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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


EM BUSCA DO CARNEIRO SELVAGEM / Haruki Murakami
EM BUSCA DO CARNEIRO SELVAGEM / Haruki Murakami

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ambientado numa atmosfera japonesa, mas com um pé no noir americano, Murakami tece uma história detectivesca onde a realidade é palpável, dura e fria, e seria a verdade de qualquer um, não fosse um leve pormenor: é uma realidade absolutamente fantástica.

Um publicitário divorciado, que tem um caso com uma rapariga de orelhas fascinantes, vê-se envolvido, graças a uma fotografia publicitária, numa trama inesperada: alguém quer que ele encontre um carneiro! Mas não é um carneiro qualquer. É um animal que pode mudar o rumo da história. Um carneiro sobrenatural...

Murakami dá a esta estranha história um tom que só um oriental pode imprimir a uma crença, fazendo-a figurar como um facto da realidade. Coloca, de uma forma genial, a fantasia na aridez do mundo real.

 

 

 

 

Soube da sua morte por um amigo. Ele viu a notícia quando passava os olhos pelas páginas de um matutino e deu-se ao trabalho de me telefonar a ler o texto. Nada de especial. Um parágrafo curto, com aspecto de ter sido escrito por algum estagiário acabado de sair da universidade e armado em repórter.

No dia tantos do mês tal, num determinado bairro da cidade, um camião, conduzido por fulano de tal, tinha atropelado uma mulher. O motorista era acusado de homicídio involuntário e estava em curso uma investigação policial com vista a apurar responsabilidades.

Poderia perfeitamente passar por um daqueles poemas que aparecem na primeira página de uma revista.

- Onde é o enterro? - perguntei eu a esse meu amigo.

- Olha, agora é que me baralhaste - respondeu ele. - Queres ver que a rapariga tinha família?

Era óbvio que sim, tinha casa e família.

Telefonei nesse mesmo dia para a Polícia e obtive a morada da família e o número de telefone dos pais. Acto contínuo, liguei lá para casa a fim de saber pormenores do enterro. Quem procura sempre alcança, já lá dizia alguém.

A família morava na zona baixa da cidade. Fui buscar o mapa de Tóquio, desdobrei-o e assinalei a esferográfica vermelha o bairro onde ficava a casa. O local não podia ser mais degradado. As linhas de metro, de comboio e de autocarro enredavam-se como fios de uma retorcida teia de aranha, e um número infinito de ruas estreitas e canais de escoamento de águas e esgotos entrecruzavam-se à superfície formando um reticulado intenso, como rugas na casca do melão.

No dia do enterro, apanhei o comboio na paragem da Universidade de Waseda. Desci não muito longe do fim da linha e consultei o mapa da cidade, dividido por distritos, que numa altura daquelas, confesso, me serviu de tanto como um mapa-múndi. Resultado: ao chegar ao meu destino, já eu tinha perdido a conta aos maços de tabaco comprados em troca de informações.

A casa era uma velha construção de madeira com uma cerca de tábuas pintadas de castanho a toda a volta. Passando o portão, tinha à minha esquerda um jardim tão minúsculo que me levou a perguntar a mim mesmo para que diabo serviria. Ali, abandonado a um canto, estava um velho e inútil fogareiro de cerâmica com quase um palmo de água da chuva estagnada no fundo. A terra do jardim era preta e húmida.

Ela tinha saído de casa aos dezasseis anos. O que talvez explicasse o enterro, sombrio e celebrado na mais estreita intimidade. Só a família estava presente, na sua maioria pessoas mais velhas. O homem que presidiu à cerimónia, aparentando pouco mais de trinta anos, devia ser o irmão mais velho, ou então, quem sabe, o cunhado.

O pai, um homem baixinho, na casa dos cinquenta, usava um fumo negro em sinal de luto. Manteve-se de pé junto à porta, praticamente imóvel durante todo o tempo. Fez-me lembrar o asfalto molhado de uma estrada depois de um aguaceiro.

À despedida, baixei a cabeça em silêncio, e ele respondeu-me do mesmo modo, sem pronunciar uma palavra.

Conheci-a no Outono de 1969. Tinha eu vinte anos na época, e ela, dezassete.

Perto da universidade havia uma pequena cafetaria onde eu e os meus amigos tínhamos por hábito marcar encontro. Não era nada do outro mundo, mas sempre dava para ouvir rock puro e duro enquanto bebíamos o café da casa, por sinal uma mistela tão horrorosa que nem tinha descrição possível.

Ela costumava estar sentada sempre no mesmo lugar, mergulhada na leitura, com a cabeça entre as mãos e os cotovelos fincados na mesa. Usava óculos de armações metálicas - que faziam lembrar um aparelho ortodôntico - e tinha mãos esqueléticas, mas havia nela qualquer coisa que, de algum modo, a tornava atraente. O seu café estava sempre frio, o cinzeiro invariavelmente a transbordar de beatas.

Só os livros mudavam. Um dia era Mickey Spillane, outro Kenzaburo Oe, outro ainda o poeta Allen Ginsberg. Dito de outro modo, o título pouco ou nada interessava, dando-se por satisfeita desde que tivesse um livro à frente, quase sempre emprestado pelos estudantes que constituíam a fauna habitual do café. Devorava esses livros uns a seguir aos outros, vorazmente, como outras pessoas comem espigas de milho. É preciso ver que, naquele tempo, as pessoas tinham gosto em passar os livros de mão em mão, por isso matéria para leitura foi coisa que nunca lhe faltou.

Estamos a falar da época dos Doors, dos Stones, dos Byrds, dos Deep Purple e dos Moody Blues. Notava-se uma certa dose de tensão e electricidade no ar, e tudo, ou quase tudo, parecia à beira de se desmoronar num abrir e fechar de olhos, bastando para tal que alguém tomasse a iniciativa de dar o pontapé de saída.

Trocávamos livros, bebíamos uísque barato, praticávamos sexo por sexo, discutíamos assuntos que não nos levavam a parte alguma, e assim se passavam os dias. Vocês sabem, as coisas do costume. Enquanto isso, acompanhada de um sinistro rangido, caía a cortina sobre aquela década de sessenta de tão incómoda memória.

O nome dela? Já não me lembro.

Podia ir buscar o recorte com a notícia que apareceu na necrologia do jornal e confirmar, mas isso é o que menos interessa agora. A verdade é que me esqueci do nome.

Volta e meia, quando dou de caras com velhos amigos daquela época, acontece a história dela vir à baila. Também os outros se esqueceram do nome dela. «Olha lá, não te lembras daquela miúda que dormia com qualquer um?... Ai, como é que ela se chamava?...

Varreu-se-me por completo... É bom não esquecer que também eu fui para a cama com ela umas quantas vezes... O que será feito dessa rapariga? Tinha a sua graça, ir no meio da rua e dar de caras com ela por aí...»

Era uma vez uma maria-vai-com-todos. Aí têm o nome dela.

É evidente que, para sermos rigorosos, não se pode propriamente dizer que ia para a cama sem olhar a quem. Como é natural, ela lá devia ter os seus critérios.

Apesar disso, e analisando a questão por um ângulo realista, a verdade é que ela se mostrava disposta a ir para a cama com quase todos.

Uma única vez, por pura curiosidade, questionei-a acerca desses seus critérios.

- Bem, se queres mesmo saber... - começou ela. Entretanto passaram-se trinta segundos, e ela sempre a pensar na resposta. - Não se pode dizer que vá com qualquer um. Às vezes, acontece que não estou para aí virada. No fundo, acho eu, tenho vontade de conhecer pessoas diferentes. Ou, então, talvez só assim o mundo passe a fazer sentido para mim.

- Indo para a cama com todos os homens que te aparecem à frente?

- A-hã.

Foi a minha vez de ficar pensativo.

- E diz-me uma coisa: isso ajudou-te por acaso a ver as coisas com mais clareza?

- Um bocadinho, sim - respondeu ela.

Desde o Inverno de 1969 até ao Verão de 1970 praticamente não lhe pus a vista em cima. Paralisações e lockouts mantiveram a universidade fechada alternadamente, e eu, pela minha parte, também andava com problemas pessoais que não vêm agora ao caso.

Quando tornei a pôr os pés na dita cafetaria, isto no princípio do Outono, a fauna que por lá andava era completamente diferente, e o único rosto familiar era o dela. O hard rock continuava a ser o pano de fundo musical, é certo, mas aquele ambiente electrizante de outros tempos tinha-se volatilizado por completo. Apenas ela e o péssimo café continuavam iguais ao litro. Sentei-me na cadeira à sua frente e ficámos ali a conversar sobre a malta de antigamente.

A maioria tinha abandonado a faculdade. Um deles suicidara-se e outro havia desaparecido do mapa sem deixar rasto. Esse tipo de conversa.

- O que é que andaste a fazer durante este ano? - quis ela saber.

- Muita coisa - respondi eu.

- Aproveitaste?

- Pode dizer-se que sim...

Nessa noite, dormimos juntos pela primeira vez.

Do seu passado, confesso que não sei grande coisa. Aquilo que sei foi o que me contaram. Ou isso, ou então foi ela própria a fazê-lo, quando estávamos os dois na cama. Andava no primeiro nível do secundário (primeira série) quando teve uma discussão monumental com o pai e saiu de casa, abandonando também a escola. Se bem me lembro, era essa a história. Agora, onde morava ao certo e o que fazia para viver, isso ninguém sabia.

Costumava passar os dias sentada à mesa de uma cafetaria onde se ouvia música rock o tempo todo, a beber um café atrás do outro, a fumar cigarros atrás de cigarros, enquanto folheava as páginas do livro que tinha em mãos, à espera que aparecesse o primeiro que estivesse disposto a pagar-lhe os cafés e o tabaco (gastos que, para o nosso bolso, representavam à época uma soma apreciável), acabando depois, para não fugir à regra, na cama com esse alguém. E pronto. Era tudo o que sabia a seu respeito. A partir do Outono desse ano e até à Primavera seguinte, ela adquiriu o hábito de aparecer uma vez por semana, todas as terças à noite, no apartamento que eu ocupava nas proximidades do bairro de Mitaka. Engolia os jantares simples que eu lhe punha à frente, enchia os meus cinzeiros de pontas de cigarro e fazia amor comigo com a rádio no máximo e sintonizada num programa de rock da FEN(1).

 

*1. Far East Network, estação de rádio ao serviço dos soldados do Exército norte-americano. (N. da T.)

 

Ao acordarmos na manhã de quarta-feira, pegávamos em nós e íamos dar um passeio pelos bosques, nas proximidades da ICU(2), e almoçávamos na cantina da cidade universitária. À tarde, contentávamo-nos com um café aguado no bar da associação de estudantes e, se o tempo estivesse bom, deixávamo-nos ficar estendidos na relva a contemplar o céu.

Era o nosso piquenique das quartas à tarde, chamava-lhe ela.

- Sempre que aqui venho, tenho a impressão de estar num verdadeiro piquenique.

- Um piquenique? Estás a falar a sério?

- Claro! Vendo bem, estamos num espaço aberto, a relva estende-se a perder de vista, ao mesmo tempo que à nossa volta toda a gente tem um ar feliz e descontraído...

Sentando-se na relva, ela lá conseguiu finalmente acender o cigarro depois de gastar uma quantidade de fósforos.

- O Sol sobe alto e depois desce no céu. As pessoas vão e vêm. O tempo passa, como uma brisa. Não te parece que só pode ser um piquenique?

Na época, eu tinha vinte e um anos, quase vinte e dois. Não estava a ver grandes hipóteses de conseguir a licenciatura nos tempos mais próximos, se bem que também não tivesse razão para deixar o curso a meio. Apanhado nas malhas de circunstâncias estranhas e deprimentes, andei durante uma série de meses a marcar passo, incapaz de seguir em frente. O mundo, esse continuava a girar; e era eu o único que não saía do mesmo lugar. Tudo naquele Outono de 1970 se traduzia para mim numa profunda tristeza, aos meus olhos todas as cores perdiam rapidamente o brilho. A luz do Sol e o aroma da erva, até mesmo o leve tamborilar da chuva, tudo bulia com o meu sistema nervoso.

Passava a vida a sonhar que apanhava um comboio de noite. O sonho era sempre o mesmo. Um comboio apinhado de gente, uma atmosfera sufocante, carregada de fumo de tabaco, cheiro a mijo

 

*2. International Catholic University, sigla que designa a Universidade Católica Internacional. (N. da T.)

 

e suor dos corpos. O comboio da noite ia de tal forma cheio que mal havia espaço para se viajar de pé. Os assentos estavam todos cobertos de vómito ressequido. Incapaz de aguentar aquilo, levanto-me e saio na primeira estação. Que, afinal de contas, não era propriamente uma estação, mas sim um apeadeiro no meio de uma paisagem desolada, sem uma luz que indicasse a existência de uma casa habitada. Do chefe da estação nem sinal. Não via nem relógio, nem o horário dos comboios. Nada, rigorosamente nada. E era este o meu sonho.

Ainda me recordo perfeitamente daquela negra e irreal tarde de 25 de Novembro de 1970.(3) As folhas de gingko, arrancadas pelas fortes chuvadas, tingiam de um amarelo-dourado os recantos escondidos dos bosques, conferindo-lhes o aspecto do leito seco de um rio. Andávamos os dois a passear por aquelas veredas, eu e ela, de mãos nos bolsos. Não se ouvia nenhum som, além do ruído que os nossos sapatos faziam ao pisar as folhas caídas e dos gritos agudos dos pássaros.

- Podes dizer-me o que te preocupa tanto? - perguntou-me ela, subitamente.

- Nada de especial - respondi.

Uns metros mais adiante, sentou-se à beira do caminho e fumou um cigarro.

- Costumas ter pesadelos?

-Tenho muitas vezes pesadelos. Quase sempre com uma máquina automática, daquelas que comem as moedas e não dão troco, coisas desse género.

Ela riu-se e pôs a mão em cima do meu joelho, mas retirou-a logo a seguir.

- Estou a ver que não tens vontade de falar disso, pois não?

- Hoje, não. Pelos vistos não estou para aí virado.

Ela atirou fora o cigarro meio fumado e calcou-o cuidadosamente com a sola dos sapatos desportivos.

- É difícil falar das coisas que realmente nos importam, não é? Isso também acontece contigo?

 

*3. O dia em que o escritor Yukio Mishima cometeu seppuko (suicídio ritual dos guerreiros samurais) em público, no quartel-general das Forças Armadas de Autodefesa. (N. da T.)

 

- Sei lá.

Num bater de asas compassado, duas aves levantaram voo perto dali e foram tragadas por um céu sem nuvens. Por instantes, ficámos em silêncio a olhar para o ponto onde desapareceram de vista. Depois, pegando num pauzinho seco, ela pôs-se a fazer desenhos indecifráveis na terra.

- Às vezes, sinto uma enorme tristeza quando faço amor contigo.

-Tenho muita pena, acredita - disse eu.

- A culpa não é tua. Nem sequer se pode dizer que é por estares a pensar numa outra rapariga enquanto fazemos sexo. De resto, isso é-me indiferente. O que acontece é que... - Dito isto, parou de repente a meio da frase, ao mesmo tempo que traçava lentamente três linhas rectas paralelas no chão. - Olha, para ser franca, não sei.

- Quero que saibas que nunca foi minha intenção pôr-te à margem - disse eu, passado algum tempo. O que acontece é que nem eu próprio percebo o que acontece. E podes crer que me esforço desesperadamente por compreender o que se passa, ninguém mais do que eu deseja ver tudo esclarecido. Não é minha intenção exagerar as coisas nem fazê-las mais complicadas do que são, mas isso exige tempo.

- Quanto tempo?

- Não sei. Tanto pode ser um ano, como dez anos.

Ela deixou cair o pauzinho por terra, levantou-se e sacudiu as ervas secas que se tinham agarrado ao casaco.

- Dez anos? Isso é uma eternidade, não te parece?

- Talvez - disse eu.

Atravessámos o bosque e percorremos a pé o caminho que nos separava da cidade universitária. Uma vez ali chegados, sentámo-nos, como de costume, na sala de alunos, a comer cachorros-quentes. Eram duas da tarde e na televisão continuavam a passar repetidas imagens de Yukio Mishima. O controlo para regular o volume de som estava estragado, e quase não se ouvia uma palavra do que estava a ser dito, mas isso era o menos. Depois de engolirmos a comida, bebemos um segundo café. Um dos estudantes subiu a uma cadeira e tentou regular o som, mas às tantas desistiu e foi-se embora dali.

- Desejo-te - disse eu.

- Tudo bem - respondeu ela.

Voltámos a enfiar as mãos nos bolsos dos nossos casacos e fomos andando calmamente para o apartamento.

Acordei de repente. Ao meu lado, ela soluçava baixinho. O seu corpo esguio estremecia debaixo da roupa da cama. Liguei o aquecedor e consultei o relógio. Eram duas da manhã. No meio do céu brilhava uma lua espantosamente branca.

Fiquei à espera que ela deixasse de chorar para ir pôr água ao lume para o chá. Um saquinho para os dois. Sem açúcar, nem limão nem leite. Uma chávena de chá preto, quente, que partilhámos juntos, mais nada. Acto contínuo, acendi dois cigarros e passei-lhe um para a mão. Ela inalou e expulsou o fumo, três vezes de uma assentada, até que se engasgou e teve um ataque de tosse.

- Olha lá, alguma vez tiveste vontade de me matar? - perguntou.

-A ti?

- Sim.

- Por que é que me fazes essa pergunta?

Sem tirar o cigarro da boca, esfregou os olhos com a ponta do dedo.

- Por nenhuma razão especial.

- Não, nunca - respondi.

- A sério?

- A sério.

Passado um bocado, voltei à carga:

- Por que carga de água é que haveria de querer matar-te?

- Está certo, tens razão - concordou ela sem grande emoção. -A verdade é que, por momentos, pensei que não seria má ideia se alguém resolvesse acabar comigo. Quando estivesse a dormir profundamente, por exemplo.

- Tenho muita pena, mas não sou propriamente dos que andam para aí a assassinar gente a torto e a direito.

- Ai não?

- Que eu saiba...

Ela riu-se e apagou o cigarro no cinzeiro. Bebeu de um trago o resto do chá e acendeu novo cigarro.

- Vou viver até aos vinte e cinco anos - disse. - Nessa altura, morro.

Em Julho de 1978 estava morta, aos vinte e seis anos de idade.

 

Esperei até ouvir o silvo dos compressores de ar comprimido que indicavam que a porta do elevador estava fechada e só então fechei calmamente os olhos. A seguir, depois de reunir os fragmentos dispersos da minha consciência, comecei a descer os dezasseis degraus que conduziam até à porta do meu apartamento. De olhos fechados, contei exactamente dezasseis passos. Nem um a mais, nem um a menos. Sentia a cabeça a girar no vazio como um parafuso sem rosca por causa do uísque e a minha boca tresandava a nicotina, de tantos cigarros fumados.

Por mais bêbado que esteja, o certo é que, com os olhos fechados, consigo percorrer aqueles dezasseis passos sempre a direito, como se estivesse a seguir por uma linha recta traçada a régua. É o resultado de muitos anos de autodisciplina inútil. Quando bebo de mais, atiro os ombros para trás o mais que posso, endireito a coluna vertebral e, com a cabeça levantada, encho completamente os pulmões com o ar frio da manhã, à mistura com o cheiro do corredor de cimento. Depois, fecho os olhos e percorro os dezasseis passos em linha recta sob o efeito dos vapores do álcool.

Naquele pequeno mundo dos dezasseis passos, obtive o título do «Mais Cortês dos Bêbados». Conquista mais fácil não há. Uma pessoa tem apenas de aceitar o simples facto de estar embriagada.

Nada de «ses», «contudos» e «poréns». Estou bêbado, ponto final.

E é assim que passo a ser o Bêbado Mais Cortês. Da mesma forma que temos a ave mais madrugadora, o último vagão de mercadorias a atravessar a ponte.

Cinco, seis, sete...

Ao oitavo passo, detive-me, abri os olhos e respirei fundo. Sentia um ligeiro zumbido nos ouvidos. Como o som da brisa marinha que sopra através de uma tela de arame atacada pela ferrugem. Por falar nisso, há quanto tempo é que não vou à praia?

Vamos lá ver. Dia 24 de Julho, seis e meia da manhã. É a altura ideal para ver o mar, a hora perfeita. Ainda não apareceu ninguém a estragar a praia. Na linha da rebentação, as marcas deixadas na areia pelas aves marinhas assemelham-se a agulhas de pinheiro tombadas pelo vento.

Com que então, o mar?

Continuei o meu caminho. O melhor era esquecer o mar. Tudo aquilo tinha passado à história.

Ao contar dezasseis passos, parei, abri os olhos e dei por mim diante da maçaneta da porta, como de costume. Peguei nos jornais dos dois últimos dias e em dois sobrescritos que estavam na caixa do correio, e meti tudo debaixo do braço. Acto contínuo, lá consegui pescar as chaves do fundo do bolso e, com elas na mão, encostei a testa à superfície fria da porta de ferro. Tive a impressão de ter ouvido um ligeiro estalido atrás das minhas orelhas. O meu corpo parecia um pacho de algodão embebido em álcool. A única coisa que funcionava - e, mesmo assim, a meio gás - era a consciência.

Só visto, contado não se acredita.

Com a porta aberta até um terço, deixei deslizar o meu corpo lá para dentro antes de a fechar. A entrada estava mergulhada em silêncio. Num silêncio mais profundo do que seria de esperar.

Foi então que reparei num par de sapatos vermelhos de salto alto, a meus pés. Aqueles sapatos vermelhos eram-me familiares. Ali estavam eles, entre os meus ténis enlameados e umas sandálias de praia baratas, dando a impressão de ser um presente de Natal fora do tempo. Um silêncio envolvia o quadro, ténue como poeira.

Ela estava debruçada sobre a mesa da cozinha. Tinha a testa apoiada nos braços, de maneira que o cabelo, preto e liso, não deixava ver o perfil. Por entre as madeixas distinguia-se um pedaço da pele branca do pescoço que não costumava apanhar sol. Através da abertura da manga do seu vestido estampado - que não me lembrava de ter visto antes -, aparecia um bocadinho da alça do sutiã.

Despi o casaco, desfiz o nó da gravata preta e desembaracei-me do relógio de pulso, isto sem que ela fizesse o mínimo gesto. Ao olhar para as suas costas, vieram-me à memória coisas do passado. Lembranças de um tempo anterior àquele em que a conheci.

- Ora viva - disse eu timidamente, numa voz que não parecia a minha. Era como se as palavras viessem de muito longe, de algum lugar distante.

Como seria de esperar, não obtive resposta. Ela parecia dormir, mas também podia dar-se o caso de estar a chorar, ou de estar morta.

Sentei-me do outro lado da mesa, à frente dela, e fiz pressão sobre os olhos com a ponta dos dedos. O sol invadia a divisão e o clarão ofuscante dividia a mesa em duas: eu estava na metade iluminada, ela, envolta numa vaga penumbra, onde as cores brilhavam pela ausência. Em cima da mesa via-se um vaso com gerânios murchos. Lá fora, havia alguém a regar as ruas. Ouvia-se a água a cair sobre a calçada, sentia-se o cheiro do asfalto molhado. , - Queres um café?

Nem uma palavra de resposta.

Convencido de que não me responderia, levantei-me e fui até à cozinha. Pus café a moer para duas chávenas e, de caminho, liguei o rádio. Quando acabei de moer o café, dei-me conta de que o que me estava a apetecer era um chá gelado. É sempre o mesmo, só me lembro das coisas quando já é demasiado tarde.

A rádio estava a passar canções pop que nunca mais acabavam, cada uma pior do que a outra. O fundo sonoro perfeito para aquela hora da manhã. Quem as ouvisse, pensaria que quase nada mudara no mundo, naqueles dez anos. Nada, a não ser o nome dos cantores e o título das canções. E eu, que estava dez anos mais velho.

Quando a água começou a ferver, apaguei o gás e deixei a água arrefecer durante trinta segundos antes de a deitar por cima do café. O pó do café foi-se empapando lentamente, à medida que ia absorvendo a água na sua totalidade e, no momento em que por fim o café ficou pronto, espalhou-se pela sala um aroma doce e agradável. Lá fora, as cigarras começavam a cantar.

- Estás aí desde ontem à noite? - perguntei eu, com a cafeteira na mão.

Sobre a mesa, um movimento quase imperceptível percorreu as finas madeixas do seu cabelo, em sinal de assentimento.

- Estiveste este tempo todo à espera? Desta vez não houve reacção da sua parte.

O vapor que emanava da cafeteira e o sol intenso transformaram a sala numa espécie de estufa. Fechei a janela e liguei o ar condicionado, antes de colocar duas chávenas de café em cima da mesa.

- Anda, bebe - disse eu numa voz que já começava a parecer-se mais com a minha.

Silêncio.

- Vais ver que te faz bem.

Ela demorou para aí trinta segundos a levantar a cabeça, com um único movimento fluido, dirigindo o olhar ausente para o vaso com os gerânios. Tinha alguns fios do seu cabelo fino em desalinho, colados às faces molhadas. Era como se a sua figurinha estivesse rodeada por uma ténue aura de humidade

- Não ligues - disse ela. - Foi sem querer, deu-me para chorar. Estendi-lhe uma embalagem de lenços de papel. Ela assoou o nariz sem fazer barulho e depois afastou com uma certa brusquidão os cabelos pegados à cara.

- A verdade é que fazia tenções de me ir embora antes de tu regressares. Não estava com vontade de me encontrar contigo.

-Vejo que mudaste de ideias...

- Não, não é isso. O que acontece é que também não me estava a apetecer ir para parte nenhuma. Mas não te preocupes, daqui a nada vou-me embora.

- Nesse caso, bebe primeiro o café.

Fui bebendo o meu café enquanto ouvia pela rádio as notícias que davam conta do trânsito e aproveitei para abrir os dois sobrescritos com a ajuda de uma tesoura. A primeira carta era a fazer publicidade a uma loja de móveis, anunciando que todos os clientes que aproveitassem de um determinado período de ofertas beneficiariam de um desconto de vinte por cento em qualquer compra. A outra, provinha de uma pessoa amiga de quem não me apetecia lembrar, quanto mais ler o que a dita pessoa escrevera. Fiz uma bola de papel com as duas missivas e atirei-a direitinha para dentro do caixote do lixo. Acto contínuo, pus-me a mordiscar umas bolachas de queijo que tinham sobrado. Ela rodeou com as palmas das mãos a chávena de café, como se procurasse aquecer-se, e fixou o seu olhar em mim, ao mesmo tempo que pressionava suavemente os lábios contra a borda da chávena.

- Tens salada no frigorífico - disse-me.

- Salada?

- De tomate e feijão-verde, não havia mais nada. Os pepinos estavam estragados, por isso deitei-os fora.

- A-hã.

Tirei do frigorífico a saladeira de cristal azul de loiça de Okinawa(4) e deitei lá para dentro o restinho de molho que ainda havia no fundo do frasco. Os tomates e o feijão-verde eram como uma sombra gelada. Ainda por cima, não sabiam a nada. Aliás, o mesmo acontecia com as bolachas e o café. Seria por causa daquela claridade? É sabido que a luz da manhã desintegra tudo à sua passagem. Desisti do café, desencantei do bolso um cigarro todo amachucado e acendi-o com um fósforo tirado de uma carteirinha de um estabelecimento comercial que não me lembrava de ter visto antes. A ponta do cigarro crepitou com um ruído seco, e um fio de fumo cor de alfazema desenhou figuras geométricas na luz matinal.

- Fui a um enterro. E depois da cerimónia, fui até Shinjuku e fiquei por lá a tomar um copo sozinho.

O gato apareceu, vindo não sei de onde, bocejou longamente e saltou-lhe para o colo. Ela pôs-se a coçá-lo atrás das orelhas.

- Não precisas de me explicar nada - afirmou ela. - Já estou noutra.

- Não se trata de dar explicações. Estou pura e simplesmente a fazer conversa.

Ela encolheu os ombros e meteu a alça do sutiã para dentro do vestido. O seu rosto tinha perdido toda a expressão,

 

*4. Inspirados no mar e nas barreiras de corais que rodeiam a ilha, a cerâmica e os objectos de vidro que dão forma ao artesanato de Okinawa destacam-se pelas suas cores vivas e brilhantes. (N. da T.)

 

como uma cidade submersa no fundo do mar que tinha visto uma vez em fotografia.

- Era de uma pessoa que conheci nos velhos tempos. Ninguém que tu conheças.

- Ah, sim?

O gato esticou-se todo e espreguiçou-se satisfeito nos joelhos dela, antes de soltar um prolongado suspiro.

Fiquei a olhar para a ponta incandescente do cigarro que tinha na boca, a vê-lo consumir-se.

- Como é que morreu, essa pessoa tua conhecida?

- Atropelada por um camião. Treze ossos fracturados.

- Uma rapariga?

- A-hã.

O noticiário das sete chegou ao fim, e com ele a informação de trânsito, regressando o rock ligeiro à antena.

Ela pousou a chávena sobre o pires e olhou para mim de frente.

- Diz-me lá uma coisa, quando eu morrer também te vais pôr a beber dessa maneira?

- A morte dela não tem nada que ver com o facto de ter bebido. Quando muito, só nos primeiros copos, se tanto.

Lá fora, estava a nascer um novo dia. Outro dia de calor. Da janela que ficava por cima do lava-loiça, divisava-se um conjunto de edifícios altos. Os seus reflexos faziam-se sentir com mais intensidade do que nunca.

- Que me dizes a uma bebida fresca? Ela respondeu que não com a cabeça.

Fui ao frigorífico buscar uma lata de Coca-Cola bem gelada e emborquei-a de um trago, sem copo nem nada.

- Era o género de rapariga que dormia com qualquer um - disse eu. Que raio de epitáfio: «A falecida era a típica rapariga que costumava dormir com qualquer um».

- Por que é que me estás a contar tudo isso? Nem mesmo eu sabia porquê.

- Com que então - pegou ela no fio da conversa -, era dessas raparigas que vão para a cama com todos?

- Exactamente.

- Mas contigo foi diferente, não?

Ao dizer aquilo, a sua voz tinha qualquer coisa de estranho, uma qualidade difícil de definir. Levantei os olhos da taça de salada e olhei para ela por cima dos gerânios murchos.

- O que te leva a dizer isso?

- É um palpite que tenho - avançou ela, baixinho. - Não me parece que sejas desse tipo.

- Que tipo?

-Tens qualquer coisa que... não sei explicar bem. Olha, é como um relógio de areia. Quando o último grão acaba de escorrer, há sempre alguém como tu que aparece para virar de novo a ampulheta.

- É assim que me vês?

Os seus lábios abriram-se num breve sorriso, mas recuperaram imediatamente a seriedade.

-Vim buscar o resto das minhas coisas. O meu casaco de Inverno, chapéus e coisas assim. Deixei ficar tudo metido numa caixa de cartão. Quando tiveres tempo, és capaz de levar a caixa a uma empresa de transportes?

- Posso levar as coisas até tua casa. Ela abanou a cabeça.

- Deixa estar. Prefiro que não apareças por lá. Compreendes a minha posição, não compreendes?

Ela tinha razão. Acabo sempre por falar de mais, e"depois digo coisas sem pensar.

- Tens a morada?

- Tenho.

- Nesse caso, era só isso. Desculpa ter ficado tanto tempo.

- E a questão da papelada, já está resolvida?

- A-hã. Tudo tratado.

-Afinal, foi muito simples. Pensei que íamos apanhar pela frente uma quantidade de burocracias.

- Muita gente tem essa ideia à partida, mas a verdade é que não podia ser mais fácil. Isto a partir do momento em que esteja tudo acabado.

Enquanto falava, pôs-se outra vez a coçar a cabeça do gato.

- Divorcia-te outra vez e vais ver que passas a ser um entendido na matéria.

De olhos fechados, o gato arqueou o lombo e reclinou mansamente a cabeça na curva do braço dela. Levei as chávenas de café e a saladeira para a cozinha, depois apanhei as migalhas com a ajuda de uma factura antiga que tinha ali à mão. A luz do Sol fazia-me arder os olhos.

- Fiz uma lista com tudo em pormenor. Onde estão guardados os papéis importantes, quais são os dias de recolha do lixo, coisas desse género. Se houver alguma coisa que não entendas, dá-me uma apitadela.

- Obrigado.

- Gostavas de ter tido filhos?

- Não, não posso dizer que quisesse filhos.

- Houve alturas em que pensei muito a sério nisso, mas agora, à vista do que aconteceu, ainda bem que assim foi. Achas que se tivéssemos tido filhos as coisas não teriam chegado a este ponto?

- Há muitos casamentos com filhos que acabam em divórcio.

-Tens razão - disse ela, entretida a brincar com o meu isqueiro. - Ainda gosto de ti, mas o problema não está aí, claro. Tenho perfeita consciência disso.

 

Depois de ela se ter ido embora, bebi outra Coca-Cola, tomei um duche bem quente e fiz a barba. O sabonete, o champô, o creme de barbear - estava quase tudo a chegar ao fim.

Saí do chuveiro e sequei o cabelo, friccionei o corpo com loção e limpei os ouvidos. Em seguida, dirigi-me à cozinha para aquecer o resto do café. No outro lado da mesa não havia ninguém sentado. Ao olhar para a cadeira vazia, senti-me como um rapazinho, sozinho e abandonado à sua sorte, numa dessas maravilhosas e misteriosas cidades que aparecem nos quadros de Chirico. Com a diferença de eu já não ser um menino pequeno, é evidente. Com a cabeça vazia, sem pensar em nada, bebi o meu café nas calmas. E depois deixei-me ficar ali, a divagar e a fumar um cigarro.

A verdade é que não tinha pregado olho nas últimas vinte e quatro horas, mas, coisa estranha, em vez de estar cansado, sentia-me espantosamente desperto. Independentemente do corpo exausto até à medula dos ossos, a mente continuava a dar sinais de vitalidade e navegava, incansável, por entre os intrincados canais da consciência, como um inquieto organismo aquático.

Ao olhar para aquela cadeira vazia à minha frente, lembrei-me de um romance americano que tinha lido há algum tempo. Era a história de um marido que, depois de a mulher o ter abandonado, conserva uma das combinações dela em cima da cadeira que fica diante da sua na sala de jantar, isto durante meses a fio. Fazia sentido, agora que pensava naquilo. É certo que não remediava nada, mas era muito melhor do que conservar aquele vaso de gerânios murchos. Até o gato se sentiria mais confortável, tendo as coisas dela por perto.

Passei em revista o quarto, abrindo uma atrás da outra as suas gavetas, mas estavam todas vazias. Uma velha echarpe comida pelas traças, três cabides e um pacote de bolas de naftalina, foi tudo o que encontrei. Qualquer coisa que pudesse indicar uma presença feminina, ela tinha levado, sem excepção. Os produtos de beleza, os frascos de cosméticos, os rolos para o cabelo, a escova de dentes, o secador de mão, os frascos de comprimidos de que já nem me lembrava para que serviam, tampões e pensos higiénicos, todo o género de calçado - desde botas a sandálias, passando pelas pantufas -, caixas de chapéus, acessórios de fantasia que davam para encher uma gaveta inteira, malas de mão, malas para usar a tiracolo, malas de viagem, a roupa interior, que ela fazia gala em ter sempre tão bem arrumada, e as meias, as cartas, havia desaparecido tudo sem deixar rasto. Não teria estranhado caso ela tivesse apagado até as suas impressões digitais, antes de sair de casa. Um terço da nossa pequena biblioteca e da colecção de discos também tinha levado sumiço das prateleiras. Refiro-me aos livros e aos discos que ela própria tinha comprado ou que eu lhe oferecera.

Ao abrir o álbum de fotografias, constatei que todas as fotos em que ela aparecia sozinha haviam sido arrancadas. Naquelas em que estávamos os dois, apenas a sua imagem fora recortada, ao passo que a minha lá continuava. Fotos em que eu aparecia sozinho, ou em que se viam montanhas, rios, veados, gatos, essas tinham ficado intactas. Ao todo, três álbuns que mais não faziam do que testemunhar um passado rigorosamente revisitado. Dava a impressão de estar sozinho desde o nascimento, de ter crescido abandonado a mim mesmo e de estar condenado a ter pela frente um futuro de solidão. Fechei o álbum e fumei dois cigarros.

Se ao menos ela tivesse deixado ficar uma combinação!

Evidentemente que era um assunto que só a ela dizia respeito, e a verdade é que ela escolhera não deixar para trás o mínimo vestígio da sua presença. Não tinha outro remédio senão aceitar a sua decisão. Podia, quando muito, convencer-me de que ela nunca existira, como parecia ter sido o seu desejo. Caso ela nunca tivesse existido, então não havia combinação para ninguém.

Despejei o cinzeiro, desliguei o ar condicionado e o rádio, voltei a cismar na história da combinação, até que por fim me enfiei na cama.

Tinha passado um mês desde que concordara com o divórcio e ela abandonara o apartamento. Um mês que passou sem passar. Desfocado e irreal, como uma informe massa gelatinosa: assim foi aquele mês. Não conseguia habituar-me à ideia de que alguma coisa havia mudado, quando na prática continuava tudo na mesma.

Levantava-me todas as manhãs às sete, fazia café e torradas, saía para o trabalho, jantava fora, tomava uma ou duas bebidas, ia para casa, ficava a ler na cama durante uma hora, apagava a luz e dormia. Aos sábados e domingos, em vez de ir trabalhar, começava a fazer a ronda dos cinemas logo de manhã, a fim de matar o tempo. Depois, e para não variar, jantava sozinho, bebia uns copos, lia o meu livro calmamente e adormecia, fiel à minha rotina. E assim sobrevivi durante um mês, da mesma maneira que as outras pessoas vão riscando com um «X» a negro, um após o outro, os dias do calendário.

Num certo sentido, o facto de ela ter saído de cena era assunto encerrado. O que tem de ser, tem muita força. O que não tem remédio, remediado está, e outras frases do género. Vistas assim as coisas, a importância daqueles quatro anos na vida de cada um de nós deixara de contar. Acontecia o mesmo que com o álbum de fotografias: não havia nada a fazer.

Assim como era irrelevante querer aprofundar as razões que a tinham levado a andar enrolada com um amigo meu, isto durante bastante tempo e regularmente, até ao dia em que decidira fazer as malas e ir viver com ele. Eram coisas que tinham todas as hipóteses de acontecer, e que aconteciam com frequência nos tempos que corriam. Por isso, não tinha de me admirar muito pelo facto de ela me ter deixado. Resumindo e concluindo, era um assunto que só a ela dizia respeito.

Foi, de resto, precisamente o que eu lhe disse.

- No fundo, é uma decisão tua.

Lembro-me de que era um domingo de Junho, à tarde, e estava eu a brincar com a anilha de uma lata de cerveja enfiada no dedo, quando ela me disse que queria o divórcio.

- Com que então, para ti é igual ao litro? - perguntou ela, pronunciando muito bem cada palavra.

- Não, para mim não é igual ao litro - retorqui eu. - Só estou a dizer que é um problema teu.

- Se queres mesmo saber a verdade, não tenho vontade de te deixar - replicou ela, passado um momento.

- Muito bem, nesse caso tens bom remédio. Não me deixes.

- Sim, mas já vi que ficar contigo não me levará a lado nenhum.

Não disse mais nada, mas julguei compreender o que ela queria dizer. Daí a alguns meses, eu ia fazer trinta anos. Ela já tinha vinte e seis. Comparando as nossas idades com a imensidão do futuro que se abria diante de nós, o que tínhamos até à data construído em comum era francamente insignificante, para não dizer inexistente. No fundo, tínhamos passado quatro anos a viver das nossas reservas de amor e a delapidar as nossas economias.

Em grande parte por culpa minha, reconheço. Provavelmente nunca me devia ter casado. Pelo menos com ela.

Ao princípio, ela considerava-se socialmente inadaptada e pensava que, ao contrário, eu sabia funcionar em sociedade. Enquanto representámos os nossos papéis relativamente bem, a coisa funcionou decentemente. Apesar de estarmos convencidos de que o pacto seria para sempre, houve um dia em que alguma coisa se desmoronou. Algo de ínfimas proporções, apenas uma sugestão, não deixando por isso de ser irreversível. Quando demos por nós, estávamos os dois enfiados num beco sem saída. E foi esse o nosso fim.

Aos olhos dela, eu era um caso perdido. E mesmo que ainda gostasse de mim, a questão não era essa. Estávamos por de mais habituados aos nossos papéis. Eu já não tinha mais nada para lhe oferecer. Ela compreendeu isso instintivamente; e eu, por experiência própria. Em todo o caso, não havia esperança.

E foi assim que ela desapareceu para sempre, levando consigo as suas combinações. Há coisas que se esquecem, outras desaparecem, outras ainda morrem. Não é preciso fazer nenhum drama por causa disso.

24 de Julho, 8h25 a.m.

Conferi os quatro dígitos no meu relógio digital, fechei os olhos e deixei-me dormir.

 

Há quem pense que dormir com uma mulher seja um acontecimento de importância vital, ou então, bem pelo contrário, um assunto de lana-caprina. Dito de outro modo, o sexo pode ser encarado como um acto de terapia (leia-se, terapia pessoal) ou como passatempo.

Existe, a bem dizer, sexo orientado do princípio ao fim para a promoção da pessoa, e sexo para passar o tempo; sexo que começa por ser terapêutico para acabar em passatempo, e vice-versa. É difícil explicar, mas a nossa vida sexual é em tudo diferente da vida sexual das baleias.

Não somos baleias - e isso representa um importante lema sobre o qual assenta a minha vida sexual.

Quando eu era pequeno, existia um aquário a trinta minutos de bicicleta da minha casa. Era um sítio onde reinava sempre um silêncio gélido, interrompido volta e meia por um sonoro esparrinhar que não parecia vir de parte nenhuma. Dava a sensação de que existia, algures num ângulo escondido, um monstro tipo criatura da lagoa negra procurando disfarçar a respiração.

Cardumes de atum davam voltas e mais voltas a uma piscina enorme. Os esturjões subiam contracorrente por um estreito canal, as piranhas enterravam os seus dentes afiados como navalhas em matacões de carne e, volta e meia, as enguias eléctricas reluziam no escuro como insignificantes lanternas.

No aquário havia uma infinidade de outros peixes. Tinham todos nomes distintos, segundo as espécies, bem como escamas e barbatanas diferentes. Custava-me a compreender por que carga de água existiam tantas espécies de peixe à face da Terra.

Escusado será dizer que não existiam baleias. A baleia é um animal demasiado grande, e nem derrubando todas as paredes e transformando o aquário inteiro num único tanque gigantesco isso seria possível. À falta de uma baleia, o aquário possuía em exposição um pénis de baleia. Um modelo de representação simbólica, se quiserem.

E foi desse modo que passei aqueles anos, os mais impressionáveis da minha mocidade, a olhar para um pénis de baleia, em vez de contemplar uma baleia propriamente dita. Quando me fartava de deambular pelos frios corredores do aquário, ia sentar-me num banco, no silêncio estanque da sala de exposições com um pé-direito altíssimo, e deixava-me ficar ali horas a fio mergulhado na contemplação do pénis de baleia.

Umas vezes parecia-me estar a olhar para uma palmeira-anã encarquilhada; outras, lembrava-me uma gigantesca espiga de milho. De facto, se não fosse a placa a indicar «órgão reprodutor da baleia-macho», ninguém adivinharia que aquilo era um pénis de baleia. Mais facilmente as pessoas julgariam que se tratava de um artefacto qualquer, desenterrado no decorrer de uma escavação no deserto da Ásia Central, do que fruto das profundezas do Oceano Glacial Antárctico. Não só não se parecia com o meu próprio pénis, como era diferente de qualquer outro pénis que eu tivesse visto até à data. Era como se sobre ele se abatesse uma estranha e indescritível aura de tristeza, sem dúvida pelo facto de ter sido amputado ao seu proprietário.

Quando tive a minha primeira experiência sexual com uma rapariga, foi a primeira coisa que me veio à cabeça, aquele gigantesco pénis de baleia. Senti um aperto enorme no peito, ao imaginar que caprichos do destino, que tortuosas rotas o teriam trazido àquela despida e cavernosa sala de um aquário. Só de pensar nisso, invadia-me uma paralisante sensação de impotência. Contudo, tinha apenas dezassete anos e era demasiado novo para me deixar cair assim no desespero. Foi a partir de então que aquela ideia começou a ganhar corpo na minha cabeça. A saber: os homens não são baleias.

Na cama com a minha nova namorada, e deixando os meus dedos brincarem com o cabelo dela, a minha mente não parava de pensar nas baleias.

No aquário da minha imaginação é sempre fim de Outono. O vidro dos tanques possui a frialdade do gelo. Tenho uma grossa camisola de lã vestida. Através da enorme janela da sala de exposições, o mar é escuro, cor de chumbo, e a crista branca das suas incontáveis ondas lembra o rendilhado nas golas nos vestidos das raparigas.

- Estás a pensar em quê? - perguntou-me ela.

- Em coisas do passado - respondi-lhe eu.

Ela tinha vinte e um anos, um corpo bonito, esguio, e um par de orelhas de uma perfeição espantosa. Era revisora de provas em regime de tempo parcial numa pequena editora, modelo fotográfico nos anúncios em que as orelhas estivessem em destaque e, por último, trabalhava como acompanhante ao serviço de uma agência muito discreta que proporcionava encontros por telefone com cavalheiros distintos. Qual dos três ofícios constituía a sua principal ocupação, eu não fazia a mínima ideia. Nem ela.

No entanto, se me perguntassem qual daquelas actividades reflectia melhor o seu perfil, diria que tudo apontava para o seu trabalho como modelo de orelhas. Não era só eu a pensar assim, também ela partilhava da mesma opinião. Contudo, o que acontecia era que o leque de oportunidades oferecido a uma modelo publicitária de orelhas era muito reduzido e, como tal, não só o seu estatuto profissional entre os demais modelos era consideravelmente baixo, como parca a remuneração financeira. Regra geral, para os agentes de publicidade, fotógrafos, maquilhadores profissionais, jornalistas, operadores de câmara e por aí adiante, ela era apenas a «dona das orelhas». Como tal, enquanto as orelhas eram dissecadas, o resto do seu corpo e o seu espírito ficavam «fora do enquadramento», por assim dizer, completamente ignorados e minimizados.

- Não está certo porque não é isso que eu sou, na realidade -explicava ela. - Eu sou as minhas orelhas e as minhas orelhas fazem parte do meu «eu».

No exercício das suas funções de revisora de texto e de acompanhante, nunca ela consentia, nem por um segundo que fosse, em mostrar as suas orelhas a ninguém.

- Porque não são o «eu» verdadeiro - costumava ela afirmar, em jeito de explicação.

O escritório da tal agência de prostitutas de luxo para a qual trabalhava, muito convenientemente registado, em nome das aparências, como se de uma «agência de talentos» se tratasse, ficava no bairro de Akasaka e era dirigido por uma inglesa de cabelos grisalhos a quem toda a gente tratava por Sr.a X. Vivia no Japão há mais de trinta anos, falava japonês com fluência e sabia ler quase todos os ideogramas básicos da escrita chinesa.

A tal Sr.a X dirigia igualmente um curso intensivo de inglês, a menos de quinhentos metros da agência de acompanhantes. Era ali que costumava recrutar os rostos mais promissores para se dedicarem à prostituição. Ao invés, também havia acompanhantes que frequentavam as aulas de conversação em inglês. Tendo direito a desconto nas propinas, escusado será dizer.

A Sr.a X tinha por hábito chamar dear a todas as call-girls que lhe passavam pelas mãos. Pronunciada por ela, a palavra soava de uma forma tão suave como uma tarde de Primavera.

- Não te esqueças de usar lingerie de boa qualidade com rendas, dear. E nada de collants.

Ou então:

- Tomas o chá com leite, não é verdade, dearl

No que ao mercado dizia respeito, não há dúvida de que ela conhecia bem a sua paróquia. A clientela era quase toda constituída por abastados homens de negócios dos seus quarenta e cinquenta anos. Dois terços eram estrangeiros, e o resto, japoneses. A Sr.a X tinha aversão a tudo o que fossem políticos, velhos, pervertidos e pobretanas.

Entre a meia dúzia de belas flores que tinha a trabalhar para ela, a minha nova namorada era o botão menos atraente. No meio das outras, devia ser a que menos se destacava. E a verdade é que, então com as orelhas ocultas, tornava-se a mais vulgar de todas. Não havia maneira de eu compreender as razões que teriam levado a Sr.a X a reparar nela e a pô-la ao seu serviço. Talvez tivesse detectado, no fundo de toda aquela banalidade, um brilhozinho escondido, ou então lá terá pensado que uma rapariga igual a tantas outras fazia sempre falta. Seja como for, a Sr.a X tinha acertado em cheio, visto que a minha amiga não tardou a arranjar vários clientes fixos.

Vestindo roupa do mais vulgar da cabeça aos pés, maquilhagem normal e cheirando a sabonete, punha-se a caminho do Hilton ou do Hotel Okura ou de um hotel da cadeia Prince, e aí se deitava com um ou dois generosos cavalheiros por semana, o que lhe permitia arrecadar o suficiente para viver decentemente durante um mês.

Metade das outras noites, ela dormia comigo sem cobrar nada. Quanto à outra metade, não tenho ideia de como eram passadas.

No que diz respeito à sua actividade enquanto revisora de provas ao serviço de uma editora de segunda linha, não podia ser mais corriqueira. Três dias por semana, deslocava-se ao bairro de Kanda para trabalhar no terceiro andar de um pequeno edifício de escritórios. Das nove às cinco, revia as provas e dedicava-se a outras tarefas, como preparar o chá, ir à rua comprar borrachas de apagar e coisas assim. Como o prédio não tinha elevador, passava o tempo para cima e para baixo. Mandavam-na fazer esse tipo de recados não porque tivessem alguma coisa contra ela, mas pelo facto de ser a única mulher solteira, o que não quer dizer que alguém tomasse liberdades com ela nem nada que se parecesse. Como um perfeito camaleão, ela mostrava-se capaz de se adaptar às circunstâncias e aos lugares, de modo a realçar ou a esconder aquele seu brilhozinho especial.

Travei conhecimento com ela (ou, melhor dizendo, com as suas orelhas) pouco depois de me separar da minha mulher. Lembro-me de que foi nos primeiros dias de Agosto, estava eu a fazer um trabalho de copywright para uma agência de publicidade: uma campanha de anúncios encomendada por uma firma de computadores especializada em software. Foi desse modo, por assim dizer, que me vi confrontado pela primeira vez com as suas orelhas. O director da agência de publicidade deixou ficar na minha mesa de trabalho uma proposta de campanha e três grandes fotografias a preto e branco, e encarregou-me de arranjar três textos diferentes para cada uma daquelas fotos até ao final da semana. Todas três eram reproduções gigantescas de uma orelha, em primeiro plano.

Orelhas?

- Porquê uma orelha? - quis eu saber.

- Sabe-se lá. Também, qual é a diferença? Querem uma orelha, damos-lhe uma orelha, ponto final. Tens uma semana para exercitar a massa cinzenta com essas orelhas.

E foi assim que passei uma semana de olhos postos nas ditas cujas. Preguei as imagens com fita adesiva transparente na parede diante do local onde trabalhava, e passava os dias a olhar para elas, enquanto fumava os meus cigarros, bebia o meu café, comia as minhas sanduíches, cortava as minhas unhas.

Consegui despachar o trabalho ao fim de uma semana, mas as fotos, essas deixei-as pregadas na parede. Em parte, porque retirá-las de lá dava muito trabalho; e em parte porque me habituara a olhar para elas. No entanto, a verdadeira razão pela qual eu não guardara as fotografias no fundo de uma gaveta prendia-se com o visível fascínio que aquelas orelhas passaram a exercer sobre mim Eram cem por cento perfeitas. Umas orelhas de sonho. Nunca experimentara semelhante atracção por parte alguma ampliada do corpo humano (incluindo os órgãos genitais, como é evidente). Tinha a sensação de me encontrar no vórtice de um grande e fatídico turbilhão do destino.

Uma das suas curvas, de uma ousadia inimaginável, rasgava a fotografia de alto a baixo, outras enrolavam-se em delicadas filigranas de luz formando sombras subtis, outras ainda havia que descreviam, como se uma antiga pintura mural se tratasse, inúmeras lendas de tempos antigos. A suavidade do lóbulo daquela orelha, em especial, não tinha comparação com nada, e a sua carne tenra transcendia tudo e mais alguma coisa no que toca a beleza e desejo.

Dias mais tarde, resolvi ligar ao autor das fotografias em questão para saber o nome e o número de telefone da rapariga das orelhas.

- A que título? - inquiriu ele.

- Pura curiosidade, mais nada. São espantosas, aquelas orelhas.

- Sim, tudo bem, para orelhas não estão mal, mas a rapariga não é nada do outro mundo. Já vi melhores. Olha, se quiseres posso apresentar-te a uma miúda que é modelo de fatos de banho e que ainda fotografei no outro dia...

Recusei. Fiquei com o nome e o número da dona das orelhas, agradeci e desliguei.

Tentei às duas, às seis, às dez horas. Passei o tempo a ligar, mas sempre sem resposta. Pelos vistos, a rapariga devia andar muito ocupada.

Só às dez horas da manhã seguinte é que consegui finalmente apanhá-la. Apresentei-me e expliquei em poucas palavras quem era e ao que ia, dizendo-lhe que desejava falar com ela por causa do trabalho publicitário realizado dias antes. A seguir, perguntei se ela não gostaria de jantar comigo.

- Julgava que já estivesse despachada desse trabalho - retorquiu ela.

- Sim, é um facto que o trabalho já está pronto.

Ela pareceu ficar um bocado espantada, mas não fez mais perguntas. Combinámos encontrar-nos no dia seguinte, ao fim da tarde.

Telefonei para o mais chique de todos os restaurantes franceses que eu conhecia e reservei uma mesa. Ficava no bairro de Aoyama. Estreei uma camisa, perdi algum tempo a escolher uma gravata e vesti um casaco que anteriormente só usara duas vezes.

O fotógrafo tinha razão. A rapariga não era nada de especial. Tanto a maneira de vestir como os traços da sua cara, eram do mais vulgar que havia. Podia perfeitamente passar por elemento do coro de uma qualquer universidade feminina de segunda linha. O que aos meus olhos não tinha a mínima importância, como se pode imaginar. O que me desapontou foi ver que o cabelo dela, liso e caindo a direito sobre os ombros, escondia por completo as orelhas.

- Vejo que tem as orelhas escondidas - comentei eu, com ar nostálgico.

- Pois tenho - respondeu-me, como se não fosse nada com ela.

Tínhamos chegado um pouco antes da hora combinada e éramos os primeiros clientes para jantar. A iluminação do restaurante foi diminuindo. Um empregado que passeava por entre as mesas puxou de um fósforo enorme e acendeu a vela vermelha que estava em cima da nossa mesa. O maltre d'hôtel, um indivíduo com olhos de arenque, controlava ao mínimo pormenor a disposição dos guardanapos e dos pratos, copos e talheres. O soalho de madeira em espinha apresentava-se impecavelmente encerado e polido e, ao andar sobre ele, a sola dos sapatos do empregado produzia um rangido muito agradável. Aqueles sapatos tinham todo o aspecto de terem sido bastante mais caros do que os meus. Havia flores frescas nas jarras, e nas paredes brancas destacavam-se modernos quadros a óleo, todos eles originais, como se percebia logo a um primeiro olhar.

Depois de deitar uma olhadela à lista dos vinhos, escolhi um branco suave e frutado. Para entrada, pâté de canard, terrine de dorade e foie de baudroie à la creme fraíche. Depois de examinar atentamente a carta, ela pediu potage de tortue, salade verte e mousse de sole. Eu optei por potage d'oursin, rôti de veau garni au persil e salade de tomate. Lá se ia metade do meu ordenado mensal.

- É muito agradável, este restaurante - referiu ela. - Costuma vir aqui muitas vezes?

- Uma vez por outra, para almoços de negócios - respondi. -Para dizer a verdade, quando estou sozinho, em vez de me enfiar num restaurante, vou quase sempre a um bar, como qualquer coisa e bebo um copo. É mais prático assim. Não me vejo obrigado a fazer grandes escolhas.

- E o que é que normalmente há para comer num bar?

- Depende. Quase sempre omeletas e sanduíches.

- Omeletas e sanduíches? - repetiu ela. - Alimentas-te todos os dias de omeletas e sanduíches?

-Todos os dias, não. Um dia em cada três faço comida em casa.

- Isso quer dizer que dois em cada três dias comes sanduíches e omeletas num bar.

- Podes dizê-lo.

- E porquê omeletas e sanduíches?

- Porque em qualquer bar as omeletas e as sanduíches são bastante boas.

- Estou a ver - disse ela. - Não deixa de ser estranho.

- Não sei porquê.

Sem saber lá muito bem como mudar de assunto, sentei-me para trás na cadeira e deixei-me ficar calado, a olhar para a cinza no cinzeiro.

Foi ela a romper o gelo, dizendo:

- Não querias falar de trabalho?

- Como ontem disse, aquele trabalho ficou concluído. Correu tudo sem espinhas. Não era disso que te queria falar.

Ela tirou de dentro da mala um fino cigarro mentolado, acendeu-o com os fósforos do restaurante e lançou-me um olhar que queria dizer: «E então?»

Preparava-me para desbobinar a minha história quando o chefe de mesa se aproximou da nossa mesa com passos decididos, fazendo ressoar o soalho. Todo sorrisos, mostrou-me o rótulo do vinho, como se me estivesse a mostrar a fotografia de um filho único. Eu assenti com a cabeça. Ele extraiu a rolha com um barulhinho discreto e agradável e encheu ligeiramente o meu copo. Só o aroma do vinho equivalia ao preço da refeição inteira.

No momento em que o chefe de mesa se retirava, apareceu um empregado que colocou à nossa frente três qualidades de entradas e dois pratinhos. Quando ele se foi embora, voltámos a ficar sozinhos.

- Preciso urgentemente de ver as tuas orelhas - disse-lhe sem rodeios.

Continuando calada, ela serviu-se do pâté e de um pouco de terrina de tamboril e bebeu um gole de vinho.

- Peço desculpa se estou a ser inconveniente - acrescentei, a medir terreno.

Ela esboçou um sorriso.

- Esta requintada comida francesa não tem nada de inconveniente.

- Incomoda-te se falarmos das orelhas?

- Nem por isso. Depende do ângulo em que a questão for abordada.

Ela abanou a cabeça, ao mesmo tempo que levava o garfo à boca.

- Agradeço que sejas sincero comigo, porque esse é o ângulo que eu prefiro.

Prosseguimos a refeição em silêncio, apreciando o vinho.

-Vamos imaginar que dobro a esquina - avancei eu - e, nesse preciso momento, percebo que alguém à minha frente está a dobrar a esquina seguinte. Não tenho maneira de saber qual é o aspecto dessa pessoa. A única coisa que vislumbro é um pedacinho da manga branca. No entanto, essa alvura fica indelevelmente gravada na retina e não há maneira de escapar. Alguma vez experimentaste uma sensação parecida?

- Acho que sim.

- Pois bem, é um bocado a sensação que as tuas orelhas me provocam.

Uma vez mais, continuámos a refeição em silêncio. Deitei mais vinho no copo dela, e depois servi-me a mim próprio.

- Não é uma cena que tenhas vivido - quis ela saber -, mas sim uma sensação, não é?

- É isso mesmo.

- E essa espécie de sensação, alguma vez a tiveste antes? Pensei antes de responder. Depois abanei a cabeça.

- Não, não creio.

- O que significa que é provocada pelas minhas orelhas.

- Isso já não posso jurar. Como é que alguém pode ter a certeza de alguma coisa? Nunca ouvi falar de uma pessoa a quem a contemplação de uma orelha tivesse provocado uma sensação assim tão forte.

- Conheço alguém a quem o nariz da Farrah Fawcett provocava espirros. Não sei se sabes, mas existe uma forte componente psicológica num espirro. Uma vez estabelecida a relação entre causa e efeito, não há nada que os separe.

- Não se pode dizer que eu seja propriamente um especialista no nariz de Farrah Fawcett - retorqui, bebendo um pouco mais de vinho. A seguir esqueci-me por completo do que ia dizer. Varreu-se-me.

- Não é bem a mesma coisa, pois não? - insistiu ela.

- Não, não é bem a mesma coisa - concordei. - A sensação que tenho é incrivelmente vaga e, ao mesmo tempo, muito palpável. -Juntei o gesto à palavra, afastando as mãos para aí um metro, para depois voltar a aproximá-las, até ficarem a uma distância de cinco centímetros.

- Não consigo explicar melhor do que isto.

- Um fenómeno concreto, baseado em motivos vagos.

- Exactamente - respondi eu. - És sete vezes mais inteligente do que eu.

- Fiz um curso por correspondência.

- Curso por correspondência?

- Exacto, de psicologia.

Dividimos o resto do pâté. Tornei a perder o fio à meada.

- Ainda não conseguiste ver? Quer dizer, a relação entre as minhas orelhas e as tuas emoções?

- Acertaste! - exclamei. - Não consigo perceber claramente se são as tuas orelhas, em si mesmas, que exercem uma atracção sobre mim, ou se alguma coisa se serve delas para me atrair.

Ela apoiou as mãos sobre a mesa e encolheu ligeiramente os ombros.

- Essa sensação que se apodera de ti, é positiva ou negativa?

- Nem uma coisa nem outra. Ou ambas, ao mesmo tempo. Já nem sei.

Ela envolveu com as palmas das mãos o copo de vinho e ficou por momentos a olhar para mim.

- Se queres a minha opinião, devias aprender a expressar melhor os teus sentimentos.

- Confesso que as descrições não são o meu forte - admiti. Ao ouvir-me dizer aquilo, ela sorriu.

- Não faz mal. Acho que percebi em linhas gerais o que querias dizer.

- Nesse caso, diz-me: o que devo fazer?

Ela deixou-me um grande bocado sem resposta. Parecia estar a pensar numa coisa totalmente diferente. Sobre a mesa alinhavam-se cinco pratos vazios. Lembrava uma constelação de cinco planetas extintos.

- Ouve uma coisa - avançou ela, quebrando o silêncio. - Acho que devíamos ser amigos. Quer dizer, se estiveres para aí virado.

- Claro que sim - respondi.

- Quando digo que devíamos ser amigos, estou a falar em amigos muito, muito próximos.

Assenti com a cabeça.

E foi assim que nos tornámos amigos muito, muito próximos. Ainda não tinham passado trinta minutos desde que traváramos conhecimento.

- Agora que somos amigos, tenho uma ou duas perguntas que gostaria de te fazer - disse eu.

- Sou toda ouvidos.

- Em primeiro lugar, por que razão é que não mostras as orelhas? Em segundo, queria saber se as tuas orelhas alguma vez exerceram alguma atracção especial sobre mais alguém.

Sem dizer uma palavra, ela contemplava fixamente as suas próprias mãos pousadas sobre a mesa.

- Aconteceu com algumas pessoas, sim - disse então com toda a calma.

- Algumas?

- A-hã. Como te digo, considero que me sinto mais à vontade com o «eu» que não mostra as orelhas.

- Estás a querer dizer-me que o teu «eu», quando mostras as orelhas, é diferente do teu «eu» que as não mostra?

- Se quiseres.

Os dois empregados retiraram os pratos vazios e serviram-nos a sopa.

- Não me queres falar acerca dessa tua personalidade que mostra as orelhas?

- Já foi há tanto tempo que até tenho dificuldade em falar disso. Para ser sincera, desde os meus doze anos que não sei o que é mostrar as orelhas.

- Mas quando trabalhas como modelo és obrigada a mostrá-las, estou certo?

- Sim e não - respondeu ela.

- A verdade é que aquelas não são as minhas verdadeiras orelhas.

- Não são as tuas verdadeiras orelhas?

- São orelhas bloqueadas.

Meti à boca duas colheradas de sopa, levantei a cabeça e olhei para ela.

- Não me queres explicar melhor o que é isso de «orelhas bloqueadas»?

- Orelhas bloqueadas são orelhas mortas. Fui eu que as matei. Quero dizer, bloqueio a comunicação, conscientemente. Estás a compreender?

Não, a verdade é que eu não estava a compreender.

- Faz-me mais perguntas, nesse caso - sugeriu ela.

- Quando dizes que mataste as orelhas, isso significa que deixaste de poder ouvir?

- Não, continuo a ouvir perfeitamente. O que acontece é que as orelhas estão neutralizadas. É muito provável que tu sejas capaz de fazer o mesmo.

Pousou a colher de sopa, endireitou a coluna para corrigir a postura, ergueu os ombros uns cinco centímetros, projectou o queixo decididamente para a frente, manteve a posição uns dez segundos, altura em que deixou cair os ombros bruscamente.

- Pronto. As minhas orelhas estão mortas. Agora experimenta tu. Repeti os gestos dela por três vezes. Devagarinho, com todo o

cuidado, mas nem por um momento fiquei com a impressão de ter neutralizado coisa nenhuma. A única coisa era que o vinho, esse sim, parecia circular mais depressa dentro do meu organismo.

- Não me parece que tenha conseguido matar as minhas orelhas como deve ser - afirmei, um tanto ou quanto desanimado.

Ela abanou a cabeça.

- Não faz mal. Provavelmente, não tens razão para matar as tuas orelhas desnecessariamente, deixa lá.

- Posso perguntar-te mais uma coisa?

- A vontade.

- Recapitulando o que me tens estado a dizer, acho que é mais ou menos isto: até aos doze anos, andavas com as orelhas à mostra. Um belo dia, contudo, achaste por bem tapá-las. E, desde então, não as mostraste sequer uma única vez. Quando não podes impedir-te de as mostrar, é nessa altura que bloqueias a passagem entre as tuas orelhas e o teu consciente. Correcto?

Um sorriso espalhou-se pelo seu rosto.

- Está correcto.

- O que aconteceu com as tuas orelhas quando tinhas doze anos?

-Vamos com calma - pediu ela, ao mesmo tempo que estendia a sua mão direita por cima da mesa, tocando ao de leve nos dedos da minha mão esquerda. - Por favor.

Deitei o resto do vinho nos dois copos e esvaziei lentamente o meu.

- Primeiro que tudo - disse ela -, quero saber mais coisas acerca de ti.

- Que coisas?

-Tudo. Onde nasceste, o que estudaste, como eram os teus pais, quantos anos tens, o que fazes... Esse género de coisas.

-A minha história não tem muito que se lhe diga. É tão banal que quase aposto que a meio já estarias a dormir...

- Gosto de histórias banais.

- A minha é de tal maneira banal que ninguém pode gostar dela.

- Põe-me à prova. Tens dez minutos para desfiar o rosário.

- Nasci a 24 de Dezembro de 1948, na véspera de Natal. Acredita quando te digo que não é a melhor data para se nascer. Isto porque os presentes de aniversário acabam sempre por ser também os presentes de Natal. Toda a gente quer é poupar algum. Sou Capricórnio de signo e o meu grupo sanguíneo é o A. Dado este conjunto de circunstâncias, tinha tudo para ser empregado bancário ou funcionário público. Ao que dizem, tenho manifesta incompatibilidade com os nativos de Sagitário, Balança e Aquário. Prenúncio de uma vida monótona, não te parece?

- Estou a achar muito interessante!

- Cresci numa cidade igual a tantas outras, andei numa escola perfeitamente normal. Era uma criança reservada, e ao crescer transformei-me num rapazinho aborrecido. Encontrei uma rapariga nor-malíssima, com quem vivi um primeiro romance vulgar. Quanto fiz dezoito anos, vim para Tóquio a fim de entrar para a faculdade. Quando saí da universidade, associei-me a um colega e montei um pequeno escritório de traduções e, vá lá saber-se porquê, a coisa deu e safámo-nos. Há três anos, estendemos a nossa actividade aos gabinetes de comunicação, à publicidade e coisas assim, e a verdade é que o negócio tem corrido de feição. Conheci uma rapariga, que era funcionária da empresa, e comecei a andar com ela. Casámo-nos há quatro anos e divorciámo-nos há dois meses. As razões da nossa separação não se explicam assim em meia dúzia de palavras. Tenho um gato velho em casa. Fumo quarenta cigarros por dia. Não consigo deixar o tabaco, por mais que me esforce. Tenho três fatos, seis gravatas e uma colecção de quinhentos discos do tempo da outra senhora, qual deles o mais fora de moda. Sei de cor os nomes de todos os criminosos que aparecem nos romances policiais de Ellery Queen. Possuo a edição completa de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, mas ainda só vou a meio. No Verão bebo cerveja e, no Inverno, uísque.

- Sem esquecer que dois dias em cada três comes omeletas e sanduíches num bar qualquer...

- A-hã - fiz eu.

- Ora aí está uma vida bem interessante!

- Até à data tem sido de uma monotonia a toda a prova, e não me parece que vá mudar. Seja como for, não se pode dizer que me desagrade. Que é como quem diz, contento-me com a minha sorte.

Olhei para o relógio. Tinham passado nove minutos e vinte segundos.

- Ainda assim, não acredito que me tenhas dito tudo. Deve ter ficado alguma coisa por contar.

Por momentos, fiquei a olhar para as minhas mãos sobre a mesa.

- Evidentemente que não é tudo. Uma vida não se conta em dez minutos, mesmo tratando-se da vida mais aborrecida e enfadonha do mundo.

- Posso dar a minha opinião?

- É evidente que sim.

- Sempre que conheço uma pessoa, costumo pedir-lhe que fale durante dez minutos. Depois, procuro situar-me numa perspectiva diametralmente oposta a tudo o que me foi dito, para ver se a apanho em contradição. Achas que faço mal?

- Não vejo porquê - respondi, abanando a cabeça. - Diria mesmo que me parece a estratégia acertada.

Apareceu um empregado, que colocou os pratos sobre a mesa. Atrás dele veio outro, que nos serviu a comida, e depois um terceiro, encarregado dos molhos. Dava a impressão de um jogo de basebol em que a bola fosse passando em cadeia de um jogador para outro, do shortstop para a segunda base, da segunda base para a primeira base.

- Aplicando esse método ao teu caso, tenho a dizer o seguinte - enunciou ela, ao mesmo tempo que enterrava a faca na mousse de linguado. - Não é que a tua vida seja monótona, tu é que fazes com que ela seja chata. Estou enganada?

- Talvez seja exactamente como dizes. Pode ser que a minha vida não seja aborrecida, e eu é que esteja à procura de uma vida monótona. Seja como for, vai tudo dar ao mesmo. De uma maneira ou de outra, já consegui aquilo que desejava. Enquanto toda a gente anda a ver se consegue escapar ao tédio, a minha aspiração, pelo contrário, consiste em cair precisamente nesse tédio. Por isso é que não me estou a queixar quando digo que a minha vida é uma chatice dos diabos. Ao ponto de ter levado a minha mulher a afastar-se de mim.

- Foi por isso que se separaram?

- Tal como já disse antes, é uma longa história que não cabe agora aqui. Porém, e citando Nietzsche: «Confrontados com o tédio, os deuses desfraldam as suas bandeiras.» Se não foi isso, era uma coisa parecida. Enfim, já Nietzsche dizia que até os deuses fogem da monotonia.

Saboreámos calmamente a nossa refeição. Ela serviu-se duas vezes de molho, e eu mandei vir mais pão. Ficámos ambos embrenhados nos nossos pensamentos, cada um a estudar o outro, até acabarmos o prato principal. Depois vieram levantar a mesa e passámos à sobremesa, que consistiu em sorbet de mirtilo. Quando nos trouxeram o café expresso, acendi um cigarro. O fumo do tabaco, depois de flutuar um breve instante pelo ar, desvaneceu-se, absorvido pelo aspirador do silencioso sistema de ventilação.

As outras mesas tinham entretanto começado a ser ocupadas. Através das colunas do tecto, chegava até nós um concerto de Mozart.

- Gostaria de te fazer mais perguntas sobre as tuas orelhas, se puder ser - disse eu.

- Queres saber se as minhas orelhas têm ou não um poder especial?

Respondi que sim com a cabeça.

- Isso é uma coisa que gostaria que fosses tu próprio a descobrir - continuou ela. - Por mais que eu te elucidasse, só te poderia dar uma versão simplificada dos factos, o que poderia até atrapalhar.

Voltei a concordar com a cabeça.

- Por ser para ti, vou mostrar as minhas orelhas - anunciou ela, depois de acabar de beber o café. - A verdade, porém, é que não tenho a certeza de que isso te sirva de muito. Pelo contrário, pode até acontecer que te arrependas.

- Porquê?

- Porque o teu grau de tédio pode não ser tão elevado como pensas.

- Esse é um risco que terei de correr - respondi eu, decidido. Ela estendeu a mão por cima da mesa e pousou-a sobre a minha.

- Mais uma coisa. Durante os próximos tempos, que é como quem diz, nos próximos meses, gostaria que não me abandonasses. Pode ser?

- Pode.

De dentro da mala de mão tirou um elástico preto, segurou-o na boca, puxou o cabelo para trás com as duas mãos, apanhou o cabelo com o elástico e apertou-o com destreza.

- Que tal?

Sustendo a respiração, fiquei a olhar para ela, sem fôlego. Tinha a boca seca e não fui capaz de articular um único som. Por um breve instante, pareceu-me ver a branca parede estucada a ondular. O bulício das conversas no restaurante e o tinido dos talheres e dos pratos desvaneceram-se até ficarem reduzidos a um leve sussurro, para logo retomarem o volume normal. Ouvi o som das ondas, recordei o aroma de um fim de tarde há muito caído no esquecimento. Contudo, tudo isso não passou de uma ínfima parte dos sentimentos que se apoderaram de mim naquela centésima fracção de segundo.

- Impressionante - consegui a muito custo articular. - Pareces outra pessoa.

- Não te dizia? - observou ela.

- Estás a ver? - disse ela.

Estava de tal forma bonita que desafiava os limites da realidade. Nunca na minha vida me fora dado contemplar tamanha beleza. Uma beleza de um tipo que eu jamais imaginara sequer que pudesse existir. Expansiva e abrangente como a energia do universo inteiro e, ao mesmo tempo, tão densa como se habitasse as profundezas de um glaciar. Assumidamente excessiva, a roçar os limites do orgulho e, ao mesmo tempo, reduzida à sua essência. Transcendia todos os conceitos que a minha mente concebia. Ela e as suas orelhas formavam um todo, a deslizar pela vertente do tempo à imagem e semelhança de um remoto feixe de luz.

- És espantosa - exclamei, assim que consegui recuperar o fôlego.

- Bem sei - retorquiu ela. - É sempre a mesma coisa quando liberto as minhas orelhas.

Vários clientes do restaurante tinham-se entretanto voltado para nós e fixavam nela o olhar, incapazes de esconder a curiosidade. Um empregado que se preparava para servir mais café mostrava-se incapaz de acertar nas chávenas. Estava toda a gente calada, boquiaberta. Só a bobina do gravador continuava lentamente a girar.

Ela tirou da mala um cigarro mentolado e levou-o à boca. Apressei-me a acendê-lo com o meu isqueiro.

- Quero ir para a cama contigo - disse ela. E foi assim que começámos a dormir juntos.

 

Apesar de tudo, não havia ainda chegado o momento em que ela se revelaria em todo o seu esplendor. Nos dois ou três dias que se seguiram, mostrou as suas orelhas uma vez por outra, antes de voltar a esconder aquelas autênticas maravilhas da criação debaixo dos cabelos, transformando-se acto contínuo na rapariguinha vulgar de todos os dias.

Para ela, era como experimentar sair à rua sem casaco nos dias frios do começo de Março, só para ver em que paravam as modas.

- Ainda não chegou a altura de mostrar as orelhas - referiu ela. -Não tenho bem a certeza de conseguir dominar a situação.

- Não tem importância - disse eu. A verdade é que, mesmo com as orelhas tapadas, não estava mal de todo.

De tempos a tempos, ela punha a descoberto as orelhas, sobretudo quando estávamos na cama. Fazer sexo com ela de orelhas à mostra possuía um estranho atractivo. Então se estivesse a chover, o odor da chuva envolvia-nos com outra nitidez. Quando os pássaros cantavam, o seu canto revelava-se de uma clareza cristalina. Faltam-me as palavras, mas podem crer que a imagem era mesmo essa.

- Não mostras as tuas orelhas quando dormes com outros homens? - atrevi-me uma vez a perguntar-lhe.

- Claro que não - respondeu-me ela. - Desconfio que eles nem sequer sabem que eu as tenho.

- Como é o sexo, sem as orelhas à mostra?

- Pura obrigação. Não sabe rigorosamente a nada, como mastigar papel de jornal, mas estou-me nas tintas. Cumprir uma obrigação não é assim tão mau quanto isso e dá o seu gozo.

- Mas concordas que é mil vezes melhor quando tens as orelhas à vista?

- Claro que sim.

- Nesse caso, devias destapá-las - alvitrei eu. - Não há necessidade nenhuma de tornar a vida mais difícil do que ela já é.

Ela olhou para mim com uma cara muito séria e deixou escapar um suspiro:

- Estou a ver que não percebes rigorosamente a ponta de um corno.

Era um facto que existiam muitas coisas que me escapavam.

Para começar, não compreendia as razões que a levavam a tratar-me de maneira diferente. Sinceramente, não reconhecia em mim nada que me tornasse superior aos outros homens, ou diferente em algum aspecto.

Quando comentei isso com ela, desatou a rir. - É muito simples - disse ela. - Prende-se com o facto de teres sido tu a ir à minha procura. Esse é o principal motivo.

- Imagina que outra pessoa qualquer andava atrás de ti, o que acontecia?

- De momento, és tu que me queres. Além disso, vales muito mais do que aquilo que pensas.

- O que é que te leva a pensar isso? - perguntei, apanhado de surpresa.

- O facto de viveres a tua vida a meio gás - respondeu ela sem cerimónias. -A outra metade permanece inactiva, não se sabe onde.

- Estou a ver.

- Nesse sentido, até somos bastante parecidos. Eu cubro as orelhas, e tu, tu vives a vida pela metade. Pelo menos é a impressão que tenho, não sei...

- Mesmo admitindo que tenhas razão, essa outra metade da minha vida não se compara, nem de perto nem de longe, ao esplendor das tuas orelhas.

-Talvez não - respondeu ela, com um sorriso. -Vejo que continuas sem perceber nada, como de costume.

E sempre com um sorriso nos lábios, afastou o cabelo da cara e começou a desabotoar os botões da blusa.

Naquela tarde de Setembro, com o Verão a chegar ao fim, decidi não ir trabalhar e, enfiado na cama com ela, pensei durante muito tempo no pénis da baleia enquanto acariciava os seus cabelos. O mar estava escuro, cor de chumbo, um vento agreste batia com força na vidraça das janelas. Naquela sala de exposições com um pé-direito alto, não havia mais ninguém tirando eu. O pénis, para sempre arrancado da baleia-macho, tinha perdido por completo o seu significado enquanto tal.

Veio-me outra vez à ideia a combinação da minha mulher. Para dizer a verdade, nem sequer me lembrava ao certo se ela tinha alguma. A um canto da minha mente, a única coisa era a imagem vaga de uma combinação pendurada nas costas de uma cadeira na cozinha, cujo sentido já não conseguia precisar. Dava-me a sensação de ter andado durante muito tempo a viver uma vida que não era a minha.

- Diz-me uma coisa, tu nunca usas combinação, pois não? -perguntei eu à minha amiga, mais por perguntar do que por outra coisa qualquer.

Ela levantou a cabeça do meu ombro e olhou para mim com uma expressão ausente.

- Não tenho nenhuma.

- Estou a ver - respondi.

- Mas se achas que com uma combinação as coisas poderiam correr melhor...

- Não, não é isso - apressei-me a dizer. - Não fiz a pergunta com essa intenção.

- A sério, não tenhas vergonha de dizer. Na minha profissão, estou habituada a isso e a muito mais. Podes crer que não ficaria minimamente embaraçada.

- Perguntei só por perguntar - respondi. - Não quero nada, além de ti e das tuas orelhas.

Ela abanou a cabeça com um ar decepcionado e encostou a testa ao meu ombro. Ainda não tinham passado quinze minutos quando voltou a levantar a cabeça.

- Sabes uma coisa? Daqui a dez minutos vais receber um telefonema importante.

- Um telefonema? - perguntei, dando uma olhadela ao telefone que estava ao lado da cama.

- A-hã. O telefone vai tocar.

- Tens a certeza?

- Tenho.

Com a cabeça encostada ao meu peito nu, ela fumava um cigarro mentolado. Momentos depois, a cinza caiu ao lado do meu umbigo e ela, fazendo uma espécie de beicinho com os lábios, soprou para empurrá-la da cama. Prendi uma das suas orelhas entre os meus dedos. Era uma sensação maravilhosa. Toda a espécie de imagens indefinidas atravessaram o meu espírito, como que flutuando, desvanecendo-se em seguida e deixando a mente vazia.

- É uma história que mete carneiros - explicou ela. - Um carneiro em especial no meio de muitos.

- Carneiros?

- Isso mesmo - disse ela, passando-me para a mão o cigarro meio fumado. Dei uma passa antes de o apagar no cinzeiro.

- E isso vai ser o princípio de uma fantástica aventura.

Pouco depois, tocou o telefone junto à cabeceira da cama. Ainda olhei de esguelha para ela, mas tinha adormecido sobre o meu peito. Deixei o telefone tocar quatro vezes antes de levantar o auscultador.

- Podes vir até cá imediatamente? - quis saber o meu sócio do outro lado do fio. Notava-se a urgência na sua voz. -Trata-se de um assunto da máxima importância.

- O que é que pode ser assim tão importante?

- Quando chegares, logo ficas a saber.

-Tem que ver com carneiros? - perguntei, para ver a reacção dele. Não o devia ter feito. O auscultador ficou mais frio do que um glaciar.

- Como é que sabes? - perguntou o meu sócio. E foi assim que a louca aventura de dar caça ao carneiro selvagem começou(5).

 

*5. «Wild sheep chase». Trocadilho com a expressão «wild geese chase» (em inglês, no plural, «geese» são gansos), que em português traduzimos por «andar aos gambozinos». À luz do Dicionário da Porto Editora, gambozinos são «pássaros ou peixes imaginários com que se enganam os pacóvios, mandando caçá-los», enquanto «andar aos gambozinos» significa «andar desnorteado, vadiar, andar à tuna». (N. da T.)

 

São mais do que muitas as razões que podem levar um indivíduo a entregar-se à bebida, mas, regra geral, o resultado acaba sempre por ser o mesmo.

Há coisa de cinco anos, o meu sócio era um bêbado feliz. Três anos mais tarde, em 1976, transformara-se num bêbado intratável. E, por fim, no Verão de 1978, andava já aos caídos, a bater à porta que conduz ao alcoolismo. Quando se encontrava sóbrio, tal como acontece com a maior parte dos bebedores inveterados, mostrava-se um tipo decente e simpático, se bem que a esperteza não fosse o seu forte. De resto, era assim que toda a gente o via: como um indivíduo-decente-e-simpático-ainda-que-não-lá-muito-esperto. E o primeiro a achar isso de si próprio era ele. Por isso é que se entregava à bebida. Porque lhe parecia que, sob os efeitos do álcool, encarnava na perfeição aquele ideal do indivíduo recto e bom que lhe assentava que nem uma luva.

Verdade seja dita que a princípio corria tudo às mil maravilhas. Contudo, à medida que o tempo ia passando e a quantidade de álcool por ele ingerida aumentava, começaram a produzir-se ligeiras mudanças, desvios subtis que o levaram a afundar-se cada vez mais no abismo. Viu-se ultrapassado pela sua famigerada rectidão e pela sua sensibilidade, ao ponto de perder por completo o barco. Um caso típico. Acontece, porém, que a maioria das pessoas é incapaz de se aceitar como o caso típico que é, e com mais frequência do que se imagina. E aqueles que não primam pela esperteza, ainda menos.

Apostado em recuperar o que havia perdido, o meu sócio viu-se à deriva por entre os vapores, cada vez mais densos, do álcool. A situação piorou.

Contudo, na época em que ocorreram os factos que agora relato, ele ainda conseguia manter-se sóbrio até ao entardecer. E como eu, desde há vários anos, fazia os possíveis para nunca me encontrar com ele depois do sol-posto, posso afiançar que, pela parte que me dizia respeito, ele comportava-se sempre de forma correcta. O que não impedia que ambos soubéssemos até onde podia chegar a sua falta de carácter e de sensibilidade quando a noite caía. Como nenhum dos dois estava interessado em tocar no assunto, existia entre nós uma espécie de pacto de silêncio. Aparentemente, a nossa relação não tinha mudado, mas, na verdade, já não éramos tão amigos como dantes.

Ainda que não possa dizer que nos entendíamos a cem por cento (se calhar nem a setenta), o certo é que era ele a única amizade que me restava dos tempos em que andávamos a estudar juntos na faculdade. Por isso, confesso que o espectáculo da sua degradação era para mim uma experiência penosa. Se bem que, no fundo, envelhecer seja isso mesmo.

Quando eu chegava ao escritório, já ele ia no seu primeiro uís-que. Desde que ficasse por ali, mantinha-se na linha, mas isso não mudava em nada o facto de ele beber, nem deixava de ser um mau presságio. Em qualquer momento poderia passar à segunda dose. Quando esse dia chegasse, eu não teria outro remédio senão acabar com a nossa sociedade e ir à minha vida.

Deixei-me ficar de pé ao lado do aparelho de ar condicionado, para ver se conseguia secar o meu suor, enquanto bebia um chá de cevada gelado. Ele não abria a boca, eu também não. O impiedoso sol da tarde incidia sobre o chão de linóleo, formando uma espécie de névoa distorcida e imaginária. Lá em baixo, diante dos meus olhos, estendia-se a mancha verde do parque, distinguindo-se sobre a relva as minúsculas figuras das pessoas ali estendidas, despreocupadamente, a apanhar sol. O meu sócio batia na palma da mão direita com a ponta da esferográfica.

- Soube que te divorciaste - disse ele, quebrando o silêncio.

- Já foi há dois meses - repliquei eu, sem deixar de olhar pela janela. Ao tirar os óculos escuros, a claridade fez-me doer os olhos.

- Por que é que te divorciaste?

- É um assunto pessoal.

- Sei disso - afirmou ele com um ar paternalista. - Nunca ouvi falar de nenhum divórcio que não fosse um assunto pessoal.

Fiquei calado. Durante longos anos tínhamos mantido o compromisso tácito de respeitar a intimidade um do outro, de não tocarmos em assuntos da vida privada de cada um.

- Não é que queira andar a meter o nariz na tua vida - desculpou-se ele -, mas como também sou amigo da tua mulher, fiquei um tanto chocado. Sempre pensei que os dois se entendessem na perfeição.

- Sim, corria tudo bem, sem problemas de maior. De resto, estamos a falar de uma separação amigável.

O meu sócio pôs uma expressão embaraçada e calou-se, sem nunca deixar de bater com a ponta da esferográfica na palma da mão. Tinha uma camisa azul-escura, gravata preta, e o cabelo cuidadosamente penteado. O odor da água-de-colónia combinava com o da loção para depois da barba. Eu, pela minha parte, vestia uma T-shirt com a figura do Snoopy a braços com uma prancha de surf, umas velhas Levi's que, de tanto lavar, estavam quase brancas, e uns ténis todos enlameados. Aos olhos de muito boa gente, era sem dúvida ele o mais respeitável.

- Lembras-te da época em que trabalhávamos os três juntos? -perguntou ele.

- Lembro-me perfeitamente - disse eu.

- Bons tempos, aqueles - acrescentou o meu sócio.

Afastei-me do ar condicionado e deixei-me cair em cima de um confortável sofá sueco azul-celeste que se encontrava a meio da sala. Tirei um Pall Mall com filtro de uma cigarreira especialmente destinada aos visitantes e acendi-o usando para o efeito o pesado isqueiro de mesa.

- E então? - insinuei.

- E então pergunto-me se, no fundo, não teremos ido demasiado longe.

- Estás a referir-te à história da publicidade, às revistas e isso? O meu parceiro concordou com um aceno de cabeça. Calculei

o tormento que não devia ter sido para ele admitir aquilo. Sopesei o isqueiro na minha mão e fiz girar a pedra para ajustar a altura da chama. Confesso que sentia uma certa pena dele.

- Tudo bem, percebo onde queres chegar - disse eu, ao mesmo tempo que voltava a pôr o isqueiro em cima da mesa -, mas lembra-te de que não fui eu a ter esta ideia, isto para começar, nem fui eu que deitei mãos à obra. Foste tu, e não eu, que falaste nisso. Quem fez questão e tomou a iniciativa de ampliar o negócio, foste tu.

- Por um lado, as circunstâncias eram favoráveis. É bom não esquecer que naquela altura não tínhamos muito que fazer...

- E ganhámos bom dinheiro.

- Muito dinheiro - concordou ele. - Graças a isso, pudemos mudar-nos para um escritório maior e contratar mais pessoal. Pela parte que me toca, troquei de carro, comprei uma bela moradia e os meus dois filhos andam num colégio particular caríssimo. Aos trinta anos, nem toda a gente se pode orgulhar disso.

- É mais do que merecido. Não tens nada de que te envergonhar.

- Quem é que está envergonhado? - replicou o meu sócio, apanhando a esferográfica que tinha deixado cair em cima da mesa de trabalho e voltando a bater com ela repetidas vezes no centro da palma da mão. - Sabes, o que acontece é que, sempre que penso no passado, pergunto a mim próprio se tudo não passou de um sonho. Recordo os tempos em que só tínhamos era dívidas, sempre a ver se nos safávamos com alguma tradução e a distribuir prospectos diante da estação de comboio...

- Se o que queres é voltar a distribuir prospectos, por mim encantado da vida.

O meu sócio levantou a cabeça e olhou para mim.

- Olha que não estou a brincar.

- Eu também não.

Durante um bocado, ficámos os dois em silêncio.

- Houve muitas coisas que mudaram - disse ele. - O nosso ritmo de vida, a nossa maneira de pensar. Para começar, e só para tua informação, nem sequer temos ideia do que facturamos actualmente. Temos um contabilista que aparece de vez em quando para tratar da papelada e das burocracias, e que nos dá conta da estratégia fiscal, das deduções, das amortizações e o diabo a sete...

- É o mesmo em toda a parte.

- Bem sei. E também sei que é assim que temos de fazer, e que é isso que acontece. O que não impede que naqueles tempos as coisas dessem mais gozo.

- «A cada novo dia que vivemos, mais profundas se anunciam as trevas da prisão que nos cerca.» -Vieram-me à memória os versos de um velho poema, que declamei a meia-voz.

- Repete lá isso.

- Nada, nada - repliquei. - Continua...

- Isto só para dizer que, ultimamente, tenho a sensação de que por vezes somos vítimas de uma certa exploração.

- Exploração? - exclamei surpreendido, levantando a cabeça. Estávamos a uma distância de dois metros um do outro e, por

causa da diferença de altura das cadeiras, a cabeça dele ficava vinte centímetros acima da minha. Atrás dele, pendurada na parede, estava uma litografia. Uma litografia nova (pelo menos eu nunca a tinha visto antes) representando um peixe alado. O peixe não parecia muito satisfeito com aquelas asas que lhe tinham crescido no dorso. Provavelmente não sabia que uso dar-lhes.

- Exploração? - tornei a perguntar, dessa vez como se estivesse a falar comigo mesmo.

- Exploração, isso mesmo.

- E não me dirás quem diabo é que nos anda a explorar?

- Somos explorados de muitas maneiras, um pouco por toda a gente.

Sentei-me no sofá azul-celeste com as pernas cruzadas e fixei a minha atenção na mão dele, que se encontrava precisamente à altura dos meus olhos, seguindo a dança da caneta.

- Seja como for, não te parece que mudámos? - perguntou o meu sócio.

- Somos os mesmos. Não mudámos. Nada mudou.

- Acreditas realmente nisso?

- Sim. Essa história da exploração não passa de uma lenda. Não me digas que acreditas que são as trombetas do Exército de Salvação que vão realmente salvar o mundo? Estás a imaginar coisas, meu velho.

- Tudo bem, se calhar ando a imaginar coisas - reconheceu o meu sócio. - Na semana passada, tu... quer dizer, nós elaborámos aquela campanha publicitária da margarina. E o certo é que fizemos um bom trabalho. A mensagem era boa, a campanha teve excelente aceitação e tudo o mais. Agora, diz-me uma coisa: há quantos anos é que não tocas em margarina?

- Uma data deles. Não posso nem vê-la à frente.

- Comigo passa-se o mesmo. Era aí mesmo que eu queria chegar. Naquela época, tanto tu como eu só aceitávamos campanhas em que acreditássemos, e orgulhávamo-nos do nosso trabalho. Mas tudo isso foi chão que deu uvas. Agora, limitamo-nos a semear palavras ao vento, sem sabermos se daí advirá bem ou mal ao mundo.

- A margarina faz bem à saúde. É gordura vegetal, com baixo teor em colesterol. Ajuda a evitar problemas cardíacos, e ultimamente tornou-se bastante mais saborosa. É barata e conserva-se durante muito tempo.

- Ainda bem. Come-a tu.

Voltei a afundar-me no sofá e estiquei os braços e as pernas.

- Que diferença é que isso faz? - lancei eu. - Com ou sem margarina, é tudo igual ao litro. Quer estejamos a falar de uma tradução prosaica ou de uma campanha enganosa para vender margarina. É evidente que estamos a lançar poeira aos olhos uns dos outros, mas haverá por aí quem dê às palavras um uso correcto, sem procurar esvaziá-las de sentido? Onde, não me queres dizer? Não tenhamos ilusões, o trabalho honesto é coisa que não existe, digo-te eu. Assim como não existe uma coisa chamada hálito honesto ou mijo honesto.

- Antes não eras tão cínico.

- É possível - disse eu, esmagando o cigarro no cinzeiro para o apagar. - Num sítio qualquer deve forçosamente existir um lugar que desconheça o cinismo, onde um carniceiro honesto corte uma peça de carne de primeira em condições, sem aldrabar. Por isso, se pensas que começar o dia a beber uísque é sinal de inocência, nesse caso podes beber até cair, que é para o lado que eu durmo mais descansado.

O ruído compassado da esferográfica a martelar contra a mesa invadiu a sala durante um bom bocado.

- Não ligues - desculpei-me -, não era isso que eu queria dizer.

- Não faz mal - retorquiu o meu sócio. - Quem tem razão és tu.

O termostato do ar condicionado deu um estalo esquisito. Estava uma tarde terrivelmente calma.

- Tem mais confiança em ti próprio - aconselhei eu. - Afinal, chegámos ou não até aqui à custa do nosso próprio esforço? Sem pedir nada e sem explorar ninguém. É isso que nos separa de toda essa gente que olha para nós de soslaio, pessoas que só têm é garganta e mais não fazem do que vangloriar-se dos seus títulos académicos e dos seus padrinhos.

-Tão amigos que nós éramos... - suspirou o meu sócio.

- E continuamos a ser - assegurei-lhe eu. -Tudo o que conseguimos, é resultado de um esforço conjunto.

- Teria preferido que não te divorciasses.

- Sei disso - respondi. - E que tal se passássemos agora ao capítulo dos carneiros?

Ele anuiu. Voltou a colocar a esferográfica no suporte das canetas e esfregou as pálpebras dos olhos com a ponta dos dedos.

- Eram onze da manhã quando o homem apareceu - começou ele a contar.

 

Eram onze horas quando o homem apareceu. Numa pequena empresa como a nossa, às onze da manhã podem acontecer duas coisas. Estarmos atolados em trabalho, ou não termos rigorosamente nada para fazer. Meio-termo é coisa que não existe. De modo que, às onze da manhã, ou bem que nos encontramos a trabalhar a todo o gás, sem pensar em mais nada, ou deixamo-nos estar a olhar para as paredes, a sonhar acordados, igualmente sem pensar em nada. No que diz respeito às tarefas que exigem que se pegue o touro pelos cornos - isto partindo do princípio que o animal existe -, o melhor é reservá-las para a parte da tarde.

Quando o tal homem entrou em cena, eram umas onze horas do segundo tipo. Por sinal, uma daquelas manhãs de ócio dignas de registo, tão sem nada para fazer que mereceria um monumento à ociosidade. A primeira quinzena de Setembro tinha sido de loucos, e depois disso a nossa actividade caíra a pique, ficando reduzida ao mínimo. Três dos empregados, incluindo eu, tinham aproveitado para gozar as férias de Verão com um mês de atraso, mas nem isso impediu os restantes de ficarem com outra coisa para fazer a não ser afiar o lápis, entre outras tarefas igualmente excitantes. O meu associado tinha ido ao Banco para levantar um cheque, e outro dos nossos funcionários matava o tempo a ouvir os lançamentos mais recentes na loja de música da esquina. A secretária, essa ficara para trás, a tomar conta do escritório e a atender o telefone, enquanto folheava uma revista feminina que dava conta das últimas tendências no que tocava aos penteados para o Outono.

O homem abriu a porta do escritório sem fazer o menor ruído, e fechou-a atrás de si com o mesmo cuidado. No entanto, não se podia dizer que estivesse propositadamente a querer passar despercebido. Não, aquele era o seu comportamento normal, uma espécie de segunda natureza. Basta dizer que nem a secretária deu por ele ter entrado. Quando notou a presença dele, já o referido indivíduo estava de pé à frente da secretária dela, dominando-a com o seu olhar.

- Tenho um assunto que gostaria de tratar com o responsável pela empresa - disse o homem. A voz era suave, fazendo lembrar a passagem de uma mão enluvada pelo tampo da mesa, levando atrás de si o pó.

Como é que ele teria feito para chegar ali? Decididamente, a rapariga não compreendia nada do que se estava a passar. Levantou a cabeça e olhou para o homem. Pareceu-lhe que o olhar dele era demasiado inquisitivo para se tratar de um possível cliente de negócios, a sua indumentária demasiado elegante para um inspector das Finanças, o seu ar demasiado intelectual para ser da Polícia. Tirando essas profissões, não se lembrou de mais nenhuma. Aquele homem aparecera ali, diante dela, vindo do nada, interpondo-se no seu caminho, e a sua presença não pressagiava nada de bom.

- Tenho muita pena, mas de momento ele saiu - respondeu a rapariga, ao mesmo tempo que fechava precipitadamente a revista. -Disse que estaria de volta dentro de meia hora.

- Nesse caso, espero - informou o homem, sem o menor sinal de hesitação, como se já contasse de antemão com aquela possibilidade.

Ela pensou duas vezes em perguntar-lhe o nome, mas às tantas desistiu. Em vez disso, convidou-o a sentar-se no sofá azul-celeste. O homem refastelou-se, cruzou as pernas e deixou-se estar, imóvel, a contemplar o relógio eléctrico na parede mesmo à sua frente. Ficou ali, como que petrificado, sem mexer um músculo nem fazer um gesto supérfluo. Quando ela apareceu, pouco depois, com um copo de chá de cevada gelado, o desconhecido continuava na mesmíssima posição, sem se mexer um milímetro.

- Precisamente no sítio onde tu agora estás sentado - indicou o meu sócio. - E aí se deixou ficar, imóvel, durante uma boa meia hora, sem mudar de posição e sempre de olhos postos no relógio.

Olhei para a cova no sofá onde eu próprio estava sentado, e depois levantei os olhos para o relógio eléctrico de parede. A seguir voltei a dirigir o olhar para o meu sócio.

Apesar do calor excepcional que se fazia sentir naquela segunda quinzena de Setembro, o dito indivíduo estava vestido com esmero. Impecável. Os punhos da camisa branca assomavam precisamente um centímetro e meio fora da manga do seu fato cinzento, feito por medida. O nó da gravata, cujos tons delicados formavam um padrão às riscas, era perfeito, de modo a apresentar uma leve assimetria. Os seus sapatos negros brilhavam, de tão engraxados.

Devia ter entre trinta e cinco e quarenta anos. Media perto de um metro e setenta e cinco e o seu corpo não parecia ter um grama de gordura a mais. As mãos eram finas, sem vestígios de rugas. Os dedos, compridos e afilados, faziam pensar num bando de animais gregários que, por mais anos de treino e habituação à vida sedentária e doméstica, albergavam ainda a memória das suas origens selvagens. As unhas apresentavam-se impecáveis, tratadas na manicura, devendo ter custado muito tempo e cuidado para conseguir aquela perfeita elipse na ponta de cada dedo. Umas belas mãos, há que reconhecê-lo, ainda que com o seu quê de inquietante. Era como se transmitissem a sensação de pertencer a uma pessoa altamente especializada num campo bem definido; agora, qual o campo, ninguém saberia dizer.

Em contrapartida, a fisionomia não era tão eloquente como as mãos. Os traços eram regulares, mas o rosto destituído de expressão, quase sepulcral. O nariz e os olhos eram rectilíneos, como que talhados a estilete, e os lábios finos e secos. Estava ligeiramente bronzeado, mas dava para ver que aquela cor não resultara dos prazeres de uma apressada exposição ao sol numa qualquer praia ou num campo de ténis. Um bronzeado daqueles só podia ser resultado de um sol desconhecido que brilhasse algures num céu também ele desconhecido dos comuns mortais.

O tempo passou com uma lentidão espantosa. Foram trinta minutos densos, compactos, fazendo lembrar na sua rigidez o solitário parafuso de um mecanismo gigantesco desafiando as alturas. Quando o meu sócio regressou do Banco, a atmosfera no escritório pareceu-lhe terrivelmente pesada. Com o devido exagero, poder-se-ia dizer que tudo naquela sala parecia fixado no chão com pregos.

- É evidente que não passava de uma impressão - explicou o meu sócio.

- Evidentemente.

Exausta, a secretária que ficara a atender os telefones estava à beira de um ataque de nervos, devido ao ambiente tenso que se fazia sentir. Sem fazer ideia do que estava a acontecer, o meu sócio foi ao encontro do estranho e apresentou-se como sendo o gerente. Só então o homem saiu por fim daquele seu imobilismo, tirou um cigarro fino do bolso de cima do casaco, acendeu-o e, com uma expressão enfastiada, soprou o fumo. A tensão na sala diminuiu imperceptivelmente.

- Como não disponho de muito tempo, o melhor é ir direito ao assunto - enunciou o homem sem levantar a voz. Dito isto, tirou da carteira um cartão-de-visita tão fininho que parecia capaz de cortar a pele de quem pegasse nele, e colocou-o em cima da mesa. Era feito de uma cartolina que parecia plástico, de um branco tão branco que nem parecia natural. Impresso, via-se um nome em caracteres minúsculos, negríssimos, não constando título algum, nem morada, nem telefone. Apenas o nome, formado por quatro ideogramas. Só de olhar para aquele cartão-de-visita uma pessoa ficava com a vista a doer. O meu sócio virou-o e, ao constatar que o verso estava em branco, deu outra olhadela à frente do cartão e encarou de novo o homem.

- Reconhece o nome, não é verdade?

- Sim.

O homem esticou o queixo para a frente e esboçou um breve sinal de assentimento. O olhar dele, porém, não se desviou nem um milímetro.

- Queime-o, por favor - disse ele num tom que não admitia

réplica.

- Queimá-lo?

Espantado, o meu sócio não tirava os olhos do homem.

- Faça o favor de queimar o cartão, imediatamente.

O meu sócio apressou-se a agarrar no isqueiro de secretária e deitou fogo a um dos cantos do cartão. Agarrou nele pela outra ponta até o fogo atingir metade de sua superfície, depois deixou-o cair em cima de um grande cinzeiro de cristal. Um em frente do outro, os dois homens ficaram a ver o cartão-de-visita até ficar reduzido a um punhado de cinzas brancas. Quando o fogo acabou de consumir o cartão, instalou-se um silêncio pesado, como se aquele local tivesse sido palco de um terrível massacre.

- Vim até aqui investido de plenos poderes por parte desse senhor - explicou o homem, quebrando o silêncio ao fim de algum tempo. - Isso significa que tudo o que eu disser a partir de agora exprime a vontade e o desejo dessa pessoa.

- O desejo... - murmurou o meu sócio.

-A palavra desejo não passa de um modo sofisticado para exprimir uma posição básica em relação a um objectivo específico - acrescentou o homem. - Naturalmente, existem outras formas de expressão. Fiz-me entender?

O meu sócio esforçou-se por traduzir mentalmente aquela tirada para uma linguagem mais vulgar.

- Entendido.

- Apesar disso, não estamos nem perante uma questão conceptual, nem tão-pouco a nossa conversa será de teor político. Falaremos de negócios, estritamente de business.

Ele pronunciou a palavra correctamente, bízinis, possivelmente por se tratar de um americano descendente de japoneses; isto porque a maioria dos japoneses diria qualquer coisa como bíjinis.

- Tal como eu, também o senhor é um homem de negócios -prosseguiu ele. - Objectivamente falando, não existe em cima da mesa outro assunto de conversa que não sejam os negócios, que é como quem diz, business. Deixemos, pois, os assuntos menos realistas para os outros. Estamos de acordo?

- De acordo.

- A nossa tarefa consiste em pegar nesses factores irrealistas que existem, dar-lhes uma configuração mais sofisticada, a fim de os inserirmos num plano objectivo. As pessoas tendem a deixar-se levar pela falta de objectividade. Porquê? - questionou o homem, lançando no ar uma pergunta de retórica, ao mesmo tempo que acariciava a pedra verde do anel que usava no dedo médio da mão esquerda. - Isto porque a não-objectividade parece mais fácil. Acresce ainda que, não raras vezes, circunstâncias há em que o irreal dá a impressão de dominar o real. Isto não obstante o termo business não fazer qualquer sentido no mundo irreal. Resumindo, cabe-nos a nós - continuou ele a arengar, sem deixar de mexer no anel -, enquanto seres humanos, a tarefa de contornar as dificuldades. É por essa razão que eu venho aqui pedir a sua colaboração, assumindo desde já a minha quota-parte de responsabilidade pelos espinhos que uma tal decisão e uma tal missão venham a acarretar. É essa a natureza das coisas.

O meu sócio acenou em silêncio, apesar de não estar a perceber patavina.

- Posto isto, passarei a transmitir-lhe os desejos da pessoa que me envia. Em primeiro lugar, e mais importante que tudo: é-lhe solicitado que suspenda a publicação do boletim informativo da Companhia de Seguros P.

- Mas...

- Em segundo lugar - interrompeu o homem, cortando-lhe a palavra -, exijo que me seja concedida imediatamente uma entrevista com a pessoa que foi responsável pela elaboração deste anúncio.

Ao dizer aquilo, o homem tirou do bolso interior do seu casaco um sobrescrito branco, do qual extraiu uma folha de papel dobrada em quatro, que entregou acto contínuo ao meu sócio. Este pegou no documento, abriu-o e examinou o seu conteúdo. Tratava-se, sem dúvida, da fotocópia de uma página de revista, em que aparecia um anúncio elaborado pela nossa firma para uma companhia de seguros. Era uma fotografia perfeitamente vulgar, uma paisagem comum na ilha de Hokkaido: nuvens, montanhas, carneiros e prados, com a inclusão de alguns versos de um poema bucólico de inspiração duvidosa tirado de uma antologia qualquer. Mais nada.

- Os dois pontos enunciados representam as pretensões da parte que eu represento. Relativamente ao primeiro, é menos um desejo e mais um dado adquirido. Para ser mais preciso, trata-se de uma decisão que foi tomada em conformidade com os nossos desejos. Caso o assunto lhe levante alguma dúvida, sugiro-lhe que entre em contacto com o director de relações públicas da referida seguradora, a fim de receber mais esclarecimentos.

- Estou a perceber - disse o meu sócio.

- Não nos é difícil imaginar, desde logo, os prejuízos de monta que uma decisão dessas poderá acarretar para uma empresa da envergadura da vossa. Por sorte, estamos em posição - como por certo saberá - de exercer a nossa influência no ramo em que se movimentam. Por isso, e prevendo que o segundo requisito obtenha uma resposta favorável ao nível das nossas expectativas, estamos preparados a ressarci-los de todos os prejuízos. Uma recompensa financeira mais do que generosa, devo acrescentar.

Uma vez mais, o silêncio apoderou-se da sala.

- Contudo, caso o nosso requisito não seja cumprido - acrescentou o homem -, será o fim da vossa firma. A partir de agora, façam o que fizerem, todas as portas serão fechadas e deixará de haver lugar para vós neste mercado de trabalho.

Silêncio outra vez.

- Alguma pergunta?

- Quer dizer, é na fotografia que reside então o problema? -inquiriu o meu sócio, a medo.

- Sim - confirmou o homem. E, escolhendo cuidadosamente as palavras, como se as tivesse escritas na palma da mão, acrescentou: - De facto, é esse o caso. Todavia, não estou habilitado a fornecer-lhe mais informações. É uma competência que excede as minhas atribuições.

- Vou telefonar à pessoa responsável por essa página. Calculo que às três horas já ele deverá ter chegado - referiu o meu sócio.

- Excelente - aprovou o homem, deitando uma olhadela ao relógio de pulso. - Sendo assim, enviarei um carro por volta das quatro. Para finalizar, uma coisa da máxima importância: não deve falar desta nossa conversa a quem quer que seja. Estamos entendidos?

Posto isto, os dois interlocutores despediram-se bizznesslike, que é como quem diz, como dois perfeitos homens de negócios.

 

- E pronto, é esta a história - resumiu o meu sócio.

- Diabos me levem se percebo alguma coisa! - exclamei, com um cigarro por acender ao canto da boca. - Primeiro, desconheço quem possa ser o tipo do cartão-de-visita. Segundo, não imagino por que razão se mostra tão incomodado com a fotografia em que aparecem meia dúzia de carneiros. E, por último, não sei a que propósito vem essa história de ele tencionar pôr fim a uma publicação nossa.

- O tipo do cartão é um tubarão de extrema-direita. Se bem que praticamente um desconhecido para a grande maioria das pessoas, uma vez que o seu nome e a sua pessoa estiveram sempre na sombra, no nosso meio toda a gente o conhece de ginjeira. Palpita-me que tu deves ser um dos poucos que não sabem quem ele é.

-Tenho andado longe das luzes da ribalta, admito - desculpei-me.

- Dizer que ele é de extrema-direita é dizer pouco, visto que não pertence à extrema-direita tradicional. Se quiseres, nem sequer é de extrema-direita.

- Agora é que me deixaste completamente baralhado. Cada vez compreendo menos.

- Falando depressa e bem, a verdade é que ninguém sabe o que ele pensa nem quais são as suas ideias, visto que nunca publicou uma linha nem apareceu a discursar em público. Não dá entrevistas e nunca se deixa fotografar. De tal maneira que há até quem ponha em causa a sua existência. Há cinco anos, um jornalista que trabalhava para uma revista mensal conseguiu uma «cacha» com a publicação de uma reportagem que implicava o nosso homem num escândalo de financiamento irregular qualquer, mas a história foi abafada e nunca veio a lume.

-Vejo que andas muito bem informado...

- O repórter em questão era amigo de um amigo. Peguei no isqueiro e acendi o cigarro.

- E o esse repórter, que é feito dele?

- Foi transferido para o departamento comercial, onde passa o dia a arquivar facturas. O mundo dos meios de comunicação social é muito mais pequeno do que possas pensar, além de que o caso dele serviu de exemplo e, ao mesmo tempo, de advertência. À imagem e semelhança das caveiras que se vêem à entrada de algumas tribos africanas.

- Estou a ver a ideia - disse eu.

- Contudo, sabe-se alguma coisa acerca do passado do nosso homem. Nasceu em 1913 na região de Hokkaido e, ao terminar a escola básica, veio para Tóquio, onde fez de tudo um pouco antes de se filiar na extrema-direita. Creio que esteve preso, pelo menos uma vez. Ao sair da prisão, foi enviado para a Manchúria, e ali caiu nas boas graças dos oficiais superiores do exército destacado em Kwantung, na Manchúria,(6) com os quais participou numa conspiração. Não se sabe muito acerca dos pormenores dessa conjura, mas o certo é que foi a partir dessa altura que se converteu numa figura misteriosa. Correram rumores que o davam como estando metido no tráfico de droga, coisa que pode muito bem ter acontecido. Ele acompanhou o exército pelo território continental da China, saqueando a torto e a direito, até que, duas semanas antes de as tropas soviéticas darem início à ofensiva final, embarcou de volta à pátria a bordo de um contratorpedeiro da marinha japonesa, trazendo na bagagem uma fortuna incalculável em ouro e metais preciosos.

 

*6. No início dos anos 30, um Japão fortemente militarista invadiu a Manchúria, esmagando as forças nacionalistas chinesas; até 1945, as forças japonesas combateram os exércitos nacionalistas e comunistas, reprimindo brutalmente toda a resistência. Este capítulo encontra-se bem documentado num outro romance de Murakami, Crónica do Pássaro de Corda (Casa das Letras). (N. da T.)

 

- É caso para dizer que o nosso homem tem, no mínimo, um sentido de oportunidade prodigioso - atalhei eu.

- Podes crer. Estamos, de facto, diante de um oportunista nato. Ele sabe instintivamente quando passar ao ataque e quando bater em retirada. E, além disso, tem um olho de lince, sabe sempre onde atacar. Até mesmo quando as tropas de ocupação o prenderam como criminoso de guerra de classe A, o julgamento foi suspenso e a sentença não chegou a ser conhecida. Apresentaram-se como justificação razões de saúde, mas o certo é que esse episódio nunca foi devidamente esclarecido. O mais certo é ter negociado a sua liberdade com o exército norte-americano; é bom não esquecer que as atenções de MacArthur estavam já então concentradas no continente chinês.

O meu sócio voltou a tirar a esferográfica da bandeja e pôs-se a brincar com ela.

- Posto isto, quando saiu em liberdade da prisão de Sugamo, dividiu em dois a fortuna que tinha escondido e, com metade desse dinheiro, meteu ao bolso uma facção inteira do partido conservador e, com a outra, tornou-se dono e senhor da indústria publicitária. Isto, repara bem, numa altura em que a publicidade pouco mais era do que andar a distribuir folhetos e propaganda no meio da rua.

- Chama-se a isso um homem de visão. E não houve nenhuma queixa contra ele, por desvio de capitais?

- Brincas? Não te disse que ele estava feito com uma facção do partido conservador?

- Está certo.

- Em todo o caso, graças a esse dinheiro, o nosso homem tinha numa mão o partido conservador e, na outra, o mundo da publicidade, situação essa que se manteve até hoje. Se ele nunca aparece à luz do dia, é porque não precisa disso para nada. Enquanto os principais sectores do mundo publicitário e do poder político vierem comer à sua mão, não há ninguém que o consiga travar. Fazes ideia do que representa controlar a publicidade e a propaganda?

- Não.

- É o mesmo que controlar quase tudo o que se imprime na imprensa escrita e tudo o que é difundido através da televisão e da rádio. Estamos a falar de sectores que não podem viver sem a publicidade. Era o mesmo que um aquário sem água. Basta dizer que noventa e cinco por cento da informação que te entra pelos olhos dentro foi criteriosamente seleccionada antes de ser comprada.

- Só há uma coisa que não há meio de entender - insisti. -Que o tipo seja dono do sector da comunicação social, até aí tudo bem. Agora, o que é que ele ganha em controlar até o boletim informativo de uma companhia de seguros? Não assinámos um contrato directo com eles, sem passar por nenhuma agência de publicidade?

O meu sócio tossiu, antes de beber o restinho do chá de cevada, por essa altura completamente morno.

- Acções - referiu ele. - O capital do nosso homem é basicamente composto de acções. As operações bolsistas, os movimentos de compra por parte dos especuladores, os monopólios perversos, coisas desse género. Os seus amiguinhos da imprensa tratam de recolher toda a informação necessária, e depois cabe-lhe a ele seleccionar o que lhe interessa e ditar a sua escolha. Só uma parte ínfima dessa informação é que transpira depois para a comunicação social e chega ao público. O grosso da informação, o Líder Supremo reserva-o para si. Caso seja necessário, ainda que aparentemente nada transpareça, recorre à ameaça e à chantagem. E quando a chantagem não surte efeito, passa a batata quente e deixa que sejam os seus amigos políticos a mexer os cordelinhos.

- E como muitas empresas têm o seu ponto fraco...

- Todas as empresas têm pelo menos um segredo que não querem ver revelado em plena assembleia geral de accionistas. Daí que quase todas elas acatem as suas recomendações. Resumindo, o Líder Supremo faz assentar o seu poder numa base tripartida de apoio formada por políticos, órgãos de comunicação e mercado de acções. Por isso, estás a ver, acabar com um boletim informativo e, mais, enviar-nos para o desemprego, é mais fácil para ele do que descascar um ovo cozido.

- Humm... - fiz eu. - E, agora, não me queres dizer por que razão um figurão destes se mostra tão interessado pela fotografia de uma paisagem de Hokkaido?

- Boa pergunta, sim senhor - referiu o meu sócio, sem mostrar um entusiasmo por aí além. - Ia agora mesmo perguntar-te isso.

Limitei-me a encolher os ombros.

- Diz-me uma coisa, como é que sabias da história dos carneiros? Quem te disse? Aconteceu alguma coisa nas minhas costas?

- Por obra e graça do destino, um bando de anões desconhecidos deu-me a ler o futuro na bola de cristal.

- Importas-te de falar claro?

- É uma questão de sexto sentido.

- Não me lixes - rematou o meu sócio, com um suspiro. - Seja como for, tenho outras duas informações de última hora. Liguei ao repórter da tal revista mensal de que te falava há bocado. A primeira coisa que me disse foi que o Líder Supremo teve uma espécie de hemorragia cerebral, que o terá deixado sem possibilidade de recuperar, mas é ainda uma notícia que carece de confirmação. A segunda informação diz respeito ao homem de fato preto que aqui esteve. Trata-se do secretário particular do Líder Supremo, o seu braço direito, em quem ele delega toda a gestão operacional da organização. É um japonês de ascendência americana, licenciado por Stanford, que trabalha para ele há doze anos. Uma figura com o seu quê de enigmático, há que reconhecer, ainda que diabolicamente inteligente, disso não restam dúvidas. Foi tudo o que consegui apurar.

- Obrigado - disse eu, com sinceridade.

- Não tens de quê - retorquiu o meu sócio sem olhar sequer na minha direcção.

É preciso ver uma coisa: desde que não estivesse com um copo a mais, o meu sócio era manifestamente mais digno de confiança do que eu. Era mais puro e mais amável, mais coerente nas suas ideias. Mais cedo ou mais tarde, porém, acabaria por se embriagar. Aí estava um pensamento desencorajador: que gente muito melhor do que eu acabaria mal sem que, pela minha parte, pudesse mexer uma palha.

Mal o meu sócio saiu da sala, fui à gaveta da secretária dele buscar a garrafa de uísque e servi-me de um copo.

 

Podemos muito bem, se for esse o nosso desejo, vaguear sem destino pelo vasto mundo do acaso. Que é como quem diz, sem raízes, exactamente da mesma maneira que a semente alada de certas plantas esvoaça ao sabor da brisa primaveril.

E, contudo, não faltará ao mesmo tempo quem negue a existência daquilo a que se convencionou chamar o destino. O que está feito, feito está, o que tem de ser tem muita força e por aí fora. Por outras palavras, quer queiramos quer não, a nossa existência resume-se a uma sucessão de instantes passageiros aprisionados entre o «tudo» que ficou para trás e o «nada» que temos pela frente. Decididamente, neste mundo não há lugar para as coincidências nem para as probabilidades.

Na verdade, porém, não se pode dizer que entre esses dois pontos de vista exista uma grande diferença. O que se passa - como, de resto, em qualquer confronto de opiniões - é o mesmo que sucede com certos pratos culinários: são conhecidos por nomes diferentes mas, na prática, o resultado não varia.

Pronto, acabaram-se as metáforas.

O facto de eu ter utilizado uma fotografia de carneiros para aquele anúncio publicitário, isto olhando a questão do ponto de vista a), é fruto do acaso, mas se encararmos a coisa do ponto de vista b), deixa de ser uma coincidência.

Eu andava à procura de uma fotografia adequada para ilustrar a página daquela revista. Por acaso, encontrei uma foto de carneiros na minha secretária. E servi-me dela. É o que se chama uma inocente coincidência num mundo pacífico.

A fotografia dos carneiros estava no fundo da gaveta à espera que eu desse por ela. Mesmo que não a tivesse utilizado naquela revista, mais dia, menos dia teria feito uso dela para outro trabalho qualquer.

Agora que penso nisso, parece-me bem que esta fórmula é, sem dúvida, aplicável a todas as fases da vida por que passei até à data. Com algum treino, e apenas com um movimento da minha mão direita, talvez eu seja capaz de pôr em marcha um programa pessoal de vida ao estilo a), e movendo a esquerda, a mesma coisa, mas desta vez do tipo b). Não que faça grande diferença. Como os buracos no meio dos donuts. Considerar o buraco de um donut como uma presença ou como uma ausência é uma questão puramente metafísica. Por mais voltas que se lhe dê, isso não irá alterar em nada o gosto do donut.

Sentado no sofá, a beber o meu uísque, deixei-me ficar a contemplar os ponteiros do relógio eléctrico, sentindo-me leve como uma semente de dente-de-leão levada pelo vento ao sabor da agradável brisa do ar condicionado. Enquanto olhasse fixamente para o relógio eléctrico, teria a certeza de que pelo menos o mundo continuaria a girar. Esse mundo pode não ter nada de especial, e, no entanto, move-se. Mais: na medida em que tivesse a percepção de que o mundo se movia, também eu existia. Se bem que a minha existência não fosse nada por aí além, a verdade é que eu existia. Não deixava de ser estranho que uma pessoa só pudesse comprovar a sua própria existência com a ajuda dos ponteiros de um relógio eléctrico. Devia por certo haver meios mais adequados para ter a certeza. Por mais que puxasse pelos neurónios, o certo é que não me veio nenhum à cabeça.

Desisti e bebi outro trago de uísque. Uma sensação de calor queimou-me a garganta, escorregou-me pelas paredes do esófago e atingiu-me em cheio no fundo do estômago. Lá fora, estendia-se um céu azul de Verão, salpicado de nuvens brancas. Um bonito céu, há que reconhecer, ainda que tivesse qualquer coisa de deslavado, como acontece com a roupa usada muitas vezes. Um céu a lembrar um artigo em segunda mão, lustrado momentos antes de ser vendido com um pano embebido em álcool. Brindei àquele céu de Verão que em tempos devia ter sido novo e límpido. Não era mau de todo, o uís-que escocês. E, vendo bem, o céu também nada tinha de mal, uma vez a pessoa acostumada a ele. Um grande avião a jacto cruzou lentamente os céus da esquerda para a direita. Parecia um insecto revestido por uma carapaça dura e reluzente.

Acabara de emborcar o meu segundo uísque quando fui assaltado por uma dúvida: que diabo estaria eu a fazer ali?

E em que diabo é que estaria a pensar?

Carneiros.

Levantei-me do sofá, fui buscar a página do anúncio à secretária do meu sócio e voltei a sentar-me. Concentrei-me durante vinte segundos naquela fotografia e dei voltas à cabeça para descobrir o seu significado, enquanto chupava o pedaço de gelo a saber a uísque.

A fotografia mostrava um rebanho de carneiros no meio de um prado. Numa das suas extremidades, a pradaria era delimitada por um bosque de bétulas-brancas. Eram umas árvores gigantes, típicas da região de Hokkaido, e não dessa raquítica variedade de bétulas que qualquer pessoa podia encontrar no seu bairro, à falta de melhor, plantadas na entrada do consultório do dentista. Naqueles troncos impressionantes de robustez, quatro ursos poderiam ter afiado as suas garras ao mesmo tempo. Dada a espessura da folhagem, a foto devia ter sido tirada na Primavera. No cume das montanhas que se viam ao fundo, ainda havia neve, o mesmo acontecendo em certas vertentes, a meio da encosta. O mês deveria ser Abril ou Maio. Época do ano em que o solo tende a ficar empapado com a água do degelo. O céu era azul (que é como quem diz, provavelmente seria azul, visto que a foto era a preto e branco, mas, tanto quanto sabia, também podia ser rosado), com vaporosas nuvens brancas ondulando sobre a crista das montanhas. Analisando as coisas friamente, por mais que me deixasse transportar pela imaginação, aquele rebanho de carneiros só podia ser um rebanho de carneiros, o bosque de bétulas mais não era do que um vulgar bosque de bétulas, as nuvens brancas eram meras nuvens brancas. Sem tirar nem pôr. Ponto final.

Atirei a fotografia para cima da mesa, fumei um cigarro e espreguicei-me. Acto contínuo, voltei a pegar na foto e pus-me a contar os carneiros. O prado era tão vasto que os carneiros se encontravam espalhados, como excursionistas na hora de fazer um piquenique na relva. Por isso, quanto mais distante era a perspectiva, mais difícil se tornava dizer se aqueles pontinhos brancos ao longe eram carneiros ou não passavam disso mesmo, de simples pontos brancos. Quanto mais atentamente eu olhava, mais difícil era ter a certeza de que aqueles pontos brancos fossem, de facto, pontos brancos, ou se por acaso não se trataria de uma ilusão de óptica, isto por aí fora até acabar por perguntar a mim mesmo se estaria com alucinações, já sem ter a certeza de nada. Em desespero de causa, muni-me de uma esferográfica e desatei a marcar apenas aquilo que me pareciam carneiros. Ao todo, contei trinta e dois. Trinta e dois carneiros. Uma fotografia perfeitamente banal. Sem nada a assinalar a nível da composição e sem traço de originalidade.

E, no entanto, havia ali qualquer coisa que não cheirava bem. Cheirava a esturro. Ficara com essa impressão logo na primeira vez que tinha visto a foto e, durante os últimos três meses, aquele pressentimento nunca me abandonara.

Deitei-me a todo o comprimento do sofá e, mantendo a foto no ar por cima da minha cabeça, refiz a contagem. Trinta e três. Trinta e três?

Fechei os olhos e abanei a cabeça, para ver se aclarava as ideias. Sempre recostado no sofá, entreguei-me outra vez à tarefa de contar os carneiros. Pelo meio deixei-me cair num sono profundo, o típico-sono-com-sabor-a-dois-uísques-ao-começo-da-tarde. A última coisa de que me lembro antes de adormecer foi de ter pensado fugazmente nas orelhas da minha miúda.

 

Às quatro em ponto, conforme combinado, apareceu o carro que me vinha buscar. Pontual como um relógio de cuco. A nossa secretária viu-se obrigada a sacudir-me para me despertar do profundo torpor em que me encontrava. Fui à casa de banho e passei a cara por água a correr, mas nem isso me ajudou a combater a sonolência. No elevador, antes de chegar lá abaixo, bocejei por três vezes. Bocejava como quem estivesse a lançar alguma acusação na cara de alguém, mas, neste caso, tanto o réu como o defensor eram a mesma pessoa: eu próprio.

Diante da entrada do prédio, flutuava uma limusina do tamanho de um submarino. Para imaginar a dimensão do veículo basta dizer que uma família inteira - apertadinha - poderia viver debaixo da capota. Os vidros eram de um azul-escuro e opacos, para evitar que alguém pudesse espreitar lá para dentro. A carroçaria, pintada de uma vistosa cor negra, estava impecável, sem uma mancha, dos pára-choques aos tampões das rodas.

Ao lado do veículo perfilava-se o condutor, um homem dos seus cinquenta anos impecavelmente vestido com uma imaculada camisa branca e gravata cor de laranja. Um motorista a sério. Assim que me viu aproximar, abriu a porta e, depois de ter verificado se eu estava bem instalado, tornou a fechá-la. Tudo isto sem dizer uma palavra. Acto contínuo, sentou-se ao volante e fechou a porta do seu lado. Todos estes gestos executados sem mais barulho do que um jogador de cartas faria ao utilizar um baralho novinho em folha. Em comparação com o meu Volkswagen «Carocha» comprado em segunda mão a um amigo há coisa de quinze anos, era caso para dizer que aquele silêncio me fazia sentir como se estivesse no fundo de um lago com tampões nos ouvidos.

A decoração interior também não ficava atrás. É evidente que, como deve acontecer na maioria dos automóveis de luxo, os acessórios não eram do mais fino gosto, mas nem mesmo assim o conjunto deixava de ser impressionante. No meio do amplo banco traseiro havia um telefone digital embutido e, mesmo ao lado, um isqueiro prateado a condizer com o cinzeiro e a cigarreira. As costas do assento do condutor estavam equipadas com uma mesinha desdobrável, permitindo aos passageiros escrevinhar meia dúzia de linhas ou tomar uma refeição ligeira. O ar condicionado fluía suavemente e com naturalidade, e o tapete aos pés era felpudo e macio até dizer chega.

Quando me dei conta, o carro já se tinha posto em movimento. Invadiu-me a sensação de vogar dentro de uma banheira metálica à deriva num mar de mercúrio. Tentei imaginar quanto poderia ter custado aquele brinquedo (calcular o valor daquela viatura), mas desisti logo. Tudo aquilo transcendia os limites da minha imaginação.

- O senhor deseja que ponha um pouco de música? - perguntou o motorista.

- Algo que ajude a descontrair, de preferência - respondi.

- Às suas ordens.

O motorista meteu a mão por baixo do assento, escolheu uma cassete e premiu a tecla correspondente do painel de instrumentos. Através das colunas engenhosamente dissimuladas, fluiu um solo de violoncelo. Tanto a execução como a acústica eram de uma qualidade irrepreensível.

- Faz parte das suas obrigações ir buscar as pessoas neste carro? - atrevi-me a perguntar.

- Exacto - respondeu o motorista cautelosamente. - Nos últimos tempos, tem sido esse o meu trabalho.

- Ah sim? - comentei eu.

- De início esta viatura estava exclusivamente reservada para uso do Líder Supremo - continuou o motorista depois de uma pausa, mostrando-se agora mais extrovertido. - Contudo, atendendo ao seu estado de saúde, mais delicado desde a passada Primavera, já não sai de casa. E seria uma pena deixar um carro destes metido na garagem. E depois, como o senhor decerto saberá, uma viatura tem de ser posta a funcionar regularmente, senão o seu rendimento diminui.

- Claro - disse eu. Pelos vistos, a doença do Líder Supremo não era nenhum segredo de Estado. Tirei um cigarro do estojo, examinei-o atentamente, aproximando-o do nariz. Era um cigarro sem marca nem filtro, com um aroma que me pareceu o do tabaco russo. Por momentos fiquei hesitante, sem saber se o havia de fumar ou se o guardava no bolso, mas às tantas lá me decidi a devolvê-lo à procedência. Tanto o cinzeiro como a cigarreira tinham, gravado ao meio na parte da frente, um brasão com um elaborado desenho. O emblema representava um carneiro.

Um carneiro?

Abanei a cabeça e fechei os olhos. Decididamente, por mais voltas que desse, a coisa ultrapassava-me. Queria-me parecer que, desde aquela tarde em que vira pela primeira vez a fotografia das orelhas, muitas coisas pareciam escapar ao meu controlo.

- Quanto tempo falta para chegarmos? - perguntei.

- Entre trinta a quarenta minutos. Depende do congestionamento do trânsito.

- Nesse caso, posso pedir-lhe para baixar um bocadinho o ar condicionado? Gostaria de continuar a minha sesta.

- Muito bem.

O motorista regulou o ar condicionado e carregou num botão. Um vidro grosso começou de imediato a subir, separando o compartimento dos passageiros do assento do condutor. Tirando os acordes de Bach, no meu habitáculo reinava um silêncio quase total. Porém, ali chegado, já nada me espantava. Encostei a cabeça no assento e deixei-me dormir.

Sonhei com uma vaca leiteira. Um animal simpático e dócil entre os da sua espécie, do género que devia ter passado o seu mau bocado nesta vida. Cruzei-me com ela ao atravessar uma grande ponte. Estávamos na Primavera, numa altura em que começava a cair a tarde. A vaca carregava uma velha ventoinha eléctrica numa das patas dianteiras, e propôs-se vender-ma por bom preço. Ao que eu respondi: «Não tenho dinheiro.» E, de facto, não era mentira nenhuma. «Se quiseres, posso trocar a ventoinha por um alicate», propôs-me então a vaca. Até que não era mau negócio. Dirigi-me para casa na companhia da vaca e virei tudo do avesso à procura do dito alicate, mas não houve maneira de dar com ele. «Que coisa mais estranha», comentei. «Ainda ontem estava aqui.» Quando me preparava para subir a uma cadeira a fim de ver melhor no cimo de um armário, o motorista acordou-me com uma pancadinha no ombro.

- Já chegámos - limitou-se ele a dizer.

A porta do carro abriu-se e o sol brilhante do entardecer bateu-me em cheio no rosto. Milhares de cigarras cantavam bem alto, em conjunto, como se estivessem a dar corda ao mecanismo de outros tantos relógios. Cheirava lindamente a terra.

Desci da limusina e, endireitando as costas, respirei fundo. A seguir, rezei para que aquele sonho não escondesse nenhum significado simbólico.

 

Há sonhos simbólicos e existe uma realidade que esses sonhos simbolizam. Posto de outro modo: existem realidades simbólicas e sonhos que simbolizam tais realidades. O símbolo é aquilo a que poderíamos chamar o presidente honorário do universo dos vermes. No seio desse universo, não há nada de estranho no facto de uma vaca leiteira andar à procura de um alicate. E o mais provável é a dita vaca acabar por deitar a mão ao dito alicate. Pela parte que me toca, não sou tido nem achado no assunto.

O certo, porém, é que no caso de a vaca pretender servir-se da minha pessoa para obter o alicate, a situação muda radicalmente de figura. O que me obriga a mergulhar de cabeça num mundo regido por uma outra lógica, que nada tem que ver com a que rege o mundo onde me movimento. E uma vez no interior desse universo regido por uma lógica tão diferente, o grande problema é que todas as conversas se tornam incongruentes e as histórias não têm fim. Pergunto à vaca: «Para que queres um alicate?» E ela responde: «Porque tenho uma fome devoradora.» A seguir eu pergunto: «Se é fome que tens, por que precisas de um alicate?» Ao que a vaca responde: «Para abanar os ramos do pessegueiro.» Pergunto então eu: «Porquê um pessegueiro?» Responde ela: «Acaso não te dei a minha ventoinha?» E nunca mais sairíamos dali. Mais cedo ou mais tarde, eu começaria a detestar a vaca, e a vaca começaria a achar-me uma criatura insuportável. É assim que as coisas se passam, no universo dos vermes. A única maneira de escapar a isso é ter um novo sonho simbólico.

O sítio para onde aquele enorme veículo de tracção às quatro rodas me transportou, naquela tarde de Setembro do ano de 1978, encontrava-se precisamente no coração do universo dos vermes. Por outras palavras, a minha prece não tinha sido ouvida.

Olhei à minha volta e fiquei sem fôlego. Ali estava um momento de cortar a respiração.

A limusina estava parada no cimo de uma pequena colina. Para trás ficara um caminho de cascalho que nos tinha por certo conduzido até ali, todo ele com tantas curvas, e tão forçadas, que só poderia ter sido propositadamente traçado, conduzindo a um portão que se via à distância. Caminhando devagarinho, o passeio até lá deveria demorar uns bons quinze minutos. De ambos os lados do caminho alinhavam-se a intervalos regulares, plantados como lapiseiras num porta-lápis, ciprestes e lâmpadas a vapor de mercúrio. Agarradas aos troncos dos ciprestes, uma quantidade infinita de cigarras lançavam ao vento o seu lamento como se o mundo estivesse para acabar.

Ao longo de cada fila de ciprestes estendia-se um relvado cuidadosamente aparado que acompanhava o declive do terreno, polvilhado ao deus-dará de hortênsias e azáleas-do-japão, entre uma profusão de plantas aos meus olhos desconhecidas. À imagem e semelhança de uma duna caprichosa ao sabor do vento, um bando de estorninhos movimentava-se por sobre a relva da esquerda para a direita, em voo ondulante.

Pelos dois lados da colina desciam estreitas escadas de pedra. A da direita conduzia a um jardim japonês, com o seu lago e as suas lanternas de pedra; à esquerda, ia ter a um pequeno campo de golfe, ao lado do qual se erguia um mirante da cor de um gelado de rum com passas. Além disso, havia ainda uma estátua de pedra que representava uma divindade qualquer da mitologia grega. Mais à frente, via-se uma garagem enorme onde um segundo motorista lavava uma outra limusina diferente com a ajuda de uma mangueira. Aquela distância não consegui distinguir a marca, mas de um velho Volkswagen em segunda mão é que de certeza não se tratava.

De braços cruzados, voltei a percorrer o espaço com o olhar. Se bem que não houvesse nada a apontar ao jardim, a verdade é que começava a ficar com dores de cabeça.

- E onde é que fica a caixa do correio? - perguntei eu, com uma certa impertinência. Tinha curiosidade de saber como é que fariam para ir todas as manhãs e todas as tardes buscar o jornal e a correspondência.

- A caixa de correio fica no portão de serviço - respondeu o motorista.

Era a resposta óbvia. Claro que tinha de existir um portão nas traseiras da casa.

Uma vez devidamente inspeccionado o jardim, virei-me e encontrei-me de frente para um edifício terrivelmente imponente.

Tinha aspecto - como é que hei-de explicar? - de um imenso casarão dolorosamente isolado. Passo a explicar melhor. Vamos imaginar um conceito. Uma ideia qualquer. Escusado será dizer que, a par da ideia primeva, haverá sempre espaço para a excepção que nos permite afastar dessa norma. Com o passar do tempo, porém, essa excepção tende a espalhar-se como uma mancha de azeite, e acaba por cristalizar numa ideia diferente. Que, por sua vez, dá origem a outras excepções... Em resumo, dir-se-ia que aquela construção funcionava como o paradigma desse processo. Visto de outro ângulo, assemelhava-se a uma forma de vida arcaica que tivesse evoluído às cegas, segundo os caprichos de um acaso inexplicável.

Na sua primeira encarnação, deve ter começado por ser uma construção ao estilo ocidental do século XIX, seguindo as linhas que dominavam no período Meiji. Um pórtico clássico, de pé-direito alto, permitia a entrada numa mansão de dois andares pintada de creme. As janelas, altas e de dupla altura, genuinamente clássica, tinham sido pintadas por mais de uma vez. O telhado era, como seria de esperar, revestido de telhas de cobre, e as calhas pareciam sólidas como aquedutos romanos. No conjunto, o edifício não estava nada mal, há que reconhecê-lo. Era uma bela casa, que preservava o espírito dos velhos tempos e emanava distinção e elegância.

Acontece que, certo dia, um arquitecto qualquer, saído não se sabe de onde, ter-se-á lembrado de lhe pespegar, à direita do corpo principal do edifício, uma nova ala de estilo idêntico e da mesma cor. A intenção era boa, mas o que é um facto é que os dois edifícios não combinavam entre si e o efeito só podia ser intragável. Era o mesmo que servir na mesma travessa de prata um sorvete acompanhado de brócolos.

Durante várias décadas, o edifício apresentara-se assim na sua infeliz combinação, até que alguém se lembrara de lhe acrescentar uma espécie de torre de pedra, sobre cujo torreão foi instalado um pára-raios com efeitos decorativos. Erro crasso. Teria sido preferível que um raio se abatesse sobre o edifício e o reduzisse a cinzas.

Do torreão partia agora um majestoso passadiço coberto que comunicava directamente com a nova ala. A dita ala, mais moderna, funcionava como uma espécie de entidade temática, ainda que denotando um esforço no sentido de harmonizar diversas tendências. O resultado poderia ser classificado como «antinomia da razão pura»(7). Possuía uma aura a um tempo patética e tocante, um pouco como aquele burro que, colocado entre dois baldes igualmente cheios de feno, acabou por morrer de fome por não saber de qual se alimentar primeiro.

À esquerda do corpo principal, e em manifesto contraste com os múltiplos elementos já apresentados, estendia-se a toda a largura uma construção térrea, esta em genuíno estilo japonês. Cercados de vedações e bordejados de pinheiros bem podados, os seus elegantes corredores com pavimento de madeira apresentavam um traçado linear, como pistas de bolingue.

Valia a pena, a vista de toda aquela série de edifícios, agregados no cimo da colina de uma maneira que fazia lembrar aqueles programas de três películas mais filme-anúncio que ofereciam os cinemas de bairro. Imaginando que a coisa fosse consequência de um plano desenvolvido durante anos e anos com o propósito de acabar de vez com qualquer tipo de embriaguez ou de espantar o sono da pessoa apostada na sua construção, então é caso para dizer que tal objectivo alcançara um êxito absoluto. Escusado será dizer que não era o caso. Um espectáculo tão monstruoso como aquele que eu tinha diante dos meus olhos só poderia ter resultado do encontro fortuito entre vários talentos duvidosos de segunda linha, nascidos em épocas diferentes e apoiados por pessoas com uma pipa de massa.

Devo ter ficado um bom bocado a olhar embasbacado para aquela mansão e o respectivo jardim. Quando me dei conta,

 

*7. Kant fala da antinomia da razão pura que consiste em «usar ideias transcendentes com o propósito de obter conhecimentos relativos ao mundo», dividindo-as em antinomias matemáticas e antinomias dinâmicas. (N. da T.)

 

tinha ao meu lado o motorista, a olhar para o relógio. O seu gesto tinha qualquer coisa de mecânico. Dir-se-ia que ele estava habituado a que todo e qualquer visitante ficasse assim diante daquele panorama, estático e dando mostras de idêntico espanto.

- Observe o espectáculo à sua vontade, senhor - convidou ele. -Ainda dispomos de cerca de oito minutos.

- Tudo isto é muito grande, não é? - comentei, à falta de uma tirada mais brilhante.

- Três mil oitocentos e oitenta e sete metros quadrados - precisou o motorista.

- Não me admirava nada que houvesse algures um vulcão activo - abalancei-me a dizer, em tom de brincadeira. A piada, contudo, caiu em terreno árido. Pelos vistos, naquele lugar ninguém estava para brincadeiras.

E foi assim que passaram os oito minutos da ordem.

Ao entrar em casa, fui conduzido a uma espaçosa sala, decorada ao estilo ocidental, que ficava logo à direita da entrada. O tecto, exageradamente alto, estava decorado com um friso de gesso com relevos. Havia um sofá e uma mesa, ambos antigos, de formas sóbrias e agradáveis; e na parede estava pendurada uma natureza-morta, obra de um realismo extremo. Maçãs, um vaso de flores e uma faca de papel. Talvez a ideia fosse partir as maçãs dando-lhe com o vaso, e depois descascá-las com a ajuda da faca. As sementes e o coração poderiam ser guardados dentro do vaso. Da janela pendia um grosso cortinado sobreposto a uma cortina de renda, ambos apanhados de lado com cordões a condizer. Por entre as cortinas, obtinha-se uma das melhores vistas do jardim. O chão, revestido de carvalho japonês, exibia um bonito brilho. Apesar de um tanto ou quanto deslavado, o tapete que cobria metade do pavimento conservava o pêlo intacto.

Não estava nada mal, aquela sala. Mesmo nada mal, há que reconhecê-lo.

Uma empregada já de uma certa idade, vestida com quimono, entrou na divisão, deixou ficar em cima da mesa um copo com sumo de uva e saiu sem pronunciar uma palavra. A porta fechou-se nas suas costas com um barulho metálico. Em seguida, voltou a ficar tudo em silêncio.

Sobre a mesa havia um isqueiro, uma cigarreira e um cinzeiro: eram de prata, tal como o conjunto que eu vira na limusina. E tinham também o mesmo brasão do carneiro. Tirei do bolso um dos meus cigarros com filtro, acendi-o com o isqueiro de prata e lancei uma baforada de fumo, apontando ao tecto distante. A seguir, bebi o sumo de uva.

Dez minutos mais tarde, a porta tornou a abrir-se e entrou um homem alto, vestido com um fato preto. Não me cumprimentou, nem tão-pouco pediu desculpa por me ter feito esperar. Em silêncio, sentou-se à minha frente e, com a cabeça ligeiramente inclinada, observou-me como a uma mercadoria, parecendo querer ficar com uma ideia da minha personalidade. Tal como o meu sócio me tinha dito, aquele homem tinha um rosto desprovido de expressão.

O tempo continuava a passar.

 

Desde há séculos que não nos encontramos. Há quanto tempo, tens ideia? Concretamente, em que ano nos encontrámos pela última vez, lembras-te por acaso?

Aos poucos, tenho vindo a perder a noção do tempo. É como se tivesse uma ave negra a esvoaçar e a bater as amplas asas por cima da minha cabeça, impedindo-me de contar mais de três coisas. Tens de me dar um desconto e ser tu a fazer os cálculos.

Bem sei que fui eu a abandonar a cidade sem dizer nada a ninguém, causando-te assim, imagino eu, uma razoável dose de preocupações. Se calhar, sentiste-te ofendido por eu me ter vindo embora sem avisar. Acredita, não foram poucas as vezes que pensei em pôr tudo em pratos limpos contigo, mas confesso que nunca fui capaz. Escrevi-te uma data de cartas, que rasgava acto contínuo. Bem sei que o que vou dizer a seguir não passa de um lugar-comum, mas torna-se impossível explicar aos outros o que não sou capaz de explicar nem a mim próprio.

Palpita-me que é isto.

Escrever cartas nunca foi a minha especialidade. Sai-me sempre tudo ao contrário e confundo o significado das palavras. Como se isso não bastasse, pelo facto de escrever uma carta deixa-me ainda mais confuso. Isto sem esquecer que a minha falta de sentido de humor leva-me a ficar descontente comigo mesmo.

Regra geral, as pessoas que têm jeito para escrever cartas são precisamente aquelas que têm necessidade de o fazer. Pela simples razão de que essas pessoas conseguem viver plenamente a sua vida sem saírem do seu próprio contexto. Isto na minha modesta opinião. Pode muito bem acontecer que não seja possível uma pessoa viver fechada dentro de um sistema de referências.

Nesta altura faz um frio terrível e estou com as mãos dormentes. Tenho a sensação de que as mãos não me pertencem. Com o cérebro, passa-se a mesma coisa, também parece não ser o meu. Está a nevar. Os flocos de neve parecem a matéria cinzenta do cérebro de outra pessoa qualquer. (Mas que merda de frase sem sentido é esta?!)

Tirando o frio, estou vivo e respiro saúde. E tu? Não te vou dar a minha morada, mas, peço-te, não me leves a mal. Não é que seja minha intenção esconder-te alguma coisa, vê se me entendes. O que acontece é que se trata de uma questão crucial para mim. Caso te desse a minha direcção, acredito que nesse mesmo instante algo dentro de mim mudaria irreversivelmente. Ainda que queira, não consigo explicar melhor.

Estou em crer que tu sempre compreendeste muito bem todas as coisas que eu não consigo verbalizar correctamente. O único problema é que, quanto mais e melhor tu me compreendes, menos capaz sou de me explicar. Devo ter nascido com alguma deficiência congénita.

É claro que toda a gente tem os seus defeitos.

O meu maior defeito é que, com o passar dos anos, aumentam as imperfeições. Como se estivesse a criar uma galinha no interior do meu ser. A galinha põe ovos e deles nascem galinhas, que, por sua vez, põem mais ovos. Pode o ser humano, pergunto eu, a braços com o meu historial de defeitos às costas, viver assim? Infelizmente, a resposta é «sim». Aí é que está o busílis, precisamente.

Isto para dizer que não te vou dizer onde moro. Podes crer que é o melhor. Tanto para mim como para ti.

O melhor que nos poderia ter acontecido, a nós os dois, era termos nascido na Rússia do século XIX. Eu teria sido o príncipe Fulano de tal e tu, o conde Beltrano não sei de quê. Iríamos juntos à caça, bater-nos-íamos em duelo, seríamos rivais no amor, discutiríamos as nossas questões e penas metafísicas, contemplaríamos o pôr do Sol, à beira do Mar Negro, enquanto brindávamos com cerveja. No final da vida, ver-nos-íamos implicados numa qualquer revolução também não sei de quê e deportados ambos para terras da Sibéria, onde terminaríamos os nossos dias. Brilhante, não te parece? Até eu teria sido capaz de escrever romances muito melhores, se tivesse nascido no século XIX. E mesmo que nunca tivesse chegado a ser um Dostoiévski, por certo ter-me-ia tornado um conhecido romancista de segunda linha, desses bem populares. E tu, qual seria o teu papel? Se calhar terias passado a vida sendo pura e simplesmente o conde Beltrano não sei de quê. Não tem nada de mal, uma pessoa ser apenas o conde Beltrano de tal. É mesmo ao estilo do século XIX.

Bom, chega de passado. Regressemos ao século XX.

Deixa-me falar de cidades. Não da cidade em que nascemos, mas sim de outras cidades, de cidades desconhecidas.

Existem neste mundo cidades muito diferentes. Cada uma com as suas particularidades, muitas delas sem sentido ou chocantes, e é precisamente isso que me atrai. Daí que tenha procurado visitar todas as cidades que pude nestes últimos anos.

Sempre que chego a uma cidade, saio do comboio e abandono a estação; costuma haver sempre uma praça com um quiosque de informações onde é possível encontrar um mapa da cidade e uma zona comercial. É assim em toda a parte. Até os cães parecem os mesmos. A primeira coisa que faço é dar uma volta pela cidade, após o que entro na primeira agência imobiliária em busca de alojamento barato. Sendo um forasteiro, é evidente que nas cidadezinhas tendem a olhar para mim a princípio com uma certa desconfiança, mas tu, que me conheces, sabes bem que, se me esforçar, consigo mostrar-me uma pessoa francamente sociável, e quaisquer quinze minutos bastam para me tornar amigo de quem se cruze no meu caminho. Dito e feito. E é assim que arranjo sempre poiso onde ficar e todas as informações e mais alguma sobre a localidade onde me encontro.

A etapa seguinte consiste em arranjar emprego. Também aqui a coisa passa por chegar a bom entendimento com toda a gente. Acredito que isto seja difícil a uma pessoa como tu (e, acredita, a mim também já me aconteceu mais do que uma vez), dado que ninguém está a pensar em permanecer ali por mais de quatro meses, mas qual é o problema? A verdade é que nada nos impede de estar de bem com o mundo, pelo contrário. Antes de mais, vou à procura do bar ou da cafetaria onde se reúne a malta jovem (existe um em todas as cidades, é assim uma espécie de «umbigo» da cidade) e torno-me cliente habitual da casa. É aí que se fazem conhecimentos e amizades que nos podem mais tarde abrir as portas do mercado de trabalho. Escusado dizer que estás à vontade para inventar o nome e a história da tua vida como bem entenderes. Nem tu fazes ideia da quantidade de nomes e de identidades que até à data fui obrigado a engendrar. A situação é de tal ordem que ás vezes já nem sei de que terra sou nem qual é a minha verdadeira identidade.

Em matéria de empregos, já fiz de tudo um pouco. Trabalhos chatos, na sua grande maioria, mas ainda assim confesso que tenho prazer em trabalhar. O mais frequente tem sido em postos de gasolina. A seguir, vem o de empregado de mesa. já estive atrás do balcão em livrarias, e cheguei a trabalhar numa emissora de rádio. Já trabalhei à jorna. E posso afiançar-te que cheguei mesmo a ter uma certa fama, isto na qualidade de vendedor de cosméticos. Ah, e também fui para a cama com uma série de raparigas. Não deixa de ser divertido, essa história de um gajo dormir com uma miúda, sempre com um outro nome e uma história diferente.

Com mais ou menos variações, a cena repete-se.

Estou agora com vinte e nove anos; faço trinta dentro de nove meses.

Ainda não sei bem se estou talhado para esta vida. Da mesma forma que não sei se a chamada «alma de nómada» é um fenómeno para durar toda a vida. Como alguém escreveu um dia, para levar uma vida de nómada por excelência são precisas três coisas - um temperamento religioso, um temperamento artístico, ou então um temperamento espiritual. Quer dizer, sem um desses três temperamentos, uma pessoa não chegará a ser um vagabundo na verdadeira acepção da palavra. E eu, sinceramente, não me revejo em nenhum deles. Quando muito, a ter de escolher... Não, deixá-lo...

Também pode acontecer que eu tenha aberto uma porta que não devia, e já não esteja em condições de recuar. A ser esse o caso, só me resta seguir em frente. Não vou passar a vida a chorar sobre leite derramado.

E, pronto, é esta a história.

Tal como eu disse no início (disse, não disse?), quando penso em ti sinto-me um bocadinho envergonhado. Talvez por saber que tu guardas de mim uma boa recordação, dos tempos em que eu era uma pessoa relativamente normal.

P.S. - Junto o romance da minha lavra. Já não significa nada para mim, por isso faz o que quiseres com ele. Envio a encomenda por correio expresso para chegar às tuas mãos antes do dia 24 de Dezembro. Espero que a recebas a tempo.

Feliz aniversário, em todo o caso!

E, como não podia deixar de ser, Bom Natal!

 

Fui dar com a carta do Rato toda amarfanhada, enfiada na minha caixa do correio do meu apartamento, num dos últimos dias do ano, concretamente a 29 de Dezembro. Junto a ela havia dois avisos de reexpedição, uma vez que a encomenda tinha sido enviada para a minha antiga morada. Nada havia a fazer, visto que não tivera oportunidade de lhe dar a conhecer as minhas novas coordenadas.

        Quatro páginas em papel verde-claro, meio acastanhado, escritas de cima a baixo numa letra apertada. Li a carta três vezes antes de pegar no sobrescrito para verificar o carimbo meio apagado dos correios. Era de uma cidade de que eu nunca ouvira falar. Fui à estante buscar o atlas e tratei de procurar o tal sítio.

As palavras do Rato chegavam até mim oriundas de uma pequena cidade no extremo norte da ilha de Honshu. Contrariando as minhas expectativas, a cidade pertencia à prefeitura de Aomori. De acordo com o meu guia dos caminhos-de-ferro, ficava a uma hora de viagem da cidade de Aomori, e paravam ali diariamente cinco comboios. Dois da parte da manhã, um ao meio-dia, e dois à tarde.

Acontece que eu já tinha estado em Aomori precisamente no mês de Dezembro, e por mais de uma vez. O frio lá é de rachar. Até os semáforos costumam congelar.

Mostrei a carta à minha mulher, quer dizer, à mulher com quem eu estava casado na época. «Coitado!», limitou-se a dizer, mas, se calhar, o que ela queria era dizer: «Coitados!» Evidentemente que nada disso tem qualquer importância agora.

Quanto ao manuscrito, as duzentas páginas foram parar direitinhas ao fundo da gaveta da minha secretária sem me dar sequer ao trabalho de ler o título. Não sei explicar porquê, mas o certo é que não senti a mínima vontade de as ler. A carta chegara e sobrara.

Puxei a cadeira, sentei-me à frente do aquecimento e fumei três cigarros.

Em Maio do ano seguinte, chegou às minhas mãos a segunda carta do Rato.

 

Tenho a impressão de que na minha carta anterior me deixei levar pelo palavreado e acabei por escrever mais do que tencionava. Apesar disso, o certo é que não me lembro rigorosamente de nada.

Voltei a mudar de direcção. O lugar onde agora me encontro não tem nada que ver com o anterior. Aqui, está-se muito sossegado. Talvez até um bocadinho sossegado de mais para o meu gosto.

Num certo sentido, este lugar é uma espécie de fim da linha. Tenho a impressão de ter chegado onde tinha de chegar. E, o que é mais importante, sinto que o consegui remando contra ventos e marés. Se bem que acerca disso ainda não me sinta preparado para tecer juízos de valor.

Que conversa esta sem pés nem cabeça! Tudo o que digo é tão vago que, provavelmente, nem sequer percebes do que estou a falar. Ou então, se calhar, pensas que estou a dar ao meu destino uma importância exagerada que ele não tem. Se for esse o caso, é óbvio que a culpa é toda minha.

Passemos às coisas concretas.

Por estas bandas, como já te disse antes, está tudo terrivelmente calmo. Como não há mais nada para fazer, passo a vida a ler (são tantos os livros que nem dez anos me chegavam para os ler todos), a ouvir programas de rádio em FM ou discos (também tenho uma bela colecção). Para minha grande surpresa, os Rolling Stones e os Beach Boys ainda mexem e arrastam multidões. De facto, aquilo a que chamamos tempo não passa de uma cadeia sem fim, não é?

Como temos o hábito de nos deixarmos levar pelo costume de medir o tempo à nossa imagem e semelhança, acabamos por pensar que ele é fragmentado, quando o que acontece é que o tempo flui, contínuo e imparável.

Para estes lados, não é possível medir as coisas à escala humana. Não existe ninguém que elogie ou despreze o tamanho dos outros com base no seu. O tempo flui como um rio de águas cristalinas. Desde que aqui me encontro, tenho muitas vezes a sensação de que tudo em mim se libertou até alcançar a sua forma mais primitiva. Por exemplo, se de repente vejo um carro, demoro alguns segundos a identificá-lo como tal. Claro está que tenho uma espécie de noção básica das coisas, mas a sua relação com o conhecimento empírico tarda em funcionar. Experiências destas têm vindo a ocorrer cada vez com mais frequência nos últimos tempos. Talvez porque eu esteja há muito a viver em completa solidão.

A cidade mais próxima fica a uma boa hora e meia de carro. Se é que se pode chamar àquilo uma cidade. Imagina a cidade mais pequena que conheças, depois reduz essa cidade a um fragmento mínimo. Duvido que consigas imaginar. Enfim, chamemos-lhe cidade. Vendo bem, ali podemos comprar roupa, comida, gasolina. E se estivermos para aí virados, podemos mesmo ver gente e misturarmo-nos com outras pessoas.

Durante o Inverno, as estradas ficam geladas e muitos dias há em que os carros nem sequer podem circular. Como os terrenos à beira da estrada estão empapados, o solo fica tão gelado à superfície como um sorvete. Então quando neva, torna-se impossível distinguir onde começa e acaba a estrada. Uma verdadeira paisagem do fim do mundo.

Cheguei aqui nos primeiros dias de Março. Equipei o jipe com correntes especiais para os pneus e aventurei-me por estas paragens, como se tivesse sido desterrado para a Sibéria. Agora estamos no mês de Maio e a neve já derreteu por completo. Em Abril, vindo da montanha, chegava até mim o estrondo inconfundível provocado pelas avalanchas. Alguma vez ouviste o ribombar semelhante ao de um alude? Quando acaba, instala-se um silêncio pesado, absolutamente perfeito. Um silêncio total, que faz perder a noção de onde nos encontramos. Invade-nos então uma grande, uma imensa calma.

Enclausurado nas montanhas, já não vou para a cama com uma mulher há quase três meses. O que não tem nada de mal em si, mas, a prolongar-se a situação, vou a caminho de perder todo o interesse na raça humana, e isso, como é bom de ver, não é propriamente do meu interesse. Daí que esteja a fazer planos para, assim que o tempo começar a aquecer, dar uma escapadela e ver se arranjo uma miúda. Não é para me gabar, mas engatar uma rapariga nunca representou um problema para mim. Basta que eu me finja desinteressado - e a prova disso é que me deixei ficar por aqui - para todo o meu sex-appeal vir ao de cima. As raparigas caem-me nos braços com relativa facilidade. O único problema é o facto de eu próprio não conviver lá muito bem com essa minha capacidade. Quer dizer, chegado a um certo ponto, não sei ao certo se isso ficou a dever-se a mim mesmo ou ao meu atractivo sexual. Por exemplo, e agora numa outra ordem de ideias, onde é que Laurence Olivier acaba e entra em cena o seu Otelo? Por isso, quando me encontro a meio caminho e vejo que já não existe possibilidade de voltar atrás, regra geral mando tudo às urtigas e que se lixe. O que causa uma série de problemas a muito boa gente. Até agora, a minha vida não tem sido mais do que uma repetição contínua de episódios deste género.

Dou graças à minha boa estrela (e podes crer que dou mesmo) pelo facto de presentemente não ter nada para mandar às urtigas. É uma sensação fantástica. A ter de me desembaraçar de alguma coisa, só se fosse de mim próprio. Ora aí está uma ideia com o seu quê de sugestivo. Vendo bem, não, isto começa a soar demasiado patético. Atenção, considero que a ideia em si nada tem de patético, torna-se patética no momento em que a ponho por escrito.

Gaita!

De que diabo estava eu a falar?

De mulheres, era isso.

Cada miúda tem uma gaveta, onde guarda as suas preciosidades, cheia até cima de tralha que não serve para nada. É uma coisa que me seduz. Vou tirando para fora todas aquelas coisas, uma atrás da outra, sacudo o pó e procuro encontrar um sentido para cada uma delas. É essa a essência do atractivo sexual, creio eu. Agora, que não me venham perguntar onde é que isso leva, porque não leva a parte nenhuma. O que acontece é que, se deixasse de o fazer, deixaria de ser quem sou.

Por essas e por outras, agora só penso em sexo. Se concentrar o meu interesse única e exclusivamente em sexo, deixo de ter pena de mim e não tenho de me preocupar se estou a ser trágico ou não.

É como beber cerveja à beira do Mar Negro.

Acabei de reler o que ficou escrito para trás. Com uma ou outra incoerência, é certo, mas, para uma obra da minha autoria, até está bastante sincera. Pode até dizer-se que as passagens inconsistentes são de longe as melhores.

De resto, esta carta até nem parece que te é dirigida. Vendo bem, o mais provável é esta carta ter como destino a caixa do correio. Não deites as culpas para cima de mim. Em média, demoro uma hora e meia de jipe até ao posto dos correios mais próximo.

A partir deste ponto, é a ti que escrevo.

Tenho duas coisas a pedir-te. Como nenhuma delas é urgente, podes fazê-las quando te der na bolha. Se conseguires esses favores, fico-te desde já muito agradecido. Três meses atrás, provavelmente não teria sido capaz de te pedir nada. Agora, porém, atrevo-me a fazê-lo. Já é um progresso, acho eu.

O primeiro favor é, por assim dizer, de carácter sentimental, uma vez que se prende com «o passado». Há cinco anos, ao abandonar a nossa cidade, estava de tal maneira fora de mim e desatinado que me esqueci de dizer adeus a algumas pessoas. Concretamente, a ti e a I, bem como a uma rapariga que não conheces. No teu caso, ainda poderia voltar a ver-te para me despedir como deve ser, mas em relação aos outros dois receio que a coisa nunca se proporcione. Por isso, se algum dia voltares ao nosso bairro, agradeço que te despeças deles por mim.

Bem sei que é abusar da tua boa vontade. Deveria ser eu a tomar a iniciativa de lhes escrever, mas, muito honestamente, agradeço que sejas tu a falar pessoalmente com eles. Tenho a impressão de que só assim as minhas intenções e os meus sentimentos chegarão até eles. Numa folha à parte, escrevi-te a morada dela e o seu número de telefone. Caso ela se tenha mudado ou esteja casada, deixa lá, não penses mais no assunto. Porém, se ainda viver na mesma casa, peço-te que vás visitá-la e que lhe digas que mando lembranças.

Já agora, aproveita também para cumprimentar o J. Bebe uma cerveja com ele à minha saúde.

Esse é um favor.

O outro pode à primeira vista parecer-te um bocado estranho.

Junto envio uma fotografia. A foto de um rebanho de carneiros. Gostaria que a pusesses a circular publicamente em qualquer parte, não interessa onde, desde que as pessoas a possam ver bem. Tenho consciência de que é pedir-te demasiado, mas o certo é que não tenho mais ninguém a quem recorrer. Se me fizeres esse favor, terei todo o gosto em ceder-te, em troca, todo o meu atractivo sexual. Trata-se de uma foto muito importante para mim, mas não posso dizer-te porquê. Um dia, mais tarde, terei ocasião de te explicar tudo.

Junto envio também um cheque. Usa-o para cobrir futuras despesas que fizeres. Não te preocupes com o dinheiro. Pensa que, no sítio onde estou, dificilmente poderia gastá-lo, e, por outro lado, é a única coisa que posso fazer por ti.

E não te esqueças, por nada deste mundo, de beber uma cerveja por mim.

Teu amigo, Rato.

 

Encontrei a carta na minha caixa do correio ao sair do apartamento e li-a sentado à secretária, mal cheguei ao escritório.

Ao rasgar a etiqueta de reenvio, o carimbo dos correios tinha ficado quase ilegível. Dentro do sobrescrito, vinha um cheque no valor de cem mil ienes, a fotografia de uma mulher e a respectiva morada, bem como a foto a preto e branco de um rebanho de carneiros. A carta estava escrita no mesmo papel verde-clarinho da outra vez e o cheque emitido por um banco de Sapporo. O que me levava a crer que o Rato se transferira mais para norte, para a ilha de Hokkaido.

A descrição que ele fazia das avalanchas não me dizia grande coisa, mas a carta, essa sim, e tal como ele próprio afiançara, fora escrita com absoluta sinceridade. Além disso, ninguém envia um cheque de cem mil ienes à toa.

Abri a gaveta da secretária e guardei o sobrescrito com tudo o que vinha lá dentro.

Em parte, talvez porque o relacionamento com a minha mulher ia de mal a pior, aquela Primavera não estava a ser feliz.

Há quatro dias que ela não punha os pés em casa. No lavatório da casa de banho, a escova de dentes dela estava seca, dura e encarquilhada como um fóssil. O leite dentro do frigorífico começava a deitar um cheiro a azedo, e o gato andava sempre a pedir comida. E era naquele cenário que se infiltrava um tímido sol de Primavera. Os raios de sol, ao menos, são sempre de graça.

Um longo e tortuoso beco sem saída - se calhar a minha mulher tinha razão.

 

Em Junho, voltei para a nossa cidade.

Arranjei maneira de inventar um pretexto qualquer para gozar três dias de férias seguidos e uma bela terça-feira de manhã apanhei o comboio-bala. Vestia uma camisola desportiva branca de manga curta, calças verdes de algodão esgaçadas nos joelhos, ténis brancos. Ia de mãos a abanar e até de fazer a barba me tinha esquecido. Há séculos que não calçava aqueles ténis e os calcanhares estavam deformados de uma maneira incrível. Sem o saber, devia ter feito uma bonita figura, a andar daquela maneira pouco natural.

Confesso que foi uma sensação espantosa, apanhar o comboio sem levar bagagem atrás de mim. Era como se, no decorrer de um despreocupado passeio, me encontrasse de repente a bordo de um avião bombardeiro perdido algures nas contorções do arco do tempo, onde não existe nada. Nem marcações no dentista, nem dossiês pendentes no fundo de uma gaveta, nem relacionamentos daqueles tão arrevesados que uma pessoa não tem para onde se virar, nem trocas de favores a que obriga a confiança mútua. Todas essas coisas inúteis haviam ficado para trás, nas profundezas de um abismo provisório. Era apenas eu, com os meus velhos ténis e as suas solas de borracha desgastadas. Solidamente agarradas aos pés, era graças a elas que me mantinha vagamente em contacto com uma outra dimensão do espaço e do tempo, mas isso pouca ou nenhuma importância tinha. Nada que umas latas de cerveja e uma sanduíche de presunto não me fizessem esquecer, assim do pé para a mão.

Era a primeira vez, desde há quatro anos, que voltava à minha cidade natal. Na altura, regressara a fim de tratar de uma série de formalidades administrativas relativas ao meu casamento. Quando me lembro da viagem, não consigo deixar de pensar na inutilidade de tudo aquilo! Mera burocracia, por mais voltas que se lhe dê. O que para uma pessoa representa o caso encerrado, para a outra não representa o fim de nada. Tão simples como isso. Sem esquecer que neste ponto o caminho se bifurca para ambas as partes, partindo em direcções que se afastam cada vez mais uma da outra.

A partir de então, deixei de ter uma cidade a que pudesse chamar minha. Um lugar onde regressar. Quando penso nisso, experimento um profundo alívio. Ninguém quer nada de mim, ninguém espera que eu lhe dê nada.

Emborquei uma segunda lata de cerveja e passei pelas brasas durante uma boa meia hora. Quando acordei, o sentimento inicial de libertação já se tinha desvanecido. À medida que o comboio avançava, o céu ia ficando coberto de nuvens cinzentas que anunciavam a estação das chuvas. Debaixo dele estendia-se a mesma paisagem monocórdica de sempre. Por mais que o comboio acelerasse a sua marcha, não havia maneira de escapar ao tédio. Pelo contrário: quanto mais a velocidade aumentava, mais fundo mergulhávamos no coração da monotonia.

A meu lado, numa imobilidade quase perfeita, seguia viagem um executivo dos seus vinte e cinco anos, absorto na leitura de um jornal de economia. Vestia um fato de Verão azul-marinho, sem uma ruga. A camisa era branca, acabada de sair da lavandaria. Sapatos pretos e lustrosos.

Pus-me a olhar para o tecto da carruagem, enquanto fumava um cigarro. Para matar tempo, elaborei mentalmente uma lista das canções que os Beatles tinham gravado. Quando cheguei ao número 73, fiquei-me por aí. Afinal de contas, de quantas gravações se lembraria Paul McCartney?

Depois de olhar um bocado pela janela, voltei a concentrar a minha atenção no tecto da carruagem.

Tinha 29 anos e, dentro de seis meses, diria adeus à casa dos vinte. Uma década inteirinha. Dez anos de um vazio total. Sem ter conseguido nada que valesse a pena, nem alcançado uma única meta. Só restava o tédio.

Como eram as coisas antes, que já não me lembrava? De certeza que alguma coisa de positivo devia ter havido. Algo capaz de ter tocado o meu coração e, ao mesmo tempo, de ter mexido com os sentimentos dos outros. Até podia ser que sim, mas a verdade é que entretanto se tinha perdido. Inevitavelmente. E não havia nada que eu pudesse fazer, nenhuma alternativa senão abrir mão de tudo.

Pelo menos, tinha sobrevivido. Por mais que se diga que o índio bom é o índio morto, o meu destino era continuar vivo.

Com que fim?

Para contar velhas histórias às paredes?

Que disparate!

- Que história é essa de te hospedares num hotel? - estranhou J, com ar assarapantado, ao entregar-me a carteira de fósforos para eu escrever o número de telefone do hotel nas costas. -Tens casa na cidade, não tens? - insistiu. - Podias lá ficar.

- Já não é a minha casa - disse eu. J não disse mais nada.

Alinhei três pratinhos de aperitivos diante de mim, bebi metade da cerveja, e só depois entreguei a J as cartas do Rato. Ele enxugou as mãos a uma toalha, percorreu rapidamente as duas cartas com o olhar e, acto contínuo, começou a lê-las com atenção, seguindo os caracteres um a um.

- Com que então, está vivo e recomenda-se! - comentou, demonstrando a sua admiração.

- Vivo e de saúde - retorqui, bebendo mais um gole de cerveja. - A propósito, gostava de fazer a barba. Por acaso tens lâmina e creme de barbear que me emprestes?

- Claro - respondeu J, tirando um estojo de viagem de debaixo do balcão. - Podes usar a casa de banho, mas olha que não tenho água quente.

- Contento-me com água fria - repliquei. - Desde que não encontre nenhuma gaja com os copos atravessada no caminho... Isso é que tornaria o barbear difícil.

O bar de J estava irreconhecível.

O antigo era um estabelecimento esconso cheio de humidade situado na cave de um velho prédio que dava para a auto-estrada. Nas noites de Verão, a água que saía do ar condicionado chegava a formar uma espécie de névoa. Bastava demorar um bocado mais nos copos que a camisa ficava logo empapada e colada ao corpo.

J era chinês e o seu verdadeiro nome formava um encadeado de sílabas difícil de pronunciar. Começaram a chamar-lhe J depois da guerra, quando trabalhava numa base americana; foram os soldados que se lembraram de semelhante alcunha, inspirada na pronúncia da letra «J» em inglês.(8) Escusado será dizer que o seu verdadeiro nome não tardou a cair no esquecimento.

Em 1954, J deixou de trabalhar na base e abriu um pequeno bar. Foi o primeiro J's Bar, por sinal muito concorrido. A maioria da clientela compunha-se de oficiais da Força Aérea, e o ambiente era animado. Depois de o bar estar lançado, J casou-se, mas cinco anos mais tarde a sua mulher faleceu. J nunca comentou nada sobre a causa da morte dela.

Em 1963, numa altura em que a guerra do Vietname começou a recrudescer, J vendeu o bar e mudou-se de armas e bagagens para a minha cidade. Foi ali que abriu o segundo bar do J.

Tudo o que eu sabia acerca de J era que ele tinha um gato, fumava um maço de tabaco por dia e nunca bebia uma gota de álcool.

Antes de conhecer o Rato, aparecia sempre sozinho no bar do J. Bebia a minha cervejinha, fumava, punha moedas na jukebox a fim de ouvir os meus discos preferidos. Isto naquelas horas em que o bar do J costumava estar vazio e nós os dois, instalados ao balcão, trocávamos dois dedos de conversa. Agora, não me perguntem do que é que então falávamos. Que poderiam um colegial taciturno, de dezassete anos, e um chinês viúvo ter para dizer um ao outro?

Quando fiz dezoito anos e me fui embora da cidade, coube ao Rato ocupar o meu lugar e aparecer por lá para beber a sua cerveja. Quando cinco anos mais tarde, por seu turno, também ele abandonou a cidade, não houve ninguém para ocupar o lugar dele. Seis meses depois, devido às obras de alargamento da estrada, o segundo J's Bar transformou-se em lenda.

 

*8. Jay (dzei), assim se escreve e lê o nome da letra jota na língua inglesa. (N. da T.)

 

O terceiro estabelecimento ficava a pouco mais de quinhentos metros do anterior, junto ao rio. Não era muito maior do que o primeiro, mas ocupava o terceiro andar de um moderno edifício de quatro pisos, e tinha elevador. Subir de elevador para o bar de J não deixava de se revelar uma experiência algo desconcertante. A mesma sensação de estranheza tomava conta de mim quando, sentado ao balcão, do alto do meu tamborete, me punha a ver as luzes da cidade à noite.

O novo bar tinha grandes janelas orientadas a norte e a sul, que davam para as montanhas e permitiam vislumbrar os terrenos que haviam sido conquistados ao mar. Onde antes havia água, alinhavam-se agora edifícios, altos e sólidos como túmulos. Deixei-me ficar por momentos diante da janela, a contemplar a paisagem, antes de regressar ao balcão.

- Antigamente, dava para ver o mar - observei.

- Pois era - confirmou J.

- Fartei-me de nadar ali.

- Pois - disse ele, aproximando um pesado isqueiro de mesa para acender o cigarro que tinha na boca. - Estou solidário contigo. Derrubam montanhas para construir casas, arrastam a terra até ao mar para o sepultar, a fim de construir casas e mais casas. E, como se fosse pouco, ainda há quem ache tudo isso uma proeza admirável.

Bebi a minha cerveja em silêncio. As colunas do tecto difundiam o mais recente êxito dos Boz Scaggs. A jukebox tinha passado à história. A clientela do bar compunha-se na sua quase totalidade de casais de estudantes universitários, muito bem-apessoados, que bebiam aos golinhos os seus highballs ou os seus whiskies on the rocks. Não havia clientes à beira de caírem para o lado com uma piela, nem o ambiente eléctrico característico dos fins-de-semana. Não era difícil imaginar toda aquela fauna a chegar a casa e a vestir os seus pijamas, lavando escrupulosamente os dentes antes de se enfiar na cama. E faziam eles muito bem. A limpeza e a higiene são virtudes muito louváveis. Quem é que disse que o mundo em geral, e os bares em particular, têm de funcionar de uma certa e determinada maneira?

Durante todo aquele tempo, J acompanhara a direcção do meu olhar.

- Quer então dizer que achas que o bar mudou tanto que não te sentes bem?

- Nada disso - respondi. - O que acontece é que o caos transformou-se. A girafa e o urso trocaram de chapéu, e o urso, por sua vez, quer trocar de cachecol com a zebra.

- Continuas o mesmo de sempre - disse J, por entre risos.

- Os tempos mudaram - continuei. - E a mudança dos tempos trouxe a mudança de muitas outras coisas. O que, a meu ver, acho muito bem. Tudo se renova. Nada contra.

J permanecia calado que nem um rato.

Abri outra lata de cerveja, enquanto ele fumava outro cigarro.

- Como é que te correm as coisas? - quis saber J.

- Vão andando.

- E o casamento?

- Assim-assim. Sabes como é, quando há duas pessoas metidas ao barulho... Umas vezes, parece que corre tudo sobre rodas, e outras vezes não. É assim mesmo, a vida de um casal.

- Pode ser que sim - disse J, coçando a ponta do nariz com o mindinho. - Não me lembro bem de como era estar casado. Já foi há tanto tempo...

- E o gato, está bem?

- Morreu faz agora quatro anos. Aconteceu logo a seguir ao teu casamento. Um problema de intestinos... Vendo bem, já tinha uma idade avançada, doze anos. Mais tempo do que eu passei com a minha mulher. Não se pode dizer que doze anos de vida seja mau de todo para um gato, pois não?

- Acho que não.

- Existe um cemitério para animais na vertente de uma das colinas, e foi aí que o enterrei. Com vista sobre os edifícios mais altos. Neste sítio, para onde quer que te vires, estás rodeado de torres por todos os lados. Não que isso faça grande diferença a um gato.

- Ficaste triste?

- É evidente. Mas não tanto como se me tivesse morrido uma pessoa. Parece-te esquisito?

Abanei a cabeça.

Enquanto J teve de ir preparar um cocktail e uma salada César para outro cliente, eu fiquei entretido a brincar com um quebra-cabeças escandinavo que estava em cima do balcão. O desafio consistia em montar, dentro de uma caixinha de vidro, uma paisagem - um campo de trevos por onde esvoaçavam três borboletas. Ao fim de dez minutos, desisti e pus aquilo de lado.

- Pensam ter filhos? - perguntou J, que entretanto se aproximara do sítio onde eu estava. - Já estão em boa idade, quer-me parecer.

- Não queremos filhos.

- Porquê?

- Imagina que me saía na rifa um filho parecido comigo... A verdade é que não saberia o que fazer.

J soltou uma risada esquisita e despejou mais cerveja no meu copo.

- Preocupas-te demasiado com o que ainda está para vir.

- Nada disso. Quero com isto dizer que não sei se trazer uma nova vida ao mundo será a coisa certa. As crianças crescem, as gerações sucedem-se. E onde é que tudo isso leva? Mais montanhas transformadas em zonas planas, mais terrenos roubados ao mar. Veículos cada vez mais velozes e um número cada vez maior de gatos atropelados. Quem é que precisa disso?

- Só estás a ver o lado mais negro da vida. Também há coisas boas e gente decente.

- Nesse caso, dá-me três exemplos - desafiei eu. J ficou pensativo, mas às tantas desatou a rir.

- Quem tem de tomar essas decisões é a geração dos teus filhos, e não a tua. No que diz respeito à tua geração...

- Está acabada, é o que me vais dizer?

- Até certo ponto, sim - concedeu J.

- A canção chegou ao fim, mas a melodia ainda paira no ar.

- Sempre tiveste uma maneira muito tua de dizer as coisas

- Estou apenas a armar-me aos cucos - confessei.

Quando o bar começou a encher-se de gente, dei as boas-noites ao J e saí dali. Eram nove da noite. Ainda sentia um ardor no rosto, devido a ter feito a barba com água fria. Entre outras coisas, por ter usado uma mistura de vodca com limão em vez de loção para depois da barba. J bem insistiu, dizendo que vinha a dar no mesmo, mas o facto é que agora tinha a cara a cheirar a vodca.

A noite estava estranhamente quente, apesar de o céu se apresentar, como de costume, coberto de nuvens. Soprava um vento húmido vindo do Sul, o que também era habitual. O odor do mar trazia consigo um presságio de chuva. Ouvia-se a ladainha dos insectos, vinda dos maciços de ervas nas margens do rio. O ambiente estava impregnado de uma tristeza lânguida. A chuva parecia querer começar a cair a todo o momento. Quando tal aconteceu, era uma chuva tão fina que tornava difícil dizer se estava ou não a chover, mas o certo é que fiquei com a roupa completamente ensopada.

À luz esbranquiçada e difusa do vapor saído das lanternas a vapor de mercúrio, distinguia-se a corrente do rio. Eram águas pouco profundas, que mal chegavam ao tornozelo, seguindo o seu curso, tão límpidas como dantes, correndo directamente da montanha sem nada que a poluísse. O leito do rio era formado por areia solta e seixos arrastados pela corrente, dando origem a pequenas cascatas aqui e ali. Por baixo dessas cascatas em miniatura, formavam-se lagos relativamente pouco profundos, nos quais nadavam pequenos peixes.

Durante os períodos de seca, a corrente era como que absorvida pelo leito arenoso, deixando apenas um trilho de areia branca ligeiramente húmida. Em tempos, quando os meus passeios me levavam para aquelas bandas, punha-me a seguir o curso das águas em busca do lugar onde ele desaparecia do mapa, absorvido pelo leito do rio.

A estrada ao longo do rio costumava ser o meu passeio preferido. Podia acompanhar a correnteza. Sentir a respiração do rio à medida que caminhava. O rio estava vivo. Mais do que tudo, era ao rio que devíamos a criação da cidade. Durante centenas de milhares de anos, os rios tinham provocado a erosão das montanhas, transportado a terra, enchendo o mar e fazendo crescer as árvores. Desde a sua origem, as cidades pertencem aos rios, e sem dúvida continuarão sempre a pertencer-lhes no futuro.

Como estávamos na estação das chuvas, a água corria ininterruptamente até ao mar. As árvores plantadas nas margens impregnavam o ar com a fragrância das suas novas folhas. Viam-se alguns parzinhos deitados na relva, abraçados, as pessoas de idade passeavam os cães, alguns estudantes do secundário, encostados às suas motorizadas, fumavam um cigarro. Era uma dessas típicas noites de começo de Verão.

De caminho, parei numa loja de bebidas, comprei duas latas de cerveja e trouxe-as comigo, dentro de um saco de papel. Fui caminhando sempre em direcção ao mar. No ponto onde o rio desembocava, o mar convertia-se numa pequena enseada, ou, melhor dizendo, numa espécie de canal meio enterrado. Era tudo o que restava do litoral de antigamente, uma faixa de costa que se prolongava por cinquenta metros. Até a prainha era a mesma. As pequenas ondas vinham bater na areia, depositando pedaços de madeira polidos pela água. Cheirava a maresia. Sobre os muros de betão distinguiam-se ainda velhos motivos náuticos pintados, feitos com pontas de pregos e tinta de spray.

Cinquenta metros de areia, era tudo o que tinha ficado da saudosa praia. Isto fechando os olhos e não olhando ao facto de aquela língua de mar se encontrar solidamente encravada entre elevados muros de cimento com quase dez metros de altura. Muros esses que avançavam sempre a direito, por uma quantidade de quilómetros, delimitando uma estreita faixa de mar. E sem esquecer os tais edifícios, altos e compactos conjuntos residenciais, de um lado e de outro. Salvo aqueles cinquenta metros, o mar tinha sido literalmente varrido do mapa.

Deixei para trás o rio e caminhei para leste, seguindo pelo que sobrava da antiga estrada costeira. Por mais espantoso que pareça, o velho quebra-mar ainda estava de pé. Um paredão despojado do mar transformara-se em algo de invulgarmente estranho. Detive-me mais ou menos no mesmo sítio onde costumava parar o carro para contemplar o mar, e foi ali, sentado no molhe, que bebi as cervejas. No lugar do oceano, estendia-se diante de mim uma extensa área de terrenos conquistados ao mar e de altos blocos de apartamentos. Uma monótona muralha de construções descaracterizadas, tristes fundações de um esforço no sentido de construir uma cidade digna desse nome, virada para a vida em família.

Entre os prédios de habitação serpenteavam, como se estivessem cosidas a pesponto, várias estradas asfaltadas que conduziam ora a um gigantesco parque de estacionamento, ora a um terminal de autocarros, a um supermercado aqui, a uma bomba de gasolina, ali, mais adiante a um extenso parque, ou a um majestoso centro comunitário. Tudo era novo ali, mas também artificial até dizer chega. De um dos lados, a terra transportada da montanha apresentava aquela tonalidade fria e cinzenta, típica dos terrenos roubados ao mar, enquanto as zonas que permaneciam por construir estavam cobertas de ervas daninhas trazidas pelo vento. Multiplicavam-se com uma rapidez impressionante, ganhando raízes no novo solo, ameaçando pôr a ridículo a relva e as árvores plantadas artificialmente pelo homem à beira da estrada.

Um espectáculo desolador.

E, no entanto, que fazer para alterar aquele estado de coisas? Saltava aos olhos que se tratava de uma nova ordem, com novas regras. Ninguém podia impedir um tal cenário.

Esvaziei as duas cervejas e atirei as latas vazias com toda a força, uma atrás da outra, para o terreno que existia então onde antes tinha sido mar. Fiquei a vê-las desaparecer no oceano de ervas daninhas tombadas pelo vento. A seguir pus-me a fumar.

Estava quase a acabar o meu cigarro quando vi aproximar-se um homem com uma lanterna na mão, caminhando lentamente na minha direcção. Devia ter os seus quarenta anos, vestia camisa cinzenta, calças cinzentas e boné cinzento. Provavelmente, trabalhava na zona como segurança.

- Acabou de atirar fora qualquer coisa, não foi? - disparou o homem ao chegar junto de mim.

- Sim, atirei.

- O quê, concretamente?

- Objectos cilíndricos, de metal, com uma tampa em cada extremidade.

O segurança ficou com uma expressão desconcertada.

- E pode saber-se por que é que os atirou fora?

- Por nenhuma razão especial. Desde há doze anos que tenho o hábito de atirar coisas fora. Deve ter havido alturas em que cheguei a atirar meia dúzia desses objectos de uma assentada, e nunca ninguém se queixou.

- Isso era antigamente - retorquiu o guarda. - Agora, estes terrenos pertencem à Câmara e é proibido deitar lixo na propriedade municipal.

Engoli em seco. Por momentos, senti dentro de mim um estremecimento repentino, que aos poucos cessou.

- O verdadeiro problema - disse eu por fim - é que o que acaba de me dizer faz todo o sentido.

- É como manda a lei - retorquiu ele.

Com um suspiro, tirei o maço de tabaco do bolso.

- O que é que quer que eu faça?

- Bom, não lhe posso exigir que apanhe o que deitou fora. Ficou escuro e está a querer chover. A única coisa que lhe peço é que não volte a atirar mais nada.

- Não voltarei a deitar nada fora - assegurei. - Boa noite.

- Boa noite - respondeu o guarda. E foi-se embora. Estendi-me ao comprido sobre o molhe e fiquei ali a olhar para

o céu. Tal como o homem tinha previsto, começara a cair uma chuva miudinha. Enquanto fumava outro cigarro, recordei a troca de palavras que acabara de ter com o homenzinho. Dez anos atrás, pensei eu, a minha reacção teria sido mais violenta. E daí, talvez não. Afinal, que importância tinha?

Regressei à estrada que seguia ao longo do rio, e quando finalmente consegui apanhar um táxi, a chuva transformara-se num nevoeiro cerrado que não deixava ver nada. Pedi ao motorista que me conduzisse ao hotel.

- Está de passagem? - quis saber o taxista, homem já entrado nos anos.

- A-hã.

- É a primeira vez que vem para estes lados?

- A segunda - respondi.

 

- Tenho uma carta para si - disse eu.

- Para mim? - perguntou ela.

Como a ligação estava má, ela tinha praticamente de gritar para se fazer ouvir, o que estragava por completo qualquer tentativa de comunicarmos mutuamente os delicados matizes dos nossos sentimentos. Era o mesmo que duas pessoas estarem a conversar no cimo de uma colina, fustigadas pelo vento, e com as golas dos casacos subidas.

- Na verdade, a carta está endereçada a mim, mas há qualquer coisa que me diz que é você a verdadeira destinatária.

- Acha que sim?

- Acho - repliquei. Ainda não tinha acabado de dizer aquilo e já me queria parecer que não me tinha explicado devidamente.

Ela ficou calada por um momento. Entretanto, as interferências tinham cessado.

- Não faço ideia do que pode ter acontecido entre você e o Rato, mas o certo é que ele me pediu que viesse ter consigo, e é por isso que estou a ligar. Além disso, e voltando à história da carta, é preferível que a leia.

- E foi para isso que veio de propósito de Tóquio?

- Exactamente.

Ela tossiu, pediu desculpa, e continuou.

- Por causa da sua amizade com ele?

- Também por isso.

- Por que razão é que não me escreveu ele directamente?

A sua observação tinha lógica. - Não faço ideia - respondi sinceramente.

- E eu muito menos. Quer dizer, pensava que estava tudo acabado entre nós. Ou estou enganada?

Respondi-lhe a verdade, que não sabia. Deixei-me ficar refastelado na cama de hotel, com o auscultador na mão, a olhar para o tecto. Era o mesmo que estar deitado no fundo do mar a contar os peixes que passavam sobre a minha cabeça. Não imaginava quantos mais teriam de passar até a contagem chegar ao fim.

- Ele desapareceu há cinco anos, sem deixar rasto. Na altura tinha eu vinte e sete - disse ela. Apesar do tom calmo, a sua voz parecia vir do fundo de um poço. - Em cinco anos, muitas coisas mudam.

- É um facto - retorqui.

- E a verdade é que, mesmo que nada tivesse mudado, aos meus olhos isso seria inadmissível. Teria dificuldade em admiti-lo, nem pensar. Cobriria a cara de vergonha, se tivesse de reconhecer publicamente isso. Pela parte que me toca, as coisas mudaram por completo.

- Acho que dá para entender - referi eu.

A seguir fez-se silêncio durante um bocado.

- Quando foi a última vez que o viu? - perguntou ela.

- Faz cinco anos na Primavera que ele se eclipsou.

- E disse-lhe alguma coisa?... Por exemplo, as razões que tinha para abandonar a cidade?

- Nada de nada.

- Quer então dizer que partiu sem dizer água vai?

- Exactamente.

- E o que é que sentiu? Quer dizer, naquela altura?

- Quando soube que ele se tinha ido embora sem dizer nada?

- Sim.

Levantei-me da cama e encostei-me à parede.

- Bom, para ser franca, dei-lhe seis meses... Ao fim desse tempo, pensei que ele desistiria e regressaria a casa. Nunca me pareceu do tipo de ficar muito tempo no mesmo sítio e com a mesma pessoa.

- Mas o facto é que ele não voltou.

- Pois não.

Ela pareceu hesitar ligeiramente do outro lado da linha.

- Onde é que está agora? - perguntou-me. Disse-lhe o nome do hotel.

- Vou ter à cafetaria do hotel. Encontramo-nos às cinco. Fica no oitavo andar, não é?    

- De acordo - retorqui. - Levo uma camisa desportiva branca e calças verdes de algodão vestidas. Uso o cabelo curto e...

- Já tirei a fotografia - interrompeu ela com vivacidade, sem fazer caso das minhas explicações, e desligou.

Depois de voltar a pôr o auscultador no descanso, comecei a pensar no sentido das suas palavras. O que quereria ela dizer, com aquilo de ter tirado a fotografia? Quem não estava a captar imagem nenhuma era eu, mas também, verdade seja dita, havia muitas coisas que me escapavam. Não se podia propriamente dizer que a idade tivesse feito de mim um homem mais esperto. Em matéria de carácter, ainda vá que não vá, agora a mediocridade, com o passar dos anos não tem remédio, como disse certo escritor russo. Os Russos têm muito jeito para aforismos. Se calhar passam os longos Invernos a meditar nisso.

Tomei duche, lavei a cabeça molhada da chuva e, com uma toalha enrolada à volta da cintura, assisti na televisão a um velho filme americano que metia um submarino. O comandante e o seu «segundo» não se entendiam e passavam a fita toda à bulha, o submarino era um verdadeiro fóssil e, como se não bastasse, um dos tripulantes era claustrofóbico. Apesar de tão desastroso argumento, o filme até tinha um final feliz. Era uma daquelas fitas destinadas a fazer os espectadores acreditar que uma vez que tudo acaba bem nesse caso a guerra não pode ser assim tão má. Ainda não perdi a esperança de um dia destes ver um filme em que a Humanidade se envolve numa guerra nuclear e desaparece da face da Terra, mas no fim tudo acaba bem.

Desliguei o televisor e enfiei-me na cama. Passados dez segundos, estava a dormir como um anjinho.

No dia seguinte às cinco da tarde, continuava a cair uma chuva miudinha. Era aquela típica chuva do princípio de Verão, precedida por quatro ou cinco dias de sol que levam as pessoas ao engano, fazendo-as crer que a estação das chuvas já acabou. Pelas janelas do oitavo andar, a única coisa que se via eram ruas completamente alagadas e a própria terra parecia negra. Na auto-estrada, construída sobre pilares, havia um engarrafamento de vários quilómetros formado pelos carros que se dirigiam de oeste para leste.

De olhar fixamente para aquele cenário durante longos minutos, tive a impressão de que tudo se ia diluindo aos poucos no meio da chuva. De facto, podia dizer-se que era a própria cidade que começava a dissolver-se. O paredão, as gruas, os contornos dos edifícios e, debaixo dos guarda-chuvas pretos, as figurinhas das pessoas, tudo ameaçava desvanecer-se. Até mesmo o verde dos campos se desvanecia e resvalava silenciosamente rumo ao sopé das montanhas. E, contudo, caso fechasse os olhos durante alguns segundos e depois tornasse a abri-los, via que a cidade tinha recuperado de novo, como que por mistério, o seu aspecto inicial. Viam-se seis gruas recortadas no céu escuro, as filas de carros dirigiam-se para leste ao ritmo do pára-arranca, o tropel dos guarda-chuvas atravessava as ruas da cidade, a vegetação das montanhas absorvia até à última gota a copiosa chuva de Junho.

No centro da ampla cafetaria, num plano ligeiramente inferior, havia um enorme piano de cauda azul-cerúleo; a pianista, que exibia um vestido rosa-vivo, interpretava com habilidade uma daquelas peças cheias de arpejos e dedilhados que faz parte do repertório de um bar de hotel. Nada mal, há que reconhecer, se bem que o último acorde, ao perder-se no espaço, não deixasse atrás de si o menor eco.

Passava' das cinco e ela sem aparecer. Como não tinha mais nada para fazer, bebi um segundo café e deixei-me estar ali a olhar dis-traidamente para a pianista. Teria os seus vinte anos e uma espessa cabeleira pelos ombros tão bem armada que mais parecia uma cobertura de natas batidas a decorar um bolo. Os seus cabelos ondulavam alegremente ao sabor do ritmo, de um lado para o outro, regressando à posição inicial quando a música chegava ao fim. Ao ter início a peça seguinte, lá recomeçava a dança.

A pianista fazia-me lembrar uma rapariga minha conhecida que andava no terceiro ano do curso de piano. Como tínhamos a mesma idade e éramos alunos da mesma classe de música, às vezes tocávamos juntos a quatro mãos. Tanto o seu nome como a sua cara tinham-se-me varrido completamente da memória. Dela, só me lembrava dos dedos brancos e afilados, dos cabelos bonitos e do vestido vaporoso.

Reconheço que tem o seu quê de perturbante, mas fui assaltado por um pensamento disparatado. Ocorreu-me que teria arrancado àquela miúda os dedos, o cabelo e o vestido, e que ela continuaria a viver algures, com o que restava do seu corpo. Seria possível? Claro que não. Indiferente à minha pessoa, o mundo continuava a girar. As pessoas cruzavam-se comigo na rua sem reparar em mim, afiavam os lápis, deslocavam-se de oeste para leste à velocidade de cinquenta metros por minuto, enchiam cafés onde se ouvia uma música refinada até ao vazio (de uma nulidade rebuscada por natureza).

O «mundo» - aí está uma palavra que tinha o condão de me fazer pensar sempre num monumental disco suportado por um elefante corajosamente empoleirado numa tartaruga. O elefante desconhece o papel desempenhado pela tartaruga, a qual, por sua vez, não calcula o esforço que o elefante é obrigado a fazer. E, escusado é dizer, nenhum deles faz a mínima ideia do que vem a ser o mundo.

- Desculpe o atraso - disse uma mulher atrás de mim. - O trabalho prolongou-se e não pude chegar antes.

- Não tem importância. De qualquer maneira, não tinha nada para fazer hoje.

Ela depositou as chaves em cima da mesa e pediu que lhe trouxessem um sumo de laranja sem passar sequer os olhos pelo menu. Assim à primeira vista, era difícil calcular a sua idade. Se não mo tivesse dito ao telefone, provavelmente nunca teria adivinhado. Dissera-me que tinha trinta e três anos e, vendo bem, devia ser verdade. Se me tivesse falado em vinte e sete anos, nesse caso seria certamente essa a idade que eu lhe daria.

A sua indumentária primava pela simplicidade. Usava umas calças largas de algodão branco, uma blusa aos quadrados laranja e amarelo com as mangas enroladas até aos cotovelos, e trazia uma carteira de pele ao ombro. Nada daquilo era novo, mas dava sinais de estar em muito bom estado. Não usava brincos nem colares ou pulseiras. Tinha a franja curta, em desalinho, caída sobre a testa e puxada para o lado.

As pequenas rugas no canto dos olhos não pareciam pés-de-galinha e davam a impressão de ser de nascimento, mais do que consequência da passagem dos anos. Em contrapartida, apenas o seu pescoço branco e fino, que os botões desabotoados da gola deixavam entrever, bem como as costas das mãos, pousadas sobre a mesa, deixavam transparecer a sua idade. É por essas pequenas coisas, através desses ínfimos pormenores, que a idade das pessoas se nota. Aos poucos, aquela pequenina mancha que mal se via começa a alastrar a olhos vistos, acabando por se espalhar por todo o corpo.

- Falou em trabalho, pode saber-se concretamente o quê? - perguntei para ver no que dava.

- No ateliê de um arquitecto. Já lá trabalho há muito tempo.

A conversa morreu ali. Com gestos lentos, tirei um cigarro e acendi-o calmamente. A pianista acabou a sua actuação, fechou a tampa do instrumento e retirou-se; devia ser a sua hora de descanso. Até certo ponto, invejava-a.

- Há quanto tempo são amigos? - perguntou ela.

- Há uns bons onze anos. E você?

- Dois meses e dez dias - respondeu ela sem pensar duas vezes. - Desde que nos conhecemos até ele desaparecer do mapa, passaram dois meses e dez dias. Lembro-me exactamente porque tomei nota no meu diário, onde anoto tudo.

Trouxeram o sumo de laranja e levaram para dentro a minha chávena de café vazia.

- Esperei por ele três meses, depois do desaparecimento. Dezembro, Janeiro, Fevereiro. A época mais fria do ano. Por acaso lembra-se se aquele Inverno foi especialmente rigoroso?

- Já não me recordo - respondi. Ela referia-se ao Inverno de há cinco anos como se estivesse a falar do tempo que tinha feito na véspera.

- Alguma vez lhe aconteceu esperar assim tanto tempo por uma rapariga?

- Não - respondi-lhe.

- Quando não se faz outra coisa que não esperar, ao fim de um certo tempo uma pessoa repara que já nada mais tem importância. Tanto faz que sejam cinco ou dez anos como apenas um mês. É tudo a mesma coisa.

Concordei com um gesto de cabeça. Ela bebeu metade do sumo de laranja.

- Aconteceu o mesmo comigo, quando estava casada. Era sempre eu que esperava, até ao dia em que me fartei, e desde essa altura, tanto se me dá como se me deu. Casei-me com vinte e um, tinha vinte e dois quando me divorciei. A seguir vim para cá.

- Foi a mesma coisa com a minha mulher.

- A mesma coisa, como?

- Casada com vinte e um anos, divorciada aos vinte e dois. Ela ficou a olhar para mim, parecendo estudar o meu rosto.

Depois mexeu o sumo de laranja com uma palhinha de plástico. Fiquei com a impressão de ter dito algo que não devia.

- Quando somos novos, é duro uma pessoa casar para se divorciar logo a seguir - disse ela. - Leva a que procuremos refúgio num mundo fictício, irreal. Mas é impossível viver durante muito tempo fora da realidade, não concorda?

- Acho que sim, tem razão.

- Durante cinco anos, entre o meu divórcio e o dia em que o conheci, fiquei sozinha nesta cidade e levei uma vida solitária e, por assim dizer, irreal. Sem amigos, raramente saía de casa, não tinha ninguém. Levantava-me de manhã, ia trabalhar, desenhava as plantas, passava pelo supermercado a caminho de casa e jantava sozinha. Ouvia rádio, que estava sempre em FM, lia, escrevia no meu diário, lavava as meias na casa de banho. Como o meu apartamento ficava perto do mar, estava sempre a ouvir o barulho das ondas. Uma vida bastante solitária.

Ela acabou o resto do sumo de laranja.

-Vejo que estou a maçá-lo com as minhas histórias.

Abanei a cabeça.

Passava das seis. A iluminação diminuiu de intensidade à aproximação da hora dos cocktails. As luzes da cidade começavam a acender-se. No alto das gruas viam-se as luzinhas vermelhas. Uma chuva fria derramava as suas finas agulhas sobre o crepúsculo baço.

- Quer tomar alguma coisa? - perguntei.

- Como é que se chama aquela bebida com vodca e sumo de toranja?

- Um Salty Dog.

Chamei o empregado e mandei vir um Salty Dog e um uísque com gelo.

- Onde é que eu ia?

- Estava a falar da vida monótona que levava...

- Para ser franca, não se pode dizer que fosse propriamente monótona - continuou ela. - Só o barulho constante do mar é que pode tornar-se monocórdico. Quando aluguei o apartamento, o administrador disse-me que eu não tardaria a habituar-me, mas a verdade é que até hoje isso ainda não aconteceu.

- Ali já não existe mar.

Ela sorriu com tristeza. As pequenas rugas de expressão ao canto dos olhos estremeceram de um modo quase imperceptível.

- Tem razão. Como diz, e muito bem, o oceano já não existe ali. Contudo, às vezes ainda me parece que consigo ouvir o marulhar das ondas. Deve ter ficado gravado nos meus ouvidos, depois de todos estes anos.

- E foi aí que o Rato entrou em cena?

- Sim. Apesar de eu nunca lhe ter chamado isso.

- Como é que lhe chamava?

- Pelo nome dele. Como toda a gente.

Pensando bem, era obrigado a dar-lhe razão. Mesmo para alcunha, «o Rato» soava um tanto ou quanto infantil.

- Claro - respondi.

Trouxeram as nossas bebidas. Ela deu um golinho no seu Salty Dog e, acto contínuo, limpou o sal dos lábios com um guardanapo. O seu batom deixou uma ligeira marca no guardanapo de papel. Em seguida, ela pegou no guardanapo manchado e dobrou-o com jeitinho.

- Ele era... A encarnação da irrealidade. Entende o que eu quero dizer?

- Julgo que sim.

- É provável que precisasse do seu irrealismo para combater a minha costela irrealista. Pelo menos foi o que senti mal o conheci. E foi por isso que gostei logo dele. Ou então só me apercebi disso depois de estar apaixonada, não sei. Em qualquer caso, vem tudo dar ao mesmo.

A rapariga do piano voltou do intervalo e começou a tocar canções que eram temas de velhos filmes. Perfeito: a banda sonora errada a servir de pano de fundo a uma cena também ela deslocada.

- Às vezes interrogo-me se, afinal de contas, não terei andado a aproveitar-me dele. Quem sabe se ele não deu por isso, desde o início? Que lhe parece?

- Não sei - retorqui. - Isso é um problema que só diz respeito aos dois.

Ela não disse nada.

Ao fim de uns vinte segundos de silêncio, percebi que a história dela já tinha chegado ao fim. Bebi o resto do uísque e a seguir tirei do bolso as cartas do Rato, que depositei em cima da mesa. Ali ficaram, sem que nenhum de nós lhes tocasse.

-Tenho de as ler aqui?

- Não, pode levá-las e ler em casa. Se não as quiser ler, dê-lhes o destino que quiser.

Ela anuiu e guardou as cartas na mala, que, ao fechar, produziu um agradável estalo metálico. Acendi um segundo cigarro e pedi outro uísque. O segundo uísque é sempre o que prefiro. A partir do terceiro, a bebida perde o gosto e só serve para ir direitinho ao estômago, mais nada.

- Foi para isso que veio expressamente de Tóquio? - quis ela saber.

- Por assim dizer.

- Foi muito simpático da sua parte.

- Nunca pensei nisso nesses termos. É uma questão de hábito. Se os nossos papéis se invertessem, tenho a certeza de que ele faria o mesmo por mim.

- Alguma vez ele lhe fez algum favor do mesmo género? Abanei a cabeça.

- Não, mas há muito tempo que temos vindo a causar um ao outro problemas por causa das nossas irrealidades. Agora, saber até que ponto conseguimos encontrar soluções reais para esses problemas, isso já é outra história.

- Não deve haver muita gente a pensar dessa maneira.

- Talvez não.

Ela sorriu e pôs-se de pé, pegando na conta.

- Deixe-me ser eu a pagar, para compensar os quarenta minutos de atraso.

- Tudo bem, se isso a faz feliz - disse eu. - Posso fazer mais uma última pergunta?

- Claro que sim.

- Ao telefone disse que já me tinha tirado a fotografia.

- Referia-me a ter captado um certo ambiente que o rodeia.

- E foi quanto bastou para dar logo comigo?

- Bastou-me vê-lo.

A chuva continuava a cair com a mesma intensidade. Da janela do meu hotel viam-se os anúncios luminosos do prédio vizinho. Envoltos no seu brilho esverdeado e artificial, incontáveis fios de chuva precipitavam-se sobre a terra. De pé em frente da janela, olhei para baixo e pareceu-me que todos aqueles fios convergiam num único ponto da superfície terrestre.

Deixei-me cair na cama e fumei dois ou três cigarros. Em seguida, liguei para a recepção pedindo que me reservassem um lugar no comboio da manhã seguinte. Já não tinha rigorosamente nada a fazer naquela cidade.

A chuva, essa continuou a cair sem parar até meio da noite.

 

O secretário vestido de negro pegou numa cadeira, sentou-se e olhou para mim em silêncio. Não se podia dizer que o seu olhar traduzisse qualquer espécie de espírito crítico ou de desprezo, e ainda menos que procurasse dessa forma trespassar-me. Não era nem frio nem quente, nem sequer andava lá perto. Era um olhar em que não transparecia nenhuma emoção que eu pudesse conhecer. O homem estava a olhar para mim, mais nada. Ou então, podia ser que estivesse a olhar para a parede atrás de mim, mas, como eu estava ali sentado à frente, não tinha outro remédio senão olhar para mim.

O homem pegou na cigarreira que estava em cima da mesa, abriu a tampa, tirou lá de dentro um cigarro sem filtro, deu alguns piparotes na ponta com a unha e, depois de o ter acendido com o isqueiro de mesa, soprou o fumo em ângulo oblíquo. Em seguida voltou a pousar o isqueiro e cruzou as pernas. Durante todo esse tempo, nunca o seu olhar se desviou nem um milímetro que fosse.

Era o mesmíssimo homem que me tinha sido descrito pelo meu sócio. Estava muito bem vestido, a roçar o exagero, os seus dedos eram demasiado finos. Se não fosse a linha agressiva formada pelas suas pálpebras e o brilho gélido das suas pupilas, aos meus olhos teria passado por um perfeito homossexual. Apesar disso, e precisamente por causa daqueles olhos, o homem não parecia homossexual. Nesse caso, o que é que ele parecia? Não se parecia com nada nem com ninguém.

Observadas de perto, as pupilas tinham uma cor esquisita. Eram de um tom castanho muito escuro, com laivos de azul, de uma intensidade que variava conforme se olhasse para o olho esquerdo ou para o direito. Dir-se-ia que o olho esquerdo pensava numa coisa e o direito parecia estar a pensar numa outra diferente.

Os seus dedos moviam-se imperceptivelmente no colo. Por momentos, fui assaltado por uma sensação angustiante e imaginei aqueles dez dedos, separados das mãos e a dirigirem-se para mim. Estranhos dedos, os seus, a um tempo belos e assustadores, movendo-se lentamente por sobre a mesa para apagar o cigarro, apenas com um terço fumado, no cinzeiro. No meu copo, o gelo começava a derreter e a água cristalina misturava-se aos poucos com o sumo de uva. Uma mistura assaz heterogénea.

Na sala reinava um silêncio enigmático. Uma coisa é o silêncio que se encontra ao penetrar numa grande mansão como aquela. Outra, o que resulta do contraste entre a grandeza do lugar e o escasso número de pessoas que o povoam. Aquele, porém, era um silêncio de uma outra espécie. Um silêncio pleno de ameaças, opressivo. Um silêncio que me fez lembrar uma experiência anterior, mas que demorei a situar com precisão, obrigando-me a desfiar o fio da memória, como quem folheia as páginas de um velho álbum. Era o silêncio que pesa sobre um doente em estado terminal. Um silêncio habitado pelo pressentimento da morte. No ar, inscrita na poalha, flutuava uma atmosfera pesada, fatídica.

- Somos todos mortais - disse o homem pausadamente, olhando-me nos olhos. As suas palavras davam a entender que ele tinha captado na perfeição a corrente do meu pensamento.

- Toda a gente tem de morrer, mais dia, menos dia - acrescentou.

Dito isto, o homem voltou a cair num profundo silêncio. A única coisa que se ouvia era o canto incessante das cigarras, lá fora. Com inusitado frenesi, esfregavam desesperadamente os seus corpos e cantavam, como se quisessem adiar o fim da agonizante estação.

-Tentarei ser o mais honesto possível - disse o homem. A frase soava como a tradução literal de um documento oficial. A escolha de vocábulos e a sintaxe estavam gramaticalmente correctas, mas a frase denotava uma total ausência de sentimento.

- Falar com franqueza e dizer a verdade são duas coisas totalmente diferentes. A honestidade está para a verdade como a proa de um barco para a sua popa. A franqueza aparece em primeiro lugar, a verdade vem depois. O intervalo de tempo entre ambas está na proporção directa da envergadura do barco. A verdade, quando aplicada às grandes questões, tarda em aparecer. Acontece, por vezes, que só se manifesta depois da morte. Por tudo isso, não será por culpa minha nem tua caso a verdade não venha à tona.

Sem saber que resposta dar àquele preâmbulo, optei por ficar calado. Confrontado com o meu silêncio, ele prosseguiu com o seu discurso.

- A razão por que te pedi para vires de propósito até aqui prende-se com a necessidade de fazer o navio avançar. Juntos, daremos ambos conta dessa missão. Falando com franqueza, conseguiremos aproximar-nos, nem que seja numa primeira etapa, da verdade.

Chegado àquele ponto, o homem tossiu e lançou um olhar furtivo à minha mão, que repousava sobre o braço do sofá.

- Mas chega de abstracções. Como tal, vamos passar ao plano concreto. Para começar, temos a questão do boletim informativo e do anúncio que tu criaste. Creio que estás ao corrente, não é verdade?

- De facto, assim é.

O homem assentiu com a cabeça. Após fazer uma pausa, continuou a sua explanação.

-Tenho a certeza de que, tal como aconteceu com o teu sócio, a coisa te deve ter causado alguma surpresa. Ninguém gosta de ver o fruto do seu trabalho ir por água abaixo, para mais tratando-se de um importante meio de subsistência. Isso pode implicar perdas reais bem grandes, se não estou em erro...

- Tem razão.

- Gostaria de ouvir a tua opinião sobre essa questão da perda real.

- Num ramo de trabalho como o nosso, as perdas fazem parte dos ossos do ofício. Pode dar-se o caso de um cliente recusar um trabalho entretanto encomendado. Para uma pequena empresa como a nossa, isso constitui um golpe fatal. Portanto, a fim de evitarmos situações dessas, procuramos cumprir os desejos do cliente a cem por cento. Em casos extremos, isso implica analisar à lupa com ele cada linha que sai na nossa revista. Desse modo evitamos riscos desnecessários.

Não se pode dizer que seja uma tarefa fácil, sobretudo tendo em conta a nossa escassez de meios, mas, enquanto lobos solitários(9), empenhamo-nos a fundo por sobreviver.

- Toda a gente tem de desbravar caminho partindo dessa premissa - referiu o homem, em jeito de consolação. - Sendo assim, posso concluir, pelo que me acabas de dizer, que ao ter mandado retirar de circulação os exemplares da referida revista promocional, a vossa empresa conheceu um considerável revés económico?

- Bom, de facto, assim aconteceu. O boletim estava já impresso e encadernado, pelo que temos de pagar até ao fim do mês os gastos com o papel e a impressão. Além disso, também temos de satisfazer os compromissos financeiros com os colaboradores a quem encomendámos os artigos. Em números redondos, isso equivale a cerca de cinco milhões de ienes. E, para cúmulo dos males, há ainda a acrescer os juros a pagar pelo empréstimo que entretanto fomos obrigados a fazer. Ainda por cima, o ano passado investimos uma quantidade de dinheiro em equipamentos pesados, a fim de modernizar o nosso escritório.

- Bem sei - disse o homem.

- Isto sem esquecer os problemas contratuais que se adivinham com aquele cliente. Não nos encontramos em posição de força, e os clientes tendem a prescindir das agências de publicidade que não honram os seus compromissos. Temos um contrato com a companhia de seguros de vida para publicar a revista durante um ano, e se tivermos de rescindir por causa disto, é caso para dizer que o barco irá ao fundo. Somos uma firma pequena, sem grandes contactos, e crescemos graças ao bom nome conquistado de boca em boca. Se começam a correr rumores desagradáveis, é o nosso fim.

Mesmo depois de eu ter acabado de falar, o homem continuou a fixar-me sem dizer nada. Ao fim de alguns momentos, reatou a conversa.

 

*9. Remete para a Antropologia, esta metáfora que se estende, sobretudo neste contexto, à área da Economia e à ideia de «espírito de ilha aberta», que teria impulsionado, entre outros, os Ingleses na Revolução Industrial e na primeira vaga da Globalização, bem como os Japoneses nas décadas de 1970 e 1980. Os «lobos solitários» são conhecidos pela sua capacidade geoestratégica de actuar na zona de penumbra e de descobrir, no mundo inteiro, os parceiros certos, isto em termos sumários. (N. da T.)

 

- Aprecio a tua franqueza. Além do mais, tudo o que me acabaste de dizer só vem confirmar as nossas investigações. Os meus parabéns, um ponto a teu favor. E se eu te dissesse que estava disposto a cobrir a totalidade dos gastos e todos os prejuízos causados pela encomenda cancelada com a companhia de seguros, e, ainda, a garantir à empresa condições para que o contrato fosse cumprido?

- Nesse caso, não haveria mais nada a dizer. Regressaríamos à nossa actividade de todos os dias, não deixando, contudo, de estranhar tudo o que entretanto aconteceu.

- E que tal se acrescentarmos um prémio suplementar? Só tenho de escrever meia dúzia de palavras no verso de um cartão-de-visita e a empresa terá trabalho assegurado nos próximos dez anos. E olha que não estou a falar desses miseráveis panfletos.

- Um pacto, em resumo.

- Chamemos-lhe uma transacção amigável. Pela minha parte, tomei a liberdade de informar amavelmente o teu sócio de que esse tal boletim informativo deixou de ser publicado. Se tu estiveres disposto a fazer-me um favor, também eu retribuirei na mesma moeda. Achas que tal será possível? Acredita, os meus bons préstimos podem revelar-se muito vantajosos. Por certo que não vais passar o resto da vida a trabalhar para esse teu sócio, incompetente bebedolas, não é verdade?

- Somos amigos - disse eu.

Seguiu-se silêncio pesado, como o de uma pedra a cair dentro de um poço profundo. A pedra demorou trinta segundos a tocar no fundo.

- Como queiras - retorquiu o homem. - O problema é teu. Dei-me ao trabalho de estudar o teu historial. Muito interessante, devo dizer. Nos dias que correm, as pessoas podem regra geral ser divididas em dois grupos: o dos medíocres realistas e o dos medíocres sonhadores. Tu pertences claramente ao segundo. O destino que te aguarda é o da mediocridade irreal.

- Vou ver se não me esqueço.

O homem assentiu. Eu bebi metade do sumo de uva, bastante aguado devido ao gelo que entretanto se derretera todo.

- Muito bem, passemos ao que interessa - anunciou o homem. -Vamos lá falar da história do carneiro.

O homem trocou de posição e tirou de dentro de um sobrescrito uma grande fotografia a preto e branco. Colocou-a sobre a mesa. A impressão que dava era de que entrara na sala um leve sopro de realismo.

- Esta é a fotografia que saiu na tal revista.

Para uma ampliação tirada directamente da página de uma revista, era uma imagem espantosamente nítida. Provavelmente, tinham utilizado alguma técnica especial.

- Tanto quanto sabemos, encontraste a foto a título pessoal e depois utilizaste-a na revista. Estou certo?

- Correcto.

O homem aclarou a garganta e por momentos deixou-se ficar calado. Era uma maneira de estar calado que podia servir de medida para avaliar a qualidade do silêncio.

- Pois bem, o que nós pretendemos são algumas informações, nomeadamente de onde é que surgiu esta fotografia e como é que ela chegou às tuas mãos, e, ainda, qual foi a tua intenção ao utilizares uma foto tão má na revista.

- Tenho muita pena mas isso não posso dizer - respondi com uma audácia de todo o tamanho que a mim próprio me deixou surpreendido. - Os jornalistas têm o direito de preservar as suas fontes.

De olhos postos em mim, o homem passou a ponta do dedo médio da mão direita sobre os lábios. Repetiu o gesto por várias vezes e só depois voltou a pousar as mãos em cima dos joelhos. O silêncio persistia. «Que bela ocasião para um cuco, por exemplo, se pôr a cantar», pensei. Escusado será dizer que nenhum cuco desatou a cantar. Os cucos não cantam ao entardecer.

- Saíste-me um tipo mesmo estranho - afirmou o homem. - Não sei se sabes, mas basta uma palavra da minha parte e vocês ficam sem negócio para o resto da vida. Nessa altura nem sequer poderás invocar o estatuto de jornalista. Isto partindo do princípio, claro está, de que editar folhetos insignificantes, boletins informativos e coisas que tais possa merecer o nome de jornalismo...

Voltei a pensar no cuco. Por que não cantam os cucos quando cai a noite?

- E há mais: conheço mil maneiras de obrigar pessoas da tua laia a falar.

- Não duvido - retorqui -, mas é preciso tempo e eu não faço tenções de abrir a boca até ao fim. E mesmo que fale, nunca direi tudo. E o senhor não tem maneira de saber o que «tudo» representa. Tenho ou não razão?

Claro que não passava de pura gabarolice da minha parte, ainda que coerente com o curso da conversa. Além disso, o silêncio que se seguiu às minhas palavras veio provar que eu tinha marcado pontos.

- É muito interessante falar contigo - disse o homem. - Há qualquer coisa de patético no teu irrealismo. Bom, vamos mudar de assunto.

Tirou uma lupa do bolso e pousou-a em cima da mesa.

- Com isto podes examinar a fotografia à tua vontade. Peguei na fotografia com a mão esquerda e, empunhando a lupa

na direita, inspeccionei metodicamente a fotografia. Alguns carneiros estavam virados para mim, outros olhavam numa direcção diferente, outros ainda havia que pastavam alheados a tudo. Uma cena que sugeria o ambiente enfadonho de uma daquelas reuniões de antigos alunos. Passei em revista os carneiros, um por um, observei o estado da relva, o bosque de bétulas, bem como a cadeia de montanhas ao fundo, assim como as nuvens que flutuavam esparsas no céu. Não havia ali nada que chamasse a minha atenção.

- Notaste alguma coisa fora do normal?

- Nenhuma - confessei.

O homem não mostrou qualquer sinal de desapontamento.

- Creio que estudaste Biologia na faculdade, não foi? - perguntou ele. - O que é que me sabes dizer acerca dos carneiros?

- Praticamente nada. Só aprendi coisas muito especializadas, sem qualquer aplicação prática.

- Diz-me o que sabes.

- Que são os machos das ovelhas, herbívoros e gregários, pertencem à ordem dos artiodáctilos. Foram introduzidos no Japão no começo do período Meiji(10), se não me engano. Animal apreciado pela lã e pela carne. É tudo.

- Muito bem - aplaudiu o homem. - Contudo, permito-me fazer uma ligeira correcção. Não foi nos primórdios do período Meiji que os carneiros foram introduzidos no Japão, mas sim durante o período

 

*10. 1868-1912. (N. da T.)

 

Ansei. (11) Antes disso, porém, tal como disseste, os carneiros eram desconhecidos no Japão. Existe uma teoria segundo a qual teriam sido trazidos da China durante o período Heian(12), mas, a ser verdade, posteriormente a raça ter-se-ia extinguido. De modo que, até ao período Meiji, a maioria dos japoneses nunca tinha posto a vista em cima de um carneiro nem tão-pouco fazia ideia do seu aspecto. Apesar da relativa popularidade que este animal devia ter, por ser um dos doze símbolos do zodíaco chinês, o certo é que aqui ninguém podia dizer de que espécie de animal se tratava. Quer dizer, podia muito bem pertencer à mesma ordem das criaturas imaginárias então representadas pelo dragão ou pela Fénix, por exemplo. De facto, todas as representações de carneiros assinadas pelos japoneses antes do período Meiji mostram figuras monstruosos. É caso para dizer que sabiam tanto de carneiros como H. G. Wells de marcianos.

«Ainda hoje em dia, pode dizer-se que é espantosa a ignorância que os Japoneses têm acerca dos carneiros. O que equivale a dizer que, do ponto de vista histórico, este animal nunca teve qualquer importância para a vida quotidiana do povo japonês. Por decisão governamental, foram importados dos Estados Unidos, reproduziram-se e, em seguida, caíram no esquecimento. Aí tens a história desses animais. Depois da guerra, quando se procedeu à liberalização do comércio de lã e de carne de ovino com a Austrália e a Nova Zelândia, a cria destes animais perdeu todo o interesse no Japão. Pobre bicho, não te parece digno de compaixão? De certa maneira, pode dizer-se que eles são a própria a imagem do Japão moderno.

«Contudo, não é minha intenção fazer uma palestra sobre a vã glória do Japão moderno. Desejo apenas chamar a tua atenção para duas coisas: em primeiro lugar, que antes do fim do período feudal, não existia sequer um carneiro no Japão; e, em segundo lugar, que os carneiros foram sujeitos a um rigoroso controlo governamental, uma vez importados. Que conclusão é que se pode tirar destes dois pontos?

Não era uma pergunta de retórica: tinha sido dirigida a mim.

- Que todas as espécies ovinas existentes neste país são bem conhecidas e estão devidamente registadas - respondi.

 

*11. Período em que reinou o imperador Ansei: 1854-1860. (N. da T.)

  1. Período Heian: 794-1185. (N. da T.)

 

- Nem mais nem menos. Pode ainda acrescentar-se que, tal como acontece com os cavalos de corrida, a reprodução dos carneiros é um ponto essencial, daí que seja possível traçar a sua origem até algumas gerações. Por outras palavras, trata-se de um animal ao mais alto grau. No que diz respeito ao cruzamento com outras espécies, também está sujeito a um rigoroso controlo. Não existe importação clandestina, pois não existe ninguém suficientemente louco para se entregar a esse contrabando. No que toca às raças, temos o Southdown, o merino espanhol, o Cotswold, o carneiro chinês, o Shropshire, o Cor-riedale, o Cheviot, o Romanovsky, o Ostofresian, o Border Leicester, o Romney Marsh, o Lincoln, o Dorset Horn, o Suffolk... e creio que já está. Agora que sabes tudo isto - referiu o homem -, gostaria que olhasses para a fotografia uma vez mais.

Tornei a pegar na fotografia e na lupa.

- Olha bem para o terceiro carneiro a contar da direita, na primeira fila.

Aproximei a lupa do terceiro carneiro na fila da frente. A seguir olhei de relance para os que estavam ao lado, depois voltei a concentrar a minha atenção no terceiro carneiro da direita.

- E agora, já vês alguma coisa?

- É de uma raça diferente - respondi.

- Efectivamente, assim é. Tirando o terceiro carneiro a contar da direita, todos os outros são vulgares espécimes da raça Suffolk. Esse é o único diferente. Mostra-se bastante mais gordo do que os Suffolk, e a cor da pelagem é diferente. Também não tem o focinho negro. Não sei explicar, mas, de certo modo, dá impressão de ser mais robusto e poderoso. Mostrei esta fotografia a um especialista em gado ovino e a conclusão é a de que esta espécie não existe no Japão. Nem muito provavelmente no resto do mundo. O que significa que, para todos os efeitos, tens diante de ti um carneiro que não devia existir.

Agarrei na lupa e examinei uma vez mais o terceiro carneiro a contar da direita. Observando melhor, descobri, mesmo no meio do seu lombo, aquilo que parecia ser uma pequenina mancha, como se alguém tivesse entornado café por cima dele. A mancha apresentava contornos indefinidos: umas vezes parecia-me um defeito na película, outras, uma ilusão de óptica. Também podia dar-se o caso de alguém ter entornado um pouco de café por cima do carneiro.

- Vejo uma pequena mancha, nas costas.

- Não é uma mancha - disse o homem. - É uma marca de nascimento em forma de estrela. Ora compara com isto.

O homem sacou uma fotocópia de um sobrescrito e passou-ma directamente para a mão. Reproduzia o desenho de um carneiro, aparentemente realizado com um lápis grosso, visto que as margens do papel mostravam vestígios de dedadas negras. No conjunto, denotava uma certa ingenuidade, e, contudo, havia qualquer coisa naquele desenho que despertava a nossa atenção, parecendo denunciar alguma coisa. Os pormenores tinham sido traçados com uma minúcia que roçava o insólito. Tratei de comparar o carneiro da foto com o carneiro do desenho e o carneiro do desenho com o carneiro da foto. Vendo bem, tratava-se indiscutivelmente do mesmo animal. A marca em forma de estrela no lombo do carneiro desenhado correspondia à mancha do carneiro fotografado.

- E, agora, vê-me isto - disse o homem, acompanhando as suas palavras com o gesto de tirar do bolso das calças um isqueiro e entregando-mo. Era um pesado Dupont prateado, por certo um modelo fabricado de encomenda. Tinha gravado o mesmo carneiro que eu vira no interior da limusina. Sobre o lombo do carneiro, preto no branco (claramente visível a olho nu), distinguia-se a marca de nascimento em forma de estrela.

Senti que me começava a doer um pouco a cabeça.

 

- Há pouco falava da mediocridade - disse o homem. - Não era nenhuma crítica directa. Ou, dito de uma forma mais simples, o mundo é um poço de mediocridade e, como tal, dele provém também a tua. Não concordas?

- Não percebo onde quer chegar.

- O mundo é medíocre. Até aí, nenhuma dúvida. Agora, a questão é saber se o mundo terá sido sempre medíocre desde a sua origem. Pois bem, a resposta é «não». No princípio, era o caos, e o caos não significa mediocridade. O processo que conduz à mediocridade começou quando a Humanidade estabeleceu a separação entre a vida quotidiana e os meios de produção. Posteriormente, quando Karl Marx introduziu o conceito de proletariado, estava, sem saber, a consolidar essa mesma mediocridade. E, por isso mesmo, o estalinismo encontra-se directamente ligado ao marxismo. Admiro Marx, e estou de acordo com ele. É um dos poucos génios que conservam a memória do caos primordial. Pela mesma ordem de ideias, também sinto uma profunda admiração por Dostoiévski. Agora, confesso que o marxismo não me seduz. Existe ali demasiada mediocridade.

O homem deixou escapar um suspiro que cresceu do fundo da sua garganta.

- Falo-te com toda a franqueza. Encara isto como uma prova de gratidão, pelo facto de teres sido sincero comigo. Mais, estou disposto a responder a todas as tuas perguntas, por mais ingénuas que sejam. Contudo, quero que saibas que, assim que eu acabar de falar, as tuas opções de escolha serão extremamente limitadas. Dito de outro modo, tu próprio acabaste de aumentar a parada. Estamos entendidos?

- Que alternativa tenho eu? - retorqui.

- Neste preciso momento, no interior desta mansão, um ancião encontra-se à beira da morte - começou ele. - A causa é conhecida. Tem um enorme coágulo de sangue no cérebro, grande a ponto de deformar o próprio cérebro. Quais são os teus conhecimentos, no que respeita à área da neurologia?

- Quase nenhuns.

- Nesse caso, e simplificando, trata-se de uma bomba de sangue. Um bloqueio na circulação que provoca um inchaço anormal nas artérias. Como se uma serpente tivesse engolido uma bola de golfe, estás a ver? No caso de rebentar, cessa de imediato a função cerebral. No entanto, toda e qualquer operação está fora de questão, visto que o menor estímulo poderia provocar esse rebentamento. Encarando a questão de forma realista, resta-nos aguardar a sua morte. Pode durar uma semana, ou pode durar mais um mês. Ninguém sabe.

O homem franziu os lábios e, acto contínuo, deixou escapar novo suspiro.

- A morte dele nada tem de estranho. Trata-se de uma pessoa de idade, e o diagnóstico da sua doença não oferece dúvidas. Quando muito, difícil é explicar o facto de ele ainda se encontrar vivo.

Eu não fazia a mínima ideia do que o homem estava a querer dizer.

- De facto, não teria sido nada estranho se ele tivesse morrido há trinta e dois anos - continuou o homem. - Ou, até mesmo, há quarenta e dois anos. O coágulo de sangue foi detectado por um médico do Exército norte-americano que procedia a uma inspecção médica dos criminosos de guerra de classe A. Isto remonta ao Outono de 1946, pouco antes da criação do Tribunal de Guerra de Tóquio. Ao ver as radiografias, o médico ficou extremamente alarmado, isto na medida em que a existência de um ser humano capaz de sobreviver - ainda por cima com uma actividade cerebral superior à habitual, com um coágulo assim tão grande no cérebro - desafiava, e muito, todas as explicações da medicina. A seguir, o homem foi transferido da prisão de Sugamo para o então hospital militar de São Lucas, a fim de aí ser submetido a uma série de exames mais completos.

«Os exames médicos continuaram durante um ano, mas, no final, não se conseguiu apurar nada. Tirando, claro está, o facto de não ser surpresa nenhuma para ninguém se ele morresse de um momento para o outro, uma vez que o simples facto de ele estar vivo era já de si um mistério. No entanto, e como não dava mostras de qualquer incapacidade, continuou a viver e a dar sinais de grande vitalidade. A sua actividade cerebral, inclusivamente, não podia ser mais normal. As razões para tal permaneceram obscuras. Um beco sem saída para os investigadores. Um ser humano que teoricamente deveria estar morto, continuava vivo e recomendava-se.

«O que não significa que não se tenham verificado certas alterações no seu estado de saúde. Tinha fortes enxaquecas que duravam três dias, e que se declaravam ciclicamente todos os quarenta dias. Segundo testemunho prestado pelo próprio, estas enxaquecas haviam começado a manifestar-se em 1936, de onde os médicos concluíram que teria sido essa a data da aparição do coágulo sanguíneo. As dores de cabeça eram de tal forma violentas que durante esse período viam-se obrigados a administrar-lhe calmantes. Que é como quem diz, drogas. Porém, se é verdade que as drogas eliminavam a dor, o certo é que também lhe provocavam alucinações. Alucinações terríveis. Só ele sabia até que ponto aquela experiência era dolorosa, mas tudo leva a crer que se tratava de algo muito desagradável. Ainda existem, em poder do Exército norte-americano, registos que dão conta circunstanciadamente de tais alucinações. Na verdade, os médicos deixaram tudo escrito, ao pormenor. Arranjei maneira de deitar a mão a toda essa documentação e li-a por mais de uma vez; apesar de estar escrita numa linguagem científica, isso nada retira ao carácter dramático da situação. Creio que poucas pessoas neste mundo terão sido capazes de aguentar a experiência repetida de tais alucinações e sobreviver.

«Ninguém sabe explicar a causa dessas alucinações. Chegou a pensar-se que o coágulo libertasse a intervalos regulares alguma espécie de energia, funcionando as enxaquecas como uma reacção defensiva por parte do organismo. No momento em que o mecanismo de defesa das enxaquecas era suprimido, a dita energia estimularia directamente uma zona do cérebro, provocando alucinações monstruosas.

Isto, naturalmente, não passava de uma hipótese, mas foi quanto bastou para despertar o interesse por parte das autoridades militares americanas, que de imediato demonstraram vivo interesse no caso. De tal maneira que chegaram a dar início a uma investigação, por sinal uma investigação altamente secreta. Ainda hoje não se compreende por que razão, a fim de investigar um simples coágulo sanguíneo, tiveram de entrar em cena os serviços secretos americanos, mas várias hipóteses podem ser aventadas.

«A primeira é que, sob a capa da pesquisa médica, os Americanos andassem à caça de informações de natureza mais delicada. Que é como quem diz, que quisessem proceder ao firme controlo das redes de espionagem e do tráfico de ópio no continente chinês. É bom não esquecer que a perspectiva de uma derrota de Chiang Kai-chek significava para os Americanos a perda da sua «ligação» à China continental. Escusado será dizer que inquéritos desse tipo não podiam ser feitos a nível oficial. E realmente, na sequência dessa série de investigações, o Líder Supremo foi posto em liberdade e não teve de comparecer em tribunal. Existem fortes suspeitas de que terá havido um acordo qualquer nos bastidores. A sua liberdade em troca de informações, digamos.

«A segunda possibilidade é que se tivesse querido demonstrar uma relação de causa e efeito entre o coágulo cerebral do Líder Supremo e a excentricidade de uma personalidade que se sabia ser o líder da extrema-direita. Haveremos de voltar a ela, mas não se trata de uma hipótese tão descabelada como poderá à primeira vista parecer. Apesar de neste ponto os investigadores também não terem chegado a nenhuma conclusão. Como é que podiam imaginar que iam descobrir um mistério daquele calibre quando o facto de ele continuar vivo escapava totalmente à sua compreensão? Teria sido necessário proceder a uma autópsia para dissecar o cérebro e ficar a saber qualquer coisa. E assim chegamos a um novo beco sem saída.

«A terceira possibilidade seria a de uma "lavagem ao cérebro". Consiste na estimulação do cérebro mediante certas ondas magnéticas, a fim de obter determinadas reacções. Naquela época, era uma experiência que estava na moda. De facto, sabe-se agora que, à data, organizaram-se nos Estados Unidos grupos de estudo que efectuaram pesquisas sobre a temática das lavagens ao cérebro.

«Não se sabe qual dessas três linhas de pensamento constituía a principal meta dos serviços secretos norte-americanos. Nem tão-pouco é claro se os esforços deles, se é que assim se lhes pode chamar, permitiram chegar a quaisquer conclusões. Tudo isso ficou para trás, pertence ao passado. Apenas um punhado de pessoas nas mais altas esferas do Exército americano da altura, para além do próprio Líder Supremo, sabem a verdade. Até agora, o Líder Supremo nunca falou disso a ninguém, nem sequer a mim, e é pouco provável que o venha a fazer no futuro. Por essa razão, tudo o que te contei até ao momento não passa de uma mera conjectura.

Chegado àquele ponto do seu relato, o homem pigarreou delicadamente. Eu tinha perdido por completo a noção do tempo desde que entrara naquela sala.

- Em contrapartida - acrescentou ele -, no que diz respeito aos acontecimentos de 1936, ano em que se pensa que o coágulo se terá formado, as circunstâncias estão mais bem definidas. No Inverno de 1932, o Líder Supremo foi feito prisioneiro, acusado de cumplicidade numa tentativa de assassinato contra uma importante figura, tendo permanecido atrás das grades até Junho de 1936. Existem documentos que o provam, como o registo oficial da prisão e o historial clínico, e, além disso, o próprio Líder Supremo se referiu por mais de uma ocasião ao assunto. Em resumo, o caso é o seguinte: durante a sua passagem pela prisão, o Líder Supremo apresentou sintomas de insónia crónica. Não se tratou de simples episódios de insónia, mas sim de acessos prolongados e particularmente perigosos. Durante três, quatro dias a fio, às vezes mais de uma semana, não pregava olho. Naquela época, a Polícia, a fim de obrigar os presos políticos a confessar, recorria à tortura do sono. No caso do Líder Supremo, dada a sua intervenção em actividades contra o partido pró-imperialista e os partidários do dirigismo militar então no poder, os interrogatórios devem ter sido especialmente duros. Quando o preso tenta dormir, atiram-lhe água para cima, batem-lhe com varas de bambu, encan-deiam-no com focos de luz, enfim, usam todos os recursos para impedi-lo de dormir. Caso o tratamento se prolongue durante meses, a maioria das pessoas acaba por experimentar graves lesões físicas. Os padrões de sono ficam alterados. Algumas pessoas morrem, outras acabam por enlouquecer, outras, ainda, tornam-se insones crónicos. Foi, de resto, o que aconteceu ao Líder Supremo, que só conseguiu recuperar por completo das suas insónias na Primavera de 1936. Que é como quem diz, por volta da mesma altura em que se formou o coágulo. Como é que explicas isto?

- Está a sugerir que a prolongada insónia terá dificultado a circulação sanguínea no cérebro do Líder Supremo, provocando por sua vez um coágulo?

- Com efeito, é a hipótese mais plausível. E visto que até tu, um leigo na matéria, pensas isso, mais uma razão para os médicos do Exército americano terem levado a hipótese em consideração. Ainda assim, não chega para explicar tudo. Estou em crer que ainda deve existir um outro factor, um factor de importância primordial. Não consigo deixar de pensar que o coágulo cerebral seria uma manifestação secundária. Isto porque há mais pessoas que têm coágulos sanguíneos sem que apresentem aqueles sintomas. Além de que a insónia, em si, não chega para explicar por que razão o Líder Supremo continua vivo.

Sem dúvida que as palavras do homem tinham a sua lógica.

- Existe um dado interessante, no que respeita ao coágulo. Acontece que, a partir da Primavera de 1936, pode dizer-se que o Líder Supremo passou a ser um novo homem, uma vez que a sua personalidade mudou por completo. Até então, digamos que ele não passava de um medíocre activista de extrema-direita. Terceiro filho nascido no seio de uma pobre família de camponeses de Hokkaido, saiu de casa aos doze anos e foi viver para a Coreia; mas como ali as coisas também não lhe correram bem, regressou à pátria e ingressou num grupo de extrema-direita. Era o típico agitador exaltado, sempre disposto a brandir a sua espada de samurai. O mais certo era nem saber ler. Porém, no Verão de 1936, quando foi libertado da prisão, o Líder Supremo converteu-se num dos líderes destacados da extrema-direita, com tudo o que isso implica. Possuía carisma, uma ideologia sólida, um verbo incisivo que lhe permitia suscitar reacções apaixonadas, visão política, grande capacidade de decisão e, acima de tudo, uma extrema habilidade para tocar no coração das massas e arrebatar multidões.

O homem recuperou o fôlego e pigarreou ligeiramente.

- Naturalmente - acrescentou -, as suas teorias enquanto ideólogo de extrema-direita, bem como a sua maneira de ver o mundo, eram bastante superficiais e infantis. Mas não é aí que está o busílis.

A questão essencial consiste em saber até que ponto as suas teorias poderiam ser transformadas e postas ao serviço do poder. Basta ver a maneira como Hitler conseguiu transformar os conceitos não menos pueris que dizem respeito ao Lebensraum(13) e à superioridade da raça, consolidando-os ao nível do aparelho de estado. O Líder Supremo, porém, não tomou esse caminho. Preferiu fazer um desvio e seguir por um caminho secreto - um caminho de sombras. Sem nunca dar a cara abertamente, manipulava a sociedade, permanecendo nos bastidores. Animado por esse propósito, partiu em 1937 para a China... Mas deixemos isso e regressemos à história do coágulo. Isto para dizer que a formação do coágulo sanguíneo coincide com a milagrosa transformação do Líder Supremo.

- A julgar pela sua teoria - disse eu -, entre o coágulo sanguíneo e a extraordinária recuperação que o seu Líder Supremo conheceu não existe uma relação de causa e efeito, mas sim uma mera situação de paralelismo, por detrás da qual existiria um importante e misterioso factor.

- És rápido a tirar ilações - referiu ele. - Claro e conciso.

O homem tirou um segundo cigarro da caixa de tabaco e bateu com a ponta da unha nas duas extremidades, antes de o levar à boca, mas sem o acender.

-Vamos por partes - declarou.

Seguiu-se um profundo silêncio.

- Construímos um reino - prosseguiu ele -, um poderoso reino subterrâneo. Controlamos tudo o que possas imaginar: o mundo da política, o das finanças, os meios de comunicação de massas, os órgãos governamentais, os agentes da cultura... e muitas coisas mais que nem sequer te passam pela cabeça. Até mesmo aqueles ambientes hostis nós controlamos. Desde o poder à oposição. Esses grupos, na sua grande maioria, nem sequer se deram conta de que estão sob a nossa alçada. Em resumo, a nossa organização revela um elevado grau de sofisticação, erigida que foi pelo Líder Supremo, depois da guerra, com as suas próprias mãos. Podemos até dizer que o Líder Supremo é o timoneiro desse gigantesco barco que dá pelo nome de Estado. Bastaria ele furar o casco, que o navio afundaria a pique.

 

*13. Espaço vital. (N. da T.)

 

Antes que os passageiros se apercebessem de alguma coisa, já estariam com a água pelo pescoço.

Nessa altura, o homem acendeu finalmente o seu cigarro.

- A verdade, porém, é que a nossa organização tem os seus limites: a morte do soberano. Se o rei morrer, o reino desaparece do mapa. Porque o reinado foi edificado graças ao génio de um só homem. Ou, de acordo com a minha hipótese, isto equivale a dizer, graças a um certo factor misterioso. Quando o Líder Supremo morrer, estará tudo acabado. E isso acontecerá na medida em que a nossa organização não é burocrática, mas sim uma máquina perfeita que funciona com um cérebro no comando. É essa, ao mesmo tempo, a razão da força da nossa organização e o seu ponto fraco. Ou, melhor dizendo, era. Mais cedo ou mais tarde, a seguir à morte do Líder Supremo, a organização fragmentar-se-á e, como Valhala consumida pelas chamas, afundar-se-á cada vez mais no oceano da mediocridade. Sem ninguém à altura de lhe suceder, a organização cairá por si - um magnífico palácio demolido para dar lugar a um bairro de habitação social. Um mundo uniforme e estático, onde a vontade não conta para nada. Ainda assim, pode muito bem acontecer que tu consideres isso legítimo e positivo. Quero dizer, que a nossa organização desapareça. Nesse caso, só te peço uma coisa. Tenta imaginar o Japão inteiro como uma superfície plana, sem montanhas, sem praias ou lagos... e onde se erguessem apenas filas e mais filas de blocos de habitação social. Achas que seria legítimo?

- Não sei - respondi. - Para começar, nem sequer tenho a certeza se essa questão é pertinente.

- Resposta inteligente - retorquiu o homem, cruzando as mãos sobre os joelhos e pondo-se a tamborilar com as pontas dos dedos num ritmo lento.

- Toda esta história dos bairros sociais - prosseguiu -, era apenas uma metáfora. Falando com mais propriedade, a nossa organização divide-se em dois segmentos: uma parte que avança, e outra que faz avançar. Existem outras, mas não são fundamentais. A parte que avança é a Vontade, e a que faz mover é o Lucro. Quando as pessoas falam do que acontecerá se o Líder Supremo morrer, pensam única e exclusivamente na questão dos lucros. E quando o Líder Supremo morrer, as pessoas estarão apenas interessadas na sua fatia dos lucros, e será o Lucro a provocar o desmembramento da nossa organização.

Ninguém vai escolher a Vontade, visto que ninguém compreende do que se trata. Este é o sentido que atribuo à palavra «fragmentação». A Vontade não admite ser fragmentada. Ou é transmitida na sua totalidade, ou se perde para sempre.

Os dedos do homem continuavam a tamborilar vagarosamente sobre os seus joelhos. Tirando esse pormenor, o seu aspecto continuava a ser o mesmo que tinha ao princípio. O mesmo olhar fixo, as mesmas pupilas geladas, o mesmo rosto correcto e inexpressivo. A cara dele tinha estado durante todo o tempo virada para mim, sem nunca mudar de ângulo.

- O que entende por Vontade? - perguntei eu.

- Um conceito que rege tanto o tempo como o espaço, que controla as possibilidades.

- Não estou a compreender.

- Naturalmente. Poucos são os que o conseguem. Só o Líder Supremo para o compreender de uma forma instintiva, por assim dizer. Indo mais ao fundo da questão, diria que este conceito assenta na negação do autoconhecimento. É a condição indispensável que permite a revolução perfeita. Só assim será possível uma revolução mais radical. Uma revolução que, se quiseres, faria do capital um elemento integrante do trabalho, e do trabalho um elemento integrante do capital.

- Um bocadinho utópico, não?

- Pelo contrário. A utopia reside no conhecimento - contrapôs ele energicamente. - É evidente que tudo aquilo que eu te estou a dizer são apenas palavras. Por mais que quisesse, nunca conseguiria explicar-te, por exemplo, de que modo funciona a Vontade do Líder Supremo. A minha explicação apenas exprimiria a minha relação com essa Vontade, com base numa outra relação distinta, de ordem linguística. A negação do conhecimento anda a par da negação da palavra. Quando perdem sentido o autoconhecimento e a evolução contínua, dois pilares do humanismo europeu ocidental, a linguagem deixa, por seu turno, de fazer sentido. O ser não existe enquanto indivíduo, mas sim como caos. Esse ser que tu representas não é um indivíduo; é caos e nada mais. Ser é comunicar, e comunicar é ser.

De repente, a sala ficou gelada, e tive a inexplicável sensação de que a meu lado estavam a preparar-me uma cama bem quentinha. Alguém me convidava a enfiar-me nela.

Uma ilusão, como não podia deixar de ser. Estávamos em Setembro. Lá fora, dezenas de cigarras continuavam a cantar ao desafio.

«O movimento de consciencialização que a vossa geração empreendeu ou, pelo menos, tentou levar por diante, nos finais da década de 1960, redundou num estrondoso fracasso, precisamente por estar enraizada na individualidade. Vendo bem, quando se trata de aumentar a consciencialização sem promover uma mudança quantitativa ou qualitativa ao nível dos indivíduos, cai-se irremediavelmente no desespero. É nesse sentido que eu falava há pouco de mediocridade. Enfim, por mais explicações que dê, não estou certo de te fazer compreender isto. Não que esteja à espera que me entendas. Só me esforço por ser honesto contigo.

«Agora, passando à história do desenho que há pouco te entreguei», prosseguiu ele, «trata-se de uma cópia do que está arquivado no dossiê clínico do Departamento Médico do Exército norte-americano. Tem a data de 27 de Julho de 1946. Foi um desenho feito pelo Líder Supremo, a pedido dos médicos, no sentido de documentar as suas alucinações. De facto, segundo o testemunho contido nos arquivos médicos, esse carneiro aparecia com inusitada frequência nos seus processos alucinatórios. Para ser mais preciso, cerca de oitenta por cento das vezes, isto é, em quatro de cada cinco vezes que ele tinha alucinações. E não se tratava de um carneiro vulgar, mas sim de um carneiro castanho com uma marca em forma de estrela no lombo.

«Quanto a esse brasão do carneiro gravado no isqueiro, foi usado pelo Líder Supremo, como a sua marca pessoal, a partir de 1936. Imagino que tenhas reparado que o carneiro do brasão é rigorosamente idêntico ao desenho guardado na ficha clínica. E, como se não bastasse, coincide também com o carneiro da foto que tens diante de ti. Não achas interessante, esse facto?

- Mera coincidência - alvitrei eu. Procurei dar às minhas palavras um tom despreocupado, mas aquilo não me saiu lá muito bem.

- Há mais - continuou o homem. - O Líder Supremo era um coleccionador ávido de toda e qualquer informação que dissesse respeito a carneiros, tanto no nosso país como lá fora. Uma vez por semana, dedicava longas horas a passar em revista todas as notícias relacionadas com carneiros que apareciam nos jornais e revistas japoneses publicados naquela semana. Ajudei-o sempre nessa tarefa. O Líder Supremo levava isso muito a peito. Como se andasse à procura de algo concreto, se queres que te diga. Desde que o Líder Supremo ficou doente, passei eu a encarregar-me a título pessoal dessa tarefa. E a coisa revelou-se verdadeiramente intrigante. Quem sabe o que daí resultaria? E foi então que apareceste tu. Tu e o teu carneiro... Analisando a questão seja por que ângulo for, não se pode considerar uma coincidência.

Sopesei o isqueiro na palma da minha mão. A verdade é que tinha um peso agradável. Nem um grama a mais, nem a menos. E pensar que no mundo pudesse existir um objecto equilibrado de forma tão perfeita.

- Fazes alguma ideia por que razão o Líder Supremo se mostrava tão empenhado na procura do tal carneiro?

- Não - respondi eu. - Seria mais eficaz perguntar-lhe isso a ele.

- Se eu pudesse perguntar-lhe, já o teria feito. Desde há coisa de duas semanas que o Líder Supremo está inconsciente. O mais provável é ele nunca recuperar a consciência. E se o Líder Supremo morrer, morrerá com ele o segredo do carneiro com a estrela nas costas, para sempre enterrado nas trevas. Pela parte que me toca, não me consigo resignar a isso. Não por razões de interesse pessoal, mas em nome de uma grande causa, mais transcendente.

Levantei a tampa do isqueiro, fiz rodar a pedra do isqueiro para acender a chama, depois tornei a fechar a tampa.

- Deves achar toda esta conversa um disparate pegado. E se calhar até tens razão. Se calhar até não passa tudo de uma coisa grotesca. Contudo, gostaria que percebesses que é tudo o que nos resta. O Líder Supremo está a morrer. Como tal, a Vontade morrerá com ele. Depois ficará apenas o que se pode quantificar em números. Nada mais. Por isso é que tenho de encontrar esse carneiro.

Pela primeira vez, o meu interlocutor fechou os olhos e, durante uns breves segundos, permaneceu em silêncio. A seguir, retomou o fio ao pensamento:

- Ocorreu-me uma hipótese que gostaria de partilhar contigo. É apenas uma hipótese, nada mais do que isso. Se não te agradar, esquece. Palpita-me que esse tal carneiro representa, nem mais nem menos, a forma original da Vontade do Líder Supremo.

- Isso soa a conto de fadas, faz pensar naquelas bolachinhas em forma de animais - disse eu.

O homem ignorou o meu comentário.

- Muito provavelmente, o carneiro meteu-se dentro do corpo do Líder Supremo. Pode muito bem ter sido isso o que aconteceu em 1936. A partir de então, e durante mais de quarenta anos, o carneiro viveu sempre dentro do Líder Supremo. É possível que haja ali alguma pradaria e um bosque de bétulas-brancas. Tal como aparece na fotografia. Tens alguma ideia acerca disso?

- É uma hipótese extremamente sugestiva - respondi.

- Não é um carneiro como os outros. Trata-se de um carneiro muito, mas mesmo muito especial. Quero encontrá-lo, dê lá por onde der, e para isso preciso de contar com a tua ajuda.

- E depois, o que pensa fazer com ele?

- Nada. Que poderia um homem como eu fazer? Seria sempre ultrapassado pela envergadura dos acontecimentos. Nesse caso, as minhas esperanças cairiam por terra. Em contrapartida, se esse carneiro manifestasse algum desejo, faria o possível e o impossível para o conseguir. Quando o Líder Supremo morrer, a minha vida deixará de fazer sentido.

Após ter dito aquilo, o homem calou-se. Também eu estava calado. Apenas se ouviam as cigarras no jardim. Tirando lá fora o canto das cigarras e o murmúrio das árvores, batidas pelo vento do crepúsculo, o interior da casa estava mergulhado num profundo silêncio. Partículas de morte povoavam a casa, como uma epidemia incontrolável e fatal. Esforcei-me por imaginar a pradaria alojada no interior da cabeça do Líder Supremo. Uma planície imensa em tons de erva amarelecida, abandonada pelo carneiro em busca de melhores pastos.

- Vejo-me obrigado a insistir: diz-me como fizeste para obter aquela fotografia.

- Não posso - retorqui.

O homem soltou um suspiro.

- Fui sincero contigo. E confesso que esperava que também fosses sincero comigo.

- Não me sinto no direito de falar. Se o fizer, arrisco-me a causar problemas à pessoa que me fez chegar a fotografia às mãos.

- Isso quer dizer - interrompeu o homem - que tens motivos para pensar que esta história do carneiro pode causar amargos de boca à dita pessoa.

- Motivos, propriamente ditos, não. O que tenho é uma espécie de pressentimento. Há aqui qualquer coisa que cheira mal. É o que me tenho estado a dizer durante todo o tempo, enquanto o senhor falava. Aqui há forçosamente qualquer coisa que não bate certo. Chame-lhe uma espécie de sexto sentido, se quiser.

- E é por isso que não queres abrir a boca.

- Exacto - respondi eu, ficando pensativo por momentos. - Sei, por experiência própria, que existem muitas maneiras de causar problemas a terceiros, e conheço bem os métodos mais subtis a empregar a fim de levar a água ao nosso moinho. Tenho passado a minha vida a tentar evitar que as coisas cheguem a esse ponto. O que, diga-se de passagem, me tem criado uma série de outros problemas. É sempre a mesma cantiga, dê lá por onde der. O que não impede que seja eu o primeiro a levar as coisas por esse caminho. É uma questão de princípio.

- Não percebo a tua lógica.

- O que estou a tentar dizer é que a mediocridade é capaz de assumir muitas formas.

Levei um cigarro à boca, acendi-o com o isqueiro que tinha na mão e inalei o fumo. Senti-me um nadinha mais aliviado.

- Não és obrigado a falar, se não queres - referiu o homem. -Em vez disso, vais partir em busca do carneiro. São essas as nossas condições. Se dentro de dois meses, a partir de agora, conseguires dar com o carneiro, estamos dispostos a oferecer-te a recompensa que pedires. Agora, caso não o encontres, tanto tu como a tua empresa estarão acabados. De acordo?

- Não me parece que tenha outra alternativa - respondi. - E se vier a provar-se que o tal carneiro com a estrela no lombo não existe, e que tudo não passou de um enorme mal-entendido?

- Isso não vem mudar nada. Nem para mim nem para ti. Existem apenas duas hipóteses: ou bem que encontras o carneiro, ou não o encontras. Aqui não há meio-termo. Tenho muita pena de te colocar nesta situação, mas, como há pouco tive oportunidade de te dizer, foste tu próprio a definir as regras do jogo e a limitar a tua margem de manobra. A bola está no teu campo, não tens outro remédio senão ires à procura do golo. Isto mesmo que se venha mais tarde a descobrir que não foi golo.

- Com que então, é esse o jogo?

O homem tirou um grosso sobrescrito do bolso e colocou-o à minha frente.

- Aqui tens, para as tuas despesas - disse. - Se vires que não chega, dá-me uma telefonadela. Há mais de onde este veio. Alguma pergunta?

- Pergunta, não, mas tenho um comentário a fazer.

- Um comentário de que género?

- Esta história é a mais absurda, a mais ridícula que alguma vez ouvi. Contudo, ao ouvi-la da sua boca, quase me sinto tentado a acreditar que existe nela algo de verdade. O que não quer dizer que alguém fosse acreditar em mim, se eu contar o que me aconteceu hoje.

Quase imperceptivelmente, o homem crispou os lábios. À sua maneira, aquilo era uma espécie de sorriso.

- Amanhã, sem falta, deitas mãos à obra. Como já te disse, tens dois meses, a contar de hoje.

- É uma tarefa difícil. Dois meses podem não chegar para eu dar conta do recado. Afinal, trata-se de encontrar o rasto de um carneiro perdido num território imenso.

O homem olhou para mim fixamente, sem dizer palavra. Aquele olhar teve o condão de me fazer sentir como uma piscina vazia. Uma piscina vazia, suja, cheia de rachas, que talvez nunca mais voltasse a ser usada. Foram bem uns trinta segundos, o tempo que o homem ficou ali a olhar para mim sem pestanejar. Só então abriu lentamente a boca.

- Está na hora de seguires viagem - disse ele. Também me queria parecer.

 

-Quer voltar para o escritório? Ou deseja que o leve a outro sítio qualquer? - perguntou-me o condutor.

Era o mesmo condutor da viagem de ida, se bem que agora se mostrasse um bocadinho mais cordial. Pelos vistos, era do tipo comunicativo.

Estiraçado à minha vontade no confortável banco traseiro do carro, pus-me a pensar no meu destino. Não tinha a menor intenção de regressar ao escritório. Só de pensar em ter de dar explicações ao meu sócio - que diabo poderia dizer-lhe? -, ficava logo com dores de cabeça, e, além disso, encontrava-me de férias. Por outro lado, também não me estava nada a apetecer voltar directamente para casa. Do que precisava era de passar um bom bocado no mundo real, onde pudesse encontrar gente normal que andasse normalmente em cima de duas pernas.

- Para a saída oeste da estação de Shinjuku - disse ao motorista.

Devido em parte ao adiantado da hora, a auto-estrada para Shinjuku estava terrivelmente congestionada. A partir de um certo ponto, já não se andava, por assim dizer, mais parecia que os carros estavam parados, ancorados ao chão. Volta e meia, como que movidos por uma onda, deslocavam-se meia dúzia de centímetros. Entretive-me por momentos a pensar na velocidade de rotação da Terra. A quantos quilómetros por hora estaria a superfície daquela estrada a girar sobre o seu próprio eixo? Fiz rapidamente um cálculo de cabeça e, em números redondos, cheguei a um número aproximado, ainda que incapaz de dizer se aquela velocidade seria superior ou inferior àquele carrossel das chávenas giratórias que existe nos parques de atracções. Há uma infinidade de coisas que desconhecemos, por mais que estejamos convencidos de saber um pouco de tudo. Caso um dia aparecessem à minha frente uns extraterrestres a perguntar: «Olha lá, a quantos quilómetros por hora gira a Terra em torno do Equador?», via-me aflito para responder. O mais provável era nem sequer conseguir dizer por que razão a quarta-feira vem depois da terça-feira. Seria alvo de gozo à escala intergaláctica.

Li And Quietly Flows the Don e Os Irmãos Karamazov três vezes cada um(14). Até li A Ideologia Alemã, uma vez. E sei de cor o valor de pi até à 16.a casa depois da decimal. Ainda assim, rir-se-iam de mim? Provavelmente, sim. Morreriam a rir.

- Deseja escutar um pouco de música? - perguntou-me o motorista.

- Excelente ideia - respondi eu.

Uma balada de Chopin inundou o interior do carro. Senti-me transportado para a recepção de um banquete de casamento.

- Diga-me uma coisa - perguntei ao motorista -, por acaso sabe calcular o valor de pi?

- A famosa cantilena do 3,14 e por aí fora?

- Isso mesmo. Quantas casas consegue adiantar-me a partir da vírgula dos decimais?

- Sei até trinta e duas - atirou-me o motorista à cara. - A partir daí, bom...

- Trinta e duas?

- Sim. Conheço um pequeno truque de mnemónica. Por que é que pergunta?

- Oh, por nada de especial - retorqui, sentindo que me caía a alma aos pés. - Não tem a mínima importância.

Durante alguns instantes deixámo-nos ficar a ouvir Chopin, enquanto a viatura avançava uma dezena de metros. Os condutores dos outros automóveis, bem como os passageiros dos autocarros, olhavam com visível curiosidade para aquela monstruosa banheira

 

*14. A personagem cita um romance do prémio Nobel da Literatura, Mikhail Lermontov, e um clássico de Dostoiévski, a par do primeiro livro escrito por Karl Marx e Friedrich Engels. (N. da T.)

 

em que viajávamos. Mesmo sabendo que, por causa dos vidros opacos, ninguém podia ver-nos do lado de fora, não deixava de ser desagradável sentir toda aquela gente de olhos fixos em nós.

- O trânsito está impossível - comentei.

- Isso é verdade - replicou o motorista. - Assim como o dia sucede à noite, porém, também não há engarrafamento sem fim.

- Pode ser verdade - confirmei -, mas não o irrita ter de seguir tão devagar?

- É óbvio que sim. Fico irritado e a coisa chateia-me. Especialmente quando tenho pressa. Porém, tenho para mim que tudo isso não passa de uma espécie de provações que são postas no nosso caminho e, como tal, a irritação não leva a parte alguma.

- Quer-me parecer que estamos diante da análise dos congestionamentos de trânsito à luz de uma interpretação religiosa.

- Sou cristão. Não costumo ir à missa, mas sou cristão.

- Ah, sim? E não haverá uma certa contradição entre ser cristão e ser motorista de uma personalidade de extrema-direita?

- O Líder Supremo é uma figura de respeito. Diria mesmo que a mais respeitável de todas as que encontrei até agora, a seguir a Deus.

- Alguma vez encontrou Deus?

- Naturalmente. Falo com ele ao telefone todas as noites.

- Desculpe? - comecei eu a dizer, mas às tantas já estava baralhado outra vez. - Se toda a gente desatasse a telefonar a Deus, haveria uma saturação de linhas e o número estaria sempre ocupado, como acontece com o serviço informativo a seguir à hora do almoço...

- Isso não constitui motivo de preocupação. Deus é, por assim dizer, omnipresente. Por isso, mesmo que houvesse cem milhões de pessoas a ligar-lhe ao mesmo tempo, Deus falaria com todas elas.

- Não estou muito dentro do assunto, mas tem a certeza de que essa interpretação é ortodoxa? Quer dizer, do ponto de vista teológico?

- Pode dizer-se que sou um radical. Por isso é que não frequento a Igreja.

- Estou a ver.

A limusina avançou uns cinquenta metros. Levei um cigarro à boca e preparava-me para o acender quando me dei conta de que tinha estado o tempo todo agarrado ao isqueiro. Sem dar por isso, tinha trazido comigo o Dupont com o carneiro gravado. Aquele isqueiro de prata adaptava-se à minha mão como uma luva. Tudo, o peso, a sensação que dava ao tocar nele, parecia ter sido feito para caber na minha mão. Após um momento de reflexão, resolvi ficar com ele. Quem daria pela falta de um ou dois isqueiros? Abri e fechei a tampa duas ou três vezes, acendi o cigarro e guardei o isqueiro no bolso. Em jeito de compensação, deixei ficar a minha esferográfica Bic descartável no compartimento interior da porta.

- O Líder Supremo deu-mo há alguns anos - referiu o motorista de repente.

- O quê?

- O número de telefone de Deus.

Deixei escapar um suspiro quase imperceptível. Estaria eu a enlouquecer? Ou os loucos eram os outros, aquelas figuras que pareciam saídas de um desenho animado?

- Deu-lho só a si, em segredo?

- Sim. Só a mim, em segredo. É uma excelente pessoa. Gostaria de ter o número?

- Se for possível... - disse eu.

- Bom, nesse caso, ligue para Tóquio e o número é o 945...

- Espere aí um momento - atalhei eu, puxando do bloco de notas e da caneta. - Tem a certeza de que está autorizado a dar-mo, assim sem mais nem menos?

- Claro que sim. Não tenho por hábito dá-lo assim a qualquer um, mas o senhor parece-me boa pessoa.

- Fico muito agradecido - disse eu. - Já agora, diga-me lá uma coisa: de que é que se pode falar com Deus? Pergunto isto porque eu não sou cristão nem nada que se pareça.

- Não tem problema. Basta que lhe diga abertamente o que lhe vai na alma e lhe fale das suas preocupações. Por mais insignificantes que pareçam. Vai ver que Deus nunca se aborrecerá nem fará troça de si.

- Obrigado. Um dia destes, ligo.

-Vai ver que não se arrepende - exclamou o motorista.

Os carros começaram a circular com mais facilidade, e os altos edifícios de Shinjuku não tardaram a aparecer no horizonte. Até ao fim do trajecto não trocámos mais nenhuma palavra.

 

Quando a limusina chegou ao seu destino, a cidade estava envolta num crepúsculo violáceo. Uma brisa suave, que anunciava o final do Verão, começara a soprar por entre os edifícios e fazia esvoaçar as saias das mulheres que regressavam a casa depois de mais um dia de trabalho.

Subi ao último andar de um dos hotéis mais altos, entrei no espaçoso bar e pedi uma cerveja Heineken. Passaram bem uns dez minutos até vir a cerveja. Enquanto esperava, apoiei o cotovelo sobre o braço da cadeira e deixei-me ficar assim, de olhos fechados, com a cabeça apoiada na palma da mão. Não conseguia concentrar-me nem pensar em nada. Com os olhos fechados, a única coisa que ouvia era um ruído que fazia lembrar uma centena de duendes a varrerem o interior da minha mente com as suas vassourinhas. Varriam e tornavam a varrer, e o trabalho deles nunca acabava. A nenhum deles passara pela cabeça usar uma pá do lixo.

Quando me trouxeram finalmente a cerveja, emborquei-a em duas únicas goladas. Acto contínuo, engoli vorazmente os amendoins, servidos num pratinho como acompanhamento. Só então deixou de se ouvir o ruído produzido pelos anõezinhos e as suas vassouras.

Entrei na cabina telefónica, situada junto à recepção, e telefonei à minha amiga, a que tinha umas orelhas lindíssimas. Não estava em casa dela, nem na minha. Podia ser que tivesse saído para jantar. Nunca comia em casa.

A seguir marquei o número do novo apartamento da minha ex-mulher, mas desliguei ao segundo toque. Vendo bem, não tinha nada de importante para lhe dizer, além de que também não queria passar por atrasado mental.

Além das duas, não tinha mais ninguém a quem ligar. Naquela cidade onde se cruzavam diariamente dez milhões de pessoas, eu só tinha duas a quem podia telefonar. E, para cúmulo, estava divorciado de uma delas. Resignado, guardei a moeda de dez ienes no bolso e saí da cabina telefónica. A uma empregada que ia a passar pedi-lhe mais duas Heineken.

E assim chegava ao fim mais um dia. Por sinal, um dia perfeitamente sem sentido, como não me lembrava de ter passado nos dias da minha vida. Seria de esperar que as coisas tivessem corrido de uma forma mais auspiciosa, até porque se tratava do último dia de Verão. Lá fora, estendiam-se as trevas frias que anunciavam a chegada do Outono. Sobre a cidade espalhava-se uma miríade de luzinhas amarelas que se estendiam a perder de vista. Vistas de cima, pareciam estar à espera de serem pisadas e esmagadas por alguém.

Trouxeram-me finalmente as cervejas. Depois de esvaziar a primeira, despejei o conteúdo de um pratinho com amendoins na palma da mão e comecei a dar conta deles, um a um. Na mesa ao lado, quatro mulheres de meia-idade, acabadas de sair de uma aula de natação na piscina do hotel, estavam sentadas à conversa diante dos seus coloridos cocktails tropicais. Imóvel como um boneco, um empregado aguardava ordens, fazendo girar de vez em quando o pescoço para disfarçar os bocejos. Um outro empregado explicava o menu a um casal de americanos de uma certa idade. Acabei com os amendoins e ataquei a terceira Heineken. Depois de três cervejas de uma assentada, já não sabia o que fazer com as mãos.

Tirei do bolso de trás das minhas Levi's o sobrescrito que o homem me tinha dado, abri-o e pus-me a contar as notas de dez mil ienes que havia lá dentro. Aquele maço de notas novinhas em folha, mais do que dinheiro, parecia um baralho de cartas. Quase a meio da contagem, comecei a sentir os dedos cansados. Já ia no número noventa e seis, quando apareceu um criado com mais idade, levantou as garrafas vazias e perguntou-me se queria que ele me trouxesse outra. Fiz sinal que sim com a cabeça sem nunca deixar de contar. Ele não parecia nada impressionado com a tarefa que eu tinha entre mãos.

Estavam ali cento e cinquenta notas. Voltei a guardá-las dentro do sobrescrito e enfiei-o no bolso de trás das calças. Entretanto, chegou a minha cerveja. Uma vez mais, comi os amendoins todos que vinham a acompanhar, e só então me dei conta da fome que tinha. Por que estaria tão esganado? Pensando bem, desde manhã, só tinha metido no estômago uma fatia de bolo de fruta.

Chamei o empregado e pedi-lhe que me trouxesse a carta. Mandei vir uma sanduíche de queijo e pepino, e perguntei o que tinham de acompanhamento. Pedi uma porção de batatinhas fritas e uma dose dupla de picles. E, já agora, não teriam por acaso um corta-unhas? Claro que tinham. Nos bares de hotel há de tudo, como na farmácia. Uma vez, chegaram a emprestar-me um dicionário de francês-japonês.

Bebi a cerveja sem pressas, demorei o tempo que quis a contemplar a paisagem nocturna, cortei as unhas nas calmas. Olhei ainda e sempre para a paisagem urbana, limei as unhas. E assim a noite foi passando. Na arte de matar o tempo na grande cidade, estou a caminho de me tornar um especialista na matéria.

De umas colunas embutidas no tecto, comecei a ouvir dizer o meu nome. A princípio, não me quis parecer que fosse o meu, mas ao fim de alguns segundos aquele nome lá foi começando a recuperar as suas características especiais, até que por fim, dentro do meu cérebro, passou de facto a ser o meu nome.

A um pedido meu, o empregado trouxe-me à mesa um telefone sem fios.

- Houve uma ligeira mudança de planos - disse uma voz conhecida. - O estado de saúde do Líder Supremo piorou de um momento para o outro. Não nos resta muito tempo. Daí que sejamos obrigados a encurtar o prazo.

- Para quando?

- Um mês. Não podemos esperar mais tempo. Se dentro de um mês o carneiro continuar sem aparecer, estás feito. Não terás onde cair morto.

«Um mês», repeti, dando voltas à cabeça. A verdade, porém, é que o meu cérebro tinha perdido por completo a noção do tempo. Um mês, dois meses, ia dar tudo ao mesmo. Para começar, e que eu soubesse, não existia nada estabelecido, isto em teoria, sobre o tempo médio necessário para se encontrar um carneiro...

- Como é que soube que me podia encontrar aqui? - quis eu saber.

- Poucas coisas nos escapam - respondeu o homem.

- Excepto no que toca ao paradeiro do carneiro - referi.

- Exactamente - replicou ele. - Agora vê mas é se te despachas, porque só estás a perder tempo. Se fosse a ti, pensava bem na situação em que te encontras. Lembra-te que foste tu quem se meteu nesta alhada.

O homem tinha razão. Usei a primeira nota de dez mil ienes do sobrescrito para pagar a conta, apanhei o elevador e desci ao piso térreo. Na rua, como sempre, havia gente normal que caminhava com toda a normalidade com a ajuda de duas pernas. No entanto, confesso que aquele espectáculo não me reconfortou por aí além.

 

Ao regressar ao meu apartamento, tinha à minha espera na caixa do correio três cartas, juntamente com o jornal da tarde. Uma era do Banco, um extracto da minha conta-corrente. Outra era um convite para uma dessas reuniões sociais em que uma pessoa morre de aborrecimento. A terceira, entregue por mensageiro, continha um folheto publicitário de um revendedor de carros usados. Nela, lia-se a seguinte

frase: «COMPRE UM CARRO DE CATEGORIA SUPERIOR E A SUA VIDA MUDARÁ de cima A baixo». Está bem, abelha, mera propaganda para clientes incautos! Juntei as três cartas, rasguei-as ao meio e deitei-as no cesto dos papéis.

Fui ao frigorífico buscar sumo de laranja e sentei-me à mesa da cozinha a beber pelo copo. Em cima da mesa encontrei um bilhete deixado pela minha namorada. Dizia: «Saí para comer qualquer coisa. Volto antes das 21h30.» O relógio digital que havia na cozinha indicava que eram precisamente nove e meia. Enquanto olhava para eles, os números mudaram para 31 e, pouco depois, para o 32.

Cansado de olhar para o relógio, despi a minha roupa, tomei um duche e lavei a cabeça. Na casa de banho havia quatro tipos de champô e três de amaciadores diferentes para o cabelo. Cada vez que ela ia ao supermercado, vinha de lá carregada com toda a espécie de novidades. Já estava habituado a entrar na casa de banho e dar de caras com um produto novo. Contei quatro marcas de creme de barbear e cinco tubos de pasta dentífrica. Era um inventário e pêras. Ao sair do banho, enfiei umas calças desportivas e uma T-shirt de manga curta.

Vi-me livre daquela desagradável sensação de sujidade que se me colara à pele. Senti-me finalmente livre.

Eram 22h20 quando ela chegou, carregada de sacos do supermercado. Lá dentro trazia piaçabas, uma caixa de clipes e uma embalagem de seis latas de cerveja bem geladas. Aproveitei para beber outra cerveja.

- Era por causa de uma história de carneiros - disse eu.

- Não te disse?

Tirámos umas salsichas do frigorífico, pusemo-las a fritar numa frigideira, e foi a nossa refeição. Eu comi três, e ela duas. Pela janela da cozinha entrava uma refrescante brisa nocturna. Contei-lhe o que me acontecera na empresa, falei-lhe na viagem de limusina, na mansão, na estranha figura do secretário, no hematoma cerebral e no carneiro robusto com uma marca em forma de estrela no dorso. Fartei-me de falar. Quando acabei a minha história, eram onze horas no meu relógio.

- E pronto, está tudo dito - concluí.

Para dizer a verdade, ela não se mostrou particularmente surpreendida. Enquanto eu desbobinava, aproveitara o tempo para proceder à limpeza das orelhas, bocejando de vez em quando.

- Sendo assim, quando é que partes?

- Partir?

- Então não vais em busca do carneiro?

Com o dedo enfiado na anilha, preparado para abrir a minha segunda cerveja de lata, olhei para ela.

- Não penso ir a parte alguma.

- Tens a certeza de que não ficarás metido numa alhada, caso não vás?

- Não estou a ver porquê. De qualquer maneira, já estava a planear sair da empresa. Por mais que se atravessem no meu caminho, ninguém me poderá impedir de arranjar um trabalho que me ponha comida na mesa. Que diabo, não me vão matar por causa disso, digo eu...

Ela tirou mais um cotonete da caixa e fê-lo rolar entre os dedos durante um bocadinho.

- Decididamente, não te entendo. Só tens de encontrar um carneiro, e acabou-se o problema, não é? Até pode ser divertido.

- Ninguém vai encontrar coisa nenhuma. Hokkaido é muito maior do que tu pensas e, no que toca a carneiros, deve haver algumas centenas de milhares. Como é que tu queres que eu encontre um certo e determinado carneiro? Impossível. Mesmo considerando que o carneiro em questão tem uma estrela no dorso.

- À volta de cinco mil.

- Cinco mil quê?

- É o número de carneiros em Hokkaido. Em 1947, havia 270 mil, mas agora só existem cinco mil.

- Como é que sabes?

- Depois de tu partires, fui à biblioteca pública e fiz uma pesquisa sobre o assunto.

Deixei escapar um suspiro.

- As coisas que tu sabes...

- Nada disso, há muita coisa que desconheço. Resmunguei qualquer coisa, ao mesmo tempo que abria a segunda

cerveja, repartindo-a pelo copo dela e pelo meu.

- Em todo o caso, só existem cinco mil ovelhas em Hokkaido, segundo as estatísticas governamentais. Que me dizes? Mais aliviado?

- Vai dar ao mesmo - confessei. - Sejam eles cinco mil ou 270 mil, não faz grande diferença, se queres que te diga. Porque o problema continua a ser encontrar um único carneiro no meio de um território tão vasto. Ainda por cima, não temos uma única pista.

- Não é verdade que não haja uma pista. Em primeiro lugar, temos uma fotografia, e, depois, podes sempre recorrer a esse teu amigo, não é? Uma das duas pistas há-de levar a alguma parte, dê lá por onde der.

- Estás a falar de duas pistas muito vagas. A paisagem onde a fotografia foi tirada nada tem que a distinga de outras parecidas, e quanto à carta do Rato, nem o carimbo sobre o selo se consegue ler.

Ela bebeu um gole de cerveja, e eu imitei-a.

- Não gostas de carneiros? - perguntou-me.

- Claro que gosto - respondi. Começava outra vez a ficar confuso.

- Assim como assim, já decidi. Quero dizer, não vou - afirmei eu, mais para me convencer a mim próprio do que qualquer outra coisa, mas sem grandes resultados.

- Queres café?

- Boa ideia - respondi eu.

A minha namorada levantou as latas de cerveja e os copos e pôs a chaleira ao lume. Enquanto a água fervia, foi até à sala do lado e pôs a tocar uma cassete. Abria com três canções na voz de Johnny Rivers: «Midnight Special», seguida de «Roll Over Beethoven» e «Secret Agent Man». Quando a chaleira começou a apitar, ela deitou a água sobre o café, sempre a cantar ao som de «Johnny B. Goode»(15). Pela minha parte, estava mergulhado na leitura do jornal da tarde. Como cena familiar, não podia ser mais encantadora. Se não fosse a tal história do carneiro, quase me poderia ter sentido feliz.

Até se ouvir o característico estalido que anunciava o fim da cassete, ficámos os dois em silêncio, a beber café e a comer umas bolachas. Voltei à leitura do vespertino. Entre outras notícias, tinha havido algures um golpe de estado, anunciava-se a morte de um actor de cinema, mais adiante era feita referência a um gato acrobata -tudo assuntos que não me diziam rigorosamente nada. Nem a mim nem a Johnny Rivers, que continuava com o seu bom velho rock'n'roll. Quando a cassete chegou ao fim, guardei o jornal e olhei para ela.

- Não entendo. É possível que tenhas razão quando dizes que o melhor é partir em busca do carneiro, mesmo que essa procura se venha a revelar uma caça aos gambozinos. Por outro lado, não gosto que me dêem ordens nem que me ameacem, que é como quem diz, que andem atrás de mim.

- Isso é o que acontece a toda a gente, a uns mais do que a outros. Toda a gente passa a vida a receber ordens, é ameaçada e perseguida a torto e a direito. Até pode ser uma boa coisa, ter assim uma tarefa pela frente, sabias?

- Pode ser que tenhas razão - disse eu, passado um bocado. Ela não respondeu e continuou entretida a limpar os ouvidos.

De vez em quando, por entre os seus cabelos vislumbrava-se um lóbulo macio.

- Nesta época do ano, Hokkaido é muito bonita. Há poucos turistas, o tempo está bom e até os carneiros andam por ali à solta, a pastar ao ar livre. É a melhor estação, não sei se sabes.

 

*15. Canção que se tornou um dos hinos da década de 1950, lançada por Chuck Berry em 1958, em homenagem ao músico e compositor Johnnie Johnson; Elvis Presley começou a cantá-la em 1969 e fez dela um dos seus temas clássicos. (N. da T.)

 

- Imagino.

- No caso de... - começou ela a dizer, entre duas dentadas numa bolacha -, no caso de me quereres levar contigo, acho que te poderia ser de alguma utilidade.

- Pode saber-se por que é que estás tão interessada na caça ao carneiro.

- Porque também eu gostaria de o ver, a esse tal carneiro.

- Não vejo por que razão me hei-de meter em trabalhos por causa dessa história do carneiro. Além disso, não vejo necessidade de te arrastar para o fundo comigo.

- Não me importa. Os teus problemas são os meus problemas - disse ela, com um sorrisinho maroto nos lábios. - Tenho esta inclinação por ti, não sei se estás a ver...

- Obrigado.

- Só isso?

Fechei o jornal e empurrei-o para o canto da mesa. A brisa ligeira que entrava pela janela afastou o fumo do meu cigarro sabe-se lá para onde.

- Para ser sincero, há qualquer coisa nisto tudo que não me agrada. Cheira-me a esturro.

- O quê, por exemplo?

- De princípio ao fim - respondi eu. - A história é toda ela de uma inverosimilhança rocambolesca e, ao mesmo tempo, contudo, os seus pormenores parecem obedecer a algum desígnio e, mais, as peças encaixam às mil maravilhas umas nas outras. Isso provoca-me arrepios na espinha.

Sem responder, ela ficou entretida a brincar com um elástico de cabelo que estava em cima da mesa.

- Esse teu amigo, não te parece que ele já está metido nessa história até ao pescoço? Se assim não fosse, ele não se teria dado ao trabalho de te enviar a fotografia.

A razão estava do lado dela. Nada a argumentar. Eu tinha posto as minhas cartas na mesa, e até agora perdera todas as jogadas. Dava-me a impressão de que o mundo inteiro podia ler através de mim.

- Pelos vistos, não há escolha possível - afirmei eu, dando-me por vencido. - Não tenho outra saída senão ir até Hokkaido.

Ela sorriu.

- É o melhor que tens a fazer - disse-me. -Vais ver que conseguimos encontrá-lo, o teu famoso carneiro.

Acabou de limpar as orelhas e embrulhou o cotonete de algodão num lenço de papel, antes de o atirar para dentro do caixote do lixo. A seguir agarrou no elástico e apanhou o cabelo atrás, deixando as orelhas à mostra. O ambiente dentro da sala mudou como que por magia.

- Vamos para a cama - disse ela.

 

Quando acordei, eram nove da manhã e o lugar da cama ao meu lado estava vazio. Ela devia ter saído para comer qualquer coisa, antes de voltar para o seu apartamento. Não tinha deixado nenhum bilhe-tinho. Só um dos seus lenços e roupa interior a secar no lavatório.

Fui ao frigorífico buscar sumo de laranja e meti na torradeira o pão já com três dias. Sabia a argamassa.

Da janela da cozinha viam-se os oleandros do jardim do vizinho. Ao longe, alguém praticava escalas de piano. Só podia ser um principiante, porque a música soava aos meus ouvidos como se alguém estivesse a descer por uma escada rolante pelo lado que sobe. Num poste de telefone, três pombos rechonchudos arrulhavam desalmadamente, num rumorejar que era um disparate. A menos que o canto tivesse sentido para eles, e que o milho caído aos seus pés estivesse a magoá-los, quem sabe? Do ponto de vista dos pombos, talvez fosse eu o único a fazer coisas desprovidas de significado.

Quando acabei de engolir a segunda fatia de pão torrado, já não se via nenhum pombo sobre o poste de telefone, que parecia despido em comparação com os loendros.

Acontece que era domingo de manhã. A edição dominical do jornal trazia uma foto a cores de um cavalo a saltar uma sebe. O animal era montado por um cavaleiro de aspecto esquálido, com um capacete negro, a lançar um olhar abatido para a página ao lado, onde se explicava tudo o que dizia respeito ao cultivo de orquídeas. As orquídeas contam com centenas de variedades, cada uma com a sua própria história. Segundo reza a história, um príncipe terá dado a vida pelas orquídeas. Existe em torno das orquídeas uma inefável aura de fatalismo. O artigo estava cheio de frases deste género. Todas as coisas têm o seu quê de filosófico e de fatalista.

Agora que estava disposto a partir em busca do carneiro, sentia-me mais animado. Tinha a sensação de que uma energia vital circulava pelo meu corpo, até às pontas dos pés. Era a primeira vez que me sentia assim tão cheio de optimismo, desde que ultrapassara a barreira dos vinte anos. Empilhei os pratos no fundo do lava-loiça, dei o pequeno-almoço ao gato e em seguida marquei o número de telefone do homem de negro. Ao sexto toque, ele atendeu.

- Espero não o ter acordado - disse eu.

- Que isso não seja motivo de preocupação. Costumo levantar-me cedo - referiu ele. - O que se passa?

- Que jornais é que costuma ler?

- Oito jornais ao todo, entre nacionais e locais, mas estes últimos só chegam ao fim da tarde.

- E lê-os de uma ponta à outra?

- Faz parte do meu trabalho - afirmou ele, deixando transparecer uma certa impaciência na voz. - E depois?

- Costuma ler os suplementos de domingo?

- Também leio a edição de domingo, naturalmente - admitiu ele.

- Reparou na fotografia do cavalo na edição desta manhã?

- Sim, vi a foto do cavalo.

- Não lhe parece que o cavalo e o cavaleiro estão a pensar em coisas diametralmente opostas?

Através do telefone, o silêncio infiltrou-se sub-repticiamente pela sala como a claridade em noite de lua nova. Nem a respiração se ouvia. Era um silêncio tão profundo que fazia doer os tímpanos.

- Foi para isso que me ligaste?

- Não, falei nisso mais para fazer conversa. Não há nada de mal em trocar opiniões sobre um problema que nos interessa aos dois, pois não?

- Podíamos falar de outro tópico mais interessante. Por exemplo, de carneiros - sugeriu ele, pigarreando. -Tenho muita pena, mas não posso perder tempo, como parece ser o teu caso. Importas-te de ir direito ao assunto?

- Há um problema - expliquei. - Para não me alongar, digo-lhe que tinha pensado começar amanhã a tal caça ao carneiro. Dei voltas e mais voltas à cabeça, até que por fim tomei a minha decisão. Deixe-me que lhe diga, contudo, que faço tenções de conduzir o assunto à minha maneira. E de abrir a boca quando me der na real gana. É um direito que me assiste, dizer de minha justiça. Não gosto que vigiem os meus movimentos, assim como não gosto de ser pressionado por pessoas cujo nome desconheço. Pronto, era isso que tinha para lhe dizer.

- Vejo que ainda não percebeste a situação em que te encontras.

- E o senhor também não. Faço-me entender? Oiça, estive toda a noite acordado a pensar no assunto, e de repente fez-se luz. Pouco ou nada tenho a perder. Estou separado da minha mulher, a partir de amanhã tenciono deixar o meu emprego, o meu apartamento é alugado e não tenho nenhuma peça de mobiliário de valor. No que diz respeito aos meus bens, resumem-se a uns dois milhões de ienes numa conta-poupança, um carro em segunda mão e um gato que começa a ficar velhote. Os meus fatos estão fora de moda, e os discos que possuo são verdadeiras relíquias. Não tenho uma reputação a defender, nem me movimento nos círculos sociais, não possuo o chamado sex-appeal. Não sou nenhum génio. Não se pode dizer que seja nenhum jovem, e passo a vida a dizer parvoíces de que me arrependo no minuto seguinte. Isto para dizer, pegando outra vez na sua expressão, que não passo de um medíocre. O que é que tenho a perder? Se tiver alguma coisa, agradecia que me dissesse.

Fez-se um breve silêncio. Entretanto, aproveitei para desfazer um emaranhado de fios agarrado a um botão da camisa e, com uma esferográfica, desenhei treze estrelas num bloco de notas.

- Toda a gente tem alguma coisa que não quer perder - começou o homem. - E tu não és nenhuma excepção. Acontece que nós somos profissionais no que toca a encontrar essa coisa. As pessoas devem ter necessariamente um meio-termo entre os seus desejos e o seu orgulho. Tal como todos os objectos têm o seu centro de gravidade. Ora, nós conseguimos encontrar esse meio-termo. Só depois de perder essa coisa é que se dá conta de que ela existia. - Após um breve silêncio, prosseguiu: - Esse, porém, é um problema a resolver numa fase posterior. Por agora, sempre te adianto que as tuas palavras não caíram em saco roto. E que levarei os teus pedidos em atenção. Faz o que achares melhor. Tens um mês de prazo. Parece-te bem?

- Sim.

- Estamos então de acordo - concluiu o homem.

E desligou. Fê-lo de uma maneira que me deixou um sabor desagradável na boca. A fim de me libertar daquela sensação, fiz trinta flexões de braços, seguidas de vinte abdominais. Em seguida, lavei os pratos, bem como a roupa suja de três dias. Quando acabei, quase recuperara o bom humor. Vendo bem, sempre era um agradável domingo de Setembro. A memória do Verão começava a diluir-se, como uma recordação cada vez mais distante e nebulosa.

Vesti uma camisa lavada, escolhi um par de Levi's sem manchas de ketchup e um par de meias da mesma cor. Passei o pente pelo cabelo. Nem assim consegui recuperar a agradável sensação das manhãs domingueiras ao tempo em que eu tinha dezassete anos. Lógico. Vendo bem, os anos tinham passado por mim e deixado a sua marca.

A seguir, tirei o meu Volkswagen a cair aos bocados do estacionamento e fui a conduzir até ao supermercado. Comprei uma dúzia de latas de comida para gatos, areia para a urina do gato, um estojo de viagem com artigos de higiene e roupa interior. Sentei-me ao balcão na loja dos donuts e engoli um donut de canela com um café que não sabia a nada. A parede à minha frente, forrada de espelhos, reflectia a minha imagem. Fiquei ali a olhar para a minha cara, com o donut meio comido ainda na mão. Pus-me a pensar na maneira como as pessoas de fora me viam. Como é evidente, ninguém consegue saber ao certo o que os outros pensam dele. Acabei de comer o bolo, bebi o resto do café e saí da loja.

Perto da estação havia uma agência de viagens, onde reservei dois bilhetes num voo do dia seguinte para Sapporo. Em seguida, penetrei no espaço reservado às lojas e comprei uma mochila de lona e um chapéu para me proteger da chuva. De cada uma das vezes, paguei a despesa com uma nota de dez mil ienes novinha em folha que tirei do sobrescrito que levava no bolso. Por mais notas que gastasse, o certo é que o maço não dava mostras de diminuir. Era eu quem me sentia desgastado, de cada vez que fazia aquele gesto. Pelos vistos, neste mundo existe essa espécie de dinheiro. Pelo simples facto de o possuir, uma pessoa fica mortificada, sente-se mal por ter de o gastar e odeia-se a si própria quando já desapareceu. E quanto maior é o sentimento de autodesprezo, tanto maior se torna a vontade de gastar. Acontece, porém, que então já não sobra nem um iene. Nem existe a menor esperança de salvação.

Sentei-me num banco diante da estação, fumei dois cigarros e decidi renunciar às minhas reflexões sobre dinheiro. Naquela manhã de domingo, como sempre, as imediações da estação estavam cheias de famílias e jovens casalinhos. Ao olhar distraidamente para aquele espectáculo, vieram-me à memória as palavras da minha mulher, no momento da separação: se calhar devíamos ter tido filhos. É certo que com a minha idade seria perfeitamente normal ter filhos, se bem que me caísse o coração aos pés, só de me imaginar no papel de pai. Se eu fosse criança, dificilmente gostaria de ter como pai alguém como eu.

Fumei outro cigarro antes de me meter no meio da confusão, carregado com os sacos de papel, a caminho do parque de estacionamento. Deixei ficar tudo no banco de trás do carro. Depois, enquanto na estação de serviço atestavam o depósito e mudavam o óleo, entrei numa livraria ali perto e comprei três livros de bolso. E assim foram mais duas notas de dez mil ienes, ao mesmo tempo que os meus bolsos se enchiam de trocos.

De volta ao apartamento, depositei as moedas todas numa taça de vidro que havia na cozinha e passei a cara por água fria. Parecia-me que tinha passado uma eternidade desde que me levantara, nessa manhã, mas, olhando para o relógio, verifiquei que ainda nem sequer era meio-dia.

Às três da tarde, regressou a casa a minha namorada. Trazia uma blusa aos quadrados e umas calças de algodão cor de mostarda, bem como uns óculos de sol tão escuros que faziam doer os olhos só de olhar para eles. Ao ombro tinha uma mochila de lona enorme, parecida com a minha.

-Venho equipada e pronta para seguir viagem - disse ela, batendo com a palma da mão na mochila a rebentar pelas costuras. - Ainda deve ser longe, não?

- Não me admirava nada.

Ela estendeu-se no velho sofá ao pé da janela, sem tirar os óculos escuros, e fumou um cigarro mentolado, com o olhar perdido no tecto. Fui buscar um cinzeiro e sentei-me ao lado dela.

Pus-me a fazer-lhe festas no cabelo. O gato aproximou-se, saltou para cima do sofá e enroscou-se todo, com o queixo e as patas dianteiras por cima dos tornozelos dela. Quando se cansou de fumar, pôs-me o resto do cigarro na boca e bocejou.

- Estás contente por ir viajar? - perguntei eu, para não ficar calado.

- Claro, contentíssima. Sobretudo por ir viajar na tua companhia.

-Tens consciência de que, se não encontrarmos o carneiro, não teremos para onde regressar. Podemos estar condenados a ter de passar o resto das nossas vidas a andar de um lado para o outro.

- Como aconteceu com o teu amigo?

- Sim. De certa maneira, estamos todos no mesmo barco. A única diferença é que ele partiu de sua livre vontade, ao passo que eu, só faço o que me mandam.

Esmaguei o cigarro no cinzeiro. O gato levantou a cabeça para soltar um bocejo e, acto contínuo, voltou à sua posição anterior.

- Já acabaste de arrumar as tuas coisas? - perguntou ela.

- Não, ainda mal comecei, mas também não tenho assim tanta bagagem quanto isso. Duas mudas de roupa, sabonete, toalha e pouco mais. E tu também não precisas de andar tão carregada com essa mochila. Podemos ir comprando o que for preciso pelo caminho. Dinheiro é coisa que não nos falta.

- E se eu gostar de andar assim carregada? - replicou ela, com aquele sorrisinho maroto dela no canto da boca. - Se não andar com a bagagem toda atrás, não tenho a sensação de estar a viajar.

- Deves estar a gozar...

Pela janela aberta chegou até nós o grito agudo de um pássaro. Um grito que eu nunca tinha ouvido antes. Estação nova, pássaro novo.

Aparei com as palmas da mão um raio da luz do entardecer e depositei-o furtivamente na face dela. Permanecemos naquela posição durante uma infinidade de tempo. Distraidamente, deixei-me ficar a observar o movimento de uma nuvem branca de um extremo ao outro da janela.

- Aconteceu alguma coisa? - perguntou ela.

- Não sei explicar bem, mas a verdade é que não consigo habituar-me à ideia de que o presente seja realmente presente.

Ou que eu seja efectivamente eu. É sempre a mesma história. Como se houvesse qualquer coisa que não funcionasse bem. Só mais tarde é que acabo por me adaptar à realidade. Tem sido sempre assim, nos últimos dez anos.

- Dez anos?

- Sim. Não há maneira de ultrapassar isso. Sorrindo, ela pegou no gato e pousou-o no chão.

- Abraça-me - disse-me.

Abraçámo-nos em cima do sofá. Um sofá carregado de anos, comprado em segunda mão numa loja de velharias. Quando se encostava a cara ao tecido, cheirava a bons velhos tempos. O corpo delicado da minha amiga fundia-se naquele odor. Terno e quente, como uma recordação distante. Afastei-lhe o cabelo com a mão e pousei os meus lábios na sua orelha. A terra estremeceu. Era pequeno, o mundo, verdadeiramente microscópico. Nele, o tempo corria paulatinamente, como uma suave brisa.

Desabotoei-lhe a sua blusa de alto a baixo e rodeei-lhe os seios com as mãos em concha, enquanto admirava o seu corpo.

- Sentes? Agora sim, sinto-me viva... - sussurrou ela. ; - Falas por ti?

- A-hã. O meu corpo, eu mesma.

- Também sinto o mesmo - disse eu. - É bom estar vivo. «Que calma espantosa», pensei. Em redor não se ouvia nem um

som. Toda a gente, tirando provavelmente nós os dois, tinha ido dar um passeio a fim de celebrar o primeiro domingo de Outono.

- Sabes uma coisa? Adoro ficar assim - murmurou.

- A-hã.

- É como se estivéssemos num piquenique. Sinto-me nas minhas sete quintas.

,. ,. - Um piquenique?

- Isso mesmo.

Fiz deslizar as mãos pelas suas costas e abracei-a com força. Com os lábios, afastei-lhe os cabelos da frente e tornei a beijar a sua orelha.

- Esses dez anos, têm demorado muito tempo a passar? - perguntou-me ela docemente ao ouvido.

- Sim - admiti -, demasiado tempo. E, além de nunca mais passarem, não fiz nada de jeito.

Ela levantou um nadinha a cabeça do braço do sofá e sorriu. Era um sorriso que já vira antes, mas, por mais que me esforçasse, não me conseguia recordar nem do lugar nem da pessoa. Sem roupa, e por incrível que pareça, as mulheres ficam todas extraordinariamente parecidas umas com as outras. Confesso que isso me deixa sempre mergulhado na mais perfeita confusão.

- Vamos à procura do carneiro - disse ela, de olhos fechados. - Assim que partirmos, vais ver que tudo irá correr bem.

Fiquei ali a olhar para o seu rosto, por alguns momentos, depois virei a minha atenção para as orelhas. A luz suave da tardinha envolvia o seu corpo, fazendo lembrar uma natureza-morta.

 

Às seis da tarde, a minha amiga vestiu-se, escovou o cabelo, lavou os dentes diante do espelho da casa de banho e borrifou-se com água-de-colónia. Eu estava sentado no sofá, mergulhado na leitura de As Aventuras de Sherlock Holmes. A frase rezava assim: «O meu colega Watson tem um raciocínio que se caracteriza pela estreiteza de vistas, mas, em contrapartida, é dotado de considerável tenacidade.» Uma bela maneira de começar.

- Esta noite chego tarde, não fiques a pé à minha espera - avisou-me ela.

- Trabalho?

- Que remédio. Em princípio, estava de folga, mas o que é que se há-de fazer? Como pedi férias a partir de amanhã, marcaram-me um servicinho extra para hoje.

Um momento depois de ter saído, a porta voltou a abrir-se.

- Olha uma coisa, que vamos fazer com o gato, enquanto estivermos fora?

- Agora que falas nisso, confesso que não tinha pensado. Não te preocupes, vou tratar do assunto.

Fui ao frigorífico buscar leite e bolachas com queijo e pus tudo à frente do bichano. Os dentes dele estavam de tal maneira frouxos que tinha grande dificuldade em comer o queijo.

Como não encontrei no frigorífico nada em que pudesse ferrar o dente, contentei-me em beber uma cerveja enquanto via o noticiário. Era um domingo típico, sem notícias dignas desse nome.

No telejornal da noite de um dia assim não podiam faltar imagens do jardim zoológico. Quanto achei que já tinha a minha dose de girafas, elefantes e pandas, apaguei a televisão e marquei um número de telefone.

- É por causa do meu gato - disse eu ao homem.

- O gato?

- Sim, tenho um gato de estimação.

- E então?

- Então não posso seguir viagem sem ter quem fique a tomar conta dele.

- Se é o nome de um canil que pretendes, tens uma série deles no teu bairro.

- Acontece que ele está velho e acabado. Nem a um mês enjaulado sobreviveria.

Dava para ouvir o som das unhas dele a tamborilar sobre a mesa.

- Gostaria de o deixar ao seu cuidado. Na sua casa tem um grande jardim e espaço não falta, por isso não me parece que o pobre do gato lhe dê trabalho.

- Impossível. O Líder Supremo não pode ver um gato à frente e, além disso, utiliza o jardim para atrair pássaros. Assim que derem pela presença do gato, os pássaros nunca mais lá parecem.

- O Líder Supremo está em coma e, além disso, o meu gato é demasiado velho para andar à cata de pássaros.

Tornei a ouvir o tamborilar das unhas na mesa, até que parou.

- Muito bem. Nesse caso, amanhã mesmo, quando forem dez horas, enviarei o motorista para buscar o gato.

-Aproveito para enviar comida para gatos e areia para as necessidades. Uma coisa: como o gato só gosta de comida daquela marca, agradeço-lhe que compre mais, quando acabar.

- Agradeço que deixes os pormenores concretos e que os transmitas directamente ao motorista. Tal como creio já te ter dito antes, sou um homem muito ocupado.

- Prefiro dialogar com uma única pessoa. Assim, sempre as responsabilidades ficam mais bem definidas.

- Responsabilidades?

- Isto é, na hipótese de o gato desaparecer ou morrer na minha ausência, e mesmo que eu encontre o carneiro, não espere notícias minhas.

- Hmm... - fez o homem. - Bom, está bem. Não se pode dizer que seja lá muito ortodoxo, mas tenho de reconhecer que, para um principiante, não te safas nada mal. Vou tomar nota, por isso faz-me o favor e fala devagar.

- Não lhe dê a comer carne com muita gordura, porque senão vomita. Tem os dentes em mau estado, por isso nada de coisas duras. De manhã, dê-lhe leite e uma lata de comida para gatos; à tarde, um punhado de sardinhas secas, carne ou bolachinhas de queijo. Agradeço ainda que a caixa sanitária seja limpa todos os dias. Não gosta de a ver suja. Como tem tendência para a diarreia, se não desaparecer ao fim de dois dias é melhor levá-lo ao veterinário para ver se ele lhe dá um medicamento qualquer.

Naquele ponto interrompi o que estava a dizer e prestei atenção ao ruído que fazia a esferográfica a arranhar o papel, do outro lado da linha.

- E que mais? - perguntou o homem.

- Ele começa a ter as orelhas infectadas por causa das carraças, de modo que veja se as limpa uma vez por dia com um cotonete embebido em azeite de oliva. O mais provável é ele debater-se porque não gosta, por isso é preciso ter cuidado não lhe vá furar o tímpano. Tirando isso, e caso esteja com medo que ele arranhe os móveis, o melhor é cortar-lhe as unhas uma vez por semana. Pode fazer isso com um vulgar corta-unhas. Pulgas, não me parece que tenha, mas, pelo sim, pelo não, seria boa ideia dar-lhe banho de vez em quando com um champô antipulgas. Encontra esse champô em qualquer loja de animais domésticos. Depois de lavar o gato, seque-o muito bem com uma toalha e passe-lhe a escova no pêlo logo a seguir; para terminar, dê com o secador. Caso contrário, ele constipa-se.

Arranhadela, arranhadela, arranhadela, ainda e sempre a esferográfica no papel.

- Mais alguma coisa?

- É tudo.

O homem leu-me os diversos pontos no seu canhenho. Tinha anotado tudo como deve ser.

- Assim está bem?

- Perfeito.

- Muito bem. Nesse caso, até à próxima - disse o homem, e desligou.

Entretanto, tinha escurecido. Enfiei os trocos, o tabaco e um isqueiro dentro do bolso, calcei os ténis e saí de casa. Entrei no meu estaminé preferido lá do bairro e mandei vir asas de frango e pão torrado. Bebi uma cerveja ao som do último disco dos Brothers Johnson. A seguir, ataquei a minha asinha de frango ao som de Bill Withers. A sonoridade do trompete de Maynard Ferguson na interpretação do tema do filme A Guerra das Estrelas fez-me companhia na hora do café. Acabei de jantar, mas fiquei com a sensação de não ter comido nada.

Quando levaram a chávena de café da minha frente, fui até ao telefone público cor-de-rosa, introduzi três moedas de dez ienes e marquei o número do meu sócio. Quem atendeu foi o filho mais velho dele, que já andava na escola.

- Bom dia - disse eu.

- Boa tarde - corrigiu ele. Olhei para o relógio. Quem tinha razão era ele.

Passado um bocadinho, apareceu o meu sócio ao telefone.

- Como é que correu? - perguntou ele.

- Podemos falar? Não te apanhei a jantar nem nada?

- Estava a meio da refeição, mas isso é o menos. O jantar não era nada do outro mundo e, além do mais, a tua história deve ser muito mais interessante.

Fiz-lhe um breve resumo da conversa mantida com o homem vestido de preto. Falei-lhe da grande limusina, da propriedade a perder de vista e da enorme mansão, daquele velho agonizante... No que dizia respeito ao carneiro, calei-me muito caladinho. De certeza que não ia acreditar em mim e, como tema de conversa, daria pano para mangas. Resultado: por mais que procurasse encontrar o fio à meada, a minha história não parecia ter pés nem cabeça.

- Não percebo patavina - confessou o meu sócio.

- São tudo coisas de que não te posso falar, estás a compreender? Se o fizesse, estaria a meter-te em maus lençóis. E quem diz a ti, diz à tua família e assim...

Enquanto ia falando, vinha-me à imagem o seu luxuoso apartamento T4 num condomínio fechado - ainda não acabado de pagar -, a hipertensão da sua mulher, e os endiabrados dos seus dois filhos.

- Enfim, não sei se estás a ver onde quero chegar.

- Estou.

- Em todo o caso, amanhã tenho de partir. Imagino que seja uma viagem longa; pode durar um mês, dois, três meses... Não tenho uma ideia definida. Pode até muito bem acontecer que nem sequer regresse a Tóquio.

- Não me digas...

- Por isso, gostaria que tomasses o destino da empresa nas tuas mãos. Pela parte que me toca, retiro-me de cena. Entre outras coisas, porque não quero causar-te problemas. Creio que o meu trabalho está terminado e, por outro lado, apesar de repartirmos a administração a meias, a parte mais importante és tu que a tens a teu cargo, enquanto eu não passo de uma espécie de figura decorativa.

- Mas como é que posso resolver os problemas no terreno sem ti, não me dirás?

- Reduz o campo de acção. Que é como quem diz, regressa às origens. Para começar, trata de cancelar os trabalhos de publicidade e edição e dedica-te antes às traduções. Como tu mesmo disseste no outro dia. Fica com uma das secretárias e despede o resto das pessoas. Não precisas do pessoal em regime de trabalho parcial. Ofereces dois meses de ordenado e fica toda a gente feliz. Quanto ao escritório, mudas-te para um sítio mais pequeno. As receitas diminuirão, mas as despesas também. E como deixarás de ser obrigado a repartir comigo os lucros, a tua situação não se alterará grande coisa. Em matéria de impostos, por exemplo, a «exploração fiscal», como tu lhe chamas, vais ver que não terás razões de queixa.

O meu sócio permaneceu calado por momentos, a matutar naquilo tudo.

- Não - disse ele -, não vai dar, já sei que não.

Pus um cigarro na boca e, enquanto andava à procura do isqueiro, a empregada acendeu um fósforo e deu-me lume.

-Vai dar, acredita. Já trabalho contigo há muito tempo para saber do que a casa gasta.

- Até aqui, correu tudo bem porque éramos os dois a trabalhar em equipa - disse ele. - Nada do que me abalancei a fazer sozinho resultou antes.

- Ouve, presta atenção. Não te estou a dizer que amplies o negócio. Aconselho-te, isso sim, a reduzi-lo. Estou a falar de um trabalho de traduções com o seu quê de artesanal, como aquele que era feito antes da Revolução Industrial. Tu e uma assessora, mais cinco ou seis tradutores em regime de freelance, dois ou três bons revisores, sempre indispensáveis. Não vejo razão para que o negócio não resulte.

Ouviu-se o barulho metálico da última moeda de dez ienes a cair. Coloquei mais três moedas na ranhura do telefone.

- Até parece que não me conheces - retorquiu ele. - Tu safas-te bem sozinho, mas no meu caso é diferente. Se não tiver com quem possa desabafar, ou a quem pedir conselho, as coisas não funcionam.

Tapei o auscultador com a mão e suspirei. O eterno círculo vicioso. O bode branco comia a carta, por abrir, do bode preto* 16, e, por seu turno, o bode preto comia a letra do bode branco...

- Ainda aí estás? - perguntou o meu sócio.

- Estou a ouvir-te - respondi.

Do outro lado do fio chegavam até mim as vozes de duas crianças que discutiam sobre quem é que escolhia o canal de televisão.

- Pensa nos teus filhos - disse-lhe. Não se podia dizer que estivesse propriamente a fazer jogo limpo, reconheço, mas era a minha única carta na manga. - Não te vais agora pôr com lamúrias. Se não te mostrares à altura, o barco mete água e vai toda a gente ao fundo. Quem estiver na disposição de pedir contas ao mundo, o melhor é não ter filhos. Vê mas é se fazes o teu trabalho o melhor que podes e sabes e se deixas de beber.

Ele ficou calado durante um grande bocado. A empregada trouxe-me um cinzeiro. Pedi, por gestos, mais uma cerveja.

- Tens toda a razão - confessou ele por fim. - Vou esforçar-me por isso. Não tenho a certeza de conseguir, mas...

Deitei a cerveja no meu copo e bebi um gole.

-Vai correr tudo bem. Lembra-te do que aconteceu há seis anos. Andávamos com os bolsos vazios e a bater a todas as portas, e, no entanto, isso não nos impediu de chegarmos onde chegámos, não foi?

- Repito, não fazes ideia da segurança que para mim representa poder repartir as tarefas contigo - referiu o meu sócio.

- Voltarei a ligar.

- Faz isso.

 

*16. Criação dos caçadores e um dos muitos nomes do Diabo na imaginação popular: uma besta descomunal, com longos pêlos, olhos brilhantes e o dom da fala. (N. da T.)

 

- Obrigado por tudo. Tem sido porreiro trabalhar contigo, durante este tempo todo - disse eu.

- Quando acabares o que tens a fazer e regressares a Tóquio, voltaremos a trabalhar juntos.

- Claro. Podes contar com isso. E desliguei o telefone.

Ambos sabíamos que a probabilidade de eu regressar àquela minha vida era nula. Depois de seis anos de trabalho em comum, há coisas que são mais do que óbvias.

Levei a minha cerveja até à mesa e fiquei ali a beber o que faltava.

Agora que deixara de ter emprego, sentia-me como se tivesse tirado um peso de cima. Aos poucos, mas de uma forma persistente, começava a libertar-me de uma série de coisas e a minha vida simplificava-se. Para trás ficavam a cidade onde nascera e passara os meus verdes anos, e também os meus amigos e a minha mulher, sem esquecer que dentro de três meses deixaria igualmente para trás a casa dos vinte. Que seria feito de mim, quando chegasse aos sessenta anos? Pensamentos daqueles não levavam a parte alguma. Pois se uma pessoa nem sequer sabe o que lhe poderá acontecer no mês que vem...

Voltei para casa, vesti o pijama e enfiei-me na cama com o meu Sherlock Holmes na mão. Eram onze quando apaguei a luz e adormeci como um justo. Não acordei nem uma única vez até à manhã seguinte.

 

Às dez da manhã, aquele automóvel ridiculamente grande com aspecto de submarino deteve-se à porta do meu prédio. Da janela do meu apartamento, no terceiro andar, a limusina, mais do que um submarino, parecia uma monstruosa forma para tartes virada ao contrário, depois de se ter esborrachado no solo. Uma gigantesca tarte que trezentos miúdos esganados levariam duas semanas a devorar. A minha amiga e eu estávamos sentados à janela e ficámos a olhar para o carro lá em baixo.

O céu estava tão claro que feria o olhar. A cena lembrava um céu tirado de um filme expressionista dos tempos de antes da guerra. Um céu limpo, sem uma única nuvem, como um olho ciclópico ao qual tivessem sido arrancadas as pálpebras. Um helicóptero que sobrevoava a cidade chegava a parecer irreal, de tão pequeno.

Fechei todas as janelas do apartamento, desliguei o frigorífico e certifiquei-me de que a torneira do gás estava devidamente fechada. A roupa estendida lá fora tinha sido apanhada, as camas estavam feitas, os cinzeiros lavados e a quantidade infindável de produtos de beleza em perfeita ordem na casa de banho. Tinha dois meses de renda pagos adiantadamente, a assinatura do jornal cancelada pelo mesmo período. Na soleira da porta, olhei para o interior do apartamento vazio, e impressionou-me o silêncio. Por um breve momento, pensei nos meus quatro anos de vida conjugal ali passados e nos filhos que poderia ter tido com a minha mulher.

A porta do elevador abriu-se e a minha namorada chamou-me. Fechei a pesada porta metálica.

Para fazer tempo, o motorista estava entregue à tarefa de limpar o pára-brisas com um pano seco. O carro não apresentava nem uma única mancha e, como de costume, cintilava intensamente sob o sol, ao ponto de fazer impressão aos olhos. Dava a impressão de poder queimar a mão, caso alguém se atrevesse a tocar-lhe.

- Bons-dias - saudou o motorista. Era o mesmo da outra vez, o tal dado à religião.

- Bons-dias - respondi eu.

- Bons-dias - retorquiu por seu turno a minha namorada.

Era ela quem trazia o gato nos braços, ao passo que eu transportava um saco com a comida do bichano e a areia para a caixinha das necessidades dele.

- Está um dia magnífico - disse o motorista, olhando o céu. - É, como é que hei-de dizer?... De uma pureza cristalina.

Concordei com a cabeça.

- Num dia assim tão claro, as mensagens de Deus devem poder chegar facilmente ao seu destino - experimentei dizer, para ver no que dava.

- Nada mais longe da verdade - retorquiu o motorista com um sorrisinho. - A mensagem divina já está um pouco por toda a parte, em todas as coisas deste mundo: nas flores, nas pedras, nas nuvens...

- E nos carros?

- Nos carros também.

- Mas os carros são feitos nas fábricas - atirei eu, para ver a sua reacção.

- O certo é que a vontade divina está presente em todas as coisas, independentemente de quem as fabrica.

- Como a cera dos ouvidos? - perguntou a minha namorada, com ar de gozo.

- Ou como o ar que respiramos - corrigiu o motorista, muito sério.

- Nesse caso, imagino que os carros fabricados na Arábia Saudita possuam o espírito de Alá.

- A Arábia Saudita não produz carros.

- Não me diga? - voltei eu à carga.

- A sério.

- Então e no que diz respeito aos carros americanos exportados para a Arábia Saudita? De que deus é que estamos a falar? - insistiu a minha namorada.

Uma pergunta difícil. Decidi dar-lhe uma mãozinha.

-Vamos ao que interessa, temos de dar instruções sobre o gato.

- É bem engraçado, o vosso gatinho - exclamou o motorista, com evidente alívio.

Verdade seja dita que o gato não tinha graça absolutamente nenhuma. Melhor dizendo, estava no extremo oposto da escala. Apresentava o pêlo ralo, que mais parecia uma velha alcatifa muito gasta, a ponta da cauda caída, fazendo um ângulo de sessenta graus, os dentes estavam amarelados, e o seu olho direito tinha uma infecção crónica desde que se magoara, três anos antes, deixando-o quase cego. Ainda estou para saber como é que ele conseguia distinguir um ténis de uma batata. As almofadas das patas pareciam feitas de cortiça, por causa dos calos, tinha as orelhas infestadas de carraças e, de tão velho que era, peidava-se pelo menos vinte vezes ao dia. Era um jovem macho quando a minha mulher o recolheu de debaixo de um banco do parque e o trouxe com ela para casa, mas, ultimamente, era evidente a sua crescente ruína, do mesmo modo que uma bola de bolingue a rolar por uma ladeira abaixo. Para cúmulo, nem sequer tinha nome. Não faço ideia se a falta de nome contribuía para diminuir a tragédia do gato, ou se, pelo contrário, a tornava ainda mais evidente.

- Gatinho, gatinho lindo - ronronou o motorista, se bem que não tenha feito qualquer gesto para o acolher nos seus braços. - Como é que se chama?

- Não tem nome.

- Então como é que fazem para chamar por ele?

- Não chamamos - expliquei eu. - Ele limita-se a existir, mais nada.

- Mas ele não é nenhum objecto, tem uma vontade própria que o faz mover. Não lhe parece sobremaneira estranho que um ser capaz de se movimentar por sua própria vontade não tenha nome?

- Os arenques, só para dar um exemplo, movem-se à vontade, e não passa pela cabeça de ninguém atribuir-lhes um nome.

- Bom, para começar, entre os arenques e as pessoas não existe propriamente aquilo a que se pode chamar uma ligação afectiva. E, depois, eles não seriam capazes de reconhecer o seu nome, caso alguém chamasse por eles.

- Se bem o entendo, está a querer dizer que, para um animal merecer um nome, não só terá de se mover por vontade própria como também ser capaz de trocas afectivas com os seres humanos, isto para além de possuir o sentido da audição?

- Isso mesmo, ainda bem que percebeu - retorquiu o motorista, acenando afirmativamente repetidas vezes, com ar de satisfeito consigo próprio. - Importa-se que lhe dê um nome à minha escolha?

- Claro que não. Que nome, já agora?

- Que tal Arenque? Vendo bem, ainda há pouco estava a tratá-lo como se de um arenque defumado se tratasse.

- Não está mal - afirmei eu.

- Está a ver? - enfatizou o motorista.

- Que te parece? - perguntei à minha amiga.

- Não está mal - confirmou ela. - Parece que estamos a assistir à criação do mundo, no Génesis.

- E assim nasceu o Arenque! - exclamei eu.

- Vem cá, Arenque, vem - chamou o motorista, pegando no bichinho ao colo.

O gato, assustado, mordeu o motorista no polegar e, acto contínuo, peidou-se.

O motorista levou-nos ao aeroporto. O gato foi todo o caminho tranquilamente sentado a seu lado. De vez em quando, soltava um peido. Adivinhávamos que era isso que acontecia porque, volta e meia, o motorista abria a janela. Aproveitei a viagem para lhe dar algumas instruções acerca do gato: como proceder à limpeza das orelhas, onde comprar desodorizante para a caixa sanitária, a quantidade de comida a dar-lhe, coisas desse género.

- Não se preocupe - assegurou-me o motorista. - Tomarei bem conta dele. De certo modo, e uma vez que fui eu a dar-lhe o nome, pode dizer-se que sou o padrinho dele.

As estradas estavam anormalmente desimpedidas. A viatura percorria os quilómetros que nos separavam do aeroporto como um salmão a subir o rio durante a época da desova.

- Por que será que os barcos têm nome e os aviões não? - perguntei ao condutor. - Por que é que dizemos voo 971 ou voo 326, em vez de dar aos aviões um nome próprio, como Lírio do Vale ou Margarida?

- Provavelmente porque existem mais aviões do que navios. É a chamada produção em massa.

- Acha que sim? Os barcos também são produzidos em massa, e em número superior ao dos aviões.

- Mesmo assim... - começou o motorista, mas depois calou-se por momentos. - Falando de coisas práticas, ninguém se lembraria de pôr nomes a cada um dos autocarros que circulam nas cidades.

- Pois eu cá acho que seria maravilhoso se os autocarros urbanos tivessem cada um o seu nome - disse a minha namorada.

- A acontecer isso, não se sentiriam os passageiros tentados a preferir um autocarro ao outro por mero capricho? Para ir do bairro de Shinjuku ao de Sendagaya, por exemplo, não escolheriam a Gazela, em vez da Mula?

- Que te parece? - perguntei à minha amiga.

- Postas assim as coisas, o mais certo era eu pensar duas vezes antes de apanhar a Mula - confessou ela.

- Era precisamente aí que eu queria chegar! - exclamou o motorista. - Se os barcos têm nome, é porque isso já era uma tradição que vinha da fase anterior à sua produção em massa. Basicamente, é o mesmo que pôr nomes aos cavalos. O princípio é idêntico. Por isso é que os aviões que eram utilizados como cavalos tinham todos um nome, como acontece com o Spirit of Saint Louis ou o Enola Cay. Tudo depende de existir ou não uma corrente de consciência a funcionar em pleno entre esses aparelhos e os homens que os pilotaram.

- O que equivale a dizer que o conceito de vida é, aqui, fundamental.

- Exactamente.

- E que a finalidade não passa de um factor de segunda ordem?

- Acontece. Se apenas a finalidade contasse, os números seriam mais que suficientes. Veja-se o que aconteceu aos judeus em Aus-chwitz.

- Isso não tem sequer discussão - reconheci eu. - Bom, vamos então partir do princípio de que os nomes assentam num gesto de troca ao nível da consciência entre os seres humanos. Nesse caso, como é que se explica que as estações de comboio, os jardins públicos e os estádios de basebol tenham nome, uma vez que não estamos a falar de seres humanos, à partida?

- Porquê? Estávamos arranjados, se as estações não tivessem nome seria o caos.

- Não estamos aqui a arranjar argumentos a favor da utilidade. Gostaria, isso sim, que me explicasse como é que a coisa funciona em termos de princípio.

O motorista mergulhou numa profunda reflexão. De tal modo, que nem reparou que o semáforo vermelho tinha passado a verde. Uma caravana que estava atrás de nós fez soar de forma discordante a sua buzina parodiando a música de abertura do filme Os Sete Magníficos(17).

- E não será porque não existe qualquer hipótese de intercâmbio? Estação de Shinjuku, por exemplo, só existe aquela, e não há maneira de a trocar pela estação de Shibuya. A falta de possível intercâmbio coincide com a ausência de produção em massa. Estamos entendidos em relação a estes dois pontos?

- Não deixava de ser engraçado, se a estação de Shinjuku fosse em Ekoda, há que reconhecer - lançou a minha namorada.

- Se a estação de Shinjuku ficasse em Ekoda, passaria a ser a estação de Ekoda - contrapôs o motorista.

- O que não impediria que continuasse a fazer parte da linha de Odakyu - replicou ela.

- Não nos afastemos do tema - disse eu. - Caso houvesse possibilidade de mudar as estações, e isto não passa de uma hipótese, se as estações da rede nacional fossem todas módulos adaptáveis produzidos em massa, e a estação de Shinjuku e a de Tóquio fossem inteiramente substituídas uma pela outra, o que é que aconteceria?

- Nada mais simples. Em Shinjuku, teríamos a estação de Shinjuku, e no centro de Tóquio, a de Tóquio.

- Nesse caso, estaríamos a falar, não de um nome atribuído a um determinado objecto, mas sim de um nome associado a uma determinada função. Não é a isso que se chama finalidade?

 

*17. Composta por Elmer Bernstein (1922-2004) e nomeada para um Oscar na categoria de Melhor Banda Sonora Original. O filme, assinado por John Sturges em 1969, é o remake do clássico japonês de Akira Kurosawa, Os Sete Samurais. (N. da T.)

 

O motorista ficou calado. O seu silêncio, contudo, não durou muito.

- Sabe o que me parece? - perguntou ele. - Que não nos faria mal nenhum abordarmos este tipo de questões de um ponto de vista mais positivo.

- A saber?

- Quer dizer, estejamos nós a falar da cidade, ou dos parques e estações, dos estádios de basebol e dos cinemas, todos esses lugares têm nome, não é verdade? À laia de compensação, pelo facto de estarem fixos sobre a terra, todos eles receberam nome.

Mais uma teoria.

- Bom - disse eu -, imaginando, por exemplo, que eu renunciava de uma vez por todas à minha consciência, e me fixasse em qualquer sítio da Terra, será que também teria direito a um nome, como as estações ou os parques?

O motorista olhou para mim pelo canto do olho, através do espelho retrovisor. O seu olhar reflectia uma certa desconfiança, como se eu estivesse a estender-lhe uma armadilha.

- O que é que entende por fixar-se?

- Petrificado, numa palavra, ou uma coisa do género. Como aconteceu à Bela Adormecida.

- Mas o senhor já tem nome!

-Tem razão - disse eu. - Quase me tinha esquecido disso.

Recebemos os talões de embarque no balcão correspondente do aeroporto e despedimo-nos do motorista, que fizera questão de nos acompanhar até ali. Parecia desejoso de permanecer junto de nós até ao último momento, mas, como ainda faltava uma hora e meia para a nossa partida, às tantas lá desistiu e foi-se embora.

- Que indivíduo mais esquisito - deixou escapar a minha namorada.

- Existe uma terra onde só vive gente assim - disse eu. - Um país onde as vacas leiteiras passam o tempo à procura de tenazes.

- Até parece uma cena tirada da série Uma Casa na Pradaria.

- Podia ser - concordei.

Almoçámos antes da hora num restaurante do aeroporto. Gratinado de gambás para mim, esparguete para ela. Fiquei a ver o movimento dos 747 e os Tristar para cima e para baixo com uma solenidade tal que fazia pensar numa espécie de destino fatal. Enquanto isso, ela inspeccionava um a um, com ar desconfiado, cada fiozinho de massa que levava à boca.

- Pensava que eles serviam almoço a bordo - protestou ela, nitidamente de mau humor.

- Nada disso - comentei, com uma garfada de gratinado às voltas dentro da boca para ver se arrefecia, antes de engolir. Acto contínuo, bebi um copo cheio de água. De tão quente, a comida nem sabia a nada. - Só servem refeições nos voos internacionais. Nos nacionais, consoante a distância, às vezes servem uma refeição fria, mas, em todo o caso, nada do outro mundo.

- E filmes?

- Nem pensar nisso. Não vês que Sapporo fica apenas a uma hora de distância?

- Nesse caso, não temos direito a nada.

- Nada de nada. Sentas-te muito bem sentada no teu lugar, com o teu livrinho, até chegares ao teu destino. Como no autocarro.

- Com a diferença de não haver semáforos.

- Pois, sem semáforos.

- Grande coisa - disse ela com um suspiro. Pousou o garfo, afastou o prato meio cheio de esparguete e limpou a boca com um guardanapo de papel. - Nem merecem que lhes ponham nome, aos aviões.

- A única vantagem é que nos fazem chegar mais depressa ao nosso destino. De comboio, demorávamos umas doze horas.

- E o que fazemos no tempo que sobra? - perguntou ela. Também eu deixei o meu gratinado a meio e pedi dois cafés.

- No tempo que sobra?

- Disseste que indo de avião poupávamos mais de dez horas. Pergunto-te onde é que esse espaço de tempo vai parar?

- O tempo não vai parar a nenhum sítio. Escoa-se, pura e simplesmente. Essas dez horas, podemos aproveitá-las como quisermos, em Tóquio ou Sapporo. Em dez horas podem ver-se quatro filmes, comer duas refeições, entre outras coisas, não é verdade?

- E se eu não quiser ir ao cinema ou comer fora?

- Problema teu. Não deites a culpa ao tempo.

Ela mordeu o lábio e ficou a olhar para a fuselagem atarracada e bojuda dos 747 na pista. Eu fiz o mesmo. Os 747 lembram-me sempre uma velhota gorda e feia que vivia no meu bairro, com os seus seios enormes e flácidos, as suas pernas inchadas, o pescoço ressequido. O aeroporto mais parecia um centro de reuniões destinado a velhas senhoras. Andavam por ali às dezenas, às voltas, sem cessar, em grupos que entravam e saíam. Os pilotos e assistentes de bordo, de um lado para o outro na grande sala de espera, com a cabeça muito direita sobre os ombros, pareciam-me, em comparação, ter sido despojados da sua sombra pelas ditas senhoras, assemelhando-se a silhuetas recortadas num caderninho de trabalhos manuais. Tive a impressão de que aquilo não acontecia nos tempos dos DC-7 e dos Friendship, mas, para dizer a verdade, não tinha nenhuma recordação concreta.

- Diz-me uma coisa - perguntou a minha namorada -, o tempo pode expandir-se?

- Que ideia, o tempo não se expande - respondi eu. Aquelas palavras foram ditas por mim, mas, por alguma razão que eu desconhecia, não parecia a minha voz. Aclarei a garganta e bebi um gole de café. - O tempo não se expande - insisti.

- Mas o tempo aumenta, não aumenta? Como tu próprio disseste, vai sendo acrescido.

- Isso só acontece porque diminui o tempo de viagem necessário à nossa deslocação de um sítio para o outro. No total, não se alterou. O que acontece é que podes ver mais filmes.

- Na condição de uma pessoa ter vontade disso, não?

De facto, assim que chegámos a Sapporo vimos dois filmes de uma assentada.

 

Durante a viagem de avião, a minha namorada permaneceu à janela, a contemplar a paisagem. Sentado ao seu lado, eu lia As Aventuras de Sherlock Holmes. Não havia uma única nuvem no céu, e durante todo o tempo o avião projectava claramente a sua sombra sobre a terra. Para ser mais preciso, visto que éramos nós que íamos a bordo do avião, a sombra que desfilava sobre as montanhas e as planícies continha obrigatoriamente a nossa própria sombra. Desse modo, também nós estávamos a ser projectados sobre a superfície da terra.

- Achei uma certa graça ao homem - comentou ela, enquanto bebia o seu sumo de laranja.

- Que homem?

- O motorista.

- Sim - concordei eu num murmúrio. -Também eu.

- E que belo nome, Arenque...

- É verdade. Um nome à maneira. É bem possível que o gato fique melhor com ele do que comigo.

- Não é o gato, é Arenque.

- Isso, o Arenque.

- Por que é que não puseste nome ao gato quando ele vivia contigo?

- Boa pergunta... - mastiguei eu, antes de acender um cigarro com o isqueiro com a insígnia do carneiro. - Se calhar foi por não gostar de nomes. Eu sou eu, tu és tu, nós somos nós e eles são eles. Não vejo qual é o mal disso.

- Hmm... - fez ela. - Gosto do som da palavra «nós». Tem o eco de eras passadas. Da Era Glaciar, por exemplo.

- Era Glaciar?

- Sim, como quando, por exemplo, na frase: «Nós rumar ao Sul». Ou então: «Nós dar caça ao mamute...»

- Estou a ver a cena - disse eu.

Depois de recolhermos as nossas bagagens e sairmos para a rua, à chegada ao aeroporto de Chitose, reparei que a temperatura estava mais fresca do que seria de esperar. Enfiei uma camisa de ganga que trazia enrolada ao pescoço por cima da T-shirt, enquanto ela vestia uma camisola de malha sobre a camisa. O Outono tinha chegado àquelas paragens mais cedo, um mês antes de fazer a sua aparição em Tóquio.

- Até parece que caminhamos em direcção à Era Glaciar, não achas? - perguntou ela no autocarro que nos conduzia a Sapporo. -Tu, criarias mamutes, e eu, filhos.

- Uma perspectiva encantadora - repliquei.

A minha amiga não tardou a adormecer e eu entretive-me a contemplar pela janela do autocarro a interminável procissão de frondosos bosques que desfilavam interminavelmente, de ambos os lados da estrada.

Ao chegar a Sapporo, entrámos num bar para tomar um café.

- Antes de mais, devemos estabelecer uma estratégia de base -disse eu. -Temos de dividir tarefas, isto é, enquanto eu tratarei de ir à procura da paisagem retratada na imagem, tu podes ir atrás do carneiro. Assim, sempre ganhamos tempo.

- Muito prático.

- Isto se as coisas correrem bem - acrescentei. - Em todo o caso, gostaria que te informasses acerca da situação das principais fazendas que se dedicam aos carneiros e às espécies aí criadas. Deves conseguir facilmente esses dados junto das repartições governamentais, ou então na biblioteca pública.

- Adoro bibliotecas - disse ela.

- Tanto melhor.

- Queres que comece já?

Olhei para o relógio. Eram três e meia.

- Não, já é tarde. Deixamos isso para amanhã. Hoje vamos mas é descansar, procurar alojamento e, depois do jantar, tomamos um banho e enfiamo-nos na cama.

- Estava mesmo a apetecer-me ir ao cinema.

- Ao cinema?

- Sim, para tirar proveito de todo aquele tempo que economizámos vindo de avião.

- É um facto - referi. E foi assim que entrámos no primeiro cinema que encontrámos.

Assistimos a uma sessão dupla composta de um filme policial e de um filme de terror. A sala estava às moscas, por assim dizer. Há séculos que não entrava num cinema com tão pouco público. Para passar o tempo, entretive-me a contar os espectadores. Oito pessoas, contando connosco. Menos do que as personagens nos filmes. Qualquer uma das fitas não podia ser mais tenebrosa. Aquele género de filme que nos dá vontade de virar as costas e abandonar a sala mal o leão da Metro acaba de rugir e o título aparece escarrapachado no ecrã. É espantoso como ainda se fazem filmes assim!

O primeiro era do género fantástico. O demónio, que vivia escondido na cripta húmida e sombria de uma igreja e usava o pároco, homem de fraco carácter, para através dele manipular tudo e todos, ameaçava tomar conta da cidade. Porém, a verdadeira questão consistia em saber por que diabo quereria ele assenhorear-se daquela cidade, que mais não era do que um punhado de casas miseráveis perdidas no meio de plantações de milho.

O demónio, contudo, não desistia dos seus intentos e mostrava-se terrivelmente furioso quando uma última menininha se recusava a submeter-se ao seu domínio. Quando a cólera tomava conta dele, o corpo do Diabo, que era de uma matéria gelatinosa verde-eléctrica, tremia violentamente. Aquela visão do demónio em fúria, vá lá saber porquê, tinha qualquer coisa que inspirava simpatia.

À nossa frente estava um homem de meia-idade que roncava de tal maneira que fazia lembrar uma buzina de nevoeiro. Num canto, à direita, um parzinho estava numa marmelada pegada. Lá atrás, nas últimas filas, alguém soltou um valente peido. Tão sonoro que até o velhote deixou de ressonar por breves momentos. Duas jovens, com aspecto de estudantes a acabar o secundário, que estavam juntas, desataram-se a rir.

Por associação de ideias, lembrei-me do Arenque. E só então me dei conta de que havia deixado Tóquio para rumar a Sapporo, onde me encontrava. Posto de outro modo, até ouvir aquele pum sonoro não tivera consciência de me ter afastado tanto de Tóquio.

Não deixava de ser intrigante.

A remoer naquilo, deixei-me dormir. Apareceu-me em sonhos o diabo esverdeado, mas a visão nada tinha de cativante. Observava-me, silencioso e impassível, no meio da escuridão.

Acordei no fim do filme, quando as luzes se acenderam. Os espectadores deixavam escapar bocejos, como se estivessem a obedecer a um sinal previamente dado. Fui até ao barzinho e comprei dois gelados que comemos sentados lado a lado. Estavam duríssimos, provavelmente eram sobras do Verão anterior.

- Dormiste o filme todo?

- A-hã - fiz eu. - Foi interessante?

- Fascinante. No final, a cidade inteira salta pelos ares.

- Ena!

Na sala de cinema instalara-se um silêncio de morte, de tal maneira pesado que me causou arrepios na espinha.

- Ouve - disse a minha namorada -, não tens a sensação de que o teu corpo se encontra numa espécie de transe ou coisa parecida?

Agora que ela falava nisso, tinha de reconhecer que assim era, de facto.

Ela apertou-me a mão.

-Vamos ficar assim. Tenho uma sensação estranha.

- Está bem.

- Se não estiver de mão dada contigo, dá-me a impressão de que vou ser transportada para um lugar desconhecido. Um lugar inimaginável.

Quando as luzes tornaram a apagar-se na sala e começaram a ser projectadas as imagens do filme seguinte, afastei o cabelo dela e beijei-a na orelha.

- Está tudo bem. Não tenhas medo.

Durante a hora e meia que durou a segunda película, deixámo-nos estar assim, partilhando os dois a sensação de estarmos a ser transportados ao coração das trevas. Ela permaneceu sempre com a face encostada ao meu ombro, que acabou por ficar húmido graças ao calor da sua respiração.

Quando saímos do cinema, passei o meu braço pelos seus ombros e passeámos assim juntinhos pelas ruas da cidade enquanto a tarde caía. Sentíamo-nos mais perto um do outro do que nunca. A agitação das pessoas à nossa volta era reconfortante; no céu as estrelas começavam a despontar, como pequenos pontos.

- Olha uma coisa, estamos de facto na cidade certa, não estamos? - quis ela saber.

Olhei para o céu. A Estrela Polar brilhava na posição correcta, e, contudo, dir-se-ia uma estrela de pacotilha. Demasiado grande, demasiado brilhante.

- Quem sabe? - respondi.

- Sinto que há qualquer coisa que está deslocada.... - referiu ela.

- É o que acontece quando se chega pela primeira vez a uma cidade. O teu corpo ainda não teve tempo de se habituar a ela.

- Achas que vai demorar muito tempo?

-Vais ver que daqui a dois ou três dias já estarás bem - disse eu.

Cansados de andar, entrámos no primeiro restaurante que vimos, bebemos cada um duas imperiais e mandámos vir salmão com batatas. Era certo que tínhamos entrado naquele estabelecimento às cegas, mas não nos podíamos queixar. Tinha uma cerveja deliciosa, e a comida era francamente boa.

- Bom - disse eu, enquanto bebíamos café -, vão sendo horas de irmos à procura de alojamento.

- Já tenho uma ideia do sítio onde gostaria que ficássemos -afirmou ela.

- Sim? E qual é?

- Não interessa. Arranja uma lista telefónica e começa a ler os nomes dos hotéis por ordem.

Pedi a um empregado meio apático que nos arranjasse as Páginas Amarelas, abri a lista na secção de hotéis e pousadas e comecei a ler. Quando já tinha percorrido para aí uns quarenta nomes, a minha namorada mandou-me parar.

- É esse mesmo!

- Qual?

- O último hotel que leste.

- Dolphin Hotel?

- Quer dizer o quê?

- Está em inglês, traduzido, é Hotel Golfinho.

- É aí que vamos ficar instalados.

- Nunca ouvi falar.

- Em todo o caso, não estou a ver mais nenhum hotel em que possamos ficar instalados.

Devolvi a lista telefónica ao empregado, agradeci como mandam as regras e depois liguei para o hotel. Atendeu-me um homem com uma voz indecisa, que me disse que de momento tinham quartos duplos e individuais. Na tentativa de aclarar as coisas, perguntei-lhe se havia outro tipo de quartos para além dos duplos ou dos individuais. Como seria de esperar, a resposta dele foi no sentido de não haver outro género de quartos que não aqueles. Com a confusão instalada na minha cabeça, pedi-lhe que reservasse um quarto duplo e perguntei quanto nos ia custar. O preço era quarenta por cento mais barato do que eu tinha calculado.

O Hotel Golfinho ficava a três quarteirões para oeste e, depois, um quarteirão para sul do cinema onde tínhamos ido. Tratava-se de um pequeno hotel, perfeitamente vulgar. Tão vulgar que a sua vulgaridade tocava as raias do transcendente. Não havia ali luzes de néon nem grandes letreiros, nem sequer uma entrada digna desse nome. Junto a uma anódina porta de vidro, que fazia lembrar a entrada de serviço de um qualquer restaurante, via-se uma placa de cobre com a inscrição: Dolphin Hotel. Nem sequer aparecia desenhada a imagem de um golfinho.

O edifício, de cinco andares, dava a impressão de ser uma gigantesca caixa de fósforos posta de pé. Não se podia dizer que fosse particularmente antigo, mas parecia suficientemente velho para chamar a atenção. O mais certo era já ter esse aspecto de velho desde o tempo em que fora construído.

Era assim o Hotel Golfinho.

Contudo, a minha namorada gostou do hotel mal lhe pôs a vista em cima.

- Nada mau, pois não? - perguntou ela.

- Nada mau? - retorqui eu, devolvendo-lhe as suas palavras.

- Acolhedor e sem luxos supérfluos, assim à primeira vista.

- Pois, sem luxos supérfluos... - repeti. - Quando falas em luxos supérfluos, imagino que te estejas a referir a lençóis lavados, casas de banho que funcionem, ar condicionado a funcionar, papel higiénico macio, sabonete por estrear ou cortinados que não estejam completamente queimados pelo sol...

- Só sabes ver o lado negro das coisas - disse ela, rindo-se. -Seja como for, não estamos aqui propriamente para fazer turismo.

Ao abrir a porta, entrámos num vestíbulo mais amplo do que seria de esperar. No meio, havia alguns sofás dispostos de forma a criar um espaço de convívio e um grande aparelho de televisão a cores. Estava a dar um concurso. Não se via uma alma viva.

De ambos os lados da porta estavam pousados dois vasos enormes com plantas ornamentais. As folhas apresentavam-se um tanto ou quanto amarelecidas. Fechei a porta e, de pé entre as duas plantas, deixei-me ficar alguns segundos a contemplar o salão. Vendo bem, não era assim tão grande. Parecia maior devido ao número reduzido de peças de mobiliário. O conjunto de sofás, o televisor, o relógio de parede e um espelho de corpo inteiro. Mais nada.

Aproximei-me da parede para observar com mais atenção o relógio e o espelho. Tanto um como o outro tinham todo o aspecto de ter sido oferecidos por algum hóspede agradecido. O relógio estava sete minutos atrasado; a minha imagem reflectida no espelho mostrava uma cabeça ligeiramente deslocada em relação ao resto do corpo.

Os sofás eram tão velhos como o próprio hotel. O tecido que os cobria apresentava uma tonalidade alaranjada meio esquisita, do género que se obtém após uma longa exposição ao sol e depois de exposto à chuva durante uma semana a fio, antes de ser finalmente deixado ao abandono numa cave húmida até ganhar mofo. O tom com que ficam as fotografias a cor antigas com o passar do tempo, que eu me lembrava de ter visto nas fotografias tiradas nos primórdios do technicolor.

Quando nos aproximámos do salão, vimos um homem já entrado nos anos e meio calvo estiraçado no sofá, numa postura que fazia lembrar um peixe seco. Ao vê-lo, cheguei a pensar que estaria morto, mas acontecia que estava apenas a dormir. Um estremecimento sacudia volta e meia o seu nariz, que apresentava a marca dos óculos, óculos esses que não se viam em parte alguma. O que dava a entender que não tinha adormecido enquanto via televisão. Aos meus olhos, era uma hipótese que não fazia sentido.

Dirigi-me à recepção e espreitei lá para dentro. Ninguém. A minha amiga tocou com a mão na campainha. O eco ressoou pelo salão deserto.

Esperámos trinta segundos e não obtivemos resposta. O homem deitado no divã não acordou.

Ela voltou a tocar a campainha.

O homem no divã soltou um grunhido, como se estivesse a deitar a si mesmo a culpa de qualquer coisa. Abriu os olhos e olhou para nós com uma expressão ausente.

A minha namorada tocou a campainha uma terceira vez.

Desta vez, o homem de meia-idade levantou-se de um salto, atravessou o átrio de entrada e roçou por mim ao esgueirar-se para trás do balcão. Era ele o recepcionista.

- Peço imensa desculpa - disse ele. - É indesculpável da minha parte. Adormeci enquanto estava à vossa espera.

- Nós é que pedimos desculpa por o termos acordado.

- Nada disso - exclamou ele, ciente do seu papel de recepcionista. Apresentou-me uma ficha de registo e uma esferográfica. Na mão esquerda faltavam-lhe a falangeta do dedo médio e a do mindinho.

Escrevi o meu nome na ficha, mas depois, pensando melhor, amarrotei-a e enfiei a bolinha de papel no bolso. Peguei numa segunda ficha, escrevi um nome falso e uma morada também ela inventada. Tratava-se de um nome escolhido ao acaso, e o mesmo acontecia com a morada, mas, apesar de serem fruto da inspiração do momento, não se podia dizer que tivessem sido mal escolhidos, nem um nem outro. No espaço dedicado à profissão, escrevi: agente imobiliário.

O recepcionista agarrou nos óculos grossos com armação de plástico que deixara ao pé do telefone e leu atentamente a minha ficha.

- Distrito de Suginami, Tóquio... 29 anos de idade... Agente imobiliário.

Tirei um lenço de papel do bolso e limpei a tinta da esferográfica que ficara agarrada aos dedos.

-Viagem de negócios? - perguntou ele.

- De certa maneira - respondi.

- Quantas noites fazem tenções de ficar?

- Um mês.

- Um mês? - repetiu ele, admirado, olhando para mim com cara de quem está a contemplar uma folha de papel de desenho em branco. -Vão ficar aqui instalados um mês inteiro?

- Há algum inconveniente?

- Não... nenhum... mas olhe que nós aqui no hotel temos por hábito liquidar a conta de três em três dias.

Pousei o meu saco de viagem no chão e saquei do bolso um sobrescrito, contei vinte notas novinhas em folha de dez mil ienes e pousei-as no balcão.

- Há mais de onde essas vieram - avisei.

O recepcionista pegou no dinheiro com os três dedos da sua mão esquerda e contou as notas por duas vezes com a direita. A seguir passou um recibo com a quantia.

- E o senhor tem alguma preferência no que respeita ao quarto?

- Se puder ser, agradeço um quarto afastado do elevador. Virando-se de costas para mim, o recepcionista pôs-se a olhar

fixamente para o quadro das chaves. Passado um grande bocado, pegou na que tinha o número 406. Quase todas as chaves estavam alinhadas por ordem no quadro. Pelos vistos, não se podia dizer que o Hotel Golfinho fosse um negócio de vento em popa.

Como não havia paquete nem nada que se parecesse, nós mesmos tratámos de carregar as nossas malas até ao elevador. Como dizia a minha amiga, luxos supérfluos era coisa que ali não existia. O elevador estremecia estrepitosamente, como um canzarrão com falta de ar.

- Para uma longa estada, nada como um hotelzinho pequeno e acolhedor, como este - comentou a minha namorada.

«Um hotelzinho pequeno e acolhedor» - ora aí estava uma frase que não soava mal de todo. Parecia uma tirada publicitária saída das páginas da secção de viagens de uma qualquer revista de moda.

«Para uma longa estada, nada melhor do que um hotelzinho acolhedor, que a faça sentir-se em casa.»

Apesar disso, a primeira coisa que tive de fazer mal entrei no meu quarto daquele «hotelzinho acolhedor» foi pegar no chinelo para esmagar uma barata que passeava pelo caixilho da janela. Em seguida, tratei de apanhar dois pêlos púbicos caídos aos pés da cama e deitei-os no lixo. Tratava-se da primeira barata que via em terras de Hokkaido! A minha namorada, entretanto, tinha posto a água do banho a correr. A torneira fazia um ruído infernal, e palavra de honra que não estou a exagerar.

- Uma coisa te digo, devíamos ter ficado num hotel melhor -gritei eu, abrindo a porta da casa de banho. - Dinheiro é coisa que não nos falta.

- Não é uma questão de dinheiro - retorquiu ela. - A nossa caça ao carneiro começa aqui. É incontornável, percebes? Temos de partir deste hotel.

Estendi-me em cima da cama e acendi um cigarro. Liguei a televisão, percorri os diversos canais e apaguei-a logo. A única coisa que valia a pena ver era a mira técnica, que por sinal tinha uma imagem decente. Ouvi a água deixar de correr. Pela porta entreaberta, apercebi-me da roupa da minha namorada a ser despida, seguido do som do chuveiro.

Depois de abrir os cortinados da janela, olhei lá para fora e vi, do outro lado da rua, um amontoado de prédios anódinos, à imagem e semelhança do nosso Hotel Golfinho. Cada um mais sujo e cinzento do que o outro, como se tivessem apanhado um banho de cinza, e trazendo às narinas o odor da urina só de olhar para eles. Apesar de já serem quase nove horas, ainda havia luz em muitas janelas, deixando ver, atrás delas, vultos de pessoas a trabalhar com frenesi. Não dava para saber em que tarefas concretas estariam absorvidas, mas não se podia dizer que o entusiasmo fosse grande. Se bem que, aos olhos deles, também eu provavelmente não devesse parecer lá muito feliz.

Tornei a fechar as cortinas, voltei para a cama e estendi-me por cima dos lençóis, duros como betume numa estrada asfaltada, de tão engomados. Ali me deixei ficar a pensar na minha ex-mulher e no homem que vivia com ela. Sabia praticamente tudo o que havia para saber acerca dele. Tendo em conta que éramos velhos amigos, estranho seria reconhecer o contrário. Tinha vinte e sete anos, para começar. Era guitarrista de jazz, se bem que não muito conhecido. Ainda assim, um tipo bastante normal, para guitarrista de jazz não muito famoso. Não se podia dizer que fosse má rês, longe disso. Faltava-lhe estilo, ora aí estava. Num ano, mostrava-se indeciso entre Kenny Burrell e B. B. King, no ano seguinte as suas fontes de inspiração eram Larry Coryell e Jim Hall, isto só para dar um exemplo.

Agora, por que teria ela escolhido alguém como ele para me substituir, isso era uma coisa que não me entrava na cabeça. É evidente que cada pessoa tem direito às suas próprias inclinações. Contudo, a única coisa em que ele me superava prendia-se com o facto de saber tocar guitarra, como músico que era. Enquanto eu, pela parte que me tocava, sabia lavar pratos. Sim, porque quase nenhum guitarrista sabe lavar pratos. Senão, podem danificar os dedos e lá se vai o estilo por água abaixo.

Acto contínuo, pus-me a passar em revista a nossa vida sexual. Para matar o tempo, esforcei-me por contar o número de vezes que tínhamos feito amor no decorrer dos quatro anos da nossa vida de casados. No fim de contas, tratava-se de um cálculo aproximado, e que valor podia ter um cálculo aproximado? Não fazia sentido. Devia ter mantido um registo por escrito. Ou, pelo menos, ter assinalado a data na agenda. Assim, sempre poderia ficar a saber o número exacto de vezes em que tinha feito sexo durante aqueles quatro anos. A linguagem dos números ajuda a tornar a realidade tangível.

A minha ex-mulher possuía registos precisos sobre a nossa vida sexual. E não pelo facto de manter um diário. Acontece que, depois ter tido as suas primeiras regras, ela passou a anotar a data exacta em que lhe aparecia o período nos seus cadernos escolares e, quando chegou a altura, foi incluindo também as suas experiências sexuais, à laia de referência suplementar. Ao todo, contavam-se em oito os caderninhos anotados, todos eles guardados a sete chaves numa gaveta, juntamente com as cartas e as suas preciosas fotografias. Era uma coisa que ela nunca mostrava a ninguém. Eu sabia da existência desse material, mas não fazia a mínima ideia da natureza das suas observações de cariz sexual. E agora que estamos separados, o mais certo é nunca mais vir a saber.

«Se eu morrer», costumava ela dizer-me, «queima estes cadernos todos. Rega-os com petróleo, queima-os e enterra as cinzas.

Se ficar escrita uma só letra, se tu leres um carácter que seja, nunca te perdoarei.»

«Sou o teu marido. Durmo contigo todas as noites, e, por assim dizer, conheço cada centímetro da tua pele, todos os recantos do teu corpo. Não achas que é um bocado tarde para adoptares esse sentimento de pudor?»

«As células do corpo renovam-se todos os meses. No preciso momento em que faço isto», tinha-me dito ela, levantando as costas da sua delicada mão e pondo-a à frente dos meus olhos. «Quase tudo o que tu pensas saber a meu respeito são apenas recordações.»

Pelo menos até um mês antes do nosso divórcio, era assim que funcionava a minha ex-mulher, conhecida pelo seu raciocínio metódico. Possuía uma admirável noção exacta daquilo a que se costuma chamar a realidade da vida. Isto para dizer que, em princípio, uma porta fechada era uma porta que não voltaria a abrir-se, isto para além de não ser partidária de deixar as portas abertas.

Portanto, tudo o que eu sabia dela não passava de simples recordação. E até mesmo essas lembranças se iam desvanecendo aos poucos, como células que transportam em si a morte. Não passaria tudo de uma questão de biologia?

 

No dia seguinte, acordámos às oito da manhã. Uma vez arranjados, descemos no elevador e fomos tomar o pequeno-almoço a uma cafetaria próxima. No Hotel Golfinho não havia restaurante nem bar.

- Como ontem te dizia, o melhor é ir cada um para seu lado -disse eu à minha namorada, passando-lhe para a mão uma cópia da fotografia do carneiro. - Eu fico com a zona das montanhas que aparecem ao fundo da fotografia, para ver se encontro o tal lugar. A ti, peço-te que organizes a busca concentrando-te nas fazendas onde exista criação de gado ovino. Já sabes o que tens de fazer. Qualquer pista, a mínima coisa que surja, pode ter a sua importância. Sempre será mais útil do que desatarmos a correr a ilha inteira de Hokkaido completamente às cegas.

- Tudo bem, acredita. Deixa tudo por minha conta.

- Okay, voltamos a encontrar-nos no hotel.

- Não te preocupes - adiantou ela, enquanto punha os óculos escuros. -Vais ver que será canja dar com a pista do carneiro.

Naturalmente, e como, de resto, seria de esperar, não foi assim tão fácil quanto isso dar com o carneiro. Dirigi-me ao Departamento de Turismo do governo regional de Hokkaido, perguntei em vários centros de informação turística e agências de viagem, fiz uma série de pesquisas em associações de alpinismo e montanhismo. Resumindo, investiguei em todos os sítios que pudessem de alguma forma estar relacionados com turismo e com montanhas, mas não encontrei uma só pessoa que se recordasse de ter visto aquela paisagem ilustrada na fotografia.

«Essas montanhas são perfeitamente vulgares, não sei se está a ver...», era o que me diziam as pessoas todas. «Além disso», observavam ainda, «na foto só aparece uma parte da paisagem.»

Foi essa a única conclusão a que cheguei, depois de um dia passado a calcorrear as ruas e a fazer perguntas. Em resumo, era muito difícil identificar uma montanha que não apresentava nenhum traço distintivo. Além do mais, a única coisa de que dispunha era de uma vista parcial.

Fiz uma paragem nas minhas andanças e entrei numa livraria para comprar um livro intitulado As Montanhas de Hokkaido, bem como um atlas de Hokkaido. A seguir enfiei-me num café e entretive-me a folhear os livros, enquanto bebia dois ginger ales. Pelos vistos, e no que dizia respeito às montanhas, havia uma quantidade incrível, todas elas com uma cor parecida e um recorte semelhante. Uma a uma, tentei comparar as montanhas fotografadas no livro com a montanha que aparecia na foto do Rato, mas ao fim de dez minutos comecei a ficar com dores de cabeça. Para cúmulo, o número de montanhas reproduzidas no livro mais não era do que uma ínfima parte do total existente na região de Hokkaido. Sem contar com o facto de uma mesma montanha poder mudar completamente de aspecto conforme o ângulo, o mesmo acontecendo com o panorama em redor.

«As montanhas têm vida», escrevia o autor no prefácio do livro. «Mudam consideravelmente de forma segundo o ângulo de visão adoptado, a estação do ano, a hora do dia, e até mesmo o estado de espírito do observador.»

«Só visto, contado ninguém acredita!», exclamei eu a meia-voz. Uma vez mais, tinha pela frente uma tarefa quase impossível. Quando ouvi dar as cinco, fui sentar-me num banco do parque e entretive-me a roer uma espiga de milho que reparti com os pombos.

As investigações desencadeadas pela minha amiga tinham levado bem mais longe do que as minhas, mas, no que dizia respeito a resultados práticos, de pouco ou nenhuma utilidade se revestiam. Num pequeno restaurante, situado nas traseiras do Hotel Golfinho, trocámos informações e comparámos notas sobre as diligências desse dia.

- Escusado será dizer que no departamento agro-pecuário do governo regional não me souberam adiantar grande coisa - comentou ela. - Pelos vistos, já não controlam o número de carneiros. Deixou de compensar, a criação de carneiros. Pelo menos em grande escala, e em pastos a campo aberto.

- De certa maneira, isso só vem facilitar a nossa missão.

- Aí é que tu te enganas. De facto, quando a criação de ovinos era um negócio próspero, formaram-se associações de criadores de gado ovino muito activas, que permitiam às autoridades manter um registo rigoroso. Agora, na situação actual, com a existência de pequenos e médios criadores, não existe maneira de conhecer a situação actual dos rebanhos. Segundo parece, os pastores têm um número reduzido de cabeças, é quase como se estivessem a criar cães ou gatos. Trouxe uma lista com o nome de trinta criadores de carneiros, pelo menos todos os que se encontram registados. Contudo, estamos a falar em dados de há quatro anos, e em quatro anos a situação pode ter-se modificado muito. Como sabes, em regra a política agrícola do Japão muda de três em três anos...

- Só a mim! - disse eu com os meus botões, suspirando entre dois goles na cerveja. - Parece que chegámos a um beco sem saída. Em Hokkaido deve haver centenas de montanhas todas parecidas e, ainda por cima, desconhece-se qual a actual situação no que toca aos criadores de gado ovino.

- Lembra-te de que estamos no primeiro dia. A caça ainda mal começou.

- E os teus ouvidos, não captaram nenhuma mensagem?

- Até agora ainda não houve mensagens - referiu ela, ao mesmo tempo que cortava um bocado de peixe e acompanhava a garfada com uma colher de sopa de miso. - E algo me diz que tão cedo não vamos ter nenhuma. As mensagens só chegam até mim quando estou de cabeça perdida ou espiritualmente insatisfeita. E não é esse o presente caso.

- Quer dizer que o salva-vidas só é lançado à água quando estás prestes a afogar-te?

- Sim. Agora sinto-me feliz da vida por estar aqui, contigo, e por isso não recebo mensagens. Se queremos encontrar o carneiro, temos de contar só connosco.

- Não há direito - insurgi-me eu. - É caso para dizer que estamos metidos numa camisa de onze varas. Se não dermos com o carneiro, é toda a equipa que fica em maus lençóis. Não me perguntes como, mas se essa gente levar a sua avante, podes ter a certeza de que a coisa é a doer e que sairemos prejudicados. Estamos a lidar com profissionais, é bom não esquecer. Mesmo no caso de o Líder Supremo morrer, a organização continuará de pé, além de que as suas ramificações se estendem por todo o Japão, como a rede de esgotos subterrânea. Não estaremos seguros em parte nenhuma. Parece inconcebível, mas é assim mesmo.

- Faz lembrar aquela série chamada Os Invasores, lembras-te?...

- Pelo absurdo, bem podia ser. Bem, o certo é que estamos metidos nisto até ao pescoço, e quando digo «estamos», refiro-me a mim e a ti. Ao princípio, era só eu, mas depois tu decidiste subir a bordo do comboio. Dadas as circunstâncias, ainda não tens a sensação de que estamos com a água pela garganta?

- Qual quê? Pois se é mesmo disto que eu gosto! É muito melhor do que ter de ir para a cama com desconhecidos, mostrar as minhas orelhas em anúncios anónimos ou corrigir provas de um dicionário de nomes próprios. Isto, sim, é que é vida!

- Ou seja - atalhei eu -, como não nos estamos a afogar, não precisamos que nos lancem a corda.

- Precisamente. Iremos à procura do carneiro pelos nossos próprios meios. Vendo bem, nenhum de nós deixou ficar muita coisa para trás.

Oxalá ela tivesse razão.

Regressámos ao hotel e tivemos relações sexuais. Gosto da expressão: «relações sexuais». Como é que hei-de dizer? Encarna uma determinada e concreta série de possibilidades que conduzem ao fim desejado.

O quarto e quinto dias em Sapporo passaram sem glória nem proveito. Levantávamo-nos às oito, tomávamos o pequeno-almoço, andávamos todo o dia de um sítio para o outro, cada um por seu lado, e, à tardinha, enquanto jantávamos, comparávamos resultados, antes de voltarmos ao hotel, onde tínhamos relações antes de dormir.

Deitei fora os meus velhos ténis, comprei uns novos e regressei às minhas rondas, em que passava o tempo a mostrar a dita fotografia a centenas de pessoas. A minha namorada, por seu turno, baseando-se nos dados fornecidos pelos organismos oficiais e pela biblioteca pública, elaborou uma longa lista de criadores de gado ovino, lista essa que usou como base para lhes ir telefonando, um a um. Apesar de tudo, os resultados foram nulos. Ninguém sabia identificar a montanha e nenhum dos criadores de gado tinha a mínima ideia de alguma vez ter visto um carneiro com uma estrela no dorso. Um velhote disse que se recordava de ter visto uma montanha parecida com aquela num lugar algures na extremidade sul de Sacalina, antes da guerra. A mim, porém, não me parecia possível que o Rato tivesse chegado até Sacalina nas suas deambulações. Além de que não havia meio humano de enviar uma carta de Sacalina para Tóquio.

Aos poucos, comecei a sentir-me cada vez mais cansado. Ao quarto dia, o meu sentido de orientação abandonou-me. Quando comecei a sentir que o ponto cardeal oposto ao Leste era o Sul, comprei uma bússola numa papelaria, mas percorrer a pé as ruas da cidade, de bússola na mão, afigurava-se aos meus olhos cada vez mais irreal. Os edifícios começaram a parecer-se com o cenário de um estúdio fotográfico, as pessoas na rua como silhuetas móveis de cartão. O Sol levantava-se a um canto da superfície plana da Terra para mergulhar no extremo oposto, descrevendo na sua trajectória um arco comparável ao de uma bala de canhão.

Assim passámos o quinto dia, e o sexto. Outubro abateu-se pesadamente sobre a cidade. Os dias continuavam quentes, mas à tardinha o vento refrescava sensivelmente, e à hora do crepúsculo via-me obrigado a vestir um anoraque de algodão. A cidade de Sapporo era grande, cortada por ruas de uma linearidade absoluta. Nunca me tinha dado conta, até então, de como podia ser esgotante percorrer uma cidade construída à base de linhas rectas traçadas a régua e esquadro.

Bebia sete chávenas de café por dia e urinava de hora a hora. Aos poucos, fui perdendo o apetite.

- Por que é que não pões um anúncio no jornal? - sugeriu a minha namorada. - Um aviso pedindo ao teu amigo que se ponha em contacto contigo, por exemplo.

- Não é má ideia - concordei. Independentemente do resultado, sempre seria melhor do que andar por ali a perder tempo daquela maneira.

Dirigi-me aos escritórios de quatro jornais e encarreguei-os de colocarem na edição da manhã do dia seguinte um anúncio de três linhas a dizer o seguinte:

À atenção do Rato. Urgente. Entra em contacto com o Hotel Golfinho, Quarto 406.

 

Durante os dois dias seguintes, deixei-me ficar no hotel à espera de um telefonema. No dia em que saiu o anúncio, o telefone tocou três vezes. A primeira chamada foi de um cidadão local que pretendia saber o que significava aquela história do Rato.

- É a alcunha de um amigo - respondi. O homem, satisfeito, desligou.

A segunda chamada era de um engraçadinho, a imitar um guinchinho de rato.

Desliguei. Neste mundo em que vivemos, os grandes centros urbanos são realmente lugares estranhos.

À terceira, calhou-me uma mulher que tinha uma voz terrivelmente fina.

- Toda a gente me chama Ratinha - afirmou ela. Julguei ouvir na sua voz o baloiçar distante dos fios telefónicos ao sabor do vento.

- Agradeço-lhe por se ter dado ao trabalho de ligar - disse eu. -Contudo, a pessoa de que ando à procura é um homem.

- Calculei logo - replicou ela. - Em todo o caso, como também me chamam Ratinha, achei melhor telefonar, por via das dúvidas.

- Fico-lhe muito agradecido.

- Não tem de quê. E já encontrou essa pessoa sua amiga?

- Ainda não - confessei eu -, infelizmente.

- Que pena, se andasse à minha procura, ficava com o problema resolvido... mas não aconteceu assim, tanto pior.

- É pena, efectivamente.

Ela calou-se. Entretanto, cocei o nariz com o mindinho.

- Para ser franca - prosseguiu -, era consigo que eu queria falar.

- Comigo?

- Não sei explicar bem, mas desde esta manhã, depois de ler o anúncio no jornal, fiquei em pulgas. Ao mesmo tempo, não sabia se havia de ligar ou não. Longe de mim querer incomodá-lo...

- Nesse caso, a história de lhe chamarem Ratinha não passa de uma invenção.

- Com efeito - disse ela -, ninguém me chama assim. De resto, não tenho amigos. Por isso é que fiquei com tanta vontade de falar consigo.

Suspirei. ; - Bom, agradeço-lhe na mesma.

- Desculpe uma coisa... o senhor é de Hokkaido?

- Sou de Tóquio - respondi.

- Veio de Tóquio expressamente à procura de um amigo?

- Assim é.

- E que idade tem esse seu amigo?

- Acaba de fazer os trinta.

- E você?

- Faço trinta daqui a dois meses.

- Solteiro?

- Sim.

- Eu tenho vinte e dois. Calculo que as coisas melhorem à medida que os anos vão passando.

- Bom - disse eu -, isso depende. Umas melhoram e outras não.

- Seria interessante que pudéssemos continuar esta conversa calmamente, sentados a uma mesa, a tomar um copo.

-Vai ter de me desculpar, mas tenho de ficar por aqui à espera de uma chamada.

- Claro - disse ela. - Desculpe o incómodo.

- Seja como for, obrigado por ter ligado. A chamada caiu.

Bem visto, muito bem visto. Aquilo tinha todo o aspecto de ser um estratagema, por parte de uma profissional, no sentido de angariar clientes e entrar em acção. A não ser que se tratasse realmente de uma rapariga solitária. De qualquer forma, era-me indiferente. Afinal de contas, continuava a zero no que dizia respeito a encontrar uma pista.

No dia seguinte houve apenas uma chamada, feita por um homem que não parecia ser lá muito bom da cabeça.

- Ratos? Deixem isso comigo - disse-me ele, e durante uns bons quinze minutos ficou ali a discorrer sobre o seu combate aos ratos no tempo em que estivera detido num campo de concentração na Sibéria. Uma história interessante, sem dúvida, mas que a mim de pouco ou nada adiantava.

Sentei-me num sofá meio desconjuntado ao pé da janela, enquanto esperava que o telefone tocasse, e passei o dia a seguir a movimentação dos empregados num escritório no terceiro andar do prédio em frente. Quando cheguei ao fim do dia, ainda não tinha percebido qual o ramo da empresa. Tinha uma dezena de empregados, e havia sempre gente a entrar e a sair, como num jogo de basquetebol muito disputado. Um passava a outro os papéis, o do lado punha-lhes o selo em cima, o outro ainda mais ao lado enfiava os papéis num sobrescrito e saía dali em passo de corrida. Durante o intervalo para almoço, uma secretária de seios avantajados serviu a toda a gente uma chávena de chá. Durante a tarde, algumas pessoas mandaram vir café do exterior. Aquilo deu-me vontade de beber também um, de modo que, depois de pedir ao recepcionista para ficar com as mensagens, fui até à cafetaria mais próxima e aproveitei a saída para comprar duas latas de cerveja. Quando retomei o meu posto à janela do quarto, vi que o escritório ficara reduzido a quatro pessoas. A secretária mamalhuda brincava com um jovem empregado. Enquanto bebia a minha cerveja, lá fui seguindo com os olhos a actividade que se desenrolava no escritório, centrando a minha atenção na mulher.

Quanto mais olhava para os seios dela, mais descomunais me pareciam. De certeza que usava um sutiã com alças da grossura dos cabos de aço que sustentam a Golden Gate Bridge, a ponte suspensa de São Francisco. Tive a impressão de que mais do que um empregado não se importaria nada de ir para a cama com ela. O desejo sexual daqueles empregados de escritório era contagiante, passando através da rua e chegando até mim pelos vidros da janela. É uma coisa estranha, isso de sentir desejo dos outros. Não demora muito a sentirmos nosso o desejo deles.

Às cinco da tarde, a mulher mudou de roupa, enfiando um vestido vermelho, e foi-se embora. Fechei as cortinas da janela e pus-me a ver os desenhos animados do Bugs Bunny que estavam a passar na televisão. E assim o oitavo dia no Hotel Golfinho chegou ao fim.

- Só visto! - exclamei. Aquela frase tinha-se convertido numa espécie de palavra de ordem. - Passaram quase dez dias e ainda não chegámos a parte nenhuma.

- Assim parece - disse ela. - Como é que o Arenque se estará a aguentar?

Estávamos sentados a descansar depois do jantar naquele sofá cor de laranja que havia na entrada do Hotel Golfinho. Tirando nós os dois, só o recepcionista com três dedos ali se encontrava, entretido a trocar lâmpadas, utilizando um escadote de mão, a limpar os vidros das janelas, a empilhar jornais. Devia haver outros hóspedes no hotel, para além de nós, mas pareciam estar todos enfiados nos respectivos quartos, quietos como múmias na penumbra.

- Está tudo a correr como os senhores desejam? - perguntou respeitosamente o recepcionista, enquanto regava as plantas.

- Nem por isso - retorqui.

- Parece que o senhor pôs um anúncio no jornal.

- Com efeito - disse eu. - Ando à procura de uma certa pessoa relacionada com a herança de uns terrenos.

- Uma herança?

- Sim. Parece que o herdeiro desapareceu sem deixar vestígio...

- Estou a ver - disse ele, com um ar interessado. - Parece ser um trabalho interessante, o seu.

- Olhe que não...

- Mesmo assim, há aí qualquer coisa de Moby Dick.

- De Moby Dick?

- Claro! Andar à caça de qualquer coisa deve ser fascinante.

- Um mamute, por exemplo? - perguntou a minha amiga.

- Por exemplo. Tanto faz - referiu o empregado do hotel. - De resto, dei a este estabelecimento o nome de Hotel Golfinho por causa de uma cena que existe no romance Moby Dick do Melville e que mete golfinhos.

- Essa é boa! - exclamei eu. - Nesse caso, não teria sido melhor dar-lhe o nome de Hotel Baleia?

- As baleias não têm tão boa imagem - admitiu ele, com uma expressão de pesar.

- O Hotel Golfinho é um nome muito bonito - referiu a minha namorada.

- Muitíssimo obrigado - disse o recepcionista com um sorriso. -A propósito, esta prolongada estada com que os senhores nos honram é, sem dúvida, uma feliz circunstância. E, caso estivessem de acordo, gostaria de celebrar a ocasião obsequiando-os com uma garrafa de vinho.

- Encantada - exclamou ela.

- Muito agradecido.

Entrou num quartinho dos fundos e regressou pouco depois com uma garrafa de vinho branco gelado e três copos.

- Muito bem, vamos lá então brindar à vossa saúde. Como ainda estou de serviço, participarei apenas simbolicamente.

- Por favor, faça-nos companhia.

Lá bebemos o vinho. Não era grande coisa, mas estava fresco e escorregava bem. Até os copos, decorados com cachinhos de uvas, tinham um certo toque de classe.

- Com que então, o senhor apreciou a leitura de Moby Dick? - decidi-me a perguntar-lhe.

- Bem pode dizê-lo. Desde pequeno que o meu sonho sempre foi ser marinheiro.

- E como é que veio parar a este hotel? - quis saber a minha amiga.

- Quando perdi os dedos, vi-me obrigado a mudar de ofício -contou ele. - Verdade seja dita, ficaram esmagados num guincho quando estava a descarregar mercadoria de um cargueiro.

- Que horror! - exclamou ela.

- Foi uma época negra, aquela, mas a vida é uma caixinha de surpresas. E foi assim que me vi à frente dos destinos deste hotel. Não que seja propriamente um hotel de primeira, claro, mas o certo é que cá nos vamos aguentando no balanço. Com este, contam-se em dez os anos que o tenho a funcionar.

Isso só queria dizer que ele não era o recepcionista, mas sim o dono.

- O seu hotel não podia ser um local mais perfeito - comentou a minha amiga, animada pela sua proverbial boa vontade.

- Agradeço muito as suas palavras - retorquiu o homem, tornando a encher os nossos copos.

- Nestes dez anos, pode dizer-se que o hotel adquiriu, como dizer?... uma certa personalidade própria - atrevi-me a afirmar, sem que com isso me caíssem os parentes na lama.

- Com efeito, foi construído logo a seguir à guerra. Graças aos meus conhecimentos, tive alguma ajuda e consegui fazer uma boa compra.

- O que é que funcionava aqui, antes de ser hotel?

- Era aqui que funcionava a Associação dos Criadores de Gado Ovino de Hokkaido. Toda a espécie de trâmites e tarefas administrativas, operações de compra e venda e coisas desse género, desde que relacionadas com o gado ovino, realizavam-se aqui.

- Gado ovino? - perguntei eu.

- Carneiros - esclareceu ele.

- Este edifício foi propriedade da Associação dos Criadores de Gado Ovino de Hokkaido até 1967. Porém, o declínio da criação de carneiros no território levou ao encerramento das instalações -explicou o homem, fazendo uma pausa para beber um gole de vinho. - De facto, quem estava então à frente dos destinos do centro era o meu pai, que nunca aceitou de bom grado o fecho das instalações onde funcionava a sua querida Associação dos Criadores de Gado Ovino; de modo que, a pretexto de conservar neste local toda a documentação respeitante ao gado ovino, convenceu os membros da Associação a vender este edifício e o terreno anexo por um preço muito razoável. Em consequência, o segundo andar do edifício está ocupado na sua totalidade pelo arquivo documental de tudo o que tem que ver com gado ovino. Se bem que se trate quase tudo de documentos antigos, que provavelmente não servem para nada, a não ser para ocupar o tempo de um velhote. Enfim, o que interessa é que o meu pai está feliz da vida e tem com que se distrair. No resto do edifício, funciona o hotel, explorado por mim. E assim vamos aguentando o barco.

- Mas que grande coincidência! - exclamei.

- Coincidência?

- Imagine o senhor que a pessoa de quem ando à procura está de certa forma relacionada com a criação de carneiros.

E que a única pista de que disponho é a tal fotografia de um rebanho que essa pessoa me enviou.

- Não me diga? - espantou-se ele. - Se não vê inconveniente, gostaria de passar os olhos pela fotografia.

Desencantei a foto que guardava entre as páginas do meu cader-ninho de notas e entreguei-lha. Ele foi buscar os óculos atrás do balcão e depois começou a estudá-la atentamente.

- Esta paisagem diz-me qualquer coisa - afirmou.

- Lembra-se de onde?

- Claro que sim - e, dizendo aquilo, foi buscar o escadote que abandonara por baixo de um candeeiro de tecto e encostou-a à parede oposta. Subiu, pegou num quadro emoldurado que estava muito próximo do tecto e trouxe-o para baixo. A seguir limpou o pó com um pano e passou-nos o quadro para as mãos.

- Ora vejam lá se não é a mesma paisagem?

O quadro estava a cair de velho e a fotografia ainda mais, ao ponto de já apresentar um tom de sépia. E, com efeito, a foto mostrava um rebanho de carneiros. Haveria uns sessenta, ao todo. Via-se uma vedação, um bosque de bétulas-brancas, montanhas. O bosque era diferente do que aparecia na fotografia do Rato, mas as montanhas em pano de fundo eram sem dúvida as mesmas. Até a composição da fotografia era semelhante.

- Só visto! - disse eu, virando-me para a minha namorada. -E dizer que durante todo este tempo tivemos sempre esta fotografia debaixo do nariz.

- Eu cá tinha as minhas razões quando te disse que devíamos ficar alojados no Hotel Golfinho - respondeu-me ela, como quem não quer a coisa.

- Vamos lá então ver - perguntei eu ao homem -, onde é que fica exactamente o lugar representado na fotografia?

- Não posso dizer que saiba grande coisa - respondeu ele. - Há séculos que a fotografia está pendurada nessas paredes, desde que o edifício era propriedade da Associação dos Criadores de Gado Ovino.

- Hmm... - grunhi eu.

- Pergunte ao meu pai. Vive num quarto do segundo andar, de onde nunca sai. Passa os dias, por assim dizer, entregue aos seus livros e mergulhado na leitura de tudo o que diz respeito aos carneiros. Há mais de quinze dias que não lhe ponho a vista em cima, mas deduzo que ainda esteja vivo porque deixo os pratos com a comida à porta e, meia hora depois, o tabuleiro está vazio.

- Acha que o seu pai nos poderia esclarecer sobre o lugar onde terá sido tirada a fotografia?

- Imagino que sim. Como já lhe disse, o meu pai estava à frente do Centro Ovino, e é do conhecimento geral que sabe tudo o que há para saber acerca de carneiros. Não é por acaso que toda a gente lhe chama o Professor Carneiro.

- O Professor Carneiro - repeti eu.

 

Segundo nos contou o dono do Hotel Golfinho, que é como quem diz, o filho do Professor Carneiro, não se podia dizer que o seu pai tivesse propriamente conhecido uma existência feliz.

- O meu pai nasceu em Sendai, no ano de 1905, o primogénito de uma família de antigos samurais - começou ele a contar-nos. -Vou referir-me aos anos segundo o calendário ocidental, se os senhores não se importam.

- Claro que não, faça como achar melhor.

«Não se tratava de uma família particularmente próspera, ainda que possuísse o seu quinhão de terras. Nos tempos que já lá vão, havia merecido a confiança de um senhor feudal local, que lhe confiou a guarda de um castelo. Quando acabou o tempo do xogunato(18), no final do período Edo, a nossa família contava entre os seus membros com a presença de um famoso agrónomo.

«Desde a mais tenra idade, o Professor Carneiro teve sempre uma boa cabeça para os estudos, e na cidade de Sendai era por todos considerado uma criança-prodígio. E não era apenas na escola que ele se destacava, mas também como violinista, ao ponto de ter

 

*18. Sistema de governo predominante no Japão de 1192 a 1867, baseado na crescente influência do xógum (general), chefe militar supremo, que acabaria por submeter até mesmo a autoridade do imperador; o feudalismo chegou ao fim com a subida ao trono do imperador MitsjUhito e o começo do período Meiji, uma era de grandes mudanças. (N. da T.)

 

chegado a interpretar uma sonata de Beethoven na presença da família imperial, no decorrer de uma visita à província, andava ele então a estudar. Como recompensa pelos seus dotes artísticos, recebeu das mãos do imperador um relógio de ouro.

«A família tinha esperança de que ele prosseguisse os seus estudos em Direito, abrindo assim caminho a um futuro na advocacia, mas ele recusou-se terminantemente.

«"Não me interesso por leis", teria afirmado o jovem Professor Carneiro.

«"Nesse caso, poderias dedicar-te à música", respondeu o pai. "Seria de bom-tom ter pelo menos um músico na família." ; «"A música tão-pouco me interessa", retorquiu ele.

«Por momentos, ficaram ambos calados.

«"Muito bem", disse então o pai, rompendo o silêncio, "que caminho pretendes seguir?"

«"Estou interessado na agricultura. Gostaria de estudar agronomia."

«"Muito bem" replicou o pai após uma pausa. E, na verdade, que outra coisa poderia ele dizer? O Professor Carneiro era um jovem leal e afável, mas, uma vez tomada uma decisão, era do género de não dar o braço a torcer. Nem sequer o seu próprio pai teria sido capaz de o fazer mudar de ideias.

«E foi assim que, no ano seguinte, o Professor Carneiro ingressou, conforme era seu desejo, na Faculdade de Agronomia da Universidade Imperial de Tóquio. A sua fama de menino-prodígio não esmoreceu ao longo do seu percurso académico. Pelo contrário, era alvo da atenção de toda a gente, até mesmo dos professores. Nos seus estudos, esteve sempre entre os primeiros, e era grande a sua popularidade. Em poucas palavras, graças ao seu comportamento irrepreensível, pertencia à nata da universidade. Não perdia tempo com brincadeiras de mau gosto, aproveitando para ler nos tempos livres. Quando se cansava dos livros, ia até ao jardim da universidade e aí praticava violino. Andava sempre com o relógio de ouro no bolso do seu uniforme de estudante.

«Licenciou-se com as melhores notas e, em seguida, entrou para o Ministério da Agricultura e Florestas. A sua tese de licenciatura debruçava-se, em termos resumidos, sobre o plano conjunto de exploração agrícola do Japão, da Coreia e da Formosa.

Ainda que por alguns criticada pelas suas propostas excessivamente teóricas, suscitou forte reacção e foi na altura, e de uma forma geral, bem recebida.

«Após dois anos no ministério, o Professor Carneiro foi transferido para a Coreia, onde se dedicou ao estudo da rizicultura. Como resultado dos estudos, publicou um relatório intitulado "Plano para Fomentar a Produção de Arroz na Coreia", que foi oficialmente adoptado pelo governo local.

«Em 1934, chamaram-no de volta a Tóquio, onde foi apresentado a um jovem general do Exército de Terra. Este general, confrontado com a perspectiva da iminente campanha em grande escala a desenrolar-se no Norte da China, pediu-lhe que traçasse um programa que visasse a auto-suficiência no que dizia respeito ao aprovisionamento de lã. E foi isso que marcou o primeiro contacto do Professor Carneiro com os carneiros. O Professor Carneiro elaborou um projecto global para o aumento da produtividade do gado ovino no Japão, na Manchúria e na Mongólia, e na Primavera do ano seguinte foi chamado à Manchúria a fim de ali realizar uma inspecção no terreno.

«A Primavera de 1935 decorreu sem sobressaltos. Foi só em Julho que os acontecimentos se precipitaram. Certo dia, o professor saiu a cavalo, sozinho, para inspeccionar os rebanhos, e não regressou, temendo-se que tivesse desaparecido.

«Passavam os dias, e o Professor Carneiro não havia maneira de regressar. Ao quarto dia, uma patrulha de resgate, formada em grande parte por soldados, partiu à sua procura por aquelas paragens solitárias, mas foi impossível dar com ele. Pensou-se que talvez tivesse sido atacado por lobos, ou sequestrado por nativos rebeldes. Foi então que, passada uma semana, quando já toda a gente começava a abandonar a esperança, que um Professor Carneiro no limite das suas forças foi visto a vaguear nas imediações do acampamento. Trazia no rosto sinais evidentes de cansaço, apresentando cortes em vários sítios, mas o brilho do seu olhar permanecia intacto. Tinha ficado sem a montada, o seu relógio de ouro levara sumiço. Contou que perdera o norte e que o seu cavalo se magoou e teve de abandoná-lo. Ninguém pôs em causa as suas explicações.

«Ainda nem um mês tinha passado quando começaram a circular estranhos rumores pelos gabinetes governamentais. Dizia-se à boca pequena que o professor mantivera "relações privilegiadas" com os carneiros.

Contudo, não havia quem soubesse dizer ao certo qual o significado daquelas "relações privilegiadas". Como tal, foi chamado ao gabinete do seu superior e interrogado, a fim de se apurar a verdade dos factos. É sabido que numa sociedade colonial que se preze não são tolerados rumores daquela natureza.

«"É verdade que manteve um relacionamento especial com um carneiro?", perguntou-lhe o chefe.

«"É verdade", confirmou o Professor Carneiro.

«Aqui fica a transcrição dos termos em que decorreu o interrogatório:

Pergunta: Que entende por "relações privilegiadas"? Implicam algo de carnal?

Resposta: Não, não é o caso.

P: Queira explicar-se, por favor.

R: Trata-se de uma relação de natureza mental.

P: Isso não é explicação.

R: Não é fácil encontrar a expressão exacta, mas o que de mais aproximado me ocorre é "comunhão espiritual".

P: Diria que manteve uma "comunhão espiritual" com um carneiro?

R: Exactamente.

P: Está a dizer-me que, durante a semana em que foi dado como desaparecido, esteve em "comunhão espiritual" com um carneiro?

R: Exacto.

P: E não lhe parece que semelhante conduta representa um desvio das suas obrigações profissionais?

R: As minhas funções implicam estudar os carneiros.

P: Que eu saiba, a "comunhão espiritual" não faz parte integrante desse estudo. Daí que tenha de lhe pedir para ser mais cuidadoso, de futuro. Pense nos seus brilhantes estudos académicos

e na licenciatura com a melhor nota pela Faculdade de Agronomia da Universidade Imperial de Tóquio, sem esquecer o notável trabalho desempenhado desde que entrou para os quadros deste ministério. Devo adiantar que é tido nos bastidores como a pessoa ideal para conduzir os destinos da política agrária na Ásia Oriental. É bom que tenha consciência disso.

R: Compreendo a sua posição.

P: Nesse caso, tenho de lhe pedir para esquecer de uma vez

por todas essa história disparatada da "comunhão espiritual".

Os carneiros não passam de animais, de meras bestas. R: É-me impossível esquecê-lo.

P: Terá de me dar uma explicação cabal e convincente. R: A razão é que o carneiro se encontra dentro de mim. P: Não é uma explicação. R: Não lhe posso adiantar mais nada.

«Em Fevereiro de 1936, o Professor Carneiro foi mandado regressar ao Japão e, depois de submetido a numerosos interrogatórios do género, acabou por ser transferido, ao chegar a Primavera, para o centro de documentação do ministério. Aí, ficou encarregado de inventariar o material e de organizar os ficheiros. Por outras palavras, foi afastado do núcleo selecto que comandava os destinos da política agrária da Ásia Central.

«"O carneiro já saiu de dentro de mim", confidenciou o Professor Carneiro a um grande amigo seu. "Contudo, antes costumava tê-lo comigo, no mais profundo do meu ser."

«Em 1937, o Professor Carneiro retirou-se do Ministério da Agricultura e Florestas e, aproveitando um empréstimo concedido a título pessoal pelo dito ministério - como parte de um plano para fomentar a criação de gado ovino no Japão, na Manchúria e na Mongólia, até alcançar os três milhões de cabeças, plano esse elaborado em tempos pelo próprio professor -, mudou-se de armas e bagagens para Hokkaido, onde se tornou criador de carneiros. À sua guarda tinha um rebanho composto de 56 cabeças de gado.

«1939. O professor Carneiro contrai matrimónio. O seu rebanho conta com 128 cabeças de gado.

«1942. Nasceu o seu filho primogénito (actual dono e gerente do Hotel Golfinho). 181 cabeças de gado.

«1946. As tropas de ocupação norte-americanas apropriam-se dos terrenos onde pasta o rebanho do Professor Carneiro, convertendo-o num campo de manobras. 62 cabeças de gado.

«1947. O professor Carneiro ingressa na Associação dos Criadores de Gado Ovino de Hokkaido.

«1949. Falecimento da mulher do Professor Carneiro, na sequência de uma tuberculose pulmonar.

«1950. É nomeado presidente da Associação dos Criadores do Gado Ovino de Hokkaido.

«1960. O seu primogénito perde a ponta de dois dedos durante um incidente ocorrido no porto de Otaru.

«1967. Encerramento da Associação dos Criadores de Gado Ovino de Hokkaido.

«1968. Abertura do Hotel Golfinho.

«1978. Entrevista com um jovem agente imobiliário que deseja informações sobre uma certa e determinada fotografia.

«Por outras palavras, eu.

- Só visto! - exclamei.

- Tenho mesmo de chegar à fala com o seu pai - confessei eu ao homem.

- Por mim, não vejo inconveniente. No entanto, atendendo a que o meu pai não me pode ver à frente, tenho de lhe pedir que vá sozinho ter com ele - disse o filho do Professor Carneiro.

- Por que razão é que ele não gosta de si?

- Porque perdi dois dedos e estou a ficar careca.

- Estou a ver - disse eu. - Parece-me uma pessoa excêntrica, o seu pai.

- Como filho dele, não é bonito ser eu a dizê-lo, mas sim, de facto, trata-se de um excêntrico. Um homem completamente mudado, desde que entrou em contacto com o carneiro. Tornou-se um homem difícil, por vezes mesmo cruel. Lá no fundo, porém, tem um bom coração. Se o ouvisse a tocar violino, saberia do que eu falo. O que aconteceu foi que o carneiro magoou o meu pai e, através dele, também me fez mal.

- O senhor gosta do seu pai, não gosta? - perguntou a minha namorada.

- Sim, gosto - respondeu o dono do Hotel Golfinho -, mas a verdade é que ele não gosta de mim. Desde que vim a este mundo, nem uma única vez me deu um abraço. Nunca me dirigiu uma palavra mais carinhosa. E, desde que mutilei os dedos e comecei a perder cabelo, não perde uma oportunidade para me atormentar.

- Tenho a certeza de que o faz sem querer - referiu ela, na tentativa de o consolar.

- Também me quer parecer - disse eu, por minha vez.

- Agradeço a vossa amabilidade - retorquiu o dono do hotel.

- Uma coisa, acha que o seu pai aceitará receber-nos se formos directamente ter com ele? - perguntei.

- Quem sabe? - respondeu ele. - Na condição de levarem em atenção duas coisas, não vejo por que não os há-de receber. A primeira é dizerem claramente que estão ali para fazer algumas perguntas sobre o carneiro.

- E a segunda?

- Não lhe digam que falaram comigo.

- Muito bem - concordei eu.

Agradecemos ao filho do Professor Carneiro e subimos ao segundo andar. Fazia frio, no cimo das escadas, e o ar estava húmido. A iluminação era pobre, ainda que desse para ver a camada de pó acumulada nos cantos. Flutuava por todo o lado um cheiro pútrido a papéis antigos e odores corporais. Percorremos um longo corredor e, seguindo as instruções do filho, batemos a uma porta a cair de velha que ficava mesmo ao fundo. Por cima via-se uma placa de plástico carcomida com as palavras: «Gabinete do Director». Não obtivemos resposta. Voltei a bater à porta. Outra vez sem resposta. À terceira tentativa, chegou-nos lá de dentro uma voz mal-humorada.

- Deixem-me em paz! - exclamou o homem. - Desapareçam.

- Gostaríamos de fazer-lhe algumas perguntas acerca do gado ovino, caso fosse possível.

-Vão pastar merda! - berrou o Professor Carneiro de dentro do quarto. Para um homem de setenta e três anos, possuía ainda uma voz bem firme.

- A sério, temos absoluta necessidade de falar consigo - vociferei eu, por meu turno, através da porta fechada.

-Não-me-venham-com-essa-conversa-de-merda-sobre-carneiros, cambada de ursos - lançou o professor.

- Olhe que se trata de um assunto do seu interesse - rugi eu. -Estamos a falar de um carneiro que desapareceu em 1936!

Seguiu-se um breve silêncio, depois a porta abriu-se bruscamente. Diante de nós estava o Professor Carneiro.

Tinha uma longa cabeleira, branca como a neve. As sobrancelhas também eram brancas, caindo-lhe sobre os olhos como estalactites. Media um metro e setenta e cinco, aproximadamente. Era bem-constituído, o corpo firme e vigoroso. O seu nariz projectava-se em tom de desafio, formando um ângulo recto, como uma prancha de esqui.

O odor a suor empestava o quarto todo. Não, vendo bem, a partir de determinada altura, depois de ali nos encontrarmos há um bom bocado, já não parecia cheirar assim, era como se o suor tivesse perdido as suas características e se fundisse, em perfeita harmonia, com o lugar e com a pessoa que ali habitava. Aquilo que em tempos devia ter sido uma divisão ampla, via-se agora transformado num espaço atafulhado de livros e papéis, ao ponto de mal se divisar o chão. A maior parte dos livros eram obras eruditas redigidas em idiomas estrangeiros. Sem excepção, estavam todos cobertos de manchas. À direita, encostada à parede, via-se uma cama imunda, e diante da janela que dava para a rua havia uma enorme mesa de mogno e uma cadeira giratória. Sobre o tampo da secretária reinava uma ordem relativa, com um pesa-papéis em forma de carneiro no cimo de toda aquela papelada. A iluminação, ténue, reduzia-se a uma lâmpada de uns míseros sessenta watts toda empoeirada.

O Professor Carneiro vestia uma camisa cinzenta, casaco de malha preto e calças deformadas de um grosso tecido em padrão espinha de peixe. Dependendo da oscilação da lâmpada, a camisa cinzenta e o casaco preto poderiam ter passado por uma camisa branca e um casaco cinzento. Talvez tivessem sido essas as cores originais, quem sabe.

Instalando-se na cadeira giratória, atrás da secretária, o Professor Carneiro fez-nos sinal com o dedo para nos sentarmos na cama.

Atravessámos o quarto passando por cima dos livros, como se estivéssemos a avançar por um campo de minas, até chegarmos à cama, onde nos sentámos. Era tão palpável a sujidade daquela cama que cheguei a recear que as minhas Levi's ficassem para sempre coladas aos lençóis. O Professor Carneiro cruzou os dedos em cima da secretária e ficou ali a olhar fixamente para nós. Os seus dedos estavam cobertos de pêlos pretos que iam até às articulações. Aquela pilosidade negra dos seus dedos formava um estranho contraste com o brilho eléctrico da sua cabeleira branca.

De repente, o Professor Carneiro pegou no telefone e gritou para o auscultador:

- Tragam-me o jantar, rápido! - Depois voltando-se para nós, disse: - Ora então, se bem compreendi, estão aqui para falar do carneiro que desapareceu em 1936.

- Assim é - confirmei eu.

- Hmm - murmurou ele, antes de assoar ruidosamente o nariz com um lenço de papel. - Há alguma coisa que me queiram dizer? Alguma pergunta em concreto?

- As duas coisas.

- Bem, nesse caso desembuchem.

- Sabemos onde pára o carneiro que desapareceu naquela Primavera de 1936.

O Professor Carneiro bufou e resmungou qualquer coisa.

- Estão a querer dizer-me que sabem que renunciei a tudo por causa desse carneiro, e que dediquei a minha vida para andar à cata dele nos últimos quarenta e dois anos?

- Exactamente - confirmei eu.

- Se calhar, não passa tudo de uma grande patranha.

Tirei do bolso o isqueiro de prata e a fotografia enviada pelo Rato e coloquei ambas as coisas em cima da mesa. Ele estendeu as suas mãos peludas, pegou no isqueiro e na fotografia, e examinou-os à luz da lâmpada durante um bom bocado. Um longo silêncio flutuou no ar, como partículas em suspensão. A sólida janela de vidros duplos amortizava os ruídos lá fora, na rua, enquanto o leve crepitar do decrépito candeeiro de mesa pontuava o peso do silêncio.

O ancião, mal acabou de examinar o isqueiro e a fotografia, desligou o candeeiro com um dique e esfregou os olhos com os dedos papudos. Parecia que estava a ver se conseguia enterrar os globos oculares no fundo da caixa craniana. Quando retirou os dedos, tinha os olhos de um vermelho carregado, como os de um coelho.

- Queiram desculpar-me - disse o Professor Carneiro. - À força de viver rodeado de gente estúpida, desconfio de tudo e de todos.

- Não se preocupe - disse eu.

A minha amiga esboçou um sorriso amável.

- Imaginam o que é uma pessoa ter em mente um pensamento, aos seus olhos claro e evidente, e ser absolutamente incapaz de o exprimir em palavras? - perguntou o professor.

- Não - confessei eu.

- É um inferno. Um inferno sepulcral onde esse pensamento se encontra perdido num intrincado labirinto. Sem um raio de luz nem uma gota de água que pudessem mitigar o sofrimento. Tem sido essa a minha vida, nos últimos quarenta e dois anos.

-Tudo por causa do carneiro?

- Sim, por causa do carneiro. Foi aquele carneiro que me meteu nestes assados, corria então a Primavera de 1936.

- E foi com o objectivo de partir em demanda do tal carneiro que se demitiu do Ministério da Agricultura, estou correcto?

-Aqueles funcionários eram todos uns incompetentes. Não sabem dar às coisas o devido valor. A enorme importância do carneiro, por exemplo, nunca se aperceberam dela.

Alguém bateu à porta.

- Aqui tem o seu jantar - ouviu-se uma voz feminina dizer.

- Deixa ficar aí - vociferou o Professor Carneiro.

Ouviu-se o ténue barulho de uma bandeja a ser pousada no chão e, em seguida, passos que se afastavam. A minha amiga abriu a porta, recolheu a bandeja e transportou-a até à secretária, depositando-a à frente do Professor Carneiro. Em cima da bandeja havia sopa, salada, um pãozinho e almôndegas, o jantar destinado ao professor; para nós, dois cafés.

- Já comeram? - quis saber o professor.

- Já, não se preocupe.

- Jantaram o quê?

-Vitela estufada ao molho Madeira - respondi eu.

- Camarões grelhados - respondeu ela

- Hmm... - gemeu o Professor Carneiro. A seguir atirou-se à sopa, ao mesmo tempo que metia na boca um pedaço de pão.

- Desculpem se aproveito para comer enquanto falamos, mas o certo é que estou com uma certa larica.

- Esteja à vontade - dissemos nós.

O Professor Carneiro comeu a sua sopa, enquanto nós saboreávamos o nosso café. Enquanto comia, nunca tirou os olhos do fundo do prato.

- Por acaso conhece a paisagem retratada na fotografia? - perguntei-lhe.

- Claro que conheço. Conheço até muito bem - respondeu.

- E pode indicar-nos onde fica?

- Mais devagar - disse o Professor Carneiro, afastando para o lado o prato vazio de sopa. - Uma coisa de cada vez, vamos por partes. Comecemos pelos acontecimentos de 1936. Primeiro falo eu, depois será a tua vez.

Assenti.

- Em poucas palavras - disse o Professor Carneiro -, «o carneiro entrou em mim no Verão de 1935. Andava eu por terras fronteiriças entre a Manchúria e a Mongólia, a inspeccionar as pastagens, quando, por mero acaso, fui ter a uma gruta onde decidi passar a noite. Em sonhos, apareceu-me um carneiro que me perguntou se podia entrar dentro de mim. «Por que não?», respondi-lhe. Na altura, não dei grande importância àquele sonho, porque sabia que não passava disso mesmo, que é como quem diz, de um sonho - riu-se com vontade o velhote, enquanto mastigava a salada.

«Aquele carneiro era de uma espécie jamais vista. Graças ao meu ofício, tinha conhecimento de todas as raças de carneiro existentes um pouco por toda a parte, mas àquela, confesso, nunca tinha posto a vista em cima. Apresentava os chifres retorcidos num ângulo insólito, as patas curtas e robustas, os olhos de um azul quase transparente, como as águas cristalinas de um regato. A sua lã era branca, se bem que no dorso crescesse um tufo de pêlos acastanhados em forma de estrela. No mundo nunca se tinha visto um carneiro assim. Por isso lhe respondi que podia entrar em mim. Enquanto especialista em gado ovino, não podia de forma alguma ficar indiferente a um exemplar tão interessante.

- E qual foi a sensação de ter um carneiro a entrar no corpo de uma pessoa?

- Nada do outro mundo. Única e exclusivamente a sensação de que o carneiro estava em mim. De manhã, por exemplo, quando acordava, sentia o carneiro dentro de mim. Era uma sensação perfeitamente natural.

- Teve dores de cabeça?

- Nem uma única vez na vida.

Depois de as ter ensopado bem de molho, o Professor Carneiro concentrou-se nas almôndegas e, uma atrás da outra, mastigou-as com evidente gosto.

- Nos confins do território mongol, não são assim tão estranhas, as histórias que falam de um carneiro no corpo de um homem - lá foi ele contando. Entre os povos que habitam aquelas terras, o facto de uma pessoa ser escolhida como morada por um carneiro é considerado uma espécie de bênção divina. Por exemplo, num livro publicado durante o período Yuan(19), lá para os séculos XIII ou XIV, conta-se que «um carneiro com uma estrela no dorso» entrou no corpo de Gengis Khan. Interessante, não lhes parece?

- Muito.

- Um carneiro que entra dentro do corpo de um humano, torna-se imortal. E, pela mesma ordem de razões, também a pessoa que acolhe o carneiro se torna imortal. Contudo, se o carneiro escapa de dentro dela, lá se vai a imortalidade. Tudo depende do carneiro. Se ele gosta de estar onde está, pode ficar décadas sem fim num determinado corpo; no caso contrário, zás!, salta de lá a grande velocidade. Chamam aos humanos que foram abandonados por um carneiro «tresmalhados». Por outras palavras, pessoas assim como eu.

«Nham, nham, nham», continuava o professor a mastigar.

- Desde que o carneiro se apoderou do meu corpo, comecei a dedicar-me a tudo o que sejam lendas e tradições populares que dizem respeito aos carneiros. Andei por aí a entrevistar pessoas e a investigar registos escritos em livros antigos. Não tardou que corresse à boca pequena que eu estava possuído por um carneiro, e esse rumor chegou aos ouvidos do meu superior hierárquico, que não gostou nada do que ouviu. Resumindo e concluindo, colocaram-me a etiqueta de «mentalmente perturbado», o que lhes permitiu recambiarem-me

 

*19. Dinastia mongol que reinou na China de 1279 a 1368. (N. da T.)

 

a toda a velocidade para o Japão. O meu caso foi considerado mais um exemplo de inadaptação à vida nas colónias...

Depois de as três almôndegas terem marchado, o Professor Carneiro pegou no pãozinho.

- Um dos erros crassos do Japão moderno é o facto de não termos aprendido rigorosamente nada com os outros povos asiáticos, com quem mantivemos contacto no passado. E o mesmo se aplica aos carneiros. A criação de carneiros redundou em fracasso por esta ter sido única e exclusivamente considerada uma fonte de abastecimento de lã e de carne. A nossa maneira de pensar não leva em linha de conta a vida de todos os dias. O critério é sempre o mesmo: obter o máximo de benefícios imediatos sem pensar no futuro. É sempre a mesma velha história. Isto para dizer que não temos os pés bem assentes no chão. Não é de estranhar que tenhamos perdido a guerra.

- E o carneiro veio consigo até ao Japão? - perguntei eu, tratando de voltar à vaca fria.

-Assim foi - respondeu o Professor Carneiro. -Apanhei o barco no porto de Pusan, e o carneiro seguiu-me.

- E qual seria a intenção do carneiro?

- Não faço ideia - exclamou o Professor Carneiro, cuspindo as palavras. - O carneiro nunca mo revelou. Sei, isso sim, que ele tinha em mente algo de importante. Um projecto grandioso destinado a transformar radicalmente a Humanidade e o mundo inteiro.

- E um só carneiro planeava conseguir tudo isso?

O Professor Carneiro assentiu, ao mesmo tempo que abocanhava o último pedaço de pão e varria as migalhas com as mãos.

- Nada de tão bizarro assim - afirmou ele. - Basta pensar em Gengis Khan.

- Nesse ponto, dou-lhe razão - concordei. - Mas porquê agora? Porquê o Japão?

- Palpita-me que o despertei, ao carneiro. É provável que estivesse a dormir naquela gruta um sono de muitos séculos. E vou eu, armado em idiota, e acordo-o!

- A culpa não foi sua - tranquilizei-o eu.

- Pelo contrário - disse ele. - Foi precisamente por minha culpa que aconteceu tudo. Devia ter-me apercebido mais cedo. Nessa altura, teria ficado com um trunfo na mão. Acontece, porém, que demorei demasiado tempo a compreender a jogada. E quando caí em mim, o carneiro já tinha fugido.

O professor permaneceu silencioso enquanto esfregava com os dedos as sobrancelhas brancas que mais pareciam estalactites. Era como se o peso daqueles quarenta e dois anos se tivesse infiltrado nos mais ínfimos recantos do seu corpo.

- Uma manhã, acordei e nem vestígios do carneiro. Foi então que compreendi o que significava «andar tresmalhado». Um verdadeiro inferno, é o que é. O carneiro vai à vida, mas deixa atrás de si uma ideia. Uma ideia obsessiva que se torna impossível expulsar de nós. É isso que significa «tresmalhado».

O professor voltou a assoar o nariz com um lenço de papel.

- Agora é a tua vez de falar.

Iniciei o meu relato a partir do momento em que o carneiro tinha abandonado o professor. Contei-lhe tudo o que sabia. Como o carneiro havia entrado no corpo de um jovem preso político de extrema-direita. Como este, ao sair da prisão, se convertera automaticamente numa das figuras de proa desse mesmo movimento de extrema-direita. Como atravessara em seguida o continente chinês, onde estabeleceu uma rede de informações, e fez fortuna no decorrer do processo. Como, findas as hostilidades, em pleno pós-guerra, esteve quase a ser julgado por crimes de guerra, mas trocou a sua rede de informações na China continental pela liberdade. Como, utilizando a fortuna arrecadada no continente chinês, passara a controlar o mundo político, económico, mediático e por aí fora.

- Ouvi falar dessa personagem - observou o Professor Carneiro num tom amargo. - Pelos vistos, o carneiro tem um faro sinistro para escolher as suas presas.

- Só há coisa de uns meses, na Primavera, é que o carneiro abandonou o corpo dele. O homem encontra-se actualmente em coma, às portas da morte. Enquanto o carneiro permaneceu dentro dele, impediu a progressão do coágulo.

- Sorte a dele! Para um «tresmalhado», antes a morte do que a consciência de ter o carneiro dentro de si.

- Por que é que, na sua opinião, o carneiro terá abandonado o corpo dele, depois de construída uma organização tão grandiosa?

O Professor Carneiro deixou escapar um profundo suspiro.

- Ainda não percebeste? O caso desse homem é idêntico ao meu. Pura e simplesmente, deixámos de ser úteis. As pessoas têm os seus limites, e ao carneiro também não lhe serve de nada um ser, uma vez chegado ao limite. Imagino que esse homem não tenha compreendido na sua totalidade quais as verdadeiras pretensões do carneiro. A missão que lhe estava destinada não era outra senão pôr de pé uma monumental organização, e uma vez atingido esse objectivo, estava a mais e foi posto de lado. Tal como o carneiro fez comigo, quando lhe servi enquanto meio de transporte.

- Nesse caso, que terá sido feito do carneiro desde essa altura? O Professor Carneiro pegou na fotografia que estava em cima

da mesa e deu-lhe um piparote com o dedo.

- Deve andar a vaguear pelo Japão, em busca de um novo hóspede onde se alojar. Suspeito bem que o carneiro faça tenções de se apoderar dessa pessoa e de a colocar à frente dos destinos da organização, dê lá por onde der.

- Que pretende o carneiro com isso?

- Tal como disse antes, infelizmente não consigo traduzir isso por palavras. Digamos que o carneiro procura materializar a sua obsessão ovina.

- E isso é uma coisa boa?

- Da perspectiva do carneiro, claro que sim.

- E para a pessoa em que ele encarna?

- Isso já não te posso dizer - exclamou o ancião. - Quem sabe? Desde que o carneiro me abandonou, deixei de saber até onde sou eu e onde começa a sua sombra.

- Há bocado, o senhor falou num trunfo por jogar. Referia-se concretamente a quê?

- Isso, não tenho intenção de to dizer - afirmou o Professor Carneiro, abanando a cabeça.

Um pesado silêncio voltou a tomar conta do quarto. Lá fora, começava a cair uma chuva torrencial. Era a primeira vez que chovia desde que eu chegara a Sapporo.

- Uma última coisa. Peço-lhe que me indique o local onde foi tirada essa fotografia.

- São as pastagens da fazenda onde vivi durante nove anos. Era ali que eu criava os meus carneiros. Logo a seguir à guerra, a herdade foi ocupada pelo Exército norte-americano e, depois, ao ser-me restituída, vendi-a a um homem riquíssimo que desejava possuir uma casa de campo no meio do verde. Imagino que ainda tenha o mesmo dono.

- Acha que ainda se criam carneiros por aquelas bandas?

- Não sei. A julgar pela fotografia, porém, tudo indica que sim. De qualquer maneira, é um sítio muito isolado, sem nenhuma casa à vista. No Inverno, os acessos ficam cortados. O seu proprietário pode muito bem ficar ali fechado mais de dois ou três meses por ano. Um lugar realmente tranquilo e muito agradável.

- E durante o tempo em que o dono não vive lá, existe alguém a tomar conta da quinta?

- Durante o tempo de Inverno, duvido que haja alguém. Tirando eu, não estou bem a ver quem é que estará disposto a passar o Inverno ali fechado. Se é por causa dos carneiros, pode sempre pagar-se uma quantia qualquer aos pastores que tomam conta dos rebanhos do município, no sopé da montanha. Os telhados estão construídos de modo a não acumular neve, e não existe grande perigo de os ladrões andarem a rondar por aquelas terras ermas. Mesmo que alguém roubasse alguma coisa, passaria por grandes apuros ao ver-se na necessidade de atravessar as montanhas para chegar à cidade mais próxima. É impressionante, a quantidade de neve que se abate sobre aquela região.

- Por acaso sabe se está lá alguém a viver nesta altura?

- Hmm... Não me parece. Deve estar para nevar e o mais provável é os ursos já terem começado a rondar, tratando de arranjar provisões para o longo período de hibernação. Pretendes ir até lá?

- Provavelmente lá terá de ser. É a única pista que temos.

O Professor Carneiro deixou-se ficar calado durante algum tempo. Ainda se via restos de molho de tomate nos cantos da boca.

- Para ser franco, apareceu por aqui antes uma outra pessoa a fazer-me perguntas sobre a tal fazenda. Deve ter sido já este ano, em Fevereiro. A julgar pelo aspecto, devia ter mais ou menos a tua idade... Manifestou interesse na fotografia pendurada na parede do salão do hotel. Na altura, como estava chateado que nem um peru, dei-lhe toda a espécie de informações. Disse que andava à procura de material para um romance que estava a escrever.

Tirei do bolso uma fotografia em que aparecia ao lado do Rato. Tinha sido tirada no Verão de 1970, no J's Bar. Eu estava de perfil, a fumar um cigarro, enquanto o Rato olhava para a objectiva, exibindo o polegar para cima. Éramos novos e estávamos bronzeados pelo sol.

- Este aqui és tu - indicou o professor, erguendo a fotografia para melhor a ver à luz do candeeiro. - Pareces mais jovem.

- A foto já tem oito anos - expliquei.

- E o outro, diria que é aquela pessoa de quem te estava a falar. Tinha uns anitos mais do que na foto e deixara crescer o bigode, mas tenho quase a certeza de que é ele.

- Bigode?

- Um bigodinho fino sobre o lábio superior e, no resto da cara, uma barba mal semeada de vários dias.

Tentei imaginar o Rato com bigode, mas não consegui.

O Professor Carneiro traçou-nos um plano pormenorizado da situação da fazenda. Tínhamos de mudar de comboio nas imediações de Asahikawa e apanhar uma linha secundária. Ao fim de três horas de viagem, chegava-se a uma cidadezinha situada no sopé da montanha. A partir dali, esperavam-nos três horas de carro.

- Muito obrigado por tudo.

- Para falar com franqueza, creio que quantas menos pessoas tiverem conhecimento da história do carneiro, tanto melhor. Eu sei do que falo. Aquele carneiro nunca fez a felicidade de ninguém. E tudo porque, para ele, os valores humanos, enquanto tal, não lhe merecem consideração. Contudo, imagino que tenham as vossas razões...

- É como diz.

- Nesse caso, tenham cuidado - aconselhou o Professor Carneiro. - E, por favor, não se esqueçam de levar daqui a bandeja e, de saída, deixem ficar os pratos à porta, do lado de fora.

 

Demorámos um dia inteiro a tratar dos preparativos para a viagem.

Adquirimos equipamento de montanhismo e rações de sobrevivência numa loja de artigos de desporto, e nuns grandes armazéns comprámos ainda camisolas de malha tipo pescador e meias grossas de lã. Numa livraria encontrámos um mapa da zona à escala 1:500000 e um livro que contava a história da região. Fomos ainda à procura de umas robustas botas com pregos, daquelas para andar na neve, e de roupa interior termal para combater o frio.

- Este é o tipo de coisas que de pouco ou nada me serve na minha profissão - comentou a minha namorada.

-Vais ver que logo pensarás de outra maneira, quando te apanhares no meio da neve - alvitrei eu.

- Estás a pensar ficar por lá até à chegada dos grandes nevões?

- Não te sei dizer. O certo é que começam já no final de Outubro. Por isso, mais vale estarmos preparados. Ninguém sabe o que pode acontecer.

Regressámos ao hotel carregados e enfiámos as compras dentro de uma grande mochila, depois empacotámos o resto das coisas que tínhamos trazido de Tóquio e pedimos ao dono do Hotel Golfinho para guardar a tralha supérflua. Verdade seja dita, quase tudo o que a minha amiga trouxera na bagagem pertencia a essa categoria. Um estojo completo de cosmética, cinco livros e seis cassetes, um vestido e uns sapatos de salto alto, meias e roupa interior que davam para encher um saco de papel, T-shirts e calções desportivos, um despertador de viagem, um bloco de desenho e uma caixa com vinte e quatro lápis de cor, papel de carta e sobrescritos, uma toalha de banho, um pequeno estojo de primeiros socorros, um secador de cabelo, cotonetes.

- Como é que te lembraste de trazer um vestido e sapatos de salto?

- E se tivéssemos de ir a uma festa, o que é que eu vestia? -argumentou ela.

- O que te leva a pensar que vamos a uma festa?

Com ela não se podia discutir. A prova disso foi que acabou por meter o vestido, cuidadosamente dobrado, bem como os sapatos de salto alto, dentro da minha mochila. No que toca ao estojo de maquilhagem, trocou-o por uma bolsa pequena, de viagem, que comprou numa loja ali perto.

O dono do hotel aceitou de bom grado ficar com a bagagem à guarda. Paguei-lhe a nossa estada até ao dia seguinte e assegurei-lhe que dentro de uma ou duas semanas estaríamos de volta.

- O meu pai ajudou-vos de alguma maneira? - perguntou ele, com visível preocupação.

Respondi-lhe que a ajuda do pai dele tinha sido providencial.

- Quem me dera, também eu, partir em busca de qualquer coisa - confessou ele. - A verdade, porém, é que não saberia o que procurar. O meu pai, esse é um caso diferente, uma vez que passou a vida inteira à caça de alguma coisa. Ainda hoje, de resto, continua obcecado com essa ideia. Desde pequeno que me lembro de ouvir contar, da boca dele, histórias sobre um carneiro branco que lhe aparecia em sonhos. Por isso, convenci-me sempre de que era necessário ir à procura de alguma coisa que desse verdadeiro significado à nossa vida. É isso a vida, pensei. Uma busca permanente.

O salão de entrada do Hotel Golfinho estava, como de costume, mergulhado em silêncio. Uma empregada de certa idade andava para cima e para baixo nas escadas, de esfregona em punho.

- O meu pai já está com 73 anos, e o carneiro continua sem aparecer. Às vezes pergunto-me se o carneiro existe realmente ou não. Dá-me a impressão de que, afinal de contas, isso não lhe trouxe felicidade. Gostaria, mais do que nunca, de ver o meu pai feliz, mas não há dia em que ele não trate de me pôr a ridículo, além de não escutar nada do que lhe digo. E isto contribuiu para que, muitas vezes, eu seja levado a pensar que a minha vida não faz sentido.

- Bom, mas o senhor sempre tem o Hotel Golfinho - observou amavelmente a minha amiga.

- Além disso - acrescentei eu -, o seu pai já não precisa de se preocupar em dar caça ao carneiro. A partir de agora, nós encarregamo-nos de levar essa missão por diante.

O dono do hotel sorriu.

- Nesse caso, não tenho mais razões de queixa. A partir deste momento, talvez a felicidade possa estar ao nosso alcance, na companhia um do outro.

- Espero sinceramente que sim - disse eu.

Mais tarde, quando ficámos sozinhos, ela perguntou-me:

- Acreditas mesmo que aqueles dois poderão ser felizes?

- Pode demorar o seu tempo, mas estou em crer que sim, que tudo voltará à normalidade. Agora, cabe-nos a nós seguir a pista do tal carneiro.

- Gosto muito daqueles dois, pai e filho.

- Também eu.

Depois de termos acabado de arrumar as coisas, tivemos relações sexuais e a seguir fomos ao cinema. No filme, viam-se muitos casais entretidos também a ter relações. No fundo, não há nada de mal em ver os outros a fazer sexo.

 

Logo de manhãzinha apanhámos o primeiro comboio que partia de Sapporo em direcção a Asahikawa. Peguei num livro, por sinal uma edição grossa, em caixa de cartão, que dava pelo título de A História Autorizada da Cidade de Junitaki e entreguei-me à leitura, enquanto bebia uma cerveja. Quem diz Junitaki, diz a cidade onde ficava localizada a fazenda que em tempos pertencera ao Professor Carneiro. Não sabia ao certo se aquela obra me serviria de alguma coisa, mas também não custava nada ler o referido volume.

O autor do livro tinha nascido em Dezembro de 1940 e era licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade de Hokkaido. Segundo vinha indicado na contracapa, tratava-se de um conhecido estudioso da história local. Apesar da fama conquistada, o certo é que só havia publicado aquele livro, dado à estampa em Maio de 1970. Aquele era um exemplar da primeira e, muito provavelmente, única edição.

 

Nas palavras do autor, tinha sido no início do Verão de 1881, por volta do ano 13 do Período Meiji, que os primeiros colonos começaram a chegar àquilo que é hoje a cidade de Junitaki. O grupo compunha-se ao todo de dezoito pequenos lavradores, oriundos da região deTsugaru. Camponeses pobres e sem terras, a sua riqueza reduzia-se a meia dúzia de utensílios agrícolas, ao vestuário que traziam no corpo, roupas de cama, panelas, caçarolas e facas de cozinha.

 

Ao passarem por um povoado aino(20), não muito longe de Sapporo, e com os escassos haveres de que dispunham, recorreram aos serviços de um jovem aino como guia. Tratava-se de um rapaz magro, de olhos escuros, e cujo nome, na sua língua, queria dizer «Lua Cheia para Minguante» (talvez por apresentar tendências maníaco-depressivas, segundo a hipótese colocada pelo autor).

Contrariando as aparências, a verdade é que, como guia, aquele jovem aino acabou por se revelar francamente competente. Com efeito, e apesar de não dominar minimamente a língua japonesa, ele tratou de conduzir rumo ao Norte, sempre subindo o rio Ishikari, aqueles dezoito camponeses, de aspecto tão miserável quanto sombrio. Tinha uma ideia clara de onde devia encaminhar-se a fim de encontrar terra fértil.

Ao quarto dia de jornada, o grupo chegou ao seu destino. Naquelas paragens atravessadas por cursos de água, os campos, a perder de vista, encontravam-se cobertos por um manto de flores lindíssimas.

- Aqui é um bom sítio - exclamou com satisfação o jovem. -Poucos animais ferozes, terra fértil, salmões em abundância.

- Nada feito - contrariou o chefe dos camponeses, abanando a cabeça. - Queremos avançar mais no terreno.

O jovem pensou que, para a mentalidade daqueles camponeses, avançar mais significava a possibilidade de encontrar melhores terras. «Tudo bem», pensou ele para consigo. «Se é isso que querem, seguimos em frente.»

O grupo continuou a sua marcha em direcção a norte. Ao terceiro ou quarto dia, deram com um planalto elevado que, embora menos fértil do que as primeiras terras, oferecia mais segurança em caso de possíveis enchentes.

- Que tal? - perguntou o jovem. - Parece bom, este sítio.

Os camponeses tornaram a abanar a cabeça, em sinal de discordância.

Depois de a cena se repetir umas quantas vezes, chegaram finalmente ao sítio por onde passa nos tempos que correm o rio Asahi-kawa. A viagem tinha durado sete dias, e haviam percorrido aproximadamente 140 quilómetros, desde Sapporo.

 

*20. O povo nativo caucasiano, ainda que com características mongólicas, que habita as ilhas de Hokkaido e Honshu (Japão), bem como as ilhas Curilhas e Sacalina (Rússia). Após décadas de perseguição, os ainos viram reconhecidos muitos dos seus direitos na década de 1970 e a língua voltou a ser estudada nas escolas. (N. da T.)

 

- Que tal aqui? - perguntou o jovem, sem grandes esperanças.

- Nada feito - retorquiram os camponeses.

- A partir deste ponto, é sempre a subir, há que escalar montanha atrás de montanha - avisou o jovem.

- Não faz mal - responderam os lavradores, num tom satisfeito. E foi assim que atravessaram o desfiladeiro de Shiogari.

Escusado será dizer que havia uma razão para os camponeses se recusarem a assentar arraiais nas terras férteis da planície e procurarem antes uma região erma e inculta. De facto, todos eles haviam abandonado as suas terras a coberto da noite, deixando para trás as terras planas e, como tal, expostas aos olhares indiscretos, deixando pesadas dívidas para trás.

O jovem aino não estava inteirado desta situação, obviamente. Daí que a reacção inicial de surpresa, ao ver os camponeses recusarem fixar-se nas terras férteis e seguirem cada vez mais para norte, não tardou em converter-se em perplexidade, aflição e, até mesmo, perda de autoconfiança.

Ao cruzarem a garganta de Shiogari, porém, o jovem, dotado ao que tudo indica de uma têmpera admirável, já se acostumara à ideia de que, por um qualquer desígnio insondável, o seu destino era conduzir aquele bando de camponeses cada vez mais para norte. E foi assim que passou a escolher propositadamente os caminhos mais áridos e os pântanos mais traiçoeiros, movido pelo desejo de ir de encontro à vontade de quem tinha requisitado os seus préstimos.

Ao quarto dia de viagem, sempre rumo ao Norte, depois de deixar para trás o desfiladeiro de Shiogari, a expedição deu de caras com um rio que corria de leste para oeste. De comum acordo, decidiram prosseguir em direcção a leste.

Como seria de esperar, o terreno era difícil e o caminho espinhoso, e avançar tornava-se um suplício. Os homens tiveram de abrir caminho por entre um verdadeiro mar de canas de bambu, demoraram meio dia de marcha a atravessar uma pradaria de ervas tão altas que chegavam a cobri-los; atravessaram terrenos pantanosos mergulhados em lama até ao peito, escalaram encostas rochosas; enfim, tudo o que lhes permitisse seguir para oriente. De noite, erguiam as tendas na margem do rio e adormeciam a ouvir os lobos a uivar.

As suas mãos, ensanguentadas de abrirem caminho por entre os matagais de bambu, atraíam os mosquitos, que não lhes davam tréguas, chegando a meter-se dentro dos ouvidos e a sugar-lhes o sangue.

Ao quinto dia, chegaram a um lugar cercado de montanhas e viram-se impedidos de continuar. Passado aquele ponto, afirmou o jovem, as terras eram inabitáveis. Ao ouvir aquilo, os camponeses puseram então fim à sua marcha. Estava-se no dia 8 de Julho de 1881, e eles encontravam-se a 260 quilómetros de Sapporo.

Primeiro que tudo, decidiram inspeccionar o terreno, bem como a qualidade da água e da terra. Descobriram então que aquela era uma boa região, propícia à agricultura. Como tal, trataram de distribuir as terras entre os membros do grupo e ergueram no centro uma cabana comunitária feita de toros de madeira.

Certo dia, o jovem aino encontrou por acaso um bando de caçadores da sua raça que por ali andavam e perguntou-lhes se sabiam o nome daquele lugar.

«Achas que um lugar perdido no cu-de-judas como este pode ter nome?», retorquiram eles.

E assim, durante algum tempo, aquele lugar existiu sem nome. Uma povoação no meio do nada, que fica a mais de sessenta quilómetros de qualquer núcleo habitacional, e cujos habitantes, além do mais, não desejam sequer relacionar-se com os seus vizinhos, pode muito bem existir sem nome. Uma ocasião houve em que um funcionário do governo regional de Hokkaido por ali passou, a fim de proceder a um levantamento oficial da população, mas nem assim os habitantes manifestaram qualquer interesse. Armados de pás e enxadas, reuniram-se na cabana comunitária e decidiram por unanimidade não dar nome ao povoado. Baseando-se no facto de o rio formar doze (juni) suaves cascatas (taki) no seu curso, o recenseador não viu outra saída que não fosse apontar no seu relatório, por sua conta e risco, o nome de povoação de Junitaki (que é como quem diz, das doze cascatas). Desde então, o nome da povoação de Junitaki (mais tarde, aldeia de Junitaki) passou a ser a designação oficial daquele lugar. Tudo isso, porém, aconteceu muito depois de 1882, ano 14 do período Meiji.

As terras encontravam-se situadas entre duas montanhas que se uniam, formando um ângulo aproximado de sessenta graus. Pelo meio passava o rio, formando um vale profundo. O diabo da paisagem devia parecer o fim do mundo. O solo estava coberto de bambus, enquanto inúmeros bosques verdejantes estendiam as suas raízes até às profundezas da terra. Lobos, alces, ursos, ratos-almiscarados e aves de todos os tamanhos rondavam aquelas paragens em busca do magro alimento que por lá havia. As moscas e os mosquitos pululavam um pouco por toda a parte.

- Querem mesmo ficar aqui? - perguntou-lhes, desconcertado, o jovem aino.

- Claro que sim - responderam os camponeses.

Nunca se soube por que obscura razão, mas a verdade é que o jovem aino não regressou à sua terra natal, tendo escolhido ficar junto dos colonos. Talvez movido por pura curiosidade, sugere o autor (que era, de resto, bastante dado a conjecturas). O certo é que, se não fosse a presença do guia, muito provavelmente os camponeses não teriam logrado passar aquele Inverno pelos seus próprios meios. O jovem aino ensinou-os a conhecer as raízes comestíveis, a protegerem-se da neve, a pescar no rio congelado, industriou-os na arte de colocar armadilhas para apanhar os lobos, deu-lhes a conhecer a maneira de afugentar ursos afoitos antes do período de hibernação, a prever o tempo em função da direcção do vento, o modo de evitar frieiras e membros congelados, a técnica culinária para preparar suculentos assados de rebentos de bambu, o truque para abater os abetos, fazendo-os tombar na direcção pretendida... Não tardou que toda a gente reconhecesse a sua valia, e o jovem recuperou a confiança em si mesmo. Com o passar do tempo, casou-se com a filha de um dos colonizadores, com quem teve três filhos, e adoptou um nome japonês. Deixara de ser «Lua Cheia para Minguante».

E, contudo, apesar dos denodados esforços do jovem aino na luta contra os elementos da Natureza, a existência dos colonos decorria semeada de grandes dificuldades. Chegado o mês de Agosto, cada família tinha erguido a sua própria cabana, a qual não passava de um amontoado de canas de bambu cortadas a eito e dispostas na vertical, por entre as quais o vento gelado e as tempestades de neve se infiltravam sem pedir licença. Pela manhã, ao acordar, não era raro darem com um palmo de neve à cabeceira. Na medida em que os colchões e a roupa de cama escasseavam, os homens costumavam adormecer diante do fogo enrolados em esteiras. Quando se esgotaram as provisões que tinham de reserva, demandaram o rio em busca de peixe e escavaram buracos na neve para ver se encontravam restos de plantas enegrecidas e queimadas pela geada ou raízes que pudessem servir-lhes de alimento. Apesar do rigor do Inverno, contudo, não houve baixas entre os colonos. Nem tão-pouco disputas ou lágrimas. Aquelas gentes faziam das tripas coração e da pobreza uma arma.

Chegou a Primavera. Nasceram dois bebés e o número de habitantes da aldeia aumentou para vinte e uma pessoas. Duas horas antes de dar à luz, ainda as mulheres grávidas trabalhavam no campo, e no dia a seguir ao parto já estavam de volta às suas tarefas.

Nas terras virgens que iam desbravando plantaram milho e batatas. Os homens abatiam as árvores e queimavam raízes, de forma a converter as clareiras resultantes em terrenos de cultivo. Uma nova vida assomou à face da terra: o campo começava a dar os seus primeiros frutos, mas, justamente quando os lavradores começavam a respirar de alívio e a pensar que o pior tinha passado, abateu-se sobre eles uma praga de gafanhotos.

Os gafanhotos chegaram, vindos do cimo das montanhas. A princípio, formavam uma gigantesca nuvem negra. Em seguida, a terra pareceu tremer. Nenhuma daquelas almas entendia o que estava a acontecer, tirando o jovem aino. Este ordenou aos homens que acendessem fogueiras espalhadas pelos campos. Eles assim fizeram, vertendo até à última gota de petróleo, a última peça de madeira que havia para queimar, e a tudo atearam fogo. O aino disse às mulheres que viessem para o exterior de panelas em punho e que batessem nelas com os pilões de madeira sem parar. Fizeram tudo o que estava na sua mão (como mais tarde o mundo veio a reconhecer), mas em vão. Centenas de milhares de gafanhotos precipitaram-se sobre os campos e dizimaram as colheitas. Não ficou nada de pé.

Quando os gafanhotos partiram, o jovem procurou refúgio no meio dos campos e chorou de desespero. Porém, nenhum dos lavradores derramou uma lágrima que fosse. Reuniram os gafanhotos mortos, queimaram-nos e, mal os viram reduzidos a cinzas, redobraram os esforços e retomaram o cultivo da terra.

Aquela gente passou o Inverno seguinte a comer peixe do rio, vegetais e raízes. Ao chegar a Primavera, outras três crianças nasceram. Os colonos araram os campos e semearam as colheitas. No Verão, foram de novo atacados pelos gafanhotos, que tornaram a arrasar colheitas. Dessa vez, o jovem aino não chorou.

As invasões de gafanhotos acabaram, por fim, ao terceiro ano. Choveu muito, e a água tinha feito apodrecer os ovos dos gafanhotos. Em contrapartida, o excesso de chuva deu cabo das colheitas. No ano seguinte surgiu uma inesperada praga de escaravelhos. E o Verão do ano que se seguiu revelou-se invulgarmente frio.

Ao chegar àquele ponto da minha leitura, fechei o livro, bebi outra cerveja, tirei do saco a minha refeição fria composta de ovas de salmão e comi-a.

No banco da frente, a minha namorada dormia, com os braços cruzados. O Sol daquela manhã de Outono, que entrava pela janela, derramava sobre os seus joelhos um ténue manto de luz. Uma traça solitária vinda não se sabe de onde esvoaçava como um pedacinho de papel ao sabor do vento. De repente, a borboleta pousou sobre um dos seios dela e descansou por momentos antes de voar dali para fora. Desaparecida a borboleta, fiquei com a impressão de que a minha amiga envelhecera um bocadinho.

Depois de fumar um cigarro, abri o livro e retomei a leitura da minha História Autorizada da Cidade de Junitaki.

Ao sexto ano, a colónia começou finalmente a dar sinais de prosperidade. As colheitas davam os frutos, as cabanas foram melhoradas, e todos os habitantes apresentavam sinais de estarem aclimatados ao frio que se fazia sentir naquela região. Aos poucos, as cabanas feitas de troncos foram sendo substituídas por robustas casas de pranchas de madeira, equipadas de forno e de candeeiros a petróleo.

Os colonos carregavam as suas barcas com o que sobrava das colheitas, peixe seco e chifres de alces, e transportavam tudo até ao mercado mais próximo, a dois dias de viagem, onde as trocavam por sal, roupas e azeite. Alguns aprenderam a técnica de fazer carvão a partir da madeira das árvores derrubadas para abrir clareiras. A jusante do rio, foram nascendo aldeias semelhantes, e o intercâmbio comercial floresceu.

À medida que a colonização prosseguia, fazia-se sentir cada vez mais, como um problema grave, a falta de mão-de-obra. Como tal, os aldeões convocaram uma assembleia, e, durante dois dias a fio, debateram acaloradamente os seus pontos de vista, após o que ficou decidido pedir reforços à sua aldeia natal. Levantou-se de novo a questão das dívidas por pagar; contudo, depois de uma discreta consulta realizada por carta, ficaram a saber que os seus credores há muito tinham desistido de as cobrar. Assim, o mais velho de entre os lavradores escreveu cartas a alguns dos seus velhos companheiros, no sentido de os incentivar a meterem-se a caminho e virem ter com eles, a fim de, juntos, desbravar novas terras. Estava-se em 1889, o ano em que se realizou o recenseamento da povoação que teve como consequência que um recenseador qualquer se lembrasse de baptizar oficialmente a povoação com o nome de Junitaki.

No ano seguinte, seis novas famílias chegaram ao povoado, aumentando assim em dezanove pessoas o número dos primeiros colonos. Foram recebidos na cabana comunitária, enfeitada de propósito para o efeito. Houve lágrimas de alegria de ambas as partes. Foram distribuídas terras pelos novos habitantes, que, graças à ajuda prestada pelos colonos mais antigos, puderam assim arar as suas terras e construir as suas casas.

Em 1893 chegaram mais quatro famílias, num total de dezasseis pessoas. Em 1897, sete outras famílias tinham-se entretanto ali estabelecido, contando com vinte e quatro pessoas no seu agregado.

E a população não parava de aumentar. A cabana comunitária foi ampliada, transformando-se num magnífico local de reunião, e ao seu lado foi construído um pequeno santuário xintoísta. Só então a povoação passou a merecer a designação de aldeia e, de povoado de Junitaki, tornou-se oficialmente a aldeia de Junitaki. E, apesar de a base da alimentação dos seus habitantes continuar a ser o milho, a partir daí o arroz branco começou aos poucos a ser introduzido. O carteiro começou a aparecer por lá, ainda que a intervalos irregulares.

Como era natural, conheceram também a sua quota-parte de infortúnios. Os fiscais do governo apresentavam-se em Junitaki com uma certa frequência, para cobrar impostos e recrutar os rapazes em idade de cumprir o serviço militar. O jovem aino, então nos seus trinta e muitos anos, era quem mais contrariado se mostrava com este estado de coisas. Aos seus olhos, não havia necessidade, nem de impostos nem de serviço militar.

«Quer-me parecer que, antes, as coisas eram bem melhores», costumava ele dizer.

Apesar de tudo, a aldeia continuou a expandir-se.

Em 1903, e aproveitando uma grande planície não muito longe dali, particularmente propícia ao pastoreio, foi decidido criar uma zona de pastos, administrada pela comunidade e destinada ao gado ovino. Sob a égide da administração regional, foram para ali enviados técnicos do governo que se encarregaram de erguer vedações, abrir valas e condutas de água, construir um redil... Seguiu-se o arruamento do caminho que corria ao longo do rio, realizado por mão-de-obra recrutada nas prisões, junto dos condenados a trabalhos forçados, e lá mais para diante, foram vistos os primeiros rebanhos de carneiros, comprados ao Estado por tuta-e-meia, a percorrerem aquele mesmo carreiro. O certo é que os camponeses não havia meio de compreenderem por que razão as autoridades se mostravam tão generosas. Afinal, vendo bem, por que não?, pensavam eles. Pois se haviam passado por tantas dificuldades, era normal que tivesse chegado a hora de alguma coisa boa lhes bater à porta.

Obviamente que o Governo, ao ceder-lhes os carneiros a preço de custo, não o fizera movido por caridade. Acontece que os militares, com vista a poderem dispor de um aprovisionamento suficiente de lã para roupas quentes que lhes permitisse fazer face à campanha que se anunciava em pleno continente asiático, tinha feito pressão no sentido de o Ministério da Agricultura e Florestas promover a criação de carneiros; por seu turno, o dito ministério havia implementado esse plano junto das autoridades provinciais de Hokkaido. Aproximava-se a passos largos a guerra russo-japonesa.

Em Junitaki, voltou a ser o nosso conhecido aino, agora menos jovem, a pessoa que mais interesse demonstrou pela criação de carneiros. Sob a supervisão de um técnico enviado pelo governo, aprendeu as técnicas, bem como tudo o que dizia respeito à criação de carneiros e ao pastoreio, e tornou-se ele o responsável pelo gado ovino. Não se sabe concretamente que razões o levaram a interessar-se daquela maneira pelos rebanhos. Talvez fosse por não conseguir acostumar-se à vida comunitária, cada vez mais complexa à medida que a população aumentava a olhos vistos.

A princípio, os carneiros que andavam pelos pastos eram 36 de raça Southdown e 21 de raça Shropshire, sem esquecer os dois cães pastores Border Coilie. O antigo guia aino mostrou ter jeito para ser pastor; com o passar dos anos e, debaixo do seu cuidado, o número de carneiros aumentou, o mesmo acontecendo com os cães. O pastor acabou por se afeiçoar profundamente, tanto aos carneiros como aos cães. As autoridades provinciais mostravam-se satisfeitas. Os descendentes de um dos primeiros cães pastores chegados a Junitaki tornaram-se conhecidos pela sua habilidade para o pastoreio, e começaram a aparecer pessoas de todos os pontos da ilha para ficar com as crias.

Quando a guerra russo-japonesa rebentou, foram convocados pelo exército cinco rapazes do povoado e enviados para a frente no continente chinês. Todos cinco ficaram no mesmo batalhão e, na sequência da explosão de uma granada inimiga, dois deles morreram e um outro perdeu o braço esquerdo. Quando a batalha terminou, ao fim de três dias, os dois soldados sobreviventes recolheram os restos mortais dos seus companheiros espalhados pelo campo de batalha. Eram todos filhos da primeira e da segunda leva de colonos. Um deles era filho do jovem aino que se tornara pastor e o outro, de uma das primeiras famílias chegadas a Junitaki. Ao morrer, trazia vestido um casaco militar feito a partir da lã dos seus carneiros.

- Que sentido faz enviar jovens para fazer a guerra numa terra estrangeira? - passava o pastor aino a vida a perguntar às pessoas. Por aquela altura, contava já 45 anos.

Ninguém lhe soube responder. O pastor aino deixou então a cidade para se refugiar nos pastos, onde passava os dias em companhia dos carneiros. A sua mulher tinha morrido cinco anos antes, de uma pneumonia que se complicou, e as duas filhas estavam casadas. Como recompensa pela sua dedicação ao gado, o município atribuiu-lhe um modesto salário em dinheiro e em provisões.

Depois de perder o filho, tornou-se um velho azedo. Morreu aos 62 anos de idade. Certa manhã de Inverno, um rapazinho que o ajudava a tomar conta dos carneiros descobriu o seu corpo sem vida no chão do redil.

Tinha morrido de frio, enregelado. Dois cães pastores, netos daqueles primeiros Border Collies escoceses, deitados a seu lado, ganiam baixinho e lançavam olhares desesperados. No curral, os carneiros mastigavam a forragem, alheios ao sucedido. O ruído que faziam, a ruminar, ressoava no interior do silencioso curral como um concerto de castanholas.

A história da cidade de Junitaki continuava, se bem que a do jovem aino ficasse por ali. Dirigi-me à casa de banho e aliviei-me, despejando o conteúdo de duas latas de cerveja. Ao regressar ao meu lugar, vi que a minha amiga acordara entretanto e olhava distraida-mente pela janela. A paisagem compunha-se de arrozais a perder de vista. O rio tão depressa se aproximava como se afastava de nós. Enquanto fumava um cigarro, fiquei ali um bocado a contemplar o perfil da minha namorada, ensimesmada na contemplação da paisagem. Quando acabei o cigarro, voltei ao livro. A sombra de uma ponte de ferro reflectiu-se fugazmente sobre a página.

Concluído o triste relato daquele jovem aino que morrera como um velho pastor de carneiros, a história de Junitaki converteu-se num relato fastidioso. Tirando o facto de uma epidemia de meteorismo ter causado a morte a dez carneiros num só ano, e de a colheita de arroz ter sido temporariamente fustigada pela geada, a vila foi-se desenvolvendo a bom ritmo, e não tardou mesmo, no decorrer do Período Taisho(21), a ser promovida à categoria de município. Enquanto cidade, prosperou a pouco e pouco, contando cada vez mais com áreas destinadas aos equipamentos públicos. Foi mandada construir uma escola do ensino básico, a sede da câmara municipal e um posto de correios. A época da colonização de Hokkaido estava a chegar ao fim.

A expansão da agricultura atingiu os seus limites naturais, e entre os descendentes daqueles pobres lavradores, alguns houve que optaram por rumar à cidade, em busca de melhor sorte nas terras da Manchúria ou na ilha de Sacalina. Ao chegar o ano de 1937,

 

*21. 1912-1926. (N. da T.)

 

havia um parágrafo que fazia menção ao Professor Carneiro. Rezava assim:

 

«O senhor doutor X, um investigador de trinta e dois anos, conhecido pelos estudos efectuados na Coreia e na Manchúria como técnico do Ministério da Agricultura e das Florestas, decidiu, após pedir a demissão das suas funções por razões particulares, estabelecer-se no Norte de Junitaki para aí se dedicar à criação de gado ovino.»

 

Era a única referência ao Professor Carneiro.

As tantas, em chegando à década de 1930, o próprio autor parecia ter perdido todo o interesse por aqueles acontecimentos ocorridos na zona de Junitaki, de modo que a sua narrativa tornava-se fragmentária e recheada de estereótipos. Até mesmo o estilo, quando comparado com as páginas em que dera conta da vida do jovem aino, havia perdido a sua deliciosa vivacidade.

Resolvi saltar por cima dos trinta anos que mediaram entre 1938 e 1965 e passei directamente ao capítulo intitulado «A cidade nos dias de hoje». Por «dias de hoje», o autor do livro referia-se a 1970, por isso de actual pouco ou nada tinha, uma vez que não estávamos a falar da actualidade de então, que é como quem diz, de Outubro de 1978. Contudo, é preciso ver que o acto de escrever a história seja de que cidade for parece implicar obrigatoriamente um capítulo dedicado à chamada «actualidade». E ainda que essa tão apregoada actualidade rapidamente perca o seu carácter actual, ninguém poderá negar que a actualidade será sempre actual. Se o presente deixasse de ser presente, a História, como tal, não existiria.

Segundo A História Oficial da Cidade de Junitaki, em Abril de 1965 a população era de quinze mil habitantes, o que representava um decréscimo de seis mil em relação aos números de dez anos antes. Essa diminuição ficava a dever-se em grande parte ao abandono da lavoura. Na hora de explicar um êxodo rural de tais proporções, e para além das mudanças introduzidas por um período de elevada industrialização, era preciso não esquecer a especificidade de uma região como Hokkaido, pouco virada para a agricultura de clima frio. Isto, ainda e sempre, nas palavras do autor.

Nesse caso, que teria acontecido às terras abandonadas? Pois bem, voltaram a ser reflorestadas. Naqueles terrenos regados com o suor e o sangue pelos seus antepassados, onde estes haviam obtido terras para o cultivo à força de desbravar os bosques, plantavam-se agora árvores. É a chamada ironia do destino.

Tanto assim era que a principal actividade de Junitaki consistia actualmente na indústria da madeira e na silvicultura. Existiam na cidade várias oficinas de carpintaria e marcenarias pequenas, onde se procedia ao fabrico de caixas para televisores, molduras de espelhos e as tradicionais recordações para turistas representando ursos e a figura esculpida do jovem aino. A antiga cabana comunitária tinha sido convertida no Museu dos Pioneiros, onde eram mostrados ao público, entre outras coisas, aparelhos de lavoura, utensílios de cozinha e mobiliário da época usados pelos primeiros colonizadores. Também se conservavam ali, como se de relíquias se tratasse, objectos de uso pessoal deixados pelos jovens que tinham perdido a vida na guerra russo-japonesa, sem esquecer uma marmita com a marca dos dentes de um urso. Até mesmo uma das cartas dirigidas à terra natal dos primeiros colonos, em que eram pedidas notícias sobre o paradeiro dos credores, ali se conservava.

Em abono da verdade, contudo, é preciso dizer que Junitaki não passava de uma cidade extremamente aborrecida. No regresso a casa, as pessoas, na sua maioria, punham-se à frente da televisão - uma média de quatro horas por dia, segundo rezam as estatísticas - até que chegasse a hora de deitar. É certo que a percentagem de votantes era alta em todas as eleições, mas já se sabia à partida quem eram os vencedores. O lema da cidade era muito justamente: «Um povo generoso numa terra generosa». Pelo menos era o que se lia num grande cartaz que havia na praça da estação.

Fechei o livro com um bocejo e deixei-me dormir.

 

Nas imediações de Asahikawa, mudámos de linha e apanhámos o comboio que seguia para norte até ao desfiladeiro de Shiogari. Era quase a mesma rota percorrida, um século antes, pelo jovem aino e pelos dezoito camponeses que não tinham onde cair mortos.

Um sol outonal brilhava sobre os últimos vestígios da antiga floresta virgem e incendiava com a sua luz os frutos vermelhos das sorveiras-bravas. O ar estava límpido e claro. Os olhos chegavam a doer só de olhar tão fixamente durante algum tempo para a paisagem à nossa volta.

A princípio o comboio ia vazio, mas ao longo do percurso foi-se enchendo de estudantes mais velhos do secundário até que a carruagem ficou apinhada. Vimo-nos envolvidos por uma alegre vozearia e por um coro de gritos alegres, cheiro a suor e vestígios de caspa, conversas ininteligíveis e manifestações de incontido desejo sexual próprios dos adolescentes. A situação prolongou-se por uns trinta minutos, passados os quais saíram todos de uma assentada na mesma estação. O comboio voltou a ficar vazio, ao ponto de não se ouvir sequer uma voz.

Entre os dois, eu e a minha namorada partilhámos uma tablete de chocolate, que fomos comendo enquanto contemplávamos a paisagem exterior. Uma chuva de luz derramava-se placidamente sobre a terra. As coisas pareciam todas à distância, como acontece quando se olha pelo lado errado de um binóculo. Ela pôs-se a assobiar algumas notas soltas de «Johnnie B. Goode». Foi a primeira vez que permanecemos tanto tempo calados desde que andávamos

juntos.

Já passava do meio-dia quando descemos do comboio. Assim que pus os pés na plataforma, inspirei profundamente e estiquei-me o mais que pude. O ar era tão puro e fresco que quase oprimia os pulmões. Os raios de sol acariciavam os meus braços e produziam uma sensação cálida sobre a pele, mas a temperatura era, pelo menos, dois graus mais baixa do que em Sapporo.

Ao longo da via-férrea viam-se, alinhados, velhos armazéns de tijolo, ao fundo dos quais se distinguia uma pirâmide de troncos de madeira, cuidadosamente empilhados, ainda húmidos da chuva caída na véspera. Quando o comboio que nos trouxera seguiu viagem, deixou de haver sombra de uma presença humana. Tirando nós os dois, não se via mais ninguém na estação. Só os malmequeres baloiçavam nos canteiros, ao sabor do vento.

Assim vista da plataforma, tinha todo o ar de ser uma típica cidade de província. Lá estava uma rua principal, meia dúzia de lojas sem pretensões, um terminal de autocarros, um posto de informação turística. A um primeiro olhar, uma cidadezinha bastante desinteressante.

- Já chegámos ao nosso destino?

- Nada disso. Ainda temos outra viagem de comboio pela frente. O nosso destino é uma cidade ainda mais pequena do que esta.

Bocejei e voltei a inspirar fundo.

- Aqui só fazemos o transbordo. Foi onde os pioneiros decidiram mudar de rumo em direcção a leste.

- Que história é essa dos pioneiros?

Sentei-me com ela na sala de espera diante do fogão apagado, e, enquanto o nosso comboio não chegava, fiz-lhe um resumo da história da cidade de Junitaki. Como a coisa começava a ficar confusa por causa das datas, desenhei uma espécie de mapa numa página em branco do meu caderninho de notas, baseando-me nos dados compilados no apêndice do livro A História Autorizada da Cidade de Junitaki. Na coluna da esquerda, escrevi os principais acontecimentos da história local de Junitaki e, na da direita, os principais acontecimentos da história do Japão durante o mesmo período.

Para ser franco, saiu-me uma tabela cronológica mesmo bem feita.

Por exemplo, no ano 38 do Período Meiji (ou seja, em 1905), ocorreu a rendição de Port Arthur e o filho do jovem aino morreu na guerra. E, se a memória me não traía, naquele mesmo ano tinha nascido o Professor Carneiro. Pouco a pouco, os capítulos da História iam-se encaixando uns nos outros.

- Ao olhar para esta tabela - comentou a minha namorada ao comparar os dois lados da cronologia -, até parece que nós, os Japoneses, vivemos sempre entre uma guerra e outra.

- De facto, assim parece - retorqui eu.

- Como é que as coisas chegaram a este ponto?

- É complicado. Não to sei dizer. Pelo menos assim do pé para a mão.

- Hmmm... - resmungou ela.

A sala de espera, tal como a imensa maioria das salas de espera, estava deserta e pouco convidativa. Os bancos eram terrivelmente incómodos, os cinzeiros transbordavam de beatas empapadas de água da chuva, o ar cheirava a bafio. Nas paredes viam-se alguns cartazes turísticos e daqueles avisos com o nome e a carantonha dos criminosos mais procurados. As únicas pessoas, fora nós os dois, eram um homem de idade com uma camisola cor de camelo e uma mãe com uma criança que devia ter os seus três ou quatro anos. O velhote estava absorto na leitura de uma revista literária e permanecia imóvel, sem mudar de posição. Com a minúcia de quem retira pedaços de fita adesiva, assim ia virando as páginas, uma a uma. Podia demorar quinze minutos antes de passar à página seguinte. A mãe e o filho, por seu turno, mais pareciam um casal cuja vida conjugal já tivesse conhecido melhores dias.

- Talvez pelo facto de a pobreza estar tão generalizada, muita gente pensasse que, com alguma sorte, poderia livrar-se da miséria para sempre.

- Assim como aconteceu com as gentes de Junitaki - apontou a minha amiga.

- Exactamente. Daí que se matassem a trabalhar nos campos, para ver se as coisas melhoravam. O que não impediu, contudo, a maioria dos pioneiros de morrer na miséria.

- Como é que se explica isso?

- Pelas condições da terra. Sendo Hokkaido uma ilha fria, volta e meia é atingida pela geada. Quando as colheitas são dizimadas, os camponeses ficam sem comida e, como não têm dinheiro, ficam sem poder garantir o pão para a boca e impossibilitados de comprar combustível. E então, hipotecam as suas terras e pedem empréstimos, pelos quais ficam a pagar elevados juros. Acontece, porém, que a escassa produtividade agrícola da região não lhes permite pagar esses juros, e acabam assim por perder as suas terras, que lhes são retiradas, convertendo-se em meros arrendatários.

Enquanto ia contando isto, folheei ruidosamente as páginas de A História Autorizada da Cidade de Junitaki até chegar ao parágrafo que interessava, e que passei a ler em voz alta:

 

- «Em 1930, a proporção de agricultores proprietários das suas terras diminuíra para 46 por centro na cidade de Junitaki. Desde 1926, ano em que se iniciou o Período Showa, haviam conhecido um duplo revés: uma grande depressão económica, por um lado, e a chegada de um Inverno anormalmente rigoroso, por outro.»

 

- Ou seja, depois de todos os esforços no sentido de desbravar as terras e nelas semear as suas colheitas, acabaram por cair nas garras dos credores e endividaram-se ainda mais - concluiu a minha amiga.

 

Como ainda faltavam cerca de quarenta minutos para o nosso comboio, a minha namorada foi dar uma volta pela cidade. Eu fiquei na sala de espera, bebi uma Coca-Cola e abri outro dos livros que levara comigo na página onde tinha ficado, mas ao fim de dez minutos renunciei à leitura e guardei o livro no bolso. Estava bloqueado, não entrava nada na minha cabeça, invadida pelos carneiros de Junitaki, que devoravam com avidez e grandes ruídos de castanholas todas as palavras em letra de imprensa que os meus olhos enviavam para o cérebro. Fechei as pálpebras e suspirei. Um comboio de mercadorias passou pela estação sem parar, emitindo um sonoro silvo.

Dez minutos antes da partida do comboio, ela regressou trazendo um saco de maçãs que tinha acabado de comprar. Foi o nosso almoço, antes de embarcarmos.

O comboio já devia ter conhecido melhores dias. As pranchas de madeira que forravam o chão da carruagem estavam de tal forma gastas nos lugares mais frequentados que percorrer o corredor central obrigava uma pessoa a andar aos tombos de um lado para o outro. A cobertura dos assentos não tinha molas e o tecido das almofadas era áspero e duro como pão do mês anterior. No ar pairava um odor fétido, em que se misturavam o fedor dos lavabos e o cheiro rançoso do querosene. Passei dez minutos a tentar abrir a janela a fim de deixar o ar fresco entrar mas, assim que o comboio ganhou velocidade, começou a entrar uma areia fina que se metia nos olhos e não tive outro remédio senão passar outros tantos minutos a fechá-la.

O comboio tinha duas carruagens. Passageiros, éramos quinze ao todo. O único traço de união entre as pessoas que viajavam naquele comboio era um profundo sentimento comum onde se misturavam indiferença e tédio. O velho de camisola cor de camelo continuava a ler a sua revista. Dado o ritmo de leitura, não era de admirar que o exemplar nas suas mãos fosse um número atrasado, para aí com três meses. A mulher anafada de meia-idade olhava sem pestanejar para um ponto fixo no espaço, com a expressão de um crítico musical que estivesse a escutar uma sonata para piano de Scriabin(22). Procurei seguir furtivamente a direcção do seu olhar, mas não encontrei nada, apenas vazio.

Até as crianças estavam sossegadas. Iam sentadas, muito quietas, sem andarem a correr de um lado para o outro nem a ver se conseguiam espreitar pela janela. De vez em quando, ouvia-se uma tosse seca, como se alguém estivesse a bater com tenazes no crânio de uma múmia.

Cada vez que o comboio parava numa estação, alguém descia. Sempre que alguém se apeava, o revisor também descia, a fim de recolher o bilhete. Depois voltava a subir e o comboio arrancava. O revisor era tão inexpressivo que poderia ter participado no assalto

 

*22. Compositor e pianista russo (1872-1925), influenciado por Chopin e Wagner. Original, interessou-se pela mística e pela teosofia, utilizando muitas vezes o chamado «acorde mítico». Em muitas das suas peças torna-se difícil reconhecer a tonalidade e ao cromatismo desmedido corresponde a polirritmia. Daí que alguns intérpretes*seus digam que cada leitura de uma sonata de Scriabin é como uma primeira leitura. (N. da T.)

 

a um banco de cara descoberta. Nenhum passageiro novo subiu para o comboio.

Lá fora, um rio seguia o seu curso. As águas corriam turvas, devido às chuvas, e ali, sujeito aos diversos matizes do sol outonal, o seu caudal parecia uma mistura acastanhada de café com leite. Acompanhando o rio, uma estrada improvisada jogava às escondidas com o nosso olhar, e volta e meia via-se um camião enorme carregado de madeira, avançando em direcção a oeste. De resto, podia dizer-se que o volume de tráfego era quase nulo. Espalhados ao longo da estrada que atravessava aquele longo deserto, os cartazes publicitários propagavam a sua mensagem a toda a gente e a ninguém em especial. Entretive-me a matar o tédio lendo alguns daqueles cartazes que, um atrás do outro, ofereciam mensagens de teor elegante e urbano. Num deles, uma rapariga toda bronzeada, em biquini, bebia uma Coca-Cola; num outro, aquele conhecido actor «característico» de meia-idade erguia o sobrolho à visão de um copo de uísque escocês meio inclinado; num outro mais adiante, mostrava-se um relógio de mergulhador ostensivamente salpicado de água; no seguinte, uma modelo pintava as unhas, no meio de um luxuoso quarto que devia ter custado os olhos da cara. Pelos vistos, os novos pioneiros da indústria publicitária aproveitavam engenhosamente a ocasião que se lhes deparava para desbravar terreno e levar a sua mensagem ao coração do país.

O comboio chegou à cidade de Junitaki, que é como quem diz, ao fim da linha, duas horas e quarenta minutos depois de ter saído. Como íamos os dois a dormitar, escusado será dizer que não ouvimos o altifalante que anunciava a proximidade da estação. Assim que a locomotiva a diesel expeliu o último sopro de fumo das suas entranhas, instalou-se um silêncio pesado. Acordei de repente, com esse silêncio quase a provocar uma dolorosa sensação de ardor na pele. Olhei em redor: não se via um único viajante.

Tirei as nossas bagagens do compartimento de rede, bati por várias vezes no ombro da minha amiga até conseguir que ela acordasse, e descemos do comboio. O vento frio que varria a plataforma da estação anunciava o fim do Outono. O Sol, na sua trajectória descendente, tocava a rasar no céu e projectava, como uma mancha funesta, a sombra negra das montanhas sobre a terra. As duas cadeias montanhosas distintas confluíam precisamente por detrás da cidade e, como duas mãos que aproximam as suas palmas em concha a fim de proteger do vento a chama de um fósforo, envolviam-na por inteiro. A longa e estreita plataforma parecia uma frágil prancha de surf, prestes a enfrentar as gigantescas ondas que se erguiam por cima da estação.

Por breves minutos, deixámo-nos ficar ali a contemplar aquele cenário, mudos de espanto.

- Onde é que fica a antiga fazenda do Professor Carneiro? - perguntou a minha namorada.

- No cimo da montanha. A três horas de distância, se formos de carro.

- É para lá que vamos agora?

- Não - disse eu. - Se o fizéssemos, seríamos surpreendidos pela noite. Hoje ficamos a dormir aqui e amanhã cedo pomo-nos a caminho.

Diante da estação havia uma praceta com uma rotunda no centro, completamente deserta. Não se via nem uma viatura na estação de táxis. Mesmo no meio da praça, sem uma gota de água, uma fonte em forma de passarinho. O pássaro de pedra, mudo e sem expressão, tinha o bico aberto e olhava fixamente para o céu. À volta da fonte estava plantado um canteiro com duas fileiras de malmequeres. Bastava um único olhar para ver que a cidade decaíra muito nos últimos dez anos. Nas ruas não se via quase ninguém, e as escassas pessoas com que nos cruzávamos tinham estampada no rosto a mesma expressão que caracteriza, no seu conjunto, uma cidade em decadência.

À esquerda da praceta alinhavam-se meia dúzia de velhos armazéns, construídos durante a época em que o transporte se fazia por caminho-de-ferro. Eram construções antigas de tijolo, com telhados muito inclinados e portas metálicas que tinham sido pintadas uma série de vezes antes de as deixarem ficar para ali ao abandono. No cimo dos telhados, empoleirado sobre o telhado, um bando de corvos assustadoramente grandes, todos em fila, vigiando a cidade em silêncio. Num terreno baldio ao lado dos armazéns, no meio das altas ervas, estavam dois carros abandonados à mercê dos elementos, sem pneus e sem as peças interiores, completamente esventrados a partir da capota aberta.

Uma placa informativa com um mapa da cidade estava afixada numa das extremidades da praceta, mas as indicações, de tão batidas pelas intempéries, mal se conseguiam ler. Os únicos caracteres que dava para distinguir claramente eram «Cidade de Junitaki» e «Zona limítrofe setentrional de produção de arroz».

Defronte da praça ficava um pequeno bairro com lojas. Era pouco mais ou menos como todas as zonas de comércio que as cidades japonesas costumam ter, mas com a particularidade de a rua onde se situava ser invulgarmente larga, reforçando assim a aparência gelada e decadente da cidade. De cada lado da estrada via-se uma fileira de sorveiras-bravas, cujas copas cintilavam com o vermelho da folhagem, se bem que isso não chegasse para apagar a sensação de fria desolação. Era uma corrente gélida que contagiava as coisas vivas num sentido físico, arrastando atrás de si os habitantes da cidade, sem olhar a quem. Tanto os que lá viviam como as suas irrelevantes actividades quotidianas tinham sido inteiramente engolidos por aquela corrente fria e paralisante.

Com a mochila às costas, percorri de uma ponta à outra aquela rua, à procura de alojamento. Não encontrei nem uma pousada nem nenhum sítio onde passar a noite. Uma em cada três lojas tinha os taipais corridos e a porta fechada. Na fachada de uma relojoaria, o respectivo letreiro, meio caído, ondulava ao compasso do vento.

O quarteirão comercial terminava abruptamente num amplo parque de estacionamento transformado em viveiro de ervas daninhas. Viam-se um Honda Fairlady creme e um Toyota Célica vermelho ali estacionados. Tanto um como outro eram novos. Produziam uma nota algo insólita, mas o estado novo, impessoal, de ambos os carros condizia às mil maravilhas com o ambiente deserto de uma cidade abandonada à sua própria sorte.

Para lá da zona comercial, pouco mais havia. A rua descia suavemente na direcção do rio, e, ali chegando, bifurcava-se para a esquerda e para a direita formando um T. Dos dois lados do trecho em declive alinhavam-se várias casinhas de madeira de um só piso, e as árvores dos jardins projectavam contra o céu as suas ramagens de um cinzento-sujo e poeirento. Não sei explicar bem como nem porquê, mas o certo é que todas as árvores exibiam os seus galhos formando uma composição de grande e indefinível excentricidade. Cada casa apresentava, junto à porta de entrada, um grande tanque de combustível, bem como um depósito para guardar as garrafas de leite. Nos telhados podiam ver-se as incontornáveis antenas de televisão, umas antenas extraordinariamente altas, que lançavam no ar os seus tentáculos metálicos, em sinal de desafio lançado à cadeia de montanhas que se avolumavam por detrás da cidade.

- Estou a ver que não existe uma pousada nesta terra - observou a minha amiga, vagamente inquieta

- Não te preocupes. Todas as cidades, por mais pequenas, têm a sua pousada.

Regressámos à estação e informámo-nos junto dos funcionários. Eram dois, que, a julgar pelo aspecto, poderiam muito bem ser pai e filho, e entrava pelos olhos dentro que morriam ambos de aborrecimento, até pela maneira como nos explicaram tudo muito bem explicadinho, dando mostras de uma infinita cortesia.

-Temos duas pousadas - explicou o empregado mais velho. -Uma é relativamente cara, e a outra, relativamente barata. A mais cara costuma ser frequentada pelas personalidades importantes quando nos vêm visitar, para além de ser o lugar onde decorrem os banquetes oficiais.

- A comida lá é muito boa - interveio o mais novo, aproveitando para meter a sua colherada.

-A outra, costuma ser frequentada por homens de negócio, gente jovem e, em geral, é aí que costuma ficar a maioria das pessoas. Tem um aspecto muito modesto, mas isso não quer dizer que esteja suja nem nada que se pareça. Posso garantir que os banhos colectivos(23) são do melhor que há.

- O único senão é ter as paredes muito finas - apontou o empregado mais novo.

Naquele ponto, lançaram-se os dois numa viva discussão sobre a espessura das paredes.

- Queremos ir para a pousada mais cara - disse eu. Ainda tínhamos bastante dinheiro dentro do sobrescrito, não havia razões para fazer economias.

 

*23. Mais raros nos dias de hoje, os banhos públicos fazem parte integrante das ryokan, as estalagens tradicionais japonesas, a par das casas de banho com WC ao estilo ocidental ou japonês. Regra geral, as banheiras são comuns a homens e mulheres (nas ryokan mais pequenas, com apenas uma banheira, as horas de banho podem ser diferentes para homens e mulheres). (N. da T.)

 

O mais novo arrancou uma folha do seu bloco de notas e desenhou o caminho a seguir para chegarmos à pousada.

- Muito obrigado - disse eu. - É impressão minha ou a cidade perdeu habitantes nos últimos dez anos?

- Sim, é verdade - confirmou o empregado mais velho. - Agora só temos uma marcenaria e mais nenhuma indústria digna desse nome. A agricultura atravessa uma fase de franco retrocesso, e a população diminuiu consideravelmente.

- Para já não falar nas dificuldades para formar turmas nos colégios, atendendo à falta de estudantes - acrescentou o mais novo.

- Qual é a população?

- Oficialmente, para aí uns sete mil habitantes - continuou o mais novo a responder -, mas, na realidade, deve haver uns cinco mil, quanto muito.

- Mais dia, menos dia, até mesmo a linha de caminho-de-ferro corre o risco de ser encerrada, acreditem no que lhes digo. Parece que é a terceira linha mais deficitária do país - afirmou o mais velho, convencido do que estava a dizer.

Em tudo aquilo, o que mais me surpreendeu foi o facto de ficar a saber que existiam duas linhas de caminho-de-ferro ainda mais acabadas do que aquela. Agradecemos e abandonámos a estação.

Para ir até à pousada, tivemos de descer a encosta, virar à direita em plena rua comercial e andar uns trezentos metros por um passeio que seguia ao longo do rio. Tratava-se de uma velha e simpática pousada que ainda conservava o ar de outros tempos, quando a cidade era próspera e animada. Virada para o rio, tinha um jardim amplo e bem cuidado. A um canto, via-se um cão pastor com o focinho enfiado numa gamela, a dar conta de um jantar antes da hora.

- São montanhistas? - quis saber a empregada que nos acompanhou aos quartos.

- Sim, somos montanhistas - respondi eu, para não complicar.

Havia apenas dois quartos no segundo piso. Eram ambos espaçosos, e pela janela do corredor podia ver-se o mesmo rio cor de café-com-leite que eu vira da janela do comboio.

A minha companheira disse-me que queria tomar um banho japonês, por isso resolvi ir dar uma volta pela terra, até à Câmara.

O edifício ficava situado numa rua deserta, a dois quarteirões da rua do comércio para o lado ocidental. Pelos vistos, tratava-se de um edifício muito mais recente e bem conservado do que eu imaginara.

Dirigi-me ao departamento dos assuntos relacionados com os contratos de arrendamento de gado, mostrei a um funcionário um dos cartões-de-visita que há alguns anos tinha mandado fazer, quando trabalhava como free-lance para uma revista e expliquei que tinha algumas perguntas sobre a pecuária ovina que gostaria de ver respondidas. Não deixava de ser um bocadinho estranho que uma revista feminina manifestasse interesse por semelhante tema, pensei eu, mas o certo é que o funcionário acedeu de imediato ao meu pedido e conduziu-me ao interior do seu gabinete.

- No município, temos actualmente mais de duzentas cabeças de gado ovino, na sua maioria da raça Suffolk. O seu destino é a produção de carne, que é depois vendida às pousadas e restaurantes da região, e que é, de resto, reconhecida pela sua qualidade.

Saquei do meu bloco e fui tirando as minhas notas. Nos próximos tempos, aquele pobre homem iria decerto comprar alguns números da revista feminina em questão. Confesso que só de pensar nisso fiquei um tanto ou quanto embaraçado.

- Parto do princípio de que estamos a falar de um artigo sobre gastronomia? - perguntou-me o homem, depois de me fornecer uma quantidade de informações gerais sobre a criação de ovelhas.

- Em parte, sim - respondi. - Mas interessa-nos muito concretamente dar uma imagem abrangente do gado ovino.

- Uma imagem abrangente?

- Quero dizer, os seus costumes, habitat, coisas desse género.

- Ah, sim - fez o meu interlocutor.

Fechei o bloco de notas e bebi o chá que me tinham oferecido.

- Ouvi dizer que ainda existe uma antiga zona de pasto no alto da montanha... - observei, como quem não quer a coisa.

- Efectivamente, assim acontece. Antes da guerra era uma fazenda muito boa, mas depois esses pastos foram requisitados pelo Exército norte-americano no pós-guerra, e hoje em dia não são explorados por ninguém. Uns dez anos após terem sido devolvidos pelos americanos, apareceu um ricaço que comprou aquele lugar para aí fazer a sua casa de campo, mas, como por certo terá ouvido dizer, o sítio é de difícil acesso e, a pouco e pouco, o novo dono deixou de aparecer.

De modo que a casa agora está para ali, praticamente ao abandono. Daí que os terrenos tenham sido arrendados ao município. O ideal seria eles serem comprados para gestão camarária, mas receio bem que as finanças andem pelas ruas da amargura. Sem esquecer que, antes do mais, teríamos de mandar reparar a estrada...

- Alugados, foi o que disse?

- Durante o Verão, os pastores municipais levam cerca de cinquenta cabeças de gado lá para cima, visto que aqueles pastos são magníficos e não abundam as pastagens por estas bandas. Quando o tempo começa a piorar, lá para fins de Setembro, voltam a descer a montanha e trazem os rebanhos de volta.

- E quanto tempo lá permanecem os carneiros?

- Depende. Varia de ano para ano, mas, em princípio, desde os primeiros dias de Maio até à segunda metade de Setembro.

- E quantas pessoas conduzem os rebanhos de carneiros até lá acima?

- Uma só. O mesmo homem que anda nisto desde há dez a esta parte.

- Seria possível falar pessoalmente com ele?

O funcionário pegou no telefone e ligou para a fazenda municipal.

- Caso queira ir agora até lá, encontra-o - disse ele. - Deseja que o leve?

Ainda tentei declinar amavelmente o convite, mas o homem disse-me que não havia outra maneira de chegar à tal fazenda, a não ser no carro dele. Na cidade não havia táxis nem carros de aluguer, e a pé, demoraria cerca de hora e meia a lá chegar.

O funcionário municipal conduzia um carro pequeno. Passámos por diante da pousada e continuámos em direcção a oeste. Atravessámos uma comprida ponte de cimento, deixámos para trás uma sombria zona pantanosa e fomos subindo sempre por uma ladeira suave que nos levava até à montanha. A gravilha da estrada produzia estalidos metálicos ao ser deslocada pelos pneus.

- Para quem vem de Tóquio, imagino que Junitaki pareça uma cidade morta - observou ele.

Respondi-lhe com meia dúzia de banalidades.

- A verdade é que a cidade está entre a vida e a morte, e nós a mesma coisa. Enquanto a linha de caminho-de-ferro por aqui passar, tudo bem, a coisa ainda se vai aguentando, mas no dia em que ficarmos sem ela, então é morte certa. Não deixa de ser estranho, estar para aqui a falar da morte de uma cidade. Que uma pessoa morra, ainda vá que não vá. Agora, dizer que uma cidade inteira vai morrer...

- O que é que acontece quando a cidade morrer?

- O que é que acontece? Ninguém sabe. Creio que nessa altura não haverá por cá ninguém para o dizer, terão todos dado à sola. Se a população cair abaixo, vamos imaginar, dos mil habitantes, o que de resto não é difícil imaginar, a nós, funcionários públicos, não nos restará mais nada para fazer aqui, e nesse caso teríamos de fechar tudo e ir à vida.

Ofereci-lhe um cigarro e acendi-lho com o isqueiro Dupont com o carneiro gravado.

- Em Sapporo sempre existe a possibilidade de eu arranjar um bom emprego. Tenho um tio que está à frente de uma tipografia e ele precisa de quem o ajude. Faz livros escolares para o Ministério da Educação, por isso trabalho é coisa que não falta. Para mim, até seria melhor. Pelo menos sempre me livrava de ter de estar sempre a deitar conta às cabeças de carneiros e de gado antes de cada embarque.

- Sem dúvida alguma - disse eu.

- A verdade, porém, é que na hora de fazer as malas e zarpar, não consigo decidir-me a abandonar esta cidade. Parece que fico logo com saudades, percebe o que eu quero dizer? Se é um facto que a cidade pode morrer, nesse caso quero cá estar e presenciar esses últimos momentos com estes olhos que a terra há-de comer.

- Nasceu aqui?

- Sim - respondeu ele, remetendo-se a um profundo silêncio. Um sol tingido de melancolia já tinha escondido um terço do seu círculo atrás da montanha.

De ambos os lados da fazenda municipal erguiam-se postes e no meio deles estava pendurado um cartaz onde se lia: «Fazenda Municipal de Junitaki para a Criação de Gado Ovino». Passado o cartaz, seguia-se por um caminho que era sempre a subir, até chegarmos a um pequeno bosque frondoso cuja folhagem ostentava as vivas cores outonais.

- Para lá do bosque, vai encontrar o curral e, logo a seguir, a casa do pastor. Como é que quer fazer para regressar?

- É sempre a descer, posso muito bem ir a pé. Obrigado por tudo.

Quando o carro desapareceu de vista, passei por entre os postes e subi a ladeira. Os últimos raios de sol conferiam um brilho alaranjado às folhas douradas dos áceres. As árvores eram altíssimas. A luz que se infiltrava pela copa das árvores derramava-se formando difusos padrões de luz sobre o caminho de cascalho.

Depois de atravessar o bosque, pude ver, ao cimo da ladeira, um estábulo comprido e estreito que tresandava a gado. O telhado era em chapa ondulada pintada de vermelho e em três sítios viam-se respiradouros.

À saída do bosque havia uma casota de cão. Aí, atado com uma trela de couro, estava um pequeno cão pastor de raça Border Colhe, que, ao ver-me, ladrou por duas ou três vezes. Era um cão velho, de olhos sonolentos, com um ladrar nada agressivo. Quando lhe afaguei o cachaço, acalmou-se automaticamente. A frente da casota haviam colocado dois recipientes de plástico, uma tigela com água e outra com comida. Assim que tirei a mão, o cão voltou para dentro de casa e, juntando as patas, estendeu-se no chão.

O interior do curral estava mergulhado na penumbra. Não se via ninguém. Um largo corredor central, com chão de cimento, dividia o recinto em dois, e de ambos os lados havia cercados onde eram mantidas as ovelhas. Ao longo da passagem existiam dois canais em forma de U para fazer desaguar a urina das ovelhas e a água das lavagens. Nas paredes cobertas de pranchas de madeira, abria-se uma ou outra janelinha através da qual era possível distinguir a linha recortada das montanhas. O crepúsculo tingia de vermelho os carneiros do lado direito, ao mesmo tempo que sobre os da esquerda lançava uma densa sombra azulada.

No momento em que entrei no curral, os duzentos carneiros viraram-se automaticamente para mim. Metade estava de pé, ao passo que a outra metade continuava deitada sobre o feno que havia espalhado a cobrir o solo. As pupilas dos carneiros eram de um azul muito intenso, quase artificial, e pareciam minúsculos poços de água cavados de cada lado da cabeça. Quando a luz incidia de frente, brilhavam como se fossem de vidro. Estavam todos de olhos postos em mim. Nem um deles fez um único movimento. Alguns continuavam a mascar, com a boca cheia de feno, e esse barulho seco era o único ruído que se ouvia.

Uns quantos carneiros tinham esticado a cabeça por entre estacas da cerca, parando de beber, e, sem mudarem de posição, olhavam fixamente para mim. Dir-se-ia que aqueles animais pensavam em conjunto, às ordens de uma mente comum, e que o seu pensamento colectivo havia sido momentaneamente interrompido a partir do momento em que eu pusera o pé na entrada do curral. Tudo o mais em redor ficara em suspenso, todo o raciocínio ficara paralisado, como que adiado. Foi preciso que eu fizesse um movimento para que a actividade mental deles voltasse a funcionar. Nas oito baias em que se encontrava dividido o cercado, os carneiros começaram a mover-se. Num deles, destinado a fêmeas, estas agruparam-se à volta do reprodutor, enquanto os restantes machos recuavam, procurando evitar um possível ataque. Meia dúzia de carneiros, dominados pela curiosidade, não se afastavam da cerca, observando estaticamente os meus movimentos.

Cada carneiro, na ponta daquelas suas orelhas negras, estreitas e compridas, projectadas horizontalmente de ambos os lados da cabeça, apresentava um chip de plástico. Alguns tinham a dita anilha azul, outros, amarela, outros, vermelha. No lombo tinham igualmente inscrita a caneta de feltro uma vistosa marca colorida.

Caminhei devagarinho, em bicos dos pés, a fim de não espantar os carneiros. Adoptando o ar mais indiferente de que fui capaz, aproximei-me da cerca e, esticando furtivamente a mão, acariciei um jovem macho. O animal teve um pequeno movimento de sobressalto, mas não fugiu de mim. Tenso, crispado, de olhos bem abertos. Como se fosse ele o carneiro enviado pelo resto do grupo com a secreta missão de me sondar. Todos os outros carneiros me observavam com profunda desconfiança.

Para começar, é bom que se diga que os carneiros de raça Suf-folk são animais verdadeiramente singulares. Se bem que tenham o corpo preto, apresentam o velo de lã branca. As suas orelhas são grandes e projectam-se na horizontal para os lados, como as asas de uma mariposa. Os olhos, esses são de um azul que brilha no meio do escuro, e o longo e empinado focinho confere-lhes uma estranha nobreza. Não recusavam a minha presença, ainda que também não se pudesse dizer que me acolhessem com alvoroço; pura e simplesmente, aceitavam-me como fazendo parte do cenário. Alguns deles resolveram urinar com estrépito. O mijo escorria pelo chão e fluía pelas goteiras, passando rente aos meus pés.

Saí do curral e fiz mais uma festa na cabeça do cão pastor, aproveitando ao mesmo tempo para encher os pulmões de ar.

O Sol estava quase a pôr-se atrás dos montes. Sombras de um suave brilho anilado começavam a envolver as encostas da montanha, como tinta diluída em água. A seguir rodeei o estábulo pelas traseiras e, depois de atravessar uma ponte de madeira que passava por cima de um riacho, dirigi os meus passos para a cabana do pastor. Era uma casita de um só piso que tinha em anexo um enorme celeiro, maior do que a própria casa, destinada a armazenar o feno e os equipamentos de lavoura.

Ao lado de um telheiro que servia de armazém, junto a uma cuba rectangular de cimento que devia ter à volta de um metro de largura por um metro de profundidade, o guardador de rebanhos estava a empilhar sacos de plástico contendo desinfectante. Ao ver-me chegar, lançou um olhar rápido na minha direcção, mas continuou a fazer o seu trabalho sem manifestar um interesse por aí além na minha pessoa. Quando cheguei ao pé dele, decidiu-se finalmente a parar com o que estava a fazer e a enxugar o suor das mãos e da cara com uma toalha que trazia enrolada ao pescoço.

- Amanhã é dia de se fazer uma desinfecção geral dos carneiros - anunciou o homem, sacando de um bolso do seu fato-macaco um cigarro todo amarfanhado que alisou com o dedo antes de acender. - Esta é a parte em que deitamos o líquido desinfectante e obrigamos os carneiros, um a um, a nadar pelo meio do líquido. Caso contrário, enchem-se de parasitas durante o Inverno, ali fechados no curral.

- E é o senhor que faz tudo sozinho?

- Está a brincar? Tenho dois ajudantes. Dois homens e eu, é quanto chega. E depois temos o cão, que faz a maior parte do trabalho. Entre outras coisas, porque os carneiros confiam nele. Não seria um cão pastor digno desse nome se não contasse com a confiança dos carneiros.

O homem era cinco centímetros mais baixo do que eu, mas de compleição robusta. Devia andar pelos quarenta e cinco, a caminho dos cinquenta anos. Tinha o cabelo forte, cortado curto, como uma escova. Tirou os dedos das luvas de borracha como se estivesse a arrancar uma camada de pele. Depois de as sacudir mediante vários golpes secos nas calças, guardou-as no bolso traseiro do macacão.

Mais do que um tratador de carneiros, parecia um sargento encarregado da instrução de recrutas.

- Com que então, fez este caminho todo para me fazer perguntas?

- Isso mesmo.

- Nesse caso, pergunte.

- Há muito que faz este trabalho?

- Dez anos - respondeu o homem. - Se é ou não muito tempo, não lhe posso dizer, mas garanto que conheço os carneiros como os dedos das minhas mãos. Antes disso, estive no exército.

Enrolou a toalha à volta do pescoço e olhou para o céu.

- Costuma passar o Inverno neste lugar?

- Claro - retorquiu. - Para onde é que quer que eu vá? Não tenho mais nenhum sítio para onde ir. Além disso, de Inverno há sempre uma montanha de coisas que têm de ser feitas. Por estas bandas, a neve pode até alcançar os dois metros de altura e, se não tratamos de a retirar às pazadas, o telhado corre o risco de vir abaixo e de esmagar as ovelhas. E, depois, é preciso dar-lhes de comer, limpar o estábulo, e mais isto e mais aquilo.

- E quando chega o Verão, nessa altura conduz metade do rebanho até às montanhas, estou certo?

- Efectivamente, assim é.

- É difícil o percurso, com tantos carneiros ao seu cuidado?

- Nada disso. Há séculos que a Humanidade anda a fazer a mesma coisa. Os pastores que guardam rebanhos no curral, é coisa recente. Dantes, andavam a tanger os rebanhos de um lado para o outro, durante o ano inteiro. Na Espanha do século XIX, por exemplo, havia caminhos espalhados pelo país que só os carneiros conheciam, e nem ao rei era permitido transitar por ali.

O homem lançou uma cuspidela para o chão e pisou-a com a sola da bota.

- Seja como for, desde que não se espantem, os carneiros são animais dóceis e submissos. Limitam-se a seguir atrás do cão, em silêncio, sem fazer perguntas.

Tirei do bolso a fotografia do Rato e mostrei-a ao homem.

- Este é o sítio que se vê na foto, não é verdade?

- Sim - respondeu ele.- Sem dúvida que é. E os carneiros, a mesma coisa, são os nossos.

- E este aqui? - perguntei eu, apontando com a ponta da esferográfica para o carneiro atarracado com uma estrela gravada nas costas.

O homem examinou a fotografia durante um momento.

- Não, esse carneiro não é um dos nossos. Que coisa mais estranha... Não estou a ver como é que ele podia ter-se metido no meio dos outros. O local das pastagens está todo ele cercado por uma vedação de arame farpado. É preciso ver que eu próprio faço a contagem dos animais duas vezes ao dia, de manhã e à noite. E, ainda mais bizarro, é o facto de o cão não ter dado por nada, isto para já não dizer que o resto do rebanho teria manifestado grande agitação. Além de que, confesso a minha ignorância, nunca vi um carneiro de semelhante raça nem nada que se pareça nos dias da minha vida.

- Aconteceu algo de estranho desde Maio deste ano, entre a altura em que levou os carneiros para o alto da montanha e o seu regresso?

- Rigorosamente nada - reafirmou o homem. - Tudo normal.

- E ficou sozinho durante todo o Verão?

- Não, sozinho não. De dois em dois dias, aparecia por lá um funcionário da Câmara, e volta e meia aparecia também um ou outro fiscal encarregado da inspecção. Uma vez por semana, era a minha vez de descer à cidade, mas tenho sempre quem me substitua junto dos carneiros. Bem vê, é preciso tratar das provisões e assim.

- Nesse caso, não ficou isolado na montanha?

- Isso, não. Até começarem a cair os nevões, uma pessoa põe-se na fazenda em hora e meia. É quase um passeio, como vê. Agora, quando a neve começa a amontoar-se, não se pode passar nem de jipe, e então, sim, aquele sítio fica completamente isolado.

- Quer então dizer que, neste momento, não deve estar ninguém lá em cima, na montanha?

- Tirando o dono da propriedade, não.

- O dono da propriedade? Disseram-me que a casa de campo não era utilizada há que séculos...

O encarregado atirou o cigarro ao chão e calcou-o com o sapato.

- Há séculos que não era usada, mas agora está ocupada. Verdade seja dita, a casa está sempre pronta para receber o dono, desde que ele queira, uma vez que sou eu mesmo que faço a manutenção de tudo para que ela esteja em condições. Tem gás e electricidade, o telefone está a funcionar. Não há uma única janela partida.

- O homem da Câmara disse-me que não vivia ali ninguém.

- Esses tipos não sabem a ponta de um corno. Pela parte que me toca, e fora o meu emprego municipal, trabalho para o dono dessa fazenda. Acontece é que me calo bem caladinho e não falo disso a ninguém. Ele mandou-me ser discreto e não dar com a língua nos dentes.

O homem tirou um maço de tabaco do bolso, mas estava vazio. Ofereci-lhe o meu maço de Lark meio cheio, juntamente com uma nota de dez mil ienes muito dobradinha. O homem ficou a olhar para a oferta por momentos, em silêncio, antes de levar um cigarro à boca e enfiar o restante no bolso da camisa.

- Muito agradecido - disse.

- Sendo assim, quando é que o dono chegou?

- Na Primavera. Como ainda não tinha começado o degelo, deve ter sido por volta do mês de Março. Há cinco anos que eu não lhe punha a vista em cima, sabia? Não conheço os motivos que o trouxeram até estas bandas, mas imagino que seja uma coisa que só a ele diga respeito, nada da minha conta. Se ele me mandou não dizer nada a ninguém, lá terá as suas razões. Seja como for, ainda por lá continua. Dos alimentos, do combustível e das demais provisões, encarrego-me eu, sem que ninguém dê por nada, e transporto tudo no jipe até lá cima. Com as reservas que tem neste momento, pode viver ali nas calmas durante um ano, se quiser.

- Por acaso esse homem não terá mais ou menos a minha idade, com um bigode?

- A-hã - assentiu o pastor. - Sem tirar nem pôr.

- Óptimo - exclamei eu. Nem valia a pena mostrar-lhe a fotografia.

 

Chegar a acordo com o pastor foi a coisa mais simples do mundo assim que lhe passei o dinheiro para a mão. O homem ficou de nos ir buscar à estalagem no dia seguinte, por volta das oito da manhã, a fim de nos levar de jipe até às pastagens em plena montanha.

- Em começando a desinfecção dos carneiros ao meio-dia, calculo que terei acabado lá para o fim da tarde - observou o guardador de rebanhos, homem dotado de um sentido prático que entrava pelos olhos dentro.

- Contudo, há uma coisa que me está a dar cabo da cabeça -acrescentou ele. - O terreno deve estar empapado, por causa da chuva de ontem, e é bem possível que o jipe não consiga passar num determinado ponto. Por isso, a partir daí é provável que tenham de seguir viagem a pé. Não está nas minhas mãos, compreendem?

- Por nós, tudo bem - disse eu.

No caminho de regresso, às tantas lembrei-me que o pai do Rato era dono de uma casa de campo em Hokkaido. Agora que pensava nisso, o Rato falara-me dela por mais uma vez, nos bons velhos tempos. Ficava no alto da montanha, rodeada de grandes prados, uma casa antiga de dois andares. Só me lembro das coisas importantes quando já não é preciso. Precisava de me ter lembrado daquilo logo de início, ao receber a carta do Rato. Isso teria por certo facilitado, e muito, a minha investigação.

Irritado comigo próprio, lá fui descendo a encosta por um caminho de montanha, à medida que escurecia cada vez mais. No espaço de hora e meia, só passaram por mim três veículos, dois deles camiões de grande tonelagem carregados de madeira, e o terceiro, um tractor pequeno. Iam todos três a caminho da cidade, mas nenhum se deu ao trabalho de me perguntar se eu queria boleia. Por mim, tudo bem, a verdade é que também não estava a contar com isso.

Passava das sete quando cheguei ao hotel, e nessa altura era já noite cerrada. Estava gelado até ao mais íntimo do meu ser. O pequeno cão pastor meteu a cabeça fora da casota e lançou uns quantos latidos amistosos na minha direcção.

A minha namorada tinha vestido umas calças de ganga e a minha camisola de gola alta. Estava à minha espera na sala de recreio, junto à entrada, totalmente absorta num jogo de computador. Aquele espaço tinha toda a pinta de ter sido uma antiga área de recepção posteriormente convertido em sala de recreio, visto que conservava uma imponente lareira. Uma lareira a sério, onde se podia acender fogo de lenha. Além disso, viam-se quatro jogos de computador e duas máquinas de pinball(24). Estas últimas, fabricadas em Espanha, eram verdadeiras peças de museu, daquelas que já não se encontram em parte alguma.

- Estou esganada de fome - disse a minha amiga, farta de estar à espera.

Encomendámos o jantar e eu fui tomar um banho rápido. Quando estava a secar-me, aproveitei para me pesar, coisa que não fazia há imenso tempo. Setenta quilos. O mesmo peso de há dez anos. Toda a gordurinha que se tinha acumulado à volta da cintura desaparecera por completo durante a última semana.

Quando voltei ao quarto, o jantar já tinha sido servido.

 

*24. Uma constante na escrita romanesca de Murakami, título de um dos seus primeiros romances (publicado em 1973), Pinball dá forma, juntamente com Hear the Wind Sing (1979) e Em Busca do Carneiro Selvagem (1982), à «trilogia do Rato», em que aparecem as personagens do Rato, do dono de um bar chamado J e de um narrador sem nome. ( N. da T.)

 

O dia amanheceu fresco e vagamente nublado. Não pude deixar de ter pena daqueles pobres carneiros que, num dia frio como aquele, tinham de levar com um banho frio de líquido desinfectante em cima. Ainda que pudesse muito bem acontecer que os carneiros não soubessem o que era o frio. Se calhar, não sentiam rigorosamente nada.

O curto Outono de Hokkaido(25) estava a pouco e pouco a chegar ao fim. As pesadas nuvens cinzentas que aí vinham eram prenúncio de neve. Como havíamos apanhado o avião em Setembro e saltado esse mês em Tóquio para aterrarmos no Outubro de Hokkaido, tinha a sensação de ter perdido irremediavelmente o meu Outono daquele ano de 1978. Vivera o princípio do Outono e o seu final, mas não o meio.

Acordei às seis, lavei a cara e, enquanto esperava pelo pequeno-almoço, sentei-me no corredor e fiquei a ver o rio correr. O caudal diminuíra em relação à véspera e as suas águas tinham recuperado a limpidez. Na ribeira que ficava do outro lado, os arrozais estendiam-se a perder de vista e os talos espigados ondulavam formando estranhos padrões ao sabor da brisa matinal. Um tractor atravessava

 

*25. No Inverno, o vento sopra da Sibéria, dando origem a um clima subárctico, com temperaturas abaixo dos 30 graus negativos (daí as muitas e concorridas estâncias de neve). Entre Maio e Setembro, as temperaturas sobem aos 20 graus Celsius. A bela e contrastante paisagem reflecte, naturalmente, essas mesmas diferenças. (N. da T.)

 

a ponte de cimento em direcção à montanha. O estrepitoso ruído do seu motor ouvia-se ininterruptamente, por mais que se diluísse na distância. Três corvos passaram a voar por sobre o bosque avermelhado de bétulas-brancas, descrevendo círculos sobre o rio antes de pousarem no varandim da ponte. Naquela posição, podiam perfeitamente passar por personagens numa peça teatral de vanguarda. Cansados, ao que parece, do papel que desempenhavam, levantaram voo, um atrás do outro, e desapareceram no céu, rio acima.

Às oito em ponto, o velho jipe do tratador de carneiros imobilizou-se diante da pousada. O jipe tinha uma capota amovível que, ao fechar-se, conferia ao habitáculo a forma de caixa. A julgar pela inscrição meio apagada, com o nome de um destacamento militar, que se via de lado na carroçaria, devia por certo tratar-se de excedentes do exército.

-Aconteceu uma coisa muito estranha - exclamou o pastor assim que me viu. - Ontem quis telefonar lá para casa, só por precaução, mas não consegui ligar.

A minha namorada e eu subimos para os bancos de trás. O jipe cheirava a gasolina.

- Quando foi a última vez que ligou para ele? - perguntei.

- Bom, vejamos... Deve ter sido no mês passado, por volta do dia vinte. Depois disso não tive mais contacto. Geralmente só me telefonam quando precisam de alguma coisa, para me dar a lista de compras ou qualquer coisa do género.

- O telefone tocou?

- Não. Nem sequer deu sinal de estar ocupado. Pode ser que a linha esteja cortada. Costuma acontecer, quando há grandes nevões.

- Pois, mas para isso era preciso que tivesse nevado.

O homem olhou para o tecto do jipe e fez o movimento de rodar a cabeça provocando pequenos estalos nas vértebras cervicais.

- Nesse caso, teremos de ir até lá e dar uma vista de olhos, não lhe parece?

Assenti em silêncio. Começava a sentir a cabeça pesada por causa do cheiro a gasolina.

O carro atravessou a ponte de cimento e começou a subir a montanha, seguindo o mesmo caminho da véspera. Ao passarmos pela fazenda municipal, olhámos os três para o letreiro da entrada, preso entre os postes. A propriedade era a imagem da quietude. Conseguia imaginar os carneiros, com os seus olhos azuis fixos no espaço silencioso que se abria diante deles.

- A desinfecção fica para a parte da tarde?

- Pode ser. Vendo bem, não é propriamente uma questão de vida ou de morte. Desde que seja feita antes de começar a nevar.

- E quando é que começa a nevar?

- Não me admirava nada que começasse a nevar na semana que vem - disse o guarda da fazenda. Com uma mão pousada no volante, baixou a cabeça e teve um ataque de tosse. - É a partir de Novembro que ela começa a cair em força. Está familiarizado com o Inverno por estas bandas?

- Não - reconheci eu.

- Bom, mal a neve começa a acumular-se, nunca mais acaba; é como se um dique tivesse rebentado. Quando isso acontece, não há nada a fazer senão uma pessoa fechar-se dentro de casa e esperar. Não se pode dizer que esta terra seja lá muito hospitaleira, essa é que é essa.

- O que não o impede de aqui viver, e desde há muito tempo, não é verdade?

- Isso é porque gosto de carneiros, sabe? Os carneiros são animais de boa cepa. Às vezes olhamos para eles e até parece que estamos a ver uma pessoa. Quando estamos ocupados a tratar deles, um ano inteiro passa num abrir e fechar de olhos. É sempre a mesma rotina, como a vida. No Outono, copulam, no Inverno, é esperar que passe, na Primavera, temos as crias, e no Verão, o pastoreio. Entretanto, as crias vão crescendo e, em chegando o Outono, é tempo de as acasalar. Depois, o ciclo repete-se. Os carneiros vão sendo diferentes, de ano para ano, e uma pessoa vai ficando cada vez mais velha. E à medida que os anos passam, menos se tem vontade de mudar de ares.

- E que fazem os carneiros durante o Inverno? - perguntou a minha amiga.

O guarda, sem tirar nunca as mãos do volante, voltou-se para trás e olhou para ela, como se naquele preciso momento se tivesse dado conta da sua presença. Se bem que estivéssemos a atravessar uma estrada de asfalto sempre a direito, e que não viesse nenhum carro em sentido contrário, confesso que senti o suor frio escorrer-me pelas costas.

- Durante o Inverno, os carneiros recolhem ao estábulo e ficam ali quietos - respondeu ele, voltando por fim a olhar para a estrada que tinha à sua frente.

- E não se aborrecem?

- Considera que a sua vida é aborrecida?

- Não lhe sei dizer.

- Bom, com os carneiros passa-se o mesmo - prosseguiu o homem. - Não pensam nessas coisas, e mesmo que pensassem, duvido que lhes servisse de muito. Comem o seu feno, fazem as suas necessidades, têm as suas brigas, pensam nos filhotes que vão nascer, e assim passam o Inverno.

A inclinação da montanha tornou-se cada vez mais íngreme ao mesmo tempo que o traçado da estrada começava a descrever grandes esses. A paisagem tipicamente rural ia desaparecendo aos poucos para dar lugar a densos bosques que se assenhoreavam de ambos os lados da estrada. De vez em quando, por entre uma brecha aberta na folhagem, dava para ver um pedaço de terra plana.

- Quando a neve tomar conta disto, não haverá quem circule por esta zona - disse o pastor. - Se bem que não haja qualquer necessidade.

- Não existem pistas de esqui, cursos de montanhismo ou assim? - perguntei, para ver o que ele me dizia.

- Não, aqui não existe nada disso. Por isso é que os turistas não vêm até cá. E também por isso é que a cidade foi decaindo. Até meados da década de 1960, tinha uma actividade apreciável e era até considerada uma cidade-modelo, graças à sua produtividade agrícola em zona fria. Mas desde que começou a haver excesso de produção de arroz, as pessoas deixaram de estar interessadas em dedicar-se à agricultura dentro de um frigorífico. O que é perfeitamente normal, diga-se de passagem.

- O que é que aconteceu às serrações?

- À falta de mão-de-obra, foram mudadas para sítios mais centrais. Existem ainda várias serrações na cidade, mas de pequenas dimensões. Agora, os troncos de madeira cortados na montanha atravessam a cidade e vão parar a Nayori e Asahikawa. Por isso é que as estradas estão em excelentes condições enquanto a cidade está a morrer aos bocadinhos.

Um camião grande com pneus daqueles com pregos não tem qualquer problema em percorrer uma estrada coberta de neve.

Inconscientemente, levei um cigarro à boca, mas o cheiro a gasolina fez-me pensar duas vezes e tornei a guardá-lo no maço. Em vez disso, pus-me a chupar um rebuçado de limão que encontrei num dos meus bolsos. O sabor do limão misturou-se na minha boca com o odor da gasolina.

-Andam à bulha, os carneiros? - perguntou a minha namorada.

- E de que maneira - afirmou o pastor. - Acontece com todos os animais que vivem em grupo. É preciso ver que entre os carneiros reina uma delicada ordem gregária. Se num redil existir um rebanho composto de cinquenta carneiros, há desde o número um ao número cinquenta. E nenhum deles deixa de ter bem presente o seu lugar na hierarquia.

- Espantoso! - exclamou ela.

- Graças a isso também a minha missão se torna mais simples. Quando conseguimos perceber qual é o elemento mais importante, a partir daí o resto da carneirada vai atrás dele, sem fazer perguntas.

- Mas então, se é verdade que a hierarquia está assim tão bem definida, como é que se explica que andem às lutas?

- Vamos imaginar que um carneiro aparece ferido e começa a dar sinais de fraqueza. Quando isso acontece, a sua posição no seio do rebanho torna-se instável e, então, o que está imediatamente abaixo dele começa a desafiá-lo, a fim de subir um degrau na escala. Nessas alturas, chega a haver combates que duram três dias.

- Coitadinhos!...

- É caso para dizer que cada um tem o que merece. Porque o carneiro que se deixa suplantar, por seu turno, quando era mais novo, também subiu à custa de outro, não sei se está a ver. E, por outro lado, é bom não esquecer que, em chegando ao matadouro, não há número um nem número cinquenta para ninguém. Nessa altura, os carneiros são todos iguais, é tudo o mesmo rebanho a caminho do churrasco.

- Oooooh! - exclamou ela.

- Contudo, vendo bem, ainda mais digno de pena é o macho semental, que é como quem diz, o macho não-castrado. Sabem o que acontece aos machos que estão à frente de um harém, não sabem?

Nós respondemos que não, não sabíamos.

- Quando se criam carneiros, o mais importante é controlar os nascimentos. Por isso é que se separam os machos das fêmeas e só se deixa ficar um único macho no cercado destas últimas. Geralmente, o mais forte, que é como quem diz, o número um. É natural que assim seja, uma vez que, em teoria, é o que dará melhor semente. Passado cerca de um mês, quando ele tiver cumprido a sua missão, o semental é devolvido ao cercado dos machos. Acontece, porém, que durante esse tempo instalou-se ali uma nova ordem hierárquica. E visto que o semental, depois de cobrir as fêmeas todas, perdeu peso, às vezes para metade, ao entrar na liça acaba por perder, por muito valente que seja. Apesar disso, tem de ir à luta e de enfrentar, um por um, todos os seus companheiros. Aí está uma história que mete dó.

- E como lutam os carneiros? - perguntou a minha namorada.

- Andando às marradas uns com os outros. Têm a cabeça dura, como ferro, e nada lá dentro.

A minha amiga ficou calada, mergulhada nos seus pensamentos. O mais certo era estar a imaginar dois carneiros à luta, cabeça contra cabeça.

Passada meia hora de viagem, a superfície pavimentada desapareceu bruscamente da estrada, cuja largura se reduziu a metade. Os bosques escuros que se viam de ambos os lados pareceram precipitar-se de repente sobre o carro, como ondas gigantes. A temperatura ambiente conheceu um nítido arrefecimento.

O caminho era horrível e o jipe dava tantos saltos que mais parecia a agulha de um sismógrafo. Um bidão de plástico com gasolina colocado junto aos meus pés começou a fazer um ruído sinistro: era como se a massa cinzenta andasse aos tombos dentro do cérebro, prestes a sair disparada. Aquele barulho causava-me dores de cabeça.

Não sei dizer se o trajecto feito naquelas condições terá durado vinte minutos ou meia hora. Nem sequer podia ver ao certo as horas no meu relógio de pulso. O que sei é que, durante todo aquele tempo, ninguém disse uma palavra. Agarrei-me com força ao cinto de segurança preso ao assento, enquanto a minha amiga se agarrava ao meu braço direito. O pastor, esse concentrava toda a sua atenção no volante.

- À esquerda - lançou o homem laconicamente, rompendo o silêncio. Surpreendido, deitei uma olhadela para o lado esquerdo da estrada. A parede negra formada por aquele bosque desaparecia subitamente, como se tivesse sido arrancada, para dar lugar a um abismo. O vale era imenso, e a paisagem espectacular, ainda que proporcionando uma visão pouco amena. Nas vertentes rochosas e escarpadas, não havia o menor sinal de vida e, como se fosse pouco, sobre a paisagem flutuava uma espécie de cheiro funesto, ameaçador.

Mais à frente, no extremo do vale, destacava-se uma montanha em forma de cone, estranhamente desprovida de toda e qualquer vegetação. O cimo parecia ter sido entortado por uma força colossal.

O pastor, agarrando com força o volante entre as suas mãos, fez um gesto com o queixo na direcção daquele monte.

-Temos de dar a volta até atingirmos o outro lado.

O vento forte que se fazia sentir, vindo das profundezas do vale, fazia estremecer a folhagem que havia do lado direito e arremessava-a no ar, ao mesmo tempo que projectava a areia fina contra os vidros do carro.

Depois de uma série de curvas perigosas, e à medida que o caminho começava a subir, a ladeira da direita foi diminuindo de altura até se converter num precipício talhado a pique. Não tardou que nos encontrássemos a seguir por uma estreita cornija, apertados contra uma parede de rocha.

De repente, o tempo mudou. O céu, até então de um cinza-claro, aqui e ali deixando entrever ligeiras abertas de azul, tornou-se de um momento para o outro cinzento, tingido de um negrume impenetrável. Acto contínuo, as montanhas circundantes foram-se cobrindo de profundas sombras.

Em redor da montanha, o vento encrespava-se em remoinhos e lançava no ar gemidos sinistros. Limpei a transpiração da testa com a palma da mão. Por baixo da camisola, tinha o corpo empapado de suor frio.

O pastor continuava a virar para a direita, percorrendo aquela que parecia uma curva interminável, enquanto apertava com força os lábios. Depois, como se tivesse ouvido um ruído, desacelerou progressivamente, até que, num sítio onde a estrada se alargava um bocadinho, pôs o pé no travão. O motor, ao parar, envolveu-nos num silêncio gelado. Apenas se ouvia o sopro do vento, varrendo a terra.

O pastor, sempre com as mãos no volante, caiu num longo silêncio. Em seguida, desceu do jipe e calcou por várias vezes o terreno com a sola das suas botas. Saí do carro atrás dele e pus-me a seu lado, olhando o piso da estrada.

- Estamos feitos, o que é que eu dizia? - resmungou o pastor. -Choveu muito mais do que eu pensava.

Para ser franco, não me pareceu que a estrada estivesse molhada. Pelo contrário, tinha todo o aspecto de estar dura e relativamente seca.

- Por dentro está húmida - explicou-me ele. - São muitos os que vão ao engano, levados pelas aparências. Por estas bandas, as coisas, ainda que não o pareçam, são diferentes.

- Diferentes?

Sem se dar ao trabalho de me responder, o homem sacou um cigarro do bolso do casaco. Acto contínuo, acendeu-o.

- Que tal se fôssemos dar uma volta para ver como estão as coisas por aqui?

Fomos andando até à curva seguinte, uns duzentos metros mais adiante. Um frio desagradável colava-se ao corpo. Subi o fecho de correr do anoraque até ao pescoço e levantei a gola. Ainda assim, estava a tiritar.

No ponto onde se iniciava a descida, o guarda da herdade deteve-se e, com o cigarro nos lábios, ficou a olhar fixamente para a parede de rocha que se erguia à nossa direita. Sensivelmente a meio, corria um fio de água que, ao cair, se convertia num riacho e atravessava a estrada, arrastando uma água barrenta, acastanhada. Ao passar o dedo pela superfície rochosa, confirmei que esta era muito mais frágil do que aparentava, pois desfez-se entre os meus dedos.

- Maldita curva - exclamou o homem. - A superfície não se aguenta, mas se fosse só isso! Aquela curva tem qualquer coisa de sinistro. Até os carneiros, ao chegarem aqui, ficam assustados.

O pastor, depois de tossir meia dúzia de vezes, atirou o cigarro para o chão.

-Tenho muita pena, mas não me arrisco a seguir em frente com o jipe.

Assenti em silêncio.

- Acha que conseguimos fazer o resto do caminho a pé?

- Sem problemas. O que me preocupa são as vibrações. É saber se o terreno aguentará o nosso peso.

O pastor tornou a dar outro pontapé enérgico contra o piso da estrada. Uma fracção de segundo mais tarde, ouviu-se um ténue ruído surdo. Um barulho tenebroso.

- Aguenta. Podem seguir em frente.

; Demos meia-volta e regressámos ao jipe.

- A partir daqui são mais quatro quilómetros - disse o pastor, caminhando a meu lado. - Mesmo com a rapariga, dentro de hora e meia estará lá. O caminho é todo seguido, sem bifurcações nem grandes subidas. Desculpem lá por não os poder levar até ao fim.

- Não tem importância. Obrigado por tudo.

- Pensam ficar muito tempo lá em cima?

- Não sei. Tanto podemos estar de volta amanhã como demorar uma semana. Depende de como correrem as coisas.

O homem levou outro cigarro à boca, só que desta vez começou a tossir antes mesmo de o acender.

- Seja como for, é melhor irem com cuidado. Da maneira como as coisas estão, parece que este ano vamos ter neve mais cedo. E assim que começar a nevar, não têm como sair dali.

- Estaremos atentos - prometi eu.

-Têm uma caixa de correio junto à porta principal. A chave está escondida lá no fundo. Se não estiver ninguém em casa, usem essa chave para entrar.

Debaixo de um céu nublado e ameaçador, descarregámos a bagagem do jipe. Troquei o anoraque por uma parca mais grossa, mas nem assim consegui afastar o frio que se agarrava à minha pele.

O pastor, depois de andar para a frente e para trás, sempre a bater na parede de rocha, lá conseguiu fazer inversão de marcha com o jipe. De cada vez que chocava, o duro granito do penhasco desmoronava-se um bocadinho e caía em matacões. Terminada a manobra, tocou a buzina e agitou a mão, em jeito de despedida. Pela minha parte, fiz o mesmo. O jipe fez a curva e desapareceu do nosso ângulo de visão. Ficámos sozinhos. A sensação com que fiquei foi a de que tínhamos sido abandonados ao nosso destino, ali nos confins do mundo.

Depositámos as mochilas no chão e, à falta de alguma coisa para dizer, contemplámos a paisagem. No fundo do vale que se estendia diante de nós, entre duas ribeiras cobertas pela densa verdura do bosque, um rio descrevia uma curva suave, formando como que uma estreita faixa prateada. Mais ao longe, para lá do vale, serpenteava uma cadeia formada por pequenas colinas que mostravam em toda a sua exuberância as cores do Outono. E, ainda mais além, distinguiam-se os contornos indefinidos de uma planície. Várias colunas de fumo elevavam-se no ar, por cima dos arrozais, onde, uma vez terminada a colheita, queimavam a palha. Um panorama arrebatador, é certo, mas que em nada me alegrava. Tudo aquilo me parecia frio e distante, como se pertencesse a outro mundo.

O céu estava coberto de nuvens, espessas e carregadas de água - nuvens essas que pareciam formar um grande manto de um cinzento uniforme. Por baixo daquele manto, deslizavam, quase ao alcance da mão, nuvens negras e pesadas. Parecia que bastava estender o braço para tocar nelas com a ponta dos dedos. As nuvens precipitavam-se para leste a uma velocidade espantosa. Oriundas do continente, sobrevoavam o mar do Japão, atravessavam a ilha de Hokkaido e perdiam-se, voando em direcção ao mar de Okhotsk. Enquanto contemplava, de pé ali parado, aquela massa de nuvens que ia e vinha sem parar, tornou-se evidente aos meus olhos o arriscado da situação em que nos encontrávamos. Bastaria um sopro caprichoso dos elementos da Natureza para que aquela frágil cornija encostada à falésia - e nós com ela, escusado dizer - se precipitasse no abismo aos nossos pés.

- Temos de nos despachar - disse eu, equilibrando às costas a pesada mochila. Era conveniente abandonar aquelas paragens antes de sermos surpreendidos pela chuva ou pelo granizo e, por outro lado, desejava encontrar-me o mais depressa possível debaixo de um tecto. Não é propriamente agradável andar empapado num lugar frio daqueles.

Caminhando a bom passo, ultrapassámos a sinistra curva. Tal como o pastor dissera, aquele lugar era prenúncio de mau agouro. O meu corpo deu vagamente por isso logo de início, mas essa sensação funesta acabou por atingir um lugar qualquer do meu cérebro,funcionando como um sinal de aviso. Uma sensação semelhante à que se tem quando, ao atravessar um rio, se mete o pé num sítio onde a água está a uma temperatura diferente.

Enquanto percorríamos aqueles quinhentos metros de intermináveis curvas, o ruído dos nossos passos sobre a terra despertou os mais diversos ecos. Vários regatos de água fresca e borbulhante, serpenteando, atravessaram-se no nosso caminho.

Depois de passada a curva, continuámos a avançar a bom ritmo, para ver se nos afastávamos o mais possível daquele lugar. Por fim, após uma meia hora de marcha, a rugosidade da parede rochosa foi-se suavizando e começaram a aparecer algumas árvores. Respirámos fundo e sentimos aliviar a tensão acumulada nos nossos corpos.

O mais difícil havia ficado para trás. O caminho era agora cada vez mais plano, a aspereza que antes nos rodeava começava a adquirir contornos mais suaves e, pouco a pouco, encontrámo-nos mergulhados na típica paisagem de planalto. Os pássaros começaram a deixar de se ver.

Após uma outra meia hora de marcha, perdemos de vista o estranho monte em forma de cone e chegámos a uma extensa superfície plana, lisa como uma mesa. A planura estava rodeada por uma cadeia montanhosa a pique que cortava o horizonte. Dava a impressão de que o cimo de um vulcão se afundara inteiramente na cratera. Um mar de bétulas-brancas, douradas pelo Outono, estendia-se a perder de vista. Entre as bétulas-brancas cresciam arbustos de cores vivas, bem como ervas finas. De vez em quando encontrávamos pela frente um arbusto derrubado pelo vento que, ao apodrecer, ia ganhando a cor da terra.

- Parece ser um local agradável - comentou a minha amiga. Com efeito, agora que deixáramos para trás aquela curva sinistra, as coisas pareciam mais animadoras.

Um único caminho abria-se, sempre a direito, diante de nós, cruzando o mar de bétulas-brancas. Tratava-se de um caminho sem curvas nem vertentes, por onde o jipe poderia perfeitamente circular. Olhando em frente, tudo confluía num único ponto. Mesmo as nuvens negras fugiam directamente por cima desse ponto.

E, contudo, reinava um profundo silêncio. A imensa floresta absorvia até o rumor do vento. De quando em quando, vindo não se sabe de onde, aparecia um pássaro negro e bem nutrido, que rasgava o ar com o seu grito agudo. Mal o pássaro desaparecia, o silêncio voltava a colmatar o vazio, como um líquido viscoso preenchendo os interstícios de uma fenda. As folhas caídas que sepultavam o caminho estavam empapadas de humidade devido à chuva que caíra dois dias antes. Tirando os pássaros, nada quebrava o silêncio. A estrada parecia não ter fim, e o mesmo acontecia com o bosque de bétulas-brancas. Até as nuvens baixas que, momentos antes, tanto nos tinham oprimido, vistas através da ramagem pareciam agora irreais.

Após quinze minutos de marcha, fomos dar a um riacho de águas límpidas, sobre o qual haviam construído uma sólida ponte feita de troncos de bétula e munida de uma balaustrada; mais adiante, via-se uma pequena clareira. Pousámos a bagagem e descemos até ao rio para matar a sede. Nunca tinha bebido uma água tão deliciosa. De sabor ligeiramente doce, com um agradável odor a terra, e tão fresca que fiquei com as mãos vermelhas.

As nuvens seguiam o seu curso, imperturbáveis, mas o tempo parecia aguentar-se. Enquanto a minha namorada apertava de novo os atacadores das suas botas de montanha, sentei-me em cima da balaustrada e aproveitei para fumar um cigarro. Lá de baixo, por onde corria o rio, chegava-nos o som de uma queda-d'água. A julgar pelo rumor brando, não devia ser uma cascata muito grande. Vinda da nossa esquerda, uma brisa caprichosa fez ondular aquele mar de folhas caídas, antes de se desvanecer pela direita.

Acabei o meu cigarro, atirei-o ao chão para o apagar com o pé, e foi então que vi outra beata esmagada ao lado da minha. Agachei-me e peguei nela. Era de um Seven Stars. Como estava seca, deduzi que devia ter sido fumada depois da chuvada. Que é como quem diz, na véspera ou nesse mesmo dia.

Tentei puxar pela memória e lembrar-me da marca de tabaco que o Rato fumava, mas em vão. Nem sequer tinha a certeza de que ele fumava. Desisti e lancei a beata ao rio. As suas águas fizeram-na desaparecer corrente abaixo enquanto o diabo esfrega um olho.

- O que era isso? - quis saber a minha amiga.

- Encontrei uma beata recente - respondi. - O que significa que alguém deve ter estado aqui sentado a fumar um cigarrinho, como eu.

- Achas que terá sido o teu amigo?

- Quem sabe?

Ela veio sentar-se a meu lado, apanhou o cabelo com as duas mãos e mostrou-me as orelhas, coisa que não fazia há já muito tempo. O murmúrio da cascata apaziguou-se momentaneamente, depois regressou com mais força.

- Continuas a gostar das minhas orelhas? - perguntou ela. Sorri, ao mesmo tempo que esticava a mão e tocava no lóbulo com a ponta dos dedos.

- Bem sabes que sim - disse eu.

Ao cabo de outros quinze minutos de marcha, o carreiro terminava bruscamente. Também o mar de bétulas-brancas, como se tivessem sido todas cortadas nesse ponto, acabava ali. Diante de nós estendia-se uma pradaria, vasta como um lago.

Em redor da pradaria, colocadas com intervalos de cinco metros, viam-se as estacas que sustentavam uma cerca de arame farpado toda enferrujada. Pelos vistos, tínhamos finalmente chegado ao local de pasto dos nossos carneiros. Empurrei a cancela de madeira, muito desgastada pelo tempo, abri-a e entrámos. A erva era tenra, a terra enegrecida pela humidade.

Sobre a pradaria, nuvens negras sulcavam o céu. Na direcção que seguiam, erguia-se um friso de altas montanhas escarpadas. O ângulo de visão era diferente, claro está, mas tratava-se, sem sombra de dúvida, da montanha que a fotografia do Rato mostrava. Nem sequer precisei de a ver para ter a certeza.

E, contudo, não deixava de se revelar espantoso, a sensação de ter diante dos olhos uma paisagem que se viu centenas de vezes numa fotografia. A perspectiva em profundidade pareceu-me francamente artificial. A minha impressão foi a de que aquela paisagem não havia forma de ser real, que alguém a tinha fabricado à pressa para que estivesse de acordo com a fotografia.

Apoiado na barreira, suspirei. Afinal de contas, tínhamos finalmente encontrado aquilo de que andávamos à procura. Pondo de lado a questão de saber quais as consequências que essa busca pudesse vir a ter, o facto em si era incontornável. Sabia apenas que o tinha encontrado.

- Chegámos! - exclamou a minha amiga, apertando-me ao de leve o braço.

- Sim, chegámos - repeti. Não havia nada mais a dizer.

À nossa frente, do outro lado da pastagem, via-se uma casa de madeira de dois andares, ao estilo das casas rurais americanas. Era a casa mandada construir quarenta anos antes pelo Professor Carneiro, e posteriormente comprada pelo pai do Rato. À falta de algo que me servisse de termo de comparação, era difícil, assim à primeira vista, avaliar o seu tamanho real. Em todo o caso, tratava-se de uma construção atarracada e inexpressiva, não havia volta a dar-lhe. Debaixo daquele céu nublado, a pintura branca da sua fachada adquiria um brilho mate e funesto. Uma chaminé quadrada feita de tijolos destacava-se no meio do telhado de duas águas cor de mostarda, quase ferrugem. No lugar de cercas, a casa estava rodeada a toda a volta por um conjunto de vetustas árvores de folha perene, cujos ramos a mantinham protegida das intempéries. Era estranha, mais nada. Bizarro, isso sim, era a casa dar a sensação de não estar habitada, e quanto mais olhava para ela, mais reforçava o meu ponto de vista. Não se podia dizer que fosse particularmente inóspita ou fria, nem tão-pouco que a sua arquitectura causasse estranheza ou a cair aos bocados. Era apenas... estranha. Parecia uma criatura gigantesca que tivesse envelhecido sem nunca conseguir exprimir os seus sentimentos. Não pelo facto de não saber como expressá-los, mas por não ter o que expressar.

De repente o cheiro da chuva estava por todo o lado, à nossa volta. O melhor era não demorarmos muito e seguir em frente. Atravessámos o prado em linha recta, a caminho da casa. Vindas de oeste, aproximavam-se agora nuvens espessas, a ameaçar chuva, que já nada tinham que ver com os pequenos flocos de uns momentos antes.

A pastagem era tão vasta que parecia nunca mais acabar. Por mais que apressássemos o passo, não tínhamos a sensação de estar a progredir no terreno. Como se tivéssemos perdido todo e qualquer sentido das distâncias.

Pensando bem, não me lembrava de alguma vez na minha vida ter andado num terreno plano tão extenso. Tive a impressão de conseguir adivinhar a direcção do vento que soprava a quilómetros de distância.

Um bando de pássaros passou a voar por cima da nossa cabeça em direcção ao Norte, rasgando as nuvens a grande velocidade.

Quando, muito tempo depois, chegámos ao pé da casa, já tinha entretanto começado a chover. Era maior e mais velha do que ao longe parecia. Em diversos lugares, a tinta branca formara bolhas e desprendera-se, como a crosta de uma ferida e, nos pontos onde ficava à vista, a madeira mostrava-se escurecida pelos longos anos de exposição à chuva. Atendendo ao avançado estado de deterioração, para tornar a pintá-la seria preciso descascar por completo a camada antiga de tinta e voltar a tapar os buracos. Só de imaginar o trabalho que aquilo daria - e é bom de ver que nem sequer era problema meu -, fiquei desanimado. É certo que uma casa desabitada tende a ficar em ruínas, e esta, sem sombra de dúvida, já ultrapassara o ponto em que a recuperação ainda teria sido possível.

Em contraste com o envelhecimento da construção, as árvores à volta tinham crescido sem parar, envolvendo-a por completo, à imagem e semelhança do que acontecia com a casa na árvore feita de troncos de madeira que aparecia na série A Família Robinson. Havia muito que ninguém se dava ao trabalho de podar as árvores, de modo que os galhos se propagavam livremente em todas as direcções.

Atendendo ao caminho escarpado e tortuoso que acabara de percorrer a fim de chegar àquela casa, não pude deixar de pensar nas dificuldades experimentadas pelo Professor Carneiro, na hora, isto é, quarenta anos antes, de transportar todo o material necessário à sua construção. Ele devia ter enterrado ali, literalmente, o resto das suas energias e da sua fortuna, estou certo disso. A lembrança do Professor Carneiro, enclausurado naquele quarto do segundo andar no Hotel Golfinho, em Sapporo, fez-me cair a alma aos pés. Se, em boa verdade, existiam no mundo vidas que não sabiam o que era uma justa recompensa, a do Professor Carneiro era uma delas.

Ali de pé, apesar da chuva gelada, levantei os olhos para a casa. Mesmo de perto, continuava a parecer-me tão vazia como ao longe. Nas persianas de madeira das janelas, altas e estreitas, de vidros duplos, tinham-se acumulado vários centímetros de areia fina e pó. A chuva tinha conferido a essa camada de terra formas estranhas e caprichosas, sobre as quais tinham aderido, por seu turno, novas capas de terra, que por sua vez novas chuvadas tinham voltado a consolidar, num processo sempre renovado.

Na porta de entrada, à altura dos olhos, via-se um postigo quadrado de vidro com cerca de dez centímetros, mas do lado de dentro havia uma cortina que não deixava ver o interior da casa. A areia, que tinha conseguido infiltrar-se também nos interstícios da maçaneta de cobre, desprendeu-se e caiu para o meio do chão ao contacto no momento que lhe toquei. Na minha mão, a maçaneta baloiçava como um velho molar, mas a porta antiga, feita de três pranchas de carvalho justapostas, era mais resistente do que à primeira vista parecia. Bati com força duas ou três vezes, usando o punho, mas ninguém respondeu, conforme eu já esperava. Só serviu para ficar com a mão dorida. O vento fez agitar os ramos de um gigantesco carvalho, produzindo sobre as nossas cabeças o clamor de uma duna a desmoronar-se.

Seguindo as instruções do guardador de rebanhos, tacteei o fundo da caixa de correio. A chave estava pendurada num gancho metálico, na parede lateral da caixa. Era de cobre, antiquada, e muito desgastada pelo uso.

- Não achas que é falta de cuidado deixar a chave num sítio desses? - perguntou a minha amiga.

- Que ladrão se daria ao trabalho de vir tão longe para roubar? Não te esqueças de que depois teria de carregar o produto do roubo...

A chave ajustou-se à fechadura com uma precisão extraordinária. Girou na minha mão, ouviu-se um agradável estalido, e a porta abriu-se.

Lá dentro estava anormalmente escuro; de tão escuro, nem parecia natural. Como as persianas estavam fechadas, até que os nossos olhos se habituassem demorou um certo tempo. A escuridão parecia ter-se infiltrado em todos os recantos.

A sala era ampla. Espaçosa, respirava tranquilidade e cheirava a celeiro velho. Um cheiro que fazia lembrar a minha infância. Que me trazia à memória móveis antigos e objectos usados. Fechei a porta nas minhas costas e, acto contínuo, o rumor do vento deixou de se ouvir.

- Olá! - gritei. - Está alguém em casa?

Escusado dizer que era inútil estar aos gritos. Obviamente que não havia ali ninguém. Apenas o relógio de pêndulo, ao lado da lareira, marcava a passagem do tempo com o seu tiquetaque compassado.

Por breves momentos, senti a cabeça às voltas. Ali, no meio do escuro, o tempo regrediu. Uma quantidade de episódios, distantes no tempo e no espaço, sobrepuseram-se uns aos outros. As recordações desmoronaram-se como castelos de cartas. Depois, numa questão de segundos, acabou tudo. Quando voltei a abrir os olhos, as coisas tinham voltado ao normal. Diante de mim, havia apenas um espaço grande e vazio, estranho de tão anódino, mais nada.

- Estás bem? - perguntou-me ela, preocupada.

- Não foi nada - respondi. -Vamos entrar.

Enquanto ela procurava o interruptor da luz, examinei o relógio à luz da penumbra. Era do tipo a que se dá corda puxando três correntes e levantando os contrapesos na extremidade até cima. Os três pesos estavam descidos até ao fundo de tudo, mas o relógio continuava a trabalhar, num derradeiro e desesperado esforço. Atendendo ao comprimento das correntes, seria preciso quase uma semana para que os pesos ficassem completamente em baixo. Isso queria dizer que estivera ali alguém há coisa de uma semana, e que essa pessoa tinha dado corda ao relógio.

Puxei as três correntes para cima e, depois, sentei-me no sofá, a descansar as pernas. Era um velho sofá que parecia do tempo antes da guerra, mas bastante confortável. Nem demasiado mole, nem demasiado duro, além de cheirar ligeiramente como a palma das mãos.

Ouviu-se um dique e a luz acendeu-se. Vinda da cozinha, apareceu a minha amiga, sentou-se numa cadeira e acendeu um cigarro mentolado. Fiz o mesmo. Desde que começara a andar com ela, aprendera a gostar dos mentolados.

- Parece que o teu amigo vinha com a intenção de passar o Inverno aqui - disse ela. - Ainda só dei uma vista de olhos à cozinha, mas encontrei lenha e provisões que chegam e sobram para um Inverno inteiro. Aquilo mais parece um supermercado.

- Sim, mas até agora nem sinal dele.

- Que tal irmos ver lá em cima?

Subimos os degraus que havia ao lado da cozinha. A meio caminho, a escada curvava e formava um ângulo esquisito. Chegados ao andar de cima, parecia que tínhamos entrado numa atmosfera diferente.

- Estou com dores de cabeça - queixou-se ela.

- Dói-te muito?

- Nada do outro mundo. Deixa estar, não te preocupes. Estou habituada.

Havia três quartos no andar de cima. O maior ficava à esquerda do corredor, e os dois mais pequenos, do lado direito. Abrimos uma a uma as portas dos quartos. Estavam todos três vazios, decorados com um mínimo de mobiliário e mergulhados na escuridão. No maior, havia uma cama de casal e um toucador. A cama não tinha lençóis nem cobertas. Havia no ar um cheiro a tempo morto.

Apenas no quarto mais pequeno, ao fundo, havia vestígios de uma presença humana. A cama estava feita, na perfeição, o travesseiro apresentava uma ligeira concavidade a meio, e ao lado via-se um pijama verde cuidadosamente dobrado. Em cima da mesa-de-cabeceira, um modelo antiquado de candeeiro e, mesmo ao pé dele, um livro aberto e voltado para baixo. Um romance de Conrad.

Junto à cama existia uma robusta cómoda de carvalho. Guardado nas gavetas, havia camisolas de homem, camisas, calças, meias de homem e roupa interior, tudo muito bem arrumado. As camisolas de malha e as camisas estavam velhas e puídas, descosidas aqui e ali, mas via-se que era roupa de boa qualidade. Lembrava-me de algumas daquelas peças de roupa. Para começar, pertenciam ao Rato. Camisas tamanho 37, calças número 40, se não estou em erro.

Ao lado da janela havia uma secretária e uma cadeira, ambas antigas e com um desenho simples, móveis que há já muito tempo que tinham deixado de ser fabricados. Na gaveta da escrivaninha, encontrei uma caneta de tinta permanente barata, três caixas de recargas de tinta e papel de carta e sobrescritos. O papel de carta estava por estrear. Na segunda gaveta estava uma latinha de pastilha contra a tosse meio cheia e alguns objectos do mesmo género. A terceira estava vazia. Não havia sinais de um diário, de um caderninho de notas, nada. Pelos vistos, alguém tratara de recolher o que era supérfluo e livrara-se de tudo. Estava tudo demasiado bem arrumado, para o meu gosto. Passei o dedo pelo tampo da escrivaninha, na ponta do dedo ficou agarrada uma camada branca de pó. Nada de especial. Talvez a poeira acumulada ao longo de uma semana.

Subi o vidro da janela que dava para a pastagem e abri as persianas. As nuvens negras pareciam voar ainda mais baixo. O vento soprava com força, fazendo o pasto contorcer-se como um ser vivo. Mais ao longe, avistava-se o bosque de bétulas e, ainda mais ao fundo, as montanhas. Era a paisagem que aparecia na fotografia, sem tirar nem pôr. Só faltava o carneiro.

Regressámos ao andar de baixo e sentámo-nos no sofá. O carrilhão do relógio de pêndulo disparou e logo a seguir soaram doze badaladas. Ficámos em silêncio até que o último eco se desvaneceu no ar.

- Que pensas fazer? - quis saber ela.

- Agora não temos outro remédio senão esperar - disse eu. -Até há coisa de uma semana, o Rato esteve aqui. As suas coisas ainda cá estão. Portanto, ele faz tenções de voltar.

- Mas se antes disso cair um grande nevão, seremos obrigados a passar o Inverno todo neste sítio. E, nesse caso, acaba o prazo de um mês que te foi dado, e nós nada.

Bem visto.

- E as tuas orelhas, que te dizem elas?

- Nada. Dói-me a cabeça quando tento ouvi-las.

- Bom, nesse caso vamos esperar calmamente pelo regresso do Rato, aqui mesmo - disse eu.

Por outras palavras, não nos restava outra alternativa.

Enquanto ela preparava o café na cozinha, aproveitei para explorar a sala e examinar ao pormenor todos os recantos. A meio de uma das paredes havia uma lareira a sério, limpa e pronta a ser usada a qualquer momento, isto apesar de não haver indícios de ter sido acendida recentemente. Algumas folhas de carvalho haviam entrado pela chaminé e tinham ficado coladas ao canto do fogão. Além da lareira, via-se ainda um aquecedor a petróleo para os dias menos frios. A agulha do mostrador indicava que o depósito estava cheio.

Ao lado da lareira havia um armário embutido com portas de vidro, e nas suas prateleiras alinhava-se uma quantidade considerável de livros antigos. Passei em revista os títulos, peguei em meia dúzia deles e folheei-os. Todos publicados antes da guerra, a maioria sem grande interesse. Eram quase todos obras de geografia, ciências, história, filosofia e política. Quando muito, serviam para aumentar a bagagem cultural de um intelectual de há quarenta anos. É certo que também havia um ou outro volume editado depois da guerra, mas não se podia dizer que tivesse mais valor. Apenas As Vidas de Plutarco, uma antologia de tragédias gregas e mais dois ou três livros escapavam ao desgaste do tempo. Podia ser que, apesar da evidente mediocridade dos seus títulos, ter aquela colecção de livros à mão ajudasse a passar os longos dias e noites de Inverno. Ainda que, para ser sincero, tenha de confessar que nunca na minha vida tinha visto tamanha colecção de livros tão pouco valiosos reunidos no mesmo sítio.

Ao pé da estante viam-se algumas prateleiras e, numa delas, uma aparelhagem estereofónica - composta de gira-discos, amplificador e colunas - daquelas que estavam na moda em meados da década de 1960. Havia ainda cerca de duzentos discos, antigos e bastante riscados, mas esses, ao menos, sempre tinham algum valor. A música não se altera tanto devido à acção do tempo quanto as ideologias. Liguei o amplificador, peguei num disco ao acaso e pousei sobre ele a agulha. Nat King Cole cantava «South of the Border»(26). O ambiente pareceu voltar aos anos 50.

Na parede da frente existiam quatro janelas de quase dois metros de altura, dispostas a intervalos regulares. Da janela avistei a pradaria cinzenta varrida pelo vento. A chuva caía agora com mais força, e a linha das montanhas parecia distante e diluída na obscuridade.

O pavimento da sala era de madeira, e no centro via-se um grande tapete com três metros de largura por quatro de comprimento (formado por seis tatami(27), em cima do qual havia um conjunto de sala de estar e um candeeiro de pé. A mesa de jantar encontrava-se mais afastada, a um canto, coberta de poeira esbranquiçada.

Uma sala verdadeiramente despojada.

A porta escondida numa das paredes levava a um quarto de arrumos quase tão grande como o tapete. Estava atulhada até ao tecto de toda a espécie de quinquilharia, coisas que iam desde móveis que já não estavam a uso, tapetes tatami, panelas, tacos de golfe,

 

*26. Em South of the Border, West of the Sun, romance de Murakami posterior a este, Nat King Cole continua a dar o tom à narrativa. (N. da T.)

  1. Esteiras feitas de palha de arroz entrelaçada e junco que cobrem o chão. Têm uma medida-padrão consoante a região e a área da sala é muitas vezes medida pelo número de esteiras. (N. da T.)

 

objectos decorativos, uma guitarra, passando por um colchão, casacos, sapatos de alpinismo e até revistas antigas. Nem sequer faltavam livros de estudo com testes de exame para quem estivesse quase a acabar o secundário e um avião telecomandado.

No interior daquela casa, o tempo passava estranhamente, ao seu próprio ritmo. O mesmo acontecia com o antiquado relógio de pêndulo do tempo dos avós que existia na sala de estar. As pessoas que por ali apareciam lembravam-se de dar corda ao relógio e, desde que o peso ficasse lá no alto, o tempo passava ao ritmo do seu tique-taquear. A partir do momento em que as pessoas desapareciam de cena e o peso baixava, o tempo quedava-se nesse exacto ponto. E então os pedaços de tempo parado acumulavam-se no chão, formando camadas em cima de camadas de vida desenxabida.

Apanhei algumas revistas de cinema antigas, voltei à sala de estar e entretive-me a folheá-las. A capa de uma delas mostrava uma cena do filme Álamo, que marcava a estreia de John Wayne como realizador de cinema, contando para o efeito com o apoio incondicional do cineasta John Ford, dizia o artigo. «Quero fazer um grande épico que toque bem fundo o coração de todos os americanos», declarava John Wayne. Com aquele gorro de pele de castor que ele usava no filme, confesso que a imagem não ajudava muito.

A minha namorada apareceu na sala com o café, e ficámos sentados de frente um para o outro enquanto o bebíamos. Gotas de chuva batiam intermitentemente na janela. A pouco e pouco, o tempo começou a pesar e a dissolver-se no lusco-fusco, alastrando a toda a sala. A claridade amarelada da lâmpada flutuava como pólen no ar.

- Cansado? - perguntou ela.

- Acho que sim - respondi, olhando distraidamente pela janela. - Esta paragem brusca, depois de dias de intensa busca... A verdade é que ainda não me consegui adaptar. Além disso, depois de tudo o que passámos para dar com a paisagem da fotografia, chegámos aqui e não encontrámos nem o Rato nem o carneiro.

-Vai dormir um bocadinho, enquanto eu trato do almoço. Ela foi ao andar de cima buscar uma manta e tapou-me com ela. Ligou o aquecedor, pôs um cigarro na boca e acendeu-o.

- Anima-te. Tenho a certeza de que irá correr tudo pelo melhor.

- Obrigado - disse eu.

Depois foi para a cozinha e deixei de a ver.

Assim que fiquei sozinho, fui invadido por uma súbita lassidão. Dei duas passas, apaguei o cigarro, puxei a manta até ao pescoço e fechei os olhos. Demorei apenas alguns segundos a adormecer.

 

Quando o relógio deu as seis, acordei no sofá. A luz estava apagada, e o quarto estava mergulhado nas profundas trevas que são prenúncio da noite. Sentia o corpo dormente, desde a ponta dos dedos até à medula dos ossos. A escuridão era como tinta infiltrando-se por todos os poros do meu corpo.

A chuva parecia ter parado, uma vez que através da janela chegava até mim o canto dos pássaros nocturnos. Apenas a chama do aquecedor iluminava a sala, projectando sobre a parede branca sombras ténues e indefinidas, extraordinariamente longas. Levantei-me do sofá, acendi o candeeiro de pé, fui até à cozinha e bebi dois copos de água fresca. Sobre o fogão, o resto do guisado ainda se conservava quente. As beatas de dois cigarros estavam esmagadas no cinzeiro.

Instintivamente, soube que ela se tinha ido embora. «Ela já não está aqui comigo», dizia o meu cérebro.

Ela já não estava ali, era uma certeza, e não uma mera teoria. De facto, ela já não ali estava. A atmosfera vazia da casa dizia-me isso, de forma incontornável. Era o mesmo doloroso vazio que eu sentira nos dois meses entre a partida da minha mulher e o meu encontro com ela.

Por descargo de consciência, subi as escadas e examinei, um a um, os três quartos, indo ao ponto de abrir até os armários. Não encontrei sinais dela, nem da sua mala, nem do seu casaco. As suas botas de montanha, que deixara à entrada da casa, também haviam desaparecido.

Ela tinha-se ido embora, sem sombra de dúvida. Fui percorrendo, um a um, todos os sítios onde ela poderia ter-me deixado ficar uma nota de despedida, mas não encontrei nada. Àquela hora, já ela devia ter chegado ao sopé da montanha.

Não conseguia aceitar o facto de ela ter desaparecido. Tinha acabado de acordar, é certo, e o raciocínio estava lento, mas mesmo que a cabeça estivesse a funcionar como deve ser, aquilo - bem como todos os acontecimentos que se tinham vindo a desenrolar à minha volta - escapava por completo à minha capacidade de compreensão. Posto de outro modo: só me restava deixar que as coisas seguissem o seu curso.

Sentado no sofá, perdido nos meus pensamentos, apercebi-me de repente de que estava com fome. Uma fome devoradora.

Desci as escadas da cozinha e fui à despensa improvisada, onde abri uma garrafa de vinho tinto. Provei-o. Estava demasiado frio, mas ainda assim aceitável. De volta à cozinha, cortei algumas fatias de pão e descasquei uma maçã. Enquanto esperava que o guisado aquecesse, bebi três copos de vinho.

Quando o guisado ficou pronto, levei tudo para a mesa da sala e jantei ao som do tema «Perfídia», interpretado pela Percy Faith Orchestra. Depois da refeição, bebi o restinho do café e fiz uma paciência com um baralho de cartas que encontrei por cima da lareira. Entretive-me com uma variedade desse passatempo, inventado por um inglês no século XIX, e que tinha sido bastante popular numa certa e determinada altura, mas que depois fora votado ao esquecimento por causa das suas regras, demasiado complexas. Segundo cálculos de um matemático, a percentagem de êxito neste jogo era de uma em cada 25 vezes. Joguei por três vezes. Sem êxito, escusado será dizer. Devolvi o baralho ao seu lugar em cima da lareira, levantei os pratos da mesa e acabei com o vinho que ficara no fundo da garrafa.

Do lado de fora da janela, a noite instalara-se. Fechei as janelas, deitei-me no sofá e continuei a ouvir uma série de velhos discos riscados.

Será que o Rato voltaria a aparecer por aquelas bandas?

Tinha quase a certeza que sim. Afinal, dera-se ao trabalho de armazenar víveres e lenha para passar o Inverno ali naquela casa.

Quase a certeza, mas não a certeza absoluta. Podia muito bem ter acontecido que o Rato se tivesse fartado de tudo e regressado à civilização.

Ou, então, se calhar descera a montanha, travara conhecimento com alguma rapariga e estava agora a viver com ela, sabe-se lá onde. Tudo era possível.

Nesse caso, em qualquer dos casos, melhor dizendo, eu estava em maus lençóis. Se tanto o Rato como o carneiro continuassem desaparecidos, o prazo de um mês que me fora concedido chegaria ao fim. E então o homem de fato preto não tardaria a arrastar-me com ele para aquilo a que ele chamaria o seu Cotterdàmmerung, o crepúsculo dos deuses. Por mais que fosse completamente absurdo responsabilizar-me por tudo aquilo, era isso que ele faria. Dali não havia nada de bom a esperar.

O mês de prazo que me tinha dado já ia a meio. Estávamos na segunda semana de Outubro, a época do ano em que as cidades se revelam em todo o seu esplendor. Caso nada disto tivesse acontecido, o mais certo era eu agora estar sentado num bar qualquer, a comer a minha omeleta e a beber o meu uísque. Um belo momento do dia de uma estação agradável. Final do dia, com o ar lavado depois de mais um aguaceiro, a trincar pedacinhos do gelo no copo de uísque ao balcão sólido de madeira de um bar qualquer, assistindo, impávido e sereno, ao tempo que flui com a tranquilidade de uma corrente mansa.

Enquanto divagava sobre isso, comecei a imaginar que existia um outro eu algures no mundo, àquela hora, sentado a beber tranquilamente um uísque num barzinho qualquer. E quanto mais ruminava naquilo, mais o outro «eu» era o «eu» real. Havia qualquer coisa que não encaixava e o meu verdadeiro «eu» deixara de ser o «eu» real.

Abanei a cabeça para combater as quimeras.

Lá fora, os pássaros nocturnos continuavam a piar baixinho.

Subi ao andar de cima e fiz a cama no quartinho que o Rato não tinha utilizado. Colchão, lençóis e cobertores, estava tudo arrumado e empilhado num armário que ficava ao lado da escada.

Os móveis desse quarto eram parecidos com os do quarto do Rato. Mesinha-de-cabeceira, escrivaninha, cómoda e candeeiro. Objectos antiquados, e porventura pouco elegantes, é certo, mas fabricados numa época em que a funcionalidade contava acima de tudo. Sem pormenores supérfluos.

Como seria de esperar, da janela próxima da cabeceira da cama também se avistava a campina. A chuva deixara por completo de cair, e as densas nuvens começavam a esgarçar-se aqui e ali. Por esses interstícios, mostrava-se volta e meia uma espantosa meia-lua, que revelava com nitidez a paisagem da pradaria. A imagem lembrou-me o fundo do mar varrido por um projector.

Mergulhei na cama sem mudar sequer de roupa e deixei-me ali ficar a observar aquele cenário que aparecia e desaparecia como que por magia. Por momentos, a imagem da minha amiga, contornando sozinha a curva sinistra e a descer a montanha, sobrepôs-se aos meus pensamentos. Quando essa imagem se desvaneceu, foi substituída por um rebanho de carneiros, com o Rato a fazer as vezes de fotógrafo. Às tantas, a Lua escondeu-se por trás das nuvens e, quando tornou a aparecer, também a visão do Rato tinha desaparecido.

Li As Aventuras de Sherlock Holmes à luz da lâmpada.

 

Um bando de pássaros barulhentos de uma espécie aos meus olhos desconhecida agarrava-se aos galhos de um castanheiro que havia à entrada da casa como enfeites numa árvore de Natal. Lá fora, tudo cintilava, húmido de chuva.

Tostei pão numa dessas torradeiras pré-históricas do tempo da outra senhora, do tipo em que ainda se vira o pão à mão. Deitei um bocadinho de manteiga na frigideira, fiz um ovo estrelado e bebi dois copos de sumo de uva que encontrei no frigorífico. Sem a minha amiga, sentia-me só e abandonado, mas o simples facto de me sentir sozinho era, de certo modo, reconfortante. Não é assim tão mau quanto isso, uma pessoa sentir na pele a solidão. Imagino que deva ser parecido com o silêncio que se instala no galho do castanheiro depois de os passarinhos terem partido em revoada.

Lavei os pratos, fui à casa de banho limpar os vestígios da gema de ovo nos cantos da boca e lavei os dentes durante uns bons cinco minutos. Depois de grandes hesitações, lá me decidi a fazer a barba. Em cima do lavatório, havia um conjunto de creme de barbear e um aparelho de barbear Gillette quase novos, bem como escova e pasta de dentes, sabonete, loção para depois de barbear e até água-de-colónia. Na prateleira, dez toalhas de diferentes cores, muito bem dobradas e arrumadas. No espelho e no lavatório não se via uma única mancha. Tudo muito bem organizado na perfeição, ao bom velho estilo do Rato.

Tanto o sanitário como a banheira ao estilo japonês obedeciam, em linhas gerais, ao mesmo padrão. As juntas entre os azulejos tinham sido esfregadas uma a uma com uma escova de dentes velha e líquido de limpeza. Eram de uma brancura impressionante. Uma obra de arte. O desodorizante dentro da sanita emanava um delicado aroma, parecido com o do gim com limão que se pode apreciar num bar elegante.

Saí da casa de banho, fui sentar-me no sofá da sala e fumei o primeiro cigarro do dia. Já só tinha três maços de Lark na mochila. Quando se acabassem, estaria condenado à abstinência. Sempre a pensar nisso, acendi um segundo cigarro. A luz da manhã era uma maravilha e estar ali sentado naquele sofá, que se moldava ao meu corpo como uma luva, um verdadeiro luxo. Passou mais uma hora sem que desse por isso. O relógio deu paulatinamente as nove.

Comecei a perceber vagamente por que razão o Rato tivera uma preocupação tão grande em manter a casa em ordem, ao ponto de deixar as juntas dos azulejos a brilhar de limpeza, de passar as suas camisas e de fazer a barba, mesmo sabendo que não receberia nenhuma visita. Num lugar como aquele uma pessoa tinha de estar em constante movimento, a fim de não perder a noção do tempo.

Levantei-me do sofá e, com os braços cruzados, dei uma volta pela divisão, mas não encontrei nada que fosse preciso fazer. O Rato tratara de limpar tudo o que havia para limpar. Ele até se dera ao trabalho de eliminar as manchas negras de fumo e as teias de aranha nos sítios altos, junto ao tecto.

«Bem», pensei para comigo, «acabarei por me lembrar de alguma coisa.»

Para me distrair, resolvi ir dar uma volta pelas imediações da casa. Estava um tempo espectacular. Fiapos de nuvens brancas pelo céu, como pinceladas brancas, e o trinado dos pássaros parecia vir de todos os recantos da terra.

Nas traseiras da casa fui dar com uma espaçosa garagem. Diante da velha janela de sacada via-se uma beata caída no chão. Era de um Seven Stars. Era relativamente antigo, visto que o papel tinha-se descolado e o filtro estava à vista.

Que me lembrasse, só existia um cinzeiro dentro de casa, e sem indícios de ter sido usado. O Rato não fumava! Fiz rolar o filtro na palma da minha mão e depois tornei a deitá-lo para o meio do chão.

Tirei a pesada tranca e abri a porta da garagem, deixando entrever o interior, espaçoso. O sol infiltrava-se por entre as tábuas da parede e formava uma série de linhas paralelas no solo preto. Havia um cheiro a terra e a gasolina no ar.

Havia um carro, um velho Toyota Land Cruiser. Sem uma mancha de lama, tanto na carroçaria como nos pneus. O ponteiro de combustível indicava que o depósito estava quase cheio. Introduzi a mão no sítio onde o Rato costumava esconder a chave e apalpei. Ali estava ela, tal como eu esperava. Introduzi a chave na ignição e rodei. O motor pegou automaticamente, com um agradável ronronar. Pelos vistos, o Rato continuava um ás em tudo o que dissesse respeito à manutenção e afinação dos carros. Desliguei o motor, voltei a guardar a chave no seu esconderijo e, sem sair do mesmo sítio, passei revista à minha volta. Não havia nada de importante no interior do veículo - um mapa rodoviário, uma toalha, meia tablete de chocolate. No banco de trás, encontrei um rolo de arame e um alicate grande. O banco estava muito sujo para os padrões do Rato, o que não deixava de ser surpreendente. Abri a porta traseira, recolhi na palma da mão toda a sujidade acumulada nos estofos e examinei-a à luz que se escoava por um dos vãos da parede. Parecia aquele material de que é feito o interior dos estofos. Ou isso ou lã de carneiro. Tirei um lenço de papel do bolso, envolvi os detritos e guardei tudo no bolso da camisa.

Não havia maneira de compreender por que razão o Rato não levara o carro. A presença do veículo no interior da garagem tanto podia indicar que ele descera a montanha a pé como, naturalmente, que não abandonara a montanha. Nenhuma das duas hipóteses tinha lógica. Vendo bem, até há coisa de três dias, a curva do penhasco ainda deixava passar os carros, e não me passava pela cabeça que ele tivesse abandonado o conforto da casa para ir acampar algures na planície.

Cansado de dar voltas à cabeça, fechei a porta da garagem, saí e aventurei-me a ir até à pradaria. Por mais que puxasse pelos neurónios, jamais conseguiria tirar uma conclusão coerente a partir de factos que não tinham a mínima coerência.

A medida que o Sol se erguia no firmamento, começava a formar-se um véu de nevoeiro a partir da pradaria. Através da bruma, a linha das montanhas parecia esbater-se. O cheiro da relva estava em toda a parte.

Pisando a erva molhada, avancei até ao meio do prado. Naquele mesmo sítio, fui dar com um velho pneu abandonado. A borracha já estava esbranquiçada e estalada. Sentei-me nele e passeei o olhar em volta. A casa de onde saíra ainda não há muito tempo parecia um promontório branco projectado sobre o mar.

Ali sentado, sozinho, no meio da campina, vieram-me à memória as travessias a nado em que eu tinha participado quando jovem. A meio do percurso, entre uma ilha e outra, costumava parar de nadar e contemplava a paisagem. O facto de me encontrar ali, entre dois pontos equidistantes, provocava em mim uma sensação espantosa. Era realmente estranho. O mais bizarro, porém, era a percepção de que, lá longe, em terra firme, as pessoas prosseguiam nesse preciso momento as suas actividades quotidianas, como se nada fosse.

Deixei-me estar ali sentado durante quinze minutos, depois levantei-me e voltei calmamente para casa. Sentei-me no sofá e continuei a ler As Aventuras de Sherlock Holmes.

Eram duas da tarde quando apareceu o homem-carneiro.

 

No preciso momento em que o relógio acabou de anunciar as duas, alguém bateu à porta. Dois toques, a princípio, e, após uma pausa suficiente para respirar duas vezes, mais três pancadas.

Demorei algum tempo a perceber que estava alguém a bater à porta. Não me passara sequer pela cabeça que alguém pudesse bater à porta daquela casa. A ser o Rato, nunca bateria - entraria logo, uma vez que estava em sua casa. O guardador de carneiros, esse, sim, poderia bater uma vez mas depois entraria sem esperar pela resposta. Talvez a minha amiga - mas, não, vendo bem não. Porque, a ser ela, entraria mansamente pela cozinha e àquela hora já estaria sentada à mesa a tomar sozinha o seu café. Não era do género de bater às portas.

Abri a porta e dei de caras com o homem-carneiro. O homem-carneiro não parecia muito interessado nem na porta aberta nem em mim, que a abrira. Em pé, a quase dois metros de distância, contemplava fixamente a caixa do correio, como se fosse um objecto raro e nunca visto. Ele pouco mais alto que a caixa do correio era. Devia ter um metro e meio, quanto muito. Como se não bastasse, era corcunda e tinha as pernas tortas.

Do patamar onde me encontrava até ao nível do chão havia uma diferença de quase quinze centímetros de altura, de modo que me vi na situação de alguém que está à janela de um autocarro a olhar para outra pessoa. O homem-carneiro continuava a fixar com feroz intensidade a caixa do correio, como se fizesse questão de mostrar que a diferença de altura não significava nada aos olhos dele. A caixa nada tinha lá dentro, escusado será dizer.

- Posso entrar, posso? - disparou ele atabalhoadamente, ainda meio virado de lado. Pela maneira de falar, dir-se-ia que estava danado com alguma coisa.

- Faça favor de entrar - disse eu.

Ele inclinou-se e, com gestos decididos, desamarrou os cordões das botas de montanha. Estavam cobertas de terra, seca e dura, que mais parecia a crosta endurecida do pão. O homem-carneiro pegou nas botas descalçadas, uma em cada mão, e bateu com elas habilmente, sola contra sola, num gesto de quem está habituado. O barro desprendeu-se e tombou no chão. Só então o homem-carneiro, como se conhecesse os cantos à casa, tratou de ir buscar os chinelos, caminhou até ao sofá sem pedir licença e sentou-se com carantonha de poucos amigos.

Só visto, contado ninguém acredita!

O homem-carneiro vestia uma pele de carneiro que o cobria da cabeça aos pés. A vestimenta ajustava-se na perfeição ao seu físico atarracado, apesar de se ver que a pele na zona dos braços e das pernas tinha sido cosida posteriormente, em jeito de remendo. O capuz que lhe envolvia a cabeça também era feito de retalhos de pele, mas os chifres enrolados em espiral que lhe saíam do alto do crânio, esses eram verdadeiros. Duas orelhas achatadas, sem dúvida armadas com a ajuda de arame, projectavam-se horizontalmente dos lados do capuz. A máscara que lhe cobria a metade superior do rosto, assim como as luvas e as meias, eram feitas do mesmo couro preto. Esta indumentária era atravessada de uma ponta à outra, que é como quem diz, do pescoço até à região de entrepernas, por um fecho de correr, por certo destinado a facilitar o trabalho de vestir e despir.

À altura do peito havia um bolso, também ele provido de fecho de correr, onde ele guardava o tabaco e os fósforos. Levou um Seven Stars à boca, acendeu um fósforo e inspirou profundamente. Fui à cozinha e vim de lá com um cinzeiro lavado na mão.

- Quero é beber - ordenou o homem-carneiro.

Voltei à cozinha, encontrei meia garrafa de Four Roses, peguei em dois copos com gelo.

Preparou cada um o seu whisky on the rocks e bebemos sem fazer nenhum brinde. O homem-carneiro passou o tempo todo a resmungar palavras sem sentido, até acabar de beber. Em comparação com o resto do corpo, o nariz era grande e as narinas dilatavam-se e fremiam como asas, cada vez que ele respirava, o que produzia um certo efeito dramático. Os seus olhos inquietos assomavam através dos buracos da máscara e espiavam tudo à sua volta.

Quando acabou o seu uísque, o homem-carneiro pareceu acalmar-se ligeiramente. Apagou o cigarro, meteu os dedos por baixo da máscara e esfregou os olhos.

- O pêlo passa a vida a meter-se nos olhos - resmungou ele. Sem saber o que dizer, fiquei calado.

- Vocês chegaram ontem de manhãzinha, não foi? - disse ele, sem nunca deixar de esfregar os olhos. - Eu assisti a tudo.

O homem-carneiro despejou mais uísque sobre o gelo meio derretido e bebeu tudo de um trago.

- E depois, à tarde, a miúda foi-se embora.

- Também viu isso?

-Ver? Fui eu que a mandei embora.

- Mandou-a embora?

- A-hã. Enfiei a cabeça pela porta da cozinha e disse-lhe: «O melhor é pores-te a andar daqui para fora.»

- Porquê?

O homem-carneiro calou-se, pondo uma expressão façanhuda. Pelos vistos, essa história de perguntar «porquê» não era maneira de falar com ele. Contudo, enquanto pensava no que lhe havia de perguntar a seguir, reparei que, aos poucos, os seus olhos começaram a brilhar de um modo diferente.

- A miúda regressou ao Hotel Golfinho, ponto final.

- Como é que sabe?

Uma vez mais, a cena repetiu-se. Calado, com as mãos apoiadas nas coxas, ele ficou a olhar fixamente para o copo em cima da mesa.

- Quer então dizer que ela voltou para o Hotel Golfinho? -insisti.

- A-hã. Bom hotel, esse tal Hotel Golfinho. Cheira a carneiros. Voltámos a ficar em silêncio. Vendo melhor, a pele que o homem-carneiro trazia vestida estava horrivelmente suja, com o pêlo todo rijo e gorduroso.

- Ela não lhe deixou ficar nenhum recado para mim, antes de partir?

- Qual quê! - retorquiu o homem-carneiro. - Nem ela me disse nada, nem eu lhe perguntei nada.

- Quer dizer que, quando lhe disse que era melhor ir-se embora, ela limitou-se a partir, sem dizer água vai?

- Isso mesmo. Disse-lhe isso por ela estar desejosa de partir.

- Se ela veio até cá, foi porque quis.

- Errado! - berrou o homem-carneiro. - Ela queria ir-se embora, mas não havia meio de se decidir. Foi por isso que a mandei desandar daqui. O culpado és tu! Foste tu que a deixaste confusa.

Pondo-se de pé num salto, deu uma palmada na mesa com a mão direita. O copo de uísque deslizou cerca de cinco centímetros para o lado.

Durante alguns instantes, o homem-carneiro permaneceu de pé, na mesma posição. Aos poucos, o seu olhar perdeu o brilho e ele voltou a sentar-se no sofá, como se tivesse perdido o gás.

- Tu é que a atrapalhaste! - acusou o homem-carneiro, desta vez com mais calma. - E isso não se faz. Não percebes nada de nada. Só pensas em ti mesmo.

- Está a querer dizer-me que ela não devia ter vindo até aqui?

- Isso mesmo. Ela nunca devia ter vindo até cá. Só pensas na tua pessoa.

Enfiado no sofá, bebi um gole do meu uísque.

- O que está feito, feito está. Está tudo acabado, seja como for.

- Acabado?

- Nunca mais voltarás a ver essa rapariga.

- Porque só pensei em mim próprio?

- Precisamente. Porque só pensaste em ti próprio. Por causa disso mesmo.

O homem-carneiro levantou-se, foi até à janela e, com uma só mão, ergueu a pesada vidraça. Depois, respirou o ar puro lá de fora. O indivíduo tinha uma força impressionante.

- Deves deixar a janela sempre aberta, em dias bonitos como este - disse ele.

O homem-carneiro percorreu metade da sala e parou diante da estante de livros. Com os braços cruzados sobre o peito, pôs-se a observar a lombada dos livros. Visto de costas, era, sem tirar nem pôr, a imagem de um carneiro em pé sobre as duas patas.

- Ando à procura de um amigo - adiantei eu.

- Ai andas? - replicou ele, sempre de costas.

- Julgo saber que ele vivia nesta casa até há coisa de uma semana.

- Não te sei dizer.

O homem-carneiro encontrava-se agora diante da lareira, a brincar com o baralho de cartas.

- Ando também em busca de um carneiro que tem uma marca em forma de estrela no dorso - aproveitei eu para reforçar.

- Nunca o vi em toda a minha vida - redarguiu ele.

Porém, saltava aos olhos que ele sabia qualquer coisa, tanto a respeito do Rato como do carneiro. A sua indiferença era nitidamente forçada. O tempo que demorava a responder era mais breve do que seria normal, e o seu tom revelava-se artificial.

Resolvi mudar de táctica. Bocejei, fingindo ter perdido todo o interesse por ele, peguei no livro que estava em cima da mesa e entretive-me a folheá-lo. Um tudo-nada vexado, o homem-carneiro voltou a sentar-se no sofá e ficou a ver-me virar as folhas, sem dizer nada.

- É bom ler livros? - quis ele saber.

- A-hã - respondi eu, laconicamente.

O homem-carneiro permaneceu indeciso durante mais algum! tempo. Pela minha parte, continuei enfrascado na leitura, como se não fosse nada comigo.

- Fiz mal em gritar contigo, há bocado - confessou ele, baixinho. - É que às vezes... às vezes o meu lado carneiro entra em conflito com o meu lado homem. E nessas alturas, é o que se vê. Não foi por maldade, vê se me entendes. Além disso, tu também disseste coisas que me levaram a isso.

- Não tem importância.

- Acho que é uma pena nunca mais voltares a ver aquela rapariga. A sério. Agora, atenção, isso já não é culpa minha.

- A-hã.

Tirei do bolso de fora da mochila os três maços de Lark e dei-os ao homem-carneiro. Ele pareceu ficar surpreendido.

- Obrigado. Não conhecia esta marca. Não te fazem falta?

- Deixei de fumar - respondi.

- Fazes bem - retorquiu ele, pondo um ar muito sério, ao mesmo tempo que abanava a cabeça. - Fumar faz muito mal à saúde.

Ele guardou com todo o cuidado os maços no bolso cosido no braço. Os maços formaram um pequeno volume quadrado saliente.

- Tenho de encontrar o meu amigo, dê lá por onde der. De resto, foi animado por esse propósito que vim de muito, muito longe.

O homem-carneiro acenou com a cabeça, em sinal de quem estava a compreender a situação.

- E o que digo em relação ao meu amigo, também se aplica ao carneiro.

Ele tornou a fazer que sim com a cabeça.

- Com que então, não sabe nada acerca deles, tens a certeza? Dessa vez, o homem-carneiro abanou tristemente a cabeça para

a esquerda e para a direita. As orelhas artificiais agitaram-se. Porém, aquela última negativa revelou-se muito menos enfática do que a primeira.

- Belo sítio, este - afirmou ele, mudando de assunto. - Uma bonita paisagem, um ar saudável. Ou muito me engano, ou vais gostar de aqui estar.

- Sim, é um bom sítio - concordei.

- E ainda é melhor no Inverno. Fica tudo coberto de neve e de gelo. Os animais hibernam e não se vê vivalma - acrescentou.

- Vive sempre aqui?

- A-hã.

Decidi ficar por ali e não perguntar mais nada. O homem-carneiro tinha precisamente as mesmas reacções de um animal selvagem: quando uma pessoa se aproximava, ele afastava-se; quando uma pessoa se afastava, aproximava-se. Uma vez que ele passava o Inverno todo naquele lugar, não havia pressa. Mais valia sondá-lo calmamente, para ver se lhe arrancava alguma informação.

Com a mão esquerda, o homem-carneiro começou a puxar, um a um, os dedos da luva direita, a partir do polegar. Após meia dúzia de puxões, a luva soltou-se e revelou a mão de pele escura e ressequida. Uma cicatriz de queimadura antiga começava na base do polegar e alastrava a metade das costas da mão, pequena e grossa.

Ele contemplou fixamente as costas da sua própria mão, depois voltou-a e ficou a olhar para a palma. Era exactamente o gesto que o Rato costumava fazer. Mas era impossível serem a mesma pessoa: o Rato não podia estar a fazer as vezes de homem-carneiro. Havia uma diferença de quase vinte centímetros de altura entre um e outro.

- Vais ficar aqui a viver? - perguntou o homem-carneiro.

- Não. Faço tenções de me ir embora assim que encontrar o meu amigo, ou então o carneiro. Foi isso que aqui me trouxe, como já disse.

- O Inverno aqui é lindíssimo - insistiu. - Fica tudo branco e resplandecente. E completamente congelado.

O homem-carneiro riu baixinho entre dentes, para si mesmo, o que fez dilatar as enormes narinas. Ao abrir a bocarra, viram-se os dentes, escuros. Faltavam-lhe os dois da frente. Os pensamentos do homem-carneiro eram erráticos e tinham essa bizarra propriedade que consistia em fazer dilatar e contrair a atmosfera da sala.

- É melhor ir andando - disse ele de repente. - Muito obrigado pelos cigarros.

Abanei a cabeça em silêncio.

- Oxalá consigas encontrar esse teu amigo, bem como o carneiro.

- A-hã - disse eu. - Avisa-me caso saiba de alguma coisa, não avisa?

Ele pareceu ficar algo constrangido e remexeu-se pouco à vontade, visivelmente embaraçado.

- Humm... Está bem, aviso.

Confrontado com o ridículo da situação, esforcei-me por não rir. Decididamente, as mentiras não eram o seu forte.

O homem-carneiro calçou as luvas e pôs-se de pé.

-Voltarei. Não sei dizer quando, mas voltarei - disse ele. O seu olhar tornou-se sombrio. - Isto se não incomodar...

- Nem pense nisso - apressei-me a dizer, abanando a cabeça. -Faço questão de nos voltarmos a encontrar!

- Nesse caso, prometo voltar - afirmou o homem-carneiro. Em seguida, foi-se embora, batendo com a porta nas suas costas. Por milagre não ficou com o rabo preso.

Espreitei pelas frestas das persianas de madeira. Parado diante da caixa de correio, à imagem e semelhança de quando ali chegara, o homem-carneiro fixava ferozmente a pintura branca que começava a ficar descamada. Depois contorceu-se por diversas vezes, na tentativa de ajustar a roupa ao corpo, e foi-se embora, atravessando o prado em passo rápido em direcção a leste, rumo ao bosque que se avistava do outro lado. As duas orelhas projectavam-se horizontalmente dos lados da cabeça e balançavam como pranchas de salto à beira de uma piscina. Aos poucos, foi-se afastando até se transformar num pontinho branco, antes de desaparecer por entre os troncos das bétulas-brancas, da mesma cor que ele.

Mesmo depois de o homem-carneiro ter desaparecido, continuei sem conseguir desviar os olhos da pradaria e do bosque de bétulas-brancas. E, quanto mais olhava, menos certeza tinha de que ele estivera realmente ali, naquela mesma sala, poucos minutos antes.

E, contudo, sobre a mesa viam-se ainda a garrafa de uísque e as beatas dos seus Seven Stars, sem esquecer os pêlos de carneiro no sofá. Comparei-os aos que tinha encontrado no banco traseiro do Land Cruiser. Eram idênticos.

Depois de o homem-carneiro ter saído dali, e para ver se punha ordem nos meus pensamentos, fui até à cozinha e entretive-me a preparar um hambúrguer. Pus cebola picada a refogar numa frigideira e, enquanto isso, tirei um bocadão de carne do congelador, descongelei-o e triturei-o usando a velocidade média da máquina de picar.

A cozinha estava reduzida ao essencial, mas ainda assim encontrei muito mais do que os utensílios e os temperos básicos. Caso se decidissem a melhorar as condições da estrada, bem que eu podia abrir um restaurante ao estilo rústico naquele mesmo local, contando apenas com o que ali tinha à mão de semear. Não se estaria nada mal, ali sentado, com as janelas todas abertas, a comer e a ver um rebanho de carneiros a pastar sob o céu azul. Os pais deixariam os filhos correr e brincar no prado com os carneiros, os casalinhos teriam o bosque de bétulas-brancas só para si. Seria um êxito garantido.

O Rato encarregar-se-ia da parte administrativa, e eu seria o chef. O homem-carneiro também poderia desempenhar o seu papel. Tratando-se de um restaurante situado em plena montanha, a sua indumentária gozaria de grande aceitação. E eu poderia contratar o pragmático funcionário da Câmara dos serviços municipalizados para pastorear o rebanho. Faz sempre falta, uma pessoa com os pés bem assentes no chão. Isto sem esquecer o cão pastor. Até o Professor Carneiro poderia aparecer, que seria bem-vindo.

Enquanto aloirava a cebola, era naquelas coisas que eu ia pensando.

Aos poucos, a ideia de ter ficado para sempre sem a minha namorada das orelhas maravilhosas começou a tomar conta dos meus pensamentos, ao ponto de se tornarem opressivos. Se calhar, o homem-carneiro tinha razão. Eu devia ter vindo sozinho. Não devia ter... Abanei a cabeça. Mais valia voltar às minhas divagações sobre o restaurante.

Agora, se J ali estivesse, tinha a certeza de que as coisas correriam pelo melhor. Tudo giraria em torno dele; seria ele a figura central. Central em tudo: no que diz respeito à tolerância, à compaixão e à aceitação.

Sentado à janela, contemplei uma vez mais a campina, enquanto esperava que a cebola arrefecesse.

 

Passaram três dias sem história. Não aconteceu rigorosamente nada. O homem-carneiro não apareceu. Eu passava o tempo a cozinhar, a comer, a ler os meus livros e, ao anoitecer, bebia um uisque e ia-me deitar.

A temperatura na pradaria estava mais baixa a cada dia que passava. As folhas vivamente douradas das bétulas-brancas eram cada vez mais escassas, à medida que os primeiros ventos de Inverno passaram a uivar por entre os galhos secos, varrendo a planície antes de se escapar em direcção a sudoeste. Parado no centro da campina, parecia-me ouvir nitidamente o sussurro do vento na sua correria desalmada. «Impossível voltar para trás», parecia ele dizer. O breve Outono tinha desaparecido para não mais voltar.

A falta de exercício e a abstinência do fumo tinham-me feito engordar dois quilinhos nos três primeiros dias, mas um desses quilos, tratei de o eliminar nessas minhas corridas matinais pela pradaria. Não poder fumar representava um certo sacrifício, mas uma vez que não existiam tabacarias num raio de trinta quilómetros não tinha outro remédio senão aguentar. Cada vez que sentia o vício a rondar, punha-me a pensar na minha amiga e nas suas maravilhosas orelhas. Em comparação com aquela perda, não poder fumar era qualquer coisa de insignificante. A sério.

Com todo o tempo livre que tinha à minha disposição, entre-tive-me a preparar uma grande variedade de pratos. Até usei o forno para assar carne. Descongelei um salmão, arranjei-o em filetes e deixei-o a marinar antes de o saltear. Como sentia falta de verduras frescas, fui até aos campos, apanhei alguns vegetais que tinham ar de serem comestíveis e levei-os ao lume com raspas de peixe seco e molho de soja. Experimentei fazer picles de couve chinesa. Preparei uma grande quantidade de petiscos para servir ao homem-carneiro caso ele aparecesse por aquelas bandas. Mas o homem-carneiro nunca se dignou dar um ar da sua graça.

A maior parte das tardes eram passadas a contemplar a pradaria. À força de tanto fixar nela o olhar, comecei a ver coisas. Por exemplo, uma pessoa que saía de repente do meio do bosque e, sempre em linha recta, atravessava o prado na minha direcção. Esse alguém era quase sempre o homem-carneiro, mas de quando em quando também podia ser o Rato ou a minha amiga. Outras vezes ainda era o carneiro com a estrela no lombo.

Contudo, na hora da verdade, ninguém aparecia. Apenas o sopro do vento a percorrer a campina. Era como se o caminho percorrido pelo vento constituísse uma espécie de missão transcendental, visto que passava por ela a correr, sem olhar para trás, dando a entender que transportava uma mensagem urgente que não podia esperar.

Ao sétimo dia após a minha chegada, caiu o primeiro nevão. O dia amanhecera invulgarmente calmo, pesadas nuvens cobriam o céu de um manto de chumbo. No regresso da minha corrida matinal, banho tomado, encontrava-me a tomar café e a ouvir um dos discos quando a neve começou a cair. Eram uns flocos duros, estranhamente inconsistentes, que produziam um som surdo e estrepitoso ao bater nos vidros. Levantara-se vento, e os flocos precipitavam-se a grande velocidade descrevendo um ângulo de trinta graus, caindo sobre a terra, uns após os outros. Enquanto os flocos caíam espaçadamente, os riscos oblíquos formaram no ar um padrão que fazia lembrar papel de embrulho, daquele que é usado pelos grandes armazéns. Porém, quando começou a nevar a sério, a paisagem tingiu-se de branco, e tanto a montanha como as árvores se desvaneceram na paisagem, formando uma espécie de mancha esborratada. Em tudo diferente daquela neve que, volta e meia, cai na região de Tóquio, aquele era um nevão a sério, próprio das terras do Norte. Uma neve que envolvia todas as coisas, capaz de gelar a terra até às suas entranhas.!

Bastaram alguns minutos de fixa contemplação para eu ficar com a vista a doer. Fechei as cortinas e fui ler para junto do aquecedor.

Quando o disco chegou ao fim e a agulha se retirou automaticamente, instalou-se um silêncio de morte, assustador, como se todas as coisas vivas tivessem desaparecido da face da Terra. Pus o livro de lado e, sem uma razão concreta, passei revista a todas as divisões da casa, uma a uma. Saí da sala, fui até à cozinha, examinei a arrecadação, a sala de banho, a zona das lavagens e a despensa na cave. Abri a porta de todos os quartos lá de cima. Ninguém. Apenas o silêncio, que se infiltrara, como azeite, em todos os recantos. A única diferença era o modo como o eco dele reverberava, de uma divisão para a outra, conforme o tamanho do quarto.

Encontrava-me sozinho. Nunca em toda a minha vida me sentira assim tão sozinho.

Há dois dias que andava mortinho por fumar o meu cigarro, mas, como era certo e sabido, tabaco era coisa que ali não havia. À laia de consolação, pus-me a beber uísque puro sem gelo. Se tivesse de passar ali um Inverno inteiro, a beber àquele ritmo, o mais provável era tornar-me alcoólico. Isto se a reserva de uísque lá em casa fosse de molde a alimentar o vício, coisa que não acontecia. Três garrafas de uísque, uma de conhaque, doze caixas de cerveja em lata, no total. Mais nada. É provável que o Rato se tivesse lembrado disso mesmo.

E o meu sócio? Continuaria a beber sem parar? Iria ele conseguir fechar a empresa e reabrir um pequeno escritório de traduções, como eu sugerira? Podia ser que sim, que conseguisse dar a volta por cima, desde que se esforçasse. E, até, que continuasse a trabalhar e a ter êxito, mesmo sem a minha ajuda. Em todo o caso, aquela etapa da nossa colaboração tinha chegado ao fim da linha. Depois de seis anos de trabalho em conjunto, estávamos de volta ao ponto de partida.

A neve parou de cair ao começo da tarde. Tão bruscamente como começara. A espessa massa de nuvens com aspecto de argila fragmentara-se aqui e ali, formando grossas colunas de luz por onde se infiltrava o sol que fazia jogos de luz e sombra na campina. Era um espectáculo magnífico.

Saí de casa para ver a cena de perto. Grumos de neve endurecida encontravam-se espalhados pelo terreno, como açúcar no topo de um bolo. Todos aqueles montículos de neve formavam uma cobertura compacta, que teimava em não se converter em gelo. Contudo, quando o relógio deu as três, a neve já se tinha derretido por completo. A terra estava húmida e o sol de fim da tarde envolvia a pastagem numa claridade suave. Os pássaros desataram a cantar, com a alegria de prisioneiros postos em liberdade.

Depois do jantar, fui ao quarto do Rato e trouxe de lá dois livros: um dava pelo título Como Fazer Pão; o outro era um romance de Conrad. Este último, li-o confortavelmente estiraçado no sofá da sala. Quando já tinha lido aproximadamente um terço, fui dar com um recorte de jornal, quadrado, com cerca de quinze centímetros, que o Rato usara para marcar a página. Não tinha data, mas, pela cor do papel, dava para ver que se tratava de um jornal recente. O texto recortado pertencia à secção das notícias locais. Pelos vistos, tinham programado um simpósio para discutir o tema da terceira idade num hotel de Sapporo, uma corrida de corta-mato estava convocada para as imediações do rio Asahikawa, realizava-se uma palestra sobre a crise no Médio Oriente. Em resumo, nada que pudesse despertar a atenção do Rato, nem sequer, já agora, a minha. No verso, havia um anúncio. Bocejei, fechei o livro, fui até à cozinha para aquecer o resto do café e bebi-o.

Aquele pedaço de jornal fizera-me cair em mim e dar conta do meu afastamento dos destinos do mundo, depois de uma semana inteira, que me pareceu uma eternidade, sem pôr a vista em cima de um jornal. Quem diz longe dos jornais, diz longe da rádio, da televisão, das revistas. Tóquio podia estar a ser bombardeada nesse preciso instante por mísseis nucleares, uma epidemia podia ter acabado com o mundo inteiro, os marcianos podiam ter invadido a Austrália, que eu nunca teria sabido de nada. Claro que se me dispusesse a ir até à garagem, podia sempre ouvir as notícias no rádio do Land Crui-ser, mas a verdade é que não tinha vontade nenhuma de o fazer. Se podia viver sem saber o que acontecia no mundo, era porque não me fazia falta nenhuma. Em todo o caso, preocupações de sobra já eu tinha.

E, contudo, havia qualquer coisa que me estava a escapar. Qualquer coisa importante que passara diante dos meus olhos, mas que eu deixara escapar por estar ao mesmo tempo a pensar em várias outras coisas. Mesmo assim, a retina registara a passagem de algo, inconscientemente. Pousei a chávena de café dentro do lava-loiça, regressei à sala e tornei a pegar no recorte de jornal. O que eu procurava estava ali, no verso da notícia.

 

À atenção do Rato. Urgente. Entra em contacto com o Hotel Golfinho, Quarto 406.

 

Voltei a guardar o pedaço de papel dentro do livro e afundei-me no sofá.

Queria então aquilo dizer que o Rato sabia que eu andava à procura dele. Pergunta: Como foi que ele terá dado com aquele anúncio? O mais certo era ter sido por mero acaso, numa das vezes em que descera a montanha para ir até à povoação mais perto comprar o jornal. A menos que ele andasse atrás de alguma pista e tivesse por hábito consultá-los todos por atacado, com duas ou três semanas de atraso.

Fosse como fosse, o certo é que ele não entrara em contacto comigo para o Hotel Golfinho. (Ou então, era provável que eu já tivesse deixado o hotel quando ele viu o anúncio. Ou talvez o telefone já não funcionasse quando ele tentou chegar à fala comigo.)

Não. Nada disso. O Rato podia muito bem ter entrado em contacto comigo, o que acontece foi que não quis. Se ele sabia da minha presença no Hotel Golfinho, poderia perfeitamente ter previsto que eu acabaria por aparecer por aquelas bandas, mais dia, menos dia. Caso estivesse realmente interessado em me ver, bastava-lhe ter permanecido ali mesmo, ou então deixar-me uma mensagem antes de se ir embora.

Isto queria dizer, resumindo e concluindo, que, por qualquer motivo que desconheço, o Rato não me queria ver. Ao mesmo tempo, porém, não se podia dizer que estivesse a rejeitar-me. Se fosse essa a sua intenção, teria arranjado mil e uma maneiras de evitar que eu entrasse lá em casa. É bom não esquecer que a casa era dele.

Com aquele dilema às voltas na cabeça, fiquei a ver o ponteiro grande do relógio dar uma volta completa sobre a superfície do mostrador.

Depois de tanto pensar, não conseguira chegar ao cerne da questão.

O homem-carneiro sabia qualquer coisa, isso era limpinho. Se é certo que tinha dado pela nossa chegada àquele lugar, não podia ter deixado de reparar na presença do Rato, que viveu ali perto de seis meses.

Quanto mais pensava, mais me convencia de que a atitude do homem-carneiro reflectia a vontade do Rato. O homem-carneiro espantara a minha namorada da montanha para me deixar ali sozinho. A sua aparição em cena mais não fora do que o prenúncio de qualquer coisa. Alguma coisa estava a acontecer à minha volta, de certeza absoluta. Estava no ar, sentia-se na atmosfera. Alguma coisa estava para acontecer.

Apaguei as luzes e subi ao andar de cima, enfiei-me debaixo da coberta e fiquei ali a olhar para a Lua, a neve e a pradaria. A abertura entre as nuvens deixava ver o brilho gelado das estrelas. Abri a janela e aspirei o ar da noite. No meio do rumor das folhas, chegou-me aos ouvidos o grito longínquo de um animal. Um grito estranho, que não parecia nem de pássaro nem de animal selvagem.

E assim se passou o sétimo dia na montanha.

Acordei, fiz a minha corridinha pela pradaria, tomei duche antes do pequeno-almoço. Era uma manhã igual às outras. O céu continuava nublado como no dia anterior, mas a temperatura estava um nadinha mais alta. Tudo indicava que não iria nevar.

Vesti as minhas calças de ganga e uma camisola, enfiei uma parca por cima, calcei uns ténis leves e fiz-me ao caminho, pradaria fora. Mais ou menos no ponto em que o homem-carneiro tinha desaparecido, embrenhei-me no bosque e pus-me a vaguear por ali. Não se podia dizer que existisse um trilho digno desse nome, nem sinais de presença humana. Volta e meia encontrava pelo caminho um velho tronco de bétula caído por terra.

O terreno era plano, mas uma vez por outra ia ter a uma valeta, com cerca de um metro de largura, que fazia lembrar o leito de um rio seco, ou, então, restos de uma trincheira. Essas valetas seguiam por vários quilómetros, serpenteando pelo interior do bosque. Às vezes eram profundas, outras, rasas, e no fundo acumulavam-se folhas secas, em número suficiente para cobrir o pé até à altura do tornozelo. Acompanhei o curso das valetas e, pouco depois, fui dar comigo num caminho estreito que seguia a crista entre duas vertentes, formando uma área que parecia o dorso de um cavalo. Os dois lados do caminho desciam em suaves ladeiras e terminavam numa série de pequenos vales secos. Um bando de pássaros rechonchudos, da cor das folhas mortas, atravessou o caminho num voo ruidoso e desapareceu por trás de um arbusto, na encosta. Maciços de azáleas silvestres de um vermelho intenso incendiavam a paisagem em diversos pontos.

Ao fim de uma hora de caminho já eu estava perdido. Por aquele andar, nunca encontraria o homem-carneiro. Caminhei ao longo do vale seco até ouvir o rumor de um regato e, quando por fim cheguei ao pé dele, segui o seu curso em direcção à foz. Se a minha memória não me atraiçoava, devia existir ali por perto uma cascata e, ali próximo, passava a estrada que tínhamos percorrido a pé até ali chegar.

Quase dez minutos depois, ouvi o barulho da cascata. A corrente batia contra as rochas e era projectada em várias direcções, produzindo aqui e ali pequenos poços de água gelada. Não vi sombra de peixes, mas apenas algumas folhas secas que descreviam círculos lentos na superfície da água. Saltei de rocha em rocha, acompanhei a descida da queda-d'água, dei um salto para a margem oposta, escorregadia. Encontrei-me num caminho já conhecido.

Sentado na beirinha da ponte, de olhos postos em mim, estava o homem-carneiro. Tinha ao ombro um enorme saco de lona carregado de lenha.

- Com tanta volta para cima e para baixo, ainda te arriscas a cair nas garras de um urso - lançou ele, à laia de aviso. - Palpita-me que anda um a rondar por aqui. Encontrei o rasto dele, ontem à noite. Agora, se é mesmo andar a passear que queres, aconselho-te a usar umas campainhas à cintura, como eu.

Dito aquilo, agitou o guizo que trazia à altura dos quadris, preso com um alfinete de segurança.

- Andava à tua procura - expliquei eu, depois de recuperar o fôlego.

- Bem sei - disse ele. - Notava-se.

- Nesse caso, por que é que não me chamaste?

- Pensei que preferias ser tu a dar comigo. Foi por isso que fiquei mudo e quedo.

O homem-carneiro sacou um cigarro do bolsinho que tinha na manga e fumou-o com evidente prazer. Sentei-me ao lado dele.

- A-hã - respondeu. - Mas não quero que contes a ninguém. Ninguém sabe disso.

-Tirando o meu amigo. Esse sabe, não é verdade? Silêncio.

- Se fosses amigo do meu amigo, isso faria de nós amigos, certo? -Talvez - retorquiu ele, cautelosamente. - Acho que sim, que

talvez fôssemos amigos.

- E se te dizes meu amigo, não serias capaz de me mentir, pois não? Pensa bem.

- Hmmm... - balbuciou ele, algo atrapalhado.

- Não gostarias de me contar tudo? Na qualidade de meu amigo, entenda-se.

O homem-carneiro passou a língua pelos lábios secos.

- Não posso. Tenho muita pena, a sério, mas não posso contar. Não devo. Ficou combinado que eu não dizia nada.

- Quem te disse para não abrires a boca?

O homem-carneiro calou-se muito caladinho. O vento sussurrava por entre as árvores despidas.

- Ninguém nos pode ouvir - murmurei eu.

O homem-carneiro fitou-me nos olhos, intensamente.

- Estou a ver que não sabes nada acerca destas terras, pois não?

- Confesso que não.

- Pois então é bom que saibas que este lugar é único. Digo-te isto para teu próprio bem.

- Quem disse, ainda há poucos dias, que era um bom lugar foste tu!

- Bom para mim - explicou ele. - Fora daqui, não há mais nenhum lugar onde pudesse viver. Se me mandam embora, fico sem ter para onde ir, compreendes?

Depois daquela tirada, o homem-carneiro calou-se. Pressenti que não conseguiria sacar dele mais nenhuma informação. O meu olhar pousou sobre o saco de lona que ele trazia, cheio de lenha.

- É com isso que te aqueces durante o Inverno? Ele fez que sim com a cabeça.

- Estranho. Ainda não vi sinais de fumo em parte alguma.

- Isso é porque eu ainda não acendi o fogo nem uma única vez. Só costumo fazer isso depois de a neve começar a acumular-se. E, nessa altura, mesmo que a neve se acumule e eu acenda o lume, vais continuar a não ver o fumo. Tenho uma técnica para fazer fogo sem fumo.

Ao dizer aquilo, sorria friamente, com uma ponta de orgulho.

- Nesse caso, quando é que a neve vai começar a cair a sério? O homem-carneiro levantou os olhos para o céu e em seguida

virou-se para mim:

- Este ano vai começar a nevar mais cedo. Daqui a uns dez dias, quer-me parecer.

-, - Quer então dizer que mais dez dias e o caminho ficará gelado.

- É provável. Ninguém poderá subir e ninguém poderá descer a montanha. Uma bela estação.

- Vives aqui há muito tempo?

- Há muito, muito tempo.

- Alimentas-te de quê?

- Raízes, nozes, passarinhos, às vezes de peixes pequenos e caranguejos que apanho.

- E não passas frio?

- O Inverno é sempre frio.

- Vai ter comigo, se vires que precisas de alguma coisa. Terei muito gosto em partilhar o que tenho contigo.

O homem-carneiro levantou-se de repente e começou a andar na direcção da pradaria. Por meu turno, levantei-me também e fui atrás dele.

- O que te levou a viver escondido neste lugar?

- Vais rir-te de mim, se te contar - disse ele.

- Juro que não me rio - prometi eu.

Não estava a ver por que razão o que ele dissesse me provocaria o riso.

- Não contas a ninguém?

- A ninguém.

- A verdade é que não queria ir para a guerra.

Durante algum tempo, continuámos a andar, sempre em silêncio, um ao lado do outro. A cabeça dele movia-se à altura do meu ombro.

- Qual guerra?

- Não sei - respondeu ele, e tossiu. - Só sei que não quero ir à guerra. É por isso que faço de carneiro. Enquanto for carneiro, ninguém me arrancará daqui.

- És de Junitaki?

- A-hã. Mas não contes a ninguém.

- Não, descansa que não conto - prometi. - Não gostas da cidade?

- Aquela que fica lá em baixo?

- Essa mesmo.

- Não gosto. Está cheia de soldados - disse ele e tossiu de novo. - E tu, de onde és?

- De Tóquio.

- Ouviste falar na guerra?

- Não.

A resposta fez o homem-carneiro perder todo o interesse em mim. Em silêncio, continuámos até chegar ao prado.

- Queres ir até lá a casa?

- Tenho de arrumar as coisas para o Inverno - explicou ele. -Há muita coisa para fazer. Talvez numa outra altura.

- Gostaria de ver o meu amigo - disse eu. - Por motivos que não vou agora explicar, preciso de me encontrar com ele no prazo de uma semana, sem falta.

O homem-carneiro abanou tristemente a cabeça, fazendo mexer as orelhas.

- É pena, repito, mas quanto a isso nada posso fazer.

- Nesse caso, dá-lhe ao menos o recado, se puder ser.

- Está bem - murmurou baixinho o homem-carneiro. E assim nos despedimos.

- Quando quiseres andar a passear por estas bandas - referiu ele, à despedida -, não te esqueças do sininho.

Regressei a casa, enquanto o homem-carneiro desaparecia a leste do bosque, da mesma forma que chegara. Silenciosa, a pradaria de um verde embotado pelos tons do Inverno interpôs-se entre nós.

Nessa tarde, pus-me a fazer pão. O livro Como Fazer Pão, que eu encontrara no quarto do Rato, descrevia minuciosamente todos os passos a dar.

Na capa, aparecia escrito: «Você também é capaz de fazer o seu próprio pão com toda a facilidade. Basta saber ler». E, na verdade, assim acontecia. Segui as instruções do livro e consegui realmente fazer pão com grande facilidade. O cheiro do pão espalhou-se pela casa toda e ajudou a criar um ambiente agradável e caloroso. O sabor também não era mau de todo, tendo em conta que eu era um aprendiz na matéria. Na cozinha havia farinha de trigo e levedura em abundância, o que me permitia encarar de um modo mais confortável a perspectiva de ter de passar o Inverno preso naquela casa; pelo menos, pão não faltaria. Arroz e esparguete também não.

Nessa noite, comi pão, salada e ovos com presunto; à sobremesa, pêssegos em lata.

Na manhã seguinte, fiz um risotto com salmão em lata, algas marinhas e cogumelos.

Ao almoço, descongelei um cheesecake e bebi chá preto e leite a acompanhar.

À hora do lanche, comi um gelado de avelãs regado com um fiozinho de Cointreau.

À tardinha, assei um frango no forno e comi uma lata de sopa Campbell.

Lá começava eu outra vez a engordar.

Às primeiras horas do nono dia, quando estava a passar os olhos pela estante, descobri que um dos livros mais antigos tinha todo o aspecto de ter sido lido há bem pouco tempo. Pelo menos, era o único exemplar que estava limpo de pó, além de apresentar a lombada ligeiramente saída para fora em relação aos outros.

Retirei-o da estante e examinei-o, sentado na chaise-longue. Tratava-se de um livro publicado durante a guerra e dava pelo título de A Herança do Ideal Pan-asiático. O papel era de péssima qualidade e exalava um forte cheiro a mofo de cada vez que eu virava uma página. O conteúdo, como seria de esperar de uma publicação vinda a lume no período da guerra, tendencioso e simplista até dizer chega. Isto para não falar no aborrecimento que provocava: a cada três páginas de leitura, convidava ao bocejo. Ainda assim, deparei-me aqui e ali com trechos rasurados, por onde tinha passado o lápis da censura. Por exemplo, não encontrei uma única referência ao incidente de 26 de Fevereiro(28).

Enquanto folheava, mais do que lia, o referido livro, chamou-me a atenção um pedaço de papel branco arrancado de um bloco de notas e preso no meio das últimas páginas. Depois de ter estado tanto tempo a olhar para aquelas folhas amarelecidas, a visão daquele pedacinho de papel branco constituía quase um milagre. Na página da direita marcada pela folhinha havia um apêndice que, sob a designação de «Dados Complementares», continha uma relação de nomes de figuras de proa e de ilustres desconhecidos, juntamente com as respectivas datas de nascimento e lugar de residência habitual. Todos eles representantes do ideal pan-asiático, escusado dizer. Fui lendo os nomes, um a um, e, quase no meio da lista, para minha grande surpresa, dei de caras com o nome do Líder Supremo, o homem que me arrastara até àquele fim do mundo, o homem que em tempos que já lá iam tinha sido possuído pelo carneiro. Local de nascimento: Junitaki, Hokkaido.

Totalmente apanhado de surpresa, permaneci durante algum tempo com o livro aberto sobre os joelhos, a mente vazia. Demorou um grande bocado até que as palavras voltassem a fazer sentido na minha cabeça. Era como se alguém, ou alguma coisa, me tivesse dado uma pancada na cabeça por trás.

Devia ter percebido logo. Desde o princípio, era a única coisa que eu devia notado. A partir do momento em que chegara aos meus ouvidos que o Líder Supremo provinha de uma modesta família camponesa da região de Hokkaido, tinha obrigação de ter investigado o caso a limpo. Por muito hábil que o Líder Supremo tivesse sido a apagar as pistas todas que conduziam ao seu passado, alguma maneira eu haveria de ter encontrado para chegar à verdade dos factos. Aquele secretário do fato preto por certo não teria visto qualquer inconveniente

 

*28. Malogrado golpe de estado desencadeado em 1936 por uma facção do antigo Exército japonês, defensora de uma política de soberania nacional centralizada do imperador. Abafado o golpe, a pretexto de expurgar os elementos desleais, assistiu-se ao fortalecimento da ingerência do Exército nos destinos políticos do país.

(N. da T.)

 

em fazer as necessárias pesquisas. Bastaria ter-lhe pedido.

Bom, e daí talvez não.

Abanei a cabeça, sentindo-me desenganado.

Era mais do que evidente que ele já devia ter investigado o caso. O homem não era assim tão parvo que tivesse deixado passar em branco uma possibilidade daquelas. Por mais ínfima que fosse a pista, ele trataria de examinar a questão de todos os ângulos, de forma a não deixar pontas soltas. Da mesma maneira que tinha verificado todas as minhas acções e reacções possíveis e imagináveis, na tentativa de prever todas as eventualidades.

Ele estava efectivamente a par de tudo.

Não havia outra explicação possível. E, ainda por cima, lançara mão de expedientes ardilosos e dera-se ao trabalho de me persuadir, que é como quem diz, de me ameaçar só para me atrair a este lugar. Porquê? Vendo bem, ele dispunha de muito mais recursos do que eu para se sair bem da tarefa. E uma vez que tinha precisado de recorrer forçosamente aos meus serviços, ainda assim podia ter-me dado a conhecer este lugar desde o princípio.

À medida que as dúvidas se avolumavam no meu espírito, sentia crescer dentro de mim uma raiva surda. Sentia, cada vez mais, que aquela situação não passava de uma farsa, e não achava graça rigorosamente nenhuma ao facto de me ver a mim próprio como personagem de uma grotesca comédia de enganos. O Rato sabia alguma coisa, só podia ser. E o homem de negro também. O único que estava ali, bem no olho do furacão, sem saber rigorosamente a ponta de um corno era eu. Todos os meus raciocínios estavam errados, todas as minhas acções tinham sido mal calculadas. O filme da minha vida. Nesse sentido, podia ser que eu não tivesse o direito de acusar ninguém, só podendo deitar as culpas sobre mim próprio. Mas, que diabo, isso não lhes dava o direito de me tratarem daquele modo. Tinha sido usado, tinha sido espremido, tinha sido espancado, e, no fim, o que ficara era uma pálida sombra de mim.

Tive vontade de mandar tudo às urtigas naquele preciso momento e lançar-me montanha abaixo, sem dar satisfações a ninguém. Porém, a verdade é que isso também não levaria a nada. Estava demasiado envolvido para me safar assim. Só me apetecia gritar. O recurso mais fácil seria pôr-me a chorar, mas de que me serviria? Chorar por chorar, desde há muito que havia coisas que mereciam bem mais as minhas lágrimas, como eu no fundo bem sabia.

Fui à cozinha, deitei a mão à garrafa de uísque, despejei cinco dedos num copo e bebi. Foi a única coisa que me passou pela cabeça fazer.

 

Na manhã do décimo dia, resolvi esquecer tudo. Já tinha perdido tudo o que tinha a perder.

A neve caiu pela segunda vez durante a minha corrida matinal. Os flocos aguados que inicialmente vinham misturados com a chuva transformaram-se aos poucos em consistentes partículas de gelo, até que, por fim, perderam a transparência, transformando-se em neve a sério, opaca. Diferente do primeiro nevão, esta neve era pegajosa, colava-se ao corpo de uma forma desagradável. Às tantas, desisti da corrida, voltei para casa e aqueci água para tomar um bom banho. Enquanto a água estava a aquecer, deixei-me estar sentado ao lado do aquecedor, mas não havia meio de aumentar a temperatura do corpo. Um frio húmido infiltrara-se até à medula dos meus ossos. Descalcei as luvas, mas nem assim conseguia dobrar as articulações dos dedos e as orelhas ardiam-me tanto que tinha a sensação de que estavam prestes a estalar e a separar-se da minha cabeça. Por todo o corpo sentia uma aspereza comparável à do papel barato, de pior qualidade.

Depois de passar meia hora num banho a ferver e de beber um chá quente com um bom copo de conhaque à mistura, consegui finalmente que o meu corpo voltasse à sua condição normal, o que não me impediu, durante as duas horas seguintes, de experimentar na pele intermitentes calafrios. Com que então, era isto o Inverno naquela região montanhosa.

A neve continuou sempre a cair até ao fim da tarde, cobrindo por inteiro a pradaria com um manto branco. Só quando a noite chegou e, com ela, as trevas se instalaram, deixou por fim de nevar e, como uma espessa névoa, o silêncio voltou a reinar. Um silêncio profundo, contra o qual eu não podia lutar. Pus o gira-discos a funcionar no dispositivo de repetição automática e ouvi «White Christmas», de Bing Crosby, vinte e seis vezes consecutivas.

A neve não viera para ficar. Tal como o homem-carneiro previra, a terra ainda demoraria algum tempo até ficar congelada. O dia seguinte, o meu décimo primeiro dia ali, foi de céu azul, sem nuvens. Os brilhantes raios solares, que se dignaram aparecer ao fim daquele tempo todo, dissolveram lentamente, sem pressas, a neve acumulada. Sobre a pradaria, restavam agora esparsas placas cobertas de neve, nas quais o sol se reflectia com uma intensidade que chegava a cegar. A neve acumulada na mansarda escorregou num único bloco pela superfície oblíqua do telhado e abateu-se sobre a terra com um estrondo surdo. A água do degelo gotejava do lado de fora da janela. Toda a paisagem cintilava de uma forma diferente. Nos carvalhos ali perto, cada folha retinha na ponta as gotas de água iridescentes.

Enfiei as mãos nos bolsos e deixei-me ficar ali de pé, ao lado da janela da sala, a contemplar fixamente aquele cenário. Em redor, a Natureza seguia o seu curso, indiferente à minha pessoa. Na verdade, tudo se desenrolava independentemente da minha existência ou da existência de quem quer que fosse. A neve caía, a neve derretia-se.

Achei por bem dedicar-me às limpezas, enquanto lá fora, como pano de fundo, ouvia a neve a derreter e a desmoronar-se. Por um lado, sentia o corpo embotado, devido à inactividade forçada; por outro, uma vez que era um hóspede naquela casa, o mínimo que podia fazer era conservá-la limpa e arrumada. Além disso, confesso que sempre gostei da parte da cozinha e das limpezas.

Ainda assim, convém que se diga que proceder a uma boa limpeza em toda a casa se revelou uma tarefa bem mais pesada do que parecia à primeira vista. Muito mais cansativo do que correr dez quilómetros. Limpei o pó a todos os recantos da casa, passei com o aspirador, dei com um pano húmido no chão e pus-me de gatas para dar cera no soalho. Ainda a empreitada ia a meio e já não podia com uma gata pelo rabo.

Agora que eu tinha deixado de fumar, há que reconhecer que a falta de ar produzia uma sensação menos desagradável. Pelo menos, não tinha aquela impressão horrível de estrangulamento na garganta.

Fui à cozinha e bebi um sumo de uva gelado, regressei à minha lida e, uma vez recuperado o fôlego, dei a tarefa por terminada antes do almoço. Abri de par em par as janelas e as persianas de madeira e, graças à cera, o soalho inteiro resplandecia de brilho. Um cheiro a terra húmida, carregado de nostalgia, misturou-se com o odor da cera, numa agradável combinação.

Lavei os seis panos de serapilheira usados para dar cera no soalho e tratei de os deixar a secar. Pus uma panela de água a ferver e cozinhei esparguete. Ovas de bacalhau, bastante manteiga, vinho branco e molho de soja. Um almoço digno dos deuses, como há muito tempo não acontecia. Do bosque próximo chegava até mim o som produzido por um pica-pau.

Depois de esvaziar o prato de massa, passei os pratos por água e continuei com as limpezas. Lavei a banheira, o lavatório e a retrete, dei óleo de cedro nos móveis. Graças aos cuidados que o Rato demonstrara ter, não havia nada que estivesse particularmente sujo, e uma simples borrifadela com o spray para móveis foi quanto bastou para que as madeiras recuperassem o brilho perdido. Em seguida, fui lá fora buscar uma mangueira comprida e lavei as janelas e as persianas. Foi quanto bastou para que a casa ficasse toda ela com aspecto de limpa. Voltei para dentro e limpei os vidros com um pano húmido, altura em que dei o trabalho por terminado. As duas horas que faltavam para o anoitecer, passei-as a ouvir discos.

Ao cair da noite, no momento em que me dirigia ao quarto do Rato para ir buscar outro livro, a minha atenção foi atraída pelo espelho de corpo inteiro que havia ao pé das escadas e reparei que estava sujíssimo. Limpei-o com um pano húmido, mas por mais que esfregasse com o pano e que o borrifasse com o líquido para vidros, o espelho não havia maneira de ficar limpo. Por que carga de água é que o Rato não se dera ao trabalho de limpar aquele espelho? Fui buscar um balde com água morna, mergulhei nele uma escova de nylon e dei uma primeira esfregadela. Removi a sujidade acumulada à superfície e puxei o brilho com um pano seco. A sujidade era de tal ordem que deixou preta a água do balde.

Tratava-se de uma peça de mobiliário antiga, de inegável valor, com moldura de madeira escrupulosamente trabalhada, por isso tive o cuidado de não exagerar na limpeza.

Ali estava eu, fielmente reflectido dos pés à cabeça. De pé, diante do espelho, fiquei a olhar para mim durante alguns momentos. Nada de especial, que fosse digno de nota. Era mesmo eu, com aquela minha expressão ambígua estampada no rosto. Contudo, o que ressaltava era a imagem, demasiado nítida. Faltava-lhe a típica monotonia bidimensional própria das imagens espelhadas. Em vez de ser eu a contemplar a minha imagem no espelho, era a minha própria imagem unidimensional a contemplar o meu verdadeiro «eu». Levantei a minha mão direita e limpei a boca com as costas da mão. O «eu» reflectido no espelho fez o mesmíssimo gesto. Ou, então, talvez tivesse sido eu a repetir o gesto do meu reflexo. Naquela altura, já não saberia dizer com toda a certeza se limpara de facto a boca com as costas da mão por minha livre e espontânea vontade.

Guardei a expressão «livre e espontânea vontade» na cabeça e, com o indicador e o polegar da minha mão esquerda, prendi o lóbulo da orelha. O «eu» do espelho fez o mesmo gesto. Pelos vistos, também ele guardara na cabeça a expressão «livre e espontânea vontade».

Às tantas, desisti e afastei-me do espelho. Ele fez o mesmo.

No décimo segundo dia, nevou pela terceira vez. Quando acordei, já a neve começara a cair. Por sinal, uma neve espantosamente silenciosa. Não era sólida de mais, nem pegajosa e húmida. Caía devagarinho do céu, os flocos dançavam e dissolviam-se antes de chegarem a amontoar-se. Era uma neve de calmaria, que convidava a fechar os olhos.

Fui à arrecadação buscar a guitarra e, depois de a muito custo conseguir afiná-la, lá tentei tocar algumas velhas melodias. Pus-me a praticar os acordes de «Airmail Special», de Benny Goodman, e quando dei por mim estava na hora de almoçar. Fiz uma sanduíche com fatias grossas de presunto e pão caseiro duro como uma pedra e bebi uma cerveja a acompanhar.

Regressei à minha guitarra e, passado meia hora, apareceu o homem-carneiro. A neve continuava a cair mansamente.

- Se estou a incomodar, diz, que volto mais tarde - disse ele da entrada, ainda com a porta aberta.

- Não, não, pelo contrário. Estava a morrer de tédio - repliquei, pousando a guitarra no chão.

O homem-carneiro descalçou os sapatos, voltou a bater a sola das botas uma contra a outra, como da outra vez, e entrou. A roupa grossa de pele de carneiro adaptava-se que nem uma luva ao seu corpo, no meio daquele cenário de neve. Ele veio sentar-se diante de mim, pousou as mãos nos braços do sofá e remexeu-se umas quantas vezes até encontrar posição.

- E a neve, ainda não corre o risco de se acumular?

- Ainda não - respondeu o homem-carneiro. Não sei se sabes, mas existe um tipo de neve que se acumula e outro que não. Esta é do tipo que não se acumula.

- Estou a ver.

- O tipo de neve que se acumula só começará a cair para a semana que vem.

- Queres uma cerveja?

- Obrigado. Prefiro conhaque, se puder ser.

Fui à cozinha buscar a garrafa de brandy e trouxe-a para a sala, numa bandeja, juntamente com uma lata de cerveja e meia dúzia de sanduíches de queijo.

-Vejo que estavas a tocar guitarra - afirmou ele, com uma pontinha de admiração na voz. -Também eu gosto muito de música, isto apesar de não tocar nenhum instrumento.

-Também não se pode dizer que eu saiba tocar lá muito bem. Há dez anos que não sabia o que era ter uma guitarra na mão.

- Não faz mal. Toca qualquer coisa na mesma.

Para lhe fazer a vontade, toquei a melodia de «Airmail Special» do princípio ao fim, com alguns improvisos pelo meio e juntando a voz ao gesto, mas não tardei a perder o ritmo, e a conta às cordas da guitarra, e desisti.

- Muito bem - elogiou o homem-carneiro com uma expressão sincera. - Deve ser bom saber tocar assim.

- Quando se toca bem, é. Mas para tocar bem é preciso ter um bom ouvido. E uma vez educado o ouvido, uma pessoa acaba por ficar triste e deprimida só de se ouvir tocar.

- A sério? - exclamou ele. - Não me digas!

O homem-carneiro despejou um pouco de conhaque no copo e saboreou a sua bebida. Eu fiz saltar a tampa da minha cerveja e bebi directamente da lata.

- Não pude transmitir a tua mensagem - confessou ele. Assenti com um gesto de cabeça, em silêncio.

- Vim cá só para te dizer isso.

Dei uma olhadela ao calendário pendurado na parede. Faltavam três dias para a data assinalada a vermelho. Mas no ponto em que estavam as coisas, isso pouca ou nenhuma importância tinha.

- As circunstâncias agora são outras - afirmei. - Começo a ficar irritado, mesmo muito irritado. Nunca na minha vida me senti assim tão danado.

Sem deixar de segurar no copo, o homem-carneiro continuou calado.

Peguei na guitarra e, sem pensar duas vezes, bati violentamente com as costas do instrumento contra os tijolos da lareira. A guitarra partiu-se com um estrondo enorme, ao mesmo tempo que as cordas produziam um som desafinado.

- Também eu tenho direito a zangar-me - exclamei. Era como se estivesse mais a falar comigo do que com ele. Também eu estava no meu direito de perder a paciência e zangar-me.

-Tenho pena, tenho muita pena, mas não te posso ajudar. Agora, sinceramente, quero que saibas que gosto de ti.

Ficámos em silêncio durante alguns momentos, absortos na contemplação do céu. Era uma neve macia, como se as nuvens se tivessem rasgado e começado a deixar cair flocos de neve.

Dirigi-me à cozinha para ir buscar mais uma lata de cerveja. Ao passar diante da escada, olhei de relance para o espelho. O meu outro «eu» também ia a caminho da cozinha em busca de cerveja. Olhámos um para o outro e soltámos ambos um profundo suspiro. Visto que vivíamos em mundos diferentes, não deixava de ser estranho que partilhássemos os mesmos pensamentos. Como Groucho Marx e Harpo em Os Grandes Aldrabões(29).

O espelho reflectia a sala que se encontrava atrás de mim. Melhor dizendo: via-se uma sala nas costas do meu outro «eu». A sala que

 

*29. Duck Soup, realizado em 1933 por Leo McCarey, porventura o mais louco dos filmes dos Irmãos Marx. A cena do espelho é de antologia. (N. da T.)

 

ficava nas minhas costas e a sala que ficava nas costas do outro «eu» eram idênticas. Sofás, tapete, relógio, quadro, estante, tudo igual. Não se podia dizer que fossem salas pouco acolhedoras, se bem que não fossem o supra-sumo do gosto. Contudo, havia ali qualquer coisa diferente. Ou seria impressão minha?

Fui ao frigorífico buscar outra Lõwenbrau azul e regressei à sala, de lata na mão, dedicando-me a observar a sala reflectida no espelho e, depois, a verdadeira. Sentado no sofá, o homem-carneiro continuava a contemplar distraidamente a neve.

Voltei a olhar para o espelho, a fim de confirmar a presença do homem-carneiro. Mas o espelho não reflectia a imagem do homem-carneiro. O espelho mostrava apenas uma sala vazia com o seu jogo de sofás. No mundo reflectivo através do espelho, eu estava sozinho. Um calafrio fez estremecer a minha espinha.

- Estás com um ar pálido - disse-me o homem-carneiro. Sentei-me no sofá em silêncio, abri a lata de cerveja e bebi um

gole, sempre sem dizer nada.

- Aposto que te constipaste. O Inverno por estas bandas é muito rigoroso, sobretudo para as pessoas que não estão acostumadas. Existe muita humidade no ar. Acho boa ideia ires para a cama mais cedo.

- Nem penses nisso - retorqui. - Esta noite não vou dormir. Vou ficar sentado a noite inteira, à espera que o meu amigo apareça.

- E tens a certeza de que ele vem?

- Tenho - repliquei. - Ele virá quando forem dez da noite.

O homem-carneiro nada disse. Ficou a olhar para mim, com os seus olhinhos completamente inexpressivos a espreitarem por detrás das aberturas da máscara.

- Vou fazer as malas esta noite a fim de partir amanhã. Se o vires, diz-lhe isso mesmo. Ainda que esteja em crer que tal não será necessário.

O homem-carneiro assentiu para mostrar que tinha percebido a mensagem.

- Vou sentir a tua falta. Paciência. O que tem de ser, tem muita força. A propósito, posso levar aquela sanduíche de queijo para o caminho?

- Podes.

Ele embrulhou a sanduíche num guardanapo de papel, meteu-a ao bolso e calçou as luvas.

- Oxalá nos voltemos a encontrar - disse ele, em jeito de despedida.

-Voltaremos a encontrar-nos - disse eu.

O homem-carneiro caminhou pela pradaria fora, em direcção a leste. Num abrir e fechar de olhos, a neve branca envolveu-o como um manto. Depois, ficou apenas o silêncio.

Deitei dois dedos de conhaque no copo do homem-carneiro e bebi um único golo. Senti um súbito calor escorregar pela garganta, e o meu estômago, aos poucos, começou a arder. Trinta segundos depois, o meu corpo deixou de tremer. Só o tiquetaque do relógio de pêndulo marcando a passagem do tempo ressoava na minha cabeça excessivamente desperta.

Precisava de dormir um bocadinho.

Subi ao andar de cima para ir buscar uma manta e deixei-me ficar no sofá. Estava de rastos, como uma criancinha perdida que tivesse andado a vaguear durante três dias numa floresta. Fechei os olhos e adormeci no instante seguinte.

Tive um pesadelo. Um pesadelo tão desagradável que nem sequer me consegui lembrar dele mais tarde.

 

Uma escuridão profunda e oleosa penetrou em mim através do ouvido. Estava alguém a tentar quebrar a Terra congelada com a ajuda de um gigantesco martelo. O martelo bateu oito vezes exactas sobre a superfície terrestre, mas o globo não havia meio de quebrar, apenas ficou ligeiramente rachado.

Oito horas. Eram oito horas da noite.

Abanei a cabeça e acordei. Sentia o corpo entorpecido e doía-me a cabeça. Parecia que alguém me colocara dentro de um shaker com gelo e começara desalmadamente a agitar-me. Não existe nada mais desagradável do que acordar no meio do escuro. Dá a impressão de que é preciso voltar atrás e refazer tudo do princípio. Mal uma pessoa desperta, a primeira sensação que se tem é a de se estar a viver uma vida que não é a sua, mas sim a de outra pessoa. Até que essa vivência se sobreponha à minha, passa uma eternidade. É estranha, a sensação de contemplar a própria vida como se de uma vida alheia se tratasse. A própria existência acaba por se tornar, ela própria, incompreensível.

Passei a cara por água na torneira do lava-loiça e aproveitei para beber dois copos de água. A água estava gelada, ao ponto de quase estalar, mas nem assim consegui arrefecer o ardor do rosto. Tornei a sentar-me no sofá e, no meio do escuro e do silêncio, comecei aos poucos a juntar os pedaços da minha vida. Não logrei recolher grande coisa, verdade se diga, mas pelo menos eram os meus pedaços, e a minha vida. Devagarinho, fui voltando a ser eu.

Não consigo explicar decentemente o que significa ser eu mesmo. Além do mais, a quem é que isso interessa alguma coisa?

Tinha a sensação de estar a ser observado, mas isso não me perturbava por aí além. Estar sozinho numa sala espaçosa costuma provocar esse tipo de sensação.

Pus-me a pensar em células. Como a minha mulher tinha dito, com o tempo, acabamos por perder todas as nossas células. E às tantas perdemo-nos também. Apertei as palmas das mãos contra a minha cara. O rosto que eu tacteava no meio do escuro não parecia o meu. Era o rosto de alguém que tinha os meus traços. Até a memória me atraiçoava. Os nomes de todos os objectos dissolviam-se e eram como que tragados pela escuridão.

No meio das trevas, o relógio deu as oito e meia. A neve tinha parado de cair, mas o céu continuava encoberto por espessas nuvens. A escuridão era total. Sentado no sofá, continuei durante muito tempo a roer a unha do polegar. Nem sequer dava para ver a minha mão. Com o aquecedor desligado, a sala estava um gelo. Enrolado na manta, observei distraidamente a escuridão que me envolvia. Era como se estivesse enrodilhado no fundo de um poço.

O tempo passou. Minúsculas partículas de trevas descreviam um estranho padrão na minha retina. Com o passar do tempo, o padrão dissolveu-se silenciosamente, e outro padrão começou a ganhar forma. No espaço denso e estagnado como mercúrio, só as trevas se moviam.

Abandonei os meus pensamentos e deixei correr as horas. O tempo levou-me com ele. E novas trevas desenharam novas figuras.

O relógio bateu as nove. No instante em que a escuridão absorveu lentamente a nona batida, o silêncio preencheu o espaço em aberto.

- Podemos conversar? - perguntou-me o Rato.

- Claro - respondi.

- Claro - disse eu.

- Acabei por chegar uma hora mais cedo - disse o Rato, à laia de desculpa.

- Não faz mal. Não tenho nada que fazer, como podes ver.

O Rato riu de mansinho. Encontrava-se sentado atrás de mim, quase como se estivéssemos de costas.

- Como nos bons velhos tempos - observou ele.

- Pelos vistos, só conseguimos ter uma conversa decente quando não temos mais nada para fazer, não é? - retorqui.

- Assim parece.

Mesmo sentado no escuro e de costas para ele, não me escapou o seu sorriso. Basta uma certa agitação no ar e um certo e determinado clima para ficarmos a saber uma quantidade de coisas. É bom não esquecer que costumávamos ser amigos. Num tempo tão distante no passado que mal me conseguia lembrar.

- Não houve alguém que disse um dia que o verdadeiro amigo é aquele que está disposto a matar tempo connosco? - perguntou o Rato.

- Não foste tu quem disse isso?

-Vejo que continuas com um sexto sentido apurado. Acertaste em cheio.

Suspirei.

- Contudo, e atendendo à verdadeira farsa que deu o mote aos acontecimentos dos últimos tempos, confesso que o meu sexto sentido, como tu lhe chamas, tem andado pelas ruas da amargura. Quando penso nisso, só me apetece desaparecer do mapa. E isto apesar de todas as pistas que vocês me deram...

- Paciência. Apesar de tudo, portaste-te bem...

Ficámos os dois calados. O Rato parecia estar a contemplar outra vez as suas mãos.

- Fiz-te passar das boas, não fiz? - perguntou o Rato. - Lamento muito, a sério. A verdade é que não podia ser de outra maneira. Não tinha mais ninguém a quem recorrer, para além de ti. Acho que cheguei a escrever isso na carta que te enviei.

- E é precisamente acerca disso que tenho algumas perguntas para te fazer. Bem vês, as coisas, tal como elas aconteceram, tornam-se difíceis de aceitar.

- Claro - afiançou ele. - Conta comigo para te explicar tudo o que quiseres. Primeiro, vamos a uma cerveja.

Fiz menção de me levantar, mas o Rato impediu-me.

- Deixa que vou eu buscá-las. Afinal, a casa é minha.

Abri e fechei os olhos no escuro, enquanto ouvia os seus passos seguros afastarem-se em direcção à cozinha e o barulho das cervejas a serem tiradas do frigorífico. A escuridão da sala tinha um tom um tanto diferente da escuridão que aparecia por trás das minhas pálpebras fechadas.

O Rato voltou com as cervejas e pôs várias latas em cima da mesa.

- Às escuras, parece que a cerveja não tem o mesmo gosto -comentei.

Bebemos em silêncio durante alguns momentos.

- Bem - disse o Rato, e depois pigarreou.

Pousei a latinha outra vez em cima da mesa e, sempre enrolado na manta, fiquei calado à espera que o meu amigo se decidisse a falar. Porém, as palavras dele nunca mais chegavam. Pelo barulhinho, percebi que ele agitava a lata para ver a quantidade de cerveja que ainda tinha. Uma velha mania sua.

- Muito bem - começou o Rato outra vez. Ouvi-o sorver de uma só vez o restinho da cerveja e o barulho seco da lata a ser depositada em cima da mesa. -Vou começar por te contar a razão que me trouxe até cá. Achas bem?

Fiquei calado. O meu amigo certificou-se de que eu não fazia tenções de responder e prosseguiu:

- O meu pai comprou estas terras em 1953, tinha eu cinco anos de idade. Não sei dizer o que o terá levado a comprar terras num lugar como este, distante de tudo e de todos. Provavelmente, terá conseguido um bom preço, mediante algum contrato com o Exército norte-americano. Como tu próprio tiveste ocasião de verificar, o acesso a esta região é terrivelmente difícil. No Verão, até se torna agradável, mas assim que a neve começa a acumular-se, os caminhos por aqui tornam-se impraticáveis. Segundo parece, as forças de ocupação tencionavam melhorar as condições da estrada e instalar uma estação de radar ou uma coisa desse género lá no cimo de tudo, mas acabaram por mudar de ideias e desistir do projecto, depois de terem pesado na balança o trabalho e os custos.

- E o Professor Carneiro? Nunca quis voltar para cá?

- O Professor Carneiro vive mergulhado nas suas recordações. Aquele homem já não tem vontade de ir a parte alguma.

- Talvez tenhas razão.

- Bebe mais uma cerveja - ofereceu o Rato.

Recusei. Com o aquecedor desligado, sentia-me gelar até aos ossos. O Rato retirou a argola a outra cerveja e continuou a beber sozinho.

- O meu pai estava encantado com estas terras, ao ponto de providenciar o melhoramento parcial dos acessos e ter feito obras na casa. Segundo julgo saber, o investimento custou-lhe os olhos da cara. Contudo, graças a isso, a casa tornou-se habitável, pelo menos durante o Verão, isto desde que uma pessoa tivesse carro. Ele instalou aquecimento central, água corrente na casa de banho, chuveiro, telefone, e até gerador de emergência existe. Não consigo imaginar como o Professor Carneiro conseguia cá viver antes disso.

O Rato produziu um som que não era nem um grunhido nem um arroto.

- De 1955 até 1963, tínhamos por hábito passar aqui todos os Verões. Os meus pais, a minha irmã e eu, bem como uma empregada que se ocupava de tudo. Agora que penso nisso, deve ter sido muito provavelmente o melhor período da minha vida. No Verão, isto aqui enchia-se de carneiros, uma vez que a pastagem estava arrendada ao município, tal como, de resto, acontece nos dias de hoje. De modo que as minhas lembranças de Verão estão sempre ligadas a carneiros.

«Quanto a mim, não entendia lá muito bem o que era ter uma casa de veraneio. E muito provavelmente nunca saberei.

«No entanto, a partir de meados dos anos sessenta, a família praticamente deixou de aparecer por cá. Isto porque comprámos outra casa de férias, mais perto de onde morávamos, a minha irmã entretanto casou-se, eu começava a não me dar muito bem com a família, os negócios do meu pai começaram a dar para o torto... Seja como for, a verdade é que estas terras voltaram a ficar ao abandono. A última vez que vim até cá foi em 1967, se a memória não me falha. Nessa altura, fiz a viagem sozinho e passei aqui um mês.

O Rato calou-se por instantes, perdido nas suas recordações.

- Deves ter-te sentido triste, aqui sozinho - alvitrei eu.

- Nem um bocadinho. Se dependesse de mim, ficava aqui para sempre, mas não podia ser. Afinal, tratava-se da casa do meu pai, e se havia coisa que eu não queria era depender dele.

- Nem sequer agora?

- Nem agora - respondeu o meu amigo. - Por isso é que eu não fazia tenções de voltar para cá. Mas depois de ter visto por acaso uma fotografia desta região no átrio do Hotel Golfinho, a vontade de tornar a ver a casa foi mais forte que eu. Por razões sentimentais, não sei se estás a ver. Também já te deve ter acontecido o mesmo, não?

- A-hã - concordei eu. De repente, lembrei-me do meu pedaço de oceano, agora convertido em terra.

-Também foi lá que ouvi a história do Professor Carneiro. A tal história do carneiro com uma marca em forma de estrela no dorso, que lhe apareceu em sonhos. Estás a par disso, não estás?

- Estou.

- Nesse caso, vou contar o resto em poucas palavras - anunciou o Rato. - Ao ouvir aquela história, fiquei de repente cheio de vontade de passar aqui um Inverno inteiro. Não conseguia tirar essa ideia da cabeça, desse lá por onde desse. De um momento para o outro, tanto me fazia como deixava de fazer se isto pertencia ao meu pai. Como tal, fiz os necessários preparativos e meti-me ao caminho. Era como se houvesse alguma coisa que me arrastasse até cá.

- E foi então que deste de caras com o tal carneiro, certo?

- Certíssimo.

- O que vem a seguir é para mim muito doloroso - confessou o Rato. - Tenho a impressão de que tu não serás capaz de avaliar a dimensão da minha dor, por mais coisas que te conte.

Amassou a segunda lata de cerveja, vazia, com o polegar.

- Se estiveres de acordo, prefiro que sejas tu a fazer-me as perguntas. Imagino que já devas ter uma vaga ideia do que aconteceu, ou não?

Disse que sim com um movimento de cabeça.

- Nesse caso, prefiro fazer as perguntas conforme elas me forem surgindo, ainda que seja de uma forma desconexa. Importas-te?

- Rigorosamente nada.

- Estás morto, não estás?

A resposta do Rato demorou um tempo espantosamente longo a chegar. Talvez não passassem de alguns segundos, mas, aos meus olhos, foi uma eternidade. Sentia a boca seca e pastosa.

- É verdade - respondeu o Rato calmamente. - Eu já morri.

 

- Enforquei-me na trave da cozinha - disse o Rato. - O homem-carneiro enterrou-me ao pé da garagem. O facto de morrer não representou um sofrimento assim tão grande quanto isso, se é isso que te preocupa. Na verdade, porém, isso são pormenores de lana-caprina.

- Quando?

- Uma semana antes de tu chegares.

- Nesse caso, foste tu que deste corda ao relógio, não foi? O Rato desatou a rir.

-Vendo bem, a coisa tem a sua graça. Dá para acreditar que a última coisa que eu fiz no último dia do meu trigésimo ano de vida foi dar corda a um relógio? Por que diabo haveria um homem prestes a morrer de dar corda a um relógio, não me dirás? Não faz sentido...

Um silêncio impressionante abateu-se sobre a sala quando o Rato acabou de falar. Apenas se ouvia o tiquetaque do relógio. A neve tinha absorvido todos os restantes sons. Era como se fôssemos dois sobreviventes perdidos no espaço.

- E se eu...

- Deixa-te disso - atalhou o Rato. - Acabaram-se os «ses»... Sabes isso, não sabes?

Abanei a cabeça. Não, não sabia.

- Se tivesses chegado uma semana mais cedo, eu teria morrido na mesma. Talvez o nosso encontro tivesse decorrido num lugar mais luminoso e em circunstâncias mais calorosas e menos obscuras, por assim dizer. Porém, acredita em mim, vai tudo dar ao mesmo. Eu teria sempre de morrer, desse lá por onde desse. Teria apenas tornado tudo ainda mais penoso. E não me parece que eu fosse capaz de suportar esse tipo de sofrimento.

- Por que é que tinhas de morrer?

Ouvi-o esfregar as mãos, uma contra a outra, no escuro.

- Não quero falar acerca disso. Porque, vendo bem, estaria apenas a justificar-me. E não há nada mais deprimente do que ouvir um suicida a justificar o seu acto, não te parece?

- Como é que tu queres que eu compreenda, se não me explicas?

- Bebe mais uma cerveja.

- Tenho frio - disse eu.

- Já não está assim tanto frio.

Com a mão a tremer, puxei a argolinha da lata de cerveja e bebi um gole. Era verdade. Já não estava tanto frio.

-Vou explicar-te em meia dúzia de palavras, desde que prometas não contar a ninguém.

- Mesmo que eu contasse, quem é que ia acreditar em mim?

- Nisso tens razão - confessou o Rato, a rir-se. - Ninguém acreditaria numa história tão disparatada.

O relógio deu as nove e meia.

- Importas-te que pare o relógio? - perguntou-me o Rato. - Faz uma barulheira danada.

- Claro que não. O relógio é teu.

O Rato pôs-se de pé, abriu a portinhola do relógio e parou o pêndulo. E então o ruído e o tempo desapareceram da face da Terra.

- Resumindo, eu morri com o carneiro dentro de mim - contou o Rato. - Esperei até o carneiro estar profundamente adormecido, depois amarrei uma corda à viga e enforquei-me. Ele não teve tempo de fugir.

- E tinhas mesmo de ir a esse extremo?

-Tinha mesmo de ir a esse extremo, como tu muito bem dizes. Porque, se demorasse mais tempo, o carneiro passaria a controlar-me completamente. Era a minha última oportunidade.

O Rato esfregou as mãos mais uma vez.

- Gostaria de me ter encontrado contigo enquanto ainda era eu mesmo. Com as minhas próprias recordações e as minhas próprias fraquezas, não sei se estás a ver. Por isso é que te fiz chegar às mãos aquela fotografia, como se fosse uma espécie de mensagem em código. Tinha esperança de que, se o destino guiasse os teus passos até mim, talvez ainda houvesse lugar para a salvação. - E salvaste-te? - Sim - respondeu o Rato calmamente. - Salvei-me.

- A chave do mistério está na fraqueza - disse o Rato. - É aí que tudo começa. Compreendes o que te estou a dizer?

- O ser humano é fraco.

- Estás a generalizar - afirmou o Rato, fazendo estalar as articulações dos dedos. - Não vais a lado nenhum se começas com generalizações dessas. Neste momento, estou a falar-te de coisas muito pessoais, de um caso concreto.

Calei-me.

- A fraqueza é algo que nos apodrece por dentro. Como a gangrena. Desde os meus quinze anos, mais ou menos, que sei o que isso é. Por isso é que vivia assim tão irritado. Imaginas o que é uma pessoa sentir-se a apodrecer aos poucos e essa sensação nunca te abandonar, de dia como de noite?

Enrolado na minha manta, fiquei calado.

- Não me parece que consigas compreender - continuou o Rato. - Na tua personalidade não existe esse lado negro. Seja como for, é disso que falamos quando falamos de fraqueza. Quase um mal hereditário, estás a perceber? Por mais que saibas que ele existe, não tens maneira de o curar. Além de que essa espécie de doença congénita não se cura assim de um dia para o outro. Tende a piorar, com o tempo.

- A que tipo de fraqueza é que te referes?

- Todos os tipos, sem excepção. Fraqueza moral, anímica, da própria existência.

Ri-me. Daquela vez, saiu cá para fora.

- Quem te ouvir falar, julga que não há quem não seja fraco...

- Não vamos generalizar, já disse. É evidente que todos os seres humanos têm as suas fraquezas. Contudo, a verdadeira fraqueza é quase tão rara como a força verdadeira. Não sabes o que é essa fraqueza que te arrasta incessantemente para as trevas, mas ela existe, de facto. E não podes resolver todos os problemas generalizando esse facto.

Continuei em silêncio.

- Foi por isso que me vim embora daquela cidade. Não queria que os meus amigos testemunhassem a minha progressiva degradação. Nem eles, nem tu. Enquanto eu percorresse sozinho os caminhos por terras desconhecidas, pelo menos não estaria a criar problemas a ninguém. Mas, afinal... - disse o Rato, num tom sombrio, afundando-se mais no escuro. - Afinal, foi por causa dessa fraqueza que eu não consegui sair da sombra do carneiro. Não tive forças. E mesmo que tu tivesses conseguido chegar a tempo, acho que não teria conseguido. Mesmo que me tivesses convencido a descer a montanha, o mais provável era eu voltar a subi-la logo a seguir, o que teria vindo dar no mesmo. É assim que actua, a fraqueza.

- O que é que o carneiro pretendia de ti?

- Tudo. Todas as coisas possíveis e imagináveis. O meu corpo, as minhas lembranças, as minhas fraquezas, as minhas contradições... O carneiro pela-se por esse tipo de coisas. O cabrão tem uma série de tentáculos que introduz nos ouvidos e no nariz das pessoas e usa-os como palhinhas para sugar o cérebro das pessoas. Ainda agora fico com calafrios, só de pensar nisso...

- Em troca de quê?

- Em troca de algo muito bom. Demasiado bom, mesmo para um tipo como eu. Se bem que o carneiro não me tenha mostrado nada em concreto. Vislumbrei apenas uma parte. Ainda assim...

O Rato calou-se.

-Ainda assim, conseguiu subjugar-me. De tal maneira que não tive salvação possível. Não é uma coisa que eu consiga traduzir em palavras. É como se fosse um cadinho que engole tudo. Tão bonito, que te faz perder os sentidos, mas, ao mesmo tempo, de uma monstruosidade diabólica. Se uma pessoa deixar cair o seu corpo nesse cadinho, apaga-se tudo. Consciência, noção de valores, sentimentos de dor, desaparece tudo. É algo que se pode comparar remotamente ao dinamismo de todas as coisas primitivas no momento em que a fonte da vida surgiu num pequeno ponto do universo.

- Mas tu encontraste maneira de resistir.

- Sim. Tudo isso foi enterrado com o meu corpo. E para que fique para sempre enterrado, basta apenas fazer mais uma coisa.

- Só mais uma coisa?

- Só mais uma. E essa missão, sou eu que te vou encarregar dela. Mas deixemos esse assunto para depois.

Bebemos os dois um gole de cerveja, ao mesmo tempo. O meu corpo começou aos poucos a reagir e a aquecer.

- E o coágulo de sangue funciona como um chicote, nesse caso? - quis eu saber. - Quer dizer, um chicote para o carneiro manipular o seu hospedeiro?

- Exactamente. Quando o coágulo se forma, uma pessoa já não se consegue livrar do carneiro.

- Qual o objectivo do Líder Supremo?

- O homem enlouqueceu. Acho que não conseguiu resistir à visão do cadinho. O carneiro usou-o para construir a sua poderosa máquina de poder. Para tal, entrou no corpo dele. O Líder Supremo era um objecto descartável, por assim dizer. Do ponto de vista intelectual, o Líder Supremo era um verdadeiro zero à esquerda.

- E quando o Líder Supremo morresse, o carneiro fazia tenções de te usar a ti para continuar no comando dessa estrutura de poder?

- Exacto.

- E depois disso, o que aconteceria?

- Viria um reino fundamentado no conceito de anarquia total. Um mundo em que os opostos se uniriam para dar forma a um grande todo. E no centro desse reino estaríamos nós, o carneiro e eu.

- O que te levou a recusar?

O tempo parara, morrera. E sobre o tempo morto, a neve acumulava-se em silêncio.

-Acho que no fundo gosto das minhas fraquezas. Gosto do sofrimento. Gosto da luz de Verão, do cheiro do vento, do canto das cigarras... gosto demasiado disso, que é que queres? Da mesma forma que gosto de beber a minha cervejinha na tua companhia... - confessou o Rato, engolindo as palavras seguintes. - Sei lá...

Também eu andava à procura das palavras adequadas, sem as encontrar. Enrolado na manta, olhei fixamente para o fundo das trevas.

- Quer-me parecer que nós os dois criámos duas coisas radicalmente diferentes a partir de um mesmo material - disse ele. - Acreditas que este mundo vai melhorar?

- E quem sabe o que é bom e o que é mau?

O Rato desatou a rir.

- Quem sabe o que é bom e o que é mau? Se o reino das generalizações existisse, ali serias tu o senhor absoluto.

- Sem a ajuda do carneiro?

- Sem a ajuda do carneiro, naturalmente.

O Rato esvaziou a sua terceira cerveja num único trago e depositou a lata vazia no chão.

- É melhor pores-te a caminho, montanha abaixo, antes que a neve te deixe encurralado. Com certeza que não queres passar o Inverno prisioneiro neste fim do mundo, pois não? Mais quatro ou cinco dias, e a neve começará a acumular-se. E, depois, torna-se muito difícil e perigoso percorrer os caminhos montanhosos, uma vez que ficam completamente gelados.

- E tu? Quais são os teus planos, a partir de agora?

O Rato riu-se no escuro, uma gargalhadinha de puro prazer.

- Daqui em diante, não existe «a partir de agora». Quando o Inverno chegar ao fim, aos poucos terei desaparecido. Não faço ideia do tempo que o Inverno vai demorar, se será curto ou prolongado, mas, de qualquer modo, o Inverno é sempre o Inverno. Olha, foi muito bom ter passado este bocado na tua companhia. Ainda que eu preferisse ter-me encontrado contigo num lugar mais quente, isto, claro está, se eu pudesse escolher...

- J mandou-te um abraço.

- Dá-lhe cumprimentos meus, também.

- Também fui falar com ela.

- Como é que ela está?

- Bem. Continua a trabalhar na mesma empresa.

- Ainda não se casou?

- Não - respondi. - Ela mandou perguntar se estava tudo acabado entre os dois.

- Está tudo acabado - respondeu o Rato. - Bem sei que a decisão não devia ter sido unilateral, mas o facto é que a coisa chegou ao fim. A minha vida não fez o mínimo sentido. Se bem que, isto deitando mão a uma daquelas generalizações de que tu tanto gostas, nenhuma vida tenha sentido. Certo?

- Se tu o dizes - repliquei. - Tenho duas últimas questões.

- Força.

- A primeira, diz respeito ao homem-carneiro.

- O homem-carneiro é um tipo porreiro.

- O homem-carneiro que apareceu aqui eras tu, não eras?

O Rato fez girar a cabeça provocando minúsculos estalidos na região do pescoço.

- Com efeito. Apropriei-me do corpo dele, à laia de empréstimo. Quer então dizer que calculaste logo?

- Só passado algum tempo. Ao princípio, não fazia ideia.

- Para ser absolutamente honesto, surpreendeste-me, para não dizer que me assustaste, com aquela história de dar cabo da guitarra. Nunca te tinha visto tão danado. Além de que aquela foi a minha primeira guitarra. Não foi cara, mas ainda assim...

- Desculpa lá - disse eu. - Estava a tentar assustar-te, para ver se te assumias e tiravas a máscara.

- Tudo bem, deixa estar. De qualquer modo, amanhã por esta hora já cá não estará nada - disse o Rato, abruptamente. - A segunda pergunta diz respeito à tua namorada, não é?

- Acertaste.

O Rato permaneceu em silêncio durante um grande bocado. Ouvi-o esfregar as mãos uma na outra e, depois, suspirar.

- Para dizer a verdade, não queria tocar nesse assunto. Ela foi um factor inesperado, uma carta fora do baralho com o qual eu não contava.

- Com que então, um factor inesperado?

- A-hã. Esta nossa reunião era para ser uma coisa mais íntima, só entre nós os dois. E, de repente, ali estava ela. Nunca devíamos ter permitido que ela aparecesse metida ao barulho. Como tu bem sabes, aquela miúda é dona de um poder extraordinário. O poder de atrair muitas coisas, como sabes. Nunca devia ter vindo até cá. Este sítio ultrapassa de longe os seus poderes.

- Que é feito dela?

- Está a salvo. Encontra-se bem e de saúde - explicou o Rato. - A única coisa foi que perdeu o dom e deixou de te atrair. É triste, mas é verdade.

- Como é que isso aconteceu?

- Desapareceu, foi à vida. Alguma coisa dentro dela se apagou, para sempre.

Fiquei calado.

- Imagino perfeitamente como te deves sentir - continuou o Rato. - Mais cedo ou mais tarde, tinha de acontecer. Tal como muita coisa desapareceu dentro de mim, dentro de ti, dentro de tantas raparigas que conhecemos.

Assenti com um movimento de cabeça.

- Bom, acho que está na hora de partir - anunciou o Rato. -Não posso demorar-me mais. Qualquer dia a gente vê-se.

- Assim o espero - disse eu.

- Se possível num lugar mais alegre e luminoso, e no Verão, de preferência. Só mais uma coisa. Amanhã de manhã, gostaria que acertasses o relógio, quando forem nove horas. Peço-te ainda que juntes os fios que existem por detrás dele. O fio verde com o fio verde, o fio vermelho com o fio vermelho. Às nove e meia, quero que saias daqui e abandones a montanha. Ao meio-dia em ponto convoquei uma pessoa para uma pequena reunião, neste lugar. Achas que és capaz de fazer tudo como deve ser?

- Não te preocupes.

- Gostei muito de te ver - disse o Rato. Por instantes envolveu-nos o silêncio.

- Adeus - disse o Rato.

- Até à vista - disse eu.

Enrolado na manta, fechei os olhos e apurei o ouvido. O meu amigo atravessou a sala e os seus sapatos produziram um ruído seco, e depois abriu a porta. Um frio gelado invadiu a sala. Um frio sem vento, pesado, que parecia assentar e penetrar em todos os poros.

Com a porta aberta, o Rato permaneceu parado à entrada da casa. Não parecia estar a olhar para a paisagem lá fora, nem para o interior da sala, nem para o meu vulto enrolado no cobertor. Observava qualquer coisa completamente diferente. Dava a impressão de estar a contemplar a maçaneta, ou talvez a ponta dos seus sapatos. Em seguida, fechou a porta com um suave estalido, como se fechasse as portas do tempo.

Depois disso, silêncio. Nada mais que silêncio.

 

Passado algum tempo depois de o Rato ter desaparecido, comecei a sentir um mal-estar intenso, quase insuportável. Fui por mais de uma vez à casa de banho, para ver se conseguia vomitar, mas não me saía nada da boca, tirando uma espécie de golfadas de bafo azedo.

Subi ao andar de cima, despi a camisola e enfiei-me debaixo das cobertas. Os arrepios de frio e os acessos de febre alternavam. A cada nova onda, o quarto agigantava-se ou diminuía de tamanho. Os cobertores e o lençol de baixo, encharcados de suor, começaram a comprimir-me como toalhas geladas, ao ponto de me sentir estrangulado pelo frio.

«Quando forem nove horas, dá corda ao relógio», sussurrava alguém ao meu ouvido. «Fio verde com fio verde... fio vermelho com fio vermelho... Às nove e meia, põe-te a mexer daqui...»

«Não te preocupes», dizia o homem-carneiro. «Vai correr tudo bem.»

«As células do corpo renovam-se todos os meses», dizia a minha mulher. Ela trazia na mão direita uma combinação de renda branca(30).

Inconscientemente, a minha cabeça tombava a torto e a direito.

 

*30. Referência a Blackbird Pie, de Raymond Carver (1988) em que o escritor norte-americano, um dos eleitos de Murakami, reflecte longamente sobre a «pré-história» do seu relacionamento com a mulher, depois de esta o ter abandonado. Para além de ser um clássico, o conto inscreve-se no coração de várias importantes discussões sobre os estudos de pós-modernidade. (N. da T.)

 

«Estou a ver que não percebes rigorosamente a ponta de um corno», lançava-me a minha namorada à cara. Era isso mesmo, eu não percebia nada de nada.

Ouvi um marulhar distante. Pesadas ondas de Inverno. Mar cinzento, cor de chumbo, ondas brancas à imagem de certos e determinados pescoços. Gaivotas geladas.

Estou na sala de exposição hermeticamente fechada do aquário. Uma série de pénis de baleia estão expostos ao lado uns dos outros. Faz um calor intenso e sufocante. Alguém devia abrir as janelas.

«Nada a fazer», diz o motorista. «Se abrires uma janela que seja, nunca mais a poderás fechar. E, nesse caso, morreremos todos.»

Alguém abriu a janela. Que frio! Oiço as gaivotas a gritar. Os seus gritos agudos e dilacerantes rasgam-me a pele.

«Lembras-te do nome do gato?»

«Arenque», respondo.

«Nada disso. O nome dele já não é Arenque», corrige o motorista. «É outro. Os nomes mudam enquanto o diabo esfrega um olho. Aposto que nem sequer te lembras do teu próprio nome.»

Um frio diabólico! E gaivotas, as gaivotas que nunca mais acabam.

«A mediocridade percorre um longo caminho», diz o homem de fato preto. «Fio verde com fio vermelho, fio vermelho com fio verde.»

«Já ouviste falar da guerra?», pergunta o homem-carneiro.

A orquestra de Benny Goodman começou a tocar «Airmail Special». Charlie Christian executa um longo solo. Ele usa um chapéu de feltro, de cor creme. É a última imagem de que me lembro.

 

Os pássaros cantavam.

Os raios de sol infiltravam-se pelas tabuinhas das persianas, projectando franjas de luz na cama. O meu relógio de pulso caído aos pés da cama indicava 7h35. Os cobertores e a camisa estavam encharcados, como se me tivessem despejado um balde de água em cima enquanto eu dormia.

Ainda sentia a cabeça confusa e enevoada, mas a febre tinha desaparecido. Lá fora, o mundo apresentava os contornos de uma imensa paisagem coberta de neve. A pradaria cintilava como prata na claridade de uma nova manhã. O ar frio era revigorante.

Desci as escadas e tomei um duche com a água a escaldar. O meu rosto estava anormalmente pálido, bastara uma noite para ficar com as faces encovadas. Besuntei a cara com o triplo de creme de barbear do que era normal e fiz a barba com todo o cuidado. A seguir, urinei até dizer chega.

Quando acabei de mijar, sentia-me tão fraco que fiquei sentado na chaise-longue uns bons quinze minutos, ainda com o roupão vestido. Os pássaros continuavam a cantar. A neve começou o seu lento degelo, gotejando pausadamente lá de cima do telhado. Volta e meia, eu ouvia à distância o som do gelo a estalar e a fragmentar-se.

Às oito e meia, bebi dois copos de sumo de uva e comi uma maçã inteira. Peguei numa garrafa de vinho e numa tablete grande de chocolate Hershey, e da despensa improvisada na cave trouxe mais duas maçãs.

A seguir juntei as minhas coisas. Assim que a mala ficou feita, a sala adquiriu bruscamente um ar de desolação. Encaminhava-se tudo para o fim.

Certifiquei-me de que o relógio de pulso marcava as nove, puxei os três pesos do relógio de pêndulo para cima e acertei os ponteiros. Só então afastei o pesado relógio da parede e juntei os fios soltos que se destacavam na parte de trás. O fio verde com o fio verde. E o fio vermelho com o fio vermelho.

Os fios saíam de quatro buracos abertos com uma broca na madeira do relógio. Dois em cima e dois mais abaixo. Tinham sido solidamente fixados ao corpo do relógio com o mesmo arame que eu vira no banco de trás do jipe. Devolvi o relógio à posição inicial e, diante do espelho, despedi-me de mim mesmo.

«Espero que corra tudo bem», disse eu.

«Espero que corra tudo bem», disse o outro.

Atravessei em diagonal o prado, tal como acontecera à vinda. A neve estalava debaixo dos meus pés. A vasta pradaria lembrava um gigantesco lago vulcânico de prata. Não se via uma única pegada. Olhei para trás e vi as minhas, seguindo sempre até à casa. As minhas pegadas formavam um trilho abaulado, o que me deixou espantado. Não é fácil andar em linha recta.

Assim vista de longe, a casa pareceu-me uma criatura viva. Oprimida, contorcia-se a fim de sacudir a neve da cumeeira. Matacões inteiros de neve deslizavam silenciosamente pela rampa do telhado e vinham espatifar-se no chão.

Continuei sempre a andar, até chegar ao outro lado da pradaria. Percorri em seguida o infindável bosque de bétulas-brancas, atravessei a ponte, contornei o cume em forma de cone e fui dar à tal curva sinistra.

Por sorte, a neve amontoada na curva ainda não tinha congelado. Contudo, por mais que eu pisasse com firmeza o solo, não me conseguia livrar da desagradável sensação de estar a ser arrastado para o fundo do precipício a cada passo que dava. Agarrado à rocha porosa do paredão, que se esboroava ao contacto com as minhas mãos, levei finalmente de vencida a maldita curva. O suor escorria-me pelas axilas. Tal como nos pesadelos da minha infância.

À minha direita, estendia-se a planície. Também ela se encontrava coberta de neve. Mesmo ao meio, o rio Junitaki corria com um brilho cintilante. Julguei ter ouvido, ao longe, o apito do comboio. Estava um tempo maravilhoso.

Depois de recuperar o fôlego, tornei a pôr a mochila ao ombro e desci a ladeira. Ao dobrar a curva seguinte, vi um jipe novo que estava parado. E, à frente dele, estava o secretário vestido de preto.

 

- Estava à tua espera - disse o homem do fato preto. - Bem sei que ainda só passaram vinte minutos, mas...

- Como é que soube?

- Do local? Ou em relação à hora?

- Falo do horário - disse eu, depositando a mochila no chão.

- Por que é que achas que me tornei secretário do Líder Supremo? Por ser trabalhador? Diligente? Por ter um elevado Ql? Tacto político? Não me faças rir! Se sou secretário dele, devo-o aos meus dons. Ao sexto sentido, como vocês dizem, no vosso linguajar do povo.

Ele trazia vestido um casaco bege, calças de esquiador e um par de óculos Ray-Ban verdes.

- Tínhamos muitas coisas em comum, eu e o Líder Supremo. Coisas que escapavam à razão e iam para além da lógica e da ética, por exemplo.

- Tínhamos?

- O Líder Supremo morreu há uma semana. Teve direito a um enterro magnífico. Neste preciso momento, Tóquio está em polvorosa, tentando escolher um sucessor à altura. Os medíocres todos, a correr de um lado para o outro num esforço inútil. Os idiotas...

Suspirei. O homem tirou uma cigarreira prateada do bolso do casaco, escolheu um cigarro sem filtro e acendeu-o.

- Fumas?

- Não, obrigado - respondi.

- Tenho, porém, de reconhecer que te portaste à altura das circunstâncias. Muito melhor do que eu esperava. Para falar com honestidade, surpreendeste-me. Era minha intenção dar-te algumas pistas no decorrer da missão, no caso de ires ter a algum beco sem saída. De qualquer modo, encontrar o Professor Carneiro foi algo de genial, deixa que te diga. E tanto assim é que gostaria de te ter a trabalhar comigo.

- Depreendo que o senhor sabia à partida da existência deste lugar?

- Obviamente. Por quem me tomas?

- Posso fazer-lhe algumas perguntas?

- À vontade - retorquiu ele, bem-humorado -, mas sê breve.

- Por que é que não me disse nada acerca deste lugar?

- Porque queria que chegasses até ele de tua livre e espontânea vontade. E também porque queria que o desencantasses!

- Desencantar?

- Que o fizesses sair do seu antro espiritual.

- Antro?

- Quando um indivíduo é possuído pelo carneiro, perde momentaneamente a consciência de si mesmo. À imagem e semelhança do que acontece com a fadiga de combate. A tua missão era tirá-lo desse estado. Acontece, porém, que tu não podias saber de nada, para que ele confiasse em ti. Que tal? Simples, não te parece?

- Bastante.

- Todo o acto de magia se torna simples, a partir do momento em que o truque é revelado. Difícil é programar. Um computador não consegue ter em consideração o incansável vaivém das emoções humanas. De modo que a programação é, por assim dizer, quase artesanal. Ah, mas não existe alegria maior do que ver o programa que uma pessoa concebeu com tanto cuidado a funcionar na perfeição, exactamente como previsto!

Encolhi os ombros.

- Muito bem - prosseguiu o homem -, a nossa caça ao carneiro selvagem está a chegar ao fim, graças aos meus cálculos e à tua ingenuidade. Vou finalmente poder deitar-lhe a mão, certo?

- Assim parece - disse eu. - Ele está à sua espera lá em cima. Disse-me que têm encontro marcado ao meio-dia em ponto.

Verificámos ambos as horas nos respectivos relógios. Eram 10h40.

- Nesse caso, vou andando - disse o homem. - Não seria delicado da minha parte fazê-lo esperar. Quanto a ti, podes seguir no jipe até lá baixo. Isto para além dos teus honorários, claro.

O homem tirou um cheque do bolso do casaco e entregou-mo. Guardei-o sem verificar sequer o valor.

- Não conferes para ver se está certo?

- Não creio que seja necessário.

O homem soltou uma gargalhada com prazer.

- Tive muito gosto em trabalhar contigo. Uma última coisa. O teu amigo encerrou a empresa. Uma pena, sobretudo considerando que ele tinha um futuro promissor. A partir de agora e daqui em diante, o sector da publicidade vai expandir-se cada vez mais. Devias aventurar-te sozinho nesse campo.

- O senhor está louco - disse eu.

- Até um destes dias, espero eu - disse o homem. Em seguida, continuou a pé, contornando a curva, rumo ao planalto.

- O Arenque está em grande forma - disse-me o motorista, enquanto conduzia o jipe. - Gordo que nem um texugo.

Eu seguia viagem ao lado do motorista. Ele parecia-me uma pessoa totalmente diferente da que conduzia aquela monstruosa limusina. Contou-me imensas coisas a respeito do enterro do Líder Supremo e dos cuidados que dispensara ao gato, mas confesso que mal lhe prestava atenção.

Eram quase onze e meia quando o jipe parou à frente da estação. Reinava a calma, ao ponto de a cidade parecer morta. Um velho removia com a ajuda da pá a neve acumulada na rotunda. A seu lado, um cãozinho magro e abatido abanava o rabo.

- Obrigado pela boleia - disse eu ao motorista.

- Não tem de quê - respondeu-me ele. - Ah, é verdade, e a respeito do número de telefone de Deus, experimentou ligar para lá?

- Confesso que não tive tempo.

- É estranho, desde que o Líder Supremo morreu, não consigo ligação. Que terá acontecido?

- O mais certo é ele andar muito ocupado - respondi.

- Deve ter razão - disse o motorista. - Felicidades.

- Adeus - disse eu.

Havia um comboio ao meio-dia em ponto. Não se via vivalma na plataforma de embarque, e os passageiros eram apenas quatro, contando comigo. Ainda assim, senti um certo alívio ao ver-me rodeado de pessoas, depois de tanto tempo sozinho. Não sei explicar bem como, mas cá estava eu, de volta ao mundo dos vivos. O mundo podia ser um lugar medíocre, um tédio mortal, mas não deixava por isso de ser o meu mundo.

Mordiscava a tablete de chocolate quando soou a campainha que indicava a partida. Quando o silvo deixou de se ouvir e o comboio deu o primeiro solavanco, ouvi uma explosão distante. Empurrei a janela para ver se a conseguia abrir e meti a cabeça de fora. Ao fim de dez segundos, deu-se a segunda explosão. O comboio já estava em marcha. Três minutos mais tarde, uma coluna de fumo começou a subir, na zona do monte em forma de cone.

Durante uns bons trinta minutos, até o comboio fazer a curva e virar à direita, fiquei sempre a seguir com o olhar o fumo escuro.

 

- Quer então dizer que está tudo acabado... - disse o Professor Carneiro. - Tudo acabado.

- Acabado, tudo - disse eu.

- Calculo que seja a ti que tenha de agradecer.

- Agora que perdi tantas coisas pelo caminho...

- Não digas isso - contrariou o Professor Carneiro, abanando a cabeça. - Só agora é que a tua vida começa.

- Lá isso, é verdade.

Quando abandonei o quarto, o Professor Carneiro tinha-se colocado de bruços sobre a escrivaninha e chorava de mansinho. Eu acabara de roubar a sua obsessão, todos aqueles anos de tempo perdido. Até hoje não sei se fiz bem ou não.

- Ela foi-se embora - disse o gerente do Hotel Golfinho com a tristeza na voz. - Não disse para onde ia. Parece que não se sentia bem.

Recuperei as minhas coisas e voltei a ficar no quarto que ocupara da outra vez. Da janela, tornei a seguir com os olhos o funcionamento daquela misteriosa empresa. Não vislumbrei a rapariga dos seios grandes. Dois funcionários jovens trabalhavam juntos à secretária, e fumavam ambos. Um deles lia números em voz alta enquanto o outro traçava com a ajuda de um esquadro um gráfico de linhas quebradas numa grande folha de papel. A ausência da rapariga de seios fartos conferia à empresa um aspecto completamente diferente, tanto assim que parecia outra. A única coisa que se mantinha inalterada era o facto de eu continuar sem saber a que se dedicava aquela firma. As seis da tarde, os empregados vieram-se todos embora e o prédio ficou completamente às escuras.

Liguei o televisor e assisti ao telejornal. Não deu nenhuma notícia sobre a explosão no cimo da montanha. Ah, é verdade, a explosão tinha acontecido no dia anterior. Onde diabo é que teria passado um dia inteiro enfiado? E a fazer o quê? A cabeça doía-me sempre que tentava puxar pela memória.

O facto é que tinha passado um dia inteiro.

Aos poucos, dia a dia, ia-me distanciando daquela «lembrança». Até ao momento em que ouviria uma vez mais uma voz distante no meio das trevas.

Desliguei o televisor e deitei-me em cima da cama sem me dar ao trabalho de tirar os sapatos. Ali deitado, sozinho, pus-me a olhar para o tecto. As manchas traziam-me à memória pessoas há muito mortas e caídas no esquecimento.

Luzes de néon de variados matizes alteravam as cores do quarto. O relógio de pulso tiquetaqueava junto ao meu ouvido. Desapertei a pulseira e deixei-o cair no chão. Os sons do trânsito sobrepunham-se, camada sobre camada, e chegavam até mim num coro baixinho. Tentei dormir, mas não consegui. Quem é que pode conciliar o sono, quando o seu peito alberga sentimentos inexprimíveis?

Vesti uma camisola e saí em direcção ao centro da cidade, entrei na primeira discoteca que me apareceu à frente e bebi três uísques duplos de uma assentada, sempre ao som de música soul. Agora, sim, o meu mundo começava a entrar nos eixos. Não tinha outro remédio. Era o que toda a gente esperava de mim.

Ao regressar ao Hotel Golfinho, o dono dos três dedos estava sentado numa poltrona diante do televisor.

-Vou-me embora amanhã, às nove da manhã - avisei.

-Volta para Tóquio?

- Não - respondi eu. - Tenho de passar primeiro por outro sítio. Acorde-me às oito, se não se importa.

- Com certeza - disse ele.

- E obrigado por tudo.

- De nada - retorquiu, com um suspiro. - O meu pai recusa-se a comer. A continuar assim, acaba por morrer de fome.

- Dê-lhe um desconto. Ele recebeu um duro golpe.

- Bem sei - afirmou ele, com um ar triste -, mas a verdade é que ele nunca me conta nada.

- Vai ver que as coisas se hão-de compor - alvitrei eu. - É só uma questão de tempo.

No dia seguinte, almocei a bordo do avião. Aterrámos primeiro no aeroporto de Haneda e depois o avião tornou a levantar voo. À minha esquerda, o mar brilhava como um espelho, intensamente.

J estava a descascar batatas, como de costume. A empregada, que trabalhava para ele umas horas, mudava a água das jarras e passava um pano húmido sobre as mesinhas. Acabado de chegar de Hokkaido, constatei que o Outono ainda não abandonara aquela cidade. Através das janelas do J's Bar, as montanhas continuavam a incendiar a paisagem com os seus belos tons de vermelho.

Sentado ao balcão do estabelecimento, bebi uma cerveja antes de o bar abrir as suas portas ao público. Com uma das mãos, apertei a casca de um amendoim, que se partiu com um agradável estalido.

- Não é fácil arranjar amendoins que estalem dessa maneira -comentou J.

- A sério?... - murmurei eu, roendo o meu amendoim.

- Conta-me lá... de férias outra vez?

- Deixei o emprego.

- Deixaste o emprego?

- É uma história muito longa...

J, que já acabara de descascar as suas batatinhas, transferiu-as para um grande passador, a fim de as lavar. A seguir, fechou a torneira.

- E fazes tenções de fazer o quê, daqui em diante?

- Ainda não sei. Vou receber uma certa e determinada quantia quando se concretizar a venda da empresa e da minha parte na sociedade, mas nada do outro mundo. Entretanto, também tenho isto...

Saquei o cheque do bolso e, continuando sem ver a quantia, entreguei-o ao J. Este, ao inteirar-se do montante, abanou a cabeça, espantado.

- É uma pipa de massa. Ao mesmo tempo, cheira-me que a sua origem não é lá muito clara...

- Cheira-te e com razão.

- Mas é uma história muito comprida, acertei? Ri-me.

- Deposito esse cheque nas tuas mãos. Guarda-o no cofre do bar, se não te importas.

- Cofre? Estás a ver algum cofre?

- Na caixa registadora, então.

- Amanhã vou ao Banco depositá-lo num cofre, para ti - adiantou J, com uma expressão preocupada. -Afinal de contas, o que pretendes fazer com esse dinheiro todo?

- Diz-me uma coisa: quando te mudaste para cá, aposto que gastaste rios de dinheiro...

- Gastar, gastei...

- Tens dívidas?

- E das grandes.

- E este cheque, chegaria para cobrir essas dívidas?

- Sim, e ainda sobra.

- Que me dirias, se eu te propusesse que nos aceitasses, a mim e ao Rato, como teus sócios? Isto é, entrando com o cheque como capital? Não queremos participações nos lucros, nem juros, nem nada. Queremos apenas ser teus sócios nominais.

- Mas assim não está certo.

- Isso é que está. Em troca, gostaria que tu nos recebesses, a mim e ao Rato, caso alguma vez nos vejamos metidos em dificuldades.

- E não tem sido sempre assim?

Ainda com o copo de cerveja na mão, olhei seriamente para J.

- Bem sei, mas são essas as condições.

J sorriu e enfiou o cheque no bolso do avental.

- Ainda me lembro da tua primeira bezana. Há quantos anos foi?

- Treze.

- Assim tantos?

Coisa rara nele, J passou meia hora a falar dos bons velhos tempos. Quando os clientes começaram a chegar, eu levantei-me.

- Ainda agora chegaste... - disse J.

- Os meninos bem-educados sabem quando está na hora de ir embora.

- Sempre encontraste o Rato?

Com as mãos apoiadas no balcão, soltei um profundo suspiro e disse:

- Encontrei.

- Já sei, já sei o que me vais dizer. Essa história também é muito comprida...

- Mais comprida do que qualquer outra história de que tenhas ouvido falar nos dias da tua vida.

- E não dá para resumir?

- Se te contar a versão resumida, perde o sentido.

- Ele estava bom?

- Óptimo. Mandou dizer que tinha saudades tuas. -Vamos vê-lo por cá, um dia destes?

- Claro que sim. Afinal, somos sócios. Esse dinheiro é fruto do nosso trabalho, meu e dele.

- Não fazes ideia da alegria que me dá ouvir isso.

Desci do tamborete e inalei profundamente o ambiente carregado de nostalgia.

- Mudando de assunto. Na qualidade de sócio, gostaria de ver neste bar uma jukebox e uma pinball machine.

- Da próxima vez que cá vieres, já estarão instaladas.

Caminhei pela margem do rio até à foz, sentei-me nos últimos cinquenta metros de praia que ainda existiam e estive duas horas seguidas a chorar. Nunca tinha chorado tanto em toda a minha vida. Só depois de chorar durante essas duas horas consegui finalmente recuperar a coragem para me levantar. Não sabia para onde ir, mas pus-me de pé na mesma e sacudi a areia que ficara agarrada às calças.

O Sol tinha-se posto por completo, mas o dia ainda não chegara ao fim. Comecei a andar. Nas minhas costas, ouvia o murmúrio das ondas.

 

 

                                                                  Haruki Murakami

 

 

 

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