Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENCANTOS / Neil Gaiman e John Bolton
ENCANTOS / Neil Gaiman e John Bolton

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

As asas do falcão eram fortes, e o pássaro lançou-se rapidamente ao céu. Tamlin, o falcoeiro da rainha, fez sombra sobre os olhos com as mãos para observar o animal de que cuidava. Satisfeito com os círculos que traçava lá no alto, e ciente de que o pássaro não tentaria fugir, a atenção de Tamlin voltou-se para si mesmo. Ele não conseguia mais ignorar as perguntas que o importunavam.

“Será que era verdade?”, ficava imaginando. As profecias de tanto tempo atrás... ele não tinha levado muito a sério. Mas agora não conseguia parar de pensar nas possibilidades. Não conseguia tirar da cabeça a criança que tinha ido até lá, até aquele lugar chamado Mundo das Fadas, e derrotado a rainha em um de seus próprios jogos.

Tamlin tivera apenas um vislumbre do menino do reino dos mortais, mas não o esqueceu. Um garoto capaz de se colocar à altura da rainha seria sempre lembrado.

“Mas será que Timothy Hunter, que visitou brevemente o Mundo das Fadas, era a criança da profecia?” Se fosse, e se a profecia estivesse correta, haveria conseqüências para Tamlin, para a rainha, e até mesmo para o próprio Timothy. Por causa disso, Tamlin não sabia realmente o que esperar, nem se era possível ter alguma esperança. Ele não queria se decepcionar de novo. Já tinha se decepcionado muitas vezes no passado com o glamour do Mundo das Fadas.

 

 

 

 

O falcoeiro suspirou. Aquela terra já o decepcionara demais, e tudo porque ele havia permitido que isso acontecesse. O Mundo das Fadas oferecia delícias inenarráveis: beleza, alegria e prazer. A brisa que acariciava a pele, riachos reluzentes, lagos convidativos e florestas selvagens, coloridas e misteriosas. Mas isso foi antes de tudo se transformar. “Cada um acredita no que quer”, Tamlin pensou com seus botões, “e o próprio Mundo das Fadas parece estimular a ilusão, encontrando maneiras secretas de fazer com que seja mais fácil aceitar o que deveria ser inaceitável. Tem o poder de criar ilusão e de gerar desilusão”. A longa estada de Tamlin naquele mundo tinha tornado tudo aquilo dolorosamente visível.

Tamlin ergueu a mão enluvada para sinalizar ao falcão que estava treinando que era hora de voltar. “E a rainha?” Tamlin ficou pensando. “Ela está tão acostumada a fingir que seria difícil descobrir o que ela sabe a respeito do Mundo das Fadas, da profecia, de qualquer coisa.” O pássaro majestoso veio descendo e pousou no pulso de Tamlin. Suas garras se prenderam firme no couro grosso da luva. Tamlin falou de maneira suave com o pássaro, que arrumava as penas com o bico, e colocou um capuz na cabeça do animal.

— Você e eu somos a mesma coisa — disse ao pássaro. — Agimos de acordo com o que manda o coração, mas só temos a ilusão de liberdade.

Tamlin examinou o horizonte. Era duro para ele ver o que tinha acontecido com os campos de caça reais. Onde árvores majestosas abrigavam no passado uma infinidade de animais, agora só havia deformidades retorcidas. Além deles estavam os vales devastados, a terra dura e sedenta, rachada e morta. Assim estava todo o Mundo das Fadas. Ele sabia que precisava agir. E logo.

 

Titânia, a rainha do Mundo das Fadas, estava parada perto do muro baixo de mármore que rodeava o pátio, nos fundos do castelo. O céu do crepúsculo combinava com seu humor, à medida que a cena pálida e plácida se transformava em algo escuro e intenso.

“Aquela criança”, ela pensou, “aquela criança veio do reino dos mortais. E, no entanto, seu poder...” Simplesmente não fazia o menor sentido para ela. A menos que...

“Será que eu fui enganada?”, ficou pensando, apertando os olhos dourados. Ela não estava enxergando a paisagem à sua frente, os cortesãos passeando pelas trilhas, os espirituais praticando esportes no lago cristalino, os belos esvoaçantes revoando por ali, à espera de suas ordens. O que ela via era traição, má fé e perigo. Ela também ficara confusa com as antigas profecias. Já fazia tantos anos... O que tinha mesmo acontecido com aquela criança? Pensava que ela tinha morrido — foi o que lhe disseram —, mas ela própria não tinha testemunhado a ocorrência. Não deveria ter sido tão tola. Mas, naquele tempo, ela confiava mais nas coisas, e certas pessoas diziam que só os tolos confiavam. Se fosse hoje, as coisas teriam sido diferentes, e ela não teria que encarar esta... esta possibilidade surpreendente.

“Pode ser uma bênção”, percebeu. A raiva por causa da possibilidade de a criança da profecia ainda estar viva, de terem mentido para ela, não deveria afetar sua noção de que sua existência poderia representar uma vantagem. Por outro lado, a profecia poderia não ser nem um pouco verdadeira. E a criança, apesar de suas suspeitas, poderia estar morta havia muito tempo.

Confiança. Apesar da hesitação, a confiança era a única coisa com que podia contar — aliás, uma coisa bem traiçoeira. Tamlin nunca tinha mentido para ela, e isso a fazia lamentar muito mais. Em certas ocasiões, até seria bom se ele tivesse mentido. No passado, ele escondera dela algumas coisas, mas sempre que lhe fazia uma pergunta direta, inevitavelmente ele dava uma resposta direta, mesmo que isso pudesse despertar sua ira.

Era isso. Ele era a única pessoa a quem ela podia perguntar, o único que poderia descobrir a verdade. Mas como ele reagiria à notícia? “Pode ser que ele já tenha matado a charada”, ela percebeu. Nesse caso, ela queria ser colocada a par de qualquer informação nova que ele obtivesse.

Titânia fechou os olhos e sentiu que a brisa ia ficando mais fria à medida que o sol se escondia no horizonte.

— Venha, meu falcoeiro — convocou Tamlin com a mente, pensando na imagem dele.

Ouviu um bater de asas e sorriu.

— Por que me chamou? — uma voz resmunguenta quis saber.

A rainha abriu os olhos lentamente. Alto, esguio, musculoso, traidor e traído, amado e desprezado, Tamlin estava parado à sua frente. O cabelo castanho liso batia nos ombros, emoldurando o rosto anguloso. Adversário, mas único amigo verdadeiro. A relação dos dois tinha tanta história que, sempre que estavam juntos, o ar que os separava parecia ficar mais espesso.

Depois que ele chegou, ela não sabia mais como proceder. Com qualquer outra pessoa (até com seu marido, o rei Auberon) ela fazia o que queria sem pensar, sem uma pontinha sequer de preocupação a respeito do que estava pedindo ou fazendo. No entanto, com Tamlin ela se sentia acossada. Queria que ele aprovasse sua conduta, principalmente porque raramente o fazia.

Mas ela não olhou para ele. Em vez disso, ficou com os olhos fixos à frente. Notou alguns dos pequeninos esvoaçantes flutuando por ali e fez um gesto para que fossem embora. Fofocas não seriam bem-vindas. Fez um sinal com a cabeça para os dois serventes armados que tinham se colocado discretamente um pouco além do alcance da audição. Sempre havia diversos guarda-costas por perto. Se ela os dispensasse, isso atrairia atenção demais, ficaria muito óbvio que o assunto era pessoal.

— Eu tenho pensado... naquele menino — ela disse.

Manteve a voz leve, como se não fosse nada além de curiosidade.

— Que menino? — perguntou Tamlin.

Dessa vez ela olhou para ele, com uma sobrancelha erguida. Sua intenção era fazer com que ele soubesse que ela tinha certeza de que ele sabia muito bem de que menino estava falando.

— Ah — respondeu Tamlin. — O mortal que veio até este mundo não faz muito tempo.

— Esse mesmo. — Ela se sentou no muro, de costas para o gramado.

Reparou que seu bufão, Amadan, os espiava da janela do quarto de dormir dela, na torre. O que ele estaria fazendo ali? Espionando, concluiu. Assegurou-se de que Amadan sabia que ela o tinha visto. Ela poderia precisar dele, e queria lembrá-lo de quem é que mandava ali. Aquele esvoaçante era pequeno, mas tinha a maior parte da corte na palma da mão, sempre armando e despertando intrigas dentro de outras intrigas.

Ela arrumou a saia comprida sobre os joelhos. A brisa leve fez com que as camadas translúcidas de chiffon em tom pastel esvoaçassem.

— Fico contente de ele ter sido trazido até mim.

Tamlin assentiu com a cabeça, esperando que ela jogasse sua cartada.

— Sinto um grande poder em Timothy Hunter — disse Titânia. — Ele precisa ser vigiado. Quero que você o traga de novo aqui. Agora.

Os olhos castanhos de Tamlin estavam opacos. A rainha não sabia dizer o que ele estava pensando.

— Você ouviu o que eu disse? — quis saber, ficando impaciente. Jogou os longos cachos sobre os ombros. — Quero que você vá buscá-lo. Que o traga aqui para mim.

— Não. Eu não vou. — afirmou Tamlin, resoluto. Então, como se aquela fosse a coisa mais natural do mundo, transformou-se em um falcão e saiu deslizando pelo céu.

 

“Eu sempre soube que educação física era tortura patrocinada pelo governo”, Timothy Hunter pensou. “Afinal, forçar a gente a jogar futebol ao ar livre com este tempo é obviamente um castigo cruel e fora do comum.”

Tim ficava pelas beiradas, meio de fora do jogo. Ele não era muito fã de esportes — tirando andar de skate. Sentia-se bobo com a roupa de ginástica. Sua pele estava toda arrepiada e a camiseta larga só servia para mostrar ainda mais que ele não tinha músculos desenvolvidos. O pai de Tim dizia que ele estava passando por um estirão de crescimento e que isso era normal aos 13 anos. Mas seus braços e pernas pareciam desajeitados, os pulsos e as canelas finas pareciam sempre dar um jeito de aparecer nas mangas das camisetas e nas pernas das calças.

Para piorar a situação, a classe de Molly O’Reilly estava correndo em volta do campo. A última coisa que Tim queria era que ela o visse errando um passe ou tropeçando nos cadarços dos próprios tênis. Não que ela ficasse impressionada com caras de tipo atlético, mas ele também não queria fazer papel de tonto. Então, tentava passar despercebido o máximo possível. Não queria fazer nada que pudesse ser interpretado por seus companheiros de time como um convite para que a bola fosse lançada em sua direção. Lá atrás, longe de todo mundo, percebeu que talvez assim, sozinho, chamasse até mais atenção do que qualquer outro garoto.

Ã-hã. Estava certo. Molly deu tchauzinho quando passou correndo ao seu lado. Seu cabelo castanho encaracolado estava preso para trás, em um rabo de cavalo que pulava no mesmo ritmo de seus pés. Ela era rápida, ele reparou, e não estava nem suando.

Não quis ser mal-educado e não responder ao aceno. Ajeitou os óculos em cima do nariz e então ergueu o braço. Ficou com o braço bem coladinho no corpo e só abanou a mão para frente e para trás, como as pessoas que participam de paradas costumam fazer. Fez o mínimo de movimento possível, para não atrair a atenção de seus companheiros de equipe. Deu uma olhada de canto de olho para Bob Saunders, que estava com a bola. “Estou salvo”, Tim pensou. “O Bob nunca passa para ninguém.”

Tim voltou para seus devaneios. A cabeça dele andava tão cheia... como é que alguém podia esperar que ele se concentrasse em uma coisa besta como um jogo de futebol? Tinha acontecido muita coisa ultimamente, e ele ainda estava tentando entender tudo aquilo.

Não fazia muito tempo, Timothy era bem parecido com qualquer garoto de 13 anos que morava em um conjunto habitacional de Londres. Então, apareceram quatro estranhos e deram a notícia de que ele tinha potencial para ser o mago mais poderoso que o mundo já vira. Coisa séria. Nem precisa dizer que, depois daquilo, tudo mudou radicalmente.

Aqueles caras — a Brigada dos Encapotados, como ele os chamava — o conduziram a outros mundos. Aquele que é conhecido apenas como o Estranho o levou ao passado. Tim presenciou a submersão de Atlântida, viu civilizações antigas e até se encontrou com Merlin. Então John Constantine o levou para os Estados Unidos e o apresentou a outros tipos mágicos da atualidade. Para Tim, a melhor parte da viagem foi conhecer Zatanna, uma mágica que ele admirava da TV, e ver que ela era ainda mais bacana pessoalmente. Em seguida, foi para o Mundo das Fadas, um reino mágico que parecia ter saído diretamente de um livro.

O Mundo das Fadas tinha sido surpreendente. Não só porque era provavelmente o lugar mais lindo e mais espetacular que ele já vira na vida, mas também porque lá ele sentira que a magia existia de verdade. Mais que isso, a magia era natural, fazia parte do dia-a-dia, de um jeito banal, porém extraordinário. Tinha conhecido animais falantes, criaturinhas abjetas e lindas fadas que eram capazes de voar e de cantar; até o ar de lá lhe dava vontade de dançar (isso se ele soubesse dançar).

Quase virou prisioneiro quando a rainha Titânia o enganou, fazendo com que aceitasse um presente. Mas ele conseguiu se livrar dela e voltar para casa. É claro que nenhuma aventura estaria completa se não existisse o risco de perder a vida. E isso também tinha acontecido com Tim. Mr. Io, seu guia arrepiante, levou-o para o futuro, para “o fim dos tempos”, e daí se virou contra ele e tentou enfiar uma estaca em seu coração. Foi um milagre esquisito Tim ter conseguido retornar vivo.

Durante todas essas viagens, sempre aparecia gente que queria matá-lo ou roubar sua magia. John Constantine, o cara de quem Tim mais gostava na turma, tinha explicado que a magia do garoto poderia seguir um caminho ou outro (o do bem ou o do mal) e que havia forças poderosas que desejavam que a magia dele seguisse o curso que elas preferissem (ou então, que ele deixasse de existir). Em outras palavras, se Tim não fosse para o lado dos maldosos, eles o queriam morto!

“Será que ainda estou em perigo?”, perguntou a si mesmo. Desde que a Brigada dos Encapotados o deixara em casa naquela noite chuvosa — havia pouco mais de um mês —, exausto e confuso, nada fora do comum tinha acontecido. De um jeito estranho, aquilo era um pouco decepcionante. “E agora? O que é que eu faço com toda essa informação?”

Apesar de Tim ter passado o tempo todo de sobreaviso, assustado, nunca tinha se sentido tão vivo. “Talvez tenha sido por ter achado que ia morrer tantas vezes”, raciocinou.

Tim pensava a respeito das coisas que tinha visto e da magia que tinha feito. Quando se conheceram, Dr. Oculto, aquele que mostrara a Tim o Mundo das fadas, tinha transformado o ioiô de Tim em uma coruja. No fim dos tempos, quando Mr. Io o atacou, Ioiô voou na frente da estaca que se dirigia a Tim e acabou morrendo por ele. O sacrifício de Ioiô salvou Tim, mas acabou com a coruja. De volta à casa dele, depois de a Brigada dos Encapotados ter ido embora, depois de Tim ter rejeitado a magia, frustrado, decepcionado e sozinho, tinha conseguido, de algum jeito, transformar seu ioiô em um pássaro outra vez. “Como será que eu fiz aquilo?”, vivia se perguntando.

Mas o pássaro tinha voado, e Tim sentia saudade dele.

Um movimento lá em cima chamou a atenção de Tim. Apertou os olhos e viu um pássaro grande voando em círculos, bem alto no céu.

— Ioiô?

Foi quando sentiu um baque contra a canela e olhou para baixo. A bola estava parada ao lado do pé dele.

— Acho que eu devia fazer alguma coisa com isto aqui — disse Tim. — Droga! — gritou, quando o time adversário veio todo correndo na direção dele. “Ah, não!” Seus companheiros de time também vinham correndo na mesma direção!

Tim tentou chutar a bola para longe, mas ela já tinha rolado para fora do alcance dele.

Puf! O garoto corpulento que sentava três fileiras à frente de Tim na aula de literatura deu um encontrão nele. Tim caiu no chão, sem fôlego, com a cara enfiada na grama, enquanto outros três garotos se jogavam sobre ele. Foi aí que ouviu um grito:

— O Saunders está com a bola! — todo mundo saiu de cima dele, deixando Tim dolorido e humilhado, sozinho no gramado.

Bem devagar, Tim se sentou. Apalpou o chão e encontrou os óculos. Por sorte, não estavam quebrados. As costelas de Tim estavam latejando no lugar em que alguém tinha enfiado o joelho. Ele se sentia pisoteado. Levantou e sentiu-se ainda pior. Viu que Molly tinha parado de correr para assistir ao fiasco completo.

— Maravilha — resmungou. — Que maravilha. — Começou a correr. Tinha a intenção de se aproximar dos outros, para provar que não era um fracote completo. Mas, em vez disso, passou pela aglomeração de jogadores e continuou a correr. Pegou velocidade e ultrapassou os limites da escola.

— Hunter! — ouviu o professor de educação física, o treinador Michelson, gritar atrás dele. — Hunter! Aonde é que você acha que está indo?

Tim o ignorou, ignorou tudo. Só enxergava borrões enquanto batia os pés com força no chão.

“Qual é o meu problema?”, Tim questionava a si mesmo. “Eu sou mesmo um fracassado. Como é que eu posso ser um mago assim tão poderoso, de quem o universo inteiro está atrás, se não consigo nem me garantir no pátio da escola? Já sei por que o Ioiô me abandonou.”

Um passo atrás do outro, a corrida fazia seu corpo estalar, mas era uma sensação boa, como se estivesse socando um adversário invisível... e esse inimigo era sua própria confusão. Sentia-se como se fosse explodir.

Essa mudança, esse acontecimento mágico, era algo importante. Importante demais para ele ficar esperando sentado, importante demais para ficar jogando aquela porcaria de futebol, importante demais para explicar a alguém. Até mesmo Molly.

Estava ofegante. Ele não podia desacelerar, não podia parar de correr. O peito dele doía, mas não parou. A dor era de verdade... ela fazia sentido. Não era igual às coisas mágicas. Para correr muito, é preciso respirar fundo. Lógica. Suas idéias iam adquirindo o ritmo de seus pés. Rainhas fadas? Chaves mágicas? Mundos passados? Tim parou e se agarrou a um poste, curvando o corpo e arfando. “Como isso aconteceu comigo? Como isso poderia acontecer com qualquer pessoa?”

Deixou-se escorregar e sentou-se na calçada, encostado no poste, com o suor escorrendo pelo rosto. Ele sabia que logo sentiria frio, suando daquele jeito no ar gelado de dezembro, mas não ligava.

“Ninguém ia acreditar em mim. Nem a Molly. E eu não quero que ela ache que eu fiquei totalmente maluco. Preciso dela como amiga. E ela não vai querer ser amiga de um louco de pedra. Bom”, pensou, ficando em pé, “provavelmente vai sim. Ela não abandonaria ninguém só porque essa pessoa merece ser internada; a Molly não faria isso”. Mas Tim não queria uma amiga que se preocupasse com ele só por pena. Queria alguém que pudesse ouvir seus segredos, mas como ele poderia falar a respeito de uma experiência que não conseguia descrever?

Tim deu uma olhada ao redor para ver onde estava e começou a rir. Tinha corrido até chegar em casa. E tinha ido pelo caminho mais comprido, passando pelas lojas fechadas com tábuas e por trás do estacionamento. Tinha percorrido uns quinze quarteirões a mais, mas naquele momento estava a apenas algumas ruas de casa, no conjunto habitacional Ravenknoll. Era melhor ir para lá mesmo.

Se contasse para ela, Molly ia achar que só tinha sido um sonho, era o que Tim pensava enquanto caminhava lentamente até a porta de casa. Ele próprio tinha dificuldade em acreditar que não tinha sido um sonho. Tinha conhecido Merlin, no tempo do rei Artur. Tinha viajado para os Estados Unidos com John Constantine em um piscar de olhos, literalmente. É claro que parecia um sonho.

Então, fez uma pausa. “Só que não foi sonho nenhum.”

Tim se arrastou até a porta, e então se lembrou que tinha deixado as chaves no casaco, no armário da escola.

“Maravilha.” Não daria para entrar na casa de mansinho, na esperança de que o pai, distraído e deprimido, não o notasse. Ia ter que tocar a campainha e se explicar. Bom, o dia já estava uma droga mesmo. Por que não piorar mais um pouquinho?

Bateu na porta. Ouviu a TV alta na sala, e então viu a cortininha da porta se mexer.

O pai abriu a porta.

— Tim?

Pai e filho se olharam. Tim viu o rosto rechonchudo do pai, o cabelo que ia rareando, a protuberância sobre a qual seu cardigã se esticava, o botão faltando. Tim ficou imaginando o que o pai via ao olhar para ele. Percebeu que ele mesmo parecia acabado; com certeza se sentia acabado.

Opa. Prestando um pouco mais de atenção, percebeu que o pai estava 100% alerta naquele dia, o que não era muito comum. Havia poucos indícios, mas estavam todos lá.

O acidente de carro que tinha levado a vida da mãe de Tim também tinha feito com que o pai perdesse um braço. Naquele dia, a manga vazia do casaco cinza do pai estava presa para cima com um alfinete, bem arrumadinha. Em alguns dias (nos piores), o senhor Hunter deixava a manga solta, isso quando trocava de roupa. Nesses dias, prestava muito menos atenção em Tim, só gritava para que ele viesse assistir a algum filme antigo em branco e preto na televisão ou perguntava, distraído, como estava a escola, mesmo que fosse sábado. Nesses dias, Tim conseguia se safar de qualquer coisa.

— Você perdeu a chave de novo? Vou dizer uma coisa, menino, você só não perde a cabeça porque está grudada no pescoço.

Tim abriu caminho empurrando-o para o lado e entrou em casa. O pai se virou e olhou para ele.

— Tim, o que é que você está fazendo em casa uma hora dessas? E cadê a sua roupa de escola? — O pai começou a segui-lo. — O que foi que aconteceu com você, menino? Se meteu em alguma briga?

Tim não respondeu, só subiu a escada até o quarto, fechou a porta e deitou-se na cama com a cara enfiada no travesseiro.

Todos os seus músculos doíam. Ele tinha sido pisoteado. Como aquilo era considerado educação?

O telefone de baixo tocou, e Tim ouviu o pai atender. “Que bom.” Aquilo significava que ele deixaria Tim em paz por mais um tempinho.

— Pois não. — disse o senhor Hunter. Ouviu-se uma longa pausa, e então ele voltou a falar em um tom um pouco irritado. — É mesmo? Eu não falaria neste tom se fosse você. Se alguém aqui é negligente, acho que é o seu professor de educação física.

“Eu tinha mesmo pensado que o telefonema era algo positivo? Agora eu vou me ferrar, com certeza.” Tim se levantou e foi até a porta. Abriu uma fresta para ouvir melhor o que o pai estava dizendo. Não era difícil, já que ele ia falando mais alto à medida que ia ficando mais irritado.

— Ah é? — disse o senhor Hunter. — E o que você me diz quando o meu garoto chega em casa com um corte na boca? Ele está se fazendo de durão, mas acho que está com uma ou duas costelas fraturadas. Aliás, eu estava saindo para levá-lo para tirar uma chapa.

A testa de Tim se franziu. O pai o estava defendendo perante a escola?

— Tudo bem — explodiu o senhor Hunter. — Mas vamos deixar uma coisa bem clara: meu Tim não é incorrigível coisa nenhuma. Até logo.

Tim ouviu o pai bater o fone no gancho. Então ouviu os degraus da escada estalando. Pegou rapidinho um livro da escrivaninha, sentou-se na cama e abriu em uma página qualquer, esforçando-se para não parecer incorrigível.

— Filho? — o senhor Hunter parou à porta, depois entrou no quarto de Tim.

Parecia pouco à vontade. Sem ter certeza de nada.

Tim não sabia o que aconteceria a seguir, por isso não sabia o que fazer.

— Oi — respondeu.

— Bom, só achei que devia... — o senhor Hunter deu uma olhada no quarto de Tim, surpreso. — O que é isso? Não tem mais aqueles caras que andam de skate nas paredes? Agora você gosta de corujas?

— Eu gosto de corujas. Mas todo mundo gosta.

O senhor Hunter se sentou na beirada da cama de Tim.

— Hummm. Está um dia lindo lá fora, não está?

“Mas que conversa mais interessante”, Tim pensou.

— É, está meio parecido com ontem. Para falar a verdade, está bem parecido com ontem.

— O que eu estou falando é que, como o dia está bem bonito, você podia ir brincar lá fora.

— Brincar? — Tim ficou olhando para o pai.

Ele parecia inquieto e preocupado, e isso não era muito comum nele. O estilo do pai tinha mais a ver com melancolia introspectiva.

— Ultimamente tenho achado você um pouco perturbado.

— Perturbado?

“Quem é esse cara”, Tim ficou pensando, “e cadê o meu pai?”

— Sério, Tim, você está se transformando em um garoto recluso. Não pense que eu não reparei.

“Meu pai reparou em mim? Isso é novidade!”

Tirando a surpresa, Tim sentiu que era pouco demais, tarde demais.

— Mas...

— Sem essa de mas — disse o pai, levantando-se. — Pode se vestir e sair para a rua e se divertir um pouco. Vá andar de skate, jogar bola ou qualquer coisa assim.

— Tudo bem. Eu vou me vestir e sair de casa para me divertir, então — respondeu Tim. — Mas prefiro me trocar sozinho, se você não se importar. Eu consigo, sabe como é. Sei amarrar o sapato e tudo.

— Tim. — O senhor Hunter deu um suspiro e saiu do quarto.

Tim trocou de roupa, colocou um jeans e uma camisa de manga comprida. Vestiu um moletom, pegou um casaco e saiu de casa.

— Por que você não sai na rua para brincar? — resmungou, imitando a recomendação vazia do pai. Como se uma rodada de pega-pega fosse resolver os problemas dele.

“Será que ele acha que eu sou uma criancinha? E que um pouco de ar fresco seria o bastante para mudar a maneira como eu me sinto?”

Tim chutou uma latinha de refrigerante vazia para a sarjeta. “Ele me chama de recluso? Olha quem está falando! Não acho que uma pessoa que fica sentada o dia inteiro na frente da TV tem tempo para reparar nessas coisas. Além disso”, Tim pensou, abaixando-se para pegar um galho quebrado, “meu pai devia ficar bem contente com a minha existência solitária”. Tim ia passando o galho pela cerca de tela quebrada que rodeava um terreno baldio. “Quem puxa aos seus não degenera, e essas coisas todas que dizem por aí.”

Jogou o galho para o lado. “Acho que eu devia ir falar com a Molly. Sentir o terreno.” Talvez, se Tim explicasse tudo com cuidado, Molly não fosse ficar pensando que ele era completamente maluco. Ele sabia que se sentiria melhor se pudesse contar para alguém. “Não tem ninguém melhor do que a Molly para guardar um segredo.” Mesmo assim...

Ele tinha chegado ao limite do parque e ainda não tinha se decidido.

— Homem — criança — ouviu atrás de si. Virou-se e viu um homem corpulento, usando um sobretudo escuro e comprido e um chapéu com abas largas bem enfiado na cabeça. Tinha o rosto largo e pelancudo, com olhos que pareciam separados demais. O homem sorriu, e Tim viu que lhe faltavam vários dentes. Tim teve imediatamente um flashback da Brigada dos Encapotados e se perguntou se ia começar tudo de novo. Então, o estranho apontou para o céu.

— Olhe lá.

Curioso, Tim olhou para cima. Um grande pássaro voava em círculos no céu... igual ao que ele tinha visto na escola. Mas logo saiu de vista e se escondeu atrás de um prédio.

— Ioiô? — murmurou Tim.

Alguém parado atrás dele disse:

— Não, não é o Ioiô.

Tim deu uma guinada para o lado e saiu correndo. De repente, teve certeza de que a pessoa atrás dele iria tentar agarrá-lo e que o cara tosco na frente dele devia ser uma distração. “De jeito nenhum!”

Tim se embrenhou pelo parque. Logo chegou a uma parte com bosque cerrado, onde tinha que pular as raízes expostas e se abaixar para não bater nos galhos. Havia folhas mortas pelo chão, e Tim ouvia atrás de si o barulho das passadas de seus perseguidores.

Aumentou a velocidade. Na verdade, movimentava os pés com tanta rapidez que só viu a rede esticada entre dois arbustos depois que já estava preso nela.

— Uou! — gritou quando tropeçou e caiu bem no meio da rede. Viu que dois homens corpulentos, com chapéus e sobretudos idênticos, seguravam as pontas da rede reforçada. Quando faltavam apenas alguns centímetros para cair de cara no chão, uma mão forte puxou sua cabeça para trás pelo cabelo e o segurou no ar. Tim engoliu em seco. Sentiu a lâmina fria de uma faca na garganta.

— Se você for um garoto esperto, não vai nem pensar em gritar — disse uma voz profunda.

“Sem problemas”, Tim pensou. Estava assustado demais para falar.

Os homens que seguravam a rede pareceram surpresos, ao ver o homem que segurava a faca no pescoço de Tim.

— O que é que você está fazendo aqui? — perguntou um deles.

“O que está acontecendo? Esses tontos não estão trabalhando juntos?” Tim fazia de tudo para não se mexer. Qualquer movimento fazia com que o homem puxasse seu cabelo com mais força, e ele definitivamente não queria que a lâmina da faca entrasse em sua pele.

— Você está aqui para ajudar? — perguntou o outro homem que segurava a rede. Ele parecia assombrado. — Ela achou que a gente não ia conseguir fazer isso?

O homem que o segurava ignorou os outros dois. Estava concentrado em Tim.

— Eu solto você se prometer que não vai fugir.

— Tudo bem — respondeu Tim, engasgado. — Eu prometo.

— Jure pelo seu nome — exigiu o homem. “Bom, isso é uma coisa completamente diferente”, Tim pensou. “Não vou falar o meu nome para esse cara. Eu aprendo com os meus erros.”

— Não — declarou Tim.

Encolheu-se um pouco, esperando o que viria a seguir.

Um sorriso torto cruzou o rosto magro do homem.

— Muito bem. Você sabe o valor dos nomes. Sei, sei.

O homem abaixou a faca, mas continuou segurando o ombro de Tim com firmeza. Sem fazer nenhuma pausa, amarrou com um movimento rápido os pulsos de Tim com tiras finas de couro. Então cobriu a cabeça do garoto com um saco. Tim sentiu o homem colocando-o sobre o ombro, como se ele fosse um saco bem pesado.

— Ei! — reclamou Tim, mas o som ficou abafado por causa do saco.

— Vocês dois, vão para casa — Tim ouviu seu seqüestrador dizer aos outros.

— Ela vai ficar louca da vida se nós voltarmos sem ele — protestou um dos homens.

— Ela não está aqui. Eu estou. E agora, não estou mais!

Com essa afirmação, o mundo pareceu sumir. Tim sentiu uma rajada de vento enquanto seu captor os transportava para algum lugar longe dali.

Tim já tinha sentido aquilo antes, quando viajara através do tempo e do espaço. Isso só podia significar uma coisa: seu captor era mágico!

 

Tim sentiu uma onda de calor. O saco que lhe cobria a cabeça ficou sufocante, e a camiseta grudava na pele suada. Mas quase não sentiu a náusea rodopiante que experimentara da primeira vez que tinha sido conduzido pela magia através dos planos da realidade.

“Acho que estou me acostumando”, Tim pensou, “estou virando macaco velho neste negócio de viagem mágica. Talvez eu devesse pensar em ser guia astral... ou diretor de cruzeiros para viagens mágicas.”

Sentiu que estava sendo colocado no chão.

— Espere aí — alguém ordenou.

Tim obedeceu. O que mais poderia fazer? O saco que cobria sua cabeça foi arrancado com brutalidade.

— Ai! — Tim gritou. O saco tinha tirado os óculos de seu rosto, arranhando a pele. Piscou contra o sol castigante e depois procurou por seus óculos no chão pedregoso. Detestava se sentir desamparado, o que acontecia quando estava sem os óculos.

Uma mão grande e enluvada apareceu embaixo do nariz de Tim. Segurava os óculos dele. Tim apertou os olhos para observar seu raptor.

Ele não tinha muita certeza se o homem estava ou não entregando os óculos a ele.

— Qual é o problema que você tem nos olhos? — perguntou o homem.

— Não é da sua conta — explodiu Tim.

O homem colocou a mão onde Tim não podia alcançar. Estava claro que não daria os óculos a Tim até obter uma resposta.

— Tudo bem. Sou míope.

O homem virou os óculos para si e olhou através deles.

— Ah, você precisa deles para ver o que está longe.

“Será que esse cara nunca viu óculos antes? Por onde será que ele anda?”

— Isso. Será que você pode me devolver, por favor?

O homem assentiu com a cabeça e esticou o braço na direção de Tim. Este agarrou os óculos, desajeitado, com os pulsos ainda amarrados. Colocou-os no rosto e examinou melhor o estranho.

O homem era alto e tinha o rosto marcado pelos sinais inconfundíveis da vida ao ar livre. O cabelo liso e comprido era mais claro que o de Tim, mas os olhos tinham o mesmo tom castanho. Usava um casaco de couro comprido, botas de couro de cano alto e luva em uma das mãos. A camisa e a calça eram de algum material macio que Tim nunca vira antes, e eram daquela cor arroxeada do anoitecer. Uma pedra grande e lisa estava pendurada em seu pescoço por um cordão de couro.

Acomodou-se em uma pedra. Parecia estar estudando Tim com a mesma intensidade com que o garoto o estudava. Tim se perguntou o que ele estava achando. Essa situação era pior do que ser raptado. Tim se sentia como se estivesse passando por uma prova, e nem sabia de que matéria.

O homem inclinou o corpo para a frente e segurou a faca curvada que, não fazia muito tempo, tinha colocado contra a garganta de Tim.

— Estique os braços — disse.

Tim hesitou. A faca parecia horrivelmente afiada.

Os olhos castanhos do homem não desgrudaram de Tim, e ele estava imóvel, como se qualquer movimento brusco fosse fazer com que Tim fugisse. O homem fez um aceno com a cabeça, como quem diz “está tudo bem, cara”, e fez um gesto com a mão enluvada para que Tim se aproximasse dele.

Tim esticou o braço e o homem cortou as amarras. O garoto esfregou os pulsos doloridos. Como estavam apertadas aquelas tiras de couro!

O homem jogou a faca no chão, ficou em pé e começou a andar de um lado para outro. Como Tim estava se sentindo menos vulnerável, e seu raptor estava mais afastado e desarmado, foi capaz de perceber o lugar onde estava. Pareciam estar em algum tipo de deserto vasto. Não havia nada verde em lugar nenhum. Era só pó, ramos secos, pedregulhos e pedras sob um céu desbotado. Tim e aquele homem provavelmente eram as únicas coisas vivas em quilômetros e quilômetros. Nada conseguiria sobreviver naquela paisagem vazia.

Finalmente, o homem se dirigiu a Tim.

— Você pode me fazer três perguntas. Essa é a regra.

Tim ergueu uma sobrancelha. Então, no lugar onde estavam havia regras, e aquele homem as respeitava. Isso deu um pouco de coragem a Tim, apesar de ele não fazer a mínima idéia de que regras eram aquelas.

— O que você quer comigo?

Pronto. Tim tinha feito sua primeira pergunta, bem direta.

— Quero saber do que você é feito.

“Humm. Será que ele está falando literalmente? Tipo carne e osso? Ou será que é em um sentido mais figurado, tipo o que me motiva?” Ocorreu a Tim que talvez a faca fosse para isso: para dissecá-lo como um sapo na aula de biologia. Tim chegou à conclusão de que, apesar de toda a esquisitice por que tinha passado, sua imaginação estava fazendo hora extra. O cara não teria tido tanto trabalho em seqüestrá-lo e leva-lo até aquele lugar para fazer uma experiência de laboratório. Não. Ele devia estar querendo alguma outra coisa. E isso fazia com que Tim ficasse confuso.

— Por quê? — ele perguntou.

“Por que interessa a esse cara o tipo de pessoa que eu sou?”

— Olhe à sua volta, menino — o homem ordenou. — Você não é estranho a este reino do crepúsculo, eu sei disso. Então, diga para mim. Você já viu bosques mais lindos ou ouviu qualquer rio produzir uma música tão melodiosa como os do Mundo das Fadas?

O homem ajoelhou-se em uma depressão rasa, e Tim percebeu que aquilo já tinha sido o leito de um rio... um rio que devia ter secado havia um tempão, pela aparência das coisas.

— Isto aqui é o Mundo das Fadas? Eu não acredito — caçoou Tim. — Eu já estive lá, e é tudo verde, lindo e cheio de flores.

O homem sorriu com tristeza.

— Já foi assim. Mas não é mais. Não aqui, onde dá para ver de verdade.

— Você não respondeu à minha pergunta — observou Tim.

— Não respondi? — o homem olhou para ele, confuso.

— Perguntei por que você queria saber do que eu sou feito.

O homem virou as costas para Tim e observou aquela imensidão vazia. Parecia cansado.

— Porque esta terra já foi viva, e eu gostaria de tê-la de volta. — Virou-se para encarar Tim. — E você pode ou não ser a chave para curá-la.

Mau. Essa não era a resposta que Tim esperava. E o cara com certeza não o estava tratando como se fosse a solução de seus problemas.

— E por causa disso você me seqüestra e me ameaça? Claro, faz muito sentido mesmo — disse Tim, com sarcasmo.

“Todo mundo está agindo ao contrário hoje”, Tim pensou. “Primeiro, meu pai dá uma de pai dedicado, e agora este aqui me trata pior do que um inimigo, apesar de só querer a minha ajuda.”

O homem continuou com as costas viradas para Tim. A faca ainda estava no chão, entre eles. Tim teve a sensação de que estava sendo testado.

— Não adianta nada tentar me deixar bravo — disse. — Não vou pegar a porcaria da sua faca.

O homem se virou, com crueldade no rosto.

— Você quer morrer aqui? — resmungou.

Tim se abaixou para pegar a faca. Quando o fez, o dedão do pé bateu em uma pedrinha, ele tropeçou e torceu o tornozelo. Caiu estatelado no chão. Furioso, frustrado e humilhado, apalpou o chão para pegar a faca, apesar de o homem estar lá parado, só observando.

Tim pegou a faca, olhou torto para ela e a jogou para o lado.

— Não gosto de ser colocado à prova — resmungou. Sentou-se de pernas cruzadas no chão. — Sempre me dou mal. — “Especialmente quando é uma prova do tipo ‘pegue a faca se for capaz’.”

O homem pegou a faca.

— Se você quer fazer a terceira pergunta, é melhor fazer agora. Está na hora.

Tim sabia exatamente que pergunta queria fazer. Ele tinha aprendido que aquilo era importante em sua primeira visita ao Mundo das Fadas.

— Qual é o seu nome?

Tim esperou pela reação do homem. Ele podia ficar bravo: era a maior falta de educação perguntar o nome dos outros. Em vez disso, o certo era perguntar: “Como você é chamado?”. Isso porque nomes têm poder, Tim descobrira, e quando a gente sabe o nome de alguém, tem poder sobre essa pessoa. O nome contava uma verdade a respeito de seu dono.

Tinha demorado um pouco para Tim aprender aquela lição. Mas seus guias da Brigada dos Encapotados tinham falado o nome dele para diversas pessoas durante suas viagens, o que, pensando bem, era um pouco perturbador. De repente, ocorreu-lhe: “Talvez Timothy Hunter não seja meu nome ‘de verdade’. Talvez seja apenas como eu sou chamado.”

Tim resolveu deixar para pensar nas implicações daquela idéia mais tarde.

O homem parecia estar considerando a pergunta, então respondeu:

— Tamlin.

Os olhos de Tim não desgrudaram do rosto marcado do homem. “Será que este é o nome verdadeiro dele?”

— Então, você sabe o meu nome — Tamlin disse. — Agora você vai me amaldiçoar?

“Interessante. É o nome verdadeiro dele.”

— Pode me amaldiçoar o quanto quiser — Tamlin disse, quase como se estivesse desafiando Tim a fazê-lo. — Você não seria o primeiro. Nem o último, imagino. Meu caminho tem sido assim.

“Mas quanta idiotice”, Tim pensou. As queixas do homem não combinavam com sua aparência rude.

— Você sente pena de si mesmo o tempo todo? Ou só quando quer amedrontar os outros?

Tamlin lançou um olhar furioso para Tim e deu um passo em direção a ele.

— Se algum homem me dissesse isso, eu cortaria o coração dele em fatias e o faria engoli-las até engasgar.

— Tenho certeza que sim — caçoou Tim.

Revirou os olhos para trás, todo dramático.

A cabeça de Tim caiu para trás quando o homem deu um tapa no rosto dele.

— Você precisa aprender a ter respeito, menino.

Tim piscou. Estava mais surpreso do que machucado, mas não ia dar àquele imbecil a satisfação de vê-lo reagir. Manteve uma expressão impassível.

— Você não tem medo mesmo, isso eu reconheço — disse Tamlin. Tim foi capaz de detectar aprovação na voz dele. — E você tem visão. Visão suficiente para saber que algumas verdades não devem ser mencionadas. — Tamlin riu. — Guarde suas conclusões para si mesmo, menino. Nem todo mundo aprecia esse tipo de sabedoria. Se você não aprender mais nada comigo, pelo menos se lembre disso.

Tim não disse nada. Ficou olhando para Tamlin. Não confiava o suficiente em sua voz naquele momento para abrir a boca.

Tamlin deu um puxão tão forte no amuleto que trazia em volta do pescoço que o cordão arrebentou. Ergueu o objeto, e a pedra brilhou naquela luz ofuscante. Tim não conseguiu definir aquela cor. Em um minuto, parecia ser azul arroxeada. De outro ângulo, brilhava prateada. De outro, era de um vermelho profundo.

— Você se deu bem, Timothy Hunter. Muito bem. Não achei que você conseguiria.

— Mas que beleza! — ironizou Tim. — Você achou que eu não ia passar na sua prova idiota? — Ele nem se preocupou em perguntar como é que Tamlin sabia como chamá-lo. Parecia que todas as criaturas mágicas sabiam muito bem que ele se chamava Timothy Hunter, como se tivesse sido publicado em um jornalzinho em algum lugar.

Tamlin ignorou o acesso de raiva de Tim. Ficou segurando o amuleto.

— Isto aqui é seu. Pode pegar.

— De jeito nenhum — declarou Tim. — Se aqui for mesmo o Mundo das Fadas, então eu conheço as regras. Se eu aceitar um presente seu, preciso recompensá-lo da maneira que você escolher. Nunca vão me enganar do mesmo jeito duas vezes.

Tamlin sorriu.

— Você aprende mesmo suas lições, não é? Bom, posso assegurar que isto aqui não é nenhum truque do Mundo das Fadas. Sabe, eu não sou um habitante deste lugar. Nós dois podemos trocar presentes sem nenhuma conseqüência.

Os olhos de Tim se apertaram enquanto tentava decidir se Tamlin estava ou não dizendo a verdade.

— Você tem o meu nome — lembrou o homem. — Eu juro por ele que estou dando isto aqui para você sem nenhuma expectativa nem preço.

— Tudo bem, então.

Tamlin entregou o amuleto a Tim. Era uma pedra pesada e fria, apesar do sol que incidia sobre ela. Tinha assumido um tom de bronze.

— O que é isto?

— Na sua mão? Não sei dizer. Pode ser que eu esteja correndo o risco de enfurecer minha rainha, ou mais que isso, para dar a você algo que não significa nada. Algumas coisas são aquilo que a gente faz delas.

Tim suspirou. “Por que é que todo mundo nesses lugares esquisitos fala por meio de charadas?”

— Já foi chamada de Pedra da Abertura — prosseguiu Tamlin. — Mas o que ela abre depende de você.

Tim ficou olhando para a Pedra da Abertura. Quando tirou os olhos dela, Tamlin era uma discreta imagem à distância. Como ele tinha se afastado com tanta rapidez? E por que ele tinha simplesmente saído daquele jeito?

Tim se colocou de pé.

— Ei! Ei, espere aí! — gritou. — Aonde é que você está indo?

Tamlin ia ficando cada vez menor. Tim começou a correr. O que faria se Tamlin o abandonasse ali no meio do deserto?

— Espere! Volte aqui! Como é que você acha que eu vou para casa?

Tamlin desapareceu atrás de uma pedra. Tim deu uma corrida bem rápida e deu a volta na rocha.

— Você não pode simplesmente ir embora... — Tamlin não estava em nenhum lugar à vista. Só tinham sobrado o casaco comprido, as botas, a camisa e a calça. Os olhos de Tim se arregalaram. “O cara está andando por aí pelado?” Tim reparou que ele também tinha deixado para trás a faca e a luva. “Estranho.” Por mais que Tim olhasse ao longe, em todas as direções, não via nada além da paisagem vazia. O único sinal de vida era um grande falcão que voava em círculos lá em cima.

“Maravilha”, Tim pensou. “Fiquei sozinho no deserto com um pássaro.”

 

Tim se recostou na pedra e chutou um pedregulho.

— Foi embora. Ele simplesmente foi embora — balbuciou.

“Não entendo. Passei na prova idiota dele. Então, por que me deixou aqui fritando? Ah, porque é outro teste”, Tim percebeu, “e é um dos grandes: conseguir voltar para casa sozinho”.

Por mais que Tim detestasse ter que reconhecer, até para si mesmo, ele queria se dar bem nesse teste. Queria o respeito daquele tal de Tamlin. “Além disso, é quente pra caramba no deserto, e, por pior que sejam a aula de educação física e o conjunto habitacional Ravenknoll, não quero morrer aqui. Depois de tudo por que passei nos últimos tempos, seria um jeito bem estúpido de cair fora.”

Tim tentou se lembrar de detalhes de filmes de aventura sobre sobrevivência no deserto. “Em primeiro lugar, cubra a cabeça. Você não vai querer morrer de calor.” Tirou o moletom e amarrou na cabeça, como um turbante.

Olhou para as roupas que Tamlin tinha deixado para trás.

— Então, ele abandonou você — disse Tim para o casaco de couro.

“Isto aqui deve custar caro”, Tim pensou. “Opa!” Pesava uma tonelada. Nem pensar em levar para o brechó de Bertram para fazer uns trocados.” Tim não ia ficar arrastando aquela coisa pesada pelo deserto de jeito nenhum.

As botas eram grandes demais para ele, não serviam para nada. Ficou olhando para a luva e a faca. Sacudiu a cabeça.

— Outra porcaria de teste.

Achou melhor deixa-las para trás. Não precisava de coisas de segunda mão.

Pegou o amuleto que Tamlin lhe dera.

— Pra que lado eu vou? — murmurou, estudando a paisagem.

A pedra ficou quente em sua mão. Assustado, Tim ficou se perguntando se a elevação de temperatura se devia ao calor de seu próprio corpo ou se a pedra tinha respondido a sua pergunta.

Olhou para as grandes pegadas de Tamlin na areia, que terminavam na pilha de roupas. Percebeu que seu caminho de volta não seria na mesma direção que ele tinha tomado. Tim pisou nas marcas profundas, virado para a direção oposta.

Fechou os olhos e se concentrou na pedra. Era mais lisa e mais arredondada em um lado do que no outro, como uma ponta de flecha, só que não era chata. Será que responderia a sua pergunta?

— Pra onde eu vou? — perguntou.

Dessa vez, falou em voz alta, como se exigisse uma resposta.

A pedra ficou quente de novo. Tim deu um passo. Então se virou para a direita e deu mais vários passos. Então a temperatura da pedra caiu. Apressado, voltou para o lugar de onde tinha saído. Mais uma vez, a pedra ficou quente.

— É igual àquela brincadeira de criança — Tim percebeu. — Está frio... está quente...

Segurando a pedra à frente como se fosse uma bússola, Tim foi achando seu caminho pelo meio do deserto.

Nada na paisagem o fazia pensar no Mundo das Fadas. A terra que visitara era vigorosa e linda, cheia de lagos, árvores, vales e criaturas de todos os tipos. Havia cheiros e sons, ar fresco e limpo. E ali onde estava não havia nada. Só cascalho. Poeira. Silêncio. Os únicos sons eram a respiração ofegante de Tim e o barulhinho que seus pés faziam no chão pedregoso. Os únicos cheiros eram de seu suor e da poeira, e o ar parecia pesado.

Tim seguia em frente. Estava ficando com sede, e isso causava diversos problemas. Primeiro, parecia não haver água em lugar nenhum. Segundo, se aquele lugar estranho fosse mesmo o Mundo das Fadas, então ele não podia comer nem beber nada, de jeito nenhum, ou ficaria preso ali. Essa era uma das regras do lugar. Mas ele não sabia quanto tempo mais ia agüentar. O sol estava começando a se pôr, então pelo menos esfriaria um pouco. Mas o vento estava ficando mais forte. A brisa esfriava o suor que cobria seu corpo.

Tim precisou parar. Jogou-se sobre os joelhos. Estava começando a tremer de fome, de cansaço, talvez até de medo. Segurou a pedra. “Eu queria estar em casa”, pensou. “Agora.”

E estava.

 

Tamlin ajoelhou-se, pegou um punhado de areia vermelha e deixou que escorresse por entre os dedos. Pegou um galho de árvore morto e o colocou na pequena sacola de couro que adquirira depois de retomar a forma humana. Os gravetos eram sinais de degradação. “Provas que minha senhora negaria”, Tamlin pensou, “assim como ela nega todas as descobertas que a incomodam”.

Ainda agachado, pegou outro punhado. Dessa vez, porém, encheu a sacola de areia. “O que não pode ser visto não ocupa os pensamentos da minha senhora”, refletiu. “Ela só enxerga o que lhe convém. E tem tanta habilidade para isso que continua vendo o Mundo das Fadas como um paraíso frondoso, cheio de belezas naturais. Ela literalmente não consegue enxergar a poeira... ela não vê o que o Mundo das Fadas se tornou.” Tamlin sacudiu a cabeça. Às vezes, desejava ser capaz de fazer a mesma coisa.

— Falcoeiro! — uma voz chamou atrás dele. Tamlin virou a cabeça lentamente, mas não se preocupou em se levantar.

— Mazaran — Tamlin cumprimentou o cortesão da rainha. — Eu não sabia que você conversava com mortais.

— Minha rainha exige a sua presença, falcoeiro. Acredito que ela esteja brava com você.

— Está, é? Logo vai ficar ainda mais.

— Poupe-me de sua insolência. Mexa-se. Agora.

— Espere. — Tamlin sentiu a ponta afiada da espada de Mazaran em sua nuca.

— Esperar o quê? — perguntou Mazaran.

— O vento mudar de direção. — Tamlin pegou mais areia. — Pronto! — Jogou a areia no rosto de Mazaran.

— Argh! — o cortesão gritou. Suas mãos cobriram o rosto com rapidez, e ele caiu, primeiro de joelhos e depois de cara no chão.

— Filho de um cão — xingou Mazaran. — Você me deixou cego.

— É, estou vendo — respondeu Tamlin. — Mas é só areia, Mazaran. Chore um pouco e, quando terminar, não vai estar mais cego do que foi a vida inteira.

Tamlin virou as costas para o cortesão do Mundo das Fadas.

— Coitado do senhor dos elfos — Tamlin gritou para a paisagem vazia. — Derrotado pela poeira.

Tamlin jogou a cabeça para trás e estendeu os braços. Seu corpo tremelicou e encolheu: braços em asas, pés em garras. Surgiram penas onde antes só havia pele. Tamlin se livrava de sua forma humana com a mesma facilidade com que descartava suas roupas, e mais uma vez transformava-se em falcão.

Suas asas bateram, conduzindo-o cada vez mais alto no céu, enquanto o cortesão continuava choramingando no chão. A liberdade do vôo era uma satisfação, e Tamlin nunca se cansava dela.

“Mazaran é igual a todos os habitantes do Mundo das Fadas”, Tamlin ia pensando enquanto deslizava na direção do castelo da rainha. “Arrogante. Desdenhoso para com os mortais. E, como todos eles, com inclinação para fazer vista grossa ao óbvio. Até que algum canalha como eu jogue isso na cara dele.”

Tamlin viu os torreões do castelo atrás da última elevação. A seus olhos, as colinas onduladas tinham perdido seu aspecto esverdeado, mas ele sabia que a maioria dos habitantes do Mundo das Fadas (talvez todos eles) só via tapetes verdejantes de capim e de flores. Tamlin enxergava a verdade, mas o resto das criaturas vivia uma ilusão.

“É assim que os habitantes do Mundo das Fadas encobrem a realidade com encantamento”, Tamlin pensou. “Escondem tudo o que é monótono, chato e falho com feitiços de glamour, disfarçando a nova realidade do Mundo das Fadas.”

Tamlin sabia que, para os habitantes do Mundo das Fadas, as coisas sempre seriam do jeito que eram. Nada mudava nunca. A capacidade de enxergar a realidade e de promover mudanças era a magia dos homens. “Minha magia”, Tamlin pensou. Tinha consciência de que essa característica, um dia, seria sua ruína. Talvez esse dia tivesse chegado.

“Será que estou lhe dando o que você quer, Titânia?”, perguntava a si mesmo. “Será que a minha verdade vai lhe dar um pretexto para cortar minha cabeça por traição? Não faz mal. Eu faço o que preciso fazer.”

“Ah, Titânia.” Tamlin sobrevoava o terreno do castelo à procura da rainha, carregando no bico o galho que recolhera anteriormente. “Gostaria que existisse uma maneira mais delicada de fazer com que o sono se afaste dos seus olhos. Eu avisei que as terras fronteiriças estavam ruindo, mas você riu e me dispensou. A degradação está pior, minha senhora. E eu não posso mais ser gentil.”

Avistou Titânia lá embaixo, adormecida sobre uma das espreguiçadeiras da varanda de trás. Ele a acordaria. De uma vez por todas.

O cabelo de Titânia se espalhava sobre um travesseiro bordado, as dobras de seu vestido elegante formavam uma composição charmosa. Tamlin aterrissou e fez a transformação para a forma humana. Tirou o galho da boca e o segurou na mão.

— Acorde, Titânia — disse. — Eu trouxe um presente para você. Uma coisa que não lhe dão com freqüência: a verdade.

Os olhos sempre mutantes de Titânia se abriram com suavidade. Dessa vez tinham uma cor violeta profunda, ainda pesados de sono.

— Você está divagando, falcoeiro — murmurou. — Acho isso um tédio.

Com um bocejo demorado, sentou-se e apoiou o corpo sobre as almofadas.

— Que presente é este que você disse que trouxe?

— A verdade — Tamlin declarou. — Uma verdade que até você terá dificuldade de ignorar.

Titânia ergueu uma sobrancelha em desaprovação.

— Você assumiu a forma de pássaro por tempo demais, falcoeiro — caçoou. — Parece que você esqueceu como falar com gentileza. E também como falar com clareza — deu de ombros, impaciente. — Não consigo entender o que você quer dizer nem que presente é esse.

— Paciência, minha senhora. Você o verá em breve. — Esticou o galho na direção de Titânia.

— Seu tolo! Você acha que eu sou tão cabeça-de-vento assim para aceitar um presente seu?

— Se você não quiser aceitar meu presente, eu a forçarei a aceitá-lo — disse Tamlin, deixando o galho cair aos pés da rainha. Então, com muita rapidez, uma rapidez que Titânia não acreditava ser possível, Tamlin voltou a ser um falcão.

Enquanto o observava deslizando na direção do horizonte, ela detectou uma mudança na atmosfera. Alguma coisa estava acontecendo. O céu ficou escuro e agourento, as nuvens se agitavam lá em cima.

“Ele acha que vou ficar impressionada com isso?”

— Tamlin — ela chamou, debochando dele. — Você me acordou para isto? Uma tempestade? Ah, se você soubesse como esses seus melodramas fazem de você uma pessoa tediosa... Como você ficou previsível. Você acha que...

“Isto aqui não é tempestade nenhuma”, ela percebeu, cada vez mais horrorizada. À medida que observava seu reino, as terras iam murchando, ficando enrugadas e morrendo. O lindo capim verdejante desbotou e assumiu um tom seco e empoeirado de marrom. As árvores nos pomares, com seus galhos cobertos de frutos suculentos, de repente ficaram nuas, e as frutas apodreciam duras sobre o chão ressequido.

Ao perceber que a verdade que Tamlin trouxera era representada pelo galho, chutou o pedaço de madeira com violência.

— Este é o seu presente para mim, meu amor? — berrou para os céus que iam escurecendo. — Esta é a sua verdade? Esta devastação?

Ela se jogou no chão, chorando, de joelhos. Agarrou-se à balaustrada de mármore, apoiando a cabeça em cima dela para tentar confortar a si mesma.

— Como é que você pôde fazer isto? — choramingou. — Eu posso até tê-lo magoado, mas a terra só lhe trouxe paz. Não consigo entendê-lo, Tamlin.

Jogou a cabeça para trás, em um gesto desafiador.

— Mas saiba de uma coisa — declarou para o ar. — O alcance do Mundo das Fadas é grande. Você não vai encontrar porto seguro em nenhum lugar. Vai ter que contar por que assassinou o Mundo das Fadas... antes de morrer.

A voz da rainha ia desaparecendo à medida que Tamlin fazia sua viagem árdua através dos mundos. Pensava apenas em Timothy Hunter enquanto deslizava por sobre a paisagem cinzenta de Londres.

“Se você tivesse um filho de coração e alma, com muito potencial para o poder, e quisesse confiná-lo a uma prisão onde seu coração ficasse preso e as asas de seu espírito definhassem, e também cuidasse para que o potencial dele não evoluísse, o melhor a fazer seria largá-lo nesta cidade.” Assim pensava Tamlin.

Tamlin não gostava de cimento, arranha-céus e cavernas criadas por torres de aço. A poluição nociva que emanava da paisagem urbana fez com que suas asas parecessem pesadas, de tanta fuligem e sujeira.

Tamlin pousou em uma árvore ao lado da janela de Timothy Hunter, com as garras presas a um galho coberto de neve. Seus movimentos bruscos derrubavam alguns punhados de neve. “Mesmo no céu, no inferno ou em qualquer um dos mil reinos que existem entre os dois, nenhuma prisão pode segurar de verdade uma criança filha da terra se o seu espírito estiver vivo”, Tamlin pensou, ainda empoleirado em seu galho, observando Timothy Hunter.

“Você conheceu a privação”, menino, Tamlin refletiu, “mas será que você já passou fome e sede de verdade? Abrigado como está, o que pode tê-lo amedrontado de fato? Será que já amou alguma coisa e lutou por ela, ganhando ou perdendo? O que você pode saber a respeito da coragem?”.

“O que você é, Timothy Hunter, e o que eu preciso fazer para despertá-lo?”

 

Tim tinha conseguido voltar vivo daquele deserto estranho, mas ninguém havia nem notado que ele tinha partido. A escola era a escola, o pai era o pai. O treinador Michelson estava só um pouquinho mais legal com ele. Essa era a única coisa que tinha mudado. Molly tinha faltado no dia em que ele voltara e, apesar de ser bom não ter que encará-la depois daquela exibição ridícula no campo de futebol, ele sentiu falta de conversar com ela.

Depois da escola, Tim foi para o quarto escrever seu diário.

 

Hoje, na escola, o chato do Henderson disse que ninguém sabe, na verdade, o que segura o mundo. E ninguém sabe por que as coisas simplesmente não desmoronam. O mais estranho de tudo é que as coisas que SEMPRE desmoronam são aquelas que não se movimentam. Enquanto as moléculas e os átomos ficam correndo de um lado pro outro, está tudo beleza. Mas, se param, danou-se. Já era.

O chato do Henderson chamou isso de entropia.

Talvez seja isso que esteja errado com o papai. Ele parou de se mexer quando a mamãe morreu. Por isso ele está desmoronando. Por causa da entropia.

Acho que a coisa toda se resume a amor e medo. Só que ninguém fala sobre amor e medo na ciência. O amor pode ser a coisa que faz as coisas ficarem se mexendo, para que elas fiquem juntas. O medo é a coisa que faz as coisas pararem e desmoronarem. Às vezes, a gente convive com os dois dentro da gente, puxando e empurrando tudo para todos os lados, fazendo com que a gente chore ou dê risada. O papai chora e ri quando assiste a TV. É essa a função da TV, principalmente. Uma coisa que fica tentando fazer você rir ou chorar.

 

Tim leu de novo o que tinha escrito. “Bom, parece bem idiota”, pensou. Segurou o lápis com força e completou: Não sei o que segura a porcaria do mundo. A menos que seja a magia.

Guardou o diário. Precisava se mexer; estava inquieto demais para ficar trancado dentro de casa.

— Vou sair um pouco — disse ao pai enquanto se dirigia para a porta.

— Não volte muito tarde — respondeu o pai, sem tirar os olhos da televisão. Ele certamente voltara a ser o mesmo de sempre.

A porta bateu atrás dele. Timothy vagou por uma Londres coberta de neve. O clima tinha ficado frio e cortante — completamente diferente daquela imensidão desértica para onde ele tinha sido levado.

“O que será que foi tudo aquilo?”, Tim se perguntava. “Como foi que eu consegui voltar para casa?” Apalpou o amuleto que carregava no bolso: a pedra que Tamlin lhe dera. “O que será que aquele cara quis dizer quando falou que de algum jeito eu era a chave para curar o Mundo das Fadas? Como é que isso pode ser possível?”

“Se eu posso usar a magia para voltar para casa, por que não posso usar a magia para fazer o Ioiô voltar para mim? Obviamente, tem umas coisas que ainda não sei a respeito da magia.”

Tim deparou com uma forma profunda desenhada na neve.

— Coitado deste anjinho — disse Tim. — Acho que você não vai muito longe com essas asinhas. Elas são pequenas demais para voar, você não acha? — Estudou o mirrado anjo da neve. — Não sei como alguém pode ter abandonado você assim, com essa aparência mutante e tal. Mas abandonaram.

Tim pensou em deitar-se sobre a neve para fazer uma asa maior para o anjo, mas achou que era melhor não. Ia parecer um bobão. Anjo de neve era coisa de criança.

Caminhou mais um pouco. Deu uma olhada na vitrine de uma loja de animais de estimação, observando os pobres cachorrinhos, com os olhos arregalados, pedindo para ser levados embora.

— Desculpem, amiguinhos — disse para eles. — Eu e meu pai mal conseguimos cuidar de nós mesmos. Não faz sentido levar um cachorrinho para aquela atmosfera.

Ouviu um tinido alto atrás de si, e todos os filhotes começaram a latir, histéricos. Tim virou-se e viu um falcão enorme empoleirado em uma cerca de ferro próxima.

Tim andou para trás, aproximando-se mais da vitrine da loja de animais. O pássaro era enorme e forte, e olhava para ele sem piscar. Enviava calafrios de reconhecimento a Tim.

— Você. É mesmo você, não é? Onde estão as facas, as redes e seus comparsas assustadores? Será que eles estão aí, pelo meio da neve, me espionando?

O pássaro olhava para ele, em silêncio.

— O que você quer desta vez? — perguntou Tim. — Mais um teste? Não, sai fora. Me deixa em paz.

O pássaro levantou vôo e se afastou.

Tim ficou olhando para o pássaro, surpreso por ele ter obedecido. Então, arrependeu-se por tê-lo mandado embora.

Saiu correndo atrás do pássaro.

— Você podia pelo menos ter me dito o que você queria — gritou para ele.

Seguiu o falcão até a praça, que mais parecia um parque, com bancos, árvores e pedaços de gramado cobertos de neve. O pássaro desceu voando em círculos, pousou e, para a surpresa de Tim, transformou-se em homem.

Um homem nu!

Tamlin.

— É você mesmo! — exclamou Tim. Então, ficou vermelho e olhou ao redor. — Humm. Virar pássaro é uma coisa. Mas você não pode sair andando pela cidade assim pelado. Mesmo que não estivesse tão frio assim aqui fora.

— É por isso que estamos aqui. Venha comigo.

— Você acha que vai achar um guarda-roupa no parque? — perguntou Tim.

Mais uma vez, tudo tinha ficado muito esquisito.

A alguns metros de distância, um sem-teto estava sentado em um banco, rodeado de sacolas de supermercado. O homem usava uma jaqueta de sarja surrada com vários emblemas costurados. Tinha piercing no nariz, e a barba era cheia e grisalha. Trazia um cachecol enrolado na cabeça calva e, no lugar dos sapatos, tinha grossos jornais amarrados nos pés. Os braços estavam cruzados sobre o peito, e ele os esfregava para mantê-los aquecidos.

— Bom dia, Kenny — Tamlin cumprimentou o homem. — Será que você pode me emprestar uma roupa?

“Então o homem-pássaro do Mundo das Fadas conhece um sem-teto de Londres”, Tim pensou. “Bem, por que não?”

— Ah, não, meu amigo — a voz de Kenny era tosca e grave, como se ele não estivesse acostumado a falar. — Onde é que eu estaria agora se ficasse emprestando as minhas coisas a torto e a direito? É tudo negócio. Você ficou longe tanto tempo que se esqueceu. Este mundo vai sugar o seu sangue se você perder os negócios de vista.

— Então vamos chegar a um acordo — argumentou Tamlin.

Kenny revirou umas das sacolas e tirou um monte de roupas amarfanhadas. Estendeu-as para Tamlin.

— Não coloque as meias até eu achar uns sapatos. — Kenny voltou a remexer nas sacolas. — Você é daqueles que gostam de botas, não é?

Para Tim, as sacolas não pareciam grandes o bastante para guardar botas, mas Kenny tirou um par de lá.

— Agora deixe-me dizer o que quero — disse o sem-teto enquanto o homem-falcão calçava uma das botas. — Já caiu neve demais na minha cabeça hoje. Preciso dar um tempo deste clima.

— Peça para o Tim — disse Tamlin, amarrando as botas. — Ele é que é o mago.

— O quê? — reagiu Tim, surpreso. — Você está dizendo que eu devo fazer alguma coisa para mudar o clima? Eu?

— Você pode até não saber nada, menino, mas isso não o torna menos mágico.

Os pelinhos da nuca de Tim se arrepiaram. Tamlin tinha acabado de dizer que ele era um idiota?

É claro que ele próprio tinha consciência de que sabia pouco de magia, mas ouvir isso da boca de Tamlin era uma coisa completamente diferente!

— A magia está em você — prosseguiu Tamlin. — E a magia responde à necessidade. E não só à sua necessidade, mas à de qualquer pessoa.

— Agora você está parecendo um daqueles malucos da Nova Era — caçoou Tim.

— E você está parecendo bravo — rebateu Tamlin. — Por quê? Porque eu disse que você não sabe nada? Então pode ficar bravo comigo o quanto você quiser, mas olha só. Olha só para o Kenny. — Tamlin colocou a mão no ombro de Tim. Ele se preparou para levar um chacoalhão ou algo assim, mas sentiu apenas uma mão forte que o guiou na direção do sem-teto. — O Kenny é velho. Se eu contasse a idade dele, você não acreditaria.

— Pode ser que eu acredite — balbuciou Tim.

— Ele é louco como uma lebre no cio, mas é um bom homem. E está com frio.

Tim olhou para Kenny. Depois de Tamlin mencionar o fato, viu que Kenny era mesmo velho. Além disso, os dentes dele estavam batendo, a pele estava azulada e os ombros estavam encolhidos até as orelhas. O velho rechonchudo tinha dado a Tamlin o que ele precisava, e só queria um pouco de calor em troca. Tim queria ajudar. Mas como?

Olhou para o céu. A neve estava caindo ainda mais pesada. Era bonito, mas era frio. “É estranho como uma coisa tão bonita pode deixar alguém tão triste”, Tim pensou. Dava para sentir o cabelo ficando molhado, os dedos dos pés formigando à medida que a neve se infiltrava nos sapatos. Kenny devia estar realmente se sentindo mal com os pés enrolados em jornais e aquele casaco fino.

Mas o que ele podia fazer a respeito daquilo? Mudar o clima era um pedido impossível. Tim abriu os braços.

— Olhe só para toda essa neve. Eu não posso fazer nada!

Tamlin soltou o ombro de Tim e deu um passo atrás.

— Como é que você sabe o que pode e o que não pode fazer sem tentar? Qual foi a última vez que você deixou de fazer alguma coisa porque poderia envergonhá-lo?

Isso surpreendeu Tim. Do que é que ele estava falando? E então lembrou: tinha saído correndo do jogo de futebol porque tinha se sentido humilhado na frente de Molly. E ele nem tinha tentado encostar na bola por medo de fazer papel de bobo. Ainda havia pouco, ficara com vontade de se deitar na neve, esticar os braços e fazer um anjo, mas não fizera nada porque não queria parecer uma criança idiota. Quantas outras coisas ele já teria evitado por medo de cometer um erro? Ou por achar que alguém ia rir dele?

Por quanto tempo Tamlin o estaria observando?

Havia um desafio no tom de Tamlin, mas não era nada cruel. Ele não estava tirando sarro dele. De algum modo, Tim sabia que, se cometesse um erro absurdo, ninguém iria rir dele. Muito pelo contrário, dariam força para que tentasse outra vez. Tim podia sentir: de um jeito todo particular, Tamlin estava tentando fazer com que, de alguma maneira, ele desse um passo à frente.

— Está certo — disse Tim. Fechou os olhos e abriu bem os braços. “Vá embora, neve”, pensou. Nada. “Neve, vá embora!” A neve continuava a cair. Para se garantir, incluiu umas palavras bonitas (afinal de contas, aquilo era magia): “Neve, retire-se para longe daqui. Eu a estou banindo para... para... o lugar de onde a neve vem, que eu não sei onde fica”.

Não adiantou nada. A neve continuava caindo sobre seu cabelo, seu rosto. Seus ombros caíram quando abaixou os braços, derrotado. Não tinha condições de olhar Tamlin nos olhos, com medo de enxergar decepção ali.

— Eu... eu tentei — disse.

— É, tentou — concordou Tamlin. — Deu para sentir o seu esforço. — A voz de Tamlin era gentil. Tim sentiu a mão do homem em suas costas. — Agora, diga uma coisa: se eu dissesse a você que estava com sede, você ia mandar trazer um rio para mim?

Tim olhou para o rosto de Tamlin.

— Que pergunta mais besta. Claro que não.

Tamlin sorriu.

Tim devolveu o sorriso quando entendeu o que Tamlin estava dizendo.

— Ahhh — disse.

Tamlin fez um sinal com a cabeça.

— Não há necessidade de carregar um rio, não é mesmo? Especialmente se um copo é o bastante. Agora tente outra vez. Eu ajudo.

Tim estava ansioso para tentar de novo. Olhou para Kenny, sem saber muito bem por onde começar.

— Há cristais rendados caindo por todos os lados — começou Tamlin. — Sinta-os.

Tim se concentrou, permitindo-se sentir a neve de verdade, como uma coisa delicada e isolada, e não como um aglomerado maciço de frio molhado.

— Eles vão caindo, parecem rodinhas voadoras de gelo — continuou Tamlin.

Não estava acontecendo nada. Era difícil demais.

— Eles estão em todo lugar — reclamou Tim. — O que eu posso fazer quanto a isso?

— Não estão em todo lugar — corrigiu Tamlin. — Há espaço entre eles. O espaço faz curvas entre eles. Dança em cima, em volta e embaixo deles. Pegue este espaço. Sinta-o. Molde-o.

Tim sentiu suas mãos se erguerem involuntariamente, como se houvesse energia se movimentando através delas, guiando-as. Sentiu o ar entre os cristais de gelo. Forçou o espaço a se abrir, separando as rodinhas voadoras de água congelada umas das outras. Nem sequer tocou com a mente aqueles flocos.

Em vez disso, trabalhou o espaço entre eles, exatamente como Tamlin tinha dito. Viu Kenny sorrir.

— Que garoto bacana você arrumou, Tamlin. Cuide bem dele.

Tim ficou de queixo caído. A neve continuava a cair por todos os lados, menos em cima de Kenny. Era como se ele tivesse uma bolha protetora que a neve não era capaz de romper.

Animado, Tim voltou-se para Tamlin:

— Você...

— Se eu ajudei? — Tamlin sorriu. — Não.

— Eu... eu me senti como se... como se estivesse dando um nó, mas não com as mãos.

— Você foi bem, Tim. Muito bem.

Era formidável ouvir aquele homem forte e contido dizer aquilo.

— Você fez isso com o seu próprio poder — garantiu Tamlin. — Este encanto foi obra sua, não minha.

Tim não conseguiu conter o sorriso aberto que se espalhou por seu rosto. O orgulho de ter conseguido fez sua pele formigar de calor, apesar da neve. “Eu consegui”, pensou. “Incrível. Eu realmente fiz isso. Eu trabalhei com a magia. Eu fiz uma coisa acontecer.”

— Tam — disse Kenny. — Se você quiser acessórios, é só vir buscar. — Estendeu um chapéu e uma luva de couro. — Foi meio difícil achar essas coisas, mas não quero que você se sinta enganado.

Tim ficou imaginando o que estava acontecendo. Como Kenny podia saber que Tamlin precisaria daquilo? Será que ele já sabia que Tamlin ia aparecer pelado em Londres?

Tamlin abaixou a cabeça e olhou para o chapéu que Kenny segurava com as mãos estendidas, mas não fez menção de pegá-lo. Tim bateu os pés no chão para se aquecer. “Por que tanta demora?” Dificilmente seria porque Tamlin não tinha gostado do que Kenny tinha escolhido para ele. Para Tim, não parecia que Tamlin ligava muito para estilo.

— Não adianta franzir a testa para mim, seu passarinho velho — caçoou Kenny. — Este chapéu é para você. Igual às ostras com suas pérolas. Então pegue logo e se anime para sair daqui. Rápido, meu amigo. O mais rápido que você puder.

— Vou levar o chapéu e a luva. Só isso — decidiu Tamlin. — O revólver eu não quero.

“Revólver?” A cabeça de Tim se virou subitamente. Tamlin estava colocando o chapéu na cabeça enquanto Kenny enfiava alguma coisa em uma das inúmeras sacolas que o rodeavam. Por que é que Kenny teria oferecido um revólver para Tamlin?

— O-o que está acontecendo? — perguntou Tim. Tamlin caminhou até ele, colocou um braço sobre seus ombros e fez com que começasse a andar.

— Está na hora de irmos embora.

Tim torceu o pescoço, tentando olhar para Kenny.

— Você nem se despediu dele.

— Tim, vamos. Agora.

“Opa,” A Brigada dos Encapotados tinha falado com ele daquele mesmo jeito brusco algumas vezes. Geralmente significava que alguém estava tentando matá-lo.

Tamlin tomou velocidade, e Tim ficou pensando se estavam sendo seguidos... e se Tamlin tinha algum destino em mente.

Antes de Tim dar mais um passo, queria respostas. Cravou os calcanhares na neve e forçou uma parada.

— Espere um pouquinho — disse. — Você ainda não me disse por que voltou aqui. Quero saber o que você quer comigo.

Tamlin parou de andar e se virou, ficando de frente para ele. Tinha a expressão séria, mas não falou nada. Tim prosseguiu:

— Na primeira vez que nos encontramos, você me seqüestrou e me ameaçou. Depois me largou em um deserto esquisito e saiu voando. E agora você aparece e...

— Tim... — interrompeu Tamlin. — Ouça bem. É perigoso ficar no mesmo lugar durante muito tempo. Não tenho tempo para explicar tudo para você aqui agora. Só posso dizer que vim aqui para pedir a sua ajuda.

— Minha ajuda? — Tim não conseguia imaginar o que aquele homem tão intenso e poderoso poderia querer com ele. — Por quê?

— Porque o Mundo das Fadas está morrendo.

Tim se lembrou de que Tamlin já tinha dito aquilo antes. Quando o tinha seqüestrado e levado para o deserto, ele dissera que a terra estava morrendo. “Mas como é que um mundo inteiro pode morrer?” O Mundo das Fadas era tão lindo, tão cheio de vida... “Se aquele deserto era mesmo o Mundo das Fadas, então está mal”, Tim pensou.

“Mas, mesmo que fosse verdade...”

— Como é que eu posso ajudar? Sou só um garoto.

— Você é muito mais do que isso, menino, e acho que sabe muito bem disso — disse Tamlin, e suspirou. — Para realmente entender a questão, você precisa saber de tudo.

“Finalmente”, Tim pensou. “Agora sim estamos chegando a algum lugar”.

— No passado, o meu mundo e o seu eram um só. A vida dos habitantes do Mundo das Fadas e a dos mortais se entrelaçavam, e uma dependia da outra. Mas um dia houve um rompimento desses laços. Uma cisão. Por causa disso, o Mundo das Fadas está definhando.

De repente, uma criaturinha alada minúscula apareceu e esvoaçou entre Tim e Tamlin.

— Você é mestre em amenizar a dimensão dos fatos, Tamlin — disse a criatura. — O lugar está parecendo o inferno.

Tim deu vários passos assustados para trás. A criatura era do tamanho dos lindos esvoaçantes que ele tinha visto no Mundo das Fadas, na corte da rainha. Mas essa criatura não era bonitinha; parecia selvagem. Tinha cabelo castanho-avermelhado desgrenhado, orelhas pontudas e dedos compridos. As asas eram translúcidas, como as de uma libélula, e os olhos eram angulosos e irrequietos. Usava uma tanga colorida e tinha corpo musculoso, apesar de não ser maior do que a mão de Tamlin.

— Amadan — disse Tamlin.

— Em pessoa. — Fez uma mesura e sorriu para Tim. Ele devolveu o sorriso. Tudo bem, Amadan era meio fofinho. A criatura disparou na direção de Tim e ficou esvoaçando na altura dos olhos dele.

— Eu sou um bobo — disse Amadan —, sou um bufão da corte. Quando a ocasião exige, também sou mensageiro. Tudo para fazer minha senhora sorrir, não é mesmo, Tamlin?

Amadan pousou no ombro de Tim e se equilibrou puxando a orelha do garoto.

— Ei! — protestou Tim.

Amadan o ignorou e se ajeitou dentro da gola do casaco de Tim. Os dedos pontudos da criatura faziam cócegas.

— Infelizmente, no momento a rainha tão graciosa está bem difícil de agradar — disse Amadan. Tim sentia a respiração da criatura no pescoço. Era surpreendentemente fria. — Eu não diria que ela está com saudade de você, Tamlin, mas tenho quase certeza de que ela gostaria muito de ter a sua companhia.

— Tim — ordenou Tamlin rispidamente. — Não se mova. Fique bem paradinho.

Tim engoliu em seco. A preocupação de Tamlin o deixou assustado. Estava sentindo o pequeno Amadan apertar sua garganta com as garras. Será que o esvoaçante sabia a força que tinha?

Tamlin ergueu a mão em um gesto apaziguador.

— Amadan, não precisa...

— Você está me interrompendo — explodiu Amadan. — É uma grande falta de educação para com o mensageiro. Apesar do risco de decepcioná-lo, Tamlin, devo insistir para que você me acompanhe ao Mundo das Fadas.

Tim sentia que os dedos de Amadan estavam crescendo e se tornando garras afiadas como navalhas. Para alguém tão pequenino, Amadan era muito forte. Estava começando a esmagar o pomo-de-adão de Tim, enquanto arranhava a pele de seu pescoço.

— Pare — engasgou Tim.

— Então, Tamlin, você vai me acompanhar ao Mundo das Fadas? Jure pelo carvalho, pelas cinzas e pelo chifre que você vai atender ao chamado da rainha.

— Ele está me machucando — sussurrou Tim. Era o único som que ele conseguia emitir. A pressão sobre sua garganta era intensa.

— Se você não for — sibilou Amadan —, vou fazer uma coisa memorável e pitoresca com o garoto.

Com o canto do olho, Tim viu Amadan se transformar de elfo travesso em uma criatura pavorosa com rosto em forma de caveira e fileiras de dentes afiados. Ficou horrorizado.

— Faça com que ele pare, por favor — Tim suplicou com a voz rouca.

Amadan puxou a cabeça de Tim para trás, como se fosse mastigar todo o seu pescoço com aquelas presas devoradoras.

— E então?

— Juro — concordou Tamlin. — Solte o garoto e deixe que vá embora. Pelo carvalho, pelo chifre e pelas cinzas, eu volto com você para o Mundo das Fadas. Vou me entregar à sua senhora.

Amadan deu uma risadinha.

— Achei que fosse mesmo.

Voou para fora do casaco de Tim e ficou esvoaçando no ar, sobre a cabeça do garoto.

Tim esfregou o pescoço e engoliu algumas vezes, tentando fazer a garganta voltar ao normal.

— Tim, aproveite bem o tempo que você tiver neste mundo — disse Tamlin com tristeza. — Nunca se esqueça de que, tanto na vida quanto na magia, o poder está nas pequenas coisas. E na verdade.

Tim ficou olhando para o homem. Aqueles conselhos pareciam de despedida, do tipo que os adultos dão quando acham que não vão voltar a ver você.

— Que coisa mais comovente — desprezou Amadan. — Vamos, falcoeiro. Já deixamos a rainha esperando tempo demais.

— Adeus — despediu-se Tamlin, colocando a mão no ombro de Tim.

— Espere — Tim agarrou o braço de Tamlin. — Aquilo que você disse. Não pode ter falado sério. — Engoliu em seco. Doía falar. — Você não vai ser arrastado nem esquartejado nem nada assim só porque... só porque...

Tamlin não disse nada. Simplesmente desapareceu das mãos de Tim. Um minuto antes estava lá, mas pareceu dissolver-se no nada e, então, não estava mais lá. Nem ele nem Amadan.

Tim caiu de joelhos sobre a neve.

— Você estava com medo de que ele me machucasse — murmurou. — E eu choraminguei e implorei. — A vergonha tingiu as bochechas de Tim e o fizeram engasgar mais do que as garras de Amadan. — E agora você está encrencado. Você disse que veio aqui atrás da minha ajuda, e em vez disso eu compliquei ainda mais a situação.

— Não se preocupe muito com o seu pai.

Tim olhou para adiante e viu Kenny, o sem-teto, ali parado.

— O quê?

— Você é surdo, cara? Eu disse para não se preocupar com o seu pai. Ele sempre foi perturbado, e sempre será. Está no sangue. Mas também acho que você já deve saber disso a esta altura.

Tim parecia confuso.

— O que é que o meu pai tem a ver com isso? Ele não sabe diferenciar perigo de... — Tim parou. Percebeu que Kenny estava olhando para ele, sorrindo.

— Espera aí um pouquinho... Você não está falando do meu pai coisa nenhuma... Você está dizendo... você está tentando dizer que o Tamlin...

Kenny saiu andando, mantendo a proteção contra a neve que Tim lhe dera.

Tim continuou sentando na neve, estupefato.

— Meu pai?

 

Tim ficou vagando pelas ruas, encolhido para se proteger do frio. Não sabia onde estava nem para onde estava indo, mas não podia ficar parado. Os pensamentos agitavam-se dentro de sua cabeça.

“Se o seu pai não fosse o seu pai de verdade, você teria percebido sozinho”, Tim disse a si mesmo. “Quando você tivesse uns 6 ou 7 anos, se não fosse totalmente desligado, teria percebido. Simplesmente daria para perceber!”

Os pés de Tim batiam com força no chão, deixando pegadas fundas atrás de si. A neve tinha parado de cair e o vento tinha ficado mais forte, fazendo com que ficasse ainda mais frio. Tim não sentia nada.

“Se você nunca duvidou que seu pai é seu pai, nem mesmo uma vez na vida, então isso deve querer dizer alguma coisa, não é mesmo?”

“Ninguém tem exatamente a mesma aparência dos pais.” Tim pensou nos garotos da escola. “O Bobby Saunders não se parece nada com o pai. E o Brian Hyde e o pai dele também não são muito parecidos à primeira vista, mas têm algumas pequenas coisas iguais.”

Pequenas coisas. Não era exatamente isso que Tamlin tinha pedido para ele procurar?

“Talvez não seja a cor do cabelo que a gente herda do pai. Talvez seja o formato do nariz, o jeito de andar, ou a atitude em geral. Ou talvez seja o tipo de corpo. Se você é um mesomorfo ou um endomorfo ou qualquer outro morfo que existir.”

Tinha chegado a uma porta. À porta de Molly. Seus pés o tinham conduzido até ali, enquanto seu cérebro dava voltas e mais voltas estonteantes. A mão de Tim se esticou involuntariamente e tocou a campainha.

Dava para ouvir gritos altos e um bebê chorando atrás da porta; depois, passos. Ergueu a cabeça, para que pudessem vê-lo pelo pequeno olho mágico na porta, e ouviu as fechaduras sendo destrancadas. A porta se abriu.

— Oi, Tim — Molly o cumprimentou. Ela usava calça de moletom azul e um blusão largo, e os pés estavam descalços. Ele reparou que as unhas dos dedos dos pés dela estavam pintadas cada uma de uma cor, como se ela quisesse transformar os pés em um arco-íris. — O que você está fazendo aqui?

— Qual é o outro morfo, Molly?

Ela pendeu a cabeça para o lado, e o cabelo escuro escorreu por cima do ombro. Sem fazer nenhuma pausa, perguntou:

— Você está falando dos filmes de ficção científica, quando o vilão se transforma em uma outra criatura?

— Não, aquilo que a gente aprendeu na escola. Endomorfo, mesomorfo e... não consigo me lembrar do outro.

Molly riu e colocou as mãos na cintura.

— Timothy Hunter. Você aparece aqui na hora do jantar em meio à neve para me fazer uma pergunta de biologia. Está louco?

Tim enterrou o queixo no peito e olhou para os tênis. Ele sabia que parecia tonto... um completo idiota. Começou a dar meia-volta para ir embora.

Sentiu a mão de Molly no ombro.

— Não, você não está louco, mas também não está lá muito bem. Dá pra ver. — Fez um gesto com a cabeça na direção da sala. — Venha, então. Entre aqui. Não posso deixar você todo triste aí, preocupado com os ectomorfos neste frio.

Ela deu um passo para o lado para que ele pudesse entrar.

— São os ectomorfos. — Tirou com a mão alguns flocos de neve do ombro do casaco dele. — Que gozado você não se lembrar deste, Tim. É o que você é. Naturalmente magro.

Ela avançou pela sala até a cozinha. A família de Molly era grande. Tim não tinha muita certeza de quantos eram, já que sempre havia algum parente hospedado com os filhos. Às vezes, os pais de Molly ficavam fora por longos períodos. Tinha um bebê em um cadeirão: ele reconheceu que era a irmãzinha de Molly, Krista. Havia meninos sujos, que tinham entre 2 anos e 7 anos de idade mais ou menos, um gordo de camiseta regata comendo uma tigela de espaguete e uma mulher magrinha no fogão. A mulher magrinha com aparência triste era a mãe de Molly, mas o gordo era estranho para Tim.

— Mãe, o Tim está aqui. Será que a gente pode comer no meu quarto? — perguntou Molly.

— Faça como quiser — respondeu a mãe de Molly. Serviu uma tigela para Molly e outra para Tim. — Só se lembre de trazer os pratos para baixo. — Entregou a tigela para Tim. — Que bom ver você por aqui, Timothy. — Fez um sinal com a cabeça na direção do gordo. — Este aqui é o meu irmão Patrick, tio da Molly.

O homem fez um aceno de cabeça para cumprimentar Tim, mas não tirou os olhos do jornal que estava lendo.

— Oi — disse Tim.

— Venha — chamou Molly, impaciente. Foi subindo a escada em direção ao quarto. Tim foi atrás dela e fechou a porta.

Molly estremeceu.

— Família — disse. — Não dá para viver com ela, não dá para vir ao mundo sem ela.

— É... — Tim ficou olhando para a tigela de massa e molho. — E apesar de estar se sentindo vazio por dentro, sabia que não era de fome. Colocou a tigela na escrivaninha bagunçada de Molly e se sentou no chão, com as costas apoiadas na cama desfeita.

— Tim? — Molly sentou-se no chão, ao lado dele. — Qual é o problema? Tem a ver com o que aconteceu na escola outro dia?

Tim olhou para ela de canto de olho.

— Na escola?

— Você sabe. Você saiu correndo do campo daquele jeito, e o treinador Michelson gritando atrás de você. Você se meteu em confusão?

Tim esfregou o rosto. A partida de futebol parecia tão remota, tão sem importância àquela altura...

— Acho que eu me dei mal, sim. O treinador Michelson ligou para o meu pai. Quer dizer...

— Timothy Hunter. Pode ir me contando o que está acontecendo com você agora mesmo — exigiu Molly. — Você veio aqui por algum motivo, e não acho que foi para comer macarrão enlatado.

Tim ergueu os joelhos e os abraçou. Por onde devia começar? Como é que ele poderia articular aquelas palavras? Dava para ver que Molly estava esperando. Precisava descobrir como fazer aquilo com urgência, mas era uma coisa importante demais. Ainda maior do que todo aquele negócio de magia. Era assustador demais até para imaginar. Ele precisava dela, mas, para conseguir ajuda, ia ter que formar frases, e aquilo parecia extremamente difícil. Impossível, para falar a verdade.

Fechou os olhos. Talvez se fingisse que só estava falando consigo mesmo fosse mais fácil. Às vezes, estar com Molly era tão confortável quanto falar consigo mesmo. Ela o refletia, como um espelho, mas com opinião e ponto de vista próprios. “Tente”, encorajou a si mesmo. “Como Tamlin disse, não deixe de fazer nada por medo de passar vergonha.” Estava com medo de que sua voz fosse falhar, que fosse chorar ou gritar. Tinha medo de fazer papel de bobo, mas tinha que se arriscar a passar pela humilhação para ser capaz de realizar coisas grandiosas.

“Não que isso fosse algo grandioso.” Mas era uma coisa grande de verdade.

— Tim. — A voz de Molly era gentil, mas insistente. — Você vai se sentir melhor. Você sabe que sim.

— Eu... eu descobri hoje... — Tim limpou a garganta e começou de novo. — Tenho motivos para acreditar que o meu pai não é meu pai de verdade — soltou de uma só vez.

Não conseguia olhar para Molly. Ouviu quando ela respirou fundo, de surpresa, e depois sentiu a mão dela em sua canela.

— Não é à toa que você está arrasado. Isso é uma coisa importante demais.

Tim olhou para ela.

— Será que eu sou tão idiota assim? Como é que eu nunca percebi?

— A gente acredita no que os pais dizem para a gente — começou Molly. — As crianças são assim. É por isso que é tão fácil para os adultos mentir para a gente.

Tim achou que ela parecia triste, como se estivesse confessando que às vezes acreditava nos pais sabendo que não deveria acreditar.

— Além disso, que tipo de indicação poderia existir? — Molly mostrou-se solícita. — Como é que você ia saber disso? Ei, nem faz muito tempo que você descobriu... tipo... os fatos da vida. E antes de você saber qual era toda a biologia por trás disso, por que você questionaria o fato? — Molly riu. — Então, no final das contas, era mesmo uma questão de biologia.

Tim sacudiu a cabeça, mas sorriu.

— Acho que eu deveria ter estudado mais, então.

— E o que foi que o seu pai disse a respeito de tudo isso?

Tim a olhou de lado.

— Qual deles?

Molly deu um empurrãozinho nos joelhos dele.

— Você sabe. Aquele que fica enchendo você por causa da lição de casa toda noite. Aquele de quem você reclama o tempo todo. Esse pai.

— Ah, ele. — Tim apoiou a cabeça nos joelhos. Fechou os olhos. Não sabia se deveria ficar bravo com o pai ou sentir pena dele. Será que o pai sabia que não era... seu pai? Será que esse era algum tipo de segredo gigantesco que pesava sobre as costas de Tim? Virou a cabeça e apertou os olhos para examinar Molly. — Não sei.

— Não foi ele quem contou? — E então os olhos escuros de Molly se arregalaram de surpresa. — Então, como é que...

Tim ergueu a mão para interrompê-la.

— É uma longa história. Nem pergunte.

— E como é que você sabe que é verdade?

Tim ergueu a cabeça e ficou olhando fixamente para a frente. Molly tinha razão. Ela geralmente tinha. Afinal, não era preciso ter... como era mesmo o termo que usavam em filmes de ação? Provas corroborativas? Quem mesmo tinha lhe dado essa notícia? Kenny o sem-teto que ele nem conhecia. Não era exatamente uma fonte confiável.

Mas Tim sabia que estava tão inquieto porque sentia que era verdade. Tinha sentido algo como um parentesco, uma conexão indescritível com Tamlin. Um parentesco que poderia ser explicado se eles fossem mesmo parentes.

— Converse com o seu pai — implorou Molly. — Você não pode aceitar simplesmente as palavras de outra pessoa. É melhor colocar logo as cartas na mesa. No escuro, as coisas ficam muito piores. Você vai se sentir melhor se souber de uma vez o máximo que puder.

Tim assentiu com a cabeça. Sabia que ela estava certa. Lentamente, levantou-se do chão e sacudiu as pernas para despertá-las. Tinha caminhado muito no frio, e parecia que um trem do metrô tinha passado por cima de seu corpo. Todos os músculos doíam.

Deu um sorriso triste para Molly.

— Será que você poderia perguntar isso para ele no meu lugar?

— Desculpa. Mas você precisa fazer isso sozinho.

— Era o que eu temia.

— Pode ser que tudo fique bem — disse ela.

— Mas existe a possibilidade de tudo ficar bem?

— Eu costumava ficar pensando que os meus pais não eram meus pais de verdade — contou Molly, jogando-se em cima da cama. Deitou de costas, com as mãos atrás da cabeça. Olhava para o teto, com uma expressão sonhadora no rosto. — Eu era filha de um pirata e de um explorador.

Tim sentou-se na beirada da cama.

— Qual era a mãe e qual era o pai?

— Variava. Às vezes o meu pai era o pirata, outras vezes era a minha mãe. Mas eles sempre eram muito mais animados do que os meus pais de verdade. E também eram mais legais — completou, com suavidade.

Tim franziu a testa. Tamlin com certeza era uma figura mais animada do que seu pai, que só bebia cerveja e assistia à televisão. Mas não era especialmente mais legal. Tim não sabia descrever Tamlin muito bem.

Afinal, de vez em quando o cara se transformava em pássaro. “Quer dizer, o que isso significa?”

Molly virou-se para o lado e apoiou o corpo sobre o cotovelo.

— Em todo caso, não faz a menor diferença, faz?

Surpreso, Tim perguntou:

— Como assim?

— Bom, no final das contas, você continua sendo você mesmo, não é? Não importa quem seja o seu pai.

Tim sacudiu a cabeça, mas não respondeu. Ela parecia não compreender que esse era exatamente o X da questão: se pudesse descobrir quem era realmente o seu pai, isso daria a Tim pistas a respeito de sua própria identidade. Não daria?

— Se você trouxer esse segredo à tona, talvez seu pai acorde. — Molly se sentou. — De repente, as coisas entre vocês possam até mudar.

— É disso que eu tenho medo — confessou Tim. — Pode mudar tudo. E se ele não souber, Molly? — Esse pensamento fez seu coração doer por causa do pai.

Molly pegou as mãos dele.

— A verdade é sempre melhor. Lembre-se disso.

— Vou tentar. — Tim fez uma pausa. — Você tem certeza de que não pode...

Molly desceu da cama e empurrou Tim na direção da porta.

— Vá — ordenou. — E me ligue assim que vocês terminarem de conversar.

Tim deixou a tigela cheia de espaguete na pia da cozinha e saiu da casa dela. Tinha ficado muito frio lá fora e, dependendo do estado em que o pai (o senhor Hunter) estivesse, ele poderia levar a maior bronca por ter demorado a voltar para casa e não ter ligado.

“Talvez seja só uma brincadeira sem graça”, Tim ia pensando enquanto corria para casa. Como é que aquilo podia ser verdade? Como é que Tamlin podia ser o pai dele, aliás? “Quer dizer, como isso seria possível?”

Tim entrou com tudo em casa, passando rapidamente pelo pai e pela televisão. Correu até o quarto do pai e revirou as gavetas da cômoda. Precisava de provas, de evidências, algo que lhe revelasse com toda a certeza quem ele era... de onde tinha vindo.

— Tim, que bagunça é essa que você está fazendo? — perguntou o senhor Hunter da porta. Tim nem tinha ouvido quando ele subira a escada.

— Estou procurando — respondeu Tim, folheando alguns papéis e diplomas de escola.

— Posso saber o quê?

“O que eu estou procurando?” Tim se sentou sobre os calcanhares. Estava procurando alguma verificação, mas não fazia a menor idéia de como isso seria. Ocorreu-lhe uma possibilidade.

— Fotos suas. De quando você tinha a minha idade. — Talvez assim encontrasse alguma semelhança.

Seria mais fácil verificar se Tim pudesse se comparar com o pai antes de ele ter ficado todo emotivo e triste.

O pai entrou no quarto.

— Bom, eu não tenho nenhuma. E, mesmo que tivesse, elas não estariam aí. Então, por favor... largue isso — ordenou de repente.

Tim olhou para o papel que segurava nas mãos. Parecia ter perturbado o pai. Devia ser importante.

— Isso? — perguntou. — É só a sua certidão de casamento. Sua e da mamãe.

Tim olhou o documento com mais atenção. “Por que a minha descoberta incomodou tanto o meu pai?” Então, reparou em uma coisa que não fazia sentido.

— Aqui diz que vocês se casaram em janeiro. — Tim virou-se para o pai. — Mas o meu aniversário é em junho.

— É — disse o pai com cuidado. — É isso mesmo.

Tim se levantou.

— Eu sou melhor em matemática do que em biologia. Sei fazer as contas. A mamãe já estava grávida de mim quando vocês se casaram. — Tim ficou meio tonto quando teve a sensação de que todo o sangue de seu corpo estava indo para a cabeça. Os ouvidos latejavam, e ele achou que estava ouvindo o barulho do mar. Virou-se e saiu correndo do quarto.

— Tim, não vá embora! — o pai saiu gritando atrás dele. — Não é o que você está pensando! Eu amava a sua mãe. Eu queria me casar com ela. Ela era...

Tim ouviu a voz do pai falhar. Ficou tão chocado que parou no meio da escada. Virou-se e encarou o pai.

— Continue — disse em voz baixa. — Ela era o quê?

— Ela era maravilhosa. Boa demais para este mundo, era o que eu costumava pensar. — O senhor Hunter deixou a cabeça cair. — Boa demais para mim, de qualquer modo. — Olhou para Tim de novo. Remexeu nervosamente nas chaves que trazia no bolso. Deu um sorriso triste. — O fato de ela ter ficado grávida, do jeito como eu via as coisas, foi muita sorte. Não tenho certeza se a sua mãe teria se casado comigo se não se sentisse obrigada.

“Será que ele sabe?” Tim examinou o rosto do pai em busca de resposta e não achou nada. “Será que ele sabe que eu não sou filho dele? Será que a minha mãe fez ele acreditar que eu era filho dele para que se casasse com ela?”

— Eu não me pareço com você — Tim acabou dizendo, sem encontrar o olhar melancólico do pai. — Você já reparou nisso?

A distância entre eles (Tim no meio da escada e o pai parado no corredor) era preenchida por um silêncio tão frágil que a resposta errada poderia fazer com que se despedaçasse.

— É — disse o senhor Hunter, bem baixinho. — Mas nunca fez a menor diferença. — A voz dele ficou mais forte. — Nunca fez a menor diferença para mim... nunca mesmo.

Tim absorveu aquilo. De certo modo, era um alívio. O pai não tinha sido traído, tinha aceitado as coisas como elas eram. E, no entanto...

Tim achou que sua cabeça ia explodir. Só que outras perguntas tinham surgido. Uma pergunta em cima da outra. Subiu correndo a escada, passou pelo pai e bateu a porta do quarto atrás de si.

Tim ficou andando de um lado pro outro naquele pequeno espaço. “Se o seu pai não é o seu pai de verdade e você só se dá conta disso quando está com 13 anos, bom, então você é um imbecil completo, não é?” Fechou as mãos. Bateu na cintura com força. “E o que é que eu sei realmente agora? Só sei que o pai que me criou não é o meu pai de jeito nenhum.”

Parou no meio do quarto e esfregou o rosto, como se aquilo fosse ajudá-lo a pensar. Sentiu a determinação surgindo em meio à confusão. “Então chegou a hora de descobrir quem é o meu pai de verdade. Que tipo de pessoa teria feito isso? Engravidado a minha mãe e saído da vida dela? E também da minha!”

Tim largou o corpo em cima da cadeira da escrivaninha. As mãos procuraram os objetos que estavam jogados sobre a mesa: uma chave, algumas moedas, um amuleto.

Tim pegou a chave e ficou brincando com ela nas mãos. Tinha sido Titânia, a rainha do Mundo das Fadas, que lhe dera aquilo, mas o presente quase custara sua liberdade. Quando Titânia jogou de repente a chave para ele, Tim esqueceu-se dos perigos de aceitar um presente de qualquer habitante do Mundo das Fadas e a pegou. Até ficou animado ao descobrir que aquela chave abria a porta de outros mundos. Mas ficou menos animado quando soube que, de acordo com as regras do Mundo das Fadas, o fato de a pegar significava que ele seria obrigado a ficar lá para servir de pajem à rainha. No entanto, Tim ofereceu a Titânia, em troca, seu Ovo Mundano (um presente de valor igual ou maior), e a chave passou a ser dele por direito, sem nenhuma obrigação atrelada.

Enfiou a chave no bolso. Então pegou o amuleto.

“Talvez meu pai não tenha fugido. Talvez ele tenha saído voando.”

Tim segurou o amuleto que Tamlin lhe dera e ficou olhando fixamente para ele. Lembrou-se das palavras de Tamlin.

— Necessidade, foi o que você disse — falou com a Pedra da Abertura. — A magia responde à necessidade. Tudo bem. Eu preciso saber. Eu preciso saber agora!

 

A rainha Titânia vagava pelos campos de seu castelo. Sentia-se cansada, pesada de tanto desgosto. A barra de seu vestido comprido cor de lavanda se arrastava pelo meio de folhas e galhos mortos, mas ela não estava nem aí. Que diferença fazia? Que diferença podia fazer agora?

Tamlin a tinha forçado a encarar a realidade: o Mundo das Fadas estava morrendo. Ela tinha sido despertada com um choque, como se ele tivesse jogado água gelada em sua cara. Como desejava que ele não o tivesse feito... Preferia o glamour dissimulado que a rodeava de beleza.

Mas a verdade tinha chegado de forma violenta. Não havia como evitar que as pedras que costumavam ser uma escadaria esplêndida se esfarelassem, que a árvore caísse ou que as trepadeiras ressecassem. Por mais que tentasse, Titânia não conseguia erguer o véu mortuário de suas terras, nem devolver a antiga cor azul limpa e brilhante ao céu cinzento, turvo e enlameado.

Titânia parou ao lado do muro coberto de trepadeiras que rodeava sua propriedade. Onde antes havia rosas vermelhas e escarlates, predominavam formas marrons e pretas retorcidas que nem podiam ser identificadas como flores, como se a força da vida tivesse sido espremida para fora delas. Esticou a mão para acariciar as pétalas que se deterioravam, mas por mais suave que fosse seu toque, era demais para os ramos petrificados: eles se desintegravam em pó.

— Ah, meu Mundo das Fadas — ela lamentou. — Você era meu coração. Se lágrimas pudessem devolver-lhe o viço, então lágrimas você teria... oceanos de lágrimas.

Tocou as trepadeiras de novo.

— Mas lágrimas não servirão para nada. — Sentiu os espinhos espetando a ponta de seus dedos e ficou olhando para as gotículas de sangue que iam surgindo. — Pode ser que seja preciso derramar sangue por você. Por nós.

Retomou sua lenta caminhada. A raiva começou a dilacerar sua tristeza. “Se for de sangue que você precisa, então terá sangue”, pensou. “Sangue do seu assassino: sangue do homem que já foi meu amado.”

Titânia parou de caminhar. Ela podia sentir uma presença tomando forma atrás de si. Tinha chegado a hora de resolver a situação.

— Minha senhora — disse Amadan. — Aqui estamos nós, dois tolos, para atender ao seu deleite.

Titânia virou-se para encará-los. Um bobo da corte em quem não se podia confiar e um homem que tinha sido sua ruína: Tamlin.

— Agradeço-lhe, meu Amadan, por atender ao meu pedido com tanta rapidez — disse. — Mas não venha me falar de deleite. Não aqui, não agora. — Voltou-se para Tamlin. — Está vendo o resultado do seu serviço, falcoeiro? — Titânia fez um gesto na direção das árvores nuas, do leito do rio seco e erodido.

— Estou vendo.

— E está satisfeito com o que vê?

— Senti-me satisfeito uma ou duas vezes na vida — respondeu Tamlin, sem alterar a voz. Titânia ficava incomodada de vê-lo assim tão calmo. Não estava conseguindo despertar nenhuma reação nele.

Tamlin suspirou.

— Mas já faz muito tempo. Naquela época, este lugar era um paraíso, e você era...

— Eu sou o que sempre fui — retrucou Titânia. — Mas você... — Cruzou os braços sobre o peito, os pulsos cobertos de jóias tilintaram ao se encontrar. — Olhe só para este ser, Amadan — disse, com desdém. — Ele não foi assim sempre, mas olhe só para ele agora. Não permita que ele o engane. Não é mais um homem que sente prazer em usar as asas de um falcão. É um falcão que acha útil fingir que é homem. O que você tem a dizer sobre isso, meu senhor de rapina?

“Pronto. Isso deve despertar alguma reação nele.” Sua dor fazia com que sentisse uma vontade desesperada de feri-lo. Por que não estava dando certo?

— Digo que você mascara seus pensamentos com suas palavras — rebateu Tamlin —, da mesma forma que escondeu a verdade sobre este jardim com feitiços de glamour.

Os olhos de Titânia brilharam de fúria, mas ela ficou satisfeita ao ver um toque de raiva nos olhos castanhos de Tamlin. Ele deu um passo para mais perto da rainha.

— Por que não colhe um pêssego daquela linda árvore, minha senhora? — Apontou para uma das poucas árvores no pomar que ainda não tinham sido tragadas pela seca. Pelo tom de Tamlin, Titânia sabia que os frutos da árvore não passavam de ilusão. — Dê uma boa mordida — caçoou.

Depois de ter quebrado o escudo implacável dele, a máscara de pedra que carregava, Titânia sabia que passariam a conversar com sinceridade. Ela não queria nenhuma testemunha.

— Amadan, deixe-nos.

O esvoaçante pairou no ar por um instante, os olhos apertados. Titânia percebeu que ele tinha ficado ofendido por ter sido dispensado. “Ele está mesmo ficando arrogante demais, a ponto de ameaçar a segurança”, Titânia observou. Tinha confiado nele por muito tempo, com muita freqüência e de maneira muito indiscriminada, principalmente depois que ela e Tamlin tinham se afastado.

— Vá — disse a Amadan.

Ele fez uma mesura suspenso no ar.

— Pois não, minha senhora. O que a agrada, agrada a mim também.

Titânia lutou contra o impulso de dar um tapa em Amadan por ser tão dissimulado. Será que a criatura achava que ela não percebia suas intenções? Mas esse problema teria que esperar; havia assuntos mais importantes a tratar.

Ficou observando enquanto Amadan voava para longe. Estava de costas para Tamlin; não queria que ele visse como estava vulnerável, e não tinha certeza se conseguiria disfarçar.

— Por que, Tamlin? — perguntou com um pouco mais de lamento na voz do que gostaria. — Por que você transformou um lugar tão bom em um inferno? — Tentava manter sua tristeza profunda afastada da voz, mas não conseguia.

— Senhora, não fui eu quem criou esta desolação.

Ela se virou.

— Não acredito em você.

— Este reino está se deteriorando há séculos! — gritou Tamlin, repentinamente furioso. — Você ainda não tinha percebido porque se recusou ver. Eu só abri os seus olhos.

Ele a segurou pelos braços. Titânia ficou assustada ao ver a paixão e a dor no rosto dele. Ficou chocada ao perceber que ele estava tão destruído por causa daquilo quanto ela.

— Sarisen, uma cidade que eu amava, agora não passa de um monte de ruínas através das quais o vento sopra — disse o falcoeiro, com a voz trêmula. — A areia vermelha sufocou a vida das cavernas cheias de jóias de Ulven.

Titânia se contorceu para se livrar do agarrão. Ela detestava um jeito assim tão direto e tinha passado a vida toda evitando esse confronto. Tamlin a segurava firme e não a deixava sair.

— Leitos de rio ficaram secos, sufocando os peixes, que agonizaram até a morte. Ossos de crianças que mal aprenderam a andar secam sob o sol.

— Basta! — gritou a rainha, com lágrimas escorrendo pelo rosto. — O que você quer que eu faça?

— Não quero que faça nada, senhora. Quero que desfaça.

Ele a soltou, e Titânia tropeçou alguns passos para trás. Esfregou os braços no lugar onde as mãos de Tamlin apertaram. Certa vez, ele o tinha feito por amor; desta vez seu toque agressivo era uma acusação. Uma invasão.

— Derrube os muros que você ergueu — disse o falcoeiro. Sua voz era suplicante. — Volte a abrir sua terra do crepúsculo completamente ao mundo. Mais do que essas pequenas frestas que permitem a alguns se esgueirarem para dentro e para fora. Permita que tudo volte a ser como era no início, quando o Mundo das Fadas tocava a Terra com seu mistério e, em troca, recebia a vida.

Titânia ficou olhando para ele. Como é que ele sabia o que ela tinha feito havia tanto tempo? Pior, ele não fazia a mínima idéia, mas o que estava pedindo era impossível.

— Você está louco.

— Estou? Todos os habitantes do Mundo das Fadas mudaram desde que a região foi afastada do mundo dos mortais. Todos vocês ficaram diferentes, todos. Você perdeu alguma coisa. Por medo.

Ela não conseguia olhá-lo nos olhos. Sabia que ele estava certo, mas não sabia como consertar aquilo. Tamlin confundiu o silêncio com discordância.

— Quando foi a última vez que riu porque teve vontade, minha senhora? — perguntou. — Você vive falando de prazer, mas quando foi a última vez que sentiu satisfação?

Ela não agüentava mais. Precisava confessar.

— Tamlin, pare. Essas coisas que você está dizendo podem muito bem ser verdade. — Abraçou a si mesma como se estivesse com medo de se despedaçar. Ansiava pelo conforto e pela segurança que já sentira no abraço forte do falcoeiro, mas sabia que aquela época acabara fazia muito tempo. — Mas eu já desfiz aqueles encantos que lancei tanto tempo atrás — explicou. — Recentemente, fiquei sabendo que a mulher, aquela mulher da Terra que o mantinha escravo, tinha morrido. Quando afinal vi o Mundo das Fadas neste estado, tentei reabrir os portais, já sem medo de perder você para ela. Mas nada mudou.

Ele sacudiu a cabeça, incrédulo.

— Então foi o ciúme que a levou a fazer uma coisa dessas? A criar os encantos entre o nosso mundo e o deles, colocando em risco todo o Mundo das Fadas?

— Isso não importa agora. — Ela não queria ficar remoendo o passado. Precisava que ele entendesse o medo que ela sentia naquele momento, a crise em andamento.

— Ouça bem — disse ela, dando um passo na direção dele. — Eu já disse: desfiz o que tinha feito. Você está entendendo? Eu disse que isso não mudou nada! Descobri que outros encantos estão sufocando o nosso mundo, e muito.

Olhou para os pés e sacudiu a cabeça, respondendo à pergunta silenciosa de Tamlin.

— Eu não sei que encantos são esses. Mas são fortes. Muito fortes. Não posso curar o abismo que criei entre o mundo dos homens e o nosso. Alguém não está permitindo que isso aconteça.

A rainha ficou examinando o rosto do falcoeiro, esperando a resposta. Ele precisava ajudá-la, precisava ajudar a todos, ajudar a recuperar o Mundo das Fadas. Mas será que conseguiria? Será que era capaz?

Tamlin assentiu com a cabeça, como se estivesse examinando a questão como um todo.

— Precisamos achar um outro tipo de esperança — disse, por fim.

 

Tim olhou à sua volta.

— E... eu consegui — gaguejou. — Mas o que eu fiz exatamente? Ficou olhando para o amuleto que ainda apertava nas mãos. “Será que fui eu que fiz esta mágica ou foi a pedra?”, ficou se perguntando. Não importava. Agora ele estava em algum lugar... Mas onde? Era um lugar completamente novo. — Não tem nada aqui que eu reconheça — murmurou.

Aquela não era a linda paisagem de que ele se lembrava de sua primeira visita ao Mundo das Fadas. Também não era o deserto desolado aonde Tamlin, que talvez fosse seu pai, o tinha levado. Era algum lugar... distorcido. Dava para sentir. Tinha o cheiro errado... como o lixo de alguns dias que o pai esquecia de levar para fora.

Tim enfiou de novo a pedra no bolso e olhou em volta. Encontrava-se no pátio de uma mansão em ruínas que já tivera dias melhores. Um muro de tijolos rodeava o terreno, impedindo Tim de ver o que havia além dele. À medida que seus olhos iam passando pelo muro, reparou que o céu tinha um tom roxo de hematoma. “Será que vai cair uma tempestade”, Tim ficou imaginando, “ou o céu é sempre assim por aqui?”

Ele deu um passo e ouviu um estalo. Olhou para baixo e percebeu que estava pisando em cima de uma pilha de esqueletos. Levantou o pé e pisou com cuidado alguns centímetros à frente, no espaço livre mais próximo; em seguida, levou o outro pé, com cuidado.

Tim se esforçou ao máximo para não começar a tremer. Caveiras com olhos esbugalhados e vazios o encaravam, e todo o pátio estava lotado de caixas torácicas, ossos de pernas e esqueletos de criaturas que ele não reconhecia.

— Que beleza — murmurou irônico. — Caí na cidade dos ossos.

Olhou para a pequena pilha ao seu lado e constatou horrorizado que os ossos tinham várias marcas de dentadas. Aquelas criaturas não tinham simplesmente morrido ali: tinham servido de refeição para alguém (ou para alguma coisa).

“Acho que não é aqui que eu quero estar”, Tim resolveu. Examinou o muro. “Não parece ser muito difícil. Não deve ser pior do que escalar o muro do estacionamento.” Mas, em Londres, perto de casa, o muro era feito para que ele não pudesse entrar. Com o coração apertado, Tim sentia que aquele muro tinha sido feito para não deixá-lo sair.

Tim escolheu um caminho para subir no muro, tentando não pisar em cima de outros ossos espalhados, o que era bem difícil. Cada vez que ouvia um estalo, encolhia-se todo.

Esticou as mãos o máximo que conseguia e enfiou os dedos entre os tijolos que se esfarelavam. Com um grunhido, deu impulso para cima. Apalpando o muro, encontrou um lugar para se segurar, então dobrou a perna até achar um lugar para apoiar o pé. Esticou a perna e fez força com os braços, avançando mais meio metro muro acima.

“É isso aí”, pensou consigo mesmo. “Moleza.”

Repetiu o procedimento: apoio para a mão, apoio para o pé, grunhido, subida. Às vezes, avançava só alguns centímetros. Outras vezes, conseguia uma distância maior. Em todas, arranhava os nós dos dedos, os joelhos e o rosto.

O suor lhe escorria pelas costas. “Já devo estar chegando ao topo”, pensou. Deu uma olhada para cima. Piscou várias vezes, para ter certeza de que seus olhos não lhe pregavam uma peça.

“Como isso é possível?” O topo do muro parecia tão distante quanto no início de seus esforços.

“Não parecia ser um muro tão alto assim lá do chão”, pensou, rangendo os dentes e esticando o braço mais uma vez. “Devia ter uns cinco ou seis metros, e um monte de rachaduras e saliências para eu me apoiar.”

Soltou um rugido. Seus ombros ardiam de tanto esforço, e os braços estavam moles por causa da exaustão dos músculos.

“Parecia uma escalada bem fácil. Só tem um problema. Nunca dá para chegar ao topo.”

— Ah-ham — Tim ouviu alguém pigarrear lá embaixo. — Atrevo-me a sugerir que você não está familiarizado com o paradoxo de Zenão. Se estivesse, escolheria um objetivo mais útil pelo qual se esforçar.

Tim torceu o pescoço para olhar para baixo. Um homem de sobretudo de veludo, camisa de babados e calça pelo joelho olhava para ele. O cabelo ruivo e ensebado caía da testa larga até a gola alta e engomada. Da altura em que se encontrava, no meio do muro, Tim não conseguia distinguir bem o rosto do homem, mas dava para perceber que tinha alguma coisa esquisita nele.

— Desça aqui, meu menino. Vamos dar início à sua educação com um aperitivo do pensamento clássico.

A voz do homem era aguda, como se estivesse choramingando, ou como se o nariz dele fosse pequeno demais. Ele também segurava um chicote de cavalo, mas não estava vestido para montar. “Isso é muito esquisito”, Tim pensou.

— Acho... acho melhor não — respondeu. Olhou para os tijolos e deu prosseguimento a seu esforço de alcançar o topo do muro.

O homem lá embaixo pigarreou de novo.

— Ah-ham. Bom, então vamos dar início a seus estudos agora mesmo. O paradoxo, da maneira como é tradicionalmente apresentado, envolve Aquiles, com seu pé manco, e uma tartaruga. No entanto, é perfeitamente possível ilustrar a conclusão de Zenão usando um garoto e um muro. Você está ouvindo, menino?

De repente, o homem estava acima dele, em pé no topo do muro. Tim ficou tão assustado que quase caiu. “Como foi que ele fez isso?”

O homem se ajoelhou, usando o chicote para se equilibrar.

— Nosso garoto sobe até o meio do muro. Ansioso para alcançar a liberdade, continua subindo, e cobre metade da distância restante. Ainda falta um trecho entre o garoto e seu objetivo, de modo que o garoto continua subindo sem parar, apesar de seus braços estarem ficando cansados.

O homem parecia não ter pressa nenhuma para chegar ao fim da história. Os dedos de Tim se agarravam desesperadamente aos tijolos ásperos. “Por que esse cara esquisitão não anda logo e acaba essa palestra idiota? Talvez esteja demorando tanto na esperança de eu perder o equilíbrio e cair lá embaixo”, Tim desconfiou.

— O garoto olha para cima — prosseguiu o homem, com sua voz chata e fininha — e, sendo ele um rapaz bem inteligente, finalmente acaba percebendo que sempre cobre apenas metade da distância. Metade, depois metade da metade, e depois metade da metade da metade. Ele sempre está a uma metade da liberdade. Aquiles nunca consegue ultrapassar a tartaruga. O garoto nunca consegue subir no muro. Creio que você esteja prestes a cair, menino — o homem disse, curvando-se para a frente de repente. — Talvez seja melhor você segurar a minha mão.

— Só porque você quer! — exclamou Tim. Ao desviar da mão estendida e aberta do homem, Tim perdeu o equilíbrio e caiu no chão. Para sua surpresa, o homem estava lá para recebê-lo.

Tim ficou de pé, todo desajeitado: não queria que aquele imbecil visse que estava atrapalhado. Limpando o jeans, tentou retomar a compostura.

— Eu conheço algumas regras — informou ao esquisitão. — Não vou aceitar nenhum favor seu. Nem presentes. Nem nada.

“Pronto”, Tim pensou, apertando os dentes, “isso deve fazer com que esse cara fique na dele. Ele precisa saber quem é quem. Quer dizer, ele não está tratando com qualquer garoto de 13 anos de Londres. Não. Não eu.”

Mas o homem só riu.

— Você ficou tempo demais no sol, meu garoto. O calor queimou o seu cérebro. Você está precisando de uma sombrinha. Agora vamos lá para dentro. Vamos. Eu insisto.

Tim detestava quando adultos falavam com ele daquele jeito.

— Eu não sou seu garoto — gritou. Chutou um pouco de poeira e depois alguns ossos na direção do homem, para se garantir. — E não vou entrar na sua... naquele lugar, seja lá de quem for. Eu não queria estar aqui. E não pretendo ficar muito tempo.

O homem sacudiu a cabeça e colocou os dedos compridos no meio da testa, como se estivesse refletindo profundamente.

— Deixe-me adivinhar. Você queria ir para o Mundo das Fadas. Só que acabou caindo aqui. E, por isso, está decepcionado e, portanto, assumiu esse comportamento insuportável.

O homem ergueu as sobrancelhas, como se estivesse esperando que Tim confirmasse sua teoria.

— Bem, menino. Isto aqui é o Mundo das Fadas. — O homem esticou os braços em um gesto abrangente. — Pelo menos a parte que interessa. Tudo o que é real. Atrás desses muros — apontou o chicote para o muro do qual Tim acabara de cair —, é tudo ilusão. Considere-se um sujeito de sorte por ter encontrado este lugar. Um oásis de racionalidade no meio de um deserto de superstição. — Ajeitou o chicote embaixo do braço.

Tim estreitou os olhos. Aquele lugar não se parecia nem um pouco com o Mundo das Fadas. Então, lembrou-se da extensão desértica que vira com Tamlin. Também não tinha acreditado que aquele lugar tão desolado fazia parte do Mundo das Fadas. Aquele homem podia muito bem estar dizendo a verdade.

— Agora devemos incluir seu nome no registro-mestre — disse o homem. — Como é mesmo o seu nome?

Tim deu uma risada jocosa. Aquele cara achava que ele era um completo imbecil? Ele não ia cair no truque mais velho de todos. Tim chutou um fêmur grande na direção do homem.

— Osso — respondeu. — João do Osso. E o seu?

— Ahh. Você é um garoto esperto, então?

Tim reparou que o sorriso do homem estava apertado de raiva. Também percebeu que havia algo de muito errado com a boca do homem. Deu um passo à frente.

O nariz de Tim se franziu. “Que fedor. Esse maluco bem que podia usar um anti-séptico bucal extra-forte.” O hálito dele tinha um cheiro podre de sangue velho e carne em decomposição.

— Por mais que eu aprecie a sua esperteza, detesto impasses — disse o homem. — Atrasos, digamos assim. Se eu for mais direto, talvez possamos nos entender com mais rapidez. — Juntou os dedos levemente e formou um pequeno triângulo com as mãos. Lambeu os lábios. — Proponho um jogo.

— Um jogo — repetiu Tim. Ele não gostou de como aquilo foi dito. Também não fazia idéia de como fugir daquele lugar, e teve que ouvir o que o cara tinha a dizer.

— Isso mesmo. E, para deixar o jogo mais interessante, pelo que devemos jogar? Quais serão as apostas? — Um sorrisinho vagaroso tentou tomar conta do rosto do homem, mas era como se os lábios dele estivessem emperrados. Eles só se moldaram em um meio sorriso. — Ahhh. Eu sei. Eu sei o que pode servir de tentação para um garoto inteligente. Eu posso lhe contar quem é o seu pai.

Tim sentiu o couro cabeludo formigar. Como aquele homem podia conhecer a razão que o levara ao Mundo das Fadas? “Será que ele consegue ler a minha mente?”

— Isso mesmo. Se você me superar no meu jogo, eu vou lhe contar a respeito do seu pai, menino.

Tim apertou os olhos.

— Não acredito em você.

— Não? Mas essa é uma pergunta cuja resposta você adoraria saber. Não tente negar.

Tim engoliu em seco. Não dava para retrucar de maneira inteligente nem fazer um blefe decente.

— E pense bem nisto — prosseguiu o homem. — Como é que eu ia saber a pergunta se eu não conhecesse a resposta?

Tim precisou reconhecer que existia algum tipo de lógica distorcida naquele argumento.

— E se eu perder? — perguntou.

— Se você perder, vai aceitar a minha tutelagem. Vai ser meu aluno. E eu vou libertá-lo de todas as suas ilusões.

Tim olhou ao redor, para o pátio, para os ossos apodrecidos e quebrados. Juntou as evidências com o odor inconfundível que emanava do homem.

— Isto é, você vai me devorar...

O homem nem parecia se incomodar por Tim ter deduzido aquilo.

— No final das contas, vou acabar devorando, sim — disse como quem não quer nada. — Mas você nem vai ligar quando essa hora chegar. Você não vai ligar nem um pouquinho. — O homem estalou os dedos.

“Caramba”, Tim pensou, “esse cara deve ser daqueles que gostam de raspar as unhas na lousa”.

— Percebe, eu vou consumir toda a sua magia antes de encostar na sua carne. Você vai se surpreender ao descobrir que a carne passa a ser algo de pouquíssima importância quando a alma já foi dilacerada.

Tim engoliu em seco, bem fundo, para impedir que a bile amarga subisse do estômago para a garganta. Que tipo de monstro seria aquele parado à sua frente?

O homem se ajoelhou e pegou dois pequenos esqueletos. Tim achou que podiam ter pertencido a esvoaçantes, as criaturinhas lindas e graciosas que ele tinha visto no palácio da rainha. Manuseando-os com uma delicadeza surpreendente, o homem ajeitou os ossos para que parassem em pé no meio da sujeira, posicionados como bonecos macabros. Sem carne. Só ossos.

Tim olhou para o muro mais uma vez. Depois, para a mansão. Depois, para o homem. Que escolha ele tinha?

— Tudo bem — concordou.

“Além do mais”, pensou, “pode ser que eu ganhe”. Em todo caso, ia dar o melhor de si. O homem voltou a ficar de pé.

— Bravo! — disse. Bateu as mãos tão de leve que nem fez barulho. — Fico contente por sermos capazes de resolver nossas diferenças de maneira tão civilizada. Agora temos mundo e tempo suficientes para nos conhecermos melhor, como dizia o poeta.

Tim se encolheu quando o homem colocou a mão em seu ombro. Tentou tirá-la dali, mas ele estava segurando bem firme.

— Eu gostaria de explicar a você o axioma que governa a minha vida. — O homem conduziu Tim na direção da mansão agourenta. — Aqui está o centro de tudo o que eu faço. Fronti nulla fides, meu saboroso garoto. — Passou o braço pela frente do rosto, cobrindo a boca, e esfregou os dedos nos lábios como se estivesse pensando profundamente. Quando abaixou a mão, Tim ofegou. O homem tinha na boca três fileiras de dentes afiados.

— Não confie nas aparências — declarou o homem.

“O que será esse cara?”, Tim pensou. Ficou olhando para as fileiras de dentes, que se estendiam de uma orelha à outra, como se as mandíbulas do homem pudessem se desconjuntar e abrir o bastante para engolir Tim por inteiro. No meio, onde geralmente ficava a boca dos seres humanos, havia mais duas fileiras de dentes, uma imediatamente atrás da outra. E todos os dentes pareciam afiados como navalhas.

O homem caminhou na direção da mansão em ruínas, arrastando Tim consigo.

— Como você terá a oportunidade de ver, eu tenho uma vocação — explicou —, um objetivo bastante singular e satisfatório. Estou simplificando o mundo.

Tinham chegado à soleira da enorme casa. O coração de Tim batia forte, mas ele sabia que não havia como voltar atrás. O velho Dentuço se assegurara daquilo. A única esperança de sobrevivência de Tim era, de algum modo, vencer a criatura.

A porta se abriu. Tim entrou e ouviu o homem trancar a porta atrás dele. A primeira coisa que Tim percebeu foi o cheiro de morte e de algum produto químico, que fez com que se lembrasse do laboratório de ciências da escola.

Tim estava em um corredor escuro e cavernoso. Demorou um minuto até que seus olhos se ajustassem à luz. Quando isso aconteceu, ficou boquiaberto. Diante dele havia fileiras de vitrines, cada uma com um animal surpreendente dentro, como se fosse um museu. Havia também criaturas empalhadas, umas colocadas sobre pedestais, outras presas a quadros de exposição. Todas tinham um cartão de identificação, apresentando seu número de espécime.

— Estão todos... estão todos mortos — constatou Tim.

— Estão? — perguntou o homem. — Como é que você pode dizer que uma criatura está morta se nem foi provado que ela algum dia viveu?

Tim deu meia-volta e encarou o homem perverso.

— Por que você fez isso com eles?

O homem não ficou nem um pouco perturbado. Na verdade, parecia estar gostando do ataque de Tim.

— Ah, que satisfação — disse. — Um aluno aplicado. Vou gostar de você, menino. É tão prazeroso limpar as mentes juvenis do ranço da credulidade... Mas, no que diz respeito à sua pergunta, eu já respondi. Eu me dedico a simplificar o mundo. Com o tempo, você vai compreender que...

— Cale a boca! — gritou Tim, cortando o discurso do homem. — Só fique quieto.

— Perdão? — Tim percebeu o tom irritado na voz do homem, mas não estava nem aí. Só queria que ele parasse de falar um instante. Precisava pensar.

Tim virou-se lentamente para encarar seu nefasto adversário.

— Mudei de idéia a respeito do seu jogo.

O homem colocou seu rosto a apenas alguns centímetros do de Tim.

— Você concordou com o jogo, rapazinho. — Tim percebia que cada sílaba estava carregada de ameaça. — Agora você não pode desistir de jogar.

— Não estou dando para trás — explicou Tim. — Só quero mudar os termos da aposta.

O homem retesou o corpo e cruzou os braços, só esperando. Parecia cheio de suspeita. “Certo. Deixe que ele fique um pouco preocupado para variar.”

— Não quero que você diga o nome do meu pai depois que eu vencer — disse Tim, reunindo toda a sua coragem e bravura. — Eu quero saber o seu nome. — “E assim que souber”, Tim pensou, “vou destruí-lo”.

— Ah, quanto fogo. Você vai se transformar em sua própria raiva, menino. — O homem deixou a cabeça pender para o lado. — Vou ser generoso. Se você de fato conseguir me vencer no meu jogo, eu lhe direi os dois nomes! O meu e o do seu pai. E você vai ter merecido, com toda certeza. Eu aprendi a me dar bem em esconde-esconde, sabe como é — disse sorrindo, e Tim precisou desviar o olhar daquela boca grotesca.

O homem se virou e se dirigiu para uma pesada porta dupla. Pegou nas maçanetas e olhou para trás, por cima do ombro, para Tim.

— Eu o deixarei sozinho por um momento. Se você precisar de mim, estarei no conservatório, tocando a minha flauta.

O homem atravessou as portas, e elas se fecharam atrás dele com lentidão.

Tim sentou-se no degrau mais baixo de uma escada cheia de curvas. Enterrou o rosto nas mãos, finalmente liberando todo o medo que se acumulava dentro dele desde que a criatura aparecera.

— Caramba — balbuciou. — O que foi que eu fiz?

 

Tamlin voava em círculos sobre o Mundo das Fadas. Viu outro lugar morto. Outra lenda engolida pelo deserto. “Será que aqui era Arraune, onde as mulheres do lago teciam água e suspiros em seda azul esverdeada? Ou seria Tellis, onde as esperanças perdidas perambulavam pelas ruas, implorando aos estranhos que as levassem com eles? Não dá para saber. Alguma coisa engoliu o coração deste lugar. A vida dele se esvaiu.”

Em sua viagem triste e cansativa, Tamlin via terras se desintegrando por todos os cantos. Estavam sumindo. “O Mundo das Fadas não é nem sombra do que era quando seus portões se abriram para mim pela primeira vez”, observou.

Tamlin lembrou-se da época em que ainda não havia se transformado em morador do Mundo das Fadas. Fazia tanto tempo, talvez séculos. Ele não tinha mais de 20 verões de idade, e já tinha roubado rebanhos inteiros de gado dos vizinhos que não eram de seu clã. Tinha assassinado um primo distante que pusera fim à castidade de sua irmã. Os homens do lugar de onde vinha cantavam sua coragem. “Achavam que eu era um cavaleiro”, pensou. “Mas eu era um covarde. Agora sei disso.”

Tamlin prosseguiu seu vôo, mas passou a enxergar só o passado, e não a terra ressecada lá embaixo. “Eu não acreditava em nada nem em ninguém. Em mim mesmo, menos ainda. Eu era um pirralho tosco e arrogante, e poderia ter me transformado em alguém desprezível. Mas fui agraciado com a visão de um mistério. Um mistério tão precioso quanto a própria vida. O Mundo das Fadas.”

Ele se lembrava de ter conhecido Titânia naquela noite fatal, sob o luar. Por que ela tinha penetrado no mundo dele, não sabia até agora. Mas, uma vez que o fez, aquilo transformou sua vida para sempre. Porque tinha sido ela que o levara até ali, Mundo das Fadas. E, por mais que tivesse sido prisioneiro, apenas nos últimos anos começara a reclamar. E, mesmo assim, enquanto lutava contra os choramingos e os humores de Titânia, o Mundo das Fadas sempre o tinha recompensado.

“A terra do crepúsculo me desafiou a ter fé na minha própria loucura”, reconheceu. “A abraçar o que tinha sido escondido de mim durante toda a minha vida desgraçada e cautelosa: o mundo em volta de mim e o mundo dentro de mim. A terra me ensinou a viver. A rir. E, é claro, também a amar.”

Agora, a Terra do Verão estava morta. Tinha sido estrangulada e desprovida de tudo o que tinha. “Este deserto vem da alma do assassino do Mundo das Fadas.” Tamlin estava determinado a encontrar a fonte maligna dessa devastação. E depois? “Quem quer que seja, aquele que pratica esta magia cruel pode acabar com sonhos com enorme facilidade, parece. Veremos como essa criatura se comporta perante alguém cujos sonhos já se perderam faz muito tempo.”

Enquanto voava em círculos baixos, em busca de seu inimigo, uma idéia confortava Tamlin. “Pelo menos eu não trouxe o garoto para este inferno, para enfrentar esta batalha. Que surpresa é ter que agradecer Amadan por alguma coisa, mas preciso agradecê-lo por isso. Se aquele esvoaçante traiçoeiro não tivesse me interrompido, eu teria trazido o garoto para cá, e teria me arrependido. O mundo dele até pode ser desprovido de sonhos, mas pelo menos lá ele está seguro.”

 

“Que tipo de maluco construiria uma casa dessas?” Tim tinha acabado de chegar ao fim de mais um corredor sem saída, que levava a lugar nenhum. Só uma parede sem nada. Deu meia-volta e retornou à passagem principal. O tapete macio e bordado a seus pés e as fileiras de candelabros sobre sua cabeça não faziam nada para disfarçar o fato de que a casa era uma armadilha. Pura e simplesmente.

Tim lembrou-se de outra questão de biologia. Tinha acabado de cair na prova sobre o comportamento animal. A questão era a seguinte: “Nem todos os carnívoros são _________, mas todos os _________ são carnívoros”. A tarefa era preencher os espaços, e tinha sido fácil. A resposta era predadores.

“Predadores não querem simplesmente matar suas presas e devorá-las”, Tim lembrou. “Assim seria fácil demais. Os predadores gostam de perseguir e de observar sua refeição. Para o predador, isso é um grande jogo. Um jogo. E foi exatamente isso que esse cara sugeriu.” Tim não teve dúvida de que aquela casa era o palácio dos sonhos de qualquer predador.

Nenhuma porta tinha tranca, portanto não dava para se esconder atrás de alguma delas. Na cozinha, não havia nenhuma faca por perto para se defender. “Não que eu tenha encontrado a cozinha. Na verdade, esse louco provavelmente come tudo cru mesmo.” Foi o que percebeu enquanto percorria os longos corredores e espiava através de entradas em forma de arco.

Tim se viu de volta à porta da frente. Coçou a cabeça. A casa era um labirinto, com salas que levavam a corredores que voltavam para salas. Tudo era retorcido e se abria onde não devia. Ele não sabia muito bem como tinha voltado ao lugar de onde saíra. Ficou parado, com as mãos na cintura, tentando compreender onde estava.

À esquerda, do outro lado da porta dupla e pesada, Tim ouvia o som alegre de uma flauta. O esquisitão não estava brincando. Ele gostava mesmo de música. E nem era tão ruim assim. “Aliás, ele toca de maneira fenomenal, levando em conta aqueles dentes.” Se tivesse uma boca como aquela, Tim nunca teria escolhido um instrumento de sopro para tocar.

À sua frente, a sala se abria para a nojenta área de exposição, cheia de caixas de vidro, pedestais e criaturas tristes empalhadas. Tim tentou não olhar nenhuma delas nos olhos. O teto era bem alto naquela área, e havia pequenos balcões de ambos os lados. “A escada em espiral do outro lado da sala deve dar acesso àquele mezanino”, Tim deduziu.

À direita estava a ampla escadaria de mármore que conduzia aos andares superiores. Tim gostaria de ter prestado mais atenção na disposição da casa quando estava do lado de fora. Lembrou-se dos torreões com janelas e...

Janelas! Talvez ele pudesse usar a pedra que Tamlin lhe dera para quebrar o vidro e fugir. Mas ele podia simplesmente cair de novo no pátio com o muro que não parava de crescer, embora preferisse ficar do lado de fora a continuar preso ali.

Tim já tinha tentado desejar sair dali com a pedra, mas não tinha acontecido nada. O amuleto nem tinha a mesma aparência dentro daquela casa horrorosa. Tinha perdido o lustro e o brilho, parecia uma pedra qualquer. Era como se a mansão ou aquele homem tivesse anulado a magia da pedra.

“Mas uma pedra é sempre uma pedra.” Tim saiu correndo em direção às cortinas de brocado que bloqueavam a luz. Puxou-as com brutalidade para o lado.

Seus ombros caíram. As janelas tinham grades, e pareciam ter uma malha de aço incorporada a elas.

— Que burrice. — Tim deu uma bronca em si mesmo. — Esse cara joga este jogo há anos... talvez séculos. Você achou mesmo que seria tão simples assim?

A frustração tomou conta dele. Afastou-se das janelas com os punhos fechados, e quando cruzou a passagem em forma de arco, deu um soco no batente com tudo.

Crrrréééééc.

Tim arregalou os olhos de surpresa quando viu um painel de madeira se abrir na parede ao lado da passagem. Ficou olhando para o punho e depois para a abertura escura. Uma passagem secreta. “E parece pequena demais para aquele esquisitão entrar. Excelente!”

Tim ergueu o corpo até a pequena abertura e fechou a portinhola atrás de si. Havia poeira por todo lado, e ele tossiu na manga, tentando abafar o som. Agora que tinha achado um lugar para se esconder, não queria entregar os pontos só por causa dos ácaros!

Os olhos de Tim se ajustaram à semi-escuridão do espaço apertado, e ele viu que era, na verdade, o início de um túnel que se ramificava em todas as direções. Começou a engatinhar, com a intenção de se afastar o máximo possível da entrada. “Apesar de ele não caber muito bem aqui”, Tim reconheceu, “aquele cara deve saber da existência desta passagem secreta”.

Tim seguiu pela primeira ramificação, e seu coração se apertou. Ela se abria exatamente no grande salão principal. Não havia porta secreta para protegê-lo e a abertura estava escondida atrás de uma vitrine de exposição. Tim notou que estava exatamente na altura do olhar do louco. Se o homem estivesse em pé em qualquer lugar do salão, o teria visto na mesma hora.

“Talvez eu possa entrar mais para o fundo do túnel”, pensou, voltando a engatinhar. Chegou a uma curva e deu de frente para um lance de escada. Ali quase dava para ficar em pé, então se abaixou um pouco e começou a subir. Depois de voltas e mais voltas, Tim já não sabia se estava na parte da frente ou de trás da casa. Não fazia diferença em que lugar estava, desde que o Dentuço não o encontrasse.

Chegou a um patamar e se apoiou na parede, tentando compreender onde estava.

— Ooops!

Caiu com tudo para trás, de costas.

— Ai! — reclamou.

Sentou-se e cruzou as pernas. “Não era uma parede”, percebeu. “Era só uma tela pintada para parecer uma. Espertinho.”

“Aqui tem todo tipo de lugar para se esconder”, Tim observou, quando voltou a engatinhar. “E também é um bom lugar para alguém vir dar um susto em você enquanto estiver escondido.”

Tim achou uma sala que parecia promissora. Era cheia de frestas, brechas e porcarias, como baús e montes de tecido. Ele podia se esconder em um baú ou se cobrir com um dos panos para fingir que fazia parte da mobília.

Tim foi rapidamente até o baú. Estava estendendo a mão para abri-lo quando sentiu um arrepio na nuca. Tinha alguma coisa errada. Olhou para trás e engoliu em seco. Uma fileira de facas afiadas saltava da parede atrás dele, com as pontas em sua direção. Ele estava bem na linha de fogo. Olhou novamente para o baú.

— Aposto que se eu... — murmurou. Precavido, afastou-se do baú. Encontrou um atiçador de brasas ao lado da enorme lareira e o apanhou. Deitou-se no chão o mais longe possível do baú, mas de modo que pudesse alcançá-lo com o ferro. Segurou o atiçador com as duas mãos e levantou a tampa do baú com ele.

Twik! Twik! Twik!

As facas voaram pela sala. Sem o corpo de Tim para apará-las, foram se fincar na tapeçaria pendurada na parede do outro lado.

O atiçador caiu no chão com um ruído. O baú era uma armadilha. Se Tim o tivesse aberto de frente, teria se transformado em uma almofadinha de agulhas. Dava para sentir o suor se formando na testa. Precisava ter mais cuidado: cada sala podia ter sua própria armadilha mortal.

Elevou o corpo até se sentar e então largou o peso sobre os calcanhares.

— Todas essas salas e corredores e altos e baixos dão a impressão de que a gente vai ficar a salvo — murmurou —, mas só até a gente entrar lá e descobrir que é uma armadilha.

Ele se sentia exausto. Como poderia sobreviver àquele jogo? O que mais estaria à espreita, pronto para empalá-lo, sufocá-lo ou mantê-lo prisioneiro até que aquele homem aparecesse? Respirou fundo e sacudiu a cabeça.

— Não pense nisso — disse a si mesmo. — Ficar vivo. É nisso que você precisa pensar agora.

Ficou em pé e foi até as facas, que estavam enfiadas na parede até o cabo. Será que ele ousaria encostar nelas? Pegaria uma para servir como arma? Até onde sabia, podiam muito bem estar embebidas em veneno. Resolveu arriscar e fechou os dedos em volta do cabo preto esculpido da faca à sua frente e puxou.

A faca nem se mexeu. Tentou de novo. A mesma coisa. Era como se a lâmina estivesse enfiada em cimento endurecido.

— Bom, você não serve para nada — disse à parede de facas.

“Continue jogando”, lembrou a si mesmo. “Se você se concentrar em ficar inteiro, todo o resto vai se resolver sozinho. Pelo menos é assim que funciona nos contos de fadas”, pensou.

Tim retomou sua busca por um lugar para se esconder, ou ao menos para encontrar uma maneira de estar sempre um passo à frente de seu anfitrião predatório. Reparou que o som da flauta tinha cessado, mas não tinha certeza se era por estar fora do alcance do som ou porque o homem tinha começado a caçá-lo.

“Contos de fadas. Porcarias de contos de fadas.” Tim se ergueu até uma pequena abertura na parede. Como era de se esperar, conduzia a outro túnel. Este estava bem empoeirado, como se não fosse usado havia muito tempo. Aquilo pareceu um bom sinal para Tim.

“De certo modo, os monstros nunca parecem tão reais quanto os príncipes e as princesas”, Tim pensou. “Parece que os ogros e os gigantes nunca têm a mínima chance. Até os alfaiatezinhos corajosos e as órfãs fazem picadinho deles. E vivem felizes para sempre. É sempre assim que as histórias acabam.” Bom, só que agora ele estava em um conto de fadas da vida real, completo, com seu próprio monstro, e assim percebeu o quanto aquelas histórias eram improváveis.

“Provavelmente porque são contadas por adultos. Mais mentiras...”

Tim viu uma claridade no fim do túnel em que estava. Será que podia mesmo ser uma saída? Já que não havia pegadas na passagem estreita, e havia um monte de teias de aranha, talvez fosse uma saída de que o homem tinha se esquecido. Tim tomou velocidade, batendo os joelhos e a cabeça no percurso até o fim do túnel.

— Uau! — exclamou.

O túnel se abria sobre uma plataforma estreita. Se Tim tivesse ido mais rápido, teria caído direto para o outro lado. Era uma queda livre de uns dez metros.

Olhou para baixo e viu um pátio cheio de ruínas e ossos. No topo de uma pilha de esqueletos, havia uma menininha, certamente uma vítima recente. Ainda estava usando um lindo vestido esvoaçante e trazia uma tiara na cabeça. Parecia ser uma princesinha, ou uma menina que estava brincando de se fantasiar. O corpo estava retorcido e quebrado. Ele não sabia dizer se aquele homem horroroso a tinha matado ou se ela tinha saltado para a morte do exato lugar onde ele se encontrava.

Tim encheu-se de horror e de tristeza profunda pela menininha. Começou a engasgar. “Talvez ela fosse inteligente e corajosa. Talvez tudo tivesse dado certo para ela se estivesse numa historinha de ninar. Mas não estava. E eu também não estou. Então, preciso me recompor.”

“Isto aqui está indo de mal a pior para pior ainda.” Tim rangeu os dentes. Estava determinado a não permitir que aquele homem bestial o superasse.

— Eu não vou desistir! — declarou. Sua voz ecoou pelo pátio. — Simplesmente, não vou desistir! Eu vou ganhar de você por mim, por aquela menininha por esta terra... seja ela o Mundo das Fadas ou não!

Tim tentou se acalmar, recuou e começou a procurar outro lugar para se esconder. Por que estes túneis são assim tão baixos?, Tim se perguntou. “Será que o Cara Arrepiante cabe aqui? Fico imaginando se aquele sujeito anda muito de quatro. Acho que ele é maluco o bastante para isso.” A mente dele divagava para distraí-lo da visão terrível da menina.

“Ou talvez...” Tim parou de engatinhar. Ficou paralisado com uma mão longe do chão e um joelho erguido. “Ou talvez seja por que ele não ande sempre de pé. Talvez ele não tenha sempre duas pernas. Ele pode se transformar em alguma espécie de animal quando está em casa.”

Tim pousou a mão e o joelho no chão. Todos os músculos de seu corpo doíam por causa de sua jornada desajeitada pelas idas e vindas naquela mansão bizarra. Continuava sendo perseguido e ainda não tinha encontrado nenhum lugar para se esconder.

Uma nova idéia ocorreu a Tim. Talvez se esconder não fosse a melhor opção. “Os outros... as vítimas anteriores”, raciocinou, “parece que todos tentaram se esconder e olhe só o que aconteceu”.

Mas ele precisava fazer alguma coisa. Não podia ficar lá simplesmente esperando para ser transformado em petisco. Mas o quê?

Tim chegou a uma passagem arqueada para um corredor comprido com chão de mármore e várias portas fechadas.

Ficou em pé e tentou abrir com cuidado a porta mais próxima dele. Estava trancada. Surpreso, experimentou a maçaneta enfeitada mais uma vez. Em todas as suas explorações, ainda não tinha encontrado nenhuma porta trancada. Pelo menos até aquele momento.

“Isto é mesmo interessante...”

 

Se a porta estava trancada, então era óbvio que o dono da casa não queria que ninguém entrasse ali. Por isso mesmo, era o lugar onde Tim queria estar.

Mas como ele iria entrar? Tim enfiou as mãos no bolso enquanto pensava sobre o assunto. Apalpou a pedra que Tamlin lhe dera. Como não tinha funcionado antes, ele não achava que fosse voltar a funcionar. Não naquela situação nefasta.

Os dedos da outra mão se fecharam em volta de alguma coisa dura. Tirou o objeto do bolso.

Tim ficou olhando para a chave antiquada. Franziu a testa. Ele tinha esquecido completamente que a levara consigo.

Aquela chave quase tinha custado sua liberdade... talvez agora pudesse salvá-lo.

Esperava que funcionasse. Não achava que haveria um outro mundo atrás daquela porta... apenas segurança ou informação. Chegou perto da porta e colocou a pesada chave na fechadura, com grande esperança de que seu plano funcionasse. Ouviu um clique prazeroso, e a porta se abriu.

Tim estava em uma enorme biblioteca. Havia mais livros naquela sala do que Tim jamais vira em qualquer outro lugar. Mais do que na escola, mais do que na livraria. Até mais do que na biblioteca que ficava a três quadras da casa de Molly. Guardou a chave de novo no bolso e deu mais um passo para dentro.

As prateleiras iam do chão ao teto, e havia fileiras e mais fileiras delas. A maioria dos livros parecia velha e empoeirada, mas também havia alguns novos.

Tim deu uma volta na primeira estante, na esperança de ter uma noção do tamanho da sala. Na parede havia mais daquelas vitrines horrendas. Dessa vez, Tim se forçou a olhar. Sabia que sua vida dependia de descobrir o máximo possível sobre o modo de agir do Dentuço.

A primeira vitrine abrigava um animal grande, uma espécie de cruzamento entre um leão e uma águia. O cartão de identificação pendurado ao lado dizia: GRIFO. ESPÉCIME NÚMERO 21. Tim caminhou mais um pouco junto à parede e deparou com um pedestal, onde havia outro animal que também parecia ser em parte leão. Só que esse tinha cabeça de mulher, e Tim lembrou-se de uma civilização antiga da aula de história. Era uma esfinge. Lembrou-se de ter aprendido a respeito da esfinge gigante que ainda existia no Egito, e que essa era a versão grande de milhares de estatuazinhas daquela criatura encontradas por todo o país.

“Talvez o motivo de haver tantas estátuas dela seja porque ela existiu no passado”, Tim pensou. “E agora não sobrou nenhuma, provavelmente por causa do projeto de exterminação desse cara. Como foi mesmo que ele disse? Ah, já sei.”

— Simplificar o mundo — balbuciou Tim.

Chegou a uma plataforma baixa. Não havia nada sobre ela.

— Que estranho.

Olhou para a etiqueta na parede e seu coração deu um pulo. HABITANTE DO MUNDO DAS FADAS, era o que dizia.

Até então, Tim não tinha visto nada preparado para exibir humanos.

— Claro, dããã — Tim caçoou de si mesmo. — A gente não exibe aquilo que come.

Espiou uma fileira de estantes e percebeu que havia no centro da biblioteca um grande espaço vazio em que não tinha reparado antes. Curioso, foi até lá para ver melhor.

— Ah, não! — engoliu em seco.

Uma criatura extraordinária estava sobre um pedestal no meio da sala.

— Você é tão lindo — murmurou Tim. — E ele pegou você também.

Havia um unicórnio à sua frente, silencioso e imóvel, rodeado pelas estantes. Tim sabia que ele não estava mais vivo, mas precisava chegar mais perto. Queria tocá-lo, acariciá-lo, passar os dedos em sua crina branca. Não fazia mal se aquilo parecia estúpido. O unicórnio era tão maravilhoso que simplesmente atraiu Tim em sua direção.

Quando foi se aproximando dele, Tim percebeu que pisara em um pedaço de papel amassado. Abaixou-se e viu que era de uma página arrancada de um livro.

Ficou olhando para o pedaço de papel que tinha nas mãos. Havia uma ilustração de um unicórnio com uma descrição embaixo. A escrita parecia antiga, e havia palavras em latim espalhadas por todo o parágrafo.

Então Tim reparou que um livro estava meio para fora da prateleira mais baixa, com a lombada alguns centímetros afastada das outras.

— Terra Incógnita — leu.

Sentou-se de pernas cruzadas no chão, pegou o livro e abriu.

— Caramba...

Páginas e páginas haviam sido arrancadas. Olhou para a página do unicórnio. Com certeza tinha sido arrancada daquele mesmo livro. Mas por quê? Por que alguém arrancaria todas as páginas de um livro? E por que voltaria a colocá-lo na estante?

“Mas nem todas as páginas foram arrancadas”, Tim percebeu.

— Ugh! Que cara mais feio!

Ficou olhando para a única figura que ainda sobrava no volume.

— Manticora — leu em voz alta.

“Humm. Nunca ouvi falar deste aqui.” A criatura era outro daqueles animais híbridos meio isso, meio aquilo. Mas não era elegante e misteriosa como a esfinge. O manticora era simplesmente grotesco. E com cara de mau. Tinha corpo de leão, mas com uma cauda parecida com a do escorpião. Também tinha cara de homem, mas que cara! Os olhos pareciam enlouquecidos, e a boca tinha várias fileiras de dentes.

Tim prestou uma atenção especial na parte que dizia como ele gostava de comer carne humana.

— Ah-ham. — Tim ouviu atrás de si. “Caramba. Será que esse cara tem alergia ou qualquer coisa assim? Ou será que esse pigarro dele é algum tique nervoso?” Pegou o livro de novo, fechou e colocou sobre os joelhos. Preferiu não se levantar, tentando agir como se não ligasse para o fato de ter sido surpreendido.

— Como foi que você entrou aqui? — perguntou o homem.

— Tenho meu jeitinho — respondeu Tim. — Não sou só um garoto tonto, sabe como é. — Colocou a página do unicórnio em cima do livro e alisou o papel.

— Estou vendo que você já começou seus estudos — comentou o homem.

— Só estou dando uma olhada neste livro. — Ergueu o volume para que o homem o visse. — Por que você finge que isto é um livro, se já arrancou todas as páginas? Que burrice.

— Eu não finjo que é um livro, menino insolente — disse o homem, nervoso. — Isso aí é um livro.

Tim olhou para o homem por cima do ombro. Ele estava mexendo no cabelo comprido, como se estivesse tentando se recompor.

— Pelo bem da erudição — disse, já bem mais calmo —, eu removi do volume alguns itens que considerei irrelevantes, já que tratam de criaturas cuja existência minhas pesquisas desmentiram.

E foi aí que Tim não conseguiu mais segurar a raiva. Levantou-se de um pulo, deixando o livro cair com um baque surdo no chão. Sacudiu a página do unicórnio na cara do esquisitão.

— Tipo o unicórnio, é isso que você está dizendo? Você está mentindo. Ele é muito mais real do que aquela coisa feia no seu livro, na única página que você deixou.

— Você me magoa, garoto — disse o homem. — Ao proferir tantas bobagens, você mina minhas expectativas. — Ele fez um sinal na direção das vitrines dispostas ao longo da parede. — As criaturas que extraí do meu bestiário podem até ter tido uma razão de ser no passado — disse, todo pomposo. Apontou para o unicórnio no pedestal atrás de Timothy. — O unicórnio, por exemplo, que parece ter atraído toda a sua atenção. Certamente era um dos ingredientes principais que os trovadores usavam para compor suas baladas e divertir mais de uma ordenhadora de vacas. Um lindo conceito, nada mais do que isso. — Chegou tão perto de Tim que o garoto conseguia sentir o cheiro podre do bafo dele. — Mas isto não é nada — o homem silvou por entre os dentes.

Tim deu alguns passos para trás, para fugir do fedor.

— Não venha me dizer que você não acredita em magia — debochou Tim.

— Acredito em comida — o homem declarou. — E acredito em mim mesmo. — Cruzou os braços sobre o peito, apertando os olhos cada vez mais. — Mas discutiremos a questão mais tarde.

Tim achou que o homem parecia estar passado. “Tudo bem. A gente não ia ficar amigo mesmo. Além disso, se eu deixar o cara fulo da vida, isso não vai fazer com que o perigo aumente.” Ele sabia que estava em perigo desde o momento em que pusera os pés naquele pátio repleto de ossos.

— Vim à sua procura com um diálogo em mente — disse o homem de maneira irritadiça. — Mas não estou mais disposto a jogar conversa fora. Você me irritou tanto que serei obrigado a me retirar por um breve instante, meu biscoitinho. E vou trocar de roupa, para ficar mais à vontade.

Um sorriso maldoso se espalhou pelo rosto do homem. Com todos aqueles dentes, sua expressão era grotesca.

Tim teve um estalo. “Aquele sorriso. Aqueles dentes!”

— Quando eu voltar, vamos terminar nosso jogo de uma vez por todas. — O homem se virou para ir embora.

“Deve ser...!” Tim abriu o livro de novo e arrancou a última página que faltava. “O manticora!”

— Espere aí! — gritou Tim, segurando a página arrancada atrás das costas. — Desculpe. Sério. Eu não queria insultar você.

O homem se virou lentamente.

— Não queria? — disse, incrédulo.

Já que aquele esquisitão ficava se referindo a Tim como um “aluno aplicado”, ele achou que deveria ficar esperto e se fazer de humilde.

— Eu só quis dizer que não entendi o que você disse a respeito do unicórnio. — Fez um sinal com a cabeça na direção do unicórnio no pedestal. — Quer dizer, ele meio que parece de verdade. Tipo tridimensional, apesar de um pouco desbotado. — Olhou para o chão e fez um círculo com a ponta do pé. — É que eu nunca fui muito inteligente, sabe...

O homem deu um passo na direção dele.

— Não diga...

Tim desempenhou aquele papel patético com toda a competência.

— Eu repeti em biologia duas vezes. — Era mentira, mas biologia parecia ser uma matéria que sempre vinha à tona ultimamente. — Mas, por favor... se o senhor pudesse tentar me explicar o que aconteceu com o unicórnio, eu ficaria contente. De um jeito simples, para que eu possa entender. Tenho certeza de que o senhor ensina melhor do que o meu professor da escola, ele nunca vai chegar aos seus pés.

O homem juntou as mãos, deliciado.

— Basta, meu querubim. Não diga mais nada. — Colocou a mão no queixo de Tim, que se segurou para não fazer uma careta e recuar. — Não há dúvida de que a sua educação tem sido deficiente, se não defeituosa. Mas você não deve culpar a si mesmo por esse fato. Você nunca teve, até este momento, um professor que merecesse esse título. Acompanhe-me, docinho. Vou explicar o que aconteceu com o unicórnio.

O homem colocou o braço em volta de Tim e o conduziu até o pedestal onde estava o unicórnio, imóvel e cego.

— É notável, devo dizer, que este tenha sido o espécime que capturou a sua imaginação, já que foi, de certo modo, o unicórnio que fez de mim o que eu sou hoje.

— É mesmo? — Tim tentava segurar a ânsia de vômito por causa do cheiro podre do homem, sem falar em seus dentes múltiplos.

— De fato, meu queridinho. Se eu nunca tivesse encontrado este animal, jamais teria descoberto minha razão de ser nem o meu poder.

Tim já estava pressentindo que teria de ouvir uma história bem comprida, como aquelas que ouvia quando ia visitar a tia Blodwyn em Brighton e os tios começavam a falar sobre os anos que passaram na guerra. Eram horas e horas. Mas agora, enquanto o cara não parasse de falar, Tim continuaria vivo. E teria tempo de elaborar um plano.

— No passado, eu era um homem de apetites simplórios — continuou o homem. — É possível consumir carne sem parar e mesmo assim continuar morto de fome, sabia? — Ele falou isso como se estivesse revelando o maior segredo do mundo. Como se estivesse dando conselhos muito sábios, aliás. — A alma é muito mais difícil de preencher do que a barriga. Eu era uma figura digna de pena naquele tempo. Insatisfeito, sedento de algo que não sabia o que era. Até que esta fina criatura apareceu na minha vida.

Fez um gesto rebuscado na direção do unicórnio, como se fosse o mestre de cerimônia apresentando um número circense. Tim conseguiu escapar do abraço do homem como quem não quer nada. Ele não conseguia suportar a sensação daqueles dedos sobre sua pele.

— Eu não deveria culpá-lo por acreditar no unicórnio — prosseguiu. — Quando avistei essa criatura pela primeira vez, quase me convenci de que era real.

O homem deu uma volta lenta no pedestal do unicórnio, erguendo a cabeça para observá-lo, como se estivesse revivendo aquela primeira vez em que o vira. Continuou:

— Sua pelagem prateada reluzia à meia-luz, e o chifre em espiral brilhava. Apenas depois de um exame mais minucioso pude perceber os detalhes que me levaram a concluir que um animal assim tão esplêndido não poderia viver. Eu disse viver? — os olhos dele encontraram os de Tim. — Quis dizer existir.

“Mas por quê?”, Tim indagou-se em silêncio. “Por que a beleza e a admiração não podem participar deste mundo?”

O homem olhou para o unicórnio de novo, completando o círculo ao redor dele.

— Percebi que o brilho de sua pelagem advinha simplesmente de uma camada de pó de sílica. — Cutucou a lateral do corpo do unicórnio com o chicote que carregava. Tim sentiu um calafrio. — O pobre animal deve ter passado metade da vida rolando em margens de rio arenosas. Para se livrar de parasitas, creio eu. Uma sujeira.

Mais uma vez parou ao lado de Tim, que ficou torcendo para que ele não chegasse ainda mais perto. Exalava um odor horrível, e Tim tinha a sensação preocupante de que o homem era capaz de sentir pelo cheiro que ele estava com medo. A maioria dos predadores era capaz de fazer isso.

— Desenvolvi uma teoria: o mito do unicórnio começou com uma fascinante combinação de ingenuidade e ganância da parte dos seres humanos. Eis o que eu pensei: era uma vez um homem muito inteligente que colocou o chifre de um bode na cabeça de um cavalo e que ia de taverna em taverna, de feira em feira, exibindo o animal. Sua única intenção era tomar dos agricultores embriagados as poucas moedas que com tanto esforço ganhavam. Os unicórnios das lendas não passavam de variações desse golpe.

O homem sorriu com uma satisfação presunçosa. Tim ficou com vontade de dar um tapa na cara dele.

— Então, quando vi esse animal saltitando no meu pátio, fui capaz de comprovar minha teoria. Por sorte, o unicórnio faleceu. Talvez o clima do meu jardim não combinasse muito com ele.

“Sem brincadeira”, Tim pensou, lembrando-se das pilhas de ossos jogados no pátio. “Esse anormal vem comendo carne a vida inteira. E isso com certeza é algo que deixa pra baixo um animal glorioso como um unicórnio.”

— Dissequei a besta. Quando minhas pesquisas terminaram, pude comprovar com toda a certeza que os mitos estavam errados. Conservei o espécime. E assim dei início à minha coleção.

O homem subiu na plataforma do unicórnio. Deu uma risada de escárnio com aquele sorriso cheio de dentes.

— Os olhos são lindos, não é mesmo? — Deu um peteleco em um deles com um de seus dedos compridos. Fez um barulhinho característico. — São de vidro, sabia?

— Pare! Pare agora mesmo! — gritou Tim. Deu um pulo para cima da plataforma e abraçou o pescoço do unicórnio. Não ligava para o que o homem pensava a respeito dele, ou se estava fazendo papel de idiota. Ele simplesmente não ligava.

— Não consigo mais ouvir a sua voz. Nem mesmo para ficar vivo mais cinco minutos. Não vale a pena. Não vou me esconder de você, então pode fazer o que você quiser. Só não faça estardalhaço. Você é um esquisitão mentiroso que fede a carne podre. E se acha o maior gênio do mundo. Mas você não é nada. Nada!

Tim se agarrou ao unicórnio, de costas para o homem, sem saber o que aconteceria no momento seguinte.

Houve uma longa pausa. O corpo de Tim tremia de uma mistura de raiva e medo. Ele sabia que a qualquer momento as triplas fileiras de dentes do homem poderiam ser cravadas em seu pescoço.

Mas nada disso aconteceu.

— Que costume mais encantador esse seu de pensar sempre com o coração, meu chuchuzinho — disse o homem. — Suas palavras são realmente muito meigas. Muito bem. Nos vemos daqui a pouco.

Tim ficou esperando enquanto ouvia os passos do homem se afastando. A porta se fechou, deixando-o sozinho na biblioteca.

“Bom, não exatamente sozinho.”

— Talvez ele nos coloque juntos em exposição — disse Tim para o unicórnio. — Depois que terminar de comer a minha alma e tudo o mais. Você tem que reconhecer, isso faz sentido. — Tim pulou para o chão e ficou na frente do pedestal. — E à sua esquerda, senhoras e senhores — anunciou com uma voz retumbante de locutor de rádio —, ao lado dos cães com asas, temos aquele unicórnio idiota e aquele menino ainda mais idiota.

Tim deu uma risada tremida e soltou o peso do corpo sobre o pedestal. Acomodou-se entre as patas da frente do unicórnio e ergueu os joelhos até o peito dele.

— Tudo bem. Este é um péssimo lugar para se esconder — disse. — Mas é um lugar tão bom quanto qualquer outro para esperar. — Ergueu o rosto e olhou para a cabeça do unicórnio. — Tudo bem se eu falar com você, não é? É que eu não quero que as minhas últimas palavras sejam: “Bom, Tim, isso foi a maior burrice, não foi?”, exatamente o que eu vou dizer se começar a falar comigo mesmo.

Tim repousou o queixo no joelho.

— Acho que, na verdade, não dá para se esconder dele. Mas acredito que ele deva ficar muito contente ao ver a gente tentando. Eu não quero dar a ele nenhum motivo para sorrir. — Tim estremeceu. — Detesto quando ele sorri. Uma fileira de dentes deveria bastar para qualquer pessoa.

“Aqueles dentes.” Tim ergueu a página que tinha arrancado do livro do homem, a última página que tinha sobrado. “Ele é isto na verdade, não é? Foram os dentes que entregaram. Um manticora. Ou será o manticora? Talvez só exista um.”

Ficou olhando fixamente para a página. “Pense, Tim”, deu uma bronca em si mesmo. “Um mago de verdade não ia só ficar sentado aqui. Um mago de verdade faria alguma coisa.”

Ainda assim, ele não conseguia fazer mais nada além de ficar olhando para a página. “Tudo bem”, Tim pensou, procurando alguma idéia, “preciso elaborar um plano.”

— Meu amigo John Constantine provavelmente faria uma armadilha com um maço de cigarros vazio ou qualquer coisa do tipo — explicou para o unicórnio. — A Zatanna diria alguma coisa de trás para frente, tipo: “Arocitnam, áv es ratac”. Tem também o Tamlin, o cara que pode ser o meu pai. Ele diz que a magia responde à necessidade e que o poder está nas pequenas coisas.

Torceu o pescoço para olhar o rosto do unicórnio.

— Então, unicórnio, qual seria a pequena coisa que me ajudaria a convocar a magia para sair deste lugar?

Tim virou-se de novo e ergueu o desenho do manticora. Apertou os olhos, como se enxergar a figura de outro ângulo pudesse ajudá-lo a ter uma idéia.

— Eu podia tentar enfiar uns alfinetes aqui ou colocar fogo no papel. Mas acho que eu precisava saber o nome dele para dar certo. Ou será que basta saber o que ele é?

“Acho que posso tentar, de qualquer jeito.”

— Só tem um problema — explicou ao unicórnio. — Não tenho nem alfinete nem fósforo.

— Alfinetes? Fósforos? Você lançaria um feitiço mortal contra mim às escondidas? E eu achando que nós tínhamos nos entendido...

Surpreso, Tim ergueu os olhos. Ele não tinha ouvido o homem entrar. Só que ele não era mais homem. Um manticora enorme, em tamanho natural, gigantesco, estava parado à sua frente. Era como se a ilustração que tinha nas mãos tivesse ganhado vida... só que ampliada umas mil vezes.

A cabeça do homem não tinha mudado: o mesmo cabelo ensebado, a mesma boca grotesca, as mesmas três fileiras de dentes. Só que agora ela estava em cima de um corpo de leão enorme.

Antes que Tim pudesse fazer qualquer movimento, o manticora pulou em cima dele, agarrou sua canela com as patas e o puxou para fora do pedestal.

A folha de papel saiu voando e Tim caiu com tudo no chão.

— Me solte! — gritou. Ele esperneava e distribuía socos, acertando tudo que estava ao seu alcance. Ficava se mexendo de um lado pro outro, para impedir que o manticora conseguisse um bom ângulo para morder seu pescoço.

Nada daquilo parecia desanimar o manticora. Ele continuava falando calmamente.

— Soltar? Ah, não, acho que não. — O manticora sentou em cima de Tim, tirando quase todo o ar de seu corpo. O rabo de escorpião tremelicava, e dos dentes escorria um veneno amarelo-esverdeado.

— Minha intenção era gastar um tempo para educá-lo. Servir de Sócrates para Platão antes de devorá-lo. Mas, que pena, você fez com que eu mudasse de idéia.

Tim empurrava a fera com toda a força que tinha, tentando fazer com que ele saísse de cima de seu peito. O manticora segurou os braços dele com suas enormes patas.

— Pare de se debater — o manticora ordenou.

O esforço de Tim fez com que ficasse suado, e seu pulso escorregou de baixo de uma das patas pesadas do manticora. Usou a mão livre para dar um soco forte no nariz do animal.

O manticora recuou com um urro, permitindo a Tim que se soltasse um pouco antes de o manticora voltar com tudo pra cima dele, arranhando seu braço enquanto o prendia de novo no chão. Tim ficou estupefato com a visão de seu próprio sangue jorrando, manchando as páginas do livro, arrancadas e espalhadas pelo chão ao redor deles.

— Ah, está doendo — reclamou Tim. Tentou se encolher, agarrando os joelhos, mas o manticora o segurava firme.

— Eu mandei você parar de se debater, não foi?

— Manticora — declarou Tim, enquanto o mundo rodava ao seu redor. — Eu sei quem você é. E sei uma outra coisa também. Não ligo a mínima para o que você acha... este unicórnio é de verdade!

Tim ouviu um relincho bem alto. Ficou maravilhado ao ver a transformação extraordinária pela qual o unicórnio estava passando. A pelagem branca da criatura começou a brilhar, como se tivesse sido acendida de dentro. Cada músculo bem definido saltou e voltou à vida com um espasmo. O unicórnio ergueu a cabeça e piscou os olhos que já não eram mais de vidro. Tim tinha conseguido! A magia tinha respondido a uma necessidade. E Tim tinha usado aquela magia para trazer o unicórnio de volta à vida.

A cabeça humana do manticora voltou-se para trás de supetão.

— O quê? — gritou. — Não! Como é possível?

O unicórnio andou um pouco para trás. Um raio de energia invadiu a sala. Seu chifre faiscava. Quando as duas patas da frente se ergueram no ar, Tim reparou que a página do manticora estava grudada em um dos cascos do unicórnio. “Meu sangue”, Tim percebeu, “é o que está fazendo o papel ficar grudado”.

O unicórnio pousou as patas no chão com um estrondo. Usou o chifre para rasgar a folha presa ao casco e depois o enterrou bem no coração do manticora.

— Argghhhhhhh! — A criatura urrou de agonia.

Saiu de cima de Tim e caiu ao seu lado.

 

Tamlin voava, voava, sem ter muita certeza de como encontrar sua presa, o responsável por aquele pesadelo. Foi quando tudo começou a mudar.

Tamlin voava em círculos sobre a terra, admirado. Viu flores brotarem de pedras, rios inundando seu leito repentinamente. Era como se uma fotografia em branco e preto estivesse sendo colorida com tintas cintilantes.

— Quem diria! — exclamou. — A terra voltando a ser o que era. Como foi que isso aconteceu?

Agora Tamlin tinha um novo objetivo: descobrir o grande mago responsável por aquele milagre, que era capaz de romper os encantos que nem a própria Titânia podia desfazer.

De seu ponto de observação privilegiado, bem alto no céu, Tamlin foi capaz de determinar o centro do florescimento da magia. As mudanças milagrosas provinham de um só lugar.

 

Tim estava com sede. Morrendo de sede. Achava que nunca sentira tanta sede na vida. Nem durante a aula de educação física. Nem depois de uma sessão de skate. Nem mesmo no meio do verão.

Alguma coisa o cutucou. Abriu os olhos lentamente e teve que estreitar os olhos para enxergar o unicórnio branco olhando para ele. A linda criatura tinha cutucado Tim delicadamente com o chifre.

— Ah, é você — disse Tim. — Você se importa se eu ficar deitado aqui um pouquinho? Só até que tudo pare de girar. Obrigado.

“Espera aí. Eu não deveria estar aterrorizado? Não estou travando um combate mortal com uma criatura maligna? Ah, é...” E tudo começou a voltar à sua mente.

— Ei, cadê o manticora? — perguntou ao unicórnio. — Ele estava bem... aaaaiiii! — Tim gemeu ao se sentar.

Foi aí que ele viu o manticora. Só que já não era mais exatamente o manticora. Tinha se transformado em um monte de areia com o formato de manticora.

— Ah, ele está aí — balbuciou. Olhou para o unicórnio. — Como foi que você fez isso? Não que eu esteja reclamando, veja bem. — Tim se debruçou sobre a pilha de pó de manticora.

— Ha! Ele pegou você. — Tim caçoou da criatura. — Ou talvez nós é que pegamos você. Sei lá. Bem feito, Sócrates.

Tim levantou-se lentamente, seu corpo todo tremia. Ele precisou se apoiar na lateral do corpo do unicórnio para se equilibrar. Apertou o braço que continuava a sangrar e olhou em volta de si.

O pátio já não estava mais cheio de ossos. Estava tomado por flores. O fedor tinha ido embora e perfumes se espalhavam na brisa agradável. De repente, no muro que não parava de crescer tinha aparecido uma porta, e Tim e o unicórnio passaram para o outro lado.

— Olhe só para isto — murmurou o garoto. Havia colinas verdejantes à sua frente. Tim estava mesmo muito fraco, mas não foi capaz de se segurar e saiu caminhando pelo meio do capim alto, maravilhado com a surpreendente paisagem. Então o manticora não estava mesmo mentindo. Estavam realmente no Mundo das Fadas, e agora o reino estava se restaurando em volta dele.

— Que legal! — exclamou.

Então, de repente, sentiu que estava quase sem energia e desmaiou.

 

Tamlin bateu suas asas fortes e se dirigiu rapidamente para a fonte. Seu coração deu um salto e subiu até a boca.

Era o garoto. E a criança não estava sozinha. Estava sendo vigiada pela criatura mais pura que existe, o unicórnio.

“O que será que o Tim está fazendo aqui?”, Tamlin perguntou a si mesmo. “Como foi que ele chegou até aqui?” A resposta lhe veio como uma lufada de clareza. “Eu dei a ele a Pedra da Abertura, e ele abriu um caminho até este mundo. Eu já devia saber. As profecias são verdadeiras. Meu filho está vivo, e é cheio de magia.”

Tamlin pousou e assumiu a forma humana. O unicórnio fez um aceno com o chifre para cumprimentá-lo e depois saiu galopando.

Tamlin se ajoelhou ao lado do garoto.

— Timothy — disse, tentando acordar a criança.

— Falando naquela coca-cola — o garoto murmurou. Tim sentiu mãos — mãos humanas — virarem seu corpo com cuidado.

— Tim, você está queimando, menino.

Tim ergueu os olhos e viu um rosto. “Eu conheço este rosto, não é mesmo? Conheço. Cabelo comprido e liso, olhos castanhos. Bochechas. O que Tamlin tinha dito mesmo? Ah, sim.”

— Não, eu não estou queimando. Estou com frio. Faz horas que estou com frio.

Os braços fortes de Tamlin pegaram Tim no colo, erguendo-o em um abraço. Então Tamlin apoiou Tim sobre uma pedra, fazendo com que seu corpo ficasse reto. Parecia que assim era mais fácil de respirar. Ele largou todo o peso do corpo em cima da pedra; a inspiração era fraca, a exalação era quente.

Ele queria falar e contar a Tamlin o que tinha feito, mas não tinha energia para compor as frases. Acabar com aquele manticora e depois ver todas as flores do Mundo das Fadas retornarem foi brilhante. Ele tinha certeza de que Tamlin iria pensar a mesma coisa. Tim queria que Tamlin se orgulhasse dele. Mas não conseguia se lembrar por quê.

— A gente deu um jeito naquele manticora velho — informou Tim, quando juntou o ar suficiente para falar. — Eu e o unicórnio. — Por que doía tanto para falar? Tanto esforço para um som tão baixinho. — Pelo menos, acho que sim.

— Manticora? — repetiu Tamlin. — Você viu o manticora? Aqui?

Tim achou que Tamlin parecia meio que aterrorizado. Bom, a coisa toda tinha sido bem aterrorizante.

— Ah-hã — respondeu Tim. — Ele é muito feio. Quer dizer, era feio. Antes de virar pó.

— Tim, ele mordeu, arranhou ou picou você?

— Acho que sim. Não sei.

Tim achou que a voz de Tamlin soava quase sombria. “Talvez eu devesse abrir os olhos e conferir a expressão dele.” As pálpebras de Tim tremeram de leve. “Melhor não. É difícil demais.”

— Ei, eu precisava perguntar uma coisa para você — murmurou Tim. — Alguma coisa importante. Mas não consigo me lembrar o que era.

Tim sentia as mãos fortes de Tamlin sobre si, como se o estivessem examinando à procura de algo. Tamlin deu tapinhas de leve nas pernas de Tim, e virou sua cabeça primeiro para um lado, depois para o outro.

— Eu ainda estou com aquela pedra que você me deu — sugeriu Tim. Será que era aquilo que ele estava procurando? Ele não queria que Tamlin achasse que tinha sido descuidado.

Tamlin puxou as mangas de Tim para cima.

— Pelos deuses! — exclamou. Pegou no braço de Tim em um local que estava dolorido. — Este arranhão é profundo e terrível!

— Tudo bem — Tim acalmou Tamlin, com a voz bem fraquinha. — Não está mais doendo. Não muito.

Tamlin continuava segurando o braço de Tim.

— Quanto tempo faz, menino? Há quanto tempo ele arranhou você com a pata?

Tim retirou o braço das mãos de Tamlin e cobriu o rosto, tapando os olhos. O sol estava forte demais. Feria seus olhos até mesmo quando estavam fechados. Sentiu uma risada subindo em seu peito, mas não sabia muito bem por quê.

— Sabe, acabei de entender tudo. Entendi mesmo. Eu sei o que segura o mundo. Só que não é uma coisa. Não é nada material, na verdade. É a vida... é a Morte.

A luz causticante estava enfraquecendo. A escuridão que o rodeava era bem mais confortável. Naquele fundo de veludo negro, Tim podia distinguir uma silhueta se formando. Uma silhueta conhecida.

— Ela é bonita. Ela é muito bonita.

Uma jovem de camiseta preta sem mangas e jeans, com uma tornozeleira que era um berloque pendurado em uma fita preta, estava parada na frente de Tim, sorrindo. Ele se lembrava dela. Ele a tinha encontrado no fim do universo, para onde o maluco do Mister Io o tinha levado.

“Bom, pelo menos ela não é uma total desconhecida”, pensou. Finalmente relaxou e se deixou levar... para o nada.

 

Tim se sentia zonzo e rígido. “Também, não é para menos”, percebeu, “estou todo encolhido em um canto. Um canto do apartamento de alguém”.

Sentou-se com o corpo ereto, entrando imediatamente em estado de alerta. “E agora, onde é que eu estou?” Piscou algumas vezes para clarear as idéias e entender onde estava. “Isto aqui parece um apartamento comum”, reparou. Mas sabia que as aparências podiam enganar. Sacudiu a cabeça. Onde mesmo ele tinha ouvido exatamente aquela frase? Ah, tanto faz. Ele não ia conseguir se lembrar mesmo. Sabia que não.

Tim tentou pressentir o perigo, mas estava desorientado demais para sentir qualquer coisa muito bem. Apoiou-se na parede atrás de si.

Uma moça alta e magra, com a pele muito branca e cabelo preto-azulado, estava parada em sua frente. De onde será que ela tinha vindo? Será que estava ali o tempo todo? Ele estava completamente por fora.

A mulher não parecia ter mais de 20 anos, e ele achava que a conhecia de algum lugar. Tim se esforçou bastante para se lembrar dela.

— Ah, você — disse Tim. — Você é você, não é mesmo? — A moça do fim dos tempos. É impossível para um garoto esquecer uma moça linda como aquela, especialmente depois de tê-la encontrado em um lugar tão memorável, em circunstâncias tão notáveis.

A moça sorriu.

— O tempo todo, e mais um pouco — respondeu a moça. — Você quer uma xícara de chá? O bule está no fogo.

Um apito começou a soar atrás de uma cortina bem gasta.

— Ops — ela disse. — Está pronto. Venha. Se você quiser um bom chá, não pode deixar a água ferver demais.

— É mesmo? — Tim nunca tinha ouvido aquilo antes. Não que ele fosse muito de tomar chá...

— Pode apostar. — A moça desapareceu atrás da cortina. — Para fazer qualquer coisa muito bem, é preciso respeitar o tempo certo. Você vem?

Tim ficou em pé, afastou a cortina para o lado e entrou no cômodo principal do apartamento. A “cozinha” percorria uma das paredes da sala (um fogão, uma geladeira, uma pia) e o lugar estava todo bagunçado. Havia pratos empilhados na pia e roupas atiradas pelo chão. A moça foi até o fogão e desligou o fogo. O bule parou de apitar.

— Pode parecer uma pergunta idiota, mas, hummm... — a voz de Tim foi sumindo. Ele sabia o que queria descobrir, mas não sabia muito bem como perguntar. Ainda estava tentando entender onde estava, e se sentia inteiramente desequilibrado.

A moça remexeu nos armários e tirou dali uma latinha. Colocou saquinhos de chá dentro de duas canecas. Tim ficou se perguntando se as canecas estavam limpas.

— As únicas perguntas idiotas são aquelas cuja resposta você já sabe — disse a moça. — E mesmo assim é completamente normal fazê-las de vez em quando. Pode falar.

Tinha alguma coisa no jeito direto daquela moça que deixava Tim bem à vontade. De todas as pessoas que ele conhecia, ela parecia ser a que estava mais contente consigo mesma. Ela passava aquele mesmo tipo de carinho que ele sentira com Zatanna, a jovem maga da Califórnia. E Molly, claro. Isso quando ele se permitia ficar à vontade.

— Tudo bem. Então, onde... — Tim interrompeu a si mesmo. Ele não precisava de verdade saber onde estava. Havia uma outra resposta muito mais urgente para ele. — O que eu estava pensando de verdade é... quem é você?

A moça pegou o bule e encheu as duas canecas de água fervente. Saiu bastante fumaça da caneca quando ela a levantou e cheirou o líquido.

— Hummm. Às vezes eu preparo isto só por causa do cheiro. Tem mais cheiro de amêndoa do que as próprias amêndoas. — Entregou a outra caneca para Tim. — Está vendo?

— Obrigado — ele disse, pegando a caneca da mão dela.

Ele cheirou e fingiu reparar no cheiro. Ela não tinha respondido a pergunta. “Por que ela está enrolando?”

— De nada. — Ela tomou um golinho de chá. — Tenho muitos nomes, Tim. Mesmo que eu só dissesse aqueles de que mais gosto, ia demorar uma eternidade para dizer todos. Mas quem sou eu é mais fácil de responder. Eu sou a Morte.

Tim caiu na gargalhada. Não deu para segurar. Riu bastante, com sinceridade. Torceu para que ela não se sentisse insultada, mas tentou se conter.

No final, a gargalhada de Tim se transformou em um monte de risadinhas. O olhar direto da moça não o abandonou por nenhum instante. Então ele ficou com os joelhos moles e se largou em cima do sofá.

— Você disse Morte? Tipo com caveiras e esqueletos e tudo o mais? — Ele deu outra olhada nela.

Estava toda vestida em estilo gótico. Talvez “Morte” fosse o nome que ela usava quando saía para dançar ou algo assim. Ela não podia ser aquela que nos leva desta para melhor, em pessoa.

— No geral, eu tenho tanto a ver com caveiras quanto um frango tem a ver com suflês. Pense nisso.

Tim olhou para ela de soslaio, depois assoprou o chá para esfriar. Deu mais um gole, e de repente foi invadido por um monte de imagens. O manticora. Um arranhão no pulso. Dor ardente. Sangue. Queda. Escuridão. O rosto dela.

— Ah — Tim falou baixinho. — Agora estou me lembrando. — Colocou a caneca com cuidado na mesinha à sua frente, com medo de deixá-la cair. — Você é mesmo, não é? — Dessa vez era uma afirmação, e não uma pergunta. — É por isso que você também estava no fim do universo.

Morte assentiu com a cabeça. Tim ficou frio. Inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos joelhos.

— Eu vou sentir alguma coisa? — perguntou com a voz bem apagada.

— Tim, relaxe — disse Morte.

— Para você é fácil dizer — explodiu. — Não é você que vai morrer.

— Ei, você pode se apoiar no Cavendish se quiser — sugeriu a moça. — Ou simplesmente segurá-lo. Ele é bom para isso.

— Cavendish? — Tim apertou os olhos e a observou. Do que é que ela estava falando?

— Ele está bem atrás de você. Espere. — Esticou a mão atrás de Tim e pegou um urso de pelúcia. — Ele não é o urso mais inteligente do mundo, mas pelo menos sabe quando ficar de boca fechada.

Tim ficou olhando para o ursinho. Será que ela estava louca? O que ele iria fazer com um brinquedo idiota? Mas também não queria deixá-la brava. Achou que, já que ela era a Morte, se ficasse brava haveria sérias conseqüências. Ajeitou o ursinho no colo.

— Desculpe, Tim — ela disse. — Achei que você ia demorar um pouco mais para entender tudo. Mas você compreendeu tudo com tanta rapidez que eu nem tive tempo de prepará-lo.

Ela fez um cafuné no cabelo dele.

— Mas você tem uma gargalhada bem sincera, devo dizer. Quando contei quem eu era e você caiu no riso, quase me esqueci de que você é um mago.

“O que será que isso quer dizer?”, Tim perguntou a si mesmo. “Magos não têm senso de humor? Ou será que ela quis dizer que a vida de um mago é tão cheia de dor, confusão e tragédia que não sobra nenhum motivo para rir?” Tim colocou aquele pensamento de lado para se concentrar no momento presente.

— Então, deixe-me ver se entendi bem — disse Tim, bem devagar. Viu que estava apertando o ursinho um pouco demais. — Estou morto. Que engraçado, sempre achei que ia ser mais do que isto.

— Você não está morto, acredite. — A moça deu leves tapinhas no joelho de Tim. — Eu saberia se você estivesse. Mas você está bem perto disso, ou eu não o teria trazido até aqui. Não com tanta facilidade, quer dizer.

— Você me trouxe até aqui?

A moça assentiu com a cabeça.

— Ah-hã. O veneno do manticora é terrível. É assim que eles gostam. Se você estivesse no seu corpo agora, estaria agonizando. E quando digo agonia, não estou falando só de dor.

— Mas... — Tim tentou compreender. — Você quer dizer que me trouxe para cá para eu não sofrer? Que coisa mais bizarra.

A moça parecia confusa.

— Por quê?

Era tão óbvio para Tim... por que ela não entendia?

— Bom, porque você é a Morte, ora.

— Não tem nada de bizarro nisso — a moça respondeu. — A Morte e o sofrimento não andam necessariamente juntos. Ei, será que você pode fazer um favor para nós dois?

— Humm, claro. — Que favor ela podia pedir a ele? Preparou-se para o pior.

— Não deixe o chá esfriar — disse com um sorriso.

Tim retribuiu o sorriso. Ela era engraçada. Gostava dela, apesar de ser a Morte.

Parecia que ela o estava estudando.

— Você circula bastante, hein? — ela disse. — Mesmo para um mago.

Tim pousou a caneca de novo.

— Eu preferia que você parasse de me chamar disso.

— Tudo bem. Você circula bastante, ponto final. Por que você foi se enfiar no Mundo das Fadas?

— Ah. — Ele ficou mexendo no pé do ursinho de pelúcia. — Eu só estava... estava tentando descobrir quem é o meu pai. É meio... meio... — A voz dele começou a falhar. — Complicado — concluiu. “Não”, disse a si mesmo, enfiando as unhas na palma da mão. “Eu não vou chorar.”

Sentiu um enorme nó na garganta, e não conseguia dissolvê-lo por mais que engolisse. A visão ficou embaçada quando as lágrimas encheram seus olhos.

Ele se sentiu humilhado por chorar na frente dela. Ela ia achar que ele era o maior bebezão. Tim se dobrou em dois, esmagando o ursinho no colo, quando tentou esconder o rosto. Seus ombros tremeram por tentar deixar os soluços presos dentro do peito. Mas ele sabia que a moça o estava vendo chorar. Não dava para fingir que não estava.

— Isso... isso é uma idiotice — ele disse com a voz engasgada. Tirou os óculos e enxugou o rosto. Ficou olhando para os dedos molhados. — Elas nem são de verdade, não é mesmo? Estou imaginando que estou chorando.

— Hummm. Não sei — disse Morte. — Para mim, parecem lágrimas de verdade. — Ela se ajeitou em cima do braço do sofá e enfiou os pés em baixo de si. — Por que você não fala mais desse negócio de pai?

— Dá tempo? — Ele nunca tinha enfrentando a morte iminente antes. Não sabia quanto ia demorar aquilo tudo.

— Temos tempo.

Tim enxugou o rosto na manga, depois colocou os óculos de volta no rosto. Limpou a garganta algumas vezes.

— Você só está tentando ser legal. Obrigado, mas eu não preciso conversar. Vou ficar bem. — Colocou o ursinho de pelúcia entre ele e Morte no sofá. Não queria parecer uma criancinha que precisava de um bicho de pelúcia.

— Bom, não estou tentando não ser legal, isso eu garanto. Mas eu perguntei principalmente porque quero saber. Que história é essa?

Tim suspirou. Como é que ele ia conseguir explicar aquilo tudo? Ele próprio ainda estava tentando entender...

 

Tamlin estava sentado ao lado do corpo de Tim, que estava ficando rígido. O garoto ficava azul, e seus membros tremiam à medida que o veneno ia traçando seu caminho abominável através de seu corpo.

“A criança fez...” Tamlin pensou, então interrompeu a si mesmo. “O que é que eu estou dizendo? ‘A criança’? Meu filho, quero dizer. Meu filho fez renascer a terra. Meu filho rompeu o encanto que nem a própria Titânia conseguiu desfazer. Ele derrubou um adversário que nenhum paladino do Mundo das Fadas jamais ousou enfrentar. E pagou um preço muito caro. O veneno do manticora está se misturando ao sangue dele. E jamais um curandeiro nascido do ventre de uma mulher conseguiu encontrar a cura para este mal. Ele vai morrer logo.”

Tamlin não podia permitir que aquilo acontecesse. Ele precisava fazer alguma coisa... qualquer coisa. Colocou-se sobre Tim e disse palavras de transformação.

— Carne da minha carne, seja o que você tem que ser, para que eu seja capaz de carregá-lo — disse, acessando a magia que o rodeava, a magia do Mundo das Fadas. — Por nosso sangue, ar do meu ar, transforme-se como eu. — Fez vários movimentos com as mãos e sentiu as energias se combinarem e se integrarem. Os contornos do corpo imóvel do garoto foram ficando embaçados à medida que foi perdendo seus limites humanos. As moléculas e os átomos se rearranjaram em um novo formato, um formato com o qual Tamlin era capaz de lidar.

Timothy Hunter transformou-se lentamente em uma pena de falcão. Uma vez que a metamorfose se completou, Tamlin, seu pai, assumiu a forma de falcão. Pegou a haste da pena pelo bico, bateu suas asas fortes e ganhou o céu.

Enquanto voava, Tamlin ia pensando na mudança notável que ele mesmo sofrera. “O garoto era um estranho para mim. Durante treze anos da vida dele e trezentos da minha, eu nunca pensei nele nem por um instante. Mas agora...”

“O que significa vê-lo? Conversar com ele? Testá-lo? Quando foi que eu comecei a ter vontade de conhecê-lo?”

Tamlin se deslocava com rapidez, cobrindo grandes distâncias. A urgência o impulsionava para a frente.

“Ele enxergou dentro de mim. Enquanto eu brincava de julgá-lo, ele não precisou de faca nenhuma para cortar meu coração. ‘Você fica sentindo pena de si mesmo o tempo todo?’, ele perguntou. E eu bati nele porque ele tinha visto e proferido uma verdade. Eu devia ter agradecido a ele.”

“O bebezinho que ele era — em quem eu nunca mais tinha pensado depois daquele momento — transformou-se em uma criança cujos olhos perfuram a escuridão como os meus nunca fizeram nem nunca farão. Eu gostaria de conhecer o homem em que essa criança vai se transformar. Em que poderia se transformar.”

Quando alcançou os jardins do palácio, Tamlin começou a descer e pousou aos pés de Titânia. Colocou a pena gentilmente sobre a grama e retomou sua forma humana.

— Tamlin! — Titânia gritou. — Ah, Tam, você conseguiu! — Ela jogou os braços em volta do pescoço dele e apertou seu corpo contra o dele.

Era capaz de sentir a vida correndo dentro dela mais uma vez, como era quando eles se conheceram. Antes de tudo azedar. Antes dos encantos. Antes de o manticora ter sugado o espírito da terra. Ela estava tão revigorada quanto o Mundo das Fadas.

— Tudo está lindo de novo — exclamou. — O jardim está tão cheio de vida... Todas as rosas estão cochichando segredos entre si. — Passou as mãos pelos braços dele e pegou em suas mãos. — Venha comigo até o jardim, Tamlin. Eu quero que você também as ouça. Você e mais ninguém.

Tamlin se afastou com delicadeza.

— Não fui eu quem devolveu a beleza à sua terra crepuscular. Você não deve me agradecer por este feito. Foi outra pessoa que pagou o preço.

— Quem foi então que fez isto? — perguntou Titânia. — E que preço é esse que você mencionou?

Tamlin largou Titânia e olhou para Tim, que ainda era uma pena na grama. Usando seus talentos, Tamlin devolveu a forma original ao corpo retorcido, dolorido e agonizante. Deu um passo para o lado para que Titânia pudesse enxergar.

— Pelos deuses misericordiosos! — Titânia engoliu em seco e caiu de joelhos ao lado do corpo torturado de Tim. — O menino. Ah, Tamlin. As profecias estavam corretas.

— A criança estava divagando quando a encontrei, senhora. Delirando. Mas me deu motivos para acreditar que ela tinha enfrentado o manticora.

— O manticora — repetiu Titânia. — Fale mais.

Tamlin ajoelhou-se ao lado dela.

— Eu trouxe o garoto aqui para que fosse curado. A história pode esperar.

— Eu já pedi uma vez — disse Titânia em tom severo. — Conte o que você sabe.

Por que ela não podia simplesmente ajudar? Por que ela precisava de uma explicação? Bom, talvez a explicação lhe desse as informações de que precisava para ajudar.

— Como quiser — consentiu Tamlin. — A devastação da terra foi obra do manticora. Os encantos que você não conseguia romper eram dele. A criança...

— A criança? — repetiu Titânia, aborrecida.

— Ele se chama Timothy.

Tamlin ficou surpreso com a veemência, mas se ela acreditava que tinha motivos, por causa de um mal-entendido na ligação entre ela e o menino, melhor para ele. Para ele e para o menino.

— O Timothy destruiu o manticora. Como ele fez isso, não faço a mínima idéia. Encontrei-o em um estado tão grave que não tenho poderes para curá-lo. Então eu voei até aqui para trazê-lo a você.

Titânia olhou para o garoto com tristeza.

— Para a mordida da serpente e a picada do escorpião, existem tinturas de grande valor. Contra o hálito dos demônios e o cuspe do mandrágora, existem feitiços. Mas para o veneno do manticora não existe cura. Nenhuma, Tam. Sinto muito.

Ela se levantou e pegou a mão de Tamlin. Ele não a repeliu. Sabia que ela queria confortá-lo, e se perguntou se isso era possível. Atrás dela, dava para ver que as flores continuavam desabrochando, e criaturas que por anos ele não vira esvoaçavam, saltitavam ou corriam para lá e para cá nos capinzais verdejantes.

— Eu compartilho seu pesar, Tamlin — disse Titânia. — Mas ele nasceu para morrer, assim como todos eles. O sangue mortal que ele carrega, o seu sangue, faz com que seja assim. — Ela sacudiu a cabeça com tristeza. — Parece que a raça dele não tem a chance de viver. Arranha a superfície do tempo e desaparece sem deixar vestígios, como um inseto qualquer.

Ela largou a mão de Tamlin e voltou para perto de Tim.

— Se pelo menos ele tivesse sido criado no Mundo das Fadas... A terra e eu teríamos trabalhado para que os limites entre a sua raça e a minha ficassem indefinidos.

Não era isso que Tamlin precisava escutar. Naquele momento não importava se as coisas poderiam ter sido diferentes. “As coisas são como são.”

Titânia virou-se para encarar Tamlin.

— Onde foi mesmo que você disse que ele acabou com o manticora? — ela perguntou.

— Por quê?

— Você me surpreende, Tamlin — debochou Titânia. — O Mundo das Fadas está vivo por causa da coragem de Timothy. Precisamos honrar seu sacrifício. Um monumento será erguido no local de sua vitória. No lugar onde ele triunfou.

Tamlin olhava para o corpo torturado e azulado de seu filho, para a criança que não veria a vida adulta, e enxergava apenas desperdício. Aquela podia ser uma vitória para a magia, para o Mundo das Fadas, e Tim podia até ter vencido um monstro. Mas como Tamlin poderia ficar feliz? A homenagem póstuma era uma conquista amarga, já que o homenageado não poderia presenciá-la.

Mas ele não expressou nada disso. Simplesmente assentiu com a cabeça e ergueu o garoto nos braços. O garoto que tinha feito tanto, enquanto ele, seu pai, tinha feito tão pouco.

 

Morte continuava esperando. Já fazia um tempo que Tim não dizia nenhuma palavra. Pensou que não fazia sentido contar a ela sua história. Por que deveria fazê-lo?

— Até parece que você se importa — ele balbuciou. — Olha, sinto muito. Não estou com disposição para acabar com o tédio eterno de ninguém agora — ele disse a ela. Cruzou os braços e ficou olhando fixamente para a frente.

— Perdão? — Morte parecia estupefata. Ela se levantou. — Você não quer conversar comigo? Tudo bem, mas tenho novidades para você, espertinho. Eu não gosto muito de ser insultada. — Pegou sua caneca e foi para a pia.

Abriu a torneira e começou a lavar a louça.

Tim arrependeu-se de suas palavras no mesmo instante.

— Moça? — Ele continuava sem conseguir chamá-la de Morte. — Não foi minha intenção insultá-la.

— É mesmo? — Ela esfregava uma panela com força, usando uma escovinha.

— Bom, é... É, sim.

Morte fechou a torneira e secou a mão em um pano de prato manchado. Ignorando a presença do garoto, dirigiu-se para uma porta dupla meio torta. Tim imaginou que deveria ser originalmente uma despensa que ela tinha transformado em um grande armário. Ficou curioso para saber o que ela podia guardar ali dentro. Ele já tinha ouvido falar de gente que tinha “esqueletos no armário”. Seria algo especialmente apropriado nessa situação. Segurou-se para não soltar outra gargalhada histérica.

— Fique aí atrás — ordenou Morte. E abriu a porta. Tim obedeceu. Não fazia idéia do que poderia pular em cima dele de dentro do armário da Morte. Morte se desviou quando uma torradeira e uma bota caíram de uma prateleira de cima e quase a acertaram.

— Uau! — exclamou Tim. — Este é o armário mais cheio, mais abarrotado que eu já vi.

— Você tinha que ver o do meu quarto — respondeu Morte. — Agora, voltando à sua busca... Você não liga se eu chamar de busca, né? Eu sei que você é um pouco sensível em relação a certas palavras da magia.

— Não faz mal — Tim garantiu a ela. — Você ainda está brava comigo? — Ele continuava a olhar fixamente para o armário. Não conseguia acreditar no tanto de coisa que tinha lá dentro. — Ei, aqueles são todos chapéus?

— Nas caixas de chapéu? Não. Ali dentro tem um monte de porcaria. — Morte se agachou e começou a jogar malas, pastas de arquivo e as caixas de chapéu para o lado. Estava obviamente procurando alguma coisa.

— Não dá para dizer que estou brava com você, senhor Sarcasmo, mas também não o perdoei. — Ela soltou um grunhido quando empurrou uma caixa para o fundo do armário. Deu uma olhada para Tim por sobre o ombro. — Você pode tentar pedir desculpa. Funciona que é uma maravilha.

— Ah. Desculpa. — Ele se sentou no chão, atrás dela. — Desculpa mesmo.

— Desculpas aceitas. — Ela deu um daqueles sorrisos de matar. “Que bom”, Tim pensou. “A Morte tem um sorriso ‘de matar’. Essa situação rende umas piadinhas péssimas.” O mesmo tipo de piada que fazia com que Molly lhe desse um soco no braço sempre que ele contava, mas Tim sabia que no fundo ela gostava daquilo.

Morte se virou para ficar bem de frente para ele.

— Então, no que diz respeito a essa coisa da busca... o que exatamente você estava tentando descobrir?

— Eu já disse. Eu quero saber quem é o meu pai. Meu pai de verdade.

— Ah, é. Você disse mesmo. Mas nunca disse por quê.

— Por que todo mundo tem que complicar tanto as coisas? — reclamou Tim.

— Ei, foi você mesmo que disse que era complicado, lembra? — Ela se virou de novo e voltou a remexer no armário. Parecia que tinha achado o que estava procurando. Puxou um baú enorme com toda a força. — Só estou tentando compreender por que alguém sensato como você ia resolver dar um passeio na toca de um manticora. Quer dizer, você não simplesmente acordou em uma manhã qualquer com uma vontade louca e repentina de saber quem era o dono dos gametas que tiveram o prazer de se transformar no seu blastócito, não é?

— Hã? — “Que língua ela estava falando agora?”

— Ora, vamos lá — ela balbuciou para o baú. Olhou para trás, para Tim. — Você já teve educação sexual, não teve? Sabe como é. Esperma, zigotos, cromossomos etc.

— Claro. — “Que coisa. Mais biologia. Quem é que ia saber que a escola era mesmo tão importante?”

Ela arrastou o baú todo para fora do armário.

— Você quer mesmo saber de onde vieram os seus cromossomos?

Tim franziu a testa quando refletiu sobre a pergunta.

— Acho que não.

— Bom, então qual é a razão de tudo isto?

— Eu...eu acho que você sabe que a minha mãe morreu. — “Ah, mas que descoberta brilhante”, Tim caçoou de si mesmo. “É claro que ela sabe. Ela é a Morte.” Deu uma checada para ver se ela tinha escutado aquela observação idiota. Ela continuava olhando para ele, com a expressão preocupada. — Então, somos só eu e o meu pai há um bom tempo — explicou Tim. — Não tem nada de errado com ele, mas ele... bom, ele meio que se fecha em si mesmo às vezes, e esquece que eu estou ali. Daí um cara sem-teto me disse que o meu pai de verdade era um cara mal-humorado que consegue se transformar em falcão. E esse homem-falcão, o Tamlin, ele é um falcoeiro, mas eu sei lá o que é isso. Quando a gente se conheceu, ele me bateu. Na segunda vez, ele salvou a minha vida. Então tem ele e tem o meu pai de antes, e eu não sei a qual dos dois eu pertenço.

— Pertence? — repetiu Morte. — Aaaah, vocês, pessoas. De onde é que vocês tiram essas idéias? Vocês são mesmo muito estranhos.

Morte estava apoiada sobre as mãos e os joelhos ao lado do baú aberto. Seus olhos negros e brilhantes se fixaram bem dentro dos de Tim.

— Tim. Hereditariedade é uma coisa. Identidade é outra completamente diferente. Como alguém consegue confundir as duas é uma coisa que me deixa estupefata. E daí você começa a falar de pertencer a alguém porque essa pessoa estava por acaso no lugar certo na hora certa. — Ela sacudiu a cabeça e se sentou em cima dos calcanhares. — Ah, dá um tempo. Se vocês pertencem a alguém, pertencem a si mesmos. E a maioria de vocês nem mesmo consegue dar conta disso.

Tim ficou boquiaberto. Tinha pensado que ela estava do lado dele. E agora parecia que ela estava tirando sarro dele, desprezando todo mundo. Sua boca voltou a se fechar.

“E a gente fica achando que, se morrer, pelo menos os outros vão ser gentis com a gente”, pensou.

 

Tamlin tinha ido à propriedade devastada do manticora. Parecia que, quando Tim matara a fera, tudo em que ela tocara tinha explodido ou se despedaçado. As estantes de livros estavam tombadas, estilhaços de vidro das vitrines se espalhavam por toda parte. Só restavam os ossos e os corpos conservados da coleção do manticora. Algumas coisas são impossíveis de restaurar.

Depois que Titânia transportou Tim e Tamlin para a mansão, o falcoeiro limpou um dos maiores pedestais de exibição. Achou uma tapeçaria elegante e cobriu a plataforma, depois pôs o corpo rígido de Tim sobre ela. Colocou velas nos quatro cantos, criando um altar improvisado, e então se largou em uma cadeira de mogno esculpido que estava ali por perto.

Deixou as cortinas das janelas fechadas... ansiava pela escuridão. Não sabia dizer quanto tempo fazia desde que sua vigília começara. Horas? Dias?

Titânia abriu as portas de supetão e irrompeu na sala.

— Quanto tempo mais você vai ficar aqui se lamentando como uma coruja no escuro? — ela perguntou. — Chega de tanto tormento! Espero que você não se culpe pela morte da criança.

— Vejo que você se refere a Tim como “a criança” — observou Tamlin. — E fala como se ele já estivesse morto.

— Morto ou vivo, que diferença faz para ele você ficar aí sentado no escuro? — ela repreendeu. — Olhe nos olhos dele e você vai ver que não há nada ali além do vazio. O espírito dele foi embora.

Ela se ajoelhou ao lado da cadeira de Tamlin (que mais parecia um trono) e suavizou o tom de voz.

— Vamos embora, Tamlin. Nós perdemos Timothy, mas encontramos um ao outro. Fico chateada de vê-lo preso aqui há dias, com tanta dor... perdido como um falcão em uma armadilha, tão sozinho... e eu estou aqui para lhe dar apoio. — Colocou a mão na perna dele.

Tamlin repeliu a mão dela quando ficou em pé. Ficara sentado imóvel por tanto tempo que seu corpo parecia rígido.

— Não faz muito tempo, você disse que eu não era homem. Você me chamou de falcão.

— Tamlin, eu... — Titânia se levantou, mas não fez menção de se aproximar dele.

Dava para sentir que ela não sabia muito bem como agir. Ele também não sabia.

— Você falou com raiva, mas falou a verdade — ele disse. — Eu era jovem quando você me trouxe aqui, senhora. Aprendi a assumir a forma de falcão e a agir como um antes de saber o que era ser homem. Por seiscentos anos, voei com o vento, cacei e chamei aquilo de vida. Eu voava para o seu pulso quando você me queria ali, e chamava aquilo de amor. — Sentiu a raiva crescer dentro dele. Virou-se para olhar para ela. — Mas era só um jogo, senhora. Ser seu falcão. E descobri que estou cansado disso tudo.

Ignorando a expressão magoada dela, foi até onde Tim estava. Colocou as mãos na testa fria do garoto. O corpo de Tim estava bem azul àquela altura, e a pele toda esticada por sobre os músculos conferia a ele uma terrível aparência esquelética.

— Não é a culpa que me liga ao meu filho — afirmou Tamlin —, essa criança que poderia ter sido nossa. Também não é o pesar. É algo que você nunca vai entender.

— Que seria? — perguntou Titânia, atrás dele.

— Titânia. Será que você pode conseguir velas novas, por favor? Duas bastam.

Tamlin fez um carinho na testa de Tim, tentando amainar o tormento do menino. Houve uma longa pausa.

— Velas — disse Titânia, com a voz firme. — Muito bem.

Titânia saiu da mansão batendo os pés, com a fúria e a frustração correndo através de seu corpo. “Ele está achando que agora eu sou empregada dele, é?” Parou quando chegou à passagem em forma de arco da parede em ruínas.

— Amadan, venha até mim — ordenou.

O esvoaçante apareceu, pairando a alguns centímetros do rosto dela.

— Seu desejo é uma ordem, minha rainha. — Ele fez uma pequena mesura. — Agora, permita que seu bobo saiba o que há de errado. Não a vejo brava assim desde ontem. — Ele sorriu para ela.

— Cuidado com a língua, bufão, ou irá perdê-la — explodiu Titânia. — O que me preocupa não é da sua conta.

Deu uma respirada para se acalmar e assumiu sua postura mais imponente.

— Vá buscar duas velas e entregue ao outro bobo... aquele que está comungando com o cadáver ali dentro. — Fez um sinal na direção da mansão. — E, se o encontro o inspirar a cantar alguma canção ou a contar uma história divertida, faça o favor de não vir repeti-las para mim, a menos que queira ficar mudo para o resto da vida. — E, com um estalo de dedos, Titânia, a rainha do Mundo das Fadas, desapareceu.

 

“Coitadinha da rainha”, Tamlin pensou, enquanto acariciava a bochecha retorcida de Tim. “Deve ser desconcertante perceber que está com ciúme de uma criança à beira da morte. Como deve ser reconfortante, em momentos como este, saber que seu mundo existe para consolá-la.”

— Ah-ham.

Tamlin olhou por cima do ombro.

— Amadan — cumprimentou.

— Eu devia ter imaginado que eram para você, falcoeiro. — O esvoaçante segurava duas velas do mesmo tamanho de seu corpinho. — Ninguém é tão bom como você em deixar rainhas enfurecidas — comentou Amadan. — Que talento especial esse seu.

— Amadan. As velas.

O esvoaçante voou até Tamlin e colocou as velas ao lado de Tim.

— Então, o que você fez desta vez para deixar a senhora tão fora de si? Você matou o garoto?

Tamlin pegou um dos castiçais e tirou os restos da vela que tinha acabado. Colocou ali uma das velas novas que Amadan tinha trazido.

— Amadan, estou ocupado demais para saber por onde você anda. Mas, se você ficar onde está só mais um pouquinho, tenho certeza de que vou arrumar um tempinho para matá-lo.

Amadan saiu voando sem proferir mais nem uma palavra.

Tamlin preparou a outra vela.

— Foi Merlin quem me ensinou a assumir a forma de falcão — disse a Tim, apesar de saber que a criança não podia escutá-lo. — Ele me ensinou muita coisa além disso.

Chorou sobre o vinho que bebia quando me contou a história de como ficou ao lado do leito de morte de Artur em Avalon, ouvindo o rei gemer ao ser arrebatado pela morte durante o sono.

Tamlin tirou várias ervas da sacola e espalhou por cima do corpo de Tim.

— “Eu poderia tê-lo curado”, Merlin me disse com sua voz velha e cansada — Tamlin lembrou. — “Então por que não curou?”, perguntei, sem acreditar muito. “Você está caçoando de mim”, Merlin respondeu com os olhos faiscando. Ergueu as mãos e elas se transformaram em fogo por um instante. Achei que ele queria me mandar para o fogo dos infernos. Então ele se afundou de novo na cadeira e, com uma voz amarga, cheia de aversão a si mesmo, disse: “Não, você não entende. Como é que poderia entender?”. E foi aí que ele me contou a respeito do feitiço.

Tamlin estudou o serviço artesanal que tinha feito. As ervas estavam no lugar, as velas estavam acesas, as palavras tinham sido lembradas.

— É — disse Tamlin. — O feitiço.

 

Tudo bem, agora Morte tinha mesmo tirado Tim do sério.

— Ah, eu sou muito burro — retrucou. — Nós, as pessoas, somos todos muito burros mesmo. Certo. Muito obrigado, então. — Tim se levantou, mas percebeu que não tinha nenhum lugar para ir.

Morte abriu a tampa do baú e começou a tirar umas coisas para fora. Um saquinho de pregos. Uma pilha de cartões-postais. Meias sem par.

— Eu gostaria que você parasse de colocar palavras na minha boca. Não acho que você é burro. Não você exatamente. Só está confuso.

— Para você, é fácil dizer — balbuciou Tim.

— É, é mesmo.

Ela continuou a remexer lá dentro. Deixou Tim furioso. Ela era tão relaxada. E aquilo era muito importante para ele. Será que ela não entendia?

— Você não precisa se preocupar com nada — ele disse, em tom acusatório.

— Não, não preciso. Ah, olha só! Achei! — Estava segurando um envelope e sorria.

Tim não queria nem saber o que ela tinha encontrado. Parecia que ela não estava prestando atenção ao que ele dizia. Estava mais preocupada com aquele envelope do que com ele.

— Ninguém pode obrigar você a fazer qualquer coisa que não queira. Nem adultos, nem fadas... ninguém! — reclamou Tim. — E você nunca se perde, sempre sabe o que está fazendo e tal. Você tem essa sua missão esquisita. — Sacudiu a cabeça e ficou olhando para ela. — Você é tão feliz, e isso também é muito esquisito.

— Missão esquisita? — Ela riu. — Isso é mesmo muito bom. — Por fim sua expressão ficou mais séria e ela olhou diretamente para ele. — Tim, tudo o que você disse é verdade. Talvez você devesse perguntar a si mesmo... — Ela mesma interrompeu o discurso e parecia estar ouvindo alguma coisa ao longe. — Oops, tarde demais. Desculpe, Tim. Chegou a hora da missão esquisita.

Tim ficou olhando para ela, boquiaberto. Ela estava prestes a contar alguma coisa importante e ia sair assim?

— M-m-mas... mas não é justo! — ele protestou.

— Você tem razão. Não é mesmo.

Tim desmaiou quando tudo ficou preto e rodopiante de novo.

 

“A dor”, Tamlin pensou. “É só dor. Logo termina. A morte que ele teria agora é minha.” Tamlin gemia de agonia, retorcendo-se em sua cadeira-trono. “Quando o sacrifício estiver completo, minha vida vai ser dele.”

— Tamlin? — Morte apareceu na frente dele. — Você pode relaxar agora.

A voz dela era simpática e verdadeira, tinha um tom de sinos tocando. Tamlin sentiu que estava se elevando de seu corpo e indo na direção dela.

— Senhorita? A criança vai ficar...

— Ah, o Tim vai ficar bem — assegurou. Fez um sinal com a cabeça para o lado. — Mas é uma pena que vocês dois não tenham tido a oportunidade de conversar um pouco. Ele queria fazer uma pergunta a você.

Tamlin olhou para baixo, para seu filho. A vida que Tamlin tinha sacrificado já começava a reanimar o garoto. Os membros retorcidos de Tim se esticaram, sua pele começou a recuperar a tonalidade natural.

— Devemos deixá-lo enfrentar Titânia sozinho? — Tamlin voltou-se para a moça que ele sabia ser o anjo da morte. — Titânia acredita que me ama e vai culpá-lo pela minha morte. Ela vai ficar irada. Cruel.

— O Tim vai conseguir se virar — disse Morte. — Você vai se surpreender com a capacidade desse menino. Vamos.

Tamlin assentiu com a cabeça, e os dois desapareceram.

Tim se virou. O movimento derrubou uma vela, fazendo com que a cera quente pingasse em sua mão.

— Ai! — exclamou. Sentou-se e olhou ao redor. — Hã? Se isto aqui for o meu enterro, alguém deve estar bem decepcionado.

Colocou os pés na lateral da plataforma sobre a qual se encontrava e foi para o chão.

— Como foi que eu voltei para cá? — perguntou-se enquanto examinava com os olhos a mansão do manticora. — Alguém precisa indicar uma boa faxineira para limpar este lugar — comentou, chutando para o lado pedaços de vidro quebrado.

“Agora eu só preciso me lembrar de onde fica a porta”, Tim pensou, enquanto ia abrindo caminho no meio de toda aquela bagunça. Ficou paralisado quando viu a figura retorcida sobre a cadeira-trono.

Seu coração saltou no peito. Ele reconheceu aquela luva de couro, aquele cabelo comprido. De repente, percebeu o que devia ter acontecido.

— Seu idiota! — Tim gritou. Foi tropeçando até o corpo retorcido e morto de Tamlin. — Por que você fez isso? Eu estava morrendo muito bem, mas você tinha que se intrometer.

Jogou-se ao lado da cadeira e chorou. Soluços altos e cortantes faziam com que seu corpo inteiro tremesse. Tateou os bolsos à procura da Pedra da Abertura que Tamlin lhe dera, e chorou pelo pai em Londres e por este pai que ele acabara de descobrir, que tinha sacrificado a própria vida por ele. Chorou por toda aquela confusão, aquela tristeza, aquela exaustão que sentia.

Por fim, sentindo-se fraco e vazio, enxugou o rosto com a camiseta. Recostou-se na cadeira e abraçou as pernas. Estava com tanto frio... Tim sentia que agora tinha ainda menos certezas. Não estava entendendo mais nada. Só conseguia pensar que queria muito ver Molly, muito mesmo. Fechou os olhos, ainda com a pedra na mão, e caiu no sono, exausto.

Quando acordou de novo, estava de volta a seu quarto em Londres e o telefone estava tocando. Ainda segurava a Pedra da Abertura.

Desorientado, tirou o telefone do gancho em um movimento automático.

— Alô? — atendeu, com a voz rouca, arranhando a garganta.

— Tim? — disse Molly. — Tudo bem com você?

— O quê?

— Você já falou com o seu pai? — ela perguntou. — Sobre aquilo, você sabe, que a gente conversou antes?

— Quando? — Ele sabia que parecia um idiota completo, mas Molly o estava deixando confuso. Aquela conversa não tinha acontecido dias atrás?

— Tim, o que está acontecendo? Você parecia mais ou menos bem quando saiu daqui há uma hora. Agora parece todo desorientado de novo. O que foi que o seu pai disse pra você?

Há uma hora? E então Tim se lembrou de que o tempo corria de um jeito esquisito nos reinos mágicos.

— Você prometeu que ia me ligar depois de falar com o seu pai. Já falou?

— Falei. É, eu falei com ele sim. Desculpa por não ter ligado de volta para você... Mas é que eu precisei cuidar de um assunto.

— Então é verdade? — perguntou Molly.

— É, acho que é — respondeu Tim. Colocou a mão no bolso e seus dedos encontraram alguma coisa que parecia papel. Tirou um pequeno envelope do bolso e olhou para ele. — O que é isto?

— O que é o quê? — questionou Molly.

— Nada — disse Tim. Abriu o envelope e percebeu que era o mesmo que tinha visto na casa da Morte. Era a coisa que ela estava procurando. Por alguma razão, tinha dado aquilo para ele. Colocou na mão o conteúdo do envelope. Pareciam sementes. “Que coisa esquisita.”

— Olha, acho que eu preciso desligar agora — despistou Tim.

— Você quer vir aqui? — ela convidou. — Posso fazer um chá. A minha mãe jura que tem efeito calmante.

Ele queria falar com ela, mas havia outra coisa que queria fazer, e concluiu que precisava fazer sozinho.

— Não. Está tarde. Seus pais iam ter um ataque se eu aparecesse aí agora. Ah... Molly? Se você quiser fazer um chá bom de verdade, não deixe a água ferver demais.

Molly riu. Era uma risada amigável.

— Certo, especialista, pode deixar que eu sempre vou pedir conselhos culinários para você. — Então sua voz ficou bem suave. — Se você quiser ligar para mim... não faz mal se for tarde...

— Obrigado, Molly. Agora está tudo bem. — E quase sentiu que aquilo era verdade mesmo.

Desligaram. Tim ficou olhando para as sementes na palma da mão. Fechou os dedos em volta delas e saiu de casa na ponta dos pés. Todas as luzes estavam apagadas. O pai já devia ter ido para a cama.

As ruas estavam escuras e frias, mas Tim parecia não se importar. Deslocava-se com rapidez, sempre pela sombra, porque era no escuro que ele se sentia mais forte agora. Ia ganhando terreno com rapidez e, por fim, chegou ao cemitério.

Sem largar as sementes, pulou o portão. Caiu na terra congelada e foi na direção do montinho tão conhecido.

Ajoelhou-se no túmulo da mãe e ficou olhando para a lápide.

— Oi, mãe. Eu queria muito que você pudesse me contar como tudo isso aconteceu. Mas acho que agora já não faz muita diferença, não é? Você não está mais aqui. Tamlin não está mais aqui. Mas eu ainda estou. E não faz diferença como tudo aconteceu, como você conheceu um homem que também era um falcão, quer dizer... bom... acho que eu continuo sendo eu. Nada muda isso.

Tim limpou um pedaço de terra em cima do local de descanso eterno de sua mãe. Cavou um buraco raso e colocou as sementes lá dentro. Depois cobriu tudo de novo.

Ficou sentado ali mais um pouquinho, aproveitando a noite escura, aproveitando a sensação de estar vivo. Então se levantou, com as pernas muito mais firmes do que quando chegara até ali.

— Tchau — disse para a lápide. — Por enquanto.

Saiu do cemitério sem olhar para trás nenhuma vez. Mesmo assim, enquanto voltava para casa no escuro, não conseguia parar de pensar no que tinha acabado de plantar. O que nasceria daquelas sementes?

E o que aconteceria com todo aquele conhecimento novo que ele tinha? E as novas perguntas? Descobrir que seu pai não é seu pai de verdade, que impacto isso teria... sobre os dois? E saber que o pai de verdade tinha se sacrificado para que Tim pudesse sobreviver... Ele sacudiu a cabeça. Como é que iria aceitar aquilo?

Tim dobrou uma esquina, e a luz de um poste iluminou seu reflexo na vitrine de uma loja escura. Parou e ficou olhando para si mesmo.

— Então, Timothy Hunter, quem é você? — perguntou. — Tudo bem, fique aí de boca fechada — ele tirou um sarro do próprio reflexo. — Ou será que você só está escondendo o jogo? Essa deve ser uma boa idéia mesmo, nestes tempos tão estranhos. — Ele sorriu. — Talvez você não seja assim tão burro quanto parece, Hunter.

Hunter. Percebeu que seu sobrenome só era Hunter porque a mãe tinha se casado com o senhor Hunter. Se ela tivesse se casado com Tamlin, o nome de Tim seria... qual?

Foi aí que ele compreendeu. Timothy Hunter, então, não podia ser seu nome “de verdade”. Era só o jeito como o “chamavam”.

Então, qual seria seu nome verdadeiro?

— Não, muito obrigado — disse a seu reflexo. — Já fiz perguntas demais por hoje.

Foi para casa. Dessa vez, esvaziou a cabeça e ficou feliz simplesmente porque o ar frio o fazia lembrar-se de que tinha pulmões, que o céu da noite estava estrelado e que, de algum modo, tinha salvado um mundo inteiro. 

 

                                                                                                    Neil Gaiman e John Bolton

 

 

              Voltar à “SÉRIE"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades