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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENCARCERADOS / Alexander Gordon Smith
ENCARCERADOS / Alexander Gordon Smith

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

SOB O CÉU ESTÁ O INFERNO.
SOB O INFERNO, A PENITENCIÁRIA DE FURNACE.
SEM SAÍDA

Se parasse de correr, estaria morto.
Meus pulmões ardiam, o coração bombeando ácido, cada músculo do meu corpo ameaçava explodir. Não conseguia mais sequer ver para onde ia, a visão enfraquecendo, enquanto meu corpo se preparava para desistir. Se a sirene não martelasse em meus tímpanos, teria conseguido escutar minha respiração, furiosa e desesperada, incapaz de aspirar ar suficiente para seguir adiante.
Apenas mais um lance de escada, mais um, e talvez conseguisse.
Obriguei-me a correr mais rápido, a escada de metal rangendo sob meus passos desajeitados. Em toda parte ao redor outras crianças estavam em pânico, todas se precipitando na mesma direção, rumo à segurança. Não olhava para trás para ver o que nos seguia. Não precisava. Podia retratá-lo de memória, o focinho demoníaco, os olhos prateados e aqueles dentes... como fios de navalha.
Alguém segurou meu braço, puxando-me para trás. Perdi o equilíbrio, caindo sobre a grade de proteção. Por um segundo, o pátio apareceu cinco andares abaixo de mim, e quase me deixei ir. Melhor assim que ser devorado, certo? Então a besta soltou um grito da garganta úmida e começou a correr de novo, antes mesmo que eu pudesse pensar no que fazia.
Ouvi o ruído das portas da cela. Sabia que estavam se fechando. Se fosse capturado ali, estaria perdido. Saltei os últimos poucos degraus, me arremessando para o pouso forçado. De suas celas, os outros prisioneiros zombavam de mim, torcendo para que eu morresse. Vacilei e balancei para a frente, caindo.
De algum modo consegui passar cambaleante pela porta, um momento antes de ela se fechar com um baque, o mecanismo trancando-a com firmeza. A criatura gritou, um gemido tão demoníaco que fez minha pele se arrepiar. Arrisquei olhar para trás através das barras, vi seu imenso volume encarcerado passar por minha cela, nenhuma pele para esconder os grotescos músculos. Houve um bramido, como se a criatura tivesse encontrado outra vítima, mas não importava. Eu estava seguro.
Por enquanto.
— Essa foi por pouco — disse uma voz atrás de mim. — Está ficando bom nisso.
Não respondi, só olhei para fora da prisão. Seis andares de celas abaixo de mim, e só Deus sabia quantos mais acima da minha cabeça — todos profundamente soterrados. Sentia-me como se o peso do mundo me empurrasse para baixo, como se estivesse sendo enterrado vivo, e o pânico começou a se instalar. Fechei os olhos, aspirando o máximo de ar quente e podre que conseguia, tentando visualizar o mundo lá fora, o som, o oceano, minha família.
Todas as coisas que jamais veria de novo.
— É isso aí — ouvi a voz do meu companheiro de cela. — Aposto que já está começando a se sentir em casa.
Abri os olhos, e a prisão ainda estava ali. A Penitenciária de Furnace. O lugar aonde enviavam você para esquecer de si mesmo, para puni-lo por seus crimes, mesmo que não os tivesse cometido. Só uma entrada e nenhuma saída. Sim, este era meu lar agora, e o seria até que eu morresse.
O que não demoraria muito. Não com as gangues de olhos esbugalhados fixos em mim por trás das barras. Não com os homens de preto, os guardas que corriam as espingardas pelas grades de proteção, enquanto checavam as células. Não com aquelas criaturas de cujos olhos emanava uma fúria brutal, e do hálito, cheiro de sangue.
E havia coisas ainda piores em Furnace, muito piores. Talvez esta noite viesse a vigília sangrenta e me arrastasse da cela. Talvez esta noite me transformassem em um monstro.
Deixei-me cair de joelhos, a cabeça enterrada entre as mãos. Tinha que haver uma saída, um modo de escapar daqui. Tentei encontrar um no redemoinho de meus pensamentos; tentei imaginar um plano. Mas tudo que conseguia pensar era como viera parar aqui, como havia deixado de ser um garoto normal e me transformado em um prisioneiro no pior buraco do inferno na Terra.
Como tinha terminado aqui em Furnace.

 

 

 

 

PARA O INFERNO

Posso lhe dizer o exato momento em que a minha vida tomou a direção do inferno.

Tinha doze anos, faz agora dois anos, e estava com problemas na escola. Não era algo surpreendente, já que venho de uma parte barra--pesada da cidade, onde todos queriam entrar para o crime. A cada intervalo de almoço o playground se transformava em um campo de batalha para os vários grupos de amigos. A maior parte da guerra era travada com palavras — xingávamos uns aos outros, mandávamos a outra gangue sair da nossa área (tínhamos o controle do trepa-trepa e não desistiríamos dele). Só muito mais tarde compreendi como a escola pode ser parecida com uma prisão.

De vez em quando algo se desencadeava, e os punhos entravam em ação. Nunca dei um soco em todo o meu tempo de escola; só de pensar nisso ficava nauseado. Mas minha atitude não me tornava nem um pouco melhor que os garotos e as garotas que sujavam as mãos. Tornava-me pior — pelo menos lutar com os próprios punhos tinha uma espécie de nobreza.

Aquela terça-feira começara como um dia normal. Não tinha ideia de que era o início do fim. Meu primeiro passo em direção ao inferno. Eu, Johnny e Scud estávamos sentados no trepa-trepa, conversando sobre futebol e quem era o melhor goleiro inglês de todos os tempos. Era um daqueles dias em que tudo parecia estar perfeito. Você sabe, um céu azul que aparentava durar para sempre, e estava tão quente que o sol parecia ter envolvido a gente em um lençol. Quando penso em minha vida de antes, lembro desse dia. Penso como as coisas poderiam ter sido diferentes se tivesse me afastado.

Mas não me afastei quando Toby e Brandon arrastaram aquele garotinho pelo playground. Não me afastei quando começaram a empurrá-lo e a lhe fazer perguntas sobre por que seu pai o havia levado à escola em uma Range Rover. Não me afastei quando Toby deu o primeiro soco e o garoto desmoronou. Não me afastei quando Brandon arrancou a carteira do bolso do garoto e a atirou para mim.

Em vez disso, abri aquela carteira, peguei duas notas de dez libras e as enfiei no bolso. Depois dei as costas para o som abafado de socos e pensei no que ia comprar.

Esse foi o exato momento em que minha vida foi para o inferno.

 

“Confie sempre em seus instintos, Alex”, era algo que meu pai costumava dizer. Ele não era um completo estranho a situações problemáticas: nada sério, só alguns negócios suspeitos que não haviam saído como desejava. Era um bom homem, embora um pouco perdido, e não era o tipo de pessoa qualificada para dar esse tipo de conselho.

Mas estava certo. Os instintos existem por uma razão e, no dia em que saí da escola com as vinte pratas de Daniel Richard no bolso, eles gritavam para que eu encontrasse o garotinho e devolvesse o dinheiro. Você provavelmente já deve ter adivinhado que não lhes dei ouvidos. Não, aprendi a ignorar meus instintos, a desligar aquela vozinha que lhe diz para não fazer determinadas coisas, a negar o fato de que me odiaria pelo que estava fazendo.

E foi assim que me tornei um criminoso.

Mas a coisa não foi tão fácil. Começou comigo, Toby e Brandon andando pelo playground e exigindo dinheiro dos outros garotos. O tipo de coisa que você sempre vê nos filmes, antes de o grande e feio brutamontes ter o castigo que merece. Só que eu era magrelo e mirrado, não tinha má aparência e tive o castigo que merecia apenas dois anos depois.

Algumas moedas, de vez em quando uma nota de cinco libras e ocasionalmente algumas balas não eram o bastante. Quando Toby me sugeriu que invadíssemos uma ou duas casas, Brandon recuou. Eu, não. A cobiça não me permitiu. Então, fomos; assaltamos uma casinha a três ruas de onde eu morava, um lugar que sabíamos que ficava vazio à noite. Cerca de trezentas pratas enfiadas em uma lata e um punhado de joias que acabamos não tendo coragem de vender e jogamos no lixo.

Sabia que uma velha senhora morava lá — vi, de relance, um marido havia muito falecido nas fotografias desbotadas no aparador sobre a lareira — e que aqueles anéis significavam mais para ela do que qualquer quantia em dinheiro. Mas enterrei os escrúpulos, como enterrei todos os outros pensamentos desconfortáveis. Cometer qualquer crime fica mais fácil se você não pensa a respeito.

Nunca pensei no futuro, nem uma vez. Embora todos comentassem sobre as forças policiais linha-dura. Embora houvesse tolerância zero com relação aos crimes cometidos por jovens depois do chamado Summer of slaughter [Verão do Massacre], quando as gangues saíram por aí matando por diversão. Embora tivessem construído a Penitenciária de Furnace — a prisão de segurança máxima mais rígida do mundo para jovens criminosos, o lugar que o engoliria por inteiro se você tivesse o azar de adentrar suas portas. Eu me lembro dos arrepios que percorreram minha espinha quando vi pela primeira vez as fotos de Furnace na tv, mas nunca achei que terminaria ali. Não eu.

É claro que sabia que não podia continuar assim para sempre; mas o dinheiro continuava chegando, e eu conseguia me convencer de que era imbatível, que nada jamais aconteceria comigo. No meu décimo terceiro aniversário, comprei uma bicicleta nova, e no décimo quarto um computador de última geração. Era o rei do mundo, e ninguém poderia me deter.

Mas todos aqueles sentimentos obscuros e terríveis que havia enterrado ainda estavam ali. Podia senti-los se agitando e crescendo em algum lugar dentro de mim. Bem no fundo, sabia que caminhava para uma queda, da qual jamais conseguiria me levantar.

E, como em todo bom filme policial, a queda veio com um último trabalho.


UM ÚLTIMO TRABALHO

 


A casa estava vazia, sabíamos disso. Toby havia sido avisado pelo amigo de um amigo de que os proprietários estariam fora naquela semana, deixando para trás vários equipamentos eletrônicos suficientes para entreter um pequeno país e uma boa quantia em dinheiro de sua cafeteria.

Mas, por precaução, ficamos esperando do lado de fora, escondidos debaixo de um pequeno arbusto no jardim dos fundos, com apenas uma grossa parede de chuva e um conjunto de grandes janelas entre nós.

— Vamos, Alex — murmurou Toby, a água respingando do rosto. — Está mais vazia que o caixão do Elvis!

Toby tinha paixão pelo Elvis. Adorava tanto a música dele que se recusava a acreditar que o Rei estava morto. Ignorei o comentário e examinei os fundos da casa. As luzes estavam todas apagadas, e não vimos um único movimento lá dentro durante a meia hora em que passamos ali.

Toby estava certo; a casa provavelmente estava vazia, mas a última coisa que queria era me deparar com algum sujeito furioso que tivesse decidido ficar por ali. Isso havia acontecido uma vez, quando assaltamos uma grande casa no campo e dei de cara com um homem que estava indo ao banheiro. Ambos nos olhamos, em choque, pelo que pareceram horas, depois soltamos um grito em perfeita sincronia. Eu me virei e saí correndo, com ele atrás de mim. Foi ainda mais assustador do que parece — ele estava completamente nu.

Felizmente, nada parecido voltou a acontecer, mas estava ansioso por evitar qualquer outro encontro com proprietários, vestidos ou não.

Toby me cutucou, e fiz que sim com a cabeça, sentindo as gotas de água fria descendo pelas costas. O arbusto nos abrigava do pior do aguaceiro, mas de vez em quando as gotas deslizavam pelo rosto e pescoço, provocando uma irritante sensação de cócegas. Na época achava que era como a tortura chinesa da água. Agora sei que era diferente.

— Certo — sussurrei, ficando de pé e esfregando as pernas dormentes para lhes devolver a vida. Era uma noite de inverno terrivelmente fria, mas por uma brecha nas nuvens a luz da lua fazia o mundo brilhar como se fosse coberto de prata polida. Se não estivesse tão concentrado em infringir a lei, poderia ter parado para admirar a cena.

Respirando fundo, corri pelo jardim até a janela da sala de estar, pulando sobre os canteiros de flores para evitar fazer ruído no cascalho. Parei quando ouvi um murmúrio zangado atrás de mim e me virei a tempo de ver Toby pulando com um pé só na lama e segurando o outro sapato na mão.

— Droga! — murmurou para mim, a expressão em um misto de desgosto e descrença. — Por que sempre consigo colocar meu pé na merda?

Quis sorrir, mas não consegui. Estava muito excitado — a adrenalina inundava todo o meu corpo, como sempre acontecia antes de qualquer trabalho, fazendo o coração bater mais rápido que as asas de um beija-flor e aguçando meus sentidos. Sentia-me como um animal, consciente de cada som, visão e odor, pronto para me virar e fugir ao primeiro sinal de risco.

Enfiando as mãos nos longos bolsos do casaco, tirei apenas dois objetos (além de uma lanterna, item essencial a um ladrão): um cortador de vidro e um dardo de um revólver de brinquedo com ventosa na ponta. Lambendo a borracha da ponta do dardo, pressionei-o contra o vidro de baixo, à direita. Depois de alguns puxões para me certificar de que estava bem seguro, pressionei o cortador contra o vidro e desenhei um círculo. Guardando o cortador no bolso, puxei o dardo suavemente, e o vidro se soltou, deixando um orifício na janela.

— Voilà! — sussurrei com um sorriso, apesar da insuportável tensão do momento. — Faça as honras, Tobster.

Fiquei de pé de um lado e olhei para Toby, que tentava limpar o sapato no canteiro de flores. Toda vez que o esfregava, montes gigantescos de lama aderiam ao sapato, até que ficasse perdido em meio a uma maciça bola marrom — parecia ter enfiado o pé em um coco.

— Toby! — chamei.

Ele se voltou para mim, amuado.

— Estes sapatos custaram cem pratas — ele disse.

— Bem, compre novos com o dinheiro que vai ganhar hoje — repliquei, passando as mãos sobre meu cabelo ensopado. — Compre vinte pares.

Toby me lançou um sorriso e andou até a janela, deslizando a pequena mão lá para dentro e procurando o fecho. Depois de alguns segundos houve um clique alto, e a janela abriu com um rangido.

— Uau! — disse ele, surpreso. — Foi fácil demais.

Também achei. Fora fácil demais. Devia ter suposto então que algo estranho estava para acontecer, mas a cobiça é uma coisa poderosa, e tudo o que queria era entrar e sair de novo, com o máximo que conseguisse carregar. Se tudo corresse bem, o resultado do assalto daquela noite significaria que nenhum de nós teria que assaltar nenhuma casa durante meses.

— Certo, vamos lá — falei, cerrando os dentes e empurrando a janela até abri-la por completo.

O interior da sala estava escuro, mas conseguia enxergar uma série de prateleiras e alguns sofás lá dentro. Luzes vermelhas esparsas nos observavam das sombras, e imaginei que eram os olhos de algum cão de guarda do inferno que saltaria da escuridão, as presas à mostra, prontas para fazer em pedaços qualquer intruso.

Mas não eram olhos; eram luzes standby de uma fortuna em eletrônicos que logo estariam em segurança em nossas sacolas.

— Vou primeiro — avisou Toby. — Ajude-me aqui. — Ele levantou o pé, mas não me movi.

— Não vou tocar nisso — disse, olhando para os gigantescos nacos de barro e merda que pareciam estar grudados no sapato dele. — Por que você não me dá uma mãozinha?

Ele suspirou e juntou as duas mãos para formar uma cadeirinha. Colocando meu pé nas mãos dele, dei um impulso para cima, apoiando um dos joelhos no parapeito da janela e entrando na sala. Examinando o interior escuro para me certificar de que estava vazio, deslizei para o chão sobre o carpete macio, sem fazer barulho.

Toby continuava diante da janela segurando duas sacolas de lona, que peguei antes de agarrar seu braço e puxá-lo para cima. Ele estava quase lá dentro, quando o sapato cheio de barro escorregou na madeira do parapeito da janela. Com um berro ensurdecedor após o tenso silêncio, ele caiu sobre mim, fazendo com que nós dois e uma planta próxima tombássemos ao chão.

Durante um segundo ninguém conseguiu mover sequer um músculo. Estava ali deitado com o peso de Toby sobre mim, mal podendo ouvir algo além das batidas do meu coração. Mas não houve nenhum som de portas batendo, gritos aterrorizados ou pés descendo a escada. Pelo menos agora tínhamos certeza de que a casa estava vazia — a trapalhada de Toby teria acordado até mesmo um defunto.

Tirando-o de cima de mim, levantei-me e peguei minha sacola, estendendo a mão para Toby.

— Desculpe por isso — ele falou timidamente, levantando-se.

— Deixe pra lá, seu desajeitado — repliquei. — Comece pegando alguns desses eletrônicos, que vou procurar o dinheiro.

— Mensagem recebida — disse Toby, tirando uma lanterna da sacola e dirigindo o feixe de luz para a série de aparelhos de última geração alinhados sob a enorme televisão. Deixei isso a cargo dele, pegando minha própria lanterna e me dirigindo para a porta.

De fato, jamais superamos a sensação de estar na casa de outra pessoa sem sua permissão. Tudo é diferente — o cheiro, a atmosfera, até o ar parece estranho. Acho que tem a ver com o fato de eu estar sempre na casa de outra pessoa. É como se a própria casa não quisesse você ali, como se esperasse apenas um escorregão seu para sugá-lo para sempre na escuridão do aposento.

Tentando ignorar esses pensamentos, segui na direção de um pequeno corredor que dava para a escada. Segundo o amigo do amigo de Toby, os proprietários haviam guardado os lucros da semana em uma lata dentro do escritório, junto com um monte de dinheiro de um show beneficente que tinham patrocinado no fim de semana. Ia ser moleza.

Era uma casa antiga, mas bem cuidada, e as escadas não rangeram enquanto eu subia. Dirigi a luz de um lado a outro para ver aonde estava indo, as sombras parecendo dançar à frente, como se houvesse um exército de duendes maléficos se escondendo nos cantos e atrás dos móveis. Engoli em seco quando me aproximei do topo, maldizendo minha imaginação.

Havia seis portas no longo corredor, todas fechadas. Girando com cuidado a maçaneta da primeira, me vi diante de um antigo banheiro todo branco. A segunda porta abria para fora, revelando um armário vazio. Bem, quase vazio — quando estava prestes a fechar a porta, algo no escuro se precipitou sobre mim, batendo em minha testa. Quase gritei, lutando para me livrar do atacante, quando percebi que se tratava de uma vassoura. Empurrando-a de volta para dentro, fechei a porta com o pé, sem me importar mais com o barulho, e passei por um pequeno gaveteiro a caminho da porta seguinte.

Dessa vez ia dar certo. Essa porta dava para um grande aposento com uma escrivaninha no canto da parede. Fui direto até ela e mal pude acreditar em meus olhos. Sobre o tampo se encontrava uma pilha de notas de dez e vinte libras — além de vários sacos cheios de moedas —, que no total devia dar umas duas mil libras.

Foi quando colocava as mãos no dinheiro, com um sorriso enorme, que ouvi o som de gritos lá embaixo.

Congelei. Meu rosto ficou gelado, o couro cabeludo pareceu se eriçar tanto que chegou a doer. A casa não estava vazia. Toby havia sido descoberto pelo que parecia ser uma mulher muito chocada, o que significava correr para a saída mais próxima. Eu, por minha vez, estava preso ali. Peguei as notas e as enfiei no bolso.

Quando os gritos recomeçaram, percebi que havia entendido errado. Os berros não eram da proprietária — eram de Toby.

Mas aquele choque não foi nada, comparado ao medo que senti quando me virei. Das sombras atrás da porta do escritório, bem diante de mim, esgueirava-se uma enorme figura. Um homem cujo terno preto combinava perfeitamente com as paredes, mas cujos olhos brilhantes e sorriso vasto e sinistro cintilavam na escuridão como os de um tubarão na água fria e morta do oceano.


INCRIMINADO

 


Não preciso lhe dizer o que fiz em seguida. Corri, direto para a porta aberta. Mas a figura foi bastante rápida, fechando-a e me alcançando com um braço do tamanho de um tronco de árvore. Eu me encolhi, mas ele se moveu como um relâmpago, agarrando a lanterna de minha mão e atirando-a contra a parede. A lanterna arrebentou ao bater em uma prateleira, mergulhando o escritório na escuridão.

Bem, quase escuridão. Tudo o que consegui ver quando me afastei do homem foram seus olhos, que ainda se destacavam das sombras como duas moedas de prata. Seguiam-me cada vez que eu fazia um movimento, nunca piscando, tão brilhantes que pareciam queimar minha alma.

Tinha de sair dali. Não fazia ideia de quem era esse sujeito, mas estava na casa dele, e, a julgar pelo seu tamanho, ele podia me virar do avesso sem derramar nenhuma gota de suor. Considerava se poderia saltar pela janela sem me matar, quando ele se manifestou.

— Para onde você vai correr? — perguntou, e a voz era tão profunda que fazia vibrar os tacos do chão. — Consigo vê-lo, Alex.

Meu coração pareceu parar por um instante ao ouvir meu nome. Ele não podia saber quem eu era. Não havia como. Morávamos a um quilômetro e meio de distância dali e nunca vínhamos a essa parte da cidade, a menos que fosse para assaltar uma casa. Então entendi. Era um policial. Vinha nos seguindo, a mim e a Toby, depois de nosso último trabalho e havia nos cercado, colocando aquela casa como isca.

O pensamento me encheu de pânico. No fim, o que nunca achei que aconteceria agora estava acontecendo — ia ser preso. Outro grito de estourar os tímpanos penetrou no aposento, vindo de baixo. Que diabos a polícia fazia com Toby? De repente, desejei estar de volta à minha casa, enfiado na cama e sonhando; desejei nunca ter roubado aquele dinheiro de Daniel Richards. E sabia que, se não conseguisse sair daquele quarto, demoraria meses, talvez anos, para estar de novo em minha própria cama.

Toquei o dinheiro no bolso, percebendo como havia sido patético arriscar tudo por algumas centenas de libras — dinheiro inútil quando estivesse atrás das grades. Mas talvez pudesse se provar útil naquele momento. Agarrando o máximo de notas que pude, saquei-as do bolso e atirei-as contra o homem. Não esperei para ver que efeito tiveram, mergulhei no chão, rolando para fora de seu alcance e saltando para o outro lado da sala.

Não conseguia enxergar a porta: estava escuro demais. Bati as mãos com fúria ao longo da parede, sabendo que tinha apenas poucos segundos antes de sentir a imensa mão do policial sobre meu ombro. Mas não havia nada ali, exceto prateleiras e livros. Arriscando um olhar para trás, vi dois olhos esbugalhados percorrer a sala, e me contive para não desmoronar no chão aos gritos.

Quando ele estava acima de mim, no entanto, minha mão atingiu o batente da porta. Ao alcançá-la, senti a maçaneta e girei-a, abrindo a porta com tanta violência que ela quase se soltou das dobradiças. Atingiu o homem direto no rosto, mas sua única reação foi rir — um riso profundo e áspero que me seguiu até chegar lá embaixo.

— Corra, Alex, corra, Alex, corra, corra, corra! — vinha a voz dele, enquanto eu tateava o caminho rumo à escada. Que diabos estava acontecendo? Que tipo de policial diria algo assim?

Eu corria muito depressa e tropecei no alto da escada, quase mergulhando na escuridão antes de conseguir me segurar nas grades de proteção. Enquanto descia, tentei planejar minha rota de fuga. Obvia-mente, a sala por onde havíamos entrado agora era área proibida — não tinha a intenção de me encontrar com quem quer que estivesse ali com Toby. Ali estava a porta da frente, que ficava bem diante da escada; ou poderia tentar encontrar uma saída pelos fundos da casa. De um modo ou de outro, não podia ir muito longe no escuro.

No entanto, como ficou comprovado, não foi o escuro que me pegou. Assim que me precipitei do último degrau, todas as luzes da casa se acenderam ao mesmo tempo. Arquejei e coloquei as mãos sobre os olhos, o impulso me arremessando contra a parede. A iluminação me deixou completamente tonto, enchendo minha cabeça de estrelas e me fazendo perder o rumo.

Olhei de esguelha para o clarão e vi que o corredor estava vazio. Um olhar rápido para a porta da frente me fez perceber que havia muitas trancas para abri-la, por isso corri para os fundos, esperando que houvesse uma saída fácil.

Não consigo lhe dizer o que aconteceu em seguida. Não estou certo se foi o fato de meus olhos ainda não terem se adaptado à luz, ou se o medo e a adrenalina provocaram alguma reação em meu cérebro, mas foi como se uma figura simplesmente tivesse saído da parede. Num minuto meu caminho estava vazio; no seguinte, bloqueado por outro homem imenso — tão volumoso e tão alto que parecia ocupar cada centímetro do espaço.

Derrapei com a parada brusca, boquiaberto. Esse homem também vestia terno preto, camisa branca e gravata preta. Parecia mais um agente funerário que um policial. O que mais me assustou nele, no entanto, foi o rosto. Parecia ser totalmente inexpressivo e sorridente ao mesmo tempo — os olhos prateados me encaravam com um prazer indisfarçável, como os de um menino prestes a esmagar um inseto.

— Buuu — disse ele, a voz grossa tão profunda e assustadora quan-to a do homem lá de cima.

Recuei, balançando a cabeça. O homem havia deixado apenas uma rota de fuga — o lugar por onde tínhamos entrado. Precipitei--me para a porta da sala de estar, pronto para me atirar gritando pela janela. Mas o que vi naquela sala acabou com todas as forças do meu corpo, transformando minhas pernas em gelatina. Abalou tudo o que eu tinha para permanecer de pé.

A sala, deserta menos de cinco minutos atrás, estava agora cheia de homens. Eram todos quase idênticos em tamanho, fazendo os móveis parecer miniaturas e transformando o grande espaço em uma casa de bonecas — todos quase idênticos em feições, como se fossem irmãos. E todos usavam o mesmo terno preto imaculado. Contei quatro, e o som de passos atrás de mim deixou claro que os outros dois estavam no corredor.

Mas a figura da qual não conseguia tirar os olhos estava de pé entre os gigantes, encolhida e tremendo como se padecesse de um ataque. Parecia minúscula em comparação com os outros, mal atingindo os cotovelos dos homens, e usava um casaco comprido de couro preto que tornava a cabeça careca semelhante a um pálido pergaminho.

Sabia agora por que Toby havia gritado tanto. O homem usava o que parecia ser uma máscara de gás — um dispositivo antigo e enferrujado que lhe cobria a parte inferior do rosto e se estendia sobre o ombro até um tanque nas costas, como os usados por mergulhadores. Ofegava ruidosamente através daquela geringonça antiga, como se sofresse de um ataque de asma. Olhando sobre a parte superior da máscara, como duas passas colocadas em um mingau rançoso, estavam seus olhos, e a maneira como me encaravam fez com que me encolhesse e desejasse morrer.

Demorei alguns momentos para perceber o corpo frágil e trêmulo de Toby no chão sob um dos homens de preto. Ele me observava com uma fisionomia de puro terror, os olhos arregalados implorando por ajuda. Não sabia o que fazer; não sabia sequer quem eram aqueles homens. Olhando outra vez para a figura franzina ao lado da janela, me vi rezando para ver os uniformes familiares da polícia, e não esse show aterrorizante de golias e máscaras de gás.

— Que simpático se juntar a nós, Alex — disse o imenso homem de terno negro que estava de pé acima de Toby. Seu rosto era um reflexo dos outros, com o acréscimo do que parecia ser uma pequena verruga no queixo. A voz tinha o mesmo tom inconfundível das que já ouvira, parecendo um trovão distante.

— Todos aqui parecem saber meu nome — falei, as palavras saindo da minha boca antes de ao menos compreender o que falava. Apesar do terror que me paralisava naquele lugar, estava determinado a não dar a esses homens a satisfação de perceber meu medo. — Se soubesse que haveria uma festa aqui esta noite, teria trazido um bolo.

Para minha surpresa, todos riram da minha piada — um ruído tão profundo que fez vibrar o vidro que restava da janela. Foi o som mais assustador que já ouvira.

— Queríamos surpreendê-lo — continuou o homem.

— Bem, prendam-me, então; prendam a gente — sugeri, desejando apenas sair daquela sala. — Vocês nos pegaram com a boca na botija; levem-nos à delegacia, e confessaremos.

O mesmo riso sibilante que me perturbava. Quando terminou de rir, o gigantesco homem se voltou para seu amigo menor, como se esperasse por uma ordem. Segundos se passaram enquanto aquela figura esquisita com a máscara de gás examinava a mim e a Toby, para depois fixar os olhos escuros em mim e fazer um aceno com a cabeça.

— O quê? — perguntei, desesperado para saber o que estava acontecendo. — Que diabos esse sujeito quer?

— Quer que você se despeça do seu amigo — continuou o homem.

Sacudi a cabeça, o medo e a confusão revirando meu estômago. Por que só iam levar a mim, e não Toby?

— O quê? — repeti. Toby não olhava mais para mim, os olhos fixos no carpete, soluçando incontrolavelmente.

— Eles têm revólveres com silenciadores — falou ele, a voz sendo pouco mais que um sussurro. — Não são policiais, Alex.

Não entendi o que Toby disse até que o homem gigantesco abriu o paletó para revelar uma pistola no coldre enfiada sob a axila. Durante um segundo, senti o mundo girar como se estivesse prestes a morrer, e, quando consegui me recompor, o homem havia tirado o revólver com silenciador e o apontava para mim.

— Última chance para dizer adeus — disse ele.

Olhei para Toby, querendo que esse pesadelo terminasse, pensando nas coisas que nunca seria capaz de fazer se o homem puxasse o gatilho, pensando quanto sentiria falta dos meus amigos, quanto amava minha família. Tudo perdido por causa da ambição. Tinha sido tão estúpido! Não pude mais controlar minhas emoções, e meus olhos se encheram de lágrimas, turvando minha visão. Tudo o que consegui ver foram a silhueta do homem e a sombra negra que era seu revólver.

— Adeus, Toby — disse entre soluços. — Perdoe-me.

— Alex — foi tudo o que ouvi de sua resposta. Então a sombra negra se moveu, abaixando-se e emitindo um pequeno ruído que mal era audível contra os risos que mais uma vez encheram a sala. Tentei piscar para afastar as lágrimas, sem acreditar completamente no que via. Mas, quando minha visão clareou, compreendi que não havia como escapar do que acabara de acontecer.

Toby jazia imóvel, os olhos vazios, o carpete sob seu corpo da mesma cor horrível do ferimento na cabeça.

Pareceu terem passado horas antes que qualquer um tornasse a se mover. Era como se a conexão entre meu cérebro e meu corpo houvesse sido cortada, adormecendo todos os membros. Queria sentir raiva, ódio, pesar, qualquer coisa, mas tudo o que conseguia fazer era olhar para meu amigo, para o corpo que jamais se moveria de novo — só um cadáver com sapatos sujos. Minhas pernas enfim cederam, e caí de joelhos.

— Pronto — disse uma das vozes estrondosas. O homem gigantesco sacudiu o revólver em minha direção, e estendi a mão instintivamente, agarrando-o pela culatra e olhando-o em choque. Por um segundo, apontei-o para o brutamontes de terno preto, mas mal havia segurado um revólver de brinquedo antes, que dirá um de verdade, e com rapidez o atirei ao chão.

— Agora, se eu fosse você, Alex, sairia correndo daqui — continuou ele. — Quero dizer, você acabou de invadir uma casa, roubou uma enorme quantidade de dinheiro e atirou a sangue-frio na cabeça de seu melhor amigo. A polícia não vai gostar nem um pouquinho disso; então, por que não faz bom uso desses tênis e foge?

Não consegui responder. Não sabia do que ele falava. Mas de repente senti um enorme par de mãos me agarrar os ombros e, sem nenhuma dificuldade, me colocar de pé. As mesmas mãos me viraram e me empurraram grosseiramente para a porta da frente, que estava aberta.

— Boa sorte, Alex — falou a voz atrás de mim. — Corra o mais que puder, ou sente-se e se encolha de medo lá fora. De todo modo, logo vamos nos ver de novo.

Eu me virei e vi o rosto do homem de preto se abrir em um sorriso monstruoso — todos os dentes e olhos proeminentes. Lancei um último olhar a Toby, em repouso no leito vermelho, e corri para a chuva.


EM FUGA

 


Qual foi a situação em que você ficou mais apavorado? Talvez à noite, depois de assistir a um filme de terror, deitado sob os lençóis e convencido de que havia um monstro no quarto. Ou num dia na cidade quando era menor e percebeu que tinha se perdido de sua mãe ou de seu pai. Talvez cara a cara no playground com alguém que queria lhe arrancar as calças.

Multiplique esses sentimentos por um milhão e vai me encontrar em uma noite escura e chuvosa, correndo o mais depressa que podia pelas ruas escorregadias para fugir dos homens que haviam assassinado meu melhor amigo. Não sabia em que direção estava indo; só precisava ficar o mais longe possível daquela casa, por isso corri até minhas pernas parecerem feitas de chumbo, até os pulmões arderem e meu coração disparado e descompassado estar prestes a sair do peito.

Depois, caí no meio-fio, os soluços ofegantes tão altos que as pessoas das casas próximas puxaram as cortinas para ver o que estava acontecendo. Mas ninguém saiu para me ajudar, e não pude culpá-los. Se já cometeu alguns crimes, algo muda em você. É como se estivesse marcado com uma tatuagem que apenas as outras pessoas conseguem enxergar, e isso as torna tão cautelosas que atravessam a rua para evitar cruzar com você. Mesmo agora, tão desamparado como um bebê, minhas lágrimas conspirando com a chuva para ensopar o jeans, sabia que estava sozinho.

E também sabia que não podia ficar a céu aberto. Se o que aquele homem tinha dito era verdade, eu estava sendo procurado por assassinato. E isso não significava apenas um par de socos ou um mês ou dois no reformatório — era uma vida na prisão, em Furnace, com seus poços, castigos e sofrimento.

Apertando o passo, olhei para as placas da estrada a fim de me orientar, percebendo que a escola não estava muito longe dali. Soltei um profundo e trêmulo suspiro e recomecei a correr, descendo a Brian Avenue e cruzando uma abandonada Trafford Road até a série de casas que se enfileiravam ao longo dos fundos da Eastmark High. Toby, Brandon e eu havíamos fugido da escola dessa maneira inúmeras vezes para jogar futebol no campo.

Compreendi que Toby jamais jogaria futebol novamente, e esse pensamento foi como um soco no estômago. Mas contive as lágrimas, tentei tirar da mente a imagem do meu amigo morto enquanto tomava um atalho pelo jardim exageradamente crescido e subi na velha cerca rumo ao campo escuro e deserto adiante dela.

Só fui aprender a palavra ironia muito mais tarde, mas acho que foi irônico ter terminado andando pela grama escorregadia até o trepa-trepa, que se elevava da camada rala de névoa que precede a madrugada como o casco enferrujado de algum navio fantasma. Foi ali que tudo começou a dar errado.

Fazia apenas dois anos desde que roubara pela primeira vez, mas parecia ter passado uma eternidade. Não conseguia imaginar como era antes desse dia — um garoto que nunca tivera um mau pensamento na vida, que queria crescer e ser um mágico, que não se importava com dinheiro.

Imaginei aquele garoto agora, vendo-o dar as costas aos amigos e seguindo de repente um caminho tão diferente. E esperei que em algum lugar, em uma dimensão diferente, houvesse uma versão de mim que não sentasse sozinha em uma barra de metal desconfortável, no frio, esperando que a polícia a trancafiasse para sempre.

A chuva quase havia parado. Subi um pouco mais alto até a plataforma no alto do trepa-trepa e me inclinei contra a barra para olhar o outro lado do campo enevoado, misterioso sob o luar brilhante. De vez em quando o brilho era encoberto por uma nuvem de chuva passageira, lançando o mundo todo na escuridão. Cada vez que isso acontecia eu era tomado pelo terror — o medo de que uma monstruosa figura escura surgisse da neblina e me pegasse, levando-me embora para sempre. Mas a lua sempre voltava, banhando com sua prata líquida o campo e seu único habitante.

Minhas opções eram poucas e bem diferentes entre si. Podia ficar sentado ali e esperar a chegada da manhã, quando a escola estaria cheia de gente, todos me procurando. Podia ir para casa — certamente a notícia da morte de Toby ainda não havia chegado, poderia conversar com minha mãe e meu pai sobre o que acontecera. Podia ir para a casa de Brandon, esconder-me ali até pensar em um plano melhor. Podia fugir, ir em direção às montanhas e nunca mais olhar para trás. Ou podia apenas ir à polícia e contar o que de fato tinha acontecido naquela casa, quero dizer, que havia seis homens gigantescos e uma figura estranha com uma máscara de gás — alguém mais deveria tê-los visto.

Nenhuma dessas opções me pareceu particularmente atrativa, por isso as enumerei por ordem de probabilidade de fracasso. Fugir parecia ser a pior coisa a fazer, seguida de perto por esperar ali e ir à polícia. Restavam a casa de Brandon e a minha própria. Pensei na possibilidade de ver minha mãe, e isso me encheu de um misto estranho de tristeza e alegria. Talvez ela pudesse me dar um abraço, e tudo aquilo desapareceria. Certamente as mães tinham o poder de fazer qualquer coisa ir embora.

Mas a ideia de confessar tudo a ela era quase tão insuportável quanto a possibilidade de passar o resto da vida na prisão de Furnace. Teria de ser a casa de Brandon.

Estava tão perdido em pensamentos que não percebi a mudança na luminosidade até já ser quase tarde demais. Olhando para meus jeans, vi que tremeluziam sob o efeito de uma névoa vermelha e azul, parecida com luzes de discoteca. Mas ali não era uma discoteca. Estiquei a cabeça para cima e avistei dois carros de polícia estacionados a cem metros de distância do portão principal da escola, lançando um festival de cores pela grama escura.

Vários homens armados saíam dos veículos, a maioria equipada com rifles e lanternas, e um deles segurava o que parecia ser um cortador de cadeados. Caminharam em direção aos portões, o policial usando a ferramenta para tirar a pesada corrente antes de abri-los totalmente com um pontapé. Ele apontou para o prédio da escola, e dois policiais com lanternas passaram a correr naquela direção. Então examinou o playground, os olhos se aproximando até pararem no trepa-trepa. Fez um gesto em minha direção.

Eu me encolhi atrás das barras, enquanto dois fachos de luz atingiam a estrutura de metal, procurando por mim. Não havia tanta cobertura, mas a polícia estava bem distante para me enxergar, embora não por muito tempo. Quando voltei a olhar, os dois homens corriam pela grama em minha direção. Arrastei-me na plataforma até alcançar a beirada de trás, pronto para cair no chão. Mas, antes que pudesse, meu olho captou uma inscrição que, juro, jamais havia visto. Entalhadas na madeira macia da plataforma, em letras garrafais, estavam três palavras que fizeram meu sangue congelar:

Continue correndo, Alex.

Corri os dedos pelas marcas para ter certeza de que eram reais, e a sensação de farpas na pele comprovou que aquilo não era um sonho. Os homens, quem quer que fossem, sabiam o que eu ia fazer antes que eu o fizesse.

O som de passos pela grama molhada me fez recordar que a polícia se aproximava. Afastei-me para trás da estrutura, aterrissando desajeitadamente no chão macio e voltando à escuridão. Virando o corpo, corri para a cerca, obrigando minhas pernas cansadas a funcionar. Misturando-me à vegetação crescida, examinei a rua para me certificar de que estava vazia, então virei à esquerda e comecei a andar em direção à casa de Brandon.

Não havia falado muito com Brandon desde que Toby e eu tínhamos começado a roubar casas em vez de estudar. Era como se ele também pudesse ver aquela tatuagem invisível, e era bem claro pela maneira como agia agora que tinha medo de nós e do que havíamos nos tornado. Mas já tínhamos sido amigos próximos, e, mesmo que você tenha ido ao inferno e voltado, ainda conta com os amigos.

Atravessei a Edwards Avenue, tomando mais uma vez a esquerda até o alto da colina e me dirigindo para a Bessemer Road. As casas nessa parte da cidade eram enormes, os quatro andares olhando para a extensão de casas abaixo como se rissem delas. Acho que essa foi uma das razões para Brandon ter recuado — embora seus pais só tivessem um apartamento ali, não eram exatamente pobres. Não que eu estivesse roubando pão para poder sobreviver. Não sou Oliver Twist.

Localizei o prédio onde ficava o apartamento de Brandon e atravessei a rua, tentando permanecer em meio ao manto de sombras que deixavam a maior parte da rua na escuridão. Todas as luzes estavam apagadas, o que não era de surpreender, dado que já passava muito da meia-noite, mas eu sabia qual era o quarto dele. Esgueirando-me pelo portão da frente, peguei pequenas pedras no caminho de cascalho e alavanquei o braço para trás, para atirá-las na janela do segundo andar.

Antes que pudesse fazê-lo, algo agarrou meu punho — um apertão como o de um torno, que poderia ter arrancado meu braço. Engoli em seco, tanto pelo choque quanto pela dor, e me virei para deparar com uma tenebrosa face familiar de pé bem atrás de mim, os olhos prateados brilhando, a mesma verruga minúscula no queixo e o sorriso impiedoso como o do gato de Alice no País das Maravilhas reluzindo para mim. Era impossível — ele não estava ali três segundos antes, e ninguém poderia se mover tão depressa, tão silenciosamente.

— Sua mãe não lhe ensinou que não deve atirar pedras em janelas? — perguntou o homem de terno, a voz tão poderosa que parecia estar sendo transmitida direto para o centro do meu cérebro.

Não consegui responder. Todo o meu corpo estava entorpecido. O homem aumentou a pressão em meu braço, inclinando-se até seu rosto quase tocar o meu.

— Não demora, e o sol vai nascer, Alex — disse-me ele, e o odor de sua respiração recendia a leite azedo. — Agora você tem de se entender com aqueles caras.

Ele torceu meu pulso, fazendo-me girar e me dando um empurrão que me atirou para fora do portão. Tropecei em meus pés, camba-
leando para trás até o meio-fio e aterrissando como uma pilha de ossos na rua. Olhei para cima, bem a tempo de ver um carro de polícia frear com violência, guinchando segundos antes que o para-choque batesse na minha testa. Olhei para o jardim de Brandon, mas estava vazio — o homem de preto havia desaparecido com tanta rapidez quanto tinha surgido.

Ouvi o som de portas de carro se abrindo e fiquei de pé num salto, afastando-me do veículo. Um policial com um uniforme preto vinha em minha direção, e sua expressão era muito preocupante. Uma policial ficou para trás, uma das mãos no rádio e outra no cassetete de aparência desagradável que lhe pendia do cinto.

— Você está bem? — perguntou o homem, aproximando-se. — Você surgiu do nada. Nós o machucamos?

Continuei recuando, meus olhos se movendo de um lado a outro, do homem para a mulher. O rádio dela apitou, o som tomando toda a rua, antes que uma voz falasse em meio à estática. Não consegui entender o que ela respondeu, mas, pela maneira como me olhou, soube que não era nada bom.

— É ele! — gritou ela, arrancando o cassetete do cinto e avançando. A expressão do parceiro instantaneamente se encheu de raiva, e ele saltou, arremetendo-se contra mim.

Até aquela noite, teria achado que ele era um sujeito grande e também rápido. Mas, comparado aos homens de preto, o policial era minúsculo, e seus movimentos, lentos. Inclinei-me com rapidez para a esquerda, meu corpo em um ângulo tal que suas mãos não me alcançavam; depois girei, empurrando-o direto para trás e fazendo-o cair esparramado na rua molhada. Sua parceira gritou, mandando-me parar e saltando sobre o capô do carro com o cassetete erguido, pronta para me deixar de molho pela próxima semana.

Não sei como fiz isso, mas de alguma forma consegui recomeçar a correr. Você deve se lembrar de como ficam suas pernas depois das corridas na aula de educação física, quando se sente tão extenuado que parece estar correndo embaixo d’água. Era como me sentia — ao saltar de volta à calçada e descer aquela rua correndo, tentando segurar os soluços para poder respirar. Agora, lembrando do fato, e tendo em vista que a policial só me perseguiu até o fim da rua antes de retornar ao carro, não me parece muito ruim. Quero dizer, corri aterrorizado por coisas bem piores desde aquela noite, por exemplo, de criaturas que nunca param de me caçar.

Havia só um lugar aonde me restava ir, e me encaminhei para lá o mais rápido que pude. Não me lembro da jornada; foi como se meu cérebro se fechasse, de modo que toda a energia pudesse se concentrar em meus pés. E não podia parar de correr, mesmo quando me aproximasse de minha casa. Se eu continuasse em movimento, ninguém conseguiria me pegar — nem a polícia, reunida lá fora, nem os homens de terno preto que esperavam nas sombras, observando tudo com seus olhos prateados. Se eu conseguisse entrar, todas aquelas coisas ruins desapareceriam.

Então, não parei. Nem quando a polícia começou a berrar, nem quando os oficiais de máscaras negras e coletes à prova de bala correram para a rua com rifles, nem quando minha mãe chegou correndo à porta da frente vestida com sua camisola cor-de-rosa e chinelos, gritando para que me entregasse. Apenas baixei a cabeça e lhe respondi aos gritos com todas as forças.

Não sei como ainda podia ficar de pé. O mundo girava muito depressa, mas consegui passar pelo primeiro policial, meu impulso fazendo-o praticamente voar. O segundo recuou, ficando fora do meu caminho, a expressão de choque quase cômica. Podia ver minha mãe com lágrimas lhe escorrendo pelo rosto, sendo detida por duas policiais. Podia avistar a porta aberta atrás dela, a luz aconchegante da cozinha. Se conseguisse dar mais dez passos, talvez tudo aquilo acabasse. Talvez conseguisse encontrar Daniel Richards e lhe devolver seu dinheiro. Eram só vinte pratas!

Colidi com o terceiro policial. Era como um hidrante — todo peito e ombros. Quiquei nele, o vento me derrubando. Dei novo impulso à frente, mas era demais. Minhas pernas bambearam, e caí de joelhos pela segunda vez naquela noite. Estiquei-me todo até minha mãe, e ela se esticou até mim, mas o ar entre nós foi instantaneamente inundado com formas em uniformes negros, cercando-a como moscas. Logo jazia deitado no chão, com joelhos de estranhos às minhas costas, cassetetes contra meu crânio e algemas em torno de meus pulsos.

— Não o matei! — solucei. — Não o matei!

Mas não conseguia sequer levantar a cabeça da calçada, e, com o peso do mundo sobre meus ombros, só o concreto frio e úmido abaixo de mim ouviu minha contestação.


NEGAÇÃO E DANAÇÃO

 


— Não o matei!

Parecia ser a única coisa que conseguia dizer nos dias que se seguiram, uma espécie de mantra que continuava a repetir como defesa às perguntas e acusações. Os primeiros na minha cola foram os policiais que me atiraram num furgão, cujas zombarias e ameaças me machucaram muito mais que as algemas que me prendiam ao assento.

— Como pôde fazer aquilo?

— Não o matei.

— Ele era seu amigo.

— Não o matei.

— Bem, vai pagar por isso, garoto.

— Não o matei.

Em seguida foram os detetives. Começaram bondosos, como sempre fazem nos filmes, oferecendo acordos e indulgência se eu confessasse. Mas, quanto mais eu negava, mais duros eles ficavam, as perguntas eram tão insistentes que, no terceiro dia, quando chutavam minha cadeira e sopravam fumaça de cigarro no meu rosto, não tinha mais certeza se era culpado ou não.

Depois vieram os pais de Toby, que se sentaram do outro lado da mesa, agarrados um ao outro e gritando para mim, os olhos revelando um ódio que nunca vira em alguém, a raiva só contida pelos policiais que apoiavam as mãos em seus ombros trêmulos e lhes diziam que eu receberia o que merecia. A essa altura, meu mantra era um sussurro, pouco mais que um sopro, mas continuava a dizê-lo, porque, tal como um sopro, era a única coisa que me mantinha vivo.

As piores perguntas vieram das pessoas que eu amava: minha mãe e meu pai. Estava separado deles por uma janela de plástico suja, mas havia uma barreira muito maior entre nós. Podia sentir pela maneira como minha mãe era incapaz de me olhar nos olhos que ela me considerava culpado e, como todos os outros, recusou-se a ouvir meus apelos. Havia um desfiladeiro entre nós, ou uma montanha, e, quando ela foi conduzida para fora da sala pelas mãos trêmulas de meu pai, eu não consegui sequer encontrar energia para sussurrar minhas argu-
mentações.

Durante três semanas suportei interrogatórios todos os dias e fui atirado em uma cela todas as noites. É claro que lhes contei tudo o que aconteceu — os homens de terno preto, a figura sinistra com a máscara de gás, a maneira como haviam atirado em Toby a sangue-frio — mas, mesmo para mim, ao ouvi-las, as palavras pareciam ridículas, vazias. Não os culpei por rirem de mim. Jamais teria acreditado na minha história se eu mesmo não tivesse vivido aquele pesadelo.

 


Meu julgamento foi uma extensão do mesmo processo vazio. Entrei no tribunal com uma escolta armada e fui acorrentado dentro de uma cela — do tipo mais adequado para assassinos seriais e generais acusados de crimes de guerra, e não para garotos aterrorizados. As pesadas grades não detiveram o ódio dirigido a mim quando a audiência começou. Ele foi derramado como água gélida de um juiz que já estava convencido de que eu era um assassino, de um júri que já tinha tomado sua decisão assim que o caso começara e da multidão na galeria que ladrava por minha punição como hienas. Sentia-me afogar no desprezo deles e rezava apenas para que tudo aquilo acabasse, mesmo que significasse me afogar sem deixar vestígios.

Meu ânimo só melhorou uma vez, quando, no meio do segundo dia, as portas da sala do tribunal se abriram, e dois homens entraram a passos largos. Vestidos de preto e maiores que a própria vida, eu os reconheci instantaneamente — eram os homens que haviam me enviado para a prisão. A sala ficou em silêncio assim que entraram, e até o juiz baixou a voz por respeito, ou talvez por medo.

— Foram eles! — gritei quando se sentaram. — Esses são os homens que me incriminaram. Eles mataram Toby!

Mas o juiz só bateu o martelo e me lançou um olhar de desprezo:

— É claro que foram eles — respondeu-me com a voz cheia de sarcasmo. — Estes homens são representantes da Penitenciária de Furnace. É isso que apresenta em sua defesa? Acusar outras pessoas dos próprios crimes? Eu estava lá? Eu também tive um desentendimento com seu cúmplice e puxei o gatilho?

O júri riu, e os homens de terno preto revelaram aquele sorriso de tubarão, os olhos prateados faiscando em minha direção. Eu era como um peixe no final da linha, esperando para ser puxado.

O júri demorou menos de quarenta minutos para decidir meu destino. Doze homens e mulheres em uma sala com a minha vida nas mãos, e demoraram menos para me condenar do que o primeiro tempo de uma partida de futebol. Não que estivesse tentando fugir à responsabilidade. Não havia matado Toby, mas seu sangue estava em minhas mãos, assim como meu sangue estava nas dele. Se não tivéssemos sido tão estúpidos, nada disso teria acontecido. Nós dois estaríamos na escola como em qualquer outro dia, atormentando os professores, indo atrás das garotas, fazendo papel de garotos.

Nunca vou me esquecer da fala final do juiz, quando o júri anunciou o veredicto de culpado. Ele ficou de pé, a mesa de carvalho parecendo um púlpito, e a voz retumbante e os braços agitados eram como os de um pregador exorcizando o demônio.

— Seus crimes são odiosos e imperdoáveis — bradou, a espuma de saliva nos cantos da boca visíveis até mesmo de onde estava em pé. — Como tantos jovens de hoje em dia, você pegou sua vida e a destruiu, voltando-se para o crime em vez da honra; para a contravenção em vez da decência. Matou a sangue-frio; é um covarde, um ladrão e um assassino, e, como todos os outros frutos podres da sociedade que passam por este tribunal, estou contente em sentenciá-lo sem remorso nem piedade.

Inclinou-se para a frente, jamais desviando o olhar do meu rosto.

— Você sabia muito bem qual seria sua punição quando puxou aquele gatilho — murmurou entredentes. — Não há mais nenhuma indulgência para ofensores de crianças, não desde o Verão do Massacre. E, tal como aqueles adolescentes assassinos, você nunca mais verá a luz do dia. Por mim, seria condenado à morte. Mas lamentavelmente preciso me contentar com isso. — Fez de novo uma pausa, sorrindo com maldade para si mesmo. — Ou talvez contentar seja a palavra errada. Quem sabe este não seja um destino ainda pior.

Não sabia o que estava por vir. Apertei meus dedos em torno das grades, rezando uma última vez para que algo acontecesse para pôr fim àquele sonho macabro e deturpado. Mas era tarde demais. Estava acabado.

— Alex Sawyer, eu o sentencio à prisão perpétua na Penitenciária de Furnace, sem direito a condicional. Vai ser levado daqui esta tarde e encarcerado pelo resto de seus dias.

A resultante onda de aplausos e gritos, a batida do martelo e o estrondo em meus ouvidos, enquanto a verdade submergia, tornaram inaudível a única coisa que podia pensar em dizer:

— Não o matei.

 


Não me recordo de muito mais sobre aquele dia. Tenho uma vaga lembrança de ser arrastado da sala do tribunal pelos guardas armados, os homens de preto mantendo a porta aberta e me dizendo mais uma vez que logo me veriam de novo. Não conseguia me lembrar direito como usar as pernas, porque simplesmente me arrastaram ao longo dos corredores revestidos de mármore, passando pela multidão de cujo rosto emanavam ódio e repugnância, e por meus pais, cuja expressão não consegui decifrar, porque se afastaram.

Só me lembro de uma coisa com certa clareza. Quando passava por uma segunda sala no tribunal, as portas se abriram para revelar outro garoto, de idade similar à minha, sendo arrastado enquanto distribuía pontapés e berrava. Estava fazendo os oficiais de justiça passar por maus bocados, o corpo espancado provocando a queda de um deles no chão, obrigando o outro a pegar a arma de eletrochoque. Com uma faísca, cinquenta mil volts arremessaram o garoto para o corredor, deixando-o largado, gemendo e emitindo fumaça. Mas então consegui entender seus protestos, e eles me causaram um calafrio na espinha.

— Não fui eu — sussurrou, enquanto os homens o levantavam. — Não fui eu.

Pelo mais breve dos segundos nossos olhos se encontraram. Era como encarar um espelho — o medo, o pânico, o desafio. Soube de imediato que o que havia acontecido comigo também tinha acontecido com ele. Nossos destinos sombrios interligados pelos mesmos homens, a vida de ambos interrompida por uma fraude idêntica.

Então ele se foi. Fui carregado pelo corredor, aquelas lembranças diminuindo a cada passo e desaparecendo por completo quando subi na caminhonete que me levaria ao novo lar. Ao lugar onde passaria o resto de minha vida. A meu próprio inferno pessoal.

A Furnace.


ENTERRADO VIVO

 


Aposto que você já assistiu a filmes ou viu programas policiais em que os bandidos eram enviados à prisão. Sabe como se parecem: milhares de cercas arrematadas por arames tão afiados que machucam só de olhar para eles; extensos pátios encimados o tempo todo por refletores de um milhão de watts e torres com metralhadoras; prédios sem vida que se erguem do chão como grandes tumbas cinzentas; janelas minúsculas das quais rostos espectrais olham para o mundo exterior que não podem mais visitar.

Não em Furnace.

Nosso ônibus da prisão nos conduziu direto para lá. Eu, o garoto que havia levado o choque e dois outros adolescentes, todos tão pálidos quanto velas de igreja e acuados nos assentos como se de algum modo pudéssemos evitar chegar àquele destino inquestionável. O tempo todo os guardas balançavam as escopetas em nossa direção e zombavam de nós, perguntando-nos se havíamos visto a Penitenciária de Furnace nos noticiários, se sabíamos como era, se tínhamos alguma ideia dos horrores que nos esperavam.

Eu sabia. Havia visto Furnace na tv, como todo mundo. Depois daquele verão em que tantos garotos haviam decidido partir para o assassinato, tinham se certificado de que todos no país dessem uma boa olhada na prisão. Achavam que essa estratégia nos deixaria apavorados demais para violar a lei; apavorados demais para carregar facas e cortar pessoas apenas por nos olharem da maneira errada; apavorados demais para tirar uma vida humana. Olhando ao redor, imaginei que não tinham sido muito bem-sucedidos.

Havia aqueles que protestavam, é claro, os defensores dos direitos humanos, que diziam que trancafiar uma criança pelo resto da vida era errado. Mas não se pode argumentar contra a verdade durante muito tempo, e, naquele verão, quando as gangues se tornaram selvagens e as ruas ficaram cobertas de sangue, tudo mudou. Até aos olhos dos liberais não éramos mais garotos, e sim assassinos. Todos nós.

Costumava pensar que a espera era a pior parte, mas, quando viramos uma esquina e Furnace enfim se tornou visível, soube que teria preferido ficar naquele ônibus por uma eternidade a me aproximar mais um pouco daquela monstruosidade que estava à frente.

Era exatamente como mostravam os noticiários: uma escultura alta de pedra escura, inclinada e desfigurada como se tivesse sido queimada para adquirir vida. O Forte Negro, a entrada. O prédio sem janelas se estendia para cima, seu corpo se fundindo com um pináculo torto que parecia um dedo nos convidando a ir em frente. Subia fumaça de uma chaminé oculta atrás do prédio, uma nuvem de hálito envenenado es- perando para nos engolfar. Tudo ali se parecia mais com Mordor[1] do que com uma prisão moderna.

Enquanto nos aproximávamos, pude perceber detalhes que os noticiários haviam deixado de fora. Escavadas na pedra fria estavam grandes esculturas destinadas a inspirar medo em qualquer um que as visse — estátuas em cenas de tortura, cada uma com cinco metros de altura, mostrando prisioneiros em patíbulos, pendurados por cordas, em guilhotinas, suplicando aos executores, sendo arrastados para longe de entes queridos e, a pior de todas, uma cabeça gigantesca em cada canto empalada em uma estaca. As faces sem vida nos observavam, e, se não soubesse das coisas, poderia ter jurado que a expressão delas era de piedade, os tristes olhos úmidos pela chuva suave que caía.

— Não parece tão ruim — afirmou um dos outros garotos, a voz trêmula traindo seus verdadeiros sentimentos.

— Bem, isso não é nem a metade dela, garoto — replicou um dos guardas, batendo a espingarda na janela. — Esse é o melhor lado de Furnace. Vocês sabem para onde estão indo. — Ele baixou a arma, apontando-a para o chão. — Para baixo.

Estava certo, é claro. O prédio à frente era apenas a entrada, o portal para as terríveis fossas lá embaixo, a boca que conduzia às entranhas de Furnace, que ficavam centenas de metros sob o solo. Lembro-me de quando começaram a construí-la — devia ter seis ou sete anos; era uma pessoa diferente —, como encontraram uma fenda na rocha que parecia prosseguir eternamente. Haviam construído a prisão dentro do buraco e tapado a única saída com uma fortaleza. Qualquer um que quisesse escapar desse horror tinha só alguns quilômetros de rocha sólida para atravessar antes de sair em liberdade.

Presumi que isso aconteceria se um dia ela enfim desmoronasse. O pensamento de estar lá embaixo, no subterrâneo, pelo resto da vida de repente me atingiu como uma martelada no rosto. Não conseguia respirar; minha cabeça começou a girar, a bile subiu à garganta. Inclinei-me para a frente no assento e olhei para o chão, tentando desesperadamente pensar em alguma outra coisa, em algo bom. Mas tudo o que conseguia ver agora eram as nódoas de uma centena de outros prisioneiros que haviam vomitado ao confrontar a realidade do próprio destino.

Não consegui segurar. Vomitei, e o jato atingiu o assento da frente, fazendo o guarda saltar para trás. Tive mais ânsias, e depois olhei para cima, os olhos enevoados, esperando uma reação furiosa. Mas eles apenas riam.

— Parece que você ganhou de novo — disse um deles colocando a mão no bolso e tirando de lá uma nota de dez libras. — Como consegue sempre adivinhar quem vai vomitar primeiro?

— Quando estiver neste emprego há tanto tempo quanto eu — veio a resposta —, também vai saber.

Continuaram conversando, mas não consegui ouvir, envolvido que estava em ânsias de vômito e soluços, que ecoavam do estofamento manchado.

 


Quando o ônibus parou, fomos conduzidos como carneiros. Sentia-me como se tivesse vomitado órgãos vitais com o conteúdo do meu estômago, e minhas pernas estavam tão bambas que achei que fosse desmaiar quando me levantasse. Mas, assim que ficamos fora do ônibus, a sensação da chuva no rosto me animou um pouco. Bem, me animou até me lembrar de que aquela poderia ser a última vez que ficaria sob a chuva.

Estávamos bem em frente ao portão principal, em uma cela gigantesca que soltou um zumbido sinistro e fez minha cabeça latejar quando me aproximei das grades. Não precisava saber muito de física para adivinhar que precisava haver uma descarga elétrica em dose cavalar para produzir esse efeito. A entrada para a Penitenciária de Furnace era apropriadamente aterrorizante — dois enormes portões pretos encimados por um painel onde estava escrita a palavra culpado. Assim que ficamos em fila, os portões se abriram com um som não diferente de unhas arranhando uma lousa, revelando uma sala cinzenta vazia, exceto por dois homens vestidos de preto que se reclinavam casualmente contra as paredes e uma metralhadora de aparência perversa montada no teto.

Os homens sorriram para nós e avançaram um passo. Senti as pernas fraquejar de novo só de olhar para eles, e não estava sozinho. Os outros três garotos recuaram com medo, e até mesmo os guardas armados fizeram menção de voltar ao ônibus.

— São todos seus — disse um dos guardas, a voz pouco mais que um sussurro. Tirou um computador de bolso da jaqueta e o estendeu com a mão trêmula. — Se puderem pressionar aqui...

Um dos gigantes de terno se inclinou para a frente e pegou o aparelho, pressionando o polegar contra a tela, que emitiu um sinal alto. Observou os guardas armados se mover com rapidez para dentro do ônibus, depois voltou a atenção para nós. Examinei seu rosto. Com olhos cintilantes e sorrisos ameaçadores, todos os homens de preto pareciam iguais, mas reconheci este — a verruga no queixo me indicou que era quem havia atirado em Toby.

— Nós avisamos — ele falou, colocando a mão no ombro do garoto que estava a meu lado, mas se dirigindo a todos. — Podiam correr, mas não conseguiriam se esconder. E agora aqui estão, hóspedes de honra na Penitenciária de Furnace.

O outro homem caminhou até a frente da fila e agarrou o garoto pelo colarinho da camisa, puxando-o para a frente.

— Por aqui — disse, a voz parecida com o som de continentes se deslocando.

Arrastamo-nos para a frente com passos minúsculos, na esperança de que talvez nunca atingíssemos o limiar. Foi quando o primeiro garoto passou pelas portas que o segundo — aquele que caíra estatelado no tribunal — de repente fez uma pausa. Saltou para o lado e recuou um passo enquanto olhava para os homens que nos escoltavam.

— Você me acusou falsamente — gritou, e o rosto contorcido era uma máscara de raiva e medo. — Não matei ninguém, e agora vou passar o resto da vida neste pesadelo. Não vou permitir que façam isso.

Os dois homens começaram a rir, um ruído trovejante que ecoava nas paredes de pedra. Então, num piscar de olhos, aquele que estava à minha direita se adiantou no chão empoeirado e, com um golpe poderoso, atirou o garoto contra a parede. Se não tivesse visto com meus próprios olhos, não teria acreditado na força desse homem. Havia se movido tão depressa que deixara vestígios no ar, como fogos de artifício em uma noite de verão. O garoto atingiu o chão e rolou, terminando em uma massa avariada perigosamente próxima das grades eletrificadas.

— Você não seria o primeiro a fritar nessa cela — disse o homem, andando até ficar ao lado do garoto. — Mas é uma vergonha desperdiçá-lo em algo tão rápido e indolor quanto o Churrasco.

Abaixou-se e suspendeu o garoto pelo colarinho, como um urso que pega uma boneca de pano, e depois o levou de volta à fila. O garoto tinha o lábio sangrando e uma expressão abismada, como se acabasse de ser atingido por um trem de carga, mas de algum modo tivesse conseguido ficar de pé. Baixou os olhos em direção ao chão, mas eu o vi lançar um olhar assassino para o homem assim que este lhe deu as costas.

— Agora que a pequena rebelião acabou, espero que compreendam como isso é sério — esclareceu o primeiro homem, avançando até a frente da fila e nos conduzindo adiante. — Esta é uma instituição privada autorizada pelo governo, o que significa que vocês agora nos pertencem. Foram sentenciados a passar a vida na prisão, sem possibilidade de condicional. Então, a menos que haja uma revolução no país ou um ato divino, vão morrer aqui. Não que Deus vá querer se meter com Furnace.

Tropecei ao atingir o limiar, olhando para a linha que separava o chão lá fora da pedra polida do aposento à frente. Era apenas um passo, mas o último que daria como uma pessoa livre. Com um suspiro trêmulo, ergui a perna e coloquei o pé do outro lado. Pode ter sido apenas minha imaginação, mas o som daquele passo pareceu reverberar pelo aposento, um anúncio da morte que lamenta a vida perdida.

— Como podem ver, a maneira como vão morrer não nos importa — continuou o homem que guiava o grupo pelo aposento sem graça em direção a uma porta de metal em uma das paredes. — É claro que o Estado não tem pena de morte, mas qualquer tentativa de fuga será tratada com o uso de força letal.

A porta se abriu para revelar um longo corredor à frente, tão sem graça quanto o aposento do qual havíamos acabado de sair. Lancei um último olhar para trás, captando um vislumbre de uma nuvem escura através dos portões principais antes de se fecharem. Foi uma imagem fugidia, mas que jamais esquecerei.

— Não há nenhum ombro no qual possam chorar nem ninguém a quem apelar. A opinião pública já os julgou e os considerou culpados. No que diz respeito a ela, vocês já estão mortos.

O corredor terminou em outra porta, esta guardada por um terceiro homem, também de preto. Ele acenou para os colegas enquanto destrancava o portão e piscou um olho prateado para nós enquanto esperava que se abrisse totalmente. Passamos por ele, encontrando--nos em um pequeno aposento com um buraco em uma das paredes.

— Façam fila e peguem o uniforme da prisão — continuou o homem. — Um para cada. Depois passem por aquela porta para se limpar.

Obedecemos. Que escolha tínhamos? Um por um, aproximamo-nos do buraco na parede, e das sombras nos passaram um par de sapatos de papel, uma cueca que parecia lixa e uma peça de roupa dura, listrada, mais adequada para guardar batatas do que para vestir. O uniforme branco tinha o símbolo de Furnace — três círculos dispostos em um triângulo, um ponto no meio de cada um e linhas finas unindo--os. Segui os garotos que iam na frente através da porta para encontrar outro aposento, este repleto de cubículos minúsculos.

— Entrem, dispam-se e lavem-se — falou uma voz trovejante atrás de nós.

Escolhi uma porta, deixei meu novo uniforme em uma prateleira do lado de fora e entrei. Havia indicações na parede, e eu as segui, tirando minhas roupas e colocando-as em uma canaleta, onde desapareceram de vista. Tremendo de frio, apertei um grande botão vermelho diante de mim e fui instantaneamente atingido por um jato de água gelada. Dobrei o corpo, pressionando-o contra a parede para evitar o jorro. Mas o cubículo era muito pequeno, e tive de suportar aquilo pelo que pareceu uma eternidade.

Quando o jato parou, segui de novo as instruções e segurei a respiração enquanto uma nuvem de gás foi bombeada lá dentro. Aquilo ardeu nos olhos e na pele, e, mesmo depois dos trinta segundos estipulados, quando consegui respirar, ofegante, o gás ainda inundava meus pulmões, fazendo o peito arder como se eu estivesse em um incêndio.

Saindo pela porta, coloquei meu desconfortável uniforme e observei enquanto os outros três garotos emergiam dos cubículos — todos com olhos vermelhos, a pele pálida e tossindo. Parecíamos fantasmas assombrando o quarto onde havíamos morrido, o que não estava muito longe da verdade, suponho.

Com seu sorriso malicioso mais amplo do que nunca, o homem nos conduziu pelo aposento até um conjunto de portas de elevador. Sussurrou algo dentro do colarinho e, segundos depois as portas se abriram, revelando uma metralhadora no teto do elevador, balançando-se para nos encarar.

— É aqui que nos despedimos por enquanto — disse ele. — Este elevador vai levá-los à cela. Não tentem nenhuma gracinha, ou terminarão decorando as paredes. — Empurrou-nos para a frente com as mãos fortes, e entramos na cabine, a torre de tiro seguindo cada um de nossos movimentos.

— É como descer aos intestinos da Terra — disse ele quando as portas começaram a se fechar. — Espero que nenhum de vocês seja claustrofóbico.

Então ele se foi, e com um zumbido ensurdecedor de engrenagens o elevador blindado começou a descida rumo à escuridão do fundo do mundo.


A DESCIDA

 


Durante o primeiro minuto, nenhum de nós falou. Nem sequer olhávamos um para o outro. Era uma estranha mescla de emoções. Havia medo, é claro, tão espesso que quase se podia cheirá-lo, além do fedor de poeira e óleo, mas havia algo mais. Acho que era orgulho — se reconhecêssemos um ao outro, também reconheceríamos o próprio desamparo, o próprio pânico, e, depois do que havíamos acabado de passar, ninguém queria falar.

No fim, fui eu quem quebrou o gelo:

— Só queria estar a céu aberto — falei, acima do som de descida do elevador. — Não matei ninguém. Eles aprontaram comigo; atiraram no meu amigo e armaram para mim. Não sou assassino.

Pouco a pouco, os outros três garotos ergueram a cabeça, e pela primeira vez demos uma boa olhada uns nos outros.

— Bem-vindo ao clube — comentou o garoto que eu havia visto no tribunal. Era mais baixo que eu, porém mais encorpado, o corpo tão tenso quanto o de um gato de pelo eriçado. Afastou um fio de cabelo escuro e sujo do rosto e lançou um olhar nervoso à metralhadora no teto antes de continuar: — Esses caras de preto atropelaram uma velha. Mataram ela. E sabiam tudo sobre mim. Colocaram minhas digitais na roda, sabiam que eu não tinha álibi naquela noite nem como provar que não havia feito aquilo. A propósito, meu nome é Zê.

— Zê? — estranhei, arqueando uma sobrancelha. A pergunta provocou um breve sorriso em seu rosto.

— Eu tinha quatro irmãos mais velhos. Minha mãe tinha decidi-do que eu seria o último, então me chamou de Zê. E vocês, como se chamam?

— Alex — respondi. Olhei para os outros dois garotos. Eram o oposto um do outro — um parecia um varapau, o uniforme sobrando nele como trapos em um espantalho; o outro provavelmente havia comido barras de chocolate demais na vida, mas os olhos verdes eram agudos, e o olhar, feroz.

— Jimmy — falou o varapau, levantando a calça. — É, eu também não matei ninguém. A mesma história que a sua, Alex: mataram um amigo meu. Esfaquearam ele.

Todos nos voltamos para olhar o garoto gordo. Por um minuto ele pareceu prestes a chorar, mas então sua expressão endureceu e, com punhos cerrados, ele cuspiu duas palavras que nos deixaram congelados:

— Minha irmã.

Não havia ainda sinal de que o elevador fosse parar. Podia ser apenas um truque psicológico para nos dar a sensação de que estávamos indo mais fundo do que a descida real, mas duvidei disso. Demora muito tempo viajar um quilômetro e meio para dentro da Terra.

— Está dizendo que incriminaram todos nós? — perguntou Zê balançando a cabeça. — Não faz nenhum sentido. Por que fariam isso?

— Talvez porque tivessem celas para encher, metas a alcançar — sugeriu Jimmy, mas seu tom de voz deixou claro que não tinha certeza de nada. Nenhum de nós tinha. Não ainda.

— Ouçam — falei, certo de que o elevador tinha escuta e fazendo um movimento para os outros garotos se aproximarem. — O que quer que aconteça aqui, o que quer que tenham nos reservado, temos de ficar juntos. Certo?

— Estou com vocês — afirmou Zê. — Vou sair daqui de qualquer jeito.

— A única maneira de você sair daqui é num caixão — sussurrou o garoto que havia perdido a irmã. — Não ouviram falar sobre este lugar? Não há como escapar daqui.

— Bem, estou com vocês, caras — completou Jimmy, ignorando o comentário. — Não vou de jeito nenhum passar o resto da minha vida neste buraco.

O ruído do elevador mudou e, com um tremor de quebrar ossos, parou. No entanto, antes de as portas se abrirem, uma última observação cheia de ódio veio do canto da cabine:

— Vamos todos morrer aqui.

 


No momento em que as portas do elevador se abriram, meus sentidos ficaram instantaneamente em alerta. Posso descrever o que vi quando entrei em Furnace, mas não o que senti. Fiquei tão oprimido pelo que tinha diante de mim que estou certo de que parte do meu cérebro se apagou para não fritar. Era como um mecanismo de sobrevivência para me impedir de enlouquecer. Prestei atenção aos detalhes, mas eles não se registravam em nenhuma escala emocional.

O elevador havia nos levado às profundezas da prisão — uma extensão de pedra nua que era facilmente comparável ao tamanho de um campo de futebol — e, acima de nós, até onde conseguia enxergar, podíamos ver seu interior rudimentar e retorcido. Furnace com certeza fazia jus ao nome.[2] As paredes eram feitas da própria rocha; a superfície áspera e vermelha, que, à meia-luz do lugar, as fazia cintilar como se estivessem em chamas. O pátio sem sol era vasto e circular, e dispostas em espiral ao redor dele ficavam as inúmeras celas, as plataformas de metal cinza e escadas denteadas parecendo uma caixa torácica contra paredes de carne.

Olhei para o poço do elevador, que subia em uma linha implacável acima de nossa cabeça, o topo mal sendo visível onde adentrava a rocha vermelha do teto — interrompido apenas por uma gigantesca tela de vídeo que pendia sobre as portas. O elevador era a única entrada ou saída, e não havia absolutamente nenhuma outra maneira de voltar para cima.

O chiado de pneumáticos chamou minha atenção de volta às paredes próximas, e avistei mais duas metralhadoras sobressaindo da rocha como membros negros. Treinavam a mira em nós desde que havíamos saído do elevador para aquela vasta câmara, cada uma com um olho vermelho fixo parecendo inspecionar todos os nossos movimentos. Ponderei se haveria algum humano na outra extremidade dos controles ou se alguma inteligência robótica obscura tinha o dedo no gatilho, pronta para disparar ao menor sinal de problema. Não consegui decidir o que seria pior.

Sentia-me tão intimidado pela prisão que demorei algum tempo para perceber que estava cheia de pessoas. Elas se juntavam no pátio à frente, a maioria garotos mais ou menos da minha idade, outros um pouco mais velhos, e alguns que pareciam ainda estar no ensino fundamental. Alguns se juntavam em grupos, olhares e atitude enviando uma mensagem clara de que estavam no controle. Outros se refugiavam nas sombras ou olhavam através das barras das plataformas, todos com aparência doentia e olhos inchados. A maioria nos encarava, alguns rindo e gritando “calouros”, outros balançando a cabeça, com pena de nós. O olhar deles fez meu rosto arder, e baixei a cabeça para que ninguém notasse.

Não demorou muito tempo até que alguns avançassem um passo, mas estava bem claro que não se tratava de uma recepção de boas-vindas. Cada um dos seis garotos usava uma bandana preta com um desenho malfeito de um crânio. Teria sido digno de riso se não parecessem prestes a nos fazer andar na corda bamba.

— Deixe-me adivinhar — falei, antecipando-me sem saber direito o que dizia. — Acabaram aqui por pirataria.

Ouvi o riso abafado de Zê a meu lado, mas não houve nenhum sinal de sorriso nos rostos esburacados diante de mim. Um dos garotos, não o maior, mas de longe o mais feio, adiantou-se em minha direção, chegando tão perto que consegui enxergar a sujeira que lhe entupia os poros.

— Fiquem avisados desde o início, calouros — disse ele, cutucando meu peito com uma unha imunda. — Estão em nosso território agora e, portanto, seguem as minhas ordens.

Meu coração batia tão forte que parecia querer explodir. Tentei encará-lo e estava indo bastante bem, até que de repente comecei a pensar que fora assim que os garotos da escola deviam ter se sentido quando Toby e eu os pressionamos para nos dar dinheiro — impotentes, furiosos, envergonhados. Aquele pensamento me atravessou como ácido, e minha cabeça pendeu. Refletindo agora, esse breve momento de autopercepção provavelmente salvou minha vida. Eu vira os Caveiras matar pessoas por nada além de enfrentarem o olhar deles.

— Vocês todos me pertencem — continuou o garoto, falando devagar e enfatizando cada palavra enquanto cutucava cada um de nós no peito. — Não se esqueçam disso. Agora todos vocês são pele de Caveira.

Zê começou a dizer algo — me pareceu ser uma resposta inteligente —, mas, felizmente para ele, foi interrompido pelo som de uma sirene. Era ensurdecedor. Passou cortante pela minha cabeça e reverberou nas paredes escarpadas da prisão, até que os ecos morreram, quase vinte segundos mais tarde. Os garotos recuaram, juntando-se ao restante dos detidos, que se reuniam no centro do pátio gigantesco. Percebi um anel amarelo pintado no chão e imaginei se também deveríamos nos encaminhar em sua direção.

Mas era muito tarde para nos movermos. A sirene tocou de novo, e uma porta de metal do tamanho de um ônibus à esquerda do elevador passou a zumbir e ribombar, os mecanismos internos se atritando e girando enquanto liberavam uma série de trancas. Com uma explosão de vapor, as dobradiças da porta da cúpula se abriram devagar, revelando uma visão que, soube de imediato, me acompanharia ao túmulo.

 


Os guardas apareceram primeiro, três deles usando terno preto e apoiando espingardas nos punhos fortes. Caminharam pelo corredor cheio de vapor como se saíssem a passeio no parque, os olhos prateados repletos de um humor frio. Deixaram-me nervoso, sem dúvida nenhuma, mas não foi isso que me encheu de terror.

Atrás deles vieram mais duas figuras que pareciam terrivelmente familiares — os corpos atrofiados cobertos por sobretudos de couro, rostos enrugados e pastosos ocultos por antigas máscaras de gás que chiavam ruidosamente. Quase se perdiam à sombra dos guardas enquanto se agitavam e abriam caminho, mas os olhos negros — que pareciam tão sem vida quanto pedaços de carvão no rosto de um boneco de neve — nunca se afastavam de nós. Lembrei-me da primeira vez que havia encontrado uma dessas monstruosidades, da maneira como escolhera Toby para morrer sem o menor traço de emoção. Senti a raiva crescer dentro de mim, mas estava impotente para fazer qualquer coisa a respeito.

Além disso, não eram também tais aberrações que tornavam tão aterrorizante a cena à frente. Era o homem que caminhava atrás delas. De início, parecia um sujeito comum, em torno dos quarenta anos — bem alto, muito magro, cabelos escuros e um terno cinzento impecável. Mas, quanto mais o examinava, mais percebia que havia algo de muito errado com sua aparência. O rosto era anguloso demais, a pele muito esticada sobre os ossos, como se fosse um esqueleto revestido com a carne de outra pessoa — aliás, carne que mais se assemelhava a couro quando ficava sob a luz.

O mais estranho era que eu tentava olhá-lo nos olhos, mas simplesmente não conseguia. Meu olhar recuava, como se houvesse uma espécie de campo de força em volta de seu rosto. Sei que soa estúpido, mas não consigo pensar em outra maneira de descrever; quando tentava encará-lo fixamente, me via desviando para alguma outra coisa — seu queixo, seu terno, a parede. Que diabos significa-va aquilo?

O arremate bizarro para a cena grotesca diante de mim — a visão que de fato paralisava de medo meu coração — eram as duas criaturas que vinham trotando atrás do dono. Se o demônio possuísse cães, seriam esses. Eram imensos, maiores do que cães de caça irlandeses, as cabeças atingindo com facilidade a altura de meus ombros. As criaturas reluziam à luz avermelhada da prisão, e demorei algum tempo para descobrir por quê. Quando descobri, quase vomitei.

Não tinham nenhuma pele. Os corpos ágeis eram feitos de músculos e tendões que sobressaíam a olhos vistos, latejando com suavidade segundo as batidas do coração. Enquanto se moviam, podiam-se ver as entranhas trabalhando, os músculos se esticando e depois se contraindo, e enfim se tensionando quando o grupo se deteve. As faces também eram inteiramente desprovidas de pelos, dois olhos prateados incorporados à carne e cintilando diante do nosso grupo como se fôssemos o jantar.

Dei um passo involuntário para trás, mas parei, morto de medo quando os cães começaram a rosnar.

— Não se demora muito a aprender a obediência neste lugar — falou uma voz tão áspera e profunda que por um segundo achei que fosse irradiada diretamente para meu crânio. Mas o homem que estava com os cães movia a boca, portanto presumi que as palavras vinham dele. — E obediência é a diferença entre a vida, a morte e outras variedades de existência ofertadas aqui em Furnace.

O homem deu um passo à frente, os cães nos calcanhares.

— Obedeçam às minhas regras e se darão bem. Desobedeçam-nas e logo verão que aqui os pesadelos são realidade: seguem os mesmos corredores que vocês e assombram sua cela. Entre vocês e a insanidade, há apenas eu. Bem, onde estão minhas boas maneiras? Sou o diretor Cross e dirijo esta instituição. Sei quem são e o crime que cometeram. Mas aqui todos são culpados, por isso não os julgamos pelos caminhos que tomaram, e sim pela maneira como optam por viver nesta prisão.

Ele parou a uma curta distância de nós, e eu podia jurar que a temperatura caíra vários graus. Não sei por que, mas comecei a pensar nele como um buraco negro, algo que sugasse toda a vida, todo o calor e toda a virtude que pudesse haver nas proximidades. Quanto mais ele se aproximava, mais parecia ter alguma coisa sendo arrancada do meu corpo. Retorci-me em desconforto, e gotas de suor se formaram em minha testa.

— Vocês já violaram a primeira e mais importante regra de Furnace — prosseguiu o diretor da prisão. — Mas, como não a conheciam, acho que vou desculpá-los desta vez. Quando a sirene toca, devem ficar na cela ou no círculo amarelo no pátio. Se alguém viola essa regra, não posso garantir sua segurança. — Fez um gesto mostrando as metralhadoras na parede. — Trata-se de medida de precaução; vocês entendem, não?

Eu não entendia, mas me mantive calado.

— Se ouvirem um apito longo da sirene, devem ir para a cela. Significa encarceramento, e as coisas ficam de fato ruins se estiverem fora dela. — Dessa vez apontou para os cães, que passaram a salivar de modo asqueroso no chão de pedra. — É claro que há outros códigos de conduta, e vão ter muito tempo para se acostumar a eles. Mas deixem-me tranquilizá-los. Quero dizer, não somos monstros. — O rosto se abriu em um sorriso falso. — Bem, nem todos nós somos.

Um dos homens de preto entregou ao diretor uma folha de papel, e ele a examinou por um momento.

— Zê Hatcher — leu. — Prisioneiro número 2013832. Sua cela é a D24, quarto nível. Companheiro de cela, Carlton Jones.

Houve um arrastar de pés na multidão de detentos, e um garoto pequeno e ruivo se encaminhou para o limite do círculo amarelo. Fez um aceno de cabeça nervoso em direção ao diretor, depois um movimento para que Zê se aproximasse dele. Eu o observei ir, sentindo-me como se tivessem roubado meu melhor amigo, embora houvéssemos acabado de nos conhecer.

— Montgomery Earl — continuou o diretor, olhando para o garoto gorducho. — Prisioneiro número 2013833. Cela número E15, quinto nível. Companheiro de cela, Kevin Arnold.

— Diabos, não — ouviu-se uma voz na multidão. Era o garoto feio vestido de pirata. Senti o coração apertar pelo pobre Montgomery. Não sabia exatamente que vida ele teria junto àquele brutamontes.

O diretor voltou-se para Kevin, e o garoto deteve os protestos, cochichando algo para os outros Caveiras próximos.

— É melhor se mexer — sugeriu o diretor. Montgomery seguiu na direção do círculo amarelo, mas não consegui ver o que aconteceu depois.

— Alex Sawyer. Prisioneiro número 2013834. Cela F11, sexto nível. Companheiro de cela, Carl Donovan.

Olhei para a multidão, mas ninguém se adiantou.

— Eu disse Carl Donovan — sussurrou o diretor, a face repuxada se enrugando em desagrado. Pouco a pouco, um garoto alto e encorpado, um pouco mais velho que eu, fez menção de se aproximar, empurrando as pessoas à frente e me olhando como se eu fosse algo que seu gato tivesse cuspido. Passei a mão pelo cabelo, depois caminhei em silêncio pelo chão irregular de pedra. O diretor destinava uma cela a Jimmy, mas eu não o estava escutando mais.

— Oi — cumprimentei mansamente ao me aproximar do garoto com quem ia viver só Deus sabia por quanto tempo. Ele me encarou e bufou, depois se virou e andou de volta em meio à multidão. Atrás dele ouvi a voz do diretor gritar no pátio:

— Sob o céu fica o inferno, garotos, e, sob o inferno, Furnace. Espero que desfrutem da permanência aqui.


ACOMODAÇÃO

 


O garoto chamado Carl me conduziu ao fim do pátio, nem uma vez se virando para ver se o seguia ou não. Foi até um conjunto de escadas, e tive de correr para acompanhar seu passo — tropeçando em mais de um degrau em meu desespero de não ser deixado para trás. A certa altura, ouvi a sirene de novo e perdi o passo por completo, batendo com o queixo no metal áspero e gritando de dor. Olhei para o pátio lá atrás para ver a porta maciça da abóbada se abrir e o grupo macabro desaparecer parede adentro, todos, exceto os homens de terno preto que batiam no chão com as espingardas.

Carl subiu mais cinco lances de escada sem ficar muito ofegante. Quando o alcancei respirava como um aspirador de pó quebrado e transpirava como um lutador de sumô em uma sauna. Ele estava de pé do lado de fora da cela, parecendo impaciente, e me desculpei enquanto passava pela porta atrás dele.

Realmente não sei o que estava esperando. Sabia que não ia ser o Hilton ou mesmo um Travelodge, mas quando pensava em minha cela imaginava algo do mesmo tamanho de meu antigo quarto, com uma cama e um guarda-roupa, talvez até uma planta ou algo assim. Precisei parar assim que entrei no quarto minúsculo, ou teria batido meu nariz na parede do fundo.

A cela era pouco maior que o nosso pequeno jardim, e a maior parte dela era ocupada por um beliche de metal que parecia mais adequado a meninos de oito anos numa festa do pijama. Além de uma privada encaixada no canto, a única outra coisa que havia ali era mau cheiro.

— Deve estar brincando comigo — murmurei. Senti outra onda de pânico me assaltar enquanto me imaginava o resto da vida atolado neste minúsculo espaço, e mordi forte meu lábio para me manter sob controle.

— Não é muito, mas é nosso lar — falou Carl, empurrando-me para fora do caminho e saltando para a cama de cima. — E esta aqui é minha.

Sentei-me na cama de baixo e olhei para as grades, que constituíam toda uma parede da cela. Tudo o que pude ver, do outro lado do poço gigantesco, eram mais celas e mais prisioneiros, os rostos cinzentos parecendo um reflexo do meu próprio. Pensei em sair correndo da cela e pular do balcão em frente. Seis andares de altura e rocha dura lá embaixo — três ou quatro segundos, e tudo estaria acabado. Mas não havia como; não tinha disposição para fazê-lo. Não ainda, pelo menos.

— Seis andares não é o suficiente — ouvi uma voz acima de mim, profunda, mas surpreendentemente melodiosa. Arqueei uma sobrancelha, imaginando se ele havia lido minha mente. — Tudo bem. É a primeira coisa em que qualquer um de nós pensa. Também já vi pessoas fazer isso: pular de praticamente todos os níveis. Bem, pelo menos daqueles que estão abertos. Dos primeiros andares, você torce os tornozelos e consegue alguns machucados. Dos níveis três ao seis, fica bastante quebrado, mas não morre. A menos que bata a cabeça primeiro, o que não é fácil. Se realmente quiser comer pó, tem de subir mais, para os níveis sete ou oito. Aí acho que você consegue.

Ouvi a cama estalar e balançar quando ele mudou de posição.

— É engraçado — prosseguiu —, você sobe mais, mas não consegue morrer também. Vi um garoto cair do décimo andar, mas ele só quicou e gritou. Morreu um pouco depois, é verdade, mas não quero nem saber o que passou antes disso.

Eu me encolhi diante de tal pensamento e prometi a mim mesmo que jamais pularia, por piores que fossem as coisas. A cama estalou de novo, e uma cabeça apareceu do beliche de cima. Fiquei surpreso ao ver um sorriso.

— Meu nome é Donovan — disse ele. — Sempre achei que soava melhor que Carl. Você é Sawyer, certo?

— Alex — respondi, não muito pronto a abandonar meu primeiro nome.

— Alex, certo. — Ele saltou da cama e aterrissou com graça no chão, antes de sentar-se do meu lado e me examinar de cima a baixo. — Você parece ser um bom garoto. Tem que tomar cuidado aqui, porque vai encontrar verdadeiras aberrações. Assassinos, sabe? — Riu-se. — Bem, todos somos assassinos, mas há dois tipos: os que mataram por diversão, e os que fizeram isso porque não tiveram escolha.

— E os que não fizeram isso — acrescentei com um sorriso triste.

— Sim, ultimamente estamos tendo alguns desses aqui.

Cutuquei meu travesseiro com melancolia e ergui o lençol. Era tão fino que conseguia enxergar através dele, como papel impermeável. Não que achasse que sentiria frio. O ar ali era quente e denso, como se estivéssemos sentados em um forno.

— Está aqui há muito tempo? — perguntei.

Donovan soltou uma espécie de riso confuso, em que não havia absolutamente nenhum humor:

— Cinco anos, Alex. Sou da primeira geração. Já estive na prisão durante alguns meses, a quilômetros de distância daqui. Jesus, aquele lugar era legal: celas espaçosas, instalações de lazer, sala de recreação. Era como um clube de campo comparado a isto aqui. Transferiram os menores de dezoito anos para Furnace logo que ela abriu, assim todos os outros garotos poderiam ver o que acontecia quando faziam coisas ruins.

— Mas você foi incriminado, certo? Pelos homens de preto?

— Não. — Ele fez uma pausa de cerca de um minuto, olhando através das grades, mas obviamente a quilômetros de distância. — Os ternos-pretos incriminaram muitas das pessoas que estão aqui, mas eu sou realmente culpado. Matei o namorado da minha mãe, porque ele batia nela todas as noites. Não pude mais suportar aquilo. Pulei em cima dele e o atingi com um candelabro. Foi um golpe de sorte, imagino, para um garoto de onze anos. Ou de má sorte, dependendo de como você encare.

— E eles o prenderam? — indaguei, incrédulo.

— As novas leis haviam acabado de ser aprovadas, aquelas que reprimiam os crimes da juventude. Aquele foi o ano de todos os assassinatos, o Verão do Massacre, como todos chamam. Embora não tivesse nada a ver com as gangues, o governo usava todos os casos de assassinatos cometidos por jovens como advertência, por isso entrei no meio. A ironia é que minha mãe... Bem, ela não conseguiu suportar. Ela...

Ele parou e desviou o olhar. Juro que pude sentir sua raiva como uma força emanando dele.

— Como sabem que horas são aqui? — perguntei, tentando mudar de assunto. — Não há sol, nem relógios.

— Não dá para saber — replicou Donovan, obviamente contente pelo novo rumo da conversa. — Você simplesmente se guia pelas sirenes e pelo encarceramento no fim do dia. O ritmo aqui é completamente diferente, mas você se acostuma. — Ele se levantou e caminhou até a porta da cela. — Por falar nisso, deixe que lhe mostre uma coisa. Um rango agora não iria nada mal, e já está quase na hora de irmos à cantina.

Subi na cama, mas não antes de perceber uma série de cortes que corriam ao longo da parede — cinco linhas escavadas na pedra que iam da cama à porta. Ele me viu olhando para elas e franziu o cenho:

— Logo vai saber tudo sobre isso — sussurrou ele.

— O que são? Parecem feitos por unhas. — Estava brincando, mas pelo modo como a expressão dele endureceu percebi que era verdade.

— Este lugar não é correto — prosseguiu Donovan, inclinando-se para tão perto de mim que pude senti-lo cuspir em meu rosto enquanto falava. — Você nunca está seguro aqui, porque um dia será a sua vez de ser levado — talvez em uma semana, talvez em anos, talvez esta noite. Alguns ficam quietos, outros, não. Adam, não. Ele continuou gritando, escavando a parede e lutando pela vida.

Ele correu o dedo por um dos arranhões, depois voltou a atenção para mim:

— Na calada da noite eles vêm buscá-lo, Alex — falou. — Mais cedo ou mais tarde, buscam todos.

 


Os arrepios continuavam a percorrer meus braços durante toda a descida dos degraus, enquanto fazia pergunta após pergunta atrás de Donovan, mas, agora que estávamos fora da cela, seu ar de dura indiferença retornou, e ele me ignorou. Só voltou a falar quando atravessávamos o pátio, embora o sorriso não existisse mais.

— Perdoe-me por parecer o Médico e o Monstro, garoto — disse com uma expressão rígida, os olhos encarando com frieza todos por quem passávamos. — Neste lugar você tem que parecer duro o tempo todo, do contrário eles o pegam. — Quando perguntei quem eram “eles”, Donovan fez um aceno de cabeça em direção ao grupo de garotos com bandanas pretas reunido em um dos cantos. Kevin estava lá, mas Montgomery, o garoto gordo, não consegui ver em lugar nenhum.

— Os piratas? — perguntei. Donovan fez um ruído nasal semelhante a um riso.

— É, os piratas. Também conhecidos como Caveiras. Foram um dos grupos responsáveis pelo Massacre. Não são a única gangue aqui, mas com certeza são a pior. Todos carregam bicudas. — Ele percebeu minha confusão. — Facas de fabricação própria. Eles as fazem de qualquer coisa que consigam encontrar. Pedras, talheres, até de ossos. E também não temem usá-las.

Havíamos cruzado o pátio e chegado a uma grande fenda na rocha que conduzia a um túnel. Como tudo o mais ali, ela se misturava com perfeição às paredes vermelhas, por isso não a tinha localizado antes. Havia mais duas metralhadoras montadas nas paredes deste lugar, uma apontando direto para nós, a outra dirigida para a abertura. Ignorando-as, Donovan foi em frente.

— Mantenha distância das gangues quando entrar num local — prosseguiu ele enquanto caminhávamos pelo túnel. — Por aqui os guardas não dão a mínima se matarmos uns aos outros, e esses garotos não têm nada a perder. A sentença deles não vai ficar mais longa se matarem mais alguém, se é que entende.

Entendia, embora não conseguisse acreditar totalmente no que estava ouvindo.

— Então são eles que vêm à noite? As gangues?

Dessa vez, Donovan riu alto, o som ecoando pelas paredes e me fazendo pular. Ele apenas balançou a cabeça e foi em frente, conduzindo-me a outra câmara de rocha nua. Esta era cheia de mesas e bancos, a maioria dos quais vazios naquele momento. Na extremidade do aposento estava uma cantina deserta, não diferente daquela da escola. O teto aqui era muito mais baixo, obrigando-me a curvar enquanto andávamos para a mesa mais próxima. As paredes robustas me faziam sentir como se estivesse no estômago de algum monstro gigantesco — um lugar para onde se vai para ser digerido, e não para comer.

— Seja bem-vindo à sala do cocho — falou Donovan. — É aqui que você come suas três saborosas e nutritivas refeições diárias. Carne, salmão, veado, champanhe, trufas. Mãos à obra!

— Sério? — perguntei, com um vislumbre de esperança se acendendo dentro de mim tal qual o efeito de uma droga.

— É claro, acho eu. O problema é que você nunca consegue ter absoluta certeza do que está comendo, porque vem misturado com cerca de uma tonelada de serragem e servido como grude. Gosto de pensar que o que comemos costumava ser comida de verdade.

O vislumbre se apagou, junto com o apetite. Ocupamos cadeiras opostas uma à outra, enquanto os prisioneiros lentamente faziam seu percurso à cantina, onde a comida era servida. Alguns minutos mais tarde soaram dois toques curtos de sirene e um prisioneiro suado emergiu, lutando para carregar um grande contêiner.

— Como eu disse, só há um jeito de fazer isso — replicou. Donovan se levantou e passou a andar rumo à cantina. Pretendia acompanhá-lo, mas ele fez um gesto me mandando sentar de novo e gritando sobre os ombros: — Permita-me.

Eu o observei ir. Os prisioneiros estavam todos se amontoando em volta da cantina, mas não havia fila — não que de fato esperasse uma em um lugar como este. Eram mais como abutres bicando um cadáver. Os fortes tinham prioridade, acotovelando-se em meio aos outros para serem servidos primeiro. Não sei se foi um alívio ou um choque ver Donovan conseguir abrir caminho para a linha de frente, os garotos menores distantes dele e se abrigando longe da multidão. Mas mesmo ele deu um passo para o lado a fim de deixar os Caveiras passar, nunca tirando os olhos deles enquanto pegavam a comida e se afastavam.

Fui desviado do espetáculo por uma mão suave em meu ombro. Virei a cabeça e avistei Zê. Ele sentou-se no banco a meu lado e inclinou--se para bem perto de mim, o rosto contorcido de pânico.

— Este lugar é como um campo de extermínio — sussurrou. — O que me diz das gangues, das metralhadoras e daqueles guardas aterrorizantes...

— Os ternos-pretos — falei.

Zê teve um calafrio.

— Vi manchas de sangue no chão da minha cela, por Deus. — Pensei nas marcas da minha parede, mas não comentei nada. — Como é o seu companheiro? O Carl?

— Donovan — respondi, observando-o se aproximar com duas bandejas de comida. — Ótimo. Acho que tive sorte. E quanto ao seu?

— Tudo bem. Um garoto quieto. Não assustaria nem um ganso, como minha avó costumava dizer.

— Não o culpo — respondi. — Uma vez fui perseguido por um ganso em um parque. Podia jurar que ele tentava quebrar meu braço. Eles são maus.

Estávamos os dois rindo quando Donovan chegou; ele olhou para nós como se fôssemos loucos.

— Em geral demora algumas semanas para as pessoas enlouquecerem aqui — comentou ao sentar-se, escorregando uma das bandejas para o meu lado da mesa. — Não me digam que já enlouqueceram.

— Donovan, este é Zê. — Cumprimentaram-se com um aceno de cabeça, embora ambos permanecessem desconfiados.

— Outro calouro — falou Donovan, enfiando a comida na boca. — Se fosse você, comeria enquanto está quente. Não que esta merda seja gostosa.

Olhei para o monte de papa acinzentada diante de mim e no mesmo instante pensei no vômito no ônibus da prisão. Pareciam bem semelhantes, e o cheiro também não era muito diferente. Meu estômago deu voltas, e empurrei a bandeja na direção de Zê.

— Sirva-se — convidei. Mas ele ficou verde diante da visão da comida e parecia também prestes a vomitar. Os olhos de Donovan brilhavam com um humor condescendente:

— Mais alguns dias, e isto vai lhes parecer um delicioso macarrão com queijo — comentou, puxando a bandeja. — É surpreendente como você se acostuma com algumas coisas quando está faminto.


ESCARAMUÇA

 


Apesar da comida, comecei a me sentir um pouquinho mais relaxado durante a hora do cocho. Com um pouco de imaginação, conseguiria quase fingir que estava de volta à escola, conversando com amigos enquanto comíamos o almoço quente (que, tenho de admitir, não era muito melhor que este, afinal) e nos divertíamos matando aula. No entanto, em vez de conversar sobre professores, futebol e garotas, discutíamos a vida dentro de Furnace. Mas mesmo aquilo parecia distante, como se conversássemos sobre um filme que havíamos visto na televisão ou algum novo videogame.

— Então, não há mesmo saída? — perguntou Zê, quando Donovan acabou de comer. O garoto mais velho havia devorado duas rações daquela nojeira e olhava para a cantina na esperança de que ainda tivesse sobrado alguma coisa. — Quero dizer, não há túneis, saídas secretas?

— Antes de qualquer coisa, é melhor observar o que diz e a quem diz — respondeu ele, desistindo de uma eventual terceira porção e voltando a atenção para a mesa. — Para o diretor, falar em fugir é o mes-mo que fugir. E não posso nem pensar em lhe dizer o que aconteceu com o último garoto que de fato tentou encontrar uma saída. Em segundo lugar, este local é cheio de túneis, mas todos só seguem em uma direção: para baixo. Essa prisão foi escavada em uma garganta maciça, e, pelo que sei, há túneis na rocha que vão muito mais fundo que isto. Eles usam alguns deles para armazenagem, e outros para os escritórios do diretor; sei por experiência própria que o buraco é lá embaixo.

— O buraco? — Zê e eu perguntamos juntos.

— A solitária. Estive lá durante três dias depois que entrei em uma confusão com alguns brigões de gangue; não os Caveiras, os Leopardos. Eles não estão mais por aqui. Seja como for, é só um buraco no chão, bem no fundo da prisão, e eles trancam você nele sem luz ou comida, e há apenas um para fazer as necessidades. A única água que você consegue é a da condensação nas paredes.

O rosto dele empalideceu só de lembrar.

— Depois de um dia você acha que vai ficar louco — ele prosseguiu. — Após dois dias, acha que está no inferno. Depois de três, você perde um pequeno pedaço de si mesmo que jamais vai conseguir recuperar. Nunca ouvi falar de ninguém que ficou lá mais de quatro dias e sobreviveu. Esse lugar leva sua alma para fora do corpo. São os gritos que você ouve quando está lá embaixo, como se fossem demônios. Eles nunca se calam.

Balançou a cabeça, parecendo sair de um transe:

— Acho melhor morrer do que voltar para lá.

Não sabia o que dizer, então fiquei de boca fechada. Mas Zê não pareceu tão perturbado pela ameaça de ser encarcerado na solitária:

— Mas alguns desses túneis devem dar em algum lugar. Quero dizer, passagens subterrâneas, esse tipo de coisa.

— Bem, pode tentar se quiser — replicou Donovan, com mais que apenas uma sugestão de sarcasmo na voz. — Não creio que seja o primeiro e duvido que venha a ser o último. Mas acreditem quando digo que o buraco não é a pior coisa que você vai encontrar atrás destas paredes. Bem, talvez tenha mais sorte. Talvez o levem esta noite, e poderá ver por você mesmo.

— Me levar? — perguntou Zê. — Me levar para onde?

Mas Donovan não estava escutando. Zê se virou para ele, e eu apenas dei de ombros. Ele afundou no banco, obviamente aborrecido.

— E seu antigo companheiro de cela, Adam. Era seu amigo? — perguntei, mudando de assunto.

— Amigo? — replicou Donovan, como se tentasse recordar a palavra. — Não há amigos aqui, logo vai entender isso. Você fica ligado às pessoas, mas depois vai perdê-las. Elas são esfaqueadas, pulam dos balcões ou são levadas uma noite. Quando atingem dezoito anos, são enviadas para o nível quinze, e você as perde também. Não que muitos sobrevivam até os dezoito.

Fez uma pausa quando um grito ecoou pela sala, recomeçando quando o som desapareceu.

— Não façam amigos, não estabeleçam conexões. Eles perceberão, e isso provocará a morte de ambos. Não cometam o erro de trazer o coração aqui para baixo; não há lugar para ele em Furnace.

O grito soou novamente, mais zangado dessa vez. Donovan pareceu congelar, a penugem do pescoço se eriçou, e senti meus batimentos cardíacos mais rápidos. Houve uma tensão crescente na sala. Era quase possível tocar nela — uma sombra negra passando sobre as mesas e comprimindo o ar. Emanava de um banco do lado oposto da sala do cocho, onde dois prisioneiros estavam de pé, cara a cara.

— Deixem estar — sussurrou Donovan levantando-se. Outras pessoas faziam o mesmo, olhando com cautela o confronto ao se dirigirem para a saída.

— O que está acontecendo? — perguntou Zê.

— Problemas — foi a resposta de Donovan. — E não queremos ficar perto de nenhum deles.

Como para comprovar suas palavras, houve outro som e um ruído metálico. Olhei para trás e vi um dos garotos cambalear com um corte vermelho na cabeça, onde alguém o havia atingido. O atacante preparava-se para outro golpe, a bandeja elevando-se acima da cabeça e a extremidade pontiaguda dirigida para a frente, como se fosse um machado.

— Não podemos fazer nada? — perguntei. Mas já havíamos alcançado o túnel, e Donovan já caminhava dentro dele.

— Fique à vontade — gritou sobre os ombros.

Eu me levantei e observei por mais um momento, mas, quando a lâmina improvisada desceu, fui empurrado para a frente pela multidão, e a cena se desvaneceu contra a parede vermelho-sangue.

 


Durante os minutos seguintes reinou o caos em Furnace. Emergimos no pátio no momento em que soou uma longa explosão da sirene. O som pareceu ativar as metralhadoras alinhadas ao longo das paredes. Elas giraram em direção à multidão de prisioneiros em pânico, os movimentos ágeis e suaves me lembrando algum robô homicida movimentando-se com fúria.

O ruído ensurdecedor da sirene teve o efeito de uma injeção de combustível em todos os que estavam naquele salão gigantesco. Era como se alguém tivesse acionado o botão de avanço rápido de cena, fazendo os prisioneiros se mover a uma velocidade ridícula. A maioria corria para a escada, o medo palpável enquanto empurravam um ao outro para fora do caminho. Até Donovan corria pelo pátio, sua expressão calma habitual transformada em uma máscara de apreensão. Ele gritou alguma coisa, que se perdeu no barulho da correria desembestada e no berro infindável da sirene.

O terror era contagioso, inundando minha mente e fazendo minha cabeça girar. Senti algo bater em mim por trás e caí esparramado sobre o chão duro, uma dor aguda percorrendo meu braço devido ao pulso torcido. Na minha frente estava uma máquina com pernas, cada uma com um pistão que esmagava qualquer coisa que estivesse no caminho. Lutei para me levantar, mas algo atingiu meu braço. Protegi minha cabeça com os braços e me encolhi em posição fetal enquanto vinham chutes de todos os lados — só desejava que aquilo terminasse para acordar daquele pesadelo macabro.

Depois do que pareceu uma eternidade, senti alguém agarrar forte meu pulso e me puxar para cima. Resisti durante um segundo, mas a força foi insistente, e eu cedi. Abrindo os olhos, vi Donovan sobre mim com uma expressão furiosa. Enfiando os dedos na minha carne, puxou--me junto à multidão, tirando outros garotos do caminho, até que atingimos a escada. Eu o segui sem pensar, o cérebro exausto demais para fazer outra coisa senão colocar um pé adiante do outro — e nem nisso estava sendo bem-sucedido.

Como na sequência de um tsunami, o dilúvio se reduziu a um gotejamento ao atingirmos o sexto nível, fazendo-nos deslizar até a cela apenas segundos antes de a sirene parar de soar. A ausência de som era quase tão perturbadora quanto o próprio ruído. A prisão havia mergulhado em uma onda de silêncio rompida apenas por um ou outro soluço ocasional. Que não durou. Com um ruído um tanto semelhante ao que uma montanha-russa faz quando está subindo, as portas da cela começaram a se fechar, mil portões se trancando com um barulho que fazia cada pedra estremecer.

Donovan havia caído na minha cama e enxugava gotas de suor da testa. Não tive energia para chegar ao beliche; simplesmente escorreguei nas frias grades de metal até os joelhos atingirem o chão. Por um momento, nenhum de nós fez nada a não ser ofegar. Todo o meu corpo doía, o estômago parecia descamar, como se eu, por inteiro, me despedaçasse. Fiz preces silenciosas de agradecimento por não ter jantado.

No chão lá de baixo, pude ver a porta da abóbada se abrindo e uma sombra escura varrer o pátio rumo ao cocho. Devia haver doze ou treze ternos-pretos lá embaixo, armados com espingardas.

— Cães? — perguntou Donovan com um sussurro. E, quando não obteve nenhuma resposta minha, insistiu: — Os cães, eles estão lá fora?

Observei a porta da abóbada se fechando, mas nada mais havia aparecido. Balancei a cabeça, incapaz de falar. Donovan sussurrou um obrigado para alguém ou algo, e o ouvi cair na cama.

— Há alguém fora da cela? — prosseguiu ele.

Examinei a circunferência da prisão e vi dezenas de rostos observando através das grades os acontecimentos lá de baixo. Mas todos pareciam estar bem trancados. Balancei de novo a cabeça, depois girei sobre os joelhos e encontrei uma posição mais confortável, encostando-me contra a parede.

— Jesus — Donovan falou, enfim, dirigindo as palavras para o beliche acima dele. — Que apresentação! Você está aqui há algumas horas e já viu uma briga e um encarceramento. Deveria se considerar um sortudo.

— Encarceramento? — questionei, sem me sentir nem um pouco afortunado.

— Aquela sirene, aquela longa, significa “volte correndo para a sua cela no próximo minuto, ou vai virar adubo” — explicou ele, voltando-se para mim. — O encarceramento é uma das piores coisas que podem acontecer aqui. Este não foi tão ruim; vieram só os guardas. Aquela briga na sala do cocho deve ter desencadeado tudo isso. Às vezes as brigas provocam coisas assim; outras vezes, não. Os piores encarceramentos ocorrem sem razão alguma. Num minuto você está jogando cartas no pátio, e no próximo estão todos correndo para salvar a vida, esmagando-se para não ser despedaçados, quando... — Donovan fez uma pausa, a voz presa na garganta. Não quis pressioná--lo, pois algo em sua expressão me fez segurar a língua. Além disso, não tinha certeza se queria saber de outros detalhes.

Levantei-me do chão e andei até o beliche, sentando-me no pé da cama e colocando a cabeça nas mãos. Donovan girou o corpo para ficarmos sentados lado a lado.

— Olhe — falei, encabulado —, só queria lhe agradecer. Obrigado por me resgatar. Eu ia ser esmagado ali.

Ele olhou para mim e fez um aceno de cabeça, mas os olhos estavam frios:

— Não precisa me agradecer. Mas não espere por isso de novo. Eu lhe disse, aqui não há amizades nem lealdade. Eu o ajudei porque você é novato e porque, quando há duas pessoas em uma cela, há apenas cinquenta por cento de chance de o levarem. É melhor ficar esperto, Alex. Não sou seu anjo da guarda.

Já sabia que Carl Donovan era muitas coisas, além de um terrível mentiroso. Peguei-me sorrindo por dentro, embora um sinal daquele sorriso deva ter escapado através dos olhos, porque Donovan o captou.

— Não sei por que está tão contente — murmurou, mas aquele sorriso minúsculo fora contagiante, extraindo força da adrenalina que ainda nos pulsava nas artérias. Ele me lançou um amplo sorriso, os dentes muito brancos contra a pele escura, e me deu um tapinha gentil atrás da cabeça. — Você é louco, sabia? Com certeza, Alex, você pertence a este lugar; não duvide disso.

Apenas concordei. Ficamos sentados em silêncio durante alguns minutos, os batimentos cardíacos gradualmente se tornando mais lentos e o ruído áspero desaparecendo da respiração. Não demorou muito, e vi movimento lá embaixo; andei até as grades e avistei um monte de ternos-pretos caminhando pelo pátio e carregando o garoto ferido entre eles. O garoto não se mexia, e havia uma fina linha vermelha no chão de pedra que perseguia o grupo enquanto ele desaparecia porta maciça adentro.

— Será que o estão levando ao centro de cuidados? — perguntei, muito satisfeito comigo mesmo por ter lembrado, apesar de tudo, daquele termo estiloso.

— Algo assim. — Donovan subiu na própria cama e ficou olhando para o teto. — Seja como for, encarceramentos como este não terminam até de manhã; por isso, se fosse você, ficaria o mais confortável possível. As luzes vão se apagar daqui a uma ou duas horas.

Olhei para o espaço ao redor, tentando imaginar o que faria ali durante uma ou duas horas. Aquele pensamento foi como um peso me oprimindo o peito, e uma vez mais me vi em pânico diante da ideia de passar o resto da vida naquela cela minúscula. A sensação percorreu todo o meu corpo e, ao atingir meu cérebro, era tão poderosa que por um momento vi luzes se acender e se apagar diante de meus olhos. Quis me dilacerar por entre as grades e buscar meu caminho de volta à superfície para poder ser livre de novo. Em vez disso, apenas bati o pé no chão, tão pateticamente que nem mesmo Donovan ouviu. A sensação reverberou no corpo, que, insatisfeito, desmoronou na cama.

— Então é isso que você vai fazer a noite toda? — perguntei, enfim. — Sentar, olhar para o teto e apodrecer em silêncio?

— Isso mesmo — Donovan respondeu, rindo. A cama guinchou quando se virou. — Para ser honesto, com o trabalho e tudo, você em geral está morto para o mundo quando as luzes se apagam, então não se importa com a paz e o silêncio.

— Trabalho?

— Vai descobrir tudo isso amanhã — ele disse. Podia ouvir a voz dele começando a falhar, sonolenta. — Acha que vamos ficar sentados o dia todo?

Sentados por ali, duelando com bandejas da cantina e correndo dos guardas. Sim.

— Oh, escute — falou Donovan, a voz vibrante de novo. Colocou a cabeça sobre o beliche e me lançou um olhar que fez meu coração disparar. — Se ouvir uma sirene quando as luzes se apagarem, e as luzes vermelhas forem ligadas, não saia da cama por nenhuma razão, certo? Não importa o que ouça fora dessas grades. Mantenha os olhos fechados e finja dormir; não chame atenção para si e, em particular, não para esta cela. — Tentei comentar algo, mas Donovan me interrompeu: — Sem exceções. Se eles o pegam olhando, você já está morto.

Ele se recolheu, deixando-me desperto e aterrorizado por completo.

— Tenha bons sonhos, Alex.


CAI A ESCURIDÃO

 


Não acredito que alguém realmente perca o medo do escuro. Sim, os adultos agem como quem se sente em casa quando as luzes estão apagadas, dizem que não há o que temer, que nada mudou só porque você não consegue enxergar nada.

Mas estão blefando. Desafio até mesmo o adulto mais corajoso a passar uma noite em um lugar como a Penitenciária de Furnace, no mais escuro breu, sem pensar que cada ruído é algo bem atrás de você com dentes como punhais, olhos prateados e hálito exalando sangue; que todo sopro de ar que percorre sua pele é a investida de uma lâmina implacável; que cada mínimo movimento é um fio de escuridão se envolvendo em sua garganta e se enroscando na profundidade de suas entranhas, onde vai se banquetear com sua alma.

A escuridão chegou sem aviso. Em um minuto eu estava deitado na minha cama, pensando muito racionalmente sobre a vida atrás das grades; no seguinte, imerso num vazio tão profundo que achei ter ficado cego. Foi uma mudança tão repentina que me sentei, esfregando os olhos e procurando com desespero o mais leve sinal de luz para provar que ainda tinha a capacidade de enxergar.

Saí da cama aos tropeços, engatinhando pelo chão áspero com o estômago na boca. Tal era meu pânico que me choquei direto com as grades, mas através delas, bem abaixo, captei um vislumbre da gigantesca tela montada acima do elevador, um logotipo branco de Furnace que girava preguiçosamente sobre um fundo preto. A escuridão fazia o máximo para cercar a imagem, mas sua iluminação fraca se estendia como um farol. Pendurei-me nas grades e a observei com uma sensação de alívio tão poderosa que chegou a provocar lágrimas em mim.

Foi ali, segurando as grades da cela como se fossem meus únicos amigos, que ouvi pela primeira vez a sinfonia de Furnace. Começou com soluços, que se elevaram da escuridão e me envolveram como o som de cordas suaves em uma orquestra. Eram lamentos tranquilos sufocados pelos inúmeros músicos que os produziam, fundindo-se, de todos os níveis, para criar uma fonte de som que corria para o pátio deserto lá embaixo.

Em seguida vieram escárnios, zombarias melodiosas dirigidas aos “calouros”: “é melhor você chorar mesmo; estão vindo buscá-lo”, que pontuavam os soluços como golpes agudos de trompetes. À medida que as zombarias insensíveis aumentavam em volume, aumentavam também os gritos, avolumando-se em uivos desesperados lançados na noite artificial, misturados a apelos de ajuda e súplicas de partir o coração. Em algum lugar, alguém cantava uma canção, a voz profunda parecendo uma bizarra linha grave da sinfonia, um lamento de violoncelo que mantinha as duas metades da orquestra em harmonia.

Não sei quanto tempo aquilo durou, aumentando gradualmente para um crescendo de gritos e sussurros e soluços e canções que se apossaram de mim, obrigando minha garganta traidora a emitir um grito. Pelo que sabia, seria a primeira vez de muitas, e, relutante, adicionei minha voz à sinfonia, chorando e berrando até que, exausta, a música morreu, e a prisão mais uma vez encontrou o silêncio.

 


Sei que não preciso lhe contar que não consegui dormir muito naquela noite. Deitei na cama com os olhos abertos, projetando quadros na negra tela em branco diante de mim. Imagens da minha casa, da minha família, dos meus amigos, da televisão, da escola, dos bolos de aniversário, dos passeios de bicicleta e das idas ao campo, do mar, das pedras lisas, sorvete na areia, partidas de futebol e perambulações sem rumo pelo playground, do pôr do sol, da chuva, do boneco de neve e do Natal, e de brincar com os brinquedos novos à luz tremeluzente da lareira.

Mas cada imagem feliz era sufocada pela escuridão, desaparecendo sem deixar vestígios na noite morta. Furnace reclamava minhas memórias e também meu corpo, e seu domínio na minha vida era agora absoluto, implacável.

Todo o tempo em que fiquei deitado ali esperei ouvir a sirene. Não tinha certeza do que Donovan queria dizer ao falar que eles vinham à noite, mas minha imaginação criou uma enorme quantidade de cenários: os ternos-pretos surgindo diante das grades, prontos para me arrastar ao abismo; os homens com máscaras de gás e seus olhos ávidos apontando para mim como se eu fosse a próxima guloseima que lançariam goela doente adentro; os cães sem pele, úmidos ao toque ao me arrastar até o diretor e sua face repuxada.

Quando consegui dormir, essas imagens aterrorizantes me seguiram, sentindo-se à vontade em sonhos onde não tinham o direito de estar. Em alguns eu era enterrado em um túmulo escavado na pedra, os ternos-pretos me cobrindo com cascalho, que pressionava meu corpo e sufocava meus pulmões. Em outros eu afundava no chão, a pedra como areia movediça vermelha me sugando até me perder nas sombras.

Nos piores sonhos, no entanto, estava dentro de uma prisão de vidro, lá em cima, na superfície. Através das paredes conseguia ver minha casa, minha família seguindo sua vida sem mim. Gritava para eles e batia no vidro, mas havia um homem com máscara de gás bem à frente, que me impedia de fazê-los ouvir. E eu via os ternos-pretos se aproximando da porta da frente, aquelas aberrações com máscaras de gás cercando os fundos da casa, os cães saltando através das janelas, salpicando com vidro minha mãe e meu pai. Tentava esmagar as paredes da minha prisão, mas elas nem rachavam, a figura com respiração difícil diante de mim bloqueando cada movimento. Não conseguia fazer nada senão observar meus pais tendo o mesmo destino de Toby, todo aquele sangue espalhado pelo chão da cozinha enquanto os assassinos fugiam.

Só no final do sonho percebi que a figura que estava diante de mim, do outro lado do vidro, não era um homem com máscara de gás. Era meu reflexo.

 


Depois de cada sonho eu acordava gritando, encharcado de suor e com o coração disparado. Toda vez demorava séculos para voltar ao normal, e toda vez acontecia a mesma coisa — pesadelos que tentavam me comer vivo.

Quando as luzes se acenderam, acompanhadas por uma curta explosão da sirene, sentia-me como se estivesse deitado naquela cama havia mil anos, atormentado por todos os demônios possíveis. Meu lençol estava ensopado, minha cabeça martelava, e, quando balançava as pernas sobre a cama, cada membro tremia como uma folha. Bastou um olhar através das grades da prisão para me enviar aos tropeções à privada, lançando o contéudo do meu estômago na bacia de metal. Nada saiu além de um fino rastro de bílis, mas me senti melhor — como se houvesse purgado alguns dos pensamentos da noite anterior.

O som do meu vômito acordou Donovan, e, quando tirei a cabeça da privada, ele estava sentado na cama me observando com um sorriso compreensivo.

— Demora um pouco para os pesadelos desaparecerem — disse--me ele. — Mas desaparecem. Confie em mim. Essa privada e eu fomos os melhores amigos nos primeiros dias em que estive aqui.

Eu ri, apesar de tudo. Enxugando a boca na manga, percebi que vomitar não era a única coisa para a qual precisava da privada. Olhei encabulado para Donovan:

— Hum, você não se importa...?

Ele arqueou uma sobrancelha e, quando percebeu o que eu queria dizer, sua cabeça desapareceu enquanto se deitava.

— Desculpe, Alex — falou, enquanto eu fazia o que precisava. — Eis uma coisa com a qual você realmente nunca se acostuma: cagar em público.

— Bem, seria muito mais fácil relaxar se você ficasse quieto por um segundo — reclamei. A cama rangeu enquanto ele ria, mas felizmente não disse mais nenhuma palavra até ouvir o ruído da descarga.

— Minha vez — disse-me, pulando do beliche.

— É toda sua.

Fazendo o máximo para ignorar os ruídos atrás de mim, olhei através das grades para as celas diretamente opostas. Os prisioneiros escalavam os beliches, todos com rosto pastoso e uniforme amarrotado. A julgar por algumas das expressões, não havia sido eu o único a ter pesadelos.

Meus olhos se detiveram em uma cela no nível imediatamente abaixo. Era bem distante, e eu estava sentado em um ângulo estranho, mas achei ter visto Montgomery enroscado na pedra, próximo às grades. Vi um par de pernas no beliche de cima, que sem dúvida pertencia ao chefe dos Caveiras, Kevin. Ao que parecia, o beliche de baixo estava vazio. Fiquei imaginando se o pobre Montgomery havia passado a noite toda no chão.

— E então, está pronto para o trabalho pesado? — perguntou Donovan, dando a descarga. Mantinha um ar filosófico, gesticulando muito com as duas mãos. — Essa merda causa estragos lá embaixo, sabe?

— Está falando sério? — repliquei, apertando o nariz e desejando, não pela última vez durante minha estada em Furnace, que tivéssemos banheiros separados. — Afinal, o que quer dizer com “trabalho pesado”?

Ele sorriu ao colocar os sapatos, depois me deu a mesma resposta irritante que ouvi tantas vezes:

— Logo vai descobrir.


TRABALHO PESADO

 


Mais ou menos dez minutos depois que as luzes voltaram, a sirene atravessou minha cabeça pela segunda vez, e as portas das celas se abriram. Com uma série de gritos e vivas, os prisioneiros de todos os níveis se precipitaram ao longo das plataformas e desceram a escada, enchendo a prisão com um som de trovão.

— Quando se está trancado aqui pelo resto da vida, você aprende a valorizar as pequenas coisas que trazem liberdade — explicou Donovan enquanto saíamos da cela. Seu rosto era mais uma vez uma máscara de rebeldia, desafiando qualquer um a mexer com ele, embora seu tom fosse bastante suave. — Sair da cela todas as manhãs nos dá uma breve impressão de liberdade, se é que me entende.

Não entendi. Não naquela ocasião. Mas logo passei a compreender. Parte de você logo se esquece do mundo lá fora. Há apenas estar ou não encarcerado, e não estar encarcerado — ficar no pátio, na sala do cocho, no trabalho pesado — faz você se sentir mais livre do que em uma cela de dois metros quadrados.

Enquanto descíamos para o pátio, Donovan me falou sobre as tarefas. Passávamos as manhãs trabalhando. O preparo da lavagem era o trabalho descuidado feito na cozinha. O desengorduramento envolvia os deveres de limpeza, que às vezes incluíam o fedor — limpar as privadas. O branqueamento era feito na lavanderia. Segundo a lista de deveres — exibida em nítidas letras brancas na tela gigantesca acima do elevador —, Donovan e eu éramos do grupo dos escavadores naquele dia.

— É o mais pesado dos trabalhos pesados — explicou-me, enquanto seguíamos a multidão até a sala do cocho. Pegamos duas tigelas de gororoba da cantina e encontramos um banco vazio — próximo o bastante da cena do incidente do dia anterior para me permitir a visão de uma mancha estranha cor de ferrugem no chão. Concentrei-me no café da manhã para tentar desviar a mente da briga. Era uma pilha de pasta cor de serragem que parecia idêntica ao jantar da véspera.

— É a mesma coisa? — perguntei, sentindo o estômago rosnar. Fiquei em dúvida se era porque me sentia faminto ou porque minha barriga me avisava para manter distância do prato.

— É — respondeu Donovan, erguendo um pouco da pasta com sua colher e olhando-a com desconfiança. — Exatamente a mesma. Eles a fazem em lotes, e cada um dura alguns dias. Você come isso no café da manhã, no almoço e no jantar.

— Ótimo — resmunguei.

Sabia que cedo ou tarde teria de comer alguma coisa, então peguei uma fina colherada do meu café da manhã e encostei a língua naquilo. Esperava um sabor de vômito, ou merda, ou qualquer coisa igualmente nojenta, mas, para minha surpresa, não consegui sentir gosto de nada. Respirando profundamente, fechei a boca em torno da colher e senti a mistura passar para a língua. Por um segundo me senti sufocado, mas consegui controlar o reflexo e percebi que a gosma era completamente sem sabor, exceto pela agradável pitada de sal.

— A consistência é a pior parte — esclareceu Donovan, raspando a última colherada da tigela. — Pense nisso como um mingau salgado, e não vai parecer tão ruim.

Lembrei-me de que meu pai sempre colocava um quilo de sal no mingau — em vez de mel, açúcar ou geleia, como as pessoas normais —, e aquele pensamento me fez sentir-me melhor. Meu apetite prevaleceu, e devorei a pasta com paixão, quase sugando o plástico da colher em minha ansiedade. A gororoba estava morna, mas assentou em meu estômago e irradiou um calor agradável e reconfortante.

A terceira sirene curta da manhã conduziu todos da sala do cocho de volta ao pátio, onde os prisioneiros foram se dividindo em vários grupos. Segui Donovan até o outro lado do espaço imenso, em direção a uma fissura cavernosa na rocha guardada por um terno-preto e sua espingarda. Senti minhas pernas fraquejar diante da visão, mas a densidade absoluta das pessoas que me cercavam me manteve firme ao passarmos por ele.

O curto túnel à frente nos conduziu a uma sala abarrotada de equipamento de mineração — picaretas, pás, carrinhos de mão e dezenas de capacetes pendurados nas paredes como se fossem fungos amarelos. Ao redor do exterior da sala havia mais três fendas: bocas negras escancaradas na rocha. Duas estavam abertas, mas uma terceira, no centro, estava vedada com enormes tábuas de madeira aparafusadas na pedra.

Donovan enfiou um capacete na cabeça, acendendo a luz fixada à frente, e pegou outro para mim. Eu o coloquei enquanto o terno-preto se dirigiu ao centro do espaço abarrotado e começou a falar:

— Vocês conhecem a tarefa: cavar e limpar. — A voz era como o estrondo de algum rio subterrâneo abrandado pela rocha. — Coloquem escoras a cada três metros, sempre com o capacete na cabeça; queremos todos em forma para trabalhar de novo amanhã. Qualquer um que seja surpreendido roubando equipamento ficará dois dias no buraco. Qualquer tipo de briga resultará em três dias.

Àquela altura, a maioria dos cerca de cem prisioneiros naquele lugar já estava equipada. Alguns pegaram picaretas ou pás, outros erguiam os carrinhos de mão do chão. Sem saber o que fazer, peguei uma picareta da parede. Era tão pesada que quase a deixei cair, a ponta perigosamente próxima do pé do garoto que estava a meu lado. Tensionei os músculos e consegui deter sua descida, mas Donovan já me lançava um olhar preocupado.

— Níveis um a três, entrem na primeira porta — prosseguiu o terno-preto. — Níveis quatro a seis, entrem na terceira porta. A Sala Dois está interditada. Mexam-se.

Nosso grupo de prisioneiros se arrastou para a frente com tanto entusiasmo quanto se houvesse uma cadeira elétrica esperando além daquele buraco na parede. Podia quase imaginá-los como os mineiros de antigamente, cantando “Hi-ho, hi-ho” enquanto marchavam rumo à escuridão. Só que estes trabalhadores se insultavam mutuamente e faziam gestos ameaçadores com as picaretas. Mantive a cabeça baixa e segui Donovan.

— Não se preocupe, garoto — disse ele ao atravessarmos o túnel. — Só temos mais uns vinte mil dias disso pra enfrentar.

Minha picareta de repente ficou muito mais pesada, assim como meu coração.

Emergimos em uma ampla caverna, com o teto tão baixo que tive de dobrar o corpo para evitar as rochas proeminentes. Para todo lado que olhava havia longas e finas vigas de madeira escorando o teto, uma floresta de galhos que não pareciam de modo algum fortes o bastante para segurar os milhões de toneladas de pedra sobre nossa cabeça. Imaginei o que aconteceria se a gravidade agisse, derrubando o teto da caverna e nos esmagando como uma bota amassa um inseto. Pelo menos seria rápido.

Engolindo em seco, eu consegui tirar da mente o pânico claustrofóbico.

— É melhor rezar para que não haja um desmoronamento hoje — comentou Donovan, suas palavras praticamente virando meu estômago pelo avesso.

As paredes de pedra da caverna haviam sido golpeadas e quebradas em formatos estranhos. A maior parte parecia cortinas de um teatro, repletas de dobras sombrias que se destacavam contra a rica superfície vermelha. Poderia ser um bom local para se esconder, e armazenei a informação no fundo da mente no caso de algum dia precisar de um esconderijo. Então me lembrei dos cães em carne viva e no mesmo momento rejeitei a ideia. Donovan havia liderado o caminho para uma parte distante da caverna e agora apoiava a picareta contra a rocha.

— Não há necessidade de nenhum conhecimento sofisticado para realizar este trabalho — informou-me. — Só continue golpeando. Quando não conseguir enxergar seus pés devido ao cascalho, grite para um dos garotos com os carrinhos de mão, e eles vêm limpar. Certo?

— E pensar que minha mãe e meu pai nunca acharam que eu teria um emprego — respondi. Ambos lutávamos para conter o riso. Fazendo-me um gesto para sair do caminho, Donovan balançou a picareta para um lado e a arremessou para a frente com um grito de raiva. A ponta de metal atingiu a rocha com uma centelha de luz e um estalido de pistola, nos cobrindo de estilhaços.

— Caramba! — gritei, puxando com pressa o visor do capacete para evitar ficar cego.

— Divertido, não é? — berrou Donovan, e balançou de novo a picareta.

Certificando-me de que não havia ninguém por perto que pudesse inadvertidamente ferir, ergui a picareta acima da cabeça, pronto para balançá-la. Entretanto, me esqueci por completo do teto baixo, e o movimento gerou uma chuva de pedras que caíram sobre meu capacete. Donovan franziu a testa através do visor; senti o rosto corar. Tensionei os braços de novo e dessa vez balancei a picareta em um arco lateral. Ela atingiu a rocha com um ruído ensurdecedor e uma vibração que atravessou meus braços e quase deslocou as vértebras da minha espinha. Recuando, esperei que a dor cedesse antes de tentar de novo. Dessa vez dei uma batida delicada na rocha que mal soltou um grão de poeira.

— Demora algum tempo para se acostumar com o impacto — avisou Donovan entre os golpes. — Mas tudo bem. Aqui, tempo é a única coisa que temos à vontade.

Tentei mais duas vezes, ignorando a sensação de que minha espinha se rompia a cada golpe. Após alguns minutos, o cansaço se instalou, mas com ele veio um torpor agradável que se espalhou por todo o corpo.

A lâmpada do meu capacete transformou a face da rocha em um mosaico de luz e sombras. Comecei a buscar as características da pedra que se assemelhassem a rostos — espinhaços para testas, raspagens que poderiam ser narizes, marcas de picareta como lábios e pedras soltas como olhos cegos —, fingindo que eram ternos-pretos. Cada vez que atingia bem o centro do rosto, lançava um grito de raiva e ódio que dava poder ao ataque. E, quando os rostos se rompiam em fragmentos, sentia um pequeno arrepio de prazer.

A força dos meus sentimentos era um pouco inquietante — a percepção de que, naquele momento, poderia ter dirigido uma picareta contra o guarda de verdade que aparecia de vez em quando na caverna para checar se todos trabalhavam. O ódio — o ódio real, assassino — era uma emoção que nunca havia realmente experimentado antes, e não tinha certeza se isso me excitava ou me aterrorizava.

 


É incrível quanta energia você pode encontrar quando combate um inimigo em uma batalha, mesmo que o inimigo esteja apenas na sua imaginação. Pelo que deveriam ter sido três ou quatro horas, todos naquela caverna bateram a picareta na rocha incessantemente, como bárbaros derrubando as paredes de um castelo. O som das picaretas batendo na rocha, o brilho das centelhas e os gritos que davam potência a cada golpe faziam meus ouvidos soar e meu sangue pulsar. Era de fato como uma batalha em tempos antigos, e comecei a imaginar quanto tempo os ternos-pretos durariam se todos os prisioneiros de Furnace pegassem as ferramentas e as voltassem contra seus captores.

Donovan e eu provavelmente havíamos derrubado um bom metro de rocha. Não parece muito, mas não falamos aqui de giz — aquelas paredes eram mesmo duras. O cascalho amontoado em torno dos pés era retirado pelos garotos com carrinhos de mão para ser depositado em algum lugar desconhecido. Por certo era misturado à comida, pensei, olhando as pilhas de pó desmoronado como soldados caídos ao chão entre nós.

Ainda golpeava a parede com furor quando o terno-preto apareceu de novo e nos mandou baixar as ferramentas. Foi apenas quando todos voltávamos, passando entre as escoras do teto, arrastando a picareta atrás de nós, que a dor lentamente baixou sobre meu corpo. Começou como uma pulsação vaga, mas, quando penduramos o equipamento, parecia que todos os músculos do meu corpo pegavam fogo.

Disseram-nos que esperássemos até que o outro grupo retornasse à sala dos equipamentos, por isso o terno-preto nos conduziu para fora do túnel, de volta ao pátio. Ponderei por que ninguém havia se incomodado em nos revistar — era impossível ocultar as picaretas, mas alguns dos fragmentos de rocha que tínhamos cortado eram mais afiados que bisturis. Isso logo ficou claro quando fomos conduzidos a outra porta recortada na pedra, que dava para um local comprido cheio de chuveiros.

— Cinco minutos — gritou o terno-preto.

Observei que todos começaram a se despir, colocando os uniformes e as cuecas em uma pilha em um canto e depois se dirigindo aos chuveiros. Fiz o mesmo, sentindo-me extremamente autoconsciente ao tirar minhas roupas. Mas estávamos todos no mesmo grande barco nu, e ninguém parecia nem um pouco incomodado com isso. Localizei um ponto no lado mais afastado do lugar e, para minha surpresa, descobri que Donovan havia me seguido.

— Segure-se — avisou ele.

Segundos depois houve um guincho alarmante, seguido por um silvo, e então todos os chuveiros foram ligados. Eu me encolhi quando um jato de água gelada me atingiu direto nas costas, forçando o ar dos pulmões, mas felizmente a temperatura logo foi ajustada — ainda fria, só que não tão gelada. Esfreguei freneticamente meu corpo de cima a baixo, observando a água vermelha devido à poeira que havia grudado em mim acumular-se em torno dos ralos como se todos estivéssemos exangues. Tirei a imagem da cabeça assim que Donovan começou a falar:

— Aposto que seus braços parecem ser feitos de massa de vidraceiro — disse ele, a voz se elevando acima do ruído do jato d’água.

— Parecem. O que estávamos fazendo ali, afinal? Nunca ouvi falar de guardas que encorajassem prisioneiros a cavar túneis através de paredes.

— Bem, a maioria das paredes de prisão não tem vários quilômetros de espessura — ele respondeu, desviando a água dos olhos e cuspindo um jato vermelho. — Estamos escavando novas salas. Escavamos esta em que estamos, pedra por pedra. Demorou três anos. Antes nos lavávamos nas celas. Com baldes e esponjas, como em algumas favelas.

Tentei assobiar para demonstrar como estava impressionado diante do tamanho da sala, mas tudo o que saiu de meus lábios úmidos foi um som de peido borbulhante.

— No entanto, para ser honesto — prosseguiu —, acho que só nos fazem martelar durante algumas horas todos os dias para ficarmos exaustos. Deve extrair algo do nosso organismo. Prisioneiros exauridos são muito mais fáceis de controlar do que outros mais dispostos. — Fez uma pausa. — E às vezes há desmoronamentos, como na Sala Dois na semana passada. E os prisioneiros mortos são ainda mais fáceis de controlar, se é que me entende.

Não tinha certeza de se estava brincando ou não, mas, pelo que já sabia sobre Furnace, imaginei que falava mortalmente a sério. Dei uma enxaguada rápida no cabelo pouco antes de os chuveiros se fecharem, e todos atravessamos a sala. Enquanto nos lavávamos, alguém havia retirado as roupas sujas e colocado uma pilha de uniformes, cuecas e sapatos limpos, ao lado da porta. Donovan apressou-se em meio aos vários corpos rosados e trêmulos e pegou suas roupas, mas eu fiquei contente em esperar. Não que lá houvesse uma variedade de tamanhos e cores — o macacão que enfim vesti pendeu em mim com a mesma indiferença pela minha constituição corporal que o último.

Voltamos ao pátio, que se encontrava em plena atividade à medida que os vários grupos de trabalhadores retornavam das tarefas. Era estranho, mas, quando fomos para a sala do cocho, realmente passei a me sentir como se entrasse no ritmo de Furnace. O lugar era perigoso, sem dúvida, mas havia uma rotina ali que era quase reconfortante. Dormir, trabalhar e relaxar; dormir, trabalhar e relaxar. O sistema era como um batimento cardíaco que nos mantém em funcionamento, um ritmo que me fazia pensar que talvez as coisas não fossem tão ruins.

É claro, esse pensamento ocorreu no exato momento em que todo o inferno explodiu.


PELE DE CAVEIRA

 


Donovan e eu entramos na sala ao som de insultos. De início eu não conseguia perceber de onde vinham, em meio ao burburinho geral — o corredor estava um tanto apinhado de prisioneiros que obviamente haviam nos deixado para trás nos chuveiros, os rostos brilhando acima dos colarinhos engomados. Quando atravessamos o local, porém, ficou claro que o barulho vinha da parte de trás da cantina.

Quatro Caveiras estavam de pé do outro lado do balcão, as bandanas pretas que eram sua marca registrada à mostra. Dois dos garotos lavavam tigelas de gororoba para a turba de prisioneiros que aguardavam, mas os outros dois olhavam para algo diante dos pés, algo oculto atrás dos balcões de aço inoxidável da cantina. Pela maneira como se moviam, pareciam chutar o que quer que fosse, e o brilho maldoso do olhar deles me tirou o apetite em segundos.

Não consegui me aproximar nem mais um centímetro dos Caveiras, por isso deixei Donovan ir na frente enquanto examinava a sala em busca de um rosto familiar. Zê estava sentado sozinho no meio da sala, escavando em desespero sua gororoba com uma colher. Caminhei até o outro lado do banco, fazendo o máximo para ignorar a dor nas pernas ao me sentar. Ele mal ergueu a cabeça ao me reconhecer, e sua expressão evidenciou que algo terrível havia acontecido.

— Algo terrível aconteceu! — disse ele em resposta, quando expressei meus pensamentos em voz alta. — Sabe, achei que pudesse suportar as coisas aqui, aguentar qualquer coisa que lançassem sobre mim até encontrar uma saída. Mas já não sei mais.

— Alguém atacou você? — perguntei, alarmado. — Os ternos-pretos? Os Caveiras?

Ele balançou a cabeça, depois olhou para mim como se estivesse prestes a revelar o segredo mais vergonhoso de todos os tempos.

— Mandaram que eu limpasse as privadas, Alex — ele sussurrou. — Todas as privadas do primeiro nível. Para sua informação, são quase cem bacias de bosta, a maioria delas ainda com evidência de... — Agora ele parecia prestes a sufocar. — Tomei banho, mas ainda consigo sentir o cheiro daquilo em mim.

Fiz o máximo para me segurar, mas não consegui. O riso irrompeu de dentro de mim como uma fonte, e ri tão alto que praticamente toda a sala se virou para mim com uma expressão carrancuda. Demorou alguns segundos para que conseguisse me conter, e naquele momento Zê lutava para manter sua máscara de desgosto. As linhas em torno dos olhos enfim relaxaram, e seu rosto se abriu como uma flor.

— Achei que tivesse brigado, ou alguma coisa assim — disse eu, seu sorriso me deixando saber que podia ir em frente. — Você parecia prestes a atacar alguém.

— Bem, vamos ver como vai se sentir quando estiver limpando a merda de outra pessoa com suas unhas — falou ele em resposta.

Os insultos continuavam na outra extremidade da sala, mas não consegui virar o rosto para ver o que estava acontecendo. Em vez disso, perguntei a Zê.

— Algum pobre garoto — respondeu ele. — Estão mantendo-o deitado no chão durante os últimos quinze minutos. Pelo que sei, estão fazendo ele lamber qualquer coisa que deixem cair. É horrível, mas o que se pode fazer? — Olhou constrangido para o almoço. — Quero dizer, melhor ele do que nós, certo?

Felizmente, fui salvo de ter que responder quando Donovan se largou no banco a meu lado e atacou uma maciça tigela de gororoba.

— Como foi sua primeira manhã? — perguntou ele a Zê enquanto mastigava. — Que tarefa lhe coube?

— O fedor — sussurrou ele.

Donovan exibiu uma expressão que era um misto de careta e sorriso:

— Trabalho duro para um calouro. No entanto, todos tivemos que fazer isso algum dia.

— Bem, da próxima vez que fizer isso, pode tentar dar um tempo para a privada?

Dessa vez todos rimos, mas o riso durou pouco. Ouvi atrás de mim um ruído de algo sendo esmagado e uma gargalhada pavorosa. Sob tudo aquilo veio um soluço baixinho que pareceu rasgar meu peito e se esconder bem dentro do meu coração.

— Viu quem foi? — perguntei a Donovan. Ele levava uma colherada à boca e fez uma pausa para considerar a pergunta.

— Ninguém que você conheça, garoto — respondeu enfim. Mas sua hesitação já dera lugar a muita coisa.

— É o Montgomery, não é? — indaguei. Donovan deixou a colher cair no prato e acenou que sim com a cabeça. — Cristo, eu o vi na cela esta manhã. Pelo que pude perceber, Kevin o fez dormir no chão. Desse jeito vão acabar matando-o.

Tanto Donovan quanto Zê olhavam para a mesa como se um plano de fuga estivesse escrito sobre ela.

— Este lugar está repleto de regras não escritas — murmurou Donovan, sem olhar para cima. — Sempre vai haver alguém que vai receber os socos. É assim que funciona. Não é justo, não é certo, mas esse garoto que lambe a gororoba do chão lá atrás faz com que consigamos comer em paz. Se não houver um bode expiatório, todos estaremos em perigo; se você...

— Estou entendendo, sim — gritei. Minha raiva me surpreendeu; não fazia nenhum sentido. Na escola, Toby e eu sempre implicávamos com os garotos mais fracos, meninos como Montgomery. Eles não revidavam, não argumentavam, nos davam o que queríamos, depois iam embora chorar pelos cantos. Não entendi muito bem por que senti uma raiva tão intensa dentro de mim ao ver Montgomery como vítima agora, uma raiva enorme em pensar que ninguém o ajudaria. — Então vão deixar as coisas como estão, até ele não aguentar mais, e aí esperar que o próximo bode expiatório não seja um de nós, certo?

— Escute — Donovan cuspiu as palavras, o temperamento inflamado evidente na maneira como olhava para a tigela. — Você está aqui há um dia e acha que pode mudar as coisas. Estou aqui há cinco anos e sei como o sistema funciona. Se tentar ser um herói, vai receber uma facada nas costas; se tentar ajudar esse garoto, amanhã serão vocês dois lambendo a merda do chão. Eu que descubra que você está pensando em fazer alguma coisa estúpida como essa, garoto, que largo você assim. — E estalou os dedos.

O choro fraco vindo da cantina encobriu cada palavra de Donovan, deixando-me com uma mistura de frustração, fúria e medo que me revirou as entranhas. Não conseguia entender que emoção era aquela, todos os sentimentos acomodados como convidados indesejados no fundo do meu estômago. Olhei para Zê, mas ele ainda não voltara a me encarar. Chamei seu nome com suavidade, e ele levantou a cabeça como se fosse feita de pedra.

— Eu queria ajudá-lo, mas... — A voz foi morrendo. — Se isto fosse na escola, você sabe, eu faria tudo o que pudesse. Mas estamos longe do playground.

O lamento atrás de mim se transformou em um guincho agudo, e dessa vez não consegui me conter. Olhei por sobre o ombro e vi um dos Caveiras baixar o pé com violência enquanto o outro atirava a gororoba de uma concha em direção à figura invisível lá embaixo.

— E quanto aos guardas? — perguntei. — Certamente não permitem isto.

— Eles não se importam — respondeu Donovan. — Ninguém se importa. Você também não deveria.

Mas eu me importava. Cada fibra do meu corpo queria entrar lá e ajudar, e cada fibra do meu corpo queria ficar naquele banco e esquecer o que estava acontecendo. Achei que a qualquer minuto ia me dividir em dois, ficar reduzido a uma massa trêmula e sangrenta no chão da cantina.

Foi a coisa menos importante que me veio à mente. Um dos Caveiras olhou para o amigo e lhe lançou um sorriso maldoso. Era uma expressão que eu conhecia bem, pois a tinha usado milhares de vezes na escola depois de conseguir uma boa coleta. Olhar para isso agora era como me ver num espelho, enxergar um lado de mim cheio de cobiça, traição e violência, sem nem um pingo de compaixão. Eu me odiei naquele momento, e o sentimento prevalecente cobriu meus pensamentos com uma sombra avermelhada, obstruindo qualquer argumento racional.

Antes que eu mesmo percebesse o que fazia, estava fora da mesa, ignorando os protestos de Donovan e Zê. Minha raiva cega me conduziu ao outro lado daquela sala como uma escavadeira. Passei acotovelando os detentos que ainda esperavam para ser servidos e saltei sobre o balcão. Tudo se passava em câmera lenta e de modo estranhamente distorcido, como se assistisse àquilo através da água. Vi dois rostos bem na minha frente, encarando-me em choque. Os outros Caveiras não tinham sequer percebido, pois estavam ocupados demais atormentando a figura gorducha e soluçante a seus pés.

Então, como se todo mundo houvesse contido a respiração e tivesse, enfim, decidido aspirar algum ar, o tempo voltou ao normal. Com um grito, dei um pontapé forte com o pé direito. Anos jogando futebol compensaram quando meu sapato entrou em contato com o rosto do primeiro Caveira, e, com um ruído que podia ter sido seu nariz ou o dedão do meu pé se quebrando, sua cabeça pendeu para trás, e ele se estatelou no chão.

Tentei acertar um segundo chute, mas o Caveira foi mais rápido, agarrando meu pé e me desequilibrando. Entre pular e cair, por algum milagre da sorte, derrubei o balcão de comida da cantina bem em cima dele. O Caveira bateu forte contra o chão, e eu caí de joelhos no centro de seu peito, esmagando-lhe os pulmões. O impulso me levou para a frente, e tombei contra a parede que ficava atrás da cantina, minha visão explodindo em estrelas.

Com medo de que alguém me esfaqueasse nas costas, virei depressa o corpo, lutando desesperadamente para me agarrar na pedra lisa. Os dois outros Caveiras me atacavam; tive que abaixar a cabeça quando a concha passou voando pela minha orelha, me enchendo de gororoba. Nunca estivera em uma briga tão feia quanto aquela e não tinha ideia do que fazer em seguida. Felizmente, a adrenalina me fazia agir sem pensar, e me lancei sobre o garoto que havia acabado de atirar a concha. O movimento foi uma mescla de soco e salto, mas errei totalmente o alvo. Sem esse impacto, meus braços agitados ficaram sem rumo. Perdi de novo o equilíbrio e me choquei direto contra um punho que se aproximava.

Sempre achei que ser socado era algo doloroso, mas não foi. Pelo menos, não no momento do golpe. É como se seu corpo desligasse seus sentidos durante uma briga para impedi-lo de ser dominado. Você ouve um baque surdo, e por um momento o mundo gira, mas não há dor. A ausência da sensação de dor me pegou de surpresa, e, de repente, me senti como um super-homem — imbatível, imune a tudo.

Virei minha cabeça para o lado para evitar o soco seguinte, já a caminho, depois plantei a palma das mãos no meio do peito do Caveira e o empurrei com toda a força. Ele tropeçou no corpo ainda inclinado de Montgomery e quase deu uma cambalhota para trás antes de cair no chão. Detectei um movimento com o canto do olho e, de maneira instintiva, abaixei-me, a concha passando sobre minha cabeça. Virei um dos cotovelos na direção do ataque e senti o contato. O Caveira cujo maxilar eu havia acabado de fraturar uivou antes de cair de costas contra a cantina.

Agarrei seu colarinho com a mão esquerda, e com a direita comecei a socá-lo. Não foram golpes de martelo, por mais que se deem asas à imaginação, mas chegaram duros e rápidos, e depois de três ou quatro ele estava machucado, sangrando e balindo através dos lábios cortados. Olhou-me com um medo real nos olhos, e tentei imaginar como deveria estar minha expressão. A palavra demoníaca me veio à mente.

Mas então a boca sangrando se retorceu em um sorriso, e de repente percebi que as coisas agora iam mudar para pior.

Senti um par de braços fortes me agarrar pelo peito, prendendo meus braços. Eu me movi de um lado a outro, mas não adiantou. O Caveira havia me prendido com força, e fiquei impotente para me defender quando o garoto que estava à frente passou a me socar. Ele era muito melhor nisso do que eu, e cada golpe fazia meu mundo ficar mais negro. Ainda não havia dor, mas algo pior — um entorpecimento estranho que se espalhava por todo o meu corpo, e a inequívoca e aterrorizante sensação de que seria gravemente machucado.

Coloquei minhas reservas finais de energia em uma última tentativa para escapar, e consegui dar um impulso para trás com as pernas. Eu e o garoto que me segurava caímos no chão, mas ele ainda não havia me soltado. Olhei para cima, para ver o garoto que me socava e o Caveira que eu havia ferido. Os dois avançavam como leões sobre uma gazela ferida, sem nada no olhar, exceto um brilho assassino.

Tudo isso aconteceu em menos de um minuto, mas a sala do cocho já estava quase deserta. Do ângulo em que estava deitado, conseguia ver além da cantina e observei as últimas pessoas correndo pelo corredor. Só uma figura permanecia, e por um segundo me brotou a esperança, pois imaginei Donovan vindo me ajudar. Mas ele simplesmente balançou a cabeça para mim, virou-se e caminhou para o pátio. Até Montgomery havia conseguido ficar de pé e se afastava com pouco menos que um olhar para trás.

O desejo de sangue que havia dentro de mim de repente desapareceu, deixando-me totalmente só. A adrenalina havia escapado das minhas veias, e me sentia como se ela houvesse sido substituída por fardos pesados. Mesmo sem o garoto sob mim ou seu abraço de urso, ainda não acreditava que teria energia para mover sequer um músculo. Minha expressão destemida também havia me abandonado, e eu não conseguia fazer outra coisa senão olhar para os predadores à frente com olhos arregalados e o maxilar tremendo.

Os dois Caveiras se ajoelharam a meu lado, e, para meu horror, um deles deslizou algo do cinto. Era uma colher de pau, mas o cabo havia sido afiado até um ponto mortal. Ele a balançou diante do meu rosto.

— Vai pagar por isso, calouro — ele falou, a respiração ainda difícil pela minha aterrissagem em seu peito. — Vai ser a estada em Furnace mais curta de todos os tempos.

— Depressa — disse o amigo dele, secando o sangue dos lábios. — A sirene vai soar a qualquer segundo. Encarceramento.

— Este nojento não merece uma morte rápida — murmurou o primeiro Caveira, erguendo a arma acima do meu estômago. — Vou sangrar você.

Fechei os olhos e rezei para que não doesse demais. Naquele momento, nem sequer me importei de estar morrendo. Só não queria sentir dor. Tentei relaxar os músculos e me imaginar em outro lugar — na praia com minha família, desfrutando da areia quente e envolvido pelo som e pelo cheiro do oceano.

Mas a ilusão foi abalada por um rugido. De início pensei que fosse o Caveira gritando enquanto enfiava a arma em minhas entranhas, mas, quando vi que meu estômago permanecia intacto, abri os olhos e avistei uma forma borrada passar voando e meu atacante cambalear para trás. A forma parou e girou, batendo algo com força na cabeça do outro Caveira. A bandeja rangeu com satisfação ao atingi-lo, e, atrás dela, vi o rosto de Zê.

— Não acredito que estou fazendo isso — ele murmurou enquanto chutava o quadril do garoto que estava debaixo de mim. A figura se contorceu e os braços afrouxaram, permitindo que me virasse e me livrasse daquela opressão. — Não acredito. Não acredito.

Depois de ouvir a cadência violenta da circulação do sangue em meus ouvidos, ouvi o som de uma sirene e soube que o encarceramento era iminente.

— Corra — gritou Zê, atirando a bandeja no chão com um estrondo e agarrando minha manga.

Corremos pela sala do cocho, saltando sobre as mesas para evitar os bancos espalhados e os restos de almoço. Tentei me lembrar do que Donovan dissera sobre o encarceramento, sobre quanto tempo a sirene soava antes de as celas serem trancadas. Era um minuto? Trinta segundos?

Emergimos no pátio para encontrá-lo sem pessoas, mas repleto de barulho. Das centenas de celas que se enfileiravam no corredor vieram gritos, aclamações, vivas e assobios, todos dirigidos a nós enquanto corríamos para a escada.

Mas não íamos conseguir. Ao cruzarmos a metade do pátio, ouvi o ruído de celas se fechando, seguido do ruído pneumático que indicava a abertura da porta da abóbada. Jamais devia ter parado de correr, mas parei. O medo e a curiosidade mórbida me obrigaram a parar e me fizeram observar com horror quando o portal maciço se abriu e os cães saltaram.


CÃES DO INFERNO

 


Lembra que contei que corri de coisas piores que tiras na minha vida? Bem, esta foi uma dessas ocasiões. Eles irromperam das sombras como cães do inferno, enviados pelo demônio para rasgar pecadores em pedaços e arrastar a alma deles, aos gritos, de volta para o mundo subterrâneo. O poder absoluto de seus corpos retorcidos era traído pela falta de pele, músculos expostos e tendões se flexionando e brilhando à luz implacável de Furnace quando estacaram no centro do pátio.

O pior de tudo eram os olhos — duas moedas prateadas desprovidas de emoção que brilhavam nas faces úmidas, examinando o chão para depois se fixarem em mim. Devolvi o olhar, perdido nas luas gêmeas de cada criatura, o brilho de uma linha de pescar invisível que se enganchou em meus olhos e me impediu de correr. Mas então um dos cães ergueu a cabeça e soltou um uivo — um ruído repugnante que soava como os gritos de um homem agonizante —, e eles atacaram.

— Venha — ouvi Zê gritar, agarrando meu ombro. Virei-me e corri como um raio atrás dele enquanto atingia a escada mais próxima, ouvindo os cães gritar de novo ao se preparar para a matança e o ruído nas celas crescendo enquanto os detentos se acomodavam para assistir ao espetáculo.

Subimos os degraus de três em três, o medo e a adrenalina nos transformando em campeões olímpicos. Gritava palavrão em cima de palavrão, uma torrente de maldições que, esperava, bloqueasse a escada atrás de mim. Não funcionou. Quando havíamos atingido o alto dela, os cães já avançavam no início. Diminuíram a velocidade da corrida para fazer uma ronda lenta, sabendo que não tínhamos aonde ir. As criaturas pareciam saborear a expectativa, as mandíbulas potentes se retorcendo em um esgar e derramando grandes escarros de saliva nos degraus.

E eles estavam certos; não havia lugar nenhum onde se esconder. Todas as celas estavam trancadas.

— O próximo andar — sussurrou Zê, e recomeçamos a subir, minhas pernas queimando, e a cabeça girando com o esforço.

Atingimos o segundo nível e nos viramos para ver os dois cães nos seguindo pela escada, centelhas saindo das patas deles cada vez que entravam em contato com o metal. Zê subiu mais um lance de degraus e passou a correr ao longo da plataforma, ignorando a gritaria e o vozerio do outro lado das grades.

— Pense! — gritou para mim. — Aonde estamos indo?

— Direto para a outra escada — respondi, tentando fazer essa informação soar como um plano.

Saltamos na plataforma, os detentos dentro das celas observando com um misto de horror e fascínio enquanto os cães nos seguiam. Uma das bestas ficou distraída com algo dentro de uma cela e se arremessou contra as grades, entortando-as como se fossem feitas de plástico. Minhas pernas quase cederam naquela hora, assim como outras partes do meu corpo que realmente não quero mencionar, mas consegui ir em frente.

Na metade da plataforma os cães ficaram entediados de vagar a esmo e iniciaram um trote, as patas enormes fazendo a plataforma sacudir a cada passo que davam, os olhos se estreitando ao se fixar nas presas. Atingimos a escada e subimos, tentando olhar ao mesmo tempo para onde íamos e para o que ficava atrás de nós. Enquanto conseguíssemos manter um lance de escada entre nós e as criaturas, eu me sentiria bem.

Mas não podíamos abusar da sorte. Cansado da caça, o primeiro cão se encolheu na plataforma, saltou no ar acima do pátio e aterrissou ruidosamente do lado oposto das grades de proteção. De perto, sua face era ainda mais horripilante. Pude ver um conjunto de dentes manchados e tortos que iam até a garganta vermelha, um abismo brilhante onde estava prestes a encontrar meu destino. De todos os modos que pudesse ter pensado em morrer, este era o pior — despedaçado por um cão mutante. Recuei um passo, tropeçando em um dos degraus, e caí sobre meu traseiro.

O monstro enterrou as garras no metal e começou a subir a escadaria, sem desviar o olhar de mim. Podia sentir seu hálito fétido quando ofegava — o fedor de morte e putrefação que me acompanharia até o fim. Ele saltou desgraciosamente rumo à plataforma, fazendo a superfície toda tremer, e ergueu a cabeça, pronto para a matança. Olhei para Zê, congelado no alto da escada, e me resignei ao inevitável, rezando, pela segunda vez naquele dia, para que minha morte não fosse muito dolorosa.

Mas do pátio lá embaixo veio o som de soluços. O cão girou a cabeça e olhou para os gradis de metal. Fiz o mesmo. Um dos Caveiras da sala do cocho — aquele que havia tentado me matar — atravessava o pátio mancando, implorando com toda a sua voz que lhe fosse permitido voltar para a cela.

O cão soltou um uivo ensurdecedor e saltou da escada. Apesar de estar três andares acima, aterrissou com perfeição, percorrendo, veloz, o chão de pedra. Senti a voz de Zê atrás de meus ombros e deixei que me ajudasse a levantar. Ele começou de novo a subir a escada correndo, mas eu não conseguia tirar os olhos do que acontecia lá embaixo.

O segundo cão também havia saltado da plataforma, e ambos agora se aproximavam da nova vítima. O Caveira recuava, o rosto transformado em uma máscara de medo. Ainda segurava a colher de pau com o cabo pontiagudo em uma das mãos e a balançava diante dele. Parecia alguém tentando deter um trem com um palito.

— Vamos, Alex — sussurrou Zê. — Eles podem voltar a qualquer minuto.

Os cães se agacharam sobre as patas traseiras, parecendo por um segundo prestes a se encolher e dormir. Mas então ambos saltaram para a frente com as mandíbulas incrivelmente escancaradas. O local onde o Caveira estivera de pé de repente virou uma profusão de cores, diferentes matizes de vermelho se confundindo com cintilações prateadas e fragmentos de um branco sujo na supremacia daquele quadro repugnante.

Em segundos, estava acabado. Não vi os cães terminarem a refeição. Apenas segui Zê enquanto voltava a subir a escada. Abaixo de nós ouvi um par de uivos com sangue coagulado gargarejado através de gargantas úmidas, depois o som das garras no metal quando os cães mais uma vez começaram a subir a escada.

— O que adianta? — sussurrei sem fôlego quando atingimos o quarto nível e começamos novamente a correr. — Eles vão nos pegar.

Mas Zê não respondeu. Parei por um instante para recuperar a respiração e lancei um olhar para a escada. Um dos cães estava embaixo, subindo os degraus numa velocidade ameaçadora. O outro escalava os degraus na outra extremidade das plataformas. Eles estavam nos encurralando.

Com uma força motivada pelo medo, passamos do quinto para o sexto nível e estávamos prontos para continuar a subir quando vi algo em que não pude acreditar. A metade inferior da porta de minha cela estava aberta, retida ali por uma privada. De pé na plataforma e acenando freneticamente para nós estava Donovan. Senti todo o meu corpo inundado de alívio, e ambos nos precipitamos até ele, mas, antes de conseguirmos passar por mais algumas celas, o cão apareceu a certa distância de nós e avançou em nossa direção.

Zê continuou correndo, mas eu o impedi, segurando sua manga:

— Nunca vamos conseguir; essas coisas andam muito depressa — falei, puxando-o de volta para a escada de onde havíamos acabado de sair. — Precisamos subir.

Zê fez menção de argumentar, mas levantei a mão.

— Confie em mim.

Atingimos a escada segundos antes do primeiro cão. Ele enfiou o focinho através da escada da plataforma de baixo, girando o metal e quase arrancando meu pé. Pulei por cima dele enquanto ele lutava para libertar a própria mandíbula, olhei para trás e vi que o segundo cão recuava para a escada da outra extremidade.

Saltando os últimos degraus, corremos para a plataforma do sétimo nível. Um uivo nos indicou que a criatura estava atrás de nós, e, olhando para cima, vi o segundo cão emergir da escadaria e cair no corredor, direto em nossa direção. Em uma questão de segundos nos tornaríamos ração de cachorro.

— E agora? — gritou Zê.

Parei de correr e coloquei as mãos na grade de proteção que separava a plataforma do pátio, sete andares abaixo. A visão fez meu estômago se contorcer desagradavelmente, e por um segundo não consegui pensar no que mais poderia fazer. Mas os cães se aproximavam, e depressa. Não havia escolha.

Comecei a subir na grade de proteção. Zê me olhou, espantado.

— Não pode estar falando sério — disse.

Os cães estavam no máximo a dez degraus de distância, escalando tão rápido o metal que pareciam voar. Zê parou de argumentar, levantou uma perna e lançou o corpo sobre a grade, de forma que ambos ficássemos de pé do outro lado, a um passo da queda.

— É só um andar — argumentei. — Só cair e se agarrar.

— Não consigo — disse ele.

Mas conseguiu. Naquele instante os cães nos alcançaram, lançando-se na direção das grades de proteção em um frenesi de dentes e garras. Não poderia ter me segurado naquela barra mesmo que quisesse, pois minha força já havia acabado milésimos de segundos antes de as mandíbulas dos cães se fecharem onde estava minha cabeça. A segunda criatura se arremessou na direção de Zê, mas ele conseguiu se soltar. O cão se elevou acima da cabeça dele, rosnando para nós sem parar enquanto todos despencávamos rumo ao chão.

Mal houve tempo para reagir. As grades da plataforma de baixo me atingiram como uma bala. Estiquei uma das mãos e, mais por sorte do que por qualquer outra coisa, consegui agarrar a barra de metal. Meu braço parecia ter sido arrancado do ombro, mas continuei segurando firme. Zê havia perdido as grades de proteção, mas se segurou no piso, as pernas pendendo desamparadas no vazio.

O cão não teve tanta sorte; atingiu o chão lá embaixo com um baque surdo. Choramingava ao tentar se firmar nas patas, e o som de ossos quebrados rangendo um contra o outro me deixava nervoso. Não demoraria muito antes de seu amigo descobrir onde estávamos, então me curvei sobre as grades de proteção e estendi a mão para ajudar Zê. Donovan apareceu do meu lado, agarrando a outra mão do garoto, e juntos o puxamos e o deixamos em segurança.

— Rápido — gritou Donovan, correndo pela plataforma em direção à nossa cela. A porta ainda estava aberta, mas o mecanismo rangia, tentando descer. Ouvi um uivo atrás de nós; dei uma olhada ao redor e vi o outro cão correndo pela plataforma. Pude jurar que sua face estava retorcida em uma expressão de fúria diante do que havíamos feito com seu companheiro.

Pulamos para dentro da cela, Donovan entrando por último, lutando para tirar a privada de lá. Eu o ajudei, agarrando o metal manchado e puxando com toda a minha força. Mas a vantagem ainda era do cão. Nesse passo, ficaríamos presos dentro da cela com aquela criatura.

Mas, quando tudo parecia perdido, a privada se soltou, arremessando a mim e a Donovan em um voo para trás, até a cama. A porta da cela baixou, os ferrolhos mantendo-a no lugar, e o cão se chocou contra as grades. Elas se curvaram de maneira alarmante, mas resistiram. A criatura lutou contra o metal durante alguns segundos antes de a sirene soar novamente na prisão. Ele ficou do lado de fora da cela, encarando-nos com seu olhar prateado, como para se lembrar de nossos rostos. Em seguida ganiu e voltou para a escada.

 


Não me envergonho de dizer que passei os minutos seguintes chorando. Zê também. Sentamo-nos aninhados no beliche de baixo, soluçando em desespero, o corpo exausto e a mente assaltada pelo medo, incapazes de fazer qualquer outra coisa.

Assim que os cães desapareceram porta da abóbada adentro — o que estava ferido mal conseguia se arrastar —, Donovan se pôs a gritar comigo, dizendo-me como eu havia sido totalmente estúpido ao começar uma briga que não podia vencer. Mas depois de alguns insultos ele parou, olhando para nós dois como se fôssemos uma dupla de bebês assustados, e sua expressão era um misto de frustração e piedade. Por fim, apenas balançou a cabeça e subiu para o beliche.

Eu chorei até sentir que havia derramado a própria alma, até parecer não haver mais nada dentro de mim. Aí me deitei na cama, olhando para o espaço e tentando esquecer até mesmo que eu existia. Não sei se minutos ou horas depois, lembrei-me de minha boa educação:

— Obrigado — falei baixinho, pouco mais que um sussurro. — Obrigado por salvar nossas vidas.

A cama rangeu quando Donovan virou o corpo acima de mim e soltou um grunhido que podia ter sido um reconhecimento. Ouvi uma tosse suave do meu lado e me virei para Zê, que me observava na expectativa.

— Oh, sim, obrigado a você também — disse, recordando os acontecimentos na sala do cocho, acontecimentos que pareciam pertencer a outra vida. — Você salvou minha pele, Zê.

— Você me deve uma, super-homem — foi a resposta dele. Os cantos dos lábios se ergueram no que pensei ser um sorriso. — Super--homem...

— Pelo menos, conseguimos — respondi. — Sobrevivemos.

Fiquei surpreso em ouvir Donovan rir, uma gargalhada inteiramente desprovida de humor.

— Você conseguiu, sim, mas por quanto tempo? — ele indagou. — Esses cães não esquecem um rosto, especialmente quando deixa um deles com as patas quebradas. E, quanto aos Caveiras...

Ele não precisou terminar. Eu sabia que, assim que saísse da cela, estariam atrás de mim. Quero dizer, só tínhamos conseguido que um deles fosse morto. Agora, realmente, eu era pele de Caveira. Parte de mim desejou que os cães houvessem comido todos os membros da gangue que estavam na cantina, mas aquele pensamento me deixou doente.

— Entende agora? — continuou Donovan. — Este lugar não é brincadeira. Não é um filme, livro ou videogame em que há vidas infinitas. Você faz uma merda aqui, você morre. Simples assim. E vocês dois fizeram merda hoje, super-homem. — Donovan fez eco à ênfase de Zê. — Super-homem...

— O que aconteceu com os outros Caveiras? — perguntei, tentando mudar de assunto. — Aqueles que estavam na sala do cocho?

— Enfiaram-se em algum lugar, provavelmente tremendo nas bandanas. Os guardas vão descobri-los num minuto.

— E quanto a nós, vamos ser punidos? — perguntou Zê. De repente, imaginei o que Donovan contara sobre o encarceramento na solitária; tentei não pensar sobre enlouquecer em um poço escuro no fundo do mundo.

— Talvez sim, talvez não — ele respondeu. — A gente nunca sabe o que vai acontecer neste lugar. Podemos terminar no buraco ou apenas ser deixados em paz. Podemos ser levados esta noite. É tudo um mistério, até que aconteça.

A sirene penetrou em meu crânio quando mais uma vez a porta da abóbada se abriu. Dessa vez saíram dois ternos-pretos, armados com espingardas, e se dirigiram à cantina. Passaram pelo lago de líquido escuro, que era tudo o que restava do Caveira, e em seguida desapareceram pelo corredor. Menos de um minuto depois os três Caveiras que haviam sobrado emergiram da sala do cocho, as mãos fechadas sobre a cabeça, uma das espingardas apontada para as costas deles enquanto caminhavam rumo à escada. Desapareceram do campo de visão, mas ouvi um dos ternos-pretos gritar um número de cela seguido pelo som abafado de uma porta abrindo.

Isso aconteceu mais duas vezes, e então o som ensurdecedor das botas dos ternos-pretos foi ficando mais alto à medida que caminhavam ao longo da nossa plataforma. Pressionei as costas contra a parede, mas não havia para onde ir, por isso permaneci onde estava, impotente, quando as duas faces sorridentes apareceram nas grades.

— Sempre a carne fresca — comentou um deles. — Esses garotos novos acham que podem arrasar.

Tentei me desculpar, mas minha boca estava tão seca que não consegui mexer a língua. Um dos ternos-pretos correu as mãos ao longo das grades, curvadas para dentro devido ao peso do cão.

— Abrir a F11 — berrou.

A porta da cela se moveu alguns centímetros antes de as barras aparafusadas emperrarem contra o revestimento. O homem agarrou o suporte da porta e o puxou, os músculos sob o terno se contraindo tanto que achei que o tecido fosse rasgar. Com o som de metal guinchando, as barras sólidas cederam, voltando ao lugar e permitindo que a porta se abrisse por completo. Os homens não entraram; só apontaram para Zê.

— Você, venha conosco.

— Eu? — perguntou ele, a voz quase inaudível. Zê olhou para mim como se eu pudesse ajudar. Engoli em seco, depois me levantei com as mãos estendidas em uma demonstração de submissão.

— Sou eu quem vocês querem — falei devagar. — Fui eu quem começou tudo.

— Ora, ora, o senhor Nobreza em pessoa — comentou o terno-preto que havia endireitado a porta. — Não me bajule, garoto. Você está na cela certa, ele não. Essa é uma violação das regras do encarceramento. Agora, mova-se daí, idiota.

Zê se levantou, relutante, e caminhou para a porta da cela. Os homens ergueram suas armas ameaçadoras e o conduziram para fora.

— Sinto muito, Zê — eu disse, mas ele já se afastava. Lembrei-me em um relance de Toby, morto no chão da casa de um estranho, a vida roubada devido à minha estupidez, à minha cobiça. Não conseguia acreditar que estava acontecendo de novo.

— Fechar a F11.

A porta da cela se fechou com um ruído surdo, e eu agarrei as grades, tentando ver o que ocorreria. Zê foi conduzido à escada, desaparecendo ao ser levado rumo a seu destino.

— Para onde o estão levando? — perguntei a Donovan. — O que vai acontecer com ele? Foi tudo culpa minha, não dele.

A resposta veio um segundo mais tarde, quando ouvi o som de um tiro percorrer a prisão, ecoando nas paredes de pedra e perfurando meu coração. Caí de joelhos, tentando fazer o tempo voltar, tentando desfazer o que havia provocado.

Ouviu-se outro ruído, não de um tiro, mas da fricção de metal contra metal.

— Abrir a D24 — falou uma voz, e o som continuou, o ruído de uma porta de cela se abrindo. Apoiei a testa contra as grades frias, oferecendo uma prece de agradecimento a qualquer coisa que pudesse escutar. Ouvi a porta se fechar, seguida logo depois pela sirene, quando os homens de preto se retiraram.

— Ele está bem — murmurei. — Estamos bem.

Mas Donovan apenas soltou aquele seu riso arrepiante:

— Não, Alex. Você está morto, só não sabe ainda.


A ADVERTÊNCIA DO DIRETOR

 


Quando acordei na manhã seguinte, realmente pensei que estivesse pegando fogo. Cada fibra do meu corpo estava em agonia. Sentia dores em todos os músculos, dores em músculos de cuja existência nem desconfiava, dores em locais que nem sabia que tinha. Minha cabeça martelava algum tipo de dança tribal antiga; pela garganta parecia ter passado um ralador de queijo; e meus olhos lacrimejavam como se eu usasse lentes de contato embebidas em vinagre. Emiti o que deve ter sido um gemido bastante patético, depois tentei tirar da cama minhas pernas inúteis.

— Mate-me agora — sussurrei. Minha espinha parecia uma tigela de cereal ao me levantar, uma emissão de todo tipo de estalos e crepitações, mas, após capengar pela cela algumas vezes, como um velho, senti a dor começar a ceder. Na segunda volta, vi Donovan se firmando na cama e olhando para mim com simpatia.

— A primeira vez que alguém se mete em encrenca sente dor na manhã seguinte — murmurou em meio a um bocejo. — Mas posso imaginar como você se sente depois de se meter em encrenca, brigar e tentar escapar dos cães.

— Sinto-me como se cada nervo do corpo estivesse sendo alfinetado por uma agulha quente — respondi, provocando em Donovan uma expressão de desagrado. — É como se alguém tivesse me esfolado vivo e agora cozinhasse meus órgãos internos com um maçarico. — Ele ficou um pouco pálido diante dessa informação. — Como se houvesse sido banhado em ácido...

— Está bem, chega — interrompeu ele, levantando uma das mãos. — Estou a caminho do café da manhã.

Ficamos conversando enquanto esperávamos que a sirene soasse, o que aconteceu quando eu usava a privada, provocando uma série de piadas por parte de Donovan. Não sabia por que ambos estávamos de tão bom humor, considerando os acontecimentos do dia anterior. Suponho que ficar trancafiado faz coisas estranhas com o estado mental da gente. Você se sente tão aliviado por ter conseguido sobreviver a cada dia e a cada noite que o simples ato de levantar o deixa eufórico — mesmo quando parece ter lutado contra um elefante.

O humor logo mudou quando as celas se abriram. Descemos para o pátio com o rosto preocupado, as expressões marcadas por um sinal de medo, examinando a multidão e atentos a qualquer sinal de ataque. Localizei várias bandanas pintadas — olhos pretos sem vida emplastados sobre faces cinzentas inexpressivas —, mas, além de algumas carrancas voltadas em minha direção, pareceram me ignorar. Mantive os braços rígidos ao longo do corpo, prontos para o revide, se necessário.

Por alguma razão, as coisas naquela manhã estavam um pouco diferentes do dia anterior. Dois ternos-pretos estavam de pé ao lado do elevador, sob a tela enorme, e nos reunimos diante deles como gado. Quase soltei um mugido, mas era mais de medo que uma tentativa de humor. Consegui manter a boca fechada quando chegamos ao pátio e fiquei atrás do grupo. Demorou alguns minutos para todos descerem as escadas, mas por fim todos os detentos da prisão se posicionavam, nervosos, sob a tela que piscava. Parecíamos aguardar nossa execução.

Um dos ternos-pretos ergueu a espingarda no ar e deu um único tiro. Por trás do aviso ensurdecedor ouvi a munição silvando nas barras acima da minha cabeça e esperei que todos estivessem no térreo. Qualquer um que houvesse ficado lá em cima teria um buraco no corpo. O pátio instantaneamente caiu em silêncio, os prisioneiros de boca fechada para evitar atrair a atenção.

— Parece que vocês causaram uma bela impressão — sussurrou Donovan em meu ouvido. Esperava que aquele acontecimento não tivesse nada a ver com os eventos da véspera, mas, a julgar pela maneira como as pessoas me olhavam, soube que era uma esperança vã.

A tela explodiu em estática, uma tempestade de neve efervescente que se assentou em uma imagem confusa de uma figura escura. O homem estava sentado nas sombras, e um único facho de luz iluminava dentes brilhantes e um nariz adunco que eu sabia pertencerem ao diretor. Ele estava reclinado para a frente e, de súbito, todo o rosto ficou visível. Diferentemente de quando estivera em pé diante de mim, consegui olhá-lo nos olhos. Mas desejei não tê-lo feito. Eram como lagos escuros embutidos na cabeça, vórtices que pareciam me sugar. Era como olhar para um abismo. Achei que fosse ver planetas naqueles olhos, galáxias repletas de estrelas. Mas vi loucura e caos, vi a eternidade. Vi minha própria morte.

Em seguida pisquei, e eram apenas olhos. Escuros, sim, mas normais. Percebi que estava empapado de suor. Este se instalou na minha pele como uma toalha molhada e estremeci a seu contato. Todos no pátio haviam se encolhido de medo diante da imagem do diretor, que parecia um gigante encarando a presa daquele enorme monitor.

— A obediência é a diferença entre a vida, a morte e outras variedades de existência ofertadas aqui em Furnace — falou a imagem, a voz amplificada por alto-falantes ocultos em um volume que fazia o chão vibrar.

Era a mesma coisa que tinha dito no dia de minha chegada, e, não sei por quê, achei que se dirigia a mim pessoalmente. Depois de tudo o que havia acontecido, suponho que a impressão era verdadeira.

— Ontem foi uma desgraça — continuou a imagem. — Briga na cantina, uma violação flagrante das regras de encarceramento, e um dos meus cães teve de ser aliviado de sua lastimável existência devido a duas pernas quebradas.

Senti uma repentina e surpreendente pontada de culpa porque o cão tinha sido sacrificado. Eram monstros, mas o lamento que produzira enquanto tentava se levantar após a queda ainda estava vivo em minha mente.

— Sei quem foi o responsável, e vocês também sabem. Mas são uma colônia de pragas, não têm mais personalidade individual, por isso todos estão sujeitos a represália. — Houve um lamento audível no pátio. — Portanto, hoje a sala do cocho está fora do limite de vocês. Ficarão sem refeições e sem água. Se os animais querem brigar por comida, não merecem comer.

Sorriu, e, por um momento, senti-me sugado para o poço que eram seus olhos. Era como se o mundo que me cercava tivesse perdido a casca, desaparecido gradualmente, deixando a escuridão e a loucura em
seu lugar. Baixei a cabeça, o estômago revirando como se andasse em uma montanha-russa.

— Por enquanto vou esquecer o outro incidente de ontem — prosseguiu o diretor, inclinando o corpo para trás de modo que seu rosto ficasse mais uma vez encoberto pelas sombras. — Mas prestem atenção: qualquer outra infração, qualquer outra briga, e o responsável vai para o buraco por uma semana. — Dessa vez houve gritos reais de agonia entre a turba de detentos. — E uma semana lá embaixo é tão bom quanto a cadeira elétrica. Espero ter sido claro.

A tela efervesceu de novo, e a estática deu lugar à lista de nomes para o trabalho. Mas ninguém prestava atenção. Algo estava sendo gerado no centro da multidão: uma onda de tensão que ameaçava explodir a qualquer minuto. Houve uma interrupção provocada por outro tiro de advertência do mesmo guarda, que deu um passo ameaçador em direção aos detentos infelizes e apontou a arma fumegante para o prisioneiro mais próximo.

— Vocês ouviram o chefe — grunhiu ele. — Calem-se e vão trabalhar. Se depender de mim, todos vão descer na maior calma.

De algum modo os prisioneiros conseguiram reprimir os ânimos e, um por um, foram se dirigindo a seus postos. Fiquei apavorado ao ver que Donovan e eu seríamos escavadores de novo. Meu corpo não se sentia capaz de levantar um pretzel, que dirá uma picareta, e o pensamento de estar em um local repleto de gente que me odiava, todos armados com equipamentos de mineração, realmente não me fazia sentir-me nem um pouco melhor. Não haveria sequer o café da manhã. Meu estômago parecia ter sido removido cirurgicamente, deixando um buraco no torso, e o pensamento de um dia sem comida ou água — mesmo o grude que serviam ali — era apavorante.

Começamos a cruzar o pátio, mas alguns segundos se passaram antes que alguém abrisse a boca.

— Não se preocupe — disse Donovan, falando alto por sobre os gritos e insultos que me eram dirigidos. — Não é a primeira vez que a cantina é fechada por um dia, e não será a última. Estamos acostumados com isso. Ficou trancada por três dias quando os Caveiras enfrentaram os Leopardos. Aquilo foi um tremendo tumulto.

Qualquer pequeno alívio que possa ter sentido se esvaneceu por completo quando um garoto que eu nunca vira correu para mim e gritou: “Bom trabalho, idiota”. Peguei-me me aproximando de Donovan, como se sua simples presença de alguma maneira me protegesse, embora não tivesse me esquecido do modo como ele havia se afastado no dia anterior enquanto me espancavam. Percebi outra pessoa correndo em minha direção e me acovardei, mas reconheci a voz de Zê e me recompus, tentando fingir que havia só tropeçado na pedra.

— Turba hostil — disse-me ele. — Por que pressinto que hoje é meu último dia na Terra?

— Você vai ficar bem por enquanto — respondeu Donovan, quando Zê ficou na fila conosco. — Ninguém vai começar uma briga sabendo que isso custará uma semana no buraco. Nunca ninguém sobreviveu tanto tempo lá. O recorde são quatro dias, e, afinal, o sujeito era um homem sem sombra.[3]

Houve um distinto rugido proveniente de um estômago, mas não consegui dizer se vinha de Donovan, de Zê ou do meu, que também roncava. Provavelmente emanou de nós três, um coro de protesto por um dia sem alimento.

Caminhamos em silêncio pelo buraco na parede, passando por um terno-preto cujos olhos prateados prometiam um mundo de sofrimento se saíssemos da linha. Era só o meu segundo dia ali, mas me sentia um veterano em escavação ao colocar o visor com um suspiro, ligar a lâmpada do capacete e erguer a picareta até o ombro para evitar furar o pé de alguém. Meus músculos se queixaram diante do esforço, mas foi apenas um resmungo tímido. Eles sabiam o que tinha de ser feito.

Zê havia sido colocado conosco nesse dia, e ficou bem perto de nós, seguindo minhas instruções ao escolher as próprias ferramentas. O terno-preto nos dividiu em grupos, e uma vez mais caminhamos até a terceira sala. Donovan e eu assumimos o mesmo local no ponto mais distante da caverna semiacabada, e descrevi a tarefa para Zê.

— Golpear e limpar, é isso. Ah, e cuidado com a cabeça!

A percussão constante do metal e da rocha recomeçou de forma diligente. Às vezes o ruído soava exatamente como o que era — um bando de garotos esmagando uma parede de pedra. Mas às vezes se iniciava um ritmo, alguma força misteriosa de coincidência transformando os golpes incessantes em um staccato. Mas ele duraria apenas alguns segundos antes de uma vez mais sair de sincronia, embora sempre provocando um sorriso em meu rosto.

Só depois de mais ou menos dez minutos de golpes dolorosos passei a me sentir observado. Rejeitei a sensação, atribuindo-a ao fato de as pessoas ainda estarem me olhando com raiva, mas foi tão poderosa que senti como se algo perfurasse minha nuca. Virei-me e examinei os detentos que estavam atrás de mim. A maioria estava oculta atrás de visores e uma camada de pó vermelho, mas havia um rosto familiar que se voltou assim que o vi. Era Montgomery.

Baixei minha picareta no chão e me dirigi a ele, abrindo caminho com cuidado entre as vigas de madeira que seguravam o teto. Ele tentou recuar, mas depois parou, virou-se e ergueu a picareta como se fosse começar a trabalhar, para em seguida deixá-la pender. Por fim, curvou os ombros e me reconheceu com um aceno. Atrás do brilho em seu visor consegui avistar seu rosto ferido e um lábio inchado, mas a expressão era mais dura do que nunca.

— Como você está? — perguntei gentilmente. Ele me olhou como alguém pego de surpresa, como se eu fosse um de seus espancadores.

— Acho que quer que eu lhe agradeça — soltou ele. Arqueei uma das sobrancelhas e abri a boca, mas não tinha absolutamente nenhuma ideia do que responder. — Não lhe pedi ajuda. Não sou um caso de caridade. Qual é a sua? Quer uma grande recompensa por salvar o coitadinho do Monty? Bem, não vai conseguir. — Gotículas de saliva pontilhavam a tela de plástico à frente de seu rosto. — Agora não poderemos comer nada. Um dia inteiro. Por sua culpa.

Ergueu a picareta e balançou-a em minha direção. Aquilo me lembrou um velho agitando a bengala para um bando de garotos. Levantei as mãos em um gesto de rendição, minhas sobrancelhas se recusando a voltar à posição normal.

— Credo! — foi tudo o que consegui dizer. Senti a ardência familiar de raiva se inflamar dentro do meu peito, mas engoli em seco, e ela desapareceu. O rosto de Monty enrugara-se em uma determinação hostil, mas considerei que o medo o fazia reagir daquela maneira. De todo modo, esperei que fosse mesmo; do contrário, seria um pobre coitado ingrato.

Abri a boca para tentar argumentar, mas depois pensei melhor, dei--lhe as costas e retornei para a picareta.

— Ele não pareceu estar explodindo de gratidão — comentou Zê, erguendo o visor e esfregando uma mão enluvada na sobrancelha. O movimento deixou na testa um rastro de poeira úmida que parecia sangue à meia-luz da sala. — Pelo menos disse obrigado?

Neguei com a cabeça, e Zê olhou Monty com raiva:

— Isso é totalmente absurdo. Poderíamos ter morrido ontem salvando aquela bunda gorda. Devíamos tê-lo deixado entregue à própria sorte.

— Eu avisei vocês — soltou Donovan entre os movimentos da picareta.

Eu o ignorei, mas os dois estavam certos. Tinha sido uma atitude estúpida. Não sou um herói nem um astro de filmes de ação. Sou um vilão, não um santo. Devia ter abandonado Monty lambendo o chão para os Caveiras; assim nunca teríamos ido para a lista negra do diretor, e todos teríamos tomado o café da manhã. Lancei um último olhar para ele — de pé, ainda segurando a picareta como se fosse uma arma e olhando para o chão —, depois recomecei a golpear a parede.

Sinto-me um pouco envergonhado em confessar que, dessa vez, quando imaginei rostos na rocha, pensei no dele.


TEMPO OCIOSO

 


Ninguém sabia exatamente quanto tempo durava o trabalho em Furnace. Donovan dizia que eram cinco ou seis horas — do café da manhã até o almoço —, mas aquele segundo dia de trabalho pesado pareceu mais uma jornada de 24 horas.

Sem combustível para nos manter trabalhando, começamos a ceder com rapidez. O ar opressivo de Furnace caía sobre nós como a respiração de um dragão — quente, fétido e às vezes desprovido de oxigênio —, de modo que nos sentíamos prestes a entrar em choque. Era a falta de água que cobrava seu tributo, e secávamos feito uvas-passas, obrigados a baixar a picareta a cada dois minutos para evitar um desmaio. Eu até me vi olhando para o suor na testa de Donovan, na esperança de que ele amenizasse minha sede.

Houve momentos em que senti o mundo girar incontrolavelmente, um ataque de vertigem como se acabasse de cair de um abismo. Tive que manter os olhos fechados e me inclinar sobre a picareta para evitar soltá-la por completo. Outros garotos não foram tão afortunados. Dois desmaiaram naquela manhã, o segundo a meio caminho de um golpe. Ele pendeu para a frente como um peso morto, aterrissando o rosto em uma faixa de pedra pontiaguda. Novamente, a visão do sangue esguichando teria feito meu estômago revirar, mas já havia visto coisa bem pior que aquela em Furnace. Seu corpo de bruços foi arrastado dali por um terno-preto, uma trilha vermelha marcando sua passagem.

Quando a sirene soou — meia vida mais tarde —, o ritmo das picaretas contra a rocha já tinha se reduzido a uma batida lamentosa dos poucos prisioneiros que ainda tinham força para erguer as ferramentas. Estávamos tão desesperados para sair dali que todos nos precipitamos para a porta antes de o eco da sirene ter desaparecido, e em menos de um minuto nos desfizemos de nossas coisas e já esperávamos na sala de equipamento pela ordem de nos encaminharmos aos chuveiros. Obviamente outro grupo havia passado à nossa frente, pois o terno-preto não nos dava sinal para passar.

Para evitar a crescente sensação de frustração, que podia explodir em violência a qualquer momento, Donovan, Zê e eu nos dirigimos aos fundos da sala. Por alguma razão parecia mais calmo ali, mais fresco, embora não conseguisse descobrir por quê. Os outros garotos também sentiram isso; aquilo parecia relaxá-los, afrouxar os membros tensos e provocar um sorriso no canto de seus lábios. Eu me peguei pensando em montanhas, de todos os tipos, com os picos cobertos de neve e levadas pelo vento, tão alto acima do mundo como estávamos abaixo dele, inundados de luz e ar.

Nós três soltamos em uníssono um suspiro profundo e trêmulo, depois rimos daquela coincidência. Algo naquele local nos deixava eufóricos, e tivemos que contrair o nariz para evitar um riso incontrolável. Felizmente, nesse momento o terno-preto deu ordem para nos movermos, e o ruído abafado de risos se perdeu em meio ao som de pés em movimento.

Só quando conseguimos sair dali compreendi a profundidade da fonte de nosso bizarro entusiasmo. Olhando para trás, vi o buraco negro fragmentado na pedra que conduzia à Sala Dois. Estava ainda selado com grandes tábuas de madeira devido ao desmoronamento, mas não havia equívoco sobre a natureza do que emanava daquele portal.

Era ar fresco.

 


Depois do calor e do trabalho pesado da sala da escavação, os chuveiros foram como o paraíso. Pelo menos dessa vez a água fria foi uma bênção, não uma maldição, e todos ficamos de pé sob o fluxo, deixando o jato gelado limpar nossos corpos e engolindo tanto líquido quanto podíamos. Juro que desceu mais água por nossas gargantas do que nos esgotos aquela tarde.

Achei que o suprimento abundante de líquido frio manteria as coisas civilizadas nos chuveiros, mas aprendi que em Furnace não se consegue ter mais que alguns minutos sem nenhum tipo de crueldade. Por trás do ruído do fluxo, ouvi zombarias de novo, uivos de lobo e risos que pareciam ser tanto abafados quanto amplificados pelo vapor no ar.

Sequei as gotas de meus olhos e olhei para a sala dos chuveiros para ver quem estava sendo perseguido dessa vez, mas não precisava ter me incomodado. Monty era pressionado contra a parede mais adiante, na mesma fileira que a minha, enquanto um grupo de prisioneiros sugava água com a boca e a cuspia nele. O pobre garoto tentava cobrir algo em seu braço, e, quando levantou a mão para bloquear um jorro de água cuspida, vi o que era: uma marca de nascença marrom do tamanho de uma laranja e em forma de coração.

Um dos garotos partiu direto para cima de Monty com a bochecha cheia e cuspiu uma verdadeira torrente bem no rosto dele.

— Bela tatuagem, garoto amoroso — gritou ele com um sorriso retorcido.

Senti aquela familiar onda de raiva, uma besta dentro de mim que queria ser libertada, mas me contive, recordando de como Monty havia reagido antes. Além disso, ele me viu olhando para ele, e os olhos verdes se estreitaram de um modo que mais uma vez me fez sentir-me como se eu fosse o agressor. Era uma expressão de desafio que me advertia para não o ajudar. Não conseguia interpretá-la de fato, mas a respeitei e me virei de costas para deixá-lo saber. Fiquei contente de ter feito isso, pois a pancada abafada e o grito que soou atrás de mim teriam sido demais para ser testemunhados.

Mais frios que geleiras e vestidos em uniformes limpos e sapatos de papel, caminhamos da sala dos chuveiros para o pátio. Um terno-preto armado estava de pé na frente do túnel que conduzia à sala do cocho, mas não me perturbava muito a ideia de não ir lá de novo depois do dia anterior. Em vez disso, Donovan conduziu a mim e a Zê para o outro lado do pátio, na direção da escada.

— As coisas esquentam aqui embaixo quando a sala do cocho é interditada — ele explicou. — Centenas de prisioneiros famintos, sedentos e irritados são como dinamite à espera da explosão. Não acho que algo vá acontecer, não depois da advertência do diretor e tudo o mais; ninguém vai explodir se a promessa é uma semana no buraco, mas, só por precaução, é melhor ficar em segurança.

Não argumentaria contra. Chegamos à escada e subimos, não antes de eu perceber outra porta escondida sob a escada, o buraco na rocha tão estreito que era quase invisível. Dois prisioneiros estavam de pé do outro lado, casualmente recostados na parede. Um deles era um Caveira; o outro tinha duas linhas pretas em cada um dos lados do rosto — uma marca que eu já vira em outro grupo de prisioneiros.

— O que há ali? — perguntei, apontando. Donovan se inclinou para olhar através dos degraus e acenou com a cabeça quando percebeu o olhar do prisioneiro com o rosto pintado. O garoto inclinou a cabeça em direção a Donovan em reconhecimento.

— É o ginásio — respondeu ele, e continuou a subir a escada. — Mas não se encha de esperanças. É propriedade privada dos Caveiras e dos Cinquenta e Nove, os garotos com as linhas no rosto.

— Por que Cinquenta e Nove? — perguntou Zê ao atingirmos a segunda plataforma. Donovan bufou.

— Dizem que é o total de gente que mataram durante o Verão do Massacre, antes de serem mandados aqui pra baixo. Há quinze deles, portanto, faça as contas. Eles afirmam terem sido uma das maiores gangues da capital, a leste do rio. Mas não acredito nisso. Não foram grandes o bastante para expulsar os Caveiras quando chegaram aqui, então fizeram algum tipo de pacto de boa vizinhança em que ambos controlam o ginásio. Acho que cinquenta e nove é a soma do QI dos dois grupos.

Atingimos a plataforma quatro com uma série de bufos e sopros, usando as grades de proteção para nos ajudar a subir.

— Eles deixam algumas pessoas usar o equipamento, inclusive os cupinchas — prosseguiu Donovan. — Mas ninguém mais entra. Eles o usam para jogar cartas e para brigas organizadas. O chão dali é permanentemente vermelho, se é que me entende.

— Quem quer usar o ginásio, afinal? — resmungou Zê enquanto nos arrastávamos ao quinto nível. — Já temos trabalho pesado suficiente aqui sem precisarmos nos preocupar com pesos, esteiras e toda essa merda.

— Tudo bem pra você — replicou Donovan, virando-se e flexionando os braços para nos mostrar. Por um minuto parecia haver dois melões onde deveriam estar os bíceps. — Não tem um corpo como este para cuidar.

Rimos, mas, como todos os bons momentos em Furnace, este teve vida curta. Quando nos aproximávamos da cela, dois rostos espinhentos emergiram de trás das grades e bloquearam nossa entrada. Eram Kevin Arnold e um de seus lugares-tenentes, um garoto com uma cicatriz no rosto chamado Bodie. Donovan pareceu expandir-se ao vê-los, o corpo inflando enquanto tensionava os braços, e, por um segundo, os Caveiras pareceram ansiosos.

— Não tenho nada para acertar com você, Donovan — explicou Kevin. Achei ter ouvido outro som vindo de dentro da cela, o ruído de água correndo. — Só com o canalha de merda do seu companheiro.

Os Caveiras voltaram a atenção para mim, e me preparei para me defender, olhando, nervoso, a queda de seis andares à minha direita e rezando para não terminar em um voo sobre as grades de proteção. Donovan não disse nada, mas também não recuou.

— Você fez nosso homem ser morto ontem — prosseguiu Kevin. — Essa ofensa não vai passar em branco. Você vai pagar, gota de sangue por gota de sangue. Conhece as regras.

— Na verdade, não recebi nenhuma cópia do manual de piratas quando cheguei, por isso não conheço — respondi, amaldiçoando minha voz, que tremeu enquanto eu falava.

Kevin sorriu, e percebi que ele não tinha nenhum dos dentes da frente.

— Você está ficando engraçado — sussurrou ele. — Mas homens mortos não riem tão alto.

Não tinha certeza se devia rir ou chorar. Parecia um horrível filme de terror das tardes de domingo, mas sabia que Kevin me espetaria com uma faca sem pensar duas vezes.

— Assim que o diretor suspender sua advertência, vamos acabar com você de uma vez por todas, calouro. Com você e sua namoradinha ali.

Zê fez menção de balbuciar algo, chocado diante do comentário, mas se conteve. Kevin e Bodie forçaram a passagem por nós e começaram a subir a plataforma. Foram seguidos por um terceiro prisioneiro, que saiu da cela ainda abotoando a braguilha.

— Durma bem esta noite — falou enquanto seguia os amigos, e de repente compreendi qual havia sido o ruído de água correndo. Corri para dentro da cela e avistei uma mancha escura se espalhando pelo meu lençol.

— De jeito nenhum! — explodi. — Não podem. Quero dizer, por que fizeram isso? Onde eu vou dormir?

Prossegui assim durante quase um minuto antes de recuperar meu juízo e tirar aquela merda úmida da minha cama. Pela maneira como o lençol caiu no chão, tive certeza de que os três garotos haviam se aliviado no meu beliche. Arrastei-o da cela até a plataforma, depois olhei para Donovan e Zê.

— O que devo fazer agora?

— A lavanderia é só daqui a dois dias — respondeu Donovan com um dar de ombros. — Até lá, suponho que vá dormir al dente.

— Al dente? — perguntei, franzindo o cenho. Zê riu.

— Acho que ele quer dizer al fresco. Em espaço aberto.

— Por acaso sou italiano? — respondeu Donovan levantando o braço como se fosse dar um golpe forte, mas dando-lhe um tapinha gentil na orelha. — Al dente, al fresco, Al Pacino, para mim é tudo a mesma coisa.

O cheiro forte de urina fazia nossos olhos lacrimejar, por isso demos alguns passos ao longo da plataforma e nos sentamos, os pés pendurados sobre o vão e rostos pressionados nas grades de proteção. Os prisioneiros pareciam soldados de brinquedo lá embaixo, separados em diferentes unidades que ocupavam várias partes do pátio. Como óleo e água, cada grupo parecia repelir o outro, jamais entrando em território inimigo. Alguns circulavam como bandos de cães, em busca de qualquer sinal de fraqueza. Outros se sentavam às mesas espalhadas fazendo queda de braço ou jogando cartas.

Havia até um grupo de detentos mais novos brincando de pega-pega, gritando excitados quando tocavam o outro ao redor do pátio, evitando os garotos maiores. Não sei por que, mas vê-los correndo me deu um nó na garganta — eram garotos que deviam estar brincando no playground da escola, nos intervalos das aulas ou no caminho para casa, para comer uma refeição quente e se encontrar com uma família amorosa. Alguns pareciam ter dez anos de idade, santo Cristo — nunca teriam uma chance de desfrutar do fato de serem crianças.

— O diretor não vai suspender a advertência, vai? — perguntou Zê, desviando minha mente dos eventos lá de baixo.

— Vai suspender quando chegar a hora — explicou Donovan. — Este lugar é como uma panela de pressão, e ele sabe disso. Vai deixar a ameaça do buraco pairando sobre nós durante alguns dias, mas não pode manter a promessa para sempre, ou vai ter um levante para enfrentar. — Tirou preguiçosamente uma ferrugem da barra e lhe deu um peteleco no vazio. — Não vai anunciar que o suspendeu. Apenas haverá uma briga algum dia, e tudo o que vai acontecer será um encarceramento. Como eu disse, a gente nunca sabe de verdade o que vai acontecer neste lugar.

— Qual é o negócio do diretor, afinal? — prosseguiu Zê depois de um coro de suspiros. — É um sujeito muito assustador. Aqueles olhos...

— Você também notou? — perguntei, lembrando-me da maneira como o mundo se dissolvera quando havia encontrado o olhar fixo do diretor. — Eu me senti como se ele arrancasse minha alma ou alguma coisa assim.

— É — respondeu Donovan —, são olhos que parecem dedos; entram direto no seu cérebro. Vocês perceberam que não é possível olhar para os olhos dele quando ele está na sua frente? — Ambos fizemos que sim com a cabeça. — Ninguém aqui consegue. Nenhum de nós. Mas há muitas coisas em Furnace que ninguém consegue fazer.

— E quando ele estava na tela? — comentei. — Quero dizer, acho que vi... bem... planetas, espaço ou algo assim. — Não conseguia me lembrar exatamente do que tinha visto, e, falando a respeito agora, parecia ridículo. — Vi a morte, acho. Algo desse tipo.

— Eu não vi nada — acrescentou Zê. — Era como olhar para um espaço que antes estava cheio de coisas, mas naquele momento era apenas um vazio. Achei que estivesse sendo sugado por ele.

— Vão por mim — disse Donovan. — Fiquem bem longe do diretor. Alguns aqui acham que ele é o demônio. Eu não acho. Não acredito nessa história de religião, mas reconheço o mal quando o vejo. Ele é algo podre que extraíram das entranhas da Terra, uma coisa que juntaram da escuridão e da imundície. Ele será a morte de todos nós, de cada um de nós que está aqui em Furnace. A única dúvida é quando.

— Sei de uma coisa — acrescentei. — O diretor certamente desperta o lado dramático das pessoas.

Zê e Donovan não conseguiram segurar o riso e explodiram em uma gargalhada.

— Então ele é o dono deste lugar? — perguntou Zê. Tanto Donovan quanto eu balançamos a cabeça, mas deixei o grandalhão explicar.

— Há uma razão para isto aqui se chamar Furnace, seu idiota — ele explicou. — Foi construído por um sujeito chamado Alfredo Furnace. Empresário ou coisa assim, mas de todo modo rico o bastante para bancar este lugar. Na verdade, ninguém sabe nada sobre o tal; ele nunca vem aqui. Provavelmente porque está sentado num trono em algum lugar, contando o dinheiro que o governo lhe paga para tirar das ruas pessoas de baixo nível como nós.

Ficamos sentados em silêncio durante algum tempo, ouvindo o ruído abafado lá de baixo. Olhei para o teto distante, perdido nas sombras em pelo menos mais vinte andares para cima, e fiquei imaginando como estaria o tempo lá, mas o pensamento foi muito depressivo.

— Bem — disse —, testemunhamos brigas, gigantescos cães mutantes e um diretor que pode ou não ser o próprio Satã. Com certeza não pode haver muita coisa pior a ser vista em Furnace.

— Garoto — replicou Donovan sem rodeios —, você ainda não viu nada. Não pode realmente entender o pesadelo que é este lugar até os Ofegantes virem buscá-lo no meio da noite. Quer horror? A simples visão deles fora da cela pode fazê-lo morrer de medo.

Não acreditei nele, é claro. Quero dizer, depois do que já havia visto, não podia imaginar nada mais aterrorizante. Mas estava errado: os cães e o diretor eram apenas um aquecimento para o espetáculo mais repugnante de Furnace — um espetáculo que só tive de esperar mais quatro dias para testemunhar.


O PREPARO DA LAVAGEM

 


Quatro dias. Um mais longo que o outro, cada um deles ditado pelas sirenes que soavam pela prisão em horas alternadas, cada um atormentado pela mesma sensação infinita de terror. Toda vez que recostava a cabeça à noite e ouvia a sinfonia de Furnace, imaginava como conseguiria enfrentar o dia, e, quando meus olhos pesados se fechavam e o mundo desperto se dissolvia, eu entrava em pânico pensando se aquela seria a noite em que eles viriam, se seria a minha última noite na Terra.

Mas sempre me surpreendia ao encontrar cada nova manhã chegando no mesmo horário e eu ainda ali — exausto e apavorado, sim, porém vivo. No dia seguinte à advertência do diretor, a sala do cocho foi reaberta, para alegria dos prisioneiros reunidos do lado de fora, eu inclusive. O estouro da boiada para o café da manhã foi tão feroz que os garotos que serviriam a gororoba fugiram, dizendo a todos que cada um se servisse. Assim fizemos, colocando porções montanhosas daquela lavagem de conteúdo desconhecido na bandeja. Posso honestamente dizer que, depois de um dia sem comida, aquela gosma salgada foi a melhor coisa que já havia comido.

Naquele terceiro dia de encarceramento, Donovan e eu fomos escavadores de novo, enquanto Zê voltou à tarefa da limpeza — embora, felizmente para ele, não ao fedor. O quarto dia foi minha primeira experiência em uma tarefa diferente, trabalhando na sauna a vapor que era a lavanderia da prisão. Tivemos o mesmo turno no quinto dia, quando um acidente com uma das máquinas me deixou com uma queimadura ao longo de todo o braço esquerdo. Pelo menos depois disso tive de novo lençóis limpos.

Após o trabalho pesado, Donovan, Zê e eu perambulávamos pelo pátio. Na maior parte do tempo só sentávamos e conversávamos, mas às vezes pegávamos um baralho e jogávamos vinte e um ou mesmo rouba-monte. Era difícil relaxar sabendo que poderia sentir uma bicuda fria nas costas a qualquer momento, mas mantínhamos os olhos um no outro e apenas mudávamos de lugar se víamos os Caveiras se aproximando.

Em Furnace, aprendi que o tempo ocioso era como uma dança estranha em que cada grupo se movimentava em torno dos outros com surpreendente graça e ritmo. Também aprendi a não mencionar essa percepção a ninguém, porque podiam pensar que eu os chamava de bailarinos.

Não houve muita violência nesses dias. De vez em quando os ânimos se exaltavam, e uma briga parecia prestes a se iniciar, mas o medo do buraco fazia as coisas se manter sob controle. Houve troca de socos, uma ou duas bicudas agitadas na frente do rosto de alguém, e Monty e alguns dos outros garotos levaram pontapés, empurrões e sofreram diversas humilhações, mas não vi muito sangue. Ocasionalmente, alguém saía abalado do ginásio, com vários cortes e ferimentos, mas sorria em meio aos machucados. Suponho que as lutas organizadas não contassem como violação das regras do diretor.

No sexto dia, Donovan e eu descemos a escada após a sirene do despertar e vimos que nossa tarefa de trabalho pesado era o preparo da lavagem, junto com Zê. Senti-me um pouco excitado por conseguir, enfim, ver o interior da cozinha, e, quando passamos pelas portas duplas no fundo da cantina, não fiquei desapontado.

Diferentemente do resto de Furnace — que era toda de rocha vermelha e sombras difusas —, a cozinha era um abrigo de alumínio escovado banhado por uma luz branca. As paredes haviam sido recobertas de gesso e pintadas, presumivelmente por razões de saúde e segurança. Não que Furnace estivesse muito preocupada com a saúde e a segurança dos prisioneiros, é claro, mas suponho que mesmo esse buraco do inferno devia ter passado por algumas inspeções antes de obter permissão para ser inaugurado. Adentrar aquelas portas para o interior iluminado foi como sair de um monte de lixo e entrar em uma igreja, e me senti estranhamente animado.

Não durou. Assim que vi o que faríamos, percebi que a cozinha era apenas um tipo diferente de lixo. Em um canto estavam caixotes do que só posso descrever como restos — cascas de cebola, ossos de galinha com restos de carne pendendo deles, pão com inegáveis esporos verdes, queijo cujo fundo da caixa respingava para o chão, frutas que já haviam começado a se liquefazer e apodrecer, e até um saco que parecia estar cheio de cabelo.

O pior de tudo eram cinco ou seis caixas entulhadas de carne úmida. Juro que vi algumas coisas naquelas caixas que me deixariam sem comer carne pelo resto da vida — intestinos, garras e até um olho de vaca sangrento fitando o teto, como se imerso em profundo pensamento. Aquela massa cintilante me lembrou dos cães do diretor, e quase acrescentei minhas próprias entranhas à mistura.

— Agora você sabe por que chamam isto de preparo da lavagem — esclareceu Donovan, puxando um avental de papel e algumas luvas de borracha imundas de uma caixa sob o balcão. — São coisas lá de cima que não dariam nem aos porcos.

— É, mas isto aqui vai ser jogado fora, não vai? — perguntou Zê, pegando um avental para ele e atirando um para mim. — Não é lixo?

— É um modo de falar — foi a resposta de Donovan. — Se por fora você quer dizer dentro e por lixo, ingredientes. O que você acha que vai naquela gororoba com a qual nos alimentam? Suflê de salmão?

A melhor coisa no preparo da lavagem era que você só precisava de poucas pessoas para trabalhar num turno. Dez prisioneiros ficavam na cozinha de cada vez — quatro iam servir o chiqueiro lá fora, e o resto varria a merda e preparava o próximo lote de gororoba. Naquela manhã, Donovan, Zê e eu escolhemos a tarefa de cozinhar a gororoba e nos retiramos para o grande fogão industrial que ficava no fundo da cozinha. Percebi que Monty também havia sido destinado para o trabalho ali. Ele pegou uma vassoura e manteve distância de nós, mas diversas vezes olhou para o fogão como se guardasse algum segredo.

— Suponho que nenhum de vocês saiba cozinhar — falou Donovan, erguendo um dos caixotes do chão e despejando-o no balcão que ficava ao lado do fogão. Com um safanão, arrebentou os barbantes em cruz que mantinham os vis conteúdos aprisionados. Ambos balançamos a cabeça em negativa. Conseguia fazer pão com queijo quente em casa, mas mesmo assim tendia a queimar o pão.

— Bem, isto não é exatamente cordon-bleu — prosseguiu ele, fazendo Zê abafar o riso. — Pegue uma dessas panelas e coloque-a no fogão.

Olhei sob o balcão e vi fileiras de panelas gigantescas, cada uma parecendo um caldeirão de bruxa. Foi preciso que Zê e eu a levantássemos juntos para colocá-la no fogão. Donovan pegou uma grande garrafa de óleo e despejou mais ou menos a metade dela na panela, depois abriu um painel ao lado do fogão e alcançou algo lá dentro. Ouvi um ruído suave, seguido do ruído de gás.

— Pegue um desses acendedores — instruiu, apontando para um dos três longos e finos acendedores enfileirados do outro lado do fogão. Zê pegou-o e colocou-o sob a panela, pressionando o botão para produzir uma chama patética. Percebi o cheiro pungente de gás pairando no ar e recuei um passo. — Acenda isso direito, ou toda a prisão vai explodir — prosseguiu Donovan, diminuindo o suprimento de gás lá dentro. — Coloque mais perto.

— O quê? E perder meus dedos? Acho que não — replicou Zê. Mas mesmo assim aproximou mais a chama da boca do fogão, até que, com um estrondo e uma crepitação, o gás se acendeu.

— E acabamos de decolar — disse Donovan ficando de pé. Olhei através do painel e vi três ou quatro grandes bujões de gás presos com segurança na parede. Donovan não estava brincando: se um deles explodisse, pareceríamos a carne daqueles caixotes, só que assada.

Donovan começou a tirar punhados de restos de comida do caixote e a colocá-los em uma pia embutida no balcão, ao lado do fogão. Indicou-nos que fizéssemos o mesmo, e, depois de vestir as desconfortáveis luvas, Zê e eu erguemos alguns caixotes e passamos a atirar aquelas porcarias na pia, tentando ignorar o cheiro de decomposição. Quando o caixote de Donovan estava vazio, ele o atirou ao chão, pegou uma vareta e começou a empurrar aquela mistura nojenta no ralo.

— Recuem — falou, alcançando o outro lado do balcão e pressionando um botão. Um som não diferente de uma serra na lama subiu da pia, e a gororoba começou lentamente a desaparecer.

— É um dispositivo para coleta de lixo? — perguntei, falando acima do som de uma série de gargarejos e assobios de lâminas que giravam embaixo do ralo.

— Não; é o misturador de sabores patenteado por Furnace — respondeu ele, empurrando a vareta no dreno para pôr fim a um bloqueio. — Garantido para a mistura dos ingredientes na ordem certa a fim de produzir uma refeição fantástica.

Empurramos mais alguns caixotes de comida na pia, observando enquanto tudo aquilo era sugado para dentro do buraco. Donovan arriscou colocar mais uma embalagem de carne, segurando-a de cabeça para baixo, até a carne que estava dentro ceder à gravidade e mergulhar em direção ao chão, numa massa bem cor-de-rosa. Acredito ter visto formas pálidas serpenteando por caminhos livres em entranhas apodrecidas, mas as atribuí à minha imaginação. Com certeza nem aquele lugar seria capaz de nos alimentar com vermes.

Donovan desligou a máquina e abriu uma porta no balcão. Sob a pia estava um enorme balde, praticamente transbordando com o grude marrom que caíra do cano acima. Dando um rugido, ele o levantou e o derramou no caldeirão. Houve um barulho brutal quando aquela substância nojenta entrou em contato com o óleo fervente.

— Mais algumas cargas do balde, e terão feito sua primeira leva de gororoba do cocho — ele falou, enquanto reposicionava o balde. — Deixem-no ferver durante uma hora mais ou menos ou até perder todo o gosto e a cor, acrescentem um pouco de recheio e sal, e bingo... a perfeição em termos de prato!

— Não parece tão ruim — ouvi Zê murmurar.

— Bem, vamos ver se vocês ainda vão dizer isso quando tiverem feito a trigésima panela do dia — respondeu Donovan. — Temos muitas barrigas para encher aqui.

Como tudo em Furnace, o preparo da lavagem era uma tarefa suja e exaustiva, mas estar com Donovan e Zê a fazia parecer mais fácil. Conversávamos e brincávamos enquanto processávamos os caixotes nojentos, saciando um ao outro com histórias, falando a respeito de gostos e antipatias, os momentos de maior orgulho e as lembranças mais constrangedoras. Duvido que qualquer um de nós estivesse contando toda a verdade — entre as bazófias sobre ser capitão do time e a realidade havia uma longa distância —, mas o simples ato de nos gabarmos e recordarmos um mundo perdido tirava um pouco da opressão do peito, deixando-nos respirar com um pouco mais de facilidade.

— Isso é algo que queria muito ter feito antes de vir para cá — falou Donovan, quando o tema da conversa girou em torno de comida. — Faria qualquer coisa para saber preparar uma refeição decente.

— Imagine! — repliquei. — Nunca pensei em cozinhar. Mamãe e papai faziam tudo.

— Eu costumava assar bolos e outras coisas com minha avó — acrescentou Zê. — Mas não saberia como fazer se tivesse de começar agora. Só fazia o que me mandavam.

— É. — Donovan continuou como se não tivesse nos escutado. — O que eu não daria para ser capaz de preparar macarrão com almôndegas, cheesebúrguer com bacon, uma pequena caçarola de salsichas...

Lambemos os lábios e concordamos, perdidos na lembrança de boas refeições.

— Eu costumava cozinhar — disse uma voz atrás de nós. Voltei-me e vi Monty segurando a vassoura e observando os caixotes restantes. Sua voz era suave e distante. Quando voltou a falar, os olhos brilhantes não se desviaram do chão. — Minha irmã e eu inventávamos nossas próprias receitas. Espaguete do gnomo do jardim. Tínhamos uma pequena horta no quintal, e ela era guardada por esse gnomo. Tínhamos que retirar o que precisávamos sem que ele nos visse; do contrário, seríamos obrigados a lavar a louça depois do jantar.

Essa era a maior frase que o tinha ouvido dizer até então. E, depois daquele ataque na outra manhã, fiquei impressionado ao ver esse lado dele. Nós três permanecíamos em silêncio, deixando-o falar.

— Susan sempre ia pegar as coisas, porque era mais velha que eu. Mas eu mexia as panelas. Esse era o trabalho importante, mexer. Muito pouco, a comida queimava; demais, e ela não cozinhava do jeito certo.

De repente, ele deixou a vassoura cair no chão e se inclinou sobre os caixotes. Explorando um deles, separou algumas pimentas machucadas e as tirou. Ninguém se moveu, olhando os vegetais murchos nas mãos dele como se fossem uma porcaria monstruosa. Permanecemos assim, um quadro bizarro, até que Monty ergueu a cabeça e nos observou.

— Nunca fui muito bom em nada lá fora — ele prosseguiu. — Mas sempre consegui cozinhar. — Balançou a mão que segurava as pimentas, e dei um passo à frente para tomá-las das mãos dele. Examinou outros caixotes, selecionando coisas que não haviam deteriorado demais no calor, e as pegamos, colocando-as no balcão. Por fim, apalpou com cautela o conteúdo de um caixote de carne até encontrar o que parecia ser um bife marrom. Andando até o balcão, estudou os ingredientes. Então, diante de nosso olhar atônito, começou a cozinhar.

Não havia facas nem talheres de nenhum tipo na cozinha, por isso ele cortou a carne com a beirada de uma bandeja até que ficasse reduzida a cubos. Deu a mim e a Zê instruções para aquecer outra panela, o que fizemos com risadas entusiasmadas, enquanto Donovan esmagava alguns tomates excessivamente maduros em uma tigela.

Era incrível observar Monty trabalhar. Onde praticamente toda ação havia sido desajeitada e desgraciosa até agora, os dedos gorduchos se moviam como raios sobre a comida, misturando, mexendo, temperando e sacudindo com uma habilidade de especialista até transformar os ingredientes disparatados em algo que realmente parecia comida. Com um pequeno floreio, realizado com um constrangimento nervoso, Monty despejou a vasilha na segunda panela e bateu uma mão na outra. Quase de imediato o cheiro da carne e dos vegetais fervidos subiu do caldeirão, tão bom que comecei a babar.

— Susan costumava dizer que ser um bom chefe de cozinha não é saber preparar uma boa refeição — disse-nos, usando uma colher para misturar com cuidado sua criação —, e sim preparar uma refeição para boas pessoas.

— Monty — comecei, mas ele me cortou com um olhar que quase se parecia com a expressão repleta de ódio que eu já vira tantas vezes antes. Não durou, e ele voltou a atenção à panela.

— Agora, comam — ele falou.

Deixamos Monty servir o prato sem dizer uma palavra, mas, assim que colocamos os lábios naquela obra-prima, simplesmente não pudemos nos calar. Donovan em particular. Fazia tanto tempo desde que havia comido qualquer coisa que não fosse comida de prisão que tecia comentários eufóricos a cada colherada, chegando a dizer a Monty o quanto o amava.

Por fim, não conseguiu se conter e começou a chorar, os ombros se sacudindo de modo incontrolável enquanto devorava cada grande bocado. Quase me juntei a ele — o sabor do bife salgado, do molho de tomate e das pimentas suavemente cozidos me levando de volta à minha casa. Durante aqueles minutos, fomos transportados para fora de Furnace. Nunca vou me esquecer daquilo. Até o último pedaço de carne descer pela garganta, e o restinho de molho ter sido lambido das tigelas de plástico, éramos garotos livres de novo.

Depois arrumamos a bagunça morrendo de rir, delirantes de excitação. Fizemos até uma guerra de comida com cascas e miolos, escondendo-nos atrás dos balcões e desviando dos mísseis (luvas de borracha com água que fazíamos voar pela cozinha) com tampas de panela. Monty não se juntou a nós nem riu. Mas nos observou com um brilho no olhar e um sorriso retorcido, e senti que enxergava através dessa manifestação de alegria tempos mais felizes — uma grande cozinha e duas crianças cozinhando espaguete do gnomo do jardim com o mesmo amor e risos aos quais nos apegávamos tão furiosamente agora.

Queria que aquele momento durasse para sempre; todos queríamos. Mas é claro que tinha de acabar. E jamais houve outro dia como aquele. Como poderia? Naquela noite, eles vieram. Vieram rastejando na escuridão para buscar Monty.


A VIGÍLIA SANGRENTA

 


Vieram sem avisar. Vieram sem misericórdia.

Num minuto eu estava dormindo, envolvido por sonhos felizes de piqueniques nas tardes de domingo; no seguinte, fui trazido de volta a Furnace por uma sirene que não tinha fim — uma explosão contínua que reverberava no próprio eco até a prisão tremer e meus olhos doe-rem. De início achei que era a chamada para o despertar, mas perdurava a mais profunda escuridão, e eu sabia, com a ajuda do relógio biológico, que ainda era noite.

Assim que fiz esse cálculo, soube o que estava acontecendo. Estavam chegando. Pulei da cama, meu coração batendo tão forte que era quase como se tentasse encontrar um caminho para fora do peito. Uma onda de murmúrios e gritos de pânico circulou pela prisão, terminando com Donovan, que pareceu sufocar um soluço.

— Por favor, Deus, não esta noite — eu o ouvi sussurrar acima da sirene. — Não eu. Não eu. Por favor, Deus.

A escuridão se pressionou contra mim como o revestimento de um caixão, e meus olhos famintos de luz me pregavam peças. Figuras estranhas saíam dessa tela negra, sempre no canto de minha visão, esgueirando-se para mim com dedos em decomposição e olhos vazios. Esperava sentir mãos ossudas agarrar meu braço a qualquer segundo, um abraço frio me arrastando para o poço. Golpeava o ar em descontrole, e, a cada vez, os fantasmas se dissolviam apenas para se formar de novo em uma perseguição incansável.

O lamento da sirene parou, e ao mesmo tempo milhares de luzes vermelhas embutidas nas paredes da prisão adquiriram vida. Mergulhei em um silêncio espesso e chocante, como se alguém houvesse me atirado em um lago de sangue. Vi o mundo em sombras avermelhadas e negras, e rapidamente me vi rezando para a noite voltar. Pelo menos podia me esconder na escuridão.

Do pátio lá embaixo veio um assobio, e em seguida um estrondo de abalar os ossos quando a porta da abóbada foi destrancada. Ela se abriu para revelar uma fileira de formas arqueadas que marchavam lentamente das trevas, como se liderassem a procissão de um funeral. Da minha cela eu não conseguia discernir quem eram, a luz avermelhada transformando-as em vagos fantasmas que caminhavam para o pátio. Pelo som do assobio, no entanto, pude adivinhar. Estiquei o pescoço para obter uma visão mais clara, mas assim que me movi ouvi Donovan murmurar entredentes:

— Mantenha a cabeça abaixada, seu idiota. Não chame a atenção para a cela.

Podia-se ouvir um alfinete cair. Cada prisioneiro de Furnace manteve a boca fechada, sem se atrever sequer a respirar, com medo de alertar as figuras retorcidas lá embaixo. Minha respiração soava como um furacão; os batimentos cardíacos eram tambores batendo em um ritmo que provavelmente poderia ser ouvido até lá em cima, na superfície. Algum elemento perverso de meu cérebro passou a cantarolar baixinho, acompanhando as batidas — leve-me, leve--me, leve-me —, e tive que morder forte meus lábios para mantê-los fechados.

As cinco figuras lá embaixo pararam no meio do pátio, envoltas em sombras. Então, em uníssono, gritaram. O som fez meu sangue coagular. Era como um bramido de morte de um animal ferido, como o ruído que um coelho faz quando é capturado em uma armadilha. Mas era também um protesto de alguém zangado — o uivo de alguém que acabou de ver um ente querido morrer. O berro arranhou as paredes da prisão, transformando cada um de nós em pedra. Depois as figuras ergueram a cabeça, e pude ver quem eram.

Eram os máscaras de gás, os Ofegantes, com olhos gulosos e descarnados.

Houve outro berro, dessa vez apenas de uma das figuras grotescas, e o grupo se separou. Dois se viraram e se encaminharam para a escada da parte mais distante da prisão, a passos longos e distorcidos, enquanto os outros três vieram em nossa direção, desaparecendo sob a plataforma do lado de fora de minha cela. Ver aquelas figuras esquisitas lá embaixo era uma coisa, mas não as ver era bem pior. Significava que estavam subindo a escada.

— O que estão fazendo? — sussurrei. Quando não houve resposta, comecei a repetir a pergunta a mim mesmo, apenas para ser cortado por um assobio vindo de cima.

— Se não calar a boca, juro por Deus que vou descer e eu mesmo vou matá-lo — disse Donovan, as palavras ásperas quase inaudíveis. — Não é uma piada. Se marcarem esta cela, você vai para algum lugar que faz a morte parecer férias.

Abri a boca para perguntar de novo, mas do pátio veio um zumbido, e depois, com uma explosão aguda e uma chuva de centelhas vindas do alto da prisão, as luzes se apagaram. O medo tomou conta de mim, a simples consciência de que essas coisas podiam estar bem do lado de fora da cela. Mas, segundos depois, a prisão mergulhou em um lago de cor vermelho-sangue quando a eletricidade voltou a ser acionada.

— Que diabos está acontecendo? — perguntei, mas dessa vez falei tão baixinho que nem Donovan ouviu. Mordi o lábio com fúria, desesperado para saber onde estavam os máscaras de gás. Por fim, não pude mais suportar. O mais silenciosamente possível, tirei as cobertas da cama e me levantei. O rangido que o beliche fez pareceu tão alto quanto a sirene, e, assim que o ouviu, Donovan se levantou na cama, os olhos parecendo adagas.

— Para trás! — ordenou ele, o medo entrecortando suas palavras. — Vai fazer com que levem nós dois. — Ele olhou para a grade, o rosto transformado em uma máscara de pânico. — Ande logo, para trás!

De algum lugar lá embaixo outro guincho anormal cortou a noite avermelhada, seguido por um lamento triste que era dolorosamente humano. O lamento se transformou em uma palavra, uma palavra repetida sem parar, como se fosse um mantra.

— Não, não, não, não, não, não, não!

As luzes se apagaram de novo, as centelhas que caíam de cima parecendo um deprimente espetáculo de fogos de artifício que nada fizeram para iluminar a prisão. Obtive conforto na escuridão; fiquei de joelhos e engatinhei até a porta. Donovan desistiu de tentar me deter. Ouvi um rangido quando ele voltou as costas para a grade e o farfalhar do lençol quando o puxou sobre a cabeça.

— Homem morto. — Veio um último comentário abafado.

Com um zunido eletrônico, as luzes foram religadas. Demorou um segundo para meus olhos se adaptarem antes de notar movimento em um dos níveis do outro lado da prisão. Verifiquei a parte de cima, percebendo que um dos odiosos Ofegantes estava no nível cinco. Observei que andava lentamente pelas celas, sem sinal de vida proveniente de nenhuma delas, pois seus ocupantes tremiam sob os lençóis.

A figura se aproximava tão silenciosa quanto um pássaro, dando enormes passos arrastados para a frente, as pernas perdidas na cauda do casaco de couro. O corpo parecia se retorcer e sacudir à medida que avançava, a cabeça se projetando para cima a cada cinco ou seis passos, as mãos enluvadas agarrando a própria face como se tentasse remover a antiga máscara de gás pendurada ali. Havia algo de errado na maneira como ele movia as pernas, mas a pesada luz vermelha me impediu de descobrir o que era.

Estava tão ocupado estudando o monstro que não percebi em que cela ele havia parado, até que vi agitação lá dentro. Houve uma confusão de movimentos, e uma figura rechonchuda voou para a frente e se chocou contra a grade. Monty caiu diante do máscara de gás, encolhido em um canto da cela e com a cabeça escondida entre os braços. Atrás dele pude ver Kevin subindo para o beliche de cima e mergulhando sob os lençóis.

O máscara de gás arqueou as costas e gritou, fazendo Monty se encolher ainda mais em si mesmo, e depois colocou uma das mãos dentro do casaco. Quando a retirou, estava encoberta pelo que parecia ser piche, grandes bocados dele gotejando na plataforma de metal. A figura esquisita esfregou duas vezes a mão imunda na porta da cela, marcando um X nas grades, em seguida gritou de novo e estacou, a respiração seca e difícil sendo o único sinal de que ainda estava viva.

A prisão ficou às escuras pela terceira vez, e olhei em vão para a escuridão. De algum lugar acima veio outro grito, outro protesto aterrorizado. Depois um ruído de estática, quando as luzes vermelhas foram religadas. Minha visão da cela de Monty estava bloqueada, e demorei um instante para descobrir por quê. Quando me dei conta, meu coração omitiu um batimento, tal o horror que se instalou nele.

Bem à minha frente, em toda a sua glória doentia, estava o máscara de gás. Só o olhei por um momento, antes de recuar, mas a imagem ficou gravada em meu cérebro por uma eternidade. O monstro estava de pé fora da cela, encarando-me com os olhos tão profundamente incrustados na face enrugada que pareciam mármore negro. O dispositivo que lhe cobria a boca e o nariz tinha manchas de ferrugem e azinhavre, e assim de perto pude ver que o antigo metal estava permanentemente pregado à sua pele.

Ele inalou ruidosamente, depois ergueu os braços, o movimento abrindo o casacão imundo e manchado de sangue e revelando uma bandoleira pendurada em diagonal no peito. A correia guardava seis ou sete enormes seringas que pareciam não ser limpas desde a Segunda Guerra Mundial. Percebi o que havia de tão perturbador em suas pernas. Moviam-se muito rápido, sacudindo as laterais como se houvessem sido acionadas para avanço rápido. Sua cabeça de repente se agitou na mesma velocidade aterrorizante, sacudindo-se de modo incontrolável por um segundo, antes de voltar para o lugar.

Colidi com o beliche e deslizei para o chão, sentindo-me como se alguém tirasse os ossos das minhas pernas. Quando atingi o chão, as luzes se apagaram, as centelhas iluminando a silhueta do monstro fora da cela enquanto ele colocava a mão no bolso. Ouvi outra pessoa gritando “não, não, não” em volume máximo de voz, mas passaram-se mais alguns segundos antes de perceber que era eu.

As luzes estalaram de volta, mas não permaneceram acesas. Durante algum tempo ficaram acendendo e apagando — vermelho, preto, vermelho, preto —, enquanto o Ofegante continuava de pé fora da cela. As luzes piscando deixavam minha cabeça prestes a explodir, e fui obrigado a fechar os olhos, enterrando o rosto na curva do braço, como se isso pudesse me proteger.

Então, com um zumbido, a energia retornou. Olhei para cima esperando ver o pesadelo ainda de pé fora da cela. Mas ele havia ido embora. Arrastei-me e segurei nas grades para ver o máscara de gás se afastar pela plataforma e atingir a escada, dirigindo-se para cima.

Não respirei pelo que pareceram horas, para depois sugar o ar em inspirações profundas.

— Há uma marca? — ouvi a voz de Donovan. — Um X na grade?

Corri minhas mãos nas barras, mas estavam limpas.

— Nada — sussurrei. Donovan suspirou, murmurando um agradecimento para algo ou alguém desconhecido.

— Volte para a cama, Sawyer — continuou ele. — Você teve sorte, mas não se anime. Ainda não acabou.

Olhei para a cela de Monty. O máscara de gás não havia se movido desde que marcara a porta.

— O que estão fazendo? — perguntei de novo. — Eles não se mexem.

Houve outro grito vindo de cima, e dessa vez todos os máscaras de gás o ecoaram. Segundos depois, a sirene explodiu de novo, e vi mais formas emergir da porta da abóbada lá embaixo. Havia sete ternos-pretos no total, dois deles segurando um cão mutante em uma correia, lutando para controlar o animal enquanto este se rebelava contra sua contenção.

Escuridão de novo, e lamentos. Som de passos contra a pedra, depois contra o metal. Uma série de novos bramidos dos máscaras de gás, e o mesmo grito de “não” da cela abaixo da minha.

Quando as luzes retornaram, vi que os guardas haviam se dividido e se dirigiam às celas marcadas. Encolhi-me quanto pude e acompanhei o terno-preto que se dirigia à cela de Monty. Quando alcançou a porta, gritou para que ela fosse aberta. Era quase duas vezes mais alto que a figura encarquilhada a seu lado, mas olhava o Ofegante cautelosamente enquanto esperava a porta se abrir, nunca se aproximando demais.

Monty ainda estava encolhido no canto da cela, mas nunca vi ninguém parecer mais exposto. O terno-preto estendeu a mão e agarrou o garoto pelo cotovelo, arrastando-o para a plataforma como se não pesasse mais que um saco de penas. Assim que ficou do lado de fora, sob a luz vermelha, Monty se agitou, descontrolando-se contra a pressão de ferro do guarda. Mas o gigante agarrou-o pelos punhos com uma única mão de mamute e suspendeu-o no ar.

O máscara de gás gritava como se se deliciasse. Depois tirou uma das seringas do cinturão e enfiou-a em Monty como se fosse uma faca. Nesse momento, fiquei grato por as luzes terem falhado. Mas contra a tela negra da escuridão minha imaginação projetou a própria e aterrorizante conclusão da história — a agulha se enfiando no braço ou no pescoço de Monty, enchendo-o de podridão e decomposição, de substâncias químicas imundas e sangue contaminado.

A prisão foi mais uma vez iluminada — só o suficiente para que eu visse o terno-preto arrastando o corpo frouxo de Monty para a escada, o máscara de gás atrás dele observando a presa como uma hiena olha um cadáver, a porta da cela se fechando. No pátio, outros ternos-pretos lentamente avançavam em direção à porta da abóbada — uma procissão doentia de gigantes, seres estranhos e garotos perdidos sendo arrastados para um destino que eu nem podia imaginar.

Em seguida, a prisão ficou novamente às escuras, embora, pelas batidas em meu peito, o zumbido em meus ouvidos e a ânsia por ar quando desmoronei ao chão, eu soubesse que dessa vez aquilo não tinha nada a ver com as luzes.


CONSEQUÊNCIAS

 


Acordei onde havia caído, rendido como um bebê na pedra dura. Abrindo os olhos, vi Donovan na privada, mas dessa vez não houve brincadeiras. Ele olhou para mim como se eu fosse algo nojento que ele havia acabado de expelir, depois voltou a atenção para o papel higiênico.

Eu me arrastei até a cama, as pernas doendo em protesto pela noite passada no chão gelado. Minha cabeça estava repleta dos horrores que vira durante a vigília sangrenta, mas, devido a uma série infinita de pesadelos que se seguiram, não tinha mais certeza de quais imagens eram reais e quais haviam sido imaginadas. Os Ofegantes com seus casacos sujos, agulhas imundas e máscaras de gás costuradas nas faces pareciam algo possível apenas em um sonho difuso, mas a memória deles era tão viva que, eu sabia, realmente estavam lá fora.

Com uma agitação dolorosa no estômago, de repente me lembrei de Monty, preso e furado com aquela seringa imunda. Onde estaria agora? O que fariam com ele? Fiz essas perguntas a Donovan, mas ele simplesmente voltou a me encarar com aquele olhar de fúria, e mais que depressa fechei a boca.

Algumas sirenes mais tarde, todos descemos ao pátio. Nunca vira tantos olhos escuros e cansados e rostos exaustos, tantas contrações nervosas e faces manchadas de lágrimas. Naquela manhã, pelo menos dessa vez, todos aparentavam sua idade em Furnace. Os olhares duros e a arrogância haviam sido substituídos por expressões de medo e uma desordem movida por pura ansiedade, enquanto as crianças se aconchegavam em grupos em busca de conforto.

Donovan ainda não estava falando comigo, por isso examinei a multidão em busca de Zê. Ele estava de pé em um grupo que incluía seu companheiro de cela e alguns outros, mas demorei algum tempo para reconhecê-lo. O sorriso atrevido desaparecera, e seu rosto se contraíra, como se houvesse perdido metade do peso da noite para o dia. Ele viu que eu o observava e caminhou em minha direção, encontrando-se comigo na metade do pátio. Ambos abrimos a boca para falar, mas nenhum de nós parecia se lembrar de como conduzir uma conversa normal.

A escalação das tarefas se materializou na tela, colocando a mim e a Donovan de novo na cozinha, mas enviando Zê para a lavanderia. Esperei que o nome de Monty aparecesse, mas ele havia sido retirado dos registros como se o menino jamais tivesse existido.

O trabalho pesado foi um inferno naquela manhã. Donovan agia como se não conseguisse olhar para mim, colocando-se na cantina para servir a lavagem e deixando o processamento para mim e outra dupla de prisioneiros com os quais nunca havia falado. Tentei lhes fazer perguntas sobre os Ofegantes enquanto pressionávamos caixotes após caixotes de restos na misturadora industrial, mas eles respondiam com monossílabos sem significado algum.

Para piorar as coisas, Kevin Arnold também havia sido designado para a sala do cocho, e várias vezes durante toda a manhã fui atacado por pedaços voadores de carne rançosa, vegetais amolecidos e comentários mordazes. Lembrei-me da maneira como ele empurrara Monty na cela na noite anterior, enviando-o para seu destino terrível sem nenhuma ponta de remorso. Queria encher a boca dele de comida podre até que entrasse em choque, mas em vez disso lhe dei as costas e suportei seu abuso. O que mais poderia fazer?

Muitas horas mais tarde, depois de lavar no chuveiro a gororoba grudada no cabelo e vestir um uniforme limpo, me vi sozinho no pátio. Não percebi quanto havia passado a depender de Donovan. Sem ele a meu lado sentia-me perdido por completo, totalmente vulnerável. Eu o vi subir a escada para se dirigir à nossa cela sem sequer olhar para trás, mas não tentei segui-lo. Em vez disso, peguei uma mesa vazia no fundo do pátio e me amaldiçoei por não ter me encolhido na cama na noite passada e ignorado a vigília sangrenta como todos os demais.

Segurando a cabeça nas mãos, não ouvi Zê sentar-se do outro lado da mesa até que ele tossiu levemente.

— Você está parecendo merda liquidificada — disse ele quando levantei a cabeça.

— E você não é nenhuma pintura a óleo, companheiro — repliquei, imaginando se ainda tinha capacidade para sorrir.

— Onde está o Grande D? — prosseguiu ele. — Vocês dois são como gêmeos siameses; é estranho não ver vocês dois atados pelo quadril.

— Não estou nas boas graças dele hoje — respondi depois de pigarrear, constrangido. — Não depois da noite passada. Não consegui ficar na cama, tinha de ver o que estava acontecendo. Ele acha que eu atraí um deles para nossa cela.

— Sério? — perguntou Zê, as sobrancelhas praticamente saltando da testa. — Você viu um deles de perto?

Fiz que sim com a cabeça, tentando não recordar da experiência com excesso de detalhes.

— Ele vai ficar bem — continuou Zê, estalando os nós dos dedos. — Pode estar mal-humorado, mas tenho certeza de que vai se reaproximar.

— Espero que sim. Caso contrário, sou um homem morto. Ele é a única coisa que está entre mim e os Caveiras.

— Não se esqueça de mim — falou Zê com um sorriso. Flexionou os braços, mas o volume do tamanho de pequenas tangerinas nos bíceps não me encheu exatamente de confiança. — Com estes músculos, posso cuidar de todos eles com apenas uma das mãos.

Por um momento pareceu ser possível nos libertarmos da gravidade da situação, mas a impressão se desvaneceu com rapidez.

— Que diabos estavam fazendo a noite passada? — perguntou Zê, inclinando-se na mesa para que a voz baixa chegasse até mim. — O que são aquelas coisas com as máscaras de gás? — Dei de ombros e balancei a cabeça. — Quero dizer, parecem tropas de assalto nazistas com aquelas máscaras e os casacões. Eu os vi na tv. Meus amigos costumavam assistir a documentários de guerra o tempo todo. Mas por que estariam aqui? E por que precisam de ajuda para respirar? Afinal, este lugar não está cheio de Zyklon B, está?[4]

— Elas ficam pregadas na cara deles — contei. — As máscaras. Vi isso na noite passada. O metal está costurado na pele deles.

Zê parecia prestes a vomitar.

— Ah, pare com isso — foi tudo o que conseguiu dizer, mas percebi que havia acreditado em mim.

— Seja o que for que estejam fazendo, é ruim — comentei. — Donovan me disse que eles levam os prisioneiros para um destino pior que a morte.

— Talvez estejam nos usando como cobaias humanas — sugeriu Zê. Ri diante da ideia, mas ele falava sério. — Na Segunda Guerra Mundial, os nazistas e o exército japonês costumavam realizar todo tipo de experiência doentia em pessoas inocentes, civis, prisioneiros de guerra etc. Eles os abriam ainda vivos e os infectavam com todo tipo de doenças, armas biológicas e gás, explodiam-nos...

— Ah, vamos — interrompi, mas ele ergueu a mão.

— Não, é sério. Usavam os prisioneiros como objetos de teste. Pensavam nas coisas que podiam fazer com eles e então faziam. Diziam que tudo aquilo era ciência, mas eram apenas açougueiros. Também vi isso na tv, mas meu pai me fez ir para a cama na metade do programa, porque era muito violento.

— Mas não estamos em guerra, Zê. Quero dizer, este é um dos países mais avançados do mundo ocidental; atualmente não se pode sequer chamar alguém de pensionista sem ser politicamente incorreto. Não deixariam alguém abrir uma prisão onde um bando de seres estranhos fizesse experiências com crianças.

— E o que me diz de uma prisão em que cães mutantes devoram os prisioneiros? — perguntou ele. Não achei resposta. — Tudo mudou naquele verão, Alex. Todas aquelas gangues enlouquecidas e todas aquelas pessoas que morreram. O povo ficou apavorado com os garotos; por isso resolveram construir uma prisão como esta, por isso esses seres estranhos podem nos levar, nos fazer de cobaias, e ninguém vai dar a mínima. Você viu quem eles levaram, afinal?

— Monty — respondi. — Levaram Monty. Não vi os outros.

Zê praguejou, a respiração entrecortada, e olhou para o outro lado do pátio. Achei ter visto seus olhos se encher de lágrimas por um minuto, mas então ele passou a mão no rosto e voltou ao normal.

— Acha que alguém lá fora tem alguma ideia do que acontece aqui? — ele indagou.

— Não acho que ninguém lá fora se importe. Cometemos um crime e estamos cumprindo pena. Aos olhos deles, somos tão ruins quanto os garotos que saíam por aí matando todo mundo. O que foi que o terno-preto disse? No que se refere ao mundo lá fora, já estamos mortos.

Alguém no pátio gritou. Olhei e vi dois prisioneiros socando um ao outro, os rostos vermelhos e furiosos. Mas a briga acabou após alguns golpes, com um dos garotos se afastando com as mãos levantadas indicando rendição.

— Não vou esperar ser apanhado, Zê — falei. — Não posso apenas ficar deitado e esperar que venham até mim, deixá-los me furar com suas agulhas imundas e me carregar para algum açougue.

— Alex, que escolha você tem? Atirar-se do oitavo andar? Essa é a única saída na qual consigo pensar, e não é das melhores.

— Só não estou pronto para desistir, é tudo o que digo. Sempre há uma saída.

— Há um quilômetro e meio de rocha em cada direção, e aqueles cães vão devorá-lo se ousar mijar do jeito errado.

Dei um soco na mesa, frustrado.

— Você não me disse no primeiro dia que ia sair daqui, não importava o que tivesse que fazer? — perguntei, ignorando seu dar de ombros repleto de culpa.

— Isso foi quando eu ainda tinha alguma esperança — murmurou ele.

— Bem, não a perca ainda — eu disse, inclinando-me sobre a mesa e mais uma vez pensando nas montanhas, no ar fresco. — Estou lhe dizendo: há uma saída.

Todas as boas fugas de prisão necessitam de um plano. Eu as havia acompanhado tantas vezes nos filmes — observar a troca de turno dos guardas, subornar alguém para obter cópias do sistema de esgoto, fazer a namorada contrabandear uma lixa para você conseguir cortar as grades da janela. Um bom plano, executado com perfeição, era tudo o que seria necessário para nos tirar dali.

Mas eu não tinha nada. Em Furnace não havia troca de turno de guardas, os monstros nos ternos pretos pareciam dar patrulha quando e onde queriam. O sistema de esgotos conduzia mais para baixo no abismo, derramando sua imundície no centro da Terra. E, mesmo que tivesse uma namorada, o que não tinha e provavelmente jamais teria, não havia permissão para receber visitas nem cartas. Que inferno, não tínhamos sequer janelas. Nenhuma das coisas que eu vira nas telas funcionaria ali, mas isso não era, na verdade, uma surpresa. Afinal, a televisão não é a vida real.

Pelo lado positivo, minha breve carreira como criminoso havia programado minha mente para encontrar rotas de fuga onde pudesse. Desde o momento em que entrava em uma casa, já buscava as saídas de emergência no caso de ser descoberto. Que porta ofereceria a fuga mais rápida, que janela do segundo andar ficava a um salto de distância do ramo de uma árvore ou de uma calha, que arbusto no jardim seria o esconderijo mais seguro caso tudo desse errado.

Dentro da casa, minha mente trabalhava do mesmo modo. Fazia uma fotografia mental da casa em que estava, a distribuição do espaço, a localização dos móveis, quantas trancas havia na porta. Dessa maneira, mesmo que as luzes estivessem apagadas, saberia para onde fugir sem tropeçar ou trombar com alguma parede. Não há maior vergonha para um ladrão que bater a perna em uma mesa de canto ou se estatelar em um pufe de cuja existência se esqueceu.

Nas vezes em que quase fui pego, e houve algumas, só escapei porque meu cérebro tinha programado suas rotas e me guiou à segurança sem eu ter de pensar muito a respeito.

Era como estar ligado no piloto automático — a adrenalina surgia, e eu voava pela via mais segura possível até chegar ao lado de fora. Quase conseguia ver o fio de luz prateada me conduzindo para a segurança, um rastro que tinha de seguir, ou minha vida estaria acabada; um rastro que conduziria dos limites opressores de uma casa inóspita ao alívio total do ar fresco.

Quando cheguei a Furnace, o artista da fuga em minha mente passou a trabalhar imediatamente, registrando uma foto de cada aposento da prisão, apalpando e sondando tudo o que sabia sobre o lugar em busca do caminho de menor resistência e da melhor alternativa possível de fuga. Todas as vezes, deparei com o vazio — exceto uma. Só uma vez imaginei aquele fio prateado, uma ocasião em que senti ar fresco e liberdade além daquelas paredes impenetráveis.

Sala Dois.

Zê não conseguia parar de falar assim que mencionei uma saída. Praticamente saltou sobre a mesa, agarrando-me pelo colarinho, os olhos arregalados de desespero. Coloquei uma das mãos sobre sua boca que gritava, antes que toda a prisão o ouvisse, e fomos para a parte mais isolada do pátio que conseguimos encontrar. Lá eu lhe contei o que havia pensado.

— Ouviu mais alguma coisa sobre o desmoronamento? — perguntei, falando o mais baixo que pude. Não havia ninguém por perto, mas em um lugar como aquele nunca se sabia se as paredes tinham ouvidos.

— Só o que aconteceu alguns meses atrás — ele sussurrou de volta. — Ouvi um garoto falar sobre isso na lavanderia. O teto desmoronou, matou trinta garotos e enviou mais alguns para a porta da abóbada, para a enfermaria. No entanto, eles não voltaram.

Assenti com a cabeça. Donovan havia me contado o mesmo. Aparentemente, fora o maior desastre de Furnace, mas os ternos-pretos agiam como se nunca tivesse acontecido nada. A sala fora selada, e qualquer um que fosse surpreendido falando a respeito passaria um dia no buraco.

— Não percebeu o cheiro quando estávamos de pé fora da sala no outro dia? — prossegui. Ele negou com a cabeça, confuso. — Não tanto o cheiro, mas a sensação. Alguma coisa diferente, como um sopro de ar fresco.

— Tinha um cheiro menos parecido com o de adolescentes suados, acho eu — foi sua resposta. — Por quê, é essa a sua saída?

Eu não disse nada, e ele arqueou uma sobrancelha.

— Vamos, Alex, pense. Para começar, sabemos a profundidade em que estamos. Nem mesmo o maior desmoronamento da história teria aberto um caminho para a superfície. Seria preciso um terremoto que medisse um milhão na escala Richter. E é claro que isso não vai acontecer.

Abri a boca para argumentar, mas não adiantou. Zê estava agitado:

— Em segundo lugar, você acha que, se por algum capricho da natureza e bênção de Deus uma fenda gigantesca na rocha se abriu para nos conduzir à salvação, os guardas daqui nos deixariam abrir caminho a picaretas naquela sala? Veja, não há sequer uma porta adequada na Sala Dois, apenas algumas tábuas de madeira. Esse é o tipo de destino tentador se você deseja fugir de uma prisão, não acha?

Mordi o lábio e franzi as sobrancelhas. Zê havia me pegado desprevenido. Ele tinha razão, é claro. O que esperava, afinal? Uma saída milagrosa que ninguém havia descoberto ainda? Mas minha mente voltou ao fio prateado.

— Não sei o que há lá, Zê — respondi, passando os olhos pelo vasto pátio até a abertura que conduzia às salas de escavação, guardadas como sempre por um terno-preto armado. — Só sei que precisamos descobrir.


CALOUROS

 


Minha cabeça zunia diante da possibilidade de voltarmos a cruzar o pátio, mas Zê fazia o máximo para destruir minhas fantasias de fuga.

— E agora? — perguntou ele, sorrindo. — A mão de Deus está furando o teto e nos oferecendo uma escalada à superfície?

— Zê — reclamei, tentando ignorá-lo.

— Não, é uma escada rolante mágica que os guardas usam para subir e fazer compras. Provavelmente conduz direto ao supermercado local. Poderíamos dar um pulo lá e pegar alguma coisa pra comer no caminho para casa.

— Não tem nada de engraçado.

— Uma nave espacial intergaláctica — gritou ele. — Entre aqui, e livre você será!

— Dá um tempo!

— Já sei. Por que não encontramos uma daquelas máquinas de voar criadas por Leonardo da Vinci e subimos pelos canos de ventilação?

— O quê? — perguntei, virando-me e levantando os braços. — Não tenho nem ideia do que está falando.

— Só estou tentando lhe mostrar como é ridícula a ideia de fuga — disse ele, baixinho dessa vez. — Quero dizer, você tem mais chances se correr até o elevador quando as portas estiverem quase se fechando e torcer para que ninguém o veja.

Sorri. Essa ideia também me havia ocorrido. Estava prestes a replicar quando, como se ecoasse no momento exato, um barulho leve surgiu acima de nós como um trovão distante. Gritos, risos e conversas no pátio cessaram instantaneamente quando o som aumentou de volume, fazendo o chão tremer e deixando cair nuvens de poeira do teto. O elevador descia.

— Bem, agora é nossa chance — disse Zê, caminhando em direção ao círculo amarelo no centro do pátio. Eu o segui, mantendo os olhos nas portas do elevador enquanto ele baixava ao nosso nível. Nós o víramos descer algumas vezes, duas vezes com os ternos-pretos movendo enormes carrinhos de suprimentos e uma vez com cinco dobermanns comuns que foram arrastados aos gritos pela porta da abóbada. Do contrário, o elevador permanecia trancado.

Embora parecesse nunca chegar a seu destino, em certo momento houve um som de britadeira, e o ruído parou. Meio minuto mais tarde, enormes portas se abriram, revelando três garotos perdidos em seu imenso interior. Hesitaram ao ver as centenas de olhos pouco amigáveis encarando-os nas entranhas de Furnace, e um deles começou a chorar. Não conseguia ouvi-lo dessa distância, mas a maneira como os ombros sacudiam era inconfundível.

— Mais calouros! — gritou uma voz na turba reunida no círculo amarelo, seguida por uma série de berros e assobios. Percebi os Caveiras caminhando até a porta do elevador, um deles puxando um asqueroso objeto perfurante de dentro do macacão.

— Parece que estão recebendo as mesmas boas-vindas calorosas que tivemos — comentou Zê, enfiando as mãos nos bolsos e arrastando os pés desconfortavelmente na pedra. — Pobres infelizes.

Um dos recém-chegados saiu com calma do elevador. Era alto, forte e bem-proporcionado, e o modo como parou diante de Kevin e de seu grupo deixou claro que não fugia de uma briga. Os Caveiras o encararam de cima a baixo por alguns segundos, depois o deixaram em paz, espalhando-se na frente da porta do elevador para capturar os alvos mais fáceis que estavam lá dentro.

— Vamos, covardes! — gritou Kevin o mais alto que pôde. — Saiam daí e fiquem de joelhos. Sou o chefe agora.

Dois dos Caveiras saltaram para dentro do elevador e agarraram os prisioneiros, puxando-os para fora e atirando-os no chão de pedra. Um deles rolou e tentou se levantar antes de receber um pontapé no peito que o fez cair estatelado. O outro, que chorava, apenas ficou ali e gemeu. Os Caveiras riram e imitaram seu gemido. Senti todo o meu corpo ardendo no desejo de ajudar, os músculos tão tensos que achei que fossem se romper. Mas o que poderia fazer? Atacar feito um idiota novamente e correr o risco de outra pessoa ser feita em pedaços?

Felizmente a cena horrível foi interrompida pela sirene, que soou por alguns bons segundos, enquanto todos se amontoavam no círculo amarelo do pátio. Kevin me viu olhando-o com raiva e esfregou os olhos como se fingisse chorar. Depois correu uma das mãos pela garganta e apontou para mim antes de voltar a atenção para o elevador. Os dois garotos que haviam sido arrastados se levantavam, o menino que chorava sendo ajudado pelo outro. O rosto deles era uma mistura de medo e agonia, e dei de ombros, sabendo que era assim que de-víamos ter parecido ao chegarmos ali.

Com um assobio e um estrondo, a porta da abóbada se abriu para revelar o mesmo grupo horrendo que havia nos recebido uma semana atrás. Avançaram no pátio com rosnados, respiração ofegante e gritos abafados, e, embora estivessem a certa distância, cada detento da prisão recuou.

Mais uma vez percebi que não conseguia fixar o olhar no diretor, meus olhos sempre se desviando dos dele como dois ímãs opostos próximos um do outro. Frustrado, voltei a atenção aos máscaras de gás, que tremeram e se agitaram como bonecos de pano quando o diretor introduziu os três novos garotos em Furnace. Era impossível perceber se os Ofegantes sentiam alguma emoção, porque a cara estava sempre coberta de metal e cicatrizes, mas achei ter percebido um brilho de excitação nos olhos ávidos quando examinaram as novas presas diante deles.

— Talvez um dos calouros seja especialista em escavação de túneis — sussurrou Zê em meu ouvido enquanto o diretor fazia seu discurso sobre as regras. — Aquele alto parece já ter escapado de algumas prisões.

Ri intimamente, para não atrair a atenção daqueles seres estranhos. O diretor agora lia uma série de nomes e números. O garoto alto era Gary Owens, o chorão era Ashley Garrett, e tive de sufocar um soluço quando foi lido o nome do terceiro garoto — Toby Merchant. Não o conhecia, mas o nome Toby era demais para suportar. Fui assaltado pela lembrança do meu melhor amigo deitado no tapete, a cabeça explodindo no mesmo tom de rosas vermelhas. Poderia ser ele em meu lugar ali, e eu me decompondo em um túmulo silencioso. Na verdade, acho que ambos estávamos mortos e enterrados.

Um por um, os garotos saíram com os companheiros de cela, e, quando o diretor e seu grupo apavorante desapareceram atrás da porta maciça, os gritos de “calouros” e “carne fresca” se elevaram de novo da multidão, acompanhando em alarido os detentos aterrorizados ao novo lar. Era terrível isso, ver mais rostos novos chegando a Furnace, mais combustível para os seres medonhos devorarem na calada da noite; mais vítimas inocentes, sem dúvida, forçadas a viver os mais cruéis pesadelos.

A sirene tocou, dispersando a turba, e minha atenção retornou aos planos de fuga. Subi a escada rumo a minha cela, Zê atrás de mim e ainda me bombardeando com ideias loucas — inclusive enfiar meu lençol no uniforme e fingir ser um dos musculosos ternos-pretos. Eu o ignorei quando abri caminho para a plataforma, entrando para ver Donovan sentado no beliche e cutucando preguiçosamente o nariz. Olhou-me com desagrado e, depois, com um peteleco, jogou algo em minha direção.

— Não encontrou coisa melhor para fazer, Sawyer — falou com um olhar de desprezo —, como tentar conseguir que todos fôssemos mortos? Por que não começa outra briga? Dessa vez pode ter sorte e atrair os cães e os Ofegantes aqui para cima.

Andei até a cama e me encostei na parede, passando uma das mãos no cabelo e suspirando alto.

— Não podia ficar aqui deitado sem saber o que estava acontecendo — falei por fim. Era uma desculpa idiota para algo que poderia ter acabado com nós dois, mas pelo menos era a verdade. — Além disso, você viu aquela coisa. Ela não estava interessada em nós. Sabia exatamente aonde tinha de ir.

— Não estaria tão convencido agora se tivessem marcado nossa porta — replicou Donovan. — Estaria amarrado em algum lugar lá embaixo tendo a pele arrancada e os olhos espetados, ou coisa pior.

Senti meu estômago revirar e fiz o máximo para ignorar aqueles comentários. Donovan passou uma das mãos sob o nariz e fungou alto, encarando-me como se esperasse alguma coisa.

— Está bem, sinto muito — falei baixinho. — Realmente sinto. Vamos, nunca havia estado aqui, não sabia como tudo isso era sério. — Donovan acenou suavemente com a cabeça, mas seus olhos não desviavam dos meus. — Eu só... — Fiz uma pausa, um tanto incerto sobre o que dizia. — Só quero fazer alguma coisa, algo para nos ajudar a sair daqui. Não quero ficar me encolhendo no escuro enquanto essas coisas vêm me buscar, certo?

— O que mais podemos fazer? — foi a réplica desprovida de emoção.

— Ele acha que podemos tentar uma fuga — completou Zê, sorrindo para Donovan como se falasse sobre uma criança tola. — Acha que há uma saída.

— Oh, sim, há muitas saídas — respondeu Donovan, explorando sob o colchão com os dedos e tirando dali um pequeno objeto perfurante de madeira. Fiquei surpreso ao vê-lo, mas imagino que todos em Furnace precisassem de algo para se proteger. Começou a raspar a parede da rocha, a lâmina improvisada não deixando sequer uma marca. — Escolha um local e comece a cavar. Se ninguém o pegar, imagino que consiga sair em, digamos, uns mil anos.

Ele devolveu o objeto a seu lugar e depois saltou agilmente para o chão, chocando-se comigo e ficando de pé diante das grades da cela, olhando para o pátio. Sentei-me no beliche de baixo e tentei ignorar minha frustração. No relativo silêncio que dominava o ambiente, ouvi gritos nas proximidades, mas os ignorei.

— Diga-me o que sabe sobre o desmoronamento — perguntei depois de algum tempo. — Na Sala Dois.

Donovan bufou.

— Tive essa mesma reação — disse Zê, abafando o riso. Quis saltar e bater nele, mas consegui controlar meu temperamento e me contentei com um olhar maldoso. Ele balbuciou a palavra “desculpe” e me deixou prosseguir:

— Alguma coisa aconteceu ali — continuei. — Aqueles garotos atingiram uma falha geológica ou algo assim. Pude sentir o cheiro, Donovan. Cheiro de ar fresco.

— Foi sua imaginação, seu burro — replicou ele, descansando a cabeça contra as grades. — Talvez alguém tenha soltado um peido quando estava por perto, e você sentiu o vento.

— Você estava lá também no outro dia. Não sentiu algo diferente?

— Sim. Sinto toda vez que entro em uma sala aqui. Espero e rezo para que possa haver um buraco na rocha e para que possamos todos fugir por ele. Às vezes espero tanto isso que consigo ver a saída, consigo sentir o cheiro da chuva, ouvir os passarinhos. Mas é apenas uma ilusão. Dizem que a esperança pode libertá-lo, e suponho que é isso o que acontece. Um minúsculo vislumbre de liberdade para nos manter sãos, se é que me entende.

— Não foi uma ilusão — cortei. — Estou lhe dizendo. Foi real. Não inventei isso.

Pensei em retrospecto, recordando a sensação de estar lá fora, de ver as montanhas, as paisagens sem fim, sentir o vento. Talvez tivesse sido apenas uma ilusão, a minha maneira de enfrentar o fato de nunca mais voltar à superfície da terra. Achei que fazia sentido. Quero dizer, sabia que Furnace podia provocar coisas engraçadas na mente das pessoas. Mas algo bem lá no fundo de mim não conseguia renunciar a essa ideia; alguma coisa gritava para eu não desistir. Conhecia muito bem essa voz interior, os instintos que seguia quando assaltava casas.

— Ótimo, talvez tenha sido apenas minha imaginação — falei. — Mas e se não for? E se houver uma saída? Não vale a pena dar uma olhada?

— Fique à vontade — murmurou Donovan. — Eu não o estou impedindo.

— Mas precisamos da sua ajuda, D — acrescentei. — Não podemos fazer isso sozinhos.

— Quer dizer que você não pode fazer isso sozinho — disse Zê, olhando-me com uma expressão preocupada. — Pare com esse negócio de nós, por favor.

Olhei para Donovan esperando uma resposta, mas ele havia endireitado o corpo e olhava para o pátio com uma expressão de descrença.

— Não acredito — falou com uma risada. — Não acredito que ele está enfrentando os Caveiras.

Pulei da cama e corri até a plataforma. Seis andares abaixo, avistei um pequeno círculo de pessoas, cada uma delas usando bandanas pintadas e com expressões alteradas. No meio do círculo, olhando ao redor como um tigre enjaulado, estava o alto e calmo calouro, Gary Owens. Donovan e Zê correram para o meu lado e observaram quando Gary ergueu as mãos, convidando os Caveiras a dar um soco. Alguns puxaram objetos pontiagudos de dentro do macacão, mas ninguém se atrevia a fazer o primeiro movimento.

— Ou ele é o garoto mais corajoso que já vi ou o maior idiota do planeta — disse Donovan num tom quase respeitoso. Não tenho bem certeza do porquê, mas de repente senti uma onda de ciúme porque meu companheiro de cela estava tão impressionado com o novato.

— Idiota, eu diria — murmurei. — Vai morrer agora mesmo.

Vi Kevin caminhando em direção a Gary. O garoto novo era quase um palmo mais alto que o líder dos Caveiras, mas Kevin não parecia se importar. Seu rosto estava vermelho em uma expressão de cólera — era todo olhos esbugalhados e boca espumando. Agarrou Gary pelo colarinho e começou a gritar com ele. A acústica na prisão não era o que poderíamos chamar de ótima, mas lá de cima percebemos a ideia central, como todos os demais em Furnace, que pararam o que faziam para ver o que estava acontecendo.

— Pensa que pode entrar aqui e assumir o comando? — gritou Kevin, junto com alguns impropérios. Ele sacudia Gary, mas o garoto não se dobrava. Ao contrário, estudava Kevin com um olhar de fria indiferença, que me lembrou o olhar sem emoção de uma aranha antes de atacar a presa. — Vou matar você, calouro. Vou furá-lo.

Ele empurrou Gary para trás, e vários Caveiras agarraram seu macacão, puxando-o para o lugar certo. Um objeto prateado longo e pontudo apareceu na mão de Kevin, e ele o agitou ameaçadoramente diante do rosto de Gary.

— Até os garotos mais raçudos aprendem as regras bem rápido aqui — comentou Donovan.

Não tinha tanta certeza. Com um giro de corpo, Gary enviou um dos Caveiras que o seguravam em direção ao chão de pedra, depois arremessou o punho livre no rosto do outro captor. As pernas do garoto se entortaram com o impacto, e ele caiu no chão, o ponto de aterrissagem já marcado pelo sangue que esguichava de seu nariz.

Kevin berrou como um animal selvagem e recuou, fazendo um gesto para os comparsas atacarem. Mas ninguém se moveu. Eles não eram mafiosos, eram crianças. Gary arremeteu para a frente e agarrou o braço de Kevin, inclinando-o de tal maneira que a arma caiu de sua mão. O Caveira berrava de dor, a fúria transformada em medo.

— Matem-no! — gritou Kevin para ouvidos surdos. — Arranquem seu coração.

— Isso é ótimo — disse Donovan. — Kevin pede por isso desde que chegou. Durante algum tempo até que ele conseguiu se manter. Espero que o garoto novo o perturbe um pouquinho.

Gary continuou torcendo o braço de Kevin, usando as duas mãos para virar o pulso em um ângulo improvável, até que, em terrível uníssono, um estalido e um grito ecoaram no pátio. A prisão mergulhou no silêncio, todos observando Kevin cair de joelhos e agarrar o braço quebrado, lágrimas correndo-lhe pelo rosto. Gary colocou um pé no ombro de Kevin e o atirou esparramado ao chão, e imediatamente os prisioneiros irromperam em uma enorme aclamação.

— Isso é ótimo! — repetiu Donovan com mais entusiasmo. — O todo-poderoso desmoronou, hein?

— Acha que isso significa que vamos nos livrar dos Caveiras? — perguntou Zê.

— Acho que sim — respondeu Donovan. — Talvez ele acabe com os Cinquenta e Nove também.

Gary se inclinou, arrancou a bandana da cabeça de Kevin e pegou a arma do chão. Ergueu ambas no ar para que todos víssemos, como troféus. Alguns meninos se aproximaram do garoto, cercando-o como se tivesse feito o gol da vitória em uma partida de futebol. Um prisioneiro chegou a colocar o braço em torno dele enquanto saltava de alegria.

— Vamos nos juntar às celebrações? — perguntou Zê. Mas eu fiquei onde estava. Algo não parecia certo. Gary não sorria, não parecia alguém que viera nos salvar. Ele olhava para a multidão em torno dele com o mesmo olhar inexpressivo que havia lançado aos Caveiras. Então, em meio a um brilho prateado e um arco de sangue, o garoto que o segurava cambaleou pelo pátio, olhando com descrença para a ferida no braço. Os detentos olharam chocados para Gary, como se houvesse algum erro, mas o garoto novo golpeou de novo, atingindo outra vítima no peito.

Por um momento o pátio virou um caos, e os prisioneiros subiam um atrás do outro para ficar em segurança. No centro do turbilhão Gary colocou a arma manchada dentro do macacão e a bandana do Caveira sobre a cabeça. Senti meu coração apertar. Ele não era um salvador, era um psicopata.

A sirene soou pelo pátio, um adequado canto fúnebre para os garotos que se contorciam em seus caixões avermelhados. Donovan se afastou das grades de proteção.

— É como falei, Alex — disse ele ao observar os garotos feridos dobrados sobre si mesmos, uma massa de soluços e muco. — É a única coisa que podemos fazer: ficar encolhidos esperando a morte.


SALA DOIS

 


O pensamento de enfrentar outra noite trancados na cela era quase insuportável, mas uma pequena parte de mim estava aliviada por haver um conjunto de grossas barras de metal entre nós e Gary Owens.

Assim que a sirene tocou, os ternos-pretos vieram correndo, um deles nocauteando Gary com a coronha da espingarda, e os outros arrastando este e as vítimas através da porta da abóbada. Após algumas horas de inquietação, vi o portal maciço se abrir de novo e dois guardas escoltarem Gary, ferido e sangrando, até sua cela — que felizmente ficava no segundo nível, bem longe da minha.

Algum tempo mais tarde Kevin foi levado de volta ao pátio, o braço envolto em um gesso áspero que tinha o mesmo tom cinza-pálido de seu rosto. Assim que apareceu, os sofridos detentos de Furnace começaram a assobiar e gritar através das portas das celas, proferindo insultos com uma ferocidade demoníaca desencadeada por anos de abuso. Kevin não fez nenhum esforço para recuperar o ar de ameaça — deixou-se levar pela escada, jamais desviando os olhos arregalados do chão. Pensando agora, quase sinto pena dele. Mal sabia então que o esperava coisa muito pior do que algumas zombarias.

Quando tudo se aquietou no pátio, tentei mais uma vez fazer Donovan se interessar pelo assunto da fuga. Foi como desejar convencer um hipopótamo a se interessar por balé.

— Não há por onde escapar — disse ele pela milésima vez.

— Tem de haver. Não existe uma prisão sem saída.

— Furnace é uma prisão sem saída, seu babaca.

— Posso encontrar uma, sei disso.

— Não há por onde escapar.

Estávamos andando em círculos. Pouco antes de as luzes se apagarem, ele sentou-se bem reto no beliche, como se pretendesse me estrangular, a expressão tão inflamada que chegava a causar medo.

— O que foi? — perguntei, recuando até a grade para o caso de ele perder a paciência.

— Por que está tão desesperado para morrer? — foi sua resposta. Tentei argumentar, mas ele me interrompeu. — Houve apenas uma tentativa de fuga em Furnace, alguns anos atrás. Foi um garotinho como você, só que mais inteligente, mais esperto. Passou meses observando o funcionamento da prisão, especialmente o elevador. Ninguém sabe como ele conseguiu, mas, de algum modo, durante um encarceramento, ele entrou no sistema de ventilação. Ficou ali durante cinco dias, enquanto guardas e cães o caçavam, e depois, quando traziam mais ternos-pretos lá de cima, conseguiu subir no teto do elevador e pegar uma carona até a superfície.

— Deu certo? — perguntei, o coração disparado diante da visão de alguém ter conseguido sair dali. Donovan sorriu maldosamente e balançou a cabeça.

— Não. Eles o encontraram. Pegaram-no saindo do sistema de ventilação na superfície. Estava tão faminto e sedento que acabou delirante, cantando para si mesmo. Adivinhe o que aconteceu com ele.

— O buraco — concluí, suspirando.

— Ele não teve essa sorte. O diretor, maldita seja sua alma, trouxe aquele garoto para o pátio e o amarrou. Depois soltou três de seus cães. — Donovan gaguejou, a mente transportada para algum lugar terrível. — Trataram-no como um brinquedo, atirando-o de um lado para o outro como um ursinho de pelúcia até ficar mole e quebrado. Depois o comeram.

— Está brincando — falei, certo de que ele inventava aquela história para me apavorar.

— Pergunte a qualquer um que esteja aqui há mais de dois anos. Nunca se fala a respeito, mas todos se lembram. Seu nome era Scott, Scott White. Se quiser terminar como ele, garoto, continue pensando em escapar. Mas não diga que não o avisei.

— O sistema de ventilação — prossegui, tentando esquecer tudo o que havia acabado de ouvir. — Continua lá, certo?

Donovan se deixou cair no beliche com um grito de frustração.

— O diretor o fechou na semana seguinte à morte de White e substituiu os túneis por canos tão estreitos que nem sua mão caberia lá dentro. Por que acha que o ar aqui é tão pesado? Estamos todos sufocando por causa do último idiota que pensou em fugir.

Ele fez menção de dizer mais alguma coisa, mas sua voz foi abafada pela sirene. Com um estalo, as luzes se apagaram, e tateei o caminho pela minúscula cela até a cama. Ficando só de cueca, me enfiei sob o lençol áspero e tentei ignorar as imagens brutais que desfilavam diante de meus olhos abertos, embora na escuridão. Um garoto como eu, sendo mastigado e desmembrado por bestas com hálito de sangue enquanto Furnace inteira assistia. Foi quase o suficiente para me fazer esquecer os planos de fuga, para me resignar a passar a vida atrás das grades.

Quase. Mas com certeza não fazer nada era o pior tipo de morte imaginável — dias sem fim apodrecendo nas entranhas da terra, morrendo aos pouquinhos. Quando o sono apagou da minha mente o fim violento de Scott White, resolvi descobrir o que havia na Sala Dois, mesmo que aquilo custasse minha vida.

 


Como foi constatado mais tarde, não tive que esperar muito. A escala de trabalho da manhã seguinte me colocou com Donovan de volta à tarefa de escavação, proporcionando a oportunidade perfeita para examinar a caverna abandonada. Depois de uma saudável tigela de gororoba, atravessamos o pátio em direção à fenda na parede, Donovan me lançando olhares preocupados praticamente a cada passo que eu dava.

— Não estou gostando desse seu jeito — falou ele quando alcançamos a entrada das salas de escavação. Como sempre, havia ali um terno--preto a postos, a espingarda travada, carregada e apontada direto para nossa cabeça enquanto passávamos. Donovan esperou estarmos longe do alcance dos ouvidos dele para continuar: — Não faça nada estúpido.

— Como se eu pudesse me conter — respondi, encarando-o com um ar de insanidade no olhar selvagem. Ele olhou para mim, abismado, depois balançou a cabeça e começou a selecionar seu equipamento. Fiz o mesmo, tirando uma picareta da prateleira e enfiando um capacete na cabeça. Acendi a lâmpada, baixei o visor e dei uma olhada para o corredor de entrada da Sala Dois. Estava fechada com tábuas grossas, mas eram apenas madeira. Agarrei a picareta, imaginando quanto tempo levaria para me enfiar lá dentro.

— Níveis um a três, Sala Um — berrou o terno-preto apontando a espingarda para o buraco negro do outro lado da sala. — O restante de vocês na Sala Três, agora.

Arrastamo-nos para a frente com a mesma falta de entusiasmo de sempre, e fui ficando para trás, atrás da multidão. O terno-preto nos observava entrar, os olhos prateados praticamente sem piscar, mas sabia por experiência que ele não ficaria ali a manhã toda. Mais cedo ou mais tarde começaria a patrulhar as salas de trabalho, e era nesse momento que eu ia agir.

Quando cruzamos o portal rachado para a Sala Três, parei o mais perto possível da porta. Desse ângulo podia ver a sala de equipamento, onde a longa sombra do guarda se assentava pesada e imóvel na rocha. Depois de se recusar mais uma vez a me ajudar, nem mesmo proporcionando uma distração, Donovan caminhou com arrogância à extremidade mais distante da sala e começou a bater na rocha. Acrescentei o som da minha picareta à percussão familiar, mas não havia força em meus movimentos. Economizava energia para quando fosse mais necessária.

A sombra serpenteante não se moveu durante a maior parte de uma hora inteira, ocasião em que minha testa e meu macacão já pingavam, apesar da ausência de esforço. A onda de adrenalina que tomou meu corpo quando vi o guarda se mover quase fez minhas pernas bambear, mas consegui me recompor. Verifiquei a sala para me certificar de que ninguém olhava, depois me dirigi à porta.

Pude escutar os passos do terno-preto ficando cada vez mais fracos à medida que adentrava o corredor da primeira sala, mas, mesmo quando o som se desvaneceu, demorei uns bons minutos para criar coragem e espiar o espaço ao redor. Com um suspiro trêmulo, vi que a sala de equipamento estava vazia e corri pelo chão de pedra em direção às tábuas que fechavam a Sala Dois.

Havia oito longas tábuas no total, cada uma fixada à parede como uma escada. Não tinham feito um bom trabalho se a intenção era ocultar o que estava adiante. Através do espaço entre as tábuas consegui ver um túnel que se estendia na escuridão, e meu coração disparou uma vez mais ao sentir o vento soprar pelas fendas, o ar fresco me deixando eufórico após os longos dias passados naqueles aposentos fedorentos de Furnace.

Respirei profundamente, como se a sensação pudesse me erguer do chão. Então me lembrei do que tinha vindo fazer. Verifiquei a entrada da primeira sala, mas nem sinal do terno-preto retornando. Enfiei a ponta da picareta atrás da tábua mais próxima do chão e depois inclinei o cabo, usando-o como alavanca. Os parafusos que fixavam a tábua na pedra não se moveram.

Praguejando, tentei a tábua seguinte, mas foi igualmente inútil. Olhando mais uma vez na direção do caminho do guarda, enrijeci o corpo e bati a picareta na pedra. A ponta afiada atingiu o conjunto inferior de parafusos, produzindo uma chuva de centelhas pela sala. Em circunstâncias normais, o ruído teria sido ensurdecedor, mas se perdeu com facilidade em meio a centenas de picaretas batendo contra a pedra.

Ergui uma segunda vez a picareta e baixei-a com toda a minha força, fazendo um buraco na pedra onde o parafuso estava preso. Enfiando a ferramenta de volta na fenda, entre a tábua e o chão, empurrei-a de novo para baixo. Dessa vez, o parafuso aguentou com um pouco menos de convicção, depois desistiu e caiu no chão, deixando uma das extremidades da tábua solta contra a parede. Puxei com força, criando um espaço que me pareceu suficientemente grande para que eu passasse.

Colocando a picareta na prateleira de ferramentas mais próxima e atirando o capacete no chão, fiquei de gatinhas e coloquei o rosto no buraco. Um golpe de ar frio me atingiu, dando-me força; passei o ombro esquerdo pela fenda, ignorando a ponta da pedra afiada que cortou minha pele.

Foi quando empurrava o outro ombro que ouvi o som de passos, um cada vez mais alto que o anterior. Congelei, olhando a entrada da Sala Um e já sabendo que o terno-preto voltava. Tinha segundos, no máximo. Entrar ou sair. Devia ter ouvido meus instintos, puxado meu corpo para fora do buraco e voltado correndo ao trabalho.

Mas não ouvi.

Forcei meu corpo para a frente, cerrando os dentes por causa da dor. O som de passos ficava cada vez mais alto, atritando contra pedras soltas no chão. Minha manga ficou presa na tábua, retendo-me no lugar, e tentei soltá-la com desespero.

Tac. Tac. Tac. Não havia tempo.

Com um safanão, minha manga rasgou, e caí para a frente. Puxei os pés com a velocidade de um coelho que desaparece toca adentro, a tábua batendo de volta contra a parede quando a sombra negra passou pela sala.

Os passos pararam, e, apesar do ruído sem fim das salas ao lado, senti como se mergulhasse em um poço de silêncio. O mais suavemente que pude, girei as costas e me levantei, olhando através das fendas da porta improvisada. Avistei o terno-preto de pé no centro da sala de equipamento. Sua cabeça estava inclinada para a frente, como se tivesse ouvido algo, mas não olhava na minha direção.

Permanecemos assim pelo que pareceu uma eternidade, imagens refletidas da imobilidade um do outro. Por fim, o guarda endireitou o corpo e caminhou para a entrada da Sala Três, desaparecendo do meu campo de visão. Respirei o mais devagar e silenciosamente que pude, e só depois me virei para ver se aquele era realmente meu caminho para a salvação.

Então percebi meu erro. O túnel que conduzia à Sala Dois era mais escuro que Furnace à noite. Não havia, absolutamente, como enxergar o que estava acontecendo.

Fiquei parado como um idiota durante alguns minutos, imaginando o que me esperava — luzes ao longo das paredes e um tapete vermelho? Praguejei em silêncio, desejando ainda estar com o capacete com a lâmpada, e segui em frente. As luzes da sala de equipamento invadiam as fendas nas tábuas de madeira, formando faixas estreitas no chão irregular. Mas a luz era impotente contra o coração negro de Furnace, e, após dar alguns passos, fui envolvido pela noite fria e fúnebre.

Busquei conforto no fato de não ter ouvido o grito de alarme do terno-preto na câmara perto da porta, nem o ruído da sirene. Com passos minúsculos, fui em frente, correndo a mão ao longo da parede para me guiar. De vez em quando tropeçava, mas conseguia ficar de pé.

Em certo momento, a parede fez um arco para a esquerda, e, pela leve mudança no eco, soube que havia entrado na caverna. Ainda não havia luz, mas o ar ali era sem dúvida mais fresco, mais frio. Tinha certeza de que não era imaginação minha. Havia algo ali, uma fenda na armadura de Furnace. Tudo que tinha que fazer era voltar com luz adequada, e saberia com certeza que aquela fenda era minha salvação.

Foi quando ouvi. Começou tão baixinho que mal o percebi, mas passou a aumentar de volume — um ruído baixo, como o de um telefone celular vibrando no bolso do casaco de alguém. Senti a pele arrepiar. Não estava sozinho. Havia alguém comigo.

O som mudou de frequência, desapareceu e depois voltou. Não conseguia descobrir o que era, mas aquilo me congelou até os ossos. Pensei nos garotos sedentos que haviam morrido ali quando a caverna tinha desmoronado — trinta espíritos zangados andando de um lado para outro na caverna deserta, o tempo todo buscando alguém para saciar a fome. Talvez o ruído fosse de gritos coletivos, tão altos e furiosos que rompiam seu plano fantasmagórico e adentravam o nosso.

Recuei um passo, e o ruído se modificou novamente, ficando mais alto. Brincava com minha audição, confundindo e torturando minha imaginação. Não conseguia afirmar se vinha de longe ou de perto. Se estivesse distante, podia ter sido um estrondo. Mas também um sussurro de algo bem próximo de mim. Não, não um sussurro — um rosnado.

De repente, entrei em pânico. O ruído ficou mais alto, um rangido gutural que só podia vir de uma criatura. Era um cão, uma das monstruosidades do diretor. Obviamente ele colocara um ali para devorar qualquer idiota que tentasse fugir. Cego e aterrorizado, virei-me e corri. Mas perdi o rumo de onde estava e, com um tranco, bati na parede de pedra. Algo quente saiu da minha boca, me sufocando, e cuspi sangue, agarrando-me na pedra áspera para me apoiar.

O rosnado se aproximava, e vi a escuridão começar a tomar corpo, transformando-se em uma criatura aterrorizante que saltava em minha direção. Senti-me tão mal que achei que o estômago fosse sair pela boca, mas ainda consegui levantar a mão para repelir o monstro. Assim que fiz isso, contudo, a ilusão desapareceu na noite.

Pisquei forte, a garganta amarga com sangue e bílis. A parede tinha que me levar de volta à sala de equipamento, por isso fiz o máximo para ignorar o rosnado persistente e seguir o caminho ao longo dela, esperando sentir dentes afiados fincados no ombro a qualquer minuto. Mas nada se aproximou de mim. Cada vez que olhava para trás pensando ter visto uma besta na escuridão, ela desaparecia com um piscar de olhos, uma alucinação produzida por medo e cansaço.

Contornei o canto do corredor e me vi olhando para a porta fechada com tábuas, a luz passando através das fendas como figuras douradas tentando me abraçar. Lancei um último olhar para o interior da caverna, depois passei de gatinhas através da tábua de baixo, voltando à sala de equipamento.

Percebi, tarde demais, que deveria primeiro ter checado a sala. Ouvi passos contra a pedra e me virei a tempo de ver uma forma negra maciça se precipitar em minha direção. O terno-preto havia acabado de surgir da Sala Três, e, como um trem acelerado, veio até onde eu estava e colocou o punho enorme ao redor de minha garganta, levantando-me do chão.

— É bom ter uma explicação convincente para isso, Sawyer — ele falou entredentes.

Notei a verruga; sabia que era o mesmo gigante que sempre parecia pronto a me aterrorizar. Seus dedos eram como ferro ao esmagar minha traqueia, recusando-se a me deixar respirar, quanto mais responder alguma coisa. Senti minha vista nublar quando olhei para os portais gêmeos e prateados daquele ser estranho. Neles captei um vislumbre de meu próprio reflexo — a metade inferior do rosto manchada com o sangue que ainda escorria do nariz; meus olhos, a verdadeira essência do terror. Ver a que havia sido reduzido foi infinitamente mais aterrorizante do que o homem que me segurava.

— Esteve brigando? — continuou o terno-preto, e, apesar da dor, senti uma enorme onda de alívio. Ele não tinha me visto sair do túnel. Fiz o máximo para confirmar com a cabeça. Com o brilho dos dentes afiados à mostra, ele me jogou ao chão e aterrissei de costas, sufocado.

— De volta ao trabalho — falou o verruguento, apontando-me a espingarda. — Se o vir aqui de novo durante o período de trabalho, esmago você nestas paredes.

— Sim, senhor — respondi.

De algum modo, consegui me pôr de pé, tirando de novo a picareta da prateleira e o capacete do chão. Mal tinha forças para voltar à Sala Três, mas, sob a máscara vermelha, estava sorrindo.


REVELAÇÃO

 


O resto da manhã pareceu um sonho. A adrenalina tirou qualquer sensação do meu corpo, deixando-me completamente entorpecido, e tive a impressão de flutuar ao retornar à sala de escavação. Assim que Donovan me viu, deixou cair a picareta e correu, segurando meu braço e me ajudando a seguir até a parede dos fundos. Depois de investigar para ver se o terno-preto não havia me seguido, deitou-me na pedra, usando a manga para limpar o sangue do meu rosto. Fiquei ali, desamparado como um bebê, olhando para ele sem na verdade enxergá-lo.

— Cristo! — ele disse, acima do som das picaretas. — Não vou lhe dizer que eu avisei. O que aconteceu? Guardas? Cães?

Abri a boca para falar, mas, em vez de palavras, de repente me vi vomitando todo o café da manhã sobre Donovan. Ele se sacudiu, enojado, embora a expressão voltasse com rapidez a ser de preocupação.

— Você está bem? — perguntou. — Pelo amor de Deus, não fique doente, senão vão levá-lo.

— Estou bem — gaguejei. O vômito pareceu ter removido a bola de chumbo do estômago, e a sensação pouco a pouco retornou a meu corpo. Lutei para conseguir ficar sentado e limpei a baba ácida dos lábios. — Desculpe por isso.

— Um breve aviso teria sido ótimo — murmurou ele. Olhou para a porta e depois para mim. — É melhor se levantar. O guarda vai arrancar suas tripas se pegar você sentado no horário de trabalho.

Respirando profundamente, levantei-me, usando a picareta como bengala. Olhei para a parede sólida à frente, e o pensamento de ser esmagado contra ela nas próximas horas quase me fez vomitar de novo. Donovan ergueu a picareta e a baixou com força, enchendo-nos de centelhas e fragmentos de rocha. Deu mais alguns golpes antes de me encarar com impaciência.

— E então? — indagou. — O que descobriu?

Sorri e encolhi os ombros:

— Achei que não se importasse.

— Não me importo. Só estou curioso.

Fiz menção de responder, mas Donovan desviou o olhar para a porta e acenou suavemente com a cabeça. Ergui minha picareta, olhando com o canto do olho, e vi o verruguento de pé na porta. Não consegui decifrar sua expressão, mas algo me dizia que o olhar prateado era dirigido diretamente a mim. Dei um golpe indiferente, e, quando olhei de novo, o guarda havia ido embora.

— Conto depois, Grandão — falei, oscilando sem firmeza ao me preparar para dar um novo golpe.

Donovan apenas fungou e murmurou:

— Se você viver até lá.

 


Chuveiros, uniformes limpos, caminhada até a cantina. Conseguia fazer isso agora de olhos vendados, sem pensar, e foi também como passei o resto do dia, como se ligado no piloto automático. Não podia parar de repassar mentalmente o que havia feito. Aquilo não parecia ter acontecido, nada daquilo. As lembranças se assentavam em minha mente como lampejos de algum sonho meio esquecido, fragmentos que possivelmente não eram reais.

Mas eram, sim. E eu havia feito aquilo: me enfiado sob as tábuas e entrado na sala proibida — um crime que poderia com facilidade ter sido meu último. E para quê? Todo aquele esforço para entrar em pânico e fugir diante do mais leve ruído.

Chegamos à sala do cocho e vimos que Zê já estava lá — posicionado o mais longe possível do banco ocupado pelos Caveiras e olhando com melancolia para o almoço. Gary Owens estava sentado na cabeceira da mesa, a bandana ainda sobre a cabeça raspada. Os outros membros da gangue estavam sentados ao redor dele como animais enjaulados, sem se mover nem falar, e pareciam lamentar terem se juntado aos Caveiras.

Dei uma olhada geral procurando por Kevin, mas ele não estava em lugar nenhum à vista. Sabendo como era Furnace, provavelmente jazia em uma caverna sombria em algum canto escuro, já esquecido. Examinando melhor a sala, localizei os outros dois novos garotos, Toby e Ashley, sentados num canto e compartilhando o alimento de um único prato, quase agarrados um ao outro em busca de conforto. Os dois tinham o rosto machucado.

Zê viu que nos aproximávamos, por isso se reacomodou no banco para abrir espaço para nós. Sorriu para Donovan, mas ficou surpreso ao me ver. Eu havia lavado todo o sangue no chuveiro, mas supunha que meu rosto ainda estivesse bastante pálido.

— Onde encontrou Gasparzinho, o Fantasma Camarada? — perguntou Zê a Donovan quando nos sentamos.

— Assombrando a Sala Dois — respondeu ele baixinho.

— Não acredito — disse Zê, os olhos parecendo ovos em conserva. — Fez isso?

— E se arrebentou também, o idiota.

Os olhos de Zê estavam cada vez mais proeminentes. Achei que fossem saltar.

— Não me arrebentei — respondi —, mas foi por pouco.

— Parecia ter levado um tiro no rosto — falou Donovan, as sobrancelhas franzidas. Não pude deixar de rir.

— Bem, só tenho a mim mesmo para culpar — murmurei com timidez. — Corri na direção de uma parede quando ouvi o rosnado.

— Rosnado? — perguntou Donovan, mas Zê ergueu as mãos e começou a abaná-las.

— Uau, uau! — entusiasmou-se. — Comece do começo.

Então comecei. Com voz abafada, contei a eles como havia passado pelas tábuas de madeira e entrado na sala, como senti o golpe de ar frio e como o lugar era negro como piche — uma revelação que provocou riso nos dois garotos. Falei sobre o ruído que parecia um rosnado. Por fim, contei como havia escapado por pouco do verruguento.

— Você sabe que ele teria atirado em você se o tivesse visto saindo daquelas tábuas, não sabe? — perguntou Donovan assim que parei de falar. — Estou lhe dizendo, é perigoso demais.

— E o que era o barulho? Aquele ruído? — perguntou Zê, ignorando o comentário.

— Não tenho ideia — repliquei. — Não consegui localizar. Sei agora que não podia ser um cão. Quero dizer, ainda estou vivo, não estou?

— Algo elétrico, talvez? — sugeriu Zê. — O gerador da prisão?

Donovan balançou a cabeça em negativa:

— Não, não há como o gerador chegar até ali. Aquela sala foi escavada pelos prisioneiros.

— O sistema de ventilação? — perguntou Zê. — Talvez fosse o som do vento nos canos. Pode ser também daí que veio o vento.

— O que disse? — falou Donovan. — Não há nada lá. Nem fios, nem canos, nem ventos. Nada.

— Não, talvez você tenha razão — disse a Zê, tentando recordar do som em minha cabeça. — E se foi o vento? Quero dizer, o vento da superfície? Talvez o desmoronamento tenha aberto uma fissura na rocha. Se tem ar fresco entrando ali, podemos sair.

— Você é um pouco mais substancial do que o ar — replicou Zê. — Além disso, como já disse um milhão de vezes, se tivesse uma saída para a superfície, não acha que já a teriam fechado com algo mais resistente do que apenas algumas tábuas?

Cerrei os dentes, exasperado.

— Bem, juro que não foi minha imaginação — sussurrei depois de um momento de silêncio. — Ouvi algo naquela sala, algo grande o suficiente para dar um rugido, um rosnado ou o que quer que seja. Vou descobrir o que é.

Donovan bufou e se levantou para pegar a comida. Entretanto, depois de examinar a sala do cocho, tornou a cair sentado no banco.

— O recém-chegado — murmurou.

Olhei para cima, e vi Gary e sua gangue atravessando a sala rumo à saída para o pátio. Os prisioneiros saíam às pressas do seu caminho, com um respeito jamais demonstrado antes a Kevin. O ex-líder dos Caveiras era violento, sim, mas havia algo diferente em Gary. Kevin tinha torturado e matado para provar alguma coisa, porque sabia que a vida era valiosa, um bem precioso a ser tomado. Mas Gary feria e matava como se a vida não fosse nada, como se não tivesse significado nenhum, como se fosse esmagar um inseto.

— Não o encare — sussurrou Zê, e baixei os olhos para a mesa. Entretanto, quando os levantei de novo, me vi olhando direto para o rosto de Gary. Ele estava de pé do outro lado da mesa, atrás de Zê, me encarando como se eu tivesse acabado de matar o cachorro dele.

— Soube que teve um problema com os Caveiras — disse-me com uma voz que só faltou transformar meus ossos em água. — As brigas em que se meteu até agora não foram brigas de verdade.

Minha língua havia se transformado em lixa; as pernas, em chumbo.

— Venha — desafiou Gary, levantando as mãos. Os nós de seus dedos estavam inchados e com manchas de sangue. — Você se acha muito durão, não é? Por que não se levanta e vem lutar comigo?

Ele tirou Zê do caminho e se inclinou sobre a mesa. Assim de perto, pude notar uma linha de pelos loiros sobre o lábio superior, como uma minúscula peruca sobre os dentes quebrados e amarelados. Pensei por um momento que fosse vomitar de novo. Pelo menos o humilharia antes de ser furado. Engoli em seco e baixei os olhos para a mesa.

— Olhe para mim quando eu falar com você — disse ele, agarrando meu queixo e puxando-o para cima. Seus dedos eram ásperos contra a minha pele. — Estou dizendo para brigar comigo. Vamos ver o que vai conseguir.

— Não o bastante — falei.

— O quê?

— Desculpe — respondi, mais alto dessa vez, e depois acrescentei “senhor” para coroar a frase.

— Tarde demais. — Ele empurrou minha cabeça com tanta força que senti o pescoço estalar. Depois bateu a mão contra a mesa, fazendo voar a comida e a bebida de Zê. — Está marcado. Você é meu. Vai ter o que pediu, homenzinho.

Com isso, virou-se e abriu caminho entre os Caveiras, dirigindo-se para a saída. Baixei a cabeça e senti uma pontada de dor no tendão. Esfregando o pescoço, percebi que Donovan e Zê olhavam, aterrorizados, para a mesa.

— Você está bem? — Zê perguntou sem olhar para cima.

— Oh, sim, estou ótimo — respondi, fazendo o máximo para segurar as lágrimas que queriam saltar dos olhos. — Sem problema algum.

Coloquei os cotovelos sobre a mesa e escondi a cabeça entre as mãos, para que ninguém pudesse ver meus olhos marejados. Mas não consegui impedir que as lágrimas saíssem. Pisquei, e uma lágrima caiu do meu rosto direto na superfície de plástico, deslizando até o outro lado da mesa. Não ficou só; misturou-se à trilha de água derramada do copo de plástico de Zê. Observei o pequeno riacho passar entre as pilhas de gororoba marrom, escorrendo inexoravelmente para a beirada da mesa.

Então me veio uma revelação tão brilhante e maravilhosa, como se as luzes da sala tivessem duplicado de intensidade. Sentei-me ereto, com tanta rapidez que Zê e Donovan chegaram a recuar.

— O ruído. Sei o que é.

Ambos me encararam como se eu tivesse enlouquecido.

— É água — falei, apontando para a sujeira na mesa. — É um rio subterrâneo.


O RETORNO

 


Discutimos sobre minha revelação durante praticamente todo o tempo em que ficamos na sala do cocho, Donovan zombando da ideia com seu desdém habitual. Assim que nos sentamos com as bandejas de gororoba, ele passou a enumerar as razões que tornavam a hipótese impossível.

— Não escolheram um lugar na garganta e simplesmente instalaram a prisão dentro dele — comentou Donovan entre uma colherada e outra. — Quero dizer, pensem nisto: devem ter feito centenas, milhões de testes antes. Amostras de pedras, avaliação de túneis, análise das cavernas que já existiam aqui; é provável até que tenham feito testes psicológicos com os insetos que vivem debaixo da terra. Teriam visto um rio se houvesse algum por aqui.

Peguei uma porção de comida sem gosto com a colher de plástico e refleti sobre o que ele dizia.

— E, se o desmoronamento tivesse atingido o rio, com certeza estaríamos todos flutuando agora — prosseguiu.

— Não se ele estiver abaixo de nós — acrescentou Zê, usando seu talher para roubar um pouco da minha gororoba. A ideia de fuga parecia ter aberto caminho na muralha de seu ceticismo, e ele afinal se posicionava do meu lado. — Quero dizer, o desmoronamento pode ter aberto uma fissura que desceu, não que subiu.

— Então, de que adianta? — perguntou Donovan. — Ficarmos ainda mais soterrados, mais para dentro da Terra? Grande ideia.

— Bem, essa água tem de ir para algum lugar — falei.

— Você acha que vai dar nos chuveiros dos banheiros femininos na academia local? — zombou Donovan. — Olá, garotas, não se assustem; é apenas uma fuga da cadeia. A propósito, tem uma sujeirinha aqui. Permita-me...

Nós três rimos diante da ideia.

— Está bem, provavelmente não termine na academia — concordei —, mas e se der lá em cima?

— E se der a centenas de quilômetros abaixo da terra? — perguntou Zê dando de ombros. — Poderíamos acabar nos afogando.

— É melhor que isto, certo? — perguntei, mas os dois balançaram a cabeça em um gesto negativo.

— Aqui temos vida, Alex — respondeu Donovan. — Não é uma vida de verdade, mas ainda estou respirando. Não vale o risco.

— Ele está certo, você sabe — murmurou Zê. — Não sou um grande nadador e não gosto muito de ficar preso em lugares pequenos. Acho que devemos ficar por aqui. A gente nunca sabe; de repente, fecham este lugar amanhã.

— Podem vir e pegar você esta noite — repliquei, mas não adiantou.

Zê passou a conversar com Donovan sobre futebol, e me desliguei da conversa, retirando-me para o conforto da minha mente. Quanto mais pensava a respeito, mais o ruído fazia sentido — a urgência e o rugido distante e abafado de um milhão de toneladas de água correndo sob nossos pés. Se pudesse chegar até ela, talvez me levasse para casa.

Depois do almoço, voltamos ao pátio. Donovan disse que queria ir ao ginásio, e Zê e eu subimos a escada correndo até minha cela, sentando no beliche e nos preparando para mais uma tarde de tédio entorpecedor. Mas só conversamos preguiçosamente durante alguns minutos antes que Donovan irrompesse cela adentro, os olhos cheios de ódio mortal.

— Não me deixaram entrar — disse, espumando de raiva e andando de um lado a outro, da melhor maneira possível naquele espaço minúsculo. — Aquele garoto novo assumiu o controle. Agora o ginásio não abre para mais ninguém que não esteja lutando. Conseguiu também ter os Cinquenta e Nove como aliados; eles são assustadores demais para se argumentar.

— Por que não entra e acaba com essa festa dele? — perguntou Zê. — Você é tão grande quanto ele. Vá em frente e lhe dê uma lição.

— Não vale a pena — respondeu Donovan, suspirando alto e depois subindo no beliche. — Não vale a pena. Não me meto com eles, e eles não se metem comigo.

Zê e eu nos entreolhamos ao ouvir Donovan socar a parede, frustrado. Depois ele caiu em silêncio.

— Há muitos ginásios lá em cima, na superfície — insinuei, mas não houve resposta.

Ficamos ali sentados enquanto os minutos passavam, a vida correndo em câmera lenta. Ali todo o tempo parecia agonizante. Minha mente já começava a apodrecer. Havia me esquecido da metade dos livros que tinha lido; perdido diversos programas de tv que antes adorava. Lutei para me lembrar de como eram algumas cores, pois a paleta incessante de tons de vermelho, preto e cinza de Furnace desde então havia transformado azuis, verdes e laranjas em uma lembrança distante, tão vaga e delicada quanto uma teia de aranha.

Para passar o tempo, Zê e eu resumimos nossos filmes favoritos, fazendo o possível para representá-los um para o outro. Percorri toda a saga Indiana Jones, personificando o herói e até usando um travesseiro como chapéu e o lençol como chicote. Minha atuação amadora fez Zê gargalhar, e chegamos a acordar Donovan quando representei o enredo do sétimo filme, que ele não havia chegado a assistir.

Zê escolheu uma trilogia sobre crianças inventoras, embora sua memória fosse inútil, pois sempre tinha que parar e voltar para preencher uma parte vital da história que havia esquecido, ou revelava o fim antes de ter chegado ao meio. Na quinta vez em que disse “Espere, isso na verdade nunca aconteceu”, Donovan e eu rolamos na cama, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Mas eram lágrimas do bem.

A sirene tocou para o jantar na metade do meu relato do terceiro filme, mas esperamos deliberadamente quanto pudemos antes de descer a escada. Nosso atraso funcionou, e, quando chegamos à sala do cocho, estava quase vazia, os detentos atrás da cantina já começando a limpeza. Pegamos os últimos pratos de gororoba e os devoramos o mais rápido possível.

O único outro garoto no local era Kevin, sentado sozinho em um banco perto da porta, devorando a comida com uma agitação nervosa que me lembrou um rato comendo lixo. Ele notou que eu o encarava e rangeu os dentes, mas logo interrompeu o contato visual, patético na ausência de sua gangue.

De lá nos encaminhamos de volta a nossas celas. Zê declarou que estava exausto e desapareceu na plataforma do nível quatro. Donovan e eu continuamos subindo, mas andamos em silêncio, ambos esgotados demais para nos dar ao trabalho de conversar.

Assim que entramos na cela, deitei no beliche e senti as pálpebras se fechar. Não resisti, deixando o sono me carregar em seus braços suaves e me levar para bem longe de Furnace. Devia ter ficado acordado. Não tinha ideia de que ele estava prestes a me trair, de que me arrastaria para a coisa mais terrível que havia testemunhado desde que descera ao fundo do mundo.

 


Tudo começou com um sonho, o mesmo que tivera tantas vezes desde que chegara a este lugar. Estava em uma prisão de vidro, da qual olhava para minha antiga casa. A cada noite que tinha esse sonho a casa parecia diferente, menos sólida. Era como se um pequeno pedaço daqui e dali fosse sendo apagado de sua existência, esquecido.

Meus pais estavam lá dentro, como sempre. Era estranho vê-los. Minha mente inconsciente não conseguia mais retratá-los como eram antigamente, mas eu sabia que eram eles. Sempre eles.

E sempre a mesma sequência de eventos. Observava através do vidro os ternos-pretos e os cães se aproximar da porta da frente, e as bestas atravessavam as janelas, agarrando mamãe e papai com os focinhos gotejantes de baba, sugando o sangue de suas veias.

Um Ofegante batia do outro lado da minha prisão, um reflexo retorcido que eu não compreendia. Eu socava o vidro e gritava até minha garganta arranhar, mas nada os impedia de continuar arrastando meus entes queridos e atirar corpos retorcidos e sanguinolentos em um vagão de carne da prisão.

Dessa vez, no entanto, algo ficou diferente. Continuei esmurrando a cela transparente da prisão, os punhos em sangue criando rachaduras no vidro. As rachaduras se espalharam por toda a parede, cada uma deixando uma trilha de líquido claro, como se a prisão estivesse submersa. Quanto mais eu batia, maiores se tornavam as rachaduras, até que a redoma de vidro começou a se encher.

Do outro lado, o Ofegante se retorcia como se agonizasse, as mãos feridas arrancando a máscara de gás da cara. Não suportava olhar, mas em meu sonho era incapaz de desviar o rosto. Com um som de sucção grotesco, a máscara se soltou, revelando uma boca úmida e tosca, sem lábios nem dentes, apenas um buraco na cara que parecia não ter fim. Gritei de novo, e, quando o fiz, a parede da prisão explodiu, o peso da água como um punho gigantesco me golpeando para trás.

Uma sirene soou, diferente de qualquer outra que já tivesse ouvido — um lamento sem fim que mais parecia um alarme de carro. O Ofegante começou a gritar, a bocarra imunda tornando-se inconcebivelmente imensa, esticando até ficar maior que a cabeça, maior que o corpo, maior até que a cela de vidro. A água mudou de direção, desaparecendo dentro da boca da criatura, fluindo garganta adentro. Lutei contra o fluxo, mas foi inútil, e fui carregado aos gritos para dentro da ferida carnosa, da mesma cor que as paredes de pedra da prisão.

Acordei gemendo, arranhando o rosto e quase caindo da cama. Por um momento, achei que ainda sonhava, pois podia ouvir a sirene desconhecida; mas, com os últimos vestígios de sono desaparecendo, me peguei completamente desperto.

Tudo estava vermelho. Era a vigília sangrenta; tinham voltado.

— Donovan — sussurrei, sabendo que ele provavelmente me diria apenas para calar a boca; porém, sentia-me ansioso por ouvir a voz dele, só para ter certeza de que não estava sozinho. — Donovan?

— Quieto, garoto — veio a resposta. — Já lhe disse uma vez. Não vou aguentar isso de novo.

Nem precisaria. Depois da última vez, não havia chance de eu sair da cama.

— Estão vindo — murmurei. Fiquei surpreso de ver a cabeça de Donovan aparecer do beliche de cima, as feições cor de sangue.

— Não atrás de nós — ele falou. — Essa sirene significa que estão trazendo alguém de volta.

— De volta? — perguntei, alarmado. Sentei-me na cama, olhando o pátio lá embaixo pelas grades da cela. Vi a mão de Donovan voar, zunindo em minha orelha.

— Não significa que não possam pegar você se o virem olhando e considerarem uma provocação — esclareceu antes de desaparecer.

Permaneci onde estava, tentando esticar o pescoço para ver a porta da abóbada. Estariam trazendo alguém de volta? Não fazia o menor sentido. Sempre imaginei que, uma vez que alguém era levado, não havia retorno.

— Achei que ninguém voltasse vivo — arrisquei falar.

— Não disse que o trariam vivo. Agora, feche a matraca.

Dessa vez obedeci. Lá embaixo, ouvi o assobio e o estrondo da porta da abóbada, seguidos por um guincho que me era familiar. Eram os Ofegantes, se retorcendo em espasmos na entrada do pátio. Ouvi outro ruído atrás deles, um gemido baixo que se espalhou pela prisão e fez meu coração se apertar.

Olhei para as sombras da porta, enquanto mais algumas figuras se materializavam da escuridão. Dois ternos-pretos avançaram, cada um segurando uma trave de metal conectada a algo atrás deles. Quando entraram no pátio, notei que carregavam uma criatura que se retorcia e tentava se desvencilhar, um animal que gemia e uivava como se lutasse por liberdade.

As luzes vermelhas faiscantes impossibilitavam ver de que monstro se tratava, mas presumi que fosse outro dos cães do diretor. Era quase do mesmo tamanho e se movia de quatro, mas houve algo que deixou meus nervos à flor da pele, algo que absolutamente não parecia certo.

O grupo se dirigiu devagar para a escada na extremidade mais afastada da prisão, os ternos-pretos lutando contra a terrível ferocidade do animal. A certa altura ele puxou com tamanha violência as extremidades das traves que conseguiu cair no chão, atacando a porta de uma cela com tal força que as grades entortaram. Os guardas puxaram as traves e o arrastaram de volta, um deles golpeando a cara distorcida da criatura com o punho enluvado — um ataque que só pareceu deixá-la mais furiosa.

Contei os andares enquanto subiam até o quinto nível e, quando estavam no meio da plataforma, soube para onde iam. E Kevin também. Ele olhou através das grades da cela que antes compartilhava com Monty com um medo tão intenso que todos na prisão puderam ver o branco de seus olhos.

— Não, não, não, não! — gritou ele repetidas vezes, enquanto a procissão se aproximava. — Levem-no embora, levem-no embora! Não é justo. Levem-no embora!

Os apelos de nada adiantaram, exceto para provocar um sorriso nos ternos-pretos, os dentes pontiagudos brilhando na luz avermelhada. Um deles gritou para que a cela fosse aberta, e, com um estalo, a porta começou a deslizar para cima. Antes que atingisse meio metro, Kevin irrompeu contra ela, espremendo-se entre a abertura e quase passando pelo guarda. Mas o terno-preto foi bastante rápido. Esticou a poderosa mão e envolveu com ela o pescoço do garoto, atirando-o de volta à cela. Kevin bateu no beliche e tentou se levantar, mas já era tarde demais — a porta estava aberta.

Rindo, os dois guardas giraram as traves e empurraram a criatura horrenda para dentro da cela. Giraram de novo, e as extremidades se soltaram da coleira da besta; depois de outra ordem, a porta começou a se fechar. Os ternos-pretos postaram-se de um lado para permitir que os Ofegantes enxergassem o que ocorria dentro da cela, mas eu desejei que tivessem ficado onde estavam. Agora tinha visão frontal do horror em pessoa.

O animal encurvado que eu pensava ser um cão atirou-se contra as grades, entortando-as para fora. Então, para meu terrível espanto, ergueu-se sobre as pernas traseiras, levantando-se a bem mais de um metro e oitenta enquanto se arremessava contra a porta. Movia-se tão rápido que não conseguia vê-lo com nitidez, mas o que avistei não deixou dúvida sobre o que era. Ou, pelo menos, sobre o que havia sido um dia.

A cara da criatura era humana — destruída, mutilada, quebrada, mas ainda com olhos, um nariz e uma boca aberta. A pele estava marcada com feridas recentes, como se uma criança tivesse tentado decorá-la com uma faca. Estava nua, mas havia algo de errado com a pele, como se tivesse sido aberta e houvesse algo esticado sob ela. Músculos sobressaíam por toda parte, flexionando-se cada vez que ela se movia, e por vezes até marcando a pele, por seu tamanho.

Cansado de se arremeter contra a porta, o monstro voltou a atenção para os fundos da cela. Não demorou muito para ver Kevin, encolhido atrás da privada. Com um rugido que me fez pensar em dragões, a criatura saltou pela cela minúscula, agarrando a privada e arrancando-a da pedra como se fosse feita de papel. Irrompeu água do cano cortado, obscurecendo ainda mais minha visão. Mas pude ver a criatura agarrar Kevin, erguê-lo do chão e atirá-lo na parede oposta.

Na terceira vez que fez isso, os gritos de Kevin haviam se transformado em não mais que um murmúrio. Cinco vezes, e o garoto não se movia mais. Continuei olhando o monstro, que agora se ocupava do cadáver, mas meu cérebro se recusava a reconhecer o que via, editando a cena como se soubesse que as imagens me deixariam louco. Não poderia contar o que vi ali, embora tivesse assistido a toda aquela cena demoníaca.

Algum tempo mais tarde, os ternos-pretos ordenaram que a porta se abrisse, enfiando as traves de metal na coleira da criatura com uma fagulha de eletricidade. A criatura assassina lutou contra eles, mas os gigantes eram fortes demais e a arrastaram para longe dos destroços que restavam na cela. Puxaram-na de volta ao longo da plataforma, desaparecendo do campo de visão ao descerem a escada.

Mas não antes que eu visse algo que me encheu de terror.

No braço da criatura, distorcida e pálida, mas ainda inconfundível, estava uma marca de nascença.

Era Monty.


DISTRAÇÃO

 


Naquela noite comecei a imaginar se não estava de fato no inferno. Nunca fui muito religioso, faltava à escola dominical e zombava dos garotos que rezavam na assembleia. Sempre achei que, se existisse um Deus, teria me impedido de fazer coisas ruins, mas não houvera nenhum sinal, nenhuma advertência. Até aquele momento, é claro.

Estava ali deitado na mais completa escuridão, os ganidos desumanos de Monty ainda ecoando em meu cérebro, misturando-se aos soluços e gritos que soavam infinitamente do lado de fora da cela. Imaginei se talvez não houvesse morrido na noite em que tínhamos entrado naquela casa; se não tinha caído quando tentava entrar pela janela e quebrado o pescoço ou alguma outra parte do corpo sem sequer perceber. Talvez os ternos-pretos fossem anjos da morte e tivessem aparecido para capturar minha alma e arrastá-la para o inferno.

Sentia-me tão cansado e apavorado que minha mente delirava e, quanto mais ficava ali deitado pensando naquilo, mais me convencia de que Furnace era o Hades, Geena, o poço para onde os pecadores eram enviados para apodrecer por toda a eternidade. Fazia muito sentido — o diretor e seus olhos satânicos, os ternos-pretos com aquela força sobre-humana, os Ofegantes, que pareciam fantasmas torturados de tropas de assalto nazistas, e a maneira como o pobre Monty havia sido desprovido de tudo o que o tornava reconhecível, obrigado a se transformar em um demônio que espancava, dilacerava e matava. E se esse fosse o destino de todos nós: ser transformados na mais primitiva das criaturas, a verdadeira essência do mal?

Bem, se Furnace era o inferno, para onde ia o rio? Pensei na escola, nas coisas que havia aprendido sobre mitologia grega. Isso quando eu queria ser mágico, viver uma vida boa, uma existência livre. Tinha devorado tudo aquilo, fascinado por mitos, lendas e mágica. Lembro-me da figura de Hades que vimos, o mundo subterrâneo grego. Para chegar ali, a pessoa tinha que atravessar um rio cujo nome me esqueci. Quando o atravessava, estava no inferno, mas, se pudesse voltar para o outro lado, talvez se libertasse.

Meio sonhando, meio acordado, me vi mergulhando no rio, a água limpa, pura e fria me carregando pelos túneis avermelhados e ásperos de Furnace, fazendo-me flutuar na direção da luz em uma onda de bolhas e espuma. Via-me rindo ao chegar à superfície, emergindo em uma noite clara como cristal, com todas as estrelas do céu me dando as boas-vindas e o vento frio me carregando mundo afora, levando-me para casa.

Ainda ria baixinho quando Donovan me acordou na manhã seguinte, mas não por muito tempo. Assim que abri os olhos, as quatro paredes da cela destruíram as lembranças de liberdade, cortando o ar e me fazendo lutar para respirar. Sentei na cama, chocado por me ver de volta atrás das grades depois de um sonho tão vívido, com a garganta fechada e tossindo em busca de oxigênio.

— Calma aí — disse Donovan, sentando-se na cama e colocando uma das mãos no meu ombro. — Respire fundo, não entre em pânico.

Aspirei tão profundamente quanto pude o ar quente, todo o meu corpo estremecendo com o esforço. Meus pulmões se encheram, fazendo o medo desaparecer. Olhando além das grades, vi as pessoas nas celas preparando-se com relutância para mais um dia em Furnace.

— Dormi durante o toque da sirene? — perguntei, bocejando. Donovan acenou com a cabeça, ajeitando o macacão e ficando de pé ao lado da porta.

— Você estava longe, em algum lugar bonito — respondeu ele. — Rindo como um bebê a noite toda. Deus sabe que merecia, depois...

A pausa foi longa o suficiente para me trazer à lembrança os horrores presenciados. Eles inundaram o silêncio, cortando minha respiração como arame farpado e se instalando na carne tenra do meu estômago.

— Era Monty — falei, recordando da besta ao se precipitar para dentro da cela em direção a Kevin. — Aquela coisa, aquele monstro.

Donovan não se moveu, só ficou olhando em silêncio.

— Eu sei — disse enfim. — Não é a primeira vez que alguém volta.

— O que aconteceu com ele?

Donovan se virou devagar, depois deslizou nas grades até ficar sentado no chão de pedra. Passou os dedos pelos cabelos, depois deixou a cabeça pender suavemente nas mãos.

— Não sei — murmurou. — Ninguém aqui sabe. Isso só aconteceu algumas vezes, talvez cinco ou seis. Não sei, talvez mais. A maior parte do tempo as pessoas que são capturadas nunca retornam, apenas desaparecem. Mortas, muito provavelmente. Às vezes, no entanto...

— Elas voltam — concluí desnecessariamente.

— Nas primeiras vezes em que as vi, achei que fossem criaturas, animais. Macacos ou algo assim. Foram trazidas como Monty na noite passada. Nunca soube o que havia acontecido antes; ficavam sempre longe de nosso campo de visão. Achei que caçavam os prisioneiros, ensinavam algum tipo de lição a eles. Então, uma vez vi um garoto ser levado. Um garoto realmente nojento. Era jovem, mas tinha tatuagens de revólveres, facas, morte, essas coisas, cobrindo todo o corpo. Tatuagem de gangue, sabe? Bem, alguns dias depois que ele foi levado, a vigília sangrenta trouxe esse monstro, como na noite passada. Eles o arrastaram para uma cela neste nível, a pouca distância da nossa. Quando ele passou pelas grades e vi as tatuagens, soube que não era um macaco.

Esfregou os olhos, e vi que ele chorava.

— A pele estava toda esfolada e repuxada, tudo por dentro sobressaindo em lugares estranhos, com todos aqueles músculos embaixo. Mas ainda assim consegui ver as tatuagens. Era ele, aquele garoto, sem dúvida alguma.

— O que acontece com eles? — repeti. — Monty foi levado duas noites atrás; que diabos podem ter feito com ele para transformá-lo dessa maneira?

— Não sei — foi a resposta de Donovan. — Nem quero saber. Só há um modo de descobrir isso, se é que me entende, e nessa ocasião é você quem vai esfolar seu antigo companheiro de cela.

— Mas por que trazê-los de volta? Só para nos apavorar?

— Para nos apavorar, para nos matar, nos dar algo sobre o que falar de manhã. Como diabos posso saber? Isto aqui é Furnace, Alex; eles podem fazer o que quiserem. — Fez uma pausa, depois falou asperamente, esmagando o punho contra as grades com força suficiente para arrancar sangue das mãos: — Cristo, essa coisa matou Kevin. Ou melhor, o fez em pedaços.

Vi ali uma chance, e a aproveitei:

— Ainda tem certeza de que quer ficar aqui? — perguntei.

Donovan me encarou, os olhos escuros fixos nos meus:

— Você pode jurar que esse rio existe mesmo? — sussurrou ele.

— Não, mas tenho quase certeza.

— Pode jurar que vai nos tirar daqui?

— Não, é claro que não.

— Pode jurar que não vão nos pegar?

— Não, Donovan. Não posso lhe prometer nada, exceto que morrer tentando se libertar é melhor que ser morto por uma dessas coisas.

— Ou se tornar uma delas — ele acrescentou. Sugou o sangue dos nós dos dedos, imerso em profundos pensamentos, depois virou o rosto para o teto. — Está bem; estou dentro.

 


Quando descemos para o pátio, já tínhamos um plano. Agora que Donovan havia aceitado a possibilidade da fuga, estava animado, e sua mente explodia em ideia após ideia numa voz abafada enquanto nos dirigíamos à sala do cocho. Eu mal conseguia captar uma palavra sequer do que dizia, mas era um alívio ouvir alguém tão otimista quanto eu.

Zê nos encontrou em nossa mesa, e confabulamos acima dos pratos de gororoba, fazendo o possível para não parecermos conspiradores. Depois de uma rápida verificação para me certificar de que ninguém ouvia, coloquei Zê a par dos detalhes. Ele ficou tão surpreso quanto eu ao ver a mudança de opinião de Donovan.

— Chegou a hora, Grandão — falou Zê com um sorriso.

— Temos de voltar lá para examinar a Sala Dois — sussurrei.

— Com uma lâmpada, dessa vez, suponho? — perguntou Zê.

— É. Vou manter meu capacete na cabeça — repliquei. — Posso ser um idiota, mas aprendo com meus erros.

— E quanto ao guarda? — perguntou Zê. — Quero dizer, ele quase pegou você antes.

— Isso fica por minha conta — acrescentou Donovan, passando a língua nos lábios e se inclinando um pouco mais. — Vou distraí-lo. Não vai haver muito tempo pra vocês, mas deve ser o suficiente para descobrirem o que há lá.

— Distraí-lo como? — indagou Zê. — Usando o velho truque de estar se sentindo mal?

— Não. Planejei algo mais dramático — falou, a expressão sendo um misto de sorriso e careta. — Fiquem ao lado da porta na sala de escavação e poderão ver. Cinco minutos, é tudo o que vão ter. Fiquem atentos.

— Nós ficaremos — respondi. Zê concordou, mas de repente as sobrancelhas se franziram.

— Espere aí... nós? — indagou ele, olhando freneticamente de mim pa-ra Donovan. — Com certeza é melhor ir sozinho. Quer dizer, não que eu
não queira ir, mas não é duas vezes mais arriscado se nós dois entrarmos lá?

— É que a busca vai demorar o dobro do tempo se estiver sozinho — argumentei. — Além disso, quero alguém para me fazer companhia no buraco se formos pegos.

— O Alex está certo, Zê, é uma sala grande, e provavelmente ainda há pedras por toda parte. Para descobrirem de onde vem o ruído, vão precisar do maior número possível de olhos e ouvidos. Droga, se não quiser ir, pode em vez disso distrair os ternos-pretos.

Zê empalideceu e balançou negativamente a cabeça.

— Certo — falei, empurrando meu café da manhã intocado para o outro lado da mesa e estalando os dedos. — Mãos à obra.

 


Felizmente, Donovan e eu fomos designados para o trabalho de escavação naquela manhã. Zê foi programado para a lavanderia, mas Donovan lhe disse para ignorar a lista das tarefas.

— As pessoas nem sempre se prendem às tarefas — explicou. — Os guardas se certificam de que todos da lista da escavação estejam ali, mas não checam se há algum corpo extra nos corredores; imaginam que ninguém seria tão estúpido para fazer o serviço se não fosse obrigado, certo?

Seguimos a rotina habitual, selecionando o equipamento e marchando como zumbis até a Sala Três. Zê e eu nos mantivemos o máximo possível perto da porta de entrada, mas Donovan se encaminhou em direção a um grupo de Caveiras que já havia começado a golpear a parede. Imaginei que diabos estaria fazendo e rezei para que não fosse nada perigoso demais. Ele se virou e acenou para mim, depois apontou para a viga do teto que havia entre ele e os Caveiras.

— Oh, não — falei para mim mesmo. — Ele não faria isso.

Mas fez. Com um movimento da picareta, partiu em pedaços a viga de madeira. Todos os Caveiras recuaram, gritando para Donovan parar enquanto uma cortina de poeira e cascalho caía do teto, agora sem apoio. Ele movimentou de novo a picareta, direcionando-a para cima e soltando o cabo. Ela bateu no teto onde antes havia a viga, deslocando um grande bloco de pedra, que caiu ao chão, por pouco não atingindo o Caveira mais próximo.

Todos agora observavam com terror nos olhos, inclusive eu. Donovan se abaixou e pegou um pedaço de pedra do tamanho de um melão, depois a atirou em direção ao Caveira que quase havia sido esmagado. A pedra o atingiu no nariz, e ele caiu ao chão, ferido.

— Desmoronamento! — gritou Donovan o mais alto que pôde. — Homem caído!

O grito de alarme funcionou. O terno-preto correu tão depressa para a câmara que quase parecia uma mancha. Foi até onde o Caveira estava caído, inclinando-se sobre ele e observando o sangue pingar do nariz. O garoto estava gelado, e nenhum de seus amigos parecia ter coragem para se manifestar. Donovan olhou para mim do outro lado do corredor e murmurou:

— Comece a contar.

— Está na hora — disse eu, correndo para a porta. Não esperei para ver se Zê me seguia. Só coloquei a picareta no chão da sala e corri para as tábuas de madeira que fechavam a Sala Dois. A tábua de baixo ainda estava do mesmo jeito, o parafuso solto tendo obviamente passado despercebido. Puxando-a o máximo que pude, sussurrei para Zê entrar. Praguejando baixinho, ele entrou, espremendo o corpo pela passagem. Uma vez lá dentro, usou o pé para manter a tábua afastada da parede enquanto eu entrava.

— Moleza — falou com voz trêmula.

A pior parte havia passado. Soltei um suspiro de alívio, olhando para a boca do abismo que havia me apavorado tanto no dia anterior. Demos alguns passos vacilantes, mantendo as luzes apagadas até que a sala de equipamento estivesse fora do campo de visão. Na metade do túnel ouvimos movimento atrás de nós e nos abaixamos. Através das frestas das tábuas vimos o terno-preto arrastando o Caveira inconsciente para o pátio, e esperamos que desaparecesse antes de continuar.

— Cara, estou ouvindo — disse Zê ao atingirmos o fim do túnel. Estava negro como piche adiante, mas o ruído fraco tomou a escuridão. Mais uma vez entrei em pânico, achando que o som era um rosnado dos cães do diretor, ou a respiração ruidosa de um máscara de gás. Mas, quando acendi a lâmpada do capacete, a única coisa que ela iluminou foi a rocha.

— Jesus, olhe este lugar! — sussurrou Zê acendendo sua luz. Os fachos gêmeos não tiveram praticamente nenhum efeito para combater a escuridão densa da sala, os fios pálidos de luz atingindo não mais que alguns metros antes de se renderem às sombras.

— Cinco minutos — falei. — É tudo o que temos.

— Bem, pelo que posso perceber, está vindo daquela direção — concluiu Zê, virando o capacete e apontando para uma réstia de luz no lado esquerdo, ao fundo da caverna. O rugido parecia vir de toda parte, mas acatei a palavra de Zê. A audição nunca foi meu ponto forte.

Atravessamos a caverna, obrigados a escalar as pedras maciças espalhadas pelo chão. De vez em quando eu via um caco claro ou uma mancha suspeita no chão, mas felizmente os corpos dos garotos que haviam morrido ali tinham sido removidos. Uma vez mais imaginei se a alma deles não continuava naquele lugar, mas afastei o pensamento da cabeça com rapidez.

Não tenho certeza de quantos minutos levamos para atravessar o corredor. Tempo demais, isso eu podia afirmar. Mais de uma vez tivemos que recuar após alcançarmos um bloqueio ou nos enfiarmos sob um arco traiçoeiro formado por instáveis blocos de pedra. Mas a cada passo que dávamos o ruído ficava mais alto e mais distinto, o som se tornando menos um rosnado e mais o estrondo de uma queda-d’água. Quanto mais perto chegávamos, mais fresco o ar se tornava. Podia jurar que havia até mesmo uma névoa fina suspensa na caverna, que aderia à nossa pele e nos dava forças para prosseguir.

Então, como se tivéssemos encontrado um oásis no deserto, rodeamos uma montanha de pedra do tamanho de um caminhão, e a vimos. Nossa saída. Era uma fenda no chão da caverna, uma fenda que se estendia a mais de vinte passos da parede mais distante até nossos pés. Não havia nada senão escuridão através da fenda, mas não precisávamos ver. De onde estávamos era quase possível sentir o rio que corria abaixo de nós, a torrente que nos libertaria.

— Estávamos certos! — gritei para Zê, sem me importar mais em falar baixo. — Não acredito, há uma saída!

Mas ele não compartilhou do meu entusiasmo.

— Está vendo algo que não estou? — murmurou ele. — Quero dizer, pretende trazer uma caixa de dinamite com você?

Olhei para a rocha fendida e franzi o rosto. Como se alguém houvesse me golpeado no estômago, percebi o que ele queria dizer. A fenda no chão podia ter aberto a caverna em uma linha longitudinal, mas a rocha sólida só havia se partido alguns centímetros. A saída não era maior que o tamanho de um punho.


MEU MOMENTO MAIS SOMBRIO

 


Zê praticamente teve que me arrastar através do labirinto rochoso da Sala Dois. A mudança repentina entre a ideia de estarmos livres e reconhecer que não havia saída era insuportável. No espaço de um segundo tinha perdido a vontade de prosseguir, e com ela havia sumido a parte do meu cérebro que deveria se lembrar de como fazer coisas simples, como andar e falar. Devo ter escorregado em uma dúzia de pedras, arranhando pernas e braços e até mesmo o rosto. Mas não me importei. Estava acabado.

Diversas trilhas erradas depois, encontramos a saída para o túnel. Zê desligou sua lâmpada, depois a minha, liderando a saída para as tábuas de madeira. Adiante, a sala de equipamento estava vazia, mas não tínhamos ideia de onde estava o terno-preto. Podia muito bem estar lá fora, esperando que saíssemos para nos encher de tiros. Pelo menos seria mais rápido do que apodrecer em Furnace pelas próximas sete décadas.

Mergulhei no chão e abri caminho através da tábua solta, ignorando os protestos frenéticos de Zê.

— Espere, pelo amor de Deus! — sussurrou ele, mas, quando repetiu essas palavras, eu já estava do lado de fora. O lugar parecia livre; não havia nenhum guarda à vista. Zê pressionou o corpo contra a tábua, arrastando os pés e agarrando as picaretas onde as havíamos deixado. — Vamos voltar.

— De que adianta? — perguntei sem me mover. Zê agarrou minha manga e me conduziu, empurrando-me para a Sala Três. Com o calor e o barulho, ninguém nos viu entrar.

— Venha — ele chamou, suas palavras quase perdidas em meio aos golpes das picaretas. — Você realmente esperava que fosse tão fácil?

Localizamos Donovan trabalhando com afinco e fomos em frente, misturando-nos aos outros. Ele olhou para nós, e os ombros de ambos penderam.

— Não há rio nenhum, então? — perguntou sem rodeios.

— Ele está lá, mas a fenda é estreita demais, e as paredes, muito grossas — explicou Zê ao ver que eu não abria a boca.

Donovan acenou com a cabeça e em seguida voltou ao trabalho, praguejando algo como “que droga” sobre o ombro. Zê deu de ombros em minha direção e passou a golpear a parede. Ergui minha picareta com indiferença e fiz um movimento, mas não conseguia encontrar energia para fazê-la atuar. Afinal, por que me importar? Se uma vida inteira naquela sala suarenta era tudo o que deveria esperar; se era tudo o que qualquer um de nós tinha pela frente, por que simplesmente não dava com a picareta em meu cérebro?

Sinto dizer que todos os meus pensamentos foram semelhantes àquele durante o resto da manhã — uma exibição de imagens com prováveis maneiras de me livrar da infelicidade. Não que achasse que algum dia fôssemos conseguir fazer algo parecido, mas estava tão determinado a encontrar uma saída, que agora se apresentara impossível, que a única forma de liberdade que me restava era a morte. Embora um tipo terrível de liberdade — de infelicidade e sofrimento, sim, mas também de luzes, risos e vida. Era a ausência de tudo.

Saímos das salas de escavação com o mesmo entusiasmo que prisioneiros no corredor da morte ao se dirigirem à cadeira elétrica, tomando banho e nos vestindo sem proferir uma palavra. O silêncio nos seguiu enquanto pegávamos a comida na cantina e nos sentávamos em um banco vazio. Fizemos um bom trabalho cutucando nossa gororoba, mas ninguém pareceu comer de fato.

— Estão dizendo que precisamos perder um pouco de peso para conseguir passar por essa fresta? — perguntou Donovan após alguns minutos, empurrando o prato e cruzando os braços. — Porque acho que consigo fazer isso.

— Nem um bebê conseguiria passar por ali — respondeu Zê, elevando as mãos com alguns centímetros de distância uma da outra para mostrar o tamanho da fresta. — Nem meu gato conseguiria espremer tanto os ossos para passar por aquele buraco.

Como sempre, o almoço foi interrompido pelo som de pratos se estraçalhando e gritos. Inclinei-me sobre o ombro de Zê para ver os Caveiras provocando alguns garotos no meio da sala. Dali, pareciam ser os outros calouros, Ashley e Toby. Haviam despejado a gororoba no macacão deles, esfregando-a no rosto dos garotos, mas nem pensei em tentar ajudá-los. Depois de sonhar com a fuga, a realidade de Furnace se tornara ainda mais pesada, mais claustrofóbica do que antes. O ar opressivo minava minhas forças como se fosse um peso sobre os ombros, e me sentia incapaz de mover um músculo.

— Não podemos abri-la? — prosseguiu Donovan.

— Mesmo que conseguíssemos entrar os três ali, faria muito barulho — respondeu Zê. — E demoraríamos semanas para conseguir aumentar a fenda.

— Algum de vocês sabe como fabricar uma bomba? — continuou Donovan com um sorriso, mas não encontrou nenhuma resposta. — E quanto aos tanques de gás da cozinha? Fariam um buraco em qualquer coisa se explodissem.

— Você viu aquelas coisas — replicou Zê. — São fixas, presas com mais segurança que ouro em cofre de banco. Não conseguiríamos soltá--las, muito menos passar com elas pelo pátio.

Donovan não estava disposto a desistir:

— Vamos, vocês me deixaram todo animado com isso e agora estão me dizendo que é impossível? Isso é cruel.

— Ai, ai, ai — disse de repente. — Coitadinho de você. Já está se extinguindo aqui por meia década, Donovan. Por que não descobriu a própria saída? O que quer de mim?

Ele me encarou como se fosse me bater, depois baixou o rosto e se levantou.

— Espere, Donovan — murmurei às costas dele, mas não adiantou; ele já se afastava. O mundo havia desmoronado, e me sentia prestes a desabar com ele.

 


Depois de alguns dias passei a entender como as pessoas sobreviviam sabendo que nunca seriam libertadas. Apenas se desligavam; esqueciam que estavam vivas, que já haviam existido além das paredes avermelhadas de Furnace. Simplesmente se deslocavam de um lugar a outro, faziam o que lhes mandavam, comiam e dormiam, mas paravam de pensar em si mesmas como seres humanos. Éramos robôs, máquinas de aparência humana, mas estávamos mortos por dentro.

Por algum capricho do destino, foram Zê e Donovan que fizeram o máximo para manter viva a esperança de liberdade. Toda vez que os encontrava, contavam as ideias que haviam tido — tentar fundir a rocha com detergente de lavanderia, escavar o caminho do rio até a Sala Três, esfregar o corpo com gordura da cantina para poder passar pela fenda. Contentava-me em zombar do plano deles como haviam zombado do meu. A ideia da fuga agora me parecia digna de riso.

Mas devia haver uma parte de minha mente que ainda sonhava em escapar, porque a imagem do rio nunca me abandonou de fato. Via-me pensando a respeito enquanto trabalhava, quando a mente consciente estava engajada em escavar, alvejar na lavanderia ou limpar a sujeira das privadas. De repente me dei conta de que experimentava cenários diferentes na cabeça, testando planos de fuga sem sequer entender o que fazia.

Tentei deter as imagens, porque pareciam muito dolorosas — era uma tortura desejar algo que jamais poderia ter. Mas elas não iam embora. Meu corpo e minha mente estavam encarcerados em Furnace, mas minha alma, ou minha imaginação, ou o que quer que fosse, não descansaria até que pudesse respirar o ar da superfície.

Uma semana se passou desde que Zê e eu havíamos entrado na Sala Dois, uma semana em que mal troquei algumas palavras, em que nem sequer mantive contato visual com alguém. Donovan e Zê começaram a passar mais tempo sozinhos sem mim, lançando-me olhares cautelosos quando me aproximava. Não os culpava. Era um reflexo do meu interior, e meus olhos sem vida eram assombrados por algo que assustava meus amigos — como se minha resignação fosse uma praga contagiosa.

Duas semanas se passaram, outra visita da vigília sangrenta, cinco outros garotos arrastados para a abóbada, as veias pulsando escuridão e morte. Não assisti; me limitei a permanecer deitado e acordado na cama, por um lado esperando que não me levassem, por outro que o fizessem. Qualquer coisa para quebrar a monotonia. Nenhum deles retornou dessa vez, e não houve mais sinal da criatura que um dia fora Monty.

Aquilo continuaria assim para sempre, uma eternidade de desesperança e infelicidade, exceto por um instante de loucura. Um momento singelo e insano na cozinha da cantina.

 


Donovan e eu estávamos na sala do cocho, os dois trabalhando no processador, misturando o lixo para colocar nas refeições. Havia quase dois dias não trocávamos sequer uma palavra, e eu não planejava fazer nada para mudar isso. Donovan, no entanto, tinha outras ideias.

— Lembra-se daquele dia? — perguntou ele, a voz soando tão pouco familiar que me surpreendeu. Não respondi, sequer olhei para cima, mas ele continuou: — O grande almoço de Monty? Cara, queria que ele ainda estivesse aqui. Aquilo é que era uma gororoba gostosa.

Não suportava pensar naquilo e, por isso, enquanto ele falava, me agachei para acender o fogão. De repente, senti uma mão no ombro me puxando para cima.

— Que diabos aconteceu com você, Alex? — perguntou Donovan, agarrando meu macacão como se temesse que eu pudesse sair dele. — Achei que tivesse dito que jamais deixaria este lugar vencê--lo. Você era um hálito de ar fresco aqui, cara. Até pouco tempo atrás, cheguei a pensar que conseguiria, que sairia daqui.

Eu me desvencilhei com tanta força de Donovan que a luva de borracha dele se soltou, acomodando-se sozinha sobre meu ombro. Agarrando-a, atirei-a sobre ele em resposta, agachando-me de novo para acender o gás. Com um murmúrio zangado, ele começou a alimentar os bicos, e me apressei a pegar os acendedores, batendo a cabeça no balcão ao me levantar.

— Você simplesmente desistiu — soltou ele. Estava furioso. Conseguia perceber pelas manchas de saliva que se amontoavam nos cantos de sua boca. — Talentoso, mas sem coragem. Covarde como uma galinha. — Ele se inclinou sob o balcão e pegou um punhado de carne branca rançosa. — É, é isto que você é, Sawyer: uma galinha. Processada, morta.

Ignorei-o, levando o acendedor ao bico de gás e o acendendo. Ouvi um som baixo e me virei para ver Donovan enchendo a luva de carne úmida, a face retorcida em algum estranho delírio. Estava prestes a romper meu silêncio para lhe perguntar que diabos fazia, quando ele jogou a mão para trás e atirou aquele míssil nojento em minha direção. Àquela distância, não poderia errar, e a luva recheada me atingiu direto no rosto, fios de gordura de galinha grudados agora em meus lábios.

Recuei, esfregando o rosto com nojo.

— Credo — foi tudo o que pude dizer. A luva havia caído no bico de gás, mas peguei-a para arremessá-la de volta sobre Donovan, sentindo a carne de dentro macia e fria contra meus dedos. Mas algo me deteve, um lampejo no fundo da mente que foi suficientemente brilhante para acabar com as sombras da última quinzena.

Virei para Donovan, sentindo a pele formigar e enrijecer, sentindo o sangue se fundir de novo à adrenalina. Ele reconheceu a expressão imediatamente e sorriu:

— O que foi? — perguntou. — O que o trouxe de volta?

— Isto — respondi, e levantei a luva gotejante.

— Planeja abrir caminho com uma luva de borracha cheia de carne? — ele indagou, arqueando uma das sobrancelhas.

— Não exatamente.

Peguei o acendedor de novo e coloquei-o no bico de gás, observando o ar ao redor explodir ao acender. Então imaginei a fenda na rocha que conduzia ao rio e a vi repleta de luvas de borracha como essa.

Só que não cheias de carne, mas de gás.


SUICIDAS

 


— Oh, meu Deus! — exclamou Donovan quando sussurrei a ideia em seu ouvido. — É genial! Por que diabos não pensei nisso?

— Pensou, sim — respondi, remexendo sob o balcão e pegando uma caixa de luvas de borracha. Havia cem pares em cada caixa, mais que o suficiente para o que tínhamos em mente. — Se não tivesse me atirado aquele míssil de carne, jamais teria tido essa ideia.

Donovan coçou a cabeça e me olhou com uma expressão reflexiva:

— Bem, sinto muito. Perdi a cabeça. Por falar nisso, ainda tem um pouco... — Ele apontou para o meu rosto, guiando-me para um pequeno fio de tendão de galinha que havia secado sobre o lábio superior. Eu o tirei e pisquei para ele.

— Então, como vamos fazer isso? — ele perguntou, tirando pedaços de carne do macacão. — Quero dizer, vai ser difícil roubar as luvas; daqui vamos direto para o chuveiro.

— Mas não estamos sob guarda aqui — repliquei, tirando uma luva da caixa e soprando dentro dela. Ela se expandiu como uma teta de vaca, depois murchou com um som de peido. — Nunca vi os ternos--pretos nos observando para se certificarem de que tomamos banho depois de um trabalho pesado. E este trabalho não é como escavar; não há pedras pontiagudas ou equipamento de mineração para roubar.

— Suponho que não estejam com medo de alguém ser furado com uma cenoura — replicou Donovan. — Está certo; roubamos o gás e o escondemos na cela. Depois o levamos conosco para a escavação.

Concordei com a cabeça.

— O único problema será entrar na Sala Dois — falei. — Toda vez que entramos lá estamos arriscando a vida. E basta sermos pegos uma vez para que saibam o que estamos fazendo.

— E há um número limitado de vezes em que posso ameaçar derrubar o teto antes que os guardas fiquem desconfiados.

Passei os olhos pela sala, examinando-a para me certificar de que ninguém olhava, então soprei forte para apagar a chama do bico de gás. Colocando a abertura da luva em torno da saída do gás, observei-a se expandir, o corpo principal inchando primeiro antes de cada um dos cinco dedos se estender como uma mão se abrindo. Quando parecia pronta para explodir, tirei-a e dei um nó na base, em seguida levantei-a em triunfo.

— Alex — disse Donovan ao colocar a própria luva em torno do bico de gás —, acho que amo você.

Eu ri, enfiando o balão improvisado dentro do macacão. Pela primeira vez fui grato pelos uniformes folgados da prisão — a luva me fazia parecer ter ganhado um pouco de peso, mas nada muito óbvio. Donovan tirou sua luva do bico de gás e tentou dar um nó, mas ela estava muito cheia. Com um ruído áspero, ela emitiu gás em seu rosto, esvaziando um pouco antes que ele conseguisse segurar a abertura. Tossindo, Donovan ergueu a luva, vacilante.

— Não está ruim — comentei. — Mas, por favor, não se mate.

— De quantas acha que vamos precisar? — perguntou ele, enfiando a primeira dentro do macacão e colocando a segunda em volta do bico de gás.

— Provavelmente dezenas — respondi. — Mas não podemos pegar mais de três ou quatro de cada vez sem parecermos bonecos infláveis. Não podemos arriscar.

— Quatro de cada vez. Você, eu e Zê. Podemos fazer isto em algumas semanas se os turnos do trabalho pesado estiverem certos.

— Um mês no máximo — repliquei, tentando fazer o cálculo de cabeça. Donovan suspirou alto enquanto tirava outra luva estufada do bico de gás.

— Um mês é um tempo longo em Furnace quando se tem um segredo como este — ele disse, melhorando o trabalho no próximo nó. — Acha mesmo que podemos fazer isso?

Coloquei outra luva sobre o bico do gás e refleti sobre as últimas duas semanas, minha depressão sem fim, a impressão de total inutilidade. Mas as sensações de desgosto haviam desaparecido, como se minha mente só aguardasse o momento certo para se fechar e dar um fim nelas para sempre.

— Sim — repliquei, parecendo sorrir pela primeira vez na vida. — Acho mesmo.

 


Estávamos tão cheios de esperança que quase nos esquecemos completamente do cocho. Quando a sirene do almoço tocou só havíamos feito alguns lotes de comida e fomos obrigados a servir gororoba crua aos detentos. Pelos sons que ouvimos, houve queixas violentas, mas foram dirigidas aos infelizes que serviam, não a nós.

Quase constatamos da pior maneira quanto nosso plano era perigoso. Ao encher o macacão com gás inflamável, acendemos outra vez o bico de gás e por pouco não explodimos em pedacinhos como fogos de artifício. Da próxima vez, teríamos de encher as luvas no fim do trabalho, não no início.

Sair da cantina e ir para a sala do cocho foi a parte mais aterrorizante da operação. Tinha a sensação de que as bolas de gás pressionadas entre a pele e as roupas eram visíveis até aos mais míopes em Furnace e, quando cruzamos o pátio rumo à escada, comecei a entrar em pânico, achando que um guarda ou delator nos descobriria a qualquer momento. Mas Donovan me conduzia com uma mão firme em minhas costas, e conseguimos chegar à cela sem incidentes.

Escondi as luvas sob o colchão, nos pés da cama, enquanto Donovan ficava de guarda. Não me sentia muito feliz diante da ideia de explodir em chamas no meio da noite, mas não havia escolha. Era ali ou na cisterna da privada, e o pensamento de uma explosão ao defecar era infinitamente pior.

Quando as bombas em miniatura estavam em segurança, saímos para procurar Zê, encontrando-o na plataforma do nível três. Tinha o rosto vermelho e suado, com uma queimadura de aparência repugnante no pescoço.

— Gary — Zê sussurrou como explicação. — Fui para a lavanderia com ele hoje. Queria que eu fizesse sua parte enquanto cochilava em cima das roupas limpas. Não vou lhe dizer não de novo; é um psicopata.

— Bem, conseguimos algo que vai animá-lo — falei.

— Deve ser algo grande se tirou você daquele mau humor dos diabos — foi a resposta. Dei-lhe um tabefe leve na orelha, e depois começamos a andar, esperando até estar em segurança antes de colocá-lo a par do plano. Zê praticamente se pôs a dançar, tal foi sua excitação.

— Minha mãe do céu — exclamou, agarrando com força o próprio cabelo. — Vocês são dois malucos geniais. As luvas, é claro!

Cobri a boca de Zê com uma das mãos, e Donovan levou um dedo aos lábios.

— Não quer que a prisão inteira saiba, quer? — perguntou ele.

— Aliás, esse ponto é essencial — continuei a sussurrar para Zê, inclinando-me. — Para o plano funcionar, não podemos contar a ninguém. Tem de ser apenas nós três, só nós. Confio em vocês, rapazes, sem dúvida, mas não confiaria em mais ninguém aqui. Uma palavra para qualquer um, e está tudo acabado; terminamos no buraco ou viramos cocô de algum cachorro monstruoso.

— Pode confiar, chefe — falou Donovan, estendendo a mão com a palma virada para baixo. Zê acenou com a cabeça e colocou a mão sobre a de Donovan.

— Parecemos os Três Mosqueteiros — comentei, acrescentando a minha à pilha de mãos.

Zê riu:

— Todos por um, e para fora deste inferno — exclamou.

Sei que foi apenas imaginação, mas poderia jurar que houve algum tipo de impulso elétrico percorrendo nossos dedos unidos. Talvez fizesse muito tempo desde que havia segurado a mão de outra pessoa; muito tempo desde que tinha sentido o contato de alguém. Mas senti uma força a nos unir naquele momento, um vínculo de confiança, amizade e esperança.

Suponho que por esse motivo tenha sido enorme a surpresa quando, de nós três, fui o primeiro a romper o juramento.

 


Foi quando descíamos para o pátio que ouvi alguém gritando, apontando para as plataformas acima. Olhei para as sombras dos andares superiores e examinei células e corredores. De início não consegui perceber o que havia causado tanta agitação, mas então os localizei: dois corpos pendurados nas grades de proteção do oitavo nível.

— Suicidas — declarou Donovan. — Se eu fosse vocês, não olharia.

Havia três ternos-pretos no pátio, mas nenhum se moveu. Apenas olharam os dois garotos lá em cima como se assistissem a um filme, as risadas altas audíveis até mesmo de onde eu estava. Os prisioneiros ao redor de nós pareciam igualmente apáticos, gritando e zombando enquanto fugiam do lugar onde os garotos cairiam caso se soltassem das grades.

— Por que ninguém faz nada para detê-los? — perguntei.

— O quê, por exemplo? — quis saber Donovan. — Colocar uma rede de segurança? É a escolha deles, deixe que caiam.

— Não — murmurei; depois, sem me dar conta do que fazia, tornei a subir a escada. Venci o primeiro lance de três em três degraus, seguindo com tanta rapidez que quase caí. Consegui subir o segundo e o terceiro lances em segundos; no sexto nível estava sem fôlego e quase não consegui chegar ao oitavo, tropeçando no último degrau e me estatelando no chão.

Levantei, respirando desesperadamente em busca de ar. As luzes de lá estavam apagadas; as celas, desocupadas e trancadas. Mas pela luz fraca que vinha do pátio vi as duas figuras pálidas a mais ou menos vinte metros de distância da plataforma. Encontravam-se do outro lado das grades de proteção, apenas com os dedos trêmulos impedindo-os de cair no vazio.

Os dois garotos me olhavam com nervosismo, e pude enfim ver de quem se tratava. Eram os novatos, Toby e Ashley.

Andei devagar até eles, as mãos erguidas para mostrar que não pretendia fazer nenhum mal. Ashley arrastou os pés no peitoril, pronto para saltar a qualquer momento. Toby parecia um pouco mais seguro, os olhos fixos nos meus, implorando por ajuda. Ouvi passos atrás de mim e soube que Donovan e Zê haviam me seguido.

— Toby, certo? — perguntei. — E Ashley?

O primeiro garoto fez que sim com a cabeça; o outro, o maior dos dois, visualizava o local de aterrissagem oito andares abaixo. Parei de andar quando estava à distância de um braço deles, e percebi que não fazia ideia do que dizer.

— Não pule — foi a primeira coisa que saiu de minha boca. Que ajuda fenomenal aquela... Devia ter seguido a carreira de samaritano. — Sei que é ruim lá embaixo, mas não precisam fazer isso. Há pessoas que cuidarão de vocês; é possível sobreviver aqui.

Estendi o braço na direção de Toby, mas o encolhi com rapidez quando Ashley passou a gritar comigo:

— Não vamos sobreviver! Todos os dias é a mesma coisa: somos empurrados, socados e espancados! Alguns garotos chegaram a mijar na minha cama outro dia.

Eu ri, o que só pareceu irritá-lo mais.

— Não — apressei-me em explicar —, isso aconteceu comigo também, não muito depois de chegar aqui. Provavelmente acontece com todos.

— Nem sequer o matei! — gritou o garoto. — Não devia estar aqui.

Ele se inclinou para trás, os braços tensionados pelo próprio peso. Donovan e Zê correram para o meu lado, prontos para agarrar os garotos caso pulassem.

— Vamos, Toby — pediu Ashley. — Vamos acabar logo com isso.

— Espere, Toby — falei, voltando a atenção para o garoto menor. Devia ter uns onze anos. Não se parecia em nada com o Toby que eu havia conhecido, mas, quando encarei os olhos tristes, enxerguei o mesmo menino, o amigo que desapontara e cuja morte eu causara. Parecia prestes a pular, e não o culpava. Vinha pensando a mesma coisa nos últimos dias, até aquela manhã.

Pensei em nosso plano, em nossa fuga. Pensei na promessa de mantê-lo em segredo. Pensei em meu amigo Toby, morto no chão de um estranho. Pensei nesse garoto, em como também logo estaria deitado no lago do próprio sangue. Não poderia deixar isso acontecer de novo, não quando havia uma chance de salvá-lo.

— Olhe, há uma saída — falei o mais baixo possível. Senti uma mão agarrar meu braço e me virei. Dei de cara com Donovan, os tendões do pescoço tensos de ansiedade.

— Não faça isso! — ele pediu. — Fizemos um trato. Uma palavra, lembra? E tudo pode ir por terra abaixo.

— Alguns — prossegui, ignorando-o — sabem como escapar.

Os dois garotos viraram a cabeça em minha direção.

— É mesmo? — perguntou Toby. Era a primeira vez que ouvia sua voz, uma cadência musical com um sotaque que não consegui definir. — Uma saída de Furnace?

— É mentira — cortou Ashley. — Ele vai nos atrair lá para baixo e vai nos matar, transformando-nos em uma daquelas coisas. Só há uma saída.

Estendi minha mão de novo e fiz um aceno de cabeça para Toby. Ele retribuiu o aceno, e seus olhos escuros de repente brilharam. Começou a voltar, mas Ashley afrouxou a pressão nas grades e agarrou a roupa de Toby.

— Não posso ir sozinho — resmungou e, com um ruído indefinido, mistura de grito e soluço, deixou o corpo pender. Toby se inclinou para o pátio, e me atirei em sua direção, agarrando a mão estendida um instante antes de ele cair. O peso dos dois garotos me arrastava para as grades de proteção, mas eu segurava firme, recusando-me a desistir.

A dor em meu braço era insuportável. Olhando para baixo, vi Toby segurando minha mão com toda a força que tinha. Pendurado à sua cintura estava Ashley, gemendo e puxando o outro para tentar soltar ambos. Lá embaixo, centenas de detentos observavam do pátio, torcendo para que todos caíssemos.

Gritei para Donovan e Zê me ajudarem, mas nenhum dos dois se moveu.

— Deixe os dois cair — sussurrou Donovan. — Sabem sobre o plano, podem arruinar tudo.

Gritei de dor. Zê veio em minha direção, mas Donovan o deteve.

— Estou lhe dizendo, Alex, deixe esses dois. Não sabemos nada sobre esses garotos.

— Pode confiar nele — falei com os dentes cerrados. — Aposto minha vida nisso. Pode confiar em Toby. Agora, ajude-me!

— Está apostando nossa vida também — respondeu Donovan. Em seguida, ambos correram até nós, Zê me agarrando, e Donovan agarrando o braço de Toby. Todos puxamos juntos e conseguimos erguê-los um pouco. Mas Ashley continuava tentando se atirar. Se não conseguíssemos nos livrar dele, cairíamos.

— Você o pegou? — perguntei. Zê lançou os braços sobre as grades e agarrou o pulso de Toby. Soltei o garoto e me inclinei atrás de Donovan para ter melhor visão de Ashley.

— Solte-o — falei, mas ele não dava sinais de ter me ouvido. — Eu disse para soltá-lo.

Ashley me olhou com uma raiva incontida, depois redobrou esforços para puxar Toby.

— Não posso morrer sozinho! — berrou.

— Rápido — murmurou Zê. — Não consigo segurar por muito mais tempo.

— Última chance — avisei, inclinando-me sobre as grades de proteção, o punho cerrado. Ashley cuspiu em mim, a gosma fazendo um arco e aterrissando de volta no próprio queixo. Ele se agitou, um brilho selvagem no olhar, e soube que não havia escolha. Parti para o ataque, meu punho atingindo seu rosto. A cabeça dele estalou para trás, e o braço deslizou. Dei-lhe outro soco, e dessa vez ele se soltou, parecendo cair em câmera lenta como se seu grito interminável fosse um paraquedas.

Afastei-me das grades antes de ele atingir o pátio, caindo contra a parede. Enquanto isso, Donovan e Zê puxavam Toby para o corredor. Ficamos sentados em silêncio durante algum tempo, tentando entender o que havia acabado de acontecer, e então Donovan me lançou um olhar frio:

— Espero que esteja feliz — disse ele.

Mas como poderia estar? No espaço de cinco minutos havia quebrado minha promessa e nos colocado todos em perigo. E, o pior de tudo, acabara de me tornar um assassino de verdade.


A MÃO VERMELHA

 


Fomos saudados na descida pelo som de uma centena de vozes nos aclamando e gritando, incitando-nos a pular também. Era doentia a maneira como os prisioneiros e os guardas encaravam os momentos finais de Ashley como diversão, um espetáculo para animar o dia deles. Ashley estava vivo; não merecia esse destino, ainda que o tivesse escolhido.

— Diga uma palavra só a respeito disso para quem quer que seja, garoto, e eu te mato — ameaçou Donovan pela quarta vez quando atingimos nosso nível. — Não estou brincando.

Ele e Zê foram em frente, desaparecendo cela adentro. Parei de andar e me virei para Toby. O garoto não chorava, mas suas entranhas pareciam ter saltado do interior, deixando uma casca branca e trêmula à beira de um colapso.

— Ignore-o — falei. — O plano é meu, e você é parte dele agora. Mas realmente não pode dizer nada, não se quiser sair daqui.

— Juro — ele disse. — Não vou dizer nada, juro.

Caminhamos para a cela. Donovan estava deitado no beliche de cima, espumando de raiva em silêncio, e Zê sentara-se aos pés da minha cama.

— Não me sentaria aí se fosse você — falei.

Os olhos dele se esbugalharam, e ele deu um salto, olhando para a área que ocultava as luvas explosivas. Deu um sorrisinho nervoso, depois se virou para Toby.

— Mais mãos significa executar o plano mais depressa — comentou. — Certo?

— Não — respondeu Donovan sem levantar a cabeça. — Não vamos lhe dizer o que estamos fazendo. Ele pode vir conosco no dia, mas, quanto menos souber, menos poderá revelar.

— Não vou dizer nada — prometeu Toby. — Só quero sair daqui. Juro, minha boca é um túmulo. Eu posso ajudar.

Donovan se limitou a bufar.

— Zê está certo — concordei. — Quanto mais mãos, mais rápido poderemos sair.

— Bem, então por que não falamos para todo mundo? — soltou Donovan. Eu o ignorei, verificando se não havia ninguém fora da cela antes de colocar Toby a par dos detalhes do plano. Quando terminei, ele sorria de orelha a orelha.

— Vocês são loucos — disse por fim.

— Bem-vindo ao clube.

 


Meus sonhos naquela noite foram ruins como sempre. Estava de volta à prisão de vidro, só que dessa vez não era para minha casa que eu olhava, e sim a de um estranho. Os ternos-pretos puxavam alguém que gritava, uma figura que reconheci como Ashley, atirando--o na cela comigo. Em vez de socar o vidro, me vi golpeando o rosto do garoto, ignorando seus soluços e apelos, enquanto a pele dele se rasgava. Por fim, Ashley ficou reduzido a milhares de pedaços, e, sob eles, no chão de vidro, vi meu reflexo, todo olhos ávidos e máscara enferrujada.

Acordei com um grito e me vi enclausurado em uma escuridão que era quase palpável. Tremendo, engatinhei da cama à porta da cela e me deitei no chão de pedra, olhando a escuridão do pátio lá embaixo, o logotipo giratório de Furnace parecendo um farol na noite. Não me lembro de ter adormecido de novo, mas devo ter pegado no sono, porque acordei quando a sirene tocou, o corpo todo doendo devido ao chão duro.

Quando as portas gradeadas se abriram, Donovan correu para o pátio a fim de ver a lista de tarefas, depois subiu com rapidez.

— Você e eu estamos na lavanderia — avisou, obviamente desapontado. — Zê está na escavação, Toby na cozinha, mas não acho que ele deva fazer nada.

— Eu consigo — veio uma voz da porta da cela. Era Toby, e atrás dele estava Zê. — Digam-me apenas o que tenho de fazer.

Expliquei a Toby como encher as luvas, enquanto Donovan ajudava Zê a ocultar os balões sob o macacão. Conseguimos enfiar cinco sem que ele parecesse ridículo.

— Estou contente por ser proibido fumar aqui em Furnace.

Ele sorriu, dando uma volta para exibir as novas curvas.

No caminho para o café da manhã, fizemos um plano de apenas jogar as luvas pelas frestas da madeira dentro do túnel que conduzia à Sala Dois. Quando tivéssemos oportunidade, entraríamos lá e carregaríamos a pilha até a fenda no chão. Executar o plano dessa maneira era muito menos arriscado que entrar no túnel todos os dias, e, enquanto as luvas estivessem fora do campo de visão, era improvável que fossem encontradas. Donovan não estava muito entusiasmado com a ideia, mas apenas porque havia sido sugestão de Toby. Fosse como fosse, perdeu na votação.

— Ótimo — murmurou ele enquanto se sentava com seu café da manhã. — Agora somos uma democracia.

Dividimo-nos depois de sair da sala do cocho, desejando boa sorte um ao outro. Donovan e eu não trocamos mais que algumas palavras enquanto alvejávamos e lavávamos os lençóis, ansiosos demais em relação ao plano. Havia tantas coisas que poderiam dar errado — Toby podia ser surpreendido enchendo as luvas, Zê podia ser visto empurrando-as no túnel através das tábuas, um de nós podia explodir enquanto andava pelo pátio, e, é claro, alguém podia simplesmente estragar tudo e revelar o segredo. Cada um desses cenários foi repassado em nossa mente um milhão de vezes naquela manhã.

Após o banho, praticamente voamos para a cela e encontramos Toby sentado no beliche de baixo, pálido, mas contente. Certificando--se de que estávamos sozinhos, ele ergueu o colchão e exibiu com orgulho oito luvas novas, todas cheias de gás.

— Caramba — falei. — Como você conseguiu tantas?

— Há algumas vantagens em ser tão magro — ele replicou, puxando o macacão para mostrar como era folgado. — Dá para colocar um elefante aqui dentro, e ainda haverá espaço para mim.

Donovan fez algum comentário sobre ele não exagerar, mas era evidente que havia ficado impressionado. Alguns minutos depois Zê irrompeu cela adentro, parecendo também satisfeito consigo.

— Fantástico. Uma moleza — disse. — Foi só colocá-las através das tábuas quando o guarda fazia a ronda. Chequei, é tão escuro ali que não se consegue enxergar nada. Ninguém vai descobrir as luvas, a menos que esteja procurando por elas.

Senti parte da ansiedade me abandonar — como se um pouquinho da nuvem negra que havia obscurecido meus pensamentos durante tanto tempo se fragmentasse agora e desaparecesse. Toda aquela coisa parecia um sonho, mas era real — o plano estava realmente funcionando.

No resto do dia perambulamos com impaciência pela prisão, sonhando em silêncio com o que faríamos se conseguíssemos chegar à superfície. Para os outros garotos, devíamos parecer uns tontos, e várias vezes tivemos que advertir um ao outro para não sorrir tanto, com medo de alguém desconfiar.

Os dias corriam na mesma monotonia, mas pela primeira vez desde que chegara a Furnace aguardava ansioso pelo trabalho pesado da manhã. Sempre acordava antes da sirene e era o primeiro a descer para o pátio. No terceiro dia do plano, Donovan e eu conseguimos roubar da cozinha um total de nove luvas cheias de gás, enquanto Toby enfiou mais delas no túnel, e um Zê furioso esfregou privadas. No quarto dia fomos todos selecionados para a tarefa do cocho, e meu colchão estava quase caindo da cama com o número enorme de balões improvisados debaixo dele. No quinto dia, Toby dobrou Donovan ao enfiar dez luvas no macacão e de algum modo conseguir chegar bamboleando até o túnel sem ser visto.

A cada dia, a pilha de luvas aumentava, e nos tornávamos mais confiantes. Os ternos-pretos às vezes nos dirigiam um sorriso maldoso, mas nunca nos detiveram nem nos revistaram. As luvas eram bem discretas, praticamente invisíveis, a menos que se soubesse onde procurá-las.

Depois de mais dez dias tomamos a decisão de começar a transferir as luvas do túnel para a fenda. Donovan e eu éramos os únicos na tarefa da escavação, mas ficamos tão acostumados com o movimento do guarda durante o trabalho pesado que nenhum de nós estava preocupado. Bem, é mentira — estávamos sempre preocupados, só que não mais que o usual.

Seguimos a rotina, posicionando-nos ao lado da porta que dava para a Sala Três e esperando o terno-preto iniciar sua ronda. Assim que a sombra dele desapareceu, corremos para o canto, puxando a tábua solta da parede e nos enfiando lá dentro. À frente, parecendo sacos bulbosos de ovos de inseto na luz mortiça da sala de equipamento, estavam as luvas. Havia mais do que me lembrava.

— Hum, por acaso não trouxe um saco de lona com você, não é? — perguntei a Donovan com um sussurro.

— Deixei minha mala na cela.

Praguejei baixinho, imaginando quantas viagens teriam de ser feitas para levar as luvas até o fundo da caverna. Foi quando percebi que Donovan tirava o macacão.

— Há alguma coisa que queira me dizer? — perguntei, um pouco preocupado com o garoto de pé diante de mim em cuecas de prisão.

— Bem, lembra que disse que amava você? — ele murmurou, rindo baixinho. — Não, seu idiota, podemos usá-los para transportar as luvas.

Ele amarrou as extremidades das duas pernas, depois começou a colocar na abertura as bolas cheias de gás. Após algum tempo, olhou para mim e apontou para minhas roupas.

— Vamos, não seja tímido.

Tirei o macacão, amarrando as pernas e pegando um par de luvas pelos dedos. Conseguia sentir o cheiro de gás, mas todas pareciam intactas e felizmente assim permaneceram quando as enfiei na sacola improvisada. Terminando de juntar algumas luvas soltas que haviam rolado para o outro canto do túnel, contei 33, e Donovan, 28.

— Vamos, caro Watson — sussurrou ele, colocando o macacão estufado sobre o ombro.

Entramos no túnel, tomando um cuidado extra para não tropeçar. Quando a sala de equipamento ficou fora do campo de visão, acendemos a lâmpada do capacete e nos dirigimos para onde eu pensava ser o caminho certo. Minha memória podia não ser ótima, mas era impossível ignorar o ar congelante contra minha pele, e os arrepios fizeram um ótimo trabalho na localização da fenda. Ficamos acima dela por um momento, saboreando o estrondo do rio e o cheiro do ar.

— Aposto que não esperava por isto — Donovan sussurrou, olhando para a fenda como se conseguisse ver outra vida através dela.

Coloquei meu macacão sobre a rocha, depois fiquei de joelhos. Tirando uma luva, enfiei-a suavemente na fenda até que ficasse completamente abaixo da superfície, encaixada com perfeição entre os dois lados. Donovan seguiu meus movimentos, colocando sua leva também.

— Limite-se a uma pequena área — instruí. — Não precisamos explodir a coisa toda, apenas um buraco suficientemente grande para todos passarmos por ele.

Não demoramos mais de cinco minutos para terminar de colocar as luvas em uma parte da fenda de mais ou menos três metros de largura, dispondo-as de forma a ficarem a uma profundidade de um metro e meio a um e oitenta.

— Acha que é suficiente? — perguntou Donovan.

Concordei com a cabeça:

— Mais um lote como este deve bastar. Aí estaremos prontos para explodir.

— O que me faz lembrar... — ele prosseguiu, virando-se e me cegando com sua lâmpada. — Como exatamente vamos detonar isso aqui? Quero dizer, tenho certeza de que você não quer explodir tudo com aquele acendedor fraco da cozinha. Sou bastante apegado aos meus belos braços e quero que permaneçam onde estão.

Desamarrei as pernas do macacão e tornei a vesti-lo sem responder. Para ser honesto, essa parte do plano ainda não havia me ocorrido.

— Pensaremos em alguma coisa, D — afirmei enquanto tomávamos o caminho de volta. — É o que sempre fazemos.

O terno-preto tinha retornado ao seu posto quando voltamos ao túnel, e o observamos a distância até que se dirigiu à Sala Um. Espremendo-nos sob a tábua solta, voltamos para a Sala Três e começamos a bater nas paredes com alegria, tentando ignorar as centelhas que atingiam os macacões cheirando a gás.

Estava tão excitado que só percebi as figuras que se aproximavam de mim quando era tarde demais. Senti uma mão agarrar meu pescoço, girar minha cabeça, depois outra me bater forte no rosto. Deixei cair a picareta e tombei para trás, só permanecendo de pé porque Donovan me segurou.

Quando minha visão clareou, vi Gary Owens de pé diante de mim, escoltado por dois Caveiras enraivecidos. Ergui a mão para tocar meu rosto latejante, e meus dedos ficaram vermelhos, embora de algum modo soubesse que o sangue não era meu.

— Mão vermelha — disse Gary, o rosto impassível como sempre. — Chegou a hora de lutar, homenzinho.

— O quê? — perguntei, verdadeiramente confuso. Gary deu um passo em minha direção e ergueu a mão direita, que estava manchada de sangue. Sabia que ela devia ter deixado uma marca em meu rosto.

— Está marcado com a mão vermelha, homenzinho. No ginásio, esta noite, meus garotos vão recebê-lo. — Ele se afastou, os prisioneiros se separando como o Mar Vermelho para deixá-lo passar. — Lute até a morte, homenzinho! — gritou ele por sobre o ombro quando voltou a seu posto. — É hora de morrer.


A ARENA

 


Fiquei em estado de choque durante o resto do trabalho pesado, batendo a picareta na parede sem perceber o que fazia, enquanto minha mente exausta tentava imaginar o que ia acontecer mais tarde naquele dia. Sabia tudo sobre o ginásio, sobre os corpos que arrastavam dali, os Caveiras e os Cinquenta e Nove sorrindo com os nós dos dedos sangrando e os sapatos manchados de sangue.

Não era um lutador. Iam me atirar aos lobos, e eu seria comido vivo. Por que agora? Duas semanas depois, e talvez estivesse fora dali, navegando em um rio para um destino diferente de Furnace. Em vez disso, seria abatido por um psicopata medonho com sede de sangue.

Enquanto trabalhávamos, Donovan tentou me ensinar tudo o que conhecia sobre autodefesa, instruindo-me para me concentrar em olhos e garganta, ou na virilha. Mas só o fato de pensar no assunto já me deixava enjoado. Confesso que enviara Ashley para a morte havia menos de uma semana, mas aquilo fora diferente. Tinha tirado uma vida para salvar outra, e não entrado em uma pancadaria ou algo assim. Contra os Caveiras, me dobraria como papel.

Nós nos encontramos com Zê e Toby no pátio. Ambos haviam sido escalados para o trabalho na cozinha e tinham roubado outra leva de luvas para levar à cela. Também estavam desesperados para saber como havia sido nosso desempenho naquela manhã. Só tiveram que perguntar uma vez antes de notar que algo estava errado.

— Perdemos, não foi? — arriscou Zê. — As luvas. Sei que foi isso.

— As luvas estão ótimas — respondeu Donovan. — Foram colocadas no lugar sem problemas.

— Bem, obviamente vocês não foram pegos — continuou Zê. — Que diabos aconteceu, então?

— Eles — disse Donovan, acenando com a cabeça na direção de um grupo de Caveiras que se dirigiam ao ginásio. — Desafiaram Alex para uma briga esta noite.

A expressão de Zê sofreu uma rápida metamorfose.

— Vão matá-lo! — falou. — Alex, você não pode fazer isso.

— Ele não tem escolha — continuou Donovan. — Vi isso acontecer um milhão de vezes. Se você não aparece quando foi marcado, vão até você e furam suas costas.

— Bem, então vamos escondê-lo.

— Onde? — perguntei. — Na cabana do jardim?

Seguramos a língua quando um terno-preto passou, os olhos brilhando com um sorriso maldoso, como se soubesse que eu estava frito.

— O que quer que aconteça — disse quando nos movemos —, o plano seguirá em frente. Mesmo que eu morra aqui, sabem o que fazer, certo?

Os três garotos pareciam relutantes, mas concordaram.

— Nunca se sabe — acrescentei. — Posso vencer.

Dessa vez, ninguém respondeu.

Tudo aconteceu muito depressa. Achei que o tempo ficaria mais lento, os segundos tão oprimidos pelo medo que cada um deles demoraria horas para passar. Mas num minuto estava sentado no pátio conversando com os garotos e, no outro, fui arrancado do assento e praticamente arrastado pelo chão de pedra ao ginásio. Lutei contra os dois Caveiras que me seguravam, mas eles nem se deram ao trabalho de se esquivar de meus golpes patéticos. Como seria na arena?

Ouvi uma voz familiar do meu lado e vi Donovan andando comigo, dizendo-me apenas para ir em frente. Atingimos a porta, guardada por um Caveira e por um Cinquenta e Nove, e fui atirado lá dentro, tropeçando nos próprios pés e aterrissando pesadamente no chão. Por um minuto, achei que impediriam Donovan de entrar, mas logo senti sua mão sob meu braço, me colocando de pé.

À minha frente estava o ginásio, que tinha mais ou menos a metade do tamanho da sala do cocho e estava repleto de equipamentos enferrujados — pesos, bancos, até uma bicicleta ergométrica de aparência envelhecida. O equipamento era disposto em círculo em torno de uma porção de piso desguarnecido que parecia ser de um tom avermelhado muito mais escuro que o do resto da sala.

O que mais me chocou na cena foi o número de pessoas agrupadas no pequeno espaço. A maioria tinha bandanas dos Caveiras ou rostos pintados e estava sentada no equipamento esperando o espetáculo começar. Outros não tinham marcas de gangue e se amontoavam nos fundos da sala, acotovelando-se para ter uma visão melhor. Devia haver umas cinquenta pessoas lá dentro, todas esperando para ver meu sangue ser derramado.

Localizei Gary quando ele saltou de um banco para o círculo, os braços levantados enquanto se dirigia à multidão.

— O rapazinho veio aqui nos mostrar como é durão — gritou ele, e depois se virou para mim: — Entre aqui.

— Olhos e garganta — sussurrou Donovan. — Não caia. Se ficar de pé, pode sair dessa.

Fácil falar, mas minhas pernas já se dobravam, prestes a desistir. Caminhei lentamente para a extremidade do círculo, tentando ignorar os assobios de todos os que me cercavam. Gary andou em minha direção até meus olhos ficarem na altura de seu peito. Inclinou a cabeça para mim, o bigodinho loiro e ralo trêmulo e coberto de saliva.

— Pobre rapazinho — falou. O rosto estava impassível, como sempre, mas quando o encarei vi algo se movendo ali, algo primitivo que girava e se precipitava na escuridão das pupilas. Ele se virou, dando as costas para a plateia. — Quem pediu este desafio?

Três Caveiras saltaram para dentro do círculo. Eu os reconheci imediatamente como aqueles com quem havia lutado na cantina, aqueles cujo amigo fora destroçado pelos cães do diretor. Por um segundo consegui ter um fio de esperança. Se fossem só esses três, talvez tivesse uma chance. Eu me sairia tão bem quanto da última vez em que os havia enfrentado.

— Ele é todo de vocês — disse Gary, começando a se afastar. Então, sem nenhum aviso, girou o corpo e me atingiu direto na mandíbula. Senti como se minha cabeça houvesse explodido. Fogos de artifício enevoaram minha visão quando caí para trás, o colorido dando lugar à sombra enquanto lutava para permanecer consciente. O golpe fora tão duro quanto o de um pesado martelo, e mal me lembrava de onde estava.

De algum modo consegui ficar de pé. Sacudi a cabeça, clareando a visão a tempo de ver Gary recuando para o limite do círculo. Os três Caveiras se moveram com rapidez para preencher o espaço, o primeiro correndo para mim com o punho levantado, pronto para golpear.

Recuei, os braços erguidos para bloquear o golpe, e, mais por sorte do que por qualquer outra coisa, consegui sair do caminho. O ímpeto do golpe perdido fez o Caveira passar por mim voando, direto para o meio da turba, que o virou e o empurrou de volta. O segundo brutamontes avançou, fingindo estar prestes a me dar um golpe no rosto, mas mudando o ângulo de ataque no último minuto e elevando o punho em direção ao estômago. Machucou, mas ele errou o alvo, e não sufoquei.

Estimulado pela adrenalina e pelo medo, ataquei, o punho acertando a lateral da cabeça do Caveira. Antes que ele pudesse se recuperar, bati de novo, dessa vez atingindo-o com mais firmeza. Não tenho certeza se foi a articulação do meu dedo ou o nariz dele que quebrou, mas ele cambaleou para trás, segurando o rosto. Ia terminar de derrubá-lo com um pontapé no estômago, mas, antes que pudesse fazê-lo, senti algo bater na parte inferior de minhas costas. Tentei me virar, mas a dor se repetiu quando um dos Caveiras passou a socar repetidamente meus rins.

Gritei, olhando para a multidão e vendo Donovan se aproximar. Mas os prisioneiros bloquearam seu caminho, um pedaço de madeira encostado em seu pescoço para garantir que não violaria as regras de ficar fora do círculo.

Virei um cotovelo, sem conseguir atingir meu atacante, mas obrigando-o a recuar. Só lutava havia alguns segundos, porém minha energia se esvaía, as pernas fraquejando. Soltei um berro, depois me atirei sobre o garoto, os braços girando como os de um bebê tendo um ataque. Ele ergueu as mãos para se defender, e aproveitei a oportunidade para lhe dar um forte pontapé entre as pernas. Um grito coletivo se ergueu da turba quando o garoto desmaiou.

Girando novamente o corpo, vi o último Caveira correr em minha direção. Parti com o punho para cima dele, mas ele foi rápido demais. Meu soco passou reto, e ele agarrou meu braço, torcendo-o até que eu me dobrasse ao meio. Vi uma sombra se aproximar por trás, o golpe quase esmagando minha espinha. As pernas cederam, e caí de joelhos. Outro golpe atingiu a parte posterior da minha cabeça, e caí para a frente.

Se não me levantasse, era um homem morto, mas, toda vez que tentava me erguer do chão, um pé me mandava de novo para baixo. Após algumas tentativas, desisti, encolhendo-me como um feto enquanto os pontapés choviam sobre mim. Cabeça, costas, estômago, peito, nada ficava fora de alcance. Eles atingiam todos os lugares, cada golpe enviando uma pontada de dor que atravessava meu corpo, até que ele me pareceu estar todo quebrado.

Achei que afundaria no chão, a escuridão tomando conta da minha visão. Ouvia as aclamações e os gritos como se atravessassem a tampa de um caixão — abafados, distantes e cada vez mais fracos. Arrisquei um último olhar para a arena, vendo Donovan através das pernas machucadas. Ele se movera em torno do círculo e implorava a Gary desesperadamente. O psicopata não o ouvia; não tirava os olhos de mim enquanto me aproximava cada vez mais da morte.

Então, como se tivesse sido picado, Gary girou a cabeça e encarou Donovan. Sabia o que meu amigo dissera, sabia o que estava fazendo e tentei fazê-lo parar, mas foi inútil. Mal conseguia respirar, muito menos gritar.

Observei Gary agarrar a garganta de Donovan e vi Donovan balançar a cabeça freneticamente. Então o Caveira pulou dentro do círculo e afastou meus atacantes de mim, empurrando-os para a multidão. Houve um coro de vaias vindas da plateia, que fora privada da sede de sangue, mas Gary não pareceu se importar. Inclinou-se e agarrou meu macacão empapado de sangue, puxando-me até seu rosto estar a menos de três centímetros do meu.

— Hoje é seu dia de sorte, homenzinho — sussurrou ao meu ouvido, confirmando meus piores temores. — Parece que estou pegando uma carona para fora deste lugar com você.


DE VOLTA AO TRABALHO

 


— O que mais eu poderia fazer?

Devia ser a décima vez que Donovan dizia isso, enquanto saíamos devagar do ginásio. Havia sido tão espancado e ferido que mal conseguia me levantar do chão. Donovan teve que me levantar e me arrastar da arena. Tentei colocar um pé adiante do outro, mas até o menor dos movimentos me fazia gritar de dor. Todas as minhas articulações pareciam estar cheias de areia, os ossos amarrados com arame farpado. Cuspi um bocado de sangue amargo e tentei lhe dizer que estava bem. O que saiu foi um gemido baixo.

— Não podia deixar que matassem você, cara — ele justificou, me ajudando a atravessar o pátio. Zê e Toby esperavam do lado da escada e correram quando nos viram, mas nenhum dos outros prisioneiros pareceu nem um pouco preocupado.

— Oh, não — comentou Zê quando nos alcançaram. — Isto é ele?

— É claro que é ele, seu idiota — disse Donovan. — Quem mais seria?

— É que... o rosto...

— O que há de errado com meu rosto? — tentei perguntar, mas tudo o que saiu foi outro gemido.

— Vamos levá-lo de volta à cela — sugeriu Toby. — Acha que consegue carregá-lo pela escada?

— Acham que conseguem ajudar?

Juntos eles me empurraram, me puxaram e me carregaram seis lances de escada acima. Algumas vezes se dobravam sob meu peso, e quase tombei sobre as grades de proteção. Nesses momentos, a agonia era tão grande que realmente não me importei. Deixem-me cair, deixem tudo isso acabar. Mas, alguns minutos mais tarde, estava na cama, tentando sem sucesso encontrar uma posição confortável para deitar, enquanto Donovan narrava minhas tentativas vergonhosas de me defender. Ele omitiu o trato que fizera com Gary, olhando-me nervoso ao lhes dizer que os Caveiras simplesmente tinham me deixado ir embora depois do espancamento.

— Teve sorte — comentou Zê, inclinado na cama perto de mim. Estendeu a mão como se fosse tocar meu rosto, mas depois a puxou. — Não parece, mas teve sorte.

Corri minha língua sobre os dentes. Um dos de baixo estava faltando. Pela maneira como meu rosto latejava, achei que aquela devia ser a última de minhas preocupações.

— Não tive sorte — falei, as palavras saindo como se mastigasse um monte de balas de caramelo. — Donovan me salvou.

— Donovan? — indagou Zê, olhando para o garoto maior que estava de pé ao lado da porta da cela, observando o pátio.

— Ele salvou minha vida — continuei.

— Ótimo, garotão — aprovou Zê. — Foi lá e lhes mostrou quem é o chefe?

Houve um momento de silêncio desconfortável, e então Donovan virou o corpo e nos encarou.

— O que mais eu poderia fazer? — gritou. — Deixá-lo morrer?

— Uau — desculpou-se Zê —, não estou culpando você. Teria feito a mesma coisa se meus braços fossem grandes como os seus.

— Ele não lutou — expliquei. — Fez um trato.

— Um trato? — Tanto Zê quanto Toby pareciam preocupados. — Que tipo de trato?

— Arranjamos outro passageiro — gaguejei. — Gary.

— De jeito nenhum — explodiu Zê. — De jeito nenhum, Donovan. Você contou a ele?

— Era isso, ou Alex morreria — replicou Donovan. — Qual das alternativas você prefere?

— Bem, o que... o que quero dizer é que todos conseguimos mais um passageiro...

— Zê — falei —, tudo bem. Significa apenas mais uma pessoa. Donovan fez a coisa certa.

— Mas Gary é um psicopata; ele vai contar a todos os Caveiras, e depois não teremos como sair. Vamos todos para o buraco. Ou isso, ou vai furar nossos olhos apenas para sair primeiro. Foi uma má ideia. Tudo isso é uma má ideia.

Donovan bateu as mãos nas grades e saiu furioso da cela, desaparecendo corredor afora.

— Pare com isso, Zê — murmurei através dos lábios inchados. — Ele fez a coisa certa.

Zê apenas bufou, mas sua expressão era de medo. Se eu conseguisse articular alguma parte do rosto, ele provavelmente teria refletido o mesmo. A ideia de ter Gary a bordo era aterrorizante. Na verdade, era provável que pulasse em nosso pescoço se achasse que poderia sair sozinho. Droga, ele acabaria com a gente, mesmo que conseguíssemos sair em segurança, só por diversão. Mas não podia me queixar. A outra opção era ter minhas entranhas espalhadas pelo chão do ginásio.

— Tudo vai dar certo — eu disse. Mas não tinha muita certeza disso.

 


Passei o resto do dia entre acordado e dormindo, com sonhos intermináveis de estar sendo espancado a ponto de desmaiar. Toda vez que acordava, achava que a dor havia sido parte do pesadelo, até tentar me mover.

Donovan só retornou quando a sirene da noite tocou. Não lhe perguntei onde estivera, mas ele pediu desculpas por sair da cela daquele jeito e me garantiu que não havia contado nada a Gary sobre a fuga, exceto o fato de que aconteceria logo.

Fui para o trabalho pesado na manhã seguinte, embora achasse que ia morrer. Não tinha escolha — qualquer um ferido demais para trabalhar era arrastado pela porta da abóbada até a enfermaria, um lugar do qual poucos retornavam. Felizmente, estávamos no cocho, e Donovan me sentou no canto, feliz em fazer minha tarefa e a dele. Apesar de minha pele estar roxa e insuportavelmente sensível ao toque, ainda consegui colocar algumas luvas cheias de gás contra ela. Donovan conseguiu esconder oito, e voltamos à rotina.

Foi nessa manhã que Donovan teve uma ideia luminosa sobre como detonar a explosão. Ele passou uma hora tentando desatarraxar a extremidade de um dos gigantescos acendedores do fogão, drenando o fluido para dentro de uma luva e enchendo-a com o barbante de uma das caixas. Também pegou a pedra solta de um dos acendedores.

— Algo que vai servir para detonar a explosão — falou.

— Maravilha — concordei com um murmúrio fraco, e ele guardou o detonador dentro do macacão.

Não tivemos muitos problemas com Gary naqueles dias. De vez em quando o víamos no pátio, e ele nos seguia com seus olhos de inseto, mas foi só quatro dias depois da luta que ele se aproximou quando estávamos sentados na sala do cocho.

— É melhor não irem a lugar nenhum sem mim — disse, inclinando-se sobre a mesa.

— Assim que soubermos quando vai acontecer, lhe diremos — repliquei. — Tem minha palavra.

Ele se limitou a me encarar por alguns segundos, até que senti meu sangue prestes a coagular, e então se afastou. Lançou outro comentário para nós sobre o ombro ao sair, suficientemente alto para a maioria das pessoas ouvir:

— Vou matar vocês se tentarem sair sem mim.

— Ele vai arruinar tudo — falou Zê quando Gary deixou a sala. — Metade das pessoas aqui deve ter ouvido o que ele disse.

Se ouviram, não demonstraram sinal de ter entendido. Para a maioria, a ideia de fugir de Furnace era tão impensável, tão impossível que provavelmente a teriam rejeitado mesmo que houvesse um buraco na parede e uma escada com a tabuleta Estrada para a liberdade.

— Relaxe, Zê — retruquei. — São só mais alguns dias.

 


Foram oito, para ser mais exato. Oito dias temendo que tudo desse terrivelmente errado. Oito dias de pânico de sermos surpreendidos, torturados e depois executados da maneira mais violenta possível. Mas também oito dias de esperança de que conseguíssemos nos livrar daquela prisão; de que pudéssemos voltar a ver a luz do sol.

Durante a semana seguinte, foi a esperança que nos animou. Embora estivesse exausto e ainda não totalmente recuperado do espancamento, era o cheiro de ar fresco que me fazia ir em frente. Muitas vezes pensei que não seria possível, que não conseguiria lidar com o estresse de roubar mais luvas ou escondê-las atrás dos painéis da Sala Dois. Mas, quando as coisas pareciam fraquejar, me lembrava de algo lá de cima — o canto dos passarinhos, a sensação da grama sob os pés descalços, a visão do mar limitada apenas pelo horizonte —, e a esperança chegava como combustível, impulsionando-me adiante.

Acontecia o mesmo com o resto dos meus companheiros. Onde deveria haver rostos cansados havia sempre sorrisos, brincadeiras em vez de lágrimas, coragem quando deveríamos estar acovardados na cela. Chegávamos até nosso limite. No segundo dia colocamos mais quinze luvas no túnel. No quinto, eram 33. No sétimo, a pilha tinha 51, um total mais que suficiente para nos mandar para longe dali.

No oitavo dia Donovan e eu estávamos de volta à Sala Dois, despidos e arrastando os macacões cheios de bolas de gás através do chão áspero até a fenda. Ficamos aliviados ao ver que o resto do estoque ainda estava no lugar. Algumas haviam esvaziado um pouco, mas todas pareciam estar prontas para explodir.

— Comece a enfiá-las lá dentro — gritou Donovan acima do ruído do rio. Podia jurar que o som estava mais alto agora, como se soubesse de nossa proximidade. — Vou deixar o detonador preparado.

Ele procurou no meio das luvas até encontrar a que tinha o fluido do acendedor. Sacudindo-a para se certificar, abriu-a e puxou a corda, que cheirava a combustível. Amarrando os fios, colocou uma extremidade ao lado dos balões e depois caminhou para trás e liberou o resto, o detonador serpenteando por vários metros até desaparecer atrás de um bloco de pedra maciça.

— Deve ser suficiente — comentou, a cabeça aparecendo atrás da pedra. — A explosão provavelmente vai provocar outro desmoronamento e matar a gente.

— É melhor que passar mais tempo dentro da cela — respondi, lutando para passar outra luva na fenda já repleta. — Especialmente levando em conta seus peidos.

Donovan riu ao se aproximar de mim. Olhou para a fenda repleta no chão, depois para as cerca de vinte luvas que ainda tinha no macacão.

— Reserva?

— Parece que sim — respondi, fazendo uma careta quando tentava me levantar. — Quer espalhá-las por aí?

Donovan coçou o queixo e depois balançou a cabeça:

— Não. Tenho um plano. — Pegou o macacão. — Vamos voltar para o túnel.

— Para o túnel? — perguntei, mas ele apenas sorriu para mim e começou a atravessar a caverna. Eu o segui, as pernas reclamando a cada passo que eu dava, e cheguei à passagem a tempo de ver Donovan enfiando as luvas que haviam sobrado nas rachaduras do teto. Pelo visto, não estava tendo muita sorte naquela escuridão, pois as luvas caíam no chão com um ruído de algo úmido.

— Tenho certeza de que há uma boa razão para isso — sussurrei.

A sala de equipamento estava totalmente vazia à frente; deserta, mas nunca se podia prever quando um terno-preto apareceria. Donovan conseguiu enfiar algumas luvas em uma rachadura bem grande acima da cabeça e depois se virou para mim:

— E se tivermos que sair às pressas? — perguntou. — Os guardas estarão atrás de nós como ratos atrás de queijo. Se demolirmos este túnel depois que passarmos, teremos todo o tempo do mundo para explodir o chão e entrar no rio.

— Faz sentido — repliquei com um aceno de cabeça. Peguei algumas luvas e procurei orifícios adequados no teto, esticando-me com uma dor considerável para enfiar todas. Quando terminamos, o teto do túnel parecia a barriga de uma vaca mutante — toda cheia de tetas e sem pernas.

— Muuu — brinquei quando Donovan enfiou o último detonador, colocando-o entre uma luva e a parede, depois fazendo-o deslizar para baixo, dentro da caverna. Não havia muito pavio sobrando, mas felizmente o suficiente para nos proporcionar alguma distância antes de o túnel desmoronar. Ele depositou a pedra do acendedor sob a extremidade do detonador para conseguir encontrá-lo com facilidade de novo.

— Bem — falou, tornando a vestir o macacão e esfregando as mãos no material para se livrar do cheiro marcante do fluido do acendedor. — Estamos prontos.

— Terminado — acrescentei. — Tudo o que temos a fazer agora é chegar aqui sem que ninguém nos veja, explodir um buraco no chão de rocha sólida e pular em um rio enorme debaixo da terra.

— Fácil — acrescentou ele, rindo baixinho. Na verdade, não conseguia ver sua expressão no escuro, mas de repente ele se calou, e pude sentir um olhar intenso em minha direção.

— Não quer ir agora? — ele perguntou. Virei para as sombras, de onde despontava o olhar dele.

— E deixar os outros?

— Podemos nunca mais ter outra chance — prosseguiu ele. — E se acontecer alguma coisa?

— Donovan — respondi gentilmente —, sei que não pretende fazer isso. Arriscou tudo para me salvar no outro dia. Sei que não é o tipo de garoto que vai abandonar os amigos. Sei disso.

— O que eu lhe disse quando chegou aqui, Alex? Ninguém tem amigos em Furnace.

— Está certo — falei. — Finja-se de durão quanto quiser, mas sei que não vai a lugar nenhum sem Zê e Toby.

Houve um momento de silêncio, depois Donovan riu.

— Credo! Veja o que fez comigo. Você me transformou em um tolo sentimental!

— Vamos — eu disse, tomando a frente no caminho de volta às tábuas de madeira. Havíamos saído do túnel tantas vezes que agora era algo quase automático; conseguimos retornar à sala de escavação sem incidentes. Só quando começamos a bater nas paredes com as picaretas foi que Donovan piscou para mim.

— Então... amanhã? — perguntou.

Apoiei minha picareta no ombro e fiz que sim com a cabeça:

— Amanhã.


A ÚLTIMA NOITE

 


Depois do trabalho pesado tomamos banho e comemos; em seguida, voltamos para a cela. Toby e Zê já estavam lá, conversando excitados sobre uma coisa e outra, quando entramos pela porta. As cabeças se ergueram, o rosto franzido pela ansiedade.

— E aí...? — perguntou Zê, deixando o assunto no ar.

— Os guardas nos pegaram — respondeu Donovan. — Destruíram as luvas, selaram a sala e me arrastaram com o Alex para fora. Transformaram-nos em monstros, e agora voltamos para devorá-los.

Ele se atirou sobre os garotos menores, e eles saltaram para trás para se afastar dele.

— O que deu nele? — perguntou Zê, enquanto Donovan caía no beliche de baixo, rindo. — Inalou algum gás ou algo parecido?

— Não tenho certeza — respondi, empurrando Donovan e me sentando aos pés da cama. Mas eu sabia: ele estava embriagado de esperança, de excitação. Todos estávamos. — Tudo saiu conforme planejado. Está tudo pronto. Amanhã é o dia.

— Amanhã? — repetiu Toby, empalidecendo. Zê agarrou-o pelos ombros e o sacudiu.

— Não desabe agora, garoto — falou com alegria. — É muito tarde para recuar.

— Só não esperava que fosse tão rápido — ele respondeu. A cor foi lentamente retornando ao seu rosto. — Têm certeza de que estamos prontos?

— Não — retruquei. — Se quiser, pode esperar aqui mais alguns anos, mas eu vou agora, pronto ou não.

— Eu também — concordou Zê, acrescentando um pequeno assobio enquanto socava o ar.

— E o que vão fazer quando estiverem lá fora? — perguntou Donovan. — A primeira coisa que vou fazer é pegar o maior hambúrguer que conseguir encontrar, bem temperado, com cebolas e bacon e... oh, céus, minha boca está se enchendo de água.

— Eu me contento com ar puro — falei. — Deem-me uma praia, a brisa do mar e o som de golfinhos, e serei o homem mais feliz da Terra.

Zê me empurrou para o lado e sentou-se:

— Vou direto para casa, dormir em uma cama de verdade, pra variar — falou ele com ar sonhador.

— E esperar a polícia chegar? — perguntei. — Vamos, Zê, assim que sairmos daqui, vão procurar por nós. Se formos para casa, vão nos trazer direto para cá e nos enfiar no buraco.

A expressão de Zê murchou, assim como a de Toby.

— Então, o que faremos? — indagou o novo garoto, escorregando pela parede e puxando os joelhos para perto do rosto. — Não tenho outro lugar para ir.

— Somos garotos, Toby — respondi. — Nenhum de nós tem lugar. Só temos que ficar juntos e estaremos bem.

— Contanto que eu consiga o meu hambúrguer — acrescentou Donovan, estalando os lábios.

— E quanto a este lugar? — perguntou Zê. — Quero dizer, vamos falar com alguém sobre ele? Sobre o que acontece aqui?

— Sim — concordei. — Temos que falar. Podemos mandar um relatório anônimo para a polícia ou algo assim.

— Como se fossem acreditar — comentou Donovan.

— Temos que tentar — acrescentei. — E quanto a todos os outros que estão aqui? Temos que fazer algo para ajudar.

— Sintam-se à vontade — respondeu Donovan. — Vocês saem daqui e viram heróis, enquanto eu me sento e como o meu hambúrguer.

— Chega de falar em hambúrguer! — gritei, rindo. — Há muito mais lá fora que lanchonetes. Vamos, D, estaremos livres, podemos ter qualquer coisa que quisermos.

— Livres? — veio uma voz da porta. Virei a cabeça tão depressa que pensei ter quebrado o pescoço. Lá fora estava Jimmy, o varapau com quem Zê, Monty e eu havíamos descido no elevador rumo a Furnace. Estava ainda mais magro agora, o macacão dançando em volta dele como uma mortalha esfarrapada sobre um esqueleto.

Mal o tinha visto desde aquele primeiro dia, pois havia se juntado a um grupo de garotos que se mantinham na deles. Ele tinha passado pela cela algumas vezes, mas nunca havia parado para dizer olá. Acho que nunca nos ouvira falar sobre fuga antes. Dei um chute em mim mesmo mentalmente. Qualquer um poderia estar lá fora, até mesmo os guardas.

— Aonde vocês vão? — continuou ele. — Vão sair daqui?

— Pra lugar nenhum.

— Lugar nenhum — Donovan e eu dissemos juntos.

— Estamos apenas sonhando — acrescentou Zê. — Falando sobre o que faríamos se conseguíssemos sair daqui. Você sabe, já deve ter feito isso.

Jimmy olhou para nós como se pudesse desvendar nossas mentiras.

— Todo mundo sabe que vocês andam agindo de maneira estranha — ele comentou. — O boato que corre é que sabem como sair daqui e não estão dizendo. Imaginei que me contariam. Chegamos aqui juntos, podemos sair juntos.

— Não há como sair daqui, garoto — disse Donovan, levantando--se da cama e se aproximando dele. — Tire essas coisas malucas da cabeça. E agora dê o fora!

Jimmy continuou olhando para mim. Mais um, pensei. Certamente, uma pessoa a mais não causaria problema. Mas era mais alguém para dar com a língua nos dentes, um a mais para arruinar tudo. Não valia o risco.

— Desculpe, Jimmy — falei por fim. — Donovan está certo; não vamos a parte alguma. Não há como sair de Furnace, lembre-se.

— Agora, fora! — repetiu Donovan. Dessa vez ele colocou as mãos no peito de Jimmy e o empurrou, fazendo-o cambalear para trás. O garoto bateu nas grades, mas seus olhos não se desviaram dos meus.

— Última chance — falou. — Levem-me com vocês.

Eu lhe dei as costas. Todos fizeram o mesmo. E, quando tornamos a olhar, a plataforma estava deserta.

 


Passamos as horas seguintes em pânico. O que Jimmy quis dizer quando falou que todos sabiam que estávamos agindo de maneira estranha? Que boato era aquele? Se os prisioneiros começavam a suspeitar de algo, significava que os guardas também poderiam estar desconfiados, e, se fosse assim, estava tudo acabado.

Mas não houve alarmes, ternos-pretos na porta nem cães nos caçando nas celas. Se o diretor ao menos suspeitasse de que planejávamos fugir, as chances eram de que já estivéssemos mortos.

Votamos sobre o que fazer com respeito a Gary. Zê e Toby achavam que não deveríamos lhe contar nada, dar cabo daquela ideia e esperar que ele não descobrisse o que fazíamos. Donovan e eu achávamos melhor informá-lo. Afinal, havíamos feito um trato, e o Caveira tinha poupado minha vida. Além disso, ele era grande e forte e poderia ajudar se as coisas se complicassem. A votação ficou empatada, mas Donovan só teve de pressionar um pouco Toby para fazê-lo mudar de opinião. Pressão física, na forma de tortura chinesa.

No entanto, ninguém queria dar a notícia, por isso fui eu que terminei descendo a escada. Os Caveiras não estavam em lugar nenhum à vista; me dirigi ao ginásio. Pelo barulho lá dentro, percebi que não queria entrar de fato, mas, quando disse aos dois sentinelas de plantão que tinha uma notícia importante para Gary, eles me deixaram passar.

Lá dentro havia um banho de sangue, um Caveira e um Cinquenta e Nove lutando um contra o outro com fúria incontida. Gary assistia, mas, ao me ver, pulou do banco e caminhou em minha direção.

— Tem algo a me dizer, homenzinho? — zombou. Passou a mão pelo rosto, os nós dos dedos sangrando e deixando um rastro de sangue nos lábios.

— Amanhã — disse. — Durante o trabalho pesado. Estaremos na sala de escavação. Vá para lá também. Você verá quando começarmos a nos mover; é só nos seguir.

Ele olhou para mim, e, pela primeira vez, vi um vislumbre de emoção. Para minha surpresa, ela se assemelhou a ansiedade, mas apenas por um segundo; depois, desapareceu.

— E se for mandado para outro lugar? — ele perguntou. — Vocês não vão sem mim.

— Não importa — respondi. — Eles não verificam. Só vá até lá, Sala Três. Fique por perto. E não conte a ninguém, certo?

Ele não se moveu; só ficou ali de pé com os olhos escuros fixos nos meus. Em seguida, girou o corpo e se afastou, voltando para o banco a fim de assistir à luta como se nada houvesse acontecido. O Caveira que estava no círculo havia caído no chão, o Cinquenta e Nove socando seu peito, e eu saí do ginásio o mais depressa que pude para fugir do som de costelas quebrando.

Já lá em cima de novo, repassamos os últimos detalhes do plano, com Toby postado lá fora para garantir que não houvesse mais abelhudos. Mas não havia muito a dizer, e, depois de um período de silêncio, Zê e Toby decidiram voltar às suas celas para descansar um pouco. Nem Donovan nem eu conseguimos pensar em jantar; ficamos deitados no beliche, esperando as luzes se apagar.

— Sabe o que significa falharmos, não sabe? — perguntou ele.

— Sim, morreremos.

— Da maneira mais horrível possível — acrescentou ele. — De verdade, da maneira mais horrível possível.

— Mas não tenho certeza se isso realmente importa — sussurrei. Donovan protestou, mas continuei: — Quero dizer que, mesmo que tudo dê errado e terminemos no buraco, ou coisa pior, ainda assim conseguiremos derrotar Furnace.

— Como assim?

— Bem, descobrimos uma saída. Descobrimos mesmo um modo de escapar. Não importa se vamos conseguir ou não. Ainda assim venceremos o sistema. Neste momento, Donovan, neste exato momento, estamos livres.

— Não consigo entender você — ele falou. — Mas entendo o que está dizendo. Nós nos tornaremos lendas, cara, o que quer que aconteça.

De fato, ele não entendia; nem mesmo eu. Era apenas uma sensação, um peso que abandonava o peito. As paredes de Furnace pareciam um pouquinho mais fracas, o ar um pouquinho mais leve, o espaço um pouquinho maior. Era ainda o mesmo lugar, mas não tinha o mesmo poder. Havíamos encontrado um jeito de violar aquela prisão antes que ela encontrasse um modo de nos violar.

Pelo menos era o que eu pensava quando as celas foram trancadas e a prisão mergulhou na escuridão. Tudo mudou quando acordei um pouco mais tarde, ensurdecido pela sirene e banhado em um lago de luz vermelho-sangue.


CAPTURADO

 


Eu me sentei ereto na cama, a cabeça girando. Era a vigília sangrenta para uma nova colheita. Não acreditava; não podia ser, não esta noite.

A luz vermelha fazia toda a prisão estremecer, como se a visse através de uma névoa ardente, como se o fogo do inferno queimasse bem à minha frente. Estiquei o pescoço e olhei para o pátio enquanto a porta da abóbada se abria, liberando uma série de gritos e respirações entrecortadas que só podiam vir dos máscaras de gás.

— Alex — ouvi a voz de Donovan acima de mim, cheia de medo. — Não se mova, certo? Pelo menos desta vez, fique na cama e mantenha a cabeça abaixada.

Eu me deitei de costas e puxei os lençóis, cobrindo a cabeça. Donovan estava certo; tinha que ficar quieto, permanecer oculto e deixá-los passar direto. Ouviu-se uma série de gritos quando os Ofegantes se dividiram, cada um se dirigindo a um diferente lance de escada. Eu os imaginei se sacudindo em espasmos enquanto caminhavam ao longo das plataformas, os olhos ávidos escolhendo as vítimas que devorariam.

Houve um grito distante. Veio do outro lado da prisão. O primeiro Ofegante fizera sua escolha. Seguiu-se um segundo grito, como o de um pássaro agonizante, surgindo abaixo de nós. Já tinham sido escolhidos dois; faltavam três. Outro berro, acompanhado de um coro de súplicas do prisioneiro escolhido. Um quarto, dessa vez lá em cima, o som ecoando pelas paredes da prisão no caso de qualquer um de nós ainda não o ter escutado. Só faltava um. Mais uma vítima.

— Não nós — rezei tão baixinho que nem eu consegui me ouvir. Minha respiração atingiu o lençol sobre minha boca, o ar fedorento e quente. — Por favor, Deus, só mais uma noite. Não nós.

Um grito, tão perto que poderia ter vindo da minha cama. Eu me encolhi ainda mais nos lençóis. Fique quieto, fique escondido, eles vão embora, eles já vão embora.

Ouvi outro grito, mas não foi do máscara de gás. Foi um grito de raiva, de fúria, de desespero. Era Donovan. Tirei os lençóis da cabeça e me sentei para ver o monstro de pé do lado de fora da cela, todo ferrugem, remendos e olhos vidrados; todo couro, seringas e sangue seco. Tirou uma das mãos do bolso com um som de sucção.

— Não! — gritou Donovan. — Não. Não. Não. Não. Não!

A mão suja do monstro alcançou as grades da cela, marcando um X no metal. Depois ele jogou a cabeça para trás em espasmos e guinchou, o som rapidamente imitado pelos irmãos retorcidos.

Saltei da cama e encarei Donovan. Ele olhava por cima dos lençóis, os olhos como luas brancas contra a pele escura, a boca espumando de ódio. Nunca o vira assim antes, cheio de terror, e aquilo me cortou o coração.

— O que vamos fazer? — perguntei. O Ofegante ficou paralisado, mas não demoraria muito, e os ternos-pretos estariam ali com os cães. — Qual de nós ele vai levar?

Donovan não se moveu nem falou. Puxei os lençóis de cima dele, mas ainda assim ele não se manifestava. Desesperado, agarrei seus braços e o puxei para fora da cama. Ele estava a meio caminho da extremidade antes de entender o que acontecia, saindo do transe para se dobrar à frente e aterrissar no chão.

— Donovan — chamei. Ele olhou para o Ofegante, depois para mim. — O que vamos fazer?

— Não sei — ele respondeu, a voz tão suave quanto uma brisa.

— Qual de nós ele escolheu?

— Não sei — repetiu. — Só se sabe quando os ternos-pretos chegam.

Praguejei, batendo as mãos contra a testa. Devia estar mais apavorado, mas por alguma razão minha mente estava clara. Acho que era porque aquilo não parecia real e eu esperava acordar a qualquer segundo. Atirei-me contra as grades, cara a cara com o Ofegante, mas ele estava imóvel; nem mesmo um breve espasmo para mostrar que ainda se encontrava vivo. A prisão mergulhou na escuridão, e me afastei da grade em pânico.

— Pense! — gritei, assim que as luzes vermelhas retornaram. — Não pode terminar assim.

— Mas vai — replicou Donovan. — Foi tudo em vão.

Eu caminhava pela cela, observando o pátio para ver mais figuras emergindo da porta da abóbada. Contei sete ternos-pretos e dois cães. Depois, para minha surpresa, o diretor caminhou até o meio do pátio, olhando para cima na direção das celas. Nunca havia aparecido antes durante a vigília sangrenta. Algo estava errado.

— Eles sabem — falei, os ombros pendendo. — Vieram atrás de nós. Provavelmente pegaram Zê e Toby também.

— Não — respondeu Donovan. — Aquela lá é a cela de Zê. Não tem nenhum Ofegante lá.

Olhei para baixo e tive certeza: a cela de Zê não estava marcada. Não conseguia ver nenhum sinal de vida nas sombras indistintas, mas tinha certeza de que Zê estava me vendo. Talvez o diretor não soubesse. Talvez aquela fosse apenas uma brincadeira doentia, uma coincidência perversa. As luzes piscaram, depois se apagaram de novo, o único sinal de vida eram os ruídos aterrorizantes fora da cela — grunhidos, passos e respiração ofegante.

— Olhe — falei, segurando os ombros de Donovan —, eles só pegam um prisioneiro de cada cela, certo?

— Certo.

— Então um de nós vai ficar. Vamos em frente com isso, está bem? Um de nós pode fugir. Uma vez livre, vou direto procurar a polícia. Não importa se me mandarem de novo para cá, contanto que investiguem. Se for rápido, posso conseguir salvá-lo. Se você se apressar, pode voltar a tempo de me salvar.

Donovan fez que sim com a cabeça quando as luzes se reacenderam, depois me envolveu com os braços, apertando-me tão forte que fiquei sem fôlego.

— Obrigado — ele falou, os olhos cheios de lágrimas.

— Pelo quê?

— Obrigado por me dar esperança.

— Ainda não acabou — respondi. Pude ouvir passos soando na plataforma e o ganido dos cães mutantes.

— Eu sei — ele replicou. Logo estavam ali. Um comando do terno-preto fez a porta da cela se abrir, e, em um piscar de olhos, o guarda estava lá dentro. Uma mão forte envolveu a garganta de Donovan, colocando-o para o lado de fora como se não pesasse nada e segurando-o acima do chão. Eu me atirei para a frente, mas o gigante usou a outra mão para me afastar. Senti como se tivesse sido atingido por um carro, deslizando para o chão e sendo esmagado contra o beliche.

Quando consegui me levantar de novo, a porta da cela se fechava.

— Donovan! — gritei. O máscara de gás tirou uma agulha do cinto, uma seringa cheia de escuridão e morte, uma nuvem que girava como uma galáxia, cheia de centelhas de luz amarela. — Não!

Mas era tarde demais. O Ofegante enfiou a agulha no pescoço de Donovan, e ele se tornou débil e silencioso.

— Não podem fazer isso! — gritei. — Donovan, vou voltar para buscar você. Vou voltar para buscar você!

Minhas palavras tentavam acompanhar a procissão que descia a plataforma, mas eram impotentes para deter esse pesadelo. Não conseguia fazer nada além de assistir enquanto Donovan e as outras vítimas eram arrastadas escada abaixo e pelo pátio, meu melhor amigo desaparecendo pela porta da abóbada, engolido pelas sombras que o escoltariam para a morte.

O diretor foi o último a sair e, quando ia transpor a porta, virou-se e olhou de novo para as celas. Dessa distância, seus olhos eram apenas lagos de escuridão perdidos no couro avermelhado da face, mas eu podia jurar que olhava diretamente para mim. Senti minha visão se deformar e vacilar, centenas de imagens terríveis surgindo diante de meus olhos — sangue, ossos, dentes, correntes e gritos —, e então o diretor retomou seu caminho, e a carnificina terminou.

Quando a porta se fechou atrás dele, lutei para manter a sanidade, o raciocínio, a consciência. Mas foi inútil. Caí no chão chamando o nome de Donovan e desejando de todo o coração que tivessem me levado no lugar dele.


FUGA

 


A manhã chegou com relutância, temendo romper a escuridão que envolvia tanto a prisão quanto meus pensamentos. Não voltara a dormir depois que Donovan fora levado. Ficara sentado na cama, à mercê de um milhão de emoções — chorando, depois gritando, ou ainda agarrado às grades, em seguida rindo histericamente na noite como uma criatura enlouquecida.

Minhas últimas palavras para Donovan não me abandonavam. Vou voltar para buscar você. Minha mente exausta me retratava voltando a Furnace à frente de um exército, atirando contra os ternos-pretos onde estivessem, enforcando o diretor, tirando Donovan da cela e o abraçando com a mesma força com que ele havia me abraçado. Vou voltar para buscar você. E eu voltaria.

Assim que as luzes se acenderam, eu estava de pé ao lado das grades, olhando para o pátio com olhos frios. Era como se um pedaço de mim tivesse sido levado com Donovan, o meu lado que sentia compaixão, que sentia medo. Tudo o que havia restado era ódio. Sairia de Furnace, depois a explodiria para que nada restasse dela senão uma cratera fumegante, cheia de cadáveres de demônios.

As portas das celas se abriram com um ruído ensurdecedor, e desci para o pátio junto a centenas de prisioneiros. Era como se os outros também percebessem algo diferente em mim, uma intensidade que não estava ali antes, como se fosse explodir se alguém me tocasse. Abriram caminho para mim quando me dirigi à cantina, lançando-me olhares preocupados quando achavam que eu não estava olhando e virando a cabeça quando viam que eu estava.

Sentei-me numa mesa vazia, e Zê correu até mim. Deslizou para o banco à frente, virando-se e observando o local sobre os ombros. O rosto estava contraído, e os olhos, ainda vermelhos de lágrimas.

— Eles o levaram — falou. Parecia querer dizer mais alguma coisa, mas desistiu e baixou a cabeça. Não respondi; só olhei a sala do cocho para ver Gary sentado com os Caveiras. Ele me fez um aceno com a cabeça, eu acenei de volta, e naquele momento de simetria minha expressão era idêntica à dele: vazia, desumana.

— Vou voltar — falei, fixando um ponto distante. — Prometi a ele que voltaria. Não posso abandoná-lo.

— Então está tudo de pé? — perguntou Zê, erguendo a cabeça.

— Tudo de pé.

Toby nos encontrou quando saíamos da sala do cocho. Estava com o rosto vermelho e tenso.

— Meu companheiro de cela — falou com respiração entrecortada — não me deixava sair, querendo saber aonde iríamos. Não contei a ele, Alex, mas toda a prisão já sabe que vamos fazer alguma coisa.

— Não importa — respondi, andando à frente dos garotos pelo pátio. Juntamo-nos ao grupo que ia para as salas de escavação, evitando os prisioneiros que nos olhavam curiosos em uma estranha mescla de ódio e esperança. Jimmy também estava lá, o olhar idiota jamais se afastando de mim. Ignorei todos, concentrado na tarefa que tinha pela frente. Só tínhamos uma chance, só uma. Se falhássemos, estaríamos todos mortos.

Lentamente a turba se arrastou pela passagem até a sala de equipamento. O terno-preto nos observava com seu olhar prateado, o dedo permanentemente no gatilho da espingarda. Pensei por um momento se não seria possível ouvir meus batimentos cardíacos quando passei por ele, mas o guarda não mostrou um sinal sequer de ter me visto.

Dentro da sala de equipamento peguei um capacete e tirei uma picareta das prateleiras. Zê e Toby fizeram o mesmo. Pensei por um momento que Gary não havia conseguido entrar, mas ele veio atrás da multidão, os olhos estreitados com o mesmo ar de ansiedade que vira no dia anterior. Ele nos localizou, e sua expressão desapareceu.

— Níveis um a três, Sala Um — berrou o terno-preto, balançando a espingarda na direção do portal. — O resto para a Sala Três; sabem o que fazer.

Nós nos dirigimos à sala de escavação com o coração na boca. A cada poucos passos eu olhava para os lados e encontrava os olhos de Zê, Toby ou Gary. Era como se houvesse uma linha nos unindo, uma linha que só nós conseguíamos ver. Ou talvez não fosse tão invisível — a fisionomia dos outros detentos ficava cada vez mais hostil, como se pudessem intuir como estávamos perto de sair dali, de deixá-los apodrecendo naquele lugar.

Posicionamo-nos próximo à frente da caverna, baixando o visor para ocultar o suor que já corria livremente pelo rosto. Passamos a atacar a parede do mesmo modo que sempre fazíamos, Zê mantendo um olho na sombra que se estendia pelo chão da sala de equipamento. Assim que a sombra desaparecesse, começaríamos a nos movimentar.

Pareceu durar uma eternidade. Batíamos, quebrávamos e transpirávamos, e o tempo todo a pressão sanguínea subia, e os ânimos se excitavam. Acho que se demorasse muito mais tempo meu coração implodiria.

— Vamos — sussurrou Gary entre um movimento e outro. — Temos de começar a nos mover agora.

— Vamos esperar — falei, a voz pesada com uma autoridade que nunca soube possuir. — Sairemos quando eu disser.

Gary agarrou tão forte a picareta que os nós deformados de seus dedos ficaram brancos, mas não contestou; continuou a bater e a praguejar.

— Alex — sussurrou Zê alguns minutos mais tarde —, o guarda está saindo.

Olhei e vi a sombra negra desaparecer do chão da sala de equipamento. O guarda havia desaparecido da primeira sala de escavação. Eu me virei e fiz um aceno de cabeça para os três rostos em expectativa e aterrorizados à frente, e, depois de checar se ninguém na sala nos observava, caminhamos com calma rumo à porta.

Até então tudo bem; tudo corria segundo o planejado. Até que ouvi uma voz gritar atrás de nós. Virei-me e vi Jimmy saindo da caverna, o rosto contorcido em uma máscara de pânico. Ele nem sequer esperou até estar a uma distância segura antes de gritar:

— Vocês não vão se atrever. Sei o que estão fazendo.

— Não estamos fazendo nada, Jimmy — respondi tão calmamente quanto pude. — Só trabalhando.

Ele se aproximou correndo, depois agarrou meu colarinho com os dedos ossudos. Os outros prisioneiros da sala se viraram para observar, olhando para nós como se os tivéssemos esfaqueado pelas costas.

— Eu sabia — ele falou. — Vão fugir agora. Levem-me com vocês, ou juro que vou berrar até minha cabeça explodir.

Jamais teria essa chance. Sem que percebêssemos, Gary se aproximou, atingindo o rosto de Jimmy com o cabo da picareta. A madeira do cabo emitiu um dos sons mais terríveis que já tinha ouvido, e o garoto se dobrou, gemendo.

— Vamos — disse Gary. — Não temos tempo.

Olhei para Jimmy, lutando para se levantar e ao mesmo tempo segurando o nariz quebrado, depois me virei e corri para a sala de equipamento. Contornamos a sala para confirmar se estava deserta, e era tudo de que precisava para praticamente saltar de alegria. Escorreguei para o chão e puxei a tábua solta, afastando-a da parede. Zê ia entrar, mas Gary o tirou do caminho, mergulhando primeiro na abertura. Zê o seguiu, e foi quando Toby começou a entrar que todo o inferno começou.

Ouvi arquejos atrás de mim e me virei para ver Jimmy de pé ali, a frente do macacão encharcada de sangue, todo o corpo tremendo. Ele apontou para mim, os olhos com uma força de que o corpo carecia.

— Fuga — disse. A voz estava fraca, mas a palavra me atingiu como uma bofetada na cara. Eu o vi inspirar profundamente, depois dizer de novo com mais força.

— Jimmy — chamei —, não é tarde demais. Venha conosco.

Mas ele não pensava com clareza. O golpe na cabeça havia perturbado seus pensamentos. Tudo o que lhe importava agora era ter certeza de que não fugiríamos. Continuou gritando sem parar, e cada vez o volume do grito ia aumentando, até se tornar um berro estridente que ecoou por toda a sala de equipamento.

— Entre — disse a Toby. — Agora.

Ele hesitou por um momento, depois se arrastou pela tábua solta, desaparecendo na escuridão. Jimmy continuava gritando a mesma palavra sem parar. Eu tinha segundos até os ternos-pretos aparecerem.

Nem mesmo isso. Quando me inclinei para passar pelo buraco, vi o guarda emergir da primeira sala de escavação. O gigante fez uma pausa, os olhos prateados observando a cena como se não conseguisse acreditar no que acontecia. Foi todo o tempo de que precisei. Quando ele levantou a espingarda, já estava na metade do túnel, o tiro levantando a poeira onde meus pés haviam estado um instante antes.

Toby aguardava por mim do outro lado das tábuas, os olhos tão arregalados que achei que fossem saltar das órbitas. Olhei para a sala de equipamento e vi o guarda atirando em nossa direção, o corpo vasto parecendo uma mancha. Atrás dele, vindo da porta do pátio com igual velocidade, outro terno-preto.

Houve um som de fagulha à frente, vindo da outra extremidade do túnel.

— Oh, não — falei, o coração se apertando. Gary encontrara o detonador e tentava acendê-lo. — Corra!

Corremos pelo túnel, enquanto os ternos-pretos se comprimiam através das tábuas atrás de nós. Atiraram contra as tábuas de madeira maciça, enviando lascas para o ar enquanto erguiam de novo as espingardas. Eu me encolhi no chão ao disparar das armas, puxando Toby comigo, os tiros cortando o ar sobre nossas cabeças.

À frente houve um ruído agudo quando o detonador acendeu. Observei a chama se mover com rapidez ao longo do barbante, em direção à parede, onde estavam as luvas de gás bem acima de nós. Levantei-me, agarrando a mão de Toby e me lançando ao longo do túnel. Mais alguns passos e estaríamos livres.

Mas os ternos-pretos eram muito rápidos. Quando vi o fim do túnel à frente, senti uma pressão de ferro em torno da garganta me levantar do chão. Pelo grito que ouvi a meu lado, soube que Toby também havia sido pego. Fosse como fosse, agora isso realmente não importava. Vi a fina chama azul se encaminhando ao longo do teto, quase atingindo a primeira luva. Íamos explodir.

O terno-preto me virou para que eu olhasse para ele, estreitando os olhos prateados. Era o verruguento — o mesmo guarda que havia me atormentado desde aquele primeiro dia na casa, muito tempo atrás. Sua cara se abriu no sorriso de tubarão que eu conhecia tão bem.

— Peguei você — disse-me. Sobre seu ombro, a chama estremeceu e quase apagou, depois reviveu ferozmente ao atingir a primeira luva. Desejei que ela incendiasse. Pelo menos, se morrêssemos ali, levaríamos alguns deles conosco.

— Não — repliquei, sorrindo de modo insano para meu captor. — Eu peguei você.

A primeira luva inchou e explodiu em uma bola de luz e calor. Depois o mundo todo explodiu — a escuridão em uma radiação que queimava meus olhos, o silêncio transformado em um estrondo tão intenso que pensei que meu corpo tivesse virado poeira. O resto dos balões foi explodindo em seguida, a bola de fogo resultante varrendo o chão do túnel como o punho de Deus, uma onda de choque que nos lançou com violência para dentro da caverna.

Perdi os sentidos por um momento, um som de sinos nos ouvidos — a única coisa que me garantia que ainda estava vivo. Isso, e a dor, tão terrível que me obrigou a recuperar a consciência. Abri os olhos para ver o túnel em ruínas, lajes de pedra e uma cortina de poeira e chamas onde antes havia uma passagem. Em algum lugar a distância pude ouvir uma sirene e o som de pessoas gritando, mas o plano de Donovan havia funcionado. Agora existia uma parede de pedras entre nós e eles.

Tentei me levantar, mas não consegui me mover. O medo de estar paralisado inundou minha mente, o pensamento de que teria de ficar ali até os guardas cavarem um caminho através do túnel demolido. Mas, olhando para baixo, vi um enorme peso caído sobre minhas pernas. Era o verruguento, embora não fosse mais um terno-preto. Havia sido atingido pelo impacto da explosão, o fogo queimando o terno e tornando seu corpo uma massa carbonizada. Acredito que provavelmente tenha me salvado, me abrigando das chamas, e sorri ironicamente com esse pensamento.

Puxei minhas pernas e consegui libertá-las, usando uma rocha próxima para me levantar. A lâmpada do capacete tinha sido esmagada, mas o fogo banhava a caverna com uma luz fraca. Consegui discernir uma forma destroçada diante de mim, um garoto arrebentado que um dia fora Toby. Demorei um momento para perceber que havia outra pessoa abaixada examinando a cena.

— Zê? — perguntei, tateando na semiescuridão. O outro garoto se levantou e correu até mim.

— Alex! Jesus, cara, achei que estivesse morto.

— Toby está morto?

— Não, ainda está vivo, mas machucado demais. Não há como ele chegar ao rio.

— E Gary?

— Correu na frente, o idiota — falou Zê. — Tentei impedi-lo de acender o detonador, Alex, realmente tentei. Mas ele me tirou do caminho. Agora é só uma questão de tempo até que encontre o rio.

Curvei-me sobre Toby. Seus olhos estavam fechados, mas ele ainda respirava fracamente, um rastro de sangue escorrendo do canto da boca. Ajoelhei-me ao lado dele e toquei seu rosto. Muito devagar, ele abriu os olhos.

— Conseguimos? — perguntou, assim que a visão encontrou o foco. — Estamos livres?

Peguei sua mão e a apertei, mas isso só o fez se contrair.

— Conseguimos — falei. — Mas você não pode continuar, Toby. Vai morrer se for adiante.

— Não me importo — respondeu ele. — Não me importo. Só quero sair daqui. Não me deixe aqui. Por favor, não me deixe aqui.

Olhei para Zê, mas o garoto apenas deu de ombros.

— Ele não vai conseguir chegar ao rio — falou.

Atrás de nós ouvi o som de cascalho deslocado, uma série de ganidos pastosos. Eram os cães. Podia imaginá-los rasgando as pedras com suas garras mortais. Não demoraria muito para abrirem passagem.

— Ele vai morrer se não chegar lá — falei. — Vamos levantá-lo.

Coloquei a mão sob a axila de Toby e puxei-o com delicadeza. Zê fez a mesma coisa do outro lado. Juntos, conseguimos levantá-lo e mantê-lo de pé. Ele gritou ao tentar andar com a perna quebrada, mas conseguiu se manter consciente.

— Vamos — eu disse.

Só havíamos começado a andar quando ouvi um grunhido atrás de nós. Olhei por sobre o ombro e vi uma forma crescendo na escuridão, um gigante saindo dos detritos e da poeira. Era o verruguento; de algum modo, não estava morto. Se conseguisse alcançar nossos pés, não sobraria nada para contar a história.

— Pode segurá-lo? — perguntei a Zê. O garoto fez que sim com a cabeça, e eu me desvencilhei do braço de Toby. Corri até o homem ferido, olhando ao redor, até que avistei um bloco de pedra suficientemente leve para conseguir levantá-lo, mas pesado o bastante para causar algum dano. Ergui a pedra sobre minha cabeça e estava prestes a descê-la quando a forma se moveu, rápida. Ela estendeu o braço, agarrando meu joelho e fazendo minhas pernas dobrar. Caí no chão, o bloco de pedra quase esmagando meu crânio.

O verruguento grunhiu enquanto se levantava, tirando o sangue respingado nos olhos e batendo no fogo que ainda queimava na carne exposta. A cara machucada estremeceu, e demorei um pouco para perceber que ele tentava sorrir.

Fiz menção de me levantar, mas o gigante colocou o pé no meu peito, me imobilizando como se eu fosse uma borboleta. Depois se inclinou e pegou a mesma pedra que eu lutava para erguer, segurando-a sem esforço com uma das mãos de mamute.

— Alex! — ouvi a voz de Zê atrás de mim. Mal conseguia respirar, que dirá gritar, mas de algum modo consegui responder:

— Vá indo.

Será que realmente ia terminar assim? Tão perto de fugir, mas prestes a ser esmagado pelo mesmo guarda que havia provocado tudo aquilo, que tinha matado Toby e me encarcerado? Lutei contra seu peso, mas era demais para mim.

Fui distraído por uma forma que se materializou atrás do gigante, outra cara, com um único olho prateado brilhando. Não conseguia acreditar, mas os ternos-pretos eram indestrutíveis. Olhei para cima e vi a pedra suspensa acima da cabeça, só aguardando o momento exato de cair e acabar com minha vida. Pelo menos seria rápido. Lancei ao terno-preto o olhar mais feroz que pude imaginar. Não ia gritar nem chorar, tampouco implorar pela minha vida.

O bloco de pedra caiu, rompendo-se em pedaços a milímetros da minha cabeça. Achei por um minuto que o terno-preto havia falhado em seu objetivo, mas alguma outra coisa acontecia nas sombras acima de mim.

O segundo terno-preto tinha as mãos queimadas em torno da garganta do companheiro, uma pressão tão feroz que obrigou o verruguento a cair de joelhos. Com o peso fora do peito, rolei no chão e recuei, mas sem tirar os olhos da cena.

O verruguento deu uma cotovelada para trás, atingindo com tanta força o quadril do oponente que provocou um estalo cujo eco soou por toda a caverna. Mas o homem não fraquejou, aumentando mais ainda a pressão sobre o pescoço da vítima. Pouco a pouco, os braços descontrolados do verruguento penderam, o corpo caindo sobre a pedra.

O outro guarda ficou de pé sem firmeza durante um momento, depois também caiu no chão. Percebi que seus ferimentos eram ainda mais graves do que os do verruguento. Sem o terno, notei que o homem era apenas uma massa de cicatrizes, algumas ainda com pontos. Sob a pele, os músculos inchavam e se contraíam incontrolavelmente, como se tentassem escapar do corpo arrebentado. Não entendi o que acabara de acontecer, mas não tinha tempo para descobrir. Estava prestes a correr para onde Zê se encontrava, quando o gigante falou comigo:

— Alex? — chamou. A voz era tão profunda e retumbante como sempre, mas dessa vez não havia nela rancor nem maldade. Ele parecia assustado. A figura virou a cabeça em minha direção, e percebi que apenas um de seus olhos continuava prateado. O outro era normal, um olho verde-claro que me encarava em desespero. Estava muito escuro para ver com clareza, mas pensei ter reconhecido aquele olho e o olhar que me lançou, feroz e desafiador.

— Alex — balbuciou o guarda através de uma golfada de sangue. A voz ficou mais aguda e diminuiu de intensidade. — Não esqueça seu nome.

— O quê? — perguntei.

— Se o pegarem, não esqueça seu nome.

— Vamos! — gritou uma voz atrás de mim. Ouvi um som vindo do túnel de cascalho sendo arranhado. Os cães se aproximavam.

— Quem é você? — perguntei. Mas não precisava ter perguntado. Conhecia aquela voz. Uma explosão maciça abalou o outro lado da caverna quando Gary explodira o buraco, enchendo todo o local de luz. Vi o rosto contorcido do guarda, a pele esticada e os músculos em espasmos, depois a marca de nascença do tamanho de uma laranja no braço, agora tão familiar.

— Monty... — falei, me aproximando. Mas era tarde demais. Com um suspiro, o homem — o garoto — baixou a cabeça, o único olho prateado se apagando com a luz da explosão.

— Vamos! — ouvi de novo a voz de Zê. Corri até eles, a cabeça girando tão depressa que achei que fosse vomitar. O som de arranhões e os grunhidos atrás de nós ficavam mais altos a cada segundo, e corremos pelo chão irregular o mais depressa que podíamos.

Impulsionados pelo medo, demoramos menos de um minuto para encontrar a fenda na rocha. Não era mais uma fenda. A explosão havia aberto um buraco considerável no chão, e abaixo dele corria um rio. Andamos até a beirada e olhamos lá para baixo. Era impossível afirmar a que distância estava a água — seu fluxo era apenas um fio cinzento nas sombras. Mas o ar era doce e frio, o orvalho espumoso se assentando em nossa pele e diminuindo a dor dos ferimentos.

Não havia sinal de Gary.

— Tem certeza de que quer fazer isso? — perguntei a Toby. — Você não consegue sequer se levantar, quanto mais nadar.

— Não me importo — respondeu ele. — Só quero sair daqui.

Concordei com a cabeça.

— Está pronto? — perguntou Zê.

Fechei os olhos e respirei fundo. Naquele segundo milhares de pensamentos passaram por minha mente — o dia em que fui pego, o dia em que chegara ali, os guardas, os cães, o diretor, Kevin sendo morto, Ashley caindo para a morte. Monty, que fora levado, deformado e transformado em um monstro, em um terno-preto.

Então pensei em Donovan, capturado no meio da noite, esperando pelo mesmo horrível destino.

Vou voltar para buscar você.

— Estou pronto — falei. Lançando um último olhar para Zê e Toby, inclinei-me sobre a beirada da pedra e deixei o ar frio me envolver. Não havia senão a morte atrás de mim, e provavelmente nada senão a morte à frente, mas pelo menos dessa maneira estaria livre.

Sorrindo diante desse pensamento, pulei.

 

 

NOTAS

 

[1] Referência ao universo fictício de O SENHOR DOS ANÉIS, criado por J.R.R. Tolkien. Mor-dor, onde vivia Sauron, era uma construção singular devido às três cordilheiras que a delimitavam-ao norte, a oeste e ao sul-e protegiam de invasões.[N.T.]
[2] Alusão à palavra furnace, que, em inglês, significa forno, fornalha. [N. E.]
[3] Referência ao filme O homem sem sombra, que conta a história de um grupo de cientistas que faz experiências para tornar as pessoas invisíveis. [N. T.]
[4] Zyklon B: gás letal utilizado nos campos de concentração. [N. E.]

 

 

                                                   Alexander Gordon Smith         

 

 

 

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