
pelo conjunto de leis desta terra em que vivemos. Adam mostrou que tem o poder de nos atacar onde quer que esteja. Não nos deu nenhuma alternativa que não seja matá-lo
antes que nos mate.
Todos murmuraram em concordância.
- Após muita discussão, foi decidido que não devemos montar uma expedição contra Adam em sua fortaleza no Oásis do Milagre. Já tentamos uma vez e perdemos a maioria
dos nossos homens de bem, incluindo Ronnie Wells. Tariq teve sorte de sobreviver à experiência - Hector sorriu para ele. - Como foi a cicatrização da ferida?
- A cicatriz é bem bonita - Tariq disse num tom sombrio. Ele não sorria mais com facilidade.
- Se formos para a Puntlândia, haverá imponderabilidades demais. Temos de trazer Adam e seu tenente Uthmann Waddah para o campo aberto. Temos de colocar uma isca
e atrair os dois para uma armadilha.
Até mesmo Paddy, que tinha estado presente nas primeiras discussões, ficou intrigado ao ouvir tudo explicado em detalhes tão ordenados. Estava assentindo em concordância
com os outros ao redor da mesa.
- Nós ponderamos sobre qual seria o tipo de isca a que Adam não seria capaz de resistir. Minha mulher sugeriu que usássemos o Ganso Dourado.
Tanto Dave como Tariq pareciam perplexos. Paddy falou em nome deles.
- Acho que você deixou Dave e Tariq atordoados, Heck. Sei do que está falando. A segurança no estaleiro de Osaka é de minha responsabilidade, mas você terá de explicar
para eles.
Hector se virou para Hazel.
- O Ganso é sua cria. Gostaria de falar sobre ele para nós, Hazel?
- Ok, deixem-me explicar - ela disse ansiosa. - Na verdade, é bem simples. A Bannock Oil está no processo de construir uma das maiores e mais valiosas embarcações
que já navegou pelos mares. É um super navio-tanque para o transporte de gás natural. Ele já foi inaugurado e rebocado para Taiwan para a instalação dos equipamentos
finais. Até aqui, conseguimos manter o projeto em segredo, por isso que nem vocês estão cientes. O navio recebeu o nome de Ganso Dourado. Ele foi assegurado em mais
de um bilhão de dólares.
Até Paddy parecia profundamente impressionado. Era a primeira vez que alguém lhe revelava as cifras.
- Agora o Hector vai contar mais sobre os nossos planos.
- Uma vez que o Ganso Dourado esteja pronto para a sua viagem inaugural, vamos organizar uma campanha de divulgação enorme, incluindo a cobertura do Al Jazeera em
árabe, que deve chegar diretamente ao Adam. A primeira viagem do navio-tanque será até a França, partindo dos novos terminais de gás de Abu Zara. O Ganso Dourado
é grande demais para atravessar o Canal de Suez, portanto não pode seguir a rota através do Golfo de Adem, debaixo do nariz de Adam. No entanto, já discutimos o
fato dele utilizar navios-mãe como base para os barcos de ataque e os helicópteros de busca, portanto, sabemos que ele tem a capacidade de operar os barcos de uma
distância de até mil e duzentos milhas náuticas do grande Chifre da África. A rota que o Ganso Dourado tem de seguir para chegar ao Cabo da Boa Esperança, a partir
do estuário do Golfo Pérsico, o deixará a cerca de trezentas milhas náuticas da base dele na Baía de Gandanga. Vamos cuidar para que o Adam fique sabendo quando
e onde o Ganso Dourado vai passar por sua base. Ele saberá qual é o valor do navio e quem são os donos. A oportunidade será irresistível. Ele vai ter que atacar,
e nós estaremos prontos para enfrentá-lo.
Eles refletiram sobre a enormidade do plano em silêncio. A seguir, Tariq falou em voz baixa.
- Adam não irá. Os homens dizem que ele se tornou mais cauteloso devido à riqueza e ao poder. Ele não vai se colocar em perigo. Ele é um suíno covarde que extrai
prazer da tortura e do assassinato de mulheres e crianças, mas não assume mais riscos pessoalmente.
- Você acha que ele não vai atacar o Ganso Dourado? - Hazel perguntou.
- Não, não vai. Porque ele é um covarde. Tampouco Uthmann Waddah, pois como o Hector sabe muito bem, ele tem medo do mar. Adam enviará o tio, Kamal Tippoo Tip, que
é o comandante da flotilha de ataque. Mas Adam não irá capturar o Ganso Dourado pessoalmente. Vai permanecer em segurança na Baía de Gandanga até que lhe tragam
o prêmio. Somente então subirá a bordo para tomar posse.
Os homens se mexeram desconfortavelmente na cadeira, e Paddy e David trocaram olhares. Hazel foi até a janela e ficou olhando para o parque. Crianças brincavam nos
gramados, observadas pelo olhar amoroso dos pais, e uma fanfarra ensaiava no campo de jogos. Tudo parecia tão tranquilo e banal, tão diferente da realidade selvagem
que estavam discutindo. Hazel sentiu a tristeza do luto surgir mais uma vez, mas ela a abafou forçadamente e se virou para encarar os homens à mesa.
- Muito bem. Temos de deixar Kamal capturar o Ganso Dourado e levá-lo para a Baía de Gandanga.
Todos ficaram calados e inertes, olhando para ela espantados. Ela começou a sorrir, e, de repente, Hector irrompeu numa gargalhada.
- Então! O cavalo de guerra do Hector, Lampos, se torna o Cavalo de Troia! Você vai enviar um pouco mais do que apenas um navio de um bilhão de dólares e um milhão
de metros cúbicos de gás natural.
Nesse momento, Paddy bateu com uma das mãos na mesa e riu alto.
- Encantador! Somente a senhora poderia ter sonhado uma coisa dessas, sra. Cross. Você vai ter de ficar de olho na senhora sua esposa, Hector. Duplicidade, seu nome
é mulher.
Então, Dave Imbiss percebeu o que estava acontecendo e riu juntamente com Paddy.
- Você vai esconder nossos homens em algum lugar do navio até que Adam suba a bordo, e depois vamos todos pular gritando "surpresa, surpresa!" - ele abafou o riso.
- Assim que capturarmos Adam, podemos enviar um grupo de abordagem. Eles irão destruir todos os navios-mãe piratas, os helicópteros e a flotilha de barcos de ataque.
Irão libertar todos os marinheiros estrangeiros cativos. Vamos colocá-los a bordo dos próprios navios, e oferecer cobertura enquanto fogem para o mar.
Mas Tariq parecia em dúvida.
- Vamos precisar de cem homens ou mais para fazer todas essas coisas que você estão planejando. Há espaço no navio para esconder tanta gente?
- Tariq, esse é provavelmente o maior navio de carga já construído - Hector explicou. - Espere até vê-lo! É possível esconder um exército a bordo.
- Por Deus! Isso me dá uma ideia. Podemos muni-lo com bateria de artilharia escondida, exatamente como os Q-ships da Segunda Guerra Mundial - Paddy estava exultante.
- Podemos bombardear a cidade e afundar quaisquer outras embarcações que tentarem resistir ou escapar.
- Não! - Hazel disse com dureza. - Nada de bombardear a cidade. Há centenas de mulheres e crianças vivendo em habitações improvisadas. Seria um massacre. Isso nos
faria piores do que Adam. No entanto, concordo que temos de enviar um grupo por terra para libertar os marinheiros estrangeiros cativos.
- Quanta água o Ganso Dourado arrasta quando está completamente carregado? - Hector perguntou e respondeu à própria pergunta. - Provavelmente mais de cem pés. Os
piratas não irão conseguir trazer o Ganso a uma milha da praia. Não podemos enviar barcos pequenos dessa distância. Eles ficariam expostos a disparos vindos da praia
durante todo o percurso. Seria suicídio.
- Se o navio é tão grande assim, poderíamos esconder alguns VAAs nos porões - Disse David Imbiss pensativamente.
- VAAs? - Hazel perguntou. - O que é isso?
- Veículos de Assalto Anfíbios é a designação oficial. É uma nova geração de tanques náuticos, como os que foram usados como reforço pelas Forças Aliadas quando
chegaram às praias da Normandia em 1944.
- É possível lançá-los de um navio de laterais altas? - Hazel insistiu.
- Com certeza. Eles podem cair na água de uma altura de nove metros - David garantiu.
- Mesmo completamente carregado, o bordo livre do Ganso será maior que isso. E depois como os recuperariam? - Hazel queria saber.
- Vamos equipar o navio com guindastes hidráulicos em pontes móveis que permanecem discretamente na horizontal no porão de carga até serem acionados na lateral do
navio. Os VAAs podem deixar o Ganso e retornar dessa maneira - Hector disse sem tirar os olhos do esboço da ideia que estava desenhando em seu bloco de anotações.
- Com certeza! - Dave concordou. - Ninguém vai querer abandonar os VAAs quando partirmos da Baía de Gandanga. Eles custam uns duzentos mil dólares cada.
- Descreva um desses brinquedinhos para mim - disse Hazel.
Eles se parecem muito com tanques de batalha convencionais com esteiras e um torreão, tirando o fato de que as laterais são muito mais altas. O tipo de que precisamos
é o de transporte de pessoal, que pode levar 25 soldados de infantaria completamente armados, mais uma tripulação de três pessoas. O torreão vem armado com metralhadoras
pesadas calibre .50 montadas no anel e um lança-granadas. A blindagem é à prova de disparos de rifles e de metralhadoras pesadas. Em terra, tem uma velocidade de
quarenta quilômetros por hora e na água, de quase 16.
- Você consegue adquirir algumas dessas máquinas para nós, Dave? - Hazel perguntou.
- Seria muito difícil colocar as mãos em uma direto da fábrica. Mas tenho certeza de que consigo encontrar umas duas com alguns anos de uso que tenham sido bem cuidadas
e estejam funcionando direito. Coreia do Sul, Taiwan, Indonésia e vários outros países no Extremo Oriente as utilizam. Devo conseguir fazer negócio com um deles.
Hazel olhou para Hector e Paddy.
- De quantos precisamos? - ela perguntou.
- Se conseguirmos pegá-los completamente de surpresa e enviar cinquenta homens para a praia, podemos ocupar a cidade por pelo menos um dia até que o inimigo consiga
se reagrupar. - Dois VAAs devem ser suficientes.
- Isso não deixa margem para erros ou acidentes - Paddy argumentou. - Três veículos e 75 homens devem cobrir todas as possíveis eventualidades.
- Paddy normalmente mantém a cabeça fria - Hector se desculpou por ele.
- Faz a cabeça doer um pouco, mas pelo menos me mantém vivo - Paddy sorriu de volta para ele.
- Dave, por favor encontre esse terceiro VAA para Paddy. Queremos que ele continue a viver - Hazel riu com eles.
"Tenho tanto orgulho da força e da resiliência dela", Hector pensou com prazer, "ela retornou à vida. Consegue rir. A dor foi colocada de lado para dar lugar a pensamentos
construtivos. Jamais vai desaparecer, mas agora ela a tem sob controle. 'Se você for capaz de ir ao encontro do triunfo e do desastre e tratar esses dois impostores
da mesma maneira.' O velho Rudyard poderia ter escrito isso com ela em mente."
Então, ele ficou sério novamente.
- Acho que chegamos ao estágio em que temos de convocar uma equipe de engenheiros de design chineses do estaleiro de Taipei, para podermos reconfigurar o casco do
Ganso - ele disse.
Os três engenheiros chegaram cinco dias depois trazendo todos os desenhos da estrutura do Ganso Dourado em vários tubos de plástico. Assim que foram informados dos
requisitos do cliente, Hazel ofereceu a eles um conjunto de salas no andar abaixo do dela, e eles se puseram a trabalhar nos projetos com enorme energia e concentração.
No décimo dia, reemergiram para apresentar os novos designs para avaliação.
Os tanques de carga vazios mais próximos à superestrutura da popa do navio eram tão cavernosos quanto um grande hangar de aviões. Os designers haviam separado essa
seção do resto do navio para formar uma área secreta. A seguir, dividiram esse espaço lateralmente em três níveis diferentes. O mais alto seria reservado à armazenagem
de equipamentos militares, incluindo munições e armas que precisassem ser carregadas rapidamente. Eles tinham incluído uma cabine simples e menor, de doze pés quadrados,
em que havia dois beliches estreitos, um sobre o outro, e um banheiro e uma cabine com chuveiro atrás de uma porta de ligação. Essa cabine seria usada por Hazel
e Hector. Ao lado, estava o espaço livre para estacionar os três VAAs. Logo acima, o teto móvel se abriria para permitir que os veículos fossem suspensos para o
convés por meio de um guincho hidráulico. O guincho ficaria montado numa ponte móvel que poderia levar um VAA de cada vez até a lateral do navio e abaixá-los até
a superfície do mar. Quinze minutos após a abertura do compartimento do teto, todos os três VAAs poderiam estar na água e a caminho na praia a dezesseis quilômetros
por hora, carregando 75 homens armados até os dentes para o ataque.
O segundo andar da área camuflada do casco compreendia o alojamento dos homens, o refeitório, área de abluções, banheiros e os aparelhos de ar condicionado para
manter a constante circulação de ar fresco em todos os compartimentos. Também nesse andar ficaria a área de agrupamento de onde os homens se dispersariam em direção
às suas estações de ação. O andar inferior alojaria as cozinhas e os refrigeradores. Mas a maior parte desse andar seria tomada pela sala de situação operacional
e o equipamento eletrônico. Em todas as partes do navio acima deles, câmeras de CCTV e microfones de escuta escondidos seriam instalados. Não havia um único canto
do navio inteiro, da ponte aos porões, que não poderia ser monitorado dessa posição. Uma das câmeras seria colocada no pequeno mastro do rádio sobre a ponte de comando.
Isso proporcionaria aos homens da sala de situação uma visão panorâmica dos arredores do navio e do horizonte.
Irradiando da área de agrupamento no segundo andar, havia uma rede de túneis e escadas escondidos. Eles seriam ardilosamente construídos atrás das anteparas. Por
meio desses túneis, os homens prontos para a ação poderiam chegar rapidamente a todas as partes da embarcação sem se expor até que pulassem para fora pelas escotilhas
camufladas, pegando o despreocupado inimigo desprevenido.
Os cinco - Hazel, Paddy, Dave Imbiss, Tariq e Hector - estavam sentados à longa mesa da diretoria de frente para os três chineses, debatendo os méritos e desméritos
do layout planejado. Uma das preocupações que recebeu total atenção foi o isolamento acústico dos espaços clandestinos. 125 homens vivendo confinados em compartimentos
de metal fariam barulho nem que fosse simplesmente se movimentando. Esse barulhos poderiam alertar o inimigo quanto à sua presença a bordo. Os tetos, as anteparas
e particularmente os conveses teriam de ser revestidos com placas espessas de poliuretano. O barulho de tudo o que se movesse dentro da área camuflada - as portas
dos fornos de micro-ondas e dos refrigeradores, até mesmo as torneiras d'água e os mecanismos de descarga dos banheiros - teria de ser completamente abafado. Os
homens comeriam em pratos de papel e usariam canecas e utensílios de plástico, para não haver nenhum tilintar de metal ou louça. Somente sapatos com solas macias
seriam usados. Quando o comando "navio silencioso" fosse dado, falariam apenas quando necessário, e sussurrando. O equipamento eletrônico seria colocado no mudo,
e os operadores utilizariam fones de ouvido para escutar todos os ruídos nas outras partes do navio. As bombas de circulação de gás no compartimento de carga vizinho
seriam programadas para operar em turnos contínuos, e assim encobrir quaisquer barulhos da área camuflada do meio do navio. Quando tudo foi providenciado para assegurar
uma operação silenciosa, eles voltaram a atenção para o ajuste de armamentos e o equipamento de observação. As câmeras de CCTV teriam de ser completamente disfarçadas
e escondidas, mas colocadas onde pudessem cobrir todas as partes do navio. As mesmas preocupações se aplicavam ao posicionamento dos microfones de escuta.
A ponte de comando do navio ficava no topo da torre da popa, quase trinta metros acima do convés do compartimento de carga. Isso dava ao capitão, ao oficial de navegação
e ao timoneiro um claro panorama de 360 graus dos arredores. No andar sob a ponte, ficavam os aposentos do capitão, as salas de comunicação e navegação e a luxuosa
suíte do dono. No andar logo abaixo, estavam as cabines dos oficiais juniores e dos engenheiros do navio, a cozinha e o refeitório do navio. Os designers propuseram
a construção de um andar adicional no topo da ponte existente e a conversão do andar superior em ponte principal, deixando o convés abaixo vazio. Esse espaço vazio
teria de ser completamente isolado. O único acesso seria via a escada-túnel subindo da área camuflada abaixo do convés principal. Atrás das paredes lisas de aço
desse convés superior, um par de canhões leves MK44 Bushmaster 40 mm, com uma capacidade de duzentos disparos por minuto, seriam montados. Ao acionar uma alavanca,
os painéis de camuflagem se abririam, e os canhões seriam revelados, prontos para a ação imediata, direcionando seu devastador poder de fogo para qualquer alvo hostil.
Assim que todos os planos foram aprovados, o grupo se dispersou. David Imbiss pegou um voo para a Coreia do Sul, onde em três semanas ele conseguiu adquirir três
VAAs e o par de canhões Bushmaster, ambos propriedade do exército. Todo esse equipamento já estava a caminho do porto de Chi-Lun em Taiwan, onde seria instalado
nas áreas escondidas do Ganso Dourado. Durante a viagem de Taiwan ao terminal de gás de Abu Zara, os condutores e os tripulantes selecionados para operar os VAAs
receberiam treinamento sobre essas máquinas de aparência pesada mas extraordinariamente eficazes. Na mesma etapa da viagem, os artilheiros seriam treinados para
usar os canhões Bushmaster.
Todos esses homens seriam selecionados entre o pessoal de 125 homens e uma mulher que Paddy estava reunindo em Sidi el Razig. Setenta dos homens estavam vindo de
operações da Cross Bow por todo o globo. Os restantes foram escolhidos da extensa lista de mercenários e de seguranças contratados como freelancers por Paddy, dispostos
a aceitar até a mais perigosa das missões pela adrenalina e pelo dinheiro. A única integrante feminina do grupo foi selecionada não apenas por suas aptidões em artes
marciais, mas, o mais importante, por sua semelhança com Hazel. Era uma jovem russa que havia sido treinada pela Spetsnaz. Seu nome era Anastasia Voronova, mas ela
atendia por Nastiya.
Tariq pegou um voo até Meca e, de lá, se juntou a um grupo de peregrinos muçulmanos e retornou à Puntlândia. Ele fez a travessia de balsa com eles até Mogadishu,
e depois viajou de ônibus até a Baía de Gandanga. Assim que chegou, se misturou à população local, disfarçado como um viajante à procura de emprego. Dormiu ao relento
com outros mendigos e indigentes. Hector o instruíra para não anotar nada, mas ele depressa obteve um mapa mental do desenho da cidade e da baía. Avaliou a exata
posição em que cada um dos navios capturados estava ancorado. Encontrou as áreas cercadas onde os marinheiros cativos estavam detidos. Observou e registrou mentalmente
os movimentos dos navios-mãe e barcos de ataque de Adam. Uma de suas tarefas mais importantes nessa missão era observar os movimentos de seu arqui-inimigo, Uthmann
Waddah. Era vital que Hector soubesse se Uthmann estaria em qualquer um dos navios-mãe ou barcos piratas quando eles deixassem a baía ou retornassem de um dos ataques.
Os planos de Hector dependiam dessa informação porque Uthmann seria o único entre os piratas capaz de reconhecer Hazel se a visse de novo. Porém, Hector tinha quase
certeza de que Uthmann jamais iria para o mar. O simples motivo era o fato de que, conforme Tariq havia apontado, Uthmann Waddah, o guerreiro invencível, tinha um
pavor patológico do mar aberto. Um sofredor crônico de enjoos, algumas poucas horas sobre as ondas do oceano o reduziriam a um caco prostrado que não pararia de
vomitar e reclamar, incapaz de erguer a cabeça, quanto mais ficar de pé. A água do mar era a sua única fraqueza.
Nas poucas semanas em que permaneceu na Baía de Gandanga, Tariq assistiu a quatro navios mercantes capturados serem trazidos por Kamal Tippoo Tip e testemunhou a
alegria selvagem dos piratas bem-sucedidos e da multidão que lotava a praia para recepcioná-los no retorno de suas incursões. Em todas as ocasiões, Adam e Uthmann
Waddah estavam na praia para observar a chegada dos navios. Porém, quando o xeique Adam partiu em seu esplêndido saveiro real para embarcar no navio capturado e
distribuir sua generosidade aos piratas bem-sucedidos, Uthmann permaneceu na praia. Era óbvio que até mesmo as águas calmas da baía o deixavam apavorado.
Hector e Hazel voaram de BBJ para Taipei, onde o capitão do Ganso já estava a bordo. Seu nome era Cyril Stanford. Ele havia se aposentado da marinha norte-americana
dez meses antes, aos compulsórios 62 anos de idade. Ávido por continuar a trabalhar em navios grandes, ele havia comandado um cruzador de batalha e ainda tinha a
mente aguçada e uma saúde robusta.
O homem pertencia a uma longa linhagem de combatentes norte-americanos. Um de seus antepassados havia servido na guerra contra os piratas de Barberia no norte da
África de 1800 a 1805. Cyril mostrou a Paddy uma carta antiga e valiosa, que seu antepassado remoto, o Capitão Thomas Stanford, havia escrito para a esposa da Tunísia
em 1804. Ele leu a seguinte frase, em tinta envelhecida, em voz alta:
"Estava escrito em seu Corão que todas as nações que não reconheciam o Profeta eram pagãs, infiéis e pecadoras, e que podiam, por direito, ser escravizadas e saqueadas
pelos fiéis, e que todo maometano que fosse morto nessa batalha certamente iria para o paraíso."
- Os Stanfords lutaram contra a tirania, a intolerância e a anarquia em duas guerras mundiais - Cyril prosseguiu com orgulho. - Mais recentemente, Robert, meu filho
mais velho, perdeu a vida nas montanhas do Afeganistão, após ser capturado por essas pessoas e torturado da maneira mais horrível. Minha marinha me tirou de campo,
mas, por Deus, eu adoraria ter mais uma chance contra esses desgraçados assassinos.
Antes de confirmá-lo no comando do Ganso Dourado, Hector explicou qual seria seu papel secreto, e os perigos que enfrentaria. Cyril aceitou a incumbência com alegria.
Dez dos seguranças da Cross Bow Security, com especialização náutica, seriam treinados por ele para serem seus tripulantes. A casa das máquinas do Ganso e a ponte
denavegação estavam equipadas com controles eletrônicos tão sofisticados que uma tripulação desse tamanho seria perfeitamente capaz de operar o navio e navegar de
maneira eficaz.
Dave Imbiss também estava a bordo supervisionando as obras finais do Ganso Dourado - a instalação do canhão nos compartimentos escondidos e a reconfiguração das
baías do porão para comportarem os três VAAs.
O Ganso Dourado se encontrava em uma das bacias externas do porto, e a capa de segurança que os homens de Paddy haviam jogado sobre ele proporcionavam cobertura
total. Telas de lona haviam sido hasteadas sobre a torre da popa, atrás das quais todo o trabalho estava sendo realizado. O canhão, os VAAs e todos os demais artigos
confidenciais foram trazidos à noite em semirreboques, enfaixados em camadas disformes de capas de plástico preto.
Quando as obras da embarcação estavam quase terminadas e os alojamentos a bordo, habitáveis, Paddy O'Quinn chegou a Taipei. Em poucos dias, os primeiros quarenta
homens de sua força expedicionária também chegaram à cidade em grupos pequenos, fingindo ser turistas. O grupo incluía os técnicos que iriam operar os sofisticados
equipamentos de escuta e o sistema de CCTV. A seguir, vieram os artilheiros responsáveis pelo canhão Bushmaster, e os 12 motoristas e tripulantes dos VAAs. O homem
que Paddy havia escolhido para comandar os tanques era um antigo oficial que tinha sido seu subordinado no exército. O nome dele era Sam Hunter, e ele era um homem
forte com vasta experiência no uso de veículos anfíbios blindados.
A última chegada, mas de maneira nenhuma menos importante, foi a de Nastiya Voronova. Em um carro alugado, Hector e Hazel foram buscar Paddy e a jovem russa no hotel
para levá-los até os estaleiros. Ao se encontrar pela primeira vez, as duas mulheres se estranharam, completamente cientes dos atributos uma da outra. Hazel pressentiu
de imediato que a outra mulher era uma felina selvagem, elegante e formosa na superfície, mas puramente feroz e primitiva no âmago. Por sua vez, Nastiya estava desacostumada
a não ser a mulher mais deslumbrante em todas as ocasiões.
Hazel e Nastiya se sentaram no banco traseiro do carro alugado e conversaram reservadamente. Enquanto esperavam na zona portuária pela balsa que os levaria ao ancoradouro
do Ganso, Hazel pegou Hector pelo braço e o levou para o lado para suspirar em seu ouvido:
- Paddy e a russa já estão se pegando como dois castores na primavera.
- Pelo amor de Deus! Como você sabe? Ela contou para você?
- Ela não precisou dizer uma única palavra, seu bobo. O doce odor do desejo ao redor dos dois é como o da flor de laranjeira. Não reparou?
- Sim, mas o engraçado é que pensei que fosse mesmo flor de laranjeira - Hector riu.
Tomar conhecimento de que Nastiya estava profundamente envolvida com Paddy abrandou sua atitude em relação a ela. Agora que sabia que não teria de proteger Hector
dos poderes exóticos de atração da outra mulher, ela se viu começando a gostar da russa.
A primeira coisa com que os recrutas de Paddy tiveram de se acostumar foi o tamanho gigantesco do navio. O convés de carga era do comprimento de cinco campos de
futebol. Quando foram levados para a área escondida do reconstruído porão de carga número um, eles se viram num labirinto de compartimentos e túneis de aço interconectados.
Os túneis eram tão mal iluminados e ventilados, baixos e estreitos que um homem mais alto teria de se curvar. Uma vez dentro dos túneis, não havia ponto de referência,
e não era difícil se sentir confuso. Por exemplo: chegar à ponte a partir do ponto de agrupamento no segundo andar envolvia uma subida vertical claustrofóbica de
mais de 27 metros, respirando ar viciado e passando por escotilhas de saída idênticas no andar de cada convés. Consequentemente, os homens chegavam à ponte desorientados
e sem fôlego.
Hector ordenou que os operários melhorassem os sistemas de iluminação e ventilação. Além disso, ordenou a sinalização clara do interior dos túneis, com diferentes
cores de tinta para demarcar cada andar. Depois, Hector concentrou a atenção nas escotilhas. De acordo com o design original, abri-las do lado de dentro envolvia
destrancar duas maçanetas gêmeas. Era um processo barulhento e demorado que alertaria o inimigo do outro lado. Hector criou um novo sistema. As dobradiças das escotilhas
eram articuladas por molas, então, quando um pino de retenção fosse extraído com um único golpe de martelo, a escotilha seria escancarada com uma força considerável,
e os combatentes conseguiriam sair imediatamente, pegando quem quer que fosse do lado de fora completamente de surpresa.
Na altura em que o Ganso estava pronto para partir de Abu Zara, todos os homens conheciam o desenho do navio intimamente. Assim que ficaram fora do alcance da vista
de quem estivesse em terra firme, Hector mandou o Capitão Stanford virar o navio contra o vento. Enquanto navegavam em uma onda lenta e oleosa, Sam Hunter e a tripulação
dos VAAs se posicionaram em suas estações de batalha, e os motoristas deram ignição. A seguir, da sala de situação na barriga do navio, as escotilhas acima dos veículos
foram abertas remotamente, e o guincho hidráulico suspendeu o primeiro VAA até o convés principal, transportou-o para a lateral do navio e o depositou do lado de
fora.
Os poderosos motores a diesel do VAA roncaram e foram impulsionados para a frente com Sam no torreão, abrindo caminho para os outros veículos. Um após o outro, foram
baixados pela lateral do navio. Eles caíram na água, afundando por um momento sob a superfície e então sendo impelidos novamente para fora numa lufada de espuma
branca. Em formação, as três embarcações desengonçadas contornaram o Ganso retornando à sua lateral, onde foram içados novamente para o convés de carga. Quando o
último foi fixado ao chão em segurança sob o convés, a escotilha sobre eles se fechou. Os guinchos foram colocados horizontal e discretamente no convés de carga
até que se precisasse deles novamente. Nos quatro dias a seguir, o mesmo procedimento de treinamento foi repetido várias vezes. Os artilheiros nos torreões dos VAAs
tiveram a oportunidade de disparar suas metralhadoras pesadas de diversas distâncias contra alvos flutuantes antes de retornar ao Ganso.
Quando o navio ficou a cerca de 240 quilômetros de Taiwan, e não havia nenhuma outra embarcação na tela do radar, Hector comandou um exercício com os canhões do
convés sob a ponte. Ao seu comando, os capitães das armas abriram as portas de aço que escondiam a armazenagem bélica. As portas oscilaram em suas dobradiças e revelaram
os dois canhões Bushmaster com seus longos canos apontados para a frente.
Os canhões foram carregados com projéteis de explosão aérea. Cada uma continha centenas de bolas de aço. O temporizador no nariz dos projéteis havia sido ajustado
eletronicamente pelo capitão das armas de acordo com a distância requerida, usando um computador embutido. O atirador escolheu o alvo na lente do visor ótico e então
apertou o cabo disparador. O computador começou a calcular continuamente a distância do alvo e transmitiu essa informação para o fuso do projétil. Quando o atirador
soltou o disparador, a distância foi fixada e, no mesmo instante, o canhão disparou. O projétil explodiu no ar precisamente acima do alvo.
Enquanto Hector, Paddy e as duas mulheres assistiam da ponte, a tripulação do navio jogou tambores de petróleo vazios pela lateral para servir como alvos. Os canhões,
um de cada vez, realizaram uma salva de artilharia de cinco disparos sobre os tambores. Os resultados foram espetaculares. A nuvem de bolas voadoras de tungstênio
transformou a superfície do mar numa grande coluna de espuma e borrifos, engolfando os tambores e tudo ao redor em um raio de trinta metros numa tempestade de metal
voador. Quando a superfície voltou ao normal, não restou nada a não ser ondulações.
- Por Deus e Begorrah! - Paddy gritou. - Mal posso esperar para ver isso acontecer a um dos barcos de ataque do Adam.
- Eu diria que estamos quase prontos para partir e fazer uma visita à Baía de Gandanga - Hector comentou.
- Bendito seja, você está corretíssimo - ele concordou com um sorriso.
- Paddy disse "bendito" - disse Hazel cutucando Hector. - Você reparou que o Paddy nunca fala palavrões na frente da Nastiya? Você podia aprender uma lição de bons
modos com ele, meu garotão.
Paddy parecia consternado. Até esse momento, acreditara piamente que seu promissor relacionamento com a sensual russa era um segredo militar ultrassecreto. O rosto
de Nastiya, de pé ao lado dele, manteve a expressão remota e inescrutável.
Por necessidade, Hazel e Nastiya passaram várias horas juntas na suíte principal no convés sob a ponte, dedicando-se a aumentar a semelhança física entre elas. Hazel
cortou e secou o cabelo de Nastiya no mesmo estilo do seu.
- Como você pode ser tão boa com a tesoura? - Nastiya perguntou ao se admirar no espelho.
- Houve uma época em que eu mesma tinha de arrumar meu cabelo.
Nastiya parecia espantada, e Hazel explicou:
- Eu estava dura. Mal tinha dinheiro para comer, muito menos para ir a um salão de beleza.
- Que tolice! Com uma aparência como a sua, não há porque ficar dura, nunca.
- Talvez eu fosse exigente demais.
- Ser exigente demais também é tolice - Nastiya expressou sua sábia opinião.
Assim que aperfeiçoaram o estilo do penteado, Hazel abriu os grandes armários em cada lado do espelho que continham seus cosméticos e começou a trabalhar. As reservas
de Nastiya ruíram, e ela começou a rir como uma colegial ao observar a própria transformação no espelho. Depois, elas se concentraram em escolher roupas adequadas.
Nastiya estava fascinada pelo conteúdo do confortável closet de Hazel. Era uma câmara de tesouros de seda, cetim e rendas. É claro, os tamanhos de vestido e sapatos
das duas eram semelhantes - Nastiya havia sido escolhida por essa semelhança. Os sapatos Chanel e Hermès caiam quase tão bem nos pés de Nastiya como nos de Hazel.
Quando Hazel acabou de arrumá-la, elas deram um pequeno show para os homens. Nastiya desfilou pelo saguão com a desenvoltura da modelo que fora um dia, e o com a
mesma expressão de desdém em seu rosto encantador. Hector e Paddy se reclinaram para trás nas poltronas com copos de uísque nas mãos e a aplaudiram entusiasticamente,
enquanto Hazel observava sua criação com orgulho de proprietária.
A missão de Nastiya requeria que ela reproduzisse os maneirismos de Hazel: o modo de andar, de manter a cabeça ereta e o jeito expressivo como usava as mãos. A russa
era uma atriz natural e rapidamente se encaixou no papel. Por fim, Hazel tentou afiar a dicção dela. Isso logo demonstrou ser uma perda de tempo para todo mundo.
Graças ao treinamento de Spetsnaz, Nastiya falava inglês bem o suficiente, exceto por uma ou duas pequenas fraquezas. A ordem das palavras que utilizava era normalmente
confusa, e ela não conseguir impedir sua língua de transpor as letras W e V.
"You are very welcome" era uma frase frequentemente utilizada por Nastiya, e quando ela falava, Hazel mal podia conter o riso todas as vezes em que Nastiya dizia
com todas as letras: "You are werry velcome".
Uma de suas pronúncias idiossincráticas era a da palavra "okay", que saía de seus lábios carnudos como "hokay!". Finalmente foi decidido que ela teria de manter
a boca fechada enquanto fosse prisioneira dos piratas. Felizmente, essa restrição não iria incomodá-la muito. "Navio silencioso" era o modo operacional preferido
de Nastiya.
Para terem certeza absoluta de que Adam atacaria o navio, eles teriam de levá-lo a acreditar que tanto Hazel como Hector estariam a bordo. Teriam de permitir que
a equipe de reportagem do Al Jazeera filmasse os dois no navio quando ele chegasse ao terminal de gás em alto-mar. Mesmo após a partida do Ganso do terminal, Hector
teria de permanecer a bordo para comandar a Operação Lampos. Porém, quando tentou convencer Hazel a abandonar o navio antes que partisse e ir para um lugar seguro
fora do alcance de Adam, enquanto Nastiya assumia o seu lugar, os argumentos dele tiveram tanto efeito quanto uma pequena garoa sobre as Agulhas de Cleópatra.
- Por favor, não seja idiota, Hector Cross - disse diretamente.
Hector não podia se deixar ser capturado quando os piratas subissem a bordo no navio. Não poderia comandar a Operação Lampos acorrentado e vigiado por uma gangue
de piratas armados até os dentes. Portanto, teriam de escolher um sósia para substituí-lo também. Havia alguns homens entre os recrutas de Paddy que se encaixariam
no papel por terem cabelos escuros e uma constituição forte. De qualquer forma, todos geralmente sabiam que para um árabe, todos os caucasianos eram parecidos, e
vice-versa. Quando o sósia de Hector fosse aprisionado pelos piratas, era possível que levasse uma surra, mas Paddy ajudou Hector a escolher, optando por Vincent
Woodward, um homem durão que podia suportar os castigos. Como Paddy apontou para Vincent, ao ser capturado, ele não corria o risco de ser estuprado, ao contrário
de Nastiya. Por uma quantia extra de dez mil dólares, Vincent ficou contente em se tornar o alter ego de Hector.
No entanto, nessa altura decisiva dos preparativos, Hazel de repente se tornou reticente quanto a enviar Nastiya para as garras do demônio em seu lugar. A jovem
russa havia-se tornado sua amiga. Ela expressou seus receios para Paddy.
- Eu sinceramente tenho muita, mas muita pena de qualquer árabe que tentar abaixar as calcinhas da Nastiya sem seu total consentimento e cooperação - Paddy disse
com um sorriso.
Isso não bastou para Hazel, e ela insistiu para discutirem o assunto abertamente com Nastiya. Eles se reuniram na sala de estar da suíte principal. Hazel dissertou
longamente sobre os perigos que Nastiya poderia enfrentar se fosse capturada. Ela expressou a afeição e o respeito que havia desenvolvido por Nastiya, e deu a ela
a chance de desistir da missão. Nastiya permaneceu em silêncio, bela e inescrutável durante todo o recital, observando Hazel com atenção.
Quando Hazel terminou, ela perguntou:
- Então, cem mil dólares que você não vai me pagar?
- Não, não - Hazel respondeu -, não é justo com você, Nastiya. Levando em conta que vai colocar a sua vida em risco por mim, acho que deveria pagar pelo menos o
dobro da quantia.
Nastiya quase sorriu.
- Todos sabemos que essa gente não vai tentar me matar não importa o que eu faça para eles, contanto que acreditem que sou mesmo você, da ou nyet?
- Não achamos que matariam você. Eles querem o pagamento do resgate. Mas talvez tentem machucá-la. Talvez tentem forçá-la, talvez a estuprem.
- Bem, quero ver eles tentarem - disse Anastasia Voronova, o que colocou um fim à discussão sobre o assunto.
Três dias depois, o Ganso Dourado adentrou o Golfo de Oman e se encaminhou ao Estreito de Hormuz e à entrada do Golfo Pérsico. Assim que ficaram a uma distância
acessível da terra firme, o helicóptero da Bannock Oil Corporation foi ao encontro deles. Era um grande Sikorski, com 26 assentos, uma substituição do velho MIL-26
russo que havia sido perdido na Puntlândia. Levou os homens para a terra firme, aterrissando no campo de treinamento em uma parte remota do deserto de Abu Zara,
onde o restante da tropa estava em intensiva preparação para a expedição à Puntlândia. Sem os supernumerários, o Ganso Dourado partiu em direção ao terminal de gás
natural para buscar seu carregamento.
O diretor de publicidade da Bannock Oil Corporation convidou o Al Jazeera Television a enviar uma equipe de cinegrafistas ao novo terminal de gás natural do Golfo,
nas águas do Emirado de Abu Zara, para filmar e registrar a viagem inaugural do Ganso Dourado. Eles aceitaram com entusiasmo, e Bert Simpson colocou o Sikorski à
disposição. O helicóptero foi buscar a equipe de cinegrafistas quando chegaram a Sidi el Razig, e os levou até o Ganso Dourado, interceptando-o enquanto passava
pelo Estreito de Hormuz. Ao circundar ao navio, a equipe de TV viu que ele era verdadeiramente impressionante. Os tanques de gás estavam vazios, portanto, ele se
erguia em sua altura máxima na água - uma montanha altaneira de aço. Os cinegrafistas ficaram satisfeitos com as imagens que haviam obtido.
Quando o Ganso aportou no terminal de gás, uma sucessão de visitantes subiu a bordo. Todos os demais meios de comunicação do Oriente Médio enviaram jornalistas para
cobrir o evento. Quando foram embora, o emir e seu séquito, incluindo a maioria dos ministros, chegaram para o banquete real que Hazel havia organizado em homenagem
a ele.
Uma grande tenda beduína foi erguida no convés de carga do Ganso Dourado, e o convés, por sua vez, coberto de tapetes turcos coloridos. O emir, suas três esposas
adornadas com joias deslumbrantes e todos os demais convidados se sentaram em almofadas de seda, e o chefe de cozinha mais famoso da Arábia, com cinquenta assistentes,
preparou o banquete. Ao fundo, uma banda de instrumentos de corda tocou músicas tradicionais. O ministro das relações exteriores era um dos irmãos mais novos do
emir. Ele havia se formado na Universidade de Oxford e fez um discurso num inglês belamente modulado, exaltando as virtudes da Bannock Oil Corporation e o papel
que a companhia desempenhava no desenvolvimento dos recursos dos Emirados.
A seguir, Hazel se dirigiu ao distintos convidados. Ela listou algumas informações sobre o Ganso Dourado e sua capacidade de carga. Falou sobre os custos e o planejamento
envolvidos na construção e inauguração do navio, e o que isso representaria para Abu Zara. Explicou que o navio era grande demais para trafegar pelo Canal de Suez,
e que a viagem inaugural seria até a costa leste do continente africano, e ao redor do Cabo da Boa Esperança. Depois, ele seguiria no sentido norte para o Oceano
Atlântico e o porto de Brest, na França, para descarregar o gás. Hazel disse aos presentes que esperava que a viagem tivesse início em quinze dias. Ela prosseguiu
dizendo que esse era um acontecimento tão importante para a Bannock Oil, que ela e o marido, o sr. Hector Cross, permaneceriam a bordo do navio até a Cidade do Cabo,
na extremidade sul da África.
Os cinegrafistas no fundo da tenda filmaram discretamente a cerimônia inteira. Na sala de situação, nas entranhas do navio, Paddy e Nastiya acompanharam o desenrolar
dos acontecimentos pelas telas de CCTV e, beirando a perfeição, Nastiya imitou todos os movimentos e gestos feitos por Hazel. Cinco noites depois, Hector e Hazel
se sentaram juntamente com Nastiya e Paddy na sala de situação e assistiram à transmissão do Al Jazeera, um programa de sete minutos que cobria todos os principais
elementos da viagem do Ganso Dourado. As imagens do enorme navio eram instigantes, e os trechos do discurso de Hazel continham a maioria dos elementos vitais: o
valor enorme do navio e de sua carga, a rota proposta ao redor da África, a data estimada de partida e o fato de que tanto Hazel quanto o marido estariam a bordo
durante a primeira etapa da viagem, prosseguindo até a Cidade do Cabo. No final do programa, Hector olhou para Paddy no outro lado da sala de situação.
- Bom, o que você acha?
- Acho que a sra. Cross deveria começar a atuar no cinema - o irlandês respondeu. - Ela seria capaz de deixar a Nicole Kidman sem trabalho, ah, se seria.
- Obrigada, Paddy - Hazel disse sorrindo. - Vindo de um grande entendedor de mulheres, é sem dúvida um grande elogio. Então, você acha que o Adam vai cair na armadilha?
- De cabeça para baixo e bunda para cima, sem dúvidas.
- O que significa "de bunda para cima"? - Nastiya perguntou.
- Exatamente a mesma coisa que de cabeça para baixo - Hector explicou, e Nastiya olhou para Paddy com um olhar pesaroso.
- Então, por que tantas palavras você tem sempre que estar usando?
Hazel sorriu diante dessa demonstração da autoridade que Nastiya já estava exercendo na relação.
Agora já totalmente carregado de gás e navegando com o casco mais submerso, o Ganso retornou ostensivamente via Estreito de Hormuz para iniciar a etapa de ida da
viagem até a França. Assim que saíram da vista da praia, o Sikorski começou a transportar os homens de Paddy do campo de treinamento do deserto, depositando-os no
convés de carga. Ao embarcarem, receberam armas e equipamentos. Cada um carregaria uma pistola automática Beretta 9 mm e um rifle de assalto Beretta SC 70/90. Todos
receberam coletes à prova de balas e um rádio Falcon compacto e portátil de ondas curtas. Aqueles que haviam chegado ao navio provenientes de Taipei iniciaram uma
intensiva doutrinação dos recém-chegados, que logo memorizaram o desenho dos túneis escondidos e aprenderam como usá-los para alcançar qualquer ponto do Ganso rapida
e silenciosamente, sem serem vistos. Praticaram o embarque e o desembarque nos VAAs. O navio se virou contra o vento, e os VAAs foram novamente acionados no mar,
mas dessa vez com as tropas completas a bordo, e depois foram recolhidos e armazenados sob o convés.
Os homens já estavam no auge da forma física, e Paddy os manteve assim usando o amplo convés de carga como campo de treinamento. Todos os homens completavam vinte
voltas de corrida ao redor do convés duas vezes ao dia, com Hector e Paddy logo atrás estimulando-os. Paddy os dividiu em dois times de dez homens que se enfrentavam
em competições de tiro e partidas barulhentas de rugby. Todos os dias, Paddy realizava corridas de revezamento, ida e volta, desde o nível inferior do porão de carga
até a ponte, usando as escadas dos túneis de aço. Ele cronometrava, e Hazel oferecia um prêmio de mil dólares todos os dias para o time mais veloz. Ela e Nastiya
criaram um time feminino e registraram os melhores tempos individuais em três dias consecutivos, para o profundo desgosto dos homens.
O Ganso Dourado estava ainda a seiscentas milhas náuticas leste do grande Chifre da África quando o alerta de perigo eminente foi emitido pelas sirenes no meio de
uma disputada partida de rugby. Todos deixaram o convés apressados. Hector e Hazel alcançaram a ponte em poucos minutos.
- O que foi? - Hector perguntou ao Capitão Stanford.
- Recebemos um sinal pelo radar aos 67 quilômetros, a 27 graus. Parece uma aeronave lenta, quase certamente um helicóptero pequeno. Está vindo nesta direção.
- Ele provavelmente já nos captou no próprio radar - Hector disse. - Somos um alvo suficientemente grande. Não temos como passar despercebidos. Mantenha o curso
e a velocidade, por favor, Cyril.
A seguir, ele se virou para Hazel.
- Se é quem pensamos que é, talvez seja uma boa ideia nós dois ficarmos à vista no convés.
- Isso não seria tarefa dos nossos sósias?
- Não, há uma possibilidade de que Uthmann esteja a bordo do helicóptero. Ele enxergaria a diferença imediatamente. Venha!
Eles desceram rapidamente até o deserto convés principal e correram por toda a sua extensão até chegar à proa. Lá, recostaram-se na grade e observaram a mancha distante
se materializar sobre o horizonte oeste. A mancha foi ficando cada vez maior até se transformar em um helicóptero Bell Ranger. Eles olharam para cima. Hector estava
atrás de Hazel e deslizou os braços ao redor de sua cintura, rindo e a apertando, quando ela começou a cantarolar a canção tema do filme Titanic, "My heart will
go on". Eles imitaram a famosa pose de DiCaprio e Winslet no filme, no gurupés do malfadado transatlântico.
Hector havia ordenado que uma pequena seção à meia nau do casco do Ganso fosse pintada com tinta vermelha primária à base de chumbo, e escadas de cordas e um suporte
ficassem dependurados na lateral do navio logo acima do nível da água, para dar a impressão de que a pintura era um trabalho em progresso. O equipamento pendurado
era um convite aberto ao embarque. Isso certamente seria notado pelo piloto do helicóptero e relatado a Kamal.
O helicóptero sobrevoou o navio-tanque em círculo uma vez, a baixa altitude. O piloto era o único ocupante. Ele usava óculos de proteção escuros, e o rosto estava
coberto por um lenço keffiyeh. Hazel acenou para ele. Ele ignorou a saudação, mas virou a máquina no mesmo sentido em que tinha vindo, e logo sumiu de vista. Paddy
e David Imbiss estavam à espera deles na ponte.
- Certo. Restam poucas dúvidas de que eram eles, e que o contingente principal não está longe - Hector disse. - A distância ida e volta que aquele helicóptero pode
percorrer fica abaixo dos 240 quilômetros. Em menos de uma hora e meia ele estará aterrissando no convés no navio-mãe dos piratas.
Ele estava passando ao modo "preparado para a batalha", a mente funcionando de maneira afiada.
- De agora em diante, fica proibido ao pessoal de serviço circular pelo convés principal. Todos devem retornar aos seus alojamentos na área escondida, e permanecer
ali até o próximo movimento do inimigo. Todas as escotilhas escondidas devem ser fechadas e verificadas. O modo "navio silencioso" deve ser mantido o tempo todo.
Hazel e eu vamos nos mudar da suíte principal para a pequena cabine no convés dos VAAs. A Nastiya e o Vincent assumirão os nossos lugares na suíte.
- Mas, espero sinceramente, que eles não sigam seus padrões de comportamento enquanto estiverem lá - disse Paddy acidamente.
- Você pode ficar de olhos e ouvidos atentos neles pela câmera de CCTV do quarto - Hector sugeriu, e Paddy assentiu pensativamente.
Embora Paddy fosse cavalheiro demais para espionar a mulher que amava, foi por acaso que logo depois, enquanto verificava o funcionamento da câmera da suíte principal,
testemunhou um episódio entre Nastiya e Vincent Woodward enquanto os dois se acomodavam. Com um tom de voz ameaçador, Nastiya deixou clara a sua posição perante
a Vincent.
- Se você acha que pode me tratar como uma esposa de verdade, Wincent Voodvard, eu vou contar para o sr. O'Quinn, e ele vai matá-lo, mas primeiro vou remover essas
coisas redondas penduradas entre as suas pernas à força e puxá-las até suas narinas.
Paddy se sentiu bastante confortado ao ouvir sem querer essa tocante manifestação dos sentimentos dela em relação a ele.
O tio de Adam, Kamal Tippoo Tip, estava de pé na casa do leme da traineira tailandesa capturada de 33 metros de comprimento, e observou seu helicóptero roçar o topo
das ondas ao voltar de sua missão de reconhecimento. Ele virou a popa na direção da brisa suave para facilitar a aterrissagem. O mastro e a maior parte da superestrutura
haviam sido removidos da traineira não apenas para auxiliar a operação do helicóptero, mas também para que não fosse um alvo tão fácil para os radares das outras
embarcações. Em frente à casa do leme, uma plataforma de aterrissagem de madeira tinha sido colocada sobre o convés. A escolha do material também visava diminuir
os ecos de radar. Agora o Bell Ranger pairava sobre ela e, em seguida, foi descendo gentilmente até se acomodar com uma sacudidela quase imperceptível sobre a plataforma.
A tripulação saiu correndo com cabos de amarração para prender a aeronave.
Kamal assentiu em aprovação. O piloto era um iraniano treinado pela força aérea de seu país, e um alistado entusiasta da jihad contra os infiéis. Assim que a aeronave
foi amarrada, ele desligou os motores e desceu para o convés da traineira. O homem correu até a casa do leme, arrancando os óculos de proteção e desenrolando o lenço
que cobria a parte inferior de seu rosto.
- Louvor e gratitude a Alá e Seu nobre Profeta - assim saudou Kamal.
- Todo louvor e toda devoção a Eles - Kamal concordou. - Quais são as novidades, Mustafá, meu irmão?
- O infiel será entregue às suas mãos. O navio está apenas 185 quilômetros adiante de nós, e perlongando a uma velocidade bem acima dos vinte nós.
- Você tem certeza de que é o navio que estamos caçando?
- Não é possível que exista um igual a ele nos oceanos. Ele é maior do que uma montanha, e o nome está na popa e na proa. É o Ganso Dourado. Louvado seja Alá, Seu
Profeta e todos os Seus antos.
- Todo louvor e toda devoção a Alá! Conte-me o que viu.
- Havia três homens visíveis na ponte, mas no convés dianteiro estavam um homem e uma mulher. A mulher tinha cabelos amarelos e não era velha. Os cabelos e o rosto
estavam descobertos.
- Louvado seja Alá! É a puta Bannock! E o homem?
- Ele é alto e de cabelos escuros. Estava acariciando a mulher abertamente, do jeito mais obsceno e desavergonhado.
- É o assassino Hector Cross! Desta vez ele não escapará da nossa justa ira.
Mustafá prosseguiu descrevendo os detalhes da estrutura do navio e os possíveis pontos fracos, sem se esquecer do suporte convenientemente dependurado na lateral
do navio.
- Devo informar o xeique imediatamente sobre a nossa sorte grande - disse Kamal, virando-se para o equipamento eletrônico no fundo da casa do leme e ligando o telefone
por satélite. Houve uma demora durante a transferência da ligação, mas ele finalmente escutou a voz do sobrinho.
- Quem fala?
- Kamal. Saudações e que Alá o abençoe, poderoso xeique!
- Que Ele o abençoe também, venerado tio - Adam respondeu.
- Encontramos aquilo que você procura, meu estimado xeique. Será entregue às suas mãos juntamente com o homem que matou tanto o seu pai quanto o meu.
- Como você sabe com certeza que o porco do Cross está a bordo no navio? - Adam perguntou com um tom de insistência.
- O Mustafá o viu no convés, com a prostituta, louvado seja Alá.
- Todo louvor a Deus e Seu Profeta. Mas não houve engano? É a mulher Bannock? Tem certeza?
- Tenho, meu xeique. A cabeça dela estava descoberta. Os cabelos eram amarelos. É ela! O navio está completamente carregado e rebaixado na água. A carga vale tanto
quase a própria embarcação. Aqueles marinheiros infiéis idiotas deixaram escadas de corda dependuradas sobre a lateral. Será muito fácil nos apossarmos dele, meu
estimado e amado sobrinho e xeique.
- Se assim for, você nos fará muito ricos, meu tio. Quando você irá alcançar o prêmio?
- O navio está numa rota de interceptação, navegando diretamente na nossa direção a vinte nós. Se Alá for gentil, estaremos lado a lado em menos de cinco horas.
Ao raiar do sol amanhã, o navio e seu conteúdo estarão nas suas mãos. A dívida de sangue poderá finalmente ser quitada. Assim como você, eu também sofro pelo assassinato
do meu pai e do seu avô.
- Que Alá e Maomé, Seu Profeta, abençoem sua empreitada, venerado tio. Cuide para que aquele cachorro infiel do Cross e a puta dele sejam trazidos vivos até mim.
Quero conversar com eles antes de morrerem.
Tudo o que se ouvia na sala de situação na seção camuflada do Ganso Dourado era o barulho suave do mar ao lado do casco, as pancadas e os chiados das bombas de gás
nos porões adjacentes e o leve zumbido do equipamento eletrônico. Hector, Paddy e David Imbiss estavam sentados à longa mesa de frente para as telas do computadores.
Tariq tinha arrastado a cadeira para trás e estava de braços cruzados sobre o peito. Eles raramente falavam e, quando falavam, era em murmúrios. Hazel estava encolhida
no banco estofado e estreito no fundo da cabine com um cobertor ao redor dos ombros. Ela dormia tranquilamente. A maior parte da iluminação vinha do brilho das múltiplas
telas de CCTV. O relógio de parede mostrava que faltavam dez minutos para a meia-noite. Os sensores infravermelhos em cada uma das câmeras escondidas detectavam
qualquer movimento ao redor do navio. Quando isso acontecia, a câmera era automaticamente ligada, e as imagens apareciam nas telas. Num momento, uma tela mostrou
a ponte e Cyril Stanford andando para cima e para baixo do convés, olhando para a escuridão além da proa. A tela ao lado mostrou dois de seus tripulantes no refeitório,
tomando café e fumando. Uma outra tela passou de repente a mostrar as imagens da câmera no quarto da suíte principal. A suíte estava imersa em escuridão, mas a câmera
estava no modo infravermelho. As imagens na tela eram monocromáticas. Nastiya Voronova afastou as cobertas e se levantou. Ela vestia um macacão. Ao atravessar o
aposento em direção à porta do banheiro, eles tiveram um vislumbre de Vincent ao fundo. Estava dormindo sozinho no sofá encostado na antepara oposta.
- Não há motivos para ansiedade, Paddy - Hector murmurou.
Nastiya entrou no banheiro e fechou a porta. A câmera naquele banheiro em particular havia sido desativada de acordo com as ordens de Hazel. Era como assistir um
reality show como Big Brother, Hector pensou, e tão entediante quanto. Paddy fechou os olhos e abaixou a cabeça entre os braços dobrados no tampo da mesa diante
dele. Hector se levantou e espreguiçou. Foi pegar uma caneca de café da garrafa térmica e voltou à cadeira.
- Não temos de esperar muito. Quase posso sentir o cheiro deles - disse em voz baixa a Paddy, que abriu os olhos e assentiu, abaixando a cabeça novamente depois.
Hector se virou para Hazel que, quase como se tivesse sentido os olhos dele sobre ela, abriu os dela e sorriu para ele. A seguir, ela mudou de posição e ajustou
o travesseiro sob a cabeça. Na suíte principal, a porta do banheiro se abriu, e Nastiya retornou para a cama king size. Ela puxou as cobertas sobre a cabeça e sumiu
de vista.
- Ela sempre dorme como se fosse uma toupeira? - Hector perguntou.
- Não é da sua conta, Cross - Paddy respondeu fingindo indignação. Hector sorriu e ficou observando o ponteiro dos segundos se mover incessantemente ao redor do
relógio. Era meia-noite e quinze. Então uma das telas escuras no final da fileira de repente se acendeu. Ela mostrava a imagem do convés de carga principal do navio-tanque.
Hector se endireitou na cadeira e a expressão no rosto dele mudou, seu olhar se estreitou e os lábios se contraíram formando uma linha rígida. Essa câmera, situada
no topo da torre de popa, havia detectado um movimento, mas a imagem no convés dianteiro era escura, monocromática e distante.
- Dave! - Hector disse bruscamente. - Ajuste o foco da câmera número quatro. Algo está se movendo na grade do convés de bombordo.
David piscou para afastar o sono e digitou uma mensagem no teclado dos controles das câmeras. Ele focalizou no convés abaixo. Eles agora podiam enxergar o pórtico
onde estavam suspensos o suporte e as escadas de corda. De repente, um homem surgiu por detrás do cabo de guincho onde estivera escondido. Ele estava todo de preto,
e seus traços, escondidos por um lenço enrolado ao redor do rosto. Ele virou a cabeça e olhou para trás. Deve ter dado uma ordem ou feito um sinal porque, imediatamente,
uma fileira de várias figuras vestidas de maneira semelhante pulou sobre a grade e desceu correndo até a torre de popa. Todos carregavam uma arma.
- A Besta chegou - Hector disse baixinho.
Paddy, Tariq e Hazel se levantaram de um salto e se aglomeraram em frente à mesa, de onde encaravam a tela em silêncio. Hector apertou o botão "Enviar" no rádio
Falcon de batalha.
- Ponte! Cross! - disse ao microfone e, numa das outras telas de TV, Cyril Stanford se levantou da cadeira de comando e alcançou seu aparelho.
- Cross! Stanford falando.
- Eles estão a bordo - disse Hector, ainda olhando para a tela. - São quinze até o momento, mas outros mais estão subindo pelas escadas a cada segundo que passa.
Estou perdendo a conta. Não reaja. Eles tem de acreditar que nos pegaram totalmente de surpresa.
A ordem foi redundante, Stanford e sua tripulação haviam ensaiado o procedimento várias vezes.
- Positivo - ele disse. - Retaliação mínima e submissão rápida.
- Essa é a receita - disse Hector e mudou a frequência no rádio.
Na outra tela, viram Nastiya se sentar afastando as cobertas e pegar o aparelho de rádio.
- Voronova.
- Os piratas estão a bordo. Vão chegar à sua cabine em alguns minutos. Não acenda as luzes. Vá para a cama com o Vincent. Depressa.
- Hokay!
Lembre-se: não reaja.
- Hokay! - ela disse, e Hector mais uma vez mudou a frequência.
Ele sorriu para Paddy.
- Essa sua menina é uma tagarela, não é mesmo?
- É uma de suas várias virtudes - Paddy respondeu com seriedade.
Eles voltaram a atenção novamente para as telas de TV que se acenderam em rápida sucessão, acompanhando os piratas que invadiam a escada do tombadilho da torre da
popa em direção à ponte. Cinco deles entraram nos alojamentos da tripulação. Os dois homens sentados à mesa do refeitório foram agredidos até se deitarem no convés,
os demais, arrastados dos beliches e forçados a ficar de joelhos enquanto seus pulsos eram amarrados à frente do corpo com amarras de fio de náilon. Uma outra gangue
de piratas invadiu a casa da ponte gritando ameaças e ordens em árabe.
Cyril Stanford se levantou em um pulo e correu na direção deles gritando:
- Que diabos são vocês? Vocês não têm permissão para estar aqui. Saiam, já disse para saírem!
Um dos piratas o derrubou no chão acertando-o com a coronha de sua AK-47, e outros dois pularam para cima dele e amarraram os pulsos com cabos. O timoneiro e o operador
de rádio receberam o mesmo tratamento. Um dos piratas foi rapidamente até a mesa de controles e desligou todos os aceleradores.
- Vai demorar pelo menos uns 16 quilômetros até o navio parar - disse em árabe, e removeu a máscara, revelando seu rosto. Os traços dele eram agressivos e ameaçadores,
a barba, grisalha.
- É o Kamal Tippoo Tip! - Tariq exclamou, olhando para a imagem. - É o tio de Adam e o comandante da flotilha pirata. Eu o reconheceria em qualquer lugar.
- Estávamos esperando por ele - Hector disse. - Quem me preocupa é Uthmann Waddah. Ele é o único da gangue que saberá que Nastiya não é Hazel, e que eu não sou Vincent.
Veja se consegue encontrá-lo.
Na tela, Kamal ainda dava ordens aos seus homens.
- Encontrem a prostituta Bannock e o assassino cristão. Eles com certeza estão em uma das cabines do convés abaixo. Prenda-os, mas não os machuquem. Se vocês têm
apreço pela própria vida, cuide para que eles sejam mantidos vivos.
Cinco homens saíram correndo da ponte para obedecê-lo. Kamal se virou para os outros.
- Dividam-se em grupos de cinco. Espalhem-se e revistem todas as partes do navio. Certifiquem-se de que não há mais tripulantes infiéis escondidos a bordo!
Da sala de situação, eles observaram o alvoroço dos piratas pelo navio. Se encontravam uma porta fechada, arrombavam. Eles quebraram as portas dos armários dos coletes
salva-vidas e dos depósitos. Dispararam saraivadas de tiros nos armários trancados nas cabines. Nos alojamentos da tripulação, havia um crucifixo pregado à antepara
acima de um dos beliches. Um pirata o arrancou às gargalhadas e o jogou na privada.
Enquanto isso, os homens que Kamal havia enviado para a suíte principal tinham derrubado a porta com chutes e golpes de coronha. Assim que ela foi ao chão, eles
invadiram a suíte e assolaram as cabines. Com uma violência descabida, destruíram móveis e ornamentos, até por fim irromperem no quarto onde Nastiya e Vincent estavam
amontoados em um canto, fingindo estar aterrorizados. Assim como os outros, eles foram arrastados para fora e amarrados com cabos. Os piratas os fizeram agachar
à força no meio da cabine principal. Dois árabes ficaram de pé sobre eles com as AKs apontadas para a cabeça dos dois, enquanto um outro voltou correndo à ponte
e relatou alegremente a Kamal:
- Venerado príncipe, é com grande alegria que posso informar que capturamos o assassino de seu santo pai e a prostituta. Graças e louvor a Alá e Seu Profeta!
Kamal deu uma olhada para o painel de controle para se certificar de que o navio havia parado e que estava deslizando de lado ao vento sem problemas, e depois disse:
- Vou descer para inspecionar os cativos.
Quando entrou na cabine da suíte principal, foi diretamente até Vincent Woodward e o chutou no rosto.
- Você é o animal que matou meu pai e três dos meus irmãos. Quando chegarmos ao porto, você enfrentará uma morte tão requintada que, no final, vai choramingar como
um cachorrinho, implorando para ser libertado de sua agonia.
Kamal falava inglês fluentemente, ainda que com um sotaque forte. O chute havia quebrado o nariz de Vincent, e uma gota de sangue deslizou sobre seus lábios e pingou
do queixo com a barba por fazer. Vincent não demonstrou nenhuma emoção e encarou Kamal. Isso o irritou de maneira insuportável. Ele gritou no rosto erguido de Vincent:
- Você está calado agora, mas vai gritar alto o bastante quando sentir o ferro incandescente no seu ânus.
Ele o chutou no rosto mais uma vez, mas Vincent abaixou o queixo e o golpe acertou a testa. Kamal o deixou de lado e foi até onde Nastiya estava ajoelhada e ficou
de frente para ela. Ele agarrou um punhado de seus espessos cabelos loiros e torceu a cabeça dela para trás. Ele a encarou. A expressão em seu rosto era vingativa
e rejubilante. Na sala de situação, Hazel assistia ao que mais temia começando a se materializar. Ela agarrou uma das mãos de Hector e a sacudiu violentamente.
- Temos de interromper isto! Ele vai matá-la! - ela soltou.
- Não. Ele não vai. Ele tem medo demais do Adam - Hector a tranquilizou.
Ela reprimiu o próximo protesto, mas apertou ainda mais a mão dele devido à ansiedade que sentiu ao observar Kamal se curvar para encarar Nastiya.
- Os olhos dela são azuis - disse em árabe. - Os olhos de um demônio. São como me disseram que seriam, mas Uthmann Waddah deveria estar aqui para verificar a identidade
dessa porca.
Na sala de situação, Hector assentiu e deu um sorriso sombrio.
- Bom, isso dá conta da minha maior preocupação - disse à sua mulher. - Uthmann não está com o grupo a bordo. Não há ninguém a bordo do navio que possa nos reconhecer.
- Como podemos saber que alguns dos trogloditas de Kamal não nos viram na TV ou em fotos da imprensa? - Hazel perguntou ansiosamente.
- Não temos que nos preocupar com isso. Não existe cobertura televisiva na Puntlândia, e nenhuma publicação em inglês. Adam Tippoo Tip tem a mídia inteira sob controle,
sob ameaça de morte.
Todos viram Kamal cuspir no rosto erguido de Nastiya.
- Vejam a insolência dessa cadela! Acho que deveria deixar alguns dos meus homens exorcizar o demônio dentro dela com suas varas de carne.
Os homens ao redor dele sorriram em expectativa e se aproximaram para olhar para o rosto de Nastiya. Ela retribuiu com uma expressão tão fria que eles abaixaram
os olhos e se afastaram.
- Putinha suja! - Kamal colocou uma das mãos sobre o rosto dela e a empurrou para trás.
Tão veloz quanto um crocodilo ao capturar um cervo à beira de sua lagoa, Nastiya projetou a cabeça para a frente e fincou os dentes na mão dele. Com a outra mão,
ele a acertou no rosto, tentando fazê-la soltar.
- Sua cadela venenosa. Solte ou eu mato você!
Ela sorriu pelos dentes cerrados, e o sangue dele se misturou à saliva ao escorrer pelo queixo. Ele ergueu a mão livre para desferir mais um golpe, mas de repente
a mão ferida foi solta, e ele cambaleou para trás segurando-a contra o peito. Kamal olhou para ela horrorizado. As duas articulações superiores do mindinho haviam
desaparecido. Ela as tinha arrancado com a mordida.
- Sua vaca! Sua porca - ele soluçou -, seu animal imundo.
Nastiya abriu a boca e cuspiu o dedo nos pés dele. Ela sorriu de novo para ele, os dentes manchados de sangue.
- Ela é um demônio do inferno - Kamal se afastou. - Matem-na! Cortem a cabeça dela e deem de comer aos cachorros.
Dois dos homens desembainharam as adagas, mas Kamal se acalmou e os deteve no último momento:
- Esperem! Não, não a matem - arquejou. - O xeique mandou que ela fosse levada até ele com vida.
Ele fez uma careta ao retirar o keffiyeh do pescoço e enrolá-lo ao redor do toco do dedo.
- Não vamos matá-la ainda, mas humilhá-la e castigá-la. Vocês, homens, façam um sorteio e os vencedores vão cobri-la como um cão faz com uma cadela no cio. Mas,
primeiro, falarei com o xeique. Agora tranquem esse homem chamado Cross numa cabine separada. Coloquem cinco homens para vigiar a prostituta. Depois, tenho de colocar
o navio em curso novamente rumo à Baía de Gandanga.
Kamal deu meia-volta e, segurando a mão machucada contra o peito, deixou a suíte principal e retornou à ponte. Caminhou devagar e desengonçadamente como um velho.
Na sala de situação, eles tinham assistido ao episódio violento inteiro e ainda encaravam a tela de CCTV. Hector quebrou o silêncio estupefato.
- Retaliação mínima e submissão rápida - ele repetiu as instruções que passara a Nastiya em voz baixa. - Será que eu devia ter dito em russo para ela entender, Paddy?
- Deixe a coitada da moça em paz. Ela se conteve bastante. Você não tem do que reclamar. Ela só arrancou o dedo dele, pelo amor de Deus.
- Acho que ela foi esplêndida - disse Hazel em tom de admiração. - Um pouco travessa por não ter obedecido você, mas esplêndida mesmo assim.
- Isso não foi nada. Você precisam ver quando ela está realmente enfurecida. Acho que deve ter sangue irlandês nas veias - Paddy disse com orgulho.
Kamal se sentou na cadeira do capitão na ponte do Ganso Dourado. Ele tinha o rosto desfigurado pela dor e aninhava a mão com carinho quando mandou que Cyril Stanford
fosse trazido.
- Vou soltar suas mãos - disse a Cyril. - Se você fizer qualquer tentativa de fugir, será espancado. Você vai obedecer às minhas ordens. Vai conduzir o navio para
onde e como eu mandar. Compreende?
- Se tirar as amarras das minhas mãos, eu manobrarei o navio - Cyril concordou.
Kamal assentiu e mandou que um dos homens cortasse o fio de náilon ao redor dos pulsos do capitão. Cyril foi até a mesa de controle e acionou os aceleradores. Depois,
olhou para Kamal.
- Diga qual é o curso a seguir.
- O rumo magnético é 28 graus - disse Kamal, e Cyril confirmou e digitou no computador de navegação. Ele estabeleceu as revoluções do motor em 120 rpm. O Ganso começou
a se virar majestosamente para a esquerda na direção estipulada. Kamal verificou a bússola e a seguir acenou para um dos homens com um estalar dos dedos da mão que
não estava machucada. Obedientemente, o homem entregou a ele um telefone portátil via satélite. Kamal digitou alguns números, e a ligação foi atendida quase imediatamente
pelo próprio Adam.
- Capturamos o navio, poderoso xeique! - Kamal se levantou da cadeira de comando e foi para a asa de bombordo da ponte, onde a recepção do sinal do satélite seria
melhor.
- Graças e louvor a Alá! - Adam exultou. - E a prostituta Bannock e o vilão Cross?
- São meus prisioneiros. Vou levá-los ao senhor juntamente com o navio, meu lorde e mestre.
- Vou recompensá-lo com o que quiser, meu tio.
- Há um dádiva sua que desejo, grande cacique.
- Peça, e eu a concederei.
- A prostituta Bannock é um demônio em forma de mulher, um monstro com alma de cérbero. Ela arrancou um dos meus dedos com os dentes!
Adam gargalhou alto, e Kamal ergueu o tom de voz repentinamente, fervendo de raiva.
- Meu xeique, desejo puni-la. Quero humilhá-la do mesmo modo que ela me humilhou na frente de todos os meus homens.
Adam parou de rir.
- Já lhe disse diversas vezes que a execução da mulher é um privilégio exclusivamente meu, tio! Sinto prazer em pensar em como irei matá-la. No momento, estou indeciso
entre caçá-la com os cães e esticá-la entre dois caminhões pesados, com um pulso e um calcanhar amarrado a cada um. Quando se distanciarem devagar, os membros dela
serão arrancados da carcaça como as asas de um frango assado - Adam riu ao imaginar a cena. - Você estará ao meu lado assistindo a tudo.
- Será algo bastante interessante e divertido de assistir - Kamal assegurou. - Não estou pedindo permissão para matá-la. Quero dá-la aos meus homens para que se
divirtam. Estarei presente o tempo todo para garantir que a brincadeira não passe dos limites.
- Por que não quer se divertir você mesmo? - Adam o provocou, e Kamal deu de ombros diante do pensamento.
O sobrinho sabia muito bem que a preferência dele era por meninos novinhos, e só de pensar em deixar a prostituta chegar perto o suficiente para tocá-lo fez o dedo
machucado latejar de dor, esfriando qualquer resíduo de ardor que Kamal fosse capaz de nutrir por uma mulher.
- Ela está abaixo da minha dignidade, mestre. Prefiro copular com um porco raivoso.
- Muito bem, meu venerado tio. Deixe os homens currá-la por ambos orifícios, o da frente e o de trás. Porém, você precisa detê-los assim que ela começar a sangrar
copiosamente.
- Meus leais agradecimentos ao senhor, meu magnânimo xeique e mestre.
- Que diabos Kamal está fazendo agora? - Hector pensou em voz alta ao observá-lo em uma das telas entrando pela asa da ponte.
Eles não tinham conseguido monitorar a conversa com Adam da sala de situação. Enquanto isso, viram Kamal falar novamente com Cyril Stanford.
- Vou deixar quatro dos meus homens aqui de olho em cada movimento seu. Não altere a velocidade nem o curso. Nem você nem nenhum membro da sua tripulação deverá
encostar no equipamento eletrônico ou transmitir quaisquer mensagens. Entendeu?
- Entendi - Cyril respondeu com aspereza.
Na sala de situação, Hector assentiu em aprovação.
- Muito bem, Cyril. Pelo menos alguém a bordo está seguindo as minhas instruções.
Eles observaram Kamal reunir o restante de seus homens e conduzi-los até a suíte principal no convés abaixo. Os homens estavam rindo e conversando animadamente.
Quando se amontoaram na sala de estar, Kamal se sentou em uma das poltronas e passou uma série de instruções aos homens. Eles arrastaram a mesa da sala de jantar
ao lado e a colocaram em frente ao chefe no centro da cabine. Assim que se mostrou satisfeito com o arranjo, Kamal deu mais uma ordem, e quatro homens entraram no
quarto da suíte onde Nastiya ainda estava ajoelhada no meio da cabine. Os guardas a vigiavam com precaução. Eles viram como Kamal perdera o dedo. Eles tinham fixado
baionetas aos rifles e se mantinham bem afastados, mesmo que ela estivesse com as mãos amarradas à frente do corpo.
- Kamal mandou levarmos a prostituta até ele - disseram aos guardas, que pareciam aliviados.
Dois árabes se aproximaram de Nastiya e, a um sinal, levantaram-na pelos braços. A seguir, a levaram correndo até a sala de estar e a jogaram na mesa no centro da
sala. Ainda segurando os braços da mulher, eles a deitaram de costas com os pés balançando para fora da mesa. Enquanto a mantinham imobilizada, um outro homem veio
até a mesa com sua adaga curvada na mão direita. Ele passou dois dedos pela abertura frontal do macacão que ela usava e, afastando o tecido da pele, deslizou a ponta
da adaga dentro da abertura, rasgando a roupa até a altura da virilha. A seguir, arrancou o macacão, deixando-a nua sobre a mesa. Os braços dela ainda estavam amarrados
nos pulsos com o cabo verde de náilon. Os que estavam assistindo na sala de situação abaixo estavam calados devido ao choque causado pela cena que se desenrolava
na tela da TV.
Kamal estava sentado na beira da poltrona, acariciando a barba encaracolada e observando com fascinação os homens prepararem Nastiya para o castigo. De vez em quando,
dizia a eles como proceder, e os homens obedeciam prontamente. As luzes do teto incidiam sobre o corpo pálido, esguio e musculoso de Nastiya. Os cabelos estavam
emaranhados ao redor do rosto, os lábios, inchados, assim como um dos olhos, semiaberto e arroxeado, onde Kamal a acertara. Ela parecia bastante jovem e frágil em
comparação aos homens debruçados sobre seu corpo. Eles riam e brincavam uns com os outros, excitados por sua nudez. O homem que a havia despido apertou um dos seios
dela, depois, beliscou o mamilo e o puxou até o limite permitido pela elasticidade da pele. Os demais gargalharam e, a seguir, um após o outro acariciou e beliscou
os seios dela. Eles urravam de alegria enquanto ela permanecia imobilizada pelos dois homens que a seguravam. Seus algozes ficavam se instigando, fazendo palhaçadas,
um tentando ser melhor do que o outro. Um deles segurou o mamilo entre suas unhas sujas, beliscando-o com tamanha crueldade que uma gota de sangue saiu do corte.
Ele lambeu o sangue dos dedos, para o deleite dos companheiros. A seguir, um outro alcançou os pelos púbicos e segurou um dos cachos dourados. Com um puxão violento,
ele arrancou um tufo, cheirando-o como se fosse um buquê de flores. Ele o passou adiante, para que os demais pudessem desfrutá-lo. Nastiya não se mexeu nem gritou.
- Ela consegue fazer isso - Paddy sussurrou. - Auto-hipnose. Ela consegue bloquear a dor.
- Isso é horrível - disse Hazel. - Não pretendia que isso acontecesse. A culpa é toda minha.
- Não! - Hector interviu. - Não é sua. Kamal e Adam são os culpados. Mas logo haverá um ajuste de contas.
A um comando brusco de Kamal, os homens que estavam agrupados ao redor de Nastiya se afastaram, e ele se debruçou sobre ela e mostrou a mão ferida.
- Escute o que vou dizer, sua puta cristã. Vou castigar você pelo ferimento que infligiu a mim. Cada um dos meus homens vai arrombar seu corpo imundo e inundá-la
com jorros de bom esperma muçulmano. Você vai sangrar, vadia. Você vai chorar pedindo misericórdia, sua porca suja.
Nastiya não olhou para ele. Os olhos dela estavam focalizados num ponto distante, e a expressão em seu rosto era tranquila e remota.
- Ela está se preparando para agir - Paddy disse quase inaudivelmente.
Na tela, eles viram que Kamal estava ficando enfurecido e frustrado com a calma distanciada de Nastiya. Ele se virou para os homens com o olhar em chamas.
- Quem vai ser o primeiro a cavalgar esta potranca? - ele gritou.
- Bayhas, o leão! - eles gritaram. - Bayhas, o dono do mastro poderoso. Ele foi o primeiro a montar na filha dessa vadia no Oásis. Ele tem que ser o primeiro a sulcar
a Puta Mãe.
Eles empurraram Bayhas para a frente. Ele riu e abriu a braguilha da calça, colocando seu monstruoso órgão sexual para fora. Ele endureceu e se estendeu ao comprimento
máximo enquanto Bayhas o puxava e massageava.
- Segurem a cadela - ele ordenou ao homens ao redor dela. - Vai ficar maluca de desejo quando sentir esta coisa dentro dela. Abram as pernas dela.
Os homens nos dois lados da mesa afastaram as pernas de Nastiya grosseiramente, e Bayhas se colocou entre elas. Ele cuspiu em uma das mãos e ungiu a cabeça do pênis
com saliva.
- Temos de dar um basta nisso - Hazel soltou. - Temos que entrar na suíte e tirá-la de lá.
- Espere! Você não pode interromper a guerra diante da primeira casualidade - Hector disse.
- A Nastiya não é um soldado - Hazel estava zangada.
- Sim, ela é - Paddy a contradisse. - Ela nunca a perdoaria se você a tirasse de lá agora. É para isso que foi treinada. É a profissão dela. Observe-a! - ele apontou
para a tela.
Bayhas, o leão, estava esfregando o pênis lubrificado na abertura do sexo de Nastiya, mudando de um pé para o outro, posicionando-se para a primeira impelida para
dentro dela. De repente, o corpo ágil de Nastiya formou um ângulo de 90 graus sob ele. Ela conseguiu soltar os tornozelos das mãos dos dois árabes. Ela moveu os
joelhos até a altura dos ombros com uma graciosidade aparentemente natural, projetando-os para a frente de novo com tal força que o movimento pareceu um borrão.
Os calcanhares desnudos golpearam a base do púbis de Bayhas. Pelos microfones, foi possível ouvir com clareza o osso púbico se quebrando, partindo-se na articulação
da sínfise em duas partes separadas. O pênis intumescido ficou preso entre os calcanhares de Nastiya, e a ponta afiada da cinta que ele tinha ao redor da pélvis.
Ele foi esmagado pela força do golpe, e os corpos cavernosos, as câmaras que detêm o sangue no pênis, se romperam, o que o fez esguichar sangue em vez de esperma
enquanto o homem era arremessado de costas contra a antepara. Ele uivou, os joelhos se dobraram, e ele deslizou pela antepara até o chão enquanto segurava os órgãos
danificados.
Nastiya suspendeu as pernas novamente, e dessa vez cada uma se enganchou ao redor dos pescoços dos dois homens que prendiam os ombros dela. Usando o próprio impulso
e força de suas pernas atléticas, ela se moveu para a frente mais uma vez e arremessou os homens para a parede oposta da cabine como se fossem pedras de uma catapulta.
Eles também bateram contra a antepara. Um deles foi de cabeça, e a parte posterior do crânio foi perfurada. O outro conseguiu suspender um braço para proteger o
rosto, mas o cotovelo recebeu a maior parte do impacto e a junta se partiu. Ele rolou sobre o chão choramingando, pedindo misericórdia ao seu deus.
Nastiya ergueu as pernas de novo e saltou para a frente, caindo de pé com um equilíbrio perfeito. Ela se inclinou sobre o corpo do homem morto e, com os pulsos ainda
amarrados, retirou a adaga da cinta do cadáver estendido, girando nos calcanhares para enfrentar o ataque dos outros guardas. Ela cortou a barriga do primeiro e,
quando ele se dobrou para tentar evitar que as vísceras se projetassem para fora do longo ferimento, Nastiya usou o punho de prata e chifre de rinoceronte da adaga
para golpear a base de seu crânio. Ele estava morto antes de se esparramar no chão. Um dos outros guardas surgiu atrás dela, obedecendo aos rugidos raivosos de Kamal.
Nastiya não se virou para encará-lo, mas deu um coice que o atingiu sob o queixo e dobrou sua cabeça para trás tão violentamente que a vértebra do pescoço foi esmagada,
e ele despencou no chão como uma camisa descartada. Seus companheiros se aglomeraram na entrada da suítes ávidos por escaparem.
Ainda segurando a adaga entre as mãos atadas, Nastiya saltou sobre o primeiro corpo e foi até Kamal. Ele percebeu a aproximação dela e se levantou da poltrona de
um pulo, deu meia-volta e saiu correndo. Ele foi o último homem a sair pela porta. Ao alcançá-lo, Nastiya enfiou a ponta da lâmina da adaga em uma das nádegas dele
através do macacão justo que usava. Com mais um uivo de dor e raiva, ele se lançou pela entrada, e um de seus homens bateu a porta, fechando-a. Nastiya passou o
trinco e retornou ao salão, pisando com cuidado entre os corpos, e se empoleirou na beirada da mesa. Ela encaixou a adaga entre os joelhos, deslizou a ponta da lâmina
por baixo do cabo de náilon e, puxando rapidamente os pulsos para cima, cortou as amarras. Quando elas caíram no chão, ela massageou os vergões deixados ao redor
dos pulsos, levantou-se e foi até onde sabia que a câmera estava posicionada. Ficou diante dela completamente nua e sem pudores e olhou para os observadores da sala
de situação nas profundezas do navio. A expressão dela era calma e insondável. Então, deu uma piscadela de um jeito conspiratório e depois sorriu. O sorriso foi
angelical e sereno, como se ela não sentisse nada em relação aos homens mortos espalhados pelo chão da cabine como flores cortadas de um canteiro por um jardineiro
demente.
Durante o tempo todo, os que assistiam da sala de situação permaneceram calados, estupefatos. Por fim, Hazel conseguiu falar.
- O que ela está fazendo agora? - ela perguntou ao ver que Nastiya estava concentrada no painel de ar condicionado na aparata ao lado da porta.
- Ela está diminuindo a temperatura ao máximo - Paddy explicou.
- Por que ela faria isso? - Hazel estava confusa.
- Ela é muito minuciosa - Paddy explicou num tom de total aprovação. - Imagino que não queira que os corpos comecem a feder, não se ela tiver de compartilhar a suíte
com eles.
- E eu estava preocupada, quase tendo um colapso nervoso, com a segurança dela! - Hazel riu, quase histericamente de alívio. - Ela é especial!
- Não é perfeita? - Paddy concordou. - Eu estava hesitante, mas depois dessa pequena apresentação, vou pedi-la em casamento com certeza.
Nastiya deu as costas para os controles do ar condicionado e perambulou pelo quarto da suíte, as nádegas oscilando como um par de sacos de seda cheios de serpentes
vivas.
- Deus! Ela é linda demais - David Imbiss disse num tom de admiração quase religioso.
- Linda demais para você, meu rapaz - Paddy afirmou. - No futuro, quando for olhar para ela, mantenha os olhos firmemente fechados.
Quando Nastiya entrou no quarto, a próxima câmera capturou novamente a imagem. Ela trancou a porta e foi até a penteadeira. Sentou-se em frente ao espelho e, com
uma das escovas de Hazel, arrumou o penteado que Kamal havia desfeito. Quando ficou satisfeita com o resultado, cobriu os hematomas do rosto com pó compacto, e usou
o batom e o perfume Chanel de Hazel. Ela estava brincando com seus espectadores escondidos, completamente ciente de que todos os olhos estavam sobre ela. Ela se
levantou e examinou o guarda-roupa do closet no outro lado da cabine. Sem pressa, olhou as prateleiras de lingerie e, por fim, escolheu um conjunto de calcinha e
sutiã Janet Reger de seda e renda veneziana. Ela segurou a calcinha na frente do corpo e olhou para a câmera com a cabeça dourada inclinada para o lado, obviamente
em busca de aprovação. Eles não podiam quebrar o silêncio e aplaudi-la, mas Dave colocou dois dedos na boca e deu um assovio quase inaudível.
- Perfeito! Eu mesma não poderia ter escolhido melhor! - Hazel murmurou baixinho.
Quase como se pudesse escutá-los, Nastiya sorriu mais uma vez.
Uma das unidades do equipamento de navegação eletrônica no topo do mastro acima da ponte do Ganso Dourado tinha uma conexão com a sala de situação na área escondida.
O operador nas entranhas do navio era capaz de monitorar o radar e o GPS. Na sala de situação, eles eram mantidos tão informados a respeito dos avanços do navio
quanto os homens na ponte.
Uma atmosfera de tensão impregnava a área escondida inteira. Os homens praticamente não diziam nada e, quando falavam, era em murmúrios. Na maior parte do tempo,
eles verificavam e preparavam seus equipamentos: afiavam as facas de trincheira, descarregavam os pentes de munição, poliam e lubricavam cada projétil para se encaixar
com facilidade no pente, limpavam os buracos dos canos dos rifles até brilharem e ajustavam os gatilhos para que funcionassem com suavidade e perfeição. Hector e
seus agentes mantinham total atenção na sala de situação, monitorando as telas de navegação e de CCTV.
Vincent Woodward permanecia trancado em uma das cabines menores no mesmo andar da suíte principal. Tinha os pulsos amarrados por cabos, e dois guardas armados até
os dentes estavam sentados no beliche estreito cobrindo-o com suas AK-47. Outros três guardas estavam posicionados no lado de fora da porta da cabine. Duas vezes
ao dia, Kamal descia da ponte para ventilar sua cólera em Vincent. Começava cuspindo nele e invocando a ira de Alá sobre o pagão imundo que tinha assassinado seu
pai e seus irmãos, e então o chutava de novo, mirando a barriga e a virilha. Vincent se dobrava numa bola para proteger os órgãos vitais e rolava para evitar a intensidade
dos golpes. Quando Kamal finalmente se cansava, pegava a AK de um dos guardas, que acompanhavam a demonstração com prazer, e encerrava a surra com duas ou três pancadas
da coronha revestida de aço do rifle na cabeça de Vincent. Porém, a mão ferida de Kamal doía tanto que os golpes não tinham muita força. Vincent conseguia se proteger
do maior impacto com facilidade.
- O Vincent está trabalhando por seus dez mil dólares - David comentou.
- Devo adicionar um bônus ao pagamento dele por serviços prestados além do dever - disse Hazel, abalada pela selvageria do temperamento de Kamal.
- Bobagem! - Paddy argumentou. - Para o Vic, uma cocegazinha assim é tão pesada quanto o beijo de uma mulher feia.
Ele pensou por um momento e então adicionou:
- Ele provavelmente preferiria a surra à uma mulher feia.
Havia mais cinco homens vigiando a porta da cabine de Nastiya. Nenhum deles tinha ousado entrar no salão onde ainda jaziam os corpos de seus camaradas. Eles reforçaram
as trancas e empilharam móveis pesados contra a porta para se protegerem. Eles não disfarçavam a trepidação. Mantinham-se tão afastados da porta barricada quanto
permitido pelos limites da cabine, e nunca tiravam os olhos dela. De dedos nos gatilhos, estavam preparados para repelir mais um redemoinho repentino de chutes,
golpes e quebras de dentes.
Kamal emergiu da cabine oposta onde estivera espancando Vincent e se virou para os próprios homens, bradando furiosamente:
- Vocês deixaram os corpos de seus valentes companheiros com aquela demônia? Não têm respeito pelas leis e pelos costumes? Eles devem ser enterrados ou jogados ao
mar antes do anoitecer. Tragam-os já para fora!
Ninguém parecia ter pressa de fazer mais uma incursão à suíte principal, mas eles finalmente juntaram coragem suficiente para remover a barricada cuidadosamente
e deixar a porta levemente aberta. Quando espiaram cautelosamente pela fresta e descobriram que Nastiya não estava à espera deles, entraram correndo juntos no quarto,
pegaram os corpos e arrastaram-os segurando pelos calcanhares. Depois, trancaram rapidamente a porta e empilharam a mobília diante dela.
Enquanto isso, na cabine interna, Nastiya relaxava em uma das poltronas de couro de bezerro, comendo chocolates da caixa que encontrara na geladeira da cozinha e
folheando preguiçosamente uma das revistas de moda da pilha da mesinha de centro. Ela mal ergueu o olhar quando ouviu os árabes resgatarem seus mortos na cabine
ao lado. Nastiya vestia calças verde-claras, lindamente confeccionadas em lã pura, e sobre elas, um vibrante top Emilio Pucci do guarda-roupa de Hazel.
- A moça tem um gosto excêntrico - David Imbiss observou.
- Certamente tem - Hector concordou. - Ela está com Paddy, não é? Isso faz o excêntrico parecer mundano.
Houve mais um incidente significativo, e eles puderam acompanhá-lo nas telas de CCTV da sala de situação. Depois das vítimas terem sido lançadas ao mar com uma breve
cerimônia, Kamal permanecia agitado. Ele começou a deixar a ponte em diferentes horas do dia e da noite. Um de seus tenentes vigiava Cyril Stanford, enquanto Kamal
rondava pelo resto do navio examinando as anteparas entre os compartimentos e os diferentes andares. Kamal parecia ter um sentimento insistente de que tinha deixado
passar algo importante.
Quando começou a bater com a adaga em algumas seções do casco e a escutar o eco com atenção, Hector foi ficando cada vez mais alarmado. O andar sob a ponte que tinha
sido convertido para armazenar o canhão Bushmaster recebeu a investigação minuciosa de Kamal. Ele o examinou cautelosamente, chegando mesmo a descer até o convés
de carga para espiar a antepara externa que escondia o convés de canhões. Quando Kamal retornou à ponte, Hector escutou uma conversa entre Kamal e Cyril Stanford
sobre essa seção. Como sempre, Cyril tinha uma explicação plausível mas totalmente fictícia. Ele explicou que a área armazenava maquinaria delicada e controlava
o bombeamento nas profundezas do navio. As bombas controlavam a temperatura e distribuição de gás nos tanques de carga. Acima de uma certa temperatura, o gás se
tornava tão volátil que podia explodir espontaneamente e destruir o navio inteiro. Cyril explicou que a maquinaria era controlada remotamente por satélite de uma
dos departamentos técnicos nos Estados Unidos. Até mesmo ele, como capitão, não podia entrar na área sensível enquanto o navio estivesse no mar.
- Então essas pessoas vão conseguir ler a nossa mudança de curso? - Kamal perguntou.
- Isso o preocupa, Capitão? - Cyril perguntou.
- De forma alguma - Kamal sorriu e balançou a cabeça. - Dentro de poucas horas estaremos em segurança em águas territoriais. Não há nada que eles possam fazer.
No entanto, as explorações prosseguiram, e ele cutucou e espiou cada canto. Uma tarde, descobriu a escotilha que levava até os túneis de serviço, que conectavam
os diferentes porões de gás e alojavam as enormes bombas que faziam a carga de gás circular e esfriar, transferindo-a de um tanque para outro para manter o equilíbrio
e a posição do navio na água se necessário.
Em Taiwan, quando o casco foi reconfigurado para criar espaço para a área escondida, tinha sido necessário mover essa escotilha de acesso do meio do navio para o
bombordo da torre da popa, um sacrifício complicado e insatisfatório que atrairia a atenção de um marinheiro do calibre de Kamal. Kamal abriu a escotilha e se enfiou
pelo labirinto de túneis embaixo dos tanques de armazenamento de gás, explorando-os exaustivamente. Os espectadores na sala de situação logo acima dele acompanhavam
seus avanços com ansiedade pelos sensores de infravermelho. Num determinado momento, Kamal bateu com o punho da adaga em uma das tubulações de gás, e o som das pancadas
se propagou tão claramente que a impressão foi de que ele estava na sala com eles. Eles prenderam a respiração até que, para seu alívio, pareceu que Kamal tinha
finalmente decidido que essa área do Ganso Dourado não continha nada de sinistro. Ouviram os passos nos degraus de aço da escada quando ele subiu de volta ao convés
de carga, além da sala de situação.
O Ganso percorria os quilômetros de águas tropicais reluzentes sob sua proa gigantesca, e a cada hora eles se aproximavam mais do continente africano.
- Você tem uma estimativa de quando vamos chegar à Baía de Gandanga? - Hazel perguntou quando estavam à mesa do refeitório.
- A hora estimada de chegada fornecida pelo GPS são nove horas da manhã da quinta-feira, dia catorze: em três dias - David respondeu à pergunta dela.
Eles estavam comendo filés de bisonte canadenses e batatas fritas com ketchup. Apenas Hector deu uma chance ao molho apimentado de jalapeños. Embora essa refeição
rústica fosse servida em pratos e talheres de plástico, os copos de poliestireno estavam cheios de vinho Malconsorts Burgundy vintage. Hazel estava guardando a bebida
para uma ocasião bastante especial, e decidira que era aquela. Hector saboreou o vinho com reverência.
- Um dos vinhos mais raros e divinos deste mundo - disse com tristeza - sendo bebido nas condições mais insalubres neste mesmo mundo.
- Coma, beba e seja feliz - Paddy aconselhou. - Pois amanhã...
- Cale a boca, Paddy! - David exclamou logo em seguida.
- Pois amanhã prosperaremos? - Hazel sugeriu erguendo o copo. - Progrediremos? Seremos bem-sucedidos?
- Pois amanhã os bandidos irão morrer - Hector disse, e todos beberam após o brinde com uma solenidade adequada.
Ao colocarem os copos na mesa, Tariq subiu da sala de situação até a escada do tombadilho.
- Hector! Paddy! Venham depressa!
- O que foi, Tariq? - Hector perguntou ao se colocar de pé.
- Novo sinal no radar. Navio desconhecido se aproximando de nós. Cheira a problema.
Eles abandonaram a refeição, até mesmo o vinho Malconsorts, e desceram em grupo pela escada do tombadilho até o convés inferior, onde se reuniram em frente aos monitores.
O contato exibido pelo repetidor do radar do navio era brilhante e consistente.
- Navio grande - disse Dave. - Vou verificar a velocidade.
Ele operou o medidor e então se recostou na cadeira.
- Quarenta e três ponto seis nós. Navios mercantes não queimam combustível assim. É um navio de guerra - ele checou os outros instrumentos. - Cyril está mantendo
um curso e uma velocidade constantes.
- Pode acreditar que sim! - Hector disse com amargura. - Ele não tem como fugir de um galgo inglês a essa velocidade. Espero que não seja uma das cavalarias norte-americanas
atacando para nos resgatar e estragando tudo.
Ansiosamente, eles assistiram às imagens sendo transmitidas da câmera no topo do mastro de comunicações do Ganso. O estranho navio surgia rapidamente no horizonte.
Era cinza e austero, funcional como a lâmina de um machado de batalha.
Da ponte do Ganso Dourado, o navio que se aproximava ainda estava abaixo da linha do horizonte. Kamal não possuía a mesma vantagem conferida pela altura da câmera
escondida na ponta do mastro, mas estava analisando a imagem no radar com avidez. Quando não tinha mais dúvidas, ele se virou para Cyril Stanford.
- Você é ianque, não é? - perguntou.
Cyril era da região ao sul da linha de Mason-Dixon, mas não achou que era sensato começar a discutir.
- Sou norte-americano, sim.
- O navio desconhecido vai nos interceptar. É com certeza um navio de guerra infiel, talvez inglês, mas mais provavelmente norte-americano. Você fala com eles -
ele agarrou Cyril pelos ombros e o fez virar para ele, encarando-o ameaçadoramente. - Se eles quiserem vir a bordo nos revistar, você vai detê-los. Não me importa
o que ou como, mas você vai dizer algo que os faça ir embora. Entendeu direito?
- Entendi direito - Cyril disse em voz baixa.
- Se um grupo de abordagem vier até nós, você morrerá antes que eles cheguem.
Kamal tirou a adaga da cintura e picou a garganta de Cyril. Uma gota de sangue vermelho-vivo transbordou do ferimento minúsculo.
- Você compreende que estou falando sério?
- Compreendo - Cyril concordou.
Ele não se mexia, mas virou os olhos e falou no mesmo tom baixo de voz:
- O navio desconhecido já está à vista.
Kamal se virou rapidamente e olhou para a porção do estibordo. A superestrutura do navio que se aproximava surgiu com clareza acima do horizonte e, nesse momento,
o canal de frequência marinha 156.5 Mhz crepitou na sala de rádio do Ganso no fundo da ponte de comando.
- Navio-tanque na amura de bombordo! Aqui é o Comandante Robins a bordo do destróier USS Manila Bay da Marinha dos Estados Unidos. Que navio é você? - Cyril olhou
para Kamal.
- Quer que eu responda?
- Sim. Mas lembre-se de que será o primeiro a morrer se cometer um erro.
Cyril assentiu. Ele foi até a sala de rádio e desenganchou o microfone. Fez uma pausa. Não queria parecer muito disposto a agradar nem eficiente. O outro capitão
esperaria uma atitude um pouco mais relaxada vinda de um navio mercante.
- Olá! Manila Bay. Aqui é o Ganso Dourado. Capitão Stanford. Seguindo de Sidi el Razig, no Golfo Pérsico, a Jedá, na Arábia Saudita.
Houve um prolongado silêncio, e então Robins voltou à linha.
- Capitão Stanford! O senhor por acaso não seria um cidadão norte-americano, seria?
- Filho da mãe! Como sabe? - Cyril exagerou um pouco o sotaque. - Pode ter certeza que sou. Cyril Stanford, antigo comandante do cruzador Reno da marinha norte-americana.
Fui aposentado por ser velho e decrépito demais - ele deu uma risadinha.
O destróier demorou alguns momentos a responder.
- Qual é o seu porto de registro e o nome do seu dono?
- Meu dono é a Bannock Cargoes, e o porto de registro é Taipei.
- Ok! Confere. Capitão Stanford: o senhor por acaso tem um filho que se formou em Anápolis em 1996?
- Com certeza tive, comandante.
- O nome dele é Timothy?
- Tenho certeza absoluta de que não é! O nome dele era Bobby. E o seu é Andy. Vocês dois eram companheiros de navio. Bobby o levou a um churrasco na nossa casa certa
vez. Esqueceu?
- Não, senhor, capitão. Eu me lembro muito bem. Só estava conferindo. Sua esposa faz uma excelente torta de maçã.
- Obrigado. Ele teria ficado contente de ouvir isso, Andy. Mas, infelizmente, faleceu há quatro anos.
- Sinto muito, senhor.
- Eu também, Andy.
Na sala de situação, Hector deu um assovio baixinho.
- Onde você encontrou esse cara, Paddy? Ele é um príncipe.
- Afiado como a espada de um samurai - Paddy concordou. - Vamos ver o que vai fazer para que um grupo de abordagem não venha a bordo.
Sutilmente, Andy Robins retornou ao motivo da conversa.
- Capitão Stanford, o senhor está no comando absoluto do seu navio?
Cyril deu uma risada descontraída.
- Espero que sim! Ainda não estou senil, independente do que a Marinha pensa de mim.
- Se precisar, posso enviar um grupo de abordagem até o senhor e prestar assistência.
- Muito gentil da sua parte, Andy, mas isso atrapalharia tanto a minha rotina quanto a sua. Garanto que não é necessário. Está tudo sob controle. Tenho um cronograma
apertado.
Mas Andy voltou a falar:
- O senhor está ciente de que está navegando em uma área do Oceano Índico perigosa devido a atividades de pirataria? Há apenas quatro dias um baleeiro japonês foi
capturado por piratas no Golfo de Adem.
- Fiquei sabendo - Cyril concordou. - No entanto, meus donos negociaram com os governantes da Puntlândia. A Puntlândia nos garantiu passagem livre por suas águas.
Penso que estaremos suficientemente protegidos contra qualquer molestação.
- O senhor acredita na palavra de um pirata, Capitão?
- Meus donos acreditam - Cyril respondeu. - Isso basta para mim.
- A decisão é sua, senhor - Andy Robins aquiesceu relutantemente. - Boa viagem, Capitão. Mas me diga, antes de nos despedirmos, como está o meu velho camarada Bobby?
- O Taliban o pegou no Afeganistão, Andy.
- Filhos da mãe! - disse Andy em voz baixa, mas com intensidade.
Na sala de situação, eles observaram o Manila Bay dar meia-volta e retornar na direção em que havia surgido. Hector se levantou e espreguiçou.
- Aqui está, senhoras e cavalheiros. Passagem livre para a Baía de Gandanga, com os cumprimentos do Capitão Cyril Stanford. Agora vamos dar cabo daquela garrafa
de Malconsorts antes que também seja roubada pelos piratas.
O xeique Adam decidiu mudar a estrutura doméstica do Oásis do Milagre inteira para a Baía de Gandanga, para recepcionar o Ganso Dourado quando Kamal Tippoo Tip conduzisse
o prêmio infiel para dentro da baía. A chegada dos prêmios capturados tinha se tornado tão lugar-comum que Adam raramente se movia da segurança e do conforto de
sua fortaleza.
Ele tinha sete esposas. Três mais do que o permitido pelo Corão. O mullah havia lhe garantido que um governante de sua estatura poderia ter mais mulheres do que
um plebeu. Além das esposas, ele possuía mais de cem concubinas. Ele nunca sabia ao certo quantas, pois os números mudavam continuamente. Seus alcoviteiros esquadrinhavam
o país inteiro em busca de jovens meninas solteiras. Com o avançar da idade, o gosto de Adam se tornava cada vez mais pedofílico em relação às mulheres. Qualquer
menina acima de treze anos pouco o atraía. Elas o interessavam apenas até demonstrarem os primeiros sinais de puberdade. Ele gosta de senti-las rasgando por dentro
quando as penetrava à força. Gostava da sensação do sangue quente se espalhando em sua barriga e do som dos gritos e do choro das meninas. Naquele presente momento,
ele tinha treze dessas coisinhas trancadas em seu harém, à espera de receber sua atenção. Ele gostava de usá-las apenas uma vez, e depois as enviava de volta à família
no vilarejo, com cem dólares de presente para o pai. Seu gosto peculiar e sua generosidade eram tão largamente conhecidos que, quando os alcoviteiros chegavam em
qualquer uma desses vilarejos remotos, havia sempre várias famílias esperando por eles para oferecerem suas filhas. Adam havia discutido a maneira como tratava as
meninas com o mullah, que havia garantido que todas as mulheres foram postas neste mundo por Alá com um único propósito: satisfazer todos os desejos do homem, incluindo
a provisão de filhos, mas que a obrigação não se limitava a isso.
Adam havia reunido uma equipe pessoal de seguranças de quase duzentos homens, alistados e treinados por Uthmann Waddah. Sua rede de espiões se estendia por todo
o Oriente Médio, do Cairo à Jordânia e além. Ele possuía uma central de comunicações equipada com aparelhos eletrônicos de ponta, através dos quais estava em constante
contato com seus banqueiros e consultores de investimentos no Irã, na China, Taiwan e em outros países dos Extremo Oriente que estivessem a salvo das presas dos
cães de guarda da Reserva Federal Norte-Americana e de outros órgãos reguladores ocidentais. Havia muito tempo que Adam aprendera a abrir portas secretas com grandes
quantias de dinheiro.
Ele tinha construído uma pista de aviões no deserto, perto da fortaleza. Diariamente, seu jato pessoal voava a fim de satisfazer quaisquer indulgências ou extravagâncias
que ele imaginasse ou desejasse. Não havia muitos motivos para que deixasse o Oásis e se aventurasse por um mundo que não controlava completamente. Especialmente
por estar ciente de que Hector e sua meretriz norte-americana estavam à espera dele com um desejo ardente de vingança em seus corações. Poucas razões mesmo para
se aventurar no exterior, exceto para dar as boas-vindas ao maior prêmio que já navegara os oceanos na Baía de Gandanga: o Ganso Dourado e seus dois inimigos mais
virulentos, conduzidos amarrados até ele e completamente à sua mercê.
Seus subordinados haviam erguido uma cidade de tendas coloridas no ponto mais alto com vista para a Baía de Gandanga. Todos os membros mais próximos da família,
seus empregados domésticos e seguranças mais leais, cavalos, cães e falcões de caça com seus adestradores, e quatro de suas menininhas ainda intocadas haviam sido
transportados para a costa num comboio de caminhões. Quando estavam todos acomodados na cidade de tendas e os preparativos em ordem para recebê-lo, Adam e Waddah
voaram do Oásis do Milagre à Baía de Gandanga em um dos helicópteros Bell Jet Ranger. Uthmann assumiu os controles. Ele havia treinado com a força aérea do Irã,
que tinha boas relações com a Puntlândia e o novo xeique. Os iranianos aprovavam totalmente a devoção de Adam ao Islã e apoiavam com entusiasmo sua guerra não declarada
aos navios das nações infiéis. Nos anos mais recentes, Uthmann tinha se transformado num habilidoso piloto de helicóptero. Ele demonstrara uma aptidão natural para
a função e possuía a coordenação visomotora exigida.
Ele contornou a baía a uma baixa altitude, pairando sobre cada um dos navios capturados para que Adam os admirasse, enquanto um de seus oficiais de milícia sentado
no fundo do helicóptero recitava a tonelagem, o valor do casco e o carregamento de cada um deles. Havia várias centenas de milhões de dólares em navios ancorados
abaixo deles. No entanto, Adam não estava satisfeito. O olhar dele passou avidamente dos navios para as águas vazias do oceano a leste.
"Logo! Kamal chegará muito em breve, trazendo não apenas uma fortuna imensa, mas também o homem que assassinou metade da minha família. Será o dia mais delicioso
da minha vida quando eu assistir ao Ganso Dourado adentrar a baía. Tudo o mais que conquistei não será nada em comparação a esse tesouro."
Ele estava consumido pela impaciência. Olhou de lado para Uthmann Waddah no assento do piloto e pensou em mandar que deixasse a baía e voasse ao encontro do navio-tanque.
Poderiam aterrissar no convés, e ele gozaria seu triunfo dois dias antes. Então, ele sacudiu a cabeça. Sabia que seria inútil pedir que Uthmann voasse até o mar.
Uthmann era um piloto altamente engenhoso e capaz. Porém, a intensidade de sua aquafobia era tanta que só de se afastar da praia e sobrevoar as águas a uma baixa
altitude, ele ficaria paranoico ao ponto de se tornar incapaz de pensar ou agir racionalmente. Como se fosse possível, esse terror pioraria ainda mais se avistassem
os enormes tubarões cruzando as águas da baía abaixo deles. Esses carniceiros haviam sido atraídos pelos detritos e outros tipos de lixo dos navios capturados que
haviam sido despejados no mar. A seguir, Adam pensou em usar um dos barcos de ataque e fazer a tripulação levá-lo até o navio-tanque. Se fosse dez anos mais jovem,
não teria hesitado, mas ultimamente havia amolecido e se acostumado a uma existência segura e confortável. Um barco veloz pequeno em qualquer tipo de mar seria extremamente
desagradável - ele sentiu uma leve solidariedade pela aversão que Uthmann sentia pela água.
Não, decidiu, havia várias distrações no acampamento de tendas para que ele passasse o tempo de maneira agradável o suficiente até a chegada de Kamal. De distâncias
de até 160 quilômetros, todos os capitães e chefes tribais das redondezas já haviam chegado para prestar homenagem. Adam tinha desenvolvido um apetite por elogios
exuberantes e subserviência bajuladora. Para completar, Uthmann prometera a execução de vários criminosos que haviam sido capturados por seus homens, ou trazidos
pelos capitães que sabiam de seu interesse na aplicação da justiça e de castigos. Ele podia confiar em Uthmann quanto a ser criativo e inventivo. Isso era na verdade
um ensaio para as sentenças que ele dispensaria a Cross e sua meretriz. Uthmann providenciaria para que o cães de caça se divertissem. Quando essa brincadeira se
esgotasse, havia sempre suas menininhas. Ele se remexeu de prazer no assento do helicóptero e a seguir bateu no ombro de Uthmann, apontando para o agrupamento de
tendas coloridas na encosta. Uthmann assentiu e inclinou o helicóptero de lado. Adam sorriu ao ver a multidão que aguardava para lhe dar as boas vindas. Eles estavam
dançando, balançando bandeiras e faixas e descarregando suas armas no ar em uma feu de joie.
O mar sob o casco do Ganso mudou de cor e de temperamento com a aproximação do navio do continente africano. Perdeu o brilho cor de safira das águas profundas e
se tornou pardo e sombrio, as ondas eram mais verticais e corriam em fileiras mais próximas diante do vento. Havia aglomerados de algas marinhas e outros detritos
à deriva na correnteza e pássaros pairando e mergulhando por sobre revoltos cardumes de pequenos peixes. Enquanto o sol se punha e extinguia suas chamas nas águas,
o sistema de GPS mostrava que a distância até a entrada na Baía de Gandanga era de 68 milhas náuticas.
Durante a noite, a quarta desde a tomada do navio, Hector e Hazel estavam de vigília na sala de situação. Uma das câmeras escondidas estava focada na ponte, e eles
ouviram Kamal mandar Cyril diminuir a velocidade e alterar o curso em quatro graus sentido oeste. Desde que Cyril conseguira apaziguar a situação com o capitão do
navio de guerra norte-americano, fazendo-o ir embora, a maneira como Kamal tratava seus cativos se tornara, se não exatamente magnânimo, pelo menos um pouco mais
condescendente. Nas últimas 48 horas, ele não tinha ido até a cabine onde Vincent Woodward estava aprisionado para xingá-lo, chutá-lo e dar coronhadas em sua cabeça.
Ele chegara até mesmo a permitir que os guardas lhe dessem uma caneca d'água e um prato de restos de comida. Ninguém tinha coragem de levar comida nem bebida para
Nastiya. As portas da suíte permaneciam trancadas e barricadas, mas atrás delas Nastiya estava confortavelmente acomodada. Ela havia descoberto várias latas grandes
de caviar Beluga na geladeira da cozinha, juntamente com pacotes de carne seca apimentada em fatias Biltong, salmão defumado e chocolates suíços.
Na ponte, Cyril sugeriu a Kamal que enviasse um de seus homens até o ambulatório do navio para buscar o kit de primeiros socorros; ele concordou, e Cyril desinfetou
e enfaixou o toco do dedo de Kamal, e o fez engolir um punhado de antibióticos e analgésicos fortes. O humor de Kamal melhorou dramaticamente. Ele até ficou de vigia
no lugar de Cyril Stanford e permitiu que ele se esticasse e dormisse no beliche da sala do rádio por algumas horas. Quando mandou um dos homens ir acordar Cyril
e trazê-lo de volta ao seu posto, em vez de forçá-lo a ficar de pé sob a mira de uma arma, ele deixou que se sentasse no banco do capitão e conversou com ele bastante
amigavelmente sobre as características de navegação e manejamento do Ganso Dourado, a operação do console navegacional e as configurações dos motores do navio. Ele
pareceu particularmente interessado no equipamento de sondas de profundidade. Agora, quando ordenava uma mudança de curso e velocidade, ele fazia a concessão de
discuti-la com Cyril.
- Estamos chegando bastante perto do nosso destino, mas não quero chegar quando estiver escuro. É difícil usar as vias e a entrada do porto na escuridão. Além disso,
meu amado xeique e milhares de pessoas do meu povo estarão reunidos para dar as boas-vindas à nossa chegada. Quando virem o tamanho e a importância dessa embarcação,
vão ficar cheios de felicidade. Não quero privá-los desse prazer. Eles têm de ver o esplendor do prêmio que estou levando em plena luz do dia, com o nascer do sol
de fundo. Tenho de conseguir levá-lo o mais próximo da praia que seja seguro.
- Estou muito contente pelo senhor - Cyril não havia cometido o erro fatal de demonstrar que estava ciente da identidade de Kamal. - No entanto, pode me dizer que
acontecerá ao meu navio, meus passageiros, minha tripulação e comigo quando alcançarmos o porto?
- Seus passageiros se tornarão convidados de honra do meu xeique - Kamal deu um sorriso calmo diante do próprio eufemismo. - Você, sua tripulação e seu navio permanecerão
conosco por um tempo, mas vamos entrar num acordo com os donos e a seguradora. Quando isso acontecer, você estará livre para continuar sua viagem sem sofrer nenhum
dano. Inshallah!
Se é o desejo do seu Deus - Cyril concordou.
Kamal pareceu espantado e depois sorriu.
- Estou gostando da sua companhia, ianque. Vou lamentar quando nos despedirmos.
- Talvez, se Deus for bom, nós nos encontraremos de novo? - Cyril retribuiu o sorriso. Um de seus dentes da frente havia caído quando o pirata o golpeara com a coronha
do rifle. O buraco vazio em sua boca lhe conferia uma expressão suspeita.
- Eu o adoro, você não? - Hazel sorriu ao observar Cyril na tela de vídeo. - Ele é tão superlegal, como Cayla teria dito.
- Ele é durão, nosso camarada - Hector concordou.
Ele ficou contente de ouvir Hazel mencionar o nome de Cayla tão naturalmente. Estaria ela aceitando finalmente o fato de que filha partira, ele se perguntou.
"Não!", disse a si mesmo em resposta. "Não vai acabar, não para a Hazel, não para mim, até concluirmos o que viemos fazer aqui."
Embora soubesse a hora exata em que entrariam na Baía de Gandanga, Hector deixou que a tropa dormisse por mais quatro preciosas horas. Quarenta minutos antes do
amanhecer, ele passou adiante o comando "levantar". Discretamente, cada um dos homens foi acordando o que estava à sua frente e, em dez minutos, estavam todos reunidos
e completamente equipados e de coletes à prova de balas no segundo andar. Eles observavam avidamente o rosto de Hector, que estava diante das fileiras proximamente
agrupadas. Ele gesticulou para que colocassem os auscultadores dos rádios Falcon nos ouvidos, e depois, com as mãos em forma de concha ao redor do microfone do próprio
aparelho, falou em voz baixa. Embora estivesse falando diretamente nos auscultadores dos homens, não seria possível que qualquer som de voz humana ecoasse através
das anteparas e alertasse um pirata na escuta.
- Estamos prestes a adentrar o porto dos piratas. Vocês todos estudaram os mapas que Tariq Hakam desenhou para nós, portanto sabem, em geral, o que esperar. No entanto,
não temos como saber exatamente qual será a ancoragem escolhida por Kamal para o Ganso. Sam, talvez o percurso nos VAAs até a praia seja longo, mas os artilheiros
de Dave irão manter o inimigo de cabeça baixa até que vocês aportem em segurança. Como todos sabem, nosso objetivo principal é capturar ou neutralizar dois homens
em particular. Vocês já viram os rostos em vídeo várias vezes, mas vou mostrar pela última vez. Esses nobres cavalheiros são o primeiro prêmio.
Hector ligou o telão de vídeo na antepara atrás dele e iniciou a projeção. As primeiras imagens a surgirem eram dos arquivos da Cross Bow Security. Eram várias tomadas
excelentes de Uthmann Waddah, conversando com Hector, dando uma palestra sobre armas de fogo na zona de tiro e treinando novos recrutas.
- Muitos de vocês conhecem esse homem - Hector disse. - Ele já foi um dos membros da Cross Bow. Ele é extremamente perigoso. Marquem bem o rosto dele. O prêmio pela
cabeça dele, vivo ou morto, é de cinquenta mil dólares.
Houve um burburinho de entusiasmo entre os homens que assistiam. Hector mudou as imagens projetadas. Primeiro, foram mostradas as diversas fotos de passaporte obtidas
por seu contato na Interpol francesa. Eram retratos de frente e de lado do sujeito.
- O nome dessa pessoa é Adam Tippoo Tip, e ele é um homem de importância na Puntlândia, um xeique e o chefe de sua tribo. Ele é também o líder dos piratas - Hector
explicou. - Não se esqueçam de que essas fotos foram tiradas há quase sete anos. Tariq o viu recentemente e disse que a barba está totalmente crescida e escura.
Ele também engordou um pouco.
Hector projetou mais uma imagem na tela.
- Agora este vídeo, que foi filmado há pouco mais de quatro anos.
Hector começou a mostrar o clip do pedido de resgate que Adam havia enviado do celular de Cayla. Ampliado na tela cheia, estava um pouco granulado e embaçado. Adam
estava olhando para câmera e falando, mas o som havia sido extraído da gravação, e ele pronunciava suas ameaças silenciosamente. No fundo da área de agrupamento,
Hazel se levantou e saiu correndo, incapaz de assistir mais uma vez ao rosto do assassino de Cayla. Hector repetiu as cenas três vezes. Então, desligou o aparelho
de vídeo e falou ao microfone, diretamente nos ouvidos dos homens.
- O prêmio pela cabeça de Adam é de cem mil dólares.
Os ouvintes sorriram maliciosamente, e alguns assentiram. Hector olhou para eles com satisfação. Estavam tão excitados quanto uma matilha de cães com o cheiro da
caça nas narinas, ansiosos para serem soltos da coleira. Ele mandou Tariq ir buscar Hazel e, quando ela voltou, Hector continou a falar pelo rádio.
- Vou mudar agora para a câmera no topo do mastro do navio. Ao vivo.
A imagem mudou para um visão panorâmica da costa africana diante do Ganso Dourado. Ainda estavam a cerca de cinco a oito quilômetros de distância. O relógio na parte
inferior da tela mostrava que eram seis horas e dezessete minutos. A neblina do calor ainda não havia obscurecido a linha de montanhas azuladas no horizonte a oeste.
O sol nascente destacava seus contornos. Eles estavam olhando para a embocadura ampla e aberta de um porto extenso e natural, protegido em ambos os lados por dois
promontórios baixos. Nas profundezas da baía, havia um agrupamento desordenado de navios.
- Chegamos afinal ao adorável e prazeroso resort da Baía de Gandanga, Joia da Costa Africana! - disse Hector num tom bastante irônico. - Temos até mesmo um comitê
de boas-vindas a caminho para recepcionar vocês todos.
Uma flotilha de embarcações piratas de ataque jorrou da entrada da baía e se encaminhou a alta velocidade na direção do Ganso. A esteira de espuma causada pelos
poderosos motores fazia a superfície borbulhar como leite fervente. Todos os barcos estavam lotados de homens barbudos de pele escura. Quando se aproximaram mais,
puderam ver que trajavam o uniforme da milícia jihadista, calças folgadas e turbantes pretos, e que brandiam seus rifles ou cimitarras.
- Hora de se dirigirem aos seus postos, cavalheiros - Hector lhes disse. - Lembrem-se! Não vamos sair do esconderijo até sabermos exatamente onde estão Uthmann Waddah
e seu chefe, Adam. Isso pode demorar devido à grande quantidade de pessoas circulando, mas quando conseguirmos avistá-los no meio da multidão, teremos de agir depressa.
Tentem capturar os dois alvos com vida. No entanto, se escaparem de vocês, não hesitem em matá-los. Receberão o prêmio mesmo assim - Hector fez um gesto girando
o braço direito. - Ok! Posição de combate!
As equipes de artilheiros de David Imbiss se agruparam num silêncio sombrio, e Dave os conduziu até a entrada do sistema de túneis escondidos. Eles subiram a escada
rapidamente até a plataforma dos canhões embaixo da ponte. Em alguns minutos, Dave se comunicou com Hector pelo rádio de batalha.
- Os dois canhões carregados e tripulados, Heck - Hector aprovou e a seguir se dirigiu a Sam Hunter.
Embora estivessem de frente um para o outro, ele usou o rádio de batalha para manter os níveis de barulho absolutamente mínimos.
- Ok, Sam. Coloque seus homens nos VAAs. Mas ainda estamos operando no modo "navio silencioso". Não dê partida nos motores até receber minha ordem.
Sam assentiu brevemente e depois conduziu os noventa homens do grupo de desembarque pela escada do tombadilho, subindo até o andar sob o convés de carga. Foi um
pouco mais demorado do que posicionar os homens atrás dos canhões, mas finalmente a voz de Sam foi ouvida pelo rádio.
- Todas as tripulações dos VAAs a postos. Cabos de suspensão acoplados e prontos. Escotilhas dos torreões fechadas e motores desligados. Estamos prontos para o lançamento.
- Certo, Sam - Hector aprovou.
Então, eles olharam para os homens restantes na área de agrupamento. Eram os soldados ofensivos. Eles encabeçariam o ataque a bordo do navio. É claro, Hector era
o comandante geral, mas seus tenentes eram Paddy e Tariq.
Os seis homens de Hector formavam um grupo variado. Dois gêmeos, Jacko e Bingo MacDuff, de Glasgow, dois iraquianos, um australiano de Queensland e um afrikaner
alemão da Namíbia. Eram todos combatentes e assassinos. Se a sorte estivesse do lado dos atacantes, e Adam e Uthmann viessem de saveiro real recepcionar o Ganso,
e se fossem diretamente para a ponte cumprimentar Kamal, tudo seria cem vezes mais simples. Hector e seu grupo seriam capazes de capturá-los de uma vez só.
Mas, quaisquer que fossem os desdobramentos, Hector e seu grupo tinham de capturar Kamal e os quatro jihadistas que o acompanhavam na ponte. Assim, poderiam libertar
Cyril Stanford e os outros membros da tripulação que estavam sendo mantidos ali. Do alto da ponte, Hector poderia ter uma visão geral da baía inteira e avistar o
paradeiro de Adam e de seu braço-direito. Ele seria capaz de direcionar os artilheiros de David Imbiss até os alvos principais. Depois, destruiriam a frota de barcos
de ataque de Kamal e dariam cobertura ao desembarque dos três VAAs na praia, e ao seu retorno das áreas de encarceramento trazendo os marinheiros dos navios capturados
pelos piratas.
Paddy e sua equipe atacariam o segundo andar. Seu primeiro objetivo seria subjugar os guardas da suíte principal e da cabine menor, no mesmo andar onde Nastiya e
Vincent estavam detidos. Uma vez que resgatassem os reféns, estariam preparados para se deslocar rapidamente até qualquer área do navio em que Hector precisasse
deles.
Tariq e seu grupo atacariam o andar mais baixo dos alojamentos do Ganso, onde os outros tripulantes estavam sendo mantidos pelos piratas. Quando conseguissem o controle
do andar, teriam também o comando do convés de carga principal. Depois que os homens de Paddy descessem também para reforçar o grupo, poderiam concentrar todas as
forças na tarefa principal, que era capturar Adam onde quer que estivesse.
Levando em conta a aversão patológica que tinha pela água do mar, era extremamente improvável que Uthmann Waddah acompanhasse o xeique, mas ele com certeza estaria
na praia para testemunhar a entrada triunfante do Ganso Dourado na Baía de Gandanga. Hector estava confiante de que conseguiria avistá-lo através das poderosas lentes
telescópicas da câmera na ponta do mastro do navio. Depois, talvez tivesse de ir atrás dele e persegui-lo.
Durante todo o decorrer da ação, Hazel e seus quatro assistentes manteriam Hector e seus agentes informados dos desdobramentos e do paradeiro exato de todos os piratas
a bordo. Os cinco permaneceriam na sala de situação para monitorar todos os equipamentos de escuta e câmeras. Os homens sob o comando de Hazel eram todos falantes
nativos de árabe e traduziriam cada palavra proferida por Kamal e sua gangue para ela.
Ao amanhecer, o Ganso Dourado se locomovia devagar e com cuidado entre os promontórios de areia da Baía de Gandanga. Sob a direção de Kamal, tateava o caminho até
o canal de águas profundas. Hector, Paddy e Tariq observavam o cenário adiante na tela repetidora da antepara da área de agrupamento. A superfície da baía estava
inundada de pequenas embarcações. A matilha de barcos de ataque já estava rodeando o navio-tanque. O rugido dos motores, os estalidos dos disparos de rifle, os gritos
e a cantoria eram tão altos que Hector conseguia ouvi-los até mesmo nas profundidades do casco do navio.
Hector falou ao microfone do rádio:
- Hazel? Você viu Adam? Ele deveria estar vindo na nossa direção no saveiro real. De acordo com Tariq, ele estará vestindo uma túnica branca e uma faixa dourada
ao redor do turbante. Será fácil reconhecê-lo.
- Negativo, Hector. Não estou vendo ninguém que corresponda a essa descrição - Hazel respondeu.
Hector tinha absoluta certeza de que Adam iria querer ser o primeiro a pisar a bordo do Ganso Dourado. Seu plano inteiro se baseava nessa premissa, mas agora ele
sentia uma pontada dolorida de dúvida.
"Merda! Se a primeiríssima coisa der errado", ele pensou, "então todo o resto dará errado!"
Mas ele não podia deixar que suas dúvidas afetassem os demais, então disse calmamente:
- Hazel? Onde está Kamal? Ele aparece nas suas telas?
- Afirmativo, Hector. Kamal está na asa de estibordo da ponte com três piratas. Está acenando para os homens nos barcos pequenos, que estão aplaudindo. Cyril Stanford
está ao leme do navio. Tudo está ficando, de certa forma, confuso.
- Ok, Hazel. Fique de olho no porco do Kamal. Não posso esperar mais. Temos de nos posicionar nos túneis para saltar para fora das escotilhas.
Hector assentiu para Paddy e Tariq. A seguir, foi para a entrada do túnel e subiu depressa. A largura da escada não permitia a passagem de mais do que um homem de
cada vez. Os seis homens de seu grupo o seguiram de perto. Assim que o último desapareceu pelo túnel, Paddy conduziu o grupo dele logo atrás. Eles pararam no andar
da suíte principal. Paddy conseguia ver os coturnos de solado macio dos homens da equipe de Hector nos degraus de aço acima dele. Quando olhou para baixo, viu o
topo do capacete de Tariq. Ele estava no andar dos alojamentos da tripulação e do convés de carga. A escada estava carregada de homens armados preparados para a
ação.
Hector recostou um dos ombros na entrada clandestina da ponte e suspirou ao microfone.
- Hazel, onde está Kamal neste momento?
- Ele voltou da asa de estibordo. Está com Cyril ao leme. Acho que está se preparando para lançar a âncora.
- A que distância estamos da praia?
Houve uma pausa enquanto Hazel fazia a leitura do telêmetro.
- Setecentos e trinta e quatro metros - ela disse. - Kamal nos deixou bem perto.
Hector estava ciente de um estrondo e de uma vibração leves, e imediatamente Hazel prosseguiu:
- Sim! Consigo ver que Kamal soltou as duas âncoras da proa.
- Nenhum sinal ainda do saveiro do Adam?
- Não. Nenhum.
- Os homens dos barcos de ataque estão subindo a bordo do Ganso?
- Não, estão gritando e atirando para o ar, mas estão mantendo distância do nosso navio. É quase como se estivessem esperando algo acontecer.
- Consegue ver algum sinal de Adam ou de seu saveiro na praia?
- Há centenas de pessoas ali, mas não não vejo sinal dele ou de Uthmann Waddah.
- Onde está esse desgraçado? Não podemos fazer nada até que ele dê as caras - Hector se queixou.
- Espere! Kamal saiu de novo para a asa de estibordo - Hazel disse baixinho. - Está fazendo mais uma ligação no telefone via satélite.
- Pode apostar todo o seu dinheiro que ele está falando com seu mestre - Hector deduziu.
Com as saias da túnica enfiadas entre os joelhos, Uthmann Waddah se agachou na clareira na periferia da cidade de tendas acima da Baía de Gandanga. Ele pressionava
o telefone via satélite contra a orelha e, à sua frente, tinha uma excelente vista do ancoradouro onde o grande navio estacionara. Embora o tivesse observado durante
a hora e meia em que havia entrado tranquilamente pela baía e ancorado perto da praia, ainda estava espantado com o tamanho enorme. Não parecia possível que nada
de tal magnitude fosse capaz de flutuar. O convés ao ar livre parecia maior do que a pista de pouso que Adam construíra no Oásis do Milagre. Dava a impressão de
ser espaçoso o suficiente para que um 737 aterrissasse sobre ele e, além disso, o navio estava a menos de um quilômetro da praia. Uthmann se sentiu muito mais confiante
em relação às ordens que Adam havia dado. Ele estava escutando a voz de Kamal no telefone via satélite e, ocasionalmente, confirmando as ordens que recebia.
- Como quiser, nobre príncipe! Passarei sua mensagem a ele imediatamente, Alteza.
Eram títulos extravagantes para um herdeiro sem importância de uma família medíocre de bandidos, mas Kamal parecia aceitá-los como se os merecesse. Uthmann encerrou
a ligação e se levantou. Ele ajustou a bandoleira de munição sobre o ombro e empunhou o rifle de assalto. Depois, caminhou rapidamente em direção à maior tenda do
acampamento. Adam olhou para cima quando Uthmann se prostrou diante dele.
- Falou com meu tio? - Adam estava sentado em uma almofada de lã de carneiro da montanha. A túnica dele era esvoaçante e branquíssima. O turbante era feito do mesmo
tecido. E a faixa da cabeça era de filigrana de ouro de dezoito quilates.
- Neste exato momento! - Uthmann respondeu. - Ele me pediu para assegurar ao senhor que está tudo bem. Ele tem controle total do navio. Revistou cada centímetro,
e não há nenhum inimigo escondido a bordo. Todos os cativos infiéis estão amarrados e indefesos. Mas a notícia que irá alegrar seu coração é que Hector Cross e sua
meretriz, Hazel Bannock, permanecem prisioneiros. Estão totalmente rendidos, esperando seu julgamento e a execução de mãos atadas. Seu tio implora humildemente para
que vá até ele e tome posse do grande tesouro trazido.
- Você ainda deseja me levar de helicóptero até o navio, Uthmann?
- Desejo e estou ansioso para ser útil da maneira que for, meu xeique.
- Você não estava com tanta vontade assim ontem e anteontem - Adam o lembrou.
- Ontem o navio estava no oceano a centenas de léguas. Temia apenas pela sua segurança, meu xeique. Se a aeronave falhasse tão longe da terra firme, o senhor correria
um grave perigo. Mas hoje o navio está a menos de um quilômetro da praia. Sua pessoa sagrada estará segura. Mesmo que haja algum problema com o motor do helicóptero,
serei capaz de levá-lo a um ponto seguro de pouso em terra firme.
- Estou profundamente tocado pela sua preocupação com a minha segurança - Adam zombou dele, e Uthmann se prostrou mais uma vez para esconder a raiva nos próprios
olhos.
Adam extraía prazer em debochar do terror que Uthmann sentia em relação à água. Essa única fraqueza de certo modo o rebaixava ao mesmo nível que o próprio Adam -
não mais o guerreiro perfeitamente intrépido e invencível.
Adam estava com sua pasta de couro preto no colo. Era quase como se fizesse parte de seu corpo. A pasta o acompanhava a todos os lugares. Ele nunca a perdia de vista.
Não confiava em ninguém para carregá-la. Uma corrente de aço inoxidável estava acoplada à estrutura, e dela se dependurava uma algema do mesmo metal. Adam prendeu
a algema no pulso esquerdo. Uthmann sabia que era uma fechadura de combinação. Segurando a pasta, Adam se pôs de pé e, com a mão direita, fez um gesto pomposo em
direção à entrada da tenda.
- Muito bem, Uthmann Waddah. Leve-me até o meu inimigo de sangue, Hector Cross. Minha vingança foi adiada por tempo demais.
- Hector! As coisas estão acontecendo - a voz de Hazel era suave nos ouvidos do marido. - Kamal deixou a ponte. Cyril Stanford está sendo vigiado por quatro membros
da milícia. Eles o amarraram pelos pulsos e cotovelos e o forçaram a sentar-se no chão. Kamal foi para o segundo andar. Os homens dele amarraram Vincent e o trouxeram
para fora da cabine. Agora a gangue inteira está reunida em frente à suíte principal. Lá vão eles! Eles arrombaram a porta e estão invadindo a suíte. Nastiya está
de pé no meio da cabine. Não está fazendo nada para se defender. Eles estão amarrando os braços dela para trás pelos pulsos e cotovelos. Agora estão segurando-a
abaixada e amarrando uma tira curta ao redor dos tornozelos. Estão com um medo irracional dos lindos pezinhos dela. Com a tira, a Nastiya mal vai conseguir andar.
Meu Deus! Eles agora estão colocando uma corda-trela ao redor do pescoço dela. Kamal não vai correr mais nenhum risco em relação a ela. Agora, Nastiya está sendo
arrastada por seis brutamontes para fora da suíte. Dois homens a estão segurando pela corda. Kamal não se aproxima a menos de dez passos dela. Parece que estão levando
Nastiya e Vincent para o elevador. Nastiya está se comportando de maneira muito dócil...
A voz de Paddy interrompeu a transmissão:
- Hector! Posso ouvi-los pela escotilha. Kamal está a poucos passos de mim. Consigo ouvir a voz dele claramente. Poderia entrar agora e tirar Kamal e seus homens
da jogada numa só tacada.
- Negativo, Paddy! Repito: negativo! Temos de esperar até que Adam apareça antes de agir. Acate essa ordem!
- Recebida e entendida! - Paddy disse com a voz atormentada.
"Coitado", pensou, "estão com a mulher dele, e ele está de mãos atadas." Hector sentia por ele.
- Hector, eles estão descendo de elevador - Hazel disse. - Eles deixaram o segundo andar abandonado. Agora, alcançaram o andar do convés de carga. Os homens de Kamal
estão levando os dois prisioneiros à força para o lado de fora.
- Paddy! Desça de novo pela escada e se junte ao grupo do Tariq no andar abaixo de você - Hector ordenou.
- Cumprirei a ordem! - Paddy respondeu formalmente.
"Ele está verdadeiramente puto comigo", Hector pensou com um sorriso sem graça.
De repente, a voz de Hazel perfurou seus tímpanos. O tom era agudo de entusiasmo.
- Hector, um helicóptero está se aproximando da praia. Parece ser a mesma máquina que sobrevoou o Ganso antes de o Kamal subir a bordo.
- Hazel, vá comentando - Hector ordenou. - Consegue ver quem está na cabine?
- Negativo! O sol está batendo sobre a cabine e refletindo diretamente nas minhas lentes. No entanto, todos os piratas dos barcos de ataque estão totalmente concentrados
no helicóptero. Estão acenando com faixas e gritando como um bando de babuínos na hora da refeição. Os quatro homens que Kamal deixou de vigia sobre Cyril se amontoaram
na asa da ponte para observar o helicóptero e participar do tumulto e da gritaria! - Hazel tomou fôlego e prosseguiu logo em seguida. - Espere, o helicóptero está
se inclinando para o lado oposto ao sol. Agora consigo ver quem está dentro da cabine. Dois homens nos bancos da frente. O piloto e um passageiro. O passageiro no
banco da direita está de turbante branco e tem uma faixa dourada na cabeça. Posso jurar que é o Adam!
- Vamos dar graças por isso - Hector disse aliviado. - Agora me escutem, vocês todos. Vou invadir a ponte de comando. Se todos os homens estiverem olhando para o
outro lado, conseguirei capturá-los sem grande alvoroço. A partir daí, verei o que é melhor fazer. Paddy e Tariq: mantenham-se em seus postos no túnel do andar do
convés de carga, mas estejam preparados para agir. Dave, fique alerta. Vamos precisar logo, logo dos seus Bushmasters.
Todos aceitaram as ordens, e Hector se moveu para a borda estreita sob a escotilha. Havia espaço para mais três homens se juntarem a ele, e os outros três estavam
amontoados no topo da escada de aço logo abaixo deles. Hector soltou a faca de trincheira na bainha de seu cinturão, fez um sinal de positivo com o polegar para
os homens e depois deu um tapa nos ombros do homem que segurava o martelo ao seu lado. Ele moveu o martelo numa linha curva e, com um único golpe, o pino que trancava
a escotilha de aço se soltou, e ela se abriu. Liderados por Hector, todos passaram apressados pela escotilha. Os quatro piratas estavam aglomerados na ala oposta
da ponte. A atenção deles estava totalmente voltada para o helicóptero que se aproximava e, como seus camaradas dos barcos de ataque, gritavam, berravam e atiravam
para o ar. Estavam tão absorvidos que não tinham sequer ouvido a escotilha se abrir atrás deles. Hector tinha chegado ao meio da ponte quando um dos piratas se virou
e olhou por sobre os ombros. Ele encarou Hector completamente embasbacado. Antes que conseguisse se recuperar, Hector cortou o pescoço dele de lado com a faca em
suas mãos. Ele caiu no chão e ficou totalmente imóvel. Hector pulou sobre ele e usou o cabo da faca de trincheira para golpear o somali inclinado sobre a grade da
ponte ao lado. Ele despencou sobre a primeira vítima de Hector. O pesado cabo da faca deixou uma depressão do tamanho e no formato de um porta ovo quente na parte
de trás do crânio. Os homens atrás de Hector, os irmãos MacDuff, esfaquearam os dois piratas restantes, mas fizeram um serviço um pouco atrapalhado. Um pirata estava
no chão chutando o ar, deitado numa poça crescente do próprio sangue. O último saiu cambaleando em direção à escada do tombadilho que descia até o próximo andar.
O sangue jorrava da ferida que tinha nas costas, e ele gritava selvagemente em árabe:
- Cuidado! Os infiéis estão aqui!
Ele chegaria ao fundo da escada antes que Hector conseguisse atravessar a extensa ponte e alcançá-lo. Hector extraiu a pistola 9 mm do coldre de liberação rápida.
Ela era como uma extensão de seu próprio corpo, e o disparo foi exatamente na direção em que estava olhando. Ele mal percebeu o soltar do gatilho, mas foi um tiro
perfeito no cérebro da vítima. A cabeça do pirata estremeceu e o corpo dele pareceu derreter como uma barra de chocolate no micro-ondas. O corpo mole escorregou
pela escada e despencou sobre o primeiro patamar. Do momento em que invadiram a ponte até o disparo da pistola de Hector tinham se passado menos de cinco segundos.
- Você acha que eles ouviram o disparo? - perguntou o agitado baixinho escocês ao lado de Hector, enquanto limpava a lâmina manchada de sangue nas calças.
- Duvido, Bingo - Hector balançou a cabeça. - Não com todos esses caras lá fora atirando a esmo com as AK.
A seguir, ele olhou para o pirata no chão que ainda estava gemendo e se arrastando de barriga para baixo.
- Diga ao seu irmão para concluir o que começou. Depois, você pode libertar o Capitão Stanford e a tripulação.
Jack se curvou sobre o homem ferido e agarrou um punhado de sua barba. Ele puxou a cabeça para trás para que o pescoço ficasse à mostra. Hector virou as costas e
foi até a asa da ponte. Atrás dele, ouviu o árabe arfar e gorgolejar pela última vez após Jack fazer um corte preciso em sua garganta.
Sob o teto da ponte, mantendo-se totalmente fora do alcance da vista, Hector olhou para o céu em busca do helicóptero. Ele o avistou sobrevoando baixo, aproximando-se
bem devagar da proa do navio-tanque, os rotores batendo contra o vento enquanto o piloto desligava o comando coletivo e iniciava uma descida controlada. Hector assistiu
à aeronave pousar gentilmente sobre o convés de aço.
A porta da cabine do passageiro se abriu, e uma figura de aparência marcante desceu para o convés. Um homem alto, vestindo uma túnica e um turbante brancos e reluzentes.
A barba dele era cheia, negra e encaracolada. A barriga sob a túnica branca, ligeiramente protuberante. Na mão esquerda, carregava uma pequena pasta de couro preta.
Ele ergueu o outro braço num gesto de benção ao avançar sobre o convés na direção de Kamal e seus homens. Todos se puseram de joelhos e arrastaram os dois cativos.
- Ave, grande xeique! - Kamal exclamou. - Guerreiro filho de guerreiros!
Na asa da ponte, olhando o grupo de piratas no convés de carga, Hector falou com os lábios a poucos centímetros do microfone do rádio.
- Paddy, onde está você?
- Estou com o Tariq, a postos na escotilha de entrada número um!
- O helicóptero aterrissou. Adam desembarcou. Kamal está no convés de carga para saudá-lo. Nastiya e Vincent estão com eles. Kamal irá entregá-los a Adam. Estão
todos desprevenidos. Este é o momento de atacá-los, antes que percebam que Nastiya e Vincent são impostores. Vá, Paddy! Vá!
- Positivo! - Paddy gritou com intensa alegria. - Lá vamos nós!
Hector verificou a situação no convés de carga abaixo dele uma última vez. Muito pouco havia mudado desde que falara com Paddy, exceto pelo fato de que o piloto
do helicóptero de Adam havia descido da cabine e estava recostado na fuselagem. Ele segurava um rifle de assalto de um jeito casual. Hector olhou para ele de relance.
Kamal e Adam eram suas principais preocupações. E então, em um reflexo atrasado, ele se conscientizou de quem era o piloto. O olhar dele disparou de volta ao homem,
e ele sentiu o coração ser perfurado por um pingente de gelo.
- Não! Não é possível. Uthmann não sabe pilotar helicópteros. Mas é ele. É Uthmann!
Enquanto pensava, Kamal gritou uma ordem, e dois homens se ergueram do chão de um salto, arrastaram e colocaram tanto Nastiya quanto Vincent de pé, empurrando-os
na direção de Adam que se aproximava.
- Veja, poderoso xeique! - Kamal exclamou. - Conforme mandou, trago ao senhor o assassino Cross e sua meretriz.
Adam se deteve e olhou para os dois cativos com um ar incerto.
E então, de trás dele, veio o grito de Uthmann Waddah:
- Esse não é Cross! Essa não é Hazel Bannock! É uma armadilha, meu xeique. Cuidado! O infiel está prestes a atacar.
Ele correu de volta ao helicóptero sem esperar por Adam e arremessou o rifle pela porta aberta, rápido como um furão entrando pela toca de um coelho. Ele tinha deixado
os motores ligados e os rotores girando a esmo. A seguir, sentou-se curvado no banco do piloto, mantendo a cabeça bem abaixada enquanto agarrava os controles e acelerava
os motores. O helicóptero se levantou do convés e rodou em seu eixo na direção da praia.
Adam ainda estava correndo no convés abaixo, gritando em árabe:
- Espere por mim, Uthmann! É uma ordem. Não me deixe aqui à mercê do Cross!
Uthmann não ergueu a cabeça uma única vez para olhar para ele. Em vez disso, abaixou o nariz da aeronave e partiu, sobrevoando as águas da baía a uma baixa altitude.
Hector tinha uma visão distorcida dos poucos centímetros do topo da cabeça de Uthmann pela cobertura de acrílico. A aeronave estava subindo e se inclinando acentuadamente.
O alvo era infinitesimal, os ângulos, impossíveis. Desesperado, Hector atirou e viu o acrílico da cobertura quebrar, deixando um buraco afastado demais para conseguir
deter Uthmann. O helicóptero não oscilou e acelerou diretamente em direção à praia, ganhando altitude e velocidade. Hector levou o microfone do rádio aos lábios.
- Dave, Dave! Mostre suas armas. Dispare contra aquele helicóptero. Uthmann é o piloto. Não o deixe fugir. Derrube-o, pelo amor de Deus, derrube-o!
- Positivo! - Dave respondeu imediatamente.
Do convés embaixo dele, Hector ouviu o estrondo das dobradiças das portas de aço que escondiam o compartimento das armas se desprenderem e revelarem os dois canhões
Bushmaster. Mas o helicóptero já estava se aproximando da praia a setecentos metros de distância. Hector o observava avidamente. Ele ouviu Dave gritar ordens no
andar de baixo. A seguir, vieram clarões e os fantásticos estalidos causados pelos disparos de três projéteis de explosão aérea de cada um dos canhões gêmeos na
direção da aeronave em fuga. Hector viu as lufadas de fumaça e de chamas das explosões surgirem no céu acima do helicóptero. Aquela única saraivada fora suficiente.
Ele viu o helicóptero dar uma sacolejada e trepidar em voo quando a tempestade de bolas de aço rasgou a fuselagem. O piloto deveria ter morrido instantaneamente,
e o motor, sido destruído, pois os rotores pararam de funcionar em pleno ar. O nariz da aeronave embicou para baixo e iniciou um mergulho descontrolado em direção
à superfície do mar.
E então ocorreu o milagre. Hector viu o helicóptero recuperar o controle, o nariz se erguendo em posição para auto-rotação. O rotor começou a girar mais uma vez,
mas agora o fluxo de ar sob as hélices havia revertido. Não estava conduzindo a aeronave para a frente, mas brecando sua queda bruscamente. Estava planando em direção
à praia, e Hector deu uma ordem para Dave pelo microfone, para que continuasse a disparar contra o helicóptero. Não houve resposta. A voz de Hector fora abafada
pelo estrondo de canhão. David Imbiss não havia captado a ordem de Hector. Em vez disso, havia trocado de alvo, e ambas as armas agora disparavam contra o cerco
de barcos de ataque.
Os projéteis de fragmentação explodiram no ar acima deles, e as balas de aço reduziram os frágeis cascos de madeira a lascas, abatendo os homens nos barcos. As embarcações
sobreviventes deram meia-volta a toda velocidade e se dirigiram para a segurança da praia. O helicóptero continuou a planar em auto-rotação em direção à praia, mas
diante dos olhos de Hector, despencou na água um pouco antes de chegar, jogando uma nuvem de borrifos para o alto. Por alguns momentos, desapareceu, mas então emergiu
de novo na superfície e flutuou de lado.
"Com certeza nem mesmo Uthmann poderia ter sobrevivido a isso", Hector pensou, mas a porta de cima do helicóptero se abriu devagar, e uma figura humana engatinhou
para fora e se agarrou à fuselagem. A distância era grande demais para que fosse possível reconhecer o rosto, mas ele sabia que era Uthmann. As mãos dele estavam
vazias. Ele havia deixado o rifle na cabine. De qualquer modo, a linha de tiro era de seis ou sete mil metros, extensa demais até mesmo para a Beretta.
- O filho da mãe não sabe nadar e morre de medo da água - Hector disse em voz alta, mas sem muita convicção. Ele observou a figura distante cair da fuselagem do
helicóptero para o mar, e esperava que ele afundasse. Mas a água batia só até as axilas de Uthmann. De mãos atadas, Hector o viu debater-se em movimentos frenéticos
e descoordenados, e então chegar cambaleando até a praia.
Hector se virou para o convés de carga atrás dele e viu as equipes de ataque combinadas de Paddy e Tariq saírem de repente pelas portas inferiores da torre da popa
e correrem na direção do grupo de árabes ao redor de Kamal. De imediato, as duas forças se viram envolvidas numa luta acirrada. O número de homens de cada lado era
praticamente igual, e a briga foi cara a cara e no braço. Ninguém podia correr o risco de atirar por receio de acertar os próprios homens.
Hector viu Paddy tentando abrir caminho até Nastiya em meio a confusão, mas uma dúzia de homens interveio, e ele teve de atacá-los para se proteger. No lado oposto
ao tumulto, Kamal havia agarrado a ponta da corda ao redor do pescoço de Nastiya e a estava puxando de marcha-ré, ao mesmo tempo que chamava Adam desesperadamente
em árabe.
- Por aqui, meu xeique. Siga-me. O helicóptero e os barcos nos abandonaram. Siga-me!
Adam passou por um dos homens de Paddy que agarrou uma das dobras do turbante solto do xeique, mas ele se virou e o espetou no olho com sua adaga curvada. O homem
foi ao chão com o tecido enrolado ao redor dos dedos, e Adam correu atrás de Kamal e Nastiya com a cabeça descoberta.
Hector estava a uma altura muito grande acima do convés de carga para poder intervir de maneira ativa. Ele tentou adivinhar o que Kamal faria a seguir, e depois
o viu correr para a escotilha no canto da torre da popa. Kamal sabia muito bem que aquele era o acesso para os túneis de serviço entre os tanques que alojavam as
enormes bombas que faziam circular o gás natural. Havia poucos dias que, do sistema de CCTV da sala de situação, eles tinham visto Kamal explorar esse labirinto
úmido e entrelaçado das entranhas do casco. Kamal devia ter decidido usá-lo como esconderijo. Ele arrastou Nastiya, que se debatia, pela ponta da corda através da
escotilha, e Adam foi atrás, empurrando Nastiya escada abaixo atrás de Kamal. Ele bateu a porta de aço da escotilha, fechando-a com o trinco.
- Paddy! - Hector chamou pelo rádio de batalha e viu que ele olhou para cima. - Kamal e Adam levaram Nastiya para o túnel de serviço das bombas. Kamal tem um rifle,
mas Adam, apenas uma adaga. Coloque um guarda em ambas extremidades do túnel. Não há como Kamal e Adam saírem. Eles estão presos lá embaixo. Podemos tirá-los à força
de lá mais tarde. Mas primeiro você tem de lançar os VAAs do Sam e mandá-los para a praia para dominar a cidade e soltar os marinheiros capturados das barricadas.
Estou passando o comando do Ganso Dourado a você. Vou para a terra firme lidar com Uthmann.
Enquanto falava, Hector estava tirando o pesado colete à prova de balas e todos os outros equipamentos que dificultariam sua mobilidade na água. Ele ficou apenas
com a faca, o rádio e a pistola Beretta 9 mm que estavam acoplados ao arnês do cinto. Ele olhou ao redor e viu que Jack estava logo atrás.
- Vou para a praia, Jacko. Assuma o comando do grupo. Nossa missão aqui em cima está encerrada. Desça e se coloque sob o comando de Paddy O'Quinn juntamente com
os outros homens no convés de carga. Boa sorte, Jacko - disse Hector.
Enquanto falavam, ele pensava no passo seguinte. A maioria dos barcos de ataque havia fugido para a praia numa tentativa de escapar dos disparos dos Bushmasters
de David Imbiss. No entanto, havia alguns piratas ardilosos que estavam usando o próprio casco do Ganso como escudo. Eles abraçavam as laterais do navio tão perto
que os canhões montados no alto da torre da popa eram incapazes de disparar contra eles. Naquele momento, um desses barcos de ataque estava se escondendo diretamente
embaixo de onde Hector se encontrava, na asa da ponte. Embora a queda da ponte para a água fosse amedrontadora, Hector não hesitou. Ele tomou distância caminhando
de costas até onde estava o console de navegação, no meio da ponte. Bingo MacDuff havia acabado de libertar Cyril Stanford, que estava ao lado do console. Cyril
compreendeu de imediato o que Hector estava prestes a fazer, e disse com uma voz rouca de respeito:
- Você tem uns belos colhões, sr. Cross.
- Olhe quem está falando! - Hector deu um sorriso sério para Cyril e então começou a correr.
Ao alcançar a grade na asa da ponte, ele estava se movendo à velocidade máxima. Mergulhou o mais distante que a força e o impulso o puderam levar. Daquela altura,
não podia arriscar um mergulho de cabeça. Se se virasse no ar e caísse de costas, sua espinha se partiria como um pretzel. Em vez disso, quando estava no ar, ele
se encolheu numa bola, com os joelhos apertados contra o peito, a cabeça abaixada e os dedos de ambas as mãos entrelaçados atrás da nuca. Os intestinos dele foram
arremetidos para cima sob as costelas durante a queda e, a seguir, ele atingiu a água. O impacto fez o ar se esvaziar dos pulmões e adormeceu suas nádegas, que tinham
atingido a água primeiro. Ele submergiu com o ímpeto de uma bala de canhão. Do fundo da água, olhou para cima e viu a silhueta oscilante do escaler contra a luz.
Lutando contra a necessidade de respirar, nadou em sua direção. Ele impeliu para cima nos últimos metros e emergiu ao lado do longo casco do navio de ataque. Enganchando
os dedos na amurada, ergueu o corpo de lado, ao mesmo tempo que inalava uma poderosa lufada de ar puro.
Havia dois piratas no barco. Estavam nus exceto pelos panos ao redor da cintura e o turbante imundos. Eles olharam para Hector espantados. Um deles ficou de pé em
um pulo, e tinha um rifle de assalto nas mãos. Antes que conseguisse erguer a arma, Hector se projetou com força contra ele, atirando-o para o mar com um dos ombros.
Hector sentiu um arrependimento momentâneo pelo rifle ter ido junto. O outro homem estava agachado atrás dos controles do motor externo, vermelho e prateado, de
duzentos cavalos, na popa. Ele começou a se levantar, mas não foi rápido o suficiente. Hector saltou sobre a bancada do escaler e deu mais dois passos ligeiros em
direção a ele, chutando-o no queixo erguido como se fosse uma bola de futebol. A cabeça do homem foi jogada bruscamente para trás, e ele caiu esparramado sobre a
cobertura do enorme motor externo, deslizando a seguir para o fundo do escaler, debatendo-se no porão como um peixe capturado e indefeso. Hector se abaixou sobre
ele, agarrou-o pelos calcanhares e rolou o homem para o lado. O pirata caiu chafurdando com o rosto na água. Hector se voltou para o motor externo. Ainda estava
ligado, o ruído dos exaustores borbulhando sob a proa. Ele fez a mudança de marcha e girou o cabo do acelerador. O barco foi impelido para a frente.
Porém, nesse momento, um corpo humano mergulhou da lateral mais alta do navio-tanque, espirrando água bem em frente à proa do escaler. No instante da queda, Hector
reconheceu o homem que saltara. Ele desacelerou e retornou a marcha ao ponto morto, depois correu até a proa e olhou para as águas turvas onde o corpo havia caído.
Ele viu o homem subir nadando do fundo, e então a cabeça irrompeu a superfície. Ele afarva em busca de ar.
- Tariq! Seu idiota, a hélice podia facilmente ter transformado você em carne moída!
Ele se debruçou sobre uma das laterais e conseguiu agarrar Tariq pelo braço, puxando-o para dentro do barco. Em seguida, correu de volta ao motor externo da proa
e girou o acelerador até o máximo. Lá embaixo, o barco saltou para a frente, e ele o alinhou na direção dos destroços do helicóptero que ainda chafurdava na beira
da praia. Por sobre a proa, Hector olhou para o Ganso Dourado logo atrás e, alarmado, viu o cano dos dois canhões Bushmaster girando na direção deles, começando
a rastreá-los e a encontrar a linha de tiro.
Ele gritou para Tariq sobre o ronco do motor:
- Depressa! Levante-se e acene para o David Imbiss. Ele está prestes a cometer um pequeno erro e nos mandar pelos ares.
Tariq ficou de pé em um pulo e se equilibrou no escaler oscilante, acenando com ambas as mãos acima da cabeça. Imediatamente, os canos dos canhões se desviaram,
e eles viram a cabeça de Dave surgir detrás do canhão da esquerda. Ele acenou com o capacete, num gesto de desculpas. Depois, desapareceu atrás do escudo de proteção,
e o canhão virou na diagonal para a direita e voltou a disparar em alguns dos outros barcos de ataque que estavam se dispersando pelas águas da baía. Tariq engatinhou
ao longo do escaler, que balançava ao ritmo das ondas, até Hector na popa.
- O que está acontecendo, Hector? Enquanto ainda estava no túnel, ouvi você mandar o Dave disparar contra o helicóptero. Você disse que Uthmann estava dentro. Quando
cheguei ao convés de carga com Paddy, não consegui ver nenhum helicóptero. Eu estava envolvido na luta. Depois, ouvi você avisar Paddy pelo rádio de que Kamal e
Adam tinham escapado pelo túnel de serviço das bombas. Nessa altura, os outros piratas já haviam sido subjugados. Não havia motivos para eu ficar, especialmente
quando vi você saltar da asa da ponte de comando. É claro que tinha de vir atrás - Tariq parecia ansioso. - Fiz a coisa certa, Hector?
- Totalmente certa como sempre, Tariq - Hector respondeu em árabe, e Tariq passou a falar na mesma língua.
- Obrigado, Hector. Mas onde está Uthmann agora? O que aconteceu ao helicóptero? Aonde vamos?
- Dave abateu o helicóptero, e ele caiu na beira da praia - Hector apontou adiante. - Ali, dá para ver os destroços flutuando nas ondas.
- Mas e Uthmann? O que aconteceu com ele?
- Ele conseguiu sair dos destroços. Eu o vi caminhando com dificuldade na praia. Pulei da ponte para vir atrás dele.
- Fico contente de tê-lo seguido. Quero pegá-lo ainda mais que você - Tariq disse em voz baixa.
- Eu sei - Hector assentiu. - Ele pertence a você. Vamos caçá-lo juntos, mas a vingança ficará para você.
- Obrigado, Hector - Tariq respirou fundo para se acalmar. - Ele está sozinho? Está armado? Nenhum de nós tem um rifle.
- Sim, Uthmann está sozinho. Ele tinha um rifle quando decolou do convés de carga, mas depois da queda do helicóptero, eu o vi caminhando na praia. Longe demais
para ter certeza, mas não acho que ainda o estivesse carregando. Ele provavelmente entrou em pânico quando atingiu a água, e se esqueceu completamente da arma. A
única coisa em que estaria pensando seria como chegar à terra firme. Faremos uma breve busca na cabine do helicóptero, se ainda estiver boiando quando chegarmos
lá.
Eles estavam rasgando as águas da baía a oitenta quilômetros por hora, deixando uma longa esteira cremosa para trás rumo à aeronave destroçada. A expansão de barracos
que constituíam a cidade estava a cerca de oitocentos metros além da praia da baía. Hector ficou de pé e estudou o terreno atrás dos destroços, para onde Uthmann
tinha escapado. Não havia nenhuma moradia, mas sim dunas onduladas de areia cobertas por densos matagais de planta sal áspera.
- Não é um bom lugar para rastrear um leão ferido - decidiu.
Uthmann era tão perigoso quanto qualquer outro animal selvagem. Hector desacelerou o escaler ao alcançarem o helicóptero flutuante. A proa bateu contra os destroços.
O ar estava impregnado do cheiro da gasolina de aviação que vazara. Tariq subiu na fuselagem amassada e se ajoelhou para espiar através da porta aberta.
- Ali está - ele exclamou e desapareceu pela porta.
Ele emergiu novamente poucos segundos depois, brandindo um rifle de assalto Beretta.
- Munição? - Hector perguntou.
- Nenhuma - Tariq respondeu -, apenas o que está no pente.
- Talvez vinte balas, com sorte. Isso deve bastar.
Hector engatou a marcha do motor externo e seguiu lentamente em direção à praia. Ambos viram a série de pegadas de Uthmann havia deixado na areia amarelada. Eles
correram da beira da água até o morro da primeira duna, e desapareceram em meio ao matagal de planta sal no topo. Não perderam tempo ancorando o barco. Hector desligou
o motor, mas deixou o barco à deriva. Eles pularam na água, que batia pelos joelhos, e Hector conduziu Tariq correndo até a base da primeira duna. Aqui, eles pararam
brevemente para examinar os rastos e verificar as armas que carregavam.
- Ei, pegue esta! - disse Tariq, oferecendo o rifle. - Você atira melhor do que eu com rifle. Me dê a pistola.
Eles trocaram de armas. Tanto o rifle quanto a pistola estavam encharcados de água do mar. Eles sacudiram os pentes o melhor que puderam e se certificaram de que
os canos não continham areia nem qualquer outra obstrução.
- É o melhor que podemos fazer. Elas foram projetadas para funcionar em todas as condições extremas - Hector grunhiu. - Você vai na frente, Tariq. Rastrear é a sua
tarefa. Ficarei do seu lado esquerdo.
Eles escalaram até o topo da primeira duna, onde encontraram o lugar onde Uthmann havia se deitado entre os arbustos. Tariq se ajoelhou ao lado da marca deixada
por seu corpo. Os grãos secos de areia ainda escoava para dentro dela. Ele devia tê-los visto chegar à praia antes de partir. Algo mais chamou a atenção de Hector:
um par de sandálias sob o arbusto de planta sal mais próximo. Ainda estavam encharcadas, e a tira de uma delas havia arrebentado na fivela. Uthmann as tinha descartado
e seguido descalço. Os rastos que deixaram confirmavam isso.
- Ele não está muito na frente - Tariq suspirou. - Provavelmente está nos observando neste exato instante.
- Tenha cuidado. Ele pode ter perdido o rifle, mas carrega sempre uma faca - Hector avisou.
Por um breve momento, ambos pensaram nos quatro companheiros cujos corpos haviam deixado para trás no Oásis do Milagre. Depois, concentraram-se totalmente na tarefa
que tinham pela frente. Seguiram em formação sobreposta para que pudessem cobrir as respectivas laterais assim como a frente. Não podiam deixar que o ódio que sentiam
por Uthmann superasse o respeito que tinham por Uthmann como guerreiro. Não ousariam deixar que ele se aproximasse o suficiente para usar sua lâmina.
O matagal era denso, os espinhos, enganchados, tenazes. Eles tinham de se mover com todo o cuidado, fazendo o mínimo barulho possível. De acordo com o relógio de
pulso de Hector, eles levaram seis minutos e dez segundos para cobrir os primeiros cem metros. Nesse ponto, depararam-se com o próximo local de descanso de Uthmann,
onde tinha esperado que fossem para cima dele. Se tivessem mostrado o menor descuido, ou dado a ele qualquer vantagem nesse estágio, sabiam que teriam sido atacados
ali. Mas ele tinha prosseguido mais uma vez, logo à frente dos dois. Os rastos de pegadas deixados na areia onde ele havia-se agachado ainda estavam frescos.
"Agora Uthmann sabe que não vamos tropeçar sobre ele", Hector pensou com pesar. "O próximo truque dele será nos cercar e tentar atacar por trás."
Hector estalou os dedos discretamente, e Tariq olhou brevemente para ele. Ele fez um gesto circular para preveni-lo. Tariq assentiu, ele compreendia o perigo. Eles
prosseguiram. Duas vezes mais fizeram Uthmann deixar seu local de parada. Em ambas, ele seguiu silenciosamente logo adiante deles.
"Agora ele está pensando que nos amorteceu com suas ações repetidas. É quando vai tentar nos cercar."
Antecipando-se, Hector mudou a própria tática. Após cada série de vinte passos lentos, ele parava e se virava devagar, analisando o terreno que já havia atravessado
de um novo ângulo. Depois, agachava-se de cócoras, estudando o mesmo terreno atrás deles de uma perspectiva rebaixada, concentrando-se nas bases das árvores, onde
as raízes estavam emaranhadas e retorcidas, atrás das quais um homem poderia se deitar com uma lâmina estreita e afiada em punho.
De repente, Hector piscou, como se algo estranho tivesse atraído seu olhar. Ele o encarou totalmente concentrado. Houve um ligeiro movimento, e a imagem inteira
entrou em foco. Ele estava olhando para um pé humano descalço, projetando-se detrás de um emaranhado de raízes contorcidas. A sola do pé era cor-de-rosa suave, mas
a pele acima era morena tom de tabaco. Hector sentiu os pelos da nuca se arrepiarem. Por Deus, Uthmann estava perto! Ele quase pisara nele.
Estava a menos de cinco passadas largas de Hector. Hector sabia que ele era capaz de cobrir aquela distância à velocidade de uma chita caçadora. Quase podia sentir
os olhos de Uthmann sobre ele, observando-o por uma das minúsculas fendas da densa vegetação de planta sal. Uthmann tinha um truque: ele mantinha os olhos semicerrados
ao observar um inimigo, os cílios escuros ocultando o branco revelador. Hector viu os tendões do pé esquerdo de Uthmann se esticando orgulhosos enquanto ele enterrava
os dedos na terra macia, usando-a como ponto de apoio para se lançar sobre Hector.
Hector estava agachado com o rifle no colo. Havia uma bala na culatra e o rifle estava destravado. Ele estava com uma das mãos no cabo, mas sabia que não conseguiria
posicionar a coronha sobre o ombro antes de Uthmann cobrir a distância e atacá-lo. Se isso acontecesse, o rifle seria um estorvo. Teria de atirar sem pensar, e rápido.
O pé de Uthmann era tudo em que podia mirar e teria de atirar sem erguer a arma do colo. Ele não podia mirar. Teria de deixar o instinto dominá-lo completamente.
"Era o momento de obter o retorno por todas as centenas de horas passadas no campo de tiro", disse a si mesmo. Ele fez um ligeiro movimento, como se estivesse prestes
a se levantar, mas abaixou um pouco o cano do rifle e o girou, desenhando um arco estreito na direção do alvo, disparando em seguida como se fosse um ato de reflexo.
Ele viu o calcanhar do pé descalço de Uthmann se rasgar numa explosão de lascas de osso, tecidos e sangue voando.
Uthmann grunhiu tão selvagemente como um leão baleado e se levantou detrás do arbusto de planta sal. Mas o pé aleijado o manteve onde estava. A dor o fez agachar
sobre um dos joelhos. Hector viu a faca na mão direita e o desespero em seus olhos. Uthmann sabia que havia perdido, mas continuou tentando. Ergueu-se de novo com
uma das pernas e tentou ir pulando até Hector para usar a faca. Mas agora Hector estava de pé partindo para o ataque. Com um giro, acertou a coronha do rifle no
cotovelo de Uthmann. O golpe foi sólido, e ele sentiu a articulação se partir. Dessa vez, Uthmann gritou, e a faca caiu de seus dedos enfraquecidos. O pé aleijado
cedeu, e ele caiu esparramado sobre a areia. Tariq chegou correndo por trás e agarrou o pulso do braço danificado de Uthmann. Ele o torceu, e os ossos quebrados
rasparam uns nos outros. Tariq pisou com a bota na nuca de Uthmann, forçando seu rosto para dentro da areia, que entrou nos olhos, no nariz e na boca. Ele começou
a sufocar.
- Espere! - Hector ordenou a Tariq.
- Você disse que a vingança era minha - Tariq protestou. Ele soluçava violentamente de ódio.
- Isso é bom demais para ele, Tariq - Hector o puxou para trás. - Rápido demais. Esta criatura queimou sua mulher e seu filho. Ele assassinou nossos companheiros.
Ele nos entregou à Besta. Tem de pagar na mesma medida por esses pecados.
Tariq balançou a cabeça e ergueu a pistola, empurrando a boca contra a nuca de Uthmann.
- Não existe punição apropriada. Qualquer coisa que façamos não vai ser suficiente.
Ele espremeu a boca da pistola carregada no couro cabeludo de Uthmann, mas embora o rosto dele estivesse contorcido de agonia, ele se recusava a gritar.
- Foi você quem incendiou minha casa - Tariq disse ofegante -, foi você quem botou fogo em Daliyah e no meu filho! Negue se puder, Uthmann Waddah.
Uthmann tentou sorrir, mas foi uma tentativa caricata e dolorosa, a voz dele fustigada pela dor. Ele cuspiu a areia da boca.
- Eles fediam a porco queimado enquanto cozinhavam - suspirou -, mas eu me deleitei no fedor.
Tariq soluçou e olhou para Hector com lágrimas jorrando pelo rosto.
- Você escutou! O que podemos fazer que se iguale a tanto mal assim?
- Água - Hector respondeu em voz baixa. - Somente a água do mar irá apagar esta mancha da face da terra.
Eles viram a chama de terror nos olhos de Uthmann, e Tariq se regozijou.
- É claro, você está certo, Hector. A água do mar dará um jeito nele. Levante-se, Uthmann Waddah! Fique de pé. A sua última caminhada será até a praia em direção
ao mar.
Tariq abaixou a pistola e o agarrou pelo punho. Ele o torceu violentamente contra a articulação quebrada do cotovelo. Uthmann deu mais um grito agudo. A oposição
ameaçadora e coragem temerária foram erodidas pela ameaça da única coisa que ele temia acima de tudo.
- Eu o desafio a fazê-lo aqui, se tiver estômago para isso, Tariq. Atire e encerre o assunto, seu covarde medroso!
- Você é muito apressado! - disse Tariq. - Este é o último ato da sua existência podre. Você tem de saborear cada momento. O gosto da água do mar na garganta, a
queimação em seus pulmões ao se encherem, a ardência nos olhos ao perder gradualmente a visão.
Ele o puxou pelo braço quebrado, e Uthmann não conseguiu resistir à pressão. Deixou que o suspendessem e tentou se equilibrar na perna que não estava ferida, mas
Hector segurou o outro braço, e os dois o arrastaram de volta à praia. Finalmente, enxergaram a baía abaixo do topo da última duna.
O Ganso Dourado permanecia ancorado no mesmo lugar em que o tinham visto da última vez, mas a maioria dos escaleres piratas sobreviventes estavam abandonados ao
longo da praia como detritos deixados por uma tempestade. Os canhões do Ganso Dourado estavam disparando intermitentemente em alvos que estavam fora do alcance da
vista deles, e o estrépito distante de tiros automáticos chegava dos arredores da cidade. Alguns dos edifícios estavam pegando fogo, e a fumaça pairava sobre a baía.
Logo abaixo deles, o escaler que tinham abandonado se rebatia num vaivém contra a praia.
- Venha, Uthmann - Tariq torceu seu braço violentamente. - Não falta muito.
Uthmann caiu de joelhos e agora o terror o dominava completamente. Ele choramingava e balbuciava sem parar e sem muita coerência.
- Não, Tariq! Atire em mim aqui. Encerre o assunto. Há algo que quero contar. Eu joguei seu moleque malcriado nas chamas primeiro. Depois, fodi sua mulher. Pensei
em você cada vez que estocava dentro dela. Quando acabei, joguei-a em cima do bastardo. Os cabelos compridos dela pegaram fogo como uma tocha. Agora você tem de
atirar em mim. Senão, essa lembrança o acompanhará até o final de seus dias - a voz dele se ergueu em um lamento desesperado.
Hector o agarrou pelo outro braço, e Uthmann foi arrastado de barriga no chão, gemendo e guinchando duna abaixo para dentro do mar. Quando chegaram ao ponto em que
a água batia pelos joelhos, Hector o virou de cara para baixo e o suspendeu com os tornozelos juntos para trás. Tariq montou em seus ombros e, com todo o peso do
corpo, forçou o rosto dele para baixo da superfície. Uthmann estava tentando prender a respiração embaixo d'água e, ao mesmo tempo, externar seu terror. Os movimentos
dele se tornaram mais violentos e menos coordenados e, depois, começaram a enfraquecer. A boca dele se abriu sob a superfície, e uma lufada de bolhas prateadas saiu
de seus lábios. Ele tossia, arfava e vomitava, e os sons eram abafados pela água acima da cabeça. Quando parecia quase terminado, Hector o arrastou pelos calcanhares
e o colocou com o rosto na areia molhada. Tariq saltou sobre as costas dele. Água do mar e vômito jorravam de sua garganta, e ele conseguiu respirar entrecortadamente
antes que seu corpo inteiro convulsionasse em mais um paroxismo de tosse. Ele vomitou de novo, e metade da bílis amarela foi sugada de volta aos pulmões na inspiração
seguinte. Lentamente, muito lentamente, Uthmann conseguiu expelir toda a água e todo o vômito dos pulmões, mas estava cansado demais para se sentar ou falar. Hector
e Tariq se agacharam um de cada lado dele e o observaram lutar pela vida.
- Você ouviu ele se gabar do que fez com Daliyah e meu menino? - Tariq suspirou.
- Ouvi.
- Deve haver algo que possamos fazer para igualar um mal tão horrendo. Um simples afogamento é misericordioso demais.
- Tem uma coisa - Hector disse assentindo. - Há uma corda para âncora no escaler. Amarre uma ponta no painel de popa e traga a outra até aqui.
Parecia que Tariq ia fazer uma pergunta, mas sem verbalizá-la, ele se levantou de um pulo e correu até o escaler. Voltou desenrolando a corda sobre a areia molhada.
Uthmann tentou se sentar quando Tariq se debruçou sobre ele, mas Tariq o chutou nas costas e olhou para Hector.
- Amarre os pulsos dele - Hector ordenou, e Uthmann começou a se debater e gritar de novo.
Tariq torceu o braço quebrado para subjugá-lo enquanto Hector deslizava um laço de corda sobre os pulsos, apertando até que as fibras os cortassem.
- Você sabe o que é agora, Uthmann Waddah? - Hector perguntou em voz baixa e imediatamente respondeu à própria pergunta. - Você é isca viva.
- Não entendo - Tariq admitiu, e Hector prosseguiu com a explicação.
Todos esses barcos cativos estão ancorados há meses aqui na baía. Os homens que vivem a bordo jogam todo o lixo e os detritos no mar. Isso atrai tubarões, um monte
de tubarões grandes, tubarões-tigres principalmente, pois são carniceiros, mas há outros também: tubarão-baleeiro, tubarão-cabeça-chata e o gralha-preta.
Tariq sorriu, e o terror surgiu nos olhos escuros de Uthmann.
- Você está sangrando profusamente, Uthmann - Hector chutou seu pé machucado, e Uthmann gemeu. - Você sabia que o sangue atrai tubarões? Vamos pescar!
Eles empurraram o escaler encalhado para fora da areia, enquanto Uthmann lutava debilmente na extremidade da corda. Todas as vezes em que conseguia se erguer de
joelhos, Tariq puxava a ponta da corda e o fazia se esparramar de novo. Assim que o escaler começou a flutuar, Hector saltou a bordo e deu partida no motor. Ele
virou a proa no sentido oposto à praia e começou a acelerar gradualmente. Uthmann foi puxado e arrastado pela areia molhada, gritando de medo e de dor.
Tariq correu pela água e subiu no escaler sobre a amurada. Ele e Hector olharam para a popa, e Uthmann foi suspenso em cheio sobre as ondas baixas. A corda o arrastava
sob a superfície, mas ele emergia em meio a uma lufada d'água como uma baleia, e então rolava para baixo de novo. A pressão da água do mar bloqueava seu nariz e
sua garganta. Ele conseguia tossir um pouco da água para fora antes de submergir de novo, mas agora a torrente em seu ouvido direito havia perfurado o tímpano. A
agonia certamente era cegante, mas ele não tinha mais fôlego para gritar. O caminho que deixava ao longo da superfície estava tingido de sangue, e assim que o escaler
adentrou o canal de águas profundas, as barbatanas do primeiro tubarão nadaram no rastro da mancha de sangue. Hector viu as listras nas costas largas do animal.
- Uthmann, tem um tubarão-tigre vindo atrás de você - ele gritou. - Não é muito grande, tem um pouco menos de três metros. Mas grande o suficiente para arrancar
um pedaço grande.
O animal não atacou de imediato, mas acompanhou Uthmann cautelosamente até que um tubarão maior surgiu das águas esverdeadas. Um instigou o outro e juntos eles atacaram.
O maior abriu a boca cavernosa e depois mordeu o tornozelo destroçado de Uthmann. Ele gritou ao perceber o que estava acontecendo. Os tubarões o arrastaram para
baixo, e Hector desligou o motor externo e deixou que o barco derivasse na maré. Não queria que Uthmann afundasse antes que os tubarões o liquidassem. Não demorou
muito. Cada vez que Uthmann vinha à superfície, ele se debatia menos, e seus gritos eram mais fracos. A água ao redor dele ficou escura por causa do sangue. Então,
ele submergiu mais uma vez, mas não retornou à superfície. Quando Tariq puxou a corda para cima, as duas mãos decepadas de Uthmann ainda estavam presas ao nó da
ponta. Ele as jogou para o lado e foi se agachar ao lado de Hector, que virou bruscamente o escaler e retornou atravessando a baía na direção do Ganso Dourado. Ambos
permaneceram calados por um momento, e então Hector ergueu a voz sobre o ruído do motor.
- Não consegui perguntar antes, mas me diga agora: qual era o nome do seu filho?
- O nome dele era Tabari.
- Fizemos o que tínhamos de fazer. Mas não ajuda muito, não é? - Hector refletiu. - A vingança é um prato insosso.
Tariq assentiu e virou o rosto. Não queria que nem mesmo Hector enxergasse as profundezas de sua alma, onde os fantasmas de Daliyah e Tabari viveriam para sempre.
Enquanto aceleravam de volta sob o imponente casco do Ganso Dourado, Hector ficou de pé sobre a popa do escaler, equilibrando-se com o auxílio da corda para âncora
amarrada ao redor do pulso. Ele estava tentando adivinhar o rumo dos acontecimentos desde que ele e Tariq haviam saído à caça de Uthmann. Viu que a formação dos
três VAAs sob o comando de Sam Hunter estava se aproximando da praia diante da cidade. Ele sentiu uma faísca de raiva. A essa altura, eles já deveriam ter alcançado
o cativeiro além da cidade e libertado os prisioneiros. Ele vociferou no microfone do rádio de batalha, o tom de voz refletindo sua raiva:
- Sam, que diabos você está fazendo? Você está quase uma hora atrasado em relação ao cronograma.
- Um dos guindastes de suspensão foi danificado pelos disparos de metralhadoras pesadas vindos da praia. O conserto foi demorado. Desculpe, Hector.
- Ok, agora, chega de perder tempo - Hector desligou e concentrou a atenção nos VAAs.
As águas quebravam sob as proas enquanto eles aceleravam ao máximo em direção à praia. Disparos de armas de baixo calibre provenientes dos barracos acima da praia
fustigavam o mar ao redor deles. Embora as escotilhas dos torreões estivessem trancadas, as metralhadoras calibre .50 varriam o vilarejo com munição traçante. Os
projéteis dos Bushmasters de Dave Imbiss se juntaram ao bombardeamento, explodindo no céu acima dos frágeis edifícios. Alguns dos telhados de chapa ondulada desabaram
sob o impacto dos disparos, e os piratas sobreviventes escalavam para fora dos destroços e fugiam de volta às montanhas. O vendaval de estilhaços de granada explodiu
sobre suas cabeças, e a maioria dos homens foi abatida.
Enquanto Hector os observava, os três VAAs chegaram ao mesmo tempo e rolaram sobre a praia revolvendo a areia com suas esteiras de aço, que os conduziram morro acima
até o vilarejo. As ruas sinuosas eram estreitas demais para os enormes veículos blindados, e eles seguiram em frente através dos barracos frágeis, sem parar, achatando-os
e depois sumindo de vista ao acelerar rumo às barricadas onde os marinheiros estavam aprisionados.
Quando Hector e Tariq chegaram de escaler à lateral do Ganso Dourado, os guindastes que haviam lançado os VAAs ainda estavam dependurados ao nível da água. Eles
abandonaram o barco e saltaram até os suportes. Hector contatou o operador de guindaste pelo rádio Falcon. Ele os suspendeu até o convés de carga, onde Paddy os
esperava. Ele parecia agitado.
- Conte-me o que está acontecendo, Paddy - Hector ordenou.
- Nós contabilizamos todos os piratas do Kamal trazidos a bordo por ele. Oito estão mortos, contando os quatro que você abateu na ponte - ele fez uma pausa e respirou
fundo. - Como sabe, Adam e Kamal estão enfurnados no túnel de serviço das bombas. Levaram Nastiya. A Hazel está monitorando os movimentos deles nos sensores infravermelhos.
Hector apertou o botão de transmissão do rádio de batalha.
- Hazel, onde eles estão agora?
- Hector, eles estão na seção número dois, logo atrás da intersecção das tubulações do fluxo de saída. Não se mexeram nos últimos doze minutos.
Hector franziu o cenho. O túnel de serviço era a seção do navio mais difícil de agir. Confinado e claustrofóbico, o espaço era, em sua maioria, tomado por séries
de tubulações de aço assim como enormes bombas de gás. O barulho das bombas era ensurdecedor, e havia pouca ventilação. Lá embaixo, um defensor teria uma clara vantagem
sobre um atacante que estivesse tentando abatê-lo. Todos estavam olhando para Hector à espera de ordens, até mesmo Paddy parecia desprovido de sugestões sobre como
deviam proceder. Hector estava tentando visualizar o desenho da área.
- Certo! - ele finalmente tomou uma decisão. - Existem apenas duas entradas para o sistema, e Paddy colocou guardas em ambas, certo?
Paddy assentiu.
- Ok, então nós vamos agir nas duas entradas simultaneamente, em duas equipes, e tentar pegar Adam e Kamal entre elas. Há quase um quilômetro e meio de túneis. Vai
ser uma tarefa dos infernos fazê-los sair, a menos que... - Hector fez uma pausa para pensar. - A menos que... - ele repetiu.
- A menos que o quê? - Paddy perguntou ansiosamente, mas Hector não respondeu de imediato.
- Venha comigo, depressa. Não podemos perder tempo - Hector ordenou e, de dois em dois degraus, ele subiu a escada de tombadilho que levava até a ponte. Paddy foi
correndo atrás dele. Cyril Stanford os esperava na ponte.
- Muito bom dia, capitão - Hector o saudou. - O navio está novamente sob seu total comando?
- Sob o meu comando ele está - Cyril deu um sorriso distorcido. O rosto dele ainda estava inchado e decorado de hematomas roxos e esverdeados onde havia sido atingido
pela coronha do rifle de Kamal. - Os motores estão em funcionamento, e estamos ancorados por uma única corrente, prontos para zarpar ao seu comando.
- Há algumas tarefas a serem cumpridas primeiro, Cyril. Por favor, descreva os procedimentos de combate a incêndios no túnel de serviço das bombas para mim e para
Paddy.
- Tive um estranho pressentimento de que ia me pedir isso quando soube que Kamal tinha se trancado com o chefe dele e a encantadora senhorita russa - Cyril respondeu.
- Venham para o camarim de navegação.
O camarim de navegação ficava no fundo da ponte. Hector sabia que as plantas do casco do Ganso Dourado estavam guardadas e desenroladas nas gavetas largas sob a
mesa das cartas de navegação. Mas, assim que entraram na cabine, Hector viu que Cyril já havia estendido os desenhos do convés inferior na mesa. Hector e Paddy se
debruçaram sobre eles, enquanto Cyril explicava o desenho dos oito compartimentos que constituíam o túnel de serviço das bombas.
- Todos os compartimentos podem ser vedados com portas herméticas e impermeáveis, correto? - Hector sabia a resposta, mas perguntou para o bem de Paddy. - É possível
também desligar o circuito elétrico, a iluminação e a ventilação do túnel?
- Correto - Cyril confirmou.
E você pode controlar as portas a partir da ponte?
Em resposta, Cyril apontou para o vão da porta aberta.
- Aquele é o painel de controle, na apara de estibordo. Acima do console de navegação - afirmou.
- É possível também controlar o fluxo de dióxido de carbono a partir daqui?
- Afirmativo! - Cyril assentiu de novo. - Posso inundar um compartimento de cada vez ou todos juntos.
- Gás carbônico? - Paddy peguntou. - Para quê?
- Controle de incêndio. Extingue as chamas - Hector respondeu bruscamente -, mas é venenoso para os humanos.
Ele se virou novamente para Cyril.
- Onde você guarda o equipamento de combate a incêndios?
- No primeiro andar. Temos macacões à prova de fogo...
- Não precisamos disso - Hector interrompeu. - E os kits de oxigênio?
- Sim! Temos respiradores autônomos de circuito fechado da Draeger. Quatro horas de suporte vital em ambientes tóxicos.
- E os óculos de visão noturna?
- Eles vêm com o equipamento da Draeger. Permitem que você enxergue na escuridão total ou em meio à fumaça.
- Quantos kits você tem a bordo?
- Apenas dois.
- Merda! - disse Hector. - Então seremos só nós dois, Paddy.
- Não estou certo do que você tem em mente, Heck. Mas posso fazer isso sozinho, com os pés nas costas.
- Todos nós sabemos que você tem uma forte motivação russa, mas vamos fazer isso juntos, Paddy.
Hector não esperou ele argumentar.
- Ok, Cyril, vamos fazer o seguinte: eu entro no túnel pela escotilha dianteira. Paddy, pela traseira. Ele vai se posicionar assim que alcançar o convés inferior.
Eu volto pelo túnel. Você vai inundar cada um dos compartimentos com gás carbônico quando eu entrar. Depois, vai fechar as portas impermeáveis depois que eu passar.
Hazel vai monitorar os desdobramentos da sala de situação. Ela vai nos manter informados sobre a posição exata dos fugitivos e da refém o tempo todo.
- Estou tão contente que tenha se lembrado da existência da Nastiya. Você é tão caridoso - Paddy disse sarcasticamente. - Ela vai estar lá embaixo quando o gás vazar.
Estará desprotegida. Qual é o tempo de sobrevivência dela?
- Com a Hazel nos orientando, vamos conseguir manter um contato próximo com Nastiya e chegar até ela rapidamente. Vamos levar um cilindro de oxigênio a mais para
ela.
- Isso não responde à minha pergunta. Quanto tempo antes que o gás a prejudique?
- Quatro ou cinco minutos para perder a consciência - Hector respondeu em voz baixa.
- E...? - Paddy insistiu.
- E oito a doze minutos para morrer.
- Que se dane o seu maldito gás, Hector Cross. Não preciso dele. Deixe eu ir sozinho. Posso dar um jeito no Kamal e trazer Nastiya de volta sem asfixiá-la.
Desculpe, Paddy. Mas vamos fazer do meu jeito - Hector disse num tom definitivo. - Já perdemos tempo demais tagarelando. Mãos à obra!
Hector estava no andar da corrente da âncora na proa do navio-tanque. Tariq, que estava atrás dele, verificou o armamento - o posicionamento da pistola Beretta,
os pentes sobressalentes e a faca na bainha. Ele cuidou para que tudo estivesse à mão para Hector.
Nos quadris, Hector pendurou uma pequena garrafa de oxigênio de emergência de dois litros com uma máscara embutida. Ela daria uma garantia de vinte minutos a quem
estivesse em um ambiente impregnado de gás carbônico. Paddy carregava um cilindro idêntico. Um dos dois tinha de chegar até Nastiya antes que o gás a matasse.
O respirador Draeger era grande e desengonçado, e nem ele nem Hector haviam operado um antes. No entanto, um dos tripulantes de Cyril conhecia bem o equipamento
e havia oferecido um breve curso introdutório. O capacete tinha uma aparência extraterrestre, e os olhos protuberantes da visão noturna o tornavam ainda mais estranho.
O tripulante plugou o rádio Falcon na extensão de microfone dentro do capacete.
- Tudo pronto, senhor - ele disse a Hector. - Lembre-se de ligar a torneira de oxigênio antes de fechar a máscara facial, não depois. O senhor ficaria surpreso com
a quantidade de novatos que esquecem isso.
Hector assentiu e ligou primeiro para Hazel.
- Hazel, estou prestes a descer pela escotilha dianteira agora.
- Hector, estou vendo você na tela. O caminho está livre. O alvo continua parado no compartimento número dois.
- Obrigado, Hazel - Hector agradeceu. - Cyril, está me ouvindo?
- Alto e claro, Hector - Cyril respondeu da ponte.
- Paddy, está me ouvindo?
- Sua voz melódica acaricia meus ouvidos, Heck - o humor de Paddy estava obviamente melhorando diante da promessa de ação e do iminente resgate de Nastiya.
- Fique onde está até segunda ordem - Hector pisou no degrau superior da escada de aço e fez um sinal de positivo para Tariq e os tripulantes.
Em seguida, ele desceu rapidamente pela escada até o andar inferior. O ambiente era apertado e confinado, ainda mais claustrofóbico devido ao tom de verde venenoso
e proibitivo das paredes de aço. Apesar de Hazel ter garantido que não havia ninguém no túnel, ele afrouxou a pistola no coldre e a segurou com as duas mãos, apontando
para o chão do túnel à frente.
- Ok, Cyril, pode apagar as luzes agora.
Apesar de ter dado a ordem, a escuridão foi tão repentina e intensa que Hector teve de reprimir um suspiro. Ele ligou a visão noturna infravermelha, e o entorno
ressurgiu num monocromo vermelho e monótono.
- Hazel? - ele perguntou.
- Nenhuma mudança, Hector. O alvo permanece parado no número dois.
Hector avançou pelo túnel estreito e ficou espantado com o comprimento dos compartimentos. Andando rápido, ele levou quatro minutos para alcançar a primeira porta
hermética. Passou pelo vão e então ligou mais uma vez para Cyril.
- Cyril, passei pela portinhola número oito. Feche-a - ele observou a porta deslizar e fechar com um silvo dos pistões hidráulicos.
- Devo soltar o gás no compartimento atrás de você, Hector? - Cyril perguntou.
- Negativo - Hector o deteve. - O compartimento está deserto. Nada a lucrar.
Ele passou por mais uma das enormes bombas, que chiava e sacudia ao circular o gás. Logo acima, havia uma coluna vertical e estreita, que conduzia a tubulação de
saída da bomba até o topo do tanque principal. Havia mais uma escada que acompanhava essa coluna, mas não levava a lugar nenhum. Não havia saída nem escapatória
por meio da extremidade superior da coluna.
Hector passou por mais oito bombas enormes e mais quatro portinholas. Cada vez que chegava a uma das portinholas, ele ligava para Hazel, que dizia que o alvo ainda
continuava parado no compartimento número dois. Hector passou pela escotilha e entrou no número quatro e, da ponte, Cyril a fechou. Mas ao alcançar a próxima escotilha
e entrar no número três, houve uma mudança abrupta. A escotilha estava se fechando atrás dele quando Hazel exclamou pelo rádio:
- Hector, fique atento! O alvo está se espalhando. Dois elementos estão estacionários, mas o terceiro está avançando pelo túnel na sua direção.
Hector foi pego de surpresa. Quem tinha se separado dos outros? Não podia ser Kamal, ele jamais abandonaria a refém e seguiria sozinho. Não podia ser Nastiya exatamente
pelo mesmo motivo - Kamal jamais a deixaria escapar. Só podia ser Adam. Que impulso individualista o fizera abandonar a proteção de Kamal? Provavelmente a escuridão
que havia esgotado seus nervos, fazendo-o explodir. Era por isso que Hector havia pedido a Cyril que apagasse todas as luzes.
- Ótimo! - Hector grunhiu. - Cyril, abra a escotilha atrás de mim novamente. Depressa!
Assim que ela se abriu, Hector voltou pelo compartimento que acabara de deixar.
- Ok, Cyril. Estou de volta ao compartimento número quatro. Feche a escotilha de novo.
Ele esperou em silêncio por quase seis minutos, e então Hazel ligou novamente.
- Hector, o terceiro homem chegou à sua posição. Ele está do outro lado da escotilha de onde você se encontra. Ele parece estar examinando a escotilha, tentando
encontrar a fechadura e abrir a porta.
- Ok, Hazel, tenho certeza de que o terceiro homem é Adam Tippoo Tip, e agora ele está onde queremos que esteja. Cyril, feche a escotilha atrás do Adam, e me informe
quando o fizer.
Apenas um minuto mais tarde, Cyril voltou a falar.
- Escotilha fechada, Hector - ele informou. - Adam está engarrafado no compartimento número três.
- Ok, Cyril, agora preencha o compartimento com gás carbônico.
Houve mais uma longa pausa, e Cyril explicou o atraso.
Demora até o gás permear o compartimento inteiro.
Ninguém falou de novo por alguns momentos, e então Hazel ligou:
- Agora está funcionando! Adam está correndo de volta por onde veio. Está obviamente em pânico. O gás carbônico está fazendo efeito nele.
- Cyril, abra a escotilha para eu poder passar - Hector ligou a torneira de oxigênio e fechou a máscara facial. Ele passou pela escotilha para o compartimento cheio
de gás carbônico e correu pela passarela atrás de Adam. Tinha de alcançá-lo antes que o gás o matasse. Ele o encontrou caído e encostado em uma das bombas de gás
em posição de prece e reconheceu a túnica branca antes de ver o rosto. Quando Hector o virou para o lado, viu que ele já estava inconsciente, mas arfando profundamente.
Hector viu que ele trazia uma pasta de couro preta acorrentada ao pulso esquerdo e tentou removê-la, mas a corrente era de aço inoxidável e o fecho, de qualidade
superior, similar aos usados por mensageiros diplomáticos. Seria preciso uma tocha para corte para soltá-la. Não havia tempo a perder, então ele arrastou Adam até
uma das tubulações verdes de gás que acompanhava uma das laterais do túnel horizontalmente, onde o colocou de rosto para cima. Hector colocou os membros dele ao
redor da tubulação, incluindo a pasta, e o prendeu com cabos pelos pulsos e pelos tornozelos. Adam estava bem preso à tubulação de gás como um pedaço de carne de
porco em um espetinho.
- Isso vai segurar você - Hector disse em voz baixa e alcançou o cilindro de dois litros de oxigênio pendurado em seu cinto. Ele colocou a máscara de poliuretano
moldada sobre o nariz e a boca de Adam e abriu a torneira. O oxigênio foi assoviando suavemente até a boca arfante de Adam. Hector segurou a máscara no lugar prendendo
a tira de elástico na parte de trás da cabeça de Adam, e então ligou para Cyril.
- De fato, o fugitivo é Adam. Eu o prendi. Ainda está inconsciente, mas coloquei a máscara de oxigênio nele. Ele deve recuperar a consciência em alguns minutos.
Acenda as luzes deste compartimento e então acione os ventiladores para expulsar o gás carbônico.
Quando o oxigênio começou a fazer efeito, Adam engasgou e fez uma careta. Abriu os olhos e grunhiu, os membros convulsionaram, e ele se debateu contra as amarras.
Então, olhou para cima, viu Hector no monstruoso capacete Draeger e deu um grito selvagem e incoerente. Ele tentou arrancar a máscara de oxigênio, mas quando descobriu
que não podia, começou a soluçar:
- Onde estou? O que está acontecendo comigo?
Hector o ignorou. Ele esperou por mais dez minutos, cronometrados no relógio, e então abriu a própria máscara facial e testou a qualidade do ar. Em baixas concentrações,
o gás carbônico é inodoro, mas em altas, tem um cheiro bastante acídico, deixando um gosto azedo na língua. Os ventiladores haviam eliminado o gás venenoso e purificado
o ambiente. O ar era puro.
Hector arrancou a máscara de oxigênio do rosto de Adam e fechou a torneira antes de pendurá-la de novo no cinto.
- Quem é você? O que vai fazer comigo? - a voz de Adam tremeu.
- Discutiremos isso mais tarde - Hector prometeu em árabe, enquanto checava os cabos em seus punhos e tornozelos.
- Eu sei quem você é! É o assassino, Hector Cross! - Adam falou num tom alto e agudo. - Você matou meu pai, meu avô e agora vai me matar.
- Sim. Há uma boa chance que isso aconteça - Hector concordou com ele enquanto se levantava e contatava Cyril pelo rádio. - Adam está preso e recuperou a consciência.
Abra a escotilha para o compartimento número dois. Vou atrás do Kamal e da Nastiya agora. Feche a escotilha após eu passar.
A escotilha se abriu, e ele se abaixou para entrar no compartimento número dois. Então, se deteve.
- Hazel, onde está Kamal? - perguntou.
- Hector, ele não se mexeu. Está ainda no número dois, logo à sua frente. Acho que ele encontrou um buraco seguro para se esconder e está esperando que você vá até
ele.
- Então não podemos decepcioná-lo - Hector disse. - Ok, Cyril, feche ambas as escotilhas do compartimento número dois e esteja preparado para enchê-lo de gás ao
meu comando.
- Positivo, Hector. Kamal está enjaulado. Não tem como sair.
- Paddy, entendido?
- Positivo, Hector.
- Suba e espere em frente à escotilha do número dois do seu lado. Estarei esperando no meu. Cyril vai bombear o gás e, assim que Kamal ficar incapacitado, nós entramos
ao mesmo tempo para agarrar Nastiya antes que ela inale o gás.
- Você vai ter de agir depressa para chegar na minha frente, Hector. É com a minha garota que você está brincando.
- Ela vai ficar bem, Paddy. Ela é durona e bonita demais para morrer jovem.
- Chega de lero-lero, Cross. Vamos agir!
- Hazel, checando pela última vez. Onde está o alvo?
- Hector, eles não se mexeram. Ainda enfurnados no meio do compartimento. Não gosto disso. Acho que Kamal tem um último truque guardado na manga. Ele está à sua
espera. Por favor, tome cuidado, meu amor.
- Cuidado é o meu nome do meio - Hector a tranquilizou. - Mas acho que um sopro de gás carbônico vai deixar Kamal mais simpático. Dê o gás a ele, Cyril.
- Positivo, Hector. Estou abrindo os cilindros de gás carbônico agora.
- Paddy, nós vamos entrar em exatos quatro minutos. A essa altura, Kamal deverá estar desacordado.
- Com certeza, Nastiya também - Paddy respondeu com amargura.
Hector fingiu que não escutou enquanto observava o ponteiro dos segundos de seu Rolex. Ele se movia ao redor do mostrador com a calma de uma geleira alpina. Ele
alcançou o auge e começou a segunda volta quando Hazel falou novamente, com a voz tensa de ansiedade.
- Perdemos contato! Kamal e a Nastiya desapareceram da nossa tela.
- Isso não é possível. O sensor de infravermelho do túnel ainda está funcionando? Talvez Kamal o tenha encontrado e desativado.
Quando teve certeza de que a situação estava sob controle, tudo começou a se desvendar.
- Afirmativo. Ainda está funcionando. Mas Kamal sumiu. Nenhum contato! - Hazel repetiu num tom de urgência.
Hector se preparou para dominar a onda de pânico que sentia tomar conta dele.
"Pense como a raposa!", ele aconselhou a si mesmo. "Pense como Kamal! O que o filho da mãe está fazendo?" A intuição veio, ele descobriu a resposta para a própria
pergunta e falou pelo rádio de batalha.
- Paddy, Kamal provavelmente sentiu o cheiro do gás. O odor é inconfundível. Ele sabe que é gás carbônico, e que o gás é mais pesado do que o ar. Sabe que, para
sobreviver, tem de se colocar acima dele. Mas como ele faria isso?
Demorou alguns segundos antes que encontrasse a resposta.
- A coluna de escape do número dois! O filho da mãe escalou até o topo da coluna e levou Nastiya junto. Não há sensor de infravermelho na coluna, e o ar puro fica
preso ali. Lá dentro, é possível respirar, e ele está usando Nastiya como escudo. Não podemos atirar para cima sem atingi-la.
- Temos de entrar agora, Hector - a voz de Paddy se ergueu num grito. - Deixe-me ir! Pelo amor de Deus, deixe eu ir buscá-la.
- Você está certo, Paddy. Temos de entrar - Hector disse decisivamente. - Cyril, abra todas as escotilhas! Depois, desligue o gás e comece a ventilar o compartimento.
Ele respirou fundo e então prosseguiu:
- Hazel, traga o médico até aqui. Alguém vai se machucar.
- Estou indo com o médico - Hazel disse.
Hector pensou em discutir, mas sabia, pela experiência, que era inútil. Além disso, a escotilha estava se abrindo, e ele precisava ir. Ele baixou a cabeça ao passar
pela escotilha aberta e saiu correndo pela passarela. Não havia tempo para cautela. Ele sabia exatamente onde Kamal estava. A coluna se erguia do centro do compartimento
acima da bomba de gás - a essa velocidade, poderia chegar em dois minutos. Sem quebrar o ritmo das passadas, ele ligou novamente para Paddy.
- Paddy, quando chegar, esconda-se atrás da bomba de gás. Eu estarei do outro lado. Diga quando estiver a postos. Temos de agir juntos. Não dê uma de cavaleiro solitário
para cima de mim.
Paddy não respondeu, e Hector viu o volume escuro da bomba de gás começando a surgir. Acima dela, a entrada da coluna de escape se abria como a boca desdentada de
um monstro. Hector se enfiou sobre o abrigo da bomba e se ajoelhou. A Beretta 9 mm estava em suas mãos e apontada para a entrada da coluna.
- Ok, Paddy? Você está a postos?
- A postos, Hector!
- Cyril, entendido?
- Positivo, Hector.
- Quando eu contar até cinco, acenda todas as luzes. Um. Dois. Três. Quatro. Luzes!
Da mais profunda escuridão, o compartimento se iluminou com o brilho elétrico. Havia uma lâmpada de 180 watts na gaiola de arame no topo da coluna de escape. Ela
retroiluminava Kamal e Nastiya como um efeito cênico. Kamal estava agachado no estreito patamar de aço. Nastiya estava de pé no degrau da escada abaixo dele. As
mãos dela estavam amarradas com cabos, juntas, à frente do corpo. Ela tinha uma corda ao redor do pescoço. Kamal segurava a outra ponta da corda em uma mão e um
rifle automático na outra. O rifle estava apontado para baixo da coluna e, assim que viu Hector e Paddy na coluna, nove metros abaixo dele, disparou uma saraivada
de tiros com uma mão. Ambos se abaixaram atrás da bomba um momento antes dos tiros.
O estampido do rifle foi ensurdecedor na área fechada da coluna. As balas ricochetearam nas aparas de aço e nas pesadas tubulações de gás, despejando duchas cintilantes
de faíscas. Assim que os disparos do rifle cessaram, Hector arriscou uma olhadela rápida na cúpula da bomba. Não havia como atirar em Kamal. O corpo de Nastiya o
cobria quase completamente, ainda assim, ele viu que ela havia de certa forma conseguido enrolar uma laçada da corda de Kamal ao redor dos pulsos amarrados. Ele
não poderia mais usá-la como garrote. Ela estava se equilibrando precariamente no degrau da escada, sem apoiar as mãos. Hector percebeu imediatamente o que ela planejava
fazer, antes mesmo que Nastiya gritasse selvagemente:
- Me pegue, Babu!
A seguir, ela se jogou de costas para dentro da coluna. Num puxão, a corda se esticou, mas a tensão se concentrou nos pulsos e não no pescoço de Nastiya. A ponta
foi puxada das mãos de Kamal, que quase foi desalojado de seu poleiro. Ele lutou desesperadamente para manter o equilíbrio.
"Quem diabos é Babu?" Hector pensou sem dar muita importância. A pergunta não verbalizada foi respondida de imediato por Paddy, que saiu correndo detrás da bomba
e ficou embaixo da entrada da coluna com os braços bem abertos, olhando para Nastiya, que caía na direção dele. Ela tinha se encolhido como uma bola, com os cotovelos
e os joelhos contraídos, e a queda era de quase nove metros. A descida atingiu uma velocidade vertiginosa, mas Paddy não recuou. Ele a pegou no ar e foi derrubado
pelo impulso dela no chão de aço, absorvendo a maior parte do choque da colisão com o próprio corpo. O impacto soou como um saco de carvão jogado da caçamba de uma
carreta em uma rua de pedra, e Hector ouviu o estalar de ossos se quebrando. Mas Paddy não a largou uma única vez. Ele abraçava Nastiya contra o peito.
Hector nem sequer olhou para os dois corpos entrelaçados sob seus pés, mas concentrou tudo o que restava de sua mente e seus músculos na figura acima dele, na coluna
de aço.
Kamal estava se agarrando a um dos degraus da escada, chutando e se debatendo para manter o equilíbrio. O primeiro disparo de Hector com a Beretta ricocheteou de
um dos degraus da escada de aço logo abaixo dele. A bala deformada perdeu apenas um pouco da velocidade ao girar no ar, e então subiu para entre as pernas de Kamal,
perfurando o períneo e se alojando profundamente nos intestinos. O corpo inteiro de Kamal sacudiu e convulsionou. Ele se agarrou à escada com firmeza, mas não conseguiu
manter o rifle na outra mão. A arma caiu, rebatendo nas anteparas e quicando nos degraus da escada. Hector abaixou a cabeça quando o rifle passou voando por ele,
e então deu mais três tiros em rápida sucessão. Todos acertaram carne, ossos e vísceras. Lentamente, os dedos de Kamal se abriram até ele soltar a escada de aço
e despencar pela coluna, com a túnica solta esvoaçando ao seu redor até o corpo atingir o chão aos pés de Hector, que se debruçou sobre ele e atirou mais duas vezes
na cabeça, antes de se virar para onde se encontravam Paddy e Nastiya.
O túnel ainda estava inundado de dióxido de carbono que não havia sido expurgado pelos ventiladores. Nastiya corria risco. Hector se ajoelhou ao lado dela e desenganchou
a garrafa de dois litros de oxigênio do cinto. Abriu a torneira e espalmou a máscara sobre o nariz e a boca dela.
- Atenda o Paddy primeiro! - Nastiya pediu, e a voz dela foi abafada pela máscara de plástico. Paddy estava tentando se sentar, mas estava ferido. O corpo dele estava
disforme, um dos ombros, caído.
"A clavícula já era e, provavelmente, algumas costelas", Hector pensou. "Certamente algumas torções e distensões musculares, mas houve algo um dano cerebral?"
A seguir, ele disse em voz alta:
- Venha, Babu. A senhorita diz que preciso cuidar de você.
- Um dia desses, Cross, você vai passar dos limites - ele alertou, mas sem nenhum rancor. Seu rosto se contorceu num misto de dor e adulação quando Nastiya se debruçou
sobre ele, que a encarou nos olhos.
- Nenhum dano cerebral! O rapaz ainda é ligeiro como uma pistola! - Hector disse com um sorriso e ligou o microfone do rádio. - Agora escutem todos! Kamal está fora
da jogada. Assim como Uthmann Waddah. Adam foi capturado. Paddy quebrou alguns ossos, mas é forte, e eles vão sarar. O principal é que Nastiya e eu estamos bem.
Portanto, não precisam se preocupar!
Hector e Hazel estavam na asa da ponte de comando do Ganso Dourado. Ela estava nos braços do marido, recostada ao peito dele. Em silêncio, observavam os últimos
barcos que chegavam da praia, lotados de marinheiros que a coluna de Sam Hunter havia libertado dos cativeiros. Os homens estavam sendo levados aos seus barcos na
baía.
Os homens de Sam estavam incendiando os edifícios da cidade, após se certificarem de que nenhuma viúva ou órfão tinha sido deixado para trás pela população em fuga.
Hazel fora categórica quanto a isso. A maioria dos navios capturados da baía já estava com a tripulação original a bordo, e havia ligado os motores em preparação
para zarpar. Oito navios que ficaram ancorados por vários anos tinham se deteriorado tanto que os motores haviam emperrado devido à ferrugem, que também atingira
os cascos em grandes proporções, tornando-os totalmente incapazes de navegar. Hector ordenou que fossem afundados, para privar os piratas até mesmo dessa escassa
recompensa. Quando as válvulas de drenagem foram abertas para transbordarem, vários cascos viraram, enquanto outros afundaram de pé, deixando apenas o cordame à
mostra na superfície. Por fim, o esquadrão de VAAs desceu pela praia em direção ao mar e começou a nadar de volta ao Ganso, abandonando a cidade em chamas. Hazel
quebrou o silêncio:
- Então, meu querido, missão cumprida e encerrada - disse no que foi praticamente um suspiro.
- Quase, mas não totalmente encerrada. Há apenas mais uma coisa que temos de fazer - Hector respondeu, e ela se virou dentro do abraço dele para encará-lo.
- Eu sei. É a parte que estou temendo - suspirou. - Onde ele está?
- Tariq o trancou na sala de armamentos da área escondida do navio.
- Temos de lidar com isso imediatamente, liquidar o assunto antes que eu perca a coragem.
- Nós só vamos agir quando estivermos em alto-mar - ele argumentou. - Mas nenhum de nós vai perder a coragem. Devemos isso a Cayla e Grace.
- Eu sei - Hazel suspirou e se aconchegou no peito dele -, temos de fazer justiça por elas. Sem isso, ninguém ficará em paz. Quando, meu querido? Quando devemos
fazê-lo?
- Vamos zarpar hoje à noite. Faremos ao nascer do sol, amanhã, quando estivermos longe da terra firme.
- Só nós dois? - Hazel perguntou baixinho. - Ninguém mais?
- Outros sofreram - Hector a fez lembrar. - Tariq, Paddy e Nastiya.
- Muito bem. Mas a tarefa fica ao meu encargo. É o meu dever sagrado.
O sol estava se pondo, e a iluminação foi suficiente para que o Ganso Dourado manobrasse para fora do canal, liderando o comboio variado e estranho de navios na
saída da Baía de Gandanga. Eles navegaram rumo ao sudeste durante a noite. Na manhã seguinte, Hector e Hazel tomaram banho e vestiram roupas limpas enquanto ainda
estava escuro. Em seguida, em silêncio, tomaram uma caneca de café forte de pé na cozinha da suíte principal. Às cinco em ponto, Tariq bateu na porta, que foi aberta
por Hector.
- Está tudo pronto - Tariq disse.
- Obrigado, velho amigo.
Hector o deixou na porta e voltou, encontrando a esposa sentada na cama. Hazel ergueu o olhar até ele. O azul dos olhos dela eram de um tom que ele nunca tinha visto
antes, frio e desprovido de sol como o mar Ártico.
- Pronto? - ela perguntou.
- Pronto! - disse e, pegando-a pela mão, a colocou de pé. Ele a levou até o elevador, e eles desceram até o andar mais baixo. Quando as portas se abriram, ele a
levou pelo cotovelo e a conduziu ao convés da popa. Uma seção do convés havia sido isolada por uma tenda de lona pesada. Tariq seguiu adiante deles e manteve a entrada
da tenda aberta. Depois que passaram, ele a fechou.
Paddy e Nastiya estavam à espera deles. Paddy estava sentado em uma cadeira dobrável de lona. O peito dele estava enfaixado com fita cirúrgica, e o braço esquerdo,
apoiado numa tipóia. Nastiya estava de pé ao lado dele, com uma das mãos delicadamente pousada em seus ombros. Hector e Hazel se posicionaram do outro lado. Hector
olhou para Tariq.
- Vá pegar o Adam - ordenou.
Tariq saiu pela abertura da tela de lona e retornou quase imediatamente. Dois homens da Cross Bow o acompanhavam. Adam estava entre eles. As pernas dele estavam
paralisadas de terror. Os guardas ao mesmo tempo o arrastavam e carregavam. Eles o deixaram cair de joelhos em frente a Hazel. Hector fez um sinal afirmativo com
a cabeça para os guardas, que foram ficar de vigia na entrada do cercado.
Adam se ajoelhou em frente a Hector e Hazel. Os olhos dele estavam escurecidos e inundados de lágrimas. A pasta preta ainda estava acorrentada ao seu pulso, e ele
a apertou contra o peito com ambas as mãos.
- Por que ele ainda está com essa pasta? Tire-a dele - Hector exigiu.
- A corrente tem uma fechadura de combinação - Tariq respondeu. - Ele não nos diz qual é. Não podemos tirá-la dele.
- Corte a mão na altura da articulação do pulso, Tariq. A corrente vai deslizar do toco com facilidade - Hector ordenou. - Use sua faca de trincheira.
Tariq se debruçou sobre Adam, pegou a faca e agarrou o braço dele. Adam guinchou como um leitão prestes a ter a garganta cortada.
- Não! Não use essa faca. Eu dou a pasta para vocês.
Ele a colocou no colo e, com dedos trêmulos, alinhou os números da combinação da fechadura. Após a segunda tentativa, a corrente caiu do pulso, e ele engatinhou
pelo convés até Hector, oferecendo-a com as duas mãos.
- Você e eu podemos entrar num acordo - ele soluçava. - Sei que é um homem de palavra, Hector Cross. Nesta pequena bolsa, estão códigos e senhas da internet para
acessar quase dois bilhões de dólares depositados em 26 bancos ao redor do mundo. Nós podemos compartilhá-los, você e eu. Liberte-me e pode ficar com metade do dinheiro.
- O dinheiro não é seu, Adam. Foi roubado de pessoas cujos barcos e mercadorias você saqueou.
- Então, pode ficar com tudo - Adam implorou. - Dois bilhões de dólares! Fique com tudo, mas me liberte.
- Sim! Eu vou ficar com todo o dinheiro, Adam - Hector disse com um aceno de cabeça -, e vou mandar você para Iblis, o espírito do mal. Ele está à sua espera. Tire
a pasta dele, Tariq.
Adam gemeu e tentou resistir, agarrando-se à corrente. Tariq virou a faca para cima na bainha, e o acertou na têmpora com o punho. Adam soltou a corrente para segurar
a cabeça com as duas mãos. Tariq entregou a pasta a Hector. Ele a colocou de lado e concentrou a atenção no miserável encolhido a seus pés.
- Adam, você é o autor de incontáveis atos de pirataria, estupro e assassinato. Mesmo sob a lei da Sharia que você professa honrar, esses são todos crimes capitais.
Você é declarado culpado. Porém, uma de suas vítimas era um jovem chamada Cayla Bannock. Você a estuprou e torturou sem misericórdia. Por fim, assassinou Cayla e
a avó dela, Grace, ao mandar que seus lacaios a decapitassem. A seguir, você enviou as duas cabeças a Hazel Cross com uma mensagem sarcástica. Hazel Cross, que é
filha de Grace Nelson e mãe de Cayla Bannock, está diante de você agora exigindo uma retratação.
Adam ergueu a cabeça e olhou para Hazel. O sangue gotejava pelo seu rosto devido ao golpe desferido por Tariq. Ele estava chorando, e as lágrimas diluíam o sangue
e pingavam na túnica branca.
Hector prosseguiu em voz baixa:
- A mãe de Cayla Bannock está diante de você. Ela reivindica o direito de retaliação garantido a ela sob a lei da Sharia. Uma vida por uma vida.
- Por favor! - ele juntou as mãos em concha e as estendeu da direção de Hazel em súplica como um mendigo. - Era o meu dever. Fiz apenas o que era o meu dever perante
a Alá e os meus antepassados. Por favor, compreenda. Por favor, tenha misericórdia.
Hector olhou para Tariq e assentiu. Tariq tinha um pedaço de lona dobrado aos seus pés. Ele o estendeu no convés. A seguir, dois homens da Cross Bow carregaram um
pesado saco de areia e o depositaram no centro da lona.
- Adam, vá até a lona e deite com a cabeça sobre o saco de areia - Hector ordenou.
- Não! - Adam balbuciou. - Eu lhe dei o dinheiro. Eu paguei pela dívida de sangue sob a lei da Sharia, e você aceitou. Você tem de me libertar.
Hector retirou a pistola do coldre do cinto, girou-a e a entregou com a coronha voltada para Hazel. Ela a pegou, colocou uma bala no pente e apontou o cano para
o convés. Em seguida, Hector foi até onde Adam estava ajoelhado. A voz de Adam se ergueu em um grito agudo.
- Misericórdia! Eu imploro, misericórdia!
Hector agarrou um dos pulsos de Adam e, aparentemente sem esforço, torceu a mão dele para trás das costas e o colocou de pé. Ele o levou até a lona e forçou para
que se deitasse sobre ela de bruços.
- Coloque a cabeça no saco de areia - Hector ordenou em voz baixa. - Isso vai deter a bala depois que ela atravessar o crânio. Depois, o saco de areia vai servir
de peso para afundar seu corpo quando for jogado ao mar.
Adam gritou, um som disforme e incoerente. Hector forçou a cabeça dele contra o saco até que o grito fosse abafado. Então, olhou para Hazel.
- Está pronta? - perguntou, e ela assentiu.
Hazel, que chorava em silêncio, foi se posicionar ao lado de Hector, apontando a pistola para a cabeça de Adam, mas os ombros dela sacudiam, e a pistola oscilava
e tremia em seu punho. Ela a ergueu e apontou para o céu. Hazel balançava a cabeça e arfava como uma mulher se afogando. Nastiya Voronova saiu do lado de Paddy e
foi até ela. Ela tocou gentilmente um dos ombros de Hazel.
- Eu farei isso por você, Hazel. Sou treinada, você não - Nastiya disse, mas Hazel balançou a cabeça de novo.
- Não - ela suspirou -, é o meu dever perante Deus, minha mãe e minha filha.
Ela abaixou a pistola e mirou a parte de trás da cabeça de Adam. As mãos dela se estabilizaram, de repente, e ela não soluçava mais. Foi um um único disparo. Depois,
não se ouviu nenhum barulho, a não ser a batida ritmada dos motores.
Hector retirou a pistola da mão de Hazel e retirou o pente, ejetando a bala. A seguir, colocou um dos braços ao redor dos ombros da esposa e disse:
- Acabou, agora. Tarefa cumprida, e bem cumprida. Grace e Cayla estão livres, assim como nós.
Ela enterrou o rosto no peito dele e não olhou quando Tariq e os dois guardas se aproximaram. Eles enrolaram Adam e o saco de areia no pedaço de lona e, com uma
corda de nylon, amarraram o embrulho habilmente e de forma segura. Depois, os dois levaram o pacote até a popa e o deslizaram por cima da grade, jogando-o na borbulhante
esteira branca deixada pelo navio. Ele desapareceu sem deixar traços.
O USS Manila Bay interceptou a flotilha a trinta milhas náuticas de águas territoriais. O tom de voz do Comandante Andrew Robins era de incredulidade ao contatar
o Ganso Dourado.
- Ganso Dourado, aqui é o Manila Bay. Capitão Stanford pode falar?
- Olá, Andy, aqui é Cyril Stanford.
- Bom falar com o senhor novamente. Houve relatos de problemas no Golfo de Adem. Em um lugar chamado Baía de Gandanga particularmente.
- Não me diga, Andy! Do que será que se trata?
- Bem, contanto que o senhor não tenha se envolvido em qualquer incidente desagradável. Estava um pouco preocupado com o senhor - ele fez uma pausa. - Vejo que tem
companhia.
- Que coisa mais engraçada, Andy, o jeito que esses sujeitos grudaram em mim. Parece que se perderam.
- Quantos, senhor?
- Dezenove desde a última vez que contei.
- As ordens que recebi são para prestar auxílio a quaisquer embarcações emergindo do Golfo de Adem que requeiram assistência.
- Então vou passá-los a você, Andy, e seguir meu rumo.
- Na última vez que nos falamos, pensei que o senhor tinha dito que seu destino era Jedá, na Arábia Saudita, certo, Capitão Stanford?
- Mudança de planos, Andy. Meus patrões não conseguem decidir para onde querem que eu vá. Agora estou a caminho de contornar o Cabo da Boa Esperança.
- Parece que o boato de confusão na Baía de Gandanga foi um exagero. O último relatório do satélite diz que a baía está completamente deserta.
- Para você ver, Andy, que não dá para acreditar em tudo o que se ouve.
- Vamos dedicar essa ao seu menino, o Bobby?
- Deus o abençoe, Andy Robins!
- Mares calmos e ventos gentis o acompanhem, tio Cyril!
Após um prolongado debate, Hazel, Hector e Paddy decidiram que, independente dos custos, eles deveriam se livrar de quaisquer equipamentos incriminadores deixados
a bordo do Ganso Dourado. De acordo com essa resolução, os canhões Bushmaster foram desmontados de seus locais de armazenagem e, juntamente com toda munição, jogados
numa profundidade de 1.500 metros na Bacia de Mascarene. Os três VAAs os seguiram com os torreões e as válvulas totalmente abertos.
Assim que tudo foi descartado, o Ganso Dourado fez uma parada no ancoradouro do porto de Dar es Salaam, e 146 homens foram transportados para terra firme. Todos
os passageiros vestiam trajes civis e carregavam um gordo cheque administrativo em nome do Hongkong and Shangai Banking Corporation. Bernie e a Grande Nella Vosloo
esperavam por eles no aeroporto de Dar es Salaam para levá-los de Hércules ao Qatar. De lá, eles se dispersaram pelo globo em voos comerciais. Paddy ainda não estava
em condições de viajar, portanto permaneceu a bordo, com sua enfermeira russa particular. Eles navegaram até a Cidade do Cabo, onde o BBJ os esperava. O jato levou
o casal a Moscou, onde Nastiya queria receber a aprovação da mãe para o que os dois tinham em mente.
Hector e Hazel passaram uma semana no Dunkeld Estate para experimentar a última safra do tio John e oferecer conforto e apoio em relação à perda de sua amada irmã
Grace. Quando ficou sabendo que as contas haviam sido ajustadas e que a própria Hazel realizara a execução, John melhorou e iniciou sua total recuperação. O BBJ
retornou de Moscou e levou Hector e Hazel de volta a Houston.
Durante o voo de volta, eles discutiram o que tinha de ser feito com o conteúdo da pasta de Adam Tippoo Tip. Finalmente, concordaram que os fundos poderiam ser recuperados
das contas bancárias com os nomes de usuário e as senhas adquiridos, e que depois teriam de ser devolvidos aos verdadeiros donos. Assim que estavam de volta ao Texas,
fizeram a primeira tentativa de recuperação. Primeiro, abriram uma conta numerada na Suíça. A seguir, Hector entrou na internet e usou seu árabe fluente para digitar
o nome de usuário e a senha da conta de Adam no Banco Central da República Islâmica do Irã.
- Merda! Funciona! - ele respirou fundo, e os arquivos se abriram na tela com uma rapidez miraculosa.
- Não pragueje, querido - Hazel disse afetadamente -, vai dar azar.
Hector apontou para o saldo da conta bancária.
- Você acha que 857 milhões de dólares são azar?
- Vão ser, a não ser que você consiga transferi-los para a conta numerada na Suíça.
- Prenda a respiração e reze - ele disse, e digitou os dados. - Lá vamos nós!
Ele clicou o botão "enviar", e depois deixou escapar um grito de triunfo:
- Aceitou os dados! O dinheiro foi transferido!
- Verifique se caiu na conta - Hazel sugeriu.
- Ele abriu a conta suíça rapidamente.
- Entrou! - ele comemorou. - Olhe! Oitocento e cinquenta e sete milhões de dólares! - ele tomou Hazel nos braços e valsou com ela duas vezes ao redor da sala.
- Agora é sério - ela finalmente o fez parar. - Vamos pegar o resto da bolada.
Eles se sentaram novamente em frente ao computador e trabalharam pelas três horas seguintes. Ao final, encararam a tela maravilhados.
- Raspamos o tacho - disse Hector num tom sombrio. - Pegamos tudo. Até o último dólar. Cada um dos míseros dois bilhões de dólares.
- Ok! Pode xingar! Eu estava errada. Parece que nos trouxe sorte.
- Há uma garrafa de um litro e meio de champanhe Roederer Cristal na geladeira. O que você acha? Que tal?
- Acho que é obrigatório - ela concordou.
Eles brindaram e também aos amigos ausentes, e então passaram ao próximo item da tarefa.
- Certo! - disse Hazel. - É possível estabelecer quem depositou dinheiro nas contas do Adam?
- Sim, é claro. Só precisamos abrir os extratos. Está tudo ali.
- E nós temos os números da contas para devolver todo o dinheiro? - ela perguntou.
- Não todo. Temos de reembolsar a Bannock Oil por todas as despesas de montar e equipar a expedição à Baía de Gandanga.
- Sim, é claro. Mas temos de manter a discrição em relação a tudo isso. Jamais poderemos admitir que tivemos qualquer participação no ataque aos piratas. Nós quebramos
quase todas as leis quando fizemos isso.
- Quanto ao reembolso das despesas da Bannock Oil, vou conversar com o príncipe Mohammed em Abu Zara. Nós podemos conseguir o dinheiro através dele, como royalties
de petróleo.
- Ele fará isso por nós?
- Não por nós, mas por uma boa comissão - Hector disse dando de ombros. - Além de ser o primeiro ministro e Ministro das Minas e Energia, ele também é o cabeça do
Exército e da Força Policial, e governador do Banco Central de Abu Zara. As pessoas tendem a cumprir as ordens do pequeno príncipe sem reclamar muito.
Hazel riu.
- Ele parece ser o meu tipo de cara. Mas como devolvemos o dinheiro que Adam Tippoo Tip roubou aos outros?
- Nós temos um advogado realmente de confiança?
- Um pelotão inteiro deles - ela afirmou.
- O advogado da sua escolha entrará em contato com cada um, separadamente, sob um acordo de confidencialidade. Ele irá explicar que seu cliente anônimo negociou
com os piratas e recebeu um reembolso substancial dos fundos extorquidos. Se eles assinarem uma garantia de sigilo, terão direito a uma parcela da quantia. Pode
apostar que não deixarão a oferta escapar.
Hector estava certo. O príncipe Mohammed canalizou o dinheiro para os cofres da Bannock Oil, e os donos dos navios e as seguradoras que tinham perdido dinheiro agarraram
a oportunidade com a rapidez de um atleta olímpico.
Enquanto tudo isso estava em progresso, Hector e Hazel encontraram tempo para voar até Moscou para o casamento de Nastiya Voronova e Paddy. No caminho, pegaram Cyril
Stanford em Taiwan, onde o Ganso Dourado estava sendo reformado. Cyril estava agora oficialmente empregado como capitão da embarcação em período integral, e a própria
Nastiya pediu a Hazel para que providenciasse a presença dele no casamento. Hector não conseguia entender por que a presença de Cyril estava sendo planejada tão
cuidadosamente pelas duas. Foi apenas quando Nastiya apresentou Cyril à mãe que tudo ficou mais claro. Galina Voronova era uma senhora alta e imponente de 57 anos,
cujos cabelos compridos haviam se tornado loiros platinados. Olhando para ela, ficava óbvio de onde Nastiya tinha herdado a própria beleza espetacular.
Cyril e Galina trocaram um aperto de mão, e ela disse em um inglês excelente:
- O senhor é um capitão do mar. Que romântico!
Cyril balbuciou algo ininteligível e ficou pálido sob o bronzeado. Ele na verdade pareceu cambalear ao olhar para ela. Hazel apertou o braço de Hector e murmurou
alto o suficiente apenas para ele ouvir:
- Bingo!
A seguir, ela e Nastiya trocaram olhares, satisfeitas.
Após a cerimônia de casamento na catedral de Cristo, o Salvador, Hazel entregou a Nastiya um contrato com a Cross Bow Security. Ela nomeou Nastiya a nova diretora-assistente
da empresa. Quando Hector e Hazel pegaram o voo de volta a Houston, Cyril Stanford não estava a bordo do jato. Levaria pelo menos mais três meses até que o Ganso
Dourado estivesse pronto para navegar, e ele tinha tempo de folga. Por razões que ingenuamente acreditava serem apenas de seu conhecimento, Cyril decidiu passar
um tempo em Moscou.
Hector e Hazel tinham uma montanha de trabalho esperando em Houston, incluindo a Bannock Oil AGM e uma delegação japonesa ansiosa por discutir a perfuração em águas
profundas em Mariana Trench no Oceano Pacífico, portanto, foi apenas quase um mês após a volta que tiveram a oportunidade de voar até o rancho no Colorado. Depois
do café da manhã do primeiro dia de estadia, eles subiram até o mausoléu no topo da Montanha da Lupa. O velho Tom os saudou à entrada.
- Disseram que vocês estavam vindo, dona Hazel e seu Hector - ele disse -, por isso eu trouxe as flores. Lírios africanos para o sr. Henry e rosas para a srta. Cayla,
como sempre.
- Você é um homem bondoso, Tom.
Hector observou Hazel arrumar as flores da entrada. Quando terminou, ela o chamou. Eles se ajoelharam lado a lado nas almofadas de veludo roxo que Tom havia colocado
na cabeceira do sarcófago de mármore de Cayla.
- Eu não sou muito bom nessas coisas de rezar - Hector a avisou com gentileza.
- Eu sei. Deixe essa parte comigo - ela respondeu.
Ela era muito boa de reza. As lágrimas subiram aos olhos de Hector ao escutá-la.
Quase duas horas depois, eles saíram novamente para o gramado. Os céus estavam cinzentos com densas nuvens de neve. Eles se sentaram juntos no banco de pedra. Um
floco de neve aterrissou delicadamente no nariz de Hazel. Ela sentiu cócegas e o afastou do nariz.
- O inverno está chegando cedo este ano - ela disse. - Dickie me disse que os gansos já voaram para o sul.
- Cayla e Henry foram com eles - Hector afirmou. - Eles não estavam lá hoje - ele olhou para o mausoléu.
- Você também sentiu isso?
- Eles não vão voltar, Hazel. Eles se foram para sempre. Apenas a lembrança vai permanecer conosco.
- Eu sei.
- Não fique triste, minha querida.
- Não estou triste. Estou feliz por eles. Nós finalmente os libertamos.
Hazel se aconchegou mais ao marido, que pôs um dos braços ao redor dela. A noite se aproximava rapidamente, e tinha esfriado bastante.
- Hector? - ela disse.
- Ainda estou aqui - ele respondeu. - Não tenho planos de ir a lugar nenhum sem você.
- Eu parei de tomar a pílula este mês.
- Meu Deus, por que você fez isso? - ele estava espantado.
- Quero mais um bebé. Essa é a minha última chance. Eu passei dos quarenta. Logo, será tarde demais. Eu preciso ter um bebé. Tenho de ter um pedaço de você dentro
de mim. Essa vai ser a confirmação final do nosso amor. Ah, meu querido, você não entende? Eu preciso ter um bebé para assumir o lugar da Cayla. Você também não
quer?
- Diabos! Sim! É claro que quero - ele disse.
- Então você não está mesmo bravo comigo?
- Não! - ele se levantou e tomou as mãos de Hazel, ajudando-a a se levantar.
- Venha comigo, mulher! - ele disse.
- Onde vamos?
- De volta à terra da paternidade, onde mais? Você e eu temos importantes assuntos a tratar.
De mãos dadas, eles desceram correndo pela Montanha da Lupa, rindo durante todo o caminho de volta à casa no Lago da Guitarra.
Wilbur Smith
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