Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
EM NOME DA TERRA
Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever. Mas não te quero amar no tempo em que te lembro. Quero-te amar antes, muito antes. É quando o que é grande acontece. E não me digas diz lá porquê. Não sei. O que é grande acontece no eterno e o amor é assim, devias saber. Ama-se como se tem uma iluminação, deves ter ouvido. Ou se bate forte com a cabeça. Pelo menos comigo foi assim. Ou como quando se dá uma conjunção de astros no infinito, deve vir nos livros. Ou mais provavelmente esse tempo nunca pôde existir, que é quando realmente existe o que vale a pena existir. Vou pensar melhor a ver se eu próprio entendo. Ponho-me a lembrar o que passou e o que me lembra é só a tua presença forte ao pé de mim. E depois acabou. Deves ter achado que era de mais e então acabou. Foste para não sei onde e estás lá fixa quando te lembro. Na realidade foi tudo muito mais devagar. Mas tudo quanto foi acontecendo foi o modo circunstancial de haver agora eternidade acima dessa circunstância - expliquei-me? Querida. Na realidade houve o nosso encontro terrestre e houve os filhos a atestá-lo e houve depois o teu desinteresse de tudo isso ter razão. Lembro-me bem de como tudo começou. Ou de como reparei que tudo tinha começado, vê se te lembras também. Tínhamos ido ao cinema à noite e quando saímos tu disseste são horas de irmos jantar. Disseste são horas e eu então estaquei e olhei-te a face toda a ver donde vinha o erro.
- Mas, querida, nós jantámos antes de vir.
E então fitaste-me incerta, não na dúvida sobre ti mas sobre mim. E disseste-me tu não estás no teu juízo. Não estaria? Mas eu pensei que estava e subitamente uma evidência tomou-me todo, como é normal numa desgraça. E calei-me depois de me não ter calado e insistir. Não jantámos ainda, que ideia, disseste ainda, depois de eu ter entendido e desistir. Mas agora não quero saber. Nem da tua morte em plano suavemente inclinado. Nem de quando, de quando quê? nem de nada. Não sei amar-te aí, é o caso. Porque só se pode amar na perfeição, depois o amor perde o nome e é outra coisa. Devias ter morrido quando te conheci para ser impossível morreres. Devias ser tudo então para não haver mais nada depois. Esgotares o teu possível para não haver mais possível. Mas houve, acabou-se. Os deuses, como sabes, amam os que morrem jovens porque o absoluto é a sua medida. É assim. Que erro, querida, sermos humanos e fraccionários. Nesta casa em que apodreço devagar e em que os filhos me meteram. Que estupidez, não foram eles. A vida, qualquer porcaria em vez deles, não estou muito interessado em saber. Nesta casa estou só com o meu corpo, lembro-me muito bem de quando éramos os dois num só e íamos criar o mundo todo, como era da nossa obrigação. Nós saíamos de um baile, não sei se te recordas, era uma noite de verão. Caminhávamos à beira-rio e éramos imensos. Gostava de saber agora bem o que éramos. Tínhamos a verdade toda porque não queríamos mais nada. E tínhamos a beleza porque estávamos contentes, mas não sabíamos bem de quê. Era um momento excessivo em que talvez Deus aparecesse. Era um desses instantes em que tudo oscila e é de mais e só é plausível matarmo-nos. Não havia em nós humanidade bastante, era plausível. Estávamos tremendamente ao pé um do outro como nunca, e isso era terrível. Não havia ninguém perto a partilhar de nós. Tínhamos vindo da festa, deves estar lembrada. E eu amava-te tão estupidamente animalmente. Havia a tua beleza um pouco insolente agressiva, era talvez prudente aniquilá-la para que nenhum deus a desejasse. Era talvez sensato destruí-la para que ninguém mais a visse e a vida reentrasse na sua ordem natural. Estou-o pensando agora com muita força, querida. Eras de uma outra natureza de seres viventes, de uma outra ontologia, é o que me parece agora. Como diabo podia eu ascender a ti com o meu desastre de ser humano? Tudo isto o penso agora com a tua essência filtrada de todo o lixo circunstancial que passou. Queria dizer-te como me sinto agora humilde e infeliz na bruteza do meu ser. E não me olhes com os teus olhos de terra, não olhes. Dorme. Não é contigo que estou a falar, não ouças. Hás-de vir ainda à conversa, descansa. E hás-de ter a tua verdade terrestre, agora tens só a minha que o não é. Porque eu podia ter tudo de ti, querida, mas havia o mais que não era para mim. Como tu estás! vais-me dizer - não digas. Estava uma noite quente, vagueávamos à beira-rio, não digas. Havia um bosque para lá do casario, lembro-me muito bem. E veio um anjo muito rápido, lembro-me perfeitamente. E tomou-nos as mãos e levou-nos para lá. Depois ficámos sós, e o que tu riste. Espera, não foi bem assim. Então a tua presença foi quase insuportável e eu tive medo porque sou muito fraco da minha natureza sensível.
- Como é que vais ser juiz no resto da história, se és um débil de nervos?
Sou muito fraco de nervos, um histérico, é assim. Querida. Havia a tua presença brutal e o terrível da tua transfiguração. Olho-te agora na memória legenda e a beleza impossível existe, que para isso é que é impossível. Às vezes, no silêncio, por entre o rumor da folhagem - espera. Eu dizia-te espera e ficávamos ambos a ouvir quando se não ouve nada - que é que ouvíamos? Vou pensar. Uma música, não, não. Voz das coisas, da terra. Suponhamos a voz de Deus que é a mais provável quando não há nenhuma, nem a dele. Ele falava-nos na cara, sentíamos-lhe o bafo na face. Às vezes dissipavas-te no ar e eu desatava aos berros Mó-ó-ni-ca! Depois voltavas muito calma e eras outra vez mortal. E voltava a amar-te outra vez. Não se pode amar quando se quer, deves saber, minha querida, a vida aprende-se devagar. Quantas vezes eu sentia a tua presença material sem nada para lá. Presença de pau com som de pau, se te batesse com um martelo. E as tuas quezílias de seres mortal quando te distraías de ser divina ou eu me distraía de que o eras. E mais tarde, mas não vou agora explicar. Depois houve essa história da VOZ, que teve a sua piada, mas depois falamos. Houve um certo momento de contaminação geral e tu foste também contaminada. Não digas que não. Foste. E houve enfim a tua morte. Estou agora num lar de repouso, chama-se assim numa tabuleta e na lista telefónica. Não estou mal. Há cá imensa gente a repousar, não estou. Mas muitos não querem. Têm a mania de estar vivos com as suas coisas à volta a dizerem-lhes que sim, não querem. Algumas velhas choram, vê tu, aquilo é que é uma mania. Mas são mulheres e a mulher, tu desculpa, é muito escassa de pudor. Deve ser de se terem atrasado muitos milénios, agora têm de acelerar para compensarem o atraso. Não me faz muita falta a companhia, tenho a tua imagem linda de quando o eras, não faz. E este chato do corpo que até agora não existia. Os filhos também queriam que eu te arrumasse num lar, não deixei. Nunca to disse, mas foi assim. Sobretudo a Márcia que foi sempre muito despachada para forçar o destino. Não vês que é um disparate? dizia.
- Não estava muito melhor onde a tratassem? Que é que ganhas tu ou a mãe em estar em casa?
Não deixei. E havia tanta vida ainda em ti para eu também ir vivendo. Porque a vida de quem amamos não é só a que lá está mas a que nós lá pusemos para depois irmos gastando. Ainda agora, vê tu. Amar-te ainda agora na memória difícil. Na memória estúpida, sem razão. Porque não se trata afinal do que foste, era bom que entendesses. O que foste tinha um proprietário que eras tu e mesmo eu que também tinha direito. O que vem à memória creio que está antes, muito antes. E aí não eras de ti nem de ninguém, é assim. Não, querida, não estou taralhouco. Recuperar o impossível de quando te amei e não de quando o amor se possibilitou. Porque o inacreditável é que se ama, querida, e não o que é real, que diabo me importa agora o real? O real é estares morta, mesmo o real não o sei pensar. E se o pudesse pensar, ele só tinha caroços e eu partia neles as roldanas do pensamento. Penso o real de então e ele é logo outra coisa - que coisa? Não sei. O real que sobra de todo o real e é o único que realmente é. E então de vez em quando soprava uma aragem leve, tu dissipavas-te assim mesmo, depois regressavas e eu tocava-te. De alto a baixo tocava-te. A face, os seios, o curveado do teu corpo, e eras perfeitamente plausível. E a certa altura houve uma descarga de todo o universo em mim e gritei o teu nome e a terra tremeu e tu disseste estou aqui, mas não estavas. Nunca estavas. Quando eu te procurava assim, era certo e sabido que não estavas. Havia sempre do meu lado muita coisa que não tinha aplicação do teu, sobrava sempre alguma coisa. Então reparámos, e era uma extensão de areia branca. Não havia por ali ninguém, como nos convinha. Porque os grandes actos da vida, querida, como deves saber, nunca devem ter público. Havia só algumas lâmpadas espaçadas sonolentas que não prejudicavam à discrição. Mas mesmo onde era mais noite havia restos do dia, talvez restos da luz do dia, pensei, e era bom para nos vermos e não vermos, como é próprio da beleza. Descemos então ao rio antes de termos pensado descer ao rio. Havia a frescura da água, o seu brilho trémulo e um desejo súbito de sermos deuses. Descemos as escadas de pedra da margem e tu logo te descalçaste, os pés livres na areia. Descalcei-me também e imediatamente devagar começaste a despir-te devagar. Despes-te de novo agora quando o penso, não te apresses. Gostaria de te explicar, não sei. Gostaria que estivesses viva ainda no meu modo de te viver. Havia a noite e o teu corpo branco e tudo era longe para não perturbar e não levar nada do que me pertencia. Era belo o teu corpo, terrível. Tanto que sinto ainda agora o dente rangido, podes crer. E porque é preciso pensar a noite para te pensar mais a ti? Pensar a morte do mundo para haver mais vida? Mas como sempre, penso o teu corpo sobretudo nas mãos. O tacto, querida, é o sentido mais nobre. Porque tem o real que está lá, mais as ideias que se quiserem, e que não estão. Mesmo os outros sentidos colaboram. Tenho nas mãos a memória do teu corpo, do boleado doce do teu corpo. As pernas, os seios, deixa-me encher as mãos outra vez. O fio ardente da tua pele. A face. Mal te vejo os olhos mas o teu olhar cai sobre mim em torrente. Despi-me brusco, deitados os dois na areia, e a fúria, e o limite. E uma só verdade para nós e o universo. Deitados de costas, lemos as estrelas. A paz enorme de horizonte a horizonte. A eternidade. E a necessidade de estarmos lá, para não haver mais nada para fora de nós.
Depois erguemo-nos, mergulhámos nas águas. Quase estagnadas, só uma leve corrente as modulava. De vez em quando uma palavra chegava-me à boca mas não a deixo agora falar - que palavra? Queria inventar-te uma agora para estar certa lá, não a sei. Sinto-a em mim mas não a digo para não existir de mais, é assim. Uma palavra é mortífera, querida. Terás tu falado? não me lembro, não quero ouvir. No fim difícil de uma vida, não quero. Terei de ouvi-las mais tarde, está bem. Palavras de angústia, solidão, alegria, que também tem o seu direito, não agora.
Agora tenho apenas a imagem fresca de um bosque, ninfas talvez, qualquer coisa em que a morte não esteja à porta do imaginar. É duro morrer, querida. Por fim saímos da água e os deuses olharam-nos, humilhados na sua inutilidade. Uma nova raça divina erguia-se em nós. Poderosos imensos. Trazíamos uma mensagem dos confins das eras, a Terra esperava-nos. Trazíamos a notícia de um corpo incorruptível e perfeito.
- Jura-me que nunca hás-de envelhecer - disse-te.
- Juro.
- E que nunca hás-de morrer.
- Sim.
- E que a beleza estará sempre contigo. E a glória. E a paz.
- Juro.
Então baixei-me ao rio e trouxe água nas mãos em concha. E derramei-ta na cabeça imensamente. E disse, e disse
- Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição.
E tu disseste João sacrílego. E eu disse agora podemo-nos vestir.
E agora estou aqui há alguns meses, não sei se queres que te conte. Era um dia de chuva e a mulher disse
- Começamos então por aqui. Esta é a sala.
Era alta a mulher, digamos um pouco mais alta do que tu. De cima a baixo direita, vestida de escuro. De destino, pensei, vestida de destino, e era razoável pensá-lo. Olhei-lhe o vestido inteiro, não preto, decerto, que era talvez de mais, mas de todo o modo comprometida com o agoiro, fatalidade, coisas assim. E as mãos dadas à frente, com severidade. Equilibrava-me ainda mal nas canadianas, equilibrava-me mal em mim, hei-de explicar-te melhor.
- Esta é a sala.
Não havia tempo de a ver bem, mas eu olhei-a com muita intensidade e foi como se a visse bem. Súbito, ela marcou-me desde muito fundo. Não tinha tempo de pensar, ficou-me a imagem para mais tarde. Havia um círculo de gente a toda a roda das paredes - vês? disse a Márcia, companhias não te faltam. Havia gente a toda a volta, mulheres, poucos homens. Instantâneos ao meu olhar, não sei se te explico bem, espectros súbitos, eu via-os. Sentavam-se em cadeiras baixas, cadeiras de rodas, estavam todos muito sossegados, metidos para dentro - que pensais? perguntei-lhes eu também para dentro de mim. Possivelmente só eu pensava que pensavam - que pensais? A mulher de escuro estava à porta à espera que eu não tivesse mais sala para ver. Mas eu tinha, querida. Mesmo a Márcia - não gostas? e eu abanei a cabeça a dizer que sim mas não sabia a quê. Era tudo gente aposentada de ser gente, vivia numa zona intermédia de uma cor de morte mas por empréstimo. E havia ainda um cheiro mole que eu sentia antes de ser também dele e já não sentir. Conto-te tudo isto por miúdos mas não sei se é coisa ainda de entenderes. Por debaixo da minha atenção havia a minha memória impensada de não ser dali, e tudo o que lhe interrompia o discurso interno parava-me o olhar. Mas não sabia olhar nada por sua vez e vinha tudo ao mesmo tempo sobre mim. E mesmo agora que posso e já estou por cima disso, o que me lembra quando lembro é o que primeiro vi. Nós já estamos a sair da sala e eu ainda estou a ver. Curvados amarelos estropiados, o ar taralhouco.
- E vamos então ver o quarto podres esqueléticos, mas não te comovas muito, as caveiras com pressa de serem visíveis, não se mexem, estão quietos na sua invalidez, têm mantas sobre a ossaria dos joelhos, os olhos mortais nas peles encarquilhadas caídos para o chão, que é o chão do seu destino, querida, têm a cor defunta do azeite das lamparinas da igreja.
- E vamos então agora ver o quarto - disse a mulher, muito estatutária.
Mas eu atrapalho-me, depois te conto como foi, eu atrapalho-me ainda com o estupor das canadianas, vou saindo e fico olhando com força até ver bem, uma parada de caveiras a toda a roda da sala e um mau cheiro a corpo, cheio de pressa de apodrecer na sua verdade sem repressão. O corpo. A sua urgência insofrida de se manifestar. Mas também ele nunca existira para mim, quem existia era eu. E era a altura de eu te falar do teu corpo, querida, quando também não existia, quero dizer, quando existia mas contigo, com a perfeição de ti que tinha pulso nele. Conto depois. No corredor, numa sala ao lado enquanto íamos passando, um homem estava na cama, vi-o à passagem. Vi-o de súbito como sempre se vê quando o real é muito forte, fiquei por isso a vê-lo mesmo depois de o ter visto. Ia andando, via-o ainda. Era um corpo velho deitado. Pálido magro, uma barbicha reles no ar, lembrava-me o Senhor morto. Tinha uma grelha de tubos na cara, e ao lado, do alto de uma tripeça metálica, descia-lhe de um depósito de irrigador um tubo de borracha para um braço estendido sobre a cama. Não tive ideias, tenho-as agora para as teres tu também, vêm ao de cima da imagem que me ficou. Mas olha, nem sei se são ideias sobre ele, se calhar são já ideias sobre mim. E a mulher então explicou
- Todo este corredor até ao fundo são quartos. Ao meio do corredor é a secção dos mais velhos. E ao fundo, a secção A, dos externos, que vêm só quase comer e dormir. Ao lado, a cozinha, consultório, e mais adiante os sanitários, não sei se querem ver.
E eu pensava - um corpo, estou-o pensando para ti, lembras-te de termos falado nisso? mas se não falámos, falo agora, talvez o penses agora melhor. É terrível. Mónica, minha querida. Toda a grandeza da divindade condensada ali. Eu te baptizo em nome da perfeição - recordas-te de nós no rio? Os grandes sistemas do universo, as grandes catedrais do pensamento - um pouco me entretenho a filosofar, manquejando nas muletas. E os provisórios códigos definitivos com que ajudei à sociabilidade dos homens.
- Como te sentes como juiz? - um dia o André perguntou-me ou o Teodoro, a Márcia não devia ser porque tinha a vida toda nas mãos positivas.
E a sublimidade das artes e das letras. E a inquietação mais longe com que se fabricam as religiões - meu corpo. Está lá tudo. Um saco de estrume, querida, no princípio no fim e durante. É uma coisa em que raro se pensa, deixa-me pensar enquanto a mulher nos diz não sei se querem ver. Não é preciso, diz a Márcia, temos tempo depois. Chovia. Ouviam-se as bátegas de água embaterem contra a vidraça - é muito raro pensar-se. A história do homem e das suas ideias gerais e não sei quê, pois. Mas raro se diz que tudo isso trabalhou sobre o trabalho do estômago e das tripas e mesmo um pouco mais abaixo. Vi o homem inteiro estendido numa cama. Estava podre. Devia cheirar mal. Mas era humano na sua lixeira como eu de perna cortada um pouco acima do joelho a equilibrar-me mal no estupor das muletas. E de súbito a tua imagem, foi a primeira vez que te vi, era um espectáculo no ginásio - oh, não, agora não. E fomos por fim ver o quarto. Ficava num ângulo dos dois corredores e não era espaçoso. Mas tinha ainda uma divisória de vidro martelado até meia altura. A mulher explicou não temos outro por agora.
- Deste lado é o consultório médico.
- Há muita procura naturalmente - disse a Márcia. Listas de espera, às vezes de ano e mais, a mulher explicou, imagina, querida, a necessidade humana. Tinha a voz muito nítida e muito fria, a mulher, devia ter passado por ela muita desgraça a arrefecê-la.
- Deste lado é o consultório médico, ou melhor dizendo uma secção. Teve de se aproveitar o espaço.
E eu olhei o espaço aproveitado. Um canapé de napa talvez, secretária cadeiras estante envidraçada. E do lado de dentro um brilho de reflexos metálicos de niquelado clínico, o quarto era do outro lado. Contra a vidraça, mais forte a chuvada de inverno. Falo-te disto para estares aqui comigo mas não te comovas muito. A Márcia olhava em volta, ao alto, a calcular o espaço, palpava os colchões. Havia ao lado um guarda-fatos, a mulher abriu-o para lhe avaliarmos o interior, abriu em baixo os gavetões, eu fui até à janela. Não era comigo o problema, como compreendes, o meu destino estava nas mãos da Márcia que o negociava com a mulher, eu olhava apenas a chuva lá fora. E então pensei outra vez - um corpo, mas não o vou pensar agora. Tenho tempo de o pensar depois, vou morar no seu templo, no seu reino, vou ter muito tempo para trocar com ele algumas impressões meditativas. Agora olho só a chuva que não cessa, ouço atrás o negócio dele entre a Márcia e a mulher. Do lado de lá da rua há um mercado, vejo-o bem cá de cima. Tendas barracas aglomeração de gente muito atarefada de cabazes aos encontrões, os guar-da-chuvas abertos a atrapalhar. Às portas camionetas na descarga, caixotes de hortaliças, os homens com sacos em capuz na cabeça contra a chuva. Viviam, tem piada, nunca tinha reparado. Existiam. E o corpo não existia, porque como sabes quanto mais se existe menos ele existe, não sei se consegues entender mas também te não posso agora explicar melhor porque a Márcia quer dizer-me não sei quê.
- Ouve - disse ela. - Estive aqui a falar com a D. Felicidade e ela também acha que podes ficar já.
- Não! - disse eu mais depressa do que eu. - Preciso primeiro de arrumar as coisas, preciso de ir.
- Mas tu não tens nada a arrumar, eu mesma trato disso. Roupas e o que quiseres, eu trato de tudo. Escusas de vir apanhar chuva.
E então pensei em humildade que ela tinha razão. Não tenho nada de meu - que é que eu tenho ainda de meu? Tenho só este sacana de corpo, este estupor, estava ali comigo - mas estou a ser ingrato e grosseirão. Serviu-me bem toda a vida, com dedicação, não me posso queixar. Agora é a sua vez, não posso. Foi correcto, cumpriu o seu dever e mesmo o lixo que era do seu direito lá o despachava com discrição é estava pronto para novas obrigações. Mónica, minha querida, tu o sabes. Mas nesse caso lembrei-me - uns livros, posso já dizer-te alguns, aquela fotografia de tua mãe que está na secretária, aquele desenho que está ao lado da estante no corredor, o Cristo da sala, aquela estampa de um fresco de Pompeia que está por cima da TV, depois me lembro do resto. Ah, traz o gravador e as cassetes.
- Trago tudo. Vê se te lembras de mais alguma coisa, que trago tudo. A questão é caber aqui. Mas não é preciso vir logo tudo de uma vez.
Olhava-me cheia de pressa, D. Felicidade um pouco atrás também à espera - como posso iludir-me? Está bem. Nada é meu - como posso? mas não tenho tempo de me queixar. Querida, queixarmo-nos é dizermos que temos direito ao que não temos - que é que não tenho? Tenho tudo. Nada me pertence, tenho. É a filosofia mais profunda da vida, como diabo levei tanto tempo a aprendê-la? Nada é nosso, Mónica, a gente é que tem a mania. É uma mania estúpida. Ter mulher e filhos e amigos e tudo o que nos aguente de pé como estas muletas
- Trago tudo - disse a Márcia
- Está bem - disse eu
que nos aguente a chatice de estar só. Sento-me na cama, estou para aqui. Que nos aguente esta chatice de ser, é assim. Mas ninguém aguenta, a coisa é só connosco, a gente é que não sabe, só quando não há outro remédio. Todas as pessoas e coisas e ideias, querida. Sacodem-nos, desprendem-se de nós, que temos as mãos pegajosas. Vou lavar as mãos. É difícil por causa do equilíbrio nas muletas. Quando me cortaram a perna, já eu tinha acordado, o médico veio ter comigo
- E estão como se sente?
- Queria ver a minha perna, doutor.
- Mas é uma tolice. Repare, é uma ideia absurda.
- Queria.
E como chove. Ouvia a chuva na cama do hospital e eu pensava intensamente em ti. Sentia a perna inteira no meu corpo e movia os dedos do pé e depois a perna não estava lá. Era só a alma da perna que estava, a perna absoluta. E como chove. O carro da Márcia é um mini, vai ter dificuldade em chegar a casa se houver inundações e deve haver. Talvez o André e o Teodoro telefonem. Talvez telefonem à irmã para saberem, pensei. Talvez não telefonem, tu sabes, eles sempre tiveram a vida muito cheia deles, era difícil meter lá outra coisa. Aliás o André já deve estar fora do país, não o vejo na memória com que lembro. Chego à janela a entender - o quê? Não sei. A entender o eu estar aqui e haver outro entendimento do mundo, qualquer coisa assim. É estranho, não o entendo bem. Já tinha passado aqui muita vez, não era assim, digo o mundo. Eu mudei e ele então também mudou. Às vezes, querida, tu mudavas o sítio dos móveis e eu levava tempo a orientar-me outra vez. Porque uma relação, como sabes e se não sabes digo-to eu agora, uma relação é sempre a três, não a dois. Não somos só nós e outra coisa, é também ela, a relação. Como no falar. Mas se calhar estou a embrulhar-me, deixa. A gente começa a pensar e se pensa muito às tantas está enrolado. Mónica. De súbito exististe tanto. Como foi bom. Mas exististe, espera, não foi bem só no pensar, exististe mesmo no teu nome que eu disse no pensar. Deixa-me dizer-to outra vez. Mónica. Porque ele é logo tu e é ele também só por si. Tem o som de um oboé, é curioso - lembras-te do disco que? O teu nome. Côncavo oco, não sei. Um oboé. É um instrumento melancólico. Deve ter tido uma infância triste. Deve ter sido órfão de pai e mãe. Mas agora a chuva abrandou. As camionetas da descarga desapareceram, no mercado deve ter acabado o comércio. Foi quando bateram à porta e eu não cheguei a dizer entre porque duas criadas entraram logo antes disso. Mas atrás delas estava a D. Felicidade ainda vestida de destino. E então, sem desligar as mãos dadas à frente da sua severidade, disse-me as raparigas vão arranjar o quarto
- As raparigas vão preparar o quarto e enquanto o preparam o senhor doutor vai tomar banho.
Banho?
Não vou. Por enquanto não vou. Preciso ainda de estar contigo mais um pouco, antes da minha servidão. O banho. Já lá vou. Quero ir primeiro ter contigo - e onde é que eu hei-de ir ter contigo? Estás em muitos sítios, és múltipla, há mesmo um grande grupo de ti. És muitas e todas querem entrar agora no nosso encontro. Vou-te impor uma regra, é uma de cada vez - qual deve ser agora? E eu amo-te em cada uma em maneiras sucessivas até ficar por fim a maneira única do teu corpo e mais acima, mas mais tarde, a sua memória e a tua eternidade. Um dia pensei-o, penso-o agora com muita força para ser verdade. Penso agora, deixa-me filosofar um pouco, a história do homem é a da relação com o seu corpo - que te parece? ou dele com as coisas, que é o mesmo. Primeiro ele é perfeito - não é bem. Primeiro ele é uma coisa estranha esquisita, a gente põe-se a descobri-lo peça a peça com estupefacção. Os pés, as mãos, a caca - que coisa. E o chichi e o instrumental de o produzir. E os ruídos nem sempre com propósito mas perfeitamente legítimos, se o contexto está de acordo. Depois há a organização de todas as suas peças para uma harmonia do conjunto, umas mudam-se, outras crescem ou diminuem, é assim. Um corpo. E a altura de nos revermos nele, querida, cheios de glorificação interior. A gente saúda-o como quem bate uma palmada no pescoço de um cavalo e parte com ele para a vida. E então, é curioso, então ele não existe. Então quem existe é o mundo e nós, para o mundo existir. De nós à vida há um vidro muito puro, muito límpido e o corpo é o vidro. Vai levar tempo que ele rache e crie lixo para existir, mas por enquanto não. Por enquanto é só a necessidade e a evidência de existir como os deuses e as pedras, antes de as racharem para calcetarem as ruas. Por enquanto há o milagre sem milagre nenhum. Por enquanto há a eternidade de um relógio sem ponteiros. Mas já filosofámos bastante, é a altura de ir ter contigo ao ginásio.
Mas eu não sabia que ia ter contigo, antes de te ver. Só muito tempo depois é que soube que ia ter contigo, até agora que te escrevo. Quem me levou foi
- Há lá sempre pequename e boa perna quem me levou foi o Holofernes, meu colega de Faculdade. Eu creio que não era o nome dele, chamávamos-lhe assim, deves-te lembrar. Por acaso fui vê-lo aqui há um ano, mora na linha, tinha não sei quê cerebral. Desequilibrava-se ao andar, já deve ter morrido, mas agora não. E um tipo alto fortíssimo
- Há lá grosso pequename - ele dizia.
Mas já sei, espera, já sei porque lhe chamavam Holofernes. Namorava uma Judite mas sem vestígios de virago, era uma coisinha insignificante ao pé dele. Formavam um par engraçado, ele muito alto, curvado para ela ao peso da paixão e do tamanho, e sempre muito gentil como é próprio do gigantismo. E como em todos os pares assim desequilibrados, a gente pensava logo em restabelecer o equilíbrio, reforçando o lado fraco, e um tipo então disse
- Um dia ela bate-lhe.
Mora na linha de Cascais e um dia fui lá vê-lo. Ó João, ó Holofernes - levantou-se a tremer quando me viu, veio para mim
- Não te levantes! Não te levantes!
veio para mim em movimentos destrambelhados e esparralhou-se no chão. Ficou assim espalhado, uma perna e braço para cada lado, e dizia ó João. A mulher, muito seca, já sem emoção utilizável porque decerto a tinha gasto, chamou a empregada, era uma mulheraça, eu ajudei e apanhámo-lo e sentámo-lo outra vez no sofá. Mas agora estamos no ginásio, talvez voltemos a visitá-lo, agora vamos ser gente em grandeza e força e futuro. Deixa-me ser só futuro, o presente que espere, porque é um estupor. Aliás, uma vez no Parque, tu não estavas também? ele passou com a Judite pequenina e houve um tipo, eram três, houve um tipo que lhe jogou piadas no género de - mete-a no bolso, que a podes perder, ou - leva-a ao colo, ou - não abuses de uma criança, qualquer coisa assim directa à sua diferença e indirecta ao seu poder musculatório. Então o Holofernes, ó Mónica. Eram três, ele descolou da rapariga, e que arraial. Semeou os três pelos canteiros do Parque, retomou calmo a deambulação com a namorada. Há dias fui vê-lo, mora na linha. Aliás, já morreu. A propósito, quem morreu também foi o Aníbal. Como não conheces? claro que conheces. Se ele te fez a ronda também. Sim, um tipo maciço, terrível de força, mais que o Holofernes. E tu sabes, na juventude a moeda de troca é a força. Tinha também, além da força, a mania de vir a ser cantor de ópera, chateava a gente com constantes demonstrações de garganteio. Deu-lhe há tempos qualquer coisa na bexiga ou arredores, andava pela casa com um tubo ligado e ligado ao tubo, a criada levava-lhe atrás o saco da mija. Mas o Holofernes. Deixá-lo lá estar, agora quero é ir ter contigo. Entramos no ginásio, são dois salões altos, espaçosos, reboam neles os ecos como no Olimpo, pensei. Eu ia talvez também estender os músculos, não gostava muito, eram exercícios de um tipo adamado, eu preferia o futebol, em todo o caso o Holofernes fazia halteres noutro salão. E então fiquei um momento a ver. Havia uma rapariga nas barras assimétricas, tu corrias num extremo do salão, davas saltos mortais. Espera, deixa-me ver devagar. Dás uns passos, bates uma palmada no chão e sobes alto e lá no ar dás uma volta sobre ti, mas antes de caíres de pé, imóvel, fico a ver-te parada no ar. Corpo elástico, esguio, fico a ver-te. Flutuas imponderável, a Terra não tem razão sobre ti. Vejo-te no espaço, todo o corpo elástico numa curva dos pés até ao extremo das mãos, ou talvez não, recomeça o salto para ver melhor. Talvez o corpo não em prancha ao alto mas enrolado sobre si e giras no ar era rodízio até te desenrolares e caíres depois em pé e firme. Queria dizer-te como isso me maravilhou, o teu corpo poderoso, desprendido das coisas, liberto da sua condição bruta, feito de um esplendor imaterial. Terei dito bem? Imaterial. Quanta coisa havia nele, os teus ossos, as tuas vísceras, mas tudo existia leve e eu só lhe via a sua forma perfeita no seu voo. Há uma órbita da exactidão como se diz dos astros e tu seguia-la, um rigor matemático com que o universo existe. Depois repetiste o exercício, suponho que era para "aquecer". Porque as barras assimétricas ficaram livres e tu foste para lá. Não gostei tanto e vou dizer-te porquê. Em todo o caso. Primeiro houve a corrida talvez para a barra mais alta, as pernas abertas para não embateres na mais baixa. Depois houve um bater de pernas juntas contra a barra mais baixa como uma barbatana. E por fim todo o corpo numa só peça rodou suspenso da barra mais alta e ficou um instante imóvel lá no alto. Ligeiro leve. Lá no alto. Depois rodou de novo, um deus fazia-o rodar no ar. Depois, como um macaco de galho em galho, o corpo veio para a barra mais baixa, voltou de novo para a mais alta. Depois rodou inteiro aí e veio em rodízio plantar-se imóvel no chão. Não gostei tanto, havia um macaco entremeado ao teu exercício, havia as pernas abertas descompostas ao mudares de barra, mas mesmo assim, como me entusiasmei. Bati palmas, elas ressoaram pelo espaço do Olimpo. Não fui bem eu que as bati mas o duplo de mim, não te sei explicar. As palmas foram à frente e eu já as não pude apanhar. Porque o homem, minha querida, tem sempre em si um outro de si e só num tarado é que os dois coincidem. Também não sabia bem porque o fiz, agora sei. Claro, havia a destreza, a perfeição da tua realização, mas agora sei que havia outra coisa. Queria dizer-te simplesmente que havia o teu corpo, mas não chega. Havia outra coisa - que coisa? Mónica, minha querida. Havia, deixa-me pensar. Ah, poder falar do teu corpo. Perder o pé da realidade. Fechar à volta uma cortina para que nada de ti me fugisse e ficar eu só diante de ti. Sinto agora alguém dentro de mim a perguntar e depois? que é que aconteceu? Sei lá o que aconteceu, quero lá saber. Quero é estar contigo no nada de tudo o que acontecer. Saturar-me da tua presença. E ver-te. E ver-te. Que importa o que "acontece"? Estou farto de crianças desassossegadas que só estão quietas com um entretém. Não aconteceu nada, por enquanto não quero. Por enquanto há só - e como to vou dizer sem sair da norma e da sensatez? Há só o teu corpo leve aéreo. A transmutação da tua matéria terrestre. Uma presença intensa e frágil para haver tudo e o seu impossível. Mónica, minha querida. Só há uma linguagem para se falar de um corpo fora da anatomia, mesmo que a paixão diga que não é verdade. Mas há outra e eu sei-a porque tenho mais imaginação sensível. Sobretudo sei-a agora, que o essencial de tudo leva imenso tempo a aprender. O essencial o primeiro o primário. Sei-a. A que fala de fuga e impossibilidade. Do arquétipo que trago comigo para ir conferindo e não sei qual seja para saber se confere. A que fala do teu todo compacto em que há também a coisa que imaginas mas que vem depois, sobretudo numa prega do meu deslumbramento. Eras forte diáfana como é próprio da insegurança juvenil que é não saber ainda e ter medo. Vou-te fazer dar mais umas voltas nas barras assimétricas, tu que dizes? Na mais alta, quando ficas imóvel no ar. Ou vou já ter contigo e dizer-te você foi formidável e tu virares-te para mim e perguntares-te quem é o tipo? e dizeres duas coisas rápidas e displicentes e arfares alagada de suor. Mas não me agrada isso, prefiro ver-te serena enxuta e a sorrir. Dá-me jeito que fiques a sorrir. Tenho no meu poder fazer-te perfeita, não vou perder essa possibilidade. A sorrir. São dentes claros triunfantes os teus e este pormenor tem muita importância para o que quero acontecer. E não dizemos nada porque quando se sabe o que se deve dizer é quando já não vale a pena. Reparei então melhor na tua harmonia que direi estelar. Porque o sorriso é que fazia que o resto existisse e não ao contrário, quando acontecia seres mais corpo. Depois foste para os balneários e eu desisti da minha ginástica e fiquei à espera de ti. Precisava de conhecer melhor a tua face, porque quando se vê o resto a face não existe. O Holofernes estava lá para dentro a levantar e baixar carregos para provar aos homens e mesmo aos deuses que era poderoso, para a hipótese de algum ter dúvidas. Fui vê-lo há tempos à sua casa da linha - ó João, ó Holofernes, levantou-se a tremer quando me viu.
- E agora, enquanto as raparigas arranjam o quarto, o senhor doutor vem tomar banho.
Já vou, já vou. D. Felicidade espera à porta, vestida de Parca. São três as Parcas, como sabes, não sei qual delas vai ser. Mas ela que espere ainda, tenho tanto que te ver. Saímos do ginásio - não quer tomar um café? havia um ali perto, na praça da República. Chamo-me Mónica, disseste e senti logo que o nome te ficava bem. A Márcia trouxe-me o concerto para oboé, mas o teu nome era mais oboé que o do concerto. Eras triste, mas estranhamente decidida, devia haver atrás de ti e da vida uma razão oculta no teu ser para a tua decisão.
- E agora o senhor doutor vai tomar banho. Eu vou, eu vou.
E então fomos. Ia eu atrás, desarticulado nas muletas e à frente ia a Antónia com as toalhas e as roupas no braço. Larga, a Antónia, rebaixada para os lados, decerto à pressão dos carregos que a raça dela aguentara pelas gerações. Foi-se embora aqui há dias e tive pena, porque uma relação leva tempo a estabelecer. Dirás tu, querida, que depende. Pois. Do orgulho, da fundura de nós, que tudo é o mesmo para se descer até lá. A Márcia um dia disse-me - já não há fundura nenhuma, isso foi uma das vossas perturbações mentais. Estava ela já no segundo marido, não, no terceiro. Enfim, não me lembro e então eu disse-lhe
- Vocês não aguentam é com o vosso peso e então deitam-no à rua como o lixo camarário
mas não me apetece agora discutir. Vou com a Antónia, vamos por um corredor longo, com desgraça e portas para os dois lados. Vou aflito para acompanhar, a Antónia disse
- Levo-o numa cadeira de rodas
mas eu não quis, não quis. Numa cadeira só tinha de homem a metade de cima. Não quis. Mas a Antónia deve querer pôr-me à prova a de baixo e então acelera, parece-me.
Vejo-a à frente com o vestido do uniforme, o laço do avental branco atado por cima da rotação dos quadris. Mas ao fim do corredor parou. Havia depois uma sala à frente e mais um corredor à frente de uma outra sala que só mais tarde conheci e era muito grande. Reparei então, era um monturo de roupas velhas que estava sobre uma cadeira. Mas a Antónia tocou-lhe - lembras-te na aldeia? À beira dos charcos às vezes, a gente via uma mancha de verdura ao rés da água, a gente tocava-lhe e um bocado de verde saltava do resto da verdura e era uma rã. A Antónia tocou o amontoado de roupas e do meio dos folhos levantou-se uma face muito velha que imediatamente começou a cantar avé, avé. Tinha a voz rouca, cheia do ranço da idade. Mas a corda acabou-se-lhe logo e mergulhou outra vez a face na roupa e ficou outra vez um amontoado de panos velhos e escuros. Tem cento e dois anos, a Antónia disse e tinha um riso contente do seu como que poder sobrenatural. Na sala havia uns seis velhos a comer. São os mais idosos, disse-me a Antónia. Gosto de futurologia, quero ver como pareço no futuro e ter agora a pena que não terei então. São seis, estão todos debruçados sobre a gamela, não nos olham. Este tem noventa e quatro, este tem oitenta e sete, Antónia faz o balanço da sua mania de estarem vivos, não nos vêem. Um sujou-se de comida, ela limpa-lhe a boca a cara o fato, ele suspende-se, recomeça logo a comer. São belos e enormes, gosto de os ver. São trágicos e grandes, gosto. Estão vergados para a mesa e em silêncio, comem. Demoramo-nos um pouco, não param de comer. Têm um mandato a cumprir, não se distraem com a nossa presença, comem. Deixaram atrás de si mil chatices de serem gente, o sexo, os projectos, o poder e a alegria e a dança e a casa e o trabalho e a terra e as intrigas da vizinhança e mesmo o cemitério talvez com que tinham estabelecido um contrato a prazo, agora não têm mais nada e comem. É a última probabilidade de terem um corpo e aproveitam-na. A última oportunidade da sua realeza, pensei com um pouco de altura especulativa. São corpos sem mistério,não têm interior - que é que tendes ainda por dentro? são a carcaça de hominídeos. Antónia está parada com as toalhas no braço, à espera que eu me despache, mas eu olho ainda com um bocado de filosofia. São os despojos de uma grandeza, mesmo pequena, mesmo ao alcance de uma mão proletária. Porque a grandeza, querida Mónica, não tem bem que ver com o que fazemos mas com o que não faz em nós o animal, que tem muita força e precisa de uma força maior para a não ter. São velhos, querida. A vida manipulou-os, sugou-lhes tudo da alma até ficarem só um tubo digestivo. Está ali o tubo. E então comem, mas tenho de ir indo, a Antónia está cheia de pressa e já com autoridade para estar. E à frente havia uma sala pareceu-me de trabalhos manuais. Deviam já ter comido ou esperavam que os outros velhos se despachassem, comeriam por turnos. Faziam recortes de papel para a eternidade, são três velhas, enchem fronhas de papel, e havia um homem. Tinha uma pequena mesa e instrumentos marceneiros, criava bonecos para ir mostrar no paraíso. Conseguiam ainda espírito criativo, a vida fazia-lhes concessões e eles aproveitavam para entrarem nas contas gerais. Vi os bonecos do homem, a Antónia folheava-me já o regulamento para me despachar, mas eu queria ver. Era um homem que ainda tinha interior por cima do tubo digestivo. Havia a beleza, ele tinha ainda a notícia e a criação e uma vontade trémula de dizer não à morte e eu estava ali a ver. Tinha uma face magra e velha e de barba por fazer e uma grande humildade no riso sem dentes e tudo era uma maneira maravilhosa de ser feliz e desgraçado. Creio que a morte teve razão pouco depois, porque nunca mais o vi. Antónia disse temos de nos despachar mas eu queria estar ainda ali a ver um pouco mais tempo o mistério e a criação. Eram uns bonequinhos de entretém infantil, Mónica, mas os deuses mesmo assim deviam sentir-se humilhados. O velho ria contente por trás da boca rota e eu então perguntei cheio de inconveniência profana
- E para que são os brinquedos?
E o homem riu apenas e não sabia e tinha inocência bastante para não perceber que houvesse um estúpido a querer saber. Porque só sabe para que é a arte quem não sabe o que é a arte e aí a Antónia bateu o pé e irritou-se e falou alto para eu descolar e saber quem era Deus.
A casa de banho ficava ao lado do corredor, mais ao fundo, e havia até lá mais quartos e gabinetes. Querida. Vou tomar banho, podes vir também. Nunca tomámos banho um diante do outro - espera, não sei, não me lembro. Para preservarmos talvez o mistério e o gosto de depois o devassar, penso-o agora, tento entender. Para utilizarmos do corpo só o que está acima da sua humildade, não faço ideia. Junto da banheira havia uma cadeira de plástico engraçada. Tinha uma placazinha metálica a dizer autolift e eu li, Antónia regulou-a à minha altura para eu me sentar. E assim que me sentei, começou-me a despir.
- Eu dispo-me.
- Doutorzinho rabugento.
E sem me dar atenção, continuou a despir-me. Querida. Era uma moça ainda nova e ela retirava-me peça a peça a minha idade adulta até ficar a criança que ela queria. Eu tomo o banho! berrei-lhe para ela acreditar na minha força de homem. E ela disse ora não querem lá ver este menino birrento. Estou nu e sem razão para ter vergonha de estar nu, que era o que apenas me podia agora vestir. E tinha o coto da perna a atestar isso, porque o meu corpo não estava inteiro para atestar a importância de si. Então a Antónia manobrou uma manivela e a cadeira subiu mais alto que a banheira e depois manobrou ao contrário para a cadeira mergulhar comigo na água. E imediatamente começou a lavar-me. Tão desprotegido, Mónica. Tão desapossado do meu ser. Lavava-me a cabeça, o tronco, lavava-me as partes amorosamente. E eu pensei - depois vai pôr-me cueiros lavados. Então a minha mãe entrou devagar porta adentro e começou a lavar-me com carinho e eu estava sentado na velha selha de zinco, o pescoço, as orelhas, o sexo ainda por existir e eu tinha os olhos fechados e a Antónia voltou a lavar-me ela e eu tinha uma vontade lenta de chorar. Antónia manipulava-me todo e havia ainda uma presença de mim para mim próprio e sentia que ela me tinha desapropriado do meu corpo. Senti-o sobretudo quando pedi ao médico
- Queria ver a minha perna.
- Que disparate. Nem pode mesmo ver a perna porque já seguiu para onde devia.
Mas eu vi-a mesmo assim numa noite de pesadelo, e que estranho - eu tocava-a e não era minha. Eu estivera nela e quando a sentia ou a tocava era eu que a sentia e me tocava. Mas agora ela estava diante de mim e eu tinha repugnância de a tocar porque era um pedaço de carne morta e eu não estava lá. Havia um mistério inquietante de um bocado do meu corpo não ser o meu corpo e eu ser eu no corpo que ainda tinha e não o ser já no pedaço que já o não era. A perna, o pé, os dedos tinham sido eu quando andava e os movia. E agora o meu eu retirava-se de lá e estava ainda inteiro sem a fracção em que estivera inteiro. Isto vai assim um pouco embrulhado, minha querida, mas tu desembrulha-lo depois. Antónia lava-me com cuidado a mutilação e de novo certas zonas mais obstinadas na imundície, necessitadas de uma aplicação especial. Lava-me. Sinto-me bem. Depus a minha vocação humana em relações projectos actividades, agora estou nu, sem mistério nenhum de mim, sem o direito a ele, uma mulher lava-me as partes amorosamente.
E então de súbito lembrei-me - ir lavar-te eu a ti, Mónica, minha querida, limpar-te primeiro, chamar a Camila para me ajudar, ou eu só, talvez, com a minha piedade sobre ti. Mas não vou. Irei mais tarde quando os deuses me perguntarem - quem é? Estás no alto, agora, na barra da ginástica. Estás imóvel, no ar, enrolada sobre ti quando dás o salto mortal. Ou no bosque à noite
- Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição.
- E agora vamo-nos limpar - diz-me a Antónia. Trabalho difícil. Ajusta-me a cadeira de plástico sob o assento, dá à manivela para a cadeira subir comigo no varão de aço. Depois esfrega-me áspera na toalha felpuda. Depois veste-me com carinho, não me deixa a mim vestir-me. Exerce o prazer da protecção, que é um grande prazer dos fracos, Mónica, por haver mais fracos do que eles. Encavalito-me nas muletas, desarticulo-me corredor fora. E vou contente, querida, na minha condição, e eu pensei - é a altura de minha mãe me preparar para ir à missa de domingo. Ao passar à sala dos velhos, um momento apenas, que é que me faz parar? olho a mesa onde os deixei. Lá estão. Possivelmente à espera que os levantem e os sentem nas suas cadeiras de estar. Estão vergados para a mesa mas não comem. Estão quietos, olham o prato vazio. A cabeça pendida, imóveis, estarão a rezar? Inocentes indefesos. Têm a eternidade na face. Estão.
E ontem vieram pôr-me aqui ao lado um tipo, se te dissesse o nome conhecias logo. Querida. Mas tanta coisa que eu te queria dizer antes. E há-de vir a Márcia trazer-me as coisas. E hei-de ter notícias do André - que carta gira ele me mandou, há-de vir o Teodoro que apareceu aí com o capelão. Não gostei muito dele, do Teodoro, o nosso Teo, mas não me leves a mal. Resolveu a vida como pôde e agora defende-a à volta como uma praça militar e uma espécie de orgulho para parecer que tem razão. E eu penso que é medo de que a não tenha. Hoje lembrei-me foi da infância, tenho um certo pavor de lembrar. Porque a infância, querida, é sempre uma ameaça para um homem. Frustrações rancores vinganças que ficaram à espera e vão ficar até à morte. Mesmo a lembrança de prazeres que só são prazeres na memória e se querem repetir e se não podem repetir porque só existem na ilusão de terem existido. Ou a lembrança de prazeres que se não tiveram e se querem ter agora para compensar e são impossíveis mesmo quando agora se têm. Ou mesmo o encantamento de outrora que não é de nunca e está portanto ao nosso alcance como o abandono a ele que nos quebra por dentro - a infância, querida, é um perigo terrível. Mas já lá vamos. Aqui há dias, ia-te eu a dizer, que é que te ia eu a dizer? Ah, pois. Aqui há dias, ia eu a entrar na sala pequena, - porque há uma outra, grande, não sei se já te falei nela. Os que comem aí são os que vivem no lar para terem uma família que já não têm ou nunca chegaram a ter, porque os filhos, tu é que não tiveste audácia para o saberes, os filhos, Mónica, são uma invenção da nossa fraqueza para compensar a morte, o modo mais barato de se ser eterno. Um modo proletário de se ser Deus. E fica revogado por enquanto o que eu tiver dito em contrário. Aqui há dias, ia eu a entrar na sala de que te falei - estão todos à volta como te disse, trémulos taralhoucos em cadeirinhas de rodas ou rasas. E estava uma velhinha sentada vergada na sua cadeira, uma manta nos joelhos, magra, muito seca, já com pouca substância vital, os olhos postos fixos no chão, que era onde estava o seu destino. E a certa altura entrou uma rapariga toda desenvolta, via-se que tinha dentro muita vida a gastar e que se lhe escapava em gestos multiplicados ou a estalava em pressão quando a dominava. Só cá vem de longe em longe, diz-me D. Felicidade, mas há pior. Diz-me isto por concessão especial para me fazer passar para o lado dela, que é o lado do poder. E eu fico muito agradecido e pago-lhe em considerações meditativas sobre o destino do homem e a dificuldade tremenda em cabermos todos na vida com comodidade. Ou talvez ela mo tenha dito para eu me sentir privilegiado e entender que me vinha dela o privilégio. Isto no princípio, quando eu tinha ainda uma certa aura de visita. Porque depois mudou. Querida Mónica, não é verdade. Quer dizer, não é bem. Isto que digo atrás. A companhia que tenho é a memória de ti, para lá do horror e da degradação. Sim, sim. A companhia que me dá uma certa ajuda é a memória do que passou e existe agora num estranho irreal. Tudo tem o seu espírito, a gente é que não dá conta. Mas depois as coisas morrem, desaparecem e o espírito delas vem ao de cima e então dá-se. Dá-se conta. Mas das coisas mais reais, os livros e os móveis, mesmo os filhos, não sei, às vezes penso que também morrem e tenho medo. Porque um filho, pois, é um ser sagrado. Mas o sagrado está também neles por acréscimo e quando se tira o acréscimo o que lá fica é quase sempre um estupor. Gostava de me sentir livre de tudo, a gente carrega imensas coisas às costas, mesmo sem darmos conta, mesmo sem sabermos. As coisas do nosso uso, as pessoas das nossas relações, os hábitos da nossa monotonia, as ideias do nosso sustento mental. Tudo isso ocupa um espaço enorme do nosso ser. Então, quando a morte chega, tudo nos larga de mão e a gente fica aterrada por não ter nada para companhia. Prepararmo-nos para a morte é irmos morrendo tudo até ficarmos só cheios de nós. É duro, eu sei. Tão duro que se calhar daqui a pouco já penso de outra maneira. Mesmo agora estou a pensá-lo, mas o sentir está um pouco ao lado, a ver como é. O homem investe-se nas coisas e no resto porque é carga a mais para si. Deus fez-nos cheios de buracos na alma e o nosso dever é tapá-los todos para navegar. O homem é um bêbedo sempre encostado à parede ou uma criança a fazer tem-tem. Toda a grandeza é um investimento em nós próprios e é por isso que os grandes têm uma grande solidão. A Márcia fez este jogo de amor filial, eu deixei fazer. Havia a história da Camila, que já te conto, senão vais ficar fula comigo. Mas havia sobretudo o problema da casa, que era realmente enorme para mim e lhe dava jeito a ela que tinha de arrumar cinco filhos, dois dela dos dois primeiros maridos, um de cada um, dois que pertenciam ao último marido, que eu nem sei o nome dele, e um que já é filho dos dois. Contas um pouco difíceis que eu se calhar atrapalhei. Deixei-lhe tudo, trouxe só a memória disso e do mais, que é o espírito daquilo em que existi e que é tudo. Queria só o Cristo que trouxe da aldeia depois da morte da minha mãe, como sabes, e que estava na sala de jantar por cima do aparador, queria um desenho do Dürer que estava ao lado da minha secretária, e uma estampa a cores de um fresco de Pompeia que era a deusa Flora ou a Primavera e que estava também no escritório e se parecia imenso com a essência de ti. Já trouxe tudo. O Cristo nem sei bem porque o quis, talvez lá mais para diante eu saiba. O padre capelão já o viu e ficou muito inquieto de apostolado, tivemos mesmo uma conversa em fascículos como um folhetim. Mas depois te conto se me lembrar e tiver razões para isso. Já não tem cruz, o Cristo, como sabes, nem um bocado do pé esquerdo. A minha mãe arranjou-lhe um sistema de guitas para o dependurar e agora ali está dependurado, não à cabeceira da cama como há-de sugerir a D. Felicidade, quando se demorar aqui no quarto e fizer concessão de sugerir, mas ao lado, por causa da luz. É belo com a luz e o jogo das sombras que lhe retira o que há nele de táctil, de objecto, de imediato e o prolonga no tempo, lhe dá uma ressonância mística, um certo timbre de eterno.
Às vezes fico a olhar não para ele mas para a sombra e sinto - não sei dizer-te. Um aceno de infinitude, digamos. Uma certa expansão universal. Mas a sombra tem isso, variar-nos o tamanho da grandeza, da irradiação. Bom. Foi como quando nós estivemos no Sítio da Nazaré e tu tiveste uma frase sobre o D. Fuas Roupinho e a Virgem que o susteve de cair ao mar. E abriste os braços num grande gesto de te precipitares nas ondas e ficaste imóvel. E era a hora do pôr do Sol e houve uma sombra extensa de ti até se dissipar ao longe. E eu disse-te - Mónica. Senhora do universo, minha querida. Da Terra, dos astros e da perfeição. E rimo-nos imenso. E depois sentámo-nos em silêncio a ver o Sol e as sombras que nasciam da sua morte. Mas não foi por isso que eu quis o Cristo, e também não sei ainda porquê. O Cristo, aliás, Mónica, não é assim muito importante há muito tempo. Só depois de se filiar no socialismo é que foi, depois te explico. Antes dele, quem tinha realmente categoria era a Virgem, vou ver se chego a saber porquê. Mas o Cristo socialista, não, não foi por isso - e onde é que tens tu hoje socialismo para ele? Mas perdi-me. Ah, pois. Estava-te eu a dizer que aqui há dias entrou na sala uma rapariga loura, toda feita ao torno, em curvas e contracurvas, com um vestido que lhe prensava a redondeza das formas. Era filha de uma velhinha óssea, muito sumida mas compostinha na sua cadeira rasa, o olhar fito no chão do seu destino. Era a primeira junto à porta, depois a fila dava a volta a toda a sala com as velhas e alguns velhos ali imóveis, indiferentes, à espera. Então quando a velhinha deu conta que era a filha, ela nem a olhou mas a filha falou-lhe
- E então como estás?
a velha desatou num pranto desesperado mas sem erguer os olhos. Se calhar não podia, era uma questão só entre ela e a sua desgraça
- Leva-me daqui.
- Olha que feia. Agora a pores-te para aí a chorar como uma criança. Tu que estás tão bonita, agora a chorar como uma menina feia.
Dobrava os joelhos para se pôr ao nível do destino dela, tirou da malinha um lenço de renda, pôs-se a limpar-lhe os olhos e a repetir que menina sem juízo nenhum.
- Trouxe-te aqui estes doces, mas não é para abusares. Deixo-os à D. Felicidade para não fazeres tolices.
Então a rapariga loura falou para mim, decerto por me ver o olhar mais desimpedido para entender. Falava agora em voz mais rápida e baixa e não como diante de crianças que só entendem uma linguagem lenta e bem articulada. Imagine o senhor, temos dois filhos já crescidos, não temos onde tê-la, o meu marido que não podia ser e tivemos de pô-la aqui. Olhei à volta, ninguém nos olhava, todos os velhos estavam fixos no seu imaginário.
- Mas esta ainda vem à semana - diz-me D. Felicidade. - Porque há aí quem tenha visitas só de longe em longe, aí pelo Natal ou Páscoa. Olhe, doutor, uma vez
Contou. Uma vez tinha cá uma Dolores. Muito velha, morreram os filhos e era um neto, pagou sempre, esta é a pura verdade. Vinha assim duas três vezes por ano. E então a senhora finou-se. Demos notícia ao neto, mas qual neto?
Tinham saído, não havia ninguém em casa. Até que um dia rompeu porta dentro, trazia uma caixinha de doces, é o que trazem sempre as visitas e aí eu disse-lhe a sua avó já foi enterrada e ele disse até que enfim. Não pôde mesmo aguentar-se, aquilo saiu-lhe assim mesmo e disse até que enfim. Mas não ficou a dever nunca um tostão. Então, querida, lembrei-me do meu avô.
Era pai de minha mãe e de vários outros filhos. Ao impulso da vida, quando se escolhe o destino segundo a força desse impulso, que é o da nossa disponibilidade, os filhos dispersaram-se, minha mãe ficou. Negociava em lãs e já em compra e venda de terrenos com o prazer de jogador com que se desafia a sorte. E a sorte disse-lhe quase sempre que sim, como é do seu compromisso com o provérbio. A certa altura não jogou mais, não tinha já força para andar em problemas com a sorte. Porque ela é como a força da crença para haver milagres. Quando o meu pai trouxe minha mãe para a aldeia, trouxe-o também a ele como parte integrante da afectividade dela. Mas tinha-lhe medo, que disfarçava com o respeito. Minha mãe era ao contrário. No trato diário de longos anos, amava-o mas não o respeitava, como aos santos proletários. Meu pobre avô. Desculpa, querida, deixa-me dizer meu pobre avô. Conheci-o já tarde, na decadência, já com pouca substância interior. Fora avô por inteiro com minha irmã, a Célia, dez anos (dez anos?) mais velha do que eu. Quando ela trouxe um filho dos estudos e do pecado, só ele teve entendimento humano para isso. Célia desapareceu não sei para onde, talvez volte ainda mais tarde à nossa conversa, quando os erros do mundo forem já verdade para se entenderem. Mas nós falámos disto, querida Mónica, não foi? Falámos. E de quando me chamava ao quarto que costumava fechar por dentro, e de me mandar sentar e de me ir dizer coisas e de não dizer nada e de ter a cara muito pálida e tudo pronto para se pôr para ali a lacrimejar mas aguentar-se creio que do lado de lá das lágrimas que não chegavam a ter a sua oportunidade. Pobre avô, lembro-me. Dávamos passeios, contava-me a verdade das coisas. Levava-me pela mão mas às vezes já era eu que o levava a ele. Contava coisas do seu tempo, dizia "uma ocasião" e contava de assaltos, de um bandoleiro especializado nos caminhos da serra, do seu tempo de tropa em Penalva quando cortava a direito pelos montes para vir dormir com a minha avó aos fins-de-semana e voltar logo a direito pelo mesmo caminho. Começavam a construir-se chalés na serra e mesmo vivendas na aldeia, ele fazia cálculos de cabeça, comprava e vendia os terrenos. Depois comprou terras de cultivo para si. E aí se fixou por fim. Quando foi a minha vez de ser neto, já ele estava ligado à terra, quieto no corpo e na alma. E foi o que me deixou - um entendimento da terra pela comunhão, quero dizer por uma relação de identidade, Mónica, uma forma de se ser em comum, de tudo se fundir num destino igual para as contas gerais, minha querida, qualquer coisa assim a fazer no incognoscível. Não foi coisa que eu soubesse logo nem depois nem depois. No fim. O que é importante não se sabe logo quando se sabe, querida. Fica em nós, leva tempo e tempo a dar-nos a volta ao sangue e ao barulho que nos ensurdece e nos não deixa ouvir. E só então, enfim, a gente acaba por saber. Tu às vezes perguntavas-me
- Porque é que estás sempre a lembrar o que passou?
Era isso. Eram as coisas que tinham ficado a levedar. As coisas que ainda não tinham vindo ao de cima com a verdade que estava nelas. As que só então eram visíveis, como mesmo o que é visível e não se vê. Depois o meu avô começou a ficar taralhouco e a mijar-se - e era aqui que eu queria chegar. O médico receitou-lhe um saquinho ou um certo frasco de vidro, já não sei, para as urinas, mas aquilo era complicado de pôr e tirar e lavar e minha mãe achou melhor pôr-lhe fraldas - não sei porque não fizeram o mesmo com o Aníbal de que te falei há bocado. Oh, ela desabafava em injúrias e desespero, para aqui agora a mudar as fraldas à criança, ele sorria. Meu pai quis ele fazer o trabalho mas minha mãe não consentiu, decerto forçada ainda pelo instinto maternal. E era preciso dar-lhe o comer à mão, sujava-se todo. E ele sorria, bem estabelecido na harmonia familiar, na verdade alegre da miséria humana.
E nesse momento vêm ter comigo uma data de velhos que eu lá conheci. Eram sobretudo velhas, mais obstinadas em viver, mais ferradas à vida do que as moscas às mulas. Os homens sempre eram mais compreensivos, quando ouviam dentro de si que eram horas, deixavam-se morrer. As mulheres ouviam e não ligavam. Porque só morre quem quer, minha Mónica. Estamos presos às coisas, às pessoas, aos nossos hábitos e ódios e projectos e é preciso ir descolando disto e daquilo e isso é difícil. Minha mãe contava-me de pessoas que não tinham descolado de tudo após a morte e vinham então cá de novo e levavam tempo a ir-se embora de todo. O sinal de que vão sendo horas só o próprio o sabe. É um aviso oblíquo, um breve toque no ombro por detrás. Então as coisas começam a ser estranhas como de um país desconhecido e os afectos e o mais começam a retrair-se a si mesmos como se não existissem. Mas existem. O que não têm é razão de ser, como uma piada sem piada ou uma música fora do sítio de ser musical. É um toque leve que nos faz franzir os olhos para coisas longínquas que não se vêem bem e que não estão lá. Um sinal obscuro como uma presença numa casa onde não há ninguém. As mulheres ouviam o aviso, mas muito batidas na manha através dos séculos para subsistirem, faziam que não ouviam. Vejo-os a essas velhas e velhos renitentes, vêm em bando do tempo de outrora. Coxos, a cabeça torta e a babarem-se, entrevados, taralhoucos, a espinha dobrada para a cova, a fala travada de gaguez, cegos, as mãos torcicoladas como raízes de fora, ossificados, surdos, mijados, borrados. Vejo-os, percorro-os de um a um nos recantos das casas, estão lá no seu último refúgio, o olho trémulo de uma ternura desconfiada. Dão-lhes o comer na cama, sentam-se numa esteira, os joelhos à boca, a malga do sustento equilibrada aí, metem-lhes o comer na goela. Rogam-lhes pragas e eles são felizes. Têm uma casa, têm perto da mão as coisas de serem gente, as vozes que conhecem, o caldo da comunidade, o banco, o terço, o penico. Têm-lhes ódio mas eles estão bem no calor desse ódio. Reconhecem-se no sol e no vento, na chuva e na lama, nas intrigas e escândalos e ditos e em tudo o que os prolonga e sustenta e garante o estatuto de serem. Estão lá, Mónica, existem. Confirmados documentados patenteados de existência. Danados, filados às coisas.
Porque só morre quem quer, minha querida, já to disse mas não há mal em repetir. Eu, por exemplo, não me sinto ainda bem inclinado. Há a tua memória que ainda nem explorei bem, e a presença dos filhos, que podem ser presentes de vez em quando, e a deusa Flora de Pompeia que ainda não assimilei, e o Cristo e o Dürer, e um certo amor torto e possível a haver se houver, e esta carta a esgotar. Há isso, uma certa eternidade que às vezes sinto em mim e deve ter alguma razão porque me faz bem. Também não ouvi ainda o sinal, que é difícil com a barulheira da rua, talvez um dia à noite. E sinto que há gente ainda dentro de mim, o corpo habitado. Mas o desprendimento há-de acontecer. É difícil, mas há-de. O desprendimento é um misticismo ao contrário - ocorreu-me agora isto, não o entendi ainda bem. Porque o máximo de união é o dos místicos, minha Mónica, eles passam-se todos para o lado de Deus. Hei-de passar todo para o lado de mim. Ainda lá não estou, mas vou estar. Ainda sinto nas mãos o contacto das coisas em que toquei, a chave da nossa casa, o trinco das portas, ainda sinto no assento o sofá do escritório. Mas o que está mais presente é na memória que está. Mesmo o corpo ainda lá estou. Um dia há-de não estar. Um dia hei-de desprender-me dele e senti-lo na sua materialidade como a perna que já andou. Coisa de carne em mesa de anatomia. E eu não estar em parte nenhuma. Mas agora ainda não. Esgotar a memória. Despejá-la como uma gaveta de coisas velhas quando já nem sabemos o que são. Ou um caixote. Um cinzeiro. Sim. Mas preciso de ir ter contigo. De te entender mais alta do que nas barras assimétricas. Pois. De te amar.
Era uma cidade à beira-mar, tinha uma praia extensa. Mas quando chegámos já quase não havia veraneantes, as ruas quase desertas com as cadeiras e mesas de bares e alguns cafés ainda amontoadas à espera de arrumação. Nós vagueávamos pela cidade abandonada e o rumor do mar trazia-nos a memória do verão. Cruzávamo-nos com os últimos veraneantes que olhavam espantados, vestidos de aldeia, fatos grossos, casaco colete chapéu, não sei se te recordas, o colarinho apertado sem gravata, saias folhadas escuras, vinham depois das colheitas, das "arrequelhenças", os campos já a hibernarem, a praia já possível para eles com o dinheiro da terra. Parávamos a olhá-los estonteados, bandeando-se ao acaso pelas ruas sem ninguém mas ainda com os sinais do luxo e dissipação. Ou vínhamos à grande esplanada frente ao mar, deves estar lembrada. Era triste a praia deserta. Era inquietante, não sabíamos bem porquê. O sol já pálido, a longa extensão de areia até a uma vila distante, o ar tolhido de tudo. E o mar, sempre, espraiando as suas ondas na areia sem ninguém. Muitas vivendas ao longo da beira-mar tinham as janelas fechadas, algumas ainda com os toldos nos terraços. Mas nós gostávamos mais assim, talvez. Senhores da terra e da nossa imagem. Caminhávamos à deriva por caminhos desertos na exploração do nosso reino. Porque a terra é toda de quem se ama, querida, e nós amávamo-nos tanto. Ou dávamos grandes passeios de bicicleta para uma posse mais triunfal. Tu saías das aulas, eu saía do tribunal, quem chegava primeiro esperava na esplanada frente ao mar. Ou tomávamos ainda banho ao fim da tarde. Os camponeses juntavam-se num só núcleo, unindo-se instintivamente contra o estranho de tudo, ficava a praia enorme só para nós. Eles já não tomavam banho àquela hora, juntavam-se num grupo escuro na areia. Eu inventava o teu corpo, gostava de te explicar. Inventava a eternidade dele, a tua pessoa vinha toda à superfície, estava toda perfeitamente visível. Não estavas tu para um lado e o corpo para o outro. Era a alegria, a vida inteira ali. Inteira perfeita, mas não eras só tu. O teu corpo não era só tu. Havia nele o mar e a areia e tudo o que convergia para a tua vitalidade a transbordar. Porque um corpo perfeito, querida, precisa de muito espaço à volta para irradiar a sua perfeição. Deus está em todo o lado por isso. Havia uma ligação de ti com as coisas, com as mais distantes, para se cumprir a tua divindade. Havia um pacto de ti com o que existe, que é o que se vê e o que se não vê disso que se vê. Espírito carnal, é talvez de se dizer. E era ali que tu me eras mais compreensível. Incog-noscível visível. Transcendente corpórea. Simples e enorme verdade de seres. E se não te consigo explicar, vê se alguém te dá uma ajuda. No alto de uma rocha contra o sol. Da matéria da rocha e da luz. Corpo triunfante, é de quando mais to lembro. Corpo denso e ágil. Furtivo. Devias ter a alma toda cá fora como os animais. Havia uma ponte de madeira sobre uma estacaria que entrava pelo mar. E havia no fim uma prancha para saltos. Gostava de te ver saltar. Um fuso como uma ave. Depois vinhas à superfície e havia o mar todo na tua face e a sua imensidade. Depois saltava eu e ríamos, ria em nós a substância da vida. Alegria gratuita, que é a razão maior de se ser alegre, como sabes. Depois nadávamos para a praia e descobríamos o imponderável de nós. Mas chegávamos enfim à areia e caía-nos em cima todo o peso que era nosso e tínhamos perdido.
Morávamos numa casa não longe do casino. A dona era viúva e tinha um filho paralítico. Queríamos duas divisões, uma para quarto e outra para escritório, eu trazia sempre papéis do tribunal, trabalhava às vezes pela noite dentro. A mulher disse eu alugo mas no verão compreendem têm de pagar um pouco mais para compensar, a não ser que deixem os quartos livres.
- Ou podemos alugar ao ano e a senhora faz já um preço para os doze meses - disseste tu.
Os dois quartos ficavam no ângulo ao fundo de um corredor, um dava para a rua e o outro dava para o pátio. E tinham uma porta de comunicação. Tu acabavas cedo no liceu as aulas de educação física. E com o tempo livre e uma vocação extraordinária para um relacionamento imediato soubeste logo tudo da mulher. Depois ias-me contando. Não logo, às vezes muito tempo mais tarde. Curioso. Tinhas um sentido muito forte de propriedade, mesmo para uma notícia que eu não sabia. Mas tinhas também uma vontade enorme de me dizeres. E nas duas forças opostas equilibravas a tua natureza de seres mulher. Querida. Deixa-me dizer. Às vezes penso -o peso dos milénios sobre a tua condição sem o saberes, era isso. A espantosa facilidade com que te inserias à vida de outra mulher, a defesa de um segredo comum como de uma cumplicidade, eram a projecção de uma opressão através das eras, a estratégia de uma astúcia prevenida contra um inimigo comum pressuposto e que era o homem de aço, de guerra e dominador. Um dia eu disse-to - irritaste-te tanto. Mas não agora, tenho tanto ainda que te amar. Esvaziar-me todo de ti para morrer só comigo. Na minha carcaça. Restos da grande festa com marcas de cuspo, dedadas sujas, ossos e espinhas, tudo para o caixote. Pois. Mas não ainda. Há tanto ainda que seres. Ou esvaziar-me de mim e ser a sós contigo na essência de nós. A mulher era viúva de um polícia, soubeste-o logo. Mas algum tempo depois, quando houve entre vós cumplicidade em voz baixa, já não era viúva a tempo inteiro - a senhora há-de compreender. Como podia eu viver, só com a pensão do meu marido? E com este filho assim? Mónica. Meu doce oboé. Tenho ali numa cassete o concerto de Mozart, hei-de-to tocar para seres a música dele. E então soubeste a história do filho. Quinze anos? talvez mais.
- Já fez vinte, minha senhora.
Mas tinha a palidez e o raquitismo da paralisia. E a viúva intervalar explicou e a tua atenção colada ao que dizia foi ouvindo.
E subitamente vejo-te. Vejo-te com uma nitidez física da minha memória activa. O rosto redondo digamos oval, todo fechado numa linha inteira. O tom mate. O cabelo negro liso, cortado curto à roda do pescoço. E uma franja na testa, usava-se então muito. Mas sobretudo lembro a tua face, os teus olhos com uma energia irrequieta insofrida, pronta a entrar em acção. Então a viúva contou.
Contou a história sem uma hesitação, marcada a palavras certas num compasso cerrado, com as pausas a tempo, os pormenores como parênteses, via-se bem que a tinha aperfeiçoado e fixado em várias repetições como os entretenedores de serão. Fora na praia há três anos. Ia sozinho com uns amigos, há quantos anos que eu já não vou à praia. Porque a senhora compreende, o que está à mão é o que menos apetece - há quantos anos, já o meu marido tinha falecido. Era uma prancha, estava a maré baixa, o filho batera com a cabeça no fundo. O banheiro foi buscá-lo, mas ele não se sentiu muito mal. Umas dores e assim, mas veio pelo seu pé. Depois é que se soube, foi na espinha e começou logo a piorar. E olhe, aqui está.
- Já o levei não sei a quantos médicos. E aqui está. O meu bem.
E imediatamente começaste a interessar-te pelo rapaz. Querias meter na ordem a vida, que é muito estúpida e despropositada, sempre quiseste. Mónica, minha querida. Não era emendar as coisas gerais como os políticos, para depois se sentirem os efeitos nas particulares. Tu eras ao contrário. O geral era uma abstracção e no particular é que as coisas doíam. O político é que é insensível para o particular, os problemas para ele são uma fórmula mental. Devo dizer-te que o nosso Teo é um pouco parecido, depois te explico. Mas tu, não, foste aliás sempre assim - se eu te fosse a lembrar. E imediatamente começaste a ocupar-te do rapaz. Tomavas-lhe uma perna, esticava-la, flectia-la e eu dizia-te tu não estás habilitada, é uma ginástica especial de recuperação, só se falares com um médico, mas tu nem me ouvias. E a mulher dizia o meu bem, o meu pobre bem. Então eu dizia à mulher a senhora não deve amimá-lo tanto, sempre a chamar-lhe meu bem. E a mulher explicou é o nome dele, senhor.
- Ele é Benvindo, mas nunca me acomodei ao nome. Foi o meu falecido que lho pôs, já era o nome do avô, havia muitos Benvindos na família.
Porque eu devia saber, não é só o sobrenome que se espalha numa família, é também o nome. As famílias não querem misturas, é também o nome.
- Eu sou Adélia e na minha família, que eu saiba, há cinco Adélias.Eu o que lhe queria pôr era Sebastião, olhe, foi o nome do meu primeiro namorado. Eu até às vezes me rio. Eu estava uma vez à espera dele e ele nunca mais veio. Estava também outra à espera dele, ficou com ela.
- Sebastião era um nome grosso- disse eu.
- O meu namorado era um rapaz muito fino - disse ela.
Flectias-lhe as pernas, tentaste uma vez soerguê-lo. Mas Bem tinha o peso de um morto, que é muito mais pesado que o vivo por ter também a morte a fazer peso. E um dia trouxemo-lo mesmo na cadeira de rodas para a rua, levámo-lo até à esplanada sobre o mar. Ele falava muito pouco e com cuspo e a certa altura começou a falar ainda menos. Mónica. Um dia eu disse-te repara como ele olha para ti. Era um olhar de pasmo e muito grande para lá caber tudo. E quiseste mesmo ensinar-lhe a jogar as cartas, ele deixava-as cair a olhar para ti. Até que certa vez, tu é que contaste, estavas a fazer-lhe não sei que exercício da cabeça, pegou-te na mão e babou-ta toda de beijos. E tu ficaste toda nervosa e de todo o modo lavaste-te perfumaste-te saíste porta fora. E um dia como é que foi? já não me lembro bem. Um dia falámos com o médico e ele disse não. - Não foi nada quando tomava banho, a mãe conta sempre essa história vá-se lá saber porquê, talvez por julgá-la mais nobre, mais bela ou assim. Tinha uma fotografia do rapaz, não a tinha ainda mostrado? uma foto já gasta de tanto a mostrar. Está o rapaz ainda são, em calção de banho na praia, a paralisia veio depois. Explicou, já não me lembro. Paralisia. Sem solução. Lembro é quando chegámos a casa e o rapaz veio a correr nas rodas pelo corredor fora quando nos viu e tu nem lhe falaste e atiraste-te para a cama de bruços num choro enorme e estúpido. Não te perguntei nada para não saber. Nem te irritar porque também não sabias nem querias saber. E que é que se podia saber? pergunto-me agora, que é que? Orgulho piedade. E qualquer outra miséria ignorada que ainda não veio ao de cima e já deu sinal antes, como toda a miséria. O que se sabe dói menos depois de se saber do que enquanto se não sabe. Vê-se-lhe tudo depois de se saber, não é possível uma traição - que é que? E falar de uma coisa é torná-la logo real, não falámos. Mas estranhamente continuaste com os teus exercícios de recuperação. Flexões das pernas horas e horas. E exercícios dos braços para erguer o mundo. E rotações do pescoço para a hipótese de uma cilada atrás. E os seus olhos embevecidos, sempre.
Porque os exercícios eram feitos por dentro, donde lhe vinha o embevecimento. E eu disse-te Mónica - minha querida, tu estás a criar um problema ao rapaz.
Até porque um dia ele voltou a beijar-te a mão com mais cuspo e então disseste tens razão e isto é uma tolice. De modo que desde então. Tu almoçavas no liceu, eu num restaurante ao pé do tribunal. E à noite jantávamos fora, a mulher só alugava os quartos, ou comíamos coisas rápidas sem sairmos, sandes leite fruta e assim. Mas ele sabia o teu horário e esperava-te e tu dizias-lhe olá Bem e passavas. Às vezes punhas-lhe a mão breve na cabeça e um raio estalava-o de alto a baixo. Então fugia pelo corredor fazendo rolar a cadeira com veemência. A vezes a mãe ouvia-o rodar com estrondo, abria-lhe a porta, recolhia-o para dentro, fechava logo a porta sem dizer nada. Estava em jogo entre todos nós o que não sabíamos bem - penso. O teu corpo, decerto, mas como moeda, como - não sei. Como espelho em que nos víssemos todos jogar. Uma coisa assim e se não for, diz tu. E havia também o meu orgulho e secreto terror e uma absurda estupidez ou ridículo de que fosse assim. E a tua imensa piedade, que é o sinal de quem muito possui. E havia o insólito de uma degradação loucura abjecção que viu a beleza e entendeu e acreditou. A bela e o monstro, claro. E porque é tão vulgar? A bela e o aleijado, o condenado à morte breve, o prisioneiro perpétuo, o desgraçado. E a piedade que equilibra o desnível, o prazer imenso de proteger para se ser senhor como se ama um cão, não sei. O prazer imenso de se ser diferente e contra. O gosto do risco para se poder vencer, triunfar do destino, não sei. Eu perguntei-te um dia, tu irritaste-te tanto. Não te admito, disseste. Isso é uma estupidez. Isso é incrível como te passou pela cabeça. É uma ideia de perversão. E mais coisas acrescentadas em cólera para compensar a razão que não tinham. E em face disso eu fiquei seriamente perturbado de plausibilidade que não queria ter. Ou se calhar tu é que não sabias. Se calhar não querias saber para não seres responsável e quando te fiz a pergunta explodiste de humilhação diante de ti. Mas dito tudo, é curioso, como que ficou tudo legalizado. Posto à vista, não tinha mais nada que esconder. E daí em diante falavas com o rapaz, mas com timidez, sem subentendidos na alma. Falávamos outras vezes os dois, eu contigo, ele não gostava muito, mono morcão. E depois deixou de aparecer. Aparecia a mãe - que estranho. Poucas falas e com um ar de direito a isso. Até que um dia.
Eu viera mais tarde e chovia forte. Vinha encharcado e precisava de me mudar, abri brusco a porta do corredor. E brusco vi, levou tempo a entender. Mas eu já tinha visto e o entendimento só tinha que acomodar-se. Era ao fundo do corredor, tossi, bati os pés no tapete mas ele não deve ter dado logo conta e só algum tempo depois deixou de espreitar à fechadura. Largou a correr, passou por mim a correr, olá Bem, eu pus-lhe à passagem a mão na cabeça. Quando entrei no quarto estavas no outro lado, sentada à mesa, de perfil para a porta, preparavas um esquema de lição. E eu disse - o que chove, venho todo ensopado. Muda-te já, disseste. Toma uma bebida, não te deixes arrefecer. A chuva estalava no pátio interior, todo caiado de branco com tiras azuis junto ao telhado. Mudei-me, tomei um conhaque, sentei-me também à mesa com um cigarro. Ouvíamos a chuva em silêncio e a chuva aproveitava para falar do que lhe apetecesse. Tu preparavas a tua lição mas eu tinha uma palavra a meter-lhe no meio. Tentava algumas com possibilidades, mas nenhuma entrava e eu não as dizia. Porque a justeza de uma palavra, como sabes, não está tanto nela como em quem a recebe. Pensei-o agora, se calhar não está certo. Até que a atirei, baixando no tom o que era alto no que disse
- Sabes quem encontrei a espreitar aí na porta?
- Outra vez? - disseste sem interromper o trabalho. - Coitado. Já lhe tapei a fechadura. E então viste-o outra vez sem interromperes o traçado no papel do que devia ser um plano de aulas semanal. Mas porque é que dizes coitado? Digo coitado e que é que querias que eu dissesse? E de súbito suspendeste o trabalho, e devagar, na tua face, uma nuvem que veio de trás e passou. Melancolia interrogação suspeita. Um breve susto. Na tua face. E isso que foi chegou até mim e demorou um pouco a passar. Mais forte, a chuva. Ouvíamo-la no pátio, estalava contra o silêncio da nossa estupefacção. E foste tu quem falou
- Amanhã vou procurar outra casa. Encontrámos a casa. Mas tinha só um quarto. Era mais espaçoso, cabia lá todo o nosso quotidiano. Tinha uma mesa ampla a um canto. Cabia. E dava sobre o mar. A viúva exigiu-nos não sei que compensação supranumerária, um mês a mais talvez. Nós pedimos que não dissesse nada ao rapaz e ela perguntou porquê? e nós não dissemos nada porque também não sabíamos. Porque é um rapaz muito sensível, disseste por fim, e isso pode perturbá-lo. Que ideia, disse ela. Como a senhora entender, disse eu com o meu senso judicativo. E com efeito. O rapaz girava agora constantemente, passava por nós sem um gesto, tu é que paravas às vezes a olhar para trás, a segui-lo até ao fundo do corredor. E exactamente um dia em que saímos, se calhar não te lembras - mas não, não é possível. Mas eu lembro-me. Mónica. A memória é assim, instantes imóveis. Imagens fixas, são da eternidade que é sua. Súbitas iluminações. Porque a memória não tem movimento, minha querida, a imaginação é que sim. A casa de banho era ao fundo do corredor, quase em frente da cozinha, tu tinhas ido tomar banho. Mas demoraste-te tanto. Queria também eu arranjar-me, era domingo, e então pensei - bater-te à porta e perguntar ainda demoras? Mas quando saía do quarto. Fiquei interdito, à espera que uma ideia me coordenasse o pensar, tu saías justamente do quarto de banho - não. Vinhas já no meio do corredor e do lado de cá do corredor estava o Bem. E nesse exacto instante o teu roupão abriu-se e eu vi, eu vi. O teu corpo nu inteiro, de alto a baixo nu. E assim deste alguns passos. Depois devagar, apertaste as bandas devagar. Ataste o cinto desprendido e eu fechei bruscamente a nossa porta para podermos ambos saber que não sabíamos. Não ouvi o Bem rolar a cadeira. Deve ter ficado petrificado do teu esplendor como nas mitologias. E tu deves ter ficado como nunca orgulhosa da melhor dádiva de ti. E a tua piedade seria ardente como um ferro de maldição.
E agora, querida, vou descansar um pouco. Tenho muita coisa para te dizer, mas agora apeteceu-me não ter. Estendo-me na cama, não sei se já te falei do quarto. É uma forma de estares aqui comigo mais perto, e mesmo esta carta é um pequeno truque para estares. Porque de tudo o que passou e me doeu, de tudo o que me aconteceu e foi bom que acontecesse e foi triste e trazia dentro a alegria ou o desastre como numa prenda de festa ou encomenda armadilhada e terrorista, de tudo isso que me passa na memória em decomposição vadia, o que vem sempre ao de cima e fica em saldo do lembrar és tu, a tua imagem perfeita de quando eras perfeita e a vida não tinha ainda começado a trilhar o teu corpo e a tua palavra era fresca como uma maçã e a tua mente era livre como uma varanda. Isto saiu-me assim comprido mas podes parar agora um pouco para descansares. Uma varanda. Aqui no lar há dois géneros de comunidades, depois te digo. Há a dos velhos em saldo, tontos paralíticos gagas já facturados para o eterno, e a dos tipos ainda funcionais mas que não têm família onde funcionem e vêm aqui comer e dormir. São tipos curiosos, hei-de-te dizer. Afora os que sobreviveram até ao limite improvável de serem gente e -de que já te falei. Por mim não tenho uma secção definida e deixam-me ir às vezes até à dos mais vivos, mas fundamentalmente pertenço à dos atrapalhados motores, mesmo o quarto fica mais perto. À hora das refeições, que é quando se comunica em humanidade, distribuímo-nos por três salas, a dos mais parecidos com gente fica lá para o fundo do corredor, longe da conspurcação e dos estragos do apetite. Depois digo, hoje quero repousar. Já te falei do Cristo que dependurei da parede e do fresco de Pompeia e do desenho do Dúrer. Há dias o capelão. Mas não te falei dele ainda. Há dias esteve aqui, ele conhece o nosso filho Teodoro, depois explico. Esteve aqui e olhou as três imagens, eu associei-as em tríptico, o Cristo no meio, olhou as três figuras e começou a baforar considerações especulativas. Dei-lhe corda um dia, ele gosta de baforar. Diz-me ele
- Veja o doutor. O senhor não pensou nisso mas veja como a mão de Deus o guiou. A figura de uma mulher esplendorosa
- É uma deusa - disse-lhe eu. - Uma deusa pagã.
- Mais razão tenho ainda. Uma deusa pagã, o esqueleto de toda a vaidade e ilusão, e Cristo ao meio a redimir tudo isso e a dar-lhe um sentido.
Chateou-me a pregação e eu disse que podia ser outra coisa. Que coisa, doutor? Pode ser o deus cristão, a deusa pagã e no fim o esqueleto dos dois. Mas ele não gostou e disse só - que tolice. Depois dissertou sobre a velhice e o injusto descrédito ou desprezo a que é votada, falou-me mesmo de um livro ou tratado de Cícero sobre ela em que se realça a sua grandeza e dignidade com exemplos históricos, citou-me mesmo algumas frases em latim para confirmar, propôs-me trazer o livro mas eu disse-lhe não quero, tudo isso é uma aldrabice. Ele horrorizou-se e foi-se embora. Querida. Se tu viesses. Gostava tanto de te ver. Em qualquer idade da vida, que em todas estarias certa com a minha necessidade de te amar. Na idade jovem do teu cabelo à garçonm, na tua idade azougada em que eras mais enérgica do que a vida, mulher eléctrica, quando eu ficava estoirado só de te ver. Ou mais tarde, à hora desta deusa da Primavera que tenho aqui. Ou mesmo já no fim, quando te levava pela mão, já trôpega, atrapalhada com todas as peças de seres, e íamos almoçar ao restaurante em frente de casa. Se viesses. E todavia. Se viesses, talvez te não pudesse já dizer o que te digo, porque para as palavras difíceis uma presença é importuna. Aliás, quase não tenho aqui com quem falar. Converso o meu tanto, mas não falo. Cumpro o meu dever comunitário mas só quase ouço, hoje falei foi com o Cristo que tenho aqui. Tu lembras-te, estava na sala pendurado com guitas, tinha-o trazido da aldeia. Tantas coisas a dizer-lhe, não sabia como começar. E então eu disse-lhe
- Tinha muita coisa para te dizer e não sei como começar mas ele não gostou. Estava farto, decerto, da quantidade de gente que o tinha já chateado com conversa - a mania que vocês têm de me estarem sempre a interpelar. Quem é que te interpela? perguntei. Todos, um ror de gente. Devias estar contente com isso, disse-lhe eu, mas repara, quem tem sido mais massacrado é a tua santa Mãe. Talvez, não sei, mas agora a coisa é sobretudo comigo. Antigamente, no tempo dos grandes senhores, quando se não podia chegar pessoalmente até eles, sem dúvida, a minha pobre Mãe é que aguentava com o peditório. Mas agora todos querem ser senhores e eu que colabore. E então massacram-me a toda a hora ó Cristo isto, ó Cristo aquilo. Cristo dos pobrezinhos, Cristo progressista e revolucionário, com bombas na algibeira ou então metido na cadeia pelos Inquisidores. Constantemente. E dirigem-me imprecações e impropérios, responsabilizam-me por todas as sacanices do mundo e dizem-me ó Cristo, e querem que eu veja ali as malhoadas e perguntam-me para que é que eu apanhei com a cruz em cima se as coisas são o que se vê. Estou farto. Tu que queres? Nada. Quase nada. Apenas uma coisa que nem sei se chega a ser coisa. Tudo o que tinha de ser já foi tão aproveitado, que é que te quero dizer? Tão pouco. O reconhecimento de um homem por outro homem, não do lado triunfante mas da humilhação, não do da alegria mas do sofrimento, não do da saúde mas de um corpo apodrecido. Em todo o caso, espera um pouco, deixa-me pensar. Em todo o caso, é um pouco difícil de te dizer, mas não admiro muito o teu sofrimento. Ou não é bem isso. Comovo-me como é devido ao ver-te aí chagado e dependurado. Mas é preciso olhar-me aí, ver-me aí metido no teu corpo, sem pensar muito no que está antes e depois. Comovo-me talvez mais ao ouvir a tua palavra - foste tão doce e generoso no que te veio à fala. Mas ouve uma coisa. A gente tem ódio ao Judas que te traiu e ao Pilatos hipócrita e cobarde, e aos filhos da mãe que te esfacelaram. Mas imagina agora que o Judas tinha sido um tipo decente, que o Pilatos também, que os sacanas que te mataram tinham sido uns tipos porreiros. Estávamos todos tramados, não é assim? Toda a tua missão ficava por cumprir. Vieste para morrer pela humanidade tua irmã, e se não morrias? Se tinha falhado o teu projecto de haver bandidos para ele se cumprir? Voltavas ao seio do Pai sem morreres no teu corpo divino e como é que te ias arranjar? Que desculpas ias inventar? Fiz o que podia, irias talvez dizer, preguei o bem e a fraternidade das gentes e a pregação deu efeito e por mais que eu tentasse ninguém me tocou. Toda a humanidade que se segue vai ficar fula comigo por não ter morrido por ela. Mas foi assim. Ficarias tolhido diante do teu Pai, que é que ele iria dizer-te? Em todo o caso tiveste sorte, o teu plano não falhou e morreste como devias. E tiveste depois a glória de subires ao céu com as marcas do sofrimento nesse teu corpo terrestre. E é só aí que me interessas. Na lástima desse teu corpo. Na amargura da solidão. Como te devias sentir só. É só aí que te entendo para me entender a mim. Só na dor absoluta de um homem sem divindade nenhuma. Já a tua pobre Mãe me comove muito mais. Imagino-a alheia a essa coisa de teres um destino a cumprir com os energúmenos a dar-te uma ajuda. No fundo devias-lhes estar grato pelo seu espírito cooperativo. Mas a tua pobre Mãe estava fora de todas essas combinações. Eras seu filho e a morte de um filho tem amargura que chegue para cobrir o mundo. Coitada dela, queria lá saber do teu destino divino. Sabia é que tinhas a divindade de seres seu filho, como não é novidade nenhuma para qualquer mãe, e que estavas ali sujeito aos escarros da humilhação e da morte. O sofrimento dela entendo-o melhor que o teu. Mesmo o do teu pai terrestre. E a propósito, que foi feito dele? A gente soube dele quando nasceste, depois perdemo-lo de vista. Nunca mais ninguém o viu. Onde estava quando te mataram? Acaso um pai não tem direito a sofrer? Gostava de saber se ele chorou. A lágrima, como sabes, nem sempre tem sido funcional. Teria então um homem direito a chorar? De todo o modo devia ter sofrido o seu bocado para fora do espectáculo, no silêncio e na noite do seu desespero. Os contadores da tua história esqueceram-no. Eu imagino-o num recanto perdido ou ali mesmo entre a multidão, olhando de frente o horror. Tê-lo-ás visto? Terá trocado um olhar contigo ou uma palavra à passagem? Coitado do teu pai José. Tenho por ele uma pena imensa para cobrir a que ninguém teve. Está só. Ninguém possivelmente teve para ele uma palavra, como tu não terás tido. Ninguém se lembrou mesmo dele toda a tua vida. Teria a tua missão só que ver com as mulheres? Sabemos de tua Mãe algumas vezes, dele nunca. Houve uma vez, espera, agora me lembro. Houve uma vez, foi nas bodas de Cana? Mas se foi, nem o chegámos a ver, creio que não foi. Porque ele foi realmente o teu pai, tu disseste-te filho do homem, era a tua origem e vocação, não sei se estás lembrado.
Mas esqueço eu agora tudo o que está antes e depois de estares aí dependurado. Olho-te. É certo que eras novo, quase jovem, e na juventude não há morte. É preciso esperar pela velhice e degradação para haver. E estar só. Queixaste-te do abandono do Pai, é outra coisa. Porque do abandono dos filhos ninguém se pode queixar e é o que eu faço. É dos hábitos de se ser humano e vem nos livros de quando se começou a ser homem. De todo o modo estás aí despedaçado e não faz mal que te reconheça meu irmão. O sofrimento que te deram foi de fora, o teu corpo estava inteiro quando a coisa aconteceu. Mas o meu vem de dentro, não sei se vês a diferença. Não me violentaram o corpo, foi ele que se desagregou. De todo o modo, acabou-se, meu irmão no sofrimento. Irmão diferente, mas irmão. Gostava em todo o caso de saber como te aguentarias se te visses a apodrecer. Não te queixarias então do Pai que te abandonou mas se calhar de todos os teus irmãos em humanidade. Ou talvez te queixasses só de ti, do teu corpo vil, porque só ele te tinha realmente abandonado. Pode-se ser corajoso com um corpo são porque ele então está do nosso lado, aguentando connosco todo o cuspo alheio, sem se passar para o lado do inimigo. Mas não quero diminuir-te o sofrimento, que sempre é de doer. Porque de todo o modo também apanhaste o teu cuspo. Não apenas dos que te cuspiram mas do teu próprio corpo em ruína. Deves ter olhado as tuas chagas e sentir-te ofendido na destruição do teu corpo, da sua inteireza, do conforto que devias ter em sentir-te todo em ti. Porque um corpo destruído é tão humilhante. Vêem-se-lhe os interiores como se nos despissem dele e lhe revelassem uma nudez por baixo da outra nudez. Deves ter tido vergonha de ti. Porque havia ossos e sangue e podridão por debaixo da tua carne polida. Deves ter sentido o teu espírito desamparado do teu corpo como uma casa arruinada. Deves ter estado mais só do que no falado abandono do teu Pai. E essa é a solidão maior, porque um corpo é a nossa última companhia. Mas no fim de contas, com insultos e tudo, tu estavas ainda no centro do teatro. A opressão dos outros era um modo de te dizerem que existias. Que é que te existe por fim num corpo em farrapos? Que é que te resta para pensares que estás em ti? E é só por isso que te lembro meu irmão. Não sei se isso te ofende, mas é assim. Meu irmão. Filho do homem, irmão no que humilha e dói. Na piedade que desce sobre nós. E na náusea de um corpo em vileza muito baixa. E num pouco da divindade que puder ser.
A tarde finda, o sol projecta-te a sombra na parede. Trouxe-te da aldeia sem cruz, para que querias tu a cruz? estás melhor assim. E vê tu que sem ela, vejo nos teus braços abertos um grande abraço. Podes abraçar-me que eu deixo. Mesmo com sangue ainda vivo. Podes. Não suja. Mas não penses que me vou comover, olha agora eu a comover-me. Se alguém deve comover-se és tu. Mas não te comovas. Há uma grande lei para além de nós, não sejas sensível. Cumpres o teu destino, aliás com benefício, eu cumpro o meu sem benefício nenhum. E as tuas contas e as minhas saldar-se-ão no infinito. Agora a tua sombra prolonga-se mais. É o manto da tua realeza. De sombra, pois, mas um manto. Estás à frente dele como numa apoteose. Eu estou só como talvez não imaginas. E a sombra que tenho está toda dentro de mim.
E foi esta a conversa que tive com o Cristo, minha Mónica.
E então disseste-me em alvoroço
- Vem ouvir!
E eu fui. Está aqui este louco a pregar, disseste ainda. Era uma voz rouca, inchada para baixo até às cavernas da profecia. "Porque vós estais todos enlameados na rotina animal e não quereis saber senão da gamela a horas, da canga a horas, do trabalho servil, e nem sequer sabeis que existis
- Que estação é esta? - perguntei. E tu disseste
- Não sei. Estava à procura da emissora e apareceu-me este pregador.
Todo o país está podre de estagnação, vós moveis um pé no lodaçal e ficais estoirados do çsforço ao fim do dia. Mas nunca vos perguntais para quê, nunca vos perguntais o que isso quer dizer, nunca vos perguntais com que direito haveis de ser boi até ao fim da vida. Parai, ó estúpidos, suspendei um momento esse vosso trabalho animal e perguntai-vos se é essa a vossa vontade, se num instante da vossa tarefa cavalar é isso com que sonhais para vosso prazer. Porque é que não fazeis aquilo que quereis?
Porque é que não ergueis o vosso berro de revolta? Não falo apenas dos que suam que se fartam por um bocado de pão. Não falo apenas dos que amocham como bestas por uma tigela de caldo. Falo de vós todos, os honrados pais de família, os honrados funcionários com um ordenado a tanto a hora da cronometragem, os honrados comerciantes de pele esverdeada dos dias sem sol, as dignas esposas zeladoras da sua castidade até que à noite o marido lhes suspenda o zelo, as donzelas com o desejo fechado a cadeado, os politiqueiros de opinião trancada e partidária, os polícias do zelo pistoleiro, os futebolistas a tanto o pontapé, os taxistas, jornalistas, médicos, advogados - toda a imensa manada trabalhadora que se abate sobre o país e lhe entala a movimentação. Mas falo mesmo dos tubarões do capital, banqueiros atolados em moedas que são as fezes, o excremento da ganância e da vileza, grossos empresários que quereis empresariar o mundo, o céu com a vossa fumarada, as almas com as vossas cadeias e os rios e os peixes deles com a vossa matéria excrementícia
- Ó João, o tipo tem mesmo piada com o vosso excremento empresarial. Porque em toda a vossa vida, quantas vezes vos perguntastes para quê? Quantas vezes vos perguntastes porque é que o meio milhão que vos falta importa assim aos muitos que já tendes? Quantas vezes reparastes que existíeis? E não ponhais esse sorriso imbecil de quem já viu tudo. Porque sois ignorantes e só vistes o que vos permitiram as testeiras com que a vida vos arreou. O país trabalha em ordem, vós o dizeis e os políticos vossos servos muares. O país trabalha em paz, vós mo dizeis desde a cabeça do poder até à última prostituta e limpa-retretes. Também as formigas trabalham porque a natureza as fez estúpidas para isso. Também a besta anda à nora e com os olhos vendados para não ver que anda e ter acaso uma hipótese negativa na sua capacidade de besta. Também o burro puxa à carroça e leva pancada se faz greve de zelo, porque não calcula que é ele o sujeito desse puxar. Assim não é possível chegar a uma formiga e dizer-lhe pára um pouco e pergunta-te que diabo ando eu aqui a fazer?
- O tipo é pela boa vida - disseste, a fazer? Não se pode chegar à nora e lembrar ao burro que pense. Mas vós não sois bestas senão quando vos distrairdes. Não vos venho dizer que atireis a carga ao ar. Não vos venho lembrar que vos estireis de barriga ao sol. O que eu vos digo é mais simples, ó ignaros. O que eu vos venho pregar é que vos pergunteis para quê. O que tenho a dizer-vos é uma coisa elementar como a água e o pão. O que tenho a dizer-vos é se já vos perguntastes porque é que estais vivos, que é que fazeis da vida, porque é que amo-chais à vontade de outrem, porque é que alombais com um destino que não é o vosso. Tudo no universo tem um destino que é seu, vós nem sequer sabeis qual é o vosso porque antes de perguntardes já vos albardaram com um outro. O sol serve para aquecer, o mar para a navegação e o abastecimento piscícola, a pedra para fazerdes muros ou jogardes à pedrada - vós para que é que sois? Não vos trago mais uma doutrina política que já há de mais a apodrecer como a fruta excessiva, nem qualquer outra forma de serdes em rebanho nem que seja a de uma filarmónica. O que vos trago é apenas uma pergunta - porquê ou para quê. O que vos trago é apenas o anúncio da vossa humanidade que está por baixo da albarda ou da canga. O que vos trago é a notícia extraordinária e esperada há milénios de que não sois formigas nem mulas nem gado bovino. E estai atentos porque em breve voltaremos a inquietar-vos."
E o homem calou-se e ficámos entalados entre a vontade de rir e um frio que a atravessava como súbita corrente de ar. Passaram-se dias para esquecer um pouco a mensagem mas não tanto que esquecesse de todo e no resto que ficou acrescentou mais mensagem e tu ouviste já sem rires e os filhos também. A Márcia, o André, sobretudo o Teodoro. Ou sobretudo o André, não sei. Ou sobretudo tu, com um estremecimento que ia, suponho, até a um ponto obscuro da tua memória ignorada. E uma onda leve como quando se acorda começou a mover o país. E era como se esfregasse os olhos para saber que estava acordado e a polícia devagar começou a perguntar onde é que? Era um posto clandestino de rádio, onde é que? Enquanto o país começava a estremecer um pouco. Primeiro levemente numa ou outra consciência mais inquieta à espera de que alguém lhe desse um destino à inquietação. Depois mais visivelmente num ou noutro mais vocacionado para mostrar por fora a inquietação que lhe ia dentro. Porque uma ideia é assim, Mónica, mexe na zona das ideias para quem nasceu para as ter, e mexe nas partes exteriores para quem o pensar quase pensa primeiro nas mãos que na cabeça.
E entretanto o agitador ia insistindo na agitação e tinha já um nome para quem a agitava e que era Salus. Os padres irritaram-se nos púlpitos porque sabiam latim e sabiam que "salus" queria dizer salvação e só Deus era a salvação e a vida. Agora o Salus insistia na parte mais interior da sua pregação e que era a movimentação das consciências. E dizia que - ó homens degradados em animais. Porque o animal está pegado às coisas no hábito de não ter altura para saber que a gamela em que come e a estrumeira em que chafurda não é ele feito estrumeira e gamela mas está a uma certa distância da alfarroba e do estrume. O que eu tenho a dizer-vos é muito pouco mas é grande como o universo. O que eu tenho a dizer-vos é que deveis ser vós, deveis ter a independência de ser vós e não um outro a quem passais procuração sem a passar. Deveis tomar conta do vosso destino e da vossa importância porque vós, eu vo-lo digo, vós sois muitíssimo importantes e ninguém pode pôr-vos para o lado para ser em vez de vós e extrair já de vós o mau cheiro para cheirardes já à putrefacção de quando fordes podres. Não vos aconselho mais nada, só vos digo que sejais vós e que se vos apetece ser lordes sede lordes e se vos apetece ser mulas sede mulas, mas com uma consciência de homens e não de muares - em todo o caso lorde ou mula, não. Sede felizes. Fala o Salus.
Mas agora a agitação era mais visível. Havia de vez em quando cortejos cívicos, havia delegados do mensageiro que aqui e além, nas praças e jardins, erguia a sua tripeça, que era um caixote de sabão, e espalhava lá de cima a boa nova ou a metia logo pela consciência abaixo quando apanhava um ouvinte de boca aberta de atenção. E havia agitação nos centros de actividade económica, nas fábricas, repartições públicas e lojas de comércio. Tu rias-te imenso, depois deixaste de rir e um dia chegaste a casa perturbada na estabilidade doméstica porque havia greve dos padeiros.
E mesmo vários crimes de criminosos que não sabiam que o eram e descobriram com surpresa que sim. A polícia activava a sua missão de policiar mas houve uma altura em que se lembrou de que por debaixo da farda também havia um homem que pensava e começou a pensar e desactivou um pouco a missão, e o poder constituído não gostou. E a certa altura deixou de se ouvir a palavra do agitador mas a agitação continuava por si. E eu disse-te é como se houvesse uma bomba em cada consciência e faltava apenas lume no rastilho. E lembrei-me de que filosofei um pouco a propósito. A gente não faz ideia de quanta bomba traz na consciência e morre sem saber que trazia por não ter havido ocasião de saber. A certa altura a voz calou-se mas tudo continuava por si, havia uma força posta em movimento e agora não era preciso mais pressão. A polícia foi reactivada e voltou a policiar com convicção. E então a voz voltou também a responder ao desafio e foi voz a sério outra vez. Admitiu-se mesmo agora que era uma voz sem corpo para ser só o seu espírito, porque variava com frequência de paradeiro para ter uma essência divina que não é localizável. Mas dizia sempre no fim que era o Salus, que quer dizer salvação, e de uma vez disse mesmo eu sou a salvação e a vida, que é coisa de beatério. E eu disse-te isto é coisa de padres ou de alguma seita religiosa. Porque havia uma grande falta de religião e muita gente estava farta de trazer a vida às costas e poucos têm lombos para aguentar. Até que um dia, ou seja uma noite, porque de noite é que tudo tem muita importância por não haver a luz a pôr limites e é por isso a melhor altura para se pensar e imaginar e fornicar e morrer, até que uma noite tudo acabou. Por um acaso ou denúncia, que também é acaso, mesmo muitas vezes para o denunciante, que não fazia ideia de ter jeito para denunciar, por um qualquer acaso apanharam um tipo na pregação. Chamava-se Salustiano e pensaram este é que é o cabecilha, como qualquer tipo pensaria, mesmo sem ser da polícia, que é naturalmente um especialista nisto de pensar que era o cabecilha e de o prender. E trancaram-no na penitenciária. E calhou-me a mim julgá-lo. Tu lembras-te, claro.
Querida, ó querida - e esta? Então não ia eu resvalar em quebreira de sentimento? tu dizias linfatismo. Tu dizias que o linfatismo tem que ver com quem é linfático, mas eu era sou forte. Quadrado musculado, eu era até um jogador de futebol com cento e vinte minutos nas pernas. Nas duas. Tu dizias - quem é forte não tem ideias tuberculosas. E com efeito. As ideias nascem do pescoço para cima mas são engendradas do pescoço para baixo. E todavia. Mónica. Tenho tanta coisa para te dizer lembrar. Vêm-me às revoadas, são coisas sem importância na passividade do divagar. Porque a importância mede-se-nos na crispação dos nervos, tenho os nervos abandonados à lassidão de estar. Estou bem. Devo mesmo dizer-te que sou feliz. A felicidade não está no que acontece mas no que acontece em nós desse acontecer. A felicidade tem que ver com o que nos falta ou não na vida que nos calhou. Devo dizer-te que me não falta nada, quase nada. Na realidade não me lembro de mo ter perguntado. Na realidade só o pergunta quem começa a ser infeliz ou julga que isso tem alguma significação. E só julga que a tem quem se não respeita a si, e chega de filosofia. Mas o linfatismo. Ouve. Um dia eu disse-te um corpo. Um corpo forte. Tudo o mais vem daí. A força. A segurança. E tu disseste que nem sempre. Mas era o teu feitio - dizeres o contrário do que eu dissesse. Está a chover e eu digo - vamos ter chuva. Muito sabes tu, dizias, amanhã pode estar sol. Está sol e eu digo vem aí o bom tempo. Ora, está aqui está a chover outra vez. Para te ter de acordo comigo às vezes dizia o contrário do que pensava e tu dizias o contrário do que eu dizia e concordavas comigo sem o saberes. E ficavas irritada quando te dizia o meu truque. Mas agora eu falava a sério. E quando eu te disse que um corpo forte decide da nossa segurança tu disseste não é isso
- Não é isso, é diferente. Minha mãe era enfermiça e tinha uma energia militar. Meu pai era militar e não tinha, o que vem a dar no contrário do que dizias sobre o linfatismo. Mas não aprofundo a coisa para me não pôr também a dizer o contrário do que disse.
Vêm-me as imagens em turbilhão, não o disse já? Vêm. Mas há sempre uma que vem sobre as outras e és tu. Vivacíssima energética rapidíssima, sobre outras imagens - tantas. Mas há uma que. Não, não é essa de quando eu lavava o teu corpo disforme com uma piedade difícil, horror horror. Eu punha-te na banheira, tu dobrada de humildade. Não quis jamais que as mãos mercenárias da Camila te lavassem - mas não é essa. Foi quando, eu levava-te pela mão a almoçar ao domingo na cervejaria em frente, era só atravessar a rua, já os filhos tinham debandado, estávamos só nós. Mas nesse domingo - espera. Os filhos apareciam por vezes para almoçar connosco, mas eu, digamos, não gostava muito. Não gostava de publicar-lhes a tua necessidade, sobretudo à Márcia - porque é que a não internas? perguntava-me mas eu não queria. Não queria porque - não é fácil explicar. Amava-te, e é tudo. Tinha de cortar a nossa vida ao meio, amava-te talvez por linfatismo, que era a tua forma de dizeres a minha fraqueza, mesmo por piedade de mim por ti. De todo o modo preferia a agressividade da Márcia à benignidade do Teodoro - já era então padre? que era uma forma técnica da sua religiosidade. Quanto ao André já há muito tinha largado para a sua aventura.
Mas um dia disse-te vamos almoçar à Saisa, que era um restaurante sobre o rio. E havia uns degraus mais difíceis a descer do que a subir, como todos os degraus. Tenho uma memória longa a cumprir, querida, eu levava-te pela mão e tu a arrastares os pés. Lavava-te, preparava-te - hoje vamos almoçar fora. E tu rias-te um pouco para mim mas o teu olhar era descentrado. Fitava-me mas era como se resvalasse por mim como o de um cego, eu percebia que vinha do teu enigma, depois levava-te pela mão. Curvavas-te um pouco, os pés um atrás do outro a arrastar. Oscilava em ti o teu centro de equilíbrio, tu procuravas encontrá-lo e encostar-te a ele, eu segurava-te pela mão a vigiar-te com cuidado o andar arrastado vagaroso. Uma vez num semáforo um filho da puta arrancou logo quando teve a luz verde, tu assustada imóvel, mas era um susto para dentro, o olhar directo ao chão, à espera, eu apertei-te contra mim. Foi um momento terrível. Tu ias um pouco à frente e eu tive um susto enorme e para fora, fui apanhar-te à morte. Morte de ti, dos teus "devaneios inconsequentes" e de uma certa palavra que me disseste mais tarde e eu ouço agora lá, e da tua sujidade, querida, de que eu te lavava na banheira todos os dias, e da palavra que volta a lembrar-me, tinha-te eu justamente acabado de lavar. Foi uma palavra - ficou-me a doer tanto, quantas vezes a ouço ainda. Disseste-ma em voz muito baixa e os olhos ainda em fulgor muito abertos a olharem a um lado e outro à procura ou no receio de alguma testemunha ou mesmo de mim que estava ali perto
- Sabes uma coisa, João? Nunca te gramei.
Havia tudo isso na tua morte possível. E o que me lembra agora para depois e ainda não sei o que é. O fantasma de ti própria para me fazeres companhia, que era já muita para a solidão a vir. Ou apenas a minha piedade com a importância de me sentir piedoso. Ou simplesmente porque te amava - e não sei porque te ris, que é que há que rir no dizer-te que te amava? Amava-te, e é só. Não do amor de agora, que é um pouco maior e te hei-de ensinar mais para diante, com aplicação.
E de súbito, ó Mónica. Vais dar daqui a pouco aquele trambolhão no fundo dos degraus. Não dês ainda. Deixa-me ver-te antes e antes - ou não foi aí que te espalhaste? deste-me tanto trabalho. Havia um outro restaurante à beira-rio, mais adiante, um motel, gostavas tanto de lá ir quando eras ainda em esplendor. Havia uma longa esplanada de mesas e cadeiras pintadas de branco e o rio azul em frente e uma luz no ar que nos tornava mais leves e uma alegria em tudo por efeito de contaminação. Descemos a rampa suave, eu segurava-te por trás. Depois era plano e eu dava-te a mão. Tu avançavas um pé, depois vinhas atrás buscar o outro e levava-lo de rastos. As pessoas olhavam-nos, olhavam-me sobretudo a mim com piedade de eu ter de ser piedoso por ti, acumulando assim a piedade pelos dois. Descobri um bom lugar, pousei-te aí. Então sentei-me um pouco também, olhei em volta e todo o espaço era meu. Do lado de cima da esplanada corria uma fila de pequenos apartamentos para fíns-de-semana ou mesmo para o verão. Lembro-me de que uma vez. Mas já não sei bem. Lembro-me de que uma vez passámos aí dois dias ou tu quiseste e eu não quis, já não sei. E à frente o rio, algum barco lento que passava. Mas sobretudo a luz. Era uma luz a todo o espaço, envolvia-nos dessa alegria sem razão que é a mais plausível e nos arrasta consigo na ronda da sua festa. Detive-me ainda um pouco a olhar o azul das águas com que nos sentimos imortais, olhei uns pescadores imóveis no alto de uma rocha à espera do impossível e depois olhei em volta a ver se alguém nos vinha servir. Não vi ninguém e então eu disse-te
- Ficas agora aqui quietinha que eu vou ver o que se passa.
Ergui-me, serpenteei pelas mesas brancas, mas a meio do caminho tive um rebate e olhei rápido atrás. E tu já te tinhas levantado e caminhavas a arrastar-te para o paredão. E eu corri logo para ti, sentei-te outra vez, tu alheia a tudo, a face dura de sisudez. Querida, eu disse-te, tu ficas aqui muito quietinha enquanto eu - mas passou um criado e eu expliquei e trouxe-nos o almoço. E eu vigiava-te as manobras atarantadas e às vezes sujavas-te e eu tinha de te dar o comer à mão e a festa solar não era bastante para nós os dois. Havia um contraste muito forte entre a tua imagem e o azul do rio bastante largo para parecer um mar. Digamos que não era bem o teu corpo que me afligia mas sim tu que estavas nele e eu não conhecia. Veio um cego de acordeão cheio de sol e houve música também entremeada à luz. Um criado expulsou-o mas ficou ainda a música no ar, e toda a gente, pareceu-me, ficou contente com a música que não ouviu mas se espalhou na esplanada, agora sem a cegueira triste do homem que a fez existir. E eu sorri dentro de mim enquanto te dava outra vez de comer, porque tu paraste depois de algumas garfadas e ficaste a olhar o invisível. As pessoas não olhavam ou olhavam directamente às vezes com intensidade desinibida e seguiam o movimento do meu braço até à tua boca e sorriam de ternura. Às vezes parecia-me que toda a gente da esplanada ficava suspensa da minha solicitude e que se fazia um silêncio de expectativa e havia só o esplendor solar e a aragem que vinha do rio. E é o que sobretudo me lembra ao lembrar - a claridade intensa que irradiava da brancura das mesas, das toalhas e a fina aragem fria que às vezes soprava do rio e erguia os guardanapos de papel. Porque do que acontece só se lembra o que não sabemos e alguém escolhe por nós para lembrar. Lembro a luz forte no ar e tu composta à mesa mas com um desarranjo no teu modo de estar e que já não eras tu. De vez em quando vinham tipos dos casinhotos alinhados ao lado da esplanada. Vinham de calção e toalha ao pescoço, iriam tomar banho talvez, não porque houvesse calor bastante mas só porque havia muito sol como quando há calor e tudo era como se o houvesse. Ou talvez porque queriam afirmar a sua força física por sobre os que a não tinham e não queriam desperdiçar uma oportunidade de marcarem a sua diferença. Ou porque realmente eram pessoas solares com um destino de juventude ao sol e não tinham agora verão para isso e aproveitavam para o ter. Querida. Apetecia-me ficar ainda aqui longo tempo contigo porque estou bem e não me apetece ir embora, apetecia-me antes ficar ainda a lembrar. Mas temos de ir. Temos de ir ao outro restaurante à beira-rio, para dares o teu trambolhão que tenho na memória e não voltarmos aqui nunca mais.
Foi na descida da escadaria, no último degrau, eu segurava-te pela mão. E puseste o pé em falso ou escorregaste e escapaste-me da mão e rolaste pela escadaria abaixo e ficaste de pernas e braços no ar como uma santola, meu Deus, a saia escorregou-te pelas pernas, horror, horror. E eu apanhei-te aflito magoaste-te? magoaste-te? pus-te de novo em pé, magoaste-te? e houve logo gente à volta para ter pena do que dói aos outros e tu extraordinariamente não tiveste um queixume. Mas coxeavas, eu vi. Amparei-te até ao lugar na mesa, era inverno, a sala tinha uma grande vidraça para o rio, nós sentámo-nos junto dela. Eu perguntava-te ainda se te doía alguma coisa, as pernas, as costas, algum braço, mas tu nada dizias e eu preparei-te o guardanapo à volta do pescoço. E preparei os remédios, que eram vários e de várias caixas, para o cérebro, anticongestionante, vasodilatador, vitaminas, estimulante do apetite, já não sei. E reparei então que estavas gorda. Estavas diferente e os meus sentimentos para contigo tinham de acompanhar. Tinham vindo a diferençar-se há muito, agora estavam mais outros. Porque um sentimento tem que ver com a pessoa que somos, não serve em todas as ocasiões do que vamos sendo. Ou ao contrário, não sei. Amor, amizade, agora era compaixão talvez, sei lá. Porque havia também uma irritação e desespero, a compaixão não pode durar sempre e acaba por irritar. A piedade é fácil quando se não abusa dela e quem dela precisa tem a sensatez de se recompor depressa. Tem-se piedade do doente que não abusa de um prazo razoável para o não ser, não de um doente sem prazo nenhum. Quantas vezes o observei aqui na casa de repouso, depois te conto. A piedade é um prazer de quem a tem mas só se a coisa se resolve depressa. Mas como ter piedade por um doente que se não despacha e abusa imenso tempo até se decidir a morrer? Piedade nesses casos, minha querida, só para piedosos profissionais como as freiras que a contabilizam para o saldo no eterno. Tinha piedade por ti mas às vezes estava tão cansado. E só dava conta de não estar de todo quando a Márcia me incitava a pôr-te a apodrecer num lar. Não pus. Tinha a Camila para ajudar e só depois da tua morte a Márcia fingiu desconfiar de tramóia e subsequentes descontos nos seus direitos hereditários. Imagina, a Camila. Mas estou farto do horror em ti, vou-te visitar no tempo da perfeição. Veio-me uma vontade imensa de te amar, não posso amar-te na miséria e no horrível. Um dia tentei-o, estarás lembrada? Foi um momento de inquietação insofrida, desordem estúpida do meu ser animal. E então. Deitada, abandonada já na tua confusão de tolinha. Apartei-te as pernas. Atabalhoado precipitado. Não estava em mim, havia como que o desespero dos que se suicidam e não têm depois possibilidade de saberem que,não estavam em si. Avancei, trabalhei vigorosamente para chegar ao alto, tu imóvel como um saco. Estava dentro do meu transtorno, não reparei. Esgotado enfim soergui-me, tu tinhas a cara de lado, os olhos fitos abertos apagados. Asco e horror de mim. Nunca mais. Levantei-me, compus-te, nunca mais. Como uma morta abandonada ao meu ultraje, o nojo. Voltei-te o rosto, os teus olhos parados e uma acusação neles que não tinhas e eu ouvia, olhos imóveis de maldição. Não quero ouvir mais, não ouço, vou lembrar-te quando tinhas a posse de ti, uma energia a transbordar. Mesmo parada, abandonada ao repouso, um dia disse-te - lembras-me um animal inquieto, uma potrazinha a escarvar o chão. Vou lembrar-te quando já era juiz lá no Norte.
Tinhas já o teu lugar de professora na capital e havia um sarau de ginástica. Primeiro as tuas alunas, depois tu e o teu grupo de exibição. Davas aulas no liceu, davas aulas num clube desportivo. Quando eu cheguei estava já o sarau em movimento. Era um ginásio não longe da nossa casa futura. Frequentavam-no sobretudo tipos já na decadência, sujeitos calvos e de ventre excessivo, matronas cheias de roscas, a mama caída. Era a hora de o fado ajustar contas com eles, eles não queriam. Era a hora do fôlego asmático, da enxúndia, do ouvido córneo, as junturas perras. Hora de começarem a sério a ser mortais, eles ficavam fulos com essa ofensa pessoal do destino. Faziam sauna, cem metros ao ar livre, saltos, flexões do tronco e das pernas, ouviam-se-lhes ranger as dobradiças. Às vezes via-os num campo ali perto, esfalfados do esforço, a praguejarem por dentro contra o destino, o destino até gostava das pragas e esfregava as mãos. Tu davas lições às senhoras na menopausa, um dia eu vi, não ensinavas apenas mas eras no teu corpo o exemplo da perfeição, do limite, para elas encaminharem para lá a banha e o reumatismo. E davam pulos curtos e suavam que se fartavam. Algumas convidavam-te para a sua casa para nessa aproximação de amizade partilharem de ti e subornarem o destino, que julgavam teu familiar, a ser mais compreensivo.
Mas nesse dia, quando cheguei do Norte, vim de roldão na pressa de te ver, quem estava em cena eras tu e o teu grupo. Deixa-me repousar para te ver melhor. Tive uma certa dificuldade em te identificar e eu não queria misturas, desperdiçar a atenção por quem não me dizia nada à necessidade que eu trazia. Depois vi-te - oh. Estavas linda fresca vitalizada. Volúvel aérea leve. E tão intensa. Penso em ti e o que me apetece é repetir contigo a festa do teu corpo. Repetir a alegria. A eternidade. Nos exercícios de grupo ele seguia-te a ti, punha de lado os outros. Usavas ainda o cabelo com uma franja na testa, maria-rapaz. E os teus movimentos flexíveis, vigorosos e delicados. A gente olhava-te, eu olhava-te e sentia-me com uma energia incrível e fácil. Havia uma música no espaço do ginásio a acompanhar os exercícios não decerto para vosso estímulo mas de quem assistia. Porque a certa altura, foi um bater de palmas cadenciado e eu senti que toda a gente se ia erguer no ar ao balanço do entusiasmo e da vossa levitação. Bati também as palmas mais forte, devias ouvi-las no tablado, eram minhas, devias. E no fim fui ter contigo. Respiravas ofegante, já um pouco mortal. Mas tinhas sempre um riso maior do que a vida. Fomos para o teu quarto e beijei-te e beijei-te com o excesso do imaginário que se interpusera alguns meses. Não te vou beijar outra vez. Nem revolver toda a tua maciez profunda - e tanto como me apetece. Não vou. Prefiro contar-te da minha solidão lá do Norte. Contar-te talvez as histórias que ainda lá havia da guerra civil ali perto. Sangue horror. Mas não agora. Talvez mais tarde, deve haver ocasião. Porque estou rodeado de morte e miséria e horrível. Deve haver.
O lar tem três divisões, não to disse já? Tem. Três divisões mais ou menos etárias. Há a dos velhos irremediáveis, a dos menos velhos mas já tocados no físico ou no psíquico, e a dos mais novos e ainda aptos à sociabilidade e que têm aqui o comer e o dormir. Eu pertenço à dos já em queda, que é a mais interessante. Mas às vezes vou comer à dos mais aptos, que fica lá para o fundo do corredor para não contaminarem os outros de ilusão. Mas D. Felicidade não gosta de misturas para haver ordem na vida. E um dia disse-me
- Meu caro senhor. Cada um no seu lugar.
- Para variar um pouco - disse-lhe eu humilde. - Para quebrar a monotonia.
Aliás, era um treino para a minha movimentação. E agora que estou mais ginasticado, se eu fosse até à rua tomar uma bica? Mas tive medo, não fui. Medo de mim, quero dizer, dos outros, da rua, de uma certa hostilidade que absurdamente imaginava viria deles sobre mim. Os de roda livre, que são os mais novos, parecem-se bastante com a gente lá de fora. Ficaram sozinhos ou foram-no sempre, mas perderam qualidades ou chatearam-se, vieram para aqui. Mas têm ainda a impregnação das gentes exteriores, do ar aberto, da agitação que fica nas pessoas quando regressam a casa. Mesmo a D. Felicidade não me aprovaria ou permitiria a leviandade ou o atrevimento de sair. Às vezes vou lá comer à secção dos mais vivos e dou conta da sua vitalidade. Um certo modo de falar desembaraçado, de rir tudo e não só até meio, de erguer a cabeça até a uma altura imperial, noto perfeitamente. E contam coisas que trazem nos bolsos cá para dentro, aventuras desporto mesmo política (política!). Querida, vê tu, política. Mesmo depois da agitação do Salus de que havemos de conversar melhor e de o povo ter recaído em modorra. Política. É a forma mais à mão de se ser História, Mónica, de ter a História a trabalhar por conta, de empernar talvez com ela e ir com ela para a cama, mesmo que depois nos corneie - e desculpa a metáfora (é metáfora?). É a forma mais visível de o destino parecermos nós e mesmo de não haver mais História depois de nós para historiar. Porque nós estamos no limite e o que se segue já não existe, que engraçado. E se existe é na forma de lhe darmos ordens para cumprir depois, meter o futuro aos varais do nosso mundo. Porque entretanto a História foi-lhes tramando a vida na própria vida que engendraram e o futuro vem a fazer-lhes em cima - desculpa, querida. Era a propósito dos internos a meia dose. São muitos. Têm uma grande sala barulhenta de vitalidade. Gostava de te falar deles, dos que são da minha mesa quando sou da deles, que aliás vai variando. Porque todos têm a sua e eu vou bolinando à procura de vaga. Todos têm a sua por-que o homem vai sendo eterno em cada sítio em que se senta. Eterno na infância, depois quando tem filhos, depois quando tem netos, depois quando está gagá. São mulatos do sentimento, nunca sei se hei-de falar para o lado preto ou branco. O Bento, por exemplo. Ou o Rosado. É gago, o Bento. O espírito avança-lhe sobre o corpo e a voz, e então tem de voltar atrás para os vir buscar. Ou o corpo é que avança e o espírito atrasa-se, não sei. Ou o espírito quer romper e o corpo não está de acordo. Ouço o Bento gago e penso neste jogo incompreensível. Há duas forças, tu que pensas? duas realidades metidas uma na outra, hei-de ver se entendo melhor. É gago mas gosta imenso de falar para não ser, suponho. Tinha uma agência funerária, a Agência Bento, em Santana, ao pé da escola médica e do hospital, que é logo abaixo. E quando foi da mexida do Salus, que pancadaria. Martim Moniz, Intendente e mesmo em Santana, ganhou dinheiro como milho. Mas era preciso pôr cobro aos desmandos gerais. Ele diz foi um ver se te avias, mas leva tempo a aviar-se sempre que conta, já não sei quantas vezes contou. Aliás, a história que conta também varia e é só uma vez de cada vez. Conta com dias de intervalo e assim é mais só uma. E eu fico com várias histórias para escolher para a verdade ser minha. Um dia contou-me da filha única. Era enfermeira em oncologia e o marido era médico oftalmologista. Chamava-se Rodrigo, talvez eu conhecesse. Não, Mónica, não era esse onde um dia levámos o Teo, por acaso tinha consultório na mesma colmeia de médicos na avenida da Liberdade, esse chamava-se Rodrigues. E tinham um filho também único. Uma noite chovia à brava, eles vinham pela marginal para a cidade. Então um camião enorme saiu da faixa de rodagem, era o marido que conduzia. E para não embater de frente, atrapalhou-se, caíram os três ao rio e olhe, fiquei sozinho, para que queria eu a agência? Passava por aqui, via este lar e olhe, para aqui estou. Mas dessa vez, é curioso, o Bento funerário quase nem gaguejou. E eu pensei não é verdade. A história não tinha muita força para emperrar nos atrasos, não é verdade. E com efeito. Tempos depois deu-se mesmo o choque e olhe, eu fui vê-los à morgue ali a S. José, nem quero pensar, os corpos quase irreconhecíveis, a minha filha, os meus dois netos, o meu genro ainda era o mais composto, quase nem uma beliscadura. Tempos depois o Bento só tinha filha, ela abriu o gás, deixou-o aberto por descuido, a minha filha nunca fazia uma coisa dessas. Ia-se casar, tinham já casa alugada, mas eu prefiro a segunda versão, mais gaga do que as outras, mas não é por isso. Os corpos despedaçados, nem quero ver. E o sangue coalhado com a vida que coalhou. E a surpresa inquietante de uma morte selvagem que despedaçara os corpos e os descompusera e lhes profanara o sagrado de uma vida que se cumpriu. Querida Mónica. Estou num quarto do hospital e o médico diz-me
- Temos de lhe amputar a perna, como sabe. É coisa simples. E há tragédias bem maiores.
Querida. Faz aquele exercício da roda para eu ver. Sim, é a perna esquerda. Aquele exercício como uma dança, eu tinha tanto orgulho na perna esquerda. Aquele exercício em que apoiavas subtilmente no estrado as pontas das mãos e dos pés e giravas num rodízio pelo ar. Quantos golos marquei com essa perna? Tenho ainda no pé a lembrança activa de quando os marcava com o pé cheio, a pancada total do peito do pé. Ou de um toque enviesado e potente lá do canto e a entrada da bola em curva no ângulo ao alto. Ou de uma penalidade máxima, era absolutamente necessário não falhar, eu, só, em face do guarda-redes, a bola na marca, mas não me decido a marcar, agora não. Eu era esquerdino só nos pés, é curioso. Talvez não fosse esquer-dino mas a extremo esquerdo era o meu lugar predilecto. Gostava do meu correr em vertigem, uma vertigem que não era bem do meu correr mas do meu sentir, do meu ser alado contra a estupidez da terra. Ou não bem isso, mas não quero pensar agora, quero só pensar em ti.
- Gostava de ver a minha perna depois.
- Mas é uma tolice. É uma coisa mórbida. Nem vai poder vê-la, ter a compreensão disso.
- Gostava.
- Não pense.
Meu corpo. Isto é na verdade o meu corpo. É uma palavra sagrada, Mónica. Um deus sagrou-mo e eu olho-o quase com ternura e terror. Mónica. Ouço o teu nome no concerto para oboé, trouxe-mo a Márcia numa cassete. Um corpo é sagrado, um assassino sabe-o muito bem. Como se sabe o que se sabe depois de se nos revelar. O teu giro no ar, quero vê-lo. A tua graça leve. E eu pensava - com um pouco mais de coragem vais romper pelos ares fora, desaparecer no teu infinito, eu pensava. Ah, o Rosado. Não, não era o Rodrigues Rosado, o solicitador, que morava também perto de nós e já morreu. Um sujeito redondo e róseo como o seu nome, o cabelo de um branco níveo vivíssimo e ralo. Morreu. Mas não é esse. É um João Rosado poeta e pederasta, filha. Mas já te conto, se vier ao caso. Vais romper pelos ares e desaparecer, eu pensava, porque só vale a pena na vida o que for contra a morte, contra a qual não temos verdade nenhuma. Mas o Teodoro não pensava assim, ele veio visitar-me na véspera da operação. O Teo. Lembrou-me agora como o chamávamos em miúdo para ser mais miúdo e podermos aconchegá-lo mais na palma da nossa mão. O Teo. Ele um dia, não foi? ele um dia disse que preferia que o chamássemos Teodoro para ser mais ele sem nós, suponho. Veio na véspera, querida, trazia um fato cinzento, gravata azul-escuro. E antes de ele começar a falar. Foi uma noite, deves estar lembrada. Chamou-me a mim e a ti à sala, fechou a porta à vontade de os irmãos quererem também entrar. Ou só de a irmã, por onde andava o André? E fechou a porta e tudo foi logo intensamente grave e oprimido contra nós. Porque o cerimonial também é a gravidade das coisas ou sobretudo, querida. Teo andava no penúltimo ano de Medicina e eu pensei vai-nos dizer que quer casar. Porque namorava a Cremilda que um dia nos levara lá a casa e era aluna de Letras. Bem feiota por sinal. Vai casar, pensei outra vez, para ser mais verdade a minha suspeita. Foi no último dia do julgamento do Salus, eu absolvi-o e há-de ser sujeito a outro julgamento, o procurador da república há-de requerer. Ou uns dias depois. Foi quando a Márcia se separou do primeiro marido, veio-nos dizer, ou do segundo? depois verei qual foi.. Portanto ela estava em nossa casa nesse dia - já não sei, mas admitamos que estava. Gostava que fosse também qualquer coisa com o André mas não sei onde ele pára, a ver se sei depois. E a Márcia então explicou-nos
- Nós tínhamos combinado dizer tudo um ao outro e ele não disse. Eu ia para a cama com este ou aquele mas dizia-lhe sempre! Sempre! E ele foi vezes sem conta com a lambisgóia de uma Isilda ou Isolda, uma putéfia magrizela que só tem umas peles de mamas caídas, toda a gente sabia e a mim nunca me disse nada!
e aqui chorou de raiva, a nossa filha, e eu tentei acalmá-la, que ele talvez ainda lhe dissesse ou se distraíra, ela chorava sempre em desespero e tu estavas com vontade de rir, vi muito bem. Teodoro então fechou a porta, estava pálido. Mas eu gostava que o André viesse também à nossa conversa. Ter os três neste instante na minha memória. Mas à conversa não, foi sempre tão calado. Querido André. Nunca quis ter razões, era espontâneo indiscutível, o seu ser ia só até ao ser de uma pedra. Gostava bem de pensar nele para estar aqui, não penso. Não chegava a santo, não tinha consciência para chegar, gostava de lembrá-lo um pouco. Queria dizer-te que nunca o amaste nem com o amor com que se começa outra vez com um filho mais novo. Batias-lhe, bateste-lhe uma vez, que era decerto as vezes todas em que lhe quiseste bater. Certo dia apareceu em casa com o cabelo rapado dos dois lados, só da testa à nuca, uma crista de cabelo como um galo. E finalmente um dia fugiu. Mandou um postal de África, estava em S. Tomé (S. Tomé?) numa roça de pretos, depois escreveu de mais longe. Gostava bem que estivesse aqui na minha lembrança mas o Teo tem pressa, quer-nos falar. Está pálido, tem uma coisa a dizer-nos no terrível da sua palidez. Fecha a porta contra as pessoas que lá não estão, mas está decerto a sua memória e essa mesma é de ficar fora.
Disse que há muito nos queria falar para entendermos que não podia mais e que havia um destino ali sentado entre nós. Lembro-me de que estavas a fazer malha e continuaste a fazê-la para o destino se ir embora ou tornar-se mais doméstico. Teo não gostou e disse-te Mãe! em voz alta e tu pousaste o trabalho de agulha. Depois houve um silêncio grande para nele ser grande o que Teo nos queria dizer. Tenho pensado muito nisto, disse. E eu pensei - querido Teo, podes casar-te quando quiseres, a gente ajuda-te, pensei para lhe dar coragem. Mas não o disse alto para não facilitar. Tenho pensado muito nisto, disse ele outra vez, para não julgarem que decidi no ar.
- E que é que decidiste? - perguntaste rápida com a tua ginástica.
- Decidi ir para padre.
Tu e eu olhámo-nos para não termos entendido bem, mas tínhamos. E para a hipótese de não termos ele repetiu. Para padre. Tu então riste-te muito, se isto é coisa que já se visse, e eu disse-te Mónica! e houve de novo um silêncio e eu aproveito agora para pensar, querido Teo.
- Tu por que queres ir para padre? - disseste ainda. Não perguntes. Está um dia de calor, mas é primavera,
não perguntes. De qualquer modo vou acabar o curso de Medicina. Não precisas de dizer, disse-lhe eu. A Cremilda chorou, mas compreendeu perfeitamente. Porque te explicas? Meu Teo. Estás um belo jovem, gosto imenso de te ver. Não há morte, não há morte, gosto de te olhar. A tua mãe choraminga, é uma tolice. Mas tu sabes, o choro é para se criar a tristeza, não para a aliviar, como se diz, a gente chora e começa logo a ficar triste pelo efeito de Pavlov, suponho, e é por isso que havia as carpideiras, para induzirem os outros ao choro. Está um dia lindo de primavera, vejo-o agora através da janela de lá, no nosso segundo andar. Vejo-o lá e transporto-o agora para uma alegria clara e livre como uma face jovem, ó sol novo dos começos do mundo. É primavera e não me apetece sair dela, é a terra natal de todos os sonhos da vida, mesmo que lá não tenha nascido nenhum. Porque os grandes sonhos não são deles mas do tempo em que devem ser. Os grandes sonhos só nascem depois de terem morrido. Primavera da luz, do fulgor de se ser, incorruptível eterno. Primavera triunfal, da fúria da vida, da beleza uterina, de um corpo ao vento como a glória, demora-te ainda um pouco, um pouco ainda. Mas está aqui o Teo à espera de que o deixe falar, primavera, vai-te embora.
E imediatamente começou. Usava agora o cabelo erguido em oratória, os óculos súbitos de cintilação. Mas não falava alto nem em flecha. O nosso Teo. Falava devagar, tenso, com silêncios a apertar. E ao longo do que dizia, certos tiques como refrão. Quantas vezes vos perguntastes para quê? Quantas vezes reparastes que existíeis? Que diabo ando eu aqui a fazer? Eu ficava com a memória destas frases e elas tinham assim mais gravidade do que tinham.
- E então um dia pensei: posso ser útil, posso ajudar os outros - disse ele.
- Também podias como médico - disse eu.
- Posso mais assim e tenho uma finalidade mais alta. Mas o curso vou acabá-lo.
Depois falou em parábolas. Não para entendermos melhor mas para ser maior o que dizia. Toda a árvore tem ramos secos, toda a vida tem sobejos dela, ele queria resistir na árvore e colaborar nela. Tudo tem um desperdício, eu não queria estar do lado do desperdício. Meu Teo. Estavas um pouco pálido, querias era impor à vida a tua razão, obrigá-la a não ser estúpida. Estás um pouco pálido, ouço-te. Diz, diz. Fala de - Mónica, não interrompas. Fala de, meu querido Teo. É o teu filho preferido, tu dizias-me às vezes, eu negava sempre - e se fosse? Gostava de que o tivéssemos concebido naquela noite do rio, lembras-te? quando te baptizei. Eu disse-te e tu riste, vamos chamar-lhe Moisés, e um anjo levou-nos pela mão. Sentíamos na cara o bafo de Deus que não estava lá. Mas não nasceu nenhum filho de então porque nós ocupávamos todo o espaço em que ele pudesse nascer. Agora estamos em silêncio porque todo o espaço é dele. A agitação do Salus acabou, mas no dia seguinte e de vez em quando. Eram frases desligadas, óuvíamo-las nas emissões, frases breves desconexas, diz-se que no cinema, não sei se já ouviste dizer. Chamam-lhes "intercalados", suponho, imagens instantâneas durante a projecção de um filme. Imagens publicitárias. Por exemplo, a de um homem a beber cerveja. As pessoas nem reparavam na imagem do homem a beber cerveja, mas nos intervalos da sessão havia muita gente a pedir cerveja. E então proibiram os intercalados por atentarem contra a liberdade, creio. Teo repetia - quantas vezes vos perguntastes para quê? E nós ouvíamos. Falava da vida. Falava do tempo, da vertigem. Falava do amor. Mas tudo na sua voz era longe e chegava dela até nós só o mistério. Da programação da aliança. Do difícil de haver morte. Do difícil de haver esperança e da necessidade de a haver, mesmo que não. Da programação da alegria. Da fraternidade do sangue, mesmo se o ódio não quer. Do convénio de paz com o corpo. Da invenção da palavra quando só falta a palavra para o real existir. Da mão para um cego ocasional atravessar a vida. Da existência um pouco supérflua de Deus, porque já existiu em tudo atrás. E da necessidade de ele próprio, Teo, também existir no modo único de se reconhecer em tudo o que ajudava a existir. É talvez orgulho, ele disse. É mas é um disparate, tu disseste. É talvez orgulho, repetiu. Mas de repente lembro-me de que te não falei de outro comensal da secção A. Sou portanto eu, é o Rosado panasca, que é poeta, o outro a quem morreram as duas ou três filhas ou a mesma filha de três maneiras, e o outro. Já aqui voltamos para estarmos com o Teo. E hás-de assistir quando ele me for ver ao hospital na véspera de me cortarem a perna. E hei-de-te mostrar a perna, que é a esquerda. E estou ainda diante do guarda-redes para a grande penalidade. Não tenho pressa. E estou com medo pânico de falhar, porque o resultado vai depender de mim. Mas já te falarei de tudo isso, agora quero falar-te do...
Chama-se Firmino. Tem aí uns cinquenta anos, que é a idade de se ser definitivo. E é viúvo. Muito ilustrado. Pelo menos para a minha medida, que é a que tenho. Não fala muito. Nem pára sempre na minha mesa. Vai parando aqui e além, creio que para distribuir a ilustração. É um tipo alto e magro, não costumo reparar no físico das pessoas senão depois quando me lembro, mas reparei. Alto magro. Um cabelo ralo e fino, a face óssea como um silogismo. O Firmino. Vou aproveitar, está aqui agora na mesa, vou reparar para te contar. Tem um modo rígido de estar sentado e a gente pensa que o espírito também tem a mesma rigidez. Tem opiniões muito seguras, ele diz inabaláveis. E um dia aproveitei - que é que ele pensava do caso do Salus? ninguém sabe que estive metido nisso. O pai da filha morta nem deu conta, o poeta deu, disse coisas horríveis contra, mas já não sei contra quê. De resto ele disse-me
- Sou sempre contra
e depois é que vai ver contra quê. Firmino queria as provas - quem tinha as provas? Como poder decidir sem ter as provas todas? O Salus, chamemos-lhe assim porque não existia, era como o Manuelinho de Évora que era um louco lá da cidade com que se assinavam manifestos contra os espanhóis, alguém lembrou. Quer dizer, o Salus existia talvez, mas não existia. O Salus queria a revolução? Havia luta armada? Qual a sua finalidade? Provou-se o encontro dos revolucionários? Quem eram? Está provado que seria um desastre para o país? Está provado que seria uma torneira aberta para toda a criminalidade? Está provado que seria um estímulo para os grandes homens que não ousavam? Está provado que o tal artigo da Constituição abrange a acção radiofónica? Quem estava na origem de tudo isto? Etc. Por outro lado, como pode o governo tolerar a instabilidade? Provou-se que de início soube logo e depois é que agiu? Que razões tinha para impedir uma melhoria social? Que razões tinha para saber que não era uma melhoria social? Provou-se que não tinha gente implicada? Etc.
- De modo que por enquanto não tenho opinião. Fitou-nos um por um em longo silêncio à espera de algum reagir e eu aproveito para ir ter contigo outra vez e com o Teo. Querida Mónica, tu não foste muito razoável com ele. Ou vou ter com o Teo e comigo ao hospital. Mas não foste nada compreensiva. Na realidade, tu não gostaste nunca muito dele, oh, não protestes. Na realidade gostaste alguma vez de alguém?
- Gostei de todos vais dizer-me. Mas não foi bem assim. Quem gostou deles todos não eras tu mas a tua maternidade. Mas gostei eu de ti. Tanto. Quando? Mas já to disse, antes de tudo acontecer. Há dispersos os instantes aqui e além. Mas há depois o que sobra deles, o que sobe deles. De repente lembrou-me a primeira vez que. Foi nas escadas de Minerva. Umas escadas duplas em ziguezague. E os muros que as marginavam embrechados uns nos outros como num baralho de cartas. E havia lá um ponto invisível aos voyeurs à hora do almoço quando ninguém passava. Eram uns tipos congestionados de imaginação, conheciam os sítios das manobras amorosas no Jardim Botânico, no Parque de Santa Cruz. E iam lá excitar-se de avidez insofrida com as manobras clandestinas dos namorados. E transmitiam a notícia à imaginação dos outros. E quando viam as raparigas já apanhadas comprometidas na clandestinidade, tinham já delas uma posse que não tinham. As escadas de Minerva. A revelação primeira, creio, da tua brancura íntima. E o amor desajeitado irrito nulo. Rangido rápido. A iniciação na tua alvura cálida. Doce. E a notícia correu. E eu fiquei fulo - como é que? E um dia descia as escadas de novo e no sítio preciso olhei em volta, só se fosse de um ângulo difícil de uma janela da Biblioteca - que sacana nos teria visto daí? São momentos assim, instantes súbitos assim, um dia nas escadas da tua casa. E depois finalmente no rio. E aí a revelação do transcendente de ti. Mas de tudo isso o que me lembra não é de lugar algum. Ou é desses lugares para ser depois o irreal da tua beleza para nunca mais. Mesmo por sobre a tua degradação. O Teo disse-nos
- Quero ser útil na vida.
- Sim - disse eu.
- Dar-lhe um sentido por inteiro.
- Mas já o tens como médico - disseste tu muito à pressa, ou eu. - Que é que queres mais?
E ele então explicou. Estávamos os três sentados à mesa, discutíamos o destino. Organizávamos uma conjura, não sabíamos contra quê. Estávamos intensamente uns ao pé dos outros. E isso transcendia-nos para o difícil e insondável. Teo, dizias - que é que dizias? E estranhamente ele não era já nosso filho. Qualquer coisa tomara posse dele e arrebatara-o, não era. A voz possante mas lenta suave, ouvíamos nela um sinal estranho de augúrio e de potestade. Uns óculos duros de precisão e domínio. Havia nele uma determinação opressiva vinda do sangue como todas as determinações. Mas só agora dava conta. A ocasião faz o ladrão, pois. Faz tudo. Porque não se escolhe o nosso ser, querida, mas é raro sabermos qual é. Grandes santos sábios heróis, Mónica. Levaram a vida inteira sem saber que o eram, porque não tiveram oportunidade de o saber. E agora só o cemitério o sabe. Porque a grandeza ou a miséria de um homem está fechada à chave mas ninguém sabe quem tem a chave. Teo falava do tempo e da morte. E da dificuldade de achar o nosso sítio na plateia do teatro, sem um arrumador que no-lo indique. E do pacto que estabelecemos com o universo na eternidade e da obrigação de o cumprirmos para não sermos vigaristas. E da multidão de cegos com as suas bengalas brancas à espera de que alguém lhes dê a mão para atravessarem a rua - mas eu aqui deixo-te sozinha com o Teo para continuares a conversa, porque vou ter de novo com o Firmino, temos várias questões a discutir. E neste momento reparo - querida Mónica. Vejo-te de súbito na minha memória ardente, espera. Já não usavas a franja na testa, desde quando a não usas? provavelmente desde que eu agora não quero. Agora tens o cabelo armado aos lados da cabeça, um risco ao meio - desde quando é que? Mas normalmente não. A franja geométrica na testa. Porque havia em ti uma vitalidade tão forte. Tinhas movimentos rápidos breves, a tua cabeça vivíssima. Pequenas descargas eléctricas em ti. Fortíssimas finíssimas subtis. E nos teus olhos rápidos que dominavam rápidos as coisas antes de elas te dominarem, na tua cabeça vibrátil passava por aí, expelias a corrente que te atravessava, pequenos curto-circuitos, eu pensava. Não eram bem as grandes forças da Terra nem as curtas e intensas como as que fazem estremecer as aves. E é só assim quase só que te encontro na minha memória aflita. Não. A minha memória está calma como um perdão. Mas tenho de ir ouvir o Firmino, fica tu aí com o Teo. E fica ainda com ele depois de se calar. Estais belos assim, um junto do outro, em silêncio, na eternidade do meu lembrar.
Quando chego, aliás, já o Firmino está enrolado numa dialéctica apertada. A questão era agora de capitalismo e comunismo. Firmino era a favor do capitalismo porque gera riqueza, faz progredir os povos, cria postos de trabalho, dá uma oportunidade aos mais capazes, cria o estímulo e a emulação, fomenta o bem-estar e sobretudo tem muitas mais vantagens que ele ainda não conhece e que infelizmente jamais poderá conhecer por inteiro. Mas é também pelo comunismo porque pratica a justiça social, acaba com os privilégios, elimina a exploração do homem pelo homem, torna os homens iguais como é da sua natureza e traz muitos outros benefícios que ele infelizmente não poderá conhecer jamais por não estarem ao alcance do seu conhecimento.
Tem pensado muito. Tem lido imenso. Mas como poder ter em mão todos os dados para um juízo perfeito? Reparei no entanto que em toda a sua exposição o poeta ia logo dizendo sou contra. E a conversa alongou-se para outros domínios, nesse dia noutros dias. Machismo feminismo. Crença descrença. Iberismo independência. Ortodoxia heterodoxia. E o poeta dizia sou contra. Mas a certa altura, numa deriva subtil, entrou o problema da homossexualidade heterossexualidade, e aqui o poeta calou-se. Pareceu-me que na alternativa hetero ia a dizer sou contra, mas calou-se. Houve ainda uma vez uma dissertação sobre monarquia república. E já antes sobre absolutismo liberalismo. Firmino dizia que a monarquia era evidentemente um bem nacional pela continuidade das instituições, a unidade nacional, tranquilidade dos povos. Mas que a república era evidentemente um benefício por acabar com a farófia estúpida de uma cor de sangue, que era azul na pele fina dos que eram uns lombeiros e viviam à custa dos que a tinham grossa. Somente quem podia garantir que tem em mão todos os prós e os contras, todo o conhecimento do que importa ao problema? Então eu avancei para a questão da batalha de Salamina e do destino ocidental com a vitória dos gregos. Firmino tinha naturalmente opinião. Citou-me mesmo, com cálculo científico, Os Persas de Ésquilo em que o poeta, dizia ele, se coloca no ponto de vista dos persas e chora a sorte dos vencidos. E não se esqueça o doutor de que ele combateu na batalha, obviamente do lado dos gregos - disse-me por fim e eu encolhi todo, diante do seu peso em ilustração.
- Mas então o senhor admite que foi um desastre. E como saber? A vitória dos gregos foi a da razão e da cultura. Mas como não ver que essa razão e cultura nos privou precisamente da razão e da cultura dos outros? Firmino não sabia tudo, é evidente, mas há a religião, enfim, o que supera o rigor mental e é quase tudo. Decidir em Salamina pelo Oriente ou Ocidente é impossível. O mesmo por exemplo com o milagre de Ourique. Era idiota acreditar no milagre, que Cristo etc. Mas era idiota recusar o milagre etc. E então eu atirei
- E quanto ao Adão e Eva e a maçã?
Mas Firmino não se melindrou. Acaso eu podia esgotar os prós e os contras de morder ou não a fruta? O doutor conhece-os? O doutor tem a certeza que é preferível morder ou não morder? Acaso se conhece a felicidade sem se conhecer a infelicidade? Acaso vale a pena conhecer a infelicidade só para haver felicidade? Quais as verdadeiras razões - suponha o doutor que era o senhor o Adão e que tinha de decidir. Suponha - mas não suponho mais nada e vou ter contigo, querida, estarás ainda com o Teo? mas a mim apetecia-me era estar só contigo. Estás com o Teo, estais imóveis na minha memória, em silêncio. Deveis ter já dito tudo, estais na ressaca da meditação. Tens o teu trabalho no colo, Teo tem um lenço na mão em que apoia o queixo. Era esquisito, sempre fez assim, um lenço na cova da mão e o queixo encaixado aí. Tinha aquele costume esquisitíssimo e eu um dia perguntei-lhe porque é que
- Porque é que pões um lenço na mão quando lhe encostas o queixo?
e ele não soube responder. Não sei, disse. Dá-me jeito.
- É mais macio. E por causa do suor, talvez. Não sei.
E um dia disse-o a minha mãe, achou piada, estávamos a "tirar as parecenças", não sabia. As da Márcia ficou logo ela com elas. As das unhas dos pés do André, implantadas na vertical - olha, são como as do teu pai. Mas um dia, muito mais tarde, a minha mãe soube - que estranho. Quase uma coisa horrível, Mónica, depois te digo, já não deves estar lembrada. Depois te digo, agora quero é ver-te ainda um pouco, estais os dois em silêncio - e se eu entretanto marcasse a grande penalidade com o meu pé esquerdo? Era o último minuto do desafio, quarenta mil pessoas geladas suspensas, ouvia-se o pulsar dos corações. Então olhei o guarda-redes, estávamos ambos varados de terror. Mas não é só o que pensas, querida. Muito mais, muito mais. O investimento agora da minha vida inteira na força e na destreza da minha perna e do meu pé. Estais em silêncio, quedo-me à porta a olhar. E de repente lembro-me - dizer-te o contrário do que penso para discordares e dares-me razão sem quereres. Porque tu eras tão difícil. Difícil. Jamais te disse fosse o que fosse que tu dissesses tens razão. O mais que conseguia era não dizeres nada e eu então pensava que estavas de acordo. Não era pelo gosto de me contradizeres, penso-o agora mais calmo. Mais longe de ti. Era por teres uma vontade forte, talvez. Eras arisca voluntariosa. Era por teres saúde a mais, digamos para mais depressa. Porque a razão é a expressão da vontade, querida. Com vontade forte é que se fazem as grandes razões e os impérios com elas. E uma vontade pindérica só dá para o cepticismo. E então eu disse-te Mónica
- Mónica. A ideia do Teo é uma estupidez, estive a pensar.
Mas tu irias contrapor imediatamente
- Estupidez também não é tanto assim.
E eu estaria logo de acordo contigo numa prega do meu oculto contentamento. Mas tu não disseste nada. Estais os dois em silêncio, olho-vos da porta. Olho em volta a sala, vejo-a agora na sua inteireza e indiferença. A mesa a um canto, uma mesinha no outro com sofás à roda, uma étagère ao lado coalhada de retratos da infância dos filhos. Era estranho. A gente tirava-lhes fotos em miúdos, armava-os ali e eles iam crescendo e a infância deles continuava em retrato que não era já de nada. Podíamos substituir tudo por retratos de adultos, mas ficaram sempre os de criança, porquê? Só se é pai e mãe de crianças talvez, com a memória de quando o tínhamos sido. Depois foram eles pais de si próprios, era assim. Fico a olhar a sala à volta um momento, olho-vos aos dois em silêncio, estais imóveis espectrais na suspensão do tempo. Então tomo-te a mão, levo-te comigo e ficas. Olhamos ainda da porta, olhamos-te e ao filho, temos tanto que estar sós. Olhamo-los, não nos vêem. Estão em silêncio, devem ter chegado ao ponto de não poderem dizer mais nada de tudo o que ficou por dizer e que foi tudo. E o tempo em que as palavras já não criam o mundo como na boca de Deus que o criou com elas. Em que se dá conta de que já não trazem nada de dentro consigo. Saio contigo, tu ficas com o filho. Atravessamos o tempo. Como um filme rodado para trás. Regressar, vencer o destino antes de nos vencer ele a nós. Recuperar a nossa disponibilidade. Ser a ignorância do futuro e a tua plenitude. Antes da tua morte e do teu olhar incompreensível e da última palavra que soubeste dizer
- Não.
antes da tua miséria e horror. E antes de cada filho nascer. Vamos para a alegria de todo o possível. Vemos o André desde a infância até antes de nascer. Depois o Teodoro até se apagar no não-ser. E depois Márcia, que foi a primeira a aparecer entre nós os dois - é uma menina, vieram-me dizer. Nasceu cada um em sua maternidade como se para povoarmos logo todo o mundo. É uma menina. E antes disso, antes de ela ser, nós sós um em face do outro. Vou-te amar como nunca te amei. Vamos ter todo o nosso futuro antes de ele nos ter a nós - onde nos vamos amar? Teo há-de vir ter comigo antes de me amputarem a perna. E eu hei-de olhá-la longamente com amor. Porque se deve ter amor ao nosso corpo, somos tão ingratos com ele. Mesmo na sua degradação, mas agora quero é amar-te a ti. Amar-te quando havia o teu corpo e o imenso que nele acumulei. O amor é isso, querida, acumular no começo para se ir depois gastando dele pela vida fora - até quando durou o que acumulámos? Estás inteira jovem perfeita. Agora. Como é bom dizer jovem. Dizer perfeição. Dizer Terra, astros e deuses. E estar tudo no teu corpo. Devagar, hesito ainda, devagar. Não quero perder um átomo de ti, do imenso que em ti acumulei, do universo em ti. Mais nua do que a nudez, a tua pele branca. Deve ser no fim do inverno, depois de despido o queimado da praia. Estás mais desprotegida assim. Como se despisses também a minha imaginação. Como se dissesses sou assim. Abandonada entregue. Um corpo apenas, material, verificável. Mortal. Mas o que sobrepus nele não se trespassa assim. É preciso atravessar o medo o deslumbramento o impossível. É preciso vencer o mistério - um corpo amado é tão misterioso. Meu corpo de ternura. Havemos de conquistá-lo até um dia. Até quando ele for insuportável de doçura. Devagar. Mas há a tua inquietação. A tua pressa ardência, deixa-me ter tempo de te criar. De te trazer toda às minhas mãos. De trazer até mim o teu olhar/esquivo, os teus desencontros furtivos. A tua agilidade, o oculto de ti. O teu riso, a tua franja irrequieta. A rapidez de seres, a vitalidade desassossegada, a tua alegria agressiva. A intensidade de existires - devagar. Atravessar tudo até ao teu mito que está todo no teu corpo nu. Fica longe. Tanto. E então amámo-nos e tudo estava aí. Estava lá tudo ao mesmo tempo e eu estalava de agonia. E Deus olhava-nos e dizia está bem. Realizar Deus todo inteiro é difícil. Está bem. Tínhamos as galáxias do universo e havia ainda espaço. E isso era de endoidecer. Tínhamos em nós a sua expansão até ao rebentamento de nós. O desmesurado e incrível. Deus olhava o nosso esforço enorme e sorria por cumprirmos o seu poder. Gostava bem de ser calmo ao dizer-te. Um corpo cerrado num punho sangrento de homem. Ter-te toda de uma vez. As pernas os seios a boca. Apunhar-te toda na minha avidez. Mastigar-te integrar-te no meu sangue. E tu enovelada em mim, na angústia exaltação de uma morte que viesse. Desaparecermos no não-ser, na perfeição. E olhar por fim o teu corpo morto, reconhecermo-nos na materialidade expulsa do paraíso. Vejo a tua beleza táctil inerte. Amolecida derramada. Está inteira mas não está - onde é que se perdeu? que é que? É o teu corpo, querida. Tem uma pressa enorme de se repartir pelos filhos, de se desagregar, de se imobilizar na cama, a face parada, o brilho inquietante de um olhar louco - não. Ah, ter o futuro na sua invenção. Corpo feroz e lindo, vou aprendê-lo até o destruir e ser eterno. Querida.
Mas temos de ir ter contigo e com o Teo, chegamos à porta, lá estão. Imóveis ainda, tu com um livro ou a malha no colo, ele com a cabeça descansada no lenço da mão - vamos falar-lhes? Teo tem de ir visitar-me na véspera de me fraccionarem. Não me apetece que me fraccionem já. Quero primeiro olhar a minha perna devagar, com aflição e amor. Ter uma conversa com ela. Dizer-lhe talvez - como te sentes na pressa de te ires embora? Olhar com piedade e iluminação os dedos negros do pé. É o esquerdo. Tenho ainda de com ele marcar uma grande penalidade - vamos falar-lhes? Melhor deixá-los assim. Teo quer salvar o mundo para se salvar a si, que é o que sempre se salva quando se quer salvar os outros. Estão em silêncio. Moram no eterno.
Não, o Salus não me reconheceu. Dorme no outro lado da divisória de vidro martelado, não me identificou. Mas não grites, não grites, não o vou condenar - e em nome de quê? não há em nome de nada, Mónica. Ter de dar uma sentença e não ter a sentença comigo. Mas o Salus, agora não é disso que vou falar, não berres. Não o condenei, depois o delegado recorreu, foi julgado noutra instância. Absolvido. Ele era apancadado, tinha já esse benefício para ser gente. Nós falámos tanto de "lei", hás-de estar lembrada. Quando acabei o curso, deves-te recordar. O Pereira disse-me
- Pensei em si para assistente e o conselho da Faculdade tinha aprovado. A lei. Não tem fundamento, querida. É como as regras de trânsito, já te explico daqui a pouco, tenho tanta coisa ainda a dizer-te. A meditar contigo para a divisão do trabalho. Fiquei excitado - assistente! Eu ia ser doutor, seleccionado para a glória como os doutores da Igreja. Mas já te explico. O Salus. É um doido e portanto feliz. Porque a felicidade é uma coisa idiota, só os idiotas a merecem, é assim. Mas o que tu querias era a tua justificação e a pregação dele dava-te encosto. Ele não existia, era um mito, que é uma coisa que não existe e é portanto a forma mais forte de existir. Há uma coisa de que nunca falámos, vou-te falar agora. Mas só agora, tu sabes, a gente vai juntando as peças como num crime o polícia. São peças que só tarde se aproveitam - quantas se não deixaram de aproveitar por não haver crime para elas? Perderam-se, ficaram sem préstimo porque não houve um fio que as enfiasse umas nas outras. Actos para se ser mais tarde um herói um assassino um reformador político que se não chegou a ser, actos sem préstimo que se deitaram ao lixo municipal. Um dia disseste-me - vou-me inscrever num concurso de misses
- Espera - disse eu. - Deixa-me ver se não estou parvo.
- Vou-me inscrever.
E então não disse nada. Estava muito ocupado em ser animal racional. Estava muito ocupado a observar por entre o teu corpo e o que estavas a dizer sobre ele. E então fui entendendo que o teu corpo era de mais para ti. Achavas talvez que era um pecado de avareza, capitalismo monopolista. Guardá-lo só para ti. Era mais justo mostrá-lo aos outros e eles participarem da tua maravilha. E então eu pensei está bem. Vais pois participar do concurso e eu vou agora deixar-te participar enquanto lá fora - que sarrabulhada. Algum choque de carros. Berros apitos, deve ser a polícia. Todas as manhãs camionetas de descarga, o trânsito engarrafado como na entrada para o paraíso - que dia é hoje? O tempo conta-se quando há nele vida a contar - que dia é? As invenções só acontecem quando são necessárias, como sabes, o relógio foi só quando foi preciso contabilizar o tempo, antigamente contava-se por alto. E a imprensa só se inventou quando entrou em crise o analfabetismo - que dia é hoje? Mesmo as estações. Às vezes há um vento libertário e eu penso - ainda não passou o inverno. E já. Há flores naturais no corredor, deve ser primavera. São flores iguais às artificiais, mas depois sabemos que não são e então não são - vou-te deixar ir ao concurso. Estou sentado a uma mesa do salão do casino, estou só. Houve primeiro o desfile de apresentação para a gente ver a lista. E a tua beleza misturava-se com a das outras como num batido. Éreis doze, contei-vos. Mas por fim isolei-te. Havia muita gente no salão e eu senti que cada homem estava a fazer a sua escolha privativa. E percebi que estavam vários tipos a escolher-te a ti, cada um a puxar-te para si e eu tive medo que te esquartejassem. Então ergui-me, saltei sobre mim e larguei um berro imenso para o salão
- Mó...ó...ni...ca!
e as pessoas olharam-me estupefactas do meu rudimentarismo e um polícia veio rápido para mim e eu disse-lhe é a Mónica e ele deu-me palmadas no ombro para sossegar. Mas a certa altura, vínheis de maillot e de uma a uma pela passerelle e eu pude ver-te inteira em ti. Mas reparei que a tua beleza era da parte de fora. Quando há bocado te estive a amar era da parte de dentro, era uma beleza que se não podia descolar. Agora era de fora, de casquinha, uma coisa assim. Se fôssemos agora para a cama tinha de te descascar, pensei. Que é que os cretinos da assistência queriam de ti? A beleza tem de se estancar, senão escoa-se em hemorragia, pensei outra vez. A beleza não pode ter um grande espaço em volta, senão evapora-se. A beleza, minha querida, és tu e eu à distância do nosso olhar. Então fixei-te intensamente ardentemente o curveado do teu corpo. A justeza doce do slip. Do anteparo dos seios. A vivacidade eléctrica do teu olhar. E houve em todo o salão um rosnar surdo de eu te olhar tanto e de os outros também quererem, segundo os seus ideais igualitários e progressistas. E tu gritaste do meio do palco
- Não me olhes tanto!
e eu queria olhar-te ainda, até à tua eternidade. Mas não te olho mais, não te olho mais. Querida. Vamos embora, vem comigo e contigo. Que ideia essa do concurso de misses. Deus perdoa-te que não repartas a tua beleza por mais ninguém, mesmo que ta tenha dado em excesso. Tens tanto ainda que ser comigo e de teres filhos e de apodreceres. Só eu hei-de saber o teu mistério, só eu saberei o teu ser. Que é que podes dar aos outros? o mistério é só para se reconhecer, quem pode reconhecer-to senão eu? Nunca pensaste "eu sou", que é onde o mistério começa. Tão raro o sei também.
- Ouve. Estavas a falar do Salus. Porquê essa palhaçada de me pores nas misses? Porque é que te diverte esse delírio? Que tem a ver o Salus com isso?
- E como sabes que é um delírio? Quem to disse? Deus criou o mundo com palavras. Vou-te criar até à morte. Mas o Salus. Eu já digo.
Era difícil, o Salus. Sonhava alto, muito agitado. E eu queixei-me à D. Felicidade.
- Já está entendido - disse ela. - Logo que haja um quarto vago.
- É que não consigo dormir, D. Felicidade. E ressona forte.
Mas era tão giro, querida. O Salus. Como é que eu podia condená-lo? Tu sabes, passam como correntes de ar o ódio, o amor, grandes arroubos humanitários, ganas de destruição. E às vezes apanham um tipo e levam-no. Mas eu absolvia-os ou condenava-os para um equilíbrio da higiene pública, no Salus calhou o humanitarismo. Ouve, querida. A um olhar sem piedade o homem é tão caricatura do homem. Às vezes ele conhece-me. Vou ver se te falo dele muito depressa para se me não pegar à consciência. E mesmo preciso de me estender na cama. Talvez olhar o fresco de Pompeia de que gosto tanto. De que gosto para te ver lá. O teu andar quase ritual. A graça de um certo movimento da cabeça. Não se parece contigo mas com um modo que é meu de te lembrar. O Salus. Alguém o depositou aqui, não tem família, suponho. E imediatamente se intrometeu em todo o viver da minha secção. Fala com todos os velhos e taralhoucos da sala, eles nem lhe respondem. Muito antes da hora das refeições
- São horas de almoço
diz ele, vai à cozinha, D. Felicidade não gosta. Vai buscar o material, pratos talheres, põe ele a mesa cheio de diligência culinária. Mas um dia, que coisa de ternura. Um dia, ia eu a chegar ao corredor, a Antónia ia-me dar banho. E vejo uma velhinha, já te digo o nome se me lembrar, vinha uma velhinha trôpega aos passinhos miúdos, depois parava. Depois recomeçava, batia os pés um a um e muito perto um do outro para se acudirem numa falha um ao outro - ó velhinha triste e linda, quem era? quem a depositara aqui? e ia a caminho da retrete que ficava adiante da cozinha, a meio do corredor. Então o Salus foi ter com ela, amparou-a nos seus passinhos curtos. Ia à retrete? quis saber. Nesse caso encoste-se a mim, disse-lhe ele, mas ela não sabia encostar-se. Perdera toda a posse de si própria e de ser ela a encostar-se e o Salus levou-a quase no ar. Depois entrou com ela na casa de banho. Depois levantou-lhe as saias e baixou-lhe as calças e sentou-a na moldura e esperou. Depois limpou-a e puxou-lhe outra vez as calcinhas para cima. Depois trouxe-a para o seu lugar na sala. Lá está a um canto, muito encolhida no alheamento de si. E diz coisas ininteligíveis numa tremura de voz que dá para ser riso ou choro, um cacarejo assim. Mas deve ser uma coisa e outra, que há-de ser o sítio do seu ser. É uma velhinha trémula e linda. Amedrontada e doce. O Salus baixou-lhe as calcinhas para ela fazer o seu chichi.
O Teo está com pressa de me dizer coisas antes de me levarem a perna. E eu tenho que primeiro olhar a perna, ter com ela um entendimento a sós, com compaixão e ternura. Minha perna, meu ser. Minha completude do meu corpo, esta inquietante e absurda e triunfal realidade do meu corpo. Mas não me apetece por agora. O Teo que espere. Está à beira da minha cama no hospital, está cheio de coisas vertiginosas a dizer. Coisas belas talvez no seu modo de entender o mundo pela beleza que é talvez bela mas não é esta a minha hora de a aprender. Está aqui a meu lado, foi mesmo buscar uma cadeira para se pousar do peso do que me quer dizer. Mas ele que espere mais um pouco. E a minha perna também. Agora quero olhar-te no fresco de Pompeia, se não te aborreces. Está aqui numa parede do meu quarto e eu estou na cama sem a perna e a Antónia está cheia de pressa para me ir dar banho. Eles que esperem todos, tenho tanto que estar só contigo. Com a tua imagem fictícia da minha idealidade vã. Da sublimidade que nunca houve, estávamos sempre tão perto um do outro. Mas há agora, na minha preparação para a morte. Na raiva de haver mais mundo que o mundo. Na raiva de ser Deus. Porque de vez em quando é necessário ser Deus para ele perder um pouco da sua megalomania - olho o fresco de Pompeia. Ou não bem de Pompeia mas de Estábias que fica logo a seguir e ao sul. Ou talvez não de Pompeia mas Pompeios que é um nome feio como um trombone (trombone?). Representa a Primavera, o fresco. Ou talvez a deusa Flora para ser mais corpórea contigo. Mas é um corpo transcendente até à sublimidade. Tu tinhas mais peso do que isso, querida. Mas eu preciso agora tanto de seres divina. Transcendente irreal. Dissolúvel e vã - deixa-me ser infantil. Mesmo o amor só começa a existir assim, é dos livros. Metafísico disparatado. Abaixo disso tem já outro nome que vem na fisiologia. Preciso ardentemente de irradiar o teu corpo a tudo quanto baste para ser divino. Vou construir uma religião que não há. Vou ser sublime e atrasado mental. Um corpo. Minha querida Mónica, o corpo ainda não existe e é preciso empenharmo-nos todos com ardor para que exista. Porque o que existe é só a porcaria de um bocado de carne que deve vender-se nos talhos dos antropófagos. Ou então existe só o que nele não existe e se transacciona nas sacristias da província. Meu amor, deixa-me dizer-te. Agora que estás morta - e como tudo foi longo. Agora que arrumaste as coisas
- Sabes uma coisa, João? Nunca te gramei não digas, não digas. Agora que tudo findou, agora posso criar-te como Deus não soube e eu sei. Não conheces o fresco de Pompeia, tenho de to mostrar.
É uma deusa linda num instante do seu movimento leve, mas não se lhe vê a face. Porque a beleza não é dela mas da leveza do seu passar. Vê-se de costas, a face um pouco voltada só até à visibilidade do seu contorno doce. Colhe à passagem uma flor sem se deter, no ondeado da aragem que a leva. E na outra mão segura contra o peito um açafate de mais flores. Mas tudo nela é aéreo e dócil. A túnica cor de argila, ondeante até à mobilidade subtil dos seus pés nus, uma alça descaída no ombro direito. Um manto branco tombado dos braços para as costas num suporte negligente. O cabelo apanhado na nuca, a zona mais delicada para a ternura de um homem. E uma fita como auréola a segurá-lo. E o imponderável de todo o seu ser de passagem. Mas era o que sobretudo eu gostaria de te dizer desta deusa grave e aérea. Não bem o seu corpo esbelto como um voo de ave, mas só esse voo. Não bem a sua juventude eterna mas a eternidade. Não o gracioso dela mas a graça. Olho-a infinitamente para tu lá estares e ouço-te rir porque não estarias nunca. Fito-o e filtro-o para ficar comigo o seu impossível até à morte. O jeito breve dos pés que não pisam. Os dois dedos subtis que colhem a flor sem a colherem e são nela há dois mil anos a flor que não colheram. A anca doce em movimento, o etéreo da sua divindade. A moldagem do seu corpo vaporoso pelo zéfiro que a leva. O deslizar do manto e da túnica que não deslizam, para a nudez não ser de mais. E a espádua nua para se começar a sabê-la e ela ir existir numa avidez assustada. E o cabaz das flores com que leva a alegria consigo. E o espaço verde e vazio para que nada mais aconteça além de si. Olho-a ainda, olho-a sempre. Passa aérea e de costas. E assim a sua beleza é invisível, no anúncio do que jamais poderemos ver. Assim a sua beleza é a mais bela porque está perto e longe, na realidade tangível e intocável para sempre. Na face oblíqua de que jamais saberemos a face. No olhar que inunda todo o corpo como é próprio de todo o olhar mas de que jamais saberemos os olhos donde vem a torrente. No seu corpo de deusa e no enleio do seu movimento que jamais poderemos ter nas mãos porque a sua realidade é o passar. Nas flores que leva e colhe e jamais colherei nas minhas mãos grossas e mortais. Tenho de deixar de olhar esta deusa efémera no breve instante de ser deusa, tenho de ir ter contigo ao fundo do corredor talvez, a Camila chama-me de lá aos berros
- Senhor doutor! A senhora sujou-se outra vez! Mas tanto como me custa. Deixo de a olhar e ela passa, quando voltarei a vê-la? É um momento breve como tudo o que é grande na vida. Desvio os olhos e provavelmente não a verei jamais. Porque ela não está lá sempre que a procuro. Tudo o que acontece é sempre muita coisa ao mesmo tempo para que aconteça o seu tudo. Tenho o meu olhar agora liberto para a deusa acontecer. E dura ainda em mim o sorriso do nosso encontro. E é nele que ela existe. É uma deusa breve. Veio na aragem, do fiando dos milénios, ao encontro do meu sorriso. E quando a aragem passar o sorriso passou.
- A senhora sujou-se outra vez!
a Camila volta a chamar-me, tenho de ir. Ah, tu és tão desastrada. Minha querida. Mas o que mais custa a entender - não, não é entender. O que mais custa que aconteça é não haver, como se diz? é não haver um "sujeito" para o que és, é tu não seres tu e todavia seres, não te sei explicar.
Minha Mónica tão alta divina e para sempre. Vou talvez pôr no gravador a cassete com o concerto de oboé. É de Mozart, não sei se já te disse. Mas não há tempo, a Camila aumenta o berro para me despachar. A tua degradação, descida lenta até ao rés-do-chão do teu ser. A princípio davas sinal, eu corria logo ou a Camila para te pôr onde te cumprisses sem te sujar. E aí cumprias a tua natureza, a gente à espera. Mas depois era em qualquer sítio da casa, que tudo era sítio para a tua degradação. Querida, és tão desastrada. A extensão de se ser humano é imensa, vou pensá-lo com muita aplicação. Vou pensá-lo para tomar posse de tudo o que nos pertence - tão extensa. Vem do alto em que se é glorioso e divino e mais que os deuses que são já do nosso fabrico, até ao mais baixo do que é caca e podridão, mas a Camila não me deixa filosofar.
- Se isto são propósitos. Então a senhora não podia chamar? Então custava-lhe assim muito dizer para eu a pôr na retrete?
e tu olhas para ela a querer entender como um cão.
- Dispa-a, mulher. Limpe-a, que eu vou-a depois lavar.
Mas a Camila não gosta, também olhe que é mania, senhor doutor
- Agora a querer lavá-la. Então eu não a saberei lavar? Então é alguma coisa do outro mundo lavar eu a senhora?
- Eu lavo.
Nem percebo porquê a teimosia da Camila. Se fui eu sempre que te lavei. Mesmo uma vez, estava aí a Márcia - eu lavo a mãe
- Deixa - disse-lhe eu.
Só eu conhecia o teu corpo, o percurso nele do meu prazer. Da tua beleza. É preciso um esforço, eu sei. É preciso uma atenção infinita para lhe descobrir o seu rasto. A linha da perfeição, do teu orgulho. Tenho-te de pé na banheira.
- Camila. Antes que esqueça. Você passa a pôr-lhe sempre fraldas.
De pé, na banheira. E imprevistamente subitamente estupidamente disseste-me
- Avô. Não demores que tenho frio.
Olho-te intensamente até aos ossos, até à origem do teu desconcerto.
- Sou o João, querida.
- Sim, avô.
Quem era o avô? nunca o soube, não me lembro. E então pensei - é a espécie, o fundo do tempo. As trevas das origens. A verdade da Terra e do sem-fim. Avô. Lavo-te com quanto amor ternura tenho em mim. Lavo-te devagar. As coxas da tua destreza velocidade alada. Está por baixo das pregas descaídas. Estão magras, umas pelan-gas sobrepostas, lavo-te o ventre mole. As tuas ancas de leveza e a linha fina do teu andar. Estão flácidas como o cansaço. A ardência dos teus rins, o teu busto. Os teus seios como gritos. Ouço-os estridentes nos meus ouvidos, lavo-te com piedade de cima a baixo com aplicação. Com uma minúcia atenta. E enquanto te lavo ouço o concerto de Mozart para oboé. Trouxe-mo a Márcia, meto a cassete no gravador. Que humilde o oboé. Tão frágil no meio da massa da orquestra. E então reparo, enquanto te lavo a segunda vez, a água quente, o sabão, as minhas mãos, sobretudo a esquerda que é mais táctil, e o macio da tua pele aveludada do sabão, e então reparo, é um mistério inquietante, não te estou a lavar a ti. De vez em quando o oboé desenrola um solo, e pequeno e humilde, o teu corpo tão envelhecido, é triste o oboé, tão órfão solitário. Lavo o teu corpo mas tu não estás lá. Lembro-me. Outrora vinhas de dentro de ti e chegavas até ao limite dos dedos, das unhas, dos cabelos. Estavas em todo o corpo e eu reconhecia-te. Na pele, nos gestos. Nos olhos eléctricos vivacíssi-mos. Mas agora está só o teu corpo sem ninguém que se responsabilize por ele. O teu corpo é irresponsável, querida, a quem pertence? Refluiu todo para o teu centro, não vem nenhum sinal de lá. Não te vejo nos olhos, são incertos, olham para parte nenhuma. Não tens centro - onde é que moras?
- Avô. Não te demores muito.
Onde estás? Com amor ternura, lavo-te. É o teu corpo sem ti. Mas tenho a minha memória inteira para te reconstituir ao apelo do meu sofrimento. Mónica. O quarto de banho é longo. Faz oflic-flac, a roda, tens espaço bastante. Enquanto percorro ainda com a mão esquerda os teus seios delicados, a curva doce do teu ventre.
Mas a Antónia está impaciente, são horas de me dar banho a mim. Tomo as muletas, vou balanceando ao longo do corredor. Entro enfim na sala balnear, sento-me no autolift, Antónia faz girar uma roldana que me desce até mergulhar na banheira. E então aconteceu uma coisa extraordinária. Hei-de-ta contar antes que a saibas por outrem. A Antónia. É uma moça ferocíssima com uma energia a explodir. E muito despachada de língua, talvez para ir dando descarga.
- Senhor doutor. Está na hora do banho.
Mas fico ainda a ouvir o oboé do teu nome. E doce e triste como uma criança sentada a uma porta. Senhor doutor - tenho de ir. Tomo as canadianas e vou-me sacolejando pelo corredor. Ela senta-me e desce-me na banheira. Mas já to disse atrás. E então aconteceu - hei-de-te contar eu próprio. Mas deixa-me olhar ainda a deusa de Pompeia. A moldagem do corpo vaporoso pelo zéfiro que a leva. Olho-a de novo, olho-a sempre. Passa aérea na sua beleza invisível. E mais bela por estar à vista e não se ver. Beleza de graça. De ternura.
E agora, minha querida, acho que tenho o direito de me queixar um pouco. Não do corpo, deixo isso para mais tarde. O Teo está com pressa de me dizer coisas antes de me levarem a perna. Queixar-me da vida, queixar-me de. A gente chega ao fim, que é quando já não tem embalagem para haver mais futuro, e então senta-se. Estou sentado. Olho à volta, da frente para trás, que já não há mais frente para olhar. Eu acho a coisa perfeitamente estúpida, tu que dizes? Não o lembrar, que o lembrar lembro. É uma forma bastante prática de tornar a viver. As coisas aconteceram, fazem-se acontecer outra vez. Sobretudo o que valeu a pena e nos pôs um pouco de contentamento na alma. Purificar as coisas das chatices que também lá estão. Ou lembrá-las também a elas mas pôr-lhes à volta uma moldura de desculpa ternurenta. Um dia pensei: quando deu na bolha a Deus para criar isto por desfastio, soube a palavra para o efeito. E então eu digo - deve haver uma palavra sagrada para tudo, a questão é saber onde é que está. Mesmo o que é chato ou feio ou podre, se a gente souber a palavra certa deve ficar belo à mesma. Também já é de noite, o lar está todo em silêncio e eu devo estar a sofrer-lhe a pancada. A gente tem sempre muita coisa dentro a querer falar e com o barulho não consegue. Já me tiraram também o Salus do outro lado do vidro, meteram-no num buraco a meio do corredor. Ainda há mais silêncio porque ele ressonava forte. Toda a casa em silêncio, apenas de vez em quando os passos de alguém. Muito leves como a vigilância, mas eu ouço-os com o meu ouvido direito. É estranho, porque sou mais ou menos esquerdo. O direito. E há naturalmente o ruído do tráfego mas quase se não ouve. Não porque se não ouça de facto mas por ser longe e o eu sentir que esse longe o esbate à minha atenção. E então pus-me a dar balanço à vida toda. Estou sem sono - pus. Não sei se reparaste, mas quase toda a gente, alguma gente, porque muitos têm medo do saldo. Enfim, muita gente dá o seu balanço. Chega-se a hora e dá. Muitas vezes o balanço são só as parcelas vadias que vai lançando ao acaso sem o traço em baixo e a fechar. Acabou-se. O balanço. É a maneira de as pessoas se porem do lado do destino e então quase estão contentes como se estivessem. Em miúdo havia na aldeia um vizinho já velho e todos os domingos cumpria a sua borracheira. A mulher zupava-o. E ele dizia morra Marta morra farta. E um padre de lá perto que se fartava de fornicar nas beatas dizia combati o bom combate, guardei a fé. Tinham a sua contabilidade montada, vou ver se monto a minha. Há um grande silêncio no casarão, há noite na cidade. E então eu digo: que é que fizeste em toda a tua vida? Bom, fiz filhos, três, cada qual de sua qualidade. E amei-te. Tanto. Pois. Mas a minha própria vida no seu modo de existir com os seus irmãos em humanidade? de existir em si mesma? Vejo desfilar diante de mim em parada uma quantidade enorme de loucos, assassinos.
- Em nome de que é que te julgas tranquilo com as sentenças que deste?
como é que dormes sossegado? - foi a Márcia que um dia me perguntou. Ou o Teo. Ou eu.
Assassinos, vigaristas, ladrões em formato grande e pequeno. Traficantes, adúlteros em promoção de divórcio, agitadores públicos, engajadores de menores. Exploradores de prostituição, usurários, contrabandistas. Sequestradores, falsários, chantagistas. Exploradores de velhas ainda sexuadas, de trabalho infantil, viciadores de documentos. E outros e outros e outros. Passam diante de mim, vejo-os. É de noite, vejo-os com mais nitidez. Têm o olhar febril ou desvairado ou sereno consoante o crime está ainda neles ou já fora ou mais abaixo. Enrodilham-se no que dizem ou são rectos na sua lógica em que é a lei que se enrodilha.
- Como é que dormes tranquilo?
Lembras-te do? esquece-me o nome, já to digo se me lembrar. Quando começou a ser médico, ele dizia - e se o doente morre? se o melhor remédio não era este? Depois passou a funcionário da saúde, receitava, a morte depois que resolvesse como entendesse. Era o Cirilo, lembra-me agora, jogava nas reservas, ainda jogou comigo nas primeiras. E eu fazia o mesmo, aplicava a tarifa, era assim.
E de súbito uma mulher rompe-me pelo quarto, atira-se-me aos pés - senhor doutor juiz, pelo amor de Deus. Mas eu nem era ainda juiz nem tinha relações com a divindade
- Pelo amor de Deus não me condene o homem que fico desgraçada com cinco filhos.
Estou no Norte, no começo, era ainda delegado. Bom. A mulher não tinha levado os filhos para os pôr à roda e eu pensei num intervalo cínico - não conhece a táctica da Inês de Castro. Porque eu cria duro como ferro na lei, como é próprio de quem é jovem e tem saúde. Mas tinha as minhas reservas quanto à lei como quem é jovem e tem a corda sensível. Eu contei-te a história, tu é que és capaz de te não lembrares. Ou nunca ficaste a lembrar-te, como sempre, que era o teu processo de eu não existir de mais. Eu conto. Muito rápido, que tenho ainda mais noite a aproveitar. A mulher trabalhava a dias na casa de um viúvo. E o homem era caiador e fazia um pouco de contrabando nas folgas. E a mulher um dia convenceu-se de que ele andava enrplado com uma costureira de larga folha corrida. E então pensou que a melhor forma de ele a valorizar era fazer-se valorizada por outro. É dos livros, querida. Mesmo que a gente deite uma coisa fora, se alguém a apanha, a gente sente-se logo ofendida nos seus direitos de proprietário. E a propriedade existe, mesmo para os cães. Não é a coisa que se nos rouba, o que nos é roubado somos nós - mas filosofia acabou. E a mulher começou a largar setas contra o homem mas sem o atingir. E o veneno que ia nelas era que ela e o viúvo - mas o viúvo, toda a gente sabia, já não tinha ceptro real, tinha lá agora uma lombriga. As alusões da mulher rasavam-no oblíquas e ele sabia que com um pequeno desvio elas entravam-lhe pela carne dentro. O que mais falta no mundo são homens. Ou: conheci um velho que teve um filho aos oitenta. Ou: mudar de vida pode-se sempre, de morte é que não. E ele ia tomando apontamentos na alma para conferir e ver se formavam sentido. E quando viu que formavam, foi-se ao velho e matou-o. Muito bem, e agora? Agora pergunto-o eu para quando o não perguntei. Que é que quer dizer a condenação do homem para os filhos que não tinham culpa? e da mulher que também não, se a não tinha? Tenho de ser rápido, tenho já pouca noite para gastar.
Mas gostava tanto de te contar histórias que lá ouvi sobre a guerra civil ali ao lado e que terei contado mas não ouviste como quase sempre que me ouviste. Gostava tanto de te dizer, de me queixar. É de noite, gostava. Há silêncio no mundo, tu sabes, duas pessoas que se não conhecem e se encontram de noite por acaso são capazes de dizer tudo, depois separam-se e nunca mais se vêem. Há silêncio e tenho uma vontade enorme de "desabafar". É horrível. Desabafar. Insultam-se sempre os outros com o desabafo, obrigam-se à piedade. Insultamo-nos a nós com a piedade deles - e como podes tê-la tu ainda para mim? tu é que precisas tanto. De modo que no julgamento foram condenados os três. O velho, que foi morto, o homem, que foi para a cadeia, e a mulher, que ficou sozinha com a carga dos filhos - que é a lei? que é que quis dizer a minha vida, sua funcionária? Havia ainda muitas histórias vivas da guerra civil, vou-te contar algumas. São histórias horríveis, querida. Mas o mais horrível delas é que se não sabe onde é que o são. Um dia o Pereira de Direito, era alto magríssimo, usava monóculo e nós chamávamos-lhe o Pereira Monocular. Um dia, já no fim do curso
- João Vieira - disse-me ele, saíamos da aula para os Gerais -, vou propor o seu nome para meu assistente, que é que diz?
Teoria do Direito. Gostava da cadeira, era um jogo tão engraçado. E pensei logo nela para a minha tese de doutoramento. Mas deixa-me contar-te algumas histórias que não ouviste quando tas contei. A noite começa a ser de mais para a minha luz acesa, D. Felicidade deve andar na sua ronda. Mas agora custa menos, a noite. Difícil é o anoitecer. Vale-me a deformação profissional, querida. Para todos os apertos há sempre um novo argumento. O Pereira Monocular, quando fez o doutoramento, talvez não saibas, lá na cidade estudantil vive-se da legenda, tu viveste muito cedo para a ginástica, que ficava mais perto do teu corpo. O Pereira Monocular, quando fez o doutoramento, contava-se, ele já era velho no meu tempo. Quando estava em plena discussão da tese, caiu-lhe o monóculo e escacou-se. O arguente, por delicadeza, disse-lhe
- E então agora como vai ser, o senhor sem o monóculo?
- Até para isso tenho novos argumentos - disse o Pereira.
E meteu a mão ao bolso. E tirou um novo monóculo, há sempre argumentos para tudo, Mónica. Mas o anoitecer. É o mais difícil. Não, não me esqueci das histórias da guerra civil, o anoitecer, deixa-me dizer-te. Já te conto as histórias - a Teoria do Direito e a minha vida toda nessa teoria, que é por isso que tas quero contar. O anoitecer. É a hora má entre a vida e a morte. A agonia. Está-se muito só, querida. É a hora em que. Mas antes que me esqueça. O André, eu disse-te que me telefonou quando vim para aqui? Não telefonou. E que estava numa roça de S. Tomé? Não sei se estava na altura em que o pensei, não quando to disse, mas na altura do tempo em que então devia estar quando há bocado o pensei. Mas agora não está. Agora está no interior da Austrália, creio que numa exploração agrícola. Ele é que o diz mas não sei onde pára a carta onde suponho que o diz. E mandou-me versos, imagina. É um poema extenso, muito bonito. Só me lembro do primeiro verso, vou-to dizer para o pensares aí na cova. Diz assim:
Brr pupu, tpdogrt bu bu
Bonito, não é? Aliás, deves lembrar-te, ele teve sempre a sua veia poética, recordo-me de um soneto que fez sobre a coca-cola. Mas o mais difícil é o anoitecer. Está-se muito só, Mónica. E a hora em que. Mas o André sempre teve a sua queda para a poesia. Deves lembrar-te de quando uma vez trazia metade da cabeça rapada e pintada creio que de azul, de quando te enfureceste com ele. E ele te disse os versos sobre a coca-cola, me parece. É a hora em que de'um a um os apoios se nos retraem e as vozes da rua que também apoiam o seu tanto. A hora em que, não, o André não telefonou - e como havia ele de telefonar lá de tão longe? Nem o Teo. Preciso de te dizer que o Teo tem por nós - não é desprezo, não. É um pouco subalternizar-nos para um projecto ou dever mais amplo totalizador, como os apóstolos ou os políticos. A hora em que o mundo começa a afastar-se de nós e leva consigo a vida e tudo o que nos tornava plausíveis, mesmo aqui, e em que a gente podia confiar. A hora em que a criança que está em nós e não há modos de nos largar vem até à garganta e faz beiça e quer pôr-se a choramingar com um prazer doce. A hora em que a morte - mas espera um pouco, desculpa. A D. Felicidade não aprova estas idas à casa de banho a horas mortas - e como é difícil o trabalho, apoiado numa perna e na muleta do outro lado. Diz ela que o barulho do autoclismo acorda as velhinhas mais sensíveis, mas ela que desculpe, tenho mesmo de resolver este problema.
Bom. Resolvi. Mas ia-te a dizer eu que era a hora em que a morte - já não sei o que ia a dizer sobre a morte. Talvez que ela é mais plausível de noite pela imensa solidão. Já me vou acomodando, mas mesmo assim. A hora em que estamos a sós connosco, com esta coisa terrível que somos nós por dentro vivíssimos e não há público nenhum para nos ajudar. A hora em que tudo é imenso como um olhar cego. Mas ia-te a contar. A princípio os foragidos à guerra civil atravessavam em massa as fronteiras. Vinham confiantes, estavam em terra estrangeira. Então a polícia reconduzia-os aos magotes à fronteira. E logo ali, a seco, eram fuzilados. E então passaram a acautelar-se. Sabiam que afinal continuavam em terra inimiga, eram mais cuidadosos. Soube tantas histórias, Mónica. Foi quando reparei que havia um direito, e um direito igual mas oposto. Mas havia ainda o direito fora do direito e que era direito à mesma - tantas histórias. A rapariga que quando vai ser fuzilada
- Um momento tira um lenço do pescoço
- Un recuerdo e o dá a um dos tipos que a vai fuzilar. Ou a do fugitivo que chega estoirado da caminhada e pede a um tipo não sei quê e a quem o tipo diz que entre e descanse e ele entra e descansa sobre uma mesa e cai logo num sono de pedra enquanto o tipo sai e volta com um sujeito e o sujeito dispara-lhe um tiro à cabeça e o fugitivo ficou quieto como estava, deitado de bruços na mesa e morto. Quem me contava isto era o senhor Acácio da farmácia com o médico Moreno, o mais novo de dois irmãos médicos. Mas contavam-no a frio, quase sem emoção e tudo era assim mais terrível, a emoção estava toda concentrada no que diziam e não a gastavam para fora disso. Ou a história dos cinco fugitivos, que iniciaram uma marcha sem fim até ao mar, são cento e muitos quilómetros, querida. Depois tomariam aí um barco para a terra da promissão, não sei onde. Viajavam espaçados durante a noite, dormiam escondidos durante o dia. E aqui começa uma caça da polícia e eu assisto na narrativa pormenorizada do senhor Acácio. Sabe os locais em que tudo vai acontecendo e em face disso vou com eles também. Somos cinco, fora eu, vamos pelo escuro das noites. E é inverno. Está frio. Neve e chuva e lama no tropeado dos barrancos. Evitamos as estradas, que é o caminho recto dos cavaleiros da peste. Caminhamos desencontrados, querida, levamos a esperança num bolso. Num bolso das calças, seguramo-la como uma moeda. Não se compra nada com ela, é uma moeda, tem um valor alto para uma criança. Vamos ali sem razão e isto é o que mais me aflige, Mónica. Ou a razão fica longe, para trás de nós, não tem sentido ali. Ou o tem tão alto como o destino, não o sabemos. Ou tão profundo como o inconsciente, não o sabemos. É uma moeda achada por acaso, seguramo-la num bolso com a mão. Compramos com ela a razão de irmos ali, o capote para o frio, as botas para as pedras. Às vezes, de longe em longe, um casal perdido, dão-nos um bocado de pão, uma tigela de sopa, fazem-nos uma pergunta oblíqua como uma facada baixa. Somos peregrinos, respondemos, vimos da maldição à procura do Oriente. Não é para aí o Oriente. É, é. Estará o mundo ao contrário? perguntam-nos. É, é.
E então de súbito os cavaleiros da peste. São velozes e metálicos, querida Mónica. Atiram punhados de raios e eles cravam-se por toda a parte, atiram-nos dos olhos sulfúricos. E de uma vez apanharam um de nós. Meteram-no num saco da sela e levaram-no. E quando nos juntámos ao pé de uma capela um de nós disse: paz à sua alma. E outro perguntou levou a moeda consigo? ninguém lhe recebeu a moeda? E houve mais frio e tristeza e incompreensível esperança. Porque a esperança é tanto maior quanto menor a razão dela. Para forçar o destino, suponho, e depois os cavaleiros pestíferos levaram outro. E depois outro. E mais adiante outro e a fé crescia mais naquele que restava e houve razão nesse crescer porque chegou ao termo e embarcou aí para o Oriente que não ficava desse lado.
Mas tenho outra história para te contar, querida, que se calhar ainda é mais terrível do que as que te contei. Valerá a pena contar?, tenho pressa de te dizer outras coisas, mesmo que me não ouças, enquanto fazes malha aí na cova.
É a história da muda, vê então se ouves. A muda apareceu perto da cidade, vinha numa das levas do terror. Então apanharam-na, Mónica, e quiseram saber coisas. Queriam sabê-las aos berros e depois aos murros e depois com tiros circunstanciais para amedrontar. Mesmo um dos tiros caiu num outro tipo que também viera nessa leva. Mas a muda não falava, porque era muda e só dizia pu pu e nhá nhá e fazia gestos a explicar. Então meteram-na numa cadeia e no outro dia voltaram. E quando já estavam chateados e ela também, a muda disse
- Dejadme morir en paz
e o polícia puxou imediatamente da pistola e ela sorriu. Era um sorriso belo e terrível. E apanhava-lhe todo o rosto e formava uma auréola à volta e era assim, como dizer-te? era assim como o sinal da sua divindade. E o pistoleiro hesitou. Encostou-lhe a pistola à cabeça a hesitar. E ela então disse-lhe
- No tengas miedo
e ele a tremer disparou enfim. E ela caiu morta. E olhava-o serena e disse-lhe ainda por entre o sorriso e já morta
- No tengas miedo.
Mas ele teve sempre. E dias depois atravessava a cidade com o seu terror e declarava bem alto eu só por mim já liquidei dezoito. Era a sua forma mais à mão de não ter medo. Mas tinha. Agora tu dirás, querida, que horror. Nunca foste muito dada à piedade, que tem sempre a ver com deficiência muscular, mas mesmo assim vais dizer que horror. Se eu contei bem. Se eu consegui passar-te para dentro da minha sensibilidade que é onde todas as coisas são reais. Mas agora ouve. Tu lembras-te da Pilar? Não, não é essa. É a Pilar que é espanhola e foi casada com o meu primo. Sim, essa. A que passou a guerra civil do outro lado. Não te vou lembrar os horrores que ela viu. A gente ouvia e pensava - que bandidos, coitados dos fascistas. E era preciso pensar que bandidos do lado de cá, coitados dos republicanos, para não pensarmos coitados dos fascistas. Ela contou-me. Estou de repente a lembrar-me daquele fascista que foi enrolado em cordas e enfiado na boca de um canhão como um cigarro numa boquilha e deixado para ali a apodrecer dias e dias. E ele só pedia que disparassem o tiro e os governamentais só daí a uma semana ou mais é que dispararam o canhão. E o fascista foi pulverizado no ar - mas não digas que horror que eu já não conto mais nada. E agora ouve. O direito de cada lado porque é que era direito em face do outro? E em qual dos dois está incluído o direito à barbaridade? É um terceiro direito que ninguém sabe, querida. O Pereira Monocular um dia disse-me precisava de si
- precisava do senhor para meu assistente e eu durante alguns dias pensei obsessivamente numa tese sobre Teoria do Direito. Está aqui o Monocular a convidar-me, vou dizer-lhe que sim, que sim, tu que pensas? Vejo-te a face subitamente séria, estamos numa pastelaria da praça da República, yejo-te muito bem. Subitamente séria a decidir e enquanto não decides vou pensar na minha tese. Repasso os autores do meu conhecimento, revejo a parada da justiça da humanidade.
- E quanto ganhas? E quando começas a ganhar melhor? E quantos anos tens de andar nem fora nem dentro?
Querida. Não me interrompas. Vou pensar na minha tese, depois já penso na tua economia. Não tenho ainda uma ideia para a tese, tenho é uma vontade bruta de reflectir. Nós somos muito crianças até muito tarde, Mónica, a gente só muito tarde é que faz ideia da quantidade de coisas que engoliu sem mastigar. Uma voracidade assim, a gente engolia tudo, as coisas não eram para pensar, mastigar, eram só para engolir.
- Abre a boca!
e a gente abria. Ser criança é ter muitos deuses à volta, a gente não discute e está-se tão bem a terem eles a autoridade. Tudo quanto me ensinaram era indiscutível como haver coisas. A gente não discutia, que significado tinha discutir? era o mesmo que discutirmos a tabuada. Mas já nem sei a que propósito vinha isto. Alguns tipos mais evoluídos falam em magister dixit e em ipsis verbis. Mas não é isso, não há aí nenhuma imposição. A imposição é nossa, é do mau fabrico do homem. Nós levamos imenso tempo' até nos perguntarmos porquê. Na infância ainda nos ensinam como se não faz chichi nas calças. Depois ralham-nos para tomarmos termos e não as molharmos. Depois levamos às vezes a vida inteira sem perguntar nada. A gente aceita as coisas sem as pensar, deve ser a defesa instintiva da espécie e da paz social. Mesmo as coisas mais superficiais. A gente leva tempo a aprender as regras do trânsito num certo bairro mais difícil e um dia mudam as regras e nunca ninguém pergunta porquê. A gente aceita tudo como aceita as pedra e as moscas, o mais que pode é sacudi-las mas não as discute. As leis aceitam-se, o mais que se pode é transgredi-las para as nossas malhoadas. E há mesmo mais, Mónica, a prática de uma coisa segura a carapaça dessa coisa. E a carapaça continua, mesmo que se lhe coma o interior como o de uma santola, deixa-me especular um pouco. O respeito habituado é que cria o respeito, não a coisa respeitável que a gente pode deixar de respeitar. Um tipo que deixa a igreja não deixa de lhe rondar o adro. Havia lá na aldeia um sujeito rico que se trancou na mulher de um campónio. E o campónio deu-lhe um arraial mas pediu-lhe desculpa e continuou a tirar-lhe o chapéu. Conheci um tipo que deixou de ser crente mas continuou a rezar ave-marias ao deitar. E já não sei a que propósito vinha isto, deixa ver se me lembro. Bom, não me lembro, mas é o mesmo. Ah, já sei, era por causa do Monocular. É uma estupidez dizer-se que o magister dixit e o ipsis verbis - não é verdade. Pensar o porquê das coisas é ser quase tarado. Imagina agora um sujeito a discutir a tabuada ou as ciências naturais ou o programa do que lhe ensinaram ou as leis que o fazem social. Dentro de uma casa não se vê a casa e sair dela dá muito trabalho. Conheço tipos que se casam e não largam o choco paterno porque mete muita chatice. Não é só uma questão de bago para o bife e o tabaco, é também o das leis em que encostem a preguiça. E se saem do choco, levam as leis com eles porque dá trabalho arranjarem outras - e perdi-me outra vez. Ah, o Pereira Monocular
- Precisava de si para assistente
um dia disse-me. Convidou-me a ir lá a casa jantar, lembro-me perfeitamente do que comi. Morava em Montarroio, era uma tarde de verão, havia pelo menos calor no fresco das janelas abertas. A cidade descia para a avenida, depois subia na colina, abria-se em panorama, deixa-me olhar ainda um pouco. Abre-se no céu como uma balada, deixa-me ouvir. Lembro-me exactamente do que comi, mas não sei o que foi. O Monocular era um tipo de físico militarizado e nas ideias, muito rígido perpendicular, articulado em precisão. Lembro-me claramente do que comi, pouca substância no prato mas eu comia e era como se comesse cimento armado. Comida concentrada, ouvia-a bater no estômago e formar um pequeno monte de pedras - abre-se na tarde a cidade longínqua. Cidade para sempre perdida, deixa-me ter um pouco de melancolia. Desdobra-se branca na colina como a essência da memória, que tem a cor do leite. Apetecia-me agora parar um pouco de te escrever, tenho a lembrança tão comprimida. Não pelo que aconteceu mas pelo que aconteceu depois disso e que não foi nada. Estou verdadeiramente só, minha querida. Ou não bem isso, não sei. Está-se só quando há qualquer coisa de nós à volta para haver diferença e distanciação. Tenho a minha vida inteira no bolso, vou talvez deitá-la ao lixo. Se a deitar ninguém dá conta como quando se puxa o autoclismo. Mas eu não quero que te comovas, era só para explicar. E então vêm-me ideias lembranças e eu ponho-as à volta para melhorar a paisagem. São coisas súbito imóveis, resplandecem como a estrela dos reis magos. Passa-dismo dizes tu de olhos baixos, enquanto fazes malha na cova. Não é, quero dizer, não é bem. Porque podem ser coisas do passado ou de qualquer tempo. Ou de tempo nenhum, que é o tempo de todas elas. O importante é que brilhem e façam companhia como uma candeia. No inverno na aldeia era assim, todos à volta da braseira e um candeeiro a vigiar o sono geral. São imagens imóveis contra a consumpção mortal. O fulgor, a eternidade portátil e caseira, não tenho mais nada para ir sendo humano com um furo acima da minhoca. E depois essa coisa de passadismo - querias que me voltasse para o futuro onde está a morte, cheia de pressa terrestre? e que me fiscaliza o físico a ver se a coisa se despacha? e me examina meticulosamente a perna direita a ver se o bom exemplo da esquerda frutifica? O passadismo. Mas tu pensas que sou parvo? que sou optimista e futurista como os políticos profissionais? E aí está como com a conversa deixei de olhar a cidade e de ouvir o Monocular. Abre-se a todo o espaço, a cidade, como um coral indistinto do inatingível e a vertigem do tempo que vem em todo o entardecer. Olho-a ainda, olho-a sempre, há agora para então o horrível da ternura e eu estou quase a ajoelhar mas o Monocular - e então que diz?
- Aceita a minha proposta?
e eu disse que sim, que sim, que sim. Não, eu disse apenas que sim. Tive mesmo de súbito a ideia da "tese".
- Tenho já a ideia. Teoria do Direito, filosofia do direito. E por aí.
Mas é estupendo, disse ele, não sei é se, disse eu, qual não sabe? disse ele, mas para mim seria a única matéria que, disse eu, vamos conversar um pouco no escritório, disse ele, e eu inclinei-me com, se o senhor doutor o permite, com o maior prazer. Gervásia, traz cafés - disse ele. Entrámos no escritório, era amplo, todo à volta envidraçado de saber. E imediatamente abordámos algumas ideias gerais, a problemática fundamental do direito e o progresso difícil nesse domínio escabroso e os prazos para a elaboração da tese. Claro que no domínio geral da problemática vale mais um assunto preciso delimitado especializado bem demarcado, é cedo ainda, bem entendido, mas digamos uma zona já mais frequentada. Havia muito saber nos armários estantes com vidros e reposteiros para o isolarem na sua intimidade racionalidade da profanação miséria grosseria doméstica. E estávamos nisto quando a criada veio à porta e disse
- Está lá fora um senhor que pede muita desculpa mas diz que o homem é no geral um grande filho da puta.
- Manda entrar - disse o Pereira Monocular, continuando para mim a conversa sobre o assunto preciso delimitado especializado, e o homem entrou. Era um tipo de olhar selvagem, um arcaz de peito de ferreiro ou ferrador. Traz um café para este senhor, disse o Pereira, tomávamos agora os três café. O homem é uma besta, continuou o outro de olhar feroz. Eu disse um lobo para o outro homem? disse ainda. É um tigre, um. Como querem os senhores a paz social e a harmonia e o progresso sem um domador profissional? Todo o direito é uma violência, não percebo como é que os senhores não percebem. E foi quando a Gervásia veio outra vez à porta a dizer que
- Está lá fora um senhor a dizer para este senhor que puta era a mãe dele.
- Manda entrar.
Trazia uma peruca longa e abundante que lhe tombava em grandes caracóis para as espáduas. E imediatamente se virou contra o outro, erguia no dedo ao alto o direito natural. O voto popular. Ojus naturale. Porque já mesmo o estagirita. A fisis e o nomos
- Está lá fora um senhor a dizer que
- Manda entrar
Mas daí a pouco, outros e outros, manda entrar, a sala era ampla, iam chegando, de peruca, de gibão, bofes aos folhos no pescoço, de vestuário democrático, sentavam-se à volta. Gervásia trazia café, uma discussão infernal, eu ia apanhando aqui e ali coisas do meu saber avulso e pedagógico. Havia uma ideia mais batida, o tipo primeiro insistia que o homem é um estupor, rédea curta e chicote para haver paz social. E o outro dizia que estupidez. O homem é bom de sua natureza, deixem-no dizer como é que quer. Mas dizer quê? Há a razão universal, já os estóicos e mesmo depois a Igreja
- Está lá fora o senhor bispo de Leontópolis
- Manda entrar
e os teóricos da Revolução. Não há razão nenhuma, isso é uma vigarice, a mania da razão, que razão? o universo não tem razão, o universo é estúpido. Mas há a moral e os costumes e o Estado que os põe em alíneas e parágrafos. Os costumes, que costumes? O costume era atirar do Taígeto abaixo as crianças com defeitos de fabrico, e o casamento cum manu que durou imenso tempo até ao sine manu. Mas não sei se sabes, minha querida, se a lei fosse agora cum manu, eu podia matar-te, esfolar-te e pôr-te talvez dependurada à porta de um talho antropofágico. E depois levantou-se uma balbúrdia porque e a moral? Há o direito e a moral. E o senhor bispo de Leontópolis com o seu sorriso eclesiástico disse que era uma distinção do demónio e dos hereges, a moral e a Igreja e o direito eram como a Santíssima Trindade e um só Deus, o grave erro fora matar um corpo vivo para o dissecar e a voz do povo é a anarquia e a voz da anarquia é o garrote do poder absoluto. Mas justamente, vejamos, o poder e o estado. Mas antes disso, vejamos, desde quando o direito e a moral andam à trolha? Mas os senhores dizem, quem foi que disse? que o direito natural existe, que há princípios eternos e intocáveis de justiça, que laracha para atrasados mentais! Já os sofistas, eu tenho aqui no miolo uma frase de Tresímaco "afirmo que a justiça não é senão o que convém aos mais fortes". E nesta altura, era um tipo magro alto seco mas não usava monóculo como o Pereira Monocular, muito hirto militarizado nas articulações mentais. Mas é o único problema, a única solução - disse ele muito ósseo -, a forma única lúcida de entender todo o problema, estado, direito, poder, administração, como é que os senhores podem distingui-los? Se um tipo cavalgar um país, o poder e o direito estão com ele e o cavalo com o resto, isto é tão evidente, como é que?
- Está lá fora um senhor com uma carga às costas, diz que são as XII Tábuas
Tudo é poder e direito desde o código de Hamurabi, como diabo, com perdão do senhor bispo de Leontópolis, como diabo é que os senhores podem discutir o direito de quem o tem já nas unhas? Como é que se pode discutir o direito a sério em qualquer época do passado ou o direito do que foi direito? O poder real é um facto como as pedras ou os cães. Acaso os senhores vão discutir os cães ou as moscas? Mas aqui levantou-se uma algazarra e eu mal ouvi porque eram muitos decibeis para os meus ouvidos, as moscas matam-se ou enxotam-se, os cães danados abatem-se. Mas e depois? o homem articulado dizia. O novo direito que conseguirem é a moral e a justiça e a administração para a pôr a funcionar. O estado sou eu e esta é a palavra final, o direito é o código mais a polícia, o direito é a estupidez mais a razão para o não parecer, o direito é a toga ou o gibão ou a casaca e a beleza descoberta no talhe de qualquer albarda, o direito é a verdade do erro que se segue - e aqui reparo que a sala está deserta, só eu diante do Pereira Monocular mumificado
- Aceita a minha proposta?
e eu disse que, digamos sobre o, qualquer coisa por aí e o Monocular sorriu, minha querida, imaginas um sorriso ósseo técnico escaveirado? sorriu breve e disse
- Não toma mais café? Gervásia. Mais um café para o senhor doutor.
Olhei à volta os sofás dispostos em concílio, as estantes escuras, cheias do seu saber recluso atrás dos vidros para um estudo ritual, em encadernações elitistas sacralizadas contra uma cultura proletarizada. Olhei o Pereira do monóculo e o monóculo do Pereira que o perfilava na vertical, porque tu nunca viste, minha querida, um monóculo num corcunda, que o estilizava em essencialidade e elegância, em agudeza analítica, porque nunca viste, eu nunca vi um gordalhufo de monóculo, a não ser talvez para parecer mais magro.
E era já noite fechada quando saí e a cidade brilhava agora no escuro como no velório de um mundo. Mas eu preciso de me queixar, minha Mónica, e ainda não pude, com toda esta sarrabulhada que se me intrometeu na conversa. Preciso de alijar a carga que me pesa na minha responsabilidade de ser humano. Porque o problema é este
- que é que? Mas o que pesa em mim é esta hora de abandono em que a criança que vive em nós, mas creio que já to disse, em que a criança que dura em nós faz beicinho porque o mundo é de mais e nada o traz à nossa medida. O problema é outro e talvez mais adulto - que é que eu fui em responsabilidade própria para dar contas à morte? O balanço da humanidade, querida Mónica, faz-se no infinito
- quais as minhas parcelas do deve e haver? Enchi a minha vida com um destino de polícia, que é um prostituto pago pela lei que é. Que fui eu no instável e provisório? Gostava de poder pensar - não te sei dizer. Deve haver uma lei inscrita no eterno, a cumprir no infinito, que é onde se fazem todas as contas. Uma lei em que se inscreva o homem que mata e o lobo e o cordeiro e a formiga e a toupeira que estragava as culturas ao meu avô. E que os deuses cumpram. E os astros. Gostava de pensar que eu cumpri mesmo no erro e estupidez e injustiça, num fragmento de uma lei mais vasta, inscrita no imutável e impossível, gostava. Mas a minha vista é curta, Mónica, sou uma coisa inútil vil, a minha vida foi um ludíbrio como essas mentiras com que se enganam as crianças para acabarem com a chatice do choro. Estou a cair para o macambúzio, tu não gostas e tens razão, aguenta lá. Queria pensar que entro nas contas do deve e haver a saldar no ininteligível, não sou capaz. Sei que há o incomensurável, o ilimitado de todo o limite, o absoluto de todo o contingente e um pouco às vezes me apazigua a ideia que não tenho agora. O absoluto da justiça, da lei, do incompreensível dos nossos filhos, da perna que me levaram, do mais que me hão-de levar. Mas agora estou só comigo. No horror do vazio que uma ideia preencha. Na interrogação intensa sobre o sentido do que fui. Na estupidez de me cumprir como servo de um senhor que não existe,
- Não precisa de alguma coisa?
e a D. Felicidade. Tem uma vigilância de mocho, de coruja, bate à porta como o destino - servo de um senhor mais inexistente que Deus que de todo o modo é mais real nos catecismos. Mas estou cansado, vou dormir. E estou farto de me complicar no que é mais simples do que eu. O tempo que gastei nisso. Espero que tenhas saltado a desnecessidade de muitas linhas, vou ser simples agora. Vou-te falar do que há de mais simples em ser humano. E de repente, mas deve ter sido do banho, minha querida. Mas não sei se, houve talvez um antecedente, não sei se vou ser capaz. Foi a Antónia, não sei. Mas tanta coisa está à espera de vir à conversa. O pontapé que o guarda-redes espera e os milhares de pessoas com ele e eu. O lenço que o Teo põe na mão quando lhe encosta a cabeça. O Salus que é Salustiano sem revolução. O Teo outra vez, antes de me mutilarem. O desaparecimento do mundo à minha volta. A Márcia e a invasão da nossa casa pela caravana da filharada sortida, oh. Tenho tanto que estar contigo antes de
- Nunca te gramei
antes de haver horror à tua volta, preciso tanto de te amar. Vou-te amar a divindade do teu corpo. Vou, vou.
Meu amor - que amor? Não és tu. És, és. Não és. Na realidade não sei. Na realidade há o que existe, o que se diz um facto, o que se avalia ao quilo ou ao quilómetro. E há o que nos existe, aquilo que está por dentro ou nós por dentro disso - vou amar o teu corpo como nunca te amei. Um corpo é tão misterioso e o nosso mistério com ele. Tenho muita coisa a dizer-te, isso que espere. Porque eu amei o teu corpo de tanta maneira, não sei se contigo também aconteceu assim. Ama-se um corpo como instrumento de amar, como forma de onanismo de que o trabalho é dele. Ou como êxtase de um terror paralítico. Ou como orientação ao impossível que não está lá. Com raiva desespero de quem já não pode mais e não sabe o quê. Como avidez insuportável não de o ter tido na mão, porque o podemos ter nela, sofregamente, boca seios o volume quente harmonioso da anca e tudo esmagar até à fúria, ter o que aí se procura e que é o que lá está, mas não o que está atrás disso e é justamente o que se procura e se não sabe o que é nem jamais poderemos atingir. Ou como rancor de nós próprios, amor podre da nossa abjecção, asco cuspo estrume, nojo repelência. Ou como - não sei. Um corpo de mulher. É isso, é isso, minha querida. O teu corpo. Há muita forma de o ter, já não sei bem como to tive. Devo tê-lo tido na variada forma de to conhecer, que é a forma humana de to esquecer. Sim, esquecer. Mas preciso agora absolutamente de. Minha ternura. Adoração tolhida, mas não é bem isso. Vou-te amar intensamente como nunca. Amei-te com avidez precipitação impreparação juvenil. Havia uma distância enorme de permeio e eu tinha de a preencher. Amei-te depois com luxúria como se diz no catecismo. E amei-te como cumprimento de um horário semanal. Com raiva humilhação quando andaste, eu nem sei se andaste lá com o teu colega patarata. E porque é que não sei? Minha querida. Tinhas um grande orgulho ou vaidade no teu corpo, e desde a história do Bem sei lá o que tu querias. Seduzir, dares aos outros a possibilidade de partilharem do maravilhoso de ti e acirrares-me domesticares-me obrigares-me a ajoelhar. Silêncio - e já falei tanto. Vou pôr na rua da lembrança tudo o que não for a tua nudez, a amargura vexame sofrimento. Mesmo as alegrias que não são para aqui. Mesmo os filhos que também não - a vida inteira que passou. Preciso tanto de te amar - e como te vou amar? Não sei. Vou-te amar no infinito da tua perfeição.
- Eu te baptizo em nome da Terra da tua beleza no instante em que Deus a imaginou. Do insuportável do teu corpo inteiro, oh, não te rias. Tiveste sempre uma alegria exterior excessiva, da que se fabrica na rua sociável como o choro num enterro, da que era uma tua forma de existires em ginástica, da que era como se não fosse tua como o riso de uma anedota. Mónica, minha querida. A alegria não ri como a amargura não chora - mas já falei tanto. Agora definitivamente. Tu e eu só. No círculo fechado de um destino comum. A sós. Nem Deus. Nem o anjo - lembras-te? no rio? Estendida na cama, estendo-te na cama devagar. Vou-te inventar aí, preciso de tanta atenção para me não transtornar de transtorno mental. De desajeitamento pueril. De violência. Deito-te alongada, olho-te - onde? Na cidade juvenil? Talvez já aqui, na nossa casa. Vou deitar-te na eternidade, que é esse o teu lugar, é esse, é esse. E agora só tenho que te amar tudo de ti, não deixar nada de fora. Porque, sabê-lo-ás? nunca ninguém amou completamente, houve sempre uma forma de amar fragmentária, parcial. Amou-se sempre em função de uma fracção do amor como se usou um vestuário segundo a moda, desde o calção ou o penante de plumas. Vou-te amar como Deus. Não, não. Deus não sente prazer nem movimento progressivo até ao prazer, coitado, é tão infeliz. Vou-te amar como um homem desde que os há, desde o tempo das cavernas até hoje e com um pequeno suplemento que é só meu. Meu amor. Mónica, minha querida.
- Sabes uma coisa, João?
Antes de haver morte e corrupção e horror à tua volta. Minha Mónica até sempre. Estás deitada longa nua, olho-te. Corpo doce de ternura. Intacta intangível, o meu dedo leve no lume da tua pele. Não ris. Mas há um sorriso em qualquer parte do teu corpo, é o sorriso de existires. Na face, na curva do teu ventre. No lineamento da tua anca.
Em qualquer parte de ti. É uma vertigem de limpidez, frescura vitalidade virgem, a tua pele. É aéreo, perdeu a densidade e todavia pesa denso para fertilizar o mundo, o teu corpo. Mas quero olhá-lo ainda, há tanto espaço ainda nos meus olhos. A tua franja de azougue como um erro de cromossomas, plácido agora na minha paralisia. E o teu cabelo. Curto rápido na mobilidade de rapaz que desististe de ser. E a face. Digo face e apetece-me logo encostar-me ao nome. É linda. E que posso eu dizer mais? É linda, tenho medo de a tocar. Um dedo leve num lábio breve, tu estás tão longe da minha possibilidade humana. Um dedo leve, não sei, ver-te sem te tocar. De leve. No susto de te dissipares.
- Avô.
Estamos fora do tempo. Das idades. No susto de te desvaneceres. Tens os olhos cerrados mansos sobre ti para nada fugir de ti e eu ter-te toda no meu punho sangrento. E então soergo-me para que o meu imaginário se cumpra e se esgote. Perfeita inteira. Nenhuma linha se desvia pelo caminho da imperfeição. É a perfeição do embalo, a curva de um berço - e os seios. Fáceis leves como o teu corpo, mas não nascem dele. Seios de si mesmos, sem auréola, seios de puberdade. Têm já o desenho para uma boca infantil de um dia, há-de haver essa boca quando entrares no tempo, na história corruptível da criação. Sem tempo agora, forma absoluta de uma geometria, que é a essência do incorruptível. Há um modo de o corpo ser, eles são esse modo. Integrados como a linha de um gesto. Ou uma flor. Ou uma pedra. Ou um cão. Integrados numa linha como um destino, que estupidez querer explicar o ser. Ou o azul. Ou uma cor que não existe e é a tua. Ou a harmonia do repouso da minha vida inteira aí.
Mas neste instante - vou deixá-los, se eu criasse a tua realidade fundamental nas minhas mãos? O tacto. Que sentido curioso. Sentido bruto, minha querida, uma certa maneira grossa de se ser. E todavia. Que invenção de delicadeza, Mónica, deixa-o cumprir na sua vocação terrestre. As coisas têm de ter volume e peso e matéria para a nossa condição. Mas nelas a volúpia do côncavo e do convexo. Da fuga de uma linha. Quero é agora ter-te na tua densidade exemplar. Fertilidade da tua boca na minha, toque ápice da tua língua subtil. No côncavo das minhas mãos a massa dos teus volumes. E os teus braços de vigor, lentos à volta do meu pescoço. E devagar, ao centro de convergência de toda a bruta inquietação, rígida a procura do teu abismo interior. Refreio o ímpeto, quero entrar com a consciência difícil do que procuro, o impossível do teu ser. Rebento no limite de reter-me no sofrimento. Mas quero entender, entender. O modo único de nada me escapar ao prazer de ti. Do mistério irritante do que acontece no amar-te agora por sobre quanto te amei. Entender. Amar-te na conglomeração de todas as vezes e formas e impossível em que te amei. Mónica, minha querida. Minha doença insuportável. Porque o teu corpo não é só o teu corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em ti, e a tua pessoa estar lá, seres tu ainda no íntimo de te tocar e estares aí como no teu riso, na tua presença. Seres tu ainda quase reconhecível como se não soubesse que eras tu e entrar em ti e reconhecer-te como se aí fosses reconhecível.
Preciso de entender, não te vou agora amar à toa. Seres por dentro única como nas impressões digitais. Saber que és tu, mesmo sendo cego e surdo. Entrar em ti e tu estares toda lá dentro como estás por fora. Tocar o intransmissível de ti, reconhecer que és tu, inconfundível, no igual do teu íntimo ao de toda a mulher. Porque tu és tão diferente. No riso no ar na voz, na totalidade do teu corpo. E sentir que isso tudo é lá também esse tudo. Diferente na sua igualdade. Entrar em ti e ir reconhecendo pouco a pouco no meu entrar a mulher que amo até à estupidez. Reconhecer encontrar dentro o que amei fora. Nunca te amei toda, vou-te amar o que sempre faltou. Nunca te amei tudo, aproveitei sempre apenas uma fatia de te amar. O teu olhar, o teu riso, a exemplaridade do teu corpo, o seu espectáculo, o encantamento às vezes, o teu andar, o prazer rápido, o prazer trabalhado para te submeter a tê-lo. Coisas assim avulsas. Vou-te amar agora, vou-te amar no absoluto. Amar-te no prazer e rebentar.
E então lentamente os dois corpos em movimento, convergentes a um centro em fusão. A ânsia, a vertigem. Como é extraordinário que o sentir mais intenso não se saiba dizer. As tuas pernas cruzadas sobre os meus rins, as minhas mãos em todo o teu corpo animal. E na avidez acelerada, tu irmanada à urgência do impossível, ao uivo, atravessados um e outro por um demónio em chamas, ter-te, repassar-me inteiro para ti, as minhas mãos sob os teus braços nos teus ombros, retrair-te toda a mim, até à dor à agonia, repassar-te para mim, corroídos ambos de uma dor horrível até ao estrume de nós, à abjecção, destruição em farrapos do que é ainda em nós um corpo, o que o identifique, a raiva horrorosa de quanto em nós é animal desde a animalidade da selva, do escuro das cavernas e o rebentamento final de uma agonia até ao vazio do incompreensível e da morte. E assim ficamos longo tempo, restos, detritos, espojados um no outro, deslassados, estrume para o vazadoiro, esgotados, na lenta recuperação da identidade de nós, na fria neutra materialidade de dois corpos de carne morta. Descanso a minha face na tua, no teu ombro, a excrescência de mim no teu interior, tu ainda amortecida, retraída a ti devagar, na babugem da onda estoirada amortecida efervescente na areia. E assim estamos, não nos movemos, à espera de que cada um se reconheça a si, fechado em si, verdadeiro na sua independência.
Até que, era um murmúrio incerto, ciciado sibilado. Tinha a minha face no teu ombro, ouvia o teu segredar no meu ouvido, mas não era no meu ouvido. Soergui-me rápido, olhei a tua face. Era uma face séria grave, moldada numa memória de estátua, os olhos cerrados em beatitude. Mas os lábios moviam-se brevemente, que estarias a dizer? Lembrei-me absurdamente de um poema do André, estarias a recitá-lo?
Bzzz, bzzz, mm mm bz
- Mónica - disse-te com a suavidade que pude mas nem abriste os olhos. Cerrada em ti, bzzmdvptzz, eram sons apenas e bruscamente entendi. Eram sons apenas, mas só para o exterior, para o interior eram palavras que eu não percebia. Porque tu rezavas sob o peso do meu corpo, os olhos cerrados sobre ti, tu rezavas num sibilo quase inaudível e eu dei-te um berro imenso
- Mónica! Ainda não é tempo de rezares! O Teo ainda te não levou! Mónica! Sou eu que estou aqui!
Sob o meu corpo, o nosso pecado de excesso, "na mão de Deus, na sua mão direita", sou eu ainda! estamos vivos! "descansou afinal meu coração". Não é ainda a hora e jamais a saberei. Mas tu nem estremeceste com o meu berro, fechada em ti, sem um intervalo humano onde eu coubesse bzzz Mónica, minha querida. São os versos do André, mas como os soubeste? Estás morta. Na paz longínqua incognoscível.
Saí de ti, estendi-me ao teu lado. E houve ainda a tua reza imperceptível como um manto leve sobre o nosso pecado sacrílego.
E agora vou sentar-me um pouco na sala enquanto te escrevo aqui no quarto. E ouço na rádio um concerto para oboé que é bom ouvir aqui, enquanto estou lá dentro. D. Felicidade propôs-me mudar para um quarto do corredor, não quis. Tinha um parceiro, suponho, não quis. Terias de ir tu também comigo, não gosto de promiscuidade. Quarto partilhado, só no hospital, porque a miséria é igualitária. Ou na tropa, quando se não é ainda um indivíduo. Mas o concerto. Não é o de Mozart KV 314 com Heinz Holliger, conheço-o bem, a Márcia trouxe-mo numa cassete. É de um Johan não sei quê. Mas como é belo. Lembras-me quando já perdida de ti, tão indefesa, revertida a uma infantilidade passiva, a Márcia um dia perguntou-te quem sou eu? e tu disseste não sei, é uma menina, e a Márcia fitou-me fulminada como se para eu ser testemunha, e nunca mais te perguntou nada. E eu sofri, sofri, num desamparo tão grande. E é então que o teu nome ressoa dentro do oboé. Ouço de início a massa orquestral com uma certa arrogância prepotente. Depois abranda, deve ser quando se sente já instalada e indiscutível de potestade. E então, humilde, o oboé. Aproveita um instante do orquestrado fanfarrão, e subtil infantil, com uma certa inconsciência de criança, o oboé. No Mozart, no primeiro andamento há mesmo, como se diz? uma "cadência" em que a criança oboé desata a fazer brincadeiras sozinha e a orquestra toda calada a ver e a ouvir - mas vou ouvir daqui a pouco a cassete inteira para te explicar melhor. Querida Mónica, meu oboé. Sento-me na sala enquanto vou escrevendo no quarto. É a sala da secção C, que é a minha. Há a B, que é a dos bebés de 90, sujam-se muito a comer a papa e a descomê-la. E riem e são felizes e espontâneos e inocentes como a caca. E há a A, onde às vezes faço excursões, mas a D. Felicidade não gosta. É a dos falsos internados como há falsos médicos ou advogados que todavia, a esses, metem-nos na cadeia se os apanham. São tipos que nem cá nem lá, ou seja, cá e lá. Estão ainda muito sujos de mundanismo e convicção, não professaram ainda a abstinência e a morte. A meio do corredor, do lado direito, suponho que te não disse, há o coro que dá para a capela em baixo e serve para os que não podem descer e subir, ou não querem, porque há um ascensor que às vezes trabalha, e fazem questão de manterem as suas relações com o Altíssimo. E do lado oposto há um pequeno jardim sem canteiros, digamos um pátio com bancos para a invalidez. Nunca lá vi ninguém, porque a invalidez, para lá chegar, tem de ter ainda um pouco de perna disponível, e a tê-la, prefere levá-la até lá fora a dar-lhe ar. A minha secção é a mais interessante. Cada qual tem o seu lugar fixo e não é preciso lembrar-lho. Cada qual sabe muito bem qual é - o sentido de propriedade, minha querida, deve existir mesmo aí na cova e imagino o berreiro quando vos misturam a ossaria. Não falam, já disseram tudo, estão quietos encostados nas cadeirinhas rasas à parede. Depositaram-nos aqui como se depositam economias num banco, a diferença é que de vez em quando vai-se lá levantar dinheiro, aqui vem-se pôr. Depositaram-nos aqui até perderem a mania de estar vivos, mas quem lhes tira a mania? Estão calados, sobretudo as velhas, a digerirem-se a si próprias no remoer maníaco e infantil do seu absurdo privativo. Não falam mas eu sei coisas, a D. Felicidade às vezes diz. Muito escassa no dizer, às vezes diz. É uma mulher com uma disciplina que dá para a casa toda, deve ter sido tropa noutra encarnação. São histórias simples mas às vezes complicam-se, a vida tem sempre reservas de imaginação quando a necessidade é muita. Li uma vez uma história de esquimós, é muito gira. Quando um esquimó se distrai e não morre a tempo, levam-no para longe, depositam-no para ali ao abandono da neve e ele que se despache quando entender. São um povo evoluído, os esquimós. Têm a genialidade do que é simples, que é o mais complicado. Creio que há outros povos que liquidam logo o empecilho para mais depressa, são ainda mais geniais. Nós somos menos evoluídos, de processos mais atrasados. Em todo o caso, já com algum progresso. Na aldeia, por exemplo, é um inferno, creio que já falámos disso. Entrevados, tara-lhoucos, têm para ali aquele trambolho à espera que se decida, vão-lhes dando o seu bocado como a um cão. Mas o trambolho sente-se feliz a fazer de gente entre a família, na cidade em todo o caso progrediu-se mais. Estão no seu depósito, tudo tem o seu lugar como o lixo camarário para a higiene pública. A propósito, a Márcia passam-se meses que não aparece, mas com raras excepções tem as minhas contas em dia. E o Teo quando aparece é só para - mas depois te conto. Em todo o caso às vezes telefona. Do André nem sei se é vivo ou morto, às vezes imagino-o na China no Japão, fora de um contexto de toda a maneira habitável. Mas há o pessoal daqui, sobretudo os inquilinos, dou-me bastante bem com eles, conversamos. Há uma mulher muito viva, chama-se Albertina, talvez conheças, foi corista e mesmo actriz, ela faz questão em repetir. Pergunto-lhe como veio até aqui, ela conta. Havia um merceeiro vizinho, ela conta. E então o merceeiro fez-se ao piso - e eu precisava da mercearia, o doutor calcula - e eu calculava. Mas era muito mau na cama. Fazia os seus preparativos, é claro, mas depois quando metia, cuspia logo, e eu ficava em brasa, deve calcular - e eu calculava. Mas tinha um irmão, oh, isso era um homem como nunca há-de haver outro. Eram beijos devagar, era muito lento, sempre, beijos devagar desde as pernas e depois, mesmo onde se não esperava, mesmo aí e com demora, sim senhor, e depois por ali acima e eu estava já a arder e dizia-lhe mete, mete, pelas cinco chagas de Cristo mete já, e ele metia mas sempre devagar. Às vezes tirava ainda ou brincava à entrada e eu já não podia mais e ele sempre metendo por fim até ao fundo e eu dizia-lhe mexe-te, pelo amor de Deus, mexe-te de uma vez e ele enfim começava mas eu já não aguentava mais e rebentava toda por dentro e ele então acelerava e aí eu estoirava duas três dez vezes e eu só lhe dizia acaba tu também, mas ele devagar não acabava e às tantas eu não podia mais e empurrava-o com toda a força mas ele agarrava-se como uma lapa, queria também a sua parte, e muito tempo depois, finalmente, ele dava também o seu estoiro e aí então eu atirava com ele para os infernos com ódio, olhe que era com ódio, tinha-lhe raiva de tanto gozo e ele muito calmo vestia-se e quando já se ia embora eu tinha pena ou não sei o que era, e se ele não vinha ter comigo até dois ou três dias, ia eu doida à procura dele.
- E o irmão?
- Não achava mal, ficava tudo em família. E depois eu tinha mais paciência com ele mas um dia morreu, digo o irmão, e logo depois ele também e a viúva continuou a dar-me a pensão com a ajuda de um meu sobrinho, o senhorio ia aumentar-me o quarto e então ela pôs-me aqui.
Mas ao lado da Albertina ficava a senhora Clotilde, passava os dias a rezar o rosário que como deves saber é três vezes maior que o terço e é por isso que se chama terço ao terço. E um dia, ela é surda, um dia percebeu a minha conversa com a Albertina e ficou possuída de cólera divina
- Se isto são conversas para aqui.
- E para onde é que haviam de ser? - perguntou-lhe a Albertina.
- Para o olho da rua. Ou para uma casa de putas
e a Albertina riu e contou-me o resto do que estava a contar sem baixar a voz, e a outra a rezar o rosário que lhe chegava ao chão. E ao lado estavam três velhas em fila, sentadas nas suas cadeirinhas, as bocas sumidas, abismadas em sonolência. Mas a Clotilde, coitada, também tem a sua história. Mas agora ouço na rádio - que música? espera, é uma música de bailado, suponho, a dança das horas e não sei porquê estou contigo numa esplanada sobre o mar. Praia das Maçãs, suponho, deve ser sábado ou domingo, vamos almoçar fora. E é verão ou assim, está-se bem na esplanada sobre o mar. Deixamos o carro na rampa, há lugar, será já outono talvez. Mas está quente. Desces do carro com dificuldade, com jeito, espera, primeiro a perna direita e o vestido arregaçado pela perna acima até à tua intimidade. Querida. Há uma dança no ar, tu elástica, o teu corpo aéreo suspenso, mas não agora. Talvez depois de te inventar à imaginação, porque é uma pena desperdiçar este sol de alegria numa esplanada sobre o mar. Mas não agora. Agora ajudo-te a sair do carro, é difícil. Todos os movimentos perros, mesmo os mais simples. E eu penso como é prodigioso mover um simples dedo, como a facilidade é dificílima. Talvez a gente ainda desça até à praia e verei então o teu corpo nascer do mar. Agora dou-te a mão, tu arrastas os pés' nos esquis da tua invalidez. E há depois os degraus. Ajudo-te encorajo-te. Tens a atenção aplicada à tarefa, vejo o teu esforço concentrado - vês como és capaz? são só três degraus e por fim os pés arrastados até à mesa da esplanada. Sento-te com cuidado, sento-me eu e olho o mar. Deixa-me olhar um pouco o mar. Deixa-me estar um pouco sem tempo, que é a verdade do azul do mar. Deixa-me perder a idade que perdi. Há espaço bastante a todo o horizonte marinho para o bocado de infinito que ainda trago comigo. Há ainda veraneantes na praia para eu daqui tomar banho com eles. Vou respirar fundo, que é o que sempre apetece diante do mar para inspirarmos o universo com a inspiração. Vou ficar a olhar o brilho das águas nos jogos do meu devaneio. Está uma tarde quieta transparente. Nítida. Sem o calor do verão que embacia as coisas, mas não posso ficar eternamente a olhar. Olho-te a ti, querida, há quantos anos deixaste de usar a franja? São dois bandós de cabelo apartados para o lado com o risco ao meio. Estás mais gorda. Ou parece-me isso do teu todo caído. És capaz de pesar o mesmo ou até menos. Caído. O abandono do teu corpo a si mesmo, sem nada que o sustente, não sei. Que o levante. E o teu olhar, querida, é estranho, estou agora a reparar bem. Não é digamos um olhar ausente, perdido no mundo que vais perdendo, mas cerrado intenso concentrado. Um pouco odiento talvez. Deve haver um motivo atrás disso, alguém o pôs lá, não o sabes e o criado vem aí com o cardápio para sabermos o que nos apetece - tu que achas?
- Uma sardinhada com vinho branco fresco, tu que achas? Não. Um arroz de marisco talvez, é-te mais fácil comê-lo. De qualquer modo, qualquer coisa em que se coma também o mar.
Mas tu ficas indiferente pasmada e eu chamo o criado - um arroz de marisco, uma dose para dois e meia garrafa de vinho branco muito fresco. Mas quando veio o marisco e depois de te ter servido, ficaste inerte
- Mónica. Tens aí o teu arroz
e eu tive de te meter a colher na mão e dar-te o balanço para começares, com o garfo era mais difícil. Mas mesmo assim começaste a sujar tudo, a mesa, o guardanapo que te pus ao pescoço. E então tomei-te a colher para te dar eu de comer. Mas de súbito, irada, deitaste as duas mãos ao prato, pensaste decerto que to ia roubar, as duas mãos fincadas de cada lado do prato - querida.
- Querida. Não te vou tirar o prato. É só para te ajudar
E comecei a dar-te de comer com a colher, mas não desferravas as mãos do prato. Às vezes soerguias-te para ir apanhar a colher ao meio do caminho. Sossega, querida. Não te levantes. Temos tempo. Limpei-te enfim a boca e comi eu. Pensei - dar-te um gole de vinho branco, um gole só? o médico não aprovava. Chamei o criado, pedi meia garrafa de água mineral. Estava uma tarde bonita, o mar de um azul intenso, virado para dentro. Um súbito barco à vela passa nas chamas das águas. E uma placidez luminosa de uma beatitude suspensa, como dizer-te? porque se calhar já não te lembras. Um bem-estar sereno sem passado nem futuro como se conta do paraíso. Havia gente a tomar banho, pouca. Não era a tomar banho, digamos a brincar com a água. Havia um ar de inocência em tudo, brincavam. E na esplanada havia também pouca gente. A princípio olhavam para nós com intensidade, era piedade e surpresa para nos excluírem. Depois excluíram-nos e ficámos sós. Acabei de comer e que é que havia de pedir mais? foste sempre tão gulosa, pedi doce. Então excitaste-te muito, quiseste comer por tua mão. Mas sujaste-te toda outra vez e eu dei-te de comer e tu seguraste avidamente a taça do doce com as duas mãos no receio de que to tirasse e eu disse-te querida
- Querida. Deixa-me dar-te para te não sujares.
E eu dei-te mas tu não largavas a taça com as duas mãos. Por fim pensei - e se fôssemos tomar banho? num tempo antigo, de outrora, com a festa solar no nosso corpo perfeito. Descemos à praia e entrámos na água devagar e eu tomei a água na concha das mãos e derramei-ta devagar na cabeça e disse e disse
- Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição.
Mas tu não disseste João sacrílego e apenas riste em esplendor. Na mão de Deus, na sua mão direita - não digas. Não digas ainda. Há tanto ainda que sofrer e amar. Teo não te leu ainda os versos do poeta. Lembro-me. "Como criança em lôbrega jornada". Meu coração. Não tenho mão onde repousá-lo, alguma vez tive? Repousa em mim, no meu corpo mutilado, neste depósito de estrume. Repousa em mim, no absoluto do meu corpo, na minha mão apodrecida. Entramos na água e eu disse, eu disse eu te baptizo. Depois avançamos pelo mar, defrontamo-nos com a sua magnitude no nosso corpo vigoroso. E havia sol no teu ser mortal. E mergulhaste e escorria-te depois na face a festa do mar. E mergulhámos de novo para absorver o mar todo. E vogámos à tona de água, sustentados em nosso peso no seu dorso. Depois rompemos mar fora a um aceno invisível. E a eternidade existia. E nós parámos lá longe e deitámo-nos nela. O céu era muito azul e víamo-lo por cima. Havia nele espaço bastante para a nossa abundância interior e nós olhávamo-lo como quem chega à sua própria morada que não conhecia. Flutuamos no incerto de uma grandeza divina. Senhores da terra, do tempo. Da força, do poder. Estamos no meio do mar, olhamo-lo a toda a volta e o seu mistério infinito está em nós. Depois voltamo-nos para a praia, vamos remando devagar. Às vezes olhamo-nos. O teu riso estrídulo, os cabelos molhados, o mar cai-te das pestanas para os olhos. A face húmida, a alegria vertiginosa da vida, não há morte, não há morte. Depois deitamo-nos na areia ao sol, ouvimos o mar, o fervor na caldeira do mundo. Ou não o ouvimos, há o espaço do seu rumor e nós estamos no meio dele, deitados ao sol. Não vejo agora lá ninguém, para todo o espaço ser nosso. Enchemo-lo todo, estamos bem. Os olhos fechados em dormência breve, as pálpebras em chamas. Sentimo-nos integrados no universo sem mistério nenhum, os nossos corpos têm a verdade da luz. Não temos ideias, temos só a perfeição de estar. Mas lembram-me agora palavras que poderiam então lembrar-me. Espaço luz alegria. Infinitude mar. Exaltação. Lembram-me com intensidade. O corpo. Mas não devia pensar nele porque ainda não existia.
- Na mão de Deus.
- Não digas, não digas.
Na tua mão. Da vida. Da Terra, com toda a beleza e toda a caca, que também tem direito a existir. E da morte, já se vê. Mas já agora que estamos aqui, lavados purificados, podias talvez contar-me de uma vez para sempre que história é essa com o teu colega de ginástica
- De educação física.
- Ou isso.
para eu entender. Seria talvez a forma de te perdoar. Ou de me humilhar nesse perdão. Quando um réu me confessa e explica como foi, para confessar mais, há logo na lei uma atenuante. E eu aproveito para atenuar. Porque explicar, minha querida, é destruir o lado terrorista do desconhecido. As religiões são terríveis porque não explicam. Mas não te esqueças do que vais dizer porque eu quero falar-te primeiro da Clotilde. Pelo à-vontade com que ela falava das coisas, já devia ter muita idade. Ou por outra, não falava mas atacava de frente e movia-se sem temor nos terrenos mais escabrosos e eu pensava - deves ter a alma batida de muita ilustração. Não defendia as coisas feias mas via-se que lhes conhecia bem todos os lados mais indecentes. Porque houve mais conversa, eu é que não vou massacrar-te com acessórios, queria que me lesses esta carta toda. E agora rezava muito, rezava o dia inteiro, pelos meus cálculos aí uns oito rosários por dia, creio que para cumprir o seu horário de trabalho. Quem me contou a história dela, aliás resumiu em secura regulamentar, foi a D. Felicidade. Fala comigo às vezes, assim de passagem, não, já se vê, em paleio companheiral, tem por mim ainda alguma consideração, mesmo com a minha perna a menos. Aqui há uns anos entrou a Clotilde com a família toda em caravana, era como se a levassem ao noivo, digo eu. Filhos, netos, gente amiga.
- Não é costume - disse-me D. Felicidade. - Uma pessoa ou duas é que é o normal. Para não dar nas vistas, naturalmente.
Porque as desgraças não são para se verem, como sabes, e é por isso que existem as casas de banho. Olha, e a propósito, espera um momento, que tenho de ir lá dentro.
Fui, demorei-me mais do que julgava. Ando numa excitação nervosa terrível, depressão, suponho, o médico receitou-me vários medicamentos, não sei se é disso. Um deles tem mesilato de co-dergocrine (partes iguais de mesilato de dihidroergocomina, dihidroergocristina e dihidroergocriptina - dihidro-a-ergocriptina e dihidro-B-er-gocriptina na proporção 2:1). Deve-me fazer bem e o Teo também acha. Mas dizia-te eu, demorei-me mais do que julgava. Aliás, não foi só o problema em si que me fez demorar. Foi que ao passar, no regresso, à porta da sala de recepção, que sarrabulhada, minha Mónica. Eu nem pensei e espreitei à porta. Mas D. Felicidade fez-me um gesto discreto para entrar, devia querer ter uma testemunha e eu entrei. Estava ela e um homem assanhado, hirsuto de bigodes e sobrancelhas. E assim que me viu, desembestou contra mim - este senhor, por exemplo, que anda ele cá a fazer com a meia perna e a calça dobrada para cima, que é uma coisa ridícula? Que é que a sociedade tem que sustentar esta população parasita? É um louco, pensei. Não reagi e fui ouvindo, fui-me inteirando. Dobrava-se encrespado para D. Felicidade, arreganhando os dentes por debaixo dos bigodes:
- Porque o problema é este, minha cara senhora, em cada dois portugueses um tem de trabalhar para o sustento dos dois e amanhã, em cada três, é um que tem de trabalhar para o sustento de todos. Há um problema grave hoje que é o excedente dos velhos, a senhora conhece outro? Eu não conheço. Mas há mais.
E berrava cada vez mais alto, já havia gente a espreitar à porta, velhos que iam passando espreitavam, iam entrando. Devagar, iam entrando. Iam crescendo devagar, enchiam já a sala, o corredor. Vinham de todo o lar, de todo o lado, da cidade, do mundo inteiro, pensei. Das alfurjas do medo, do asco, subiam humildes das pocilgas, traziam consigo o ódio e o desprezo que os cobriam, cheiravam a suor e a urina. E sorriam esparvoados a ouvir, coxos, cambados, a cabeça caída para o ombro, a baba a escorrer-lhes da boca torta. Velhos e velhos, imundície, dejectos do homem, restos atirados para fora do alcance de serem gente. Tortos, taralhoucos, um cheiro insuportável excrementício, amontoavam-se uns nos outros a ouvir. E sorriam sempre, cheios de atenção e doçura.
O homem falava agora para a multidão dos velhos:
- Mas há mais! - falava alto, crescia entre eles. - Cada vez nascem menos crianças e porquê, meus senhores? A luxúria, o egoísmo, o salve-se quem puder, é o pecado do nosso tempo e os velhos trocavam olhares de estranheza piedade mútua. Cada vez nascem menos crianças, ele dizia, cada vez portanto há no país menos gente jovem. Os senhores reparem. Se um casal tem dois filhos, ficam empatados. Se tem um, fica um a menos.
- E são precisos três para se avançar um. Mas quantos casais há sem filhos? E quantos jovens há que nem sequer se casam, quanto mais terem filhos? Mas mesmo assim, vejam os senhores, cada vez temos mais gente. Porquê? Porque se contraria a natureza e se não deixam morrer os velhos?
E houve um reboar pelo oco da mente de todos - os velhos, os velhos, os velhos - e bocas desdentadas em pasmo e olhinhos de gelatina e mortais a piscar.
- Eu lhe anuncio, minha cara senhora, eu anuncio ao mundo que o país um dia vai ser um grande asilo de parasitas.
- Quantos filhos tem o senhor? - perguntei eu para fazer de interlocutor.
- Seis! - bramiu ele, crescendo sobre mim. - Seis, para tapar as faltas dos outros. E o senhor?
- Três - disse eu muito tímido.
- Avançou um. Mas eu avancei quatro. Agora esses velhos que para aí estão, porque é que não morrem, hem? Porque é que essa velha que para aí tenho não rebenta de uma vez? Porque é que não cumpre o seu dever de mortal? Ela já nem é minha sogra, que a minha mulher já morreu.
- E os seis filhos? - perguntei.
E ele agachou-se-me à boca com o mau cheiro que vinha nela e em voz surda disse-me os meus filhos estão-se nas tintas, dão-me algum dinheiro mas nem querem ver a velha. E têm razão, a velha é que é teimosa e não há raio que a rache. E eu disse - mas veja, os pretos e amarelos não deixam de fabricar gente e o planeta rebenta pelas costuras. É um problema que me ultrapassa, meu caro senhor. O meu problema é este - está aí essa velha inútil e não há modo de rebentar. E D. Felicidade então disse, quando o homem enfim se calou
- Rebentou hoje. Eram seis da manhã. Está na casa mortuária.
E o homem disse ainda bem. Mas perguntou ainda - tem a certeza? e D. Felicidade acertou as contas dos dias excedentários e disse - agora é entender-se com uma agência funerária que tome conta do assunto, eu já lhe tinha telefonado mas não encontrei o senhor. E os velhos foram saindo. E eu regressei ao meu quarto, mas já não sei o que te estava a dizer. Falava-te da mulher que cumpre vários rosários por dia, é um rosário de bagas grossas que lhe chega ao chão. E dizia-te da família que veio em fila depositá-la aqui. E ia dizer-te que poucas vezes vêm visitá-la - mas não sei, não devia ser isso, que é coisa sem novidade para ser coisa de ser. Mas também não sei o que seria. Sei apenas que me veio uma vontade imensa de te amar. De te amar no impossível, que é onde vale a pena todo o possível. De te amar onde nada seja real. No absoluto. Onde não há miséria e degradação e abandono e maus cheiros. Nem podridão e desespero humano. Nem loucura. Nem morte.
Mas a história do desempate com os filhos para o avanço da demografia fez-me pensar nos nossos. E então perguntei-me: com qual deles desempatámos? Tu dirias que foi com o André, naturalmente. Seria? ponho-me a reflectir. Mesmo sem levar em conta que ele anda não sei por onde, suponhamos ainda na Austrália. Se fiz aumentar a demografia foi lá, foi no planeta. Mas eu pensava noutra coisa, Mónica. Pensava em aumentar a humanidade sem ser na quantidade dela. Sem ser no acrescentamento da espécie. É-se mais um homem com quê? Com mais um estômago e mais tripas e aquilo com que se fabrica isso tudo e está mais abaixo? Em que é que fui acrescento da humanidade no meu corpo já fraccionado? mas não quero pensar nisso agora. Aliás, há um tipo a passear no corredor para cá e para lá, começa a irritar-me a sentinela. Vou ver quem é, depois continuaremos a conversa. Ah, já sei. Nem preciso de ir ver. É o Salus da revolução. Também te não falei no julgamento dele em que afinal o absolvi. Falámos na altura, é claro, mas deves estar esquecida e eu também. Há de resto sempre coisas que se não dizem, mesmo que se digam todas as que há para dizer. E é com essas que se faz a História. Porque a História, minha querida, faz-se sempre com os intervalos do que se faz e onde não está ninguém. E a vida, enfim. Bom. O Salus. Vou ver em todo o caso. Ele vai dizer-me olá doutor, mas não sei se me conhece, pode chamar-me doutor por ouvir dizer. Fui ver. E ele. Lembras-te de eu te dizer que uma vez apanhou uma velha a caminho da retrete? Eu suponho que lhe apanhou o horário das necessidades. Porque várias vezes já o descobri a marcar passo de sentinela no corredor. Até que a velha vem com o seu aperto, ele apodera-se dela e leva-a aonde ela precisa. Então baixa-lhe as calças, instala-a na moldura e fica à espera. Depois limpa-a, sobe-lhe as calças e vai pô-la outra vez no seu lugar da sala. Reparei nela. Ia de cabeça baixa e muito contentinha. E depois de cumprido o dever, Salus volta para o quarto. Não sei nada da velha, querida. Nem dele, afinal. A ver se um dia a D. Felicidade me dá ilustração. Ou a Antónia, quando me der banho. Sobre a Antónia, aliás, tenho uma coisa difícil a contar-te. Foi só uma vez. Mas tenho. Ia-te eu pois a dizer - em que é que fui acrescento da humanidade? Ou os filhos? O André é que realmente. Não por ter desempatado, como dizia o pregador, mas por se ter multiplicado no seu modo de não estar nunca no mesmo sítio. Ele é muitos, sendo um, e não chega a ocupar espaço nem a fazer peso. Mónica, minha querida. Não sei se tu te entreténs aí na cova a divagar um pouco sobre o que aconteceu. Eu sim. E um modo de viver em duplicado, vivo a cópia mesmo já um pouco apagada do que foi. É um modo de o meu vazio estar cheio de outro vazio, mas menos, e com propriedades de enchimento.
Assim agora com a história do pregador contra a obstinação dos velhos na mania de estarem vivos. Pus-me a pensar nos filhos, no seu percurso de gente. E não é que não lembro quase nada? Mas é assim com tudo na vida. Às vezes coisas raquíticas na sua importância crescem connosco, nunca te aconteceu? crescem connosco como carraças, ferradas em nós num sítio invisível. Ou como pequenas agulhas que os médicos esquecem nos doentes quando os operam até que um dia doem e se sabe que estão lá. Porque diabo estas coisinhas minúsculas nunca se despegam de nós e há outras de grande tamanho, com possibilidades vitais, e que nos largam no caminho? Quem é que vem fazer-nos a selecção? O homem é um ser tão improvável. Há um modo incompreensível de a gente ir sendo e há o incompreensível de as coisas pertencerem ou não a esse modo. Todos os dias a gente vai metendo coisas ao bolso, Mónica. E de vez em quando levamos a mão ao bolso e das muitas que lá metemos só lá está o cotão. Ou estão só merdículas sem importância, bocados de frases que já nem sabemos o que querem dizer, piadas para atrasados mentais mas que não arrancam dali, restos de vexames ou alegrias incompreensíveis, recortes de coisas que não encaixam em nada porque se perdeu o plano geral, locais e horas em que se foi vivo não se sabe porquê - quem é que nos organiza este mapa esfarrapado?
Mas vinha isto a propósito dos filhos, tenho só bocados da sua história. Tu não. Tu tinhas uma memória analítica, cheia de roldanas e engates explicativos. Tinhas falhas, naturalmente, mas metias roldanas que não eram de lá, a ver se tudo trabalhava. E agora apetecia-me falar um pouco de ti, aproveitando a circunstância de te não estar a amar. Porque o amor não é analítico, querida. Apetecia-me. Dizer da tua obsessão policial de quereres saber tudo, explicar tudo. Dizer da tua obsessão de entender no que eu fazia, porque é que, como é que, para que é que. Da tua doce mania de ter em mão todas as possibilidades futuras, querer saber tudo, espreitar pelo descuido de uma porta aberta das gentes, ou entreabri-la mesmo a uma hábil pressão, saber a sua vida onde nem a pessoa a sabe, conjecturar, coscuvilhar. De recusar a cada um o direito à propriedade privada de si. De querer saber porque é que a vizinha sai à noite com frio. Ou que doença é a da porteira que vai às vezes ao hospital. Ou os actos mínimos dos filhos - mas já nem sei a que propósito veio isto. Em todo o caso e já agora aproveito, vou-te dizer. Porque é assim - o teu interrogatório sobre mim, querida, é que me levava a considerar a sério a hipótese do teu colega patarata. Há uma lei, deve haver, deve vir nos livros ou é de a lá pôr. A lei é assim: quanto mais a mulher adorna o homem, mais ciumenta é com ele. Não é isso para disfarçar, é para acrescentar o seu benefício. É como o ricaço. Porque ele não goza só com o que tem mas com o que não têm os outros - e vinha a conversa, querida, a propósito dos filhos e do teu saber analítico. E eu perguntava quem é que vem pregar-nos na memória o que lá está? quem é que selecciona por nós o que há-de ser para nós? - mas mais minhoquices não. Em todo o caso. Lembras-te do costume do Teo em pôr um lenço na mão para o encosto do queixo?
Um dia perguntei-lhe porque é que ou foste tu que
Perguntaste e ele disse: sei lá. Porque gosto. Por causa do suor, dá-me jeito, incomoda-te isso? E um dia contei à minha mãe, ela não ligou. E já estávamos noutra conversa quando ela disse tem graça. O meu tio Humberto fazia o mesmo e eu perguntei quem era o tio Humberto e ela disse que era um tio velho, meu segundo tio ou tio-avô que eu já não conhecera - quem vem escolher o que escolhemos? Tento às vezes lembrar o percurso dos nossos filhos. Da Márcia. Do Teo. Do André. Que é que sei? Mas a infância dos filhos é o que menos nos pertence, quando depois de crescidos. Porque enquanto crianças a infância deles é só nossa e depois de crescidos é só deles e destroem-na e nós perdemos o direito a recuperá-la. É como guardar-lhes o primeiro dente que depois se deita ao lixo. Não tenho a infância dos filhos, tenho só a sua idade adulta, que é a única que nos concedem. A da Márcia é a que tem menos interesse, às vezes penso. É uma rapariga prática decidida, não deve ter sistema simpático. Agora está na Belarte, que é uma agência de viagens na rua do Parque, a um quarto de hora pedestre. Não, na Via Láctea esteve antes, querida. Agora está ali, é aqui perto. Atende os clientes ao balcão, está bonita e é muito funcional. Tinha o cabelo castanho, que é uma rampa de lançamento para um louro plausível. Está muito loura agora, fica-lhe bem. Usa o cabelo em "rabo-de-cavalo" que lhe desnuda a face e lhe dá um ar despachado como a um homem as mangas arregaçadas. Está bonita, devias gostar de a ver. Em todo o caso é uma beleza um pouco de manequim, essa beleza que numa mulher é mais para ver que para usar. Ela, aliás, não sei se ainda cá estavas, quis um dia ser manequim. Uma beleza a zero graus centígrados. Trabalha aqui perto e então às vezes passa por cá e diz-me como é que estás? e vai-se logo embora porque um filho está de cama ou tem de ir buscar outro à escola ou porque o marido, eu nem sei se é marido e não me lembra o nome, lhe disse que. Às vezes nem a vejo, fala com a D. Felicidade e vai-se logo, porque tem uma vida extremamente ocupada, a nossa filha. Queres crer que nem sei os nomes dos netos todos? os netos reais e os por afinidade, que somam cinco, suponho. Mas que é que me lembra dela? Muito pouco. Houve a saída de casa aos dezassete anos com um tipo que era bailarino. Ou do cinema, já nem sei. E houve o seu regresso à estaca zero. Quando cheguei a casa já ela lá estava em conversa contigo e eu perguntei - Então?
e tu disseste não se fala mais nisso e eu não falei, para haver outra vez família por inteiro e paz doméstica. Depois saiu de novo de casa e empregou-se num jornal e foi viver com uma amiga. Depois juntou-se com um tipo ou casou, depois com outro e agora está com um terceiro e foi trazendo um filho de cada um. Não os abandonou, a nossa filha teve sempre a sua dignidade. Este terceiro também produziu. Depois tu acabaste de morrer e ela teve aquela cena com a Camila até meter-se lá em casa e meter-me a mim aqui. Mas ela tinha razão, a nossa filha, não penses que estou magoado com ela. A vida tem razões que a razão não entende, em todo o caso a minha razão entende. E quanto à história da Camila, a ver se te conto como foi. Lembro-me de repente é de quando morávamos em S. Pedro de Alcântara. Tínhamos lindas vistas para o jardim, para a Graça e o Castelo cheios de sol, e mesmo para os longes do rio na hipótese de um apetite viageiro. Mas, como todas as vistas, mesmo as bonitas, deixámos logo de as ver. Mas ouvíamos os vizinhos, lembro-me muito bem. Formávamos uma comunidade de ruídos domésticos, mesmo os mais clandestinos. Eram ruídos que se não sabia se vinham de cima ou de baixo, porque de todos os lados se podia ser comunitário. E havia os ruídos próprios de certas horas, de certos dias. E havia o choro das crianças que não tinha horário nenhum. Mas ao sábado, sobretudo. Era um casal jovem, tinham duas crianças. E à hora de as não terem, davam a volta à chave e partiam. As crianças estavam talvez a dormir mas davam conta e deixavam logo de estar. E desatavam aos berros. Que berreiro. Primeiro que se calassem. Tinham fôlego resistente para estenderem o desgosto até à impaciência do prédio todo. Eu ouvia. Mas havia outros ruídos partilháveis.
- Estes prédios novos - tu dizias. - Tudo a ambição da ganhuça. E era fácil porem-lhes isoladores.
Os ruídos do amor, por exemplo, mais próprios também do descanso semanal, mas perfeitamente admissíveis em qualquer noite da semana. Aí o casal de cima colaborava o que podia. Casal de meia-idade, sem filhos. O que podia. Por isso, quando era a nossa vez
- Não faças barulho!
o que tu te esganiçavas a dizer-mo ao ouvido. E depois, querida, já a falares a voz da espécie, que não tem cuidado nenhum, como tu esquecias a recomendação. E havia outro ruído, mas esse às sete da manhã. Vinha de cima, tenho a certeza. Vi vários dias o relógio: às sete. Que pontualidade. Nós temos um relógio interior, não sei se sabes. Temos. É o do tempo da vida, tempo cósmico, passa por todo o ser vivo. É o tempo da ordem do universo. Às sete. Às vezes estava sonolento, mas mesmo ainda adormecido ouvia, eu fazia já parte da ordem que passava pelo ruído. Era um cachoar de líquido caindo grosso e como se empoçasse. E eu dizia
- Vaca.
Mas a vaca, não sei se viste alguma vez, se a gente está presente, vira devagar a grande cabeça para nós com aqueles grandes olhos cheios de inocência e ternura de vaca. E continua o trabalho. Mas ali havia só o caudal a jorrar e com ele a imagem larga que eu tinha no nome de vaca. Eu tinha um cronómetro desportivo e um dia marquei o tempo. Coisa aí para um minuto, já não sei. Fora os restos ainda audíveis. Belo sistema hidráulico, pensava. Às vezes via-a na rua. Tinha o seu ar recolhido de beata, o sorriso em dose mínima de aperitivo celeste. E eu pensava - és tu. Não havia nela a largura do nome vacum. És tu. E era às oito, talvez hora de missa no Loreto. Conto-te isto nem sei bem para quê, como em todo o modo de se conversar para apenas se estar ao pé. Só há um para quê quando a coisa é muito a sério, não em estar aqui na conversa, simples forma de estar contigo e mesmo de te amar. Mas eu falava-te dos filhos, da Márcia, para começar. É uma rapariga sem interesses ou de interesses que são um pouco do meu analfabetismo. Ganhar, gastar, fornicar, apanhar de vez em quando um filho, andar de marido em marido ou de parceiro no intervalo de mudar de marido. Ouve. E boa rapariga. A nossa filha. O que ela não tem talvez é uma tabela do que se chama moral para aferir. Tu sabes, querida, primeiro cria-se a lei ou alguém a cria por nós e nós dizemos que sim. Depois é só conferir. Nunca discuti com ela - e que é que lhe iria dizer? Não discuti. Mesmo no caso da Camila. A gente mudou para a Almirante Reis quando o André começou a crescer e todos precisámos de alargar o nosso território. O nosso e o de cada um. Porque é vário o de cada um, consoante a idade e o impulso que é seu. Quando eu era estudante o meu espaço era o da rua porque o do quarto só chegava enquanto estava a dormir. E há o espaço do nosso impulso, querida, do nosso horizonte quanto puder ser. Da nossa inquietação, mesmo da nossa megalomania. Há tipos que se bastam com o espaço de uma sardinha no caixote. Na velhice é quase assim, o impulso é o de uma sala de estar. O André tinha impulso a mais e depois viu-se. Fomos morar para um prédio velho forrado de azulejos, muito chamuscados do tempo. E muitas vezes o André, mesmo ainda pequeno, desaparecia para os infernos. Nós temos em nós um regulador da maneira de sermos e da intensidade dessa maneira, Mónica. O regulador dele estava desafinado. Mas eu falava-te da Márcia, minha querida. É uma rapariga prática decidida. Ora não se é prático sem a astúcia, que é a inteligência dessa prática. Os rodeios que ela fez no caso da Camila. Eu percebia mas não dava a entender para a não humilhar. Queria deixar as razões todas do lado dela para ela pensar que as tinha. Tive sempre talvez um fraco por ela, tu mesma dizias. Foi a primeira e era uma menina, tive. E amo-a ainda, não bem talvez a ela mas à memória dela que ficou e é onde tudo acontece para nos pertencer, mesmo o meu amor por ti, querida.
- Sabes uma coisa, João? Nunca te gramei Já quase tonta, ouço-te bem, não tenho ilusões. Mas tudo se passa no eterno, que é o lugar da memória, e aí não podes mentir com a verdade que disseste. Não, não estou a embrulhar-me, sei muito bem o que digo - os rodeios que a Márcia fez.
- Tens de estar onde te tratem, se te acontece alguma coisa, como é que vai ser? Só te tenho já a ti, ficava com um peso na consciência.
E eu disse: a Camila fica, chega perfeitamente.
- Agora com a perna assim, como é que
- Chega perfeitamente.
- A não ser que viéssemos todos para aqui, somos sete, fora a empregada, na casa onde estamos vivemos numa molhada.
E eu aí fiquei calado, entalado de antagonismos. E ela deixou-me a abeberar na reflexão e virou costas. E passaram-se dias comigo a reflectir. Até que voltou. Mas não falou no assunto para eu acalmar bem e ela afectar algum desinteresse. Não queria que eu pensasse que o seu interesse me parecesse um roubo ao que era meu. Mostrou-se desinteressada. Mas um dia avançou com uma arma diferente.
- A não ser que a Camila te faça falta para outras coisas.
E aqui falou num tom secreto e sorriso cúmplice para não dizer o que dizia e foi-se logo para me deixar a abeberar outra vez. A Camila deve ter ouvido ou ouviu-o dentro de si, que é onde fala a voz de Deus. E então foi radical - vou viver com a minha irmã. E eu disse-lhe
- Camila. Quem manda em minha casa ainda sou eu. Ela tinha uma voz branda, tu lembras-te, e a gente pensava que era a voz dela. Mas não era. Ela era dura resistente como certos atletas que vestidos parecem frágeis mas despidos estão cheios de musculatura.
- Vou viver com a minha irmã.
E foi-se mesmo e quando a Márcia voltou ela já não estava e a Márcia então disse-me não podes ficar aqui sozinho. E eu calei-me por não saber se estava de acordo. E ela aproveitou logo para ser amável e sugerir-me a sua protecção e de toda a sua família cigana a inundar-me a casa com a sua humanidade, na fase mais categórica que é a do berro e da desordem. Mas eu não sabia se estava de acordo porque precisava primeiro de ouvir a voz do destino. E quando a ouvi disse - vou então para um lar. Ela aí abespinhou-se, cheia de deveres filiais, irritando-se comigo para por descarga e contrapeso ficar mais sossegada consigo. E mesmo com o destino não se brinca, minha querida. O destino é o meu corpo, é mesmo onde ele se sente mais à vontade. A gente corre com ele de outros sítios em que ele julga estar de vez, mas daqui ninguém o tira. Palhacices a que a gente dá a volta, sacanices perfeitamente plausíveis e de efeito garantido, a gente trama-lhe as intenções de perfídia mas ele continua. De modo que às vezes a gente pensa: o destino sou eu. Pensei-o mesmo sem o pensar quando ia descarregar o pontapé com o pé esquerdo para marcar a grande penalidade. O destino sou eu. E isto dá-nos uma certa importância divina porque, como deves saber, o destino é divino. Tem parte feita com os deuses ou está um pouco mais acima porque eles também amocham, suponho. Mas se a coisa é de corpo, o destino é dele, precisava tanto de chorar.
- Hoc est enim corpus meum.
E agora gostava era de te falar do Teo que está lá baixo a dizer missa - precisava tanto. Vejo-o cá de cima do coro - humilhar-me na minha condição podre, mas tu és capaz de te comover, mesmo que não tenhas pena nenhuma. És capaz sobretudo de me pôr a mão possessiva na cabeça com o gosto insuportável da protecção, que fica a uma distância infinita de um homem Às vezes também tinhas a tua crise de lágrimas, não sei se te lembras. E eu ficava entalado entre o impulso de te proteger e a tua cólera contra essa humilhação e então deixava-te chorar até ao fim, até ficares da minha altura que não chorava. Humilhar-me na minha podridão tão visível para o que em mim não apodrece. Que é o que é mais duro, minha querida. A separação do meu corpo, estar eu para um lado e ele para o outro, eu a ser orgulhoso de altivez e ele a ser um tipo ordinaríssímo, cheio de imundície e de baixeza. E ser eu ao mesmo tempo o imundo e baixo e não sê-lo. Mas não te sei explicar. E então o médico disse
E então o médico disse
- Não temos outra solução.
O Teo veio na véspera, gostei de o ver. A Márcia veio no próprio dia, mas chegou depois. A coisa era insuportável e que é que eu havia de dizer ao médico? a coisa fez-se anunciar, não entrou assim pelo corpo dentro sem educação. Mas já te conto. Queria primeiro falar-te do Teo. Está um padre bonito, nós tivemos filhos bonitos, Mónica. Mas o que há de bonito neles não é um acrescento exterior, é uma coisa que vem de dentro e aparece depois por fora. Mesmo a Márcia, a beleza vem-lhe de dentro e compõe-lhe as acções que não são belas, e não é fácil assim irritar-me com ela. São acções com a sua finura, estilizadas, não são brutas com a brutalidade que têm. E o seu desvairo, o seu aventureirismo. Ela ultrapassou talvez aquele patamar em que há o erro e o mal e estabeleceu-se mais acima com outras coordenadas. Sublimou-as em estilo, talvez fosse de se dizer. Foi natural de outra maneira para cima da minha maneira arqueológica e estetizou-a como se muda de estética nas artes e nas letras. Mas o Teo. Não está tão bonito como a princípio. Os padres agora secularizaram-se, não sei se já o conheceste assim. Um dia apareceu-me de casaco calça gravata. E eu disse-lhe
- Teo. Não gosto de te ver assim.
Era distinto, antes, na sua batina de alto a baixo que o retirava da circulação do pecado. Mesmo de fato preto com a volta no pescoço. Mas sobretudo a batina. Tinha uma distinção que o purificava, uma pureza que o defendia de contaminação.
- Não gosto de te ver profanado.
Ele sorriu breve por condescendência. Devo dizer-te uma coisa, querida. O Teo raramente me visita ou telefona, devo dizer-te. O Teo cortou com o circuito familiar, ele explica, o seu círculo é muito mais largo, a família, sem dúvida, mas a família é uma pequena mancha sentimental e que é que se faz com o sentimento? Mesmo Cristo, tu sabes
- Mesmo Cristo: quem é a minha mãe e os meus irmãos?
Agora está ali, e de todo o modo, como eu gostei de o ver. Secularizado laicizado pragmático frio - gostei. Há uma coisa que te quero dizer, podes às vezes sabê-lo por outro, suspeito que o Teo mantém as suas relações com a Cremilda. Sim, sim. Em cheio. Uma vez ao telefone
- Há dias a Cremilda disse-me que Agora estava ali e eu disse-lhe
- Teo. Sofro muito, filho.
Eu estava numa enfermaria com um tipo. De noite berrava, atroava todo o hospital
- Ó Culátio! Ó Culátio!
Que estranho. Seria nome de gente? Uma noite sossegou e eu disse
- Está melhor.
Mas a enfermeira sorriu breve do lado do destino e disse de fugida:
- Vai morrer.
Tivera um desastre de moto. Vai morrer. E uma manhã reparei que já lá não estava. Estava lá um velho de barba por fazer, remoía infindavelmente a boca desdentada como se fosse uma pastilha elástica.
- Teo, meu filho.
Estávamos ambos ali a olhar a podridão. E eu queria dizer-lhe
- Uma vontade enorme de ter asco e de o amar. Mas não disse nada.
- Como te sentes? - perguntou-me.
- Bem. Mas não me perguntes porquê.
Teo era médico e eu esquecia-me. Tinha a dupla defesa de médico e de padre contra o que era pessoal em mim, a minha singularidade, o meu número de ser humano.
E de repente vi-o na Sé quando foi ordenado padre ou diácono, já não sei. Era ele e mais dois, mas só um dos três era padre de "carreira", com uma privação do mundo desde a infância. Tinham todos uma alva até aos pés, mais alva do que o nome, e estavam estendidos nas lájeas do chão. E nós estávamos num sítio alto, víamo-los em baixo deitados nas pedras da humildade. Mas a alvura deles não era humilde, transfigurava-os em glória de martírio, não te sei explicar. Numa apoteose, de qualquer modo em qualquer coisa que é de uma outra ordem de ser, fora de uma comunidade, e que a gente olha sempre como uma sublimidade e uma agressão. E havia a névoa da música que os separava ainda mais de nós como aos deuses antigos. Eu estava só contigo, a Márcia insultara o Teo, chamara-lhe idiota, a frio, não viera, e o André devia estar para fora, não me lembro. Teo ouviu o insulto da irmã, não reagiu. Quando novos, guerreavam muito, estavam muito unidos, ela ainda estava, suponho, ele já saíra do ventre comum, como todos os irmãos crescidos, aliás. Márcia insultava-o, deviam ser os restos do amor incestuoso e retraído em repulsa de todos os irmãos - toda essa palhaçada de padre, de ministro de Deus e não sei quê, tudo isso é imbecil. Mas falava em tom frio neutral seco, dispensava o que não estava nas palavras para serem objectivas, fora dela. Toda essa palhaçada e o reino de Deus e a castidade e não sei quê. Teo disse - ouve. Mas suspendeu-se arrependeu-se e não disse nada. Nunca mais falaram sobre o caso, quer dizer, nunca mais disseram coisas agrestes, coisas das suas vidas, e o silêncio alargou-se e agora se calha encontrarem-se falam por cima do silêncio e dizem muitas coisas e deixaram enfim de ser irmãos, como talvez tivesses ainda reparado.
E de súbito dei conta que estava sozinho. Olhei ao lado e tu não estavas. Sozinho. E o coral dos padres era incomodativo. Foi quando te vi no espaço da Sé, rodavas à volta e no ar. Não era talvez o teu exercício de ginástica, era uma coisa leve e doce que já não era ginástica mas estava para lá disso e era uma dança aérea, coisa alada. E estavas talvez nua e não se pensava na tua nudez. Os padres cantavam aquela música deles que é do céu e do inferno, música bela e terrível. E tu dançavas e eles não te viam, eu sim. E o Teo estava morto, estendido nas pedras, amortalhado de branco. E tudo isto se ligava entre si mas eu não entendia, como em todo o mistério visível. Os cantos reboavam pelas arcadas da Sé e era muito doce ver-te dançar na eternidade. Sentia-me eu suspenso também, fora do meu peso terrestre. E olhava a tua dança de alegria e o Teo morto no chão e o responso fúnebre dos padres e do cardeal à frente deles, um canto de morte mas não triste. Um canto de triunfo talvez, de quem prevaleceu contra ela, como o de um mártir, digamos, que vai ser sacrificado e antecipa com o canto a vitória sobre os algozes. Era assim. Então senti que estava a ser subornado e dei um berro que afirmasse a minha força e autonomia. E a catedral estremeceu até aos seus fundamentos e eu esperei que se rasgasse até eles. E tu tomaste-me o braço e sacudiste-mo com autoridade. E os padres continuaram o seu canto mas num tom muito mais baixo ou a uma distância imensa onde já mal se ouviam. Teo está à beira da minha cama no hospital.
- Como te sentes? - diz-me.
- Bem. Mas não me perguntes porquê.
Não me perguntou, não devia estar interessado. Eu também não sabia porque é que não queria que me perguntasse porquê. Mesmo agora, tinha de fazer um esforço. Sentia-me bem, a morte tinha a sua razão de ser. E o cansaço. E um certo entendimento do limite. Mas nunca se conquista nada de uma vez para sempre. Nunca se é nada para sempre do que se está sendo. Mas o Teo quis reconfortar-me mesmo assim. Devia saber-lhe bem o reconforto, sentir que fazia parte dos seus direitos. Eu disse-lhe sinto-me bem e ele consolou-me. O nosso Teo. Tu nunca gostaste muito dele, não foi? Eu digo antes, não no fim. Bom. Quis confortar-me, estava ali para apostolar, era a sua função.
- Falei com o doutor Matias, tudo vai correr bem. Agora deves é preparar-te para depois.
Era a sua função. Criar normalidade no que é anormal para haver aí resignação, um modo de não existirmos para nós, de existirmos para o que nos vexa e codilha. Então não sei que raiva me rebentou por dentro e desatei aos coices. Era um ódio, como é que é? uma coisa súbita das que se não dá conta de crescerem para serem depois súbitas, uma forma de se querer que alguém tenha a culpa quando ninguém a tem. E disse e disse - não me venhas com essa merda das consolações. Mas eu falava em voz baixa e devagar para não passar para mim depois uma parte da culpa por falar alto e desabrido. Não me venhas com essa porcaria
- estou-me nas tintas para o vosso paleio desprezível, o corpo é meu, conquistei-o devagar e com aplicação, vós tendes nojo do corpo, vós quereis o homem mutilado para a vossa doutrina ter aplicação, tendes um desprezo vil por tudo o que é perfeito, e como é que vos entendeis com um Deus cínico que me fez com duas pernas e agora me empalma uma?
e nesta altura reparei - devagar Teo levantou-me a cobertura da cama e a minha podridão ficou visível. E eu pensei estupidamente ele vai beijar-me a perna. E dei um berro imenso
- Teo... e... o!
mas ele nem estremeceu e ficou imóvel a olhar a perna e depois cobriu-a de novo e olhou-me muito pálido com uma piedade imensa e ofendida e disse - não - não temos desprezo pelo corpo.
E eu olhei-o já com pena, ele não movia os lábios, tinha os olhos fixos nos meus. E alguém falou por ele, fechei os olhos, ouvi, alguém disse. Não quero ouvir. Entardece na enfermaria, se eu te pudesse explicar. Esta melancolia absurda, é uma melancolia sem dono, a gente agasalha-se nela como um cão no vão de uma porta. Então alguém disse - quem disse? alguém então, agora, na eternidade. Alguém disse - um corpo. E a sua miséria asco podridão. E uma harmonia de tudo isso a ser verdade no infinito. E a conta sempre aberta para irmos entrando nela às parcelas de fome de erro e crime. De morte. E a beleza incrível aí de uma gangrena. E o horror o medo. E a baixeza de haver caca e se cheirar mal. E as outras parcelas de haver luz e um sorriso de olhos fechados virado para o interior. E de haver uma alegria estúpida e vertiginosa de Deus como uma criança. E de toda essa conta ficar aberta para se fechar no impossível.
- Como podes pensá-lo? - disse eu a Teo que não abrira a boca nem decerto me ouvia.
Como podes? tu que fizeste do pobre Cristo filho do Espírito Santo como outros são filhos das tristes ervas.
- Ouve - disse-me ele sem me dizer, e a noite começava a ser plausível sobre a tarde, a doença e o seu cheiro que não é dos remédios, fezes, suor, mas do tempo e abandono, um cheiro amarelo que passava por tudo isso, iluminava tudo isso como uma tocha ao alto, no ar. Ouve, disse-me ele muito calado. Era filho do carpinteiro que o fez em Maria. Mas a verdade dele não estava no carpinteiro e foi por isso que deixaste de ver o carpinteiro na sua história. E se Judas o não tivesse traído? se os judeus o não tivessem linchado? Há uma conta em aberto a fechar no infinito, não é o que pensas? Não queiras fechar tu a conta.
Então olhei a minha perna que estava realmente horrorosa. Negra feia - não te contei ainda? vou-te contar, depois que o Teo se foi e fiquei só, com o velho de queixo ao alto, a esmoer. Está a esmoer fora da História, pensei. Longe da acidentalidade fortuita em que o esmoer não é essencial. E foi quando entrou o Matias e outros dois médicos.
Entraram pela porta do fundo, vieram em fila até mim. Vinham com a sua bata branca, o Matias à frente, mais familiar com a morte. Tinham todos um ar limpo de funcionários da doença, burocratizados técnicos. Tinham mesmo a sua beleza, assim purificados de branco, intactos à conspurcação. Vêm em linha, dão a volta pelo fundo da enfermaria, dispõem-se alinhados à beira da cama. Mas não vejo o Teo na minha lembrança. Então o Matias levanta com dois dedos sintéticos a coberta, e a minha perna aparece na sua negritude. Os outros debruçam-se, Matias explica. Mas não o ouço. Fala para eles, eles olham com muita atenção para a perna, a ver lá o que ele diz. De vez em quando palpa algum sítio especial, aponta com um dedo explicativo. Às vezes os dois deixam de olhar e olham o Matias, o Matias molda em gestos a explicação. Estão trocando impressões na abstracção de mim. Não os ouço. E são extraordinários nos seus gestos mudos, debruçados outra vez para a perna a conferirem. Uma vez ou outra um dos dois faz perguntas ao Matias sobre a perna que é minha e eu estou a assistir ao que não ouço e de que só faz parte a perna mas não eu. Houve uma vez em que o Matias visivelmente não soube responder e se agachou sobre a perna, empurrou mesmo os óculos para a testa num melhor acerto ocular. De outra vez passou uma mão junto ao meu joelho, explicou coisas lentas com a outra. Eu estava ali e tinha pressa de que se fossem para ficar a sós com a perna que era minha. Mas eles não tinham pressa nenhuma e de uma vez ficaram mesmo todos quietos e calados a pensar. E havia uma grande tristeza no salão. E o velho de queixo no ar continuava a esmoer, mas eles não ligaram. Por fim o Matias traçou uma linha imaginária num certo sítio da perna e houve mais perguntas do outro que ainda não perguntara quase nada e o Matias teve um grande gesto desaprovador com a cabeça a dizer que não. E tudo se passava num grande silêncio astral. Depois, sempre falando, Matias puxou a coberta e tapou-me a perna e os três em fila saíram pela porta ao fundo da enfermaria. E eu fiquei enfim a sós com a perna que era minha e aconcheguei-a no meu sofrimento. Porque sofro realmente, querida.
- E como é que a coisa começou?
Porque sofro muito. Mas tu sabes, só o animal é que sofre apenas no sofrimento. Aí a coisa foi dura, naturalmente. Mas havia por cima outra coisa e essa coisa é que doeu mais - que coisa? não sei. Imperfeição, humilhação, não sei. Vexame, coisa para se ser humano.
- E como é que foi?
coisa do espírito, abaixo de Deus e acima de cão. Ou acima dos dois. E aqui gostava de te explicar bem como amei a minha perna com um amor infeliz. Como uma mãe a um filho aleijado. É um amor muito intenso e cheio de horror. Porque não há amor só no que se ama, minha Mónica. O ódio também ama. E a repulsa. Tudo que cria uma dependência, mesmo a de quem nos vai matar.
- E como é que começou?
Olhava a minha perna enquanto era minha e tinha uma pena triste. E a pena dava uma volta por longe e vinha ter comigo outra vez. Mas só quando a perna me não doía. Porque a pena precisa de sossego e a dor não a tem - como é que começou? Um dia fui fazer um electrocardiograma e o médico perguntou-me
- Não tem os dedos dos pés enegrecidos?
Que pergunta. Não tenho, doutor. Nunca tinha reparado, mas disse não tenho, talvez para inclinar o destino a meu favor. E um dia tive. Minto. Um dia tive foi uma nódoa negra na articulação dos dois dedos grandes. O médico foi logo ver, cheio de interesse profissional. Dobrou os dedos para esticar a pele, a nódoa diluía-se, não era. Mas um dia foi. Era no dedo grande, é polegar? era no dedo maior do pé esquerdo, negro, querida, era um dedo estranho, não o reconheci como meu. Subitamente houve uma fracção minúscula do meu corpo que me não pertencia. Mas filava-se a ele, eu não o podia rejeitar. Depois os outros dedos em fila, eu ouvia-os a dizerem somos solidários, estavam na mesma morada, eram solidários, a morada era eu. Até que um dia, foi na barriga da perna que começou. Precisava bem de te explicar para me explicar a mim. Era uma dor horrível, Mónica. Mas não era uma dor só dali, era todo o corpo que estava ali a doer. Não era só de um sítio, não a podia isolar. Partia dali para a cabeça o peito os intestinos e trazia-os todos para doerem ali com ela. Eu queria separá-la do resto do meu corpo e o meu corpo deslocava-se todo para lá para sofrer. Então eu deitava-me um pouco para sofrer ela sozinha e descansar o que não era de lá e olhava o pé que já estava todo negro do outro lado de mim. Era estranho isso, Mónica. Eu estava todo na gangrena, mas ela não era minha. Vê se te não comoves muito - não era. Porque por dentro eu não tinha gangrena nenhuma, e então de quem era a que tinha por fora? Sentia assim uma piedade enorme por mim e uma vontade de me fechar comigo no meu sofrimento. Era um sofrimento variável no seu modo instável de ser. Desesperado corajoso sereno, era assim. Porque ninguém decide do seu sentir para a vida toda e o que o leva a variar decide-se quase sempre onde não estamos. Depois a dor doía-me o corpo todo, mesmo quando deitado. E um dia vieram três médicos em fila e de bata branca e destaparam a perna e debruçaram-se sobre ela um por um. Faziam gestos com palavras inaudíveis e havia uma claridade no ar que vinha da tarde lá de fora e do silêncio da sala. Era uma tarde linda e quieta, digamos como um êxtase, no intervalo do meu sofrer. Todo o espaço da enfermaria vibrava de luz, uma luz material, espessa como leite, não sei, reflectia-se das paredes, das colchas e misturava-se no ar. Veio uma enfermeira com uma seringa
- A ver se pode dar um jeitinho
baixou-me o pijama e eu não tive direito ao meu pudor. O meu pudor era a minha força macha, Mónica, e eu não tinha macho nenhum em mim. Era um corpo sem agressividade masculinidade, eu, e uma mulher qualquer podia manipulá-lo com indiferença, fora do seu estatuto de ser. E eu estava desapossado de tudo o que estava para ali à mercê dos outros e que não podia reconduzir à minha posse. Recordo-me de todo o modo de pensar és senhor de ti, dentro de ti, e aí só a morte quando chegar a sua vez. A enfermeira sacou a agulha num movimento rápido e tapou-me a nádega, eu puxei o pijama, atei o cordão. Reparei então no velho ao lado, largado a si e que já não esmoía, pareceu-me. Via-o de perfil, muito quieto como estátua jazente. O nariz, o queixo imóvel. Veio uma outra enfermeira, trazia roupas talvez para mudar as da cama. Uma outra veio atrás dela, talvez para ajudar, mas parou um instante a meio da sala. E a que veio à frente inclinou-se sobre o velho que não esmoía. E disse e disse e disse. Era uma alegria cheia de divertimento e de justiça demográfica. E disse vem ver!
- Vem ver o velhote que já deu o pinote!
E eu fiquei calmo, cheio de compreensão humana. Foi quando fiquei só, em frente do guarda-redes, para marcar a grande penalidade e todo o estádio gelou num grande silêncio. Eu pensara muito bem a velocidade do arranque, o modo de caminhar para a bola sem denunciar o ponto da baliza a visar, a abertura da perna esquerda para o pontapé. Devia ser tudo breve e seco. Três quatro passos para a bola e um disparo curto e fortíssimo ao ângulo inferior direito.
Ouvi o apito do árbitro e avancei devagar como se para pregar uma partida. E com uma força descomunal, preciso, disparei. E então a minha perna desprendeu-se do meu corpo, e voou por cima do estádio, balançando-se lenta no ar, e foi diminuindo de tamanho aos meus olhos até se reduzir a um ponto e desaparecer ao longe no espaço. E à minha volta havia agora uma azáfama de médicos fantasmas e de enfermeiros, falando brevemente entre si mas a uma distância a que os não podia entender. Às vezes o rosto de um aproximava-se disforme de mim e eu ouvia e respondia mas não sabia o quê, a fala estava separada de mim e articulava-se sozinha sem eu saber o que dizia. E imediatamente a seguir eu estava de novo na enfermaria. Mas agora não tinha a perna e todavia tinha. Porque leva tempo, querida Mónica, a separar-se-nos do corpo o que um dia lhe pertenceu. Deve ser a lei da união dos seres, a lei que exige todas as coisas no lugar que lhes pertence. A perna era minha por um contrato estabelecido na eternidade, era difícil rescindir o contrato estabelecido. Que estranho, querida. Sentia a perna na sua realidade interior, eu digo que era a sua alma. Mas não estava lá a parte de corpo que era sua. A minha mão procurava-a e só estava o seu vazio. E então eu disse ao médico
- Doutor. Queria ver a minha perna.
Ele não respondeu e disse qualquer coisa à enfermeira.
- Queria - disse ainda.
- Ouça. É uma ideia absurda. Mesmo a perna já foi removida para onde devia ser.
Depois ele disse mais coisas, eu estava atordoado, dissolvido numa névoa de pensar e sentir. E como chove.
Ouço a chuva que deve ter rompido pela noite, ouço-a. E então disse, não sei se disse - não preciso de a ver. Porque não precisava, Mónica. Tinha-a diante de mim como se a tivesse. E a certa altura tive-a mesmo, o médico deve ter mandado vir a perna - é uma ideia mórbida, uma estupidez. Deve ter mandado porque a vi bem na sua estranheza. Estava ali diante dos meus olhos fechados de sofrimento. Era uma coisa repulsiva e ridícula. Mas amava-a tanto. Era minha, não a reconheci. Negra sangrenta. Feia. E todavia amava-a. Eu enchia o meu corpo, era o proprietário dele todo, mas aquilo estava fora dos limites da minha propriedade. A minha mão levava nela o reconhecimento de tudo o que me pertencia no meu corpo e eu palpava-o em qualquer sítio dele e sentia que era meu. Eu estava todo no meu corpo e em cada parte dele reconhecia a minha mão nessa parte e sabiam ambas mutuamente que tinham um destino comum, mas a minha perna já não era dessa comunidade. Estendi a mão, toquei-a fora de mim, não era. Coisa grosseira que não correspondia ao meu toque, fria matéria estranha. E absurda na sua inutilidade de ser perna sem um corpo para andar. E pensei que não tinha sentido que eu a amasse. Então tomei-a a mãos ambas. E juntei-a aonde faltava. Mas o meu espírito não a reconheceu. E retirei-a de novo e ela foi de novo a estranheza e o horror de mim. O médico voltou, quis saber como me sentia, disse coisas ininteligíveis à enfermeira. E eu disse-lhe
- Doutor. Queria tanto ver a minha perna.
- Repare. É uma ideia mórbida, absurda. De resto já foi removida para onde devia ser.
Estava uma tarde linda, Mónica. Lembrava-me uma alegria muito antiga de que já não sabia a razão. Era uma alegria triste e tive de ser forte para a aguentar. O velhote que dera o pinote fora despejado da cama. Estava lá agora um outro tipo que resfolegava como uma forja.
Sim, sim, Mónica. A causa depois do efeito. A minha tese é esta, minha querida - nós trazemos na alma uma bomba e o problema está em alguém fazer lume para a rebentar. Nós escolhemos ser santos ou heróis ou traidores ou cobardes e assim. O problema está em vir a haver ou não uma oportunidade para isso se manifestar. Nós fizemos uma escolha na eternidade. Mas quantos sabem o que escolheram? Alguns têm a sorte ou a desgraça de alguém fazer lume para rebentarem o que são, ver-se o que estava por baixo do que estava por cima. Mas outros vão para a cova na ignorância. Às vezes fazem ensaios porque a pressão interior é muito forte. Ou passam a vida à espera de um sinal, um indício elucidativo. Ou passam-na sem saberem que trazem a bomba na alma que às vezes ainda rebenta, mesmo já no cemitério. Ou quem diz bomba diz por exemplo uma flor para pormos num sorriso. Ou um penso para pormos num lanho. Mas não sabem. Agora pergunto - se escolheram a maldição e alguém faz lume, quem é culpado de ela rebentar? Como é que um tipo é culpado de trazer uma bomba na alma se foi outro que a fez explodir?
E como é que é culpado o tipo que fez o lume, se a bomba não era dele? Qual é a sequência da causa/efeito? Mónica, minha querida, eu posso perfeitamente dizer que a causa, que é o lume, está depois do efeito, que é a bomba. Mas já explico melhor, se valer a pena e não expliquei bem. A minha ideia agora é que o limite de tudo é o incognoscível. Mas temos de nos ir governando como pudermos para não darmos em doidos e haver ordem na vida. A verdade de tudo há-de esclarecer-se no sem-fim. Mas temos de ser razoáveis para ir vivendo. Admitamos para já que o culpado é o que faz lume.
Mas tudo isto vinha a propósito do Salustiano. O Salus, pois - e como te hei-de dizer? tu sabes o que se passou. E já aliás falámos disso. Mas a coisa conta-se em duas penadas. Certo dia uma rádio clandestina começou a pregar a desordem. A dizer - porque é que hás-de levar a vida sem fazeres o que te apetece? E dizia no fim eu sou o Salustiano, o Salus para os verdadeiros amigos. Depois houve uma mexida tremenda, com mortos e feridos para aquecer e haver razões no movimento. Porque um movimento sem mortos não é sério. Um movimento começa numa ideia mas com mortos é que acaba e tem razão de existir. Pois como pode uma ideia ter preço sem uma vida lho dar? O tamanho dela é o da quantidade de tipos estendidos. Por isso, quando os não há, estendem-se alguns para começar a haver. Na aldeia, Mónica, havia tipos que desencadeavam uma pancadaria e depois safavam-se porque a pancadaria já ia por si. Eu não sei se o Salus teve a culpa. Eu não sei se a mexida teve razão, sei lá bem o que é que tem razão. A gente começa a querer saber e só já pára no centro do universo, que se não sabe onde é. Lembro-me muito bem da tua cólera, minha querida,
- É um crime que vais cometer, se condenares o desgraçado
da tua ira subtil por julgares que te condenava a ti. E havia uma excitação enorme no país e tudo crescia assim ao tamanho dela. E eu disse-te
- Se calhar não tem culpa nenhuma, ele é um parvo. Mas alguém tinha de a ter para a lei ser habitável. E
um parvo facilita as coisas. Não tem tamanho na alma, pode-se lá meter o que se quiser. Não tem medida na alma, não sabe o que é justo ou injusto. Não tem alma sensível, tem só corpo, não sente portanto o que está acima do corpo como os animais. E depois, porque é que ele não havia de ser culpado? E não me digas que tinha razão, porque já assentámos que a razão só no centro do universo. Mas a gente está num sítio da Terra, que é um planeta com certo interesse, e não queremos que nos estraguem esse sítio. E há leis para não termos a estopada de pensar e quem quer pensar, que vá para a selva. E o Salus tem tanta culpa como nós, querida, mas alguém tem de pagar as custas por estar mais à vista. E ele foi culpado para a frente, que era onde estava, e para trás, que era onde estavam os outros que ele pôs em movimento. Porque fez as pessoas saberem o que não sabiam e passaram a saber e deu ânimo às que já sabiam mas cortavam-nas de avançar. E todo o passado e presente e mesmo o futuro ficaram cheios da sua perversão. E ele foi o único lugar visível dela para se arrear e a gente ficar de consciência mais tranquila. E desde que ele fosse punido, ficava punido todo o movimento que tinha de arranjar outra face visível para existir. E não há mais conversa por agora, porque a Antónia está a chamar-me para o banho. Prefiro, aliás, que seja ela a dar-mo, mas nem sempre é. Prefiro-a porque está mais perto da minha desgraça com as suas formas brutas e desconjuntadas. Uma vez deu-me banho uma jovem, não gostei. Era jovem e estava alta na sua juventude, eu cá muito mais abaixo e desgraçado. E a altura foi ainda maior, a manobrar-me assim profissionalmente a seco como a um tolinho. E quase nem abria a boca. A Antónia também me manipula, mas abre a boca bastante. Vejam-me estes pés, este eu, e ainda anteontem o lavei. E a certa altura - mas eu nem sei se te deva contar. Ela estava a manipular-me o corpo todo e dessa vez minha mãe não entrou no balneário. Mas tapa os ouvidos para o que te vou dizer, minha mãe não entrou. Não entrou ela nem a Micas, nossa criada, que vinha sempre atrapalhar por querer à força dar ajuda sem ser preciso. Nem talvez a minha irmã Célia que às vezes também vinha com a sua diferença de idade para ser também já maternal. Não sei se te disse, uma vez encontrei o filho dela, foi ele que me encontrou - olá, tio João, e eu fiquei espantado. Era já um homem, tinha postura e assim a nossa relação invertia-se um pouco, olá, tio João - como é que ele sabia de mim? E então cruzámos várias falas como quem estabelece as regras de um jogo, mas não chegámos a jogar. Não fez referência à mãe, disse-me que estava divorciado, trabalhava com computadores, mas não falou da mãe para também eu não falar. Mas eu falei e perguntei - e a tua mãe? E ele abriu os braços em evidência e abanou a cabeça em silêncio para eu perceber que a pergunta não tinha resposta e por fim disse - não sei. Havia muitas questões possíveis mas eu entendi que ele já respondera a todas e não perguntei mais.
A minha mãe não entrou, dizia-te eu, e foi bom que não entrasse. Vejam-me estes pés, este eu e ainda há dias o lavei. E lavava-me e escarduçava-me até que a certa altura me manipulou o galheteiro. Manipulava-o como se estivesse a arear uma peça da cozinha. De uma vez pôs-se mesmo a observá-lo de perto como se investigasse à lupa qualquer imperfeição que resistisse à lavagem. E bruscamente segurei-lhe a mão. Ela suspendeu-se a ver o que se seguia, mas sem me olhar. Eu abrandei o aperto na sua mão calosa e lentamente. Um início apenas no seu movimento. E ela então riu-se com um riso não do espírito que não tinha, mas das partes mais ordinárias do corpo, que sim - então não querem lá ver o estafermo do velho, mas eu segurei-lhe a mão e insisti. Então não se está mesmo a ver que é um disparate, mas eu teimei. Que até pode aparecer por aí alguém, veja-me só se aparece a patroa - as palavras derradeiras, últimos tiros da retirada, a aparência para a verdade não ser tanta, eu não desisti. Depois larguei-lhe a mão e o mecanismo trabalhou por si, dei-lhe a coragem, trabalhou. E não é que o meu corpo começou a existir comigo? Ó Mónica, minha querida, não ouças. Recomecei a existir com ele e havia uma distância enorme em que não tinha existido e um prazer extenso a preencher essa distância e uma violência divina em nós, e eu senti que tínhamos acordado Deus e que ele viera ajeitar em nós como pôde a sua lei. E a Antónia voltou a lavar-me agora com respeito e ternura e um pouco de receio de que eu me quebrasse e ela ficasse só com a sua brutalidade sem a entender.
Mas eu estava a falar-te do Salus e já nem sei a que propósito. Era talvez sobre a culpa, porque ele foi culpado do que se calhar nem fez. Esta história da culpa, ó querida. Somos todos culpados, eu um dia disse-te, creio que por causa do José de Barros, era a piedade que tinha à mão, queria tanto que tu te perdoasses. Somos todos culpados, nenhum crime nasce do nada. Culpados pelo que se segue e pelo que fica atrás, mas já filosofámos o nosso tanto. E todavia. Há que haver ordem na vida, distribuir os papéis para que cada um saiba o seu. Todas as leis são injustas, eu não vou agora professorar. Portanto, todas as leis são justas, que é a mesma coisa do outro lado. Cada um tem as suas regras e a regra que as regula e todas estão reguladas no infinito - mas não era bem isto que te queria dizer. E do Barros já falamos. O que eu agora queria dizer era que. Nós só saberíamos quem é justo ou não se todos fossem submetidos à mesma prova. Fui juiz, a coisa mexe-me com o sistema nervoso - só se todos fossem experimentados. Quanto criminoso vai para o paraíso só porque teve a sorte de não ter sido posto à prova? Ladrões bombistas assassinos. Quantos. O único juiz certo devia ser Deus. Mas ele mesmo, querida, é um idiota ou um patife porque só condena os que foram postos à prova e se foram abaixo. Ele que sabe tudo antes de se saber, não sabe nada ou não sabe quando é preciso saber. Porque ele é que devia condenar não apenas os que tiveram a sua oportunidade de serem sacanóides e aproveitaram, mas todos os que o seriam também se a tivessem como os outros. O único juiz possível devia ser ele, para julgar não só os que foram patifes mas também os que o viriam a ser se tivessem tido ocasião. Tudo isto é tão confuso, minha querida. E eu quero é amar-te, mais nada, mais nada. E que se cozam as leis e a mania de entender, que é que há que entender? há só que te amar. A verdade é uma pedra, está aí, não há nada que entender, quero é amar-te
- Sabes uma coisa, João?
amar-te por cima de todo o esterco e confusão. Amar-te onde talvez já não estejas, mas está o excesso de ti, qualquer coisa assim que te não sei dizer. Curioso, não sei. E às vezes penso - não tem sentido nenhum. Deve ser da velhice, é muito possível. Viver do espírito quando já se não tem corpo para acompanhar. Na velhice já todo o real se esgotou, o que fica dele é a imaginação ou um divagar sem consistência, farrapos soltos à deriva. Quando era rapaz, mas não sei se já te falei disto. Quando eu era rapaz havia lá na aldeia um velho - e se viesses comigo visitá-lo? Foi um homem importante, chefe de estação de caminhos de ferro ou dos correios, ou das alfândegas, foi um homem de importância social. Mas tinha ali uma casa ou a mulher era de lá, ficara viúvo, os filhos dispersos, veio para a aldeia para morrer. Vivia só, uma mulher vinha de manhã tratar dele, regressava à noite a sua casa, era o senhor Gedeão - vem daí, não queres vir? vou eu só. Bato à porta, a mulher espreita de cima e puxa o trinco.
- Está aí na loja - diz-me lá do alto em voz cheia, que é como nas aldeias as pessoas se entendem, querida.
Em voz cheia. Não, não é do silêncio que realmente amplifica o que se diz como se se dissesse para o universo. Deve ser de se ser comunitário e de mesmo os segredos terem um destino em voz alta. Mas não é uma loja, é um rés-do-chão em cimento com alguns móveis de pau e um préstimo utilitário para quem tem pouca perna para as escadas. Conheço-o há muito, o senhor Gedeão. Desde quando vinha a férias com os filhos e confraternizávamos todos e ele tinha perna e pulmadura para os caminhos de cabras. Ou ao menos para os passeios depois, mais conformes com a decadência. Até que houve a morte da mulher e a disseminação dos filhos e ele recolheu à toca à espera do que se seguisse. Levou anos sem se seguir nada. A mulher vinha de manhã acordá-lo prepará-lo. Ele descia a escada e só a subia depois à noite.
- Está aí na loja - dizia a mulher para a aldeia toda quando batiam à porta.
Lá estava realmente, numa cadeira de pau, uma grossa manta nos joelhos. Estava um frio de pedra mas a sua higiene era incompatível com braseiras, escalfetas, coisas doentias assim. E havia uma janela pequena onde só passavam sombras pelas cortinas. Mas nem as olhava. Estava voltado para uma parede e na parede estava tudo. Eu propunha-lhe um passeiozinho - para quê? ele dizia. Já vi tudo, ele explicava. Ou ler um livro - ler o quê? Já li tudo. Tinha ainda boa vista, ler ao menos um jornal. Já sei tudo. Estava ali muito bem, a parede tinha lá todos os jornais e livros possíveis, toda a sabedoria do passado e do futuro. A parede. Ele olhava-a de manhã à noite todos os dias. E era bastante para encher uma vida. Um dia a mulher foi acordá-lo pela manhã. Estava bem enrolado sobre si. Devia estar contente com a memória da parede, devia tê-la entremeada ao seu sono. Não acordou.
Tenho a minha parede onde te vejo, minha querida. A minha invenção de ti. Em todo o caso - deixa-me explicar. Em todo o caso, não é uma invenção, como se diz? romântica, ideal, coisas pindéricas assim. Lembro o teu corpo com muita força, mas há sempre nele outra coisa que está no meu lembrar. Doçura de quando eras jovem e está ali na tua fotografia. O intangível de ti, que era o que eu tinha e fugia para fora do meu alcance e era uma coisa terna para eu ficar em silêncio e encantado. Mas tudo é assim, Mónica, todas as coisas são o que são, mais aquilo que lhes fazemos ser e só isso é que é. A frescura de seres, a insuportável perfeição do teu corpo, acabado de fazer por Deus. A beleza transparente que te iluminava por dentro. Era tua, mas só eu a via porque só eu a fazia ser tua, não a mulher a dias ou o merceeiro. Querida Mónica, um corpo harmonioso é tão divino. Mas todo o corpo o é. Um dia o André, lembrou-me agora a propósito. Um dia o André, andava ainda no 1.º ano, um dia disse-me
- Sabes? mas nem sei se te devo dizer. Foi o Jerónimo do 4.º C que contou, ele tem um primo na minha turma e disse que uma noite na aldeia do pai viu no cemitério uma nuvem com luz por cima dos mortos, tu acreditas?
E de súbito lembrei-me de um livro repúblico de leitura da instrução primária, muito contra os padres e as almas do outro mundo.
- Fogos-fátuos - disse-lhe eu.
São fogos-fátuos, gases de corpos em decomposição, vêem-se às vezes de noite, não são almas do outro mundo. Tão divino um corpo, penso-o agora para então que o não pensei. Mesmo feito estrume, querida, ainda é uma nuvem luminosa para a memória de quando o não era. O André ficou calado a olhar-me, via-se que tinha mais a perguntar.
- Também disse outra coisa, mas aqui é que não sei mesmo se te devo contar. Foi o Jerónimo do 4.º C, ele vem assim com coisas, mas aqui eu experimentei e era verdade.
- Que é que era verdade?
- Ele disse que um pum, se se lhe chegar um fósforo faz lume.
Ficou a olhar-me muito tempo a ver se podia avançar mais e viu que podia. E avançou.
- Disse então ele assim: estás a ver que os tipos no desemprego podiam ganhar a vida a encher botijas de gás.
Eu rebentava de riso, mas aguentei. E ele então disse ainda:
- Na minha turma há lá um tipo que basta dar quatro pancadinhas na barriga para largar logo uma data de puns.
- Fizeste a experiência?
- Dei um pum, cheguei-lhe um fósforo e ardeu. Fiquei a olhá-lo cheio de compreensão fisiológica e
depois não aguentei mais e ri-me. Ri-me, ri-me. Não sei porque te ris, disse-me ele, é verdade e eu experimentei e vi. E eu rio-me agora de novo para o espanto do André que toda a vida se orientou pela sua inquietação. E dos tipos no desemprego, utilizando os seus dons no enchimento das botijas. E da sua possível investigação de um regime alimentar para a sua gasificação. Vejo enfim o André na sua surpresa de iluminar. Rio. E de súbito não rio mais. Ou sorrio apenas na imprevista ideia do que nasce do mais vil do homem e é ainda iluminação. Um corpo que apodrece. As fezes.
- Cheguei-lhe um fósforo e ardeu.
- Podias-te ter queimado.
- Foi por cima das calças e ardeu à mesma. Veio-me uma ideia incerta, lastrada de horror e riso, demora-se ainda depois de o riso passar. Depois vem-me uma outra ideia de dentro dessa, mas não acabou ainda de nascer. Fala-me dos nossos filhos, dos retratos deles quando eram pequenos, dos sapatinhos bronzificados, dos primeiros dentinhos da Márcia e do Teo e que se perderam ou deitaram fora, ou do primeiro dente do André que já não guardaste - vem tudo misturado para ser ideia que ainda não nasceu e eu não sei ainda o que é. Do José de Barros é que já sei. Tenho 3 ideia já feita mas não sei bem donde nasceu, como se não sabe de ideia nenhuma. Mas estou cansado, depois te digo. Lembra-me se me esquecer. É a propósito do teu corpo, querida, como naturalmente deveria ser. Estás morta na cama, a Camila já te tirou o lenço do queixo, estás bem. Só o teu rosto aflito de uma dor difícil e antiquíssima. Vejo bem que é uma dor que vem de muito longe mas que já não sabes donde. Olho-te um momento sem muita piedade - porque havia eu de ter muita? A piedade é uma forma de expulsarmos a amargura de nós, a ameaça de não querermos que o seja. Guardo para mim a piedade que era para ti - como posso ter ilusões? Ponho-te a mão na face
- Espera lá por mim.
É uma face fria como um desespero calmo. É uma face doce à memória da alegria que morreu. Não digas - nunca te gramei, oh, não digas. Foi tão horroroso ouvir-te. Estavas louca. Como é que a frase te atravessou a loucura? e veio ter contigo como um abutre? Ponho-te a mão na face, demoro-a ainda um pouco. Estás calma. Apenas uma amargura muito funda que te marcou. Os traços nítidos ainda.
- Espera lá por mim.
Estão diante de mim como uma filarmónica. Estão à roda da sala e eu em frente a olhá-los com muita atenção. São dez, contei-os de um a um, todos à volta, encostados à parede. E a certa altura reparo que todos remoem a boca em silêncio. São cinco homens e cinco mulheres, intervalados uns nos outros, os homens em cadeiras de rodas e as mulheres quase acocoradas, nas suas cadeirinhas rasas. E as cabeças um pouco inclinadas, esmoem mudos interminavelmente. Não costumam estar assim intervalados - estão. Vejo-lhes agora só as bocas em fileira a toda a volta, estão no ar e em fila na sua moedeira infindável. Fixo-lhes o movimento contínuo, os lábios em redemoinho lento na tarde quente imóvel. E a certa altura reparo que o rodopio das bocas se altera. Agora as dez bocas vêm à frente e atrás, um pequeno inchaço de quem sopra, devem estar a soprar em qualquer instrumento invisível. E pouco a pouco os instrumentos são já visíveis, nítidos agora no seu niquelado amarelo. Trompetes trombones, todas as bocas sopram neles uma música no eterno. Não a ouço e há escuro à sua volta. Contra o fundo negro da sala, só as bocas soprando nos instrumentos metálicos.
A um lado no meu quarto, eu pedira-o a Márcia - ao outro está a deusa da Primavera de Pompeia -, é um desenho macabro que me fez quase sorrir. É de Dürer, minha querida, a Morte coroada e a cavalo. Não, não é o Cavaleiro e a Morte gravados a aço de segurança e nitidez. É um desenho anterior - memento mei diz ele à nossa possível distracção -, mas não o fico a lembrar mais. É um esqueleto curvado com a sua gadanha ceifeira sobre -um cavalo esquelético com um chocalho. E tudo um pouco esfumado de náusea e vaguidão. Devia ouvir o chocalho e o seu aviso de pavor, ouvir o chocalho dos ossos do esqueleto e do cavalo. Está parado, o cavalo, tem uma pata no ar mas não se move para termos tempo de o ver bem. Um pouco sorrio para dentro, um esqueleto, minha querida, é a figuração mais ridícula da morte, foi talvez por isso que o pus aqui dentro. Para tratar a morte por tu, um esqueleto é tão engraçado. Mete medo às crianças. Tão cómico naquela geringonça articulada da ossaria. Mete medo ao infantilismo de nós naquela engenharia de mecano, a morte está antes ou para lá disso tudo - e que estais vós tocando?
Tocam. A boca soprada, tocam trombone. São dez trombones à volta da sala, é uma música só ouvida no eterno. Vejo os dez trombones alinhados paralelos, todos à roda da sala, brilham contra o fundo negro, cintilam. Um deles, subitamente possesso, ergue o instrumento ao alto, talvez num solo. É longo como um urro, o solo. Não o ouço. Deve dar a volta ao universo, arrastar consigo o poder das nebulosas. Deve ser o delegado de todos os trombones ali murchos. Deve saber a voz da amargura e atira-a às constelações. Ouço-o agora, tenebroso, desgarrado, no horror da orquestra escura, anuncia as trevas e um ódio que de si mesmo se perdeu. E um som rouco de quem gritou a vida inteira. Dá a volta ao universo, regressa à sua amargura - os deuses terão ouvido? Devem ter sorrido na sua omnipotência de um protesto imbecil, obstinado e vão. Ouço-o ainda no silêncio do mundo. Ouço-o no meu terror. Depois alinha de novo com os outros, a missão cumprida. E de súbito, de novo as bocas apenas. Redemoinham mais convulsas, ouço-lhes o ruído da saliva no seu redemoinhar. São caquécticos, esmagriçados, revolvem sempre a boca salivosa. Devem estar a ajeitar a dentadura, penso, alguns não a têm, convulsionam a boca esvaziada. Alguns olham-me com piedade e ódio e humilhação. Devem sentir-me do mundo exterior onde a desgraça é uma hipótese futura e improvável. Devem talvez olhar-me com terror como a um soberano, um ser hostil que não remói a boca no vazio. Não me sinto mal na minha diferença, mesmo com falha de perna. Ah, como eu os olho na sua mastigação difícil - que é que estais a mastigar? que ódios remoeis? onde a substância que vos preenche esse vazio? Estão todos alinhados na posição definitiva, mas sentados, têm o olhar fixo na memória da vida, moem a boca sem grão para moerem.
Porque um esqueleto, querida Mónica, já se não parece com um homem. Olho o desenho de Dúrer, não se parece. Há a coroa da morte a lembrar a sua realeza, mesmo nos pedaços de pele a revestir o cavalo. Mas o que vejo é o esqueleto de uma e de outro. É um articulado de peças para um jogo de crianças. Olho-o com interesse, pedi à Márcia que me trouxesse o desenho para aprender a desautorizar a morte, a gente valoriza-a tanto. Mas a importância dela está antes do esqueleto, minha querida, o esqueleto é um brinquedo - creio que fiz uma observação profunda. A importância da morte está na vida, o resto é uma questão de lixeira e não é por se conhecer a lixeira futura que se desvaloriza o prazer presente, como se não desvaloriza um banquete com o que ele há-de ser no caixote e na casa de banho. A importância da morte está onde a vida é ainda visível, no teu corpo estendido na cama, com os esgares ainda da aflição no teu rosto ainda contorcido. Nem é o cadáver que importa na morte, Mónica, mas justamente o morto. O macabro no seu ridículo é a negação da morte, deve ter sido por isso que eu pedi o desenho à Márcia. Queria dizer-te a propósito que ela é raro aparecer, houve mesmo uma vez ou outra que mandou o dinheiro pelo correio. D. Felicidade disse-me - a sua filha mandou o dinheiro pelo correio. Tem a sua vida que termina à porta do lar - porque havia ela de passar a porta? Nós pensamos que a vida acaba na morte, não é verdade, Mónica, acaba quase sempre mais cedo, quando é que a tua acabou? Nós tínhamos ido ao cinema, eu tive então o aviso. Não é o cavaleiro da gravura, esse está em pose de movimento para se acreditar na estabilidade. É o do desenho em que esse cavaleiro é já outro, o do fim, e que se dissolve no esfumado do passar. E a Márcia, mesmo quando aparece, demora-se sempre pouco. Trata-me do destino com D. Felicidade, demora-se quase sempre muito pouco. Diz-me desculpa, tenho ainda de ir falar com um cliente, ou tenho uns amigos à espera, vejo que estás porreirinho, o que se chama uma tara, vê se precisas de alguma coisa que eu trago-ta imediatamente - e eu que lhe hei-de dizer? Está bonita, a nossa filha, bem feita, mais jovem, mas nem tenho tempo de lhe perguntar pelos netos e pelo novo marido, que eu já nem sei bem, para te falar com verdade, que número é, e tenho uma certa dificuldade em situar-me na situação dela. Do desenho, o que mais me impressiona é talvez o chocalho do cavalo. Nem a coroa do esqueleto da morte, menos ainda a seitoira, demasiado alegórica para a minha maioridade mental. Porque a alegoria, como sabes, é a explicação do mais alto pelo mais baixo, como é próprio do ensinamento para estúpidos e atrasados. O chocalho tem o badalo parado, está ali para aviso, mas ninguém o ouve, ouve-se é o chocalhar dos esqueletos que não tem aviso nenhum. A morte verga sobre a magreza do cavalo, deve estar cansada da viagem ou da coroa, do seu trabalho de ceifar, de pregar em vão os ossos do destino. Eu nem sei bem porque pedi o desenho à Márcia, mas está ali, já agora olho-o de vez em quando.
- Para que queres aqui esta porcaria?
Já agora olho-o, tem o ridículo de tudo o que é excessivo, sem razão para o ser. Porque tudo tem o seu ponto de equilíbrio, mesmo em cima ou em baixo, o ponto de equilíbrio da ossaria visível é num museu ou numa sala de anatomia. É uma chocalhada de ossos, talvez me faça bem.
Os velhos estão mais sossegados, querida, têm a cabeça tombada, remoem mais devagar os últimos compassos da melancolia. Olho-os com ternura, vejo-lhes as bocas nos seus movimentos lentos em rodízio ou puxados à frente como se empurrassem a dentadura. Eu um dia perguntei ao médico será por causa da dentadura? e ele disse-me não é, é por causa de, mas já me não lembro de quê. Devem remoer coisas antigas, desgostos, rancores, saudades longas e isso não deve estar no saber clínico, mas aproveitam esse saber para remoerem o que está para além dele. Olho-os no meu direito de ainda estar por cima e olhar para baixo em altivez imperial. Ou olho-os com a alma agachada para o nível da deles, fito-os enternecido na moedeira dos seus dissabores, no entretenimento bovino de esmoer, vejo agora só as bocas, que é onde está a sua alma toda. Mas neste instante, é a D. Felicidade, querida, que é que será? é capaz de ser ainda por causa da Márcia. Dê-me um instante, diz-me ela, e mesmo o Salus deve estar a vir pôr a mesa para o almoço. É uma das suas grandes ocupações, muito atento aos horários, deve estar a vir pôr.
- Dê-me um instante - disse D. Felicidade, muito estatutária regulamentar.
Mas eu creio que ainda te não disse, querida, uma vez a Márcia não veio trazer a mesada. E eu então telefonei-lhe - Márcia
- Márcia. A D. Felicidade já veio ter comigo, porque é que não pagaste a mesada?
- Mas tu parece que não conheces a minha vida. Passou-me, tenho imensas coisas na cabeça, passou-me de todo.
Mas não era isso, D. Felicidade explicou-me - mudámos o seu quarto
- Mudámo-lo para um quarto mais independente, só agora foi possível.
Mudaram-me o quarto, levaram-me tudo a monte sem me dizerem nada.
- No seu quarto pusemos agora um outro senhor, o senhor Penedo - disse-me ela. - Há um ano que a família insistia comigo mas não tínhamos vaga.
Porque a velhice é imensa, querida Mónica, a velhice é incomensurável. Agora está lá o senhor Penedo e eu tenho um quarto só para mim. Estou bem, estou mesmo bem. Dá para um pátio interior e há pombos que vão lá comer migalhas, depois levantam voo e eu olho-os muito quando levantam. Mas um dia pensei - nunca mais. E duro, minha querida, pensar seja o que for ou ser seja o que for para nunca mais. O homem quer sempre o absoluto, mas devagar. Tudo o que é irremediável torna-nos inúteis, é assim. A gente quer o absoluto, mas para o não querer outra vez, é assim. A gente quer chegar ao limite, mas depois de descansar um pouco pergunta logo e agora? Nunca mais. Nunca mais sairei daqui? e então comecei a tresvariar, a pensar coisas. A nossa casa, as manhãs de domingo com a frescura limpa e sossegada das manhãs de domingo. O café pela manhã na cervejaria em frente. A ida ao cinema. Mesmo o trabalho que levava do tribunal. Mesmo o peso imenso à segunda-feira, parvoíces assim. E então disse à Márcia deixa-me ir para a tua casa. Era uma coisa absurda, disse. O que eu fui dizer. E então a Márcia, é claro:
- Nem penses nisso. Tu já pensaste o que é arrumar cinco crianças e a desordem que vai naquela casa? E o Pedro então que é tão esquisito.
- Quem é o Pedro?
- O Pedro. Então não sabes quem é o Pedro?
- Não sei. O teu novo marido?
- O Pedro. O meu marido. Não digas o meu novo marido como se fosse um novo vestido. E mesmo é arriscado tu saíres daqui. Perdias o lugar e depois onde é que te metia? E a D. Felicidade diz-me até que tu estás a envelhecer muito. E aborrecido estar a dizer-te isto mas as coisas têm de se encarar como são. Diz-me que tens muitas perdas de memória e às vezes não acertas mesmo com a colher na boca. E houve ainda outra coisa.
Sim. Deves ter razão. Então, olha - traz-me aqueles dois livros
- aqueles dois livros encadernados a vermelho que estão na ponta da primeira prateleira da estante envidraçada a contar de cima.
- Eu trago, se os miúdos não empandeiraram já tudo.
- E a jarrinha azul que estava na minha secretária.
- Deixa-me tomar nota. Vai dizendo.
- Não preciso de mais nada.
- Vê se te lembras para não trazer as coisas por partes. Mesmo se calhar no próximo mês tenho de sair, mando o dinheiro pelo correio.
- Ah, espera. Procura no quarto de arrumos e vê se encontras uma fotografia de vocês os três quando eram pequenos. É uma em que estás entre o Teo e o André. Ou então procura uma de cada um. Mas eu preferia essa dos três. Procura bem, que deve lá estar.
- Não achas que é uma parvoíce? A foto dos meninos que nunca cresceram. E onde é que eu vou agora encontrar isso?
E então conheci o senhor Penedo. Tinha um bigode raso, muito apertado contra o nariz. E era magro como o ascetismo. E mesmo todo electrificado, atravessado de baixo a cima por uma corrente eléctrica. Foi muito da política, disse-me a D. Felicidade. A filha pediu que lhe não falassem nisso. E então eu fiz a experiência.Mas antes de a fazer para ti, queria explicar-te o que atrás não expliquei. Foi quando a D. Felicidade disse à Márcia
- E houve mesmo outra coisa.
Não te expliquei e custa-me tanto. Outra coisa. Estava ela a contar-lhe as ordinarices deste meu corpo - mas eu não devo ser ingrato, pobre corpo, meu irmão. E guardou o melhor para o fim, quero dizer, o pior. Custa-me um bocado. E então, minha querida, estava a contar-te e dei uma volta por largo e houve outras coisas. Estávamos agora no Penedo e o que te não queria contar saltou-me outra vez à frente - e como empurrá-la agora para trás? Mónica, minha querida, deves ter reparado. Aquilo que mais se quer esquecer é aquilo que mais se lembra. Porque querer esquecer é lembrar, o que se não lembra é apenas o que se esquece mas não se quer esquecer. E tudo isto para te dizer uma coisa simples afinal. Foi uma noite, quero dizer, uma manhã, estava ainda no outro quarto. E à medida que ia acordando sentia o corpo empapado de uma lama fria. Coisa mole empapada e fria. À volta da barriga, mais por baixo do que por cima, devo ter-me voltado durante o sono para uma distribuição mais equitativa do magma arrefecido, eu estava a tentar entender. E de súbito estalou a centelha que ilumina o que está crescendo no entendimento até ela deflagrar. E então senti-me tão humilde. É em instantes assim que uma vida inteira tem sentido, minha querida. Nós levamos a vida a acumular coisas, bens, saber, glória e assim. E de vez em quando lá acontece um instante que ilumina isso tudo e lhe dá um sentido que não imaginávamos - senti-me tão humilde, Mónica. Mais talvez do que quando me levaram a perna. Porque havia aí alguma hipótese de grandeza na mutilação de um corpo inteiro e agora havia apenas lástima e degradação. Estava todo empapado de uma lama fétida, mas não quero que tenhas pena, não quero que me ponhas na cabeça a tua mão possessiva de piedade. Há de resto leis explicativas para o caso, minha querida, e uma lei dá sempre uma protecção. Mónica. Um corpo é uma estrutura de leis que lhe regulam a naturalidade de ser e o tornam óbvio assim, mesmo no seu mistério. E às vezes há outra lei contra alguma delas e volta a ser tudo natural - não te comovas muito. Quando era pequeno, minha mãe contava. Naturalmente não me lembro, ela contou-me várias vezes depois para explicar que eu nunca lhe dera más noites, que é o que da nossa infância uma mãe fica a lembrar com mais prazer. E então, ela dizia, ia ao berço, eu estava sossegado mas quando me tirava as fraldas parecia uma barrela a fumegar.
- Até fumegava. Mas nunca choraste nunca chorei. Limpava-me, lavava-me, punha-me fraldas novas para ser outra vez gracioso e querido.
- Mas ficavas assim toda a noite, ensopado e sossegadinho.
Não fiquei sossegado. Tinha na alma um vexame que ainda cheirava mais mal. Toquei a campainha, veio a vigilante. Destapou-me, horror, horror.
- Então este bebezinho já se não segura?
Horror. Então tentei explicar para sentir menos culpa a carregar-me nos ombros
- Não sabia ir à casa de banho ou chamar-me para o levar lá?
para haver uma lei a que eu me abrigasse, muito encolhido na minha humildade. Mas a empregada nem me ouvia e dizia coisas fora da minha ambição legislativa - agora para aqui a limpar a caca dos velhinhos - e minha mãe entrou pelo quarto dentro a explicar-lhe como devia pôr-me as fraldas correctamente, pôr a mão por baixo ao enterrar o alfinete para me não picar - ele tem a pele tão mimosa -, pôr o alfinete nas minhas costas para eu o não abrir, distribuir bem as fraldas, não as deixar frouxas, pôr por baixo do lençol um resguardo de oleado. A empregada lavou-me sumariamente - depois se dá um banho como deve ser -, não pôs oleado, pôs plástico, suponho.
- E agora vê se ainda dormes - disse-me minha mãe. Querida. Eu queria em todo o caso explicar-te que não
fui inteiramente culpado. Não fui. Há, é claro, enfim, digamos um anel, como sabes, com um elástico que nos fecha o saco das coisas vis no fundo de nós, e é claro, com o tempo o elástico afrouxa, como deves saber, e assim vai perdendo elasticidade para manter o saco bem fechado. E era uma desinteria de esguicho, querida.
- Vê se dormes - diz-me minha mãe.
Foi assim. Não te explico mais, deves ter aí na cova um espírito compreensivo. E vou ver se ainda durmo. Estou leve e fresco nas minhas fraldas lavadas. Vou ver.
- E houve mesmo outra coisa - diz-me Márcia.
O que houve já to disse. Mas foi terrível. Baixei uns furos para a D. Felicidade, ela subiu os que eu baixei.
- Mas agora vê se dormes - repete-me minha mãe. Olho o seu olhar compadecido. Fecho os meus olhos. A
ver se durmo.
Não, neste quarto estou muito melhor. Não sei se houve grande aumento de preço, mas não deve ter havido, a Márcia defende-se muito bem, querida. E já vês, quanto mais cortar no meu ordenado menos acrescenta no dela. Este quarto é muito melhor. Há mais espaço para mim e menos para os outros. No outro quarto a porta era simbólica como os troncos ou correntes que vedam a entrada numa quinta, do lado de lá da divisória de vidro havia a dependência ou subdependência clínica e o seu falatório ou o falatório da criadagem nos intervalos desse. Aqui fecho a porta e só cá fico eu. Mesmo a janela também me põe mais perto de mim, sem o chavascal do mercado pela manhã e a paranóia do tráfego no resto do dia. E mesmo à noite, quando o delírio sossega, lá vem um doido de vez em quando quebrar-me o ritmo de adormecer. Aqui não. Aqui a cidade fica longe e o trânsito é quase imaginário. A janela dá para um pátio interior - mas eu ia falar-te do Penedo que foi para o meu quarto, já te digo. E do José de Barros que, é curioso, foi perdendo intensidade no meu desejo de falar dele e nas ideias para meter nesse falar. Mesmo há que falar-te primeiro de D. Felicidade, até para eu saber o que ela me é. Mas o pátio. É de terra batida e tem dois bancos para a velhice meditativa. Quase sempre lá há um velho sozinho e alegórico, a cabeça pendida. Ainda agora, lá estão dois no mesmo banco, mas cada um em sua ponta, aproveitando ao máximo a distância de um lado ao outro. Estão em silêncio, conversam com o destino em linguagem cifrada. Olho-os e sinto-me cheio de ternura por mim. E há a visita constante dos pombos. Vêm do incognoscível e arrulham com arrogância, têm o papo e outras partes cheias de ambições. D. Felicidade não gosta que se lhes deite comida. Mas ela não entende que o maior prazer de quem precisa é haver quem precise mais. A porta do lar, eu não desço, não é só as canadianas e agora até estamos mais calhados e há um ascensor que às vezes trabalha, mas há que dizer à D. Felicidade que saímos - há sobretudo a minha cabeça, Mónica, a minha espessura opacidade vertigens, depois te explico se te não afligires muito. À porta do lar, dizia eu, sei que há gente afreguesada aos restos do comestio. Mas é gente regulamentar, inserida aos cânones da esmola, os pombos não. Olho-os tanto, querida. Vêm do imaginário, devem trazer uma mensagem e eu estou muito atento a ver se a decifro. Vêm do impossível, trazem o sinal do sentido das coisas, de haver verdade no que existe, de haver azul e ele estar alto e chegar-se-lhe com a mão, de existir o voo, de haver o passatempo do espaço todo, de a liberdade não se saber o que é e transbordar de si como uma pedra, de haver luz numa asa mesmo de morcego, de haver longe e não se querer lá ir, de tudo ser terrivelmente belo e não nos fazer chorar - vêm do infinito, querida, trazem uma mensagem que tento decifrar com os meus olhos terrestres, enquanto vou pensando falar-te de D. Felicidade.
Não sei se te falei já dela e se teria sido justo nesse falar. Porque tenho agora uma ideia curiosa sobre ela, mas ainda a não sei bem. A primeira questão, mas tu sabes, Mónica, à medida que um homem vai pendendo para a terra vai baixando o seu nível etário, a primeira questão está aí. Vi isso na relação dela com todos. Ela tem o quê? quarenta, quarenta e cinco anos. Mas sempre os teve. Quem manda tem sempre a idade do seu mando, querida, e se calha envelhecer deixa de estar certa com o mando e o melhor é ir fazer tricô ou jardinagem. Vi a coisa na relação dela com os outros e eu pensei - se fosse comigo. Mas acabou também por ser comigo e vi que a razão estava do lado da ordem, da transcendência ou assim, que era também o lado dela. A certa altura reparei que já me não tratava por senhor doutor. Tratava-me apenas por senhor e em certos momentos ásperos tratava-me só por você. Você não verá que essas calças precisam de ser passadas? Você não viu ao espelho que traz a camisa sem botão? Onde é que você viu alguém vestir umas calças sem cuecas? Aconteceu-me uma vez por distracção, ela viu logo não sei como. Amo-a muito, minha querida, mas como se ama a Deus, com medo e respeito. Eu tinha ainda afinal uns tantos sentimentos disponíveis, todos temos, Mónica, o que é, nem todos sabemos por não haver oportunidade de os fazer funcionar. Minha mãe espreita à porta e diz-me estou aqui. À vezes espreita e diz. E então agora que tudo me foi sonegado. Tenho de aproveitar, querida, tenho de economizar. Vou ao caixote dos ossos do sentimento e escolho um. Mas neste instante estala-me na memória uma conversa seca, é por causa da minha roupa branca, uma conversa pedestre entre a Márcia e a D. Felicidade. Eu estava presente mas a minha autoridade não estava. E então não meti palavra. Era no meu quarto, bastante atrás da minha presença ali, eu olhava os pombos vindos do impossível. Mas a certa altura a Márcia cortou-me a contemplação
- Tu não te lembras de quantos lenços tinhas?
e eu não me lembrava mesmo de nada e atirei ao acaso - dez, e aí a Márcia irritou-se:
- Dez?
Talvez fossem doze, mas D. Felicidade só me queria dar onze, havia um lenço de diferença para haver contenda. Mas havia um outro que emaranhava mais a questão - tu lembras-te se este lenço é teu? E como havia eu de me lembrar? Depois passaram às cuecas e eu voltei a olhar os pombos. Mas agora D. Felicidade entendia que eu precisava de duas camisas, havia duas que já estavam gastas, precisava.
- E tu que dizes? - perguntava-me a Márcia
e eu encolhia os ombros, mas D Felicidade insistia - duas pelo menos.
Porque ela gostava de me ver bem arranjado, e com razão, tinha uma solicitude digamos austera de mãe e eu amava-a muito por isso, querida. Um cuidado muito atento, tive muita ocasião de o notar. E o mundo tornava-se plausível com um trânsito fácil dos sentimentos de cá para lá, não te sei explicar.
- Ouve - disse eu à Márcia muito depressa. - Traz-me os livros que estão na estante do fundo, tu logo vês, são sobre a Teoria do Direito.
- Mas tu julgas que estão lá assim como os deixaste? Tu julgas que alguém naquela casa pode segurar os miúdos? Mas eu vou ver o que é possível. E onde é que vais pôr assim aqui os livros?
- E traz-me aquela jarra do Charrua que estava na mesa do carrinho da sala de jantar. E o quadro do Resende "A trança", que é um de uma mãe a fazer as tranças à filha.
Reparei que a Márcia se calou e eu pensei - já espatifaram tudo - mas estava a falar-te da D. Felicidade. É uma mulher digamos alta, direita. Severa. Veste sempre de dever, que é escuro, como sabes, por ser triste. É uma mulher instantânea, como dizer-te? sem passado nem futuro, nascida talvez já assim da cabeça de Júpiter. Ninguém sabe donde veio, nem o lar também não se sabe de quem é. É uma mulher firme, imutável, do lado do eterno. Será talvez um lar ligado à Misericórdia, mas eu julgo que é melhor ligá-lo ao capitalismo. Digamos uma extensão de um banco ou coisa empresarial, uma entidade assim relacionada com o progresso. É uma mulher feita de uma matéria incorruptível como o mármore o aço o Velho Testamento. Amo-a imenso. O seu encosto é duro, mas tem a sua solidez, estou tão só, minha querida. A robustez da sua vigilância imóvel. A sua envolvência
- Ouve, Márcia. Traz-me também as cassetes de Bach a sua envolvência infinita, a gente não lhe encontra o limite, onde quer que a gente chegue, ela já lá está à espera. Das pequenas às grandes coisas, mas não é só comigo, Mónica. Há mesmo quem lhe vá confessar coisas inconfessáveis como os judeus ao bode. Ela carrega tudo nos ombros leves. Eu isso ainda não fiz, mas também nem tenho inconfessáveis. Gastei tudo, estou agora só com o que sou. Mesmo coisas pequenas, lembro-me de uma constipação e das vezes que ela quis saber do andamento da merdícula. E muito rigorosa, não para castigar, minha querida, mas para haver Deus. Por exemplo, nas idas à secção A, hei-de lá ir daqui a pouco para saber que é feito do Firmino. E agora, ouve.
Tu hás-de ter pensado - então este parvo nunca mais saiu do lar? nunca mais foi ver se o mundo existia? nunca teve falta de ar? A casa é um primeiro andar extenso de gaveto. E tem dois ascensores, mas um é só para o pessoal de serviço. E o outro está quase sempre avariado, creio que trabalha para a polícia. Mas não faz diferença, D. Felicidade diz quando lho dizem. E com efeito. Os sãos sobem a pé e os tolhidos estão quietos, não faz diferença nenhuma. Um dia eu disse - vou dar uma volta
- Vou dar uma volta, D. Felicidade. Coisa aqui ao pé.
- Como entender. Mas atenção aos carros.
E imediatamente senti a minha perna a menos. Imediatamente pensei que quem passar o cabo NÃO ou voltará ou não. E percebi que Deus era infinito e o seu olho também. E que o seu seio era bom como um sedativo. E não saí. Mas logo que assentei nisso - como a alma é doente, Mónica. Logo que decidi não sair e antes mesmo de o pensar, quantas razões se me atropelaram a ver se eu as adoptava para ter razão em não sair. Diferença de temperatura. O tráfego e a falta de treino na desarticulação das muletas. As minhas vertigens, ainda te não falei disso? O encontro vergonhoso possível com algum conhecido que me não conheça ainda de calça dobrada sobre a perna que falta. E mais e mais. Mas havia uma por baixo delas todas, minha Mónica, havia uma. Era assim - e o seu olho também e o seu seio é bom como um sedativo. Mas um dia saí, vê se te aguentas comigo. Vai ser difícil, vê se. Um dia saí, é tão estranho dizê-lo. Porque vou inventar o que não existe, vou inventar o impossível, querida. Um dia saí sem dizer nada a ninguém, o ascensor avariado disciplinarmente. Saí pela escada. Mas não era fácil a movimentação das canadianas no desnível dos degraus. Encosto-me à parede, vou descendo. Não me dá bom encosto mas dá-me a possibilidade imaginária de o dar, como quando se sobe a um escadote e alguém em baixo nos dá a mão que não serve para nada. E de degrau em degrau, no meu andar duro mecânico, a porta. Que estranho. Era uma tarde um pouco quente, tenho a memória a estralejar de pássaros - que estranho. O mundo existe mas não contava comigo. Tudo é novo porque está separado e assim posso vê-lo melhor. Então toma-me um desejo enorme de me atirar a tudo que está à frente como a fome diante de um banquete e a hesitação frente a cada manjar. Boa tarde, boa tarde. Porquê essa pressa, amigo? Eh, pequeno, como te chamas? mas nada digo, olho apenas intensamente, que é a minha forma de falar e as pessoas ouvem com certeza porque me fitam com atenção. Olham breves, passam - algum forasteiro de muletas, hão-de pensar, deve estar desorientado, ou algum pobre de pedir, e esta ideia aflige-me
- Não tem caixa para as esmolas? Meta ao bolso, não pode ser mais, que a vida está impossível
esta ideia enternece-me. Reconheço a rua pouco a pouco. Não porque a não conhecesse mas porque se estabelece na sua verdade natural que não devia ter. Conhecer é amar e não ser surpreendido e eu sou. Bom dia, boa tarde, tão vasto o mundo. Desde aquela casa com fatos belos nos manequins e que são belos pelos manequins, não por eles, como quando a nossa imaginação caída no real o verifica. Um velho passa junto a mim num passinho curto e travadinho e muito rápido, deve ter a central eléctrica avariada, pensei. Ao fundo da rua há um restaurante muito anunciado cá fora pelo cheiro da cozinha lá dentro. E gente e gente. Devem ter futuro, mas podem não ter e fabricá-lo na própria agitação. Porque para ter futuro basta mexer muito como os políticos, Mónica, o resto virá ou não, tanto faz. Mas esta gente mexe tanto. Têm o futuro a arder-lhes na locomoção, mexem. E eu não tenho equilíbrio estável para encontrões. Mas quero descer à Estefânia e ir à avenida ver a nossa casa. Tem a fachada de azulejos velhos, todos encardidos do tempo ou da indústria ou talvez já do terramoto. E talvez eu suba até os dois andares a manquejar. E baterei à porta e a Márcia dirá
- Entra. A casa é tua.
E os miúdos suspenderão as correrias e perguntarão quem é? E eu hei-de sorrir e não direi nada. E voltarei costas e descerei os dois andares que nunca tiveram ascensor. E retomarei o ar livre e anónimo da rua – enquanto desço devagar para a Estefânia, é tudo tão estranho. Estranho sobretudo, como dizer-te? pela posse que me é restituída e alguém me tinha roubado. Nós somos donos de tanta coisa sem sabermos, Mónica. As ruas, as lojas. Bom dia, garagem das camionetas da carreira - ficava em frente, do lado de lá da rua, e era esquisito haver viagens ali como numa gare. Olá, marco do correio. Donos do mundo porque somos donos de nós. Bom dia, farrapeira, bom dia, como tudo é fictício na sua realidade. E, quente de uma cumplicidade a cumprir-se, talvez vá ver a fachada da nossa casa. É fresca e larga como uma esplanada. Como um desengano calmo, coisa assim. Mas quando chego ao largo da Estefânia. Era longe para a minha perna única, para a cabeça. Porque a minha cabeça agora também conta, querida, depois te explico. E em face disso, fiquei ali um pouco a olhar o Neptuno do lago, bom dia, Neptuno. Um transeunte perguntou-me
- Onde é o Campo de Santana?
e eu senti-me contente por poder ser útil e expliquei e apontei com a muleta direita. Equilibrei-me perfeitamente, apontei. Depois fiquei a olhar, o mundo está tão cheio de coisas extraordinárias. São coisas visíveis no extraordinário de nós que tem pouco uso. Os eléctricos no redondo do largo, vendedores dos passeios, gente incrível cheia de pressa para a morte. Apetecia-me também a mim ir até ao Campo de Santana, é longe. Entrar talvez num café, doem-me os braços e as pernas, sentar-me. Gozar à volta a solidez de se estar sentado na vida - não entro.
Tenho a vida cá fora, ao ar livre, não entro. Vou pela Escola Veterinária e começo a reparar que o meu corpo não quer ir. Digo-lhe vem daí que te não arrependes. Respira, vê, vem daí. Mas tive de levá-lo às costas até ao jardim e sentei-o à larga num banco, as muletas ao lado, emparelhadas. As horas foram passando e a tarde. Ia reparando intensamente em tudo e as árvores e as pessoas não eram naturais. E havia crianças, que é o que há de menos natural. E corriam e gritavam e o meu sorriso sorria atrás delas. Uma veio até mim e o seu olhar cândido perguntou-me quem és? E eu sorri a responder quem era. E ela olhou-me ainda a dizer só com os olhos vem brincar. E eu tive um sorriso a dizer não posso. E ela tocou a medo numa muleta a querer entender o brinquedo e depois bruscamente foi-se embora em corrida e levou tudo o que estava com ela de mim. Senti-me então espoliado e toquei as muletas que eram minhas e estavam ali emparelhadas, encostadas ao banco. A tarde escurecia e começava a arrefecer. O trânsito amontoava-se com táxis e autocarros, as pessoas abalavam do jardim a um chamamento que eu não ouvia, as gentes que o atravessavam seguiam um caminho rápido e invisível. E de súbito, Mónica, tive medo. De quê? Vinha nele um certo quebranto de piedade que nos aniquila. Havia a noite a chegar e a compressão de nós contra nós, uma coisa assim. E havia a estranheza do mundo e eu não ter nele significação. É o mais terrível, Mónica, a gente é que não pensa. Ter a nossa significação garantida nos outros, nas coisas. Se eu agora dissesse olá jardim, olá autocarros, eles não entendiam nem olhavam. Olá candeeiro. Nem me ouvem. De repente foi assim.
Perdi validade como uma nota que já não tem circulação. Então desesperadamente quis ter o meu lugar no mundo. Não o tinha mesmo em mim porque o não tinha no mundo. E achei-me desprezível, podes crer, virava-me as costas como a um tinhoso. E tinha pena, que é o que de mais sujo se pode ter. Como eu rio dos heróis históricos, Mónica. São uns merdas, não têm heroísmo nenhum - que é que custa ser herói, se se não perde a substância? se o próprio inimigo o reconhece? Mesmo um tipo solitário numa ilha, querida, tem a ilha para o reconhecer e o mundo ausente que é dele. Porque se lá voltar reconhecem-se logo um ao outro. Mesmo o condenado à morte quando lhe cospem. Ser é ser reconhecido, querida. A gente nem imagina a quantidade de possível que nos liga à vida e não se vê. Então ergui-me e procurei à pressa recolher-me a casa. Corri quanto pude, desengonçando-me nas canadiana. Num cruzamento atrapalhei-me e os carros buzinaram-me para me não atropelarem como a um cão. E só descansei quando cheguei ao lar em suor. Receei que o elevador não funcionasse - e como é que eu ia subir à pata as escadas? Mas sentia-me bem no meu lar, olá paredes feias. D. Felicidade devia estar à minha espera com o regulamento nos olhos frios. Afinal o elevador trabalhava e entrei nele com um sujeito muito grande que não era do meu contexto. Ele carregou no botão, as portas fecharam-se. E começámos então a subida lenta, na incomodidade de irmos ali metidos no espaço um do outro sem palavras comunicáveis. Mas a meio da subida o ascensor parou. Houve um silêncio intenso de suspensão. E nesse silêncio compacto ouvia-se o bater metálico do relógio do homem. Que máquina estranha, pensei. Era uma pancada forte e nítida de metal, eu ouvia-a. O ascensor recomeçou a subida e não me pude conter:
- Que pancada forte a do seu relógio, que marca é? E o homem então - que gargalhada. O elevador parou, o homem alto saiu mas continuava a rir poderosamente. Tentou ainda responder, mas não conseguiu e ria-se mais. Atroava agora a casa toda com o seu riso, seguia pelo corredor para a secção A, alto, vergado ao seu peso, e ria-se sempre, fiquei a olhá-lo a afastar-se até ao fundo, enrolado nas suas gargalhadas possantes. E nesse instante, parada hirta diante de mim
- Há um regulamento na casa, senhor
direita como um dogma, eu olhava-a com terror e uma grande paz e beatitude em todo o meu ser. Foi quando minha mãe apareceu, levantada de cólera
- Quero só saber aqui onde é que o menino andou até estas horas.
- Há um regulamento na casa, julguei que soubesse - disse D. Felicidade
e eu sabia-o no conforto de um lar e da harmonia de todas as coisas. D. Felicidade estava em silêncio, alta de potestade. Eu em baixo, agachado em mim, bem enrascado. Mas feliz. Estávamos à porta do meu quarto, devia estar ali à minha espera desde as origens da lei. Foi quando de novo, era grande e potente, vinha de novo pelo corredor em passadas colossais, desapertou-se outra vez em gargalhadas cavernosas:
- Também me perguntou a marca do relógio!
e D. Felicidade olhou-o breve, ele perdeu-se no outro extremo do corredor, a gargalhada foi-se apagando pouco a pouco.
- Já se tinha telefonado para toda a parte - disse ela ainda na sua voz exacta a zero graus.
Imagina, minha querida, o tempo que andei por fora da minha segurança. Para a polícia, telefonaram para a polícia, para os hospitais, mas eu tinha ido mais longe do que isso, para fora de toda a medida humana.
- Você não volta a fazer isso.
Não volto. Que eu não devo ter dado conta do tempo como no paraíso. Não torno mais. Mas o paraíso não existe, existe apenas a terra dos homens, a tranquilidade do seu medo, o sossego lento do seu apodrecer.
- E não volte a perguntar ao senhor Valente qual a marca do seu relógio. Ele fica ofendido, como viu.
- Mas é que a pancada do relógio era muito forte.
E ela disse - não é o relógio. E eu olhei-a de baixo com muita força em silêncio a perguntar. E ela respondeu - é uma válvula metálica do coração - disse isto ou coisa que me pareceu isso e se calhar era. E eu fiquei intrigado a pensar e ela aproveitou para virar costas e ir-se embora. E eu fiquei a olhá-la com ternura e aproveitei o ela estar de costas e a afastar-se ao longo para entrar no meu quarto e fechar a porta. Mas queria era falar-te do senhor Penedo que foi para o quarto que eu tinha. Falo depois. Estou cansado na minha memória, falo depois. Vou-me estender na cama até à hora do jantar. Vou talvez ouvir de novo o teu nome no concerto de Mozart para oboé. Gostava era de uma música celestial com saltérios teorbas alaúdes. Não tenho. Vou ouvir em paz o amor do teu nome. É um concerto para oboé e orquestra KV314 (285 d), é um concerto para Mónica, que giro. Primeiro o oboé entra muito tímido, encolhido e em bicos de pés, na grande massa orquestral. Depois a orquestra põe-se a olhar para ele - donde veio este miúdo? e ele faz umas tantas piruetas. Hei-de falar-te do Penedo, do Firmino, daquela fulana de seios em prateleira, agora deixa-me ouvir. O oboé deve estar a fazer oflic-flac e a roda e a orquestra espantada a ver. Querida. Quanto tu eras mais poderosa quando parecias mais frágil. A força do efémero. Da graça leve. Do que se esgueira do combate mas lhe corta os abastecimentos. A força de uma criança está na imensidão do seu possível sem nada ainda a possibilitá-lo - e então a orquestra deixa o oboé brilhar e ele entusiasma-se. Depois a orquestra entra no jogo. Como te amo. Entra no jogo numa espécie de desafio. E abafa-o, sufoca-o, outras vezes retira-se encantada a ouvi-lo. E liberto em si com um espaço largo para a sua liberdade, que garoto traquinas. A orquestra afasta-se mais e o oboé sozinho longamente, como ele brinca, dança, vejo-te, vejo-te. No espaço da Sé, no ginásio e eu grito-te Mónica, Mónica. Passa um vento, vou com ele na tua órbita. Mónica. Como te quero. Mas a orquestra regressa, é o segundo andamento, suponho. Há uma harmonia que os envolve a todos, o oboé mais adulto integra-se ordeiro no conjunto. Mas sempre tão triste. De vez em quando ouço-o, a voz já crescida de galispo. Mas por vezes esquece-se, volta à brincalhotice, às suas cabriolas de garoto. Vejo-o escapar-se à orquestra, a orquestra apanha-o, ele safa-se de novo num jogo de enleio mútuo de caça ao caçador. Até que toda a orquestra põe fim às diabruras, o oboé é absorvido, integrado e levado lá para dentro. Deve doer-se ainda, já o não ouço. É um instrumento triste, deve ter sido órfão de pai e mãe. Digo-o baixo no teu nome. Mónica. Entardece devagar na minha memória, vem aí a noite sobre o mundo. O teu nome. Vou repeti-lo até. Um sorriso fatigado. O teu súbito esplendor. Adormecer.
Mas o Penedo. Era um político, querida, não sei se sabes o que isso é. Eu também não sei, mas vou ver se descubro enquanto te vou explicando. É a pessoa de quem mais mal se diz, depois dos árbitros de futebol. E logo tu a pensares que é pela mesma razão. E eu também, mas não sei ainda bem se é. Quem o pensa são talvez os curtos de mente, que é o que eu sou por enquanto. O político tem a missão de promover o bem comum, pressupõe-se. Mas o bem comum tem sempre muitos degraus e portanto pouca comunidade. Pressupõe-se isso e depois tiram-se as conclusões, que metem quase sempre um bocado de pancadaria. A missão de um político parece óbvia, mas nada é óbvio na vida, Mónica, imaginas o que há de difícil mesmo na soma de 2+2? mas eu estava a falar-te do político. É um jogador, uma das formas mais altas de. Joga ao bem comum e às vezes a sorte sai-lhe. E a altura de lhe dizerem tudo os que não jogaram ou a quem não saiu. O bem comum tem a forma de uma ficha para jogar. E sofre tanto de solidão. É um bebedor solitário, bebe política ao canto da consciência. Não joga para ganhar, e que jogador é que joga? joga só para chatear o destino, o que joga nele é a inquietação de o chatear. Como no capitalista no general no artista, mas o político é um jogador infeliz porque é raro deixarem-no jogar a tempo inteiro. Mas que é que nós somos a tempo inteiro? Nem o comer nem o beber nem o fornicar e assim. Tudo nos é limitado pela estupidez de tudo e a vida é o tudo desse tudo. Muito estúpida, minha querida. É a razão mais alta e incompreensível, e a nossa, que se compreende um pouco melhor, tem de comer e calar. Mas a gente é mal-educada e rosna sempre, não há que rosnar. Razão alta e incomensurável. É lá que eu tenho uma vontade imensa de te amar. Para não haver a tua morte, a tua desagregação, e haver só a tua eternidade. Mas eu estava a falar-te do Penedo. Estava na fila de espera e quando eu tive outro quarto ele entrou para o meu. Era um tipo agudo e ardente. Esteve metido na mexida política não sei de que lado, mas tanto faz. Porque o que importa é a pessoa que se é, porque ela funciona como é em qualquer sítio em que calhar. Convictos, hipócritas, corruptos, honestos. Onde calhar. Era um sujeito esmagriçado e vibrante como uma chama alta. Então saí, ele entrou, cruzámos os destinos, penso que me conheceu e eu tive uma palavra breve - o quarto é bom
- tem apenas algum ruído
disse-o para ele mas rápido vi ali atrás a D. Felicidade
- mas é agradável mudar de ambiente de vez em quando
disse-o para ele olhando para ela. Penedo explicou - as coisas são como são. Mas entra agora outra pessoa na minha memória, deve ser a filha que o veio trazer. Depois voltei ao quarto, tinham-me lá ficado umas meias e ele estava só, sentado aos pés da cama. Então travámos um longo diálogo mas primeiro falámos de questões gerais. E disse-lhe - o quarto, enfim, não é mau
- talvez apenas um pouco barulhento e ele disse-me
- Pois. Essas coisas todas.
- Mas o mercado - disse eu -, há o movimento, sempre distrai um pouco.
E ele disse
- Assim, ali, as várias coisas e entretanto à direita, essas coisas
e ficava calado a olhar-me e eu a olhá-lo. Olhava-lhe os olhos fitos em mim na face apertada contra a caveira, o bigode curto e raso apertado junto ao nariz. Mas os olhos não vinham a acompanhar as palavras, vinham talvez só com o que queriam dizer. Havia o olhar e havia as palavras desligadas dele. Então eu disse-lhe - às vezes há o médico ali ao lado e gente a entrar e a sair. E ele disse-me - pois, a frente e o outro lado. Então lembrei-me de D. Felicidade, ela dissera-me andou metido na política e eu pensei - se calhar também estiveste metido na alhada da revolução, e mudei de assunto
- De todo o modo há agora a paz social
e o que eu fui dizer. Não sabia de que lado ele tinha sentado o coração, o que eu disse. Saltou sobre os pés e eu pensei vai-me arrear. E tive medo, querida, porque era um ódio de que eu não sabia a razão para a equilibrar com argumentos e nem podia utilizar o argumento de uma muleta. Tinha os olhos coruscantes e o ódio era assim mais visível. E babava-se a condizer
- Tudo isso assim portanto todas essas coisas!
- Mas talvez não seja tanto assim - contrapunha eu em tom contemporizador.
- Fique sabendo, todas essas coisas digo-lho eu! Não há coisa portanto abaixo adiante!
Vociferava batendo o quarto de fúria e eu tentei de novo, cheio de humildade e cautela:
- Em todo o caso, enfim, se formos a reflectir com sossego
- Nunca mais portanto todas essas coisas todas!
Não havia maneira. Deixei-o esvaziar. O queixo tremia-lhe e eu via-lhe os fios de baba a escorrerem-lhe para o peito. Sentou-se de novo aos pés da cama, rebentado de ódio puro como o da natureza. E a certa altura pensei - posso ir saindo que ele não me arreia e antes que mude de parecer. E realmente fui retirando muito calmo com as muletas a atrapalharem-me no meu movimento de marcha atrás. E no dia seguinte morreu e baixaram-no à câmara mortuária e eu vi a filha falar com a D. Felicidade e ouvi-lhe dizer louvada e adorada seja para sempre a Divina Providência, estava a D. Felicidade com a factura na mão e a dar-lhe o troco. Não, não era louco, disse-me D. Felicidade, cheia de altivez ofendida, esta casa não é uma casa de loucos, e depois muito seca explicou. Mas já não sei bem o que disse, minha querida, qualquer coisa como. Mas não devia ter entendido bem. Qualquer coisa como mioleira mole, mas não devia ser. De todo o modo fiquei satisfeito com a explicação como se fica sempre, mesmo que não explique. Porque nada explica nada, Mónica, deixa-me especular um pouco. A explicação não explica, apenas constata um facto e explica-o com outras coisas que não têm explicação e são outros factos à espera de que os expliquem até a um outro facto em bruto, e diante dele o explicador fica calado. Se eu não tivesse as muletas caía, era a "força da gravidade", mas que é a força da gravidade? e porque é que existe? mas eu estou para aqui na conversa e tenho de ir à secção A ver o Firmino. Tu sabes, querida, há correntes misteriosas, a gente sente-as passar por nós e são o subsolo do nosso agir, hoje apetecia-me pensá-lo, apeteceu-me ir ver o Firmino e a sua dúvida metódica. Mas ia-me a esquecer a propósito de política. A Márcia há dias disse-me - não sei se leste nos jornais. Que jornais? Não leio jornais. É uma coisa com piada, hei-de-te explicar.
- Não sei se leste - diz-me a Márcia de novo e eu abanei a cabeça para dizer que não e não me cansar tanto a dizer.
- É que agora aos reformados já não aumentam o ordenado. Se crescer algum dinheiro no orçamento, então dão-te alguma coisa dos sobejos. Se estivesses ao serviço, está bem, aumentavam-te quando fosse de aumentar. Assim só te aumentam se houver dinheiro de sobra. Estou para ver como vai ser.
Está bem. Está bonita a nossa filha a dizer - estou para ver. Tem uma beleza muito clássica como uma tabuada, mas tenho de ir ver o Firmino. O Teo, esquecia-me também, deve vir aí. Uma beleza exacta, como dizer-te? não clássica afinal, mas de todo o modo muito próxima da essência imutável do que é belo. Uma beleza que se respeita antes de se amar, a nossa filha. Hás-de perguntar-te porque é que ela me não leva de vez em quando a dar uma volta. Uma vez levou, eu não queria. D. Felicidade teve um sorriso firme de tolerância, com a sua verdade anterior a isso nesse sorriso. Mas não apanhe frio, disse-me. Não faça esforços. Nós saímos mas eu sentia que o seu olhar nos ficava a seguir como o de Deus. A Márcia tinha trazido o mini, o marido tem um grande para toda a família. E eu quis entrar no mini e vi-me aflito como sempre porque tinha pernas a mais com os estupores das canadianas. A Márcia disse-me espera que te dou uma ajuda. Mas não podia porque eu pesava muito e as muletas metiam-se no meio a atrapalhar. Depois o carro é muito pequeno e eu sou muito grande para o seu tamanho, era preciso partir-me em dois para lá caber. Foi quando um táxi parou ali a despejar um casal e a Márcia teve uma ideia rápida e categórica e o taxista aguentou-me a carga e meteu-me para o assento de trás, a Márcia ao meu lado. Ela deu-lhe um destino, que era o rio, e dizia-me: estás a ver o rio? e eu estava a ver. Fomos pela marginal mas não a gastámos toda, que era cara. Estás a ver este palacete? Imaginas quanto isto custa agora? e eu estava contente mas um pouco inquieto por andar por fora. A Márcia chamava-me constantemente a atenção para eu aprender o mundo já um pouco esquecido. Havia sol, e casas com jardins, e gentes extraordinárias e vivas. Nós passávamos por isso tudo, a Márcia a apontar. Depois calou-se e eu também me calei porque erguer uma palavra a pulso é um esforço tremendo, mesmo quando não há lá nada dentro. E nós estávamos cansados, ela de falar e eu de ouvir, que também cansa. Então limitámo-nos a ir vendo, que custa menos, eu com pressa de chegar ao olhar de D. Felicidade e ela de ir ter não sei com quem para tratar de uma viagem de serviço talvez à Pérsia ou à China. A propósito, recebi notícias do André. Está na índia, depois te conto. A Márcia entregou-me ao domicílio depois de o taxista me carregar para me pôr de pé. E D. Felicidade esperava-nos à porta do ascensor:
- Então? Gostaram do passeio?
as mãos dadas à frente mas um pouco descaídas para que o seu porte fosse mais suave. A Márcia disse fomos ver o rio e D. Felicidade disse
- Ah, o rio. Deve estar bonito
e trouxe-me logo para dentro e apartou a Márcia gentilmente para fora, correndo a porta do ascensor. Mas eu penso ir ver o Firmino, vou à hora do almoço, que é quando o posso apanhar. É um corredor longo, percorro-o quando me vão dar banho. Mas a Antónia desapareceu, deve ter saído da casa, e agora são moças novas que mo dão. De um lado e de outro há quartos, sanitários, balneários, a sala dos octogenários e lá ao fundo o grande salão dos externos onde comem e jogam o dominó. As vezes vou lá, fora das refeições. Em grupos, aqui e além no vasto salão, jogam o dominó em silêncio. Fico a olhá-los, jogam fora do tempo. Agora vou ver o Firmino. Creio já te ter dito, querida, nós movemo-nos ao impulso que vem de longe e em nós sopra mais forte e a gente sente-se bem no seu transporte como quem fecha os olhos num comboio. E então parto ao estacato das muletas, vou andando ao longo do corredor. Encostada à parede há uma cadeira com um montão de roupa preta. Toco na roupa como vi fazer à Antónia, e logo salta uma cara de velha a cantar avé, avé. Depois volta a mergulhar no amontoado de panos negros e aí desaparece. Tem mais de cem anos, já se não sabe a quem pertence. Está para ali, pertence ao mobiliário da casa. Uma vez veio um trineto, cheio de curiosidade genética, deixou cobres, desapareceu. Ainda a não removeram para a Misericórdia ou não sei quê porque a D. Felicidade e mesmo todo o pessoal da casa há várias gerações têm todos a firme certeza de que vai morrer de um dia para o outro. Mas ela não é dessa opinião. Penso que a conservam também para dar a todos a esperança de que se pode viver para lá de todas as previsões demográficas, e então ela vai ficando. Mas o que eu mais gosto de ver, minha Mónica, é a secção dos velhos a sério. São tão queridos. Estão sempre a comer, vejo-os sempre a comer. E riem. É a alegria de antes de haver razão para ela, a alegria dos cardos e das pedras. Riem rubicundos, o olhinho muito vivo. E babam-se muito. A empregada põe-lhes uma toalha ao pescoço como no barbeiro, eles olham inocentes, voltam a comer e conseguem babar-se e sujar-se para debaixo da toalha. Tão queridos. Às vezes esquecem-se de continuar a comer, a empregada mete-lhes a colher na boca, eles comem enquanto brincam com o que têm à mão, a olhar para o lado desatentos como as crianças. Ou então adormecem, a cabeça pendida para o peito, e a criada tem de acordá-los para lhes meter outra vez a comida na boca. Tão amorosos. São velhos, Mónica, têm a idade do mundo. A idade da Terra, dos sonhos, dos projectos guerreiros, das conquistas definitivas até aos confins da História, dos grandes sistemas orientados pela organização dos astros. Estão velhos, querida, babam-se e riem, cheios de uma alegria azul, a empregada mete-lhes a comida na boca.
Mas quando chego ao salão A - que estranho. Não há ninguém, o grande salão vazio, terão feito greve? como é que na tropa se diz? "levantaram o rancho"? São já horas de almoço, devia já haver hóspedes na tarefa. Mesas postas, o salão sem ninguém. E de súbito reparo que na mesa do Firmino, é ao lado direito da porta, quem é? uma mulher de uns sessenta anos. Pergunto-lhe se me posso sentar, ela diz-me tem aí tanta mesa. Mas eu digo-lhe que costumo sentar-me nesta quando aqui venho comer e ela então diz-me como quiser. E eu disse ainda
- É a mesa do Firmino, lembrei-me de vir hoje aqui. E imediatamente começou a falar de si. Mas todas sois
assim, Mónica, tu desculpa, minha querida. Dez minutos com uma pessoa desconhecida e imediatamente pondes tudo ao léu. Tantas vezes me aborreci contigo por isso - e entretanto veio outro tipo para a mesa e eu disse que vinha ver o Firmino.
- Morreu ontem - disse ele enquanto se ajeitava à mesa.
Tudo logo ao léu - e porquê? Deve ser uma forma de chamardes a atenção, de afirmardes a vossa importância, de vos integrardes numa sociedade que durante milénios vos excluiu. Deve ser uma falta congénita de pudor contra o pudor a que fostes obrigadas, o homem é infinitamente mais recatado porque nunca precisou - enquanto a mulher da mesa ia contando. Eu queria informar-me sobre a morte do Firmino, a mulher não dava uma aberta. Teria mais de sessenta anos, também o pudor já não era preciso. Forte, bem montada de peitos, ia contando da viuvez, o marido era empreiteiro, dos filhos que tinham emigrado, um deixara cá a mulher
- que é uma galdéria. E os filhos da minha filha meus netos são, os do meu filho ou serão ou não. Lá diz o ditado
- O Firmino morreu ontem - disse o homem num intervalo da conversa.
Comíamos os três em silêncio, a mulher explicou ainda, tinha a sua casa. Pequenina, é certo, mas para que a queria eu maior? E então um dia disse cá com Deus e comigo
- Ernestina, vai para um lar. Tens lá quem trate de ti, vai para um lar, tens rendimentos para isso.
- Morreu ontem - disse o homem. - Foi hoje o enterro e muitos desses aí foram acompanhá-lo.
- E de que morreu?
- Eu não podia ir ao enterro, fui só à missa.
- Ainda pensei voltar a casar - disse a mulher. - Mas para quê? Há sempre homens, desde que se não tenha má boca. Tive um que estive quase. Mas aconteceu uma coisa engraçada
e aqui riu muito para haver graça no que dizia ser engraçado. É uma mulher estável, de encontros bem ajustados uns nos outros, um ar dominador do mundo e da moral. Porque a moral, minha querida, não está ao nível do mundo mas um pouco mais abaixo.
- Do coração - disse o homem. - Deu-lhe a matar. A coisa agravou-se com uma questão dos dois sobrinhos. Foi o que me disseram.
- Não tinha filhos? - perguntei, mais a confirmar.
- Foi uma coisa engraçada - disse a mulher. - Eu tive um cancro na mama esquerda e tiraram-ma. Então arranjei uma mama falsa, eles dizem, como é que dizem?
- Uma prótese.
- Uma prótese. Ora a mama esquerda é a que dá mais jeito a um homem para apalpar. E ele apalpava, apalpava e eu aí ri-me. Porque é que te ris? perguntou-me. E eu então disse apalpa a outra, que essa mama é falsa. E ele aí não aguentou e largou a mama, largou tudo e foi-se embora até hoje.
- Não tinha filhos e os dois sobrinhos encarniçavam-se um contra o outro e o Firmino ora estava mais com um ora estava mais com o outro para a divisão dos bens. Mas não se decidia por nenhum, tinha muito escrúpulo, e quando tinha tudo bem dividido havia sempre um que se queixava. Então ontem deu-lhe um ataque e ficou. E quem acabou por ficar melhor foi naturalmente o sacana.
- E então agora - disse a mulher - farto-me de gozar quando vou no metro ou assim. Porque sempre que há um aperto, há sempre um parvo que me apalpa a mama. E eu digo cá comigo aperta, aperta que é de serradura.
- Deve haver mamas mais parecidas com a natural - disse eu com delicadeza. - Feitas de borracha ou coisa parecida. Uma a que se dê ar como a um pneu.
- É capaz de haver - disse ela. - Mas está a ver eu agora a dar ar à mama e a medir a pressão?
E eu pensei coitado do Firmino. Estou a vê-lo às portas do paraíso e S. Pedro a perguntar-lhe se ele quer realmente o paraíso com a chatice das harpas e alaúdes ou se prefere o inferno com os heresiarcas e as putas. E ele a dizer - um momento que vou pensar.
O Salus casou-se, ando há que tempos para te dizer isto e passa-me sempre. A D. Felicidade foi a alcoviteira, estava farta das manobras dele para apanhar a velha a caminho dos sanitários. Quem os casou foi o capelão da casa mas quem esteve para os casar foi o Teo, o capelão tinha estado doente, julgava-se que não podia. E já agora quero falar-te do Teo. Há-de vir ter comigo daqui a pouco, vem às vezes, de longe em longe, creio que para eu ter tempo de o esquecer ou de saber que não havia razão para o esperar. O amor filial, o querido Teo, o nosso filho tem-no. Mas ordenado a um amor que já não é esse. E depois, a certa altura, tu sabes, o amor filial é uma ideia e as ideias já têm pouco sentimento. Ou é um dever, e o dever é uma virtude e as virtudes são sempre uma chatice, senão não eram virtudes por nos não darem merecimento. Ou é uma memória terna da infância e é preciso que o objecto dele esteja a uma certa distância para a memória poder funcionar. Ou é uma coisa estabelecida como usar gravata e parece mal em certas circunstâncias não se usar. Querido Teo. Mas eu amo-o porque estou nele. Ele é que não está em mim e não sabe que estou nele, a vida é uma indecência assim. Há-de vir daqui a pouco quando te contar que veio, agora está contigo na sala quando venho do tribunal. Apoia o cotovelo na borda da mesa e o queixo na mão com o lenço. Está a falar. Eu entro e sento-me no infinito a ouvir. Não me vedes, ouço. Teo está sentado ao pé da mesa, tu naquela cadeira de verga entrançada com uma banda de entrançado também que apanha os braços e o espaldar. Encostas-te abandonada a ti, cedeste enfim à matéria morta do teu corpo? a vida inteira direita no assento, rígida, nunca te quiseste encostar. E ao lado do Teo está o álbum do teu corpo. Fechado, tem uma capa de pelúcia com flores grená. São fotos, recortes de jornais e revistas. É a história da festa da tua perfeição, da sua verdade intensa. Vi-o poucas vezes, há quanto tempo o não vejo. Também o pedi à Márcia
- Nem penses nisso. Sei lá agora onde pára isso. Mas não faz mal, tenho aqui a tua foto que esteve
sempre na secretária. Estás com a tua franja, o olhar ardente e frontal. A cara oval desde o alto da cabeça até ao queixo, uma linha firme a fechar todo o teu rosto. E uma vitalidade garota em toda a face, um desafio que me faz sorrir. Vem comigo, diz-me o miúdo no jardim, só com o olhar quieto e baixo e cúmplice. Não posso, digo-lhe eu sem lhe dizer. Poucas vezes folheei o teu álbum, sempre tiveste um sentido forte de propriedade. As tuas toalhas sabonetes lápis borrachas.
- Quem mexeu na minha tesoura das unhas?
Não bem talvez para teres coisas tuas mas para te sentires apoiada, não sei, estamos tão desamparados. O álbum. Folheei-o um pouco com o Teo e só agora o olho com uma intensidade muito grande. É uma intensidade para apanhar tudo o que lá está - a tua perfeição que passou e o tempo que a fez passar e eu mesmo que te vi e também passei. Amei-te tanto. Mas o curioso, como te hei-de dizer? o curioso é que quando te amei não tinhas a perfeição que tinhas na invisibilidade de ti e só agora tens no impossível de ti. Só agora és bela e inteira e prodigiosa como uma auréola. Uma foto fixou-te no ar, enrolada no teu voo. E há outra em que sais das barras e eu penso numa flecha que um deus dispare contra ti como a uma ave excessiva. E há outra em que
- Vê, vê - diz-te o Teo, porque tu não queres ver. - Tudo tem de ter um sentido. Mesmo a razão tem de ter. E é uma coisa em que ninguém pensa. A gente pergunta quando muito porque é que existem as coisas, o mundo e assim. Mas nunca perguntamos porque é que existe a própria razão e o seu modo de ser razão para se perguntar. Porque é que ela há-de ser assim, e não de outra maneira, porque é que existe a pergunta. Há uma outra em que na trave, é um milagre de equilíbrio, tu dás um salto de costas e vais cair em pé nela.
- Mas se nós perguntamos, há-de ter um sentido isso, a pergunta. Não são só as coisas, o universo e tudo o que quiseres, é também o perguntares. Porque é que perguntas? Há-de haver tanta necessidade em haver razão como em haver tudo. A gente quando muito quer saber porque é que as coisas existem mas não pergunta porque é que há-de haver o perguntar. E então eu digo: porque isso é um facto como haver pedras. Portanto perguntar é necessário. E se é necessário, também é necessário querer achar uma resposta.
Mas de todas as fotos a de que mais gosto é a de quando vais pelo ar de um canto ao outro do tapete. Porque se vê muito bem aquela gente toda que está sentada à volta, chumbada ao chão da matéria, e tu no ar.
- E o que eu pergunto é muito simples: que significa tudo isto?
Ou seja, o álbum, ou seja, o milagre do teu corpo pesado e aéreo. Não estás velha ainda, agora que o vês, minha querida. Mas já te não desprendes do teu peso carnal.
- A ressurreição dos mortos é isso. O triunfo da eternidade que está no teu corpo. Com essa eternidade que está no teu corpo tu podes dar um triplo salto e voar sem te ergueres dessa cadeira. Isto é o meu corpo, disse Cristo.
Ouço-o na capela do lar, o nosso Teo. Às vezes, mas raramente, vem cá dizer missa. Vou sempre ouvi-lo da distância infinita donde o ouço. Ouço-o em altos brados que abalam os muros, atravessam a carne apodrecida dos velhos de todo o mundo. Hoc est enim corpus meum. Sorrio na minha impiedade cansada. Há uma música suave a condizer, enche o espaço da capela, um coro de anjos canta-a, eu palpo a minha perna manca. Isto é o meu corpo. Hoc est.
- Cristo disse-o, mas tu também o podes dizer. Isto é o meu corpo. Este é o meu corpo. Este, o da eternidade de ti, o da eterna perfeição de ti.
Como é doce ouvir o nosso querido Teo, mas tu estás a choramingar. Não chores. Não te enterneças. Sê dura implacável carnívora como a fatalidade que aguenta. Minha querida Mónica. Como te quero. Como sufoco a olhar-te, é uma foto do imaginário. Hei-de olhá-la mais intensamente lá para diante, vai tão longa já esta carta. Lá mais para quando estiver com mais razão de estar cansado. Quero dizer-te ainda umas coisas antes de estar. Justamente há ainda o casamento do Salus que aconteceu há tempos e está agora a realizar-se. Não foi o Teo que o realizou. Ou foi? já agora nem sei quem o há-de realizar. Porque por um lado, tudo se passa no limite de se ser humano, talvez o capelão, que está nesse limite. Mas o Teo conhece a linguagem de se ser eterno, a ressurreição final, tu que achas? Esquece que o Teo é teu filho, tu que dizes? Mas sabes uma coisa? O Salus um dia, ele nunca me falou ou não me lembro, um dia disse-me doutor juiz - assim mesmo, doutor juiz
- Doutor juiz. Queria convidá-lo para meu padrinho de casamento
e eu fiquei parvo a olhar para a parte dele onde estivesse a ironia ou a ingenuidade ou o lado mais profundo e longínquo e incognoscível onde havia a harmonia do universo. E então eu disse não posso e indiquei a minha perna faltosa que era onde estava a razão de eu dizer não posso. Mas pareceu-me que ele gostou de eu não poder, para equilibrar a sua intenção estranha que ele não sabia bem qual fosse, e a minha negativa que ele sabia ser útil sem saber porquê. Porque não insistiu e riu-se apenas para mim de caras, mas de riso parado a encher-lhe a face toda. D. Felicidade queria uma cerimónia discreta, um casamento quase clandestino pela madrugada, só entre eles e Deus. Mas o Salus não quis. E a noiva só queria o querer dele. Era viúva de dois maridos, sempre infrutífera de um e de outro e chamava-se - agora é que eu não sei, minha querida. Virgínia talvez ou Diana, mas Diana é um nome pagão, mais próprio para uma cadelinha. Virgínia, fica assim. E o Salus(tiano) era solteiro, creio que para cumprir o seu destino noutro lado como os padres e os grandes génios. E não tinham família nem um nem outro, que soubessem, nem mesmo aquela que nas circunstâncias deles vem ao de cima com o faro. Querida Mónica. É tão difícil contar-te. Nós casámo-nos à pressa diante de um funcionário como se tira licença para os cães - querida. Não te exasperes, não disparates. Como se tira licença para seja o que for. Para se escriturar a vida, que tem de ter uma ordem. Salus e Virgínia queriam que Deus assistisse. E eu tenho um sorriso triste para o seu impossível na desolação da minha maioridade.
- Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição.
E tu disseste João sacrílego, e eu o que queria era o impossível da minha saudade adulta - mas temos de assistir ao casamento, que o cortejo vai sair. Salus sai do quarto dele, casaca, colete branco, calça de 35 linhas. E Virgínia sai do quarto dela de vestido branco e véu - levará flores de laranjeira? pois se ela na realidade não deu ainda laranjas. Descem a escadaria para o rés-do-chão, para a capela. Mas houve um momento em que ela hesitou e eu pensei - terá o Salus de levá-la onde costuma? baixar-lhe as calcinhas e instalá-la? mas foi só hesitação, talvez de tropeçar no vestido. Fitei-lhe a cara óssea um pouco aflita, uma certa graça de caveira entre os flocos brancos do véu. Desciam devagar na precaução do mistério, levavam em si o terrível do risco da iniciação. E logo que deram a volta ao fundo da escada, eu bati as minhas muletas para o coro para os ver entrar. Encostei-me à balaustrada, vi. A capela estava coalhada de velhos, deviam ser os de todo o mundo como quando o profeta falou. Estavam contentes, riam uns para os outros, a cabeça de lado como pássaros. E nesse instante alguém atacou no órgão uma marcha nupcial e eles entraram. Solenes, hieráticos, ela um pouco desengonçada. Não tinha a passada elástica do noivo, dava pequeninos saltos ao andar. Mas vestia de branco e era bela outra vez como uma iluminação. E havia a onda de música do órgão que levava tudo no seu passar e o espraiava no infinito. Os velhos estavam todos agrupados em massa e sorriam sempre num contentamento incompreensível, atentos a um incerto mistério como os cães. Os noivos chegaram enfim ao altar-mor, o capelão já lá estava à espera. E imediatamente avançou com a cerimónia até ao ponto de os questionar a um e a outro porque queria saber se
- Salustiano da Salvação quer receber por esposa para a vida e para a morte, para o gosto e desgosto a Virgínia Cândida da Purificação
e ele disse logo que sim, que sim, numa voz cheia de carácter e depois perguntou-lhe a ela. Mas Virgínia hesitou e os velhos todos ficaram suspensos no sorriso e Salus disse-lhe em voz que se não ouviu senão no gesto categórico já de chefe de família diz que sim, diz, diz e ela por fim deve ter dito porque o padre abençoou-os logo à pressa, decerto no receio de que ela mudasse de opinião. E houve também logo a seguir uma torrente de órgão, bênção lustral de paz e harmonia que nos deixou encharcados e luminosos de transfiguração. Mas quando começou a missa, tinham dois genuflexórios os noivos, ia o padre a subir ao altar
- Virgínia! Virgínia!
e o Salus correu atrás dela, Virgínia ia-se embora, onde é que vais? eu perguntei-me, mas calculei logo onde ia. Porque nós costumamos perguntar, querida, quando a resposta é muito desagradável e queremos de algum modo adiá-la com a pergunta. Salus foi apanhar a mulher, voltou logo com ela nos braços sem a levar onde ela decerto queria e ajoelhou-a à força no genuflexório. E ela olhava-o parecia-me que aflita, tentou ainda erguer-se outra vez, Salus pregou-a no genuflexório com violência. Mas a missa foi breve, a missa agora é muito rápida, querida, é sintética como o contraplacado. Ou o nylon, a napa. A vida é muito rápida e a missa tem de acompanhar. Mas houve um momento, eu ouvi. Houve um momento grave, grande, era a verdade da vida inteira, talvez, porque eu ouvi
- Hoc est enim corpus meum
eu ouvi e dei várias voltas à vida toda e em todos os cantos dela se ouvia. O padre deu a hóstia aos noivos e a Virgínia não queria e o Salus segurou-lhe a cabeça e abriu-lhe a boca, pareceu-me, e o padre meteu-lhe logo a hóstia por ela abaixo antes que a fechasse outra vez. O meu corpo. Eram velhos e velhos, enchiam a capela e o coro, havia muitos à porta porque já não cabiam. Hoc est enim, na realidade é este, o Teo, lembras-te? queria promovê-lo à eternidade. E ele é eterno, sim, mas na essência do teu ser mortal. Querido Teo. É o nosso filho, Mónica, a ver se ainda te falo dele com vagar. Eram velhos e sorriam contentes no infinito da vida. Eu estava em mim, na minha condição de perneta, não me queixo. Tenho a vida toda na mão - tenho-a na perna que não tenho. Na verdade é este o meu corpo e enquanto o estou dizendo a missa acabou. Então súbito a Virgínia fugiu outra vez, estava cheia de urgência e o Salus veio atrás dela e segurou-a pelo braço e deram o braço um ao outro e vieram em marcha um pouco desconjuntada pela coxia e o órgão abençoou-os outra vez do cimo da capela e havia milhões e milhões de velhos que os olhavam encantados e sorriam. E houve depois um pequeno festim e os velhos comeram tudo com uma alegria maior que a da infância ou da loucura. E eu não pude chegar ao bolo da alegria e o Salus trouxe-me uma fatia dele e disse-me coma também, doutor juiz. E D. Felicidade acabou com a festa e meteu os noivos no quarto e fechou-os à chave com duas voltas. E eu disse comigo vou ver os pombos. Entrei no quarto mas nem olhei pela janela. Estendi-me na cama, as muletas à mão. E olhei o Cristo, agora um pouco maníaco a dizer-me hoc est enim, olhei a deusa Flora com o seu braçado de flores e o seu manto como um voo, olhei o cavalo esquelético com o esqueleto da morte montado nele. E uma palavra que não sei passava por eles todos e devia ser verdade porque a não sei. Possivelmente, querida, está tudo na tua face. No teu rosto fechado numa linha, sem excesso nenhum. Na tua vertiginosa alegria quieta. Na tua franja andrógina na testa. Uma palavra de alegria e de morte. Uma palavra que está depois de todas as palavras e ainda nenhum deus veio dizer. A tarde cai mas há ainda luz no ar. E uma luz leve - em que mês estamos? Deve ser o décimo terceiro mês, que está para lá de todas as estações. Ou o milésimo. Em que mês? Em que ano? em que tempo? Valerá a pena sabê-lo? Estou contigo, não há tempo nenhum. Será o nosso corpo eterno sem o Teo o dizer? Lembro-te. Tanto. E no lembrar-te não tens idade, quando é que a memória tem idade? Não chego à janela mas um pombo passou por ela em diagonal. Levava um fito, eu é que o não tenho nem lho dou. É uma ave. Passou. E ficou em mim uma saudade horrível de ter passado.
Pois. Tanta coisa tinha ainda para te dizer. Mas sinto que vou chegando ao limite. Como quando num serão sentimos que são horas de irmos andando. O ilimitado aflige, tudo tem um ponto de equilíbrio que se não pode transgredir. Hei-de perguntar ao Teo se não foi por isso que Deus fez da Terra uma esfera. É a forma mais perfeita do equilíbrio, de ter o limite certo em cada ponto da sua redondez. Mas por falar do Teo. Claro que te quero ainda dizer duas coisas sobre ele. E sobre o André. E dizer ainda de ti, mais devagar. Quero primeiro arrumar uma certa questão contigo, pô-la para o lado e ficar enfim contigo a sós, no absoluto de nós ambos sem nada a mais entre a presença dos dois. Agora o André e para começar. Tenho a vaga ideia de te ter dito que não veio ver-me. Mas suponho que já cá não estava para vir. O André foi sempre tão inquieto, a gente sentia que ele era uma ausência de si mesmo. Uma coisa assim. Lembra-me a minha irmã Célia, deve ter-lhe herdado o destino. A gente sentia que, mas se calhar é a tineta de todo o homem, nós é que andamos distraídos ou não temos tempo de dar conta ou dá-nos mais jeito amochar e estar calados. A gente tinha a impressão de que ele nunca achava o que procurava, mesmo depois de o ter achado - foi sempre um rapaz tão estranho, o André. Que diferença do irmão, o Teo. A última vez que me escreveu foi da índia. Escreve sempre para a nossa casa, a Márcia é que depois me traz ou manda pelo correio. Aliás, só escreveu quê? três ou quatro vezes. Da índia. Mas creio que foi em viagem de negócios, voltava para a Austrália. Desta vez não mandou poemas - lembras-te daquele que terminava com um verso espantoso de génio inventivo? e que era assim, se bem me lembro
bzzzz?
Diz-me ele a arte trabalha-me toda a sensibilidade sensível, mas estou um pouco cansado da literatura, agora sinto-me mais inclinado para as plásticas, não sei bem ainda em que variedade, sei é que vou iniciar o que eu chamo o "ciclo do canguru", depois mando-te para veres. Mas o Teo.
O Teo aparece espaçadamente, mas aparece. Os intervalos devem ser para acumular interesse em vir, ou material para justificar esse interesse, ou criar eu gosto em que venha, mas isso não é verdade. Gosto tanto de o ver. O Teo é perfeito e isso é terrível e luminoso no meio da imperfeição humana. Ele é perfeito por fora, o nosso filho, mas sobretudo por dentro, onde deve ter uma alma com uma exactidão e firmeza de geometria. Eu não sei se ele tem dúvidas, mas a perfeição também é um hábito com que se insiste e então não as tem. De começo vinha muito apressado,
cheio de urgência em cada gesto palavra olhar. E eu ficava contagiado e acabava por ter pressa também de que se fosse. Já não veste de padre e assim o seu ar laico é como se o profissionalizasse em funcionário público. A princípio ainda usava fato preto, talvez te lembres. E o cabeção. Depois foi clareando e passando à gravata. E foi então que começou a ter mais pressa ou a mim me pareceu. Porque a pressa é incompatível com o espírito ou a religião, que tem que ver com a eternidade, onde não há pressa nenhuma. Um dia fiz-lhe a observação e ele disse-me pois é
- Mas já pensaste como é que se pode fazer que um dia tenha vinte e oito horas?
- Mas tens de tirá-las das vinte e quatro. E que é que tiras?
e ele ficou a pensar. O nosso Teo. Ficou a pensar e eu fiquei a olhá-lo. A velocidade da vida apanhara tudo, era preciso acompanhar, a fé tinha de acelerar o passo. O nosso filho, Mónica. Gostava mais de o ver de preto, estava mais conforme com a sua diferença. Vestia agora de comunitário. Perguntava-me sempre pela saúde, se estava bem da outra perna para me criar uma compensação da que me faltava, e que é que andava eu a tomar? Às vezes, já de pé para se ir embora, num tom clínico de quem tem mais doentes à espera. E um dia disse-lhe estou bem e os remédios que ando a tomar são - e tomei o saco de plástico em que os guardo - Pirecetam, vincamina, para a esclerose. Lameato de timolol, MSD, para a tensão. Glibenclamida, para a diabetes. 1-Oxo-3-(3-sulfamil - 4 - clorofenil) - 3-hidroxi-isoludolina, para urinar melhor.
E ele teve de se sentar enquanto eu gaguejava a leitura do resto dos remédios e disse
- Estás bem medicamentado.
Houve um dia que veio para se demorar, olhou o relógio, sentou-se, vinha para estar um pouco mais comigo. Mas não o acuses, querida, e como poderias acusá-lo? tu passaste-te para o lado dele pela compreensão dele e quantas vezes eu tive de ir contigo à missa na igreja dos Anjos, às vezes de S. João de Deus ou de Brito que enfim sempre eram da minha família onomástica. E entrava quase sempre. E sentia, como é que te hei-de dizer? sentia o que estava antes ou depois de todo o ritual e que não tinha nome e deixava de ser se lho desse. Um estremecimento incerto. Aviso oblíquo, indistinto sinal. E sempre a uma distância infinita do que estava ali em padre e sacristão. O Teo, um dia eu disse-lhe isto, e então ele quis logo avançar com um nome e eu sustive-o e não deixei. Era sobretudo ridículo estúpido, talvez sacrílego falar nisso e ele estar cheio de pressa por causa da obra das empregadas domésticas e assistentes sociais e reciclagem das catequistas e reuniões clericais no patriarcado e eu tinha então tanta pena dele e de mim agora por estar a dizê-lo, querida, e não ter sentido nenhum. Mas um dia veio para se demorar, valerá a pena deixá-lo sentar-se? não é melhor dizer-lhe pirecetam vincamina para a esclerose e mandá-lo embora? Tu que dizes? Mas eu não sei bunda, Mónica. Nem sequer chinês, é tão difícil hoje falar. Nós perdemos a fala, querida, a gente anda a ver se a aprende, e onde é que há escola? a gente para contactar com alguém vai dando um murro à passagem e recebe outro para ir comunicando. Mas o Teo está aqui à espera e eu na conversa - senta-te, digo-lhe
- Senta-te um pouco
aliás, ele já tinha olhado o relógio e sentara-se na cadeira. Olhava os quadros e o Cristo, enquanto eu acabava a conversa contigo, mas quantas vezes já lhe expliquei porque estava ali o Cristo. E a deusa Flora, que és tu. E a chocalhada dos esqueletos, que é o inimaginável de nós todos, já lhe tinha explicado tudo. Mas de repente começa-me a chover na memória. Não me perguntes porquê - chove. E como é que ainda não choveu desde que te escrevo? Cai no pátio, a chuva, os pombos devem estar a olhá-la com a minha melancolia. Mesmo o Teo, parece-me, fica um instante separado de si, a olhar e a ouvir. Depois foi-se buscar para estar de novo ao pé de mim. O nosso querido Teo. Mas foi sempre assim, lembras-te? Muito rigoroso consigo porque fazia do rigor uma virtude que não tinha nada que ver com aquilo com que era rigoroso. Os estudos. O horário quotidiano. A exactidão do vestir. O modo de estar à mesa. Um dia o André disse-lhe
- Pareces um padre ou um comunista. Um dia vais para o seminário ou para o partido e foi para o seminário. Foi em regime acelerado, limpou a Teologia em dois anos. E concluiu a Medicina. E sabes uma coisa? é dos nossos três filhos o que eu, bom, ia a dizer amo mais, mas não é bem assim. O que admiro mais, porque admirar é abrir uma certa distanciação. Agora já voltou a si e da chuva e diz-me
- Ouve. Era imbecil querer doutrinar-te. Doutrinar é estar acima e quem está em cima és tu. Mas os grandes problemas não são de ninguém. Tu hás-de ter-te perguntado para quê. Para quê o viver, o ter feito o que fiz. É uma coisa que nos obceca. Para quê. Porquê.
A chuva apertava contra o pátio e havia pombos na minha imaginação a meditar. Para quê. Para quê.
- Sabes, Teo, já não penso. E a gente nunca pensa. A gente vai existindo e fazendo, e só depois é que se põe a perguntar porquê e para quê. Os bichos vão sendo. O homem começa depois disso. Mas depois disso, Teo, valerá a pena?
- Claro que vale.
- Quando começaste a perguntar-te porquê e para quê já tudo estava inclinado à decisão. Senão para que havias de perguntar? E estou tão cansado, Teo. Tu nunca pensaste que o cansaço pode ser mais verdade que uma tabuada?
- Às vezes tu dizias: dei hoje uma sentença e não sei a razão.
- Ouve, Teo. Nós fazemos tanta coisa sem termos a razão atrás. Eu tinha a lei, porque havia de discutir? A lei passava por mim. É como a língua em que to estou a dizer. A língua pensa muita coisa por nós, meu filho. Conheci um tipo na universidade, era de Letras. E um dia disse-me que andava a pensar para a sua tese esta coisa: porque é que em grego e latim as orações condicionais são diferentes? Creio que era isso, dizia ele que uma coisa não dava para a outra e que pensar num lado não dava para se pensar no outro. Que é feito no latim do que não passou do grego para lá? E estou muito cansado de tudo, meu Teo.
Mas a D. Felicidade bateu à porta e disse que eram horas de eu ir tomar banho. E eu disse é só um momento. Então nesse instante percebi que o nosso Teo falava em grego e eu em latim ou ao contrário. Eu estava ali com a perna a menos e sem futuro a mais. E o Teo tinha um futuro todo para contabilizar nele o que lhe apetecesse. A chuva apertou mais forte e o Teo foi outra vez para fora de si ouvir. Depois voltou a olhar com surpresa e intensidade o relógio. E então disse muito à pressa - portanto não te interessa saber para que é que existes. E porque é que não perguntas para que é que existem as moscas? disse eu.
- As contas da minha vida fazem-se no infinito - disse eu ainda. - Há uma conta final imensa, eu não faço ideia do que entra nessa conta, meu Teo. E uma conta que se faz a si mesma. Entra lá tudo, não faço ideia. A minha perna, os tipos que condenei ou absolvi, tu mesmo que estás aí e deixaste a Cremilda. Encontrei-a há tempos, não sei se te disse. Tudo isto é horrível e tão simples. E tão maravilhoso. Tu sabes que a nossa pele está cheia de bichos? As tuas pálpebras, vê tu, ao pé dos olhos, que são o mais extraordinário e melindroso do teu corpo, as tuas pálpebras, se vires ao microscópio, são ninhos de bicharada. Já quiseste saber porquê e para quê? A vida é um grande computador, meu Teo, ela que faça as contas todas. E a D. Felicidade está aí a bater outra vez à porta para o banho.
Mas não era a D. Felicidade, era uma rapariga que entreabriu a porta com as toalhas todas. E então o Teo ergueu-se, mas atirou ainda - portanto, nada de se querer ser pensante. E eu disse - acho-te mais magro, Teo. E ele insistiu - portanto. E eu disse - quando voltas a aparecer? E o Teo disse não sei, este mês nem tu imaginas a carga de tarefas que me caíram no patriarcado e sou eu sozinho a aguentar tudo. E foi o que mais me encantou nele, o ter coisas para fazer e antes disso ter necessidade de ter coisas para fazer, ter o seu lugar das contas gerais no sítio em que se é gente a fazê-las e ficar aí mais parecido com a vida, que é fazer. Mas estou talvez a atrapalhar, o melhor é calar-me e não atrapalhar mais. Depois foi-se embora, com o seu ar limpo, como dizer-te? integrado em si, sem deixar nada de si atrás como quem cumpriu perfeitamente a sua missão. E eu fui enfim tomar banho. Era uma moça brusca, não a conhecia. Sentou-me no autolift, girou a roldana até me depositar na água da banheira. E logo começou a manipular-me e a esfregar-me como a um tacho da cozinha. Era esforçada e diligente. E não dizia nada, toda aplicada a esfregar-me. Só uma vez disse
- Parece impossível como se sujou tanto. Veja só como a água ficou negra.
E eu vi. E era verdade. Olhei muito a porta, a ver se a minha mãe entrava. Mas ela não apareceu e então pensei que talvez estivesse morta.
O homem avançou para mim, era um tipo muito velho todo em arco, vinha eu então da retrete. E estendeu-me a mão e eu estendi-lhe a minha a meia altura por causa do equilíbrio nas muletas e devagar para o ir decifrando. Ele sorria da minha ignorância e disse-me
- Saúdo-o senhor doutor em toda a minha humildade, mas nada há como a dor pra criar fraternidade.
E de súbito tudo se me iluminou. Era ele, querida, sim era ele. Então em silêncio pus-me a examinar-lhe as partes mais identificáveis, os olhos saídos de sapo, a beiça grossa e caída. Mas havia, a atrapalhar, a calvície até à nuca e à volta dela uns restos brancos de cabelo. Sobretudo havia a espinha em arco de submissão e os olhos necessitados a olharem-me de baixo. Mas havia nele ainda uns restos da alegria antiga em dissonância com o mais. Ficava-lhe de fora, essa alegria, eu pensava, mas se calhar era de dentro como a de um imbecil. Ou a de um hábito que não despega. Porque tudo afinal será um hábito, minha querida, mesmo o existir. Nós somos em tudo uma segunda natureza e não sabemos nunca a primeira. E então eu disse-lhe
- Não o estava a reconhecer.
- Chama-me a voz da terra, tenho de ter paciência, porque à força que ela encerra não posso opor resistência.
Entre um pouco, disse-lhe eu, estávamos à porta do meu quarto, e ele entrou. E conte um pouco da sua vida, há quanto tempo a gente se não via. Ele entrou.
- Posso utilizar-lhe a cama, mesmo não estando nu? Porque a cadeira me trama o que me resta do rabo.
Mas não foi preciso autorizá-lo, sentou-se logo, ficava agora quase com o queixo nos joelhos e os olhos mais necessitados. Começou então a contar, sempre em verso, e eu disse - fale em prosa. Mas ele replicou que
- O poeta latino Ovídio fazia versos à grosa. Disse-Ihe o pai: sê anfíbio, vê se escreves também prosa. E ele disse-lhe: não posso. Se prosa tento escrever, sai-me verso e nem um osso fica em prosa pra roer.
E eu, querida, desisti e disse-lhe - conte para aí como quiser. E ele deixou cair uma cascata de quadras e foi contando. Correra o país e as colónias, tinha também o impulso viageiro. Finalmente regressou, aposentou-se e agora estava ali. Mas neste percurso foi deixando um rasto de mortos, aleijados, descambados do juízo. Ele tivera o cuidado de enlouquecer antes e ficara vacinado contra a loucura. Tinha a loucura de si, punha-a diante onde eu a via e ele ficava de trás. Por isso mesmo, penso eu, ele teve o cuidado de nunca falar de ti. Falou do Coelho, que estava numa cadeira de rodas com uma inglesa vadia a dar-lhe os caldos, falou do Lucas, tão britânico de agilidade e que está cego não sei onde, falou do Simão, que está empenado mas só do pescoço e não pode olhar a cara das pessoas, falou da Maria José, professora de canto, que os rapazes chamavam José Maria por ser meia homem e usar os seios, diziam eles, não aparados de baixo para cima mas espremidos de cima para baixo e que foi encontrada morta com o cão ao lado, enraivecido de fome, falou de outros e de outros e de outros. E eu via passar essa procissão imensa de aleijados taralhoucos entrevados, ao passo lento das suas quadras, passavam à porta do quarto, passavam na rua e nós a ver e ele sempre a nomear mais este e mais aquele numa toada sem fim. Eu não conhecia nenhum, de alguns deles tinha a vaga ideia de tu já me teres falado, passavam, eu via-os e conhecía-os na melopeia cadenciada a passo de enterro. Mas nunca falou no teu nome e eu também não falei, terei de falar daqui a pouco, mas por ora não. Hei-de atravessar toda a miséria e amargura e um pouco de humilhação que ainda falta atravessar até seres enfim tu só, lavada purificada iluminada na pureza do teu ser - eu te baptizo em nome dos astros e da perfeição. No fundo, é curioso, também ele procurava a perfeição e como tu rias do que nele a pervertia nessa espécie de fingimento da loucura. Porque ele dizia por exemplo que gostava de que todas as coisas do seu uso presente ou futuro fossem do seu tipo original. Gostava assim de vir a ter só rendas de Veneza, cristais da Boémia, café de Moka, toalhas da Turquia, relógios da Suíça, sebo da Holanda. Tudo autêntico, ao natural. Assim quando chovia vinha para a rua tomar um chuveiro real. Uma vez constipou-se, ele insistiu em tomar o chuveiro da natureza e apanhou uma pneumonia. Se apanhei uma pneumonia foi por vontade de Deus. A água, enfim, estava fria mas era água dos céus. Ele comentou assim, tu contaste-me e de repente lembrei-me - vou-te apresentar à poetisa Elisa. Não sei se já te falei dela, mas de que é que eu te falei e não? Ela está aqui há um certo tempo, mas talvez ainda não tenha. A poetisa Elisa é gorda. Então carrega-se de jóias todos os dias para a gente lhe reparar nas jóias e ficar mais favorável para reparar na gordura. E usa óculos de ouro para também. Estava ainda na secção A, mas por pouco tempo. O pessoal de lá é de andar por fora, Elisa está pesada para andar. E então mudou-se. Andava o Salus a pôr a mesa, ele agora põe-na menos, fica fechado com a mulher, as criadas que a ponham. Andava um dia o Salus a pôr a mesa, eu fui para a sala antes de chamarem e dei com a poetisa com o andor do peito todo armado. Tinha rendido não sei quem. Porque aqui, querida Mónica, é sempre a andar. Há um trânsito infernal para a eternidade, sempre em corropio. Há uma baixa, outro que entra, sempre em movimento os alcatruzes da nora. E nesta passagem rápida de material humano, como no cinema, há uma imagem que fica visível e é a espécie, às vezes penso. Mas antes de te contar o resto. A Elisa pertence a uma Sociedade Poética, que tem o seu boletim, as suas edições, a sua confraternização, os seus recitais, os seus prémios, as suas rivalidades, a sua graduação de valores - tudo como a dos poetas a sério e que jogam na primeira divisão. São o refugo da poesia, mas cheios da altivez da outra. O senhor Aureliano da barbearia ao pé da nossa casa, e que me cortava o cabelo, pertencia. Quantos versos eu lhe ouvi durante a tosquia. Sabia-os de cor, que é uma qualidade do analfabetismo. E se não sabia, parava a operação e lia sem pousar a tesoura. Eram versos admiráveis, eu sempre lho confessei. E ele voltava a tosquiar-me com entusiasmo e elevação. Nós julgamos que só há poetas a valer e romancistas e mesmo homens de ciência. Músicos, toda a gente sabe. Há-os à esmola nas bocas do metro e lá dentro, nas esquinas, nos passeios, com ou sem mazelas a ajudar. Há poetas e o mais de todos os tamanhos, porque em todos eles se sonha e é desgraçado. A Sociedade Poética, em todo o caso, de desgraça nem por isso. A Elisa disse-me - ela não gosta que a chame poetisa, prefere poeta, porque a poesia não tem sexo, não é assim? perguntou-me com um pouco de comiseração pela minha insensatez. A poetisa Elisa, eu prefiro em todo o caso, talvez por causa da rima, ela disse-me da grande avalanche de poetas da alta na Sociedade. Aos montes e muito produtivos. Eram marqueses, condes, doutores e assim. E uma ou outra modesta dona de casa para haver comunitarismo no Parnaso. Ela tinha muito orgulho na sua produção. Recitava-me por amabilidade e a meu pedido, depois à força. Às vezes excitava-se e numa delas saltou-lhe a dentadura. Mas ajeitou-a a tempo, os velhos todos à volta pasmados a ouvirem. E de outras vezes contava. Recitais, de uma vez foi aclamada, viera o caso num jornal, mostrou-me. Uma notícia breve, mas notícia. Trazia-a sempre consigo para uma urgência. Custou-me a ler, a letra já safada. Mas ela sabia-a de cor e ajudou-me nos sítios onde a glória era menos visível. Certa noite fizeram uma excursão pelo rio, ela recitou altíssimo para toda a cidade iluminada e foi aclamadíssima. Ficou rouca. Era a Sociedade Poética, ela dizia, com muitos pergaminhos. Tinha dado a sua quota-parte para eles. O boletim só publicava versos seleccionados por voto rigoroso nos recitais. Seleccionaram-na sempre, ela garantia cheia de jóias. Querida Mónica. O homem é tão extraordinário - deixa-me pensar um pouco. Não se inventa talvez da lama aos astros, é o mesmo em cada circunstância - deixa-me arredondar um bocado de filosofia. Mas não tenho tempo, Elisa quer recitar-me um poema ainda quente do forno. Diz assim - desde a hora em que te vi, que te não posso esquecer e agora que estou aqui, só lembrar é já morrer. Achei magnífico e então disse ao nosso homem das quadras
- Há aqui uma poetisa, você deve gostar de conhecê-la.
O que eu fui fazer. Já se conheciam. E assim que se viram, um ódio carnívoro esmordaçou-lhes o olhar. Eram ambos da Sociedade, tinham uma raiva poética, que é terrível por ser já de uma dimensão divina. Rosnaram coisas com sanha lírica e canina. Separaram-se e ele meteu-se logo no quarto. Mas só para mim, e antes de se meter, recitou muito cínico: não penses tu que me iludes, com essa montra de jóias, porque todas as virtudes são em ti as das jibóias - o que eu achei excessivo e mesmo um pouco indecente por não lho ter dito na cara.
Sim, minha querida, era o teu José de Barros. Quão diferente. Mas vê tu, também nele o espírito permanecera tão diferente e tão igual. Onde vos encontrei? Vínheis juntos, tu rias-te tanto, à Casa da Moeda, me parece. Ouve. Tenho de atravessar todo o - o quê? nojo, recalcamento. O José de Barros quer por força contar-me a rivalidade com a Elisa, mas eu estou farto, quero é estar contigo. Atravessar todo o, atravessar primeiro esse teu absurdo tão explicável e difícil. Toda essa selva espinhosa. Mas não sei por onde começar. Podia ser pelo Bem, lembras-te? éramos ainda jovens, tu amavas tanto o teu corpo. E amavas desesperadamente que to amassem. Mas exactamente por isso, repara bem no que te digo, precisamente por isso nunca o deste a nenhum dos que me querias fazer crer que sim. A mim mesmo, como tu o regateavas. Amaste-te a ti e era belo que outros to amassem também para te confirmarem no teu amor. O Bem, quando vivíamos à beira-mar, talvez um pouco para o alegrares com a visão da tua beleza ou atormentares com a ilusão ou a crueldade irresponsável da tua juventude, o Barros patarata, e outros e outros que não nomeio para não voltarem a ser reais. Como é que pudeste pensar que o Barros me fazia mossa? Era teu colega no liceu, dava também lições de educação física. Um mole do miolo, eu sei, tem muitas vezes sorte no seu jogo, deve vir nos livros. E um tolo, transforma tudo em tolice, uma mulher cede mais depressa porque tudo se transforma em brincadeira, sem portanto pecado algum - deve vir nos breviários de psicologia. Mas o teu corpo não foi nunca para ti uma coisa de brincar, Mónica, tinha mesmo uma importância maior do que supunhas, penso agora. E não me estragues o pensar, preciso tanto de te amar em harmonia e paz e beatitude. O Barros. Lembro-me de mo mostrares como um macaquinho. Davas-lhe ordens e ele fazia logo a sua macaquice. Rias tanto. Toda a tua vitalidade ria contigo. Mas ele não se sentia vexado com isso e passava assim para o lado de cima. Tocavas-lhe num botão e ele deitava logo para fora alguns versos. Tenho gosto em conhecê-lo, meu caro doutor juiz, mesmo que me chegue ao pêlo pelo que fiz ou não fiz - e o que tu rias, não é engraçado? e olhavas para mim a perguntar sempre não tem piada? E eu ria também, mas estava fora do riso.
- Podes dizer-lhe o que te apetecer, que ele faz-te logo uma quadra. Senão experimenta.
Mas eu tinha a sensatez comigo e encolhi os ombros. Como é que te sentes na pele de juiz? e quem mo perguntou? a Márcia talvez, ou o André. Sentia-me bem até um dia eu mo perguntar também. Penso agora - uma vida inteira com uma lei que eu não fiz nem me submeteram à aprovação e era mais provisória do que Deus que também foi. Mesmo que me chegue ao pêlo pelo que fiz ou não fiz - mas eu deixei-vos, não achava piada ao macaquinho, agora está aqui no lar e tem ainda dentro o macaco, mais encurvado por fora, que é onde se é mais provisório e sem importância. Mas não para ti. Houve o macaco poeta e houve outros, decerto mais prosadores. Não contes, não quero saber. Um dia disseste-me tenho asco a essas putéfias para aí que não têm o mínimo respeito pelo seu corpo. Para que é que elas o hão-de querer? perguntei-te. Não sei, disseste, mas não é para se lhe cuspir, como se não cospe numa hóstia. Houve outros e outros. Gostavas de que gostassem mas não os deixavas cuspir. Quem durou mais tempo foi o José de Barros, mas só cuspia em redondilha maior. É o que penso, para que me hás-de contar? Só assim eu entendo
- Nunca te gramei
só assim eu compreendo a tua última frase inteligível no começo da tua grande escuridão. Porque devia ser verdade. Conhecemo-nos e amámo-nos, como dizer-te?, na transcendência dos nossos corpos. Eu te baptizo. Na transfiguração que não era deles. No sagrado - um dia disseste, ou sou eu que o penso agora? No inverosímil. No vertiginoso. Queria agora atravessar para regressar lá, atravessar a tua noite. Escura densa terrível. E reencontrar-te no fim, perfeita acima da perfeição. E entregar-te esta carta que te escrevo - que é isso? hás-de perguntar. Uma carta, simplesmente uma carta. E hás-de sacudir vivamente a cabeça como era o teu jeito de insofrida vitalidade. E talvez por fim sorrias - que disparate. A tua noite, querida. A treva horrível. Estou tão cheio de pressa de a atravessar. Encontrar-te ao alto da contingência e da morte.
- Senhor doutor. A senhora sujou-se outra vez.
Encontrar-te depois na eternidade do teu ser. Eternidade na Terra, mais alta que a de Deus. Atravessar mesmo o que era belo e que morreu. O nascimento dos filhos, o seu crescimento, o seu adeus à nossa protecção. Há tempos pedi à Márcia aquele retrato dos três quando eram pequenos e que tu tinhas na mesinha de cabeceira, até que o arrumaste não sei onde, por já não ser deles. E a Márcia disse-me sei lá onde isso pára. E não achas, disse depois, uma pieguice essa coisa do retrato dos meninos que já têm o seu tamanho de gente? E eu pensei é verdade. Mas é a forma de se imitar a eternidade no que está mais à mão, qualquer miséria assim, qualquer porcaria assim. A eternidade do teu ser. Não está em parte alguma de ti, vou pensar melhor. Também pedi à Márcia uma vez que me trouxesse os netos. Ela ficou calada a considerar. Eu esperei que ela considerasse e depois disse-me
- Achas bem que eu trouxesse os miúdos para eles verem estes velhos todos aqui ao monte?
E eu fui cobarde porque lhe não disse traz mesmo assim.
- Ou levares-me lá a casa.
- Isso não.
Foi categórica - isso não. Há a trapalhada de toda a miudagem, tu nem os conheces. E eu calei-me na minha humildade, porque ela tinha razão. Então pareceu-me que se comoveu ou coisa assim porque disse - trago-os é no carro grande e vamos todos dar uma volta. Mas ainda não trouxe. Atravessar a infância dos nossos três filhos, querida. Da Márcia, Teodoro, André. Que criança difícil, o André. Tu e eu revezávamo-nos com ele ao colo para o pormos a dormir, ele desatava aos berros logo que sentia o rabinho na cama. E às vezes era toda a noite assim, que criança terrível. Escreveu-me há dias da índia, diz que vai largar a poesia pela pintura e que vai iniciar o ciclo do canguru. Atravessar as nossas discussões que só tinham razão de ser para darem vazão à tensão doméstica, que não tinha razão nenhuma. A tua excitação com o tal tipo da "voz" na rádio que estou ainda por saber se foi uma causa ou efeito para a minha consciência jurídica. Atravessar todas as tuas tentativas de me agredires com os teus devaneios inconsequentes para restabeleceres um equilíbrio que julgavas desequilibrado por supores que a substância de mim era mais substancial do que a tua. Atravessar enfim a tua descida devagar até à morte. O teu apagamento imperceptível. Pouco a pouco o apagamento do cintilar da memória, do entender. A confusão da tua ordem da vida e de estares nela connosco. A entrada pouco a pouco noutra ordem que não entendíamos, até desapareceres nela para sempre. Lembro-me agora de repente de uma vez na rua. Tu ouviste ao alto o estrondear de um avião. E paraste. E apontaste com um dedo para cima - um comboio!, disseste. E eu olhei ao alto. E no meu sofrimento vi que era um comboio. Mas o que mais me custa lembrar é o teu olhar incerto e atónito por não entenderes. As palavras que dizias e não vinham ter com a nossa palavra adulta mas com uma outra, infantil, que era do incompreensível. E o teu riso. Havia imagens que passavam por ti ou te faziam sinal e te faziam rir - que imagens seriam? Nós olhávamos, não víamos. A Márcia a princípio vinha com alguma frequência, era o dever ainda em estado novo, vinha. O Teo menos vezes, estaria ainda o André? Depois o dever envelheceu como tudo envelhece, a Márcia, ela dizia, tinha uma vida impossível. Porque o André não o vejo na memória, não devia já estar. Ou viria tão raramente que era como se. Quem sou eu? a Márcia perguntou-te uma vez no começo de te apartares de nós, o Teo não me lembro de jamais te perguntar. Punha-te a mão na face, tu sorrias para uma parte oculta dele e havia entre vós um diálogo visível que não ouvíamos. Ou tomava-te as mãos a dizer-te sempre qualquer coisa que também se não ouvia. A Márcia não desistia de te segurar à vida, prender-te ao que te devia lembrar e ser real. Os exercícios ginásticos do teu vigor. A barra, o flic-flac, a roda, a ponte. E era evidente que tu recuperavas o teu triunfo esplendoroso no teu riso parado. Atravessar tudo isso, a memória, querida. E ficar quieto. E não me matar.
Depois houve o silêncio definitivo e o teu corpo ainda vivo. Uma vez ainda disseste
- Não.
Devias recusar qualquer afronta ou ameaça ou tentação. Não. Uma vez apenas o disseste. Mas fiquei a lembrá-lo como se mo repetisses.
- Não.
Eu voltava do tribunal, estavas viva. Eu falava para ti, mas tinha de te ir buscar longe. Voltava-te a face para mim. E os teus olhos. Desencontrados de mim e sempre brilhantes com um brilho fora da Terra. Tão horrível, querida. Sempre vivíssimos a quererem entender. Perguntava-te coisas, dizia-te coisas. Fitavas em mim os olhos intensos e eu pensava vai falar. Às vezes tinha uma vontade bruta de te gritar fala! diz! Tu olhavas sempre, um olhar fito, à espera. Devias ouvir-me decerto, devias responder-me, eu é que não ouvia. Camila estava ao lado a assistir. Olhava-te também com um compadecimento já esgotado.
Um dia vim do tribunal já tarde. Camila ouviu-me abrir a porta, veio logo ter comigo e não disse nada. Mas eu ouvi o que ela dizia sem dizer. Fui ao nosso quarto. Dormias em paz. Pus-te a mão na testa já fria
- Espera lá por mim.
E foi só o que soube dizer. Deixei ficar ainda algum tempo a mão na tua testa. E a todo o momento esperei que me dissesses a última frase do teu entendimento. E sorri um pouco por dentro, porque na tua face tranquila, longe para sempre de tudo o que te agitou, era impossível que a dissesses.
- Dorme - disse-te ainda.
É já tarde, D. Felicidade não gosta de que se tenha até estas horas a luz acesa. Mas veio-me uma vontade bruta de te amar e tinha de to dizer. Espera, deixa-me explicar. Preciso de to dizer muito depressa, porque já não há muito tempo e a vontade de to dizer me sufoca. É penoso não haver tempo quando o tenho todo. Mas não tenho. O Teo pergunta-me sempre
- Como te sentes?
e eu digo-lhe sinto-me muito bem. Mas não é verdade. Também to não explico a ti, e para quê? seria estúpido. Quero é aproveitar o tempo, eu que estou todo em mim para estar todo no que te digo. Uma vontade absoluta de te amar, que o absoluto é a medida humana, é assim. Atravessei o horror e a humilhação. Atravessei a miséria e o que nela apodreceu do meu corpo terrestre. Lembro-te, penso-me. Está uma noite quente, deve ser o fim do verão. Lembro-te agora intensamente e a tua perfeição está no fim do meu lembrar. Esta-se lá bem, no lembrar. Estás inteira e ágil como um voo. Estou inteiro ao pé de ti, há um mar de gente à minha volta e em silêncio, tenho a perna forte, armada para o disparo e o triunfo. A glória está connosco e a claridade magnífica dos deuses. Mas o que neste instante de fadiga me pesa do universo nos meus ombros, como dizer-te? está muito para lá. Para lá da perfeição de um corpo corruptível, do seu efémero já previsto nas profecias. De que me serve o que a morte espera? Amo-te para lá de todas as profecias, das que te caucionem o fim e das que te anunciaram o que serias para lá. Amo o impossível da eternidade do teu ser, a tua face instantânea, o que de ti estremece no sem-tempo do meu querer. Não te espero para depois, nenhuma profecia falou de ti para o que é nomeável. Tudo isto é difícil e eu não to sei dizer. Tudo isto está fora das leis humanas ou divinas porque é maior do que elas, do que o imaginado pelo homem para o homem e para os deuses. Há o nosso encontro aí porque tudo pesa imenso e nós devemos ser verdade. Verdade acima de um corpo que apodrece e de um espírito que se extraviou. Verdade entre a solidão que espera uma ideia deitada fora, uma palavra erradia, um olhar que alguém tenha esquecido num balde de lixo. O que amei em ti onde é que estava? porque estava para lá de ti. Dorme. Está uma noite sufocante. Para lá das janelas, por sobre os telhados em frente, um aceno invisível. Para lá de ti, o inqualificável de tu seres, o absurdo indecifrável da tua presença. Um pouco isso, um nada disso. Eu digo o teu mistério e tudo fica por dizer porque o aniquilei com dizer. A tua pessoa, a transfiguração de ti na minha memória incerta. Reconheço-te, não te sei dizer, que é que de mim reconheces para um encontro plausível? Passar além da miséria, do que aflige e humilha, mesmo do que foi bom que existisse. E ficar não o que é belo que fique, porque é mais alto e mais vasto do que isso. O incorruptível, não do teu corpo, mas do teu ser. A perfeição, não da tua harmonia, mas da necessidade de existir. A tua essência, poderei dizê-lo? a tua divindade antes de haver deuses, uma coisa assim. E eu ir ter contigo e sermos em iluminação. Uma chama pura. O sopro do universo, não sei. O começo, a origem de nós mesmos, a nossa ascensão. Quero estar contigo sem nada de permeio que nos divida e nos identifique em separação. Estar contigo no absoluto de nós - onde é que poderemos ser todos no indizível e incomparável? Não tenho mais nada e sou contente. Na terra dos homens, no irredutível da nossa condição. Não digas amor, que é um pouco arrepiante, mesmo com tudo o que lhe acrescentes. A essência de nós e uma incerta alegria de uma estrela nos reconhecer. O fulgor de sermos e os astros estarem de acordo. E os deuses que ainda não nasceram e são puros de um início que não tiveram. Uma coisa assim - e que pena não saber o que é. Uma intensidade na ordem das nebulosas. Como te quero. Muito mais do que te quis e era já sem limite como é próprio de um grande amor. No dedo do pé direito - mas não te emociones muito, sacode a comoção no teu jeito da cabeça com que sacudias tudo o que era importuno. No pé direito, o recomeço da corrupção - não seria absurdo que eu não estivesse contigo? A D. Felicidade bate à porta, apago a luz. Mas tenho uma pequena lâmpada, não vou mandar-te embora com um artigo do regulamento que me quer impor a noite sem ti. Estou calmo como seria bom que entendesses, fui deixando atrás o que só existe com a perturbação que é sua. E o que dói. E o que espera. Mesmo o que foi em alegria e posse do mundo. Há uma multidão enorme à minha volta, eu tenho o triunfo de toda essa gente na força e destreza do meu pé esquerdo. Irei dar-lhes esse prazer? Tomo balanço, mas há uma distância infinita entre a glória e a minha fadiga. Mónica. Não jogues ao teu corpo de terra - e se eu ouvisse o oboé? Baixinho. A altura do silêncio. É a minha altura, estou bem. Realizei uma vida no vazio e no ridículo talvez. Mas estou bem. Não é esse o fim decente de um homem? A purificação. No que em lixo vai ficando do que fomos como gente. O desprendimento em mãos limpas. Mas só assim poderia estar contigo no eterno de ti, que está para lá da eternidade que o Teo te prometia. No incompreensível de seres. Quantos mortos à nossa volta, querida. Amigos, conhecidos. E os amores que não tiveste por te amares muito. E o triunfo. E o cansaço. Mesmo os filhos que se recriaram a si depois da nossa criação. Mesmo o amor com que os fizemos e teve o seu instante de verdade. Tudo é agora o sono da noite. Olho-a. Escuto-a. É imensa e aflitiva como a ternura. Um ou outro rumor ao longe, espaçados de horas mortas, oblíquos de clandestinidade e suspeição. São gentes do erro e do medo. Levam a vigília para a noite, dormem assustados à guarda do sol. É tarde já. A minha fadiga. O meu sono.
E vão sendo horas enfim de descermos ao rio. Amanhã talvez? Hoje. Um dia. Estará uma noite quente, caminharemos de mãos dadas. O anjo não virá, que teria lá que fazer? vamos sós. Não terei medo da tua presença com toda a sua força de me fazer ajoelhar. Olharei o teu corpo na sua transparência incorruptível. Sofrerei em mim a descarga do universo e não gritarei o teu nome. Porque estará em mim e eu hei-de sabê-lo. A areia brilhará de uma luz pálida, pisá-la-emos devagar a um impulso fortíssimo e lento. Estaremos nus desde o início, sem vergonha anterior. Nudez primitiva, não a saberemos. Porque será uma nudez para antes de os deuses nascerem. Então mergulharemos nas águas do rio e deitar-nos-emos na areia. E olharemos o céu limpo e sem estrelas. E acharemos perfeitamente natural, porque a iluminação estará em nós. Erguer-nos-emos por fim e eu baixar-me-ei ao rio e trarei água na concha das mãos. E derramá-la-ei imensamente e devagar sobre a tua cabeça. E direi para toda a história futura, na eternidade de nós
- Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição.
E tu dirás está bem.
Vergilio Ferreira
O melhor da literatura para todos os gostos e idades