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Series & Trilogias Literarias
A MINHA DOCE PRISÃO
Hoje é dia do meu aniversário. Sessenta anos! Com dúzias de fintas e não sei quantos passes de peito, mas sempre de pé atrás não fosse a vida marrar de frente, consegui chegar aqui. Comemorei com uns canecos.
Hoje faço sessenta anos e estou preso há trinta e cinco. Para além dos cinco de reformatório que aqui ficam descontados pelos meus pecados. Que não são muitos, com a graça de Deus. Como é que um homem pode desrespeitar os mandamentos do Senhor se mal dá um espirro e já um guardilha vigia por perto? E as muralhas são altas, vigiadas por sentinelas que dia e noite afastam deste lugar misericordioso qualquer vento de pecado e aferrolham a virtude com que cada preso se alimenta para daqui sair reinserido, ou, pelo menos, com pensamentos tão imaculados que não precisa de confissão para comungar. Já não era assim na colónia dos putos vadios. Para ser franco, reformatório não é bem prisão. Eu fui lá parar porque não sabiam o que haviam de fazer de mim. Não tinha ninguém. A não ser a velha Amélia, que, de vez em quando, em nome da amizade pela minha santa mãe que Deus tenha no seu descanso, me dava uma sopa para enganar o estômago. Quando morreu, foi o pior dia da minha vida. Nem o abraço com que a velha Amélia, chorosa, procurava aquecer o frio que me gelou o coração conseguiu dar algum sentido à sua morte. Tinha sido pai e mãe ao mesmo tempo. E lembro-me de que se levantava ainda era noite, aconchegava-me os lençóis e a cama parecia ficar mais doce e repetia: "A mãe vai trabalhar. Depois jantamos juntos. Tem cuidado, não vás brincar para a rua por causa dos automóveis!", e eu ficava ali, à espera do beijo da tarde, quando o corpo curvado entrava disfarçando sorrisos que escondiam cansaços. Ainda hoje, e passou-se mais de meio século desde que ela partiu, lhe sinto o cheiro do colo e sei do princípio ao fim as canções de embalar que me cantou.
Quando morreu, zanguei-me com a vida e decidi vingar-me. Parti pelas entranhas da cidade dentro e parecia o Rambo - desfazia tudo o que me aparecia pela frente. Até que a polícia, farta das minhas revoltas, aliás polícia não serve para tratar de miúdos revoltados porque perderam a mãe, decidiu levar-me ao procurador, que perguntou: "Não tem família?" Como a resposta foi negativa, toca para o reformatório. Quando ouvi a sentença assustei-me. "Vão mandar-me para a prisão dos putos!", e a barriga começou a doer de medo. Só depois percebi que era tudo um problema de voz. Os educadores falavam com voz grossa, os guardas pareciam estar sempre zangados e o director desaprendera de sorrir. Talvez lhe tivessem ensinado que menino fica assustado com o cenho carregado dos mais velhos. Mas eu não liguei. Reformatório não mete medo. Qualquer puto foge quando quer e ninguém liga puto. Eu pirei-me pelo menos três vezes e regressava quando já não havia nada para roubar. Ou quando a coisa dava para o torto. Como naquela vez que, acompanhado de mais dois putos, o Espinafre, chamava-se assim por ser fininho como um papel de mortalha, e o Chico Almude, saí de Vila Fernando e decidimos tratar das caixas das esmolas das igrejas de Badajoz. Fomos à boleia e não demorou um ai a papar a primeira. Pesetas a dar com uma pá velha. A segunda ainda correu melhor. O Chico Almude, gordo, babava-se de gozo:
- Quando for grande hei-de ser crente. Olha-me para isto! E as pesetas escorriam em cascata directamente da caixa para os bolsos da malta. E a euforia levou-nos à terceira igreja. Era a maior, uma espécie de catedral, e o Espinafre já admitia irmos ao Corte Inglês comprar sacos para levar tanta moeda para Portugal.
A caixa que arrombámos desatou a vomitar tantas moedas que nem as seis mãos conseguiam segurá-las. O Chico Almude até metia os pés por debaixo da torrente, na miragem de apanhá-las com a biqueira rota dos sapatos. E Santa Maria! Ainda hoje dou de conselho aos rapazes que aqui estão engomados: se querem fazer carreira como ladrões, treinem. Um assalto sem treino nem cuidado na preparação é pior do que uma trovoada num dia em que Santa Bárbara se deixou dormir.
- Se roubarem caixas de esmolas, tenham cuidado para não cair nenhuma moeda no chão.
Na igreja vazia, as pesetas, alegres por terem sido destinadas à caridade, retiniam como um carrilhão de sinos e ecoavam, ecoavam sem parar, uma espécie de alarme chamando os crentes para a salvação da piedade cristã, assim tão desastradamente violada.
Só que a catedral não estava vazia. O padre, ao topar ladrão arrecadando as piedosas esmolas, em vez de pregar sermão e exigir penitência, não!, corre à porta da igreja, fecha-a à chave e começa a gritar por socorro. E nós, que fugíramos de uma prisão infantil, agora atafulhados de moedas até ao pescoço, estávamos presos outra vez, e embora o lugar fosse santo o raio do padre convertera-o em cela pouco abençoada.
Aos gritos do cura acorreram os carabineros. Naquele tempo, a Espanha ainda era igual a Portugal. A polícia é que mandava em tudo. Até na política. Ao menor barulho, como se fosse um passe de mágica, aparecia uma mão-cheia de polícias. Só que o chefe da bófia espanhola era o Franco e do lado de cá mandava Salazar.
O abade rechonchudo abre outra vez a porta e, em vez de ovelhas do rebanho do Senhor entrando para a missa, surgem os carabineros, sem hipóteses de juntar as mãos para rezar porque cada um empunhava uma pistola. Foi o pânico. O Espinafre nem teve tempo para pensar em fugir. Foi engomado enquanto procurava, apressado, repor as moedas na caixa das esmolas. Ainda balbuciou aflito: "Estou a dar para a igreja, estou a dar pelas alminhas!" Mas os pasmas não deviam entender a nossa língua, porque ali mesmo o atiraram ao chão e lhe aviaram um enxurro de pontapés que o Espinafre, quando a sanfona acabou, podia ser servido como esparragado.
Atordoado de medo, decidi fugir para a escadaria de caracol que levava ao campanário. Mas com tanto azar que o Almude veio atrás de mim. Ainda por cima, aquele artista fora roubar moedas com as algibeiras rotas. Fugia e as pesetas escorriam pelas calças e gritavam plim, plim, plim, assinalando a marcha que seguíamos. Encostei-o a uma parede e vociferei: "Pára de correr, parece que estás a cagar moedas. Esconde-te e não me sigas."
O Almude acenou que sim e mais uma vez o alarme, plim, plim, plim, e corri escadaria a cima.
Só pode ter sido um santo protector quem me ajudou a chegar aos sinos, mesmo no sítio mais alto, onde já não há mais lugar para onde fugir. Encolhi-me contra o nicho mais escuro e esperei, coração soluçante, barriga aos solavancos, nervos
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a trepidar, enfiando-me numa dança estranha. Porém, eles não chegavam, nem se ouviam passos pela escada de caracol. E comecei a pensar que se tinham descalçado para não fazer barulho, e depois já imaginava que a falta do som dos passos se devia ao facto de os fardas estarem a trepar até ao cimo do campanário pelas longas cordas que serviam ao sacristão para tocar aleluias e finados, ou então que deveriam ter vertigens com as alturas e iriam mandar um helicóptero para me bombardear. Mas nada.
Até que às tantas ouvi, longe, fora da igreja, plim, plim, plim, e ganhei coragem para espreitar pela fresta do campanário. E eis que ali vai o Espinafre, andando só com as biqueiras dos sapatos tal era a força com que o pasma lhe puxava a orelha, logo atrás o Chico Almude, com a orelha também entregue a outra autoridade, enquanto as moedas iam caindo plim, plim, plim, e o padre gordo, vermelho do anis que lhe chocalhava nas entranhas fechava o cortejo, rabo para o ar, arrecadando as pesetas que o meu desafortunado companheiro semeava pelo cano das calças.
Só mais tarde, quando os dois foram expatriados, é que soube a razão da minha salvação. O padreco, com o susto de ficar sem um tusto nas caixas da caridade, apenas tinha visto dois ladrões. E como lá iam dois pelas orelhas, portanto a diligência policial fora um êxito.
Pelo sim pelo não, decidi não descer do campanário e passar a noite à defesa. Quando chegasse a manhã e a igreja abrisse para a primeira missa, logo trataria de me misturar com os clientes da fé e sair sem dar nas vistas e com os bolsos recheados de pesetas. Talvez tivesse sido um dos maiores disparates da minha vida. Cansado de tanta espera, adormeci para, sem saber do tempo que passara, acordar como se um trovão tivesse estoirado dentro da minha cabeça. Tal estrondo só podia ser o fim do mundo. O som atirava-me de um lado para ou outro, e quando acordei do espanto é que percebi que o carrilhão de sinos badalava alegremente, chamando as almas piedosas e desgraçando-me os abanos.
Saí de Badajoz aos ziguezagues, como se tivesse apanhado uma carraspana do tamanho dos infernos, e dois dias depois ainda estava surdo. Pelo que não me incomodou o correctivo que me passou o director do reformatório. Mas desde então converti-me. De facto, Deus existe. Como escapara aos carabi-neros mandara-me castigo divino. E se é verdade que o meu futuro estava guardado para ser ladrão, juro pela vida que me resta que nunca mais esta criatura entrou numa igreja a não ser para rezar ou para topar as senhoras com fios de oiro mais a preceito para roubar de esticão. Mas fora do templo, claro está.
Seja como for, reformatório não conta na factura de anos na cadeia. Acho até que não é lugar que valha a pena. Ninguém sai de lá melhor nem pior do que quando entrou. Nem assim-assim, nem nada. Não é bem uma escola a sério. Apenas uma espécie de colégio infantil onde se arrecadam meninos a quem o destino corta as vazas e que ali, com esmero e dedicação, ganham a sua carta de alforria para um dia serem bandidos a sério e com futuro promissor.
Reformatório não é, por isso, o fim nem o princípio de nada, é apenas um apeadeiro onde se muda do comboio tranvia para o de longo curso. Quando para ali entrei, gamava de esticão e leitores de cassetes - imaginem quanto tempo já passou, agora que leitor de cassetes é achado arqueológico.
O Bicancas, quase de maior idade, ladrão com grande talento mas de futuro bem curto, pois que, poucos meses depois de ter saído, um pasma embrulhou-o a tiro quando fazia uma ourivesaria, abriu-me os olhos.
- Isso de gamar cantantes é coisa de janado. Está fora de moda.
- Está?
- Se queres ter uma carreira de gatuno a ganhar cobres a valer, só lá vais sabendo manejar bem o apoio.
- O apoio?
- Sim, o pé-de-cabra.
- Ah!
- Se quiseres, entras para o curso intensivo que vou abrir. Só aceito dez inscrições e podes pagar com pesetas. Aceitei. E com a ajuda de Deus fui dos melhores do curso. Formei-me com distinção em apoio.
Se as páginas deste diário chegarem alguma vez aos olhos de uma geração mais culta, talvez não saiba o que é uma aprovação com distinção em apoio. Mas, para que não se diga que o Azimute vive indiferente à melhor sabedoria dos vindouros, sempre direi que se trata daquilo a que os antigos chamavam pé-de-cabra. Coisa usada pelos construtores de caravelas para arrancar pregos ou desgrudar tabuados mais teimosos. E também serve de martelo, embora obrigue a segurança de pulso para a pancada ser certeira. Não exagero se disser que não se devem a D. João II nem a D. Manuel, muito menos ao Vasco da Gama, a gloriosa chegada dos Portugueses à índia, mas ao ímpeto oficinal e construtor do pé-de-cabra.
- Contramestre, o mastro da bujarrona cedeu com a ventania do cabo das Tormentas.
- Enfia-lhe uns pregos fortes para que aguente até Mom-baça.
- Uma onda levou o martelo!
- Crava-o com as costas do pé-de-cabra.
Por aqui se vê que o instrumento tem frente e verso. Costas e peitorais rijos que aguentaram os temporais mais temerosos dos Descobrimentos.
O nome próprio chegou-lhe por via da extremidade inferior - achatada e fendida em duas como a pata da Dama Pé-de-Cabra do Senhor Alexandre Herculano.
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Não existe maior invento depois da roda. Foi a grande alavanca que fez sair da prenha barriga da inteligência humana a técnica lapidar que permitiu a construção das arquitecturas majestáticas que por todo o mundo fazem mover milhões de turistas - a cofragem.
Sem cofragem ninguém teria o prazer de subir ao Cristo-Rei ou de babar-se de apetites frente às lojas dos grandes centros comerciais. E bem se sabe que a cofragem é filha unigénita do pé-de-cabra, o pai genuíno do que de melhor a nossa civilização nos entregou. Ajudou a construir estátuas de deuses, de santos, de reis, de presidentes, e foi criador de novas profissões. Sobretudo em Portugal. O construtor, por excelência, não existe no nosso país. Não foi decidido pelo Divino que Portugal tivesse direito a tal mercê. Deu-nos o pato-bravo. Uma espécie que se amamentou abocanhado à teta da mãe e abraçado a um pé-de-cabra. É a razão científica que esclarece que pato-bravo é um trolha que nunca deixou de mamar na teta. Sobretudo na do orçamento de Estado. Há quem por ignorância o confunda com o chulo. Nada de mais injusto. Chulo nunca chegará a presidente da câmara, a deputado ou, muito mais importante do que isto, a presidente de clube de futebol. Além de que, embora pouco, tenha de trabalhar - vigiar a garina, ir às trombas do cliente que não quer pagar depois de se servir da miúda. E nunca aprendeu a manejar um pé-de-cabra.
Coisa que pato-bravo faz na perfeição. Primeiro na fase ini-ciática, como trolha, alavancando esforços, gemendo betão, argamassa e madeira de cofragem e outras tantas transpirações até ao fim da obra. Quando, anos mais tarde, percebe que é melhor vender casa do que fazê-la, sobretudo se for em time-sharing para poder enfiar o gorro a vários tansos ao mesmo tempo, o pé-de-cabra ganha a função de apoio do sovaco para o agora empresário descansar enquanto rouba. Foi desta nobre função - servir de apoio ao descanso do dono - que o pé-de-cabra ganhou o sobrenome de apoio. Deixou de ser instrumento de trabalho, passou a ser bisturi de ladrão. Arromba a porta e parte montra com a mesma velocidade com que pato-bravo chega a líder da distrital de qualquer partido.
- Mete-lhe o apoio na fechadura.
- É italiana, não vai lá assim. Está escorada no chão.
- Enfia-lho pelas almofadas da porta.
É o mais generoso dos utensílios inventado por Deus, porque só Deus sabe como me ajudou a roubar por essa cidade fora sem que houvesse pasma que me adivinhasse os passos. E tanto é assim que não foi por causa do curso de apoio, que tirei com distinção no reformatório, que vim parar à cadeia. Quando ladrão está bem preparado, formação sólida e sem medo do escuro da noite é invencível. Tribunal apenas foi feito para os distraídos.
Foi o meu caso. Tinha vinte e quatro anos quando esta velha casa abriu os braços para me receber generosamente. Entrei aqui no mesmo dia em que a minha Albertina, que Deus haja, entrou no Alto de São João de braço dado com o ranhoso do Isidro, campo santo onde ainda hoje devem estar, se não lhes sacaram as ossadas para fazer adubo.
A verdade é que um homem não é de pau. Era domingo e eu não fui roubar. Uma pessoa que seja crente tem de saber respeitar dias santos e festas de guarda. Fui em peregrinação ao velhinho Estádio José Alvalade. Saí mal-disposto. O Spor-ting espalhara-se outra vez ao comprido. Uns ceguinhos! Levaram noventa minutos chutando a bola contra os postes da baliza. Por três vezes, Santo Deus! Não se percebe que botas calçam aquelas criaturas que conseguem acertar num mísero poste e não a enfiam no buraco da baliza, maior que todos os buracos escondidos no orçamento de Estado. Ainda por cima os outros eram uns tristes. Uns autênticos padeirões.
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E apenas uma vez, uma única vez, vêm por ali abaixo e o nosso guarda-redes, dormindo na forma, nem viu o ponta-direita. Quando olhou, já estava lá dentro.
Fui beber umas imperiais para enganar o luto. Aquela abé-cula nem viu o ponta-direita! A malta da bancada a gritar-lhe para se pôr a pau e nem ligou puto. Deixa um homem obrigado a fazer luto.
- Traz-me outra, Evaristo.
O Evaristo, comerciante de fino trato, conhecia-me pela maneira como eu emborcava as imperiais.
- Perdemos? - perguntou-me melancólico.
- Perdemos.
- Este ano não vamos lá.
- Traz-me outra e ervilhanas. São uma cambada de cegui-nhos.
- Tens razão. Uns ceguinhos...
Desabafava com o Evaristo. O único tipo do bairro que se batia comigo a jogar às damas. Ainda por cima, lagartão. Um homem só pode falar de coisas sérias quando comungamos dos mesmos desgostos e alinhamos nas mesmas alegrias. Numa conversa de adeptos do mesmo clube, podemos abrir a alma e deixar correr o desespero.
- E aquele estafermo substitui-me um avançado por outro avançado quando estamos a perder?!
- O homem não percebe nada de futebol.
- Nem a viu entrar, pá!
- Tu é que tens razão. São uns ceguinhos.
Aquele golo contra a corrente do jogo, as substituições desastradas que o mister decidiu, encravaram-me a cerveja nas goelas.
- Vou indo. Se perderem no próximo domingo, rasgo o cartão de sócio.
- Também não vale a pena.
- Tu vais ver se não rasgo.
E fui-me embora decidido a rasgar fosse o que fosse se o Sporting perdesse outra vez. Tinha em casa uma garrafa de uís-que que roubara antes do fim-de-semana e decidi derretê-la, derretendo-me com ela.
Não devia ter ido. Abro a porta e que vejo na cozinha? A minha Albertina tão nua como no dia em que Deus a pôs neste mundo. Fiquei espantado. Ela bebia um copo de água, cabelos revoltos, faces afogueadas. Fiz a pergunta, tão cândido como Moisés perguntou a Deus quem era o Cavalheiro que lhe surgia em forma de sarça ardente:
- Dirás ao teu povo que Eu sou Aquele que É!
E Moisés foi-se embora sem saber como haveria de explicar ao seu povo que encontrara o Divino, que não só ardia como, no meio das labaredas, lhe garantia que Ele é o que É, sem passar por ser um chefe aldrabão que se desculpava com as sucessivas idas ao monte Sinai falar com o Senhor, mas que, na verdade, ia enfrascar-se às escondidas da sua gente.
- O que estás tu a fazer nesses preparos, Albertina? Lá fora está um frio do cacete.
- Mas a casa está tão abafada que, olha!, pus-me à vontade. A bola já acabou?
A verdade é que a minha Albertina não falava. A voz tremia de frio, o olhar estremecia de medo e as palavras eram uma espécie de gargarejo, como se o cérebro não tivesse tempo para aquecer os pistões e dar uma resposta que não fosse aquela conversa de aflitos.
- A casa abafada?!
- É verdade.
Estava desfalecida. E não era por a casa estar abafada. Havia por ali aquecedor escondido e desconfiei onde podia estar o instrumento que a deixara sedenta e ao mesmo tempo seca de palavras. A desconfiança não é coisa que um homem sinta
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por atacado. É uma chuvinha miudinha, que começa por irritar, e uma pessoa duvida de que coisa tão fininha e sem força possa transformar-se, de repente, numa tempestade que nos faz duvidar se foi Deus quem fez os homens ou se estes, desnorteados com a magia que brota da vida, tiveram de inventá-lo nalgum buraco mais esconso e dar-Lhe vida infinita.
Como se uma mola me empurrasse corri para o quarto. E a aparição que se me ofereceu nada tinha de divino. Não metia pastorinhos, nem azinheira, nem outro poiso sagrado.
O ranhoso do Isidro, tão desgrenhado e transpirado quanto a Albertina, nuzinho, descansava da refrega que pusera a minha cama em pé de guerra. Suava e o coração gelou-se-me. Fumava um dos meus cigarros, bebia do meu uísque, que a minha Albertina em boa verdade se diga fora sempre amiga de repartir, e lia o jornal do Benfica. O jornal do Benfica!
Uma vez, já aqui na prisão, li pedaços da Bíblia. O que se passou dentro de mim tem a ver com aquela parte que descreve o fim do mundo. E o meu mundo dissolvia-se em água e fogo.
Rugi como as trombetas apocalípticas:
- Isidro!
Reagiu puxando o lençol para tapar as partes.
- Azimute, calma! Isto não é nada do que estás a pensar.
- Comes-me a Albertina e chulas-me o tabaco e os copos!?
- Não é verdade, Azimute. Estás a perceber tudo mal.
O Isidro tinha o dobro da minha altura e o dobro da minha largura, portanto, multiplicando isto para saber a área, ele tinha o dobro da minha superfície. Mas encolhia-se e gritei:
- E o jornal do Benfica também é meu?
Ficou sem resposta e levei a mão à cintura. Desde que saíra do reformatório nunca mais largara o fugante. O Isidro tinha duas mulheres descascadas tatuadas nos peitos. O tiro foi perfeito, mas foi a mão de Deus que o guiou, pois eu estava dema-
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siado desvairado para fazer pontaria. A bala entra entre o par de mamas da boneca do lado esquerdo - diria mais tarde o médico-legista que lhe perfurara o coração - e o ranhoso do Isidro deu assim como que um grande suspiro e já não se mexeu. O jornal do adversário escorregou para o chão e o uísque derramou-se sobre as páginas dedicadas às modalidades amadoras. A tragédia teria ficado por aqui se a minha Albertina tivesse entrado no quarto aos berros e caído de joelhos, pedindo-me mil perdões, mas, em vez disso, entrou, é verdade, mas agarrou-se, nua, ao nu Isidro morto. E chorava ódios.
- Mataste-o, assassino! Mataste-o, desgraçado! Tentei procurar uma saída para o caso e gritei-lhe:
- Eu queria saber o que farias se estivesses no meu lugar. Gritou-me, salpicando tudo de lágrimas.
- Não prestas. Nem na cama nem na vida.
- Não tens vergonha!
- Tu é que não tens vergonha!
E de repente, exactamente uma leoa acossada, atira-se a mim de dedo espetado, vertendo raiva e desprezo.
- Um miserável ladrão. Um ladrãozeco que só rouba micharia e passa o tempo nos copos e na bola.
- Um homem é um homem!
- Um homem faz-se à vida, come a mulher e não a deixa sozinha.
- Cabra! És uma cabra!
- Foste tu que me fizeste assim. E fica a saber que te menti. Não sou do Sporting. Odeio o verde e, apesar de teres morto o meu verdadeiro homem, estou contente porque hoje perderam outra vez!
Foi de mais. Ainda me passara pela cabeça, assim como um relâmpago, que para a castigar bastaria uma sova das antigas. Mas eram cornos a mais. Regozijar-se com o meu luto não merecia perdão.
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Abriu a boca de espanto quando o tiro lhe entrou pela boca do estômago a cima. Escorregou-me pelos braços e ficou retorcida como uma cobra a olhar-me de olhos parados, como se estivesse a ver-me pela primeira vez.
Fez-se silêncio. O mesmo que acontecia nos filmes de cóbois quando o John Wayne, chapéu descaído sobre a sobrancelha, revólver na mão, despachava apaches e sioux às dúzias para salvar a caravana de exploradores do Oeste. E o silêncio deixou que ouvisse a rua. Multiplicavam-se as vozes e os murros na porta eram cada vez mais fortes.
Agora chegava o fim de todas as dúvidas - eu ia ser engomado. O ranhoso do Isidro ali espetado contra a cama e a minha Albertina, que Deus haja, embrulhada aos meus pés, iam conseguir depois de mortos aquilo que a bófia nunca conseguira enquanto eu fora ladrão no activo e com obra feita.
O barulho à porta aumentava e julguei que a solução seria escapar pela janela. Saltei. Porém, mal pusera os pés no chão senti um metal frio contra o pulso e quando olhei já estava preso e algemado. O azar tinha sido tanto que na hora de enxaguar a minha honra a toque de bala passava na rua o piquete da bófia. E pronto! O juiz não teve pena de mim.
O meu advogado clamou em defesa o meu cadastro sem mácula. Um cidadão pacato que tinha no futebol a sua maior paixão - um português como deveria ser - e que matara num momento de transtorno. É verdade! É verdade que não deveria ter despachado os dois amantes, mas o meritíssimo juiz saberia melhor do que ninguém que este era um homicídio que a história legitimara, e até desculpara, sendo certo que ainda o último Código Penal considerava poderosas as atenuantes para marido tão descaradamente ofendido. Portanto, pedia clemência ao tribunal.
O tribunal não achou graça ao discurso do advogado. Olhava-se para o juiz e percebia-se logo que não era rapaz
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de cantigas. Eu sabia por malta conhecida que é importante ter referências de quem vai julgar.
- Se o juiz-presidente for o Gonçalves [entre a malta do gardanho, juiz era sempre tratado com intimidade], chora. Dizes que estás arrependido e choras! O homem gosta de ver.
- E o Mendes? Dizem-me que o Mendes é um ordinário do cacete.
- Um ordinarão! Uma vez sentaram-me à frente dele. Aviou-me oito na pá.
Um cabrão.
- Eu cá nego sempre. Quando começa o julgamento, estudo o camone. Se o gajo é torto, nem abro a boca. Não vale a pena! Quando metem na cabeça que têm de dar uma bordoada num gajo, dão mesmo. Portanto, não falo. Se querem gozar, vão gozar com o Camões!
- E se o tipo não for torto?
- Então abro-me. Falo-lhe ao coração. Umas vezes resulta outras vezes não.
Comigo a arenga do advogado não resultou. Levei vinte e cinco anos sem remissão nem pecado. Toma lá vinte e cinco e vai-te curar.
Passou-se uma vida e, parecendo que não, mudou tanta coisa, Santo Deus!, embora quando a gente procura ver mais de perto fique a terrível impressão de que continua quase tudo na mesma.
Os sessenta anos dão-me autoridade para usar a terminologia bíblica e dizer: naquele tempo... Naquele tempo a prisão era um sítio mal frequentado, pobre, mas decente. Era uma casa cheia de heróis. Os meus heróis. Conheci-os ali, um a um.
O Navalhas! Franzino, o corpo parecia roído pelas bexigas, olhar furtivo sempre a adivinhar mil perigos no segundo que ia viver exactamente a seguir. Quando falava, o corpo tremia
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e a alcunha que usava não precisa de explicação. Mesmo na cadeia tinha ponta e mola no cinto e canivete na peúga. Cinco homicídios no currículo.
O Tigre da Malásia! O rei dos assaltantes à mão armada. Barbudo como o actor do filme, corpo parado como se fosse jibóia e, de repente, picava, ágil, como serpente disparando veneno.
O Fred Astaire! Um verdadeiro príncipe encantado. Começara a vida no circo, onde os seus dedos, leves como o vento, faziam aparecer e desaparecer cartas, coelhos em cartolas, transformava lenços em pombas. Descobriu que tinha o curso completo e que era mais fácil sacar carteiras. Transformara-se num carteirista de gabarito internacional. Era adepto dos três grandes do nosso futebol. Não por amor às camisolas, mas para ter condições para se enfiar em todas as excursões que acompanhavam as nossas equipas nas competições internacionais. Praticamente roubara em todos os estádios dos grandes clubes europeus, embora se estivesse especializado em hooligans ingleses. Encharcados de cerveja, berrando desvairados, aos saltos como os macacos, eufóricos, nem pestanejavam quando o Fred Astaire lhe enfiava os baios pelos bolsos dentro e lhes comia o guito. Acabou um dia com um badagaio por causa de uma gaja. Ela morreu e ele não aguentou. Teve o azar de se apaixonar e lixou-se. Deus não gosta que gente sem rumo, esquecida da vida, sem rumo nem destino, possa amar.
O Rosnante! Tão valente como a padeira de Aljubarrota, mas em homem. Depois dela era o herói mais corajoso da História de Portugal. Seguro, passo firme, os olhos eram negros e sem paixão, coisa rara em olho negro, roubava de cara destapada. Chegava, olhar firme como um bocado de aço, nem um tremor, nem um pingo de suor, a maior naturalidade do mundo, rosnava na sua voz de trombone, caçadeira apontada às goelas do otário: "Ó filho, dá cá o meu!", e o outro dava com a alma convencida de que não valia a pena implorar que o Rosnante não conhecia a palavra caridade. Especialista em fugas e assaltante à mão armada de categoria. Um campeão!
Se agora o recordo é porque lhe devo a minha segunda prisão.
Eu saíra com a condicional não havia três meses. Depois de passar vinte anos a expiar o pecado de ter despachado a minha Albertina, que Deus haja, e o ranhoso do Isidro, fartaram-se de mim. O juiz que trata dos marmanjos que vão de soltura chamou-me:
- O senhor está com vinte anos de cadeia e quarenta e cinco de idade. Acho que pode começar uma vida nova com juízo e respeito pela vida dos outros.
- É verdade, meritíssimo juiz. A prisão ensinou-me muita coisa. Foi a minha segunda mãezinha.
- Vou pô-lo em liberdade condicional.
- Obrigado, senhor meritíssimo juiz.
- Arrume as suas coisas e amanhã vai em paz.
- Que a paz fique convosco, meritíssimo juiz.
- Tem familiares à sua espera?
- Acho que não.
- Acha?
- Tinha um primo que vinha visitar-me, mas não o vejo há mais de quinze anos.
- E casa?
- Talvez.
- Talvez?
- O barraco onde vivia com a minha Albertina, que Deus haja. Se não o atiraram a baixo...
O meritíssimo já era velhote e estava farto de ouvir e ver coisas que não lembram ao diabo. Encolheu os ombros e apontou-me a saída.
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- Fale com o assistente social. Ele vai encaminhá-lo para o IRS.
Saí.
Acredito que quem, por má sorte do destino, um dia lhe cair nas mãos estas desgraçadas memórias, neste preciso momento está impaciente para saber como é que o Rosnante meteu na prisão um desgraçado que passara vinte anos enfiado numa cadeia, que dali assistira ao vinte e cinco de Abril, à entrada na União Europeia e testemunhara o nascimento da televisão a cores. Mas eu tenho de esclarecer o que é o IRS.
Não é esse imposto de que tanto se fala e que eu, com a graça de Deus, nunca paguei. É uma coisa, uma espécie de Santa Casa da Misericórdia laica. Mas não dá lotarias nem totolotos. Para sermos francos, deve dizer-se que não tem um tusto para mandar cantar uma missa que seja. Essa coisa tem o benemérito e caritativo fim de proceder à reinserção social daqueles que saíram dos carris. Assim como uma voz divina, mas profana, que apregoa:
- Tenho aqui um marmanjo que cumpriu oito anos e sabe de serralharia. Há por aí algum camarada com eles no sítio que não tenha medo de lhe dar emprego?
A pergunta tem de ser desafiadora, que ex-condenado é marca para o resto da vida. Até para o resto da morte. A bófia pela-se por rapaziada que sai da cadeia. Do género:
- Chefe, tenho aqui as estatísticas. Desde o princípio do mês que aumentaram os gamanços de automóveis em Cheias. Ligações directas em barda.
- Ó diabo! Havia por lá um tipo a quem demos a cana que era especialista nisso. O China, não era?
- Exactamente. E o mais engraçado é que o China saiu há quinze dias de Alcoentre.
- Mas você diz-me que os assaltos começaram há um mês! Terá sido ele?
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- Podem ter sido os amigos do China que, sabendo da sua libertação para breve, iniciaram os festejos em sua honra gamando carros como ele sabia fazer na perfeição.
É claro que, neste caso mais radical, a comitiva da reinserção social nem tem tempo de abrir os generosos braços para o primeiro abraço de boas vindas à vida activa. Polícia tem sempre prioridade, desde que leve sirene e pirilampos ligados.
Quem estava destinada a dar-me esse abraço em nome da liberdade foi uma funcionária seca como um varapau, rosto enrugado do esforço para não rir. Nem olhou para mim. Deu-me, com um resmungo, uns papéis para preencher e no fim, quando lhos devolvi, interrogou-me sem levantar a cabeça da papelada. Começou logo pela profissão.
- Não tenho.
- Perdão?
- Não tenho. Estive vinte anos preso.
- E durante esses vinte anos não aprendeu nada?
- Aprendi, mas não dá para profissão.
- Desculpe, mas não estou a perceber.
- Aprendi a serrar canos de caçadeira, a usar micha em fechadura italiana, a fazer ligações directas em carros com alarme... - parei um instante para pensar e, porque não queria mentir, concluí:
- Ah! E também aprendi a conhecer heroína da good e heroína marada. Tem um emprego para mim?
O varapau seco que me atendia suspirou. Entregou-me um cheque para as primeiras despesas - um maço de tabaco, a cervejola - e pediu-me que aparecesse na semana seguinte que ia procurar qualquer coisa.
Já ia sair daquele antro de carinho e boas vindas quando de repente me lembrei de uma coisa. Voltei para trás e chamei-a.
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- Minha senhora! Minha senhora!... Também aprendi a falsificar números de motor de carros de grande potência... e sei jogar damas na perfeição... por isso...
Despediu-me com um gesto de mão e eu saí, esperançado de que ela me arranjasse uma ocupação qualquer.
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O ROSNANTE E O SEGREDO
DE JUSTIÇA
Foi exactamente por causa do cheque da reinserção social que voltei a ser preso. Diga-se desde já que era tão miserável que não o fui logo levantar. Tinha bago com que me governar. Quer dizer, não em notas, mas ainda era melhor. Coisa que me ficara do antigamente. Uma dúzia de fios de oiro e outras tantas pulseiras que me haviam sobrado da antiga vida de arrombador. Durante vinte anos, rezara para que ninguém mexesse numa pequena rocha que existe a seguir à passagem de nível quando se entra para a Curraleira. Tinha sido o meu cofre secreto e só posso louvar a Deus e a todos os santos do firmamento ter feito as minhas poupanças em segredo. Tivesse contado à minha Albertina, que Deus haja, e o ranhoso do Isidro chamar-lhe-ia um figo.
Dava para seis meses de boa vida. Mas ainda não tinham passado três quando o diabo resolveu pregar-me a partida.
Fui ao banco descontar o cheque da reinserção. Meto-me na fila da caixa e já só estava uma pessoa à minha frente para
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ser atendida, quando por ali dentro, caçadeira de canos serrados nas unhas, rompe o Gustavo Rosnante.
Por instantes fiquei contente ao vê-lo. Desde que ele fugira da cadeia, embrulhado nos lençóis do carro da lavandaria, nunca mais soubera de tal campeão.
Alegremente exclamei:
- Olha o meu amigo Gustavo! Ele respondeu forte e grosso:
- Ninguém mexe. Quem mexer, morre!
Percebia-se que o Rosnante não mentia. Até eu me transformei em estátua. Mas observava, divertido. Nunca tinha assistido a um assalto à mão armada e dava gosto ver o Rosnante trabalhar.
Saltou o balcão num pinote. Um dos caixas mexeu-se, levou uma coronhada nas trombas e o Gustavo começou logo a sacar. Primeiro a massa do banco, a seguir esgravatou as algibeiras dos funcionários, comendo-lhe os trocados, e ainda ninguém tinha caído em si quando saltou outra vez o balcão, agora para o lado dos clientes, passando-lhes revista e roubando no que tocasse. Quando se aproximou do cheque que eu tinha na mão, sobressaltei-me.
- Ó Gustavo, tu não vais gamar o Azimute. Fomos companheiros de prisão, somos irmãos.
Hesitou.
- Sou o Azimute, meu irmão. O homem que te ensinou os segredos do apoio. Lembras-te?
Olhou-me por instantes, mas nem um sorriso na cara daquela alma. E fugiu porta fora. O Rosnante era campeão e um bom camarada. Nunca roubaria um companheiro de sofrimento, pensei, aliviado, enquanto esperava que os ânimos acalmassem para fazer o levantamento do meu cheque. Mas o banco transformara-se em dia de jogo de futebol no recreio da cadeia - uma balbúrdia.
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Mal saíra o Rosnante, dando corda aos sapatos, entram em grande banzé meia dúzia de fardas, metralhadoras e coletes à prova de bala até à ponta dos cabelos.
Ao ver a autoridade, o gerente mexeu-se. A chegada daquele arsenal ambulante significava que expirara o prazo da ordem dada pelo Rosnante para que ninguém se mexesse. O homem gaguejava quando o chefe dos pasmas se lhe dirigiu.
- Fomos assaltados. Entrou, roubou o que havia para roubar e fugiu. Ainda por cima com a cara descoberta. A voz era grossa, quando falou parecia um cão a rosnar.
O gerente não sabia, mas era por causa dessa voz de trombone que lhe chamavam o Rosnante. O chefe olhou os clientes e gritou:
- Não sai daqui ninguém até nova ordem.
Foi nesse momento que reparei no caixa que levara a coronhada. Contorcia-se e chorava. Um outro colega pedia por ele ao chefe autorização para ir à casa de banho.
- Para quê? Está ferido?
- Nem por isso, mas mijou-se pelas pernas a baixo.
O medo espremera-lhe a bexiga. Pela pressa com que caminhava para a casa de banho acho que também lhe apertara as tripas.
Estava distraído, e até divertido, a observar a confusão - agora toda a gente falava ao mesmo tempo - quando uma velha, que ainda continuava de braços no ar, apontou com o queixo para mim.
- Aquele é o cúmplice. Foi o único que o ladrão não roubou e fartaram-se de falar em voz baixa um com o outro.
Também as minhas tripas ficaram tão alvoroçadas quanto as do caixa. Era mentira! O Rosnante nem abrira a boca. Nem para me desejar os bons-dias. Quando quis protestar, era tarde. As metralhadoras da autoridade estavam todas apontadas à
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minha cabeça. Pressenti a morte e reagi como costumava fazer na cadeia quando os putos se amotinavam por causa da falta de heroína.
- Calma. Tenham calma.
Nem o queixo mexia. Só os lábios. O chefe fez sinal a dois polícias. Revistaram-me com tanta minúcia que pareciam catar pulgas. Depois, foi o número do costume. Empurraram-me com força contra a parede e senti as algemas nos pulsos.
Não valia a pena protestar. Deixei os homens fazerem o seu serviço. Só quando me tiraram o cheque que tinha na mão é que me indignei:
- Esse cheque pertence-me. Vejam! Até tem o meu nome.
- Caladinho! Bico calado!
De facto, não era a ocasião. Eu sabia das mil histórias que tinha ouvido a camaradas de cativeiro que nada dá tanto gozo a um pasma como fazer um flagra. É para eles uma tusa do cacete apanhar um manguelas com a mão na massa. Não iria tirar esse prazer aos homens, não é verdade?
Meteram-me na ramona no tempo de um espirro e chegámos à esquadra no momento de um suspiro. Quando entrámos, o chefe disse para outro, que parecia ser o comandante.
- Apanhámos um. Entrou primeiro para dar instruções ao que entrou armado e levou o dinheiro.
- Ele confessa?
O chefe soltou uma gargalhada.
- Claro que confessa. Bastam cinco minutos à Benfica. Conhecia aquele paleio como as minhas mãos, pelo que, quando me mandaram sentar numa sala das traseiras, cheguei à conclusão de que era o momento de falar abertamente.
- Antes de começar esta conversa é bom que fique claro que quero falar, não preciso nem vou pedir advogado e que não chibarei a ninguém aquilo que se passar nesta sala. Mesmo que me batam, esta boca não se abrirá para contar lá fora.
- O quê?
- Tal como disse, senhores guardas. Nem esse tipo que vos anda sempre a chatear por causa da violência, nem essa coisa do apoio à vítima, nem a Amnistia Internacional, nem nenhum desses fariseus que vivem à pala do vosso trabalho alguma vez saberá o que aqui se passou. Se quiserem começar a distribuir bordoada, comecem. Mas Deus é testemunha de que tudo não passa de um mal-entendido. Estou à vossa disposição.
Os dois polícias, que se fecharam comigo, cambalearam.
- Como é?
- Exactamente como disse. Perguntem que eu respondo. Esta entrada de leão fez com que amansassem.
- Como te chamas?
- Jerónimo Carlos Campestre.
- Idade.
- Quarenta e cinco.
- Profissão - Não tenho.
- Não tens?
- Saí da prisão vai para três meses. Cumpri vinte anos.
- E o que fizeste para levar uma porrada desse tamanho?
- Matei a minha companheira e o amante dela.
- Quer dizer que és corno.
- Mais ou menos.
Só um deles falava. O outro olhava-me como se fosse um abutre a mirar carne podre. Percebi que seria aquele que à mínima resposta sem sentido desataria às bicadas.
- Mais ou menos?
- Vivia com ela, mas não éramos casados.
- Vai dar ao mesmo. És corno.
- Visto por esse lado, o senhor agente tem razão. Sou um grande corno.
Ficou por instantes em silêncio. Hesitava. Depois decidiu-se.
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- Tu não me estás a gozar, pois não?
- Pela alma da minha mãezinha, senhor agente. Falou o outro. A voz era seca. Ameaçadora.
- Quem é o filho da puta com quem fizeste o banco? Era um fraco pasma. Deixava que a entoação denunciasse o que vinha a seguir. Ia chegar-me a roupa ao pêlo.
Mudei de táctica, escolhi as palavras e lancei-as pelo centro do campo sem recurso aos médios, directamente da defesa para o ataque.
- O filho da puta que fez as pessoas à mão armada chama-se Gustavo. A malta conhecia-o por Gustavo Rosnante. Por causa da voz.
- Que malta?
- Estivemos presos na mesma cadeia quase oito anos. Ele deu de frosques na carrinha da lavandaria e nunca mais ninguém o viu. Se quiserem ligar para a prisão, vão ver que é verdade.
Apontou o nome no papel e soletrou: Gustavo Rosnante...
- Ou Gustavo Rosnador. Era conhecido das duas maneiras. Levantou-se e estendeu o dedo. Mais parecia apontar-me uma pistola.
- Deus te livre de estares a mentir. Deus te livre!
Não respondi e ele saiu. O primeiro voltou às perguntas.
- Como é que os dois se encontraram para preparar o assalto?
- Vi-o apenas dentro do banco.
Era mais manso do que o outro, coisa que permitia que eu lhe explicasse o que o colega não conseguiria perceber sem responder logo com meia dúzia de lambadas.
- Mas vocês estiveram a falar.
- Eu é que falei, senhor agente. O Rosnante não disse um ai.
- - E o que lhe disseste?
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.- Depois de roubar o caixa, desatou a gamar os clientes. Pedi-lhe que não me roubasse o cheque da reinserção em nome dos velhos tempos.
- Ele não roubou?
- Não. É o cheque que os senhores me gamaram. Perdão!... Que me... não me lembro como se diz, desculpe...
- Que apreendemos.
- Exactamente!
Disfarçou um sorriso e levantou-se. No preciso momento em que o colega abria a porta e dizia:
- Chega aqui. O chefe quer falar connosco.
Saiu. A porta ficou aberta e percebi que várias vozes conferenciavam.
- O tipo está a dizer a verdade.
- Não sei.
- A verdade é que esse Gustavo Rosnante anda fugido há anos e costuma assaltar bancos com a cara destapada.
- Isso não quer dizer nada. Pode ter tomado este como cúmplice.
- Deixem-me com ele dez minutos. Só os dois e vocês vão ver. Ou diz a verdade ou fica feito em cacos.
- Não vale a pena. Ele não está a mentir.
- Se não está a mentir, não tem nada a ver com o assalto.
- Mas nós prendemo-lo.
- Chefe, o que é que fazemos?
Por instantes parecia que um silêncio de cemitério caíra por aquelas bandas. Senti o descompasso do coração. Por fim, o chefe falou. E disse:
- Está preso. Levem-no ao procurador para ser presente ao juiz. O juiz é que sabe se ele está ou não metido no assalto. Tratem do expediente e tu não tocas num cabelo do homem.
- Com certeza, chefe.
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Sorri. Tinha-me safado quase por milagre de uma carga de pancadaria da grossa. O primeiro pasma voltou a entrar.
- Vais dormir aqui na cela. Amanhã, o juiz decidirá o que fará contigo.
- Com certeza, senhor agente.
Não valia a pena protestar. Ordem de chefe é para cumprir. Seja ou não polícia. É um dos problemas dos chavalos quando entram na cadeia. Não percebem nada de ordens. Nem admira. Até chegarem aqui passam a vida a desordenar tudo, desde as suas vidas às vidas dos outros, e quando começam a ouvir os fardas mandarem lavar o corredor, formar para a contagem, limpar o recreio, rosnam como pastores-alemães. Depois aprendem a toque de chibata. É por isso que cá com o Azimute nunca há problema. O chefe mandou-me prender e aqui estamos, amigos como dantes, que o juiz vai esclarecer a coisa.
Dormi a sono solto. A cela era o cubículo onde me habituara a sonhar, se é que os pesadelos são sonhos, durante vinte anos. Para dizer a verdade, não conseguira descansar uma única noite de uma só vez durante os últimos dois meses. A largueza das camas e dos quartos desorientava-me. Era como se a minha liberdade não tivesse limite, mesmo num quarto de dormir, e eu aprendera que a liberdade media três metros por dois.
Fosse como fosse, em frente do juiz tudo havia de ficar claro: o cheque voltaria ao meu bolso e só precisava de ter mais cuidado na escolha da agência onde o deveria levantar, não fosse o diabo tecê-las e meter outra vez o Rosnante pelo caminho.
As minhas esperanças azedaram quando, já sentado à frente do meritíssimo, vi o desgraçado do cheque agrafado a uma folha do processo. O meu dinheirinho, quatro dúzias de contos de réis por vinte anos de cadeia agrafados, tratado
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como se fosse lixo. Era um roubo! Roubaram-mo para fazer prova da minha presença no banco e fiquei fora de mim. Foi o meu erro.
Perguntou-me se eu queria falar e eu, irritado, propus-me negociar.
- Se o meritíssimo juiz me entregar o cheque do qual sou legítimo proprietário, digo tudo o que quiser.
- Não posso. Este cheque é a prova de que o senhor estava no banco no momento em que o seu amigo e cúmplice fez o assalto.
- Amigo sim, cúmplice não!
- Como vê, nem é capaz de negar que são amigos.
- Mas eu não quero negar nada. Quero apenas aquilo que é meu.
- Portanto, não quer falar.
- Já disse à polícia o que sabia, mas agora sem o cheque nada feito.
- É um direito que lhe assiste.
- E roubarem-me o cheque é um direito que assiste à polícia, é?
- Não lhe autorizo que fale nesse tom na minha presença!
- Qual é o tom em que devo reclamar o que é meu? Foi o Estado que me deu esse cheque. Vale pouco, mas é o que acham que mereço.
- Cale-se!
- E o meu cheque?
- Cale-se, já disse!
- Que grande porra! Mas que grande porra!
- Volta a falar nesses termos e prendo-o por injúrias ao tribunal.
- Mas eu já estou preso...
- Prendo-o outra vez!
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Voltou-se para um puto, ainda sem barba, que desde o princípio desta conversa estava a observar a minha angústia e perguntou-lhe:
- O senhor doutor quer dizer alguma coisa?
Foi então que descobri. O fedelho era o meu defensor oficioso.
- Gostava de saber do que está indiciado o arguido.
- O senhor doutor sabe que não lhe posso dizer. Nesta fase do inquérito, o processo está em segredo de justiça.
- Mas o arguido não participou em...
- O senhor não sabe se participou ou não. Nem eu. A investigação é que sabe e se a investigação diz é porque sabe.
- Mas sabe como? Porque o arguido estava no banco? Porque conhecia o autor do assalto dos tempos da prisão? Não faz sentido.
- Está em segredo de justiça. Não ouviu? , A voz do meritíssimo tornou a engrossar e o puto, pouco batido nas coisas desta vida, atreveu-se a informar.
- Mas o meu cliente tem direito a...
- Os deveres e direitos do seu cliente sei eu de ginjeira. Ou acha que é um advogado com meia dúzia de meses de profissão que me vai ensinar o que eu devo ou não devo fazer?
Não deixou o outro responder. Voltou-se para o escrivão e berrou:
- Escreva o despacho que lhe vou ditar. Que puta de vida a minha. Passo os dias a interrogar manhosos, hoje nem almocei por causa desta cambada e ainda aparece um advogadozinho a chatear! - e perguntou outra vez ao escrivão: - Está pronto?
O escrivão estendeu os dedos sobre o teclado do computador e respondeu:
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- Pronto!
Começou a debitar artigos do Código Penal como se fosse uma máquina de fazer pipocas. Alguns companheiros de cativeiro já me tinham falado neste novo estilo. Era coisa que desabrochara durante os últimos regadios que fizeram as mais novas produções hortícolas de juizes. E vendo a história tal como o Joanetes ma vendeu:
- É assim, pá! Os magistrados agora mandam na investigação, pá. Mas não sabem puto daquilo. Não foram treinados, 'tis a ver?
- E a Judite?
- Faz de conta.
- Faz de conta?
- Faz o que o magistrado manda. Se acertas com um que ainda sabe alguma coisa da poda, safas-te. A coisa é mais ou menos decente. Levas com um em cima que sabe tanto de investigação como eu sei fazer rendinha e 'tás feito ao bife. É por isso que nasceu a figura jurídica do juiz acusador, que de vez em quando substitui o juiz de instrução.
- Joanetes, estás a gozar...
- Tens idade para seres meu pai. Ia gozar contigo? É verdade, pá! Aquilo é feito às escondidas, que é para dar um arzito de independência, 'tás a ver? O colega chega ao pé do outro e diz-lhe: "Estou entalado. Sei que fulano roubou as finanças, mas a prova não aparece como eu queria. Precisava de prendê-lo para que o homem se abra. Prendes-me o gajo?" E o amigalhaço pergunta: "Tens a certeza de que é o culpado?" "Porra, então não tenho?! O tipo até negou quando lhe perguntei. E perguntou-me se podia fumar. Não é um sinal claro de que está a mentir? Pedir para fumar? Ainda por cima as televisões não largam o caso de maneira nenhuma. Até já começaram os debates por causa da insegurança. Prendes-me o gajo e vais ser o juiz mais famoso dos próximos tem-
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pos." E o amigão: "Tens a certeza de que, se o prender, tu consegues provar que o gajo roubou as finanças?" "Confia em mim, são favas contadas."
Devo ser justo. A coisa nem sempre corre desta maneira. Dizem que ainda há juizes da marca do Caldeira, o ranhoso que me enfiou vinte anos atrás das grades por causa da minha Albertina, que Deus têm, e do ranhoso do Isidro. O homem abanca à frente do processo, nada na mão direita, nada na esquerda, e toca a distribuir fruta. Umas vezes leva a acusação no toutiço, outras é a defesa que leva para tabaco, mas tudo como equilibrista em cima do arame.
Mas este último modelo de juiz-acusador com mudanças automáticas, airbag e direcção assistida não a conhecia. Até porque no linguajar durante o recreio havíamos estabelecido duas correntes na escola clássica.
Aquela em que o juiz ouve com atenção o magistrado, escuta com a mesma atenção o advogado de defesa, é delicado para com o arguido e, por fim, decide. Umas vezes a favor de uma parte, outras vezes a favor da outra. E até agradece quando o perdedor diz que vai recorrer. Depois há a outra corrente, mais próxima da formação da Escola de Sargentos, onde o homem nem olha para o magistrado, ignora que está ali um advogado, espeta os olhos em cima do preso e lá vai uma saraivada de perguntas. A coisa corre mal, mete o camone na pildra sem apelo nem agravo e caga em procurador, advogado e no resto do séquito de ambos em geral. Dá a porrada, levanta-se sem cumprimentar e pronto. O freguês que se segue.
Interessei-me pelo meu defensor oficioso. Não deveria ter ainda trinta anos. Era baixo, bochecha larga, exactamente ao contrário da boca - fina, sem lábios, quase um simples risco de lápis. Olhou para mim e não desmanchou a pose com que parecia perceber o que o meritíssimo ditava.
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- E por haver fortes indícios de poder continuar a actividade criminosa decreta-se a sua prisão preventiva, ficando a aguardar ulteriores desenvolvimentos do processo...
Estava outra vez engomado! E agora por coisa que eu desconhecia, mas que devia ser grave porque estava em segredo de justiça. Teriam descoberto o meu esconderijo de jóias roubadas junto à rocha na passagem de nível? Ou que eu aceitava visitas e encomendas quando estava preso, que não eram para mim mas para o Tarântula e toda a gente sabia que era ele o maior vendedor de heroína da prisão? Pelo assalto à mão armada do Rosnante não podia ser. Eu é que fora roubado. Levaram-me o infeliz do cheque da reinserção sem qualquer explicação. Espera! Talvez fosse por eu falar com o Florentino. O Florentino era colombiano, apanhado com uns trezentos quilos de coca. Eu fizera por ele duas ou três chamadas telefónicas para o seu país. Ou talvez fosse por coisa nenhuma.
Fosse como fosse, o berro do juiz-acusador não deixava margem para dúvidas. Era grave. Por isso estava em segredo de justiça.
Quando terminou a arenga, o advogado ainda puto, para meu espanto, disse:
- Quero que conste que vou recorrer para a Relação!
O juiz encolheu os ombros e mandou entrar os guardas para me levarem para a cadeia.
O chefe dos guardas - o Chefe Oliveira - quando me viu entrar, iam-lhe caindo os queixos.
- Azimute!? Mas tu saíste daqui há três meses.
- Pois foi, chefe. Mandaram-me de volta.
- O que fizeste desta vez?
- Não sei.
- Estás a gozar comigo.
- A sério, chefe. O processo está em segredo de justiça.
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UM SEGREDO DE PERNA ABERTA
Passaram-se quinze anos sobre esse dia e é tudo tão diferente dos primeiros tempos em que entrei nesta casa generosa, que me abriu os braços afectuosos quando despachei a minha Albertina, que Deus haja, e o ranhoso do Isidro, que não tenho palavras para a descrever sem uma lagrimita espreitar ao canto do olho. Trinta e cinco anos aqui vividos com apenas uma pequena folga de três meses não fogem às memórias do coração. Há muito que deixou de ser uma prisão. É a minha casa. Conheço-lhe os cheiros, os sons. Cada sinal, mesmo oculto, é uma notícia, um encontro amigo. E uma memória doce das coisas de que ouvira falar, mas não conhecia. Porque a verdade, verdadinha, é que nunca existiu outra casa a que chamasse minha. Era somente uma luzinha na lembrança a velha casa onde sentira os beijos da minha mãe. Apenas me lembro de crescer na rua. De lutar contra a fome, roubando fruta nos mercados, e de me defender do frio, enganando os mercadores do antigo bairro do
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Relógio, sacando-lhes roupa quando estavam distraídos. Para falar verdade, acho que sou filho da cidade. Foi ela que me deu de comer e de vestir e foi a casa imensa, a céu aberto, que se dobrou em recantos, para que vivesse escondido do frio, e jardins prenhes de sombras das enormes árvores que resistiam ao calor do Verão. E me afagou, porque Lisboa é terna e doce.
Agora, esta cadeia, que para os outros é cativeiro, para um pobre diabo que aqui foi envelhecendo é a libertação. O ninho em torno do qual posso voar - desde que não voe para além dos muros e das guaritas das sentinelas - e regressar com a alegria de qualquer homem que chega a sua casa.
Mas nem sempre foi assim. Sobretudo logo nos dias a seguir à minha segunda prisão. A coisa continuava no segredo de justiça mais absoluto e logo na manhã seguinte o advogado imberbe apareceu para a visita.
- Oiça, eu não vou largar o seu processo. Custe o que custar, o que lhe fizeram é inqualificável! Vamos recorrer para a Relação.
- Mas como é que o senhor faz uma coisa dessas? Não sabe do que sou acusado!
- Por isso mesmo.
- Ó doutor, não goze comigo. Eu sei que não devo nada à inteligência, mas tanto também não.
- Como?
- E o que é que o senhor escreve? Informo vossa excelência de que venho protestar contra a prisão preventiva do meu cliente. Porém, em virtude de ele não saber porque está preso e eu, enquanto seu advogado, saber muito menos, lamento dizer a vossa excelência que não sei qual a razão por que estou a protestar.
- É isso mesmo!
- Oiça, doutor. O senhor é jovem, pode fazer uma carreira decente, não se meta nesta candonga. Ah! Além de que não tenho um tusto para lhe pagar. O único dinheiro que tinha estava naquele cheque que me foi gamado sem apelo nem agravo quando me prenderam.
- Não se preocupe com o dinheiro. Vivemos num país com leis e as leis são para se cumprir.
Não me contive e soltei uma gargalhada. O puto olhou-me indignado.
- Ri-se?
- O senhor doutor está a contar anedotas. Como quer que eu fique sério?
- Vamos ver se é anedota. Vamos ver.
E foi-se embora ainda mais zangado do que quando entrara. Não podia ser bom da cabeça, ou então era a verdura dos anos. O gaiato não sabia que ordem da autoridade não é coisa que se proteste. A começar na ordem de guarda prisional, a autoridade mais básica que conheço.
- Azimute, arranja três faxinas e vão limpar a Ala F. Uns drogados vomitaram tudo com a ressaca.
Nem me atrevo a refilar por não serem os javardos dos drogados que sujaram que vão limpar. Toca a organizar uma brigada de esfregona e dar lustro ao soalho.
Marrar com polícia, magistrado, juiz e por aí adiante é apenas vontade de um homem ficar enterrado até ao gas-ganete. Olha a lei! Vem este puto falar-me da lei. Devo confessar que quando aqui entrei não sabia ler nem escrever. Assinava o nome com letras desenhadas. A cidade é mãe que nos dá aventura, mas que se borrifa na escola. Mas aprendi. Os primeiros dez anos de clausura foram um curso intensivo e, se a escrita nunca foi lá grande coisa, quanto a leitura peço meças a muito doutor, daqueles que, quando saem da faculdade, nunca mais viram livros à frente. Dão-
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-lhes enjoo. Ao fim do primeiro ano já tinha despachado todos os do Paulo Coelho. Coisa fácil. Uma pessoa lê o primeiro e depois já sabe o fim do segundo antes de o ter aberto. Depois, o Olho de Boi, bibliotecário interino, aconselhou-me:
- Lê coisa séria. Toma este.
E hoje não tenho dúvidas de que foi o Camilo Castelo Branco que me incitou a ir escrevendo um diário, contando coisas da minha vida, quando acabei as Memórias do Cárcere, mas fez-me chorar até aos cotovelos com O Amor de Perdição. Não quis ler mais nada do homem. Bem basta estar preso. Disse ao Olho de Boi:
- Este gajo faz-me chorar e eu não gosto de chorar. Não é próprio de homem andar por aí a entornar-se em lágrimas. Arranja aí uma coisa para rir.
Deu-me um livro do Eça de Queirós. Gostei, mas não me encheu as medidas. Aquela coisa de dois irmãos andarem perdidos de amores, com cama pelo meio e grandes esfregas que nem se conseguiam vestir, sempre na sanfona, não era função que se quadrasse com a minha pessoa. Depois, o Eça faz sorrir. Ninguém consegue uma gargalhada a sério e diz coisas que, sendo passadas com outros, nos envergonham como se fôssemos nós que as tivéssemos feito. Foi então que descobri o livro que me fez rir a bandeiras despregadas. O Olho de Boi veio espreitar e eu repreendi-o:
- Tinhas isto aqui e não me mostravas?
- O que é?
- A Constituição da República. É de partir a moca. Olha-me aqui esta coisa sobre os nossos direitos, liberdades e garantias. O caramelo que escreveu isto é um bem-disposto do cacete. Todos iguais perante a lei.
Doíam-me os queixos das gargalhadas.
- Tás-te a rir da lei sagrada do país?
- Olho de Boi, vai dar uma curva. Todos iguais perante a lei. Tu não te ris? Alguma vez nós chegamos aos calcanhares aí dum tubarão qualquer quando se trata de lei? Ganha-me juízo, pá. Até te digo mais, era uma injustiça!
- Uma injustiça?
- Como é que alguém podia ter uma empresa, se não fugisse aos impostos? Como se podia vender um jogador para o estrangeiro, se o Estado lhe fosse às massas? Como poderiam os doutores sobreviver se não se escapassem aos recibos verdes? Como queres prender um gajo que, para fazer uma equipa de futebol a sério e com legítimas aspirações, tem de lavar uns dinheiritos da droga ou do contrabando? Era o fim do país, pá! Tinha de fechar e sem estação de saldos, digo-te eu.
O Olho de Boi ficou pensativo. A saraivada de perguntas pusera-o à beira do KO e concordou.
- Bom, lá isso...
- A lei é para ti e para outros palermas como tu. Até eu estaria morto, se cumprisse a lei. Nunca paguei um imposto na minha vida. Mas a culpa não é minha. Este país está tão atrasado que não há recibo verde para um ladrão com a minha especialidade de arrombador com apoio. - Desatei a rir outra vez: - Esta Constituição é uma comédia do caraças. Olha-me esta da independência e da soberania. Como se o nosso primeiro pudesse fazer alguma coisa da sua cabeça sem antes pedir licença aos Espanhóis, que nos dão de comer, e aos outros europeus, que nos dão a massa a fundo perdido para pagarmos aos Espanhóis os morfes que nos oferecem. Ganda cromo, este escritor!
A situação em que me encontrava neste momento, preso por ter tido o prazer de voltar a ver o Rosnante, ainda por cima em acção, era o bom exemplo da qualidade de cómico do citado autor, e a verdade é que dois dias depois a bófia veio buscar-me. O procurador queria falar comigo. Fui. Como o homem estava atrasado, o pasma começou a perguntar.
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- Ó caramelo, qual é o número do teu telemóvel?
- Não tenho, senhor agente. Franziu o sobrolho desconfiado.
- Tu estás a dizer-me que não tens telemóvel?
- Juro.
- Queres levar uma lambada antes que chegue o procurador?
- É verdade, senhor agente, nunca tive.
Foi reunir com os outros bófias. Olharam-me como se eu fosse um bicho raro, mas eu estava a dizer a verdadinha toda. Voltou a sentar-se à minha frente.
- Estás lixado, pá! Deves ser o único babeco do país que não tem telemóvel.
- Não tenho ninguém para quem falar. Nos últimos vinte anos estive apenas três meses em liberdade. Afinal puseram-me na rua só para me gamarem o cheque e darem-me a cana outra vez.
- Tu e o Rosnador ou Rosnante, ou que diabo ele se chama, roubaram um banco!
- Não roubei coisa nenhuma. A polícia é que me gamou o cheque.
- Seja como for, estás lixado. Quem não tem telemóvel não pode ser investigado.
Fiquei de boca aberta.
- Mas porquê?
- É a vida, filho. É a vida.
Só percebi a grave lacuna do meu procedimento desatento quando o ouvi a falar com o magistrado.
- O gajo disse alguma coisa nas escutas?
- Nada. Não tem telemóvel.
- Você está a falar a sério?
- Parece mentira, não é?
- Então o caso está complicado. Se não confessa...
- Como é que este atrasado mental não usa telemóvel?
- Que chatice. Ele recorreu para a Relação?
- Um advogado interessou-se pelo processo. É o que lhe costumo dizer, senhor doutor. Este país está cheio de filhos da puta que andam a meter o nariz onde não são chamados.
- Que chatice! Como se investiga um tipo que não tem telemóvel?!
- Vossa excelência permite-me uma opinião?
- Diga.
- Oferecemos-lhe um. Temos armazéns tão cheios com telemóveis apreendidos que parecem prenhes de nove meses.
- Mas ele está preso.
- Combinamos a coisa com o director. Está a ver?
- Não é má ideia. Mas atenção: eu não sei de nada.
- Fique vossa excelência descansado. Entregamos-lhe o grilo e vai ver que em menos de um ai está a falar com o Ros-nante. O juiz assina a autorização da escuta?
- É dos nossos. Não vai haver problema.
Tiveram azar. Uma das qualidades que a prisão desenvolve num homem é um bom ouvido. Topei a manobra toda. Bem me explicou o bófia como aquilo funcionava, a tecla para falar, a tecla para desligar, mas eu, mula, nem liguei o aparelhómetro. Além de que não tinha ninguém fora da prisão com quem falar. O mundo de onde eu viera não terminava no cabo Bojador. Era mais pequeno. Não passava além do gradão. Amigos só na cadeia. A começar no Chefe Oliveira, que deu logo ordens para que ficasse na confiança. Só presos com categoria vão para a confiança. Embora para o saudoso Chefe Oliveira a vontade para me colocar neste regime fosse feita de manha velha. Os dois repartíamos vício antigo. Éramos os melhores jogadores de damas da cidade de Lisboa e cá dentro ninguém se atrevia. Só em simultâneas. Grande homem, o Chefe Oliveira! Foi ele quem deu autorização especial para
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que à hora do fecho das celas a minha ficasse aberta. Ao correr dos ferrolhos a calma instalava-se na penitenciária e crescia o burburinho na sala das visitas, local onde decorriam os combates, com os guardas excitados em volta do tabuleiro, uns apostando no Chefe, outros em mim, e os jogos repartindo-se de igual forma. A fama chegou longe. E batemos os melhores de todos os estabelecimentos prisionais do país. E ainda mais longe. Campeões de currículo farto, de todas as sociedades recreativas, foram recebidos com pompa e circunstância e com espectáculo ao vivo para todos os reclusos. Dávamos abadas de dez a zero, de vinte a zero, para grande gozo do maralhal, que delirava com as vitórias que íamos facturando para a nossa prisão.
O director percebeu que aquilo animava a malta. Começou a estimular os campeonatos de damas, e o Português, que sempre foi dado a excessos, desatou a espalhar aos quatro ventos que aquela era a melhor prisão do país e, quem sabe, da Europa.
Até vieram uns espanhóis estudar o caso. Saíram com o rabo entre as pernas. Afinal era uma espelunca que envergonharia qualquer gatuno hermano. No relatório que escreveram, apesar de desfazerem por completo as condições em que viviam os presos, lá estava a menção: "A única coisa de relevo é possuir dois campeões de damas. Dois funcionários que ganham a toda a gente. Não admira. Um jogo tão básico é próprio para os nossos vizinhos portugueses. Tão primários quanto o jogo em causa."
Quando o Chefe Oliveira me mostrou o relatório gostei e não gostei.
- Ó chefe, estes espanhóis tratam-nos mal. Estão a chamar-nos estúpidos.
Encolheu os ombros.
- Ainda não digeriram a tareia de Aljubarrota.
- Será? Olhe que já passou uma carrada de séculos.
- Mesmo assim, mesmo assim. Vale mais um dedo de um português do que trinta espanhóis juntos.
- Com excepção do Real Madrid.
- Mesmo esses. Hei-de falar com o director para saber se o Real Madrid tem equipa de damas.
Olhei-o espantado.
- O senhor acha?! Nós defrontarmos o Real Madrid?
- Vais ver, Azimute. Vais ver.
A verdade é que, se receberam a carta que lhes mandámos, nem se dignaram a responder. Todos os dias perguntava ao Chefe se havia notícias.
- Não responderam, nem respondem. Sabes porquê? Medo. Só medo.
Talvez o Chefe tivesse razão. Nós tínhamos distribuído fruta a um país inteiro e o Real Madrid, embora fosse um grande clube, não era um país.
O Chefe contra-atacou:
- Estás enganado. O Real é muito mais do que um país. É uma referência para os desportistas de todo o mundo, como a Estrela Polar é para os viajantes. Agora o nosso país não passa de um clube. Ainda por cima, da segunda divisão.
Nem imaginávamos o que estava para acontecer. Exactamente no dia em que o chato do puto causídico me visitava. Desta vez zangado.
- Oiça lá! Que porcaria de homem é você que o tratam abaixo de cão e não reage?
- Ó senhor doutor, por amor de Deus!, ninguém me tratou mal. Não me bateram nem nada. A bófia até me ofereceu um telemóvel.
- Para o apanharem nas escutas. Você devia saber que toda a investigação se faz por escutas.
- Não sabia, mas também não importa. Eu não sei mexer no aparelho.
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Tinha-se transformado em moda. Nas discotecas, era chique enfiar uns comprimidaços de ecstasy para o maralhal abanar o capacete até de manhã, nestas lides judiciárias voltara-se ao tempo dos testemunhos e ao modernismo das escutas. Era chique e não dava trabalho. Qualquer das coisas fazia sentido. Eu por acaso li umas coisas sobre a prova judiciária. Um homem gosta de saber os instrumentos com que tem de governar-se, não é verdade?, e vai aí para mais de cem anos que, devido aos erros judiciários, essa malta que pensa, tipo cientistas e pessoas do género de estudar, fartou-se de berrar contra a prova testemunhal, concebeu truques e invenções de deixar qualquer marmanjo de boca aberta para que fosse criada uma prova material que seria muito mais rigorosa do que os testemunhos. Em suma: queriam dificultar a vida aos criminosos. Lembraram-se da merda da dactiloscopia, que um homem, se for roubar sem luvas, está feito ao bife. Inventaram coisas para estudar o sangue, os cabelos, e agora dizem-me que até descobriram uma espécie de vírus que existe no corpo de toda a gente e que baptizaram de ADN, que uma pessoa descuida-se, cospe para o chão e já está!, és tu o ladrão. É do catano! Prova material. É o nome desta epidemia que felizmente ainda não chegou a Portugal, muito embora tivessem passado por cá uns caceteirões que se fartaram de falar disto. O Miguel Bombarda, aquele que tratava de gajos passados dos carretos e que nos deixou uma avenida por herança, e o tal vadiolas do Afonso Costa, homem dado a práticas de maçonaria e de amores republicanos. Este cabrão chegou mesmo a dizer que o futuro judiciário estava na prova material, o que significa que era muito mais perigoso do que um terrorista do Bin Laden. Ora, com os testemunhos, é verdade que uma pessoa pode ser entalada como eu fui por causa do Rosnante, mas noutras ocasiões até se pode safar. Ainda bem que Portugal não passou cartucho a estes revolucionários de pacotilha. Gra-
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ças a Deus continuamos no tempo da Inquisição de boa memória, que puxava fogo a tudo o que era bruxa e puta a troco do testemunho, e não havia gastadoiro de dinheiros nem invencionices que, quando apanham um homem, desgraçam- no.
- Juro pelas alminhas que não matei. Até tenho testemunhas. Olhe este, aquele e o outro que estavam comigo.
- Mas foi feita uma recolha do seu ADN e prova que esteve no local do crime. Até o encontraram nos cabelos da vítima.
- Vossa excelência não me leve a mal, mas não pode ser verdade. Ainda há pouco tempo fiz análises e não estou contaminado com esse ADN.
- Contaminado ou não, vai para a cadeia dezoito anitos e não se fala mais no assunto.
Graças a Deus, em Portugal esta gerigonça ainda vale muito pouco. A prova testemunhal, como ainda há pouco dizia o sábio tribunal da Relação, é a prova rainha do direito português. Razão suficiente para que a velha que me apontou como cúmplice do Rosnante seja mais importante do que qualquer ADN. E, se no meu caso estava mal, para o resto estava bem.
O meu advogado ouvia-me e não conseguia conter a ira por mais tempo. Até parecia que me ia bater, mas suspirou fundo, como se tivesse falta de ar, e falou pausado.
- O senhor está preso injustamente, não consigo defendê-lo em condições porque o processo está em segredo de justiça e você, em vez de me ajudar, come e cala?!
- Desculpe, mas está mal informado. O processo já não está em segredo de justiça.
Ficou aturdido com a minha convicção.
- O quê?
Puxei de dois jornais e mostrei-lhos.
- Está aqui tudo. Publicado em letra de forma.
- Não é verdade. O senhor não confunda as coisas. Sou eu quem lhe jura que o processo continua em segredo de justiça.
- O senhor doutor não me leve a mal, mas está ceguinho ou não sabe ler? Olhe aqui: o Gustavo Rosnador e eu gamámos um banco à mão armada. Eu fui engomado, sou o totó de serviço, e o meu companheiro, o esperto, deu de frosques. Está tudo aí no papagaio. Só falta a história da bófia me ter gamado o cheque da reinserção para fazer prova.
- Senhor Azimute - o homem levava a minha alcunha a sério -, o senhor sabe que está inocente.
- Pois sei.
- Preciso de si para lutarmos pela sua libertação.
- Ó homem, desculpe, senhor doutor, eu não o posso ajudar! Porque não fala com os dois jornalistas que publicaram as notícias?
- Porque não me dizem nada. Estão obrigados pelo segredo profissional.
- Também o processo...
- Não, o processo está em segredo de justiça.
- Porra, já não entendo nada. São segredos e mais segredos. Ou será que os jornalistas souberam por causa do segredo profissional? Ou por causa do segredo de justiça?
O advogado perdia as forças.
- O que aí está em causa é a violação do segredo de justiça, percebeu? E isso é crime.
- Se é crime, porque é que esse violador não está preso e eu estou, ainda por cima sem o cheque?
- Foi algum polícia, algum magistrado, que violou o segredo de justiça. Ou o juiz, eu sei lá.
- Ora aí está! Ora aí está!
Eu rejubilava e o homem não sabia porquê.
- Ora aí está, o quê?
- Ninguém prende gente dessa, homem de Deus! O senhor, se continua a protestar, é que ainda leva uma mocada e das grandes.
- A Relação deu com os pés no nosso recurso.
- Ora aí está!
- Só faltou chamar-me ignorante e a si deixam-no de rastos!
- 'Tá a ver?!
De repente, deu um murro na mesa, furioso.
- Isto não fica assim!
- Ai fica, fica. Enquanto não apanharem o Rosnante não há nada a fazer. Só ele pode resolver esta embrulhada, esclarecendo que eu não tenho nada a ver com aquilo.
- Vou recorrer para o Supremo!
- Vai levar outro arraso que até anda de lado.
- O Supremo é o Supremo!
- São todos da mesma família, homem de Deus. É por isso que desato a rir quando fala de leis. Olhe o seu segredo de justiça. Escarrapachado na primeira página dos jornais.
- Já lhe disse que é crime.
- E alguém liga a isso? O seu segredo de justiça, sabe para que serve? Para fazer de si corno. É o último a saber. Já se passou o mesmo comigo há muitos anos, com a minha Albertina, que Deus haja. Nessa altura, o segredo que havia entre ela e o ranhoso do Isidro só foi violado porque o Sporting perdeu.
- O problema é que...
- O problema é que esse segredo de justiça é puta velha do Intendente. Por fora, tem um traje de missa, por dentro, sífilis até aos olhos. Não leve a sério o que não é sério, senhor doutor.
Ainda resistia.
- Seja como for, vou recorrer para o Supremo. Ou acredito que a lei é igual para todos ou mudo de profissão.
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- Então mude já. Está a perder a mocidade a brincar ao rato e ao gato.
- Vou denunciar a violação do segredo de justiça, juro que vou.
- Para quê? Ninguém lhe vai ligar puto. Vão dizer que é difícil de provar.
- Mesmo que seja difícil.
- Ó doutor, porque é tão totó? Não é nada difícil. Eles é que vão dizer que é.
- Não estou a perceber.
- Não tem escola de cadeia. Olhe que da última vez que fui engomado aprendi qualquer coisa.
- Não estou a perceber, senhor Azimute.
- Ó homem, se alguém quisesse saber quem fura o segredo de justiça era só consultar as chamadas dos telemóveis. Isso pode fazer-se, não é verdade?
- Claro.
- Como vê! Deixe em paz o segredo de justiça, o segredo profissional e esses segredos todos. São de casa de putas. Toda a gente fica a saber tudo.
- O senhor desorienta-me... Seja como for, vou recorrer para o Supremo!
Tive pena do moço. Era pessoa de fé. É verdade que estes são os únicos que têm o céu garantido, mas fartam-se de acreditar em tudo o que lhes impingem como se fosse a maior verdade do mundo. Eu até tenho uma teoria que não costumo contar em voz alta para não me lixar. Mas aqui, na solidão da minha cela, sozinho com o meu lápis e este caderno, não me importo de explicar. O segredo de justiça não é segredo e não é da justiça. É um negócio. É preciso lixar um tipo, mas, não vá o diabo tecê-las, vão-se-lhe dando umas palmadinhas nas costas, enquanto, à sorrelfa, se chama um repórter e alguém lhe cicia ao ouvido.
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- Fulano meteu a mão no pote do mel.
Repórter que se preza saca do bloco mais rápido do que o Lucky Luke.
- Está a falar a sério?
- Oiça, eu não falei consigo.
- Ó homem, sabe que estou obrigado ao segredo profissional.
- E eu ao segredo de justiça. Portanto, é verdade. Fulano meteu a mão no pote do mel.
- E tem provas?
- Não, provas não tenho, mas já há processo.
- Portanto, há processo.
- Uma carta anónima e uma informação chegada por telefone. A coisa bate toda certa. Fulano meteu mesmo a mão no pote do mel. Agora só falta provar, mas do processo já ninguém o livra.
- E vocês vão chegar lá?
- Não tenha dúvidas. É uma questão de tempo. Para já, estão os telefones todos em escuta. Nem imagina o que temos ouvido.
- O quê? Crimes e coisas assim?
- Crimes, por enquanto, não. Mas as gajas... não sei o que é o que gajo tem que elas não o largam.
- A sério?
- É do caraças!
- E posso publicar?
- Que está em curso um processo? Claro. Só que de provas ainda está fraco - Ao menos já existe processo. Vou publicar.
- Desde que não cite a fonte. Chegue-lhe.
No dia seguinte, ali está ele na primeira página do papagaio, que tem a honestidade de não dizer que a fonte é anónima, embora reconheça que é próxima do processo. Pode o
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fulano berrar inocências que já está feito num oito. Já viste? O gajo diz que não foi, mas que está a ser investigado, está. É o que te digo, nunca há fumo sem fogo.
É a isto que se chama justiça rápida, curta e grossa, e o infeliz do meu advogado vai aos arames com as minhas teorias. Apeteceu-me dar-lhe uma palmadinha de conforto, mas nesse momento entrou o Chefe Oliveira. Vinha em brasa.
- Acabou a visita. Azimute, vem comigo!
O advogado levantou-se visivelmente abatido e saiu. O Chefe Oliveira explodiu:
- Aceitaram, Azimute! Eles aceitaram!
- Como?
A alegria do chefe apanhou-me de surpresa.
- O Real Madrid. Vem jogar connosco. De repente, baixou a voz.
- Mas é segredo. O senhor director quer dar pessoalmente a notícia a todo o pessoal da prisão.
- A minha boca é um túmulo, Chefe.
- Vai ser a sério, Azimute! Mesmo a sério.
A vontade de gritar era tanta que corri a fechar-me na cela. Não queria tirar ao senhor director o prazer de anunciar o evento. Mas ainda não tinham passado cinco minutos e já o Calcantes espreitava, olhar brilhante de entusiasmo.
- É verdade?
- É verdade, o quê?
- Que a equipa de damas do Real Madrid vem jogar contra ti e contra o Chefe? Eu sei que é segredo, mas corre à boca pequena e o pessoal está mortinho por saber.
- Não sei! - respondi secamente.
- Azimute, não me fodas, pá! É verdade, não é?
- Desculpa, Calcantes, mas comigo é assim. Eu não sou um ordinário violador do segredo de justiça.
- Deves ser o único.
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- Que seja. É por isso que tenho categoria para defrontar esses gajos.
- Quer dizer que é verdade.
- Não sei. Posso dormir?
- Azimute, por favor, caga nessa merda do segredo de justiça e diz-me a verdade. São eles que vêm cá ou são vocês que vão lá?
- O director é que sabe. Por enquanto, está em segredo de justiça.
Calcantes desapareceu. Um minuto depois rebentou uma algazarra do catano em todas as alas da cadeia. Assustei-me. Seria algum motim?
Fui espreitar. Não era. Do alto de uma guarita, o director sorria e saudava centenas de presos, que o aplaudiam. Nunca se vira coisa igual. Porém, todos sabiam que ele ia dar a notícia que era segredo, mas que já todos conheciam. A equipa de damas do estabelecimento - o senhor director referia-se sempre à pildra como se fosse um estabelecimento termal - ia defrontar os merengues. A ovação foi estrondosa e dei comigo a pensar que violar o segredo de justiça tinha o seu lado bom. Era a primeira vez que acontecia um director de cadeia ser aclamado pelos seus presos como se fosse a rainha de Inglaterra a passear entre os súbditos.
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A PREPARAÇÃO DO DERBI E UM PROCESSO EM BOLANDAS
Fomos notícia de abertura dos telejornais. E a cadeia trepidava de emoção, coisa que me estava a deixar atordoado. O Joanetes não me largava. Cada vez que eu ia passar um portão, dava uma corridinha para o abrir e dizia: "Faça favor!"
O bando do Chinês, todos presos por tráfico de cocaína, mandaram-me um recado. Que estavam de alma e coração comigo, mas que rezavam para que o cabrão do Chefe perdesse todas as partidas. Entrava no refeitório e, pese a regra do silêncio, ouviam-se aplausos.
O Caganetas, que ainda jogara futebol nos Estrelas do Parque, a beque direito, não se cansava de me aconselhar tácticas.
- Se os gajos forem rápidos, vai-lhe às canelas. Uma boa sarrafada nunca fez mal a ninguém.
- Como é que eu dou uma sarrafada no homem, se as damas não se jogam com os pés?
- Dá-lhe sopapos nas mãos. Eu vou insultá-los. Só para desmoralizar. Quando jogava à bola e havia pontapé de canto
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contra a minha equipa, enfiava o dedo no cu dos avançados. Davam pinotes que nem macacos e não se concentravam. Nunca marcavam golos e, se me davam algum murro, ainda eram expulsos. Se não puderes bater-lhes nas mãos, mete-lhes o dedo no cu.
O Tobias e o Xilofone levantaram, no recreio, uma questão crucial.
- Azimute! E com que camisolas vão vocês jogar?
- Não sei. Não é costume usar camisolas para jogar damas.
- O caraças! Achas que o Real Madrid manda uma equipa para fora do país à paisana? Deves estar choné. E depois não tem graça. Só de ver aquelas camisolas brancas uma pessoa estremece.
- Pois. Mas não é costume.
O Czar, lampião dos quatro costados, avançou:
- Eu posso pedir umas camisolas ao Benfica. A mim não dizem que não.
Aí refilei.
- Nem que me matassem! Se vestir alguma camisola, será a do meu clube.
Era o herói do dia, por isso podia falar assim que até o Czar se ria.
- É o teu único defeito. Seres lagarto!
O Quim das Michas, falsificador a cumprir quinze anos, atalhou definitivo:
- Nada de camisolas de clubes. Aqui há malta de todas as equipas. A única camisola que une a prisão é a das quinas. E mais nada!
O aplauso foi geral. Porém, a proposta não me soava bem.
- Porquê?
- Quanto ao Chefe, vá que não vá, mas eu? Com um duplo homicídio às costas? Não sei se me deixam vestir a camisola nacional.
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- Qual é o problema? Fizeste o que qualquer homem com eles no sítio faria. Quer dizer que agora é moda uma pessoa levar um par de cornos e ficar-se? Era bom, era. - E não é só isso. O Dom Afonso Henriques aviou uma grande tareia na mãe, Dona Teresa Primeira, para fazer Portugal e toda a gente o respeita. E o homem bateu na mãe, pá!
A tese era do Entrudo, gatuno de esticão e seis prisões no currículo.
- Dona Teresa Primeira? E qual foi a Dona Teresa Segunda?
- Porquê?
- Porque gostava de saber.
- Acho que não se chamava Teresa Segunda, mas Teresa Pia.
- Pia?
- Em Portugal qualquer rainha era sempre Pia, portanto se houve segunda, foi a Dona Teresa Pia.
- O Joanetes está a armar. Nunca houve rainha portuguesa chamada Teresa.
- E quem é que te disse? Hã? Quem é que te disse?
- Toda a gente sabe. Houve a Maria Pia, a Maria Segunda e pronto.
- E a Santa Isabel? Por acaso sabes qual era o segundo nome da Santa Isabel?
- Joanetes, não me lixes!
- Teresa. Várias Teresas. Santa Isabel Teresa, Leonor Teresa de Lencastre, Teresa Luísa de Gusmão, Maria Pia Teresa de Bragança e até a rainha que foi mulher do primeiro Presidente da República se chamava Teresa. Sou eu que to digo, que o Olho de Boi emprestou-me um livro sobre as Teresas da História de Portugal.
- A única Teresa importante que conheço foi uma freira e era albanesa. A Madre Teresa de Calcutá!.
- Estás enganado outra vez. A senhora não nasceu em Portugal, mas era filha de pai português. Emigrante, mas por-
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tuguês. Um tipo que até chegou a vencer a Grande Noite do Fado! Não me lembro o nome, mas ganhou com o fado Uma Corrida de Toiros em Calcutá. É por isso que se chamava Teresa e, em homenagem ao pai, deu-se a si própria o apelido de Calcutá. Onde é que já se viu uma albanesa chamar-se Teresa?! O pai era português. Vem no livro que o Olho de Boi me emprestou. Se não acreditam, leiam, corja de analfabetos! O Czar entrou no jogo.
- Alguém é capaz de me explicar qual é a relação que existe entre as várias Teresas da nossa história-mãe e o Real Madrid?
- E a padeira de Aljubarrota hã?
- Também se chamava Teresa, queres ver...
- Ele duvida! Vocês ouviram? Ele ainda duvida.
- Posso falar?
- A padeira de Aljubarrota! Digo-to eu...
- Joanetes, ouve... quanto a Teresas...
- Digo-to eu! O Olho de Boi pode ...
O Quim das Michas pôs termo à discussão sobre genealogia e ao fervor patriótico do Joanetes com um murro decidido no tampo da mesa.
- O Olho de Boi vai para o raio que o parta e assim como qualquer Teresa que exista à face da Terra. É a das quinas e acabou!
- Como? A Teresa das Quinas?
- Tu queres levar uma murraça? Estou a falar da camisola do Azimute contra o Real Madrid. É a das quinas e não se fala mais no assunto.
Estas discussões multiplicavam-se minuto a minuto por todos os cantos da prisão. Até a malta da droga, que agora são a maioria da população residente, mas que vive indiferente ao desporto em geral e às damas em particular, mostrava algum interesse.
- O Real, meu. Deve ser bué.
- Fixe, meu. O Real.
- É mesmo. Bué da fixe, meu.
- Tens erva?
- Cavalo.
- Bué.
- O Real são uns pintas vestidos de branco, tipo anjos, não é?
- lá.
- Bué, meu.
- lá - Bué.
O director mandou chamar-me. Apresentei-me e qual não foi o meu espanto quando o homem me convidou a sentar entre vários convivas que sorriam generosos. O subdirector, o chefe dos assistentes sociais, a D. Guidinha da secretaria e um tipo bem-cheiroso, fato a condizer, que vinha do gabinete do ministro, ah, e o Chefe Oliveira. Mas este ficara em pé.
O director deu a palavra ao bem-cheiroso.
- Bom, para começar é preciso que saibam que o senhor ministro da Justiça vai estar presente.
Um murmúrio de espanto atravessou o gabinete. Chegar perto de um ministro era quase a mesma coisa do que beijar anel de papa, para qualquer daquelas almas. Sentiam-se mais perto do céu. Graças a mim e ao Chefe Oliveira.
- E o ministro da Cultura e Desporto está na disposição de também assistir à partida. Confirmará nos próximos dias.
- Há discursos? - quis saber o director.
- Não se falou nisso, mas vai haver conferência de imprensa. Os jornais e as televisões estão em polvorosa e não param de fazer perguntas.
Tossiu para aclarar a voz.
- Temos um problema complicado para resolver.
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Fez uma pausa e aumentou a angústia na sala.
- O Azimute!
Era eu e eu assustei-me. Do que me acusavam agora?
- Não é de acusações que se trata! - gracejou o lustroso. E continuou: - O senhor está aqui por causa de um duplo homicídio e indiciado por um assalto à mão armada a um banco.
- Mas eu não assaltei banco nenhum! Estou farto de dizer o mesmo e...
- Agora não interessa. O problema é que os jornalistas querem saber quem são os jogadores. E se quanto ao Chefe Oliveira não há problemas, pois tem uma folha de serviço impecável, quanto ao senhor Azimute...
Deixou a frase a meio, pois era educado. Pelo menos envernizado. Se não fosse, teria concluído que o meu currículo era uma merda.
O director da cadeia decidiu falar.
- O senhor doutor não se preocupe. Conhecemos o Azimute há um valente par de anos e sabemos que é bom rapaz. Um bocado simplório, mas bom rapaz.
- É verdade! - afirmou, convicto, o Chefe Oliveira e, brusco, rematou: - Se estão a pensar em tirá-lo da equipa que vai defrontar o Real Madrid, não contem comigo.
O lustroso sorriu enervado e disse rápido:
- Nem pensar. Nem pensar! A ideia é mostrarmos o senhor Azimute como o exemplo do que melhor existe na regeneração de delinquentes nas prisões portuguesas. Ou, por outras palavras, nós não queremos escondê-lo como se fosse um furúnculo. Pelo contrário, pretendemos mostrá-lo como um exemplo! Apenas isso.
Desinteressei-me da conversa. O homem estava ali apenas preocupado com a propaganda e com a maneira de o seu ministro levar mais louros de uma contenda em que não participaria.
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Discutiram mil e uma coisas até ao pormenor. Onde ficariam os jornalistas, a tribuna dos convidados ilustres, a ordem pela qual cada um se sentaria. Falaram à uma, depois cada um de sua vez, depois em algazarra, depois uns com os outros e, finalmente, acabaram dizendo piadas e rindo às gargalhadas. Só eu e o Chefe Oliveira estávamos em silêncio. Quando os senti mais calmos, decidi falar.
- Há uma coisa que o pessoal das alas tem andado a discutir.
Calaram-se de repente. O pessoal das alas eram os presos e quando discutiam todos os presentes sabiam por experiência própria que a seguir vinha zaragata. Às vezes, da grossa.
- O que é? - quis saber o lustroso, a medo.
- Qual é a cor da camisola que vamos vestir.
- A cor da camisola?
- Eles estão à espera de que os nossos adversários tragam o equipamento do Real Madrid.
O director, manhoso e experiente destas confusões, antecipou-se:
- E qual é a opinião dos rapazes?
- Para que não haja dor de corno por causa da clubite, acham que o ideal seria o equipamento das quinas.
Respondeu-me um murmúrio de decepção. O lustroso ficou pensativo.
- Nem pensar.
- Eu também acho que não - respondi com sinceridade.
- E qual é a tua opinião? - perguntou o assistente social.
- Não tenho. Mas a camisola nacional não dá. Se perdermos, vão dizer que o Real Madrid derrotou Portugal.
Olharam-me impressionados e fiquei com a sensação de que nenhuma das inteligências presentes vira o problema nesta perspectiva.
Tornaram ao silêncio pensador. Apenas brotavam desabafos.
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- É um problema.
- E bicudo!
- Pois é.
- Pois.
- Como se há-de fazer?
- Bem bicudo, por sinal.
- Quer dizer, estava a pensar que... não, não pode ser.
- Uma chatice. - E das grandes.
- As camisolas...
- Não me tinha lembrado... por acaso...
- É um problema.
- E agora?
- Pois...
De repente, a D. Guidinha soltou uma gargalhada que fez acordar a assembleia do torpor geral.
- Estava a pensar numa coisa. Se calhar é um grande disparate.
- Não, não!, diga, diga!
- Ó Dona Guidinha, a senhora nunca diz disparates.
- É o seguinte. No colégio onde os meus filhos andam, têm uma equipa de voleibol. Os meus rapazes têm dezassete e dezoito anos e jogam os dois. Até já foram campeões.
O lustroso sorriu condescendente.
- Mas não é em voleibol que vamos defrontar o Real Madrid.
- Claro que não! As cores dos equipamentos são ao contrário das usadas pelas selecções nacionais.
- Como é que é?
- Têm calções grenás e camisolas verdes. Estão a ver? São ao contrário. São as da selecção, embora não seja a selecção.
- Quer a senhora dizer que jogavam com as cores nacionais sem ser o equipamento da selecção nacional.
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- Exactamente!
- Excelente, excelente!
- Formidável, Dona Guidinha.
- A Dona Guidinha é o nosso anjo-da-guarda.
- E quando pode trazer os equipamentos, Dona Guidinha?
- Amanhã. Meti-os hoje na máquina de lavar, que eles tiveram jogo, mas amanhã estarão cá.
- Muito bem!
- Excelente!
O lustroso levantou-se, satisfeito.
- Vou comunicar o resultado da reunião ao senhor ministro. Meus senhores, minha senhora, as maiores felicidades para todos.
O animal disse isto de cu voltado para mim e para o Chefe Oliveira. Até parecia que eram os outros que iam defrontar o Real Madrid. Grande coirão!
O director percebeu e animou-nos.
- Rapazes, esta prisão está por vossa conta. Chefe, a partir de agora faça-se substituir pelo graduado mais velho. Quero que o senhor e o Azimute não façam outra coisa senão treinar. Dia e noite. Escolham uma sala para jogarem à vontade. Os comes e bebes que precisarem são por conta do estabelecimento. Vão! Quero-os na máxima forma. Na verdade, são a nossa selecção nacional vestida às avessas, mas são a nossa selecção. Vendo-se bem, o país também está um pouco às avessas, não é?
Aquela conversa era música para os nossos ouvidos. Abancámos à frente de um tabuleiro de damas e foi a dar-lhe no osso com toda a força.
- Quem é que começa?
- Pode ser o Chefe. Acha que esta malta importante vai mesmo fazer disto um cavalo-de-batalha?
- Esta malta importante, como tu lhe chamas, fará tudo o que for necessário para não perder aquilo que já ganhou.
- Eh, pá, fez dama em cinco jogadas!
- Pensas de mais no que eles querem ganhar, depois és tu quem perde.
- Ai é, então tome lá. Dama!
- Não estava à espera dessa jogada.
- Nem eu pensava que esta malta viesse toda a correr por causa de um jogo. Entre os presos vá que não vá, o pessoal não tem mais nada para se entreter, mas os ministros! Porra, Chefe, essa foi à traição!
- Tu é que quiseste comer a minha pedra.
- Perdi.
- As brancas agora são tuas. Sabes o que é mais importante para um ministro?
- Acho que é fazer uma obra bem feita. Diga-me lá se esta jogada não foi bem feita!?
- Apanhaste-me. Mas enganas-te. É muito mais importante aparecer na televisão do que fazer qualquer obra.
- Essa não percebi. Dama!
- Porque é mais importante ser conhecido do que fazer seja o que for. Tu nem imaginas o que certa gente faz para aparecer numa televisão, num jornal ou numa revista. Nem imaginas!
- Nem o senhor imaginava que eu ia comer-lhe estas pedrinhas todas. Desiste ou quer continuar?
- Está perdido.
- É o senhor a começar. Acho que se estão cagando para nós. Até a porcaria das camisolas. Se não fosse a Dona Guidinha...
- Claro que se estão nas tintas para nós. Somos apenas o pretexto para eles brilharem.
- Este jogo é que não está nada brilhante. Vai ver que isto ainda mete bulha política.
- Só se for entre os ministros.
- Acha?
- Entre nós não há bulha. Este jogo está empatado.
- Pois está. Quem é agora a começar?
Foi o ministro da Cultura e do Desporto quem começou as hostilidades. Por acaso, vi na televisão do bar. Estava a falar na inauguração de uma biblioteca qualquer, quando, de repente, deixa de falar de cultura e desata a elogiar o jogo de damas. Que era um instrumento de aprendizagem tão fundamental como a Cartilha de João de Deus, que mandara distribuir tabuleiros por todas as escolas primárias do país, creches, hospitais e centros de estágio, pois estava provado ser um jogo decisivo para fomentar a concentração e a forma física. Aliás, nem podia deixar de lançar tal programa com entusiasmo quando Portugal era uma potência mundial na modalidade, por acaso nas vésperas de um grande encontro com o Real Madrid, ao qual iria assistir com muito gosto.
Isto foi o começo da guerra. O ministro da Justiça e o seu lustroso assistente saltaram que nem macacos. A primeira resposta veio pela boca do lustroso no jornal da noite. Que o senhor ministro da Justiça não tinha qualquer comentário a fazer às declarações do senhor ministro da Cultura e do Desporto. Porque era responsável e tinha sentido de Estado.
Deixem-me fazer um parêntesis. Quando oiço alguns políticos a falar na televisão e começar as frases no género: sabe, o meu partido é um partido responsável, ou, aplicando a outra fórmula, como o senhor jornalista percebe este Governo tem sentido de Estado, fico sempre com a sensação de que o prévio acto de contrição resulta da mesma necessidade de os burlões que estão nesta prisão - alguns que enganaram meio mundo com cheques, letras, livranças, para além de todas as manobras com moeda falsa e muita imaginação - por tudo e por nada, basta uma pessoa duvidar de alguma história menos bem contada, reagirem da mesma forma: porque estás
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a olhar assim para mim? Eu sou um homem sério!, só lhes falta acrescentar que têm sentido de Estado, embora eu não saiba muito bem explicar o que é o sentido de Estado. Em primeiro lugar, porque é coisa que não existe no Código da Estrada. Há sentidos proibidos, sentidos obrigatórios, mas nem uma única palavra sobre o sentido de Estado. Até porque ninguém sabe onde fica o Estado. Não é o Presidente da República, não é o Governo, não é a Assembleia da República, embora seja tudo isto, para além de milhares de autarquias, direcções-gerais e outras coisas mais. Em suma: ninguém sabe onde fica o Estado. É uma coisa que anda por aí ao deus-dará, um sem-abrigo, um cadastrado com paradeiro incerto.
Mas também já pus outra hipótese, que cheguei a discutir com o Porto Sandeman, que ainda estudou Direito antes de concluir licenciatura, mestrado e doutoramento em crime informático e moeda falsa. Tanto grau académico deu-lhe direito a dezasseis anos de prisão, fora mais dois julgamentos que estão para vir.
- Será que o Estado é paneleiro?
- Como é que é?
- Estes gajos estão sempre a dizer que têm muito sentido de Estado. Será uma questão de tacto para lhe apalparem a bilha?
O Porto Sandeman contra-argumentou e com alguma lógica.
- Pode não ser o sentido do tacto. Existem mais sentidos. O olfacto, por exemplo.
- Cheirar o Estado?! - exclamei, pensativo.
- O cheiro a perfume dos gabinetes.
- Ou o cheiro a chulé de algumas repartições públicas - acrescentei.
O Porto Sandeman concordou e lembrou-se ainda de mais outro sentido.
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- E também não se pode comer o Estado. O Estado não tem paladar.
- Pois. E comer a massa que é do Estado é prazer de carteira e não de língua.
- Só se eles conseguem vê-lo! - rematou já sem argumentos.
- Uma visão? Como se fossem videntes?
- É isso! Só pode ser.
- No meu tempo havia na Curraleira uma bruxa que tinha visões. Via almas do outro mundo.
- É a mesma coisa. Não tenhas dúvidas! Estes tipos são gajos especiais, se não fossem como é que mandavam? Têm poderes especiais com certeza, e é bem possível que a visão do Estado seja uma coisa para eleitos.
- Tais como os pastorinhos de Fátima.
- Mais ou menos, mais ou menos.
O Porto Sandeman foi para o recreio jogar à bola convicto de que o sentido de Estado era uma espécie de visão, tais como em algumas aldeias onde crentes dos mais fervorosos conseguem ver estátuas da Virgem a chorar. Mas eu não sei. Duvido dessas coisas. A bruxa que conheci na Curraleira, famosa pelas visões, garantiu-me a pés juntos que o meu futuro ao lado da minha Albertina, que Deus haja, ia ser risonho e com muitos filhos. E veja-se no que deu.
Para mim, que li umas coisas de psicanálise aqui na biblioteca, acho que este acto de contrição, repetir como o partido é responsável e o sentido de Estado a preocupação das suas vidas, mais não é do que a afirmação compulsiva de um desejo não realizado, ou, dito de outra maneira, a procura de superação da consciência de que são irresponsáveis e se estão nas tintas para o Estado em geral e para qualquer sentido em particular. Esta foi de mestre, mas confesso que a copiei. Não sei de que livro, mas é verdade, deu-me a fraqueza do plágio,
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coisa que não é original. Portugal tem fama e proveito de ter magníficos plagiadores. Parece que somos tão bons em plágio como em jogo de damas.
Vou fechar o parêntesis, que vai longo. Regresso à crise governativa por causa do grande encontro ibérico e do colaborador lustroso do ministro.
É verdade que na primeira intervenção afirmou que o seu ministro não comentava as declarações do seu homólogo da Cultura e do Desporto, mas não se conteve quando um outro jornalista lhe atirou com o microfone para a frente e questionou:
- Não acha que ele se está a aproveitar do jogo entre o Real Madrid e a equipa da prisão?
A resposta foi fulminante.
- Minha querida, o oportunismo é um dos pecados originais que fundaram a política moderna.
Uma grande ofensiva da artilharia pesada a rebentar nas beiças do ministro da Cultura e do Desporto. A contra-resposta veio através da infantaria. Um assessor veio confirmar que o senhor ministro não retirava uma palavra do que dissera e que o programa nacional de implementação dos jogos de damas começara quando ainda nem se falava do importante dérbi entre as duas capitais.
A oposição começou a grasnar. Que tão educativo quanto as damas era o berlinde e o pião, pelo que não se percebia a mediocridade da política nacional de cultura e desporto. Ainda houve alguém que sugeriu a vulgarização do xadrez, mas uma concludente gargalhada despachou a questão. Portugal não era um país preparado para aceitar as novas tecno-logias. Além de que o xadrez, muito cultuado na antiga Rússia comunista, poderia criar hábitos subversivos nos jovens.
As televisões organizaram debates e uma delas comunicou que ia lançar um programa/concurso-jogo de damas. O vencedor teria direito a um fim-de-semana com a namorada numa
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ilha das Caraíbas, na condição de o quarto onde dormissem ter câmaras de vídeo, que em directo permitiriam aos Portugueses apreciar a verdadeira paixão entre os jovens vencedores.
Foi no meio de toda esta Babel que apareceu o meu advogado. Passara um ano sobre a minha segunda prisão e o homem agora tinha olheiras. Perdera o ar menino dos primeiros dias.
Sentei-me à sua frente. As mãos tremiam-lhe.
- Aconteceu uma desgraça.
- Uma desgraça? O Real Madrid não vem?
- Pior. Perderam o seu processo.
- A sério?
- Tinha recorrido para o Supremo, que o mandou baixar à Relação para pedir mais elementos. A Relação não os tinha, enviou-o para o juiz. O juiz falou com o procurador. Garantiu-me que tinha dispensado tudo o que fora pedido. Há mesmo uma guia de remessa na Secretaria do Ministério Público, que, ninguém sabe explicar porquê, passa pela Relação e chega ao Supremo. Nem uma das informações anteriormente solicitadas ia junto ao expediente. Os conselheiros olham para aquilo e pensam que é gozo. Devolvem-no outra vez e agora com uma picada que até fazia faíscas e, de repente, desapareceu.
Não queria acreditar.
- Quer dizer que deram sumiço ao meu cheque da rein-serção?
- Já viu?
- Aqueles tipos gamam o cheque e agora perdem-no?! Mas com que raio de ladrões anda um homem metido?
- Só há uma possibilidade.
- Qual?
- Como há processos contra o Rosnante em mais de cinquenta comarcas do país, é possível que, por engano, o expediente tenha sido remetido para outro tribunal.
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- E agora?
- Agora é ter fé e esperar que tenha sido assim. O escrivão, quando perceber o engano, devolve a remessa.
- Enquanto essa geringonça acerta o passo, o meu cheque anda viajando por aí. É do cacete!
O advogado olhou-me, surpreendido. Mostrava incredulidade.
- O senhor tem mesmo consciência da sua situação?
- Desculpe, não percebi.
- O prazo da sua prisão preventiva está a chegar ao fim e até agora a polícia não apanhou o Rosnante. A única testemunha que existe contra si é uma velha que o viu falar com o assaltante. Isto não é nada! Nunca vi, em toda a minha vida, prisão preventiva tão injusta. E você em vez de refilar fala-me do cheque?
- É a minha maneira de refilar.
- Azimute! Depois de amanhã faz um ano que você foi preso. No dia a seguir meto um habeas corpus exigindo a sua libertação imediata!
O dia a seguir era o do dérbi com o Real Madrid. Dei um salto na cadeira e ameacei-o de dedo espetado.
- O senhor nem se atreva a meter uma coisa dessas no meu processo.
- O quê?... Mas o habeas corpus...
- Não há abébias nem meias abébias. Nem prós copos nem pra nada.
O homem não percebia mesmo. Gritou-me indignado:
- O senhor enlouqueceu?
- Mete essa coisa estrangeira no processo, apanha pela frente algum juiz parvalhão, que me põe na rua, e vão-se para o caraças semanas e semanas de treino. Nem pense!
Recuou atordoado.
- Treino? Mas do que está o senhor a falar?
- Não lê jornais? Não vê televisão?
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- O senhor quer continuar preso por causa de um jogo de damas?
Perguntou a medo. O puto não conseguia compreender o que aquele jogo representava para um pobre diabo como eu, um desgraçado que cresceu levando sopapos da vida, com destino marcado, embora hesitante, entre a morte e a prisão, que nascera para desaparecer, para não constar da lista daqueles que contam. E assim, de um momento para o outro, porque tive a sorte de aprender a jogar damas na tasca do Ti Aníbal, o maior intruja da Curraleira, tinha os olhos do país postos em mim e dois ministros mordendo-se como cães esfaimados só para aparecerem ao meu lado. Só para dar o exemplo do que escrevo, basta que se diga que durante os primeiros vinte anos da minha prisão nem chegara a pisar a alcatifa da sala que dá acesso ao gabinete do director. Agora, nestes seis meses, já perdera a conta às vezes que passara aquele nobre portal. Da última vez até me ofereceu um charuto. Tinha ali um amigo. Provisório, é certo, que um homem não pode ir na cantiga. Amigo importante que se rala mesmo com a nossa sorte só em novela ou programa de televisão daqueles de fazer chorar o pagode. Se eu e o Chefe Oliveira levássemos uma cabazada dos espanhóis, nem sei o que ele faria de mim. Mas tinha esperança, e a esperança dele era o meu aconchego.
- Vocês têm de ganhar. Nem que seja só por uma partida. Mas ganhar!
Repetia esta frase tantas vezes que no último encontro, enquanto saboreávamos o charuto e o conhaque, perguntei:
- Vossa excelência tem mesmo grandes projectos para depois da nossa vitória, não é?
Espreitou à janela, entreabriu a porta, para confirmar que ninguém escutava, e aproximou-se de mim, dizendo em voz baixa:
- Essa vitória pode significar a minha saída daqui.
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- Deseja assim tanto ir-se embora?
Respondeu-me com um soluço tão grande que mais parecia um arroto e debulhou-se em lágrimas. Eu nem acreditava no que via.
- Já não vos suporto mais. Anos a fio a aturar estafermos, a ouvir queixas de estafermos, de me contarem vezes sem conta as mesmas mentiras. Já não aguento mais. Nem os meus filhos vi crescer. Nada! Vivendo no meio de aldrabões, drogados, ladrões e cada um com a sua mania. Até na forca já pensei.
O desabafo fê-lo acalmar-se. Puxou de um lenço e, limpando as lágrimas, sussurrou num lamento.
- Têm de ganhar. É a minha hipótese de deixar esta espelunca malcheirosa. Já não posso mais.
Tive pena do homem. Embora não escondesse que nos odiava, a aflição que lhe saía nas lágrimas era sincera. De facto, era lugar que um homem só pode desejar a um inimigo. E dos grandes! Um dia igual ao outro aturando as estroinices dos mil e tal maduros que viviam nesta cadeia, décadas a escutar mentiras, ainda por cima sempre as mesmas mentiras, depois as ressacas dos drogados, olho vivo naqueles que queriam pirar-se de qualquer forma, sempre a pau com os motins e, pelo meio, as greves e as reivindicações dos guardas, as fitas no parlatório com as visitas e os jornais sempre a bater no ceguinho, é inferno de mais para um homem só.
Jurei-lhe sobre o lenço onde guardara as lágrimas que haveríamos de ganhar e agora aparecia o advogado a querer levar-me dali para fora com o tal habeas corpus..
- Faça o que eu lhe digo, senhor doutor. Primeiro encontrem o processo, para que eu saiba onde anda o meu cheque da reinserção, e depois logo falaremos desse senhor habeas corpus.
Levantou-se com um encolher de ombros.
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- Devo ser o único advogado no mundo que tem um cliente que não se importa de estar preso.
Saiu cabisbaixo. O puto sofria, mas ainda não percebera que a culpa não era minha. Se investigassem de outra maneira em vez de se recostarem, preguiçosos, fazendo escutas, talvez já tivessem apanhado o Rosnante, que não usa telemóvel, de certeza absoluta. Ele já teria esclarecido o assalto ao banco e o maldito cheque da reinserção estaria nas minhas mãos.
Tive pena do miúdo. Tão dedicado ao seu cliente e até o processo lhe extraviavam. Na verdade, há gente que nasceu só para sofrer.
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O DERBI
O refeitório estava preparado para levar uma multidão. No meio da sala, colocaram duas mesas com pano verde e cadeiras estofadas. Era o terreno de jogo. Armaram duas bancadas. Uma para os convidados ilustres, a outra para a imprensa. Afastados, para não pegarem as suas mazelas às pessoas decentes, dispostos em fila, surgiam dezenas de bancos corridos para a assistência reclusa. Entre os bancos e as bancadas havia duas filas de cadeiras, tipo Muro de Berlim, para guardas e familiares.
Na véspera, os ânimos na prisão andavam muito por baixo. A equipa madrilena chegara ao aeroporto com reportagem em directo em todos os canais televisivos. Até o canal pornográfico interrompeu para mostrar os artistas.
O pessoal no bar da cadeia, pendurados uns sobre os outros. A televisão com o som no máximo e o Joanetes levou as mãos à cabeça.
- Ai, minha mãezinha, olhem-me a comitiva!
- O que é que tem?
- Não vês o gentio? São mais de vinte!
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- Calem-se. Eles vão falar.
Era o capitão de equipa. Um tipo dos seus cinquenta anos mais ou menos como o Chefe Oliveira. Só que tinha a barriga maior e usava bigode. E um aspecto gentil.
Que respondiam ao convite feito pelo senhor director da prisão para jogar contra equipo portuguesa e estavam muito agradecidos pelo convite.
O Joanetes, o mais nervoso dos presentes, estava espantado.
- Ele até fala português!
E a jornalista, que parecia ter ouvido o Joanetes, comentou:
- Fala muito bem a nossa língua! Sorriu com franqueza.
- O meu pai era português. De uma pequena vila fronteiriça chamada Barrancos. Conhece?
- É uma terra muito popular em Portugal. Uma espécie de aldeia gaulesa que não atura romanos.
- Casou com a minha mãe. Era de Freginal de la Sierra, muy cerca a Barrancos, e depois foram viver para Madrid, onde eu nasci.
- Vocês trazem uma grande comitiva. Parecia mesmo que ela ouvia o Joanetes.
- Buenol Este é o Paco, meu companero de equipo. Aquele é o Ricón, nosso suplente, Paulo Aznar, nuestro preparador fisico, Joaquín Ia Valleta, o psicólogo; a Conchita é massagista, o Pepe e o Martinez representam a secção de damas do Real! - alargou o sorriso e perguntou: - O mesmo que os portugueses, nonl
No bar nem havia forças para reagir. Apenas o Czar suspirou.
- Estamos fodidos...
E o pior ainda estava para vir. Outro jornalista quis saber qual era o palmarés e a resposta transformou aquele bar numa pedra de gelo e desconfio de que o país inteiro num enorme glaciar.
Dezoito vezes campeões de Espanha, vencedores de dezenas de torneios internacionais, aliás, ainda na semana passada
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tinham chegado da China, onde triunfaram num torneio em que, para além do Real e dos chineses, participaram as selecções nacionais do Japão, Malásia e Filipinas. Todos batidos a zero. Só os japoneses tinham conseguido ganhar um jogo numa partida à melhor de cinco.
- E o que espera neste confronto com Portugal?
- Vamos a ver, vamos a ver.
Acenaram, sorridentes, para as câmaras e máquinas fotográficas, entraram numa carrinha e desapareceram. Agora a jornalista falava para o boneco e o subchefe Ferreira, completamente enjoado, nem conseguiu ouvir. Desligou o aparelho.
- Nem levantamos o cu do selim.
- É isso. Estamos fodidos. O Joanetes quase chorava.
- E os fatos de treino? E a comitiva? Até têm psicólogo e massagista!
- E preparador físico - completou o Mandrake.
De um momento para o outro, fiquei com a sensação de que me odiavam.
Começaram a sair aos poucos e apenas ficou o Asdrúbal por obrigação, pois era o responsável pelo bar.
Às tantas, resolveu perguntar:
- O que é que achaste?
- Não sei. O problema maior é o equipamento. As nossas camisolas estão remendadas nos cotovelos. E coçadas.
- E os homens?
- Como ele disse, vamos ver, vamos ver.
Um guarda entrou a correr. O senhor director pedia a minha presença imediata no gabinete. Segui-o. Já lá estava o Chefe Oliveira, sempre em pé, respeitador. O director, lívido, andava de um lado para o outro. Soprava. Mal entrei, perguntou zangado:
- Vocês viram-nos?
- Vi, senhor director.
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II
O Chefe Oliveira apenas meneou afirmativamente a cabeça.
- Vai ser uma coça. Uma coça das antigas. Esbracejava. Falava connosco, mas sobretudo com as suas aflições.
- Porque me deixei convencer?! Mas porquê, Santo Deus?
Voltou-se para o Chefe Oliveira com vontade de o matar.
- Foi você que me trouxe esta ideia maluca. Foi você! - e a entoação era a do polícia que me interrogou quando despachei a minha Albertina, que Deus haja, e o ranhoso do Isidro: "Um assassino ordinário. Não passas de um assassino ordinário!" Levantou as mãos ao céu numa prece. - E agora, Virgem Santíssima? E agora o que vai ser de mim? - Voltou-se subitamente para nós e berrou: - Saiam daqui, saiam daqui! Vocês deram cabo da minha vida. Rua!
Saíamos a galope e o Chefe Oliveira, habituado às birras do superior hierárquico, encolheu os ombros e sussurrou:
- Vem comigo.
Passámos por uma fila de presos que se preparava para a visita e que baixaram os olhos à nossa passagem, envergonhados com a nossa derrota antecipada. Um ou dois deram-nos palmadas solidárias, mas o ambiente era de pêsames.
O Chefe fechou-nos à chave no seu gabinete.
- Azimute, tu não ficaste com medo do que viste na televisão.
- Não, medo, não. Mas parecem bem preparados.
- São profissionais. A verdade é que, quando começarmos, temos no tabuleiro o mesmo número de pedras que eles.
- O problema é depois.
- Azimute! Ignora o director, ignora essa malta que está por aí com cara de enterro, já limpámos grandes jogadores e amanhã tudo pode acontecer.
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A energia do Chefe estava a animar-me. Fiquei desconfiado.
- O Chefe não está confiante de mais?
- Vou contar-te um segredo. Eu já vi jogar os dois. Fiquei surpreendido. Não sabia o Chefe tão viajado.
- Viu? Onde?
- Num canal de televisão que só dá desporto... Não há na cadeia, mas eu tenho em casa. Dá tudo. Futebol, hipismo, bilhar, damas. E eu vi-os.
- A sério? E então?
Sorriu. O sorriso continha promessas.
- Vai ser taco a taco, digo-to eu. Taco a taco!
- O senhor está mesmo a falar a sério? Taco a taco?
- Taco a taco. O do bigode pensa mais rápido, mas o outro enerva-se com facilidade. Eu vi. Basta manter a calma...
Chegou-me uma alma nova. A alegria de viver estava a renascer.
- Então quer dizer que basta ter calma.
- Exactamente! E levanta o moral dessa tropa, que ficou por aí a chorar pelos cantos.
Respondi, enérgico. Estava com umas ganas que até comia as orelhas dos merengues à dentada.
- Deixe isso comigo, Chefe! Deixe comigo.
E saí. Mal sabia eu! Assim que fechei a porta, o Chefe transformou-se. Deixou-se cair na cadeira e, preocupado, escondeu o rosto nas mãos, sussurrando:
- Vai ser o maior vexame da minha vida.
Felizmente a má disposição não era partilhada por toda a gente. A D. Guidinha, orgulhosa por irem aparecer na televisão as camisolas dos filhos, exortava Joanetes e Mandrake a mudarem de atitude.
- E, se perdermos, qual é o problema? O Chefe Oliveira e o Azimute também não são dois atados.
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- Mas não têm apoio. A senhora não reparou na comitiva?
- É espectáculo. É só espectáculo. O que interessa é ali frente às damas. Aí, sim! Quem der o litro é quem ganha. O resto é espectáculo!
Àquela tirada exuberante da D. Guidinha tocaram-me sinos a aleluia na cabeça. Uma ideia luminosa, das poucas que tive em toda a minha vida, fez-me parar.
- Pois é. O que interessa é o espectáculo! Aproximei-me da funcionária da secretaria e dos dois reclusos e disse-lhes:
- A senhora acabou de me dar uma ideia do catano! Puxei os três para um canto e expliquei em voz baixa. E a ideia pegou em cheio. Bastava ver o brilho que regressou aos olhos do Joanetes. Não conteve a excitação e gritou:
- Eu vou fazer as letras!
- Fala baixo. Isto tem de ser surpresa. Se os espanhóis descobrem, pode ser o nosso fim.
O Mandrake assumiu papel de educador.
- Fica descansado. Vou ajudá-lo com as letras e fica-me debaixo de olho. Abre as beiças para falar e leva logo na mona.
O jogo aproximava-se a passos largos e o graduado que substituía o Chefe Oliveira - retirado para se concentrar - reuniu os chefes de ala e deu instruções.
- Ninguém grita durante o jogo e muito menos diz palavrões. Temos aí dois ministros, as televisões, os jornais, as rádios e não é preciso que lá fora se saiba que são uma cambada de ordinários!
- Ó Chefe, nem puxar pelos nossos?
- Só aplausos. Aplaudimos, se ganharmos, e aplaudimos, se perdermos.
- Se perdermos? Pela sua rica saúde! Aplaudir a espanholada?
- Precisamos de mostrar o nosso desportivismo.
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- Porra. Quem me havia de dizer que ia aplaudir a espanholada!?
- Os drogados não entram.
- Ó Chefe, se os janados não entram, os bancos ficam quase vazios.
- Não perceberam. Estão impedidos de entrar os que estiveram pedrados e os ressacados.
- Ah! Assim somos capazes de ter uma boa casa.
- E avisem-me esses gajos para se arranjarem. Ao menos que se penteiem. A televisão vai filmá-los durante mais de meia hora e mostrá-los ao país e ao mundo.
- Ao mundo?! A minha rica mãezinha vai poder ver-me na Austrália.
- Pronto! Quero tudo sentado meia hora antes do jogo. O graduado acabava a prelecção no momento em que o ministro da Justiça e da Cultura e o do Desporto davam uma conferência de imprensa conjunta. Era a surpresa total para o país.
Depois da guerra travada entre os dois assessores - que surgiam solenes atrás dos chefes -, os titulares das pastas falavam ao povo. Primeiro o da Justiça. Que queria dar as boas-vindas aos nossos amigos espanhóis pela atitude generosa e desportiva que assumiam, descendo humildemente dos seus pedestais de campeões para realizar com utentes de cadeias portuguesas uma acção de formação que muito beneficiaria os processos de reeducação que estávamos empenhados em levar a cabo.
No bar, o Asdrúbal, que vestira colete e pusera lacinho, abriu a boca de espanto.
- Acção de formação? Mas isto não era a sério? Um dos guardas comentou:
- É ele a desculpar a derrota. Viu o mesmo que a gente na televisão e não se quer entalar com uma humilhação.
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- É isso. O gajo está borrado de medo.
O ministro continuava. Que seguimos com atenção o de que melhor os nossos vizinhos fazem e gostamos de aprender. Sempre fomos muito bons aprendizes de feiticeiros. Eles fazem magia com o desenvolvimento e nós, privilegiados pela proximidade, somos os primeiros a aplaudir. Que a Espanha, a grande Espanha, não é apenas nação amiga, é irmã e, em muitos casos, boa mãe. Não existe melhor teta para nos apaziguar a fome e aliviar a crise. Até na história somos parecidos. Fomos descobridores, aventureiros, ladrões de ouro e negreiros. E quanto a negreiros, graças a Deus, sempre estivemos em condições de dar lições. Ontem como hoje. Eles têm Cervantes e nós, Camões e, embora num passado longínquo tivéssemos andado em desaguisados estéreis, hoje éramos uma irmandade. Eles tiveram Franco, nós, Salazar. Até aqui éramos parecidos, embora mais modestos, que somos povo mais dado ao fado e menos ao flamenco. Não admira que Franco mostrasse sempre uma farda resplandecente de medalhas. O nosso, por simplicidade da vida bucólica, usava-a por dentro: camisola interior de manga comprida e ceroulas atadas por nastros. Eles deviam-nos parte do sucesso da sua economia. Nós devíamos-lhes a vida. Que era a nação irmã que enchia as prateleiras das nossas grandes superfícies, desde o tomate enlatado ao pescado, da fruta ao marisco, permitindo que nos alimentássemos com alguma dignidade. Que a destruição da nossa frota pesqueira, levada a cabo por sucessivos governos, era a demonstração do nosso reconhecimento pela generosidade espanhola, que, com a sua poderosa frota, servia a rica dieta de peixe desde San Sebastián até à ponta de Sagres. Assim como os bancos, as empresas hermanas que aos poucos foram enriquecendo o pobre tecido empresarial português. Em suma: sem eles éramos a mais ruim das fomes que se conhece no mundo. Ou pior ainda: deixarmos de ser povo e tornarmo-nos num bando de vaga-
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bundos. Em vez de apenas esmolarmos na Europa, corríamos o risco de regressar aos tempos medievais das grandes migrações e tornarmo-nos nómadas. Pelo menos de tanta tanga, quer em forma de agasalho quer de treta, já andávamos andrajosos. No entanto, graças a eles podíamos dormir descansados. Estávamos salvos da fome e, de vez em quando, ainda lhes podíamos vender um ou outro futebolista nacional. Não que isso nos trouxesse algum benefício económico, que o dinheiro das transacções marchava directamente para bancos estrangeiros, mas enchia-nos as pregas do orgulho nacional vê-los jogar nos relvados de um dos países mais poderosos do mundo. A assistência, no bar, reagiu outra vez ao discurso.
- Vocês ouviram a lata deste merdas? Nem uma única vez falou do jogo. Nem uma palavra de alento para o Chefe Oliveira nem para o Azimute.
- Para quê? O homem esteve a dar uma lição de história.
- Então porque não falou em Aljubarrota?
O Panela de Pressão, que era o novo bibliotecário, reagiu:
- Vocês estão muito enganados quanto a Aljubarrota. Não fomos nós que ganhámos, pá, eles é que nos deixaram ganhar.
- Como é que é?
- Os homens tinham de fazer de conta de que queriam isto, não é? Nestas questões de honra e nobreza não se podiam ficar. Mas querer, querer, não queriam. Foi tudo a fazer de conta. Até o conde de Andeiro foi morto por um castelhano disfarçado de português.
- Ó Panela de Pressão, vai cagar.
- Não acreditas? Achas que os homens não têm mais nada que fazer a não ser tomar conta dos nossos comes e bebes?
- Deixem ouvir. Vai falar o pintas da Cultura e do Desporto. Foi conciso. Que fazia suas as palavras do seu colega da
Justiça. Era com alegria que ia assistir à acção de formação levada a cabo por mestres internacionais e que servisse de
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motivação para milhares de reclusos, para jovens e crianças cultivarem o prazer de jogar damas. Era um acto cultural, mas também um acto desportivo.
- Este também está borrado de medo.
- Só elogios para os espanhóis. Nem falam de nós.
- Asdrúbal, ganha juízo.
- Porquê? Disse alguma mentira?
- Claro que não falam de nós. Cagando para nós ainda é pouco. Nem sabem que a gente existe.
Um jornalista ainda disparou uma pergunta, - Mas os senhores ministros não se tinham desentendido por causa deste encontro, acusando-se mutuamente de oportunistas?
O da Cultura sorriu e o da Justiça respondeu:
- Por amor de Deus, minha senhora. Como pode haver oportunismo quando estamos perante simples acções de formação?
Não fosse a disciplina férrea dos guardas, aqueles dois camaradas receberiam uma vaia do cacete quando entrassem no refeitório. Assim, safaram-se com duas ou três assobiadelas discretas.
A sala estava à cunha. Os projectores montados pelas televisões davam um brilho especial ao ambiente. Na tribuna, as altas personalidades tomaram assento. Ministros, assessores, comandantes das polícias, directores vindos dos confins do mundo, enfim, um mar de gente bem-cheirosa, mas o que mais impressionava era o coro dos presos. Treinados pelos chefes de ala para se portarem na ordem, em vez dos urros típicos das claques cantavam em coro.
Lá vai uma, lá vão duas Três pombinhas a voar Uma é minha, outra é tua Outra é de quem apanhar...
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Ver o Xabregas e o Cabelo d'Ouriço cantar as pombinhas, olhando para uma cábula para não se enganarem, era coisa nunca vista. Os dois maiores assaltantes de ourivesarias de Lisboa!
Entrou a equipa do Real. Juro! Aquelas camisolas fazem tremer uma pessoa. Seja num relvado, seja numa sala preparada para damas, têm uma carga de história tão grande inscrita na alvura que ninguém fica indiferente ao vê-las. Não me admirei, pois, quando, ao contrário do que prometeram durante toda a tarde, os presos se levantaram como se tivessem molas no rabo, num aplauso sincero e ribombante.
Carlos e Paco dirigiram-se para as mesas de jogo, sorridentes e acenaram, agradecendo os aplausos. O suplente, o preparador físico, a massagista e o psicólogo sentaram-se nas cadeiras laterais. Também responderam sorridentes aos aplausos.
Era a nossa vez de entrar. Pusemos em prática a jogada que tínhamos combinado durante o dia. Entrou o Chefe e eu a seguir, ambos disfarçando os remendos nos cotovelos das camisolas. Éramos a selecção nacional, mas vestida das avessas. Não admirava. Representávamos um país que estava nos mesmos preparos. O refeitório parecia explodir com a algazarra, enquanto os flashes dos repórteres transformavam o momento em noite de fogo-de-artifício. Os espanhóis cumprimentaram-nos desportivamente e no meio da algazarra infernal entrou a nossa comitiva. Vestiam todos camisolas amarelas e nas costas estavam escritas as funções de cada um. Joanetes, que trazia uma mala, era o "Médico", o Czar, o "Psicólogo", o Mandrake, o "Preparador Físico", a D. Guidinha, a "Massagista", o Porto San-deman, o "Toalheiro", o Caganeta, o "Psicoterapeuta" e por fim, o Torrão de Alicante e o Carlos da Bernarda, os "Bombeiros".
A equipa do Real empalideceu. A nossa comitiva dobrava-os e em surdina, na bancada de imprensa, ouviram-se os
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comentários de espanto perante o cuidado na preparação da equipa da cadeia. Ouvi um que transmitia em onda média:
- Não falta nada. A nossa equipa até tem bombeiros.
O árbitro era português, mas não era preso. Convidou-nos a sentar. Eu calhara no primeiro jogo frente ao Carlos. O Chefe Oliveira contra o Paco.
A regra era simples. Disputavam-se cinco partidas por jogo. Quem vencesse cinco jogos, ganhava. Era esta simplicidade tão lusitana que entusiasmava os nossos ministros. Na verdade, as damas são como a escrita. Quanto mais simples, mais difícil. Agora não interessa, que o árbitro pediu silêncio e o refeitório emudeceu.
Concentrei-me no tabuleiro. Avancei uma pedra. O Carlos respondeu, mas pelo outro lado. Não esperava aquela. Avancei outra. Pelo lado oposto, ele mudou a sua pedra. Puxei a terceira e ele lançou uma do meio.
Fiquei surpreendido. O homem abria-me o jogo! Continuava assim e eu ganharia em três jogadas. Avancei a quarta pedra e ele caiu! Deu-me a pedra da esquerda a comer. Nem pensei. Pedra para o lado de cá e, Jesus!, só me apercebi da armadilha quando o lance estava no fim. O Real sai com uma da defesa e num só passe comeu-me três pedras.
Um oh! de espanto percorreu a sala. E desorientado com golpe tão assassino, ataquei pela direita. Nem pestanejou quando me arrecadou outras três de seguida. Tentei o último recurso para fazer dama e despachou-me mais três. A partida estava perdida. Não chegara a dois minutos. '
A bancada vipe aplaudiu. E tornou a aplaudir quando, poucos segundos depois, o Chefe Oliveira era derrotado pelo Paco. Entre os presos houve murmúrios e uma ou outra palma, enquanto a nossa comitiva não despregava os olhos do chão. Aquela primeira batalha era o prenúncio do que já se adivinhava desde a chegada dos merengues. Uma cabazada!
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Razão tinha o ministro em chamar-lhe acção de formação.
Procurei estar mais cauteloso na segunda partida. O espanhol fez outra abertura maluca, mas já não fui na conversa. Estudei a jogada, o que ele estava a pensar, e não caí na primeira armadilha. Nem na segunda. E pronto! Um homem acredita que já está e, pimba!, de uma só vez levou-me cinco pedras. Estava perdido o segundo embate. O Chefe Oliveira não ia melhor do que eu. Outra vez aplausos, calmos. Um murmúrio de decepção cada vez maior. Fosse como fosse o primeiro jogo acabou em vinte minutos com cinco a zero a favor dos dois madrilenos.
Fomos ao banco beber água. O Joanetes deu-me o copo com desprezo.
- Nem levantaste o cu do selim!
- Ganda tareia, hã?
- Os gajos estão-se cagando para a tua invenção da comitiva a dobrar.
- Como podem vocês ser tão ceguinhos?!
- Eh pá, o melhor é desistir já antes que a abada seja de cabo a rabo. Por vossa causa fica a cadeia toda de castigo e de quarentena à sobremesa.
- Calhordas! Veio um gajo sentar-se no banco armado em psicólogo para apoiar dois calhordas. Com a sua licença, Chefe. O Azimute é que é calhordas. O senhor apenas tem azar.
- Bate nas mãos dos gajos. Mete-lhes o dedo no cu.
- Chefe, vamos?
- Vamos.
Não deveria haver no mundo uma equipa de apoio no banco de suplentes que insultasse os jogadores como o estávamos a ser pelo Joanetes, o Czar e companhia. Só a D. Gui-dinha não chegava ao ordinário. Implorava apenas que não lhe estragássemos o equipamento dos filhos.
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Voltamos às mesas. Pensava ainda na maneira de jogar do Carlos e não me apercebi da técnica do Paco. Em sete minutos chegou aos três a zero, no preciso momento em que, pela primeira vez, a assistência aplaudia ruidosa. O Chefe acabava de impor um empate ao seu adversário. Esta alegria deu-me alento. Embrenhei-me na quarta partida. Não ouvia barulhos nem murmúrios. Parecia que jogava no céu. Fiz a primeira dama, fiz a segunda e o Paco deu-se por vencido. O refeitório saltou de júbilo e o maralhal tornou a cantar.
Lá vai uma, lá vão duas Três pombinhas a voar Uma é minha, outra é tua Outra é de quem a apanhar.
Eram foguetes antes da festa, mas o nosso pessoal é gente sem paciência. Que por dá cá aquela palha ou quer matar ou, no lado oposto, desata a chorar ao som do fado do ceguinho. E sem paciência ninguém pode jogar damas. Ainda ganhei outra partida, mas o resultado foram três a dois a favor do Paco e quatro e empate a favor do Carlos.
As hostes estavam mais animadas e percebi que o Real, quando foi ao banco limpar a testa e as mãos, estava perturbado. Embora até ali tivesse sido fácil, tinham encontrado mais resistência do que esperavam.
O Chefe Oliveira sussurrou:
- O mais velho provoca armadilhas. Troca-lhe as voltas e ganhas.
E eu bufei:
- O Paco tem o mesmo jogo que o Chefe. Ataca sempre pela esquerda.
Não sei se foi por causa desta conversa ou porque nãoç sentira com tanta força o nervosismo na boca do estômago,
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sentei-me à frente do Carlos com outra disposição. Sorrimos um para o outro. Desconfio de que me gozava. Mas, se ele percebesse de sorrisos, teria ficado a saber que eu lhe dizia: "Ó caramelo, vamos lá ver se agora gozas comigo como gozaste há bocado."
Arrancou outra vez com os truques do primeiro jogo. Passados dois minutos estava derrotado. Ficou a olhar para mim surpreendido, sem perceber como fora despachado em tão grande velocidade.
Aplicou-se e ganhou a segunda. Mas ganhei-lhe a terceira. Voltou a empatar e na negra despachei-o com duas damas, uma a varrer a diagonal.
Ganhara uma partida ao campeão. Os comentadores desportivos estavam histéricos.
- A dama da diagonal do Azimute destruiu por completo a teia urdida pelo madrileno. Uma maravilha! Um espectáculo! Não foi, João Basto?
João Basto era o comentador que acompanhava o relator e comentou:
- Na verdade, a nossa equipa está a crescer conforme avança a partida. Começou a jogar muito bem pelos flancos, não deixa espaços aos defesas para subirem no terreno e este varrimento da diagonal é resultado do jogo bastante apoiado que estão a realizar. É certo que são muito inferiores aos madrilenos quer em técnica, quer em preparação física, mas não há dúvida de que a reacção está a ser surpreendente.
Descobri mais tarde que esta rádio não estava preparada para o evento. À falta de um comentador de damas, especialidade pouco conhecida nos jornais, a não ser na coluna dos passatempos, haviam requisitado um comentador de futebol, o que era fácil, pois somos o país do mundo com maior densidade de comentadores de futebol por metro quadrado.
A corja, esquecida dos conselhos do graduado, gritava e aplaudia, desvairada. Com mais força ainda quando o Chefe Oliveira arrumou o Paco com um concludente quatro a um.
Dois a um, a favor dos madrilenos. Fosse como fosse estávamos a portar-nos melhor do que os adversários do último torneio que eles ganharam na China e onde só os japoneses tinham averbado uma vitória.
O Chefe sorriu enquanto massajava o pescoço.
- Tinhas razão. Joga como eu.
- O Carlos enerva-se. Jogue apoiado.
O segundo jogo foi a glória da noite. Despachei o Paco com cinco secos na pá e o Chefe aviou três a dois ao outro.
Estávamos empatados. Ninguém esperava tão grande feito e tornei a ouvir o comentador:
- É assim mesmo. Tal como tínhamos referido, bastava jogar pelos flancos e com as defesas bem apoiadas. Na verdade, Portugal (já éramos Portugal) está a dar, com a humildade que é preciso ter para participar num encontro desta importância, uma verdadeira lição de criatividade. Sobretudo das linhas avançadas.
Joanetes, servil, perguntava-me:
- Queres que te limpe o suor da testa? Queres? E o Czar, no seu desabafo mais vernáculo, ria.
- Enterraste-lho todo até aos tomates. Nem tossiu!
As multidões são como as ondas. Vem a explosão de alegria, depois a ressaca. E a ressaca foi a vitória do Real no desempate. Três a dois.
Trocámos de parceiros. O Paco estava nervoso. Os cinco que lhe aviara não o deixavam concentrar-se e foi a sua perdição. Levou mais cinco, mas o Chefe perdia por três a dois.
Quase de seguida começava a quarta partida. Não sei porquê senti que me crescia água na boca. Desconfiei de que ia ter banquete e disparei enérgico. A metralha durou quinze mi-
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nutos e o Carlos passou por uma humilhação que, como ele próprio confessou, não sofria há trinta anos. Foi aviado com cinco sem resposta, enquanto o Chefe ganhava ao Paco, mas cedendo um empate.
A história estava feita. Não havia memória de uma refrega com esta intensidade por parte do maior clube do mundo.
À beira da final, os espanhóis estavam empatados com a equipa da cadeia. E mesmo que agora a derrota surgisse já pouco importava. Era uma espécie de desempate a penáltis. E o comentador apreciou:
- Portugal chegou onde podia chegar. Se claudicar no encontro decisivo, deve-se apenas à melhor condição física dos madrilenos. O favoritismo continua a ser assumido pelo Real e agora não há nada a perder, não é verdade? É o tudo ou nada.
O director percebeu que lhe salváramos a vida e ria às gargalhadas, enquanto os dois ministros já haviam esquecido as acções de formação e aplaudiam, bem-dispostos. O último intervalo foi mais prolongado e trocámos impressões. D. Gui-dinha chorava.
- Ai, filhos, vocês deram-me uma alegria só igual àquela que tive quando os meus dois rapazes foram campeões nacionais de voleibol. Honraram-lhes as camisolas.
- E agora?
- Agora, o quê?
- Estão empatados, como é que vai ser?
O Caganeta não percebia nada de regulamentos.
- Os dois com melhores resultados jogam a final, o que ganhar é campeão e sagra a sua equipa campeã. Os outros jogam para o terceiro e quarto lugares.
- E como é que é?
O Caganeta continuava sem perceber.
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- O Azimute vai disputar o título com o do bigode e o Chefe Oliveira joga com o mais novo para o terceiro e quarto lugares.
- E se o Azimute e o Chefe Oliveira ficarem em segundo e terceiro? Os dois juntos não são mais que o primeiro? - Caganeta, cala-te e vê.
- Mas só perguntei.
- Cala-te que vai começar.
Sentei-me à frente do Carlos, olhei-o nos olhos e viu que eu ia ganhar. E não era porque fosse melhor do que ele. Apenas porque o meu adversário estava empanturrado de vitórias e eu passara até então quarenta e seis anos de derrota em derrota. Sabia que ia ganhar porque, depois de tantos anos de vida sem sentido, o Azimute, que era eu, descobria finalmente que, por mais altas que fossem as barreiras, um homem consegue saltá-las, como se voasse, quando empenha a alma, o coração, as tripas, o mais pequeno dos seus nervos. Porque um país inteiro, um país de vencidos e desistentes, de servis e salafrários, de gatunos de toda a espécie, por essas cadeias fora, através da televisão, queria ganhar comigo. Porque eu tivera a cobardia de sobreviver, sem forças para me erguer da humilhação de estar preso sem assaltar nenhum banco, de apenas protestar, mas medroso, o meu cheque da reinserção, e queria agora gritar que, afinal, também era gente. Gritar sem palavras, mas com as pedras do tabuleiro. Impondo a vontade de vencer que o comentador da rádio desde o princípio desprezava na nossa equipa. Ia mostrar àquele coirão que Portugal, quando se esforça, não vive apenas da sorte e do expediente. Se um dia quisesse, teria técnica e força para vencer. Tudo. Até a sua própria mediocridade. E agora ia ver como Portugal sabia da poda.
E joguei como se arriscasse a vida. O meu adversário percebeu que lutava contra uma onda avassaladora e fantástica,
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feita de carne e osso, vontade e raiva que estilhaçaria tudo à sua passagem. Não havia no meu corpo um pingo de energia que não estivesse concentrado naquele tabuleiro. Era um tufão. Que ninguém se pusesse à minha frente!
O simpático madrileno compreendeu a vaga que o vencia. Ainda quis resistir, mas sabia que era impossível. E desistiu. Éramos campeões com um contundente quatro a um!
Foi o delírio. A equipa do Real cumprimentou-nos desportivamente e saiu. Um dos jornalistas apontou-lhes um microfone e Carlos exclamou:
- Uma noite maravilhosa e eles são fabulosos. Fabulosos! Os guardas a muito custo sustinham centenas de presos, que gritavam histéricos.
- Azimute! Azimute! Azimute!
Eu estava exausto, mas procurava arranjar forças para me levantar da cadeira quando os dois ministros se aproximaram para me dar um abraço. O nosso banco de apoio chorava, descontrolado, e o Czar, para disfarçar a emoção, comentava:
- Já viram isto? Dois ministros abraçados aos cornos do Azimute.
E a multidão:
- Azimute! Azimute! Azimute!
O director, lavado em lágrimas, até me beijou.
- Salvaste-me a vida! Salvaste-me a vida. E a multidão engrossava:
- Azimute! Azimute! Azimute!
Os guardas já não conseguiam controlar os presos por muito mais tempo, e quando se libertaram foi como um dique que se abre. As águas saltaram em turbilhão, arrastando tudo à sua passagem. Levaram-me em ombros e os ministros salvaram-se da enxurrada por uma unha negra. Tiveram de fugir a galope pelas traseiras. O resto foi a eito.
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Como é usual nestas ocasiões, os guardas tiveram de usar da força física para meter a cáfila nas celas.
Com a excitação não consegui dormir e durante toda a noite ouvi gritos de protesto que vinham do corredor em frente.
Só pela manhã descobri o motivo de tal alarido. No meio da confusão, os guardas tinham enfiado numa cela o assessor lustroso do ministro. Quando se viu solto, nem quis esperar pelas desculpas do director. Fugiu de gravata à banda com mais velocidade do que uma bala de canhão.
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A CONSTRUÇÃO DO MITO
A glória maior chegou. Primeiro entre os guardas, depois com os presos saltando uns por cima dos outros para espreitar o jornal. A excitação era tal que a prisão parecia um jardim infantil.
Eu e o Chefe Oliveira aparecíamos em grande estilo na capa de todos os jornais e os títulos eram esmagadores. Um, com letras de palmo, anunciava "Vitória!" e por baixo a minha fotografia a comer as pedras do Carlos. Um outro proclamava "Real humilhado em Lisboa", e em letra pequena "A equipa não perdia há dez anos. Veio a Lisboa para ser derrotada por dois funcionários prisionais", e outra fotografia dos quatro jogadores em competição. O terceiro era o mais generoso. "Azimute brilha sobre as estrelas" e lá vinham as minhas fuças debruçadas sobre o tabuleiro.
Levei mais abraços do que candidato a presidente durante campanha eleitoral e recordavam-se até ao infinito cada momento do jogo da noite anterior. O Joanetes ia a todos os grupos ouvir e dar palpites.
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- Ainda pensei que nos despachavam a zero.
- Os nossos tiveram dificuldade em entrar no jogo, foi o que foi.
- Eh, pá, mas parece um milagre.
- Qual milagre?! Foi ganhar como deve ser e nem do árbitro se podem queixar.
- Acho que querem comprar o Azimute - O quê?
- No final, os responsáveis do Real estiveram fechados com o director. Ouvi o zunzum que querem comprar o passe do Azimute.
- Porra!
- Um milhão de euros.
- Virgem Santíssima.
- Estiveram reunidos mais de meia hora. Por acaso vi-os sair.
- Cum catano!
- Um milhão de euros?
- Foi o que ouvi de dois guardas que estão de serviço ao portão!
- Cum caralho!
- O Azimute no Real Madrid! É justo, é justo. O gajo é mesmo bom.
O Xabregas não conseguiu conter o seu impulso de bandido.
- Também fico contente, mas, se esse pintas me passa com um milhão de euros à frente do nariz, não respondo por mim!
- Já agora outra coisa. Ele está preso ou é funcionário da cadeia?
- Porquê? Tens dúvidas?
- No papagaio diz que é funcionário prisional.
- Pois, lá isso.
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Não existe ventre mais fecundo para inventar histórias como o pátio do recreio de qualquer prisão. E o Joanetes avançou a sua tese, julgo que criada naquele preciso momento.
- Vocês não sabiam?
É o género de pergunta que deixa uma matilha ociosa logo de orelha levantada.
- O Azimute é dos serviços secretos.
- Hã?!
- Porra, não me digas que não sabias! Nenhum de vocês sabia?
O grupo negou. Olhava o Joanetes, boquiaberto.
- Dos serviços secretos? Isso é galga.
- Galga, o caraças! Porque é que julgas que ele é o único a dormir com a porta da cela aberta toda a noite? Porque está preso apenas para disfarçar.
- Tu estás a falar a sério?
A porta da cela aberta era argumento de peso e o Joanetes carregou no acelerador.
- Há muitos anos foi condenado a uma porrada de vinte e cinco anos por uma confusão que ia dando uma guerra com a França.
A coisa estava a complicar-se e o grupo fechou ainda mais a roda em torno do gatuno.
- O gajo tinha uma missão qualquer secreta muito importante em mãos. Conheceu uma tipa que se chamava Albertina, mas que, na verdade, tinha o nome de Yvette Escargot. Era uma espia francesa que lhe abriu as penas para descobrir a missão do Azimute. Passados uns tempos, ele descobriu a gaja a dar documentos a outro francês espião que dava pelo nome de Isidro, mas cujo verdadeiro nome era Jacques Pasquá. Ainda por cima marido da Yvette, ou seja, da Albertina. O Azimute deu-lhes o flagra e, para salvar a missão, despachou-os com uma bala na cabeçorra de cada um dos espiões franceses.
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- Porra!
- Tens a certeza do que estás a dizer?
- Não te esqueças de que fui faxina do gabinete do director. Vi dossiês de quem quis e me apeteceu. Está lá tudo.
- Mas se o que dizes é verdade e o Azimute matou os espiões para salvar uma missão do nosso Governo, porque prenderam?
- Porque despachou duas altas patentes. O que dava pelo nome de Isidro era um coronel com uma folha de serviços que metia impressão e a tipa era major ou coisa assim. E vocês sabem como são os franceses. Fizeram um ultimato ao Governo português. Ou condenavam o cabrão que de uma só vez limpara o sarampo a dois dos seus melhores agentes ou expulsava todos os emigrantes portugueses em França!
- Cum caraças, ficávamos inundados!
- E o Azimute levou vinte e cinco na pá, mas não perdeu direito a regalias nem a vencimentos. Como conhece bem a prisão, inventaram um assalto a um banco para poder vir para aqui vigiar aqueles três colombianos que estão no anexo e andam sempre sozinhos. Um caso de tráfico de cocaína, dos grandes.
O Joanetes enfiara o estoque fundo de mais e o grupo ficara fulminado. Durante alguns minutos ninguém foi capaz de falar. Até que o Caganeta comentou:
- Na verdade nunca me fugiu essa música. Sempre achei o tipo demasiado afinadinho, muito bem comportadinho. Havia ali qualquer coisa que... pois, agora percebe-se.
- É do catano!
O Czar é que não gostou da história.
- A verdade é que temos um bófia entre nós. Pode ser muito porreiro, mas, se puder, lixa-nos. Precisamos de despachá-lo.
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O Joanetes assustou-se.
- Estás maluco? O Azimute é o teu abono de família e tu queres despachá-lo?
- O meu abono de família?
- És tão estúpido que não vês que nos pôs sob a sua protecção? Olha, ontem à noite. Quem é que ele escolheu para se sentar no banco de apoio?!
O Czar teve de admitir que era meu protegido. Numa fotografia publicada num dos jornais, ele aparecia no fundo a aplaudir.
O Mandrake liquidou as dúvidas e ameaças que ficaram a pairar.
- Ninguém faz mal ao Azimute! É um tipo porreiro e, quando eu sair daqui, quero que se saiba que sou amigo deste futuro jogador do Real Madrid.
Era um ponto em que todos estavam de acordo. Ter um amigo a jogar no maior clube do mundo era uma honra, uma vaidade que não podiam jogar para o lixo com uma chinadela mal dada. Eu desconhecia tudo isto, mas o Joanetes acabara de me arranjar o melhor seguro de vida.
Chegados aqui, é fácil de perceber que vivia o meu primeiro dia de glória. À hora do pequeno-almoço estava na iminência de ser contratado pelo Real Madrid, quando a malta enfileirou para o almoço já era funcionário prisional, embora, a sério, pertencesse aos serviços secretos e para o Porto Sandeman, mais importante que tudo isto junto, é que afinal eu não era corno, antes tinha enfiado um par de chifres no espião francês. E repetia com admiração reforçada pelo campeão de damas:
- Não só lhe comeu a mulher como despachou os dois. É de homem. É de homem!
Porém, a grande novidade chegaria no dia seguinte. Um guarda veio entregar-me um saco de plástico cheio de cartas.
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Admiradores e admiradoras de todo o país escreviam, deslumbrados. Alguns até comovidos e, segundo o guarda Antunes me informou, o director tinha uma lista gigante com pedidos de entrevistas.
Encolhi os ombros com indiferença. Não me interessava dar entrevistas. Um palerma como eu, que aprendeu a ler e a escrever na prisão, ia meter os pés pelas mãos à segunda pergunta que o jornalista fizesse. E depois falar não era o meu forte. Nem escrever. Se dedico algumas horas do meu dia a este diário, a única razão é matar o tempo e distrair-me no meio da monotonia que é o nosso quotidiano. Comecei a ler as cartas. Traziam quilos de parabéns. Abraços de solidariedade e enlevo. Revoltas.
"Só os homens com as suas qualidades é que estão presos. Os vadios e poderosos continuam todos à solta."
Outro, mais vigoroso, perguntava-se: "O que faz um homem com o seu talento enfiado numa espelunca dessas? Saia daí e governe este país!"
E um histérico: "O senhor é o maior do mundo e dos arredores, cum caneco!"
E uma maternal: "Gostava que me enviasse o seu autógrafo para o meu filho. Faz anos para a semana e é seu fã."
E a ternura: "Gostava de conhecê-lo. Graças à vontade de vencer passei a melhor hora da minha desgraçada vida frente ao televisor. Não consigo esquecê-lo. Foi uma lição de vida." Assinava uma tal Margarida e trazia número de telefone.
A Sociedade Recreativa Olisiponense enviava-me um voto de louvor aprovado por unanimidade pela direcção expressamente reunida para o efeito, e até uma confraria de senhoras catequistas informou que ficara tão orgulhosa da minha acção que decidira, durante um mês, rezar diariamente um terço pela remissão dos meus pecados.
O Chefe Oliveira apareceu à porta da cela. Sorridente.
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- A ler o correio dos admiradores? Também recebi uma série de cartas. Estão todos doidos.
- Pois estão - E tu? Desapareceste depois do jogo!?
- Tenho medo de andar pelos corredores. São tantos abraços e palmadas nas costas que ainda me desfazem.
Sentou-se na borda da cama.
- Foi uma grande jogatana!
- O senhor acabou aviando-lhe cinco secas para o terceiro e quatro lugares. O Paco até arfava.
- Já estava desmotivado. Tu é que foste o grande herói da noite.
- Fomos os dois. Se o Chefe não me tivesse ensinado a táctica, nunca teria ganho.
Ficámos em silêncio. Os dois saboreando a vitória. Por fim, ele falou.
- É uma injustiça estares aqui preso. Uma grande injustiça.
- É a vida, Chefe.
- Só quem não te conhece é que acredita que eras capaz de assaltar um banco. E logo com o Rosnante.
- O Chefe ainda se lembra dele?
- Então não me lembro? Um grande vadio. Levantou-se.
- Vou indo. Esta noite jogamos uma partidinha?
- Por mim...
- Então fica combinado. Ah, já me esquecia. O director quer falar contigo.
- O que é que ele quer?
- Deve ser para te dar os parabéns.
- Da última vez que nos chamou, foi para nos insultar e correr connosco a pontapé.
O Chefe suspirou.
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- É um dos direitos que as pessoas importantes têm. Correr-nos a pontapé.
- Não te esqueças de ir visitá-lo. Saiu.
O Chefe tinha razão. Havia gente que ganha esse estatuto privilegiado. Falar com quem lhe apetece, correr a pontapé quem entende. Só podia ser um dom que lhe fora dado por Deus.
Voltei a reler a carta que a tal Margarida me escrevera. Porque diria ela que passara uma vida desgraçada? Que sopapos lhe havia dado o destino? Decidi que lhe telefonaria depois da conversa com o director e saí da cela.
O homem estava eufórico. Tinha sido o próprio ministro quem lhe pusera a questão com toda a clareza depois do jogo.
- O seu trabalho à frente desta cadeia foi magnífico!
- Obrigado, excelência!
- A partir do próximo mês, quero-o no meu gabinete. Preciso de um assessor com a sua categoria.
Arrumava tralha. Papéis, fotografias de familiares, numa caixa de sabão. Pela velocidade com que despachava o serviço era evidente a alegria incontida por abandonar aquele gabinete, a cela que durante anos tivera de compartilhar com a maior escumalha da cidade.
- Devo-te a minha vida, Azimute. O que posso fazer por ti?
- Nada. O senhor director não é juiz nem magistrado.
- É verdade. Ficas com os meus charutos. Esta caixa é para ti. E quando precisares de alguma coisa é só apitares. Estou no gabinete do ministro.
Vida de desgraçado é mesmo isto. Eu ganhava o jogo, mas o director é que era promovido. Como prenda, ofereceu-me meia dúzia de charutos que restavam na caixa.
Sabia que não voltaria a vê-lo.
- Não quer mais nada de mim, senhor director?
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- Podes ir, e já sabes, quando precisares é só apitares. Não fui capaz de agradecer. Embora tivesse aprendido a dobrar-me, quando era necessário até caía de joelhos, naquele dia, dos poucos da minha vida de que me podia orgulhar, não fui capaz. Se não encontramos dentro de nós um pingo de dignidade que seja, mais vale morrermos de vez. Cruzei-me com o graduado que substituía o Chefe. Sabia que gostava de charutos. Dei-lhe a caixa.
- São para si. O senhor director ofereceu-mos, mas não aprecio.
Ficou tão surpreendido com a oferta que me olhou embasbacado. Senti uma alegria tão grande que até parecia que fizera as pazes comigo próprio. E Deus sabia como eu gostava de um charutinho. Mas daqueles, nunca! Ainda não chegara o tempo de receber esmolas. Talvez mais tarde. Quando saísse daqui sem destino nem futuro, com as carnes mirradas e os ossos encarquilhados, talvez tivesse de enfileirar na sopa da Mitra.
Foi então que, de repente, me lembrei da Margarida. Corri ao telefone. Tirei a carta com o número dela e o coração deu-me um baque. Eu não sabia usar o aparelho! Há mais de vinte anos que não pegava em semelhante instrumento.
Hesitei. Um guarda, que me observava com simpatia, aproximou-se.
- Há problemas, campeão?
- Há, por acaso.
- Não consegue ler os números, não é? Comigo aconteceu a mesma coisa. Quando se passa os quarenta é uma chatice!
- É isso mesmo! - menti.
- Deixe cá ver que eu ajudo-o.
Retirou de uma carteira um par de óculos, encavalitou-os na ponta do nariz e estabeleceu a ligação.
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- Pronto, já está a chamar.
- Obrigado, senhor guarda.
Delicadamente, afastou-se. O coração batia-me descompassado. O telefone chamava. Por fim ouviu-se uma voz.
- Está lá?
Tinha um nó na garganta e a voz sumira-se.
- Está?
Por fim, consegui falar.
- É a Senhora Dona Margarida?
- É a própria. Quem fala?
- Recebi uma carta da senhora. Sou o Azimute. Percebi que ficou ansiosa.
- O jogador de damas?
- É o próprio.
- Desculpe-me, estou tão nervosa. Nunca imaginei que telefonasse.
- Queria agradecer a sua carta.
- Não tem nada que agradecer. Puf! Até estou com calores...
Ri, bem-disposto.
- Gostava de conhecê-la.
- Eu também gostava muito.
- O problema é que não posso ir ter consigo. Tem de ser a senhora a vir aqui.
Respondeu, entusiasmada.
- Eu vou. Claro que vou a qualquer sítio - de repente, surgiu-lhe amargura na voz -, também não tenho nada para fazer.
Combinámos o encontro para o dia seguinte. Quando larguei o telefone, caminhei como se tivesse possuído por uma vertigem. Nem me conseguia equilibrar por falta de força na dobra dos joelhos. Teria sido a voz dela, doce e despojada, tão manchada de solidão? Dei comigo a censurar-me por ter telefonado. Há mais de vinte anos que eu não sabia o que era
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mulher e, por certo, qualquer uma que se aproximasse de mim fugiria assustada ao saber como tratara a minha Albertina, que Deus haja.
A verdade é que o telefone fez com que entrasse em conflito com o relógio. Os minutos não passavam e as horas bocejavam, preguiçosas, gozando a minha impaciência. Até parecia que a prisão se tornara um vazio, como se as vozes dos faxinas a varrer os corredores viessem do fim do mundo.
Tornava a ler pela centésima vez a carta da mulher a quem conhecera a melancolia da voz quando Joanetes entrou, indignado, na minha cela agitando um jornal.
- Olha-me este filho da puta! Olha-me para este grande filho de um comboio de putas!
- O que foi?
- Lê. Lê-me esta merda.
Joanetes estava prestes a vomitar ira. Trazia-me uma entrevista do ministro da Justiça. A mesma arenga de sempre. Que não havia crise no sistema judicial, que qualquer cidadão menos distraído poderia conferir que a justiça funciona, até tínhamos um dos melhores aparelhos judiciários do mundo e, no que respeitava às prisões, aí estávamos como um exemplo europeu do que era a nobre tarefa de reeducar e reinserir.
Olhei para Joanetes, desiludido.
- Qual é o teu problema? Eles dizem sempre o mesmo, embora saibam que é mentira.
- Lá em baixo. Lê lá em baixo. A partir daqui.
E com o dedo apontava o parágrafo. A prova do excelente trabalho prisional estava no recente confronto entre os nossos reclusos contra a equipa do Real Madrid, tida como a mais poderosa do mundo.
- Leste? O cabrão até ignora que o Chefe Oliveira é chefe e não um preso.
- Deixa ler o resto.
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O jornalista perguntava: "Mas o confronto a que se refere não foi uma simples acção de formação?
Resposta: "Deveria ter sido, mas a direcção do presídio convenceu-me à ultima da hora de que tínhamos formação interna sólida nesta vertente do jogo de damas e que, em vez de acção formativa, deveríamos testar o esforço de aprendizagem dos nossos presos. Como se sabe, derrotámos a mais poderosa equipa do mundo. Existe maior exemplo do sucesso da nossa reeducação?
Deixei escapar um sorriso. O Joanetes foi aos arames.
- Tu ris? Azimute, tu não podes rir. Isto é demasiado grave.
- Não vejo porquê?
- Este merdas, antes do jogo, pôs o cu de fora. Chamava-lhe acção de formação. Agora que ganhámos, mete medalhas ao peito?! A sua reeducação, a sua reinserção. Se o apanho, juro que o mato! Eu mato este cabrão.
- Para quê? Substituíam-no por outro igual ou pior.
- É isso que me revolta, Azimute. E nós é que somos maus? Que cabrão de país é este em que nós é que somos os maus? Será que ninguém vê? Será que ninguém quer saber?
Concordei com ele.
- É verdade. Ninguém quer saber.
- Eu mato este cabrão!
E saiu porta fora. Nem me incomodei a acalmá-lo. Sabia que a fúria do Joanetes só chegaria até ao gradão. Os dois guardas de serviço mandá-lo-iam para a cela quando ele lhes dissesse:
- Deixem-me sair que já volto. Vou matar o ministro.
MARGARIDA E ROSNANTE
Tomei banho e pus perfume para recebê-la. Por duas ou três vezes confirmei ao espelho se estava bem escanhoado e guardei o pente na algibeira das calças. Não devia ter confirmado. O espelho mostrava-me uma criatura de cabelos grisalhos, rugas já vincadas no rosto e um olhar cansado, entumescido.
Aquele já não era o Azimute de outros tempos. Até a pele ganhara uma cor cinzenta. Margarida ia ficar desiludida quando me visse. Pensando melhor, talvez não. Vira-me na televisão. Tivera tempo para perceber as entradas generosas que flanqueavam a minha cabeça.
Foi uma surpresa para todos enfileirar no grupo que tinha visitas. Com excepção do meu advogado, ninguém me procurava. E havia boas razões para isso - não havia ninguém que o quisesse fazer, nem que eu desejasse que me encontrasse. Nem familiares próximos ou afastados. Nem amigos. Quando era ladrão, roubava sozinho. Fora uma das lições que não esquecera do reformatório. Agora era presidiário e sozinho ficava melhor.
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"Quem rouba acompanhado corre o risco de ser apanhado!"
Rimava e era verdade. A bófia apanhava um e apertava-o com tanta energia que rapidamente bufava o nome do outro. Não há outra explicação para ter arrombado portas e portões por toda a cidade, de Marvila à Ajuda, e nunca ter surgido pasma que me deitasse a unha.
Quando despachei a minha Albertina, que Deus haja, e o ranhoso do Isidro era um mocinho com um cadastro tão limpinho que parecia saído de uma sabonária.
Ao vê-la sorrir para mim, o coração bateu forte. Era linda e usava uma muleta. Ajudei-a a sentar-se e via-se que estava ruborizada. Metade das visitas olhava para nós. Os efeitos do histórico jogo contra o Real Madrid ainda estavam bem vivos na memória de todos e correspondi como foi possível à multiplicação de cumprimentos que me dirigiam.
Começou ela:
- Já vi que é muito popular por estas bandas. Fiz um gesto condescendente com a mão.
- São os maus efeitos da televisão. Até à noite do jogo ninguém desta gente sabia que eu existia.
- Hesitei se deveria vir.
- Porquê?
- Porque deve pensar que sou uma desgraçada de uma aleijadinha que anda à procura de um homem.
- Não penso nem uma coisa nem outra.
Ainda não chegara aos quarenta. O rosto redondo, que o corte de cabelo negro de azeviche acentuava, era iluminado por um par de olhos negros brilhantes, rasgados - parecia ter ascendência oriental. E os lábios eram carnudos. Vermelhos e apetitosos.
- Também o vi na televisão e achei-o formidável.
- É outro dos enganos da televisão. Transforma coisas banais em espectáculos magníficos.
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Olhámo-nos e simultaneamente baixámos as cabeças como se tivéssemos ficado assustados com o que víramos no olhar um do outro.
- Também estava ansioso por conhecê-la.
- E agora que me conheceu sou uma desilusão.
- Que disparate. É lindíssima.
- Mas deficiente.
Havia amargura na voz, que disfarçou com uma gargalhada.
- Quando estou sentada nalgum lugar público por várias vezes pressenti homens que me cortejavam. Pego na muleta para dar um passeio e fogem a sete pés.
- Eu não fugi.
Suspirou com um meneio de cabeça.
- É verdade. Não fugiu.
Hesitou. Por instantes, olhou as visitas de outros presos, que tagarelavam no parlatório. Decidiu-se.
- Foi um acidente. Tinha dezoito anos. O meu namorado morreu e a porta do carro decepou-me a perna por baixo do joelho. - Procurou um sorriso para rematar. - Uso uma prótese, mas nunca consegui adaptar-me. É por isso que ando com a ajuda da muleta.
- E faz muito bem. Vive sozinha?
- Com a minha mãe. Tenho dois irmãos mais velhos, mas estão casados.
- A Margarida não casou?
Soltou outra gargalhada. Agora bem-disposta.
- Com tanta mulher que há para escolher, que raio de maluquice faria um homem querer uma deficiente? Não, não casei. E você é casado?
- Não, não sou.
A resposta era sincera, mas aproximava a conversa da curva mais perigosa.
- E tem filhos?
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- Não.
Observou-me como se ainda não me tivesse visto.
- Não tenho ninguém.
- Está a falar a sério?
- Vai para vinte e dois anos que estou aqui e é a primeira vez que venho ao parlatório. A Margarida é a minha primeira visita.
Ficámos silenciosos. Presos nos nossos tumultos interiores. Abriu os braços num trejeito sem nexo e comentou:
- Não sei o que lhe hei-de dizer.
- Não diga nada. Fique apenas mais uns minutos ao pé de mim.
Estendeu a mão e segurei-lha. Era quente, como eu já esquecera o calor de um afago!, e num torpor doce ficámos em silêncio. Riu nervosa.
- Acho que estou a tremer.
- Também eu.
- Sente-se?
- Também a sinto tremer. Bruscamente retirou a mão.
- - Isto é uma loucura. Eu não devia ter vindo...
- Margarida, por favor...
Acalmou-se e eu disse palavras que não sabia que era capaz de dizer, nem conhecia o sítio onde nasciam.
- Chegou aqui julgando-se a mais desgraçada das mulheres e, de repente, descobriu que ainda há desgraça maior do que a sua. Eu sei o que a atormenta. A solidão, não é? Mais do que a sua deficiência, pior do que ter amadurecido junto da sua mãe, padece de solidão. Tem medo dela e quer fugir-lhe. Por isso está aqui. Escolheu a porta errada, Margarida. A cadeia é o ninho onde nasce a mais tenebrosa e terrível das solidões. Sabe qual foi a grande vitória da minha vida, mais importante do que aquela a que assistiu contra o Real Madrid?
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Foi aprender a conviver com a solidão. Perder-lhe o medo e conviver com ela como se fosse uma namorada. Portanto, não se vá embora. Ou, se for, volte. Tenho pouca coisa para lhe ensinar, mas quanto a solidão terá muito que aprender comigo. Quando terminei, ela tinha lágrimas nos olhos. Afaguei-lhe a mão e ri.
- Já viu as partidas que a vida nos prega?
- Como?
- Chegou aqui com medo de que eu fugisse de si porque é deficiente. Agora sou eu que estou com medo que parta e não a torne a ver.
Respondeu-me com uma pergunta.
- Ainda vai ficar aqui muito tempo?
- Provavelmente até morrer.
- Meu Deus! Que fez assim de tão horrível?
- Nada. Por acaso até estou inocente do crime de que me acusam.
- O quê?
- Talvez esteja a pagar por outro de que sou culpado e não me acusaram.
- Mas não é possível!
- Quem manda acha que deve ser assim e eu não tenho força para lutar contra quem manda. Nem paciência.
O guarda de serviço ao parlatório passou por mim e tocou-me no ombro. A visita estava no fim. Levantei-me.
- Por hoje chegou ao fim. Volta a visitar-me? Olhou-me, comovida, com um sorriso luminoso. Acenou afirmativamente e apenas disse:
- Obrigada.
Retribui o sorriso e saí do parlatório. Pelas alas da cadeia já circulava a notícia da visita. O Czar, jocoso, atirou:
- Com que então, visita!? A coxinha é engate ou disfarce de alguma colega dos serviços secretos?
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Aproveitei o embalo e resolvi armar ao pingarelho. Em voz baixa respondi-lhe.
- Eu percebi logo que tinhas descoberto. É disfarce, mas não digas a ninguém. E já agora, porque somos amigos, devo dizer-te que me veio pedir informações dos colombianos e, no meio da conversa, perguntou-me: "Conhece aí um tipo que dá pela alcunha de Czar?", eu disse que sim e ela respondeu: Estou a preparar uma caldeirada a esse Czar que nem a prisão perpétua vai chegar."
Encostou-se à parede, assustado.
- Tu estás a falar a sério?
- Pedi-lhe calma, expliquei-lhe que eras meu protegido, mas, enfim, lá nos serviços secretos ela manda mais do que eu, portanto pensa bem antes de gozares com a coxinha.
- Porra!
Afastei-me e já ia ao fundo do corredor e continuava a ouvir o Czar, assarapantado de medo, repetindo:
- Porra!
Deixei-me cair na cama, embalado no olhar de Margarida. Era um mar de ternura e reparei, pelo menos sonhei, que dentro de mim começara a brilhar uma estrela doce e mansa que tinha o mesmo sorriso da minha nova amiga. Acho mesmo que adormeci porque ela crescia, aquecia-me a alma fria, gelada, e uma vaga de calor brando começava a alastrar no meu peito como se fosse uma ferida, mas em vez de sangue brotava luz, cintilante, como a estrela que viajava com o sorriso da Margarida.
Acordei estremunhado com um guarda a sacudir-me uma perna.
- O que é? O que é?
- Visita.
Era ela que voltava. Compus à pressa a fralda da camisa e corri pelo corredor.
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Ela voltara. E com razão. Tínhamos milhões de coisas para dizer, guardadas nos silêncios de tantos anos, e todo o tempo era pouco para estarmos juntos.
Entrei na sala, ofegante, e levei um coice na exaltação. Afinal quem se apresentava era o meu advogado. Deixei-me cair na cadeira, agastado.
- O que foi desta vez?
- Boas e más notícias. Quais quer primeiro?
- As boas.
- O Rosnante foi preso.
Dei um salto na cadeira, reconciliando-me com o miúdo.
- Está a falar a sério?
- É verdade. Agarrado pela Brigada de Trânsito numa operação de rotina.
- E confessou? Disse que eu não tinha nada a ver com o assalto?
- Não confessou nada.
- Filho da mãe!
- A única coisa que declarou é que você nada tinha a ver com aquela história do banco!
- Grande Rosnante!
- Teve coragem, sim senhor.
- Quer dizer que me vou embora.
- Essas são as más notícias.
- Más notícias? Porquê? Está tudo esclarecido!
- Os tipos deixaram passar todos os prazos e o processo finalmente apareceu. Tinha ido parar a uma comarca do Minho.
- E o que tenho eu a ver com isso? Está provado que estou inocente.
O coração pulava. Queria sair dali. Queria passar o gradão e, num salto, chegar ao pé da Margarida.
- Surgiu outra testemunha a incriminá-lo.
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- A mim???
- Outro cliente do banco que lá estava no momento do assalto.
Perdi a cabeça.
- Mas esse caralho está a mentir! É mentira!
- Eu sei. > - Sabe? Então, se sabe, o que faz aí especado a olhar para mim?
- Um dos meus recursos era para que o senhor Azimute fosse ouvido outra vez. O primeiro interrogatório foi miserável.
- Pois claro. Meta todos os recursos. Eu quero falar. Já nem me interessa o cheque da reinserção.
- O problema é que levei com os pés. A Relação achou que não valia a pena novo interrogatório e o Supremo confirmou.
- Não acredito no que estou a ouvir. Não acredito!
- Ainda por cima, prorrogaram-lhe a prisão preventiva por mais seis meses.
- Não é verdade. Já sei! O senhor hoje bebeu uns canecos ao almoço, não tinha mais nada para fazer e decidiu vir embirrar comigo. É ou não é?
Abriu os braços num gesto de abandono. - Só me resta recorrer para o Constitucional.
- E essa testemunha? Quem é esse filho da puta?
- Quer a minha opinião sincera?
- Claro que quero.
Olhou em volta, para confirmar que estávamos os dois sozinhos, e quase segredou:
- Acho que é forçada.
- O que é isso? Inventaram uma testemunha?
- É a única forma de justificarem a continuação da prisão preventiva sem acusação. A descoberta de novos indícios.
- Isto só pode ser um pesadelo.
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- Infelizmente.
- E agora?
- Resta-nos o Constitucional.
- E o tal habeas corpus?
- Agora é tarde. Têm prova testemunhal. Ficam prenhes de alegria quando têm dessas provas.
- Mas é mentira, Santo Deus! O senhor tem de me pôr fora desta jaula. Não consigo aguentar isto por muito mais tempo.
Ficou intrigado a olhar para mim.
- O que foi? Disse algum disparate?
- O senhor Azimute mudou.
- Como?
- Das outras vezes que aqui vim até parecia que gostava de estar preso. Mudou mesmo muito.
Embrulhei-me nas palavras. Gaguejei. Precisava de ganhar tempo. Por fim, descobri uma saída.
- Porque a minha esperança era o Rosnante. Com o testemunho dele eu estava safo! Afinal é preso, diz a verdade e eu continuo de cana porque inventaram uma testemunha. Que merda de justiça é esta, senhor doutor?
- Não me diga nada. Não tenho palavras.
- Puta de vida! Puta de vida!
Deu-me uma palmada amigável e levantou-se para sair.
- Tenha calma. Vai ver que o Constitucional nos vai dar razão.
E saiu.
Perdi a noção do tempo ali sentado, abandonado, tão vazio que não me apetecia viver. A verdade, verdadinha é que a culpa não era do polícia mafioso, do magistrado desleixado, nem do juiz arrogante, que se babavam de prazer por me ter preso, com asas cortadas e fome de céu. A culpa era da Margarida, do seu sorriso, do calor total da sua mão, tremente, na minha mão. A culpa estava nesta vontade profunda de renas-
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cer como se o velho vulcão há muito adormecido dentro de mim tivesse começado a resfolgar, inquieto, intenso, iminente, para explodir lava e lume e liberdade. Porque não tenho dúvidas de que há um vulcão de liberdade dentro de cada um. E nas entranhas fervilhavam agora raivas e revoltas. Apenas por causa da saudade. Daquele sorriso, daquela boca que sorria triste, calcinada por silêncios e solidões. E por mágoas.
E era claro. O processo, que se arrastara, mole e viscoso de baba, por tribunais desinteressados da minha medíocre existência, tinha destruído a máquina dos sonhos presente dentro de cada um de nós. E eu resolvera usar esse desinteresse em proveito próprio. Não querer sair da prisão nunca foi um sonho, mas o anti-sonho. Durante anos organizei, como se fosse um político de carreira, o percurso da minha reclusão. Aqui estava abrigado do sacrifício de viver e agora surgia Margarida, sonho e pesadelo, que rebentava com um simples sorriso luminoso a cadeia de interesses que construíra para a estrada de futuro. Não era possível continuar a pensar nela e permanecer preso. Pensá-la, exigia que partisse. Que saltasse dali, ou pelo portão ou por cima do arame farpado que debrua os muros altos da penitenciária. Margarida não era apenas um sorriso e um olhar, a ternura vestida de mulher, era o desejo de liberdade. E o processo, o maldito processo que descrevia o meu primeiro e único encontro com o Rosnante fora de uma cadeia, um encontro de amigos, embora ele estivesse a trabalhar, obrigara-me a pensar na demissão, como se, falando com São Pedro, lhe tivesse dito: "Diz aí ao Patrão que não conte comigo nem para o bem nem para o mal. Não voltarei a roubar, mas também não poderei dar donativos para o Banco Alimentar contra a Fome. Demiti-me."
O meu santo preferido poderia ter ripostado: "Tem calma. Não faças esse disparate. Olha que Ele disse-me que vai surgir uma Margarida na tua vida."
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Mas fechou-se em copas. Nem um sinal, nem um aviso, nem uma visão. Apenas o teimoso regresso do advogado e com ele a maldição do processo. Que me retirava o mais pequeno nervo onde se forja a heroicidade para lutar por qualquer coisa. E decidi. Não posso voltar a vê-la. Afinal, é uma miragem. E neste deserto em que me fui transformando, com tantos anos de extensão, a ilusão mais vulgar é a miragem.
Despertei da vaga de ira que me dominava ao som dos guinchos do Caganeta. Chiava como um bácoro que vai ser degolado e o som de muitos outros passos que se dirigiam para os gritos levou-me à porta.
O Czar acabara de zurzir, a murro e pontapé, o Caganeta, que, encolhido no chão, gemia:
- Eu juro. Eu juro.
- É bom que jures. Não é a coxinha. É uma senhora respeitável, amiga do Azimute.
E o Czar afastou-se enquanto dois presos procuravam levantar do chão o que restava do Caganeta.
Nesse dia, dei comigo a pensar que estávamos todos a ficar malucos. Um mundo cercado, reforçado por grades e vigiado de guarita em guarita por guardas armados, não tinha dentro de si uma réstia de normalidade. Nem podia. Porque um mundo assim fechado, sem um céu sem limites nem asas para o cruzar até ao infinito, é, em si mesmo, a essência da anormalidade.
Margarida voltou na visita seguinte. Embora nos tivéssemos encontrado apenas uma vez, ela viu em mim algo mais do que um sorriso de boas vindas.
- Hoje está triste.
- Como é que sabe?
- Sinto-o triste.
- É verdade. Estou triste.
- Fizeram-lhe mal?
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Encolhi os ombros.
- Já não sei o que é fazer bem ou fazer mal.
- Trouxe-lhe uma prenda a propósito da nossa conversa sobre a solidão do último dia.
Estendeu-me um embrulho. Era um livro. Pesei-o e, sem o desembrulhar, perguntei:
- Posso adivinhar o título?
- Não adivinha.
- Cem Anos de Solidão.
Corou. Passou os dedos pela testa, procurando recompor-se. Depois sorriu, nervosa.
- Não acertei?
- Acertou. É um homem culto. Conhece os livros pelo peso. Ri bem-disposto.
- É caso para dizer que a minha cultura é a peso.
- Mas descobriu sem abrir.
- Vou contar-lhe um segredo. Aprendi a ler e a escrever na prisão. Quando aqui cheguei era analfabeto.
Era linda quando sorria. O rosto iluminava-se.
- Passei milhares de horas enfiado na biblioteca. Li tudo o que havia para ler. Era o meu passatempo. Ler e jogar damas.
- E agora já não lê?
- Pouco.
- Mas porquê?
- Porque é uma coisa perigosa.
- Não diga isso.
- Muito perigosa mesmo. Pior do que uma carga de cavalaria, pior do que um terramoto. Não há coisa mais perigosa no mundo.
- Não acredito.
- Porque os livros fazem-nos sonhar, Margarida. Quem quiser viver tranquilo numa casa como esta não pode sonhar. Qualquer sonho desemboca no desejo de ser livre.
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- Você é tão estranho - Digamos que sou um bom actor. Só a si me revelei. O Azimute de todos os dias é simplório, calado, obediente e não manifesta opiniões. É o truque para sobreviver.
- E diz-me isso tudo porquê?
- Porque eu sou o seu engano. O seu grande erro.
- Como?
- Porque me procurou?
- Não sei, quer dizer, foi aquele espectáculo na televisão.
- Posso adivinhar outra vez?
- Não me assuste.
- Procurou-me porque tem pena de si. Porque se julga menor, diminuída, feia, porque lhe falta uma perna. E o abandono que sente é tão grande, a ausência de auto-estima tão dramática, que me viu na televisão e pensou: só um preso me dará atenção porque é tão carente como eu. Foi por ter pena de si que veio ter comigo. Não cometa mais esse erro, Margarida. É verdade que é deficiente, mas é livre. Pode ser vento e pássaro, grito e vontade. Os grandes, os maiores deficientes estão aqui comigo. Somos todos. Não venha cá para lamber as suas feridas. Eu sei que há muitas mulheres que o fazem. Conheço-as há anos de visita em visita a presos que nem um pobre livro têm para oferecer. A não ser as suas próprias grilhetas.
Chorava de mansinho. As lágrimas lavavam-lhe o rosto e ao reflexo das lâmpadas do parlatório parecia luminoso.
- Não quer voltar a ver-me.
- Não quero que seja infeliz. Tem todas as razões para conquistar a sua felicidade. Não há deficiência física que valha um pedaço de solidão.
- Acho que percebi o que quer dizer. Posso escrever-lhe?
- Quando quiser.
- Espero que não morra aqui dentro, como disse na última vez.
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- Espero que viva lá fora como não viveu até agora!
- Adeus.
- Até sempre, Margarida.
Partiu pendurada na sua muleta. Foi a custo que segurei as lágrimas. Mas era forçoso. Tinha a necessidade absoluta de romper qualquer cadeia que me ligasse à esperança. O meu destino era viver murado, cercado de betão e arame farpado. Alimentar qualquer projecto não era mais do que dar força ao sofrimento.
É verdade que tive uma vontade louca de correr atrás dela, de lhe suplicar que voltasse, que deixasse a minha mão repousar na sua mão. É verdade. Mas resisti. Tal como resisti ao jogo ardiloso do Carlos.
Levantei-me, fui direito à minha cela e nunca mais a vi. Agora podia voltar a ser o Azimute. Jurei sobre o Cristo que trouxe quando aqui entrei, há mais de vinte anos, que não me desnudaria perante mais ninguém.
Dei dois dedos de conversa ao Joanetes, que estava lixado com os guardas que não o tinham autorizado a ir matar o ministro, e fui preparar-me para a partidinha de damas com o Chefe Oliveira.
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INDIFERENÇA DO CONSTITUCIONAL
E A PARTIDA DO CHEFE
De Direito e dessas coisas complicadas de que falam uns senhores muito importantes que vão à televisão não percebo nada. Estão aqui artistas que sabem o Código Penal de trás para a frente e da frente para trás e tratam cada artigo com a mesma facilidade com que limpam cus a meninos.
- Não és primário, não cooperaste com o MP, destruíste provas, filho, deixa fazer contas... é isso! No mínimo vais levar dez anos na pá!
E discussões filosóficas são o pão nosso de cada dia, O Porto Sandeman e o Mandrake pelam-se por discussões filosóficas.
- Não me fodas, pá! Claro que há dolo.
- Como pode haver dolo se nem existe nexo de causalidade? Nem se pode falar em negligência!
- Tu és teimoso, pá! Tu não vês o dolo? Mas és tão ceguk não que não vês o dolo?
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Afastava-me destes conciliábulos académicos. Não sabia nada de Direito porque o meu problema era de fé. Um mero problema religioso. Todo aquele que tiver fé, salvar-se-á! Não era o meu caso. Não tinha fé. Sabia por experiência vivida que fácil era cair nas redes da justiça. Difícil era sair. Vejam o caso do Doutor. O Doutor chegou há dias. Homem da minha idade. Vai para os cinquenta. Uma pessoa fina. Dá gosto falar com ele. É pessoa importante. Até andou metido na política. Ao ponto de chegar a presidente da câmara numa cidade para lá do Ribatejo.
Foi ele que me contou. Quando foi eleito, mal tinha sentado o cu na cadeira presidencial começaram a chover cartas anónimas nesse tal Ministério Público, mais conhecido por MP. Que se abotoara com o dinheiro para a campanha eleitoral. Depois, que meteu a mão no pote do mel da adjudicação desta empreitada, na adjudicação daquela escola.
O homem espirrava e lá ia carta anónima denunciar.
Ainda não tinha três meses de presidência e já lá estavam mais de dez cartas anónimas.
- Mas porquê? Ou o Doutor é bera como o cacete ou alguém o quis chinar.
- O meu próprio partido. O antigo presidente da câmara era do meu partido e corrupto sem vergonha. Esteve vinte e cinco anos na presidência. Quando entrou era um miserável contabilista. Agora tem mais de cinquenta apartamentos no Algarve e uma colecção de vinhos e de obras de arte que vale milhões. Não gostou de perder a mama e fez-me isto.
Isto eram as cartas anónimas. Provas o Doutor não tinha, mas dava para perceber que o antigo presidente, basófias e amuado por perder o lugar, decidira tornar-se em escritor. Ia nos cinquenta anos. Desde puto agarrado à autarquia e sempre a jogar em dois tabuleiros, pois que também era deputado.
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Um homem, quando entra nesta coisa da carreira política, quanto mais portas abertas, melhor cuida do futuro. Quem refilasse era calado com uma prebenda. Vais para presidente da junta, hã? Aquilo dá uns patacos por mês e não chateias!, e o grupo de amigos engrossava. Começou com uns terrenos no Algarve, uns perus pelo Natal e umas dúzias de borregos pela Páscoa, que o povo é agradecido a quem sabe roubar e está instalado. Com os anos vieram algumas preocupações. A barriga descaiu, o porte garboso de outros tempos já não fascinava o eleitorado feminino e ainda por cima não conseguia disfarçar. Se encolhia a barriga, peidava-se. Ora não se pode andar em campanha de porta a porta e um homem a peidar-se. Mas ganhava sempre e era autarca-modelo. Até que o Doutor e mais uma dúzia de correligionários decidiram dar um murro na mesa. "Nesta câmara não roubas mais! Acabaram-se as prendas e as comissões. Ao povo o que é do povo!" E o homem chorou por tão grande injustiça. Dedicou-se à carta anónima contra quem lhe roubou a mama. E o MP vai de investigar e nada. E mais cartas anónimas e mais investigações e escutas a eito e nada. O Doutor era homem de ponto em branco, se tocava na maçaroca fazia-o de tal maneira que ninguém dava por isso. Os investigadores começaram a ficar nervosos. Não era possível. Tanta carta anónima só podia significar que o homem era um vigarista do catano. Foi então que se lembraram da fórmula mágica. Ai, não apanhamos o cabrão? Então vai ver com quantos paus se faz uma canoa. Como o nosso segredo de justiça é puta que não usa cuequinhas, para estar sempre pronta para o serviço, bastou levantarem-lhe a saia. Não havia semana que o nosso Doutor não fosse notícia de primeira página. Está a ser investigado por isto, está a ser investigado por aquilo, e chega-se a um ponto que o povo, essa coisa sem rosto, ressentida e mole que se alimenta da intriga, telenovela e revista cor-de-rosa, responde: "Eh pá,
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tem de haver alguma coisa para que a justiça não o deixe em paz, não tenhas dúvidas. Não há fumo sem fogo", ou então na variação mais clássica: "Se andam atrás dele é porque alguma coisa fez. A mim não me investigam eles, não."
E o Doutor, que era um homem sisudo, que passara a vida sonhando em vez de pôr os pés na terra e perceber que isto só lá vai com canalhice da grossa, trata de encolher-se. Por cada notícia sobre mais uma investigação sobre tal carta anónima, deixou de frequentar o café por vergonha de ver escarrapachado o nome em todos os papagaios e televisões. Depois, deixou de entrar no restaurante preferido, a seguir deixou de ir à missa, depois desistiu do passeio dominical com a família. Até que um dia acordou e mais uma vez lá estavam as suas fuças na primeira página. Investigado por suspeita de desvio de dinheiros destinados ao clube de futebol da terra. A razão da suspeita é que cometia o pecado antipatriótico de não gostar de futebol.
Saltou-lhe a tampa. Porque sonhara ser um presidente sério numa terra séria levantara-se contra ele a mais tenebrosa aliança que o homem podia imaginar. Esta aliança entre um antigo presidente burlão e a sua comitiva de povoléu imundo e uma justiça burlona fez com que o homem descobrisse que não passava de um farrapo desonrado, humilhado, pedaço de bosta com olhos. E o pior é que arrastara a família no desastre. A mulher nem podia entrar no cabeleireiro, o filho era todos os dias espancado na escola. Acabara-se a força para resistir. Alucinado, foi à cómoda buscar a pistola. E logo ali despachou a mulher. Foi ao quarto do filho e jurou que o rapaz não voltaria a ser espancado, porque o pai era sério, e despachou-o, a seguir encosta a arma à cabeça e lá vai disto. Já que era notícia falsa todas as semanas, agora que fosse verdadeira.
Azar dos azares! Não é que a bala entra na mona do Doutor, faz uns ricochetes estranhos naqueles ossos miudinhos que
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temos na cornadura e sai pelo outro lado da cabeçorra e o homem fica vivo?
Quando a vida é madrasta até a morte goza com um desgraçado.
Falei do Doutor por falar. Porque, ao contrário do Man-drake e do Porto Sandeman, que acreditam, fé foi dom com o qual não fui ungido.
É por isso que amansava o Chefe Oliveira quando lhe entravam os calores justiceiros.
- Tu não podes continuar nesta situação, Azimute! Já passaram mais de quatro anos que estás aqui preso preventivamente sem uma acusação! Não pode ser.
Eu já sabia toda a ladainha do Chefe sobre as virtudes da justiça e procurava acalmá-lo.
- Não se enerve, Chefe. O processo está em recurso. É a sua vez de jogar.
- Tem paciência. Se o teu advogado não trata do teu caso, eu próprio vou tratar.
- O meu advogado está a trabalhar bem. Não se preocupe que mais dia menos dia a coisa está resolvida. Com a conversa papou-me duas pedras e fez dama.
No fundo, no fundo, eu sabia que o Chefe não iria mexer uma palha para eu sair dali. Era o seu maior amigo e o único parceiro de damas que lhe dava luta.
Ainda por cima, o director saíra há mais de três anos e não fora substituído. Tinha caído nos ombros do meu companheiro de jogo uma carga de trabalho do qual só se despachava noite dentro. Era a partidinha de damas o seu único momento de descanso. Ia lá agora mandar para a rua o único tipo que o distraía em vez de dar trabalho.
Descansado quanto aos esforços do Chefe, também acabara por me livrar do advogado. O homem não parava de recorrer para a Relação, para o Supremo, para o Constitucional, e de129
pois lá vinha o processo outra vez por aí a baixo, para voltar a subir, recurso a recurso, até que resolvi pôr um ponto final naquela montanha-russa.
- Doutor, a coisa acabou hoje e agora. O senhor não está autorizado a mexer mais no desgraçado do meu processo. Acabou!
- Fiz alguma coisa de errado?
- Fez e muito. Não tem deixado o infeliz do processo em paz. Já não é um processo. É uma bola de pingue-pongue.
- Mas o direito é assim mesmo. A justiça só funciona de recurso em recurso.
- Estou-me cagando para o Direito em geral e para a justiça em particular. Aprendi pouca coisa na vida, mas há uma que sei que está certa. A justiça verdadeira, da boa, da pura, faz-se enquanto o diabo esfrega um olho, rápida e certeira. O meu processo, ou, para ser mais preciso, o meu cheque da reinserção, anda em bolandas há mais de quatro anos. Se o senhor chama a isto justiça, eu chamo-lhe paródia. O senhor, porque é um crente, leva isto a sério. Eu, porque não tenho fé, sei que isto não passa de um circo. Por isso, ponto final!
- Mas oiça, o Constitucional...
- Deixe o Constitucional em paz, homem de Deus. Essa gente toda, do procurador ao Supremo, tem coisas bem mais importantes com que se preocupar. Deixe os tribunais em paz pela sua rica saúde!
Bufava. Queria falar mas eu pusera entre os dois uma barragem de artilharia pesada.
- Acabou. Se ainda quer ser gentil para comigo, como tem sido ao longo de todos estes anos, passe pelos gabinetes dos procuradores e juizes que andou a chatear ao longo de todos estes anos, apresente-lhes as minhas desculpas pelos incómodos que lhe causámos e que fiquem descansados que, pela minha parte, não voltarei a incomodá-los.
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Aquele infeliz que durante quatro anos revolvera os intestinos do mundo em nome dos seus ideais de jovem romântico, pela primeira vez durante toda a odisseia estava furioso.
- A verdade, a pura das verdades é que o senhor não quer sair daqui.
Estremeci.
- Não diga isso.
- Claro que digo. Não tem família, não tem profissão, não tem amigos e está a ficar velho. Arranjou uma pensão onde pernoita e lhe dão de comer à borla. A única factura que paga é não poder sair à rua.
- Por favor, eu...
- Qual por favor nem meio por favor, velho manhoso! Não passa de um manhosão. E eu feito totó a lutar como um cão pelos seus direitos. Manhosão, filho da puta!
O rapaz finalmente crescera. Ia dar um bom advogado. Resolvi entrar no jogo.
- Pronto. Já que chegámos aqui, vamos jogar às claras. É verdade. Dá-me jeito ficar por aqui.
- E andou a gozar comigo este tempo todo.
- Não é verdade. Tive dois momentos de fraqueza. Fui aos arames quando me prenderam. Eu sei que estou inocente. O único crime que cometi foi ter convivido com o Rosnante na cadeia. Mas, para a velha que testemunhou contra mim e a nova testemunha que eles inventaram, homem que esteve preso fica preso toda a vida. Mas foi apenas um dia de revolta. Quando o juiz acreditou na versão da velha e nem olhou para mim, pois não valia a pena falar com um cadastrado, percebi logo que seria o meu destino. Isto só não correu às mil maravilhas porque o senhor doutor se meteu pelo meio e desatou a disparar em todas as direcções.
Deixou cair a cabeça nas mãos e balbuciou:
- Fui muito estúpido!
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Achei que tinha de animar o rapaz.
- Pelo contrário. Graças ao meu processo, ganhou a melhor tarimba da sua vida. Quando fez o estágio, o seu patrono deve ter-lhe mostrado tudo o que de perfeito há na justiça. Eu dei-lhe a oportunidade de perceber que a perfeição da lei, tão apregoada e venerada, não passa de verniz. Raspa-se com a unha e aparece logo a merda. Ensinei-lhe os caminhos da merda. Hoje está preparado para acreditar na perfeição e trabalhar na porcaria.
Estava mais calmo. Acendeu um cigarro, cruzou a perna e, depois de ter aspirado o fumo profundamente, perguntou:
- E qual foi o segundo momento da fraqueza?
Por momentos a voz foi-se-me. Tossi e ganhei força.
- Quando conheci a Margarida.
- Quem?
- Alguém que um dia me veio visitar. Ainda pensei, bom, quer dizer, sei lá o que pensei. A verdade é que ela veio procurar-me porque estava doente. Não acreditava que pudesse vir a ser feliz.
Naquela altura da confissão não me preocupei em disfarçar a melancolia.
- Acho que a curei. Pedi-lhe que não voltasse a visitar-me. Não se cura a amargura juntando-lhe outra amargura. E curou-se. Há dias recebi uma carta dela. Casou e vai ser mãe. Até o papel da carta brilhava pela alegria dela.
- Sendo assim, não tenho nada para fazer aqui. Levantou-se. A sua cabeça estava cheia de dúvidas e sentimentos contraditórios.
Ficou de pé a olhar para mim.
- Não sei se lhe agradeça ou se devo partir-lhe esta cadeira na cabeça.
Encolhi os ombros, indiferente à sentença, e ele acabou por não fazer nem uma coisa nem outra. Foi-se embora. Já passaram dez anos sobre esse dia e de vez em quando ainda me vem visitar, pedir-me conselhos sobre manhosice, como gosta de dizer. É o único amigo a sério que me resta.
- Estou com outro cliente na situação em que você esteve. Agora foi uma carta anónima. Uma testemunha diz tê-lo visto perto de um local onde aconteceu uma violação. A carta conta pormenores da violação e fala do meu cliente. Prenderam-no.
- E é verdade o que vem na carta?
- Não sei. Está em segredo de justiça.
- O seu cliente o que diz?
- É capaz de ter sido visto na zona porque vai com frequência visitar a filha e os netos, que vivem ali. Ainda por cima, é bastante conhecido e um tipo com dinheiro.
- Isso é bom. O doutor pode sacar o seu.
- Senhor Azimute?!
- Vá por mim. Um bom advogado é uma espécie de Robin dos Bosques. De vez em quando dá uma borla, como o senhor fez comigo, e quando apanha um artista com bago esmi-fra-o até ao tutano. A única diferença com o Robin dos Bosques é que não o distribui. Fica com a massa.
- O problema é que ele está inocente.
- A moça que foi violada reconhece-o?
- Mostraram-lhe uma fotografia dele quando tinha quarenta anos. Ela diz que foi aquele homem.
- Ó doutor, então há só uma testemunha e uma carta anónima.
- O problema é que o meu cliente tem quase setenta anos, tem o cabelo todo branco e precisa de bengala para andar, por causa da osteoporose.
Nada disto me espantava. Por causa de uma velha borrada de medo acontecera-me o mesmo, com a agravante de ter ficado sem o único cheque que me deram durante toda a minha vida.
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- Quanto ao segredo de justiça, o senhor resolve a coisa facilmente.
- Como?
- Contrata um jornalista. Consegue junto do tribunal, em cinco minutos, o que o doutor não conseguirá com cinquenta requerimentos. Essa gentinha pela-se para que falem neles nos jornais.
- Pois. Talvez não seja má ideia.
- Quanto à carta anónima, está fodido. Vivemos num país onde a carta anónima vale mais do que a Constituição.
Começou a ficar irritado.
- Lá está você a gozar.
- A gozar? Está aqui preso um tipo, a quem chamamos o Doutor, a quem as cartas anónimas destruíram a vida. Desde o Marquês de Pombal, meu caro, que a carta anónima é a jóia mais preciosa que um inquisidor deseja ter nas mãos. Não conhece na História de Portugal dos últimos duzentos anos um único grande acontecimento que não tenha pelo meio uma carta anónima. É o anjo da Anunciação dos novos tempos, a figura mais singular dos novos profetas. Se quer que lhe seja franco, para mim a carta anónima só existe porque o profeta Bandarra morreu.
O homem já nem protestava contra as minhas bojardas mais envenenadas. Até conseguia rir-se. Fosse como fosse, tinha feito do puto que um dia conhecera cheio de esperanças nas virtudes do sistema, como ele lhe chamava, um advogado de sucesso.
Um advogado que ande na vida do crime não pode vestir de fraque. É fato de ganga e língua afiada. Ah, tu deixaste escapar para os jornais que o meu cliente fez tal coisa, mandando à merda o segredo de justiça? Então, toma lá: é da televisão? Eu quero explicar o chorrilho de mentiras que a imprensa traz sobre o meu cliente. E lá vai disto, pau no lombo
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do processo. Não será por isso que o cliente vai ser libertado, mas que o adversário não come um homem por parvo, isso é que não come.
A propósito o Porto Sandeman foi hoje libertado. O Joanetes até chorou. E não foi com saudades. É que, de repente, lembrou-se de que ainda lhe faltam quatro anos para sair daqui.
- Azimute.
- Sim.
- Quanto tempo te falta cumprir?
- Nenhum. Estou aqui a trabalhar. Desatou a rir.
- Não me venhas com essa treta dos serviços secretos. Fui eu quem inventou a galga a seguir à tareia que demos ao Real Madrid.
- Sabes qual é o teu problema, Joanetes? És um tipo muito esperto e não sabes.
- Eu?
- Não gozes comigo, que tenho idade para ser teu pai. Como soubeste que eu pertencia aos serviços secretos?
- Eu?!
- Acertaste em tudo menos no nome verdadeiro da Albertina. Não se chamava Yvette mas Claire.
- Não!
- Sim. Tenho-te debaixo de olho, Joanetes. Se foram os franceses que te mandaram para vingar a morte dos seus agentes, é melhor que ponhas o teu testamento em dia.
- Azimute, tu nem me digas uma coisa dessas. Sou o teu melhor amigo.
- É bom que sejas, Joanetes. Só te faz bem à saúde. Nem conseguia respirar. Durante dois dias andou sem abrir a boca. Finalmente, bateu-me à porta da cela.
- Posso?
- Diz, Joanetes.
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- Era para te dizer uma coisa.
- Diz, mas com as mãos em lugar que eu as veja.
- Os franceses não mandaram matar-te. E, juro-te, nem imaginava que eras da secreta. Se acertei no que tu fazias, é porque tive uma encorpação.
- Uma quê?
- Aquelas coisas que têm as videntes e as bruxas quando lhes entra um espírito no corpo. Uma encorpação.
- Uma incorporação.
- Ou isso. Sou teu amigo e respeito o que fazes. Por favor, não me mates nem mandes matar. Se for preciso, até faço continência cada vez que falar contigo.
- Não é preciso. Confio na tua palavra.
- Amigos como dantes?
- Amigos como dantes.
Quando saiu, até chorei de rir tanto. Quanto mais manhosos e mais ladrões, mais simplórios.
Nesse dia tornei a chorar. Mas de desgosto. O Chefe Oliveira deu o peido mestre.
Dava bons conselhos a um drogado, que agora o estaminé está cheio de drogados, e ninguém sabe como tudo aconteceu por causa da rapidez. O desgraçado, em vez de ouvir os bons conselhos do Chefe, desatinado com a ressaca, puxa de uma ponta-e-mola, que escondera sabe-se lá aonde, e enterra-a até ao cabo no pescoço do meu parceiro de damas, que nem soube como foi desta para melhor.
Quando os guardas acorreram para imobilizar o Tarântula, assim se chamava o chinador, já o Chefe estava em amena cavaqueira com o São Pedro. Devia estar a meter-lhe uma cunha: "Se não se importa, ponha-me aí num sector do céu onde haja malta que saiba jogar às damas."
Foi um banzé do cacete. Os guardas reagiram à bruta, pois quase todos o estimavam e, em vez de lágrimas, decidiram
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chorar à bastonada. Os presos, não querendo pagar as favas que o Tarântula espalhara, enfiaram-se nas celas, sossegadinhos que nem anjinhos. Fui o único que, movido por dor sincera, corri para o que restava do Chefe Oliveira e, abraçado a ele, chorei convulsivamente a nossa amizade, a grande mágoa desta partida, o fim de anos de companhia prazenteira, uma das poucas pessoas decentes que entrava naquele antro, e fiquei ainda mais sozinho.
Porém, foi nesse dia que começou a mudar a minha vida. Durante a confusão, ouvira-se pela primeira vez a Palavra que, embora proferida por uma farda, se revelou Divina e alumiou as trevas onde se escondia o meu futuro.
Um guarda gritou para o outro:
- Fecha aí o Azimute na cela!
O outro, o da Palavra Divina, proclamou:
- Estás doido? O homem está aqui a trabalhar.
- O Azimute?!
- É alto funcionário do Estado. Há anos que anda por aqui a controlar colombianos metidos no negócio da droga.
O guarda ficou hirto. Aproximou-se de mim, que de joelhos rezava junto do Chefe, e ouvi bater os tacões, sinal de que se pusera em sentido.
- Doutor Azimute. Chegou a hora de levar o corpo do nosso Chefe.
Já passaram dois anos sobre esse dia maldito e ainda hoje rezo pelo Chefe Oliveira. Homem igual nunca houve nesta república mal frequentada. Nem no tempo em que a república era monárquica. E vice-versa.
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A DROGA DESTE PROCESSO
Agora que passaram trinta e cinco anos desde o dia em que fui preso - comemorei ontem o aniversário com uns canecos - começa a fazer-se luz na minha existência. Foi preciso esperar sessenta anos a respirar, comer, ir à casa de banho, e mais de metade da vida enfiado na cadeia para que Deus se lembrasse de que existia esta coisa insignificante que passou horas, dias, anos, décadas, fazendo figura de tanso, embora deixando que os outros pensassem que eu não era tanso nenhum.
Não posso ser injusto com Ele. Foi generoso ao dar-me uma casa, roupa lavada e comida asseada. E tudo isto sem precisar de dobrar as molas.
Foi por causa desta vida de descanso e despreocupação que até arranjei uma teoria que não posso dizer em voz alta porque me podia lixar. Mas tenho para mim que todos aqueles que dizem mal do nosso sistema judiciário são inspirados pelo dedo do mafarrico. Confesso que, por vezes, caí na tentação. Mas fiz as minhas orações de penitência. Eu sou o exemplo da perfeição do edifício legislativo, como lhe cha-
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mam os especialistas. Se não fosse tão perfeito, eu não seria aquilo que sou - um homem que envelhece livre do pecado, quase em estado de graça.
É verdade que sou um preso de conveniência, originário da loja dos trezentos. O sistema esqueceu-se de que a vida é mais forte do que ele e, assim sendo, teve a grandeza de se esquecer de mim, testemunha de mil revoluções e das virtudes de todos os sistemas, desde o judiciário ao das múltiplas no Totoloto.
Por exemplo: há alguns anos que esta casa generosa deixou de ser uma prisão a sério. Foi promovida a creche. Andam por aqui andam uns ladrões e assassinos dos velhos tempos, mas a maioria dos clientes são miúdos. Ainda estão a crescer. E são completamente diferentes dos putos do meu tempo. Não se intoxicam com penaltis de tinto, como nós fazíamos. É com heroína a eito. Em resumo: são cardápios de doenças.
A maior parte dos pintarolas que agora enchem as alas da cadeia estão mais podres por dentro do que as putas do Intendente do meu tempo de pintarola. Ainda por cima, doenças ranhosas. Sidas, hepatites, sei lá que mais. Têm as figadeiras mais amarelas do que um prato de ovos mexidos.
Bem-aventurados esquentamentos da minha juventude! Aviavam-se umas doses de penicilina e pronto!, ficava-se como novo.
A coisa nem precisava de justiça a sério. Um tipo ia às putas. A bófia chegava e fazia rusga. Lá ia a malta de charola para o Governo Civil. Uma pessoa apresentava o bilhete de identidade e ia à vida. A garina preenchia a ficha, ficava arrecadada dois ou três dias, para descansar das noitadas, e recomeçava tudo nas calmas. Nem se metia juiz na coisa.
Agora é tudo muito mais retorcido. Estes gaiatos que encharcam as celas, como se estivessem num acampamento infantil, passaram todos pela frente de três togas.
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- Então o senhor foi apanhado com dez gramas de heroína.
- É para consumir, meritíssimo.
- Dez gramas?
- Quando se compra por atacado, é mais barato, excelência.
- Aqui diz que é para vender.
- Posso dispensar a um amigo mais necessitado, mas vender, não!
- Qual é o seu modo de vida?
- Sou janado, meritíssimo. Vivo para consumir.
- Não trabalha e quer convencer-me de que toda essa heroína não é para vender?
- Posso passar alguma para me governar. Mas amanhã é ao contrário. É um sistema cooperativo. Hoje passo eu a sicrano e a beltrano, que estão à rasca. Amanhã são eles que me passam, mas é tudo a fundo perdido.
- A fundo perdido, diz bem.
- Mal comparado, meritíssimo, é como Portugal na União Europeia. Eles mandam-nos massas a fundo perdido e nós estoiramos a bagalhoça. É uma espécie de cooperação internacional.
O meritíssimo não embarca na história da cooperação internacional e toma lá oito anos à sombra para não me chateares tão cedo.
É este exército de palermas que agora frequenta o estaminé. Não têm nada a ver com os heróis do meu tempo. Não há por aqui um assaltante à mão armada com os tomates do Rosnante ou um homicida daqueles que despacha tipos enquanto palita os dentes, ou, até, um terrorista convencido de que a sua fé pode destruir o mundo. Nem isso são crimes que já tenham importância.
A droga manda nisto tudo. Até tenho uma teoria cá muito minha que a droga e os Espanhóis são a nossa salvação.
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Discuti isto com o Czar e com o Joanetes porque quer um quer outro andam sempre a embirrar com os janados. Roubam-lhe os limões, escondem-lhe as colheres com que fazem o corte e, quando estão pedrados, divertem-se a despejar-lhe água sobre as cabeças.
- Não façam isso aos putos. Eles são vítimas da luta do nosso país pela sobrevivência.
- Como é que é?
- São vítimas da luta pela sobrevivência. O Czar desatou a galhofar:
- Estás aqui estás a dizer que são heróis. Feridos em combate!
- Tens dúvidas?
O Joanetes não percebia onde eu queria chegar, mas desde que eu derrotara o Real Madrid e ele se convencera de que adivinhara as minhas funções na polícia secreta seguia-me obediente pelos caminhos da minha própria demência.
- Não tenho dúvidas absolutamente nenhumas.
- Vocês estão a gozar comigo, não é? Expliquei-me.
- Os Espanhóis dão-nos de comer. A droga garante trabalho a mais de metade do país, com o qual arranjamos dinheiro para pagar a comida que os Espanhóis põem aqui.
O Joanetes quis ser solidário comigo.
- Claro, claro! Mas importavas-te de explicar melhor, para o Czar perceber?
- A coisa é simples. Pensem assim: já imaginaram quantas pessoas vivem da droga? Centenas de milhares, talvez até milhões, se contarmos o mundo inteiro. Milhares a trabalhar em laboratórios, fazendo metadona, outros comprimidos e supositórios para as doenças deles. Milhares a trabalhar em hospitais, farmácias, centro de atendimento. Regimentos de médicos, divisões de enfermeiros, guarnições completas de psicólogos, companhias de assistentes sociais, pelotões de psiquiatras.
- Cum catano!
O Czar não abria a boca nem pestanejava.
- Agora vejam a coisa pelo lado do crime. Olhem-me só esta cadeia. Dos mil e quatrocentos que aqui estamos, se não fosse a droga não chegávamos a trezentos. Quantos guardas prisionais não iam para o desemprego? Agora multipliquem o maralhal que está aqui pelas outras prisões. Se não fosse a droga, quantos tribunais tinham de fechar? Uma catástrofe. Magistrados, funcionários judiciais, advogados, tudo de pá para o ar sem fazer a ponta de um corno. Era o fim. E o fim da pesca do bacalhau!
- Do bacalhau?
- Vocês fazem ideia quantos congressos, seminários, colóquios são feitos por ano para essa malta discutir a droga?
- Não faço ideia. Nem sei o que é um colóquio, mas o que tem essa treta toda a ver com a pesca do bacalhau?
- Os pastelinhos. Não existem coisas dessas que nos intervalos não tenham como acompanhamento espiritual café e pastelinhos de bacalhau. São milhares de encontros com centenas de participantes. Milhões de pastéis de bacalhau! Toneladas de bacalhau! O esforço do que resta da nossa frota na Terra Nova. E os Espanhóis ainda têm de nos dispensar algum.
O Czar estava fulminado. Ainda tentou descobrir um argumento contra, mas fez a figura de um peixe fora de água.
- Pois... mas quer dizer... não sei... pois, talvez... és capaz de ter razão!
É claro que nunca partilhei a teoria com mais ninguém. Corria o risco de ser considerado subversivo e de perder a posição de conforto que conquistei aqui na prisão. Não lixo a minha vida por causa de questões académicas. Não sou nenhum doutor. A propósito, o Doutor que estava cá por causa das cartas anónimas e por causa da bala caprichosa que
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lhe andara a passear na cabeça sem o despachar desta para melhor despachou-se a semana passada. Fez dos lençóis uma corda e pendurou-se. Tinha saudades da mulher e do filho. Foi ter com eles para os abraçar e pedir desculpas.
O meu advogado apareceu outra vez. Mas desta vez, ao entrar, antecipou-se à minha indignação.
- Não vale a pena começar a protestar. Não venho pedir-lhe que saia da prisão.
- Ah, bom.
- Trago-lhe uma notícia.
- Boa ou má? Encolheu os ombros.
- Nem uma coisa, nem outra. O seu processo prescreveu.
- Isso quer dizer o quê?
- Que acabou tudo. Com a embrulhada que se armou, nem o Rosnante foi julgado. Aliás, a velha que testemunhava contra si morreu há dois anos e a testemunha inventada emigrou para o Canadá. Acabou.
- Quer dizer que estes quinze anos que estive aqui não chegaram para me inocentar?
- Isso já não interessa. Inocente ou culpado, acabou! It's over! The end!
- E o meu cheque da reinserção?
- Passou o prazo de validade. Já não tem direito a ele.
- Não é justo. Eu mereço o meu cheque de volta!
- Pode requerer, mas também corre o risco de descobrirem a situação em que se encontra. Está preso há quinze anos e nem deveria ter estado quinze segundos.
- Fale baixo. Fale baixo.
- O senhor é que sabe. Nada disto me diz respeito há muito tempo.
O puto de há quinze anos era agora um homem maduro. Começavam a surgir-lhe os primeiros cabelos brancos.
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- E o seu violador? O tal da carta anónima?
- Foi despronunciado. Nem chegou a ir a julgamento.
- Há juizes com eles no sítio.
- Pois há. Mas passou um ano preso e agora está preso em casa.
- Em casa?
- Não consegue sair à rua com vergonha de que alguém tenha dúvidas sobre o seu comportamento. A fotografia dele veio em todos os jornais.
Ao menos a minha só apareceu quando demos a tareia no Real Madrid. Quem ainda se lembrasse, imaginava-me um herói e, afinal, tinha sido muito mais manhoso do que o velho, embora inocente, feito em frangalhos. É o destino. Só pode ser o destino.
- Posso fazer-lhe uma pergunta?
- Claro.
- Porque veio dizer-me que o meu processo prescreveu?
- Achei que deveria saber, para se pôr à tabela. Você agora fica mais exposto aqui na cadeia. Ninguém lhe pergunta porque está aqui há tantos anos?
- Julgam que estou destacado em serviço. Que sou dos serviços secretos.
Estremeceu.
- Você inventou essa história? Pode ser acusado de falsa qualidade.
- Eu? Deus me livre. Alguém a pôs a circular e pura e simplesmente não desmenti.
Não queria acreditar. Mas já era um homem maduro e, por tal razão, em vez de se indignar, sorriu.
- Essa brada aos céus. Como é possível?
- Numa casa como esta são poucos aqueles que ficam muito tempo e os que ainda sabiam a verdade partiram ou já morreram.
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- Meu Deus! Você é o tipo mais manhoso que alguma vez conheci.
- Não seja injusto. Pense na gentinha com que lida todos os dias e diga-me se sou o mais manhoso.
Ficou calado por instantes pensativo.
- Tem razão. Há muito pior. O senhor não passa de um pilha-galinhas...
- Exactamente!
- De um palerma sem eira nem beira que se aproveitou da arrogância do Estado para o enganar.
- Está a ver? Mas há uma grande diferença entre os manhosos importantes que o senhor conhece e eu. Eles não quereriam ficar aqui e eu não quero sair.
- Diga-me outra coisa. E os registos? O seu dossiê? Abri-lhe o meu sorriso mais velhaco.
- Desapareceu tudo. Um golpe de mágica e, pás!, não há nada para ninguém!
Percebeu qual era a mágica. Estendeu-me a mão para se despedir e rematou:
- Nem vou querer saber que mágica foi essa. Adeus, Azimute.
- Até sempre, senhor doutor. Apareça quando quiser. Tem aqui uma casa às suas ordens.
- Salvo seja! Salvo seja! E saiu.
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UM ANIVERSÁRIO FELIZ
Hoje é o dia do meu aniversário. Sessenta e um anos! Com dúzias de fintas e não sei quantos passes de peito, mas sempre de pé atrás, não fosse a vida marrar de frente, consegui chegar aqui. Comemorei com uns canecos. Ainda por cima foi a festa de despedida do Czar, que sai amanhã com a condicional.
E veio a minha promoção. Foram canecos a mais. Com esta idade, meia dúzia de cervejolas pesam-me nas pernas como chumbo.
O dia, por acaso, começou mal. No refeitório e ao pequeno-almoço. O Carambola, bom rapaz mas falsificador de automóveis, ficou-se assim, de repente, olhos em alvo, parecia que o corpo era atravessado por uma corrente eléctrica. Tremia dos calcantes à mona e babava-se. Os guardas acorreram, mas chegaram tarde. O Carambola caiu como um pilar, abriu-se-lhe o trombil e o sangue regou às mijinhas o cimento do chão. O corpo pulava, teso. E a malta mais nova sem perceber, aterrorizada, enquanto os guardas pro-
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curavam domar aquela confusão de saltos e esticões em que se transformara o Carambola.
Conhecia aquele número como as palmas das minhas mãos. Continuei o meu pequeno-almoço sem ligar.
O Argolas, um janado que entrara por causa do esticão, censurava-me com medrosa sinceridade.
- Você continua a comer? O homem está possuído pelo diabo.
- E eu estou com fome.
Outro puto da equipa do Argolas, que respondia pela feliz alcunha de Salmonelas, foi tocado pelo medo do parceiro.
- Tens razão. Só pode ser o diabo.
E afastaram-se para um recanto do refeitório. Achavam na sua ingenuidade que o mafarrico nunca estivera tão perto deles.
Os guardas lutavam em vão. O Carambola berrava como um bezerro desmamado. E ninguém ajudava. É tão raro haver espectáculo fora das rotinas que, quando acontece coisa assim, é natural a malta cruzar os braços e trocar palpites.
- Há uma doença que dá ataques destes. As pessoas até mordem a língua.
- São convulsões. Mas é preciso ter febre e não é o caso.
- Pode ser um ataque epiléptico. Um homem fica tão retorcido que até os tomates se enrolam.
- Não pode ser.
- Juro. Tive um primo que lhe entrava cada badagaio que até se babava pelas orelhas.
- Pelas orelhas?
- Sim, pelas orelhas.
Ficaram calados a imaginar como alguém se babava pelos abanos, o que me permitiu um fim de pequeno-almoço tranquilo. Só o Carambola importunava. E esperneava.
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Acorreram mais dois guardas. Um deles, o Silva, bruto todos os dias, puxou da chibata e tratou do desgraçado. Foi tipo medicamento SOS. Uma, duas, três chibatadas e o falsi-ficador ficou calmo como uma virgem que adormece nos braços da mãe. A seguir desatou a chorar e as lágrimas misturavam-se com o sangue que corria do frontispício.
Um dos guardas, ainda arquejante do esforço, perguntou:
- Mas afinal qual é o teu problema? Carambola respondeu num murmúrio soluçado:
- Tesão.
Levaram-no para a enfermaria para lhe reparar a testa e tratar-lhe dos desejos. O espectáculo terminara. Assisti a tantas reprises ao longo da vida que já nem olhava. Eram ataques de histerismo cujo nome técnico é badagaio. Assisti a centenas. Nos últimos anos diminuíram conforme aumentou a população janada. A heroína tira o nervo às partes de qualquer homem. Mas antigamente, quando esta casa generosa era covil exclusivo de ladrões, assassinos, falsificadores e violadores, não se passava um santo dia em que não fosse curado um badagaio a toque de chibata.
Não admira. O pior da cadeia é o sexo. Às vezes a comida não é grande coisa, mas a falta de mulher é a mais ruim das sentenças.
Há uns anos a esta parte arranjaram para aí umas soluções para resolver o problema, mas não resolve problema nenhum.
Eu, por acaso, tive uma sorte do caraças. Desde aquele dia negro em que despachei a minha Albertina, que Deus haja, e o ranhoso do Isidro, para além da prisão perdi a vontade. É claro que aqui nunca ninguém soube da minha fraqueza. Se alguém descobrisse, quando era mais novo, tinha freguesia aboletada. Bem sei o que acontece quando entra puto sem pêlo na cara ou um desses raparigos que não é
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peixe nem carne, com um valente par de mamas mas com um saco de tomates no meio das pernas. É um fartar, vila-nagem!
A verdade é que a verga nunca mais funcionou. Nunca falei com o médico, mas li alguns livros. Ou foi o trauma por ter morto os dois ou o trauma por ser corno. Uma espécie de culpa não resolvida.
Não interessa. Dou graças a Deus por ter posto a verga a dormir um sono solto. Para além de na cadeia ser instrumento sem serventia de maior, safou-me de levar arrobas de chibatadas como se fossem Valiuns.
Ainda mal acabara a sessão terapêutica sobre o lombo do Carambola, surgiu um guarda esbaforido:
- Senhor Azimute! Senhor Azimute!
- O que foi?
- Venha depressa. O ministro está aí e quer falar consigo.
- O ministro? Comigo?
- Está no gabinete do director. Venha depressa.
- Ó senhor Augusto! Isso não é tanga?
- Pela sua rica saúde. Venha, venha. Ele está à espera. De repente, fez-se luz. Será que vinha dar-me os parabéns pelos meus sessenta e um anos? Mas rapidamente a luz se apagou. Estava a dar-me uma importância que não tinha. O Czar, já de malas aviadas porque sairia no dia seguinte, gozou:
- É para te oferecer um lugar de assessor.
Acelerei o passo porque estava curioso com visita tão inesperada.
Estava acompanhado do novo director e de outro tipo importante, pois usava gravata. Conheci-o logo. Na altura do encontro com o Real, era ministro da Cultura e do Desporto, o tal que distribuíra tabuleiros de damas de norte a sul do país. Entretanto, após vários governos e diversas remodelações governamentais, o primeiro-ministro decidira embaralhar para dar de novo e como não havia candidatos a ministro, pois servir a Pátria não pode obrigar um homem a viver na penúria, remodelou com aqueles que tinha à mão. O antigo ministro da Justiça passou para as Obras Públicas, o do Turismo para as Finanças, o das Finanças para a Cultura e Desporto e, finalmente, o titular deste cargo para a Justiça, e agora eu estava à frente dele.
Como nunca tinha cumprimentado um ministro, e porque achava excessivo abraçá-lo como ele me fez na noite da grande vitória, procedi tal e qual como quando o bispo, por altura do Natal, veio visitar a cadeia. Ajoelhei e tentei beijar-lhe a mão.
Mas ele não deixou. Perguntou-me de caras:
- Quanto quer o senhor para ficar calado?
- Eu?
- Sim, o senhor. Quanto quer? Um milhão? Dois?
Aconteceu-me o mesmo que a esse tal Isaac Nevvton quando uma maçã lhe caiu em cima da carola e ele descobriu a lei da gravidade.
Foi com a gravidade que o Nevvton descobriu que lhe respondi:
- Dois milhões do quê, senhor ministro?
- De euros. Não estou em condições de negociar em dólares.
Juro que não sei quanto valem dois milhões de euros. Foi moeda que nasceu quando eu estava arrecadado e na qual pouco mexera, com excepção de uns trocados. Mas dois milhões de qualquer coisa é sempre muita coisa e não resisti a perguntar:
- Se não levar a mal, gostava de saber porque me quer dar esse jackpot. Eu sei que faço anos, mas uma prenda de dois milhões...
O homem respondeu-me com rispidez.
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- Não se faça ingénuo, Azimute! Tive conhecimento de que esteve dezasseis anos preso sem ter sido julgado, que ainda por cima estava inocente e, para agravar a coisa, o processo prescreveu.
Não me contive e suspirei um lamento:
- Foi o advogado que me chibou.
- Chibou? O que é chibar?
- Mais ou menos o mesmo que dar com a língua nos dentes quando deveria estar calado.
- O seu advogado não teve nada a ver com isto. Os seus registos desapareceram da cadeia.
O novo director rubricou a afirmação.
- Não se encontram em lado nenhum. Juro! E o ministro continuou:
- Foram encontrados no sótão dos serviços centrais durante uma limpeza geral.
Vi-me na obrigação de imitar o novo director.
- Não fui eu quem os pôs aí. Juro!
- A verdade é que apresentei o caso ao primeiro-ministro e estamos todos de acordo que o senhor fez isto de propósito.
Pus a minha cara de ingénuo mais perfeito, de verdadeiro imbecil, e protestei:
- Oh!, excelência!?
- É claro que foi de propósito. Brevemente chamaria as televisões e os jornais contaria a sua história e rebentava o maior escândalo de que há memória. Ora o senhor primeiro-ministro não pode remodelar outra vez. Até porque era uma injustiça. O meu colega que armou este sarilho raspou-se para as Obras Públicas e quem se lixava era eu.
De facto, o homenzinho estava em grande aflições. Ele, que era o justo, teria de pagar pelo pecador que, entretanto, dera ao slide. Procurei ganhar tempo para pensar antes de responder.
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- Como soube o senhor ministro que eu tinha essa fisgada?
Que era a sua obrigação como ministro: prever. Não era difícil quando se estava perante um caso claramente de inspiração gandhista com laivos de guevarismo, era espantoso o sangue-frio e a táctica guerreira que eu revelara durante quinze anos de cativeiro. Que era essa motivação de índole político-social, de denúncia do sistema, que criava militantes radicais da minha estirpe. Numa palavra, à sua frente estava o exemplo acabado do bin-ladenismo pacifista. Portanto:
- Quanto quer para ficar calado? Não sei como arranjá-los mas, pronto!, vou aos três milhões.
Juro pela alma da minha Albertina, que Deus haja, que desde o tempo em que as missas eram em latim jamais ouvira uma conversa tão esquisita e da qual não compreendia nada. Ou melhor, percebi que o homem estava na posição de dar. Não era propriamente um presente de anos, mas parecia de tal maneira assustado que dava tudo. E eu sempre fui pessoa de receber sem protestar o que Deus me punha nas mãos. Era o momento glorioso da minha vida. Tinha sido necessário esperar sessenta e um anos para que chegasse. Coloquei-me em posição de tomar assento nesta nau catrineta que atracava aos meus pés. Com voz solene respondi.
- Não quero o dinheiro de vossa excelência.
Cambaleou.
- Quer mesmo desgraçar-me, não é verdade?
- Não. Se fosse o outro ministro da Justiça, liquidava-o já. Estes dezasseis anos de cativeiro, vividos em grande sofrimento e até martírio devido ao vosso sistema tirânico e inquisitorial, dariam seguramente dezasseis aberturas de telejornais seguidas, dezasseis capas de jornais, para não falar das repercussões na imprensa estrangeira. Nenhum Governo sobreviveria a um terramoto destas dimensões.
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Puxou de um lenço e, pálido, limpou o suor que lhe perlava a testa. Balbuciou:
- Eu sei.
- Mas o país deve muito a vossa excelência.
Agora mostrava-se surpreendido.
- A mim?
- Foi o senhor ministro quem levou o jogo de damas a quase todos os lares de Portugal. Nunca se viu, durante os últimos cinquenta anos, impulso reformador tão grande e amor tão desvelado pela cultura e pelo desporto. Agora tem a pasta da Justiça e cresceu. Está mais adulto e mais forte. Tenho a certeza de que vai fazer muito pelo sistema.
- Claro. Eu prometo...
- Não. Não vá por aí que o truque do eu prometo! já deu o que tinha a dar. Mas agora não interessa. As minhas condições são as seguintes.
Os três presentes deram um passo em frente e apertaram-se uns contra os outros. Arfavam de angústia.
- Quero continuar aqui. - Abriram a boca de espanto e ataquei a fundo. - Mas arranjam-me um quarto maior com televisão e telefonia. Ah, e a televisão com pelo menos cinquenta canais. E quero ir à rua três vezes por dia. Depois do pequeno-almoço, do almoço e do jantar. O café que servem no bar é intragável.
Ficaram em silêncio à espera de que continuasse as minhas reivindicações, mas como eu me mantinha calado, sem atar nem desatar, o ministro balbuciou:
- E o resto?
- Qual resto?
- É... é só isso que quer?
- Porquê?
- E o dinheiro?
Encolhi os ombros com indiferença.
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- Desde que tenha trocos para o café. Se o senhor me fizesse a proposta em escudos, ainda pensava duas vezes. Mas em euros... Não me entendo com esse dinheiro novo.
O homem desconfiava.
- Só quer isso?
- Só.
- E assina um documento declarando que se dá por satisfeito?
- Assino. Mas falta uma coisa. O cheque da reinserção que me roubaram para fazer prova no processo.
- Com certeza, com certeza. Estendeu-me a mão.
- Negócio fechado?
- Negócio fechado.
Um vento de alívio passou pela sala. O documento foi ali mesmo elaborado em duplicado e assinado pelas duas partes. Quando saiu, ainda o ouvi comentar para o assessor.
- O nosso primeiro vai ficar satisfeito. Enganei bem este gajo, não enganei?
Fingi que não ouvi. Também ia retirar-me, mas o director pediu-me que esperasse. Eu era um homem livre e nada me obrigava a obedecer. Mas fiquei por delicadeza para com o chefe da minha prisão.
- Sabe qual é a minha dúvida? Não sei se é tão parvo como mostra ser, ou se é esperto de mais para nós todos juntos.
- É o grande dilema de Hamlet. Ficou crispado.
- Você conhece Shakespeare?
- Infelizmente só há duas peças dele na biblioteca da prisão. O senhor bem podia puxar os cordões à bolsa e comprar mais uns livritos. O Panela de Pressão não pára de lamentar-se de que há dois anos que não entra um livro novo nesta casa.
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- Quem é o Panela de Pressão?
- O bibliotecário. Está condenado a vinte e cinco anos por ter limpo o sebo a dois pasmas.
O director era jovem, talvez andasse pelos trinta e cinco e tinha um olhar inteligente.
- Porque não aceitou o dinheiro?
- Gastava-o em copos durante um ou dois anos e depois acabava a dormir num canto qualquer enrolado em papelão e pedindo esmola ao pé dos cacilheiros.
- Mas ninguém quer estar preso!
- Quem tem sonhos para realizar lá fora.
- E você não tem?
- Não tenho nada. Nem família, nem profissão e, o pior de tudo, nem um único sonho.
- Ainda é novo, podia viver o resto dos seus dias fazendo alguma coisa de útil.
- Sou um inútil, senhor director.
- Sabe jogar damas como ninguém.
- E acha que jogar damas é modo de vida? O senhor parece-me mais inteligente do que o atrasado mental do ministro que saiu daqui.
Sorriu para mim.
- É o homem mais estranho que alguma vez conheci.
- Vai conhecer muitos no lugar onde está.
- Diga-me uma coisa. E se eu o convidasse para meu assessor?
- O quê?
- Para organizar uma escola de jogo de damas aqui na cadeia. Apenas duas horas por dia.
Hesitei. Depois soltei uma gargalhada bem-disposta.
- Assessor? Eu?
- É uma maneira de passar o tempo e, embora seja um manhoso de alto quilate, vê-se que não é má pessoa.
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- Assessor... e sai na ordem de serviço?
- Claro!
- Pode contar comigo.
- Obrigado, senhor Azimute. Faça-me uma lista do material que precisa.
E saí. Fora preciso viver sessenta e um anos para que alguém me oferecesse uma profissão. Não era nada de importante. Ser assessor é ser uma espécie de coisa nenhuma, mas impressionava a população da prisão. Acabara-se o Azimute. A partir de agora era o senhor assessor. Fui fazer a lista dos tabuleiros de damas que era preciso comprar e beber uns canecos para comemorar o meu aniversário e a minha libertação.
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O DILEMA DE JOANETES
Devo reconhecer que o novo cargo de assessor do director não me trouxe grande popularidade. Nesta casa, duvida-se de tudo o que sejam boas intenções. Sobretudo se são atribuídas a quem manda.
O Joanetes não se conformava.
- Foste despromovido, meu.
- Porquê?
- Um homem que fez vida nos serviços secretos, largar um bom tacho para servir o director não é passo que se dê.
O Porto Sandeman, que entretanto regressara com mais uma dúzia de assaltos para explicar ao juiz, concordou.
- Seja como for, dá para a reforma. Não preciso de mais.
Não os convenci. Mas também sabia que andavam retorcidos comigo por causa do Real Madrid. É que os merengues, nos últimos dois anos, tinham jogado em competições europeias ou em jogos particulares com dragões, lampiões e lagartos. Como era um clube com elevado sentido democrático, aviou cada uma das equipas nacionais com três secas respecti-
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vamente, para não terem ciúmes uns dos outros. Os meus amigos acharam que estes resultados foram gozo dos espanhóis, do género, julgam que isto é jogo de damas? Então tomem lá três ameixas para o catarro e vão-se curar.
Fosse como fosse, não liguei ao amuo dos dois. O Czar tornara a aparecer. Dei-lhe um abraço.
- De volta?
- De volta. -- E o que foi desta vez?
- Puseram-me a reinserir. Estava até a reinserir nas calmas quando uma noite encontrei o Xabregas. Lembras-te do Xabregas?
- Então não me lembro? Grande tipo, não desfazendo.
- Combinámos fazer uma ourivesaria. Entrámos e agora os grilos já não são como antigamente. Em vez de uma sirene a tocar, filmaram-me. Estás a ver isto? Um homem a gamar e a ser visto em directo na esquadra. Quando os pasmas chegaram, só tive tempo de dizer que me enganara. Um falso alarme. Mas eles não acreditaram. Deram-me a cana.
- E o Xabregas?
- Esse cabrão desatou aos gritos. Agarrem-no! Agarrem-no que eu não sou capaz.
- O Xabregas?
- Convenceu a bófia de que era um pacato cidadão que tentara evitar o assalto. Como é baixinho e as câmaras não o apanharam, os guardilhas deixaram-no ir.
- Não o chibaste?
- Para quê? Eu estava agarrado pela merda da televisão. Não valia a pena entalar o Xabregas.
Afastou-se para ir cumprimentar os outros e eu fui tratar das damas. Dei à sala o nome de Academia da Santa Albertina em homenagem à minha Albertina, que Deus haja, e ao fim de uma semana tinha dez alunos. A maior parte nem se inte-
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ressava em saber como se mexiam as pedras. Era a desculpa para não serem fechados nas celas. Ao fim de um mês já eram trinta. Três meses depois noventa. Talvez dois ou três viessem a dar bons jogadores.
Eu distraía-me. Os janados tinham escolhido a minha Academia para fazerem dela sala de chuto, mas não me ralava. Qualquer maneira é boa para um homem se matar.
Andava nestas andanças quando o meu amigo ministro falou na televisão. Eu agora via televisão no quarto e convidava velhos amigos para assistirem enquanto fazíamos umas sessões de bisca ou de lerpa. Nessa tarde, estava a batê-las com o Joanetes, o Czar e o Porto Sandeman. O nosso ministro falava e nós fizemos intervalo. É bom mostrarmos respeito pelos superiores. O homem vinha em brasa do Parlamento, onde a oposição lhe dera uma coça, e agora escoiceava.
Que ninguém duvidasse de que tínhamos o melhor sistema judiciário do mundo. Bastava ver os resultados. É claro que havia pormenores a ajustar. Aliás, já no próximo conselho de ministros ia propor duas alterações significativas. Que as cartas anónimas fossem consideradas prova definitiva. Nem valia a pena investigar. Até porque estudos encomendados pelo ministério tinham chegado à conclusão de que a maioria não era assinada por mera distracção dos autores. A segunda medida tinha a ver com os telemóveis. Iria recomendar às empresas vendedoras que lhe integrassem, no momento da comercialização, um pequeno chipe que permitia a escuta automática.
- Não há razão para controlar as escutas. Estamos num país livre e democrático. Todos podem ser escutados. É claro que só aqueles que não respeitam a liberdade e a democracia é que vão criticar esta medida. Mas eu pergunto: se não estão a fazer nada de mal, porque têm medo de ser escutados?
Estavam mais dois deputados em estúdio, que se atiraram ao ministro como gato a bofe. O Czar refilou.
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- Se a bófia pode escutar os grilos que lhe apetece, estamos feitos num oito!
- Por mim...
- Não te ralas porque a malta dos serviços secretos faz o que lhe apetece.
- Não. Não me interessa porque nunca usei telemóvel. A mim não escutam de certeza.
O Joanetes ficou em silêncio e até fiquei admirado porque saiu sem se despedir. O Czar não desistia.
- E as cartas anónimas, também concordas?
- Não é nada de novo. Há décadas que centenas de desgraçados são liquidados com cartas anónimas. Inocentes ou culpados.
- Quem escreve cartas anónimas é um merdas!
- É assim o sistema. Se quem manda quer assim, é porque é o melhor para todos.
- Não me lixes, Azimute!
- Somos o país das cartas anónimas, Czar. Das pessoas anónimas, dos medos anónimos, da falta de coragem anónima. O que queres tu fazer? Uma revolução?
- Que grande porra!
E ficámos por aqui. Intrigou-me o desaparecimento do Joanetes. Passaram-se dois dias sem o ver até que me apareceu. Ar compenetrado.
- Temos de ter uma conversa muito séria.
- O que aconteceu?
Sentou-se. Puxou de um cigarro, acendeu-o e expirou o fumo com força.
- Comigo não precisas fingir que és estúpido.
Esta entrada do Joanetes fez-me sentar à sua frente. Continuou:
- Conheço a tua vida toda, Azimute. A tua primeira prisão por apanhares a tua gaja a abrir as pernas a outro tipo e
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teres despachado os dois. A segunda prisão e a tua inocência. As histórias da treta como a dos serviços secretos e agora esta de assessor. Foi o ministro, cagado de medo de que desses com a língua nos dentes por estares quinze anos preso e o processo ter prescrito, que te arranjou este tacho. Portanto, sei tudo e não vale a pena desmentires-me.
Como não queria que o desmentisse, limitei-me a ficar calado.
- A coisa é simples. Falta-me um mês para sair daqui e estou cheio de medo.
- Medo? Tu?
- Lá fora é a selva, Azimute. Aquilo - referia-se à vida fora da cadeia - foi tomado por gente pior do que o Bin Laden. Arrogantes, sem escrúpulos, e muito piores do que nós. E sabes porquê? Têm poder. De perseguir, prender, jogar com as nossas vidas como se fôssemos bonequinhos de barro. Vou lá para fora, qualquer tipo não gosta de mim, escreve a tal carta anónima e estou feito. Não sou capaz de viver à espera da carta anónima contra mim. É coisa que me vai matar do coração.
- E que queres tu que eu faça?
- Ensina-me. Diz-me como fizeste para te esconderes aqui dentro toda a tua vida.
Não respondi. Este país começava a preocupar-me. Quando os ladrões mais corajosos que eu conhecera se queriam esconder do país, a coisa não podia estar pior. Fosse como fosse, compreendia as preocupações do Joanetes.
- Dá-me uns dias para pensar.
Talvez porque estivesse velho, o tempo passava mais depressa do que quando me levantava cheio de genica. Logo no dia a seguir tinha resposta para o Joanetes. E tudo por causa do guarda Augusto, que foi interromper a minha aula de damas.
- Senhor assessor - agora tratavam-me assim -, tem uma visita.
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- Uma visita? Quem é?
- Uma senhora. Chama-se Margarida.
O coração deu-me um baque. Haviam passado quinze anos desde que a vira pela última vez. E saí disparado da Academia, irritado porque as pernas não respondiam à velocidade de pássaro a voar que eu queria que elas tivessem.
Estava na mesma. Alguns cabelos brancos, meia dúzia de rugas assinalando o tempo, mas o mesmo sorriso iluminado, os mesmos olhos da cor da alma.
Fiquei com a voz embargada. E percebi que também estava comovida. Vestia de preto.
- Está de luto?
- O meu marido faleceu há dois anos. A minha mãe há seis meses.
- E o seu filho?
- Está bem. Ele sabe que estou aqui.
O coração batia-me, descompassado. Era estranho! Não imaginava que a um velho como eu ele pudesse bater de tanto desejo.
- Nunca a esqueci.
- Nem eu me esqueci de si. Reparei então que não usava muleta.
- Abandonou a muleta.
- Por sua causa.
- Como?
- Ensinou-me a gostar de mim.
Ficámos os dois em silêncio. Ansiosos. Por fim, falou:
- Não se passou um único dia que não me lembrasse de si. Da sua força escondida por detrás desse disfarce de homem sem préstimo.
- Margarida, por favor.
- Venho buscá-lo. Não vale a pena continuarmos a esconder-nos dentro da nossa solidão.
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- Não sei.
- Pode querer esconder-se porque acha que a vida lá fora é injusta. E é injusta. Porque está doente, o país abriu as portas a todos os vilões. Mas sei que, apesar de tudo isso, podíamos partilhar os anos que nos faltam para cumprir o nosso caminho. Eu sei, eu sinto que a seu lado a felicidade é possível.
- Mas eu não passo de um cobarde que teve medo de viver.
- Também eu.
- De um palerma que deixou que a vida lhe escorregasse por entre os dedos, sem fazer um único gesto para a segurar.
- Sei do que fala, mas insisto. Venha comigo. Temos de acreditar que está por aí à nossa espera um bocado de felicidade pronta para que a agarremos com as nossas mãos.
Uma tempestade ribombava na minha cabeça. Estilhaçava portas e janelas ferrugentas que há muito tinha fechadas. E tornou a brilhar aquela estrela que eu apagara brutalmente quando a conheci. Descobri que sentia saudades do barulho do mar, da força do oceano, e a estrela transformou-se em sol que tornava a dar cor às flores que eu já esquecera, e, como se um vulcão explodisse dentro de mim, renasceu a fome de um abraço. De me encostar a um colo e ficar quieto, anichado, como se fosse outra vez menino. E eu fora um menino sem colo. Porque não experimentar ser menino agora?
O olhar de alma dela decidiu-me.
- Espere por mim cinco minutos.
Saí em direcção ao gabinete do director. A nossa conversa durou dois minutos.
Procurei o Joanetes que, cabisbaixo, fumava num canto do pátio.
- Joanetes!
- Sim?
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- Resolvi o teu problema. Deu um salto.
- Tu estás a falar a sério?
- És assessor do director e director da Academia Santa Albertina. Despacha-te que tens alunos à espera.
Abria e fechava a boca sem ser capaz de falar.
- E tu? - perguntou finalmente.
- Vou descobrir o mundo. Embasbacou.
- Vais-te embora?
Meneei a cabeça com um sorriso.
- Não sei se é uma partida. É, antes do mais, uma chegada.
Abraçámo-nos com força. O meu velho companheiro de prisão não conseguiu conter as lágrimas. Sussurrei comovido.
- Adeus, querido amigo! - Tem cuidado contigo. Continua sem usar telemóvel. Nem fui buscar as minhas coisas ao quarto. O gradão correu com estrondo, o portão abriu-se lentamente e saímos.
Um bando de pombos, poisado no muro da prisão, largou em voo rasante como se saudasse aquele par, com dificuldades em andar e que se afastava cidade dentro, sem que nenhum olhasse para trás.
Iam de mão dada.
Na cadeia, Joanetes é agora director da Academia, assessorado pelo Czar e pelo Porto Sandeman. Corre à boca pequena que o Azimute está no Médio Oriente. Partiu com uma colega dos serviços secretos e labutam para trazer a paz à região.
E eu olho o mar, aqui do alto deste promontório que permite ver o Sol até ao limite da despedida. Sei que amanhã tornará a aquecer-nos o coração e deixo-me adormecer, manso, no colo da minha Margarida.
Francisco Moita Flores
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