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ENCLAUSURADO / ian McEvan
18.
No começo da tarde, o telefone toca e o futuro se apresenta. Inspetora-chefe Clare Allison, designada para cuidar do caso. A voz soa amistosa, nenhum indício de acusação. Isso pode ser um mau sinal.
Estamos de novo na cozinha, Claude segura o fone. O primeiro café do dia na outra mão. Trudy se posta perto dele e nós dois ouvimos os dois interlocutores. Caso? A palavra contém uma ameaça. Inspetora-chefe? Também não ajuda muito.
Avalio a ansiedade de meu tio por seu zelo em se mostrar solícito. “Ah, sim. Sim! É claro. Por favor, faça isso.”
A inspetora-chefe Allison pretende nos visitar. O normal seria os dois irem à delegacia para uma conversa. Ou prestar depoimento, se apropriado. No entanto, por causa da gravidez avançada de Trudy, da dor da família, a inspetora-chefe e um sargento virão daqui a uma hora. Ela gostaria de dar uma olhada no local onde houve o último contato com o falecido.
Esta última informação, inocente e razoável a meus ouvidos, provoca em Claude um frenesi de boas-vindas. “Venha, por favor. Maravilhoso. Sem dúvida. Será um prazer conhecê-la. Contando os minutos. A senhora...”
Ela desliga. Ele se volta para nós, provavelmente cor de cinza, e diz numa voz desapontada: “Ah”.
Trudy não resiste a imitá-lo: “Tudo... ótimo, não é?”.
“Que caso é esse? Não se trata de uma questão criminal.” Ele apela a uma audiência imaginária, a um conselho de sábios. A um júri.
“Odeio isso”, minha mãe murmura, mais para si mesma. Ou para mim, eu gostaria de acreditar.
“Deve ser para o juiz de instrução.” Claude se afasta de nós, ofendido, dá uma volta pela cozinha e retorna, indignado. Agora sua queixa é dirigida a Trudy. “Não se trata de um caso de polícia.”
“Ah, é mesmo?”, ela diz. “Melhor então telefonar para a inspetora e explicar isso a ela.”
“Aquela poeta. Eu sabia que não podíamos confiar nela.”
Entendemos que, como Elodia é assunto de minha mãe, de algum modo isso constitui uma acusação.
“Você gostou dela.”
“Você disse que ela ia ser útil.”
“Você gostou dela.”
Mas a reiteração deliberadamente impassível não o espicaça.
“Quem não gostaria? E quem se importa com isso?”
“Eu me importo.”
Pergunto-me mais uma vez o que ganho se eles brigarem. Isso poderia arruiná-los. Então eu ficaria com Trudy. Já a escutei dizer que, na prisão, mães que estão amamentando levam uma vida melhor. Mas vou perder meu direito de nascer, o sonho de todos os seres humanos, minha liberdade. Enquanto juntos, como uma equipe, eles podem escapar raspando. E depois me darem para alguém. Sem mãe, mas livre. Portanto, o que é melhor? Já pensei nisso, voltando sempre ao mesmo bendito lugar, à única decisão moralmente correta. Vou arriscar os confortos materiais e me aventurar no mundo. Já estive confinado por tempo demais. Voto pela liberdade. Os assassinos precisam escapar. Então, antes que a discussão sobre Elodia vá longe demais, este é um bom momento para dar outro pontapé em minha mãe, distraí-la da briga com o interessante fato da minha existência. Não um nem dois, mas o número mágico de todas as boas histórias antigas. Três vezes, como Pedro negando Jesus.
“Ai, ai, ai!” Ela quase canta isso. Claude puxa uma cadeira para ela e traz um copo de água.
“Você está suando.”
“Bom, estou com calor.”
Ele testa as janelas. Não são movidas há anos. Procura gelo, mas os recipientes estão vazios depois das três rodadas recentes de gim e tônica. Por isso ele se senta diante dela e oferece sua refrescante solidariedade.
“Vai dar tudo certo.”
“Não, não vai.”
O silêncio dele concorda. Eu estava pensando num quarto chute, mas o estado de espírito de Trudy é perigoso. Ela pode partir para o ataque e provocar uma reação temerária.
Depois de uma pausa, em tom apaziguador, ele diz: “Devíamos repassar mais uma vez”.
“Que tal um advogado?”
“Um pouquinho tarde agora.”
“Diga a eles que não vamos falar sem a presença de um advogado.”
“Não vai cair bem, quando eles só estão vindo bater um papo.”
“Odeio isso.”
“Devíamos repassar mais uma vez.”
Mas não repassam. Estupefatos, contemplam a abordagem da inspetora-chefe Allison. Muito em breve. Dentro de uma hora pode significar em um minuto. Sabendo de tudo, de quase tudo, sou parte do crime, sem dúvida a salvo de um interrogatório, porém amedrontado. E curioso, impaciente para testemunhar as habilidades da inspetora-chefe. Alguém de mente aberta seria capaz de desmascarar esses dois em minutos. Trudy traída pelos nervos, Claude pela burrice.
Estou tentando imaginar onde estão as canecas de café da manhã usadas durante a visita de meu pai. Transferidas, penso agora, para a pia, onde esperam sem ter sido lavadas. DNA numa caneca provará que minha mãe e meu tio dizem a verdade. Os restos dos sanduíches dinamarqueses devem estar por perto.
“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”
“Na cozinha.”
“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”
“Dinheiro.”
“Não. Botar você para fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”
“Anos.”
“Meses. Quanto emprestei para ele?”
“Mil.”
“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”
“Estou grávida. Afeta a memória.”
“Você mesma disse ontem. Tudo como foi, mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga.”
“Mais a luva. Menos que ele estava voltando para cá.”
“Meu Deus, sim. Outra vez. Qual a causa da depressão?”
“Nós. Dívidas. Trabalho. O bebê.”
“Certo.”
Repassam mais uma vez. Na terceira, soa melhor. Que cumplicidade mais doentia, eu desejar que eles tenham êxito!
“Então repita.”
“Tal como aconteceu. Menos a vitamina, mais a briga e a luva, menos a depressão, mais que ele estava voltando para cá.”
“Não. Porra! Trudy. Exatamente como foi. Mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga, mais a luva, menos a volta para cá.”
A campainha toca e eles se imobilizam.
“Diga a eles que não estamos prontos.”
Para minha mãe, essa era a ideia de uma piada. Ou prova de seu terror.
Provavelmente resmungando obscenidades, Claude caminha até o videofone, muda de ideia e segue para a escada em direção à porta da frente.
Trudy e eu damos uma volta nervosa pela cozinha, arrastando os pés. Ela também resmunga enquanto trabalha na história. Isso é proveitoso porque cada esforço sucessivo da memória a afasta mais dos fatos reais. Ela está memorizando suas lembranças. Os erros de transcrição serão a seu favor. Constituirão de início um colchão útil, transformando-se depois em verdade. Também poderia dizer a si mesma: ela não comprou o glicol, não foi à Judd Street, não preparou a bebida, não pôs as coisas no carro, não jogou o liquidificador no lixo. Ela limpou a cozinha — nada de ilegal nisso. Convencida, estará libertada da astúcia consciente e pode ter uma chance. A mentira eficaz, assim como uma tacada de mestre no golfe, está livre da autoconsciência. Presto atenção nos comentários esportivos.
Atento aos passos que descem a escada, eu os diferencio. Os da inspetora-chefe Allison são leves, até mesmo como os de um passarinho, apesar de seu posto elevado. Apertos de mão são trocados. Pelo rígido “Como vai a senhora?” do sargento, reconheço o policial mais velho que esteve aqui ontem. O que terá impedido sua promoção? Classe, educação, Q.I., escândalo — o último, espero, pelo qual ele pode ser culpado, não precisando da minha compaixão.
A ágil inspetora-chefe senta-se à mesa da cozinha e convida todos a fazerem o mesmo, como se a casa fosse dela. Acho que capto minha mãe pensando que seria mais fácil enganar um homem. Allison abre uma pasta e fica apertando repetidamente o botão da mola da caneta enquanto fala. Nos diz que antes deseja expressar — faz uma pausa de grande efeito para olhar, não tenho dúvida, no fundo dos olhos de Trudy e de Claude — seus profundos sentimentos pela perda de um marido querido, de um irmão querido, de um amigo querido. Nada de um pai querido. Estou lutando contra o sentimento gélido e bem conhecido de exclusão. Mas a voz é cálida, maior que seu corpo, enfrentando sem tensões os ossos do ofício. A ligeira pronúncia típica dos habitantes mais pobres do leste de Londres corresponde aos padrões urbanos consagrados, e não será facilmente desafiada. Não pelas vogais forçadas de minha mãe, aprendidas em colégios caros. Esse velho truque já não funcionaria. Os tempos são outros. Um dia a maior parte dos estadistas britânicos falará como a inspetora-chefe. Me pergunto se ela tem uma arma. Desnecessário. Como a rainha, que não carrega dinheiro. Atirar nas pessoas é coisa de sargento para baixo.
Allison explica que se trata de uma conversa informal para ajudá-la a ter uma compreensão mais ampla dos trágicos acontecimentos. Trudy e Claude não têm nenhuma obrigação de responder às perguntas. Mas ela está errada. Eles se sentem obrigados. A recusa os faria dar a impressão de serem suspeitos. No entanto, se a inspetora-chefe estiver uma jogada à frente, pode pensar que a aceitação é ainda mais suspeita. Os que nada têm a esconder insistiriam num advogado como precaução contra os erros policiais ou uma intromissão ilegal.
Ao nos acomodarmos em torno da mesa, reparo na ausência de indagações corteses sobre mim, coisa de que me ressinto. Espera para quando? Menino ou menina?
Em vez disso, a inspetora-chefe não perde tempo. “Vocês podem me mostrar a casa depois que terminarmos a conversa.”
Mais uma afirmação que um pedido. Claude está ansioso, ansioso demais, para obedecer. “Ah, sim. Sim!”
Uma ordem de busca seria a alternativa. Mas não há nada de interessante para a polícia no andar de cima além da imundície.
A inspetora-chefe diz para Trudy: “Seu marido veio aqui ontem por volta das dez horas da manhã?”.
“Isso mesmo.” Seu tom é impassível, um exemplo para Claude.
“E houve alguma tensão.”
“Naturalmente.”
“Por que naturalmente?”
“Estou morando com o irmão dele na casa que John achava que era sua.”
“De quem é a casa?”
“Do casal.”
“O casamento tinha acabado?”
“Sim.”
“Se importa se eu perguntar? Ele achava que tinha acabado?”
Trudy hesita. Pode haver uma resposta certa e uma errada.
“Ele me queria de volta, mas também queria manter suas amigas.”
“Conhece algum nome?”
“Não.”
“Mas ele lhe falou sobre elas?”
“Não.”
“Mas de alguma maneira a senhora sabia.”
“Claro que eu sabia.”
Trudy se permite algum desdém. Como se para dizer: “Sou a mulher de verdade aqui”. Mas ignorou as instruções de Claude. Devia dizer a verdade, acrescentando e subtraindo apenas o que tinha sido combinado. Ouço meu tio se mexer na cadeira.
Sem fazer nenhuma pausa, Allison muda de assunto. “Vocês tomaram café.”
“Sim.”
“Os três? Em volta desta mesa?”
“Os três.” Claude diz isso, talvez preocupado que seu silêncio esteja passando uma má impressão.
“Mais alguma coisa?”
“O quê?”
“Com o café. Vocês lhe ofereceram alguma coisa mais?”
“Não.” Minha mãe soa cautelosa.
“E o que havia no café?”
“Como assim?”
“Leite? Açúcar?”
“Ele sempre tomava sem leite.” O ritmo do pulso dela acelerou.
Mas o comportamento de Clare Allison é impenetravelmente neutro. Ela se volta para Claude. “Então o senhor lhe emprestou algum dinheiro.”
“Sim.”
“Quanto?”
“Cinco mil.” Claude e Trudy respondem num coro mal sincronizado.
“Um cheque?”
“Na verdade em dinheiro vivo. Foi como ele queria.”
“O senhor tem ido àquela loja de vitaminas na Judd Street?”
A resposta de Claude é tão rápida quanto a pergunta. “Uma ou duas vezes. Foi John quem nos falou sobre ela.”
“Imagino que o senhor não tenha estado lá ontem.”
“Não.”
“Nunca pediu emprestado o chapéu preto de aba larga dele?”
“Nunca. Não faz meu estilo.”
Essa pode ser a resposta errada, mas não há tempo para raciocinar. As perguntas adquiriram um novo peso. O coração de Trudy está batendo mais rápido. Eu não confiaria nela para falar. Mas ela fala, e com voz estrangulada.
“Presente meu de aniversário. Ele amava aquele chapéu.”
A inspetora-chefe já está passando para algo diferente, mas volta atrás. “É tudo que se vê na câmera de segurança. Mandamos o chapéu para um teste de DNA.”
“Nem lhes oferecemos chá, café”, diz Trudy com voz alterada.
A inspetora-chefe deve ter recusado com um balançar de cabeça por ela e pelo sargento, ainda em silêncio. “Agora é quase tudo assim”, ela diz num tom nostálgico, “ciência e telas de computadores. Mas onde estávamos? Ah, sim. Houve alguma tensão. Mas vejo em minhas anotações que ocorreu uma briga.”
Claude deve estar fazendo os mesmos raciocínios apressados que eu. Seu cabelo será encontrado no chapéu. A resposta correta era sim, tinha pedido emprestado algum tempo atrás.
“Sim”, diz Trudy. “Uma de muitas.”
“Se importa de me dizer...”
“Ele queria que eu saísse da casa. Eu disse que iria quando estivesse pronta.”
“Quando ele foi embora, qual era seu estado de espírito?”
“Bem ruim. Estava péssimo. Confuso. Na verdade não queria que eu me mudasse daqui. Me queria de volta. Tentou que eu ficasse com ciúme, fingindo que Elodia era sua amante. Ela nos esclareceu tudo. Os dois não tinham um relacionamento.”
Detalhes demais. Ela está tentando retomar o controle. Mas falando muito rápido. Precisa dar uma respirada.
Clare Allison fica em silêncio enquanto aguardamos para saber qual a próxima direção que tomará. Mas ela continua nesse assunto, declarando da forma mais delicada possível: “Não é a informação que tenho”.
Um instante de torpor, como se o próprio som houvesse sido assassinado. O espaço em torno de mim se contrai porque Trudy parece ter se esvaziado como um balão. A coluna se dobra como a de uma velha. Sinto um pequeno orgulho de mim. Sempre tive minhas suspeitas. Com que avidez eles tinham acreditado em Elodia. Agora eles sabem: “Nem o copo-de-leite se demora”. Mas também preciso ter cautela. A inspetora-chefe pode ter razões para mentir. Está apertando o botão da caneta esferográfica, pronta para seguir em frente.
Minha mãe diz baixinho: “Bem, suponho que eu fui a mais enganada”.
“Sinto muito, sra. Cairncross. Mas minhas fontes são boas. Digamos apenas que se trata de uma jovem complicada.”
Eu poderia explorar a teoria de que não é mau negócio para Trudy ser a pessoa injuriada, obter corroboração para a história do marido infiel. Mas estou pasmo; nós dois estamos pasmos. Meu pai, aquela partícula mal compreendida, girando, se afasta ainda mais de mim no momento em que a inspetora-chefe faz outra pergunta a minha mãe. Ela também responde baixinho, com o tremor adicional de uma garotinha punida.
“Alguma violência?”
“Não.”
“Ameaças?”
“Não.”
“Nenhuma de sua parte.”
“Não.”
“E sobre a depressão dele? O que pode me dizer?”
Isso é dito gentilmente, e deve ser uma armadilha. Mas Trudy não faz uma pausa. Angustiada demais para inventar novas mentiras, persuadida demais de sua verdade, repete tudo que disse antes, na mesma linguagem inverossímil. Constante dor mental... Vociferava contra aqueles que amava... arrancava os poemas de sua alma. Vem-me a imagem vívida de uma parada de soldados exaustos, as plumas dos chapéus destruídas. A recordação em sépia de um podcast, as guerras napoleônicas em muitos episódios. Na época em que minha mãe e eu estávamos tranquilos. Ah, se Bonaparte tivesse se mantido dentro de suas fronteiras e feito boas leis para a França!
Claude entra na conversa: “Ele era seu pior inimigo”.
A acústica diferente me diz que a inspetora-chefe se voltou a fim de olhar diretamente para ele. “Algum outro inimigo, além dele próprio?”
O tom é despretensioso. Na melhor das hipóteses, uma pergunta pouco relevante; na pior das hipóteses, prenhe de intenções sinistras.
“Eu não saberia dizer. Nunca fomos muito próximos.”
“Me conte”, ela diz, com a voz mais calorosa, “sobre a infância dos dois. Isto é, se o senhor quiser.”
Ele quer. “Eu era três anos mais novo. Ele era bom em tudo. Esportes, estudos, garotas. Me achava um boboca insignificante. Quando cresci, fiz a única coisa que ele não conseguia fazer. Ganhar dinheiro.”
“Propriedades.”
“Esse tipo de coisa.”
A inspetora-chefe se volta de novo para Trudy. “Esta casa está à venda?”
“Claro que não.”
“Ouvi dizer que estava.”
Trudy não reage. Sua primeira jogada certa em muitos minutos.
Será que a inspetora-chefe está de uniforme? Deve estar. Seu quepe estará em cima da mesa, junto a seu cotovelo, como um grande bico. Não vejo nela a simpatia de um mamífero, mas rosto e lábios finos, roupas abotoadas até em cima. Sem dúvida sua cabeça, como a de um pombo, balança para a frente e para trás quando ela anda. O sargento a vê como uma detalhista. Fadada a galgar postos mais altos em que ele não a verá mais. Ela vai voar. Ou concluiu que John Cairncross se suicidou, ou tem razões para acreditar que uma gravidez no nono mês é uma boa maneira de ocultar um crime. Tudo que a inspetora-chefe diz, a observação mais banal, se presta a interpretações. O único poder que temos consiste em projetar. Tal como Claude, ela pode ser esperta ou burra, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Simplesmente não sabemos. Nossa ignorância é o que enche sua mão com as melhores cartas do baralho. Meu palpite é que ela tem poucas suspeitas, que não sabe de nada. Que seus superiores a estão observando. Que precisa ser delicada porque esta conversa é irregular, podendo comprometer o processo legal. Que ela vai preferir o apropriado ao verdadeiro. Que sua carreira é um ovo que ela botou, ela vai se sentar sobre ele, chocá-lo e esperar.
Mas já me enganei antes.
19.
Qual o próximo passo? Clare Allison quer dar uma olhada na casa. Péssima ideia. Mas recusar agora, quando, pelo que sei, as coisas estão indo mal, tornaria tudo pior. O sargento sobe na frente a escada de madeira, seguido por Claude, pela inspetora-chefe, depois por minha mãe e eu. No térreo, a inspetora-chefe diz que, se concordarmos, ela gostaria de ir até o último andar e descer “trabalhando”. Trudy não se interessa em subir mais. Os outros continuam, enquanto nós dois vamos nos sentar na sala — e pensar.
Envio meus pensamentos velozes adiante deles, primeiro à biblioteca. Pó de gesso, cheiro de morte, mas relativamente arrumada. No andar superior, quarto e banheiro, caos de uma espécie íntima, a própria cama um emaranhado de lascívia e sono interrompido, o chão coalhado de roupas largadas por Trudy, o banheiro com potes destampados, unguentos e roupa de baixo suja. Me pergunto o que a desordem significa para olhos desconfiados. Não há de ser algo moralmente neutro. O desdém pelas coisas, pela organização, pela limpeza deve pertencer a uma escala onde existe também o desprezo pelas leis, pelos valores, pela própria vida. O que é um criminoso senão um espírito transtornado? No entanto, um quarto excessivamente arrumado também poderia levantar suspeitas. A inspetora-geral, com os olhos aguçados de uma águia, vai olhar o quarto de relance e se afastar. Mas no subconsciente a repugnância deve afetar seu julgamento.
Há cômodos mais acima, porém nunca fui tão longe. Trago meus pensamentos para o térreo e, como uma criança bem-comportada, atento para o estado de minha mãe. Seu ritmo cardíaco se estabilizou. Ela parece quase calma. Talvez fatalista. A bexiga cheia pressiona minha cabeça. Mas ela não está disposta a se mover. Faz seus cálculos, talvez pensando no plano dos dois. Porém deveria se perguntar qual é o seu próprio interesse. Dissociar-se de Claude. Incriminá-lo de algum modo. De nada serve os dois cumprirem uma pena de prisão. Então ela e eu poderíamos ir ficando por aqui. Ela não ia querer me dar a alguém se estivesse sozinha numa casa grande. Nesse caso, prometo que a perdoaria. Ou me encarregaria dela mais tarde.
Mas não há tempo para maquinações. Ouço-os descer de volta. Passam pela porta aberta da sala, a caminho da porta da frente. A inspetora-chefe certamente não pode ir embora sem um respeitoso adeus à viúva. Na verdade, Claude abriu a porta para mostrar a Allison onde seu irmão tinha estacionado o carro, como no início o motor não pegou, como, apesar da briga, eles tinham acenado quando o carro começou a funcionar e deu marcha a ré para alcançar a rua. Uma lição em matéria de contar a verdade.
Logo depois, Claude e os policiais estão diante de nós.
“Trudy — posso chamá-la de Trudy? Que momento terrível, e você está sendo muito prestativa. Muito hospitaleira. Não sei...” A inspetora-chefe se interrompe, sua atenção desviada. “Aquilo é do seu marido?”
Ela está olhando para as caixas de papelão que meu pai trouxe e deixou embaixo da janela semicircular. Minha mãe se põe de pé. Se vai haver algum problema, melhor que use sua altura. E largura.
“Ele estava voltando para cá. Saindo de Shoreditch.”
“Posso ver?”
“Apenas livros. Mas pode, sim.”
O sargento solta um murmúrio ofegante quando se ajoelha para abrir as caixas. Eu diria que a inspetora-chefe está agachada, agora não como um pássaro, mas como uma pata gigantesca. É errado eu não gostar dela. Ela é a lei, e já me considero no tribunal de Hobbes. O Estado precisa deter o monopólio da violência. Mas o jeitão da inspetora-chefe me irrita, o modo como vasculha as coisas de meu pai, seus livros prediletos, enquanto parece falar consigo mesma sabendo que não temos alternativa senão escutá-la.
“Não entendo. Muito, muito triste... bem na pista de acesso...”
Claro que ela está representando, trata-se de um prelúdio. Ela se levanta. Acho que está olhando para Trudy. Talvez para mim.
“Mas o verdadeiro mistério é o seguinte. Nenhuma impressão digital na garrafa de glicol. Nem no copo. Soube disso há pouco pelo pessoal técnico. Nenhum vestígio. Que estranho!”
“Ah!”, diz Claude, mas Trudy o interrompe. Eu deveria alertá-la. Ela não deve se mostrar tão ansiosa. Sua explicação vem depressa demais. “A luva. Problema de pele. Ele tinha tanta vergonha das mãos!”
“Ah, a luva!”, exclama a inspetora-chefe. “Tem razão. Esqueci completamente!” Ela está desdobrando um pedaço de papel. “Essa?”
Minha mãe dá um passo à frente para olhar. Deve ser a reprodução de uma fotografia. “Sim.”
“Não havia outra?”
“Não como essa. Eu costumava dizer que ele não precisava dela. Ninguém realmente se importava.”
“Ele usava o tempo todo?”
“Não. Mas bastante, principalmente quando estava deprimido.”
A inspetora-chefe está de saída, e isso é um alívio. Nós todos a acompanhamos até o vestíbulo.
“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo... Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto — os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”
A porta da frente é aberta, provavelmente pelo sargento. A inspetora-chefe sai. Ao se afastar, sua voz diminui de volume e se mistura ao som do tráfego. “Não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome em latim. Há muito tempo nenhuma mão calçava aquela luva.”
O sargento toca no braço de minha mãe e por fim fala, dizendo gentilmente ao partir: “Voltamos amanhã de manhã. Para esclarecer umas últimas coisas”.
20.
Por fim, a hora chegou. Há decisões a serem tomadas, urgentes, irreversíveis, autocondenatórias. Mas antes Trudy necessita de dois minutos de solidão. Corremos para o porão, para aquilo que antes chamavam de casinha. Lá, enquanto a pressão sobre meu crânio é aplacada e minha mãe continua sentada alguns segundos mais do que seria necessário, suspirando para si própria, meus pensamentos tornam-se claros. Ou tomam um novo rumo. Pensei que os assassinos deveriam escapar para garantir minha liberdade. Essa pode ser uma visão muito estreita, muito egoísta. Há outras considerações. O ódio a meu tio pode exceder o amor por minha mãe. Puni-lo pode ser mais nobre que salvá-la. Mas talvez seja possível conseguir as duas coisas.
Essas preocupações permanecem comigo ao voltarmos à cozinha. Parece que, depois que os policiais foram embora, Claude percebeu que precisava de um uísque. Ao ouvir a bebida sendo servida quando entrarmos, um som sedutor, Trudy descobre que também precisa de um. Dos grandes. Com água da torneira, meio a meio. Em silêncio, meu tio se desincumbe da tarefa. Em silêncio, ficam de pé frente a frente junto à pia. Não é hora de brindar. Cada um contemplando os erros do outro ou até mesmo os seus. Ou decidindo o que fazer. Esta é a emergência que temiam, e para a qual têm um plano. Bebem o que há nos copos e, sem uma palavra, partem para uma segunda dose. Nossas vidas estão prestes a mudar. A inspetora-chefe Allison paira sobre nós, uma deusa imprevisível e sorridente. Não saberemos, até que seja tarde demais, por que não efetuou as prisões naquele momento, por que nos deixou a sós. Dando os últimos retoques no caso, esperando a análise de DNA no chapéu, seguindo em frente? Minha mãe e meu tio devem levar em conta que qualquer escolha feita agora pode ser a que ela espera deles, e ela está a postos. Também é possível que o misterioso plano dos dois não tenha ocorrido a ela, e então os dois estariam um passo adiante. Boa razão para agir com audácia. Em vez disso, nesse momento eles preferem um drinque. Talvez qualquer coisa que façam preste um serviço a Clare Allison, inclusive esse interlúdio com um single malt. Mas não, a única chance deles é optar pela escolha radical — e agora.
Trudy ergue o braço para impedir uma terceira dose. Claude é mais resoluto. Está empenhado na busca rigorosa da clareza mental. Ouvimos enquanto se serve — ele vem bebendo uísque puro em grandes quantidades —, depois quando engole emitindo um som forte, que conhecemos bem. Devem estar se perguntando como evitar uma briga exatamente no momento que precisam trabalhar juntos. De longe chega o som de uma sirene, apenas uma ambulância, mas que espicaça seus medos. A rede do Estado se estende invisível por toda a cidade. Difícil escapar dela. Mas funciona como um ponto de teatro, porque finalmente ocorre uma fala, uma útil afirmação do óbvio.
“Isto é ruim.” A voz de minha mãe é baixa e gutural.
“Onde estão os passaportes?”
“Estão comigo. E o dinheiro?”
“Na minha maleta.”
Mas eles não se movem, e a assimetria da troca de palavras — a resposta evasiva de minha mãe — não provoca meu tio. Ele está bem avançado na terceira dose, quando a primeira de Trudy chega a mim. Nada sensual, mas, sem exagero, cai bem diante da situação, essa sensação de fim sem um começo à vista. Visualizo uma velha estrada militar através de um desfiladeiro gelado nas montanhas, um leve odor de pedra úmida e turfa, o som de aço e passos obedientes no chão de cascalho, o peso da amarga injustiça. Tão distante das vertentes voltadas para o sul, das flores cobertas de pólen nos fartos ramalhetes roxos que emolduravam as colinas longínquas, com seus tons sobrepostos de um índigo cada vez mais pálido. Eu preferia estar lá. Mas admito — o uísque, meu primeiro, liberta minha mente. Uma cruel libertação: o portão aberto conduz à luta e ao medo do que a mente é capaz de criar. Está acontecendo comigo agora. Me perguntam, eu mesmo me pergunto, o que mais desejo agora. Qualquer coisa. O realismo não é um fator limitativo. Corte as cordas, solte a imaginação. Posso responder sem pensar: vou atravessar o portão aberto.
Passos na escada. Trudy e Claude olham para cima, surpresos. Será que a inspetora encontrou um modo de entrar na casa? Um ladrão escolheu a pior das noites? É uma descida lenta, pesada. Eles veem um sapato preto de couro, um cinto, uma camisa manchada de vômito, e depois uma expressão terrível, ao mesmo tempo vazia e determinada. Meu pai está com as roupas com que morreu. Rosto exangue, lábios preto-esverdeados já em putrefação, olhos pequenos e penetrantes. Agora se postou ao pé da escada, mais alto que em minhas recordações. Veio do necrotério para nos encontrar e sabe exatamente o que deseja. Estou tremendo porque minha mãe também está. A imagem não é bruxuleante, ela nada tem de fantasmagórica. Este é meu pai em carne e osso, John Cairncross, como sempre foi. O gemido aterrorizado de minha mãe serve como estímulo, pois ele caminha em nossa direção.
“John”, Claude diz com cautela, num tom de voz ascendente, como se pudesse despertar aquela figura e levá-la de volta à não existência a que pertence. “John, somos nós.”
Isso parece bem entendido. Ele está à nossa frente, exalando um miasma de glicol e carne visitada por vermes amigáveis. É minha mãe quem ele encara fixamente com olhos pequenos, duros e negros, feitos de uma rocha indestrutível. Seus lábios repulsivos se movem, mas não emitem nenhum som. A língua é mais preta que os lábios. Mantendo o olhar nela o tempo todo, ele estende um braço. A mão descarnada se aferra à garganta de meu tio. Minha mãe não consegue nem gritar. Os olhos ilíquidos continuam pregados nela. Isso é para ela, o presente dele. A mão impiedosa aperta ainda mais. Claude cai de joelhos, olhos esbugalhados, as mãos golpeando e puxando inutilmente o braço do irmão. Só um guincho distante, o som patético de um camundongo, nos diz que ele ainda está vivo. Depois não está mais. Meu pai, que nem de relance olhou para ele uma única vez, deixa-o tombar no chão e agora puxa sua mulher para perto de si, a envolve em braços finos e fortes como vergalhões de aço. Traz o rosto dela para junto do dele e lhe dá um beijo longo e intenso com lábios gelados e apodrecidos. Ela é tomada de horror, de repugnância, de vergonha. Será atormentada por esse instante até o dia de sua morte. Indiferente, ele a liberta e caminha de volta para onde veio. Ao subir a escada, já começa a se desvanecer.
Bem, me perguntaram. Eu mesmo me perguntei. E era isso que eu queria. Uma fantasia infantil do Dia das Bruxas. De que outro modo encomendar a vingança de um espírito numa era de convicções seculares? O gótico foi razoavelmente banido, as feiticeiras largaram às pressas os caldeirões, só nos restou o materialismo, tão perturbador para a alma. Uma voz no rádio me disse certa vez que, quando compreendermos perfeitamente o que é a matéria, vamos nos sentir melhor. Duvido. Nunca terei o que quero.
Volto de meus devaneios e vejo que estamos no quarto. Não me lembro de termos subido. O som oco da porta do armário, o tilintar dos cabides de casacos, uma mala posta na cama, depois outra, o estalido das fechaduras sendo abertas. Eles deveriam ter feito as malas com antecedência. A inspetora poderia vir até mesmo esta noite. É isso que eles chamam de plano? Ouço imprecações e resmungos.
“Onde é que está? Estava aqui comigo. Na minha mão!”
Cruzam o quarto de um lado ao outro, abrem gavetas, entram e saem do banheiro. Trudy deixa cair um copo, que se estilhaça no chão. Ela nem liga. Por algum motivo, o rádio está ligado. Claude senta-se com seu notebook e murmura: “Trem às nove. O táxi está a caminho”.
“Eu preferia Paris a Bruxelas. Melhores conexões para seguir viagem”, Trudy resmunga para si mesma ainda no banheiro. “Dólares... euros.”
Tudo que eles dizem, mesmo os ruídos que fazem, têm um ar de despedida, como um triste acorde final, um adeus cantado. Este é o fim, não voltaremos. A casa, a casa de meu avô em que eu deveria crescer, está prestes a se apagar. Não me lembrarei dela. Eu gostaria de solicitar uma lista de países sem acordo de extradição. Na maioria são desconfortáveis, desorganizados, quentes. Ouvi dizer que Beijing é um lugar aprazível para fugitivos. Uma próspera aldeia de vilões que falam inglês enterrada na vastidão populosa da cidade cosmopolita. Um bom local para terminar.
“Soníferos, analgésicos”, Claude diz em voz alta.
Sua voz, seu tom me instigam. Hora de decidir. Ele está fechando as malas, prendendo as tiras de couro. Foi rápido. Então já deviam ter começado a fazê-las. São daquelas antigas, de duas rodinhas e não quatro. Claude as levanta da cama e põe no chão.
Trudy pergunta: “Qual?”.
Acho que está mostrando dois lenços de pescoço. Claude resmunga sua escolha. Isso não passa de um simulacro de normalidade. Quanto tomarem o trem, quando atravessarem a fronteira, a culpa dos dois vai se revelar. Só dispõem de uma hora e devem se apressar. Trudy diz que há um casaco que que ela quer e que não está conseguindo achar. Claude insiste que ela não vai precisar dele.
“É levinho”, ela diz. “O branco.”
“Você vai se destacar na multidão. Nas câmeras de segurança.”
Mas ela acaba encontrando-o justamente quando o Big Ben bate oito horas e o noticiário começa. Eles não param para escutar. Ainda há algumas últimas coisas para pegar. Na Nigéria, crianças queimadas vivas diante dos pais pelos guardiões das chamas. Na Coreia do Norte, um foguete é lançado. Ao redor do mundo, a elevação do nível do mar supera as previsões. Mas nenhuma dessas é a principal. Tal privilégio é dado a uma nova catástrofe. Uma combinação — pobreza e guerra, com mudança climática na reserva — que vem expulsando milhões de pessoas de seus lares, um antigo épico sob novo formato, vastos movimentos humanos como rios ingurgitados na primavera, Danúbios, Renos e Ródanos de seres irados ou desolados, ou esperançosos, amontoados nas fronteiras contra as cercas de arame cortante, afogando-se aos milhares ao tentarem compartilhar as riquezas do Ocidente. Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.
E, como sempre, há problemas mais perto de casa. Enquanto as emissoras de rádio e televisão prosseguem com suas cantilenas, as pessoas vão tocando seus negócios. Um casal acabou de se aprontar para uma viagem. As malas estão fechadas, mas há uma fotografia de sua mãe que a jovem mulher deseja levar. A pesada moldura esculpida é grande demais para ser posta na bagagem. Sem a ferramenta certa, a fotografia não pode ser removida, e a ferramenta, um tipo especial de chave, está no porão, no fundo de uma gaveta. O táxi espera lá fora. O trem parte dentro de cinquenta minutos, a estação fica um pouco longe, pode haver filas nos controles de segurança e de passaportes. O homem leva uma das malas para o patamar da escada e volta um pouco ofegante. Deveria ter usado as rodinhas.
“Agora temos mesmo que ir de qualquer maneira.”
“Preciso levar essa foto.”
“Leve debaixo do braço.”
Mas, além de ter de puxar a mala, ela carrega a bolsa, o casaco branco e eu.
Com um gemido, Claude pega a segunda mala a fim de levá-la para fora. Com esse esforço inútil quer mostrar o quanto é urgente eles partirem.
“Você não vai demorar nem um minuto. Está no canto da frente da gaveta do lado esquerdo.”
Ele volta. “Trudy. Estamos indo. Agora.”
A troca de palavras passou de lacônica a amarga.
“Leva para mim.”
“Nem pensar.”
“Claude. É minha mãe.”
“Estou pouco ligando. Estamos indo.”
Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais. Hora de entrar em ação. Acabar de uma vez por todas. Hora de começar. Não é fácil libertar meu braço direito, apertado contra o peito, ou movimentar o pulso. Mas agora isso foi feito. Um dedo indicador é a minha ferramenta especial para remover minha mãe da moldura. Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas. Faço a primeira tentativa de incisão. Minhas unhas são macias e, embora fino, o tecido é resistente. A evolução sabe das coisas. Tateio para encontrar a ranhura causada pelo meu dedo. Há uma dobra, bem definida, e é lá que tento de novo, até que na quinta investida sinto uma tênue esgarçadura e, na sexta, um minúsculo rompimento. Consigo enfiar a ponta da unha nesse rasgo, o dedo, dois dedos, três, quatro, até que por fim minha mão fechada abre o caminho e atrás dela vem um grande volume de líquido, a catarata do começo da vida. Minha proteção aquosa desapareceu.
Agora nunca saberei como a história da fotografia ou do trem das nove horas teria sido resolvida. Claude está fora do quarto, no alto da escada. Tem uma mala em cada mão, pronto para descer.
Minha mãe o chama com o que parece ser um gemido desapontado. “Ah, Claude.”
“O que agora?”
“A bolsa rompeu!”
“Cuidamos disso depois. No trem.”
Ele deve ter imaginado que se tratava de uma artimanha, da continuidade da discussão, um tipo repulsivo de problema feminino que ele está agitado demais para levar em conta.
Estou mexendo os ombros para me libertar da membrana embrionária, minha primeira experiência em matéria de me despir. Sou desajeitado. Três dimensões me parecem três a mais do que eu desejava. Prevejo que o mundo material será um desafio. O manto descartado continua retorcido em volta dos meus joelhos. Não faz mal. Tenho uma nova tarefa abaixo da cabeça. Não sei como sei o que devo fazer. É um mistério. Há certos conhecimentos com os quais simplesmente já chegamos. No meu caso, há este, e um punhado de escansões poéticas. Afinal, nenhuma lousa em branco. Trago a mesma mão à bochecha e a deslizo para baixo, ao longo da parede muscular do útero, a fim de achar o colo. Ele está bem apertado contra a parte de trás da minha cabeça. É lá, na entrada do mundo, que eu apalpo delicadamente com meus pequenos dedos e de imediato, como se alguma fórmula mágica houvesse sido pronunciada, o grande poder de minha mãe é estimulado, as paredes a meu redor se encrespam, tremem e se fecham sobre mim. É um terremoto, uma comoção gigantesca na caverna dela. Como o aprendiz de feiticeiro, fico horrorizado e depois esmagado pela força desencadeada. Eu deveria ter esperado a minha hora. Só um idiota se meteria com essa força. Ouço à distância minha mãe gritar. Pode ser um pedido de ajuda, quem sabe um berro de triunfo ou dor. Então sinto alguma coisa no topo da cabeça, minha coroa — um centímetro de dilatação! Não há volta.
Trudy se arrastou para a cama. Claude está em algum lugar perto da porta. Ela está arfando, excitada e muito assustada.
“Começou. Como é rápido! Chame uma ambulância.”
Ele não diz nada por um momento, depois simplesmente pergunta: “Onde está meu passaporte?”.
A derrota é minha, eu o subestimei. O objetivo de chegar mais cedo era para destruir Claude. Eu sabia que ele era um problema. Mas pensei que amava minha mãe e que ficaria com ela. Estou começando a entender a força mental de Trudy. Enquanto ele remexe a bolsa dela e se ouve o tilintar alegre das moedas contra o estojo de maquiagem, ela diz: “Escondi. Lá embaixo. Justamente caso isso acontecesse”.
Ele reflete. Já comprou e vendeu propriedades, possuiu um arranha-céu em Cardiff, sabe como fechar um negócio. “Me diga onde está que eu chamo uma ambulância para você. E aí vou embora.”
A voz dela é cautelosa. Observando de perto seu próprio estado, esperando, desejando e temendo a próxima onda. “Não. Se eu cair, você cai também.”
“Ótimo. Sem ambulância.”
“Eu mesma vou chamar. Assim que...”
Assim que tenha passado a segunda contração, mais forte que a primeira. De novo seu grito involuntário, o corpo todo se contraindo enquanto Claude atravessa o quarto para se aproximar da cama e desconectar da parede o telefone que estava na mesinha de cabeceira. Ao mesmo tempo, sou comprimido violentamente e erguido uns três ou quatro centímetros, sugado para baixo e para trás de onde estava hibernando. Uma cinta de ferro espreme mais e mais minha cabeça. Nossos três destinos esmagados por uma grande boca.
Assim que a onda reflui, Claude, como um guarda de fronteira, diz, impassível: “Passaporte?”.
Ela sacode a cabeça, espera até retomar o fôlego. Os dois mantêm uma espécie de equilíbrio.
Ela se recupera e diz, sem emoção na voz: “Então você vai ter que fazer o papel da parteira”.
“O filho não é meu.”
“O filho nunca é da parteira.”
Ela está apavorada, mas pode aterrorizá-lo com instruções.
“Quando ele sair, vai vir com o rosto para baixo. Você pega o bebê com as duas mãos, bem delicadamente, apoiando a cabeça dele, e põe em cima de mim. Ainda com o rosto para baixo, entre os meus seios. Perto de onde bate o coração. Não se preocupe com o cordão. Vai parar de pulsar sozinho, e o bebê começa a respirar. Ponha umas duas toalhas em cima dele para mantê-lo aquecido. E aí esperamos.”
“Esperamos? Meus Deus! Esperamos o quê?”
“Que a placenta saia.”
Não sei se ele se encolheu ou teve uma ânsia de vômito. Podia ainda estar imaginando que terminaria com aquilo e pegaria um trem mais tarde.
Ouço com atenção, querendo saber o que fazer. Me enfiar embaixo de uma toalha. Respirar. Não pronunciar uma única palavra. Mas não basta ser um bebê. Com certeza rosa ou azul!
“Por isso, vá buscar uma porção de toalhas. Vai ser uma sujeirada. Lave as mãos bem lavadas, com a escovinha de unhas e muito sabonete.”
Tão longe de onde dava pé para ele, tão longe da costa acolhedora, um homem sem seus documentos deveria estar em plena fuga. Ele dá meia-volta para fazer o que lhe foi ordenado.
E assim seguem as coisas, onda atrás de onda, gritos e gemidos, súplicas para que a agonia tenha fim. Progresso impiedoso, ejeção em curso. O cordão se desenrola atrás de mim à medida que avanço lentamente. Para a frente e para fora. Forças cruéis da natureza pretendem me achatar. Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos.
Um momento deslizante de urgência pegajosa, com sons ásperos, e aqui estou eu, trazido nu ao reino. Como o corajoso Cortés (lembro de um poema que meu pai recitou), estou pasmo. Olhando para baixo, maravilhado, para o que presumo ser a superfície felpuda de uma toalha de banho azul. Azul. Eu sempre soube, ao menos verbalmente, sempre fui capaz de deduzir o que era o azul — mar, céu, lápis-lazúli, gencianas — meras abstrações. Agora o tenho por fim, o possuo e ele me possui. Mais grandioso do que eu ousava crer. Isto é só o começo, na extremidade índigo do espectro.
Meu fiel cordão, que me mantinha vivo e não conseguiu me matar, de repente morre como planejado. Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom. Os sons são límpidos, brilhantes graças ao realce dos agudos. A resplandecente toalha, irradiando sua cor, evoca a mesquita de Goharshad no Irã que fez meu pai chorar nas primeiras horas de uma manhã. Minha mãe se mexe e faz com que minha cabeça mude de posição. Vejo Claude de relance. Menor do que eu imaginava, com ombros estreitos e cara de raposa. Sem a menor dúvida, com uma expressão de repugnância. A luz do sol do início da noite de verão atravessa as folhas de um plátano e projeta no teto desenhos tremulantes. Ah, a alegria de esticar as pernas, de verificar no despertador sobre a mesinha de cabeceira que eles jamais pegarão aquele trem. Mas não tenho muito tempo para saborear esse momento. Minha maleável caixa torácica é apertada pelas mãos enojadas de um assassino e sou posto na barriga hospitaleira, branca como a neve, de outra assassina.
As batidas de seu coração soam distantes, abafadas, mas são tão familiares quanto um velho estribilho que não ouvimos há décadas. O ritmo da música é um andante, passos delicados que me conduzem ao verdadeiro portão aberto. Não posso negar o medo que sinto. Mas estou exausto, um marinheiro náufrago que chegou a uma praia bem-afortunada. Estou caindo, mesmo enquanto o mar lambe meus tornozelos.
Trudy e eu devemos ter cochilado. Não sei quantos minutos se passaram até ouvirmos a campainha. Como ela soa claro. Claude ainda está aqui, ainda esperando obter seu passaporte. Ele deve ter descido para caçar o documento. Agora caminha até o interfone. Olha de relance a tela e dá meia-volta. Não pode haver surpresas.
“São quatro”, ele diz, mais para si mesmo.
Contemplamos esse fato. Acabou. Não é um bom final. Nunca seria.
Minha mãe me muda de lugar para que possamos trocar um longo olhar. O momento pelo qual esperei. Meu pai tinha razão, é um rosto adorável. O cabelo mais escuro do que eu pensava, os olhos de um verde mais pálido, as bochechas ainda coradas por causa do esforço recente, o nariz de fato uma coisinha bem pequena. Acho que vejo o mundo inteiro nesse rosto. Belo. Amoroso. Assassino. Ouço Claude atravessar o quarto com passos resignados para descer até a porta. Nenhum clichê. Mesmo nesse intervalo de descanso, durante o longo e ávido olhar no fundo dos olhos de minha mãe, estou pensando no táxi que espera lá fora. Um desperdício. Hora de mandá-lo embora. E estou pensando na nossa cela — espero que não seja pequena demais — e, mais além de sua pesada porta, nos degraus gastos que sobem: primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos.
18.
No começo da tarde, o telefone toca e o futuro se apresenta. Inspetora-chefe Clare Allison, designada para cuidar do caso. A voz soa amistosa, nenhum indício de acusação. Isso pode ser um mau sinal.
Estamos de novo na cozinha, Claude segura o fone. O primeiro café do dia na outra mão. Trudy se posta perto dele e nós dois ouvimos os dois interlocutores. Caso? A palavra contém uma ameaça. Inspetora-chefe? Também não ajuda muito.
Avalio a ansiedade de meu tio por seu zelo em se mostrar solícito. “Ah, sim. Sim! É claro. Por favor, faça isso.”
A inspetora-chefe Allison pretende nos visitar. O normal seria os dois irem à delegacia para uma conversa. Ou prestar depoimento, se apropriado. No entanto, por causa da gravidez avançada de Trudy, da dor da família, a inspetora-chefe e um sargento virão daqui a uma hora. Ela gostaria de dar uma olhada no local onde houve o último contato com o falecido.
Esta última informação, inocente e razoável a meus ouvidos, provoca em Claude um frenesi de boas-vindas. “Venha, por favor. Maravilhoso. Sem dúvida. Será um prazer conhecê-la. Contando os minutos. A senhora...”
Ela desliga. Ele se volta para nós, provavelmente cor de cinza, e diz numa voz desapontada: “Ah”.
Trudy não resiste a imitá-lo: “Tudo... ótimo, não é?”.
“Que caso é esse? Não se trata de uma questão criminal.” Ele apela a uma audiência imaginária, a um conselho de sábios. A um júri.
“Odeio isso”, minha mãe murmura, mais para si mesma. Ou para mim, eu gostaria de acreditar.
“Deve ser para o juiz de instrução.” Claude se afasta de nós, ofendido, dá uma volta pela cozinha e retorna, indignado. Agora sua queixa é dirigida a Trudy. “Não se trata de um caso de polícia.”
“Ah, é mesmo?”, ela diz. “Melhor então telefonar para a inspetora e explicar isso a ela.”
“Aquela poeta. Eu sabia que não podíamos confiar nela.”
Entendemos que, como Elodia é assunto de minha mãe, de algum modo isso constitui uma acusação.
“Você gostou dela.”
“Você disse que ela ia ser útil.”
“Você gostou dela.”
Mas a reiteração deliberadamente impassível não o espicaça.
“Quem não gostaria? E quem se importa com isso?”
“Eu me importo.”
Pergunto-me mais uma vez o que ganho se eles brigarem. Isso poderia arruiná-los. Então eu ficaria com Trudy. Já a escutei dizer que, na prisão, mães que estão amamentando levam uma vida melhor. Mas vou perder meu direito de nascer, o sonho de todos os seres humanos, minha liberdade. Enquanto juntos, como uma equipe, eles podem escapar raspando. E depois me darem para alguém. Sem mãe, mas livre. Portanto, o que é melhor? Já pensei nisso, voltando sempre ao mesmo bendito lugar, à única decisão moralmente correta. Vou arriscar os confortos materiais e me aventurar no mundo. Já estive confinado por tempo demais. Voto pela liberdade. Os assassinos precisam escapar. Então, antes que a discussão sobre Elodia vá longe demais, este é um bom momento para dar outro pontapé em minha mãe, distraí-la da briga com o interessante fato da minha existência. Não um nem dois, mas o número mágico de todas as boas histórias antigas. Três vezes, como Pedro negando Jesus.
“Ai, ai, ai!” Ela quase canta isso. Claude puxa uma cadeira para ela e traz um copo de água.
“Você está suando.”
“Bom, estou com calor.”
Ele testa as janelas. Não são movidas há anos. Procura gelo, mas os recipientes estão vazios depois das três rodadas recentes de gim e tônica. Por isso ele se senta diante dela e oferece sua refrescante solidariedade.
“Vai dar tudo certo.”
“Não, não vai.”
O silêncio dele concorda. Eu estava pensando num quarto chute, mas o estado de espírito de Trudy é perigoso. Ela pode partir para o ataque e provocar uma reação temerária.
Depois de uma pausa, em tom apaziguador, ele diz: “Devíamos repassar mais uma vez”.
“Que tal um advogado?”
“Um pouquinho tarde agora.”
“Diga a eles que não vamos falar sem a presença de um advogado.”
“Não vai cair bem, quando eles só estão vindo bater um papo.”
“Odeio isso.”
“Devíamos repassar mais uma vez.”
Mas não repassam. Estupefatos, contemplam a abordagem da inspetora-chefe Allison. Muito em breve. Dentro de uma hora pode significar em um minuto. Sabendo de tudo, de quase tudo, sou parte do crime, sem dúvida a salvo de um interrogatório, porém amedrontado. E curioso, impaciente para testemunhar as habilidades da inspetora-chefe. Alguém de mente aberta seria capaz de desmascarar esses dois em minutos. Trudy traída pelos nervos, Claude pela burrice.
Estou tentando imaginar onde estão as canecas de café da manhã usadas durante a visita de meu pai. Transferidas, penso agora, para a pia, onde esperam sem ter sido lavadas. DNA numa caneca provará que minha mãe e meu tio dizem a verdade. Os restos dos sanduíches dinamarqueses devem estar por perto.
“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”
“Na cozinha.”
“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”
“Dinheiro.”
“Não. Botar você para fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”
“Anos.”
“Meses. Quanto emprestei para ele?”
“Mil.”
“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”
“Estou grávida. Afeta a memória.”
“Você mesma disse ontem. Tudo como foi, mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga.”
“Mais a luva. Menos que ele estava voltando para cá.”
“Meu Deus, sim. Outra vez. Qual a causa da depressão?”
“Nós. Dívidas. Trabalho. O bebê.”
“Certo.”
Repassam mais uma vez. Na terceira, soa melhor. Que cumplicidade mais doentia, eu desejar que eles tenham êxito!
“Então repita.”
“Tal como aconteceu. Menos a vitamina, mais a briga e a luva, menos a depressão, mais que ele estava voltando para cá.”
“Não. Porra! Trudy. Exatamente como foi. Mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga, mais a luva, menos a volta para cá.”
A campainha toca e eles se imobilizam.
“Diga a eles que não estamos prontos.”
Para minha mãe, essa era a ideia de uma piada. Ou prova de seu terror.
Provavelmente resmungando obscenidades, Claude caminha até o videofone, muda de ideia e segue para a escada em direção à porta da frente.
Trudy e eu damos uma volta nervosa pela cozinha, arrastando os pés. Ela também resmunga enquanto trabalha na história. Isso é proveitoso porque cada esforço sucessivo da memória a afasta mais dos fatos reais. Ela está memorizando suas lembranças. Os erros de transcrição serão a seu favor. Constituirão de início um colchão útil, transformando-se depois em verdade. Também poderia dizer a si mesma: ela não comprou o glicol, não foi à Judd Street, não preparou a bebida, não pôs as coisas no carro, não jogou o liquidificador no lixo. Ela limpou a cozinha — nada de ilegal nisso. Convencida, estará libertada da astúcia consciente e pode ter uma chance. A mentira eficaz, assim como uma tacada de mestre no golfe, está livre da autoconsciência. Presto atenção nos comentários esportivos.
Atento aos passos que descem a escada, eu os diferencio. Os da inspetora-chefe Allison são leves, até mesmo como os de um passarinho, apesar de seu posto elevado. Apertos de mão são trocados. Pelo rígido “Como vai a senhora?” do sargento, reconheço o policial mais velho que esteve aqui ontem. O que terá impedido sua promoção? Classe, educação, Q.I., escândalo — o último, espero, pelo qual ele pode ser culpado, não precisando da minha compaixão.
A ágil inspetora-chefe senta-se à mesa da cozinha e convida todos a fazerem o mesmo, como se a casa fosse dela. Acho que capto minha mãe pensando que seria mais fácil enganar um homem. Allison abre uma pasta e fica apertando repetidamente o botão da mola da caneta enquanto fala. Nos diz que antes deseja expressar — faz uma pausa de grande efeito para olhar, não tenho dúvida, no fundo dos olhos de Trudy e de Claude — seus profundos sentimentos pela perda de um marido querido, de um irmão querido, de um amigo querido. Nada de um pai querido. Estou lutando contra o sentimento gélido e bem conhecido de exclusão. Mas a voz é cálida, maior que seu corpo, enfrentando sem tensões os ossos do ofício. A ligeira pronúncia típica dos habitantes mais pobres do leste de Londres corresponde aos padrões urbanos consagrados, e não será facilmente desafiada. Não pelas vogais forçadas de minha mãe, aprendidas em colégios caros. Esse velho truque já não funcionaria. Os tempos são outros. Um dia a maior parte dos estadistas britânicos falará como a inspetora-chefe. Me pergunto se ela tem uma arma. Desnecessário. Como a rainha, que não carrega dinheiro. Atirar nas pessoas é coisa de sargento para baixo.
Allison explica que se trata de uma conversa informal para ajudá-la a ter uma compreensão mais ampla dos trágicos acontecimentos. Trudy e Claude não têm nenhuma obrigação de responder às perguntas. Mas ela está errada. Eles se sentem obrigados. A recusa os faria dar a impressão de serem suspeitos. No entanto, se a inspetora-chefe estiver uma jogada à frente, pode pensar que a aceitação é ainda mais suspeita. Os que nada têm a esconder insistiriam num advogado como precaução contra os erros policiais ou uma intromissão ilegal.
Ao nos acomodarmos em torno da mesa, reparo na ausência de indagações corteses sobre mim, coisa de que me ressinto. Espera para quando? Menino ou menina?
Em vez disso, a inspetora-chefe não perde tempo. “Vocês podem me mostrar a casa depois que terminarmos a conversa.”
Mais uma afirmação que um pedido. Claude está ansioso, ansioso demais, para obedecer. “Ah, sim. Sim!”
Uma ordem de busca seria a alternativa. Mas não há nada de interessante para a polícia no andar de cima além da imundície.
A inspetora-chefe diz para Trudy: “Seu marido veio aqui ontem por volta das dez horas da manhã?”.
“Isso mesmo.” Seu tom é impassível, um exemplo para Claude.
“E houve alguma tensão.”
“Naturalmente.”
“Por que naturalmente?”
“Estou morando com o irmão dele na casa que John achava que era sua.”
“De quem é a casa?”
“Do casal.”
“O casamento tinha acabado?”
“Sim.”
“Se importa se eu perguntar? Ele achava que tinha acabado?”
Trudy hesita. Pode haver uma resposta certa e uma errada.
“Ele me queria de volta, mas também queria manter suas amigas.”
“Conhece algum nome?”
“Não.”
“Mas ele lhe falou sobre elas?”
“Não.”
“Mas de alguma maneira a senhora sabia.”
“Claro que eu sabia.”
Trudy se permite algum desdém. Como se para dizer: “Sou a mulher de verdade aqui”. Mas ignorou as instruções de Claude. Devia dizer a verdade, acrescentando e subtraindo apenas o que tinha sido combinado. Ouço meu tio se mexer na cadeira.
Sem fazer nenhuma pausa, Allison muda de assunto. “Vocês tomaram café.”
“Sim.”
“Os três? Em volta desta mesa?”
“Os três.” Claude diz isso, talvez preocupado que seu silêncio esteja passando uma má impressão.
“Mais alguma coisa?”
“O quê?”
“Com o café. Vocês lhe ofereceram alguma coisa mais?”
“Não.” Minha mãe soa cautelosa.
“E o que havia no café?”
“Como assim?”
“Leite? Açúcar?”
“Ele sempre tomava sem leite.” O ritmo do pulso dela acelerou.
Mas o comportamento de Clare Allison é impenetravelmente neutro. Ela se volta para Claude. “Então o senhor lhe emprestou algum dinheiro.”
“Sim.”
“Quanto?”
“Cinco mil.” Claude e Trudy respondem num coro mal sincronizado.
“Um cheque?”
“Na verdade em dinheiro vivo. Foi como ele queria.”
“O senhor tem ido àquela loja de vitaminas na Judd Street?”
A resposta de Claude é tão rápida quanto a pergunta. “Uma ou duas vezes. Foi John quem nos falou sobre ela.”
“Imagino que o senhor não tenha estado lá ontem.”
“Não.”
“Nunca pediu emprestado o chapéu preto de aba larga dele?”
“Nunca. Não faz meu estilo.”
Essa pode ser a resposta errada, mas não há tempo para raciocinar. As perguntas adquiriram um novo peso. O coração de Trudy está batendo mais rápido. Eu não confiaria nela para falar. Mas ela fala, e com voz estrangulada.
“Presente meu de aniversário. Ele amava aquele chapéu.”
A inspetora-chefe já está passando para algo diferente, mas volta atrás. “É tudo que se vê na câmera de segurança. Mandamos o chapéu para um teste de DNA.”
“Nem lhes oferecemos chá, café”, diz Trudy com voz alterada.
A inspetora-chefe deve ter recusado com um balançar de cabeça por ela e pelo sargento, ainda em silêncio. “Agora é quase tudo assim”, ela diz num tom nostálgico, “ciência e telas de computadores. Mas onde estávamos? Ah, sim. Houve alguma tensão. Mas vejo em minhas anotações que ocorreu uma briga.”
Claude deve estar fazendo os mesmos raciocínios apressados que eu. Seu cabelo será encontrado no chapéu. A resposta correta era sim, tinha pedido emprestado algum tempo atrás.
“Sim”, diz Trudy. “Uma de muitas.”
“Se importa de me dizer...”
“Ele queria que eu saísse da casa. Eu disse que iria quando estivesse pronta.”
“Quando ele foi embora, qual era seu estado de espírito?”
“Bem ruim. Estava péssimo. Confuso. Na verdade não queria que eu me mudasse daqui. Me queria de volta. Tentou que eu ficasse com ciúme, fingindo que Elodia era sua amante. Ela nos esclareceu tudo. Os dois não tinham um relacionamento.”
Detalhes demais. Ela está tentando retomar o controle. Mas falando muito rápido. Precisa dar uma respirada.
Clare Allison fica em silêncio enquanto aguardamos para saber qual a próxima direção que tomará. Mas ela continua nesse assunto, declarando da forma mais delicada possível: “Não é a informação que tenho”.
Um instante de torpor, como se o próprio som houvesse sido assassinado. O espaço em torno de mim se contrai porque Trudy parece ter se esvaziado como um balão. A coluna se dobra como a de uma velha. Sinto um pequeno orgulho de mim. Sempre tive minhas suspeitas. Com que avidez eles tinham acreditado em Elodia. Agora eles sabem: “Nem o copo-de-leite se demora”. Mas também preciso ter cautela. A inspetora-chefe pode ter razões para mentir. Está apertando o botão da caneta esferográfica, pronta para seguir em frente.
Minha mãe diz baixinho: “Bem, suponho que eu fui a mais enganada”.
“Sinto muito, sra. Cairncross. Mas minhas fontes são boas. Digamos apenas que se trata de uma jovem complicada.”
Eu poderia explorar a teoria de que não é mau negócio para Trudy ser a pessoa injuriada, obter corroboração para a história do marido infiel. Mas estou pasmo; nós dois estamos pasmos. Meu pai, aquela partícula mal compreendida, girando, se afasta ainda mais de mim no momento em que a inspetora-chefe faz outra pergunta a minha mãe. Ela também responde baixinho, com o tremor adicional de uma garotinha punida.
“Alguma violência?”
“Não.”
“Ameaças?”
“Não.”
“Nenhuma de sua parte.”
“Não.”
“E sobre a depressão dele? O que pode me dizer?”
Isso é dito gentilmente, e deve ser uma armadilha. Mas Trudy não faz uma pausa. Angustiada demais para inventar novas mentiras, persuadida demais de sua verdade, repete tudo que disse antes, na mesma linguagem inverossímil. Constante dor mental... Vociferava contra aqueles que amava... arrancava os poemas de sua alma. Vem-me a imagem vívida de uma parada de soldados exaustos, as plumas dos chapéus destruídas. A recordação em sépia de um podcast, as guerras napoleônicas em muitos episódios. Na época em que minha mãe e eu estávamos tranquilos. Ah, se Bonaparte tivesse se mantido dentro de suas fronteiras e feito boas leis para a França!
Claude entra na conversa: “Ele era seu pior inimigo”.
A acústica diferente me diz que a inspetora-chefe se voltou a fim de olhar diretamente para ele. “Algum outro inimigo, além dele próprio?”
O tom é despretensioso. Na melhor das hipóteses, uma pergunta pouco relevante; na pior das hipóteses, prenhe de intenções sinistras.
“Eu não saberia dizer. Nunca fomos muito próximos.”
“Me conte”, ela diz, com a voz mais calorosa, “sobre a infância dos dois. Isto é, se o senhor quiser.”
Ele quer. “Eu era três anos mais novo. Ele era bom em tudo. Esportes, estudos, garotas. Me achava um boboca insignificante. Quando cresci, fiz a única coisa que ele não conseguia fazer. Ganhar dinheiro.”
“Propriedades.”
“Esse tipo de coisa.”
A inspetora-chefe se volta de novo para Trudy. “Esta casa está à venda?”
“Claro que não.”
“Ouvi dizer que estava.”
Trudy não reage. Sua primeira jogada certa em muitos minutos.
Será que a inspetora-chefe está de uniforme? Deve estar. Seu quepe estará em cima da mesa, junto a seu cotovelo, como um grande bico. Não vejo nela a simpatia de um mamífero, mas rosto e lábios finos, roupas abotoadas até em cima. Sem dúvida sua cabeça, como a de um pombo, balança para a frente e para trás quando ela anda. O sargento a vê como uma detalhista. Fadada a galgar postos mais altos em que ele não a verá mais. Ela vai voar. Ou concluiu que John Cairncross se suicidou, ou tem razões para acreditar que uma gravidez no nono mês é uma boa maneira de ocultar um crime. Tudo que a inspetora-chefe diz, a observação mais banal, se presta a interpretações. O único poder que temos consiste em projetar. Tal como Claude, ela pode ser esperta ou burra, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Simplesmente não sabemos. Nossa ignorância é o que enche sua mão com as melhores cartas do baralho. Meu palpite é que ela tem poucas suspeitas, que não sabe de nada. Que seus superiores a estão observando. Que precisa ser delicada porque esta conversa é irregular, podendo comprometer o processo legal. Que ela vai preferir o apropriado ao verdadeiro. Que sua carreira é um ovo que ela botou, ela vai se sentar sobre ele, chocá-lo e esperar.
Mas já me enganei antes.
19.
Qual o próximo passo? Clare Allison quer dar uma olhada na casa. Péssima ideia. Mas recusar agora, quando, pelo que sei, as coisas estão indo mal, tornaria tudo pior. O sargento sobe na frente a escada de madeira, seguido por Claude, pela inspetora-chefe, depois por minha mãe e eu. No térreo, a inspetora-chefe diz que, se concordarmos, ela gostaria de ir até o último andar e descer “trabalhando”. Trudy não se interessa em subir mais. Os outros continuam, enquanto nós dois vamos nos sentar na sala — e pensar.
Envio meus pensamentos velozes adiante deles, primeiro à biblioteca. Pó de gesso, cheiro de morte, mas relativamente arrumada. No andar superior, quarto e banheiro, caos de uma espécie íntima, a própria cama um emaranhado de lascívia e sono interrompido, o chão coalhado de roupas largadas por Trudy, o banheiro com potes destampados, unguentos e roupa de baixo suja. Me pergunto o que a desordem significa para olhos desconfiados. Não há de ser algo moralmente neutro. O desdém pelas coisas, pela organização, pela limpeza deve pertencer a uma escala onde existe também o desprezo pelas leis, pelos valores, pela própria vida. O que é um criminoso senão um espírito transtornado? No entanto, um quarto excessivamente arrumado também poderia levantar suspeitas. A inspetora-geral, com os olhos aguçados de uma águia, vai olhar o quarto de relance e se afastar. Mas no subconsciente a repugnância deve afetar seu julgamento.
Há cômodos mais acima, porém nunca fui tão longe. Trago meus pensamentos para o térreo e, como uma criança bem-comportada, atento para o estado de minha mãe. Seu ritmo cardíaco se estabilizou. Ela parece quase calma. Talvez fatalista. A bexiga cheia pressiona minha cabeça. Mas ela não está disposta a se mover. Faz seus cálculos, talvez pensando no plano dos dois. Porém deveria se perguntar qual é o seu próprio interesse. Dissociar-se de Claude. Incriminá-lo de algum modo. De nada serve os dois cumprirem uma pena de prisão. Então ela e eu poderíamos ir ficando por aqui. Ela não ia querer me dar a alguém se estivesse sozinha numa casa grande. Nesse caso, prometo que a perdoaria. Ou me encarregaria dela mais tarde.
Mas não há tempo para maquinações. Ouço-os descer de volta. Passam pela porta aberta da sala, a caminho da porta da frente. A inspetora-chefe certamente não pode ir embora sem um respeitoso adeus à viúva. Na verdade, Claude abriu a porta para mostrar a Allison onde seu irmão tinha estacionado o carro, como no início o motor não pegou, como, apesar da briga, eles tinham acenado quando o carro começou a funcionar e deu marcha a ré para alcançar a rua. Uma lição em matéria de contar a verdade.
Logo depois, Claude e os policiais estão diante de nós.
“Trudy — posso chamá-la de Trudy? Que momento terrível, e você está sendo muito prestativa. Muito hospitaleira. Não sei...” A inspetora-chefe se interrompe, sua atenção desviada. “Aquilo é do seu marido?”
Ela está olhando para as caixas de papelão que meu pai trouxe e deixou embaixo da janela semicircular. Minha mãe se põe de pé. Se vai haver algum problema, melhor que use sua altura. E largura.
“Ele estava voltando para cá. Saindo de Shoreditch.”
“Posso ver?”
“Apenas livros. Mas pode, sim.”
O sargento solta um murmúrio ofegante quando se ajoelha para abrir as caixas. Eu diria que a inspetora-chefe está agachada, agora não como um pássaro, mas como uma pata gigantesca. É errado eu não gostar dela. Ela é a lei, e já me considero no tribunal de Hobbes. O Estado precisa deter o monopólio da violência. Mas o jeitão da inspetora-chefe me irrita, o modo como vasculha as coisas de meu pai, seus livros prediletos, enquanto parece falar consigo mesma sabendo que não temos alternativa senão escutá-la.
“Não entendo. Muito, muito triste... bem na pista de acesso...”
Claro que ela está representando, trata-se de um prelúdio. Ela se levanta. Acho que está olhando para Trudy. Talvez para mim.
“Mas o verdadeiro mistério é o seguinte. Nenhuma impressão digital na garrafa de glicol. Nem no copo. Soube disso há pouco pelo pessoal técnico. Nenhum vestígio. Que estranho!”
“Ah!”, diz Claude, mas Trudy o interrompe. Eu deveria alertá-la. Ela não deve se mostrar tão ansiosa. Sua explicação vem depressa demais. “A luva. Problema de pele. Ele tinha tanta vergonha das mãos!”
“Ah, a luva!”, exclama a inspetora-chefe. “Tem razão. Esqueci completamente!” Ela está desdobrando um pedaço de papel. “Essa?”
Minha mãe dá um passo à frente para olhar. Deve ser a reprodução de uma fotografia. “Sim.”
“Não havia outra?”
“Não como essa. Eu costumava dizer que ele não precisava dela. Ninguém realmente se importava.”
“Ele usava o tempo todo?”
“Não. Mas bastante, principalmente quando estava deprimido.”
A inspetora-chefe está de saída, e isso é um alívio. Nós todos a acompanhamos até o vestíbulo.
“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo... Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto — os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”
A porta da frente é aberta, provavelmente pelo sargento. A inspetora-chefe sai. Ao se afastar, sua voz diminui de volume e se mistura ao som do tráfego. “Não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome em latim. Há muito tempo nenhuma mão calçava aquela luva.”
O sargento toca no braço de minha mãe e por fim fala, dizendo gentilmente ao partir: “Voltamos amanhã de manhã. Para esclarecer umas últimas coisas”.
20.
Por fim, a hora chegou. Há decisões a serem tomadas, urgentes, irreversíveis, autocondenatórias. Mas antes Trudy necessita de dois minutos de solidão. Corremos para o porão, para aquilo que antes chamavam de casinha. Lá, enquanto a pressão sobre meu crânio é aplacada e minha mãe continua sentada alguns segundos mais do que seria necessário, suspirando para si própria, meus pensamentos tornam-se claros. Ou tomam um novo rumo. Pensei que os assassinos deveriam escapar para garantir minha liberdade. Essa pode ser uma visão muito estreita, muito egoísta. Há outras considerações. O ódio a meu tio pode exceder o amor por minha mãe. Puni-lo pode ser mais nobre que salvá-la. Mas talvez seja possível conseguir as duas coisas.
Essas preocupações permanecem comigo ao voltarmos à cozinha. Parece que, depois que os policiais foram embora, Claude percebeu que precisava de um uísque. Ao ouvir a bebida sendo servida quando entrarmos, um som sedutor, Trudy descobre que também precisa de um. Dos grandes. Com água da torneira, meio a meio. Em silêncio, meu tio se desincumbe da tarefa. Em silêncio, ficam de pé frente a frente junto à pia. Não é hora de brindar. Cada um contemplando os erros do outro ou até mesmo os seus. Ou decidindo o que fazer. Esta é a emergência que temiam, e para a qual têm um plano. Bebem o que há nos copos e, sem uma palavra, partem para uma segunda dose. Nossas vidas estão prestes a mudar. A inspetora-chefe Allison paira sobre nós, uma deusa imprevisível e sorridente. Não saberemos, até que seja tarde demais, por que não efetuou as prisões naquele momento, por que nos deixou a sós. Dando os últimos retoques no caso, esperando a análise de DNA no chapéu, seguindo em frente? Minha mãe e meu tio devem levar em conta que qualquer escolha feita agora pode ser a que ela espera deles, e ela está a postos. Também é possível que o misterioso plano dos dois não tenha ocorrido a ela, e então os dois estariam um passo adiante. Boa razão para agir com audácia. Em vez disso, nesse momento eles preferem um drinque. Talvez qualquer coisa que façam preste um serviço a Clare Allison, inclusive esse interlúdio com um single malt. Mas não, a única chance deles é optar pela escolha radical — e agora.
Trudy ergue o braço para impedir uma terceira dose. Claude é mais resoluto. Está empenhado na busca rigorosa da clareza mental. Ouvimos enquanto se serve — ele vem bebendo uísque puro em grandes quantidades —, depois quando engole emitindo um som forte, que conhecemos bem. Devem estar se perguntando como evitar uma briga exatamente no momento que precisam trabalhar juntos. De longe chega o som de uma sirene, apenas uma ambulância, mas que espicaça seus medos. A rede do Estado se estende invisível por toda a cidade. Difícil escapar dela. Mas funciona como um ponto de teatro, porque finalmente ocorre uma fala, uma útil afirmação do óbvio.
“Isto é ruim.” A voz de minha mãe é baixa e gutural.
“Onde estão os passaportes?”
“Estão comigo. E o dinheiro?”
“Na minha maleta.”
Mas eles não se movem, e a assimetria da troca de palavras — a resposta evasiva de minha mãe — não provoca meu tio. Ele está bem avançado na terceira dose, quando a primeira de Trudy chega a mim. Nada sensual, mas, sem exagero, cai bem diante da situação, essa sensação de fim sem um começo à vista. Visualizo uma velha estrada militar através de um desfiladeiro gelado nas montanhas, um leve odor de pedra úmida e turfa, o som de aço e passos obedientes no chão de cascalho, o peso da amarga injustiça. Tão distante das vertentes voltadas para o sul, das flores cobertas de pólen nos fartos ramalhetes roxos que emolduravam as colinas longínquas, com seus tons sobrepostos de um índigo cada vez mais pálido. Eu preferia estar lá. Mas admito — o uísque, meu primeiro, liberta minha mente. Uma cruel libertação: o portão aberto conduz à luta e ao medo do que a mente é capaz de criar. Está acontecendo comigo agora. Me perguntam, eu mesmo me pergunto, o que mais desejo agora. Qualquer coisa. O realismo não é um fator limitativo. Corte as cordas, solte a imaginação. Posso responder sem pensar: vou atravessar o portão aberto.
Passos na escada. Trudy e Claude olham para cima, surpresos. Será que a inspetora encontrou um modo de entrar na casa? Um ladrão escolheu a pior das noites? É uma descida lenta, pesada. Eles veem um sapato preto de couro, um cinto, uma camisa manchada de vômito, e depois uma expressão terrível, ao mesmo tempo vazia e determinada. Meu pai está com as roupas com que morreu. Rosto exangue, lábios preto-esverdeados já em putrefação, olhos pequenos e penetrantes. Agora se postou ao pé da escada, mais alto que em minhas recordações. Veio do necrotério para nos encontrar e sabe exatamente o que deseja. Estou tremendo porque minha mãe também está. A imagem não é bruxuleante, ela nada tem de fantasmagórica. Este é meu pai em carne e osso, John Cairncross, como sempre foi. O gemido aterrorizado de minha mãe serve como estímulo, pois ele caminha em nossa direção.
“John”, Claude diz com cautela, num tom de voz ascendente, como se pudesse despertar aquela figura e levá-la de volta à não existência a que pertence. “John, somos nós.”
Isso parece bem entendido. Ele está à nossa frente, exalando um miasma de glicol e carne visitada por vermes amigáveis. É minha mãe quem ele encara fixamente com olhos pequenos, duros e negros, feitos de uma rocha indestrutível. Seus lábios repulsivos se movem, mas não emitem nenhum som. A língua é mais preta que os lábios. Mantendo o olhar nela o tempo todo, ele estende um braço. A mão descarnada se aferra à garganta de meu tio. Minha mãe não consegue nem gritar. Os olhos ilíquidos continuam pregados nela. Isso é para ela, o presente dele. A mão impiedosa aperta ainda mais. Claude cai de joelhos, olhos esbugalhados, as mãos golpeando e puxando inutilmente o braço do irmão. Só um guincho distante, o som patético de um camundongo, nos diz que ele ainda está vivo. Depois não está mais. Meu pai, que nem de relance olhou para ele uma única vez, deixa-o tombar no chão e agora puxa sua mulher para perto de si, a envolve em braços finos e fortes como vergalhões de aço. Traz o rosto dela para junto do dele e lhe dá um beijo longo e intenso com lábios gelados e apodrecidos. Ela é tomada de horror, de repugnância, de vergonha. Será atormentada por esse instante até o dia de sua morte. Indiferente, ele a liberta e caminha de volta para onde veio. Ao subir a escada, já começa a se desvanecer.
Bem, me perguntaram. Eu mesmo me perguntei. E era isso que eu queria. Uma fantasia infantil do Dia das Bruxas. De que outro modo encomendar a vingança de um espírito numa era de convicções seculares? O gótico foi razoavelmente banido, as feiticeiras largaram às pressas os caldeirões, só nos restou o materialismo, tão perturbador para a alma. Uma voz no rádio me disse certa vez que, quando compreendermos perfeitamente o que é a matéria, vamos nos sentir melhor. Duvido. Nunca terei o que quero.
Volto de meus devaneios e vejo que estamos no quarto. Não me lembro de termos subido. O som oco da porta do armário, o tilintar dos cabides de casacos, uma mala posta na cama, depois outra, o estalido das fechaduras sendo abertas. Eles deveriam ter feito as malas com antecedência. A inspetora poderia vir até mesmo esta noite. É isso que eles chamam de plano? Ouço imprecações e resmungos.
“Onde é que está? Estava aqui comigo. Na minha mão!”
Cruzam o quarto de um lado ao outro, abrem gavetas, entram e saem do banheiro. Trudy deixa cair um copo, que se estilhaça no chão. Ela nem liga. Por algum motivo, o rádio está ligado. Claude senta-se com seu notebook e murmura: “Trem às nove. O táxi está a caminho”.
“Eu preferia Paris a Bruxelas. Melhores conexões para seguir viagem”, Trudy resmunga para si mesma ainda no banheiro. “Dólares... euros.”
Tudo que eles dizem, mesmo os ruídos que fazem, têm um ar de despedida, como um triste acorde final, um adeus cantado. Este é o fim, não voltaremos. A casa, a casa de meu avô em que eu deveria crescer, está prestes a se apagar. Não me lembrarei dela. Eu gostaria de solicitar uma lista de países sem acordo de extradição. Na maioria são desconfortáveis, desorganizados, quentes. Ouvi dizer que Beijing é um lugar aprazível para fugitivos. Uma próspera aldeia de vilões que falam inglês enterrada na vastidão populosa da cidade cosmopolita. Um bom local para terminar.
“Soníferos, analgésicos”, Claude diz em voz alta.
Sua voz, seu tom me instigam. Hora de decidir. Ele está fechando as malas, prendendo as tiras de couro. Foi rápido. Então já deviam ter começado a fazê-las. São daquelas antigas, de duas rodinhas e não quatro. Claude as levanta da cama e põe no chão.
Trudy pergunta: “Qual?”.
Acho que está mostrando dois lenços de pescoço. Claude resmunga sua escolha. Isso não passa de um simulacro de normalidade. Quanto tomarem o trem, quando atravessarem a fronteira, a culpa dos dois vai se revelar. Só dispõem de uma hora e devem se apressar. Trudy diz que há um casaco que que ela quer e que não está conseguindo achar. Claude insiste que ela não vai precisar dele.
“É levinho”, ela diz. “O branco.”
“Você vai se destacar na multidão. Nas câmeras de segurança.”
Mas ela acaba encontrando-o justamente quando o Big Ben bate oito horas e o noticiário começa. Eles não param para escutar. Ainda há algumas últimas coisas para pegar. Na Nigéria, crianças queimadas vivas diante dos pais pelos guardiões das chamas. Na Coreia do Norte, um foguete é lançado. Ao redor do mundo, a elevação do nível do mar supera as previsões. Mas nenhuma dessas é a principal. Tal privilégio é dado a uma nova catástrofe. Uma combinação — pobreza e guerra, com mudança climática na reserva — que vem expulsando milhões de pessoas de seus lares, um antigo épico sob novo formato, vastos movimentos humanos como rios ingurgitados na primavera, Danúbios, Renos e Ródanos de seres irados ou desolados, ou esperançosos, amontoados nas fronteiras contra as cercas de arame cortante, afogando-se aos milhares ao tentarem compartilhar as riquezas do Ocidente. Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.
E, como sempre, há problemas mais perto de casa. Enquanto as emissoras de rádio e televisão prosseguem com suas cantilenas, as pessoas vão tocando seus negócios. Um casal acabou de se aprontar para uma viagem. As malas estão fechadas, mas há uma fotografia de sua mãe que a jovem mulher deseja levar. A pesada moldura esculpida é grande demais para ser posta na bagagem. Sem a ferramenta certa, a fotografia não pode ser removida, e a ferramenta, um tipo especial de chave, está no porão, no fundo de uma gaveta. O táxi espera lá fora. O trem parte dentro de cinquenta minutos, a estação fica um pouco longe, pode haver filas nos controles de segurança e de passaportes. O homem leva uma das malas para o patamar da escada e volta um pouco ofegante. Deveria ter usado as rodinhas.
“Agora temos mesmo que ir de qualquer maneira.”
“Preciso levar essa foto.”
“Leve debaixo do braço.”
Mas, além de ter de puxar a mala, ela carrega a bolsa, o casaco branco e eu.
Com um gemido, Claude pega a segunda mala a fim de levá-la para fora. Com esse esforço inútil quer mostrar o quanto é urgente eles partirem.
“Você não vai demorar nem um minuto. Está no canto da frente da gaveta do lado esquerdo.”
Ele volta. “Trudy. Estamos indo. Agora.”
A troca de palavras passou de lacônica a amarga.
“Leva para mim.”
“Nem pensar.”
“Claude. É minha mãe.”
“Estou pouco ligando. Estamos indo.”
Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais. Hora de entrar em ação. Acabar de uma vez por todas. Hora de começar. Não é fácil libertar meu braço direito, apertado contra o peito, ou movimentar o pulso. Mas agora isso foi feito. Um dedo indicador é a minha ferramenta especial para remover minha mãe da moldura. Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas. Faço a primeira tentativa de incisão. Minhas unhas são macias e, embora fino, o tecido é resistente. A evolução sabe das coisas. Tateio para encontrar a ranhura causada pelo meu dedo. Há uma dobra, bem definida, e é lá que tento de novo, até que na quinta investida sinto uma tênue esgarçadura e, na sexta, um minúsculo rompimento. Consigo enfiar a ponta da unha nesse rasgo, o dedo, dois dedos, três, quatro, até que por fim minha mão fechada abre o caminho e atrás dela vem um grande volume de líquido, a catarata do começo da vida. Minha proteção aquosa desapareceu.
Agora nunca saberei como a história da fotografia ou do trem das nove horas teria sido resolvida. Claude está fora do quarto, no alto da escada. Tem uma mala em cada mão, pronto para descer.
Minha mãe o chama com o que parece ser um gemido desapontado. “Ah, Claude.”
“O que agora?”
“A bolsa rompeu!”
“Cuidamos disso depois. No trem.”
Ele deve ter imaginado que se tratava de uma artimanha, da continuidade da discussão, um tipo repulsivo de problema feminino que ele está agitado demais para levar em conta.
Estou mexendo os ombros para me libertar da membrana embrionária, minha primeira experiência em matéria de me despir. Sou desajeitado. Três dimensões me parecem três a mais do que eu desejava. Prevejo que o mundo material será um desafio. O manto descartado continua retorcido em volta dos meus joelhos. Não faz mal. Tenho uma nova tarefa abaixo da cabeça. Não sei como sei o que devo fazer. É um mistério. Há certos conhecimentos com os quais simplesmente já chegamos. No meu caso, há este, e um punhado de escansões poéticas. Afinal, nenhuma lousa em branco. Trago a mesma mão à bochecha e a deslizo para baixo, ao longo da parede muscular do útero, a fim de achar o colo. Ele está bem apertado contra a parte de trás da minha cabeça. É lá, na entrada do mundo, que eu apalpo delicadamente com meus pequenos dedos e de imediato, como se alguma fórmula mágica houvesse sido pronunciada, o grande poder de minha mãe é estimulado, as paredes a meu redor se encrespam, tremem e se fecham sobre mim. É um terremoto, uma comoção gigantesca na caverna dela. Como o aprendiz de feiticeiro, fico horrorizado e depois esmagado pela força desencadeada. Eu deveria ter esperado a minha hora. Só um idiota se meteria com essa força. Ouço à distância minha mãe gritar. Pode ser um pedido de ajuda, quem sabe um berro de triunfo ou dor. Então sinto alguma coisa no topo da cabeça, minha coroa — um centímetro de dilatação! Não há volta.
Trudy se arrastou para a cama. Claude está em algum lugar perto da porta. Ela está arfando, excitada e muito assustada.
“Começou. Como é rápido! Chame uma ambulância.”
Ele não diz nada por um momento, depois simplesmente pergunta: “Onde está meu passaporte?”.
A derrota é minha, eu o subestimei. O objetivo de chegar mais cedo era para destruir Claude. Eu sabia que ele era um problema. Mas pensei que amava minha mãe e que ficaria com ela. Estou começando a entender a força mental de Trudy. Enquanto ele remexe a bolsa dela e se ouve o tilintar alegre das moedas contra o estojo de maquiagem, ela diz: “Escondi. Lá embaixo. Justamente caso isso acontecesse”.
Ele reflete. Já comprou e vendeu propriedades, possuiu um arranha-céu em Cardiff, sabe como fechar um negócio. “Me diga onde está que eu chamo uma ambulância para você. E aí vou embora.”
A voz dela é cautelosa. Observando de perto seu próprio estado, esperando, desejando e temendo a próxima onda. “Não. Se eu cair, você cai também.”
“Ótimo. Sem ambulância.”
“Eu mesma vou chamar. Assim que...”
Assim que tenha passado a segunda contração, mais forte que a primeira. De novo seu grito involuntário, o corpo todo se contraindo enquanto Claude atravessa o quarto para se aproximar da cama e desconectar da parede o telefone que estava na mesinha de cabeceira. Ao mesmo tempo, sou comprimido violentamente e erguido uns três ou quatro centímetros, sugado para baixo e para trás de onde estava hibernando. Uma cinta de ferro espreme mais e mais minha cabeça. Nossos três destinos esmagados por uma grande boca.
Assim que a onda reflui, Claude, como um guarda de fronteira, diz, impassível: “Passaporte?”.
Ela sacode a cabeça, espera até retomar o fôlego. Os dois mantêm uma espécie de equilíbrio.
Ela se recupera e diz, sem emoção na voz: “Então você vai ter que fazer o papel da parteira”.
“O filho não é meu.”
“O filho nunca é da parteira.”
Ela está apavorada, mas pode aterrorizá-lo com instruções.
“Quando ele sair, vai vir com o rosto para baixo. Você pega o bebê com as duas mãos, bem delicadamente, apoiando a cabeça dele, e põe em cima de mim. Ainda com o rosto para baixo, entre os meus seios. Perto de onde bate o coração. Não se preocupe com o cordão. Vai parar de pulsar sozinho, e o bebê começa a respirar. Ponha umas duas toalhas em cima dele para mantê-lo aquecido. E aí esperamos.”
“Esperamos? Meus Deus! Esperamos o quê?”
“Que a placenta saia.”
Não sei se ele se encolheu ou teve uma ânsia de vômito. Podia ainda estar imaginando que terminaria com aquilo e pegaria um trem mais tarde.
Ouço com atenção, querendo saber o que fazer. Me enfiar embaixo de uma toalha. Respirar. Não pronunciar uma única palavra. Mas não basta ser um bebê. Com certeza rosa ou azul!
“Por isso, vá buscar uma porção de toalhas. Vai ser uma sujeirada. Lave as mãos bem lavadas, com a escovinha de unhas e muito sabonete.”
Tão longe de onde dava pé para ele, tão longe da costa acolhedora, um homem sem seus documentos deveria estar em plena fuga. Ele dá meia-volta para fazer o que lhe foi ordenado.
E assim seguem as coisas, onda atrás de onda, gritos e gemidos, súplicas para que a agonia tenha fim. Progresso impiedoso, ejeção em curso. O cordão se desenrola atrás de mim à medida que avanço lentamente. Para a frente e para fora. Forças cruéis da natureza pretendem me achatar. Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos.
Um momento deslizante de urgência pegajosa, com sons ásperos, e aqui estou eu, trazido nu ao reino. Como o corajoso Cortés (lembro de um poema que meu pai recitou), estou pasmo. Olhando para baixo, maravilhado, para o que presumo ser a superfície felpuda de uma toalha de banho azul. Azul. Eu sempre soube, ao menos verbalmente, sempre fui capaz de deduzir o que era o azul — mar, céu, lápis-lazúli, gencianas — meras abstrações. Agora o tenho por fim, o possuo e ele me possui. Mais grandioso do que eu ousava crer. Isto é só o começo, na extremidade índigo do espectro.
Meu fiel cordão, que me mantinha vivo e não conseguiu me matar, de repente morre como planejado. Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom. Os sons são límpidos, brilhantes graças ao realce dos agudos. A resplandecente toalha, irradiando sua cor, evoca a mesquita de Goharshad no Irã que fez meu pai chorar nas primeiras horas de uma manhã. Minha mãe se mexe e faz com que minha cabeça mude de posição. Vejo Claude de relance. Menor do que eu imaginava, com ombros estreitos e cara de raposa. Sem a menor dúvida, com uma expressão de repugnância. A luz do sol do início da noite de verão atravessa as folhas de um plátano e projeta no teto desenhos tremulantes. Ah, a alegria de esticar as pernas, de verificar no despertador sobre a mesinha de cabeceira que eles jamais pegarão aquele trem. Mas não tenho muito tempo para saborear esse momento. Minha maleável caixa torácica é apertada pelas mãos enojadas de um assassino e sou posto na barriga hospitaleira, branca como a neve, de outra assassina.
As batidas de seu coração soam distantes, abafadas, mas são tão familiares quanto um velho estribilho que não ouvimos há décadas. O ritmo da música é um andante, passos delicados que me conduzem ao verdadeiro portão aberto. Não posso negar o medo que sinto. Mas estou exausto, um marinheiro náufrago que chegou a uma praia bem-afortunada. Estou caindo, mesmo enquanto o mar lambe meus tornozelos.
Trudy e eu devemos ter cochilado. Não sei quantos minutos se passaram até ouvirmos a campainha. Como ela soa claro. Claude ainda está aqui, ainda esperando obter seu passaporte. Ele deve ter descido para caçar o documento. Agora caminha até o interfone. Olha de relance a tela e dá meia-volta. Não pode haver surpresas.
“São quatro”, ele diz, mais para si mesmo.
Contemplamos esse fato. Acabou. Não é um bom final. Nunca seria.
Minha mãe me muda de lugar para que possamos trocar um longo olhar. O momento pelo qual esperei. Meu pai tinha razão, é um rosto adorável. O cabelo mais escuro do que eu pensava, os olhos de um verde mais pálido, as bochechas ainda coradas por causa do esforço recente, o nariz de fato uma coisinha bem pequena. Acho que vejo o mundo inteiro nesse rosto. Belo. Amoroso. Assassino. Ouço Claude atravessar o quarto com passos resignados para descer até a porta. Nenhum clichê. Mesmo nesse intervalo de descanso, durante o longo e ávido olhar no fundo dos olhos de minha mãe, estou pensando no táxi que espera lá fora. Um desperdício. Hora de mandá-lo embora. E estou pensando na nossa cela — espero que não seja pequena demais — e, mais além de sua pesada porta, nos degraus gastos que sobem: primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos.
18.
No começo da tarde, o telefone toca e o futuro se apresenta. Inspetora-chefe Clare Allison, designada para cuidar do caso. A voz soa amistosa, nenhum indício de acusação. Isso pode ser um mau sinal.
Estamos de novo na cozinha, Claude segura o fone. O primeiro café do dia na outra mão. Trudy se posta perto dele e nós dois ouvimos os dois interlocutores. Caso? A palavra contém uma ameaça. Inspetora-chefe? Também não ajuda muito.
Avalio a ansiedade de meu tio por seu zelo em se mostrar solícito. “Ah, sim. Sim! É claro. Por favor, faça isso.”
A inspetora-chefe Allison pretende nos visitar. O normal seria os dois irem à delegacia para uma conversa. Ou prestar depoimento, se apropriado. No entanto, por causa da gravidez avançada de Trudy, da dor da família, a inspetora-chefe e um sargento virão daqui a uma hora. Ela gostaria de dar uma olhada no local onde houve o último contato com o falecido.
Esta última informação, inocente e razoável a meus ouvidos, provoca em Claude um frenesi de boas-vindas. “Venha, por favor. Maravilhoso. Sem dúvida. Será um prazer conhecê-la. Contando os minutos. A senhora...”
Ela desliga. Ele se volta para nós, provavelmente cor de cinza, e diz numa voz desapontada: “Ah”.
Trudy não resiste a imitá-lo: “Tudo... ótimo, não é?”.
“Que caso é esse? Não se trata de uma questão criminal.” Ele apela a uma audiência imaginária, a um conselho de sábios. A um júri.
“Odeio isso”, minha mãe murmura, mais para si mesma. Ou para mim, eu gostaria de acreditar.
“Deve ser para o juiz de instrução.” Claude se afasta de nós, ofendido, dá uma volta pela cozinha e retorna, indignado. Agora sua queixa é dirigida a Trudy. “Não se trata de um caso de polícia.”
“Ah, é mesmo?”, ela diz. “Melhor então telefonar para a inspetora e explicar isso a ela.”
“Aquela poeta. Eu sabia que não podíamos confiar nela.”
Entendemos que, como Elodia é assunto de minha mãe, de algum modo isso constitui uma acusação.
“Você gostou dela.”
“Você disse que ela ia ser útil.”
“Você gostou dela.”
Mas a reiteração deliberadamente impassível não o espicaça.
“Quem não gostaria? E quem se importa com isso?”
“Eu me importo.”
Pergunto-me mais uma vez o que ganho se eles brigarem. Isso poderia arruiná-los. Então eu ficaria com Trudy. Já a escutei dizer que, na prisão, mães que estão amamentando levam uma vida melhor. Mas vou perder meu direito de nascer, o sonho de todos os seres humanos, minha liberdade. Enquanto juntos, como uma equipe, eles podem escapar raspando. E depois me darem para alguém. Sem mãe, mas livre. Portanto, o que é melhor? Já pensei nisso, voltando sempre ao mesmo bendito lugar, à única decisão moralmente correta. Vou arriscar os confortos materiais e me aventurar no mundo. Já estive confinado por tempo demais. Voto pela liberdade. Os assassinos precisam escapar. Então, antes que a discussão sobre Elodia vá longe demais, este é um bom momento para dar outro pontapé em minha mãe, distraí-la da briga com o interessante fato da minha existência. Não um nem dois, mas o número mágico de todas as boas histórias antigas. Três vezes, como Pedro negando Jesus.
“Ai, ai, ai!” Ela quase canta isso. Claude puxa uma cadeira para ela e traz um copo de água.
“Você está suando.”
“Bom, estou com calor.”
Ele testa as janelas. Não são movidas há anos. Procura gelo, mas os recipientes estão vazios depois das três rodadas recentes de gim e tônica. Por isso ele se senta diante dela e oferece sua refrescante solidariedade.
“Vai dar tudo certo.”
“Não, não vai.”
O silêncio dele concorda. Eu estava pensando num quarto chute, mas o estado de espírito de Trudy é perigoso. Ela pode partir para o ataque e provocar uma reação temerária.
Depois de uma pausa, em tom apaziguador, ele diz: “Devíamos repassar mais uma vez”.
“Que tal um advogado?”
“Um pouquinho tarde agora.”
“Diga a eles que não vamos falar sem a presença de um advogado.”
“Não vai cair bem, quando eles só estão vindo bater um papo.”
“Odeio isso.”
“Devíamos repassar mais uma vez.”
Mas não repassam. Estupefatos, contemplam a abordagem da inspetora-chefe Allison. Muito em breve. Dentro de uma hora pode significar em um minuto. Sabendo de tudo, de quase tudo, sou parte do crime, sem dúvida a salvo de um interrogatório, porém amedrontado. E curioso, impaciente para testemunhar as habilidades da inspetora-chefe. Alguém de mente aberta seria capaz de desmascarar esses dois em minutos. Trudy traída pelos nervos, Claude pela burrice.
Estou tentando imaginar onde estão as canecas de café da manhã usadas durante a visita de meu pai. Transferidas, penso agora, para a pia, onde esperam sem ter sido lavadas. DNA numa caneca provará que minha mãe e meu tio dizem a verdade. Os restos dos sanduíches dinamarqueses devem estar por perto.
“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”
“Na cozinha.”
“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”
“Dinheiro.”
“Não. Botar você para fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”
“Anos.”
“Meses. Quanto emprestei para ele?”
“Mil.”
“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”
“Estou grávida. Afeta a memória.”
“Você mesma disse ontem. Tudo como foi, mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga.”
“Mais a luva. Menos que ele estava voltando para cá.”
“Meu Deus, sim. Outra vez. Qual a causa da depressão?”
“Nós. Dívidas. Trabalho. O bebê.”
“Certo.”
Repassam mais uma vez. Na terceira, soa melhor. Que cumplicidade mais doentia, eu desejar que eles tenham êxito!
“Então repita.”
“Tal como aconteceu. Menos a vitamina, mais a briga e a luva, menos a depressão, mais que ele estava voltando para cá.”
“Não. Porra! Trudy. Exatamente como foi. Mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga, mais a luva, menos a volta para cá.”
A campainha toca e eles se imobilizam.
“Diga a eles que não estamos prontos.”
Para minha mãe, essa era a ideia de uma piada. Ou prova de seu terror.
Provavelmente resmungando obscenidades, Claude caminha até o videofone, muda de ideia e segue para a escada em direção à porta da frente.
Trudy e eu damos uma volta nervosa pela cozinha, arrastando os pés. Ela também resmunga enquanto trabalha na história. Isso é proveitoso porque cada esforço sucessivo da memória a afasta mais dos fatos reais. Ela está memorizando suas lembranças. Os erros de transcrição serão a seu favor. Constituirão de início um colchão útil, transformando-se depois em verdade. Também poderia dizer a si mesma: ela não comprou o glicol, não foi à Judd Street, não preparou a bebida, não pôs as coisas no carro, não jogou o liquidificador no lixo. Ela limpou a cozinha — nada de ilegal nisso. Convencida, estará libertada da astúcia consciente e pode ter uma chance. A mentira eficaz, assim como uma tacada de mestre no golfe, está livre da autoconsciência. Presto atenção nos comentários esportivos.
Atento aos passos que descem a escada, eu os diferencio. Os da inspetora-chefe Allison são leves, até mesmo como os de um passarinho, apesar de seu posto elevado. Apertos de mão são trocados. Pelo rígido “Como vai a senhora?” do sargento, reconheço o policial mais velho que esteve aqui ontem. O que terá impedido sua promoção? Classe, educação, Q.I., escândalo — o último, espero, pelo qual ele pode ser culpado, não precisando da minha compaixão.
A ágil inspetora-chefe senta-se à mesa da cozinha e convida todos a fazerem o mesmo, como se a casa fosse dela. Acho que capto minha mãe pensando que seria mais fácil enganar um homem. Allison abre uma pasta e fica apertando repetidamente o botão da mola da caneta enquanto fala. Nos diz que antes deseja expressar — faz uma pausa de grande efeito para olhar, não tenho dúvida, no fundo dos olhos de Trudy e de Claude — seus profundos sentimentos pela perda de um marido querido, de um irmão querido, de um amigo querido. Nada de um pai querido. Estou lutando contra o sentimento gélido e bem conhecido de exclusão. Mas a voz é cálida, maior que seu corpo, enfrentando sem tensões os ossos do ofício. A ligeira pronúncia típica dos habitantes mais pobres do leste de Londres corresponde aos padrões urbanos consagrados, e não será facilmente desafiada. Não pelas vogais forçadas de minha mãe, aprendidas em colégios caros. Esse velho truque já não funcionaria. Os tempos são outros. Um dia a maior parte dos estadistas britânicos falará como a inspetora-chefe. Me pergunto se ela tem uma arma. Desnecessário. Como a rainha, que não carrega dinheiro. Atirar nas pessoas é coisa de sargento para baixo.
Allison explica que se trata de uma conversa informal para ajudá-la a ter uma compreensão mais ampla dos trágicos acontecimentos. Trudy e Claude não têm nenhuma obrigação de responder às perguntas. Mas ela está errada. Eles se sentem obrigados. A recusa os faria dar a impressão de serem suspeitos. No entanto, se a inspetora-chefe estiver uma jogada à frente, pode pensar que a aceitação é ainda mais suspeita. Os que nada têm a esconder insistiriam num advogado como precaução contra os erros policiais ou uma intromissão ilegal.
Ao nos acomodarmos em torno da mesa, reparo na ausência de indagações corteses sobre mim, coisa de que me ressinto. Espera para quando? Menino ou menina?
Em vez disso, a inspetora-chefe não perde tempo. “Vocês podem me mostrar a casa depois que terminarmos a conversa.”
Mais uma afirmação que um pedido. Claude está ansioso, ansioso demais, para obedecer. “Ah, sim. Sim!”
Uma ordem de busca seria a alternativa. Mas não há nada de interessante para a polícia no andar de cima além da imundície.
A inspetora-chefe diz para Trudy: “Seu marido veio aqui ontem por volta das dez horas da manhã?”.
“Isso mesmo.” Seu tom é impassível, um exemplo para Claude.
“E houve alguma tensão.”
“Naturalmente.”
“Por que naturalmente?”
“Estou morando com o irmão dele na casa que John achava que era sua.”
“De quem é a casa?”
“Do casal.”
“O casamento tinha acabado?”
“Sim.”
“Se importa se eu perguntar? Ele achava que tinha acabado?”
Trudy hesita. Pode haver uma resposta certa e uma errada.
“Ele me queria de volta, mas também queria manter suas amigas.”
“Conhece algum nome?”
“Não.”
“Mas ele lhe falou sobre elas?”
“Não.”
“Mas de alguma maneira a senhora sabia.”
“Claro que eu sabia.”
Trudy se permite algum desdém. Como se para dizer: “Sou a mulher de verdade aqui”. Mas ignorou as instruções de Claude. Devia dizer a verdade, acrescentando e subtraindo apenas o que tinha sido combinado. Ouço meu tio se mexer na cadeira.
Sem fazer nenhuma pausa, Allison muda de assunto. “Vocês tomaram café.”
“Sim.”
“Os três? Em volta desta mesa?”
“Os três.” Claude diz isso, talvez preocupado que seu silêncio esteja passando uma má impressão.
“Mais alguma coisa?”
“O quê?”
“Com o café. Vocês lhe ofereceram alguma coisa mais?”
“Não.” Minha mãe soa cautelosa.
“E o que havia no café?”
“Como assim?”
“Leite? Açúcar?”
“Ele sempre tomava sem leite.” O ritmo do pulso dela acelerou.
Mas o comportamento de Clare Allison é impenetravelmente neutro. Ela se volta para Claude. “Então o senhor lhe emprestou algum dinheiro.”
“Sim.”
“Quanto?”
“Cinco mil.” Claude e Trudy respondem num coro mal sincronizado.
“Um cheque?”
“Na verdade em dinheiro vivo. Foi como ele queria.”
“O senhor tem ido àquela loja de vitaminas na Judd Street?”
A resposta de Claude é tão rápida quanto a pergunta. “Uma ou duas vezes. Foi John quem nos falou sobre ela.”
“Imagino que o senhor não tenha estado lá ontem.”
“Não.”
“Nunca pediu emprestado o chapéu preto de aba larga dele?”
“Nunca. Não faz meu estilo.”
Essa pode ser a resposta errada, mas não há tempo para raciocinar. As perguntas adquiriram um novo peso. O coração de Trudy está batendo mais rápido. Eu não confiaria nela para falar. Mas ela fala, e com voz estrangulada.
“Presente meu de aniversário. Ele amava aquele chapéu.”
A inspetora-chefe já está passando para algo diferente, mas volta atrás. “É tudo que se vê na câmera de segurança. Mandamos o chapéu para um teste de DNA.”
“Nem lhes oferecemos chá, café”, diz Trudy com voz alterada.
A inspetora-chefe deve ter recusado com um balançar de cabeça por ela e pelo sargento, ainda em silêncio. “Agora é quase tudo assim”, ela diz num tom nostálgico, “ciência e telas de computadores. Mas onde estávamos? Ah, sim. Houve alguma tensão. Mas vejo em minhas anotações que ocorreu uma briga.”
Claude deve estar fazendo os mesmos raciocínios apressados que eu. Seu cabelo será encontrado no chapéu. A resposta correta era sim, tinha pedido emprestado algum tempo atrás.
“Sim”, diz Trudy. “Uma de muitas.”
“Se importa de me dizer...”
“Ele queria que eu saísse da casa. Eu disse que iria quando estivesse pronta.”
“Quando ele foi embora, qual era seu estado de espírito?”
“Bem ruim. Estava péssimo. Confuso. Na verdade não queria que eu me mudasse daqui. Me queria de volta. Tentou que eu ficasse com ciúme, fingindo que Elodia era sua amante. Ela nos esclareceu tudo. Os dois não tinham um relacionamento.”
Detalhes demais. Ela está tentando retomar o controle. Mas falando muito rápido. Precisa dar uma respirada.
Clare Allison fica em silêncio enquanto aguardamos para saber qual a próxima direção que tomará. Mas ela continua nesse assunto, declarando da forma mais delicada possível: “Não é a informação que tenho”.
Um instante de torpor, como se o próprio som houvesse sido assassinado. O espaço em torno de mim se contrai porque Trudy parece ter se esvaziado como um balão. A coluna se dobra como a de uma velha. Sinto um pequeno orgulho de mim. Sempre tive minhas suspeitas. Com que avidez eles tinham acreditado em Elodia. Agora eles sabem: “Nem o copo-de-leite se demora”. Mas também preciso ter cautela. A inspetora-chefe pode ter razões para mentir. Está apertando o botão da caneta esferográfica, pronta para seguir em frente.
Minha mãe diz baixinho: “Bem, suponho que eu fui a mais enganada”.
“Sinto muito, sra. Cairncross. Mas minhas fontes são boas. Digamos apenas que se trata de uma jovem complicada.”
Eu poderia explorar a teoria de que não é mau negócio para Trudy ser a pessoa injuriada, obter corroboração para a história do marido infiel. Mas estou pasmo; nós dois estamos pasmos. Meu pai, aquela partícula mal compreendida, girando, se afasta ainda mais de mim no momento em que a inspetora-chefe faz outra pergunta a minha mãe. Ela também responde baixinho, com o tremor adicional de uma garotinha punida.
“Alguma violência?”
“Não.”
“Ameaças?”
“Não.”
“Nenhuma de sua parte.”
“Não.”
“E sobre a depressão dele? O que pode me dizer?”
Isso é dito gentilmente, e deve ser uma armadilha. Mas Trudy não faz uma pausa. Angustiada demais para inventar novas mentiras, persuadida demais de sua verdade, repete tudo que disse antes, na mesma linguagem inverossímil. Constante dor mental... Vociferava contra aqueles que amava... arrancava os poemas de sua alma. Vem-me a imagem vívida de uma parada de soldados exaustos, as plumas dos chapéus destruídas. A recordação em sépia de um podcast, as guerras napoleônicas em muitos episódios. Na época em que minha mãe e eu estávamos tranquilos. Ah, se Bonaparte tivesse se mantido dentro de suas fronteiras e feito boas leis para a França!
Claude entra na conversa: “Ele era seu pior inimigo”.
A acústica diferente me diz que a inspetora-chefe se voltou a fim de olhar diretamente para ele. “Algum outro inimigo, além dele próprio?”
O tom é despretensioso. Na melhor das hipóteses, uma pergunta pouco relevante; na pior das hipóteses, prenhe de intenções sinistras.
“Eu não saberia dizer. Nunca fomos muito próximos.”
“Me conte”, ela diz, com a voz mais calorosa, “sobre a infância dos dois. Isto é, se o senhor quiser.”
Ele quer. “Eu era três anos mais novo. Ele era bom em tudo. Esportes, estudos, garotas. Me achava um boboca insignificante. Quando cresci, fiz a única coisa que ele não conseguia fazer. Ganhar dinheiro.”
“Propriedades.”
“Esse tipo de coisa.”
A inspetora-chefe se volta de novo para Trudy. “Esta casa está à venda?”
“Claro que não.”
“Ouvi dizer que estava.”
Trudy não reage. Sua primeira jogada certa em muitos minutos.
Será que a inspetora-chefe está de uniforme? Deve estar. Seu quepe estará em cima da mesa, junto a seu cotovelo, como um grande bico. Não vejo nela a simpatia de um mamífero, mas rosto e lábios finos, roupas abotoadas até em cima. Sem dúvida sua cabeça, como a de um pombo, balança para a frente e para trás quando ela anda. O sargento a vê como uma detalhista. Fadada a galgar postos mais altos em que ele não a verá mais. Ela vai voar. Ou concluiu que John Cairncross se suicidou, ou tem razões para acreditar que uma gravidez no nono mês é uma boa maneira de ocultar um crime. Tudo que a inspetora-chefe diz, a observação mais banal, se presta a interpretações. O único poder que temos consiste em projetar. Tal como Claude, ela pode ser esperta ou burra, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Simplesmente não sabemos. Nossa ignorância é o que enche sua mão com as melhores cartas do baralho. Meu palpite é que ela tem poucas suspeitas, que não sabe de nada. Que seus superiores a estão observando. Que precisa ser delicada porque esta conversa é irregular, podendo comprometer o processo legal. Que ela vai preferir o apropriado ao verdadeiro. Que sua carreira é um ovo que ela botou, ela vai se sentar sobre ele, chocá-lo e esperar.
Mas já me enganei antes.
19.
Qual o próximo passo? Clare Allison quer dar uma olhada na casa. Péssima ideia. Mas recusar agora, quando, pelo que sei, as coisas estão indo mal, tornaria tudo pior. O sargento sobe na frente a escada de madeira, seguido por Claude, pela inspetora-chefe, depois por minha mãe e eu. No térreo, a inspetora-chefe diz que, se concordarmos, ela gostaria de ir até o último andar e descer “trabalhando”. Trudy não se interessa em subir mais. Os outros continuam, enquanto nós dois vamos nos sentar na sala — e pensar.
Envio meus pensamentos velozes adiante deles, primeiro à biblioteca. Pó de gesso, cheiro de morte, mas relativamente arrumada. No andar superior, quarto e banheiro, caos de uma espécie íntima, a própria cama um emaranhado de lascívia e sono interrompido, o chão coalhado de roupas largadas por Trudy, o banheiro com potes destampados, unguentos e roupa de baixo suja. Me pergunto o que a desordem significa para olhos desconfiados. Não há de ser algo moralmente neutro. O desdém pelas coisas, pela organização, pela limpeza deve pertencer a uma escala onde existe também o desprezo pelas leis, pelos valores, pela própria vida. O que é um criminoso senão um espírito transtornado? No entanto, um quarto excessivamente arrumado também poderia levantar suspeitas. A inspetora-geral, com os olhos aguçados de uma águia, vai olhar o quarto de relance e se afastar. Mas no subconsciente a repugnância deve afetar seu julgamento.
Há cômodos mais acima, porém nunca fui tão longe. Trago meus pensamentos para o térreo e, como uma criança bem-comportada, atento para o estado de minha mãe. Seu ritmo cardíaco se estabilizou. Ela parece quase calma. Talvez fatalista. A bexiga cheia pressiona minha cabeça. Mas ela não está disposta a se mover. Faz seus cálculos, talvez pensando no plano dos dois. Porém deveria se perguntar qual é o seu próprio interesse. Dissociar-se de Claude. Incriminá-lo de algum modo. De nada serve os dois cumprirem uma pena de prisão. Então ela e eu poderíamos ir ficando por aqui. Ela não ia querer me dar a alguém se estivesse sozinha numa casa grande. Nesse caso, prometo que a perdoaria. Ou me encarregaria dela mais tarde.
Mas não há tempo para maquinações. Ouço-os descer de volta. Passam pela porta aberta da sala, a caminho da porta da frente. A inspetora-chefe certamente não pode ir embora sem um respeitoso adeus à viúva. Na verdade, Claude abriu a porta para mostrar a Allison onde seu irmão tinha estacionado o carro, como no início o motor não pegou, como, apesar da briga, eles tinham acenado quando o carro começou a funcionar e deu marcha a ré para alcançar a rua. Uma lição em matéria de contar a verdade.
Logo depois, Claude e os policiais estão diante de nós.
“Trudy — posso chamá-la de Trudy? Que momento terrível, e você está sendo muito prestativa. Muito hospitaleira. Não sei...” A inspetora-chefe se interrompe, sua atenção desviada. “Aquilo é do seu marido?”
Ela está olhando para as caixas de papelão que meu pai trouxe e deixou embaixo da janela semicircular. Minha mãe se põe de pé. Se vai haver algum problema, melhor que use sua altura. E largura.
“Ele estava voltando para cá. Saindo de Shoreditch.”
“Posso ver?”
“Apenas livros. Mas pode, sim.”
O sargento solta um murmúrio ofegante quando se ajoelha para abrir as caixas. Eu diria que a inspetora-chefe está agachada, agora não como um pássaro, mas como uma pata gigantesca. É errado eu não gostar dela. Ela é a lei, e já me considero no tribunal de Hobbes. O Estado precisa deter o monopólio da violência. Mas o jeitão da inspetora-chefe me irrita, o modo como vasculha as coisas de meu pai, seus livros prediletos, enquanto parece falar consigo mesma sabendo que não temos alternativa senão escutá-la.
“Não entendo. Muito, muito triste... bem na pista de acesso...”
Claro que ela está representando, trata-se de um prelúdio. Ela se levanta. Acho que está olhando para Trudy. Talvez para mim.
“Mas o verdadeiro mistério é o seguinte. Nenhuma impressão digital na garrafa de glicol. Nem no copo. Soube disso há pouco pelo pessoal técnico. Nenhum vestígio. Que estranho!”
“Ah!”, diz Claude, mas Trudy o interrompe. Eu deveria alertá-la. Ela não deve se mostrar tão ansiosa. Sua explicação vem depressa demais. “A luva. Problema de pele. Ele tinha tanta vergonha das mãos!”
“Ah, a luva!”, exclama a inspetora-chefe. “Tem razão. Esqueci completamente!” Ela está desdobrando um pedaço de papel. “Essa?”
Minha mãe dá um passo à frente para olhar. Deve ser a reprodução de uma fotografia. “Sim.”
“Não havia outra?”
“Não como essa. Eu costumava dizer que ele não precisava dela. Ninguém realmente se importava.”
“Ele usava o tempo todo?”
“Não. Mas bastante, principalmente quando estava deprimido.”
A inspetora-chefe está de saída, e isso é um alívio. Nós todos a acompanhamos até o vestíbulo.
“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo... Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto — os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”
A porta da frente é aberta, provavelmente pelo sargento. A inspetora-chefe sai. Ao se afastar, sua voz diminui de volume e se mistura ao som do tráfego. “Não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome em latim. Há muito tempo nenhuma mão calçava aquela luva.”
O sargento toca no braço de minha mãe e por fim fala, dizendo gentilmente ao partir: “Voltamos amanhã de manhã. Para esclarecer umas últimas coisas”.
20.
Por fim, a hora chegou. Há decisões a serem tomadas, urgentes, irreversíveis, autocondenatórias. Mas antes Trudy necessita de dois minutos de solidão. Corremos para o porão, para aquilo que antes chamavam de casinha. Lá, enquanto a pressão sobre meu crânio é aplacada e minha mãe continua sentada alguns segundos mais do que seria necessário, suspirando para si própria, meus pensamentos tornam-se claros. Ou tomam um novo rumo. Pensei que os assassinos deveriam escapar para garantir minha liberdade. Essa pode ser uma visão muito estreita, muito egoísta. Há outras considerações. O ódio a meu tio pode exceder o amor por minha mãe. Puni-lo pode ser mais nobre que salvá-la. Mas talvez seja possível conseguir as duas coisas.
Essas preocupações permanecem comigo ao voltarmos à cozinha. Parece que, depois que os policiais foram embora, Claude percebeu que precisava de um uísque. Ao ouvir a bebida sendo servida quando entrarmos, um som sedutor, Trudy descobre que também precisa de um. Dos grandes. Com água da torneira, meio a meio. Em silêncio, meu tio se desincumbe da tarefa. Em silêncio, ficam de pé frente a frente junto à pia. Não é hora de brindar. Cada um contemplando os erros do outro ou até mesmo os seus. Ou decidindo o que fazer. Esta é a emergência que temiam, e para a qual têm um plano. Bebem o que há nos copos e, sem uma palavra, partem para uma segunda dose. Nossas vidas estão prestes a mudar. A inspetora-chefe Allison paira sobre nós, uma deusa imprevisível e sorridente. Não saberemos, até que seja tarde demais, por que não efetuou as prisões naquele momento, por que nos deixou a sós. Dando os últimos retoques no caso, esperando a análise de DNA no chapéu, seguindo em frente? Minha mãe e meu tio devem levar em conta que qualquer escolha feita agora pode ser a que ela espera deles, e ela está a postos. Também é possível que o misterioso plano dos dois não tenha ocorrido a ela, e então os dois estariam um passo adiante. Boa razão para agir com audácia. Em vez disso, nesse momento eles preferem um drinque. Talvez qualquer coisa que façam preste um serviço a Clare Allison, inclusive esse interlúdio com um single malt. Mas não, a única chance deles é optar pela escolha radical — e agora.
Trudy ergue o braço para impedir uma terceira dose. Claude é mais resoluto. Está empenhado na busca rigorosa da clareza mental. Ouvimos enquanto se serve — ele vem bebendo uísque puro em grandes quantidades —, depois quando engole emitindo um som forte, que conhecemos bem. Devem estar se perguntando como evitar uma briga exatamente no momento que precisam trabalhar juntos. De longe chega o som de uma sirene, apenas uma ambulância, mas que espicaça seus medos. A rede do Estado se estende invisível por toda a cidade. Difícil escapar dela. Mas funciona como um ponto de teatro, porque finalmente ocorre uma fala, uma útil afirmação do óbvio.
“Isto é ruim.” A voz de minha mãe é baixa e gutural.
“Onde estão os passaportes?”
“Estão comigo. E o dinheiro?”
“Na minha maleta.”
Mas eles não se movem, e a assimetria da troca de palavras — a resposta evasiva de minha mãe — não provoca meu tio. Ele está bem avançado na terceira dose, quando a primeira de Trudy chega a mim. Nada sensual, mas, sem exagero, cai bem diante da situação, essa sensação de fim sem um começo à vista. Visualizo uma velha estrada militar através de um desfiladeiro gelado nas montanhas, um leve odor de pedra úmida e turfa, o som de aço e passos obedientes no chão de cascalho, o peso da amarga injustiça. Tão distante das vertentes voltadas para o sul, das flores cobertas de pólen nos fartos ramalhetes roxos que emolduravam as colinas longínquas, com seus tons sobrepostos de um índigo cada vez mais pálido. Eu preferia estar lá. Mas admito — o uísque, meu primeiro, liberta minha mente. Uma cruel libertação: o portão aberto conduz à luta e ao medo do que a mente é capaz de criar. Está acontecendo comigo agora. Me perguntam, eu mesmo me pergunto, o que mais desejo agora. Qualquer coisa. O realismo não é um fator limitativo. Corte as cordas, solte a imaginação. Posso responder sem pensar: vou atravessar o portão aberto.
Passos na escada. Trudy e Claude olham para cima, surpresos. Será que a inspetora encontrou um modo de entrar na casa? Um ladrão escolheu a pior das noites? É uma descida lenta, pesada. Eles veem um sapato preto de couro, um cinto, uma camisa manchada de vômito, e depois uma expressão terrível, ao mesmo tempo vazia e determinada. Meu pai está com as roupas com que morreu. Rosto exangue, lábios preto-esverdeados já em putrefação, olhos pequenos e penetrantes. Agora se postou ao pé da escada, mais alto que em minhas recordações. Veio do necrotério para nos encontrar e sabe exatamente o que deseja. Estou tremendo porque minha mãe também está. A imagem não é bruxuleante, ela nada tem de fantasmagórica. Este é meu pai em carne e osso, John Cairncross, como sempre foi. O gemido aterrorizado de minha mãe serve como estímulo, pois ele caminha em nossa direção.
“John”, Claude diz com cautela, num tom de voz ascendente, como se pudesse despertar aquela figura e levá-la de volta à não existência a que pertence. “John, somos nós.”
Isso parece bem entendido. Ele está à nossa frente, exalando um miasma de glicol e carne visitada por vermes amigáveis. É minha mãe quem ele encara fixamente com olhos pequenos, duros e negros, feitos de uma rocha indestrutível. Seus lábios repulsivos se movem, mas não emitem nenhum som. A língua é mais preta que os lábios. Mantendo o olhar nela o tempo todo, ele estende um braço. A mão descarnada se aferra à garganta de meu tio. Minha mãe não consegue nem gritar. Os olhos ilíquidos continuam pregados nela. Isso é para ela, o presente dele. A mão impiedosa aperta ainda mais. Claude cai de joelhos, olhos esbugalhados, as mãos golpeando e puxando inutilmente o braço do irmão. Só um guincho distante, o som patético de um camundongo, nos diz que ele ainda está vivo. Depois não está mais. Meu pai, que nem de relance olhou para ele uma única vez, deixa-o tombar no chão e agora puxa sua mulher para perto de si, a envolve em braços finos e fortes como vergalhões de aço. Traz o rosto dela para junto do dele e lhe dá um beijo longo e intenso com lábios gelados e apodrecidos. Ela é tomada de horror, de repugnância, de vergonha. Será atormentada por esse instante até o dia de sua morte. Indiferente, ele a liberta e caminha de volta para onde veio. Ao subir a escada, já começa a se desvanecer.
Bem, me perguntaram. Eu mesmo me perguntei. E era isso que eu queria. Uma fantasia infantil do Dia das Bruxas. De que outro modo encomendar a vingança de um espírito numa era de convicções seculares? O gótico foi razoavelmente banido, as feiticeiras largaram às pressas os caldeirões, só nos restou o materialismo, tão perturbador para a alma. Uma voz no rádio me disse certa vez que, quando compreendermos perfeitamente o que é a matéria, vamos nos sentir melhor. Duvido. Nunca terei o que quero.
Volto de meus devaneios e vejo que estamos no quarto. Não me lembro de termos subido. O som oco da porta do armário, o tilintar dos cabides de casacos, uma mala posta na cama, depois outra, o estalido das fechaduras sendo abertas. Eles deveriam ter feito as malas com antecedência. A inspetora poderia vir até mesmo esta noite. É isso que eles chamam de plano? Ouço imprecações e resmungos.
“Onde é que está? Estava aqui comigo. Na minha mão!”
Cruzam o quarto de um lado ao outro, abrem gavetas, entram e saem do banheiro. Trudy deixa cair um copo, que se estilhaça no chão. Ela nem liga. Por algum motivo, o rádio está ligado. Claude senta-se com seu notebook e murmura: “Trem às nove. O táxi está a caminho”.
“Eu preferia Paris a Bruxelas. Melhores conexões para seguir viagem”, Trudy resmunga para si mesma ainda no banheiro. “Dólares... euros.”
Tudo que eles dizem, mesmo os ruídos que fazem, têm um ar de despedida, como um triste acorde final, um adeus cantado. Este é o fim, não voltaremos. A casa, a casa de meu avô em que eu deveria crescer, está prestes a se apagar. Não me lembrarei dela. Eu gostaria de solicitar uma lista de países sem acordo de extradição. Na maioria são desconfortáveis, desorganizados, quentes. Ouvi dizer que Beijing é um lugar aprazível para fugitivos. Uma próspera aldeia de vilões que falam inglês enterrada na vastidão populosa da cidade cosmopolita. Um bom local para terminar.
“Soníferos, analgésicos”, Claude diz em voz alta.
Sua voz, seu tom me instigam. Hora de decidir. Ele está fechando as malas, prendendo as tiras de couro. Foi rápido. Então já deviam ter começado a fazê-las. São daquelas antigas, de duas rodinhas e não quatro. Claude as levanta da cama e põe no chão.
Trudy pergunta: “Qual?”.
Acho que está mostrando dois lenços de pescoço. Claude resmunga sua escolha. Isso não passa de um simulacro de normalidade. Quanto tomarem o trem, quando atravessarem a fronteira, a culpa dos dois vai se revelar. Só dispõem de uma hora e devem se apressar. Trudy diz que há um casaco que que ela quer e que não está conseguindo achar. Claude insiste que ela não vai precisar dele.
“É levinho”, ela diz. “O branco.”
“Você vai se destacar na multidão. Nas câmeras de segurança.”
Mas ela acaba encontrando-o justamente quando o Big Ben bate oito horas e o noticiário começa. Eles não param para escutar. Ainda há algumas últimas coisas para pegar. Na Nigéria, crianças queimadas vivas diante dos pais pelos guardiões das chamas. Na Coreia do Norte, um foguete é lançado. Ao redor do mundo, a elevação do nível do mar supera as previsões. Mas nenhuma dessas é a principal. Tal privilégio é dado a uma nova catástrofe. Uma combinação — pobreza e guerra, com mudança climática na reserva — que vem expulsando milhões de pessoas de seus lares, um antigo épico sob novo formato, vastos movimentos humanos como rios ingurgitados na primavera, Danúbios, Renos e Ródanos de seres irados ou desolados, ou esperançosos, amontoados nas fronteiras contra as cercas de arame cortante, afogando-se aos milhares ao tentarem compartilhar as riquezas do Ocidente. Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.
E, como sempre, há problemas mais perto de casa. Enquanto as emissoras de rádio e televisão prosseguem com suas cantilenas, as pessoas vão tocando seus negócios. Um casal acabou de se aprontar para uma viagem. As malas estão fechadas, mas há uma fotografia de sua mãe que a jovem mulher deseja levar. A pesada moldura esculpida é grande demais para ser posta na bagagem. Sem a ferramenta certa, a fotografia não pode ser removida, e a ferramenta, um tipo especial de chave, está no porão, no fundo de uma gaveta. O táxi espera lá fora. O trem parte dentro de cinquenta minutos, a estação fica um pouco longe, pode haver filas nos controles de segurança e de passaportes. O homem leva uma das malas para o patamar da escada e volta um pouco ofegante. Deveria ter usado as rodinhas.
“Agora temos mesmo que ir de qualquer maneira.”
“Preciso levar essa foto.”
“Leve debaixo do braço.”
Mas, além de ter de puxar a mala, ela carrega a bolsa, o casaco branco e eu.
Com um gemido, Claude pega a segunda mala a fim de levá-la para fora. Com esse esforço inútil quer mostrar o quanto é urgente eles partirem.
“Você não vai demorar nem um minuto. Está no canto da frente da gaveta do lado esquerdo.”
Ele volta. “Trudy. Estamos indo. Agora.”
A troca de palavras passou de lacônica a amarga.
“Leva para mim.”
“Nem pensar.”
“Claude. É minha mãe.”
“Estou pouco ligando. Estamos indo.”
Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais. Hora de entrar em ação. Acabar de uma vez por todas. Hora de começar. Não é fácil libertar meu braço direito, apertado contra o peito, ou movimentar o pulso. Mas agora isso foi feito. Um dedo indicador é a minha ferramenta especial para remover minha mãe da moldura. Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas. Faço a primeira tentativa de incisão. Minhas unhas são macias e, embora fino, o tecido é resistente. A evolução sabe das coisas. Tateio para encontrar a ranhura causada pelo meu dedo. Há uma dobra, bem definida, e é lá que tento de novo, até que na quinta investida sinto uma tênue esgarçadura e, na sexta, um minúsculo rompimento. Consigo enfiar a ponta da unha nesse rasgo, o dedo, dois dedos, três, quatro, até que por fim minha mão fechada abre o caminho e atrás dela vem um grande volume de líquido, a catarata do começo da vida. Minha proteção aquosa desapareceu.
Agora nunca saberei como a história da fotografia ou do trem das nove horas teria sido resolvida. Claude está fora do quarto, no alto da escada. Tem uma mala em cada mão, pronto para descer.
Minha mãe o chama com o que parece ser um gemido desapontado. “Ah, Claude.”
“O que agora?”
“A bolsa rompeu!”
“Cuidamos disso depois. No trem.”
Ele deve ter imaginado que se tratava de uma artimanha, da continuidade da discussão, um tipo repulsivo de problema feminino que ele está agitado demais para levar em conta.
Estou mexendo os ombros para me libertar da membrana embrionária, minha primeira experiência em matéria de me despir. Sou desajeitado. Três dimensões me parecem três a mais do que eu desejava. Prevejo que o mundo material será um desafio. O manto descartado continua retorcido em volta dos meus joelhos. Não faz mal. Tenho uma nova tarefa abaixo da cabeça. Não sei como sei o que devo fazer. É um mistério. Há certos conhecimentos com os quais simplesmente já chegamos. No meu caso, há este, e um punhado de escansões poéticas. Afinal, nenhuma lousa em branco. Trago a mesma mão à bochecha e a deslizo para baixo, ao longo da parede muscular do útero, a fim de achar o colo. Ele está bem apertado contra a parte de trás da minha cabeça. É lá, na entrada do mundo, que eu apalpo delicadamente com meus pequenos dedos e de imediato, como se alguma fórmula mágica houvesse sido pronunciada, o grande poder de minha mãe é estimulado, as paredes a meu redor se encrespam, tremem e se fecham sobre mim. É um terremoto, uma comoção gigantesca na caverna dela. Como o aprendiz de feiticeiro, fico horrorizado e depois esmagado pela força desencadeada. Eu deveria ter esperado a minha hora. Só um idiota se meteria com essa força. Ouço à distância minha mãe gritar. Pode ser um pedido de ajuda, quem sabe um berro de triunfo ou dor. Então sinto alguma coisa no topo da cabeça, minha coroa — um centímetro de dilatação! Não há volta.
Trudy se arrastou para a cama. Claude está em algum lugar perto da porta. Ela está arfando, excitada e muito assustada.
“Começou. Como é rápido! Chame uma ambulância.”
Ele não diz nada por um momento, depois simplesmente pergunta: “Onde está meu passaporte?”.
A derrota é minha, eu o subestimei. O objetivo de chegar mais cedo era para destruir Claude. Eu sabia que ele era um problema. Mas pensei que amava minha mãe e que ficaria com ela. Estou começando a entender a força mental de Trudy. Enquanto ele remexe a bolsa dela e se ouve o tilintar alegre das moedas contra o estojo de maquiagem, ela diz: “Escondi. Lá embaixo. Justamente caso isso acontecesse”.
Ele reflete. Já comprou e vendeu propriedades, possuiu um arranha-céu em Cardiff, sabe como fechar um negócio. “Me diga onde está que eu chamo uma ambulância para você. E aí vou embora.”
A voz dela é cautelosa. Observando de perto seu próprio estado, esperando, desejando e temendo a próxima onda. “Não. Se eu cair, você cai também.”
“Ótimo. Sem ambulância.”
“Eu mesma vou chamar. Assim que...”
Assim que tenha passado a segunda contração, mais forte que a primeira. De novo seu grito involuntário, o corpo todo se contraindo enquanto Claude atravessa o quarto para se aproximar da cama e desconectar da parede o telefone que estava na mesinha de cabeceira. Ao mesmo tempo, sou comprimido violentamente e erguido uns três ou quatro centímetros, sugado para baixo e para trás de onde estava hibernando. Uma cinta de ferro espreme mais e mais minha cabeça. Nossos três destinos esmagados por uma grande boca.
Assim que a onda reflui, Claude, como um guarda de fronteira, diz, impassível: “Passaporte?”.
Ela sacode a cabeça, espera até retomar o fôlego. Os dois mantêm uma espécie de equilíbrio.
Ela se recupera e diz, sem emoção na voz: “Então você vai ter que fazer o papel da parteira”.
“O filho não é meu.”
“O filho nunca é da parteira.”
Ela está apavorada, mas pode aterrorizá-lo com instruções.
“Quando ele sair, vai vir com o rosto para baixo. Você pega o bebê com as duas mãos, bem delicadamente, apoiando a cabeça dele, e põe em cima de mim. Ainda com o rosto para baixo, entre os meus seios. Perto de onde bate o coração. Não se preocupe com o cordão. Vai parar de pulsar sozinho, e o bebê começa a respirar. Ponha umas duas toalhas em cima dele para mantê-lo aquecido. E aí esperamos.”
“Esperamos? Meus Deus! Esperamos o quê?”
“Que a placenta saia.”
Não sei se ele se encolheu ou teve uma ânsia de vômito. Podia ainda estar imaginando que terminaria com aquilo e pegaria um trem mais tarde.
Ouço com atenção, querendo saber o que fazer. Me enfiar embaixo de uma toalha. Respirar. Não pronunciar uma única palavra. Mas não basta ser um bebê. Com certeza rosa ou azul!
“Por isso, vá buscar uma porção de toalhas. Vai ser uma sujeirada. Lave as mãos bem lavadas, com a escovinha de unhas e muito sabonete.”
Tão longe de onde dava pé para ele, tão longe da costa acolhedora, um homem sem seus documentos deveria estar em plena fuga. Ele dá meia-volta para fazer o que lhe foi ordenado.
E assim seguem as coisas, onda atrás de onda, gritos e gemidos, súplicas para que a agonia tenha fim. Progresso impiedoso, ejeção em curso. O cordão se desenrola atrás de mim à medida que avanço lentamente. Para a frente e para fora. Forças cruéis da natureza pretendem me achatar. Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos.
Um momento deslizante de urgência pegajosa, com sons ásperos, e aqui estou eu, trazido nu ao reino. Como o corajoso Cortés (lembro de um poema que meu pai recitou), estou pasmo. Olhando para baixo, maravilhado, para o que presumo ser a superfície felpuda de uma toalha de banho azul. Azul. Eu sempre soube, ao menos verbalmente, sempre fui capaz de deduzir o que era o azul — mar, céu, lápis-lazúli, gencianas — meras abstrações. Agora o tenho por fim, o possuo e ele me possui. Mais grandioso do que eu ousava crer. Isto é só o começo, na extremidade índigo do espectro.
Meu fiel cordão, que me mantinha vivo e não conseguiu me matar, de repente morre como planejado. Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom. Os sons são límpidos, brilhantes graças ao realce dos agudos. A resplandecente toalha, irradiando sua cor, evoca a mesquita de Goharshad no Irã que fez meu pai chorar nas primeiras horas de uma manhã. Minha mãe se mexe e faz com que minha cabeça mude de posição. Vejo Claude de relance. Menor do que eu imaginava, com ombros estreitos e cara de raposa. Sem a menor dúvida, com uma expressão de repugnância. A luz do sol do início da noite de verão atravessa as folhas de um plátano e projeta no teto desenhos tremulantes. Ah, a alegria de esticar as pernas, de verificar no despertador sobre a mesinha de cabeceira que eles jamais pegarão aquele trem. Mas não tenho muito tempo para saborear esse momento. Minha maleável caixa torácica é apertada pelas mãos enojadas de um assassino e sou posto na barriga hospitaleira, branca como a neve, de outra assassina.
As batidas de seu coração soam distantes, abafadas, mas são tão familiares quanto um velho estribilho que não ouvimos há décadas. O ritmo da música é um andante, passos delicados que me conduzem ao verdadeiro portão aberto. Não posso negar o medo que sinto. Mas estou exausto, um marinheiro náufrago que chegou a uma praia bem-afortunada. Estou caindo, mesmo enquanto o mar lambe meus tornozelos.
Trudy e eu devemos ter cochilado. Não sei quantos minutos se passaram até ouvirmos a campainha. Como ela soa claro. Claude ainda está aqui, ainda esperando obter seu passaporte. Ele deve ter descido para caçar o documento. Agora caminha até o interfone. Olha de relance a tela e dá meia-volta. Não pode haver surpresas.
“São quatro”, ele diz, mais para si mesmo.
Contemplamos esse fato. Acabou. Não é um bom final. Nunca seria.
Minha mãe me muda de lugar para que possamos trocar um longo olhar. O momento pelo qual esperei. Meu pai tinha razão, é um rosto adorável. O cabelo mais escuro do que eu pensava, os olhos de um verde mais pálido, as bochechas ainda coradas por causa do esforço recente, o nariz de fato uma coisinha bem pequena. Acho que vejo o mundo inteiro nesse rosto. Belo. Amoroso. Assassino. Ouço Claude atravessar o quarto com passos resignados para descer até a porta. Nenhum clichê. Mesmo nesse intervalo de descanso, durante o longo e ávido olhar no fundo dos olhos de minha mãe, estou pensando no táxi que espera lá fora. Um desperdício. Hora de mandá-lo embora. E estou pensando na nossa cela — espero que não seja pequena demais — e, mais além de sua pesada porta, nos degraus gastos que sobem: primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos.
18.
No começo da tarde, o telefone toca e o futuro se apresenta. Inspetora-chefe Clare Allison, designada para cuidar do caso. A voz soa amistosa, nenhum indício de acusação. Isso pode ser um mau sinal.
Estamos de novo na cozinha, Claude segura o fone. O primeiro café do dia na outra mão. Trudy se posta perto dele e nós dois ouvimos os dois interlocutores. Caso? A palavra contém uma ameaça. Inspetora-chefe? Também não ajuda muito.
Avalio a ansiedade de meu tio por seu zelo em se mostrar solícito. “Ah, sim. Sim! É claro. Por favor, faça isso.”
A inspetora-chefe Allison pretende nos visitar. O normal seria os dois irem à delegacia para uma conversa. Ou prestar depoimento, se apropriado. No entanto, por causa da gravidez avançada de Trudy, da dor da família, a inspetora-chefe e um sargento virão daqui a uma hora. Ela gostaria de dar uma olhada no local onde houve o último contato com o falecido.
Esta última informação, inocente e razoável a meus ouvidos, provoca em Claude um frenesi de boas-vindas. “Venha, por favor. Maravilhoso. Sem dúvida. Será um prazer conhecê-la. Contando os minutos. A senhora...”
Ela desliga. Ele se volta para nós, provavelmente cor de cinza, e diz numa voz desapontada: “Ah”.
Trudy não resiste a imitá-lo: “Tudo... ótimo, não é?”.
“Que caso é esse? Não se trata de uma questão criminal.” Ele apela a uma audiência imaginária, a um conselho de sábios. A um júri.
“Odeio isso”, minha mãe murmura, mais para si mesma. Ou para mim, eu gostaria de acreditar.
“Deve ser para o juiz de instrução.” Claude se afasta de nós, ofendido, dá uma volta pela cozinha e retorna, indignado. Agora sua queixa é dirigida a Trudy. “Não se trata de um caso de polícia.”
“Ah, é mesmo?”, ela diz. “Melhor então telefonar para a inspetora e explicar isso a ela.”
“Aquela poeta. Eu sabia que não podíamos confiar nela.”
Entendemos que, como Elodia é assunto de minha mãe, de algum modo isso constitui uma acusação.
“Você gostou dela.”
“Você disse que ela ia ser útil.”
“Você gostou dela.”
Mas a reiteração deliberadamente impassível não o espicaça.
“Quem não gostaria? E quem se importa com isso?”
“Eu me importo.”
Pergunto-me mais uma vez o que ganho se eles brigarem. Isso poderia arruiná-los. Então eu ficaria com Trudy. Já a escutei dizer que, na prisão, mães que estão amamentando levam uma vida melhor. Mas vou perder meu direito de nascer, o sonho de todos os seres humanos, minha liberdade. Enquanto juntos, como uma equipe, eles podem escapar raspando. E depois me darem para alguém. Sem mãe, mas livre. Portanto, o que é melhor? Já pensei nisso, voltando sempre ao mesmo bendito lugar, à única decisão moralmente correta. Vou arriscar os confortos materiais e me aventurar no mundo. Já estive confinado por tempo demais. Voto pela liberdade. Os assassinos precisam escapar. Então, antes que a discussão sobre Elodia vá longe demais, este é um bom momento para dar outro pontapé em minha mãe, distraí-la da briga com o interessante fato da minha existência. Não um nem dois, mas o número mágico de todas as boas histórias antigas. Três vezes, como Pedro negando Jesus.
“Ai, ai, ai!” Ela quase canta isso. Claude puxa uma cadeira para ela e traz um copo de água.
“Você está suando.”
“Bom, estou com calor.”
Ele testa as janelas. Não são movidas há anos. Procura gelo, mas os recipientes estão vazios depois das três rodadas recentes de gim e tônica. Por isso ele se senta diante dela e oferece sua refrescante solidariedade.
“Vai dar tudo certo.”
“Não, não vai.”
O silêncio dele concorda. Eu estava pensando num quarto chute, mas o estado de espírito de Trudy é perigoso. Ela pode partir para o ataque e provocar uma reação temerária.
Depois de uma pausa, em tom apaziguador, ele diz: “Devíamos repassar mais uma vez”.
“Que tal um advogado?”
“Um pouquinho tarde agora.”
“Diga a eles que não vamos falar sem a presença de um advogado.”
“Não vai cair bem, quando eles só estão vindo bater um papo.”
“Odeio isso.”
“Devíamos repassar mais uma vez.”
Mas não repassam. Estupefatos, contemplam a abordagem da inspetora-chefe Allison. Muito em breve. Dentro de uma hora pode significar em um minuto. Sabendo de tudo, de quase tudo, sou parte do crime, sem dúvida a salvo de um interrogatório, porém amedrontado. E curioso, impaciente para testemunhar as habilidades da inspetora-chefe. Alguém de mente aberta seria capaz de desmascarar esses dois em minutos. Trudy traída pelos nervos, Claude pela burrice.
Estou tentando imaginar onde estão as canecas de café da manhã usadas durante a visita de meu pai. Transferidas, penso agora, para a pia, onde esperam sem ter sido lavadas. DNA numa caneca provará que minha mãe e meu tio dizem a verdade. Os restos dos sanduíches dinamarqueses devem estar por perto.
“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”
“Na cozinha.”
“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”
“Dinheiro.”
“Não. Botar você para fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”
“Anos.”
“Meses. Quanto emprestei para ele?”
“Mil.”
“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”
“Estou grávida. Afeta a memória.”
“Você mesma disse ontem. Tudo como foi, mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga.”
“Mais a luva. Menos que ele estava voltando para cá.”
“Meu Deus, sim. Outra vez. Qual a causa da depressão?”
“Nós. Dívidas. Trabalho. O bebê.”
“Certo.”
Repassam mais uma vez. Na terceira, soa melhor. Que cumplicidade mais doentia, eu desejar que eles tenham êxito!
“Então repita.”
“Tal como aconteceu. Menos a vitamina, mais a briga e a luva, menos a depressão, mais que ele estava voltando para cá.”
“Não. Porra! Trudy. Exatamente como foi. Mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga, mais a luva, menos a volta para cá.”
A campainha toca e eles se imobilizam.
“Diga a eles que não estamos prontos.”
Para minha mãe, essa era a ideia de uma piada. Ou prova de seu terror.
Provavelmente resmungando obscenidades, Claude caminha até o videofone, muda de ideia e segue para a escada em direção à porta da frente.
Trudy e eu damos uma volta nervosa pela cozinha, arrastando os pés. Ela também resmunga enquanto trabalha na história. Isso é proveitoso porque cada esforço sucessivo da memória a afasta mais dos fatos reais. Ela está memorizando suas lembranças. Os erros de transcrição serão a seu favor. Constituirão de início um colchão útil, transformando-se depois em verdade. Também poderia dizer a si mesma: ela não comprou o glicol, não foi à Judd Street, não preparou a bebida, não pôs as coisas no carro, não jogou o liquidificador no lixo. Ela limpou a cozinha — nada de ilegal nisso. Convencida, estará libertada da astúcia consciente e pode ter uma chance. A mentira eficaz, assim como uma tacada de mestre no golfe, está livre da autoconsciência. Presto atenção nos comentários esportivos.
Atento aos passos que descem a escada, eu os diferencio. Os da inspetora-chefe Allison são leves, até mesmo como os de um passarinho, apesar de seu posto elevado. Apertos de mão são trocados. Pelo rígido “Como vai a senhora?” do sargento, reconheço o policial mais velho que esteve aqui ontem. O que terá impedido sua promoção? Classe, educação, Q.I., escândalo — o último, espero, pelo qual ele pode ser culpado, não precisando da minha compaixão.
A ágil inspetora-chefe senta-se à mesa da cozinha e convida todos a fazerem o mesmo, como se a casa fosse dela. Acho que capto minha mãe pensando que seria mais fácil enganar um homem. Allison abre uma pasta e fica apertando repetidamente o botão da mola da caneta enquanto fala. Nos diz que antes deseja expressar — faz uma pausa de grande efeito para olhar, não tenho dúvida, no fundo dos olhos de Trudy e de Claude — seus profundos sentimentos pela perda de um marido querido, de um irmão querido, de um amigo querido. Nada de um pai querido. Estou lutando contra o sentimento gélido e bem conhecido de exclusão. Mas a voz é cálida, maior que seu corpo, enfrentando sem tensões os ossos do ofício. A ligeira pronúncia típica dos habitantes mais pobres do leste de Londres corresponde aos padrões urbanos consagrados, e não será facilmente desafiada. Não pelas vogais forçadas de minha mãe, aprendidas em colégios caros. Esse velho truque já não funcionaria. Os tempos são outros. Um dia a maior parte dos estadistas britânicos falará como a inspetora-chefe. Me pergunto se ela tem uma arma. Desnecessário. Como a rainha, que não carrega dinheiro. Atirar nas pessoas é coisa de sargento para baixo.
Allison explica que se trata de uma conversa informal para ajudá-la a ter uma compreensão mais ampla dos trágicos acontecimentos. Trudy e Claude não têm nenhuma obrigação de responder às perguntas. Mas ela está errada. Eles se sentem obrigados. A recusa os faria dar a impressão de serem suspeitos. No entanto, se a inspetora-chefe estiver uma jogada à frente, pode pensar que a aceitação é ainda mais suspeita. Os que nada têm a esconder insistiriam num advogado como precaução contra os erros policiais ou uma intromissão ilegal.
Ao nos acomodarmos em torno da mesa, reparo na ausência de indagações corteses sobre mim, coisa de que me ressinto. Espera para quando? Menino ou menina?
Em vez disso, a inspetora-chefe não perde tempo. “Vocês podem me mostrar a casa depois que terminarmos a conversa.”
Mais uma afirmação que um pedido. Claude está ansioso, ansioso demais, para obedecer. “Ah, sim. Sim!”
Uma ordem de busca seria a alternativa. Mas não há nada de interessante para a polícia no andar de cima além da imundície.
A inspetora-chefe diz para Trudy: “Seu marido veio aqui ontem por volta das dez horas da manhã?”.
“Isso mesmo.” Seu tom é impassível, um exemplo para Claude.
“E houve alguma tensão.”
“Naturalmente.”
“Por que naturalmente?”
“Estou morando com o irmão dele na casa que John achava que era sua.”
“De quem é a casa?”
“Do casal.”
“O casamento tinha acabado?”
“Sim.”
“Se importa se eu perguntar? Ele achava que tinha acabado?”
Trudy hesita. Pode haver uma resposta certa e uma errada.
“Ele me queria de volta, mas também queria manter suas amigas.”
“Conhece algum nome?”
“Não.”
“Mas ele lhe falou sobre elas?”
“Não.”
“Mas de alguma maneira a senhora sabia.”
“Claro que eu sabia.”
Trudy se permite algum desdém. Como se para dizer: “Sou a mulher de verdade aqui”. Mas ignorou as instruções de Claude. Devia dizer a verdade, acrescentando e subtraindo apenas o que tinha sido combinado. Ouço meu tio se mexer na cadeira.
Sem fazer nenhuma pausa, Allison muda de assunto. “Vocês tomaram café.”
“Sim.”
“Os três? Em volta desta mesa?”
“Os três.” Claude diz isso, talvez preocupado que seu silêncio esteja passando uma má impressão.
“Mais alguma coisa?”
“O quê?”
“Com o café. Vocês lhe ofereceram alguma coisa mais?”
“Não.” Minha mãe soa cautelosa.
“E o que havia no café?”
“Como assim?”
“Leite? Açúcar?”
“Ele sempre tomava sem leite.” O ritmo do pulso dela acelerou.
Mas o comportamento de Clare Allison é impenetravelmente neutro. Ela se volta para Claude. “Então o senhor lhe emprestou algum dinheiro.”
“Sim.”
“Quanto?”
“Cinco mil.” Claude e Trudy respondem num coro mal sincronizado.
“Um cheque?”
“Na verdade em dinheiro vivo. Foi como ele queria.”
“O senhor tem ido àquela loja de vitaminas na Judd Street?”
A resposta de Claude é tão rápida quanto a pergunta. “Uma ou duas vezes. Foi John quem nos falou sobre ela.”
“Imagino que o senhor não tenha estado lá ontem.”
“Não.”
“Nunca pediu emprestado o chapéu preto de aba larga dele?”
“Nunca. Não faz meu estilo.”
Essa pode ser a resposta errada, mas não há tempo para raciocinar. As perguntas adquiriram um novo peso. O coração de Trudy está batendo mais rápido. Eu não confiaria nela para falar. Mas ela fala, e com voz estrangulada.
“Presente meu de aniversário. Ele amava aquele chapéu.”
A inspetora-chefe já está passando para algo diferente, mas volta atrás. “É tudo que se vê na câmera de segurança. Mandamos o chapéu para um teste de DNA.”
“Nem lhes oferecemos chá, café”, diz Trudy com voz alterada.
A inspetora-chefe deve ter recusado com um balançar de cabeça por ela e pelo sargento, ainda em silêncio. “Agora é quase tudo assim”, ela diz num tom nostálgico, “ciência e telas de computadores. Mas onde estávamos? Ah, sim. Houve alguma tensão. Mas vejo em minhas anotações que ocorreu uma briga.”
Claude deve estar fazendo os mesmos raciocínios apressados que eu. Seu cabelo será encontrado no chapéu. A resposta correta era sim, tinha pedido emprestado algum tempo atrás.
“Sim”, diz Trudy. “Uma de muitas.”
“Se importa de me dizer...”
“Ele queria que eu saísse da casa. Eu disse que iria quando estivesse pronta.”
“Quando ele foi embora, qual era seu estado de espírito?”
“Bem ruim. Estava péssimo. Confuso. Na verdade não queria que eu me mudasse daqui. Me queria de volta. Tentou que eu ficasse com ciúme, fingindo que Elodia era sua amante. Ela nos esclareceu tudo. Os dois não tinham um relacionamento.”
Detalhes demais. Ela está tentando retomar o controle. Mas falando muito rápido. Precisa dar uma respirada.
Clare Allison fica em silêncio enquanto aguardamos para saber qual a próxima direção que tomará. Mas ela continua nesse assunto, declarando da forma mais delicada possível: “Não é a informação que tenho”.
Um instante de torpor, como se o próprio som houvesse sido assassinado. O espaço em torno de mim se contrai porque Trudy parece ter se esvaziado como um balão. A coluna se dobra como a de uma velha. Sinto um pequeno orgulho de mim. Sempre tive minhas suspeitas. Com que avidez eles tinham acreditado em Elodia. Agora eles sabem: “Nem o copo-de-leite se demora”. Mas também preciso ter cautela. A inspetora-chefe pode ter razões para mentir. Está apertando o botão da caneta esferográfica, pronta para seguir em frente.
Minha mãe diz baixinho: “Bem, suponho que eu fui a mais enganada”.
“Sinto muito, sra. Cairncross. Mas minhas fontes são boas. Digamos apenas que se trata de uma jovem complicada.”
Eu poderia explorar a teoria de que não é mau negócio para Trudy ser a pessoa injuriada, obter corroboração para a história do marido infiel. Mas estou pasmo; nós dois estamos pasmos. Meu pai, aquela partícula mal compreendida, girando, se afasta ainda mais de mim no momento em que a inspetora-chefe faz outra pergunta a minha mãe. Ela também responde baixinho, com o tremor adicional de uma garotinha punida.
“Alguma violência?”
“Não.”
“Ameaças?”
“Não.”
“Nenhuma de sua parte.”
“Não.”
“E sobre a depressão dele? O que pode me dizer?”
Isso é dito gentilmente, e deve ser uma armadilha. Mas Trudy não faz uma pausa. Angustiada demais para inventar novas mentiras, persuadida demais de sua verdade, repete tudo que disse antes, na mesma linguagem inverossímil. Constante dor mental... Vociferava contra aqueles que amava... arrancava os poemas de sua alma. Vem-me a imagem vívida de uma parada de soldados exaustos, as plumas dos chapéus destruídas. A recordação em sépia de um podcast, as guerras napoleônicas em muitos episódios. Na época em que minha mãe e eu estávamos tranquilos. Ah, se Bonaparte tivesse se mantido dentro de suas fronteiras e feito boas leis para a França!
Claude entra na conversa: “Ele era seu pior inimigo”.
A acústica diferente me diz que a inspetora-chefe se voltou a fim de olhar diretamente para ele. “Algum outro inimigo, além dele próprio?”
O tom é despretensioso. Na melhor das hipóteses, uma pergunta pouco relevante; na pior das hipóteses, prenhe de intenções sinistras.
“Eu não saberia dizer. Nunca fomos muito próximos.”
“Me conte”, ela diz, com a voz mais calorosa, “sobre a infância dos dois. Isto é, se o senhor quiser.”
Ele quer. “Eu era três anos mais novo. Ele era bom em tudo. Esportes, estudos, garotas. Me achava um boboca insignificante. Quando cresci, fiz a única coisa que ele não conseguia fazer. Ganhar dinheiro.”
“Propriedades.”
“Esse tipo de coisa.”
A inspetora-chefe se volta de novo para Trudy. “Esta casa está à venda?”
“Claro que não.”
“Ouvi dizer que estava.”
Trudy não reage. Sua primeira jogada certa em muitos minutos.
Será que a inspetora-chefe está de uniforme? Deve estar. Seu quepe estará em cima da mesa, junto a seu cotovelo, como um grande bico. Não vejo nela a simpatia de um mamífero, mas rosto e lábios finos, roupas abotoadas até em cima. Sem dúvida sua cabeça, como a de um pombo, balança para a frente e para trás quando ela anda. O sargento a vê como uma detalhista. Fadada a galgar postos mais altos em que ele não a verá mais. Ela vai voar. Ou concluiu que John Cairncross se suicidou, ou tem razões para acreditar que uma gravidez no nono mês é uma boa maneira de ocultar um crime. Tudo que a inspetora-chefe diz, a observação mais banal, se presta a interpretações. O único poder que temos consiste em projetar. Tal como Claude, ela pode ser esperta ou burra, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Simplesmente não sabemos. Nossa ignorância é o que enche sua mão com as melhores cartas do baralho. Meu palpite é que ela tem poucas suspeitas, que não sabe de nada. Que seus superiores a estão observando. Que precisa ser delicada porque esta conversa é irregular, podendo comprometer o processo legal. Que ela vai preferir o apropriado ao verdadeiro. Que sua carreira é um ovo que ela botou, ela vai se sentar sobre ele, chocá-lo e esperar.
Mas já me enganei antes.
19.
Qual o próximo passo? Clare Allison quer dar uma olhada na casa. Péssima ideia. Mas recusar agora, quando, pelo que sei, as coisas estão indo mal, tornaria tudo pior. O sargento sobe na frente a escada de madeira, seguido por Claude, pela inspetora-chefe, depois por minha mãe e eu. No térreo, a inspetora-chefe diz que, se concordarmos, ela gostaria de ir até o último andar e descer “trabalhando”. Trudy não se interessa em subir mais. Os outros continuam, enquanto nós dois vamos nos sentar na sala — e pensar.
Envio meus pensamentos velozes adiante deles, primeiro à biblioteca. Pó de gesso, cheiro de morte, mas relativamente arrumada. No andar superior, quarto e banheiro, caos de uma espécie íntima, a própria cama um emaranhado de lascívia e sono interrompido, o chão coalhado de roupas largadas por Trudy, o banheiro com potes destampados, unguentos e roupa de baixo suja. Me pergunto o que a desordem significa para olhos desconfiados. Não há de ser algo moralmente neutro. O desdém pelas coisas, pela organização, pela limpeza deve pertencer a uma escala onde existe também o desprezo pelas leis, pelos valores, pela própria vida. O que é um criminoso senão um espírito transtornado? No entanto, um quarto excessivamente arrumado também poderia levantar suspeitas. A inspetora-geral, com os olhos aguçados de uma águia, vai olhar o quarto de relance e se afastar. Mas no subconsciente a repugnância deve afetar seu julgamento.
Há cômodos mais acima, porém nunca fui tão longe. Trago meus pensamentos para o térreo e, como uma criança bem-comportada, atento para o estado de minha mãe. Seu ritmo cardíaco se estabilizou. Ela parece quase calma. Talvez fatalista. A bexiga cheia pressiona minha cabeça. Mas ela não está disposta a se mover. Faz seus cálculos, talvez pensando no plano dos dois. Porém deveria se perguntar qual é o seu próprio interesse. Dissociar-se de Claude. Incriminá-lo de algum modo. De nada serve os dois cumprirem uma pena de prisão. Então ela e eu poderíamos ir ficando por aqui. Ela não ia querer me dar a alguém se estivesse sozinha numa casa grande. Nesse caso, prometo que a perdoaria. Ou me encarregaria dela mais tarde.
Mas não há tempo para maquinações. Ouço-os descer de volta. Passam pela porta aberta da sala, a caminho da porta da frente. A inspetora-chefe certamente não pode ir embora sem um respeitoso adeus à viúva. Na verdade, Claude abriu a porta para mostrar a Allison onde seu irmão tinha estacionado o carro, como no início o motor não pegou, como, apesar da briga, eles tinham acenado quando o carro começou a funcionar e deu marcha a ré para alcançar a rua. Uma lição em matéria de contar a verdade.
Logo depois, Claude e os policiais estão diante de nós.
“Trudy — posso chamá-la de Trudy? Que momento terrível, e você está sendo muito prestativa. Muito hospitaleira. Não sei...” A inspetora-chefe se interrompe, sua atenção desviada. “Aquilo é do seu marido?”
Ela está olhando para as caixas de papelão que meu pai trouxe e deixou embaixo da janela semicircular. Minha mãe se põe de pé. Se vai haver algum problema, melhor que use sua altura. E largura.
“Ele estava voltando para cá. Saindo de Shoreditch.”
“Posso ver?”
“Apenas livros. Mas pode, sim.”
O sargento solta um murmúrio ofegante quando se ajoelha para abrir as caixas. Eu diria que a inspetora-chefe está agachada, agora não como um pássaro, mas como uma pata gigantesca. É errado eu não gostar dela. Ela é a lei, e já me considero no tribunal de Hobbes. O Estado precisa deter o monopólio da violência. Mas o jeitão da inspetora-chefe me irrita, o modo como vasculha as coisas de meu pai, seus livros prediletos, enquanto parece falar consigo mesma sabendo que não temos alternativa senão escutá-la.
“Não entendo. Muito, muito triste... bem na pista de acesso...”
Claro que ela está representando, trata-se de um prelúdio. Ela se levanta. Acho que está olhando para Trudy. Talvez para mim.
“Mas o verdadeiro mistério é o seguinte. Nenhuma impressão digital na garrafa de glicol. Nem no copo. Soube disso há pouco pelo pessoal técnico. Nenhum vestígio. Que estranho!”
“Ah!”, diz Claude, mas Trudy o interrompe. Eu deveria alertá-la. Ela não deve se mostrar tão ansiosa. Sua explicação vem depressa demais. “A luva. Problema de pele. Ele tinha tanta vergonha das mãos!”
“Ah, a luva!”, exclama a inspetora-chefe. “Tem razão. Esqueci completamente!” Ela está desdobrando um pedaço de papel. “Essa?”
Minha mãe dá um passo à frente para olhar. Deve ser a reprodução de uma fotografia. “Sim.”
“Não havia outra?”
“Não como essa. Eu costumava dizer que ele não precisava dela. Ninguém realmente se importava.”
“Ele usava o tempo todo?”
“Não. Mas bastante, principalmente quando estava deprimido.”
A inspetora-chefe está de saída, e isso é um alívio. Nós todos a acompanhamos até o vestíbulo.
“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo... Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto — os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”
A porta da frente é aberta, provavelmente pelo sargento. A inspetora-chefe sai. Ao se afastar, sua voz diminui de volume e se mistura ao som do tráfego. “Não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome em latim. Há muito tempo nenhuma mão calçava aquela luva.”
O sargento toca no braço de minha mãe e por fim fala, dizendo gentilmente ao partir: “Voltamos amanhã de manhã. Para esclarecer umas últimas coisas”.
20.
Por fim, a hora chegou. Há decisões a serem tomadas, urgentes, irreversíveis, autocondenatórias. Mas antes Trudy necessita de dois minutos de solidão. Corremos para o porão, para aquilo que antes chamavam de casinha. Lá, enquanto a pressão sobre meu crânio é aplacada e minha mãe continua sentada alguns segundos mais do que seria necessário, suspirando para si própria, meus pensamentos tornam-se claros. Ou tomam um novo rumo. Pensei que os assassinos deveriam escapar para garantir minha liberdade. Essa pode ser uma visão muito estreita, muito egoísta. Há outras considerações. O ódio a meu tio pode exceder o amor por minha mãe. Puni-lo pode ser mais nobre que salvá-la. Mas talvez seja possível conseguir as duas coisas.
Essas preocupações permanecem comigo ao voltarmos à cozinha. Parece que, depois que os policiais foram embora, Claude percebeu que precisava de um uísque. Ao ouvir a bebida sendo servida quando entrarmos, um som sedutor, Trudy descobre que também precisa de um. Dos grandes. Com água da torneira, meio a meio. Em silêncio, meu tio se desincumbe da tarefa. Em silêncio, ficam de pé frente a frente junto à pia. Não é hora de brindar. Cada um contemplando os erros do outro ou até mesmo os seus. Ou decidindo o que fazer. Esta é a emergência que temiam, e para a qual têm um plano. Bebem o que há nos copos e, sem uma palavra, partem para uma segunda dose. Nossas vidas estão prestes a mudar. A inspetora-chefe Allison paira sobre nós, uma deusa imprevisível e sorridente. Não saberemos, até que seja tarde demais, por que não efetuou as prisões naquele momento, por que nos deixou a sós. Dando os últimos retoques no caso, esperando a análise de DNA no chapéu, seguindo em frente? Minha mãe e meu tio devem levar em conta que qualquer escolha feita agora pode ser a que ela espera deles, e ela está a postos. Também é possível que o misterioso plano dos dois não tenha ocorrido a ela, e então os dois estariam um passo adiante. Boa razão para agir com audácia. Em vez disso, nesse momento eles preferem um drinque. Talvez qualquer coisa que façam preste um serviço a Clare Allison, inclusive esse interlúdio com um single malt. Mas não, a única chance deles é optar pela escolha radical — e agora.
Trudy ergue o braço para impedir uma terceira dose. Claude é mais resoluto. Está empenhado na busca rigorosa da clareza mental. Ouvimos enquanto se serve — ele vem bebendo uísque puro em grandes quantidades —, depois quando engole emitindo um som forte, que conhecemos bem. Devem estar se perguntando como evitar uma briga exatamente no momento que precisam trabalhar juntos. De longe chega o som de uma sirene, apenas uma ambulância, mas que espicaça seus medos. A rede do Estado se estende invisível por toda a cidade. Difícil escapar dela. Mas funciona como um ponto de teatro, porque finalmente ocorre uma fala, uma útil afirmação do óbvio.
“Isto é ruim.” A voz de minha mãe é baixa e gutural.
“Onde estão os passaportes?”
“Estão comigo. E o dinheiro?”
“Na minha maleta.”
Mas eles não se movem, e a assimetria da troca de palavras — a resposta evasiva de minha mãe — não provoca meu tio. Ele está bem avançado na terceira dose, quando a primeira de Trudy chega a mim. Nada sensual, mas, sem exagero, cai bem diante da situação, essa sensação de fim sem um começo à vista. Visualizo uma velha estrada militar através de um desfiladeiro gelado nas montanhas, um leve odor de pedra úmida e turfa, o som de aço e passos obedientes no chão de cascalho, o peso da amarga injustiça. Tão distante das vertentes voltadas para o sul, das flores cobertas de pólen nos fartos ramalhetes roxos que emolduravam as colinas longínquas, com seus tons sobrepostos de um índigo cada vez mais pálido. Eu preferia estar lá. Mas admito — o uísque, meu primeiro, liberta minha mente. Uma cruel libertação: o portão aberto conduz à luta e ao medo do que a mente é capaz de criar. Está acontecendo comigo agora. Me perguntam, eu mesmo me pergunto, o que mais desejo agora. Qualquer coisa. O realismo não é um fator limitativo. Corte as cordas, solte a imaginação. Posso responder sem pensar: vou atravessar o portão aberto.
Passos na escada. Trudy e Claude olham para cima, surpresos. Será que a inspetora encontrou um modo de entrar na casa? Um ladrão escolheu a pior das noites? É uma descida lenta, pesada. Eles veem um sapato preto de couro, um cinto, uma camisa manchada de vômito, e depois uma expressão terrível, ao mesmo tempo vazia e determinada. Meu pai está com as roupas com que morreu. Rosto exangue, lábios preto-esverdeados já em putrefação, olhos pequenos e penetrantes. Agora se postou ao pé da escada, mais alto que em minhas recordações. Veio do necrotério para nos encontrar e sabe exatamente o que deseja. Estou tremendo porque minha mãe também está. A imagem não é bruxuleante, ela nada tem de fantasmagórica. Este é meu pai em carne e osso, John Cairncross, como sempre foi. O gemido aterrorizado de minha mãe serve como estímulo, pois ele caminha em nossa direção.
“John”, Claude diz com cautela, num tom de voz ascendente, como se pudesse despertar aquela figura e levá-la de volta à não existência a que pertence. “John, somos nós.”
Isso parece bem entendido. Ele está à nossa frente, exalando um miasma de glicol e carne visitada por vermes amigáveis. É minha mãe quem ele encara fixamente com olhos pequenos, duros e negros, feitos de uma rocha indestrutível. Seus lábios repulsivos se movem, mas não emitem nenhum som. A língua é mais preta que os lábios. Mantendo o olhar nela o tempo todo, ele estende um braço. A mão descarnada se aferra à garganta de meu tio. Minha mãe não consegue nem gritar. Os olhos ilíquidos continuam pregados nela. Isso é para ela, o presente dele. A mão impiedosa aperta ainda mais. Claude cai de joelhos, olhos esbugalhados, as mãos golpeando e puxando inutilmente o braço do irmão. Só um guincho distante, o som patético de um camundongo, nos diz que ele ainda está vivo. Depois não está mais. Meu pai, que nem de relance olhou para ele uma única vez, deixa-o tombar no chão e agora puxa sua mulher para perto de si, a envolve em braços finos e fortes como vergalhões de aço. Traz o rosto dela para junto do dele e lhe dá um beijo longo e intenso com lábios gelados e apodrecidos. Ela é tomada de horror, de repugnância, de vergonha. Será atormentada por esse instante até o dia de sua morte. Indiferente, ele a liberta e caminha de volta para onde veio. Ao subir a escada, já começa a se desvanecer.
Bem, me perguntaram. Eu mesmo me perguntei. E era isso que eu queria. Uma fantasia infantil do Dia das Bruxas. De que outro modo encomendar a vingança de um espírito numa era de convicções seculares? O gótico foi razoavelmente banido, as feiticeiras largaram às pressas os caldeirões, só nos restou o materialismo, tão perturbador para a alma. Uma voz no rádio me disse certa vez que, quando compreendermos perfeitamente o que é a matéria, vamos nos sentir melhor. Duvido. Nunca terei o que quero.
Volto de meus devaneios e vejo que estamos no quarto. Não me lembro de termos subido. O som oco da porta do armário, o tilintar dos cabides de casacos, uma mala posta na cama, depois outra, o estalido das fechaduras sendo abertas. Eles deveriam ter feito as malas com antecedência. A inspetora poderia vir até mesmo esta noite. É isso que eles chamam de plano? Ouço imprecações e resmungos.
“Onde é que está? Estava aqui comigo. Na minha mão!”
Cruzam o quarto de um lado ao outro, abrem gavetas, entram e saem do banheiro. Trudy deixa cair um copo, que se estilhaça no chão. Ela nem liga. Por algum motivo, o rádio está ligado. Claude senta-se com seu notebook e murmura: “Trem às nove. O táxi está a caminho”.
“Eu preferia Paris a Bruxelas. Melhores conexões para seguir viagem”, Trudy resmunga para si mesma ainda no banheiro. “Dólares... euros.”
Tudo que eles dizem, mesmo os ruídos que fazem, têm um ar de despedida, como um triste acorde final, um adeus cantado. Este é o fim, não voltaremos. A casa, a casa de meu avô em que eu deveria crescer, está prestes a se apagar. Não me lembrarei dela. Eu gostaria de solicitar uma lista de países sem acordo de extradição. Na maioria são desconfortáveis, desorganizados, quentes. Ouvi dizer que Beijing é um lugar aprazível para fugitivos. Uma próspera aldeia de vilões que falam inglês enterrada na vastidão populosa da cidade cosmopolita. Um bom local para terminar.
“Soníferos, analgésicos”, Claude diz em voz alta.
Sua voz, seu tom me instigam. Hora de decidir. Ele está fechando as malas, prendendo as tiras de couro. Foi rápido. Então já deviam ter começado a fazê-las. São daquelas antigas, de duas rodinhas e não quatro. Claude as levanta da cama e põe no chão.
Trudy pergunta: “Qual?”.
Acho que está mostrando dois lenços de pescoço. Claude resmunga sua escolha. Isso não passa de um simulacro de normalidade. Quanto tomarem o trem, quando atravessarem a fronteira, a culpa dos dois vai se revelar. Só dispõem de uma hora e devem se apressar. Trudy diz que há um casaco que que ela quer e que não está conseguindo achar. Claude insiste que ela não vai precisar dele.
“É levinho”, ela diz. “O branco.”
“Você vai se destacar na multidão. Nas câmeras de segurança.”
Mas ela acaba encontrando-o justamente quando o Big Ben bate oito horas e o noticiário começa. Eles não param para escutar. Ainda há algumas últimas coisas para pegar. Na Nigéria, crianças queimadas vivas diante dos pais pelos guardiões das chamas. Na Coreia do Norte, um foguete é lançado. Ao redor do mundo, a elevação do nível do mar supera as previsões. Mas nenhuma dessas é a principal. Tal privilégio é dado a uma nova catástrofe. Uma combinação — pobreza e guerra, com mudança climática na reserva — que vem expulsando milhões de pessoas de seus lares, um antigo épico sob novo formato, vastos movimentos humanos como rios ingurgitados na primavera, Danúbios, Renos e Ródanos de seres irados ou desolados, ou esperançosos, amontoados nas fronteiras contra as cercas de arame cortante, afogando-se aos milhares ao tentarem compartilhar as riquezas do Ocidente. Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.
E, como sempre, há problemas mais perto de casa. Enquanto as emissoras de rádio e televisão prosseguem com suas cantilenas, as pessoas vão tocando seus negócios. Um casal acabou de se aprontar para uma viagem. As malas estão fechadas, mas há uma fotografia de sua mãe que a jovem mulher deseja levar. A pesada moldura esculpida é grande demais para ser posta na bagagem. Sem a ferramenta certa, a fotografia não pode ser removida, e a ferramenta, um tipo especial de chave, está no porão, no fundo de uma gaveta. O táxi espera lá fora. O trem parte dentro de cinquenta minutos, a estação fica um pouco longe, pode haver filas nos controles de segurança e de passaportes. O homem leva uma das malas para o patamar da escada e volta um pouco ofegante. Deveria ter usado as rodinhas.
“Agora temos mesmo que ir de qualquer maneira.”
“Preciso levar essa foto.”
“Leve debaixo do braço.”
Mas, além de ter de puxar a mala, ela carrega a bolsa, o casaco branco e eu.
Com um gemido, Claude pega a segunda mala a fim de levá-la para fora. Com esse esforço inútil quer mostrar o quanto é urgente eles partirem.
“Você não vai demorar nem um minuto. Está no canto da frente da gaveta do lado esquerdo.”
Ele volta. “Trudy. Estamos indo. Agora.”
A troca de palavras passou de lacônica a amarga.
“Leva para mim.”
“Nem pensar.”
“Claude. É minha mãe.”
“Estou pouco ligando. Estamos indo.”
Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais. Hora de entrar em ação. Acabar de uma vez por todas. Hora de começar. Não é fácil libertar meu braço direito, apertado contra o peito, ou movimentar o pulso. Mas agora isso foi feito. Um dedo indicador é a minha ferramenta especial para remover minha mãe da moldura. Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas. Faço a primeira tentativa de incisão. Minhas unhas são macias e, embora fino, o tecido é resistente. A evolução sabe das coisas. Tateio para encontrar a ranhura causada pelo meu dedo. Há uma dobra, bem definida, e é lá que tento de novo, até que na quinta investida sinto uma tênue esgarçadura e, na sexta, um minúsculo rompimento. Consigo enfiar a ponta da unha nesse rasgo, o dedo, dois dedos, três, quatro, até que por fim minha mão fechada abre o caminho e atrás dela vem um grande volume de líquido, a catarata do começo da vida. Minha proteção aquosa desapareceu.
Agora nunca saberei como a história da fotografia ou do trem das nove horas teria sido resolvida. Claude está fora do quarto, no alto da escada. Tem uma mala em cada mão, pronto para descer.
Minha mãe o chama com o que parece ser um gemido desapontado. “Ah, Claude.”
“O que agora?”
“A bolsa rompeu!”
“Cuidamos disso depois. No trem.”
Ele deve ter imaginado que se tratava de uma artimanha, da continuidade da discussão, um tipo repulsivo de problema feminino que ele está agitado demais para levar em conta.
Estou mexendo os ombros para me libertar da membrana embrionária, minha primeira experiência em matéria de me despir. Sou desajeitado. Três dimensões me parecem três a mais do que eu desejava. Prevejo que o mundo material será um desafio. O manto descartado continua retorcido em volta dos meus joelhos. Não faz mal. Tenho uma nova tarefa abaixo da cabeça. Não sei como sei o que devo fazer. É um mistério. Há certos conhecimentos com os quais simplesmente já chegamos. No meu caso, há este, e um punhado de escansões poéticas. Afinal, nenhuma lousa em branco. Trago a mesma mão à bochecha e a deslizo para baixo, ao longo da parede muscular do útero, a fim de achar o colo. Ele está bem apertado contra a parte de trás da minha cabeça. É lá, na entrada do mundo, que eu apalpo delicadamente com meus pequenos dedos e de imediato, como se alguma fórmula mágica houvesse sido pronunciada, o grande poder de minha mãe é estimulado, as paredes a meu redor se encrespam, tremem e se fecham sobre mim. É um terremoto, uma comoção gigantesca na caverna dela. Como o aprendiz de feiticeiro, fico horrorizado e depois esmagado pela força desencadeada. Eu deveria ter esperado a minha hora. Só um idiota se meteria com essa força. Ouço à distância minha mãe gritar. Pode ser um pedido de ajuda, quem sabe um berro de triunfo ou dor. Então sinto alguma coisa no topo da cabeça, minha coroa — um centímetro de dilatação! Não há volta.
Trudy se arrastou para a cama. Claude está em algum lugar perto da porta. Ela está arfando, excitada e muito assustada.
“Começou. Como é rápido! Chame uma ambulância.”
Ele não diz nada por um momento, depois simplesmente pergunta: “Onde está meu passaporte?”.
A derrota é minha, eu o subestimei. O objetivo de chegar mais cedo era para destruir Claude. Eu sabia que ele era um problema. Mas pensei que amava minha mãe e que ficaria com ela. Estou começando a entender a força mental de Trudy. Enquanto ele remexe a bolsa dela e se ouve o tilintar alegre das moedas contra o estojo de maquiagem, ela diz: “Escondi. Lá embaixo. Justamente caso isso acontecesse”.
Ele reflete. Já comprou e vendeu propriedades, possuiu um arranha-céu em Cardiff, sabe como fechar um negócio. “Me diga onde está que eu chamo uma ambulância para você. E aí vou embora.”
A voz dela é cautelosa. Observando de perto seu próprio estado, esperando, desejando e temendo a próxima onda. “Não. Se eu cair, você cai também.”
“Ótimo. Sem ambulância.”
“Eu mesma vou chamar. Assim que...”
Assim que tenha passado a segunda contração, mais forte que a primeira. De novo seu grito involuntário, o corpo todo se contraindo enquanto Claude atravessa o quarto para se aproximar da cama e desconectar da parede o telefone que estava na mesinha de cabeceira. Ao mesmo tempo, sou comprimido violentamente e erguido uns três ou quatro centímetros, sugado para baixo e para trás de onde estava hibernando. Uma cinta de ferro espreme mais e mais minha cabeça. Nossos três destinos esmagados por uma grande boca.
Assim que a onda reflui, Claude, como um guarda de fronteira, diz, impassível: “Passaporte?”.
Ela sacode a cabeça, espera até retomar o fôlego. Os dois mantêm uma espécie de equilíbrio.
Ela se recupera e diz, sem emoção na voz: “Então você vai ter que fazer o papel da parteira”.
“O filho não é meu.”
“O filho nunca é da parteira.”
Ela está apavorada, mas pode aterrorizá-lo com instruções.
“Quando ele sair, vai vir com o rosto para baixo. Você pega o bebê com as duas mãos, bem delicadamente, apoiando a cabeça dele, e põe em cima de mim. Ainda com o rosto para baixo, entre os meus seios. Perto de onde bate o coração. Não se preocupe com o cordão. Vai parar de pulsar sozinho, e o bebê começa a respirar. Ponha umas duas toalhas em cima dele para mantê-lo aquecido. E aí esperamos.”
“Esperamos? Meus Deus! Esperamos o quê?”
“Que a placenta saia.”
Não sei se ele se encolheu ou teve uma ânsia de vômito. Podia ainda estar imaginando que terminaria com aquilo e pegaria um trem mais tarde.
Ouço com atenção, querendo saber o que fazer. Me enfiar embaixo de uma toalha. Respirar. Não pronunciar uma única palavra. Mas não basta ser um bebê. Com certeza rosa ou azul!
“Por isso, vá buscar uma porção de toalhas. Vai ser uma sujeirada. Lave as mãos bem lavadas, com a escovinha de unhas e muito sabonete.”
Tão longe de onde dava pé para ele, tão longe da costa acolhedora, um homem sem seus documentos deveria estar em plena fuga. Ele dá meia-volta para fazer o que lhe foi ordenado.
E assim seguem as coisas, onda atrás de onda, gritos e gemidos, súplicas para que a agonia tenha fim. Progresso impiedoso, ejeção em curso. O cordão se desenrola atrás de mim à medida que avanço lentamente. Para a frente e para fora. Forças cruéis da natureza pretendem me achatar. Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos.
Um momento deslizante de urgência pegajosa, com sons ásperos, e aqui estou eu, trazido nu ao reino. Como o corajoso Cortés (lembro de um poema que meu pai recitou), estou pasmo. Olhando para baixo, maravilhado, para o que presumo ser a superfície felpuda de uma toalha de banho azul. Azul. Eu sempre soube, ao menos verbalmente, sempre fui capaz de deduzir o que era o azul — mar, céu, lápis-lazúli, gencianas — meras abstrações. Agora o tenho por fim, o possuo e ele me possui. Mais grandioso do que eu ousava crer. Isto é só o começo, na extremidade índigo do espectro.
Meu fiel cordão, que me mantinha vivo e não conseguiu me matar, de repente morre como planejado. Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom. Os sons são límpidos, brilhantes graças ao realce dos agudos. A resplandecente toalha, irradiando sua cor, evoca a mesquita de Goharshad no Irã que fez meu pai chorar nas primeiras horas de uma manhã. Minha mãe se mexe e faz com que minha cabeça mude de posição. Vejo Claude de relance. Menor do que eu imaginava, com ombros estreitos e cara de raposa. Sem a menor dúvida, com uma expressão de repugnância. A luz do sol do início da noite de verão atravessa as folhas de um plátano e projeta no teto desenhos tremulantes. Ah, a alegria de esticar as pernas, de verificar no despertador sobre a mesinha de cabeceira que eles jamais pegarão aquele trem. Mas não tenho muito tempo para saborear esse momento. Minha maleável caixa torácica é apertada pelas mãos enojadas de um assassino e sou posto na barriga hospitaleira, branca como a neve, de outra assassina.
As batidas de seu coração soam distantes, abafadas, mas são tão familiares quanto um velho estribilho que não ouvimos há décadas. O ritmo da música é um andante, passos delicados que me conduzem ao verdadeiro portão aberto. Não posso negar o medo que sinto. Mas estou exausto, um marinheiro náufrago que chegou a uma praia bem-afortunada. Estou caindo, mesmo enquanto o mar lambe meus tornozelos.
Trudy e eu devemos ter cochilado. Não sei quantos minutos se passaram até ouvirmos a campainha. Como ela soa claro. Claude ainda está aqui, ainda esperando obter seu passaporte. Ele deve ter descido para caçar o documento. Agora caminha até o interfone. Olha de relance a tela e dá meia-volta. Não pode haver surpresas.
“São quatro”, ele diz, mais para si mesmo.
Contemplamos esse fato. Acabou. Não é um bom final. Nunca seria.
Minha mãe me muda de lugar para que possamos trocar um longo olhar. O momento pelo qual esperei. Meu pai tinha razão, é um rosto adorável. O cabelo mais escuro do que eu pensava, os olhos de um verde mais pálido, as bochechas ainda coradas por causa do esforço recente, o nariz de fato uma coisinha bem pequena. Acho que vejo o mundo inteiro nesse rosto. Belo. Amoroso. Assassino. Ouço Claude atravessar o quarto com passos resignados para descer até a porta. Nenhum clichê. Mesmo nesse intervalo de descanso, durante o longo e ávido olhar no fundo dos olhos de minha mãe, estou pensando no táxi que espera lá fora. Um desperdício. Hora de mandá-lo embora. E estou pensando na nossa cela — espero que não seja pequena demais — e, mais além de sua pesada porta, nos degraus gastos que sobem: primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos.
18.
No começo da tarde, o telefone toca e o futuro se apresenta. Inspetora-chefe Clare Allison, designada para cuidar do caso. A voz soa amistosa, nenhum indício de acusação. Isso pode ser um mau sinal.
Estamos de novo na cozinha, Claude segura o fone. O primeiro café do dia na outra mão. Trudy se posta perto dele e nós dois ouvimos os dois interlocutores. Caso? A palavra contém uma ameaça. Inspetora-chefe? Também não ajuda muito.
Avalio a ansiedade de meu tio por seu zelo em se mostrar solícito. “Ah, sim. Sim! É claro. Por favor, faça isso.”
A inspetora-chefe Allison pretende nos visitar. O normal seria os dois irem à delegacia para uma conversa. Ou prestar depoimento, se apropriado. No entanto, por causa da gravidez avançada de Trudy, da dor da família, a inspetora-chefe e um sargento virão daqui a uma hora. Ela gostaria de dar uma olhada no local onde houve o último contato com o falecido.
Esta última informação, inocente e razoável a meus ouvidos, provoca em Claude um frenesi de boas-vindas. “Venha, por favor. Maravilhoso. Sem dúvida. Será um prazer conhecê-la. Contando os minutos. A senhora...”
Ela desliga. Ele se volta para nós, provavelmente cor de cinza, e diz numa voz desapontada: “Ah”.
Trudy não resiste a imitá-lo: “Tudo... ótimo, não é?”.
“Que caso é esse? Não se trata de uma questão criminal.” Ele apela a uma audiência imaginária, a um conselho de sábios. A um júri.
“Odeio isso”, minha mãe murmura, mais para si mesma. Ou para mim, eu gostaria de acreditar.
“Deve ser para o juiz de instrução.” Claude se afasta de nós, ofendido, dá uma volta pela cozinha e retorna, indignado. Agora sua queixa é dirigida a Trudy. “Não se trata de um caso de polícia.”
“Ah, é mesmo?”, ela diz. “Melhor então telefonar para a inspetora e explicar isso a ela.”
“Aquela poeta. Eu sabia que não podíamos confiar nela.”
Entendemos que, como Elodia é assunto de minha mãe, de algum modo isso constitui uma acusação.
“Você gostou dela.”
“Você disse que ela ia ser útil.”
“Você gostou dela.”
Mas a reiteração deliberadamente impassível não o espicaça.
“Quem não gostaria? E quem se importa com isso?”
“Eu me importo.”
Pergunto-me mais uma vez o que ganho se eles brigarem. Isso poderia arruiná-los. Então eu ficaria com Trudy. Já a escutei dizer que, na prisão, mães que estão amamentando levam uma vida melhor. Mas vou perder meu direito de nascer, o sonho de todos os seres humanos, minha liberdade. Enquanto juntos, como uma equipe, eles podem escapar raspando. E depois me darem para alguém. Sem mãe, mas livre. Portanto, o que é melhor? Já pensei nisso, voltando sempre ao mesmo bendito lugar, à única decisão moralmente correta. Vou arriscar os confortos materiais e me aventurar no mundo. Já estive confinado por tempo demais. Voto pela liberdade. Os assassinos precisam escapar. Então, antes que a discussão sobre Elodia vá longe demais, este é um bom momento para dar outro pontapé em minha mãe, distraí-la da briga com o interessante fato da minha existência. Não um nem dois, mas o número mágico de todas as boas histórias antigas. Três vezes, como Pedro negando Jesus.
“Ai, ai, ai!” Ela quase canta isso. Claude puxa uma cadeira para ela e traz um copo de água.
“Você está suando.”
“Bom, estou com calor.”
Ele testa as janelas. Não são movidas há anos. Procura gelo, mas os recipientes estão vazios depois das três rodadas recentes de gim e tônica. Por isso ele se senta diante dela e oferece sua refrescante solidariedade.
“Vai dar tudo certo.”
“Não, não vai.”
O silêncio dele concorda. Eu estava pensando num quarto chute, mas o estado de espírito de Trudy é perigoso. Ela pode partir para o ataque e provocar uma reação temerária.
Depois de uma pausa, em tom apaziguador, ele diz: “Devíamos repassar mais uma vez”.
“Que tal um advogado?”
“Um pouquinho tarde agora.”
“Diga a eles que não vamos falar sem a presença de um advogado.”
“Não vai cair bem, quando eles só estão vindo bater um papo.”
“Odeio isso.”
“Devíamos repassar mais uma vez.”
Mas não repassam. Estupefatos, contemplam a abordagem da inspetora-chefe Allison. Muito em breve. Dentro de uma hora pode significar em um minuto. Sabendo de tudo, de quase tudo, sou parte do crime, sem dúvida a salvo de um interrogatório, porém amedrontado. E curioso, impaciente para testemunhar as habilidades da inspetora-chefe. Alguém de mente aberta seria capaz de desmascarar esses dois em minutos. Trudy traída pelos nervos, Claude pela burrice.
Estou tentando imaginar onde estão as canecas de café da manhã usadas durante a visita de meu pai. Transferidas, penso agora, para a pia, onde esperam sem ter sido lavadas. DNA numa caneca provará que minha mãe e meu tio dizem a verdade. Os restos dos sanduíches dinamarqueses devem estar por perto.
“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”
“Na cozinha.”
“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”
“Dinheiro.”
“Não. Botar você para fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”
“Anos.”
“Meses. Quanto emprestei para ele?”
“Mil.”
“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”
“Estou grávida. Afeta a memória.”
“Você mesma disse ontem. Tudo como foi, mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga.”
“Mais a luva. Menos que ele estava voltando para cá.”
“Meu Deus, sim. Outra vez. Qual a causa da depressão?”
“Nós. Dívidas. Trabalho. O bebê.”
“Certo.”
Repassam mais uma vez. Na terceira, soa melhor. Que cumplicidade mais doentia, eu desejar que eles tenham êxito!
“Então repita.”
“Tal como aconteceu. Menos a vitamina, mais a briga e a luva, menos a depressão, mais que ele estava voltando para cá.”
“Não. Porra! Trudy. Exatamente como foi. Mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga, mais a luva, menos a volta para cá.”
A campainha toca e eles se imobilizam.
“Diga a eles que não estamos prontos.”
Para minha mãe, essa era a ideia de uma piada. Ou prova de seu terror.
Provavelmente resmungando obscenidades, Claude caminha até o videofone, muda de ideia e segue para a escada em direção à porta da frente.
Trudy e eu damos uma volta nervosa pela cozinha, arrastando os pés. Ela também resmunga enquanto trabalha na história. Isso é proveitoso porque cada esforço sucessivo da memória a afasta mais dos fatos reais. Ela está memorizando suas lembranças. Os erros de transcrição serão a seu favor. Constituirão de início um colchão útil, transformando-se depois em verdade. Também poderia dizer a si mesma: ela não comprou o glicol, não foi à Judd Street, não preparou a bebida, não pôs as coisas no carro, não jogou o liquidificador no lixo. Ela limpou a cozinha — nada de ilegal nisso. Convencida, estará libertada da astúcia consciente e pode ter uma chance. A mentira eficaz, assim como uma tacada de mestre no golfe, está livre da autoconsciência. Presto atenção nos comentários esportivos.
Atento aos passos que descem a escada, eu os diferencio. Os da inspetora-chefe Allison são leves, até mesmo como os de um passarinho, apesar de seu posto elevado. Apertos de mão são trocados. Pelo rígido “Como vai a senhora?” do sargento, reconheço o policial mais velho que esteve aqui ontem. O que terá impedido sua promoção? Classe, educação, Q.I., escândalo — o último, espero, pelo qual ele pode ser culpado, não precisando da minha compaixão.
A ágil inspetora-chefe senta-se à mesa da cozinha e convida todos a fazerem o mesmo, como se a casa fosse dela. Acho que capto minha mãe pensando que seria mais fácil enganar um homem. Allison abre uma pasta e fica apertando repetidamente o botão da mola da caneta enquanto fala. Nos diz que antes deseja expressar — faz uma pausa de grande efeito para olhar, não tenho dúvida, no fundo dos olhos de Trudy e de Claude — seus profundos sentimentos pela perda de um marido querido, de um irmão querido, de um amigo querido. Nada de um pai querido. Estou lutando contra o sentimento gélido e bem conhecido de exclusão. Mas a voz é cálida, maior que seu corpo, enfrentando sem tensões os ossos do ofício. A ligeira pronúncia típica dos habitantes mais pobres do leste de Londres corresponde aos padrões urbanos consagrados, e não será facilmente desafiada. Não pelas vogais forçadas de minha mãe, aprendidas em colégios caros. Esse velho truque já não funcionaria. Os tempos são outros. Um dia a maior parte dos estadistas britânicos falará como a inspetora-chefe. Me pergunto se ela tem uma arma. Desnecessário. Como a rainha, que não carrega dinheiro. Atirar nas pessoas é coisa de sargento para baixo.
Allison explica que se trata de uma conversa informal para ajudá-la a ter uma compreensão mais ampla dos trágicos acontecimentos. Trudy e Claude não têm nenhuma obrigação de responder às perguntas. Mas ela está errada. Eles se sentem obrigados. A recusa os faria dar a impressão de serem suspeitos. No entanto, se a inspetora-chefe estiver uma jogada à frente, pode pensar que a aceitação é ainda mais suspeita. Os que nada têm a esconder insistiriam num advogado como precaução contra os erros policiais ou uma intromissão ilegal.
Ao nos acomodarmos em torno da mesa, reparo na ausência de indagações corteses sobre mim, coisa de que me ressinto. Espera para quando? Menino ou menina?
Em vez disso, a inspetora-chefe não perde tempo. “Vocês podem me mostrar a casa depois que terminarmos a conversa.”
Mais uma afirmação que um pedido. Claude está ansioso, ansioso demais, para obedecer. “Ah, sim. Sim!”
Uma ordem de busca seria a alternativa. Mas não há nada de interessante para a polícia no andar de cima além da imundície.
A inspetora-chefe diz para Trudy: “Seu marido veio aqui ontem por volta das dez horas da manhã?”.
“Isso mesmo.” Seu tom é impassível, um exemplo para Claude.
“E houve alguma tensão.”
“Naturalmente.”
“Por que naturalmente?”
“Estou morando com o irmão dele na casa que John achava que era sua.”
“De quem é a casa?”
“Do casal.”
“O casamento tinha acabado?”
“Sim.”
“Se importa se eu perguntar? Ele achava que tinha acabado?”
Trudy hesita. Pode haver uma resposta certa e uma errada.
“Ele me queria de volta, mas também queria manter suas amigas.”
“Conhece algum nome?”
“Não.”
“Mas ele lhe falou sobre elas?”
“Não.”
“Mas de alguma maneira a senhora sabia.”
“Claro que eu sabia.”
Trudy se permite algum desdém. Como se para dizer: “Sou a mulher de verdade aqui”. Mas ignorou as instruções de Claude. Devia dizer a verdade, acrescentando e subtraindo apenas o que tinha sido combinado. Ouço meu tio se mexer na cadeira.
Sem fazer nenhuma pausa, Allison muda de assunto. “Vocês tomaram café.”
“Sim.”
“Os três? Em volta desta mesa?”
“Os três.” Claude diz isso, talvez preocupado que seu silêncio esteja passando uma má impressão.
“Mais alguma coisa?”
“O quê?”
“Com o café. Vocês lhe ofereceram alguma coisa mais?”
“Não.” Minha mãe soa cautelosa.
“E o que havia no café?”
“Como assim?”
“Leite? Açúcar?”
“Ele sempre tomava sem leite.” O ritmo do pulso dela acelerou.
Mas o comportamento de Clare Allison é impenetravelmente neutro. Ela se volta para Claude. “Então o senhor lhe emprestou algum dinheiro.”
“Sim.”
“Quanto?”
“Cinco mil.” Claude e Trudy respondem num coro mal sincronizado.
“Um cheque?”
“Na verdade em dinheiro vivo. Foi como ele queria.”
“O senhor tem ido àquela loja de vitaminas na Judd Street?”
A resposta de Claude é tão rápida quanto a pergunta. “Uma ou duas vezes. Foi John quem nos falou sobre ela.”
“Imagino que o senhor não tenha estado lá ontem.”
“Não.”
“Nunca pediu emprestado o chapéu preto de aba larga dele?”
“Nunca. Não faz meu estilo.”
Essa pode ser a resposta errada, mas não há tempo para raciocinar. As perguntas adquiriram um novo peso. O coração de Trudy está batendo mais rápido. Eu não confiaria nela para falar. Mas ela fala, e com voz estrangulada.
“Presente meu de aniversário. Ele amava aquele chapéu.”
A inspetora-chefe já está passando para algo diferente, mas volta atrás. “É tudo que se vê na câmera de segurança. Mandamos o chapéu para um teste de DNA.”
“Nem lhes oferecemos chá, café”, diz Trudy com voz alterada.
A inspetora-chefe deve ter recusado com um balançar de cabeça por ela e pelo sargento, ainda em silêncio. “Agora é quase tudo assim”, ela diz num tom nostálgico, “ciência e telas de computadores. Mas onde estávamos? Ah, sim. Houve alguma tensão. Mas vejo em minhas anotações que ocorreu uma briga.”
Claude deve estar fazendo os mesmos raciocínios apressados que eu. Seu cabelo será encontrado no chapéu. A resposta correta era sim, tinha pedido emprestado algum tempo atrás.
“Sim”, diz Trudy. “Uma de muitas.”
“Se importa de me dizer...”
“Ele queria que eu saísse da casa. Eu disse que iria quando estivesse pronta.”
“Quando ele foi embora, qual era seu estado de espírito?”
“Bem ruim. Estava péssimo. Confuso. Na verdade não queria que eu me mudasse daqui. Me queria de volta. Tentou que eu ficasse com ciúme, fingindo que Elodia era sua amante. Ela nos esclareceu tudo. Os dois não tinham um relacionamento.”
Detalhes demais. Ela está tentando retomar o controle. Mas falando muito rápido. Precisa dar uma respirada.
Clare Allison fica em silêncio enquanto aguardamos para saber qual a próxima direção que tomará. Mas ela continua nesse assunto, declarando da forma mais delicada possível: “Não é a informação que tenho”.
Um instante de torpor, como se o próprio som houvesse sido assassinado. O espaço em torno de mim se contrai porque Trudy parece ter se esvaziado como um balão. A coluna se dobra como a de uma velha. Sinto um pequeno orgulho de mim. Sempre tive minhas suspeitas. Com que avidez eles tinham acreditado em Elodia. Agora eles sabem: “Nem o copo-de-leite se demora”. Mas também preciso ter cautela. A inspetora-chefe pode ter razões para mentir. Está apertando o botão da caneta esferográfica, pronta para seguir em frente.
Minha mãe diz baixinho: “Bem, suponho que eu fui a mais enganada”.
“Sinto muito, sra. Cairncross. Mas minhas fontes são boas. Digamos apenas que se trata de uma jovem complicada.”
Eu poderia explorar a teoria de que não é mau negócio para Trudy ser a pessoa injuriada, obter corroboração para a história do marido infiel. Mas estou pasmo; nós dois estamos pasmos. Meu pai, aquela partícula mal compreendida, girando, se afasta ainda mais de mim no momento em que a inspetora-chefe faz outra pergunta a minha mãe. Ela também responde baixinho, com o tremor adicional de uma garotinha punida.
“Alguma violência?”
“Não.”
“Ameaças?”
“Não.”
“Nenhuma de sua parte.”
“Não.”
“E sobre a depressão dele? O que pode me dizer?”
Isso é dito gentilmente, e deve ser uma armadilha. Mas Trudy não faz uma pausa. Angustiada demais para inventar novas mentiras, persuadida demais de sua verdade, repete tudo que disse antes, na mesma linguagem inverossímil. Constante dor mental... Vociferava contra aqueles que amava... arrancava os poemas de sua alma. Vem-me a imagem vívida de uma parada de soldados exaustos, as plumas dos chapéus destruídas. A recordação em sépia de um podcast, as guerras napoleônicas em muitos episódios. Na época em que minha mãe e eu estávamos tranquilos. Ah, se Bonaparte tivesse se mantido dentro de suas fronteiras e feito boas leis para a França!
Claude entra na conversa: “Ele era seu pior inimigo”.
A acústica diferente me diz que a inspetora-chefe se voltou a fim de olhar diretamente para ele. “Algum outro inimigo, além dele próprio?”
O tom é despretensioso. Na melhor das hipóteses, uma pergunta pouco relevante; na pior das hipóteses, prenhe de intenções sinistras.
“Eu não saberia dizer. Nunca fomos muito próximos.”
“Me conte”, ela diz, com a voz mais calorosa, “sobre a infância dos dois. Isto é, se o senhor quiser.”
Ele quer. “Eu era três anos mais novo. Ele era bom em tudo. Esportes, estudos, garotas. Me achava um boboca insignificante. Quando cresci, fiz a única coisa que ele não conseguia fazer. Ganhar dinheiro.”
“Propriedades.”
“Esse tipo de coisa.”
A inspetora-chefe se volta de novo para Trudy. “Esta casa está à venda?”
“Claro que não.”
“Ouvi dizer que estava.”
Trudy não reage. Sua primeira jogada certa em muitos minutos.
Será que a inspetora-chefe está de uniforme? Deve estar. Seu quepe estará em cima da mesa, junto a seu cotovelo, como um grande bico. Não vejo nela a simpatia de um mamífero, mas rosto e lábios finos, roupas abotoadas até em cima. Sem dúvida sua cabeça, como a de um pombo, balança para a frente e para trás quando ela anda. O sargento a vê como uma detalhista. Fadada a galgar postos mais altos em que ele não a verá mais. Ela vai voar. Ou concluiu que John Cairncross se suicidou, ou tem razões para acreditar que uma gravidez no nono mês é uma boa maneira de ocultar um crime. Tudo que a inspetora-chefe diz, a observação mais banal, se presta a interpretações. O único poder que temos consiste em projetar. Tal como Claude, ela pode ser esperta ou burra, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Simplesmente não sabemos. Nossa ignorância é o que enche sua mão com as melhores cartas do baralho. Meu palpite é que ela tem poucas suspeitas, que não sabe de nada. Que seus superiores a estão observando. Que precisa ser delicada porque esta conversa é irregular, podendo comprometer o processo legal. Que ela vai preferir o apropriado ao verdadeiro. Que sua carreira é um ovo que ela botou, ela vai se sentar sobre ele, chocá-lo e esperar.
Mas já me enganei antes.
19.
Qual o próximo passo? Clare Allison quer dar uma olhada na casa. Péssima ideia. Mas recusar agora, quando, pelo que sei, as coisas estão indo mal, tornaria tudo pior. O sargento sobe na frente a escada de madeira, seguido por Claude, pela inspetora-chefe, depois por minha mãe e eu. No térreo, a inspetora-chefe diz que, se concordarmos, ela gostaria de ir até o último andar e descer “trabalhando”. Trudy não se interessa em subir mais. Os outros continuam, enquanto nós dois vamos nos sentar na sala — e pensar.
Envio meus pensamentos velozes adiante deles, primeiro à biblioteca. Pó de gesso, cheiro de morte, mas relativamente arrumada. No andar superior, quarto e banheiro, caos de uma espécie íntima, a própria cama um emaranhado de lascívia e sono interrompido, o chão coalhado de roupas largadas por Trudy, o banheiro com potes destampados, unguentos e roupa de baixo suja. Me pergunto o que a desordem significa para olhos desconfiados. Não há de ser algo moralmente neutro. O desdém pelas coisas, pela organização, pela limpeza deve pertencer a uma escala onde existe também o desprezo pelas leis, pelos valores, pela própria vida. O que é um criminoso senão um espírito transtornado? No entanto, um quarto excessivamente arrumado também poderia levantar suspeitas. A inspetora-geral, com os olhos aguçados de uma águia, vai olhar o quarto de relance e se afastar. Mas no subconsciente a repugnância deve afetar seu julgamento.
Há cômodos mais acima, porém nunca fui tão longe. Trago meus pensamentos para o térreo e, como uma criança bem-comportada, atento para o estado de minha mãe. Seu ritmo cardíaco se estabilizou. Ela parece quase calma. Talvez fatalista. A bexiga cheia pressiona minha cabeça. Mas ela não está disposta a se mover. Faz seus cálculos, talvez pensando no plano dos dois. Porém deveria se perguntar qual é o seu próprio interesse. Dissociar-se de Claude. Incriminá-lo de algum modo. De nada serve os dois cumprirem uma pena de prisão. Então ela e eu poderíamos ir ficando por aqui. Ela não ia querer me dar a alguém se estivesse sozinha numa casa grande. Nesse caso, prometo que a perdoaria. Ou me encarregaria dela mais tarde.
Mas não há tempo para maquinações. Ouço-os descer de volta. Passam pela porta aberta da sala, a caminho da porta da frente. A inspetora-chefe certamente não pode ir embora sem um respeitoso adeus à viúva. Na verdade, Claude abriu a porta para mostrar a Allison onde seu irmão tinha estacionado o carro, como no início o motor não pegou, como, apesar da briga, eles tinham acenado quando o carro começou a funcionar e deu marcha a ré para alcançar a rua. Uma lição em matéria de contar a verdade.
Logo depois, Claude e os policiais estão diante de nós.
“Trudy — posso chamá-la de Trudy? Que momento terrível, e você está sendo muito prestativa. Muito hospitaleira. Não sei...” A inspetora-chefe se interrompe, sua atenção desviada. “Aquilo é do seu marido?”
Ela está olhando para as caixas de papelão que meu pai trouxe e deixou embaixo da janela semicircular. Minha mãe se põe de pé. Se vai haver algum problema, melhor que use sua altura. E largura.
“Ele estava voltando para cá. Saindo de Shoreditch.”
“Posso ver?”
“Apenas livros. Mas pode, sim.”
O sargento solta um murmúrio ofegante quando se ajoelha para abrir as caixas. Eu diria que a inspetora-chefe está agachada, agora não como um pássaro, mas como uma pata gigantesca. É errado eu não gostar dela. Ela é a lei, e já me considero no tribunal de Hobbes. O Estado precisa deter o monopólio da violência. Mas o jeitão da inspetora-chefe me irrita, o modo como vasculha as coisas de meu pai, seus livros prediletos, enquanto parece falar consigo mesma sabendo que não temos alternativa senão escutá-la.
“Não entendo. Muito, muito triste... bem na pista de acesso...”
Claro que ela está representando, trata-se de um prelúdio. Ela se levanta. Acho que está olhando para Trudy. Talvez para mim.
“Mas o verdadeiro mistério é o seguinte. Nenhuma impressão digital na garrafa de glicol. Nem no copo. Soube disso há pouco pelo pessoal técnico. Nenhum vestígio. Que estranho!”
“Ah!”, diz Claude, mas Trudy o interrompe. Eu deveria alertá-la. Ela não deve se mostrar tão ansiosa. Sua explicação vem depressa demais. “A luva. Problema de pele. Ele tinha tanta vergonha das mãos!”
“Ah, a luva!”, exclama a inspetora-chefe. “Tem razão. Esqueci completamente!” Ela está desdobrando um pedaço de papel. “Essa?”
Minha mãe dá um passo à frente para olhar. Deve ser a reprodução de uma fotografia. “Sim.”
“Não havia outra?”
“Não como essa. Eu costumava dizer que ele não precisava dela. Ninguém realmente se importava.”
“Ele usava o tempo todo?”
“Não. Mas bastante, principalmente quando estava deprimido.”
A inspetora-chefe está de saída, e isso é um alívio. Nós todos a acompanhamos até o vestíbulo.
“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo... Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto — os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”
A porta da frente é aberta, provavelmente pelo sargento. A inspetora-chefe sai. Ao se afastar, sua voz diminui de volume e se mistura ao som do tráfego. “Não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome em latim. Há muito tempo nenhuma mão calçava aquela luva.”
O sargento toca no braço de minha mãe e por fim fala, dizendo gentilmente ao partir: “Voltamos amanhã de manhã. Para esclarecer umas últimas coisas”.
20.
Por fim, a hora chegou. Há decisões a serem tomadas, urgentes, irreversíveis, autocondenatórias. Mas antes Trudy necessita de dois minutos de solidão. Corremos para o porão, para aquilo que antes chamavam de casinha. Lá, enquanto a pressão sobre meu crânio é aplacada e minha mãe continua sentada alguns segundos mais do que seria necessário, suspirando para si própria, meus pensamentos tornam-se claros. Ou tomam um novo rumo. Pensei que os assassinos deveriam escapar para garantir minha liberdade. Essa pode ser uma visão muito estreita, muito egoísta. Há outras considerações. O ódio a meu tio pode exceder o amor por minha mãe. Puni-lo pode ser mais nobre que salvá-la. Mas talvez seja possível conseguir as duas coisas.
Essas preocupações permanecem comigo ao voltarmos à cozinha. Parece que, depois que os policiais foram embora, Claude percebeu que precisava de um uísque. Ao ouvir a bebida sendo servida quando entrarmos, um som sedutor, Trudy descobre que também precisa de um. Dos grandes. Com água da torneira, meio a meio. Em silêncio, meu tio se desincumbe da tarefa. Em silêncio, ficam de pé frente a frente junto à pia. Não é hora de brindar. Cada um contemplando os erros do outro ou até mesmo os seus. Ou decidindo o que fazer. Esta é a emergência que temiam, e para a qual têm um plano. Bebem o que há nos copos e, sem uma palavra, partem para uma segunda dose. Nossas vidas estão prestes a mudar. A inspetora-chefe Allison paira sobre nós, uma deusa imprevisível e sorridente. Não saberemos, até que seja tarde demais, por que não efetuou as prisões naquele momento, por que nos deixou a sós. Dando os últimos retoques no caso, esperando a análise de DNA no chapéu, seguindo em frente? Minha mãe e meu tio devem levar em conta que qualquer escolha feita agora pode ser a que ela espera deles, e ela está a postos. Também é possível que o misterioso plano dos dois não tenha ocorrido a ela, e então os dois estariam um passo adiante. Boa razão para agir com audácia. Em vez disso, nesse momento eles preferem um drinque. Talvez qualquer coisa que façam preste um serviço a Clare Allison, inclusive esse interlúdio com um single malt. Mas não, a única chance deles é optar pela escolha radical — e agora.
Trudy ergue o braço para impedir uma terceira dose. Claude é mais resoluto. Está empenhado na busca rigorosa da clareza mental. Ouvimos enquanto se serve — ele vem bebendo uísque puro em grandes quantidades —, depois quando engole emitindo um som forte, que conhecemos bem. Devem estar se perguntando como evitar uma briga exatamente no momento que precisam trabalhar juntos. De longe chega o som de uma sirene, apenas uma ambulância, mas que espicaça seus medos. A rede do Estado se estende invisível por toda a cidade. Difícil escapar dela. Mas funciona como um ponto de teatro, porque finalmente ocorre uma fala, uma útil afirmação do óbvio.
“Isto é ruim.” A voz de minha mãe é baixa e gutural.
“Onde estão os passaportes?”
“Estão comigo. E o dinheiro?”
“Na minha maleta.”
Mas eles não se movem, e a assimetria da troca de palavras — a resposta evasiva de minha mãe — não provoca meu tio. Ele está bem avançado na terceira dose, quando a primeira de Trudy chega a mim. Nada sensual, mas, sem exagero, cai bem diante da situação, essa sensação de fim sem um começo à vista. Visualizo uma velha estrada militar através de um desfiladeiro gelado nas montanhas, um leve odor de pedra úmida e turfa, o som de aço e passos obedientes no chão de cascalho, o peso da amarga injustiça. Tão distante das vertentes voltadas para o sul, das flores cobertas de pólen nos fartos ramalhetes roxos que emolduravam as colinas longínquas, com seus tons sobrepostos de um índigo cada vez mais pálido. Eu preferia estar lá. Mas admito — o uísque, meu primeiro, liberta minha mente. Uma cruel libertação: o portão aberto conduz à luta e ao medo do que a mente é capaz de criar. Está acontecendo comigo agora. Me perguntam, eu mesmo me pergunto, o que mais desejo agora. Qualquer coisa. O realismo não é um fator limitativo. Corte as cordas, solte a imaginação. Posso responder sem pensar: vou atravessar o portão aberto.
Passos na escada. Trudy e Claude olham para cima, surpresos. Será que a inspetora encontrou um modo de entrar na casa? Um ladrão escolheu a pior das noites? É uma descida lenta, pesada. Eles veem um sapato preto de couro, um cinto, uma camisa manchada de vômito, e depois uma expressão terrível, ao mesmo tempo vazia e determinada. Meu pai está com as roupas com que morreu. Rosto exangue, lábios preto-esverdeados já em putrefação, olhos pequenos e penetrantes. Agora se postou ao pé da escada, mais alto que em minhas recordações. Veio do necrotério para nos encontrar e sabe exatamente o que deseja. Estou tremendo porque minha mãe também está. A imagem não é bruxuleante, ela nada tem de fantasmagórica. Este é meu pai em carne e osso, John Cairncross, como sempre foi. O gemido aterrorizado de minha mãe serve como estímulo, pois ele caminha em nossa direção.
“John”, Claude diz com cautela, num tom de voz ascendente, como se pudesse despertar aquela figura e levá-la de volta à não existência a que pertence. “John, somos nós.”
Isso parece bem entendido. Ele está à nossa frente, exalando um miasma de glicol e carne visitada por vermes amigáveis. É minha mãe quem ele encara fixamente com olhos pequenos, duros e negros, feitos de uma rocha indestrutível. Seus lábios repulsivos se movem, mas não emitem nenhum som. A língua é mais preta que os lábios. Mantendo o olhar nela o tempo todo, ele estende um braço. A mão descarnada se aferra à garganta de meu tio. Minha mãe não consegue nem gritar. Os olhos ilíquidos continuam pregados nela. Isso é para ela, o presente dele. A mão impiedosa aperta ainda mais. Claude cai de joelhos, olhos esbugalhados, as mãos golpeando e puxando inutilmente o braço do irmão. Só um guincho distante, o som patético de um camundongo, nos diz que ele ainda está vivo. Depois não está mais. Meu pai, que nem de relance olhou para ele uma única vez, deixa-o tombar no chão e agora puxa sua mulher para perto de si, a envolve em braços finos e fortes como vergalhões de aço. Traz o rosto dela para junto do dele e lhe dá um beijo longo e intenso com lábios gelados e apodrecidos. Ela é tomada de horror, de repugnância, de vergonha. Será atormentada por esse instante até o dia de sua morte. Indiferente, ele a liberta e caminha de volta para onde veio. Ao subir a escada, já começa a se desvanecer.
Bem, me perguntaram. Eu mesmo me perguntei. E era isso que eu queria. Uma fantasia infantil do Dia das Bruxas. De que outro modo encomendar a vingança de um espírito numa era de convicções seculares? O gótico foi razoavelmente banido, as feiticeiras largaram às pressas os caldeirões, só nos restou o materialismo, tão perturbador para a alma. Uma voz no rádio me disse certa vez que, quando compreendermos perfeitamente o que é a matéria, vamos nos sentir melhor. Duvido. Nunca terei o que quero.
Volto de meus devaneios e vejo que estamos no quarto. Não me lembro de termos subido. O som oco da porta do armário, o tilintar dos cabides de casacos, uma mala posta na cama, depois outra, o estalido das fechaduras sendo abertas. Eles deveriam ter feito as malas com antecedência. A inspetora poderia vir até mesmo esta noite. É isso que eles chamam de plano? Ouço imprecações e resmungos.
“Onde é que está? Estava aqui comigo. Na minha mão!”
Cruzam o quarto de um lado ao outro, abrem gavetas, entram e saem do banheiro. Trudy deixa cair um copo, que se estilhaça no chão. Ela nem liga. Por algum motivo, o rádio está ligado. Claude senta-se com seu notebook e murmura: “Trem às nove. O táxi está a caminho”.
“Eu preferia Paris a Bruxelas. Melhores conexões para seguir viagem”, Trudy resmunga para si mesma ainda no banheiro. “Dólares... euros.”
Tudo que eles dizem, mesmo os ruídos que fazem, têm um ar de despedida, como um triste acorde final, um adeus cantado. Este é o fim, não voltaremos. A casa, a casa de meu avô em que eu deveria crescer, está prestes a se apagar. Não me lembrarei dela. Eu gostaria de solicitar uma lista de países sem acordo de extradição. Na maioria são desconfortáveis, desorganizados, quentes. Ouvi dizer que Beijing é um lugar aprazível para fugitivos. Uma próspera aldeia de vilões que falam inglês enterrada na vastidão populosa da cidade cosmopolita. Um bom local para terminar.
“Soníferos, analgésicos”, Claude diz em voz alta.
Sua voz, seu tom me instigam. Hora de decidir. Ele está fechando as malas, prendendo as tiras de couro. Foi rápido. Então já deviam ter começado a fazê-las. São daquelas antigas, de duas rodinhas e não quatro. Claude as levanta da cama e põe no chão.
Trudy pergunta: “Qual?”.
Acho que está mostrando dois lenços de pescoço. Claude resmunga sua escolha. Isso não passa de um simulacro de normalidade. Quanto tomarem o trem, quando atravessarem a fronteira, a culpa dos dois vai se revelar. Só dispõem de uma hora e devem se apressar. Trudy diz que há um casaco que que ela quer e que não está conseguindo achar. Claude insiste que ela não vai precisar dele.
“É levinho”, ela diz. “O branco.”
“Você vai se destacar na multidão. Nas câmeras de segurança.”
Mas ela acaba encontrando-o justamente quando o Big Ben bate oito horas e o noticiário começa. Eles não param para escutar. Ainda há algumas últimas coisas para pegar. Na Nigéria, crianças queimadas vivas diante dos pais pelos guardiões das chamas. Na Coreia do Norte, um foguete é lançado. Ao redor do mundo, a elevação do nível do mar supera as previsões. Mas nenhuma dessas é a principal. Tal privilégio é dado a uma nova catástrofe. Uma combinação — pobreza e guerra, com mudança climática na reserva — que vem expulsando milhões de pessoas de seus lares, um antigo épico sob novo formato, vastos movimentos humanos como rios ingurgitados na primavera, Danúbios, Renos e Ródanos de seres irados ou desolados, ou esperançosos, amontoados nas fronteiras contra as cercas de arame cortante, afogando-se aos milhares ao tentarem compartilhar as riquezas do Ocidente. Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.
E, como sempre, há problemas mais perto de casa. Enquanto as emissoras de rádio e televisão prosseguem com suas cantilenas, as pessoas vão tocando seus negócios. Um casal acabou de se aprontar para uma viagem. As malas estão fechadas, mas há uma fotografia de sua mãe que a jovem mulher deseja levar. A pesada moldura esculpida é grande demais para ser posta na bagagem. Sem a ferramenta certa, a fotografia não pode ser removida, e a ferramenta, um tipo especial de chave, está no porão, no fundo de uma gaveta. O táxi espera lá fora. O trem parte dentro de cinquenta minutos, a estação fica um pouco longe, pode haver filas nos controles de segurança e de passaportes. O homem leva uma das malas para o patamar da escada e volta um pouco ofegante. Deveria ter usado as rodinhas.
“Agora temos mesmo que ir de qualquer maneira.”
“Preciso levar essa foto.”
“Leve debaixo do braço.”
Mas, além de ter de puxar a mala, ela carrega a bolsa, o casaco branco e eu.
Com um gemido, Claude pega a segunda mala a fim de levá-la para fora. Com esse esforço inútil quer mostrar o quanto é urgente eles partirem.
“Você não vai demorar nem um minuto. Está no canto da frente da gaveta do lado esquerdo.”
Ele volta. “Trudy. Estamos indo. Agora.”
A troca de palavras passou de lacônica a amarga.
“Leva para mim.”
“Nem pensar.”
“Claude. É minha mãe.”
“Estou pouco ligando. Estamos indo.”
Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais. Hora de entrar em ação. Acabar de uma vez por todas. Hora de começar. Não é fácil libertar meu braço direito, apertado contra o peito, ou movimentar o pulso. Mas agora isso foi feito. Um dedo indicador é a minha ferramenta especial para remover minha mãe da moldura. Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas. Faço a primeira tentativa de incisão. Minhas unhas são macias e, embora fino, o tecido é resistente. A evolução sabe das coisas. Tateio para encontrar a ranhura causada pelo meu dedo. Há uma dobra, bem definida, e é lá que tento de novo, até que na quinta investida sinto uma tênue esgarçadura e, na sexta, um minúsculo rompimento. Consigo enfiar a ponta da unha nesse rasgo, o dedo, dois dedos, três, quatro, até que por fim minha mão fechada abre o caminho e atrás dela vem um grande volume de líquido, a catarata do começo da vida. Minha proteção aquosa desapareceu.
Agora nunca saberei como a história da fotografia ou do trem das nove horas teria sido resolvida. Claude está fora do quarto, no alto da escada. Tem uma mala em cada mão, pronto para descer.
Minha mãe o chama com o que parece ser um gemido desapontado. “Ah, Claude.”
“O que agora?”
“A bolsa rompeu!”
“Cuidamos disso depois. No trem.”
Ele deve ter imaginado que se tratava de uma artimanha, da continuidade da discussão, um tipo repulsivo de problema feminino que ele está agitado demais para levar em conta.
Estou mexendo os ombros para me libertar da membrana embrionária, minha primeira experiência em matéria de me despir. Sou desajeitado. Três dimensões me parecem três a mais do que eu desejava. Prevejo que o mundo material será um desafio. O manto descartado continua retorcido em volta dos meus joelhos. Não faz mal. Tenho uma nova tarefa abaixo da cabeça. Não sei como sei o que devo fazer. É um mistério. Há certos conhecimentos com os quais simplesmente já chegamos. No meu caso, há este, e um punhado de escansões poéticas. Afinal, nenhuma lousa em branco. Trago a mesma mão à bochecha e a deslizo para baixo, ao longo da parede muscular do útero, a fim de achar o colo. Ele está bem apertado contra a parte de trás da minha cabeça. É lá, na entrada do mundo, que eu apalpo delicadamente com meus pequenos dedos e de imediato, como se alguma fórmula mágica houvesse sido pronunciada, o grande poder de minha mãe é estimulado, as paredes a meu redor se encrespam, tremem e se fecham sobre mim. É um terremoto, uma comoção gigantesca na caverna dela. Como o aprendiz de feiticeiro, fico horrorizado e depois esmagado pela força desencadeada. Eu deveria ter esperado a minha hora. Só um idiota se meteria com essa força. Ouço à distância minha mãe gritar. Pode ser um pedido de ajuda, quem sabe um berro de triunfo ou dor. Então sinto alguma coisa no topo da cabeça, minha coroa — um centímetro de dilatação! Não há volta.
Trudy se arrastou para a cama. Claude está em algum lugar perto da porta. Ela está arfando, excitada e muito assustada.
“Começou. Como é rápido! Chame uma ambulância.”
Ele não diz nada por um momento, depois simplesmente pergunta: “Onde está meu passaporte?”.
A derrota é minha, eu o subestimei. O objetivo de chegar mais cedo era para destruir Claude. Eu sabia que ele era um problema. Mas pensei que amava minha mãe e que ficaria com ela. Estou começando a entender a força mental de Trudy. Enquanto ele remexe a bolsa dela e se ouve o tilintar alegre das moedas contra o estojo de maquiagem, ela diz: “Escondi. Lá embaixo. Justamente caso isso acontecesse”.
Ele reflete. Já comprou e vendeu propriedades, possuiu um arranha-céu em Cardiff, sabe como fechar um negócio. “Me diga onde está que eu chamo uma ambulância para você. E aí vou embora.”
A voz dela é cautelosa. Observando de perto seu próprio estado, esperando, desejando e temendo a próxima onda. “Não. Se eu cair, você cai também.”
“Ótimo. Sem ambulância.”
“Eu mesma vou chamar. Assim que...”
Assim que tenha passado a segunda contração, mais forte que a primeira. De novo seu grito involuntário, o corpo todo se contraindo enquanto Claude atravessa o quarto para se aproximar da cama e desconectar da parede o telefone que estava na mesinha de cabeceira. Ao mesmo tempo, sou comprimido violentamente e erguido uns três ou quatro centímetros, sugado para baixo e para trás de onde estava hibernando. Uma cinta de ferro espreme mais e mais minha cabeça. Nossos três destinos esmagados por uma grande boca.
Assim que a onda reflui, Claude, como um guarda de fronteira, diz, impassível: “Passaporte?”.
Ela sacode a cabeça, espera até retomar o fôlego. Os dois mantêm uma espécie de equilíbrio.
Ela se recupera e diz, sem emoção na voz: “Então você vai ter que fazer o papel da parteira”.
“O filho não é meu.”
“O filho nunca é da parteira.”
Ela está apavorada, mas pode aterrorizá-lo com instruções.
“Quando ele sair, vai vir com o rosto para baixo. Você pega o bebê com as duas mãos, bem delicadamente, apoiando a cabeça dele, e põe em cima de mim. Ainda com o rosto para baixo, entre os meus seios. Perto de onde bate o coração. Não se preocupe com o cordão. Vai parar de pulsar sozinho, e o bebê começa a respirar. Ponha umas duas toalhas em cima dele para mantê-lo aquecido. E aí esperamos.”
“Esperamos? Meus Deus! Esperamos o quê?”
“Que a placenta saia.”
Não sei se ele se encolheu ou teve uma ânsia de vômito. Podia ainda estar imaginando que terminaria com aquilo e pegaria um trem mais tarde.
Ouço com atenção, querendo saber o que fazer. Me enfiar embaixo de uma toalha. Respirar. Não pronunciar uma única palavra. Mas não basta ser um bebê. Com certeza rosa ou azul!
“Por isso, vá buscar uma porção de toalhas. Vai ser uma sujeirada. Lave as mãos bem lavadas, com a escovinha de unhas e muito sabonete.”
Tão longe de onde dava pé para ele, tão longe da costa acolhedora, um homem sem seus documentos deveria estar em plena fuga. Ele dá meia-volta para fazer o que lhe foi ordenado.
E assim seguem as coisas, onda atrás de onda, gritos e gemidos, súplicas para que a agonia tenha fim. Progresso impiedoso, ejeção em curso. O cordão se desenrola atrás de mim à medida que avanço lentamente. Para a frente e para fora. Forças cruéis da natureza pretendem me achatar. Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos.
Um momento deslizante de urgência pegajosa, com sons ásperos, e aqui estou eu, trazido nu ao reino. Como o corajoso Cortés (lembro de um poema que meu pai recitou), estou pasmo. Olhando para baixo, maravilhado, para o que presumo ser a superfície felpuda de uma toalha de banho azul. Azul. Eu sempre soube, ao menos verbalmente, sempre fui capaz de deduzir o que era o azul — mar, céu, lápis-lazúli, gencianas — meras abstrações. Agora o tenho por fim, o possuo e ele me possui. Mais grandioso do que eu ousava crer. Isto é só o começo, na extremidade índigo do espectro.
Meu fiel cordão, que me mantinha vivo e não conseguiu me matar, de repente morre como planejado. Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom. Os sons são límpidos, brilhantes graças ao realce dos agudos. A resplandecente toalha, irradiando sua cor, evoca a mesquita de Goharshad no Irã que fez meu pai chorar nas primeiras horas de uma manhã. Minha mãe se mexe e faz com que minha cabeça mude de posição. Vejo Claude de relance. Menor do que eu imaginava, com ombros estreitos e cara de raposa. Sem a menor dúvida, com uma expressão de repugnância. A luz do sol do início da noite de verão atravessa as folhas de um plátano e projeta no teto desenhos tremulantes. Ah, a alegria de esticar as pernas, de verificar no despertador sobre a mesinha de cabeceira que eles jamais pegarão aquele trem. Mas não tenho muito tempo para saborear esse momento. Minha maleável caixa torácica é apertada pelas mãos enojadas de um assassino e sou posto na barriga hospitaleira, branca como a neve, de outra assassina.
As batidas de seu coração soam distantes, abafadas, mas são tão familiares quanto um velho estribilho que não ouvimos há décadas. O ritmo da música é um andante, passos delicados que me conduzem ao verdadeiro portão aberto. Não posso negar o medo que sinto. Mas estou exausto, um marinheiro náufrago que chegou a uma praia bem-afortunada. Estou caindo, mesmo enquanto o mar lambe meus tornozelos.
Trudy e eu devemos ter cochilado. Não sei quantos minutos se passaram até ouvirmos a campainha. Como ela soa claro. Claude ainda está aqui, ainda esperando obter seu passaporte. Ele deve ter descido para caçar o documento. Agora caminha até o interfone. Olha de relance a tela e dá meia-volta. Não pode haver surpresas.
“São quatro”, ele diz, mais para si mesmo.
Contemplamos esse fato. Acabou. Não é um bom final. Nunca seria.
Minha mãe me muda de lugar para que possamos trocar um longo olhar. O momento pelo qual esperei. Meu pai tinha razão, é um rosto adorável. O cabelo mais escuro do que eu pensava, os olhos de um verde mais pálido, as bochechas ainda coradas por causa do esforço recente, o nariz de fato uma coisinha bem pequena. Acho que vejo o mundo inteiro nesse rosto. Belo. Amoroso. Assassino. Ouço Claude atravessar o quarto com passos resignados para descer até a porta. Nenhum clichê. Mesmo nesse intervalo de descanso, durante o longo e ávido olhar no fundo dos olhos de minha mãe, estou pensando no táxi que espera lá fora. Um desperdício. Hora de mandá-lo embora. E estou pensando na nossa cela — espero que não seja pequena demais — e, mais além de sua pesada porta, nos degraus gastos que sobem: primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos.
18.
No começo da tarde, o telefone toca e o futuro se apresenta. Inspetora-chefe Clare Allison, designada para cuidar do caso. A voz soa amistosa, nenhum indício de acusação. Isso pode ser um mau sinal.
Estamos de novo na cozinha, Claude segura o fone. O primeiro café do dia na outra mão. Trudy se posta perto dele e nós dois ouvimos os dois interlocutores. Caso? A palavra contém uma ameaça. Inspetora-chefe? Também não ajuda muito.
Avalio a ansiedade de meu tio por seu zelo em se mostrar solícito. “Ah, sim. Sim! É claro. Por favor, faça isso.”
A inspetora-chefe Allison pretende nos visitar. O normal seria os dois irem à delegacia para uma conversa. Ou prestar depoimento, se apropriado. No entanto, por causa da gravidez avançada de Trudy, da dor da família, a inspetora-chefe e um sargento virão daqui a uma hora. Ela gostaria de dar uma olhada no local onde houve o último contato com o falecido.
Esta última informação, inocente e razoável a meus ouvidos, provoca em Claude um frenesi de boas-vindas. “Venha, por favor. Maravilhoso. Sem dúvida. Será um prazer conhecê-la. Contando os minutos. A senhora...”
Ela desliga. Ele se volta para nós, provavelmente cor de cinza, e diz numa voz desapontada: “Ah”.
Trudy não resiste a imitá-lo: “Tudo... ótimo, não é?”.
“Que caso é esse? Não se trata de uma questão criminal.” Ele apela a uma audiência imaginária, a um conselho de sábios. A um júri.
“Odeio isso”, minha mãe murmura, mais para si mesma. Ou para mim, eu gostaria de acreditar.
“Deve ser para o juiz de instrução.” Claude se afasta de nós, ofendido, dá uma volta pela cozinha e retorna, indignado. Agora sua queixa é dirigida a Trudy. “Não se trata de um caso de polícia.”
“Ah, é mesmo?”, ela diz. “Melhor então telefonar para a inspetora e explicar isso a ela.”
“Aquela poeta. Eu sabia que não podíamos confiar nela.”
Entendemos que, como Elodia é assunto de minha mãe, de algum modo isso constitui uma acusação.
“Você gostou dela.”
“Você disse que ela ia ser útil.”
“Você gostou dela.”
Mas a reiteração deliberadamente impassível não o espicaça.
“Quem não gostaria? E quem se importa com isso?”
“Eu me importo.”
Pergunto-me mais uma vez o que ganho se eles brigarem. Isso poderia arruiná-los. Então eu ficaria com Trudy. Já a escutei dizer que, na prisão, mães que estão amamentando levam uma vida melhor. Mas vou perder meu direito de nascer, o sonho de todos os seres humanos, minha liberdade. Enquanto juntos, como uma equipe, eles podem escapar raspando. E depois me darem para alguém. Sem mãe, mas livre. Portanto, o que é melhor? Já pensei nisso, voltando sempre ao mesmo bendito lugar, à única decisão moralmente correta. Vou arriscar os confortos materiais e me aventurar no mundo. Já estive confinado por tempo demais. Voto pela liberdade. Os assassinos precisam escapar. Então, antes que a discussão sobre Elodia vá longe demais, este é um bom momento para dar outro pontapé em minha mãe, distraí-la da briga com o interessante fato da minha existência. Não um nem dois, mas o número mágico de todas as boas histórias antigas. Três vezes, como Pedro negando Jesus.
“Ai, ai, ai!” Ela quase canta isso. Claude puxa uma cadeira para ela e traz um copo de água.
“Você está suando.”
“Bom, estou com calor.”
Ele testa as janelas. Não são movidas há anos. Procura gelo, mas os recipientes estão vazios depois das três rodadas recentes de gim e tônica. Por isso ele se senta diante dela e oferece sua refrescante solidariedade.
“Vai dar tudo certo.”
“Não, não vai.”
O silêncio dele concorda. Eu estava pensando num quarto chute, mas o estado de espírito de Trudy é perigoso. Ela pode partir para o ataque e provocar uma reação temerária.
Depois de uma pausa, em tom apaziguador, ele diz: “Devíamos repassar mais uma vez”.
“Que tal um advogado?”
“Um pouquinho tarde agora.”
“Diga a eles que não vamos falar sem a presença de um advogado.”
“Não vai cair bem, quando eles só estão vindo bater um papo.”
“Odeio isso.”
“Devíamos repassar mais uma vez.”
Mas não repassam. Estupefatos, contemplam a abordagem da inspetora-chefe Allison. Muito em breve. Dentro de uma hora pode significar em um minuto. Sabendo de tudo, de quase tudo, sou parte do crime, sem dúvida a salvo de um interrogatório, porém amedrontado. E curioso, impaciente para testemunhar as habilidades da inspetora-chefe. Alguém de mente aberta seria capaz de desmascarar esses dois em minutos. Trudy traída pelos nervos, Claude pela burrice.
Estou tentando imaginar onde estão as canecas de café da manhã usadas durante a visita de meu pai. Transferidas, penso agora, para a pia, onde esperam sem ter sido lavadas. DNA numa caneca provará que minha mãe e meu tio dizem a verdade. Os restos dos sanduíches dinamarqueses devem estar por perto.
“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”
“Na cozinha.”
“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”
“Dinheiro.”
“Não. Botar você para fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”
“Anos.”
“Meses. Quanto emprestei para ele?”
“Mil.”
“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”
“Estou grávida. Afeta a memória.”
“Você mesma disse ontem. Tudo como foi, mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga.”
“Mais a luva. Menos que ele estava voltando para cá.”
“Meu Deus, sim. Outra vez. Qual a causa da depressão?”
“Nós. Dívidas. Trabalho. O bebê.”
“Certo.”
Repassam mais uma vez. Na terceira, soa melhor. Que cumplicidade mais doentia, eu desejar que eles tenham êxito!
“Então repita.”
“Tal como aconteceu. Menos a vitamina, mais a briga e a luva, menos a depressão, mais que ele estava voltando para cá.”
“Não. Porra! Trudy. Exatamente como foi. Mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga, mais a luva, menos a volta para cá.”
A campainha toca e eles se imobilizam.
“Diga a eles que não estamos prontos.”
Para minha mãe, essa era a ideia de uma piada. Ou prova de seu terror.
Provavelmente resmungando obscenidades, Claude caminha até o videofone, muda de ideia e segue para a escada em direção à porta da frente.
Trudy e eu damos uma volta nervosa pela cozinha, arrastando os pés. Ela também resmunga enquanto trabalha na história. Isso é proveitoso porque cada esforço sucessivo da memória a afasta mais dos fatos reais. Ela está memorizando suas lembranças. Os erros de transcrição serão a seu favor. Constituirão de início um colchão útil, transformando-se depois em verdade. Também poderia dizer a si mesma: ela não comprou o glicol, não foi à Judd Street, não preparou a bebida, não pôs as coisas no carro, não jogou o liquidificador no lixo. Ela limpou a cozinha — nada de ilegal nisso. Convencida, estará libertada da astúcia consciente e pode ter uma chance. A mentira eficaz, assim como uma tacada de mestre no golfe, está livre da autoconsciência. Presto atenção nos comentários esportivos.
Atento aos passos que descem a escada, eu os diferencio. Os da inspetora-chefe Allison são leves, até mesmo como os de um passarinho, apesar de seu posto elevado. Apertos de mão são trocados. Pelo rígido “Como vai a senhora?” do sargento, reconheço o policial mais velho que esteve aqui ontem. O que terá impedido sua promoção? Classe, educação, Q.I., escândalo — o último, espero, pelo qual ele pode ser culpado, não precisando da minha compaixão.
A ágil inspetora-chefe senta-se à mesa da cozinha e convida todos a fazerem o mesmo, como se a casa fosse dela. Acho que capto minha mãe pensando que seria mais fácil enganar um homem. Allison abre uma pasta e fica apertando repetidamente o botão da mola da caneta enquanto fala. Nos diz que antes deseja expressar — faz uma pausa de grande efeito para olhar, não tenho dúvida, no fundo dos olhos de Trudy e de Claude — seus profundos sentimentos pela perda de um marido querido, de um irmão querido, de um amigo querido. Nada de um pai querido. Estou lutando contra o sentimento gélido e bem conhecido de exclusão. Mas a voz é cálida, maior que seu corpo, enfrentando sem tensões os ossos do ofício. A ligeira pronúncia típica dos habitantes mais pobres do leste de Londres corresponde aos padrões urbanos consagrados, e não será facilmente desafiada. Não pelas vogais forçadas de minha mãe, aprendidas em colégios caros. Esse velho truque já não funcionaria. Os tempos são outros. Um dia a maior parte dos estadistas britânicos falará como a inspetora-chefe. Me pergunto se ela tem uma arma. Desnecessário. Como a rainha, que não carrega dinheiro. Atirar nas pessoas é coisa de sargento para baixo.
Allison explica que se trata de uma conversa informal para ajudá-la a ter uma compreensão mais ampla dos trágicos acontecimentos. Trudy e Claude não têm nenhuma obrigação de responder às perguntas. Mas ela está errada. Eles se sentem obrigados. A recusa os faria dar a impressão de serem suspeitos. No entanto, se a inspetora-chefe estiver uma jogada à frente, pode pensar que a aceitação é ainda mais suspeita. Os que nada têm a esconder insistiriam num advogado como precaução contra os erros policiais ou uma intromissão ilegal.
Ao nos acomodarmos em torno da mesa, reparo na ausência de indagações corteses sobre mim, coisa de que me ressinto. Espera para quando? Menino ou menina?
Em vez disso, a inspetora-chefe não perde tempo. “Vocês podem me mostrar a casa depois que terminarmos a conversa.”
Mais uma afirmação que um pedido. Claude está ansioso, ansioso demais, para obedecer. “Ah, sim. Sim!”
Uma ordem de busca seria a alternativa. Mas não há nada de interessante para a polícia no andar de cima além da imundície.
A inspetora-chefe diz para Trudy: “Seu marido veio aqui ontem por volta das dez horas da manhã?”.
“Isso mesmo.” Seu tom é impassível, um exemplo para Claude.
“E houve alguma tensão.”
“Naturalmente.”
“Por que naturalmente?”
“Estou morando com o irmão dele na casa que John achava que era sua.”
“De quem é a casa?”
“Do casal.”
“O casamento tinha acabado?”
“Sim.”
“Se importa se eu perguntar? Ele achava que tinha acabado?”
Trudy hesita. Pode haver uma resposta certa e uma errada.
“Ele me queria de volta, mas também queria manter suas amigas.”
“Conhece algum nome?”
“Não.”
“Mas ele lhe falou sobre elas?”
“Não.”
“Mas de alguma maneira a senhora sabia.”
“Claro que eu sabia.”
Trudy se permite algum desdém. Como se para dizer: “Sou a mulher de verdade aqui”. Mas ignorou as instruções de Claude. Devia dizer a verdade, acrescentando e subtraindo apenas o que tinha sido combinado. Ouço meu tio se mexer na cadeira.
Sem fazer nenhuma pausa, Allison muda de assunto. “Vocês tomaram café.”
“Sim.”
“Os três? Em volta desta mesa?”
“Os três.” Claude diz isso, talvez preocupado que seu silêncio esteja passando uma má impressão.
“Mais alguma coisa?”
“O quê?”
“Com o café. Vocês lhe ofereceram alguma coisa mais?”
“Não.” Minha mãe soa cautelosa.
“E o que havia no café?”
“Como assim?”
“Leite? Açúcar?”
“Ele sempre tomava sem leite.” O ritmo do pulso dela acelerou.
Mas o comportamento de Clare Allison é impenetravelmente neutro. Ela se volta para Claude. “Então o senhor lhe emprestou algum dinheiro.”
“Sim.”
“Quanto?”
“Cinco mil.” Claude e Trudy respondem num coro mal sincronizado.
“Um cheque?”
“Na verdade em dinheiro vivo. Foi como ele queria.”
“O senhor tem ido àquela loja de vitaminas na Judd Street?”
A resposta de Claude é tão rápida quanto a pergunta. “Uma ou duas vezes. Foi John quem nos falou sobre ela.”
“Imagino que o senhor não tenha estado lá ontem.”
“Não.”
“Nunca pediu emprestado o chapéu preto de aba larga dele?”
“Nunca. Não faz meu estilo.”
Essa pode ser a resposta errada, mas não há tempo para raciocinar. As perguntas adquiriram um novo peso. O coração de Trudy está batendo mais rápido. Eu não confiaria nela para falar. Mas ela fala, e com voz estrangulada.
“Presente meu de aniversário. Ele amava aquele chapéu.”
A inspetora-chefe já está passando para algo diferente, mas volta atrás. “É tudo que se vê na câmera de segurança. Mandamos o chapéu para um teste de DNA.”
“Nem lhes oferecemos chá, café”, diz Trudy com voz alterada.
A inspetora-chefe deve ter recusado com um balançar de cabeça por ela e pelo sargento, ainda em silêncio. “Agora é quase tudo assim”, ela diz num tom nostálgico, “ciência e telas de computadores. Mas onde estávamos? Ah, sim. Houve alguma tensão. Mas vejo em minhas anotações que ocorreu uma briga.”
Claude deve estar fazendo os mesmos raciocínios apressados que eu. Seu cabelo será encontrado no chapéu. A resposta correta era sim, tinha pedido emprestado algum tempo atrás.
“Sim”, diz Trudy. “Uma de muitas.”
“Se importa de me dizer...”
“Ele queria que eu saísse da casa. Eu disse que iria quando estivesse pronta.”
“Quando ele foi embora, qual era seu estado de espírito?”
“Bem ruim. Estava péssimo. Confuso. Na verdade não queria que eu me mudasse daqui. Me queria de volta. Tentou que eu ficasse com ciúme, fingindo que Elodia era sua amante. Ela nos esclareceu tudo. Os dois não tinham um relacionamento.”
Detalhes demais. Ela está tentando retomar o controle. Mas falando muito rápido. Precisa dar uma respirada.
Clare Allison fica em silêncio enquanto aguardamos para saber qual a próxima direção que tomará. Mas ela continua nesse assunto, declarando da forma mais delicada possível: “Não é a informação que tenho”.
Um instante de torpor, como se o próprio som houvesse sido assassinado. O espaço em torno de mim se contrai porque Trudy parece ter se esvaziado como um balão. A coluna se dobra como a de uma velha. Sinto um pequeno orgulho de mim. Sempre tive minhas suspeitas. Com que avidez eles tinham acreditado em Elodia. Agora eles sabem: “Nem o copo-de-leite se demora”. Mas também preciso ter cautela. A inspetora-chefe pode ter razões para mentir. Está apertando o botão da caneta esferográfica, pronta para seguir em frente.
Minha mãe diz baixinho: “Bem, suponho que eu fui a mais enganada”.
“Sinto muito, sra. Cairncross. Mas minhas fontes são boas. Digamos apenas que se trata de uma jovem complicada.”
Eu poderia explorar a teoria de que não é mau negócio para Trudy ser a pessoa injuriada, obter corroboração para a história do marido infiel. Mas estou pasmo; nós dois estamos pasmos. Meu pai, aquela partícula mal compreendida, girando, se afasta ainda mais de mim no momento em que a inspetora-chefe faz outra pergunta a minha mãe. Ela também responde baixinho, com o tremor adicional de uma garotinha punida.
“Alguma violência?”
“Não.”
“Ameaças?”
“Não.”
“Nenhuma de sua parte.”
“Não.”
“E sobre a depressão dele? O que pode me dizer?”
Isso é dito gentilmente, e deve ser uma armadilha. Mas Trudy não faz uma pausa. Angustiada demais para inventar novas mentiras, persuadida demais de sua verdade, repete tudo que disse antes, na mesma linguagem inverossímil. Constante dor mental... Vociferava contra aqueles que amava... arrancava os poemas de sua alma. Vem-me a imagem vívida de uma parada de soldados exaustos, as plumas dos chapéus destruídas. A recordação em sépia de um podcast, as guerras napoleônicas em muitos episódios. Na época em que minha mãe e eu estávamos tranquilos. Ah, se Bonaparte tivesse se mantido dentro de suas fronteiras e feito boas leis para a França!
Claude entra na conversa: “Ele era seu pior inimigo”.
A acústica diferente me diz que a inspetora-chefe se voltou a fim de olhar diretamente para ele. “Algum outro inimigo, além dele próprio?”
O tom é despretensioso. Na melhor das hipóteses, uma pergunta pouco relevante; na pior das hipóteses, prenhe de intenções sinistras.
“Eu não saberia dizer. Nunca fomos muito próximos.”
“Me conte”, ela diz, com a voz mais calorosa, “sobre a infância dos dois. Isto é, se o senhor quiser.”
Ele quer. “Eu era três anos mais novo. Ele era bom em tudo. Esportes, estudos, garotas. Me achava um boboca insignificante. Quando cresci, fiz a única coisa que ele não conseguia fazer. Ganhar dinheiro.”
“Propriedades.”
“Esse tipo de coisa.”
A inspetora-chefe se volta de novo para Trudy. “Esta casa está à venda?”
“Claro que não.”
“Ouvi dizer que estava.”
Trudy não reage. Sua primeira jogada certa em muitos minutos.
Será que a inspetora-chefe está de uniforme? Deve estar. Seu quepe estará em cima da mesa, junto a seu cotovelo, como um grande bico. Não vejo nela a simpatia de um mamífero, mas rosto e lábios finos, roupas abotoadas até em cima. Sem dúvida sua cabeça, como a de um pombo, balança para a frente e para trás quando ela anda. O sargento a vê como uma detalhista. Fadada a galgar postos mais altos em que ele não a verá mais. Ela vai voar. Ou concluiu que John Cairncross se suicidou, ou tem razões para acreditar que uma gravidez no nono mês é uma boa maneira de ocultar um crime. Tudo que a inspetora-chefe diz, a observação mais banal, se presta a interpretações. O único poder que temos consiste em projetar. Tal como Claude, ela pode ser esperta ou burra, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Simplesmente não sabemos. Nossa ignorância é o que enche sua mão com as melhores cartas do baralho. Meu palpite é que ela tem poucas suspeitas, que não sabe de nada. Que seus superiores a estão observando. Que precisa ser delicada porque esta conversa é irregular, podendo comprometer o processo legal. Que ela vai preferir o apropriado ao verdadeiro. Que sua carreira é um ovo que ela botou, ela vai se sentar sobre ele, chocá-lo e esperar.
Mas já me enganei antes.
19.
Qual o próximo passo? Clare Allison quer dar uma olhada na casa. Péssima ideia. Mas recusar agora, quando, pelo que sei, as coisas estão indo mal, tornaria tudo pior. O sargento sobe na frente a escada de madeira, seguido por Claude, pela inspetora-chefe, depois por minha mãe e eu. No térreo, a inspetora-chefe diz que, se concordarmos, ela gostaria de ir até o último andar e descer “trabalhando”. Trudy não se interessa em subir mais. Os outros continuam, enquanto nós dois vamos nos sentar na sala — e pensar.
Envio meus pensamentos velozes adiante deles, primeiro à biblioteca. Pó de gesso, cheiro de morte, mas relativamente arrumada. No andar superior, quarto e banheiro, caos de uma espécie íntima, a própria cama um emaranhado de lascívia e sono interrompido, o chão coalhado de roupas largadas por Trudy, o banheiro com potes destampados, unguentos e roupa de baixo suja. Me pergunto o que a desordem significa para olhos desconfiados. Não há de ser algo moralmente neutro. O desdém pelas coisas, pela organização, pela limpeza deve pertencer a uma escala onde existe também o desprezo pelas leis, pelos valores, pela própria vida. O que é um criminoso senão um espírito transtornado? No entanto, um quarto excessivamente arrumado também poderia levantar suspeitas. A inspetora-geral, com os olhos aguçados de uma águia, vai olhar o quarto de relance e se afastar. Mas no subconsciente a repugnância deve afetar seu julgamento.
Há cômodos mais acima, porém nunca fui tão longe. Trago meus pensamentos para o térreo e, como uma criança bem-comportada, atento para o estado de minha mãe. Seu ritmo cardíaco se estabilizou. Ela parece quase calma. Talvez fatalista. A bexiga cheia pressiona minha cabeça. Mas ela não está disposta a se mover. Faz seus cálculos, talvez pensando no plano dos dois. Porém deveria se perguntar qual é o seu próprio interesse. Dissociar-se de Claude. Incriminá-lo de algum modo. De nada serve os dois cumprirem uma pena de prisão. Então ela e eu poderíamos ir ficando por aqui. Ela não ia querer me dar a alguém se estivesse sozinha numa casa grande. Nesse caso, prometo que a perdoaria. Ou me encarregaria dela mais tarde.
Mas não há tempo para maquinações. Ouço-os descer de volta. Passam pela porta aberta da sala, a caminho da porta da frente. A inspetora-chefe certamente não pode ir embora sem um respeitoso adeus à viúva. Na verdade, Claude abriu a porta para mostrar a Allison onde seu irmão tinha estacionado o carro, como no início o motor não pegou, como, apesar da briga, eles tinham acenado quando o carro começou a funcionar e deu marcha a ré para alcançar a rua. Uma lição em matéria de contar a verdade.
Logo depois, Claude e os policiais estão diante de nós.
“Trudy — posso chamá-la de Trudy? Que momento terrível, e você está sendo muito prestativa. Muito hospitaleira. Não sei...” A inspetora-chefe se interrompe, sua atenção desviada. “Aquilo é do seu marido?”
Ela está olhando para as caixas de papelão que meu pai trouxe e deixou embaixo da janela semicircular. Minha mãe se põe de pé. Se vai haver algum problema, melhor que use sua altura. E largura.
“Ele estava voltando para cá. Saindo de Shoreditch.”
“Posso ver?”
“Apenas livros. Mas pode, sim.”
O sargento solta um murmúrio ofegante quando se ajoelha para abrir as caixas. Eu diria que a inspetora-chefe está agachada, agora não como um pássaro, mas como uma pata gigantesca. É errado eu não gostar dela. Ela é a lei, e já me considero no tribunal de Hobbes. O Estado precisa deter o monopólio da violência. Mas o jeitão da inspetora-chefe me irrita, o modo como vasculha as coisas de meu pai, seus livros prediletos, enquanto parece falar consigo mesma sabendo que não temos alternativa senão escutá-la.
“Não entendo. Muito, muito triste... bem na pista de acesso...”
Claro que ela está representando, trata-se de um prelúdio. Ela se levanta. Acho que está olhando para Trudy. Talvez para mim.
“Mas o verdadeiro mistério é o seguinte. Nenhuma impressão digital na garrafa de glicol. Nem no copo. Soube disso há pouco pelo pessoal técnico. Nenhum vestígio. Que estranho!”
“Ah!”, diz Claude, mas Trudy o interrompe. Eu deveria alertá-la. Ela não deve se mostrar tão ansiosa. Sua explicação vem depressa demais. “A luva. Problema de pele. Ele tinha tanta vergonha das mãos!”
“Ah, a luva!”, exclama a inspetora-chefe. “Tem razão. Esqueci completamente!” Ela está desdobrando um pedaço de papel. “Essa?”
Minha mãe dá um passo à frente para olhar. Deve ser a reprodução de uma fotografia. “Sim.”
“Não havia outra?”
“Não como essa. Eu costumava dizer que ele não precisava dela. Ninguém realmente se importava.”
“Ele usava o tempo todo?”
“Não. Mas bastante, principalmente quando estava deprimido.”
A inspetora-chefe está de saída, e isso é um alívio. Nós todos a acompanhamos até o vestíbulo.
“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo... Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto — os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”
A porta da frente é aberta, provavelmente pelo sargento. A inspetora-chefe sai. Ao se afastar, sua voz diminui de volume e se mistura ao som do tráfego. “Não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome em latim. Há muito tempo nenhuma mão calçava aquela luva.”
O sargento toca no braço de minha mãe e por fim fala, dizendo gentilmente ao partir: “Voltamos amanhã de manhã. Para esclarecer umas últimas coisas”.
20.
Por fim, a hora chegou. Há decisões a serem tomadas, urgentes, irreversíveis, autocondenatórias. Mas antes Trudy necessita de dois minutos de solidão. Corremos para o porão, para aquilo que antes chamavam de casinha. Lá, enquanto a pressão sobre meu crânio é aplacada e minha mãe continua sentada alguns segundos mais do que seria necessário, suspirando para si própria, meus pensamentos tornam-se claros. Ou tomam um novo rumo. Pensei que os assassinos deveriam escapar para garantir minha liberdade. Essa pode ser uma visão muito estreita, muito egoísta. Há outras considerações. O ódio a meu tio pode exceder o amor por minha mãe. Puni-lo pode ser mais nobre que salvá-la. Mas talvez seja possível conseguir as duas coisas.
Essas preocupações permanecem comigo ao voltarmos à cozinha. Parece que, depois que os policiais foram embora, Claude percebeu que precisava de um uísque. Ao ouvir a bebida sendo servida quando entrarmos, um som sedutor, Trudy descobre que também precisa de um. Dos grandes. Com água da torneira, meio a meio. Em silêncio, meu tio se desincumbe da tarefa. Em silêncio, ficam de pé frente a frente junto à pia. Não é hora de brindar. Cada um contemplando os erros do outro ou até mesmo os seus. Ou decidindo o que fazer. Esta é a emergência que temiam, e para a qual têm um plano. Bebem o que há nos copos e, sem uma palavra, partem para uma segunda dose. Nossas vidas estão prestes a mudar. A inspetora-chefe Allison paira sobre nós, uma deusa imprevisível e sorridente. Não saberemos, até que seja tarde demais, por que não efetuou as prisões naquele momento, por que nos deixou a sós. Dando os últimos retoques no caso, esperando a análise de DNA no chapéu, seguindo em frente? Minha mãe e meu tio devem levar em conta que qualquer escolha feita agora pode ser a que ela espera deles, e ela está a postos. Também é possível que o misterioso plano dos dois não tenha ocorrido a ela, e então os dois estariam um passo adiante. Boa razão para agir com audácia. Em vez disso, nesse momento eles preferem um drinque. Talvez qualquer coisa que façam preste um serviço a Clare Allison, inclusive esse interlúdio com um single malt. Mas não, a única chance deles é optar pela escolha radical — e agora.
Trudy ergue o braço para impedir uma terceira dose. Claude é mais resoluto. Está empenhado na busca rigorosa da clareza mental. Ouvimos enquanto se serve — ele vem bebendo uísque puro em grandes quantidades —, depois quando engole emitindo um som forte, que conhecemos bem. Devem estar se perguntando como evitar uma briga exatamente no momento que precisam trabalhar juntos. De longe chega o som de uma sirene, apenas uma ambulância, mas que espicaça seus medos. A rede do Estado se estende invisível por toda a cidade. Difícil escapar dela. Mas funciona como um ponto de teatro, porque finalmente ocorre uma fala, uma útil afirmação do óbvio.
“Isto é ruim.” A voz de minha mãe é baixa e gutural.
“Onde estão os passaportes?”
“Estão comigo. E o dinheiro?”
“Na minha maleta.”
Mas eles não se movem, e a assimetria da troca de palavras — a resposta evasiva de minha mãe — não provoca meu tio. Ele está bem avançado na terceira dose, quando a primeira de Trudy chega a mim. Nada sensual, mas, sem exagero, cai bem diante da situação, essa sensação de fim sem um começo à vista. Visualizo uma velha estrada militar através de um desfiladeiro gelado nas montanhas, um leve odor de pedra úmida e turfa, o som de aço e passos obedientes no chão de cascalho, o peso da amarga injustiça. Tão distante das vertentes voltadas para o sul, das flores cobertas de pólen nos fartos ramalhetes roxos que emolduravam as colinas longínquas, com seus tons sobrepostos de um índigo cada vez mais pálido. Eu preferia estar lá. Mas admito — o uísque, meu primeiro, liberta minha mente. Uma cruel libertação: o portão aberto conduz à luta e ao medo do que a mente é capaz de criar. Está acontecendo comigo agora. Me perguntam, eu mesmo me pergunto, o que mais desejo agora. Qualquer coisa. O realismo não é um fator limitativo. Corte as cordas, solte a imaginação. Posso responder sem pensar: vou atravessar o portão aberto.
Passos na escada. Trudy e Claude olham para cima, surpresos. Será que a inspetora encontrou um modo de entrar na casa? Um ladrão escolheu a pior das noites? É uma descida lenta, pesada. Eles veem um sapato preto de couro, um cinto, uma camisa manchada de vômito, e depois uma expressão terrível, ao mesmo tempo vazia e determinada. Meu pai está com as roupas com que morreu. Rosto exangue, lábios preto-esverdeados já em putrefação, olhos pequenos e penetrantes. Agora se postou ao pé da escada, mais alto que em minhas recordações. Veio do necrotério para nos encontrar e sabe exatamente o que deseja. Estou tremendo porque minha mãe também está. A imagem não é bruxuleante, ela nada tem de fantasmagórica. Este é meu pai em carne e osso, John Cairncross, como sempre foi. O gemido aterrorizado de minha mãe serve como estímulo, pois ele caminha em nossa direção.
“John”, Claude diz com cautela, num tom de voz ascendente, como se pudesse despertar aquela figura e levá-la de volta à não existência a que pertence. “John, somos nós.”
Isso parece bem entendido. Ele está à nossa frente, exalando um miasma de glicol e carne visitada por vermes amigáveis. É minha mãe quem ele encara fixamente com olhos pequenos, duros e negros, feitos de uma rocha indestrutível. Seus lábios repulsivos se movem, mas não emitem nenhum som. A língua é mais preta que os lábios. Mantendo o olhar nela o tempo todo, ele estende um braço. A mão descarnada se aferra à garganta de meu tio. Minha mãe não consegue nem gritar. Os olhos ilíquidos continuam pregados nela. Isso é para ela, o presente dele. A mão impiedosa aperta ainda mais. Claude cai de joelhos, olhos esbugalhados, as mãos golpeando e puxando inutilmente o braço do irmão. Só um guincho distante, o som patético de um camundongo, nos diz que ele ainda está vivo. Depois não está mais. Meu pai, que nem de relance olhou para ele uma única vez, deixa-o tombar no chão e agora puxa sua mulher para perto de si, a envolve em braços finos e fortes como vergalhões de aço. Traz o rosto dela para junto do dele e lhe dá um beijo longo e intenso com lábios gelados e apodrecidos. Ela é tomada de horror, de repugnância, de vergonha. Será atormentada por esse instante até o dia de sua morte. Indiferente, ele a liberta e caminha de volta para onde veio. Ao subir a escada, já começa a se desvanecer.
Bem, me perguntaram. Eu mesmo me perguntei. E era isso que eu queria. Uma fantasia infantil do Dia das Bruxas. De que outro modo encomendar a vingança de um espírito numa era de convicções seculares? O gótico foi razoavelmente banido, as feiticeiras largaram às pressas os caldeirões, só nos restou o materialismo, tão perturbador para a alma. Uma voz no rádio me disse certa vez que, quando compreendermos perfeitamente o que é a matéria, vamos nos sentir melhor. Duvido. Nunca terei o que quero.
Volto de meus devaneios e vejo que estamos no quarto. Não me lembro de termos subido. O som oco da porta do armário, o tilintar dos cabides de casacos, uma mala posta na cama, depois outra, o estalido das fechaduras sendo abertas. Eles deveriam ter feito as malas com antecedência. A inspetora poderia vir até mesmo esta noite. É isso que eles chamam de plano? Ouço imprecações e resmungos.
“Onde é que está? Estava aqui comigo. Na minha mão!”
Cruzam o quarto de um lado ao outro, abrem gavetas, entram e saem do banheiro. Trudy deixa cair um copo, que se estilhaça no chão. Ela nem liga. Por algum motivo, o rádio está ligado. Claude senta-se com seu notebook e murmura: “Trem às nove. O táxi está a caminho”.
“Eu preferia Paris a Bruxelas. Melhores conexões para seguir viagem”, Trudy resmunga para si mesma ainda no banheiro. “Dólares... euros.”
Tudo que eles dizem, mesmo os ruídos que fazem, têm um ar de despedida, como um triste acorde final, um adeus cantado. Este é o fim, não voltaremos. A casa, a casa de meu avô em que eu deveria crescer, está prestes a se apagar. Não me lembrarei dela. Eu gostaria de solicitar uma lista de países sem acordo de extradição. Na maioria são desconfortáveis, desorganizados, quentes. Ouvi dizer que Beijing é um lugar aprazível para fugitivos. Uma próspera aldeia de vilões que falam inglês enterrada na vastidão populosa da cidade cosmopolita. Um bom local para terminar.
“Soníferos, analgésicos”, Claude diz em voz alta.
Sua voz, seu tom me instigam. Hora de decidir. Ele está fechando as malas, prendendo as tiras de couro. Foi rápido. Então já deviam ter começado a fazê-las. São daquelas antigas, de duas rodinhas e não quatro. Claude as levanta da cama e põe no chão.
Trudy pergunta: “Qual?”.
Acho que está mostrando dois lenços de pescoço. Claude resmunga sua escolha. Isso não passa de um simulacro de normalidade. Quanto tomarem o trem, quando atravessarem a fronteira, a culpa dos dois vai se revelar. Só dispõem de uma hora e devem se apressar. Trudy diz que há um casaco que que ela quer e que não está conseguindo achar. Claude insiste que ela não vai precisar dele.
“É levinho”, ela diz. “O branco.”
“Você vai se destacar na multidão. Nas câmeras de segurança.”
Mas ela acaba encontrando-o justamente quando o Big Ben bate oito horas e o noticiário começa. Eles não param para escutar. Ainda há algumas últimas coisas para pegar. Na Nigéria, crianças queimadas vivas diante dos pais pelos guardiões das chamas. Na Coreia do Norte, um foguete é lançado. Ao redor do mundo, a elevação do nível do mar supera as previsões. Mas nenhuma dessas é a principal. Tal privilégio é dado a uma nova catástrofe. Uma combinação — pobreza e guerra, com mudança climática na reserva — que vem expulsando milhões de pessoas de seus lares, um antigo épico sob novo formato, vastos movimentos humanos como rios ingurgitados na primavera, Danúbios, Renos e Ródanos de seres irados ou desolados, ou esperançosos, amontoados nas fronteiras contra as cercas de arame cortante, afogando-se aos milhares ao tentarem compartilhar as riquezas do Ocidente. Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.
E, como sempre, há problemas mais perto de casa. Enquanto as emissoras de rádio e televisão prosseguem com suas cantilenas, as pessoas vão tocando seus negócios. Um casal acabou de se aprontar para uma viagem. As malas estão fechadas, mas há uma fotografia de sua mãe que a jovem mulher deseja levar. A pesada moldura esculpida é grande demais para ser posta na bagagem. Sem a ferramenta certa, a fotografia não pode ser removida, e a ferramenta, um tipo especial de chave, está no porão, no fundo de uma gaveta. O táxi espera lá fora. O trem parte dentro de cinquenta minutos, a estação fica um pouco longe, pode haver filas nos controles de segurança e de passaportes. O homem leva uma das malas para o patamar da escada e volta um pouco ofegante. Deveria ter usado as rodinhas.
“Agora temos mesmo que ir de qualquer maneira.”
“Preciso levar essa foto.”
“Leve debaixo do braço.”
Mas, além de ter de puxar a mala, ela carrega a bolsa, o casaco branco e eu.
Com um gemido, Claude pega a segunda mala a fim de levá-la para fora. Com esse esforço inútil quer mostrar o quanto é urgente eles partirem.
“Você não vai demorar nem um minuto. Está no canto da frente da gaveta do lado esquerdo.”
Ele volta. “Trudy. Estamos indo. Agora.”
A troca de palavras passou de lacônica a amarga.
“Leva para mim.”
“Nem pensar.”
“Claude. É minha mãe.”
“Estou pouco ligando. Estamos indo.”
Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais. Hora de entrar em ação. Acabar de uma vez por todas. Hora de começar. Não é fácil libertar meu braço direito, apertado contra o peito, ou movimentar o pulso. Mas agora isso foi feito. Um dedo indicador é a minha ferramenta especial para remover minha mãe da moldura. Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas. Faço a primeira tentativa de incisão. Minhas unhas são macias e, embora fino, o tecido é resistente. A evolução sabe das coisas. Tateio para encontrar a ranhura causada pelo meu dedo. Há uma dobra, bem definida, e é lá que tento de novo, até que na quinta investida sinto uma tênue esgarçadura e, na sexta, um minúsculo rompimento. Consigo enfiar a ponta da unha nesse rasgo, o dedo, dois dedos, três, quatro, até que por fim minha mão fechada abre o caminho e atrás dela vem um grande volume de líquido, a catarata do começo da vida. Minha proteção aquosa desapareceu.
Agora nunca saberei como a história da fotografia ou do trem das nove horas teria sido resolvida. Claude está fora do quarto, no alto da escada. Tem uma mala em cada mão, pronto para descer.
Minha mãe o chama com o que parece ser um gemido desapontado. “Ah, Claude.”
“O que agora?”
“A bolsa rompeu!”
“Cuidamos disso depois. No trem.”
Ele deve ter imaginado que se tratava de uma artimanha, da continuidade da discussão, um tipo repulsivo de problema feminino que ele está agitado demais para levar em conta.
Estou mexendo os ombros para me libertar da membrana embrionária, minha primeira experiência em matéria de me despir. Sou desajeitado. Três dimensões me parecem três a mais do que eu desejava. Prevejo que o mundo material será um desafio. O manto descartado continua retorcido em volta dos meus joelhos. Não faz mal. Tenho uma nova tarefa abaixo da cabeça. Não sei como sei o que devo fazer. É um mistério. Há certos conhecimentos com os quais simplesmente já chegamos. No meu caso, há este, e um punhado de escansões poéticas. Afinal, nenhuma lousa em branco. Trago a mesma mão à bochecha e a deslizo para baixo, ao longo da parede muscular do útero, a fim de achar o colo. Ele está bem apertado contra a parte de trás da minha cabeça. É lá, na entrada do mundo, que eu apalpo delicadamente com meus pequenos dedos e de imediato, como se alguma fórmula mágica houvesse sido pronunciada, o grande poder de minha mãe é estimulado, as paredes a meu redor se encrespam, tremem e se fecham sobre mim. É um terremoto, uma comoção gigantesca na caverna dela. Como o aprendiz de feiticeiro, fico horrorizado e depois esmagado pela força desencadeada. Eu deveria ter esperado a minha hora. Só um idiota se meteria com essa força. Ouço à distância minha mãe gritar. Pode ser um pedido de ajuda, quem sabe um berro de triunfo ou dor. Então sinto alguma coisa no topo da cabeça, minha coroa — um centímetro de dilatação! Não há volta.
Trudy se arrastou para a cama. Claude está em algum lugar perto da porta. Ela está arfando, excitada e muito assustada.
“Começou. Como é rápido! Chame uma ambulância.”
Ele não diz nada por um momento, depois simplesmente pergunta: “Onde está meu passaporte?”.
A derrota é minha, eu o subestimei. O objetivo de chegar mais cedo era para destruir Claude. Eu sabia que ele era um problema. Mas pensei que amava minha mãe e que ficaria com ela. Estou começando a entender a força mental de Trudy. Enquanto ele remexe a bolsa dela e se ouve o tilintar alegre das moedas contra o estojo de maquiagem, ela diz: “Escondi. Lá embaixo. Justamente caso isso acontecesse”.
Ele reflete. Já comprou e vendeu propriedades, possuiu um arranha-céu em Cardiff, sabe como fechar um negócio. “Me diga onde está que eu chamo uma ambulância para você. E aí vou embora.”
A voz dela é cautelosa. Observando de perto seu próprio estado, esperando, desejando e temendo a próxima onda. “Não. Se eu cair, você cai também.”
“Ótimo. Sem ambulância.”
“Eu mesma vou chamar. Assim que...”
Assim que tenha passado a segunda contração, mais forte que a primeira. De novo seu grito involuntário, o corpo todo se contraindo enquanto Claude atravessa o quarto para se aproximar da cama e desconectar da parede o telefone que estava na mesinha de cabeceira. Ao mesmo tempo, sou comprimido violentamente e erguido uns três ou quatro centímetros, sugado para baixo e para trás de onde estava hibernando. Uma cinta de ferro espreme mais e mais minha cabeça. Nossos três destinos esmagados por uma grande boca.
Assim que a onda reflui, Claude, como um guarda de fronteira, diz, impassível: “Passaporte?”.
Ela sacode a cabeça, espera até retomar o fôlego. Os dois mantêm uma espécie de equilíbrio.
Ela se recupera e diz, sem emoção na voz: “Então você vai ter que fazer o papel da parteira”.
“O filho não é meu.”
“O filho nunca é da parteira.”
Ela está apavorada, mas pode aterrorizá-lo com instruções.
“Quando ele sair, vai vir com o rosto para baixo. Você pega o bebê com as duas mãos, bem delicadamente, apoiando a cabeça dele, e põe em cima de mim. Ainda com o rosto para baixo, entre os meus seios. Perto de onde bate o coração. Não se preocupe com o cordão. Vai parar de pulsar sozinho, e o bebê começa a respirar. Ponha umas duas toalhas em cima dele para mantê-lo aquecido. E aí esperamos.”
“Esperamos? Meus Deus! Esperamos o quê?”
“Que a placenta saia.”
Não sei se ele se encolheu ou teve uma ânsia de vômito. Podia ainda estar imaginando que terminaria com aquilo e pegaria um trem mais tarde.
Ouço com atenção, querendo saber o que fazer. Me enfiar embaixo de uma toalha. Respirar. Não pronunciar uma única palavra. Mas não basta ser um bebê. Com certeza rosa ou azul!
“Por isso, vá buscar uma porção de toalhas. Vai ser uma sujeirada. Lave as mãos bem lavadas, com a escovinha de unhas e muito sabonete.”
Tão longe de onde dava pé para ele, tão longe da costa acolhedora, um homem sem seus documentos deveria estar em plena fuga. Ele dá meia-volta para fazer o que lhe foi ordenado.
E assim seguem as coisas, onda atrás de onda, gritos e gemidos, súplicas para que a agonia tenha fim. Progresso impiedoso, ejeção em curso. O cordão se desenrola atrás de mim à medida que avanço lentamente. Para a frente e para fora. Forças cruéis da natureza pretendem me achatar. Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos.
Um momento deslizante de urgência pegajosa, com sons ásperos, e aqui estou eu, trazido nu ao reino. Como o corajoso Cortés (lembro de um poema que meu pai recitou), estou pasmo. Olhando para baixo, maravilhado, para o que presumo ser a superfície felpuda de uma toalha de banho azul. Azul. Eu sempre soube, ao menos verbalmente, sempre fui capaz de deduzir o que era o azul — mar, céu, lápis-lazúli, gencianas — meras abstrações. Agora o tenho por fim, o possuo e ele me possui. Mais grandioso do que eu ousava crer. Isto é só o começo, na extremidade índigo do espectro.
Meu fiel cordão, que me mantinha vivo e não conseguiu me matar, de repente morre como planejado. Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom. Os sons são límpidos, brilhantes graças ao realce dos agudos. A resplandecente toalha, irradiando sua cor, evoca a mesquita de Goharshad no Irã que fez meu pai chorar nas primeiras horas de uma manhã. Minha mãe se mexe e faz com que minha cabeça mude de posição. Vejo Claude de relance. Menor do que eu imaginava, com ombros estreitos e cara de raposa. Sem a menor dúvida, com uma expressão de repugnância. A luz do sol do início da noite de verão atravessa as folhas de um plátano e projeta no teto desenhos tremulantes. Ah, a alegria de esticar as pernas, de verificar no despertador sobre a mesinha de cabeceira que eles jamais pegarão aquele trem. Mas não tenho muito tempo para saborear esse momento. Minha maleável caixa torácica é apertada pelas mãos enojadas de um assassino e sou posto na barriga hospitaleira, branca como a neve, de outra assassina.
As batidas de seu coração soam distantes, abafadas, mas são tão familiares quanto um velho estribilho que não ouvimos há décadas. O ritmo da música é um andante, passos delicados que me conduzem ao verdadeiro portão aberto. Não posso negar o medo que sinto. Mas estou exausto, um marinheiro náufrago que chegou a uma praia bem-afortunada. Estou caindo, mesmo enquanto o mar lambe meus tornozelos.
Trudy e eu devemos ter cochilado. Não sei quantos minutos se passaram até ouvirmos a campainha. Como ela soa claro. Claude ainda está aqui, ainda esperando obter seu passaporte. Ele deve ter descido para caçar o documento. Agora caminha até o interfone. Olha de relance a tela e dá meia-volta. Não pode haver surpresas.
“São quatro”, ele diz, mais para si mesmo.
Contemplamos esse fato. Acabou. Não é um bom final. Nunca seria.
Minha mãe me muda de lugar para que possamos trocar um longo olhar. O momento pelo qual esperei. Meu pai tinha razão, é um rosto adorável. O cabelo mais escuro do que eu pensava, os olhos de um verde mais pálido, as bochechas ainda coradas por causa do esforço recente, o nariz de fato uma coisinha bem pequena. Acho que vejo o mundo inteiro nesse rosto. Belo. Amoroso. Assassino. Ouço Claude atravessar o quarto com passos resignados para descer até a porta. Nenhum clichê. Mesmo nesse intervalo de descanso, durante o longo e ávido olhar no fundo dos olhos de minha mãe, estou pensando no táxi que espera lá fora. Um desperdício. Hora de mandá-lo embora. E estou pensando na nossa cela — espero que não seja pequena demais — e, mais além de sua pesada porta, nos degraus gastos que sobem: primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos.
18.
No começo da tarde, o telefone toca e o futuro se apresenta. Inspetora-chefe Clare Allison, designada para cuidar do caso. A voz soa amistosa, nenhum indício de acusação. Isso pode ser um mau sinal.
Estamos de novo na cozinha, Claude segura o fone. O primeiro café do dia na outra mão. Trudy se posta perto dele e nós dois ouvimos os dois interlocutores. Caso? A palavra contém uma ameaça. Inspetora-chefe? Também não ajuda muito.
Avalio a ansiedade de meu tio por seu zelo em se mostrar solícito. “Ah, sim. Sim! É claro. Por favor, faça isso.”
A inspetora-chefe Allison pretende nos visitar. O normal seria os dois irem à delegacia para uma conversa. Ou prestar depoimento, se apropriado. No entanto, por causa da gravidez avançada de Trudy, da dor da família, a inspetora-chefe e um sargento virão daqui a uma hora. Ela gostaria de dar uma olhada no local onde houve o último contato com o falecido.
Esta última informação, inocente e razoável a meus ouvidos, provoca em Claude um frenesi de boas-vindas. “Venha, por favor. Maravilhoso. Sem dúvida. Será um prazer conhecê-la. Contando os minutos. A senhora...”
Ela desliga. Ele se volta para nós, provavelmente cor de cinza, e diz numa voz desapontada: “Ah”.
Trudy não resiste a imitá-lo: “Tudo... ótimo, não é?”.
“Que caso é esse? Não se trata de uma questão criminal.” Ele apela a uma audiência imaginária, a um conselho de sábios. A um júri.
“Odeio isso”, minha mãe murmura, mais para si mesma. Ou para mim, eu gostaria de acreditar.
“Deve ser para o juiz de instrução.” Claude se afasta de nós, ofendido, dá uma volta pela cozinha e retorna, indignado. Agora sua queixa é dirigida a Trudy. “Não se trata de um caso de polícia.”
“Ah, é mesmo?”, ela diz. “Melhor então telefonar para a inspetora e explicar isso a ela.”
“Aquela poeta. Eu sabia que não podíamos confiar nela.”
Entendemos que, como Elodia é assunto de minha mãe, de algum modo isso constitui uma acusação.
“Você gostou dela.”
“Você disse que ela ia ser útil.”
“Você gostou dela.”
Mas a reiteração deliberadamente impassível não o espicaça.
“Quem não gostaria? E quem se importa com isso?”
“Eu me importo.”
Pergunto-me mais uma vez o que ganho se eles brigarem. Isso poderia arruiná-los. Então eu ficaria com Trudy. Já a escutei dizer que, na prisão, mães que estão amamentando levam uma vida melhor. Mas vou perder meu direito de nascer, o sonho de todos os seres humanos, minha liberdade. Enquanto juntos, como uma equipe, eles podem escapar raspando. E depois me darem para alguém. Sem mãe, mas livre. Portanto, o que é melhor? Já pensei nisso, voltando sempre ao mesmo bendito lugar, à única decisão moralmente correta. Vou arriscar os confortos materiais e me aventurar no mundo. Já estive confinado por tempo demais. Voto pela liberdade. Os assassinos precisam escapar. Então, antes que a discussão sobre Elodia vá longe demais, este é um bom momento para dar outro pontapé em minha mãe, distraí-la da briga com o interessante fato da minha existência. Não um nem dois, mas o número mágico de todas as boas histórias antigas. Três vezes, como Pedro negando Jesus.
“Ai, ai, ai!” Ela quase canta isso. Claude puxa uma cadeira para ela e traz um copo de água.
“Você está suando.”
“Bom, estou com calor.”
Ele testa as janelas. Não são movidas há anos. Procura gelo, mas os recipientes estão vazios depois das três rodadas recentes de gim e tônica. Por isso ele se senta diante dela e oferece sua refrescante solidariedade.
“Vai dar tudo certo.”
“Não, não vai.”
O silêncio dele concorda. Eu estava pensando num quarto chute, mas o estado de espírito de Trudy é perigoso. Ela pode partir para o ataque e provocar uma reação temerária.
Depois de uma pausa, em tom apaziguador, ele diz: “Devíamos repassar mais uma vez”.
“Que tal um advogado?”
“Um pouquinho tarde agora.”
“Diga a eles que não vamos falar sem a presença de um advogado.”
“Não vai cair bem, quando eles só estão vindo bater um papo.”
“Odeio isso.”
“Devíamos repassar mais uma vez.”
Mas não repassam. Estupefatos, contemplam a abordagem da inspetora-chefe Allison. Muito em breve. Dentro de uma hora pode significar em um minuto. Sabendo de tudo, de quase tudo, sou parte do crime, sem dúvida a salvo de um interrogatório, porém amedrontado. E curioso, impaciente para testemunhar as habilidades da inspetora-chefe. Alguém de mente aberta seria capaz de desmascarar esses dois em minutos. Trudy traída pelos nervos, Claude pela burrice.
Estou tentando imaginar onde estão as canecas de café da manhã usadas durante a visita de meu pai. Transferidas, penso agora, para a pia, onde esperam sem ter sido lavadas. DNA numa caneca provará que minha mãe e meu tio dizem a verdade. Os restos dos sanduíches dinamarqueses devem estar por perto.
“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”
“Na cozinha.”
“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”
“Dinheiro.”
“Não. Botar você para fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”
“Anos.”
“Meses. Quanto emprestei para ele?”
“Mil.”
“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”
“Estou grávida. Afeta a memória.”
“Você mesma disse ontem. Tudo como foi, mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga.”
“Mais a luva. Menos que ele estava voltando para cá.”
“Meu Deus, sim. Outra vez. Qual a causa da depressão?”
“Nós. Dívidas. Trabalho. O bebê.”
“Certo.”
Repassam mais uma vez. Na terceira, soa melhor. Que cumplicidade mais doentia, eu desejar que eles tenham êxito!
“Então repita.”
“Tal como aconteceu. Menos a vitamina, mais a briga e a luva, menos a depressão, mais que ele estava voltando para cá.”
“Não. Porra! Trudy. Exatamente como foi. Mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga, mais a luva, menos a volta para cá.”
A campainha toca e eles se imobilizam.
“Diga a eles que não estamos prontos.”
Para minha mãe, essa era a ideia de uma piada. Ou prova de seu terror.
Provavelmente resmungando obscenidades, Claude caminha até o videofone, muda de ideia e segue para a escada em direção à porta da frente.
Trudy e eu damos uma volta nervosa pela cozinha, arrastando os pés. Ela também resmunga enquanto trabalha na história. Isso é proveitoso porque cada esforço sucessivo da memória a afasta mais dos fatos reais. Ela está memorizando suas lembranças. Os erros de transcrição serão a seu favor. Constituirão de início um colchão útil, transformando-se depois em verdade. Também poderia dizer a si mesma: ela não comprou o glicol, não foi à Judd Street, não preparou a bebida, não pôs as coisas no carro, não jogou o liquidificador no lixo. Ela limpou a cozinha — nada de ilegal nisso. Convencida, estará libertada da astúcia consciente e pode ter uma chance. A mentira eficaz, assim como uma tacada de mestre no golfe, está livre da autoconsciência. Presto atenção nos comentários esportivos.
Atento aos passos que descem a escada, eu os diferencio. Os da inspetora-chefe Allison são leves, até mesmo como os de um passarinho, apesar de seu posto elevado. Apertos de mão são trocados. Pelo rígido “Como vai a senhora?” do sargento, reconheço o policial mais velho que esteve aqui ontem. O que terá impedido sua promoção? Classe, educação, Q.I., escândalo — o último, espero, pelo qual ele pode ser culpado, não precisando da minha compaixão.
A ágil inspetora-chefe senta-se à mesa da cozinha e convida todos a fazerem o mesmo, como se a casa fosse dela. Acho que capto minha mãe pensando que seria mais fácil enganar um homem. Allison abre uma pasta e fica apertando repetidamente o botão da mola da caneta enquanto fala. Nos diz que antes deseja expressar — faz uma pausa de grande efeito para olhar, não tenho dúvida, no fundo dos olhos de Trudy e de Claude — seus profundos sentimentos pela perda de um marido querido, de um irmão querido, de um amigo querido. Nada de um pai querido. Estou lutando contra o sentimento gélido e bem conhecido de exclusão. Mas a voz é cálida, maior que seu corpo, enfrentando sem tensões os ossos do ofício. A ligeira pronúncia típica dos habitantes mais pobres do leste de Londres corresponde aos padrões urbanos consagrados, e não será facilmente desafiada. Não pelas vogais forçadas de minha mãe, aprendidas em colégios caros. Esse velho truque já não funcionaria. Os tempos são outros. Um dia a maior parte dos estadistas britânicos falará como a inspetora-chefe. Me pergunto se ela tem uma arma. Desnecessário. Como a rainha, que não carrega dinheiro. Atirar nas pessoas é coisa de sargento para baixo.
Allison explica que se trata de uma conversa informal para ajudá-la a ter uma compreensão mais ampla dos trágicos acontecimentos. Trudy e Claude não têm nenhuma obrigação de responder às perguntas. Mas ela está errada. Eles se sentem obrigados. A recusa os faria dar a impressão de serem suspeitos. No entanto, se a inspetora-chefe estiver uma jogada à frente, pode pensar que a aceitação é ainda mais suspeita. Os que nada têm a esconder insistiriam num advogado como precaução contra os erros policiais ou uma intromissão ilegal.
Ao nos acomodarmos em torno da mesa, reparo na ausência de indagações corteses sobre mim, coisa de que me ressinto. Espera para quando? Menino ou menina?
Em vez disso, a inspetora-chefe não perde tempo. “Vocês podem me mostrar a casa depois que terminarmos a conversa.”
Mais uma afirmação que um pedido. Claude está ansioso, ansioso demais, para obedecer. “Ah, sim. Sim!”
Uma ordem de busca seria a alternativa. Mas não há nada de interessante para a polícia no andar de cima além da imundície.
A inspetora-chefe diz para Trudy: “Seu marido veio aqui ontem por volta das dez horas da manhã?”.
“Isso mesmo.” Seu tom é impassível, um exemplo para Claude.
“E houve alguma tensão.”
“Naturalmente.”
“Por que naturalmente?”
“Estou morando com o irmão dele na casa que John achava que era sua.”
“De quem é a casa?”
“Do casal.”
“O casamento tinha acabado?”
“Sim.”
“Se importa se eu perguntar? Ele achava que tinha acabado?”
Trudy hesita. Pode haver uma resposta certa e uma errada.
“Ele me queria de volta, mas também queria manter suas amigas.”
“Conhece algum nome?”
“Não.”
“Mas ele lhe falou sobre elas?”
“Não.”
“Mas de alguma maneira a senhora sabia.”
“Claro que eu sabia.”
Trudy se permite algum desdém. Como se para dizer: “Sou a mulher de verdade aqui”. Mas ignorou as instruções de Claude. Devia dizer a verdade, acrescentando e subtraindo apenas o que tinha sido combinado. Ouço meu tio se mexer na cadeira.
Sem fazer nenhuma pausa, Allison muda de assunto. “Vocês tomaram café.”
“Sim.”
“Os três? Em volta desta mesa?”
“Os três.” Claude diz isso, talvez preocupado que seu silêncio esteja passando uma má impressão.
“Mais alguma coisa?”
“O quê?”
“Com o café. Vocês lhe ofereceram alguma coisa mais?”
“Não.” Minha mãe soa cautelosa.
“E o que havia no café?”
“Como assim?”
“Leite? Açúcar?”
“Ele sempre tomava sem leite.” O ritmo do pulso dela acelerou.
Mas o comportamento de Clare Allison é impenetravelmente neutro. Ela se volta para Claude. “Então o senhor lhe emprestou algum dinheiro.”
“Sim.”
“Quanto?”
“Cinco mil.” Claude e Trudy respondem num coro mal sincronizado.
“Um cheque?”
“Na verdade em dinheiro vivo. Foi como ele queria.”
“O senhor tem ido àquela loja de vitaminas na Judd Street?”
A resposta de Claude é tão rápida quanto a pergunta. “Uma ou duas vezes. Foi John quem nos falou sobre ela.”
“Imagino que o senhor não tenha estado lá ontem.”
“Não.”
“Nunca pediu emprestado o chapéu preto de aba larga dele?”
“Nunca. Não faz meu estilo.”
Essa pode ser a resposta errada, mas não há tempo para raciocinar. As perguntas adquiriram um novo peso. O coração de Trudy está batendo mais rápido. Eu não confiaria nela para falar. Mas ela fala, e com voz estrangulada.
“Presente meu de aniversário. Ele amava aquele chapéu.”
A inspetora-chefe já está passando para algo diferente, mas volta atrás. “É tudo que se vê na câmera de segurança. Mandamos o chapéu para um teste de DNA.”
“Nem lhes oferecemos chá, café”, diz Trudy com voz alterada.
A inspetora-chefe deve ter recusado com um balançar de cabeça por ela e pelo sargento, ainda em silêncio. “Agora é quase tudo assim”, ela diz num tom nostálgico, “ciência e telas de computadores. Mas onde estávamos? Ah, sim. Houve alguma tensão. Mas vejo em minhas anotações que ocorreu uma briga.”
Claude deve estar fazendo os mesmos raciocínios apressados que eu. Seu cabelo será encontrado no chapéu. A resposta correta era sim, tinha pedido emprestado algum tempo atrás.
“Sim”, diz Trudy. “Uma de muitas.”
“Se importa de me dizer...”
“Ele queria que eu saísse da casa. Eu disse que iria quando estivesse pronta.”
“Quando ele foi embora, qual era seu estado de espírito?”
“Bem ruim. Estava péssimo. Confuso. Na verdade não queria que eu me mudasse daqui. Me queria de volta. Tentou que eu ficasse com ciúme, fingindo que Elodia era sua amante. Ela nos esclareceu tudo. Os dois não tinham um relacionamento.”
Detalhes demais. Ela está tentando retomar o controle. Mas falando muito rápido. Precisa dar uma respirada.
Clare Allison fica em silêncio enquanto aguardamos para saber qual a próxima direção que tomará. Mas ela continua nesse assunto, declarando da forma mais delicada possível: “Não é a informação que tenho”.
Um instante de torpor, como se o próprio som houvesse sido assassinado. O espaço em torno de mim se contrai porque Trudy parece ter se esvaziado como um balão. A coluna se dobra como a de uma velha. Sinto um pequeno orgulho de mim. Sempre tive minhas suspeitas. Com que avidez eles tinham acreditado em Elodia. Agora eles sabem: “Nem o copo-de-leite se demora”. Mas também preciso ter cautela. A inspetora-chefe pode ter razões para mentir. Está apertando o botão da caneta esferográfica, pronta para seguir em frente.
Minha mãe diz baixinho: “Bem, suponho que eu fui a mais enganada”.
“Sinto muito, sra. Cairncross. Mas minhas fontes são boas. Digamos apenas que se trata de uma jovem complicada.”
Eu poderia explorar a teoria de que não é mau negócio para Trudy ser a pessoa injuriada, obter corroboração para a história do marido infiel. Mas estou pasmo; nós dois estamos pasmos. Meu pai, aquela partícula mal compreendida, girando, se afasta ainda mais de mim no momento em que a inspetora-chefe faz outra pergunta a minha mãe. Ela também responde baixinho, com o tremor adicional de uma garotinha punida.
“Alguma violência?”
“Não.”
“Ameaças?”
“Não.”
“Nenhuma de sua parte.”
“Não.”
“E sobre a depressão dele? O que pode me dizer?”
Isso é dito gentilmente, e deve ser uma armadilha. Mas Trudy não faz uma pausa. Angustiada demais para inventar novas mentiras, persuadida demais de sua verdade, repete tudo que disse antes, na mesma linguagem inverossímil. Constante dor mental... Vociferava contra aqueles que amava... arrancava os poemas de sua alma. Vem-me a imagem vívida de uma parada de soldados exaustos, as plumas dos chapéus destruídas. A recordação em sépia de um podcast, as guerras napoleônicas em muitos episódios. Na época em que minha mãe e eu estávamos tranquilos. Ah, se Bonaparte tivesse se mantido dentro de suas fronteiras e feito boas leis para a França!
Claude entra na conversa: “Ele era seu pior inimigo”.
A acústica diferente me diz que a inspetora-chefe se voltou a fim de olhar diretamente para ele. “Algum outro inimigo, além dele próprio?”
O tom é despretensioso. Na melhor das hipóteses, uma pergunta pouco relevante; na pior das hipóteses, prenhe de intenções sinistras.
“Eu não saberia dizer. Nunca fomos muito próximos.”
“Me conte”, ela diz, com a voz mais calorosa, “sobre a infância dos dois. Isto é, se o senhor quiser.”
Ele quer. “Eu era três anos mais novo. Ele era bom em tudo. Esportes, estudos, garotas. Me achava um boboca insignificante. Quando cresci, fiz a única coisa que ele não conseguia fazer. Ganhar dinheiro.”
“Propriedades.”
“Esse tipo de coisa.”
A inspetora-chefe se volta de novo para Trudy. “Esta casa está à venda?”
“Claro que não.”
“Ouvi dizer que estava.”
Trudy não reage. Sua primeira jogada certa em muitos minutos.
Será que a inspetora-chefe está de uniforme? Deve estar. Seu quepe estará em cima da mesa, junto a seu cotovelo, como um grande bico. Não vejo nela a simpatia de um mamífero, mas rosto e lábios finos, roupas abotoadas até em cima. Sem dúvida sua cabeça, como a de um pombo, balança para a frente e para trás quando ela anda. O sargento a vê como uma detalhista. Fadada a galgar postos mais altos em que ele não a verá mais. Ela vai voar. Ou concluiu que John Cairncross se suicidou, ou tem razões para acreditar que uma gravidez no nono mês é uma boa maneira de ocultar um crime. Tudo que a inspetora-chefe diz, a observação mais banal, se presta a interpretações. O único poder que temos consiste em projetar. Tal como Claude, ela pode ser esperta ou burra, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Simplesmente não sabemos. Nossa ignorância é o que enche sua mão com as melhores cartas do baralho. Meu palpite é que ela tem poucas suspeitas, que não sabe de nada. Que seus superiores a estão observando. Que precisa ser delicada porque esta conversa é irregular, podendo comprometer o processo legal. Que ela vai preferir o apropriado ao verdadeiro. Que sua carreira é um ovo que ela botou, ela vai se sentar sobre ele, chocá-lo e esperar.
Mas já me enganei antes.
19.
Qual o próximo passo? Clare Allison quer dar uma olhada na casa. Péssima ideia. Mas recusar agora, quando, pelo que sei, as coisas estão indo mal, tornaria tudo pior. O sargento sobe na frente a escada de madeira, seguido por Claude, pela inspetora-chefe, depois por minha mãe e eu. No térreo, a inspetora-chefe diz que, se concordarmos, ela gostaria de ir até o último andar e descer “trabalhando”. Trudy não se interessa em subir mais. Os outros continuam, enquanto nós dois vamos nos sentar na sala — e pensar.
Envio meus pensamentos velozes adiante deles, primeiro à biblioteca. Pó de gesso, cheiro de morte, mas relativamente arrumada. No andar superior, quarto e banheiro, caos de uma espécie íntima, a própria cama um emaranhado de lascívia e sono interrompido, o chão coalhado de roupas largadas por Trudy, o banheiro com potes destampados, unguentos e roupa de baixo suja. Me pergunto o que a desordem significa para olhos desconfiados. Não há de ser algo moralmente neutro. O desdém pelas coisas, pela organização, pela limpeza deve pertencer a uma escala onde existe também o desprezo pelas leis, pelos valores, pela própria vida. O que é um criminoso senão um espírito transtornado? No entanto, um quarto excessivamente arrumado também poderia levantar suspeitas. A inspetora-geral, com os olhos aguçados de uma águia, vai olhar o quarto de relance e se afastar. Mas no subconsciente a repugnância deve afetar seu julgamento.
Há cômodos mais acima, porém nunca fui tão longe. Trago meus pensamentos para o térreo e, como uma criança bem-comportada, atento para o estado de minha mãe. Seu ritmo cardíaco se estabilizou. Ela parece quase calma. Talvez fatalista. A bexiga cheia pressiona minha cabeça. Mas ela não está disposta a se mover. Faz seus cálculos, talvez pensando no plano dos dois. Porém deveria se perguntar qual é o seu próprio interesse. Dissociar-se de Claude. Incriminá-lo de algum modo. De nada serve os dois cumprirem uma pena de prisão. Então ela e eu poderíamos ir ficando por aqui. Ela não ia querer me dar a alguém se estivesse sozinha numa casa grande. Nesse caso, prometo que a perdoaria. Ou me encarregaria dela mais tarde.
Mas não há tempo para maquinações. Ouço-os descer de volta. Passam pela porta aberta da sala, a caminho da porta da frente. A inspetora-chefe certamente não pode ir embora sem um respeitoso adeus à viúva. Na verdade, Claude abriu a porta para mostrar a Allison onde seu irmão tinha estacionado o carro, como no início o motor não pegou, como, apesar da briga, eles tinham acenado quando o carro começou a funcionar e deu marcha a ré para alcançar a rua. Uma lição em matéria de contar a verdade.
Logo depois, Claude e os policiais estão diante de nós.
“Trudy — posso chamá-la de Trudy? Que momento terrível, e você está sendo muito prestativa. Muito hospitaleira. Não sei...” A inspetora-chefe se interrompe, sua atenção desviada. “Aquilo é do seu marido?”
Ela está olhando para as caixas de papelão que meu pai trouxe e deixou embaixo da janela semicircular. Minha mãe se põe de pé. Se vai haver algum problema, melhor que use sua altura. E largura.
“Ele estava voltando para cá. Saindo de Shoreditch.”
“Posso ver?”
“Apenas livros. Mas pode, sim.”
O sargento solta um murmúrio ofegante quando se ajoelha para abrir as caixas. Eu diria que a inspetora-chefe está agachada, agora não como um pássaro, mas como uma pata gigantesca. É errado eu não gostar dela. Ela é a lei, e já me considero no tribunal de Hobbes. O Estado precisa deter o monopólio da violência. Mas o jeitão da inspetora-chefe me irrita, o modo como vasculha as coisas de meu pai, seus livros prediletos, enquanto parece falar consigo mesma sabendo que não temos alternativa senão escutá-la.
“Não entendo. Muito, muito triste... bem na pista de acesso...”
Claro que ela está representando, trata-se de um prelúdio. Ela se levanta. Acho que está olhando para Trudy. Talvez para mim.
“Mas o verdadeiro mistério é o seguinte. Nenhuma impressão digital na garrafa de glicol. Nem no copo. Soube disso há pouco pelo pessoal técnico. Nenhum vestígio. Que estranho!”
“Ah!”, diz Claude, mas Trudy o interrompe. Eu deveria alertá-la. Ela não deve se mostrar tão ansiosa. Sua explicação vem depressa demais. “A luva. Problema de pele. Ele tinha tanta vergonha das mãos!”
“Ah, a luva!”, exclama a inspetora-chefe. “Tem razão. Esqueci completamente!” Ela está desdobrando um pedaço de papel. “Essa?”
Minha mãe dá um passo à frente para olhar. Deve ser a reprodução de uma fotografia. “Sim.”
“Não havia outra?”
“Não como essa. Eu costumava dizer que ele não precisava dela. Ninguém realmente se importava.”
“Ele usava o tempo todo?”
“Não. Mas bastante, principalmente quando estava deprimido.”
A inspetora-chefe está de saída, e isso é um alívio. Nós todos a acompanhamos até o vestíbulo.
“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo... Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto — os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”
A porta da frente é aberta, provavelmente pelo sargento. A inspetora-chefe sai. Ao se afastar, sua voz diminui de volume e se mistura ao som do tráfego. “Não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome em latim. Há muito tempo nenhuma mão calçava aquela luva.”
O sargento toca no braço de minha mãe e por fim fala, dizendo gentilmente ao partir: “Voltamos amanhã de manhã. Para esclarecer umas últimas coisas”.
20.
Por fim, a hora chegou. Há decisões a serem tomadas, urgentes, irreversíveis, autocondenatórias. Mas antes Trudy necessita de dois minutos de solidão. Corremos para o porão, para aquilo que antes chamavam de casinha. Lá, enquanto a pressão sobre meu crânio é aplacada e minha mãe continua sentada alguns segundos mais do que seria necessário, suspirando para si própria, meus pensamentos tornam-se claros. Ou tomam um novo rumo. Pensei que os assassinos deveriam escapar para garantir minha liberdade. Essa pode ser uma visão muito estreita, muito egoísta. Há outras considerações. O ódio a meu tio pode exceder o amor por minha mãe. Puni-lo pode ser mais nobre que salvá-la. Mas talvez seja possível conseguir as duas coisas.
Essas preocupações permanecem comigo ao voltarmos à cozinha. Parece que, depois que os policiais foram embora, Claude percebeu que precisava de um uísque. Ao ouvir a bebida sendo servida quando entrarmos, um som sedutor, Trudy descobre que também precisa de um. Dos grandes. Com água da torneira, meio a meio. Em silêncio, meu tio se desincumbe da tarefa. Em silêncio, ficam de pé frente a frente junto à pia. Não é hora de brindar. Cada um contemplando os erros do outro ou até mesmo os seus. Ou decidindo o que fazer. Esta é a emergência que temiam, e para a qual têm um plano. Bebem o que há nos copos e, sem uma palavra, partem para uma segunda dose. Nossas vidas estão prestes a mudar. A inspetora-chefe Allison paira sobre nós, uma deusa imprevisível e sorridente. Não saberemos, até que seja tarde demais, por que não efetuou as prisões naquele momento, por que nos deixou a sós. Dando os últimos retoques no caso, esperando a análise de DNA no chapéu, seguindo em frente? Minha mãe e meu tio devem levar em conta que qualquer escolha feita agora pode ser a que ela espera deles, e ela está a postos. Também é possível que o misterioso plano dos dois não tenha ocorrido a ela, e então os dois estariam um passo adiante. Boa razão para agir com audácia. Em vez disso, nesse momento eles preferem um drinque. Talvez qualquer coisa que façam preste um serviço a Clare Allison, inclusive esse interlúdio com um single malt. Mas não, a única chance deles é optar pela escolha radical — e agora.
Trudy ergue o braço para impedir uma terceira dose. Claude é mais resoluto. Está empenhado na busca rigorosa da clareza mental. Ouvimos enquanto se serve — ele vem bebendo uísque puro em grandes quantidades —, depois quando engole emitindo um som forte, que conhecemos bem. Devem estar se perguntando como evitar uma briga exatamente no momento que precisam trabalhar juntos. De longe chega o som de uma sirene, apenas uma ambulância, mas que espicaça seus medos. A rede do Estado se estende invisível por toda a cidade. Difícil escapar dela. Mas funciona como um ponto de teatro, porque finalmente ocorre uma fala, uma útil afirmação do óbvio.
“Isto é ruim.” A voz de minha mãe é baixa e gutural.
“Onde estão os passaportes?”
“Estão comigo. E o dinheiro?”
“Na minha maleta.”
Mas eles não se movem, e a assimetria da troca de palavras — a resposta evasiva de minha mãe — não provoca meu tio. Ele está bem avançado na terceira dose, quando a primeira de Trudy chega a mim. Nada sensual, mas, sem exagero, cai bem diante da situação, essa sensação de fim sem um começo à vista. Visualizo uma velha estrada militar através de um desfiladeiro gelado nas montanhas, um leve odor de pedra úmida e turfa, o som de aço e passos obedientes no chão de cascalho, o peso da amarga injustiça. Tão distante das vertentes voltadas para o sul, das flores cobertas de pólen nos fartos ramalhetes roxos que emolduravam as colinas longínquas, com seus tons sobrepostos de um índigo cada vez mais pálido. Eu preferia estar lá. Mas admito — o uísque, meu primeiro, liberta minha mente. Uma cruel libertação: o portão aberto conduz à luta e ao medo do que a mente é capaz de criar. Está acontecendo comigo agora. Me perguntam, eu mesmo me pergunto, o que mais desejo agora. Qualquer coisa. O realismo não é um fator limitativo. Corte as cordas, solte a imaginação. Posso responder sem pensar: vou atravessar o portão aberto.
Passos na escada. Trudy e Claude olham para cima, surpresos. Será que a inspetora encontrou um modo de entrar na casa? Um ladrão escolheu a pior das noites? É uma descida lenta, pesada. Eles veem um sapato preto de couro, um cinto, uma camisa manchada de vômito, e depois uma expressão terrível, ao mesmo tempo vazia e determinada. Meu pai está com as roupas com que morreu. Rosto exangue, lábios preto-esverdeados já em putrefação, olhos pequenos e penetrantes. Agora se postou ao pé da escada, mais alto que em minhas recordações. Veio do necrotério para nos encontrar e sabe exatamente o que deseja. Estou tremendo porque minha mãe também está. A imagem não é bruxuleante, ela nada tem de fantasmagórica. Este é meu pai em carne e osso, John Cairncross, como sempre foi. O gemido aterrorizado de minha mãe serve como estímulo, pois ele caminha em nossa direção.
“John”, Claude diz com cautela, num tom de voz ascendente, como se pudesse despertar aquela figura e levá-la de volta à não existência a que pertence. “John, somos nós.”
Isso parece bem entendido. Ele está à nossa frente, exalando um miasma de glicol e carne visitada por vermes amigáveis. É minha mãe quem ele encara fixamente com olhos pequenos, duros e negros, feitos de uma rocha indestrutível. Seus lábios repulsivos se movem, mas não emitem nenhum som. A língua é mais preta que os lábios. Mantendo o olhar nela o tempo todo, ele estende um braço. A mão descarnada se aferra à garganta de meu tio. Minha mãe não consegue nem gritar. Os olhos ilíquidos continuam pregados nela. Isso é para ela, o presente dele. A mão impiedosa aperta ainda mais. Claude cai de joelhos, olhos esbugalhados, as mãos golpeando e puxando inutilmente o braço do irmão. Só um guincho distante, o som patético de um camundongo, nos diz que ele ainda está vivo. Depois não está mais. Meu pai, que nem de relance olhou para ele uma única vez, deixa-o tombar no chão e agora puxa sua mulher para perto de si, a envolve em braços finos e fortes como vergalhões de aço. Traz o rosto dela para junto do dele e lhe dá um beijo longo e intenso com lábios gelados e apodrecidos. Ela é tomada de horror, de repugnância, de vergonha. Será atormentada por esse instante até o dia de sua morte. Indiferente, ele a liberta e caminha de volta para onde veio. Ao subir a escada, já começa a se desvanecer.
Bem, me perguntaram. Eu mesmo me perguntei. E era isso que eu queria. Uma fantasia infantil do Dia das Bruxas. De que outro modo encomendar a vingança de um espírito numa era de convicções seculares? O gótico foi razoavelmente banido, as feiticeiras largaram às pressas os caldeirões, só nos restou o materialismo, tão perturbador para a alma. Uma voz no rádio me disse certa vez que, quando compreendermos perfeitamente o que é a matéria, vamos nos sentir melhor. Duvido. Nunca terei o que quero.
Volto de meus devaneios e vejo que estamos no quarto. Não me lembro de termos subido. O som oco da porta do armário, o tilintar dos cabides de casacos, uma mala posta na cama, depois outra, o estalido das fechaduras sendo abertas. Eles deveriam ter feito as malas com antecedência. A inspetora poderia vir até mesmo esta noite. É isso que eles chamam de plano? Ouço imprecações e resmungos.
“Onde é que está? Estava aqui comigo. Na minha mão!”
Cruzam o quarto de um lado ao outro, abrem gavetas, entram e saem do banheiro. Trudy deixa cair um copo, que se estilhaça no chão. Ela nem liga. Por algum motivo, o rádio está ligado. Claude senta-se com seu notebook e murmura: “Trem às nove. O táxi está a caminho”.
“Eu preferia Paris a Bruxelas. Melhores conexões para seguir viagem”, Trudy resmunga para si mesma ainda no banheiro. “Dólares... euros.”
Tudo que eles dizem, mesmo os ruídos que fazem, têm um ar de despedida, como um triste acorde final, um adeus cantado. Este é o fim, não voltaremos. A casa, a casa de meu avô em que eu deveria crescer, está prestes a se apagar. Não me lembrarei dela. Eu gostaria de solicitar uma lista de países sem acordo de extradição. Na maioria são desconfortáveis, desorganizados, quentes. Ouvi dizer que Beijing é um lugar aprazível para fugitivos. Uma próspera aldeia de vilões que falam inglês enterrada na vastidão populosa da cidade cosmopolita. Um bom local para terminar.
“Soníferos, analgésicos”, Claude diz em voz alta.
Sua voz, seu tom me instigam. Hora de decidir. Ele está fechando as malas, prendendo as tiras de couro. Foi rápido. Então já deviam ter começado a fazê-las. São daquelas antigas, de duas rodinhas e não quatro. Claude as levanta da cama e põe no chão.
Trudy pergunta: “Qual?”.
Acho que está mostrando dois lenços de pescoço. Claude resmunga sua escolha. Isso não passa de um simulacro de normalidade. Quanto tomarem o trem, quando atravessarem a fronteira, a culpa dos dois vai se revelar. Só dispõem de uma hora e devem se apressar. Trudy diz que há um casaco que que ela quer e que não está conseguindo achar. Claude insiste que ela não vai precisar dele.
“É levinho”, ela diz. “O branco.”
“Você vai se destacar na multidão. Nas câmeras de segurança.”
Mas ela acaba encontrando-o justamente quando o Big Ben bate oito horas e o noticiário começa. Eles não param para escutar. Ainda há algumas últimas coisas para pegar. Na Nigéria, crianças queimadas vivas diante dos pais pelos guardiões das chamas. Na Coreia do Norte, um foguete é lançado. Ao redor do mundo, a elevação do nível do mar supera as previsões. Mas nenhuma dessas é a principal. Tal privilégio é dado a uma nova catástrofe. Uma combinação — pobreza e guerra, com mudança climática na reserva — que vem expulsando milhões de pessoas de seus lares, um antigo épico sob novo formato, vastos movimentos humanos como rios ingurgitados na primavera, Danúbios, Renos e Ródanos de seres irados ou desolados, ou esperançosos, amontoados nas fronteiras contra as cercas de arame cortante, afogando-se aos milhares ao tentarem compartilhar as riquezas do Ocidente. Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.
E, como sempre, há problemas mais perto de casa. Enquanto as emissoras de rádio e televisão prosseguem com suas cantilenas, as pessoas vão tocando seus negócios. Um casal acabou de se aprontar para uma viagem. As malas estão fechadas, mas há uma fotografia de sua mãe que a jovem mulher deseja levar. A pesada moldura esculpida é grande demais para ser posta na bagagem. Sem a ferramenta certa, a fotografia não pode ser removida, e a ferramenta, um tipo especial de chave, está no porão, no fundo de uma gaveta. O táxi espera lá fora. O trem parte dentro de cinquenta minutos, a estação fica um pouco longe, pode haver filas nos controles de segurança e de passaportes. O homem leva uma das malas para o patamar da escada e volta um pouco ofegante. Deveria ter usado as rodinhas.
“Agora temos mesmo que ir de qualquer maneira.”
“Preciso levar essa foto.”
“Leve debaixo do braço.”
Mas, além de ter de puxar a mala, ela carrega a bolsa, o casaco branco e eu.
Com um gemido, Claude pega a segunda mala a fim de levá-la para fora. Com esse esforço inútil quer mostrar o quanto é urgente eles partirem.
“Você não vai demorar nem um minuto. Está no canto da frente da gaveta do lado esquerdo.”
Ele volta. “Trudy. Estamos indo. Agora.”
A troca de palavras passou de lacônica a amarga.
“Leva para mim.”
“Nem pensar.”
“Claude. É minha mãe.”
“Estou pouco ligando. Estamos indo.”
Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais. Hora de entrar em ação. Acabar de uma vez por todas. Hora de começar. Não é fácil libertar meu braço direito, apertado contra o peito, ou movimentar o pulso. Mas agora isso foi feito. Um dedo indicador é a minha ferramenta especial para remover minha mãe da moldura. Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas. Faço a primeira tentativa de incisão. Minhas unhas são macias e, embora fino, o tecido é resistente. A evolução sabe das coisas. Tateio para encontrar a ranhura causada pelo meu dedo. Há uma dobra, bem definida, e é lá que tento de novo, até que na quinta investida sinto uma tênue esgarçadura e, na sexta, um minúsculo rompimento. Consigo enfiar a ponta da unha nesse rasgo, o dedo, dois dedos, três, quatro, até que por fim minha mão fechada abre o caminho e atrás dela vem um grande volume de líquido, a catarata do começo da vida. Minha proteção aquosa desapareceu.
Agora nunca saberei como a história da fotografia ou do trem das nove horas teria sido resolvida. Claude está fora do quarto, no alto da escada. Tem uma mala em cada mão, pronto para descer.
Minha mãe o chama com o que parece ser um gemido desapontado. “Ah, Claude.”
“O que agora?”
“A bolsa rompeu!”
“Cuidamos disso depois. No trem.”
Ele deve ter imaginado que se tratava de uma artimanha, da continuidade da discussão, um tipo repulsivo de problema feminino que ele está agitado demais para levar em conta.
Estou mexendo os ombros para me libertar da membrana embrionária, minha primeira experiência em matéria de me despir. Sou desajeitado. Três dimensões me parecem três a mais do que eu desejava. Prevejo que o mundo material será um desafio. O manto descartado continua retorcido em volta dos meus joelhos. Não faz mal. Tenho uma nova tarefa abaixo da cabeça. Não sei como sei o que devo fazer. É um mistério. Há certos conhecimentos com os quais simplesmente já chegamos. No meu caso, há este, e um punhado de escansões poéticas. Afinal, nenhuma lousa em branco. Trago a mesma mão à bochecha e a deslizo para baixo, ao longo da parede muscular do útero, a fim de achar o colo. Ele está bem apertado contra a parte de trás da minha cabeça. É lá, na entrada do mundo, que eu apalpo delicadamente com meus pequenos dedos e de imediato, como se alguma fórmula mágica houvesse sido pronunciada, o grande poder de minha mãe é estimulado, as paredes a meu redor se encrespam, tremem e se fecham sobre mim. É um terremoto, uma comoção gigantesca na caverna dela. Como o aprendiz de feiticeiro, fico horrorizado e depois esmagado pela força desencadeada. Eu deveria ter esperado a minha hora. Só um idiota se meteria com essa força. Ouço à distância minha mãe gritar. Pode ser um pedido de ajuda, quem sabe um berro de triunfo ou dor. Então sinto alguma coisa no topo da cabeça, minha coroa — um centímetro de dilatação! Não há volta.
Trudy se arrastou para a cama. Claude está em algum lugar perto da porta. Ela está arfando, excitada e muito assustada.
“Começou. Como é rápido! Chame uma ambulância.”
Ele não diz nada por um momento, depois simplesmente pergunta: “Onde está meu passaporte?”.
A derrota é minha, eu o subestimei. O objetivo de chegar mais cedo era para destruir Claude. Eu sabia que ele era um problema. Mas pensei que amava minha mãe e que ficaria com ela. Estou começando a entender a força mental de Trudy. Enquanto ele remexe a bolsa dela e se ouve o tilintar alegre das moedas contra o estojo de maquiagem, ela diz: “Escondi. Lá embaixo. Justamente caso isso acontecesse”.
Ele reflete. Já comprou e vendeu propriedades, possuiu um arranha-céu em Cardiff, sabe como fechar um negócio. “Me diga onde está que eu chamo uma ambulância para você. E aí vou embora.”
A voz dela é cautelosa. Observando de perto seu próprio estado, esperando, desejando e temendo a próxima onda. “Não. Se eu cair, você cai também.”
“Ótimo. Sem ambulância.”
“Eu mesma vou chamar. Assim que...”
Assim que tenha passado a segunda contração, mais forte que a primeira. De novo seu grito involuntário, o corpo todo se contraindo enquanto Claude atravessa o quarto para se aproximar da cama e desconectar da parede o telefone que estava na mesinha de cabeceira. Ao mesmo tempo, sou comprimido violentamente e erguido uns três ou quatro centímetros, sugado para baixo e para trás de onde estava hibernando. Uma cinta de ferro espreme mais e mais minha cabeça. Nossos três destinos esmagados por uma grande boca.
Assim que a onda reflui, Claude, como um guarda de fronteira, diz, impassível: “Passaporte?”.
Ela sacode a cabeça, espera até retomar o fôlego. Os dois mantêm uma espécie de equilíbrio.
Ela se recupera e diz, sem emoção na voz: “Então você vai ter que fazer o papel da parteira”.
“O filho não é meu.”
“O filho nunca é da parteira.”
Ela está apavorada, mas pode aterrorizá-lo com instruções.
“Quando ele sair, vai vir com o rosto para baixo. Você pega o bebê com as duas mãos, bem delicadamente, apoiando a cabeça dele, e põe em cima de mim. Ainda com o rosto para baixo, entre os meus seios. Perto de onde bate o coração. Não se preocupe com o cordão. Vai parar de pulsar sozinho, e o bebê começa a respirar. Ponha umas duas toalhas em cima dele para mantê-lo aquecido. E aí esperamos.”
“Esperamos? Meus Deus! Esperamos o quê?”
“Que a placenta saia.”
Não sei se ele se encolheu ou teve uma ânsia de vômito. Podia ainda estar imaginando que terminaria com aquilo e pegaria um trem mais tarde.
Ouço com atenção, querendo saber o que fazer. Me enfiar embaixo de uma toalha. Respirar. Não pronunciar uma única palavra. Mas não basta ser um bebê. Com certeza rosa ou azul!
“Por isso, vá buscar uma porção de toalhas. Vai ser uma sujeirada. Lave as mãos bem lavadas, com a escovinha de unhas e muito sabonete.”
Tão longe de onde dava pé para ele, tão longe da costa acolhedora, um homem sem seus documentos deveria estar em plena fuga. Ele dá meia-volta para fazer o que lhe foi ordenado.
E assim seguem as coisas, onda atrás de onda, gritos e gemidos, súplicas para que a agonia tenha fim. Progresso impiedoso, ejeção em curso. O cordão se desenrola atrás de mim à medida que avanço lentamente. Para a frente e para fora. Forças cruéis da natureza pretendem me achatar. Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos.
Um momento deslizante de urgência pegajosa, com sons ásperos, e aqui estou eu, trazido nu ao reino. Como o corajoso Cortés (lembro de um poema que meu pai recitou), estou pasmo. Olhando para baixo, maravilhado, para o que presumo ser a superfície felpuda de uma toalha de banho azul. Azul. Eu sempre soube, ao menos verbalmente, sempre fui capaz de deduzir o que era o azul — mar, céu, lápis-lazúli, gencianas — meras abstrações. Agora o tenho por fim, o possuo e ele me possui. Mais grandioso do que eu ousava crer. Isto é só o começo, na extremidade índigo do espectro.
Meu fiel cordão, que me mantinha vivo e não conseguiu me matar, de repente morre como planejado. Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom. Os sons são límpidos, brilhantes graças ao realce dos agudos. A resplandecente toalha, irradiando sua cor, evoca a mesquita de Goharshad no Irã que fez meu pai chorar nas primeiras horas de uma manhã. Minha mãe se mexe e faz com que minha cabeça mude de posição. Vejo Claude de relance. Menor do que eu imaginava, com ombros estreitos e cara de raposa. Sem a menor dúvida, com uma expressão de repugnância. A luz do sol do início da noite de verão atravessa as folhas de um plátano e projeta no teto desenhos tremulantes. Ah, a alegria de esticar as pernas, de verificar no despertador sobre a mesinha de cabeceira que eles jamais pegarão aquele trem. Mas não tenho muito tempo para saborear esse momento. Minha maleável caixa torácica é apertada pelas mãos enojadas de um assassino e sou posto na barriga hospitaleira, branca como a neve, de outra assassina.
As batidas de seu coração soam distantes, abafadas, mas são tão familiares quanto um velho estribilho que não ouvimos há décadas. O ritmo da música é um andante, passos delicados que me conduzem ao verdadeiro portão aberto. Não posso negar o medo que sinto. Mas estou exausto, um marinheiro náufrago que chegou a uma praia bem-afortunada. Estou caindo, mesmo enquanto o mar lambe meus tornozelos.
Trudy e eu devemos ter cochilado. Não sei quantos minutos se passaram até ouvirmos a campainha. Como ela soa claro. Claude ainda está aqui, ainda esperando obter seu passaporte. Ele deve ter descido para caçar o documento. Agora caminha até o interfone. Olha de relance a tela e dá meia-volta. Não pode haver surpresas.
“São quatro”, ele diz, mais para si mesmo.
Contemplamos esse fato. Acabou. Não é um bom final. Nunca seria.
Minha mãe me muda de lugar para que possamos trocar um longo olhar. O momento pelo qual esperei. Meu pai tinha razão, é um rosto adorável. O cabelo mais escuro do que eu pensava, os olhos de um verde mais pálido, as bochechas ainda coradas por causa do esforço recente, o nariz de fato uma coisinha bem pequena. Acho que vejo o mundo inteiro nesse rosto. Belo. Amoroso. Assassino. Ouço Claude atravessar o quarto com passos resignados para descer até a porta. Nenhum clichê. Mesmo nesse intervalo de descanso, durante o longo e ávido olhar no fundo dos olhos de minha mãe, estou pensando no táxi que espera lá fora. Um desperdício. Hora de mandá-lo embora. E estou pensando na nossa cela — espero que não seja pequena demais — e, mais além de sua pesada porta, nos degraus gastos que sobem: primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos.
18.
No começo da tarde, o telefone toca e o futuro se apresenta. Inspetora-chefe Clare Allison, designada para cuidar do caso. A voz soa amistosa, nenhum indício de acusação. Isso pode ser um mau sinal.
Estamos de novo na cozinha, Claude segura o fone. O primeiro café do dia na outra mão. Trudy se posta perto dele e nós dois ouvimos os dois interlocutores. Caso? A palavra contém uma ameaça. Inspetora-chefe? Também não ajuda muito.
Avalio a ansiedade de meu tio por seu zelo em se mostrar solícito. “Ah, sim. Sim! É claro. Por favor, faça isso.”
A inspetora-chefe Allison pretende nos visitar. O normal seria os dois irem à delegacia para uma conversa. Ou prestar depoimento, se apropriado. No entanto, por causa da gravidez avançada de Trudy, da dor da família, a inspetora-chefe e um sargento virão daqui a uma hora. Ela gostaria de dar uma olhada no local onde houve o último contato com o falecido.
Esta última informação, inocente e razoável a meus ouvidos, provoca em Claude um frenesi de boas-vindas. “Venha, por favor. Maravilhoso. Sem dúvida. Será um prazer conhecê-la. Contando os minutos. A senhora...”
Ela desliga. Ele se volta para nós, provavelmente cor de cinza, e diz numa voz desapontada: “Ah”.
Trudy não resiste a imitá-lo: “Tudo... ótimo, não é?”.
“Que caso é esse? Não se trata de uma questão criminal.” Ele apela a uma audiência imaginária, a um conselho de sábios. A um júri.
“Odeio isso”, minha mãe murmura, mais para si mesma. Ou para mim, eu gostaria de acreditar.
“Deve ser para o juiz de instrução.” Claude se afasta de nós, ofendido, dá uma volta pela cozinha e retorna, indignado. Agora sua queixa é dirigida a Trudy. “Não se trata de um caso de polícia.”
“Ah, é mesmo?”, ela diz. “Melhor então telefonar para a inspetora e explicar isso a ela.”
“Aquela poeta. Eu sabia que não podíamos confiar nela.”
Entendemos que, como Elodia é assunto de minha mãe, de algum modo isso constitui uma acusação.
“Você gostou dela.”
“Você disse que ela ia ser útil.”
“Você gostou dela.”
Mas a reiteração deliberadamente impassível não o espicaça.
“Quem não gostaria? E quem se importa com isso?”
“Eu me importo.”
Pergunto-me mais uma vez o que ganho se eles brigarem. Isso poderia arruiná-los. Então eu ficaria com Trudy. Já a escutei dizer que, na prisão, mães que estão amamentando levam uma vida melhor. Mas vou perder meu direito de nascer, o sonho de todos os seres humanos, minha liberdade. Enquanto juntos, como uma equipe, eles podem escapar raspando. E depois me darem para alguém. Sem mãe, mas livre. Portanto, o que é melhor? Já pensei nisso, voltando sempre ao mesmo bendito lugar, à única decisão moralmente correta. Vou arriscar os confortos materiais e me aventurar no mundo. Já estive confinado por tempo demais. Voto pela liberdade. Os assassinos precisam escapar. Então, antes que a discussão sobre Elodia vá longe demais, este é um bom momento para dar outro pontapé em minha mãe, distraí-la da briga com o interessante fato da minha existência. Não um nem dois, mas o número mágico de todas as boas histórias antigas. Três vezes, como Pedro negando Jesus.
“Ai, ai, ai!” Ela quase canta isso. Claude puxa uma cadeira para ela e traz um copo de água.
“Você está suando.”
“Bom, estou com calor.”
Ele testa as janelas. Não são movidas há anos. Procura gelo, mas os recipientes estão vazios depois das três rodadas recentes de gim e tônica. Por isso ele se senta diante dela e oferece sua refrescante solidariedade.
“Vai dar tudo certo.”
“Não, não vai.”
O silêncio dele concorda. Eu estava pensando num quarto chute, mas o estado de espírito de Trudy é perigoso. Ela pode partir para o ataque e provocar uma reação temerária.
Depois de uma pausa, em tom apaziguador, ele diz: “Devíamos repassar mais uma vez”.
“Que tal um advogado?”
“Um pouquinho tarde agora.”
“Diga a eles que não vamos falar sem a presença de um advogado.”
“Não vai cair bem, quando eles só estão vindo bater um papo.”
“Odeio isso.”
“Devíamos repassar mais uma vez.”
Mas não repassam. Estupefatos, contemplam a abordagem da inspetora-chefe Allison. Muito em breve. Dentro de uma hora pode significar em um minuto. Sabendo de tudo, de quase tudo, sou parte do crime, sem dúvida a salvo de um interrogatório, porém amedrontado. E curioso, impaciente para testemunhar as habilidades da inspetora-chefe. Alguém de mente aberta seria capaz de desmascarar esses dois em minutos. Trudy traída pelos nervos, Claude pela burrice.
Estou tentando imaginar onde estão as canecas de café da manhã usadas durante a visita de meu pai. Transferidas, penso agora, para a pia, onde esperam sem ter sido lavadas. DNA numa caneca provará que minha mãe e meu tio dizem a verdade. Os restos dos sanduíches dinamarqueses devem estar por perto.
“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”
“Na cozinha.”
“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”
“Dinheiro.”
“Não. Botar você para fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”
“Anos.”
“Meses. Quanto emprestei para ele?”
“Mil.”
“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”
“Estou grávida. Afeta a memória.”
“Você mesma disse ontem. Tudo como foi, mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga.”
“Mais a luva. Menos que ele estava voltando para cá.”
“Meu Deus, sim. Outra vez. Qual a causa da depressão?”
“Nós. Dívidas. Trabalho. O bebê.”
“Certo.”
Repassam mais uma vez. Na terceira, soa melhor. Que cumplicidade mais doentia, eu desejar que eles tenham êxito!
“Então repita.”
“Tal como aconteceu. Menos a vitamina, mais a briga e a luva, menos a depressão, mais que ele estava voltando para cá.”
“Não. Porra! Trudy. Exatamente como foi. Mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga, mais a luva, menos a volta para cá.”
A campainha toca e eles se imobilizam.
“Diga a eles que não estamos prontos.”
Para minha mãe, essa era a ideia de uma piada. Ou prova de seu terror.
Provavelmente resmungando obscenidades, Claude caminha até o videofone, muda de ideia e segue para a escada em direção à porta da frente.
Trudy e eu damos uma volta nervosa pela cozinha, arrastando os pés. Ela também resmunga enquanto trabalha na história. Isso é proveitoso porque cada esforço sucessivo da memória a afasta mais dos fatos reais. Ela está memorizando suas lembranças. Os erros de transcrição serão a seu favor. Constituirão de início um colchão útil, transformando-se depois em verdade. Também poderia dizer a si mesma: ela não comprou o glicol, não foi à Judd Street, não preparou a bebida, não pôs as coisas no carro, não jogou o liquidificador no lixo. Ela limpou a cozinha — nada de ilegal nisso. Convencida, estará libertada da astúcia consciente e pode ter uma chance. A mentira eficaz, assim como uma tacada de mestre no golfe, está livre da autoconsciência. Presto atenção nos comentários esportivos.
Atento aos passos que descem a escada, eu os diferencio. Os da inspetora-chefe Allison são leves, até mesmo como os de um passarinho, apesar de seu posto elevado. Apertos de mão são trocados. Pelo rígido “Como vai a senhora?” do sargento, reconheço o policial mais velho que esteve aqui ontem. O que terá impedido sua promoção? Classe, educação, Q.I., escândalo — o último, espero, pelo qual ele pode ser culpado, não precisando da minha compaixão.
A ágil inspetora-chefe senta-se à mesa da cozinha e convida todos a fazerem o mesmo, como se a casa fosse dela. Acho que capto minha mãe pensando que seria mais fácil enganar um homem. Allison abre uma pasta e fica apertando repetidamente o botão da mola da caneta enquanto fala. Nos diz que antes deseja expressar — faz uma pausa de grande efeito para olhar, não tenho dúvida, no fundo dos olhos de Trudy e de Claude — seus profundos sentimentos pela perda de um marido querido, de um irmão querido, de um amigo querido. Nada de um pai querido. Estou lutando contra o sentimento gélido e bem conhecido de exclusão. Mas a voz é cálida, maior que seu corpo, enfrentando sem tensões os ossos do ofício. A ligeira pronúncia típica dos habitantes mais pobres do leste de Londres corresponde aos padrões urbanos consagrados, e não será facilmente desafiada. Não pelas vogais forçadas de minha mãe, aprendidas em colégios caros. Esse velho truque já não funcionaria. Os tempos são outros. Um dia a maior parte dos estadistas britânicos falará como a inspetora-chefe. Me pergunto se ela tem uma arma. Desnecessário. Como a rainha, que não carrega dinheiro. Atirar nas pessoas é coisa de sargento para baixo.
Allison explica que se trata de uma conversa informal para ajudá-la a ter uma compreensão mais ampla dos trágicos acontecimentos. Trudy e Claude não têm nenhuma obrigação de responder às perguntas. Mas ela está errada. Eles se sentem obrigados. A recusa os faria dar a impressão de serem suspeitos. No entanto, se a inspetora-chefe estiver uma jogada à frente, pode pensar que a aceitação é ainda mais suspeita. Os que nada têm a esconder insistiriam num advogado como precaução contra os erros policiais ou uma intromissão ilegal.
Ao nos acomodarmos em torno da mesa, reparo na ausência de indagações corteses sobre mim, coisa de que me ressinto. Espera para quando? Menino ou menina?
Em vez disso, a inspetora-chefe não perde tempo. “Vocês podem me mostrar a casa depois que terminarmos a conversa.”
Mais uma afirmação que um pedido. Claude está ansioso, ansioso demais, para obedecer. “Ah, sim. Sim!”
Uma ordem de busca seria a alternativa. Mas não há nada de interessante para a polícia no andar de cima além da imundície.
A inspetora-chefe diz para Trudy: “Seu marido veio aqui ontem por volta das dez horas da manhã?”.
“Isso mesmo.” Seu tom é impassível, um exemplo para Claude.
“E houve alguma tensão.”
“Naturalmente.”
“Por que naturalmente?”
“Estou morando com o irmão dele na casa que John achava que era sua.”
“De quem é a casa?”
“Do casal.”
“O casamento tinha acabado?”
“Sim.”
“Se importa se eu perguntar? Ele achava que tinha acabado?”
Trudy hesita. Pode haver uma resposta certa e uma errada.
“Ele me queria de volta, mas também queria manter suas amigas.”
“Conhece algum nome?”
“Não.”
“Mas ele lhe falou sobre elas?”
“Não.”
“Mas de alguma maneira a senhora sabia.”
“Claro que eu sabia.”
Trudy se permite algum desdém. Como se para dizer: “Sou a mulher de verdade aqui”. Mas ignorou as instruções de Claude. Devia dizer a verdade, acrescentando e subtraindo apenas o que tinha sido combinado. Ouço meu tio se mexer na cadeira.
Sem fazer nenhuma pausa, Allison muda de assunto. “Vocês tomaram café.”
“Sim.”
“Os três? Em volta desta mesa?”
“Os três.” Claude diz isso, talvez preocupado que seu silêncio esteja passando uma má impressão.
“Mais alguma coisa?”
“O quê?”
“Com o café. Vocês lhe ofereceram alguma coisa mais?”
“Não.” Minha mãe soa cautelosa.
“E o que havia no café?”
“Como assim?”
“Leite? Açúcar?”
“Ele sempre tomava sem leite.” O ritmo do pulso dela acelerou.
Mas o comportamento de Clare Allison é impenetravelmente neutro. Ela se volta para Claude. “Então o senhor lhe emprestou algum dinheiro.”
“Sim.”
“Quanto?”
“Cinco mil.” Claude e Trudy respondem num coro mal sincronizado.
“Um cheque?”
“Na verdade em dinheiro vivo. Foi como ele queria.”
“O senhor tem ido àquela loja de vitaminas na Judd Street?”
A resposta de Claude é tão rápida quanto a pergunta. “Uma ou duas vezes. Foi John quem nos falou sobre ela.”
“Imagino que o senhor não tenha estado lá ontem.”
“Não.”
“Nunca pediu emprestado o chapéu preto de aba larga dele?”
“Nunca. Não faz meu estilo.”
Essa pode ser a resposta errada, mas não há tempo para raciocinar. As perguntas adquiriram um novo peso. O coração de Trudy está batendo mais rápido. Eu não confiaria nela para falar. Mas ela fala, e com voz estrangulada.
“Presente meu de aniversário. Ele amava aquele chapéu.”
A inspetora-chefe já está passando para algo diferente, mas volta atrás. “É tudo que se vê na câmera de segurança. Mandamos o chapéu para um teste de DNA.”
“Nem lhes oferecemos chá, café”, diz Trudy com voz alterada.
A inspetora-chefe deve ter recusado com um balançar de cabeça por ela e pelo sargento, ainda em silêncio. “Agora é quase tudo assim”, ela diz num tom nostálgico, “ciência e telas de computadores. Mas onde estávamos? Ah, sim. Houve alguma tensão. Mas vejo em minhas anotações que ocorreu uma briga.”
Claude deve estar fazendo os mesmos raciocínios apressados que eu. Seu cabelo será encontrado no chapéu. A resposta correta era sim, tinha pedido emprestado algum tempo atrás.
“Sim”, diz Trudy. “Uma de muitas.”
“Se importa de me dizer...”
“Ele queria que eu saísse da casa. Eu disse que iria quando estivesse pronta.”
“Quando ele foi embora, qual era seu estado de espírito?”
“Bem ruim. Estava péssimo. Confuso. Na verdade não queria que eu me mudasse daqui. Me queria de volta. Tentou que eu ficasse com ciúme, fingindo que Elodia era sua amante. Ela nos esclareceu tudo. Os dois não tinham um relacionamento.”
Detalhes demais. Ela está tentando retomar o controle. Mas falando muito rápido. Precisa dar uma respirada.
Clare Allison fica em silêncio enquanto aguardamos para saber qual a próxima direção que tomará. Mas ela continua nesse assunto, declarando da forma mais delicada possível: “Não é a informação que tenho”.
Um instante de torpor, como se o próprio som houvesse sido assassinado. O espaço em torno de mim se contrai porque Trudy parece ter se esvaziado como um balão. A coluna se dobra como a de uma velha. Sinto um pequeno orgulho de mim. Sempre tive minhas suspeitas. Com que avidez eles tinham acreditado em Elodia. Agora eles sabem: “Nem o copo-de-leite se demora”. Mas também preciso ter cautela. A inspetora-chefe pode ter razões para mentir. Está apertando o botão da caneta esferográfica, pronta para seguir em frente.
Minha mãe diz baixinho: “Bem, suponho que eu fui a mais enganada”.
“Sinto muito, sra. Cairncross. Mas minhas fontes são boas. Digamos apenas que se trata de uma jovem complicada.”
Eu poderia explorar a teoria de que não é mau negócio para Trudy ser a pessoa injuriada, obter corroboração para a história do marido infiel. Mas estou pasmo; nós dois estamos pasmos. Meu pai, aquela partícula mal compreendida, girando, se afasta ainda mais de mim no momento em que a inspetora-chefe faz outra pergunta a minha mãe. Ela também responde baixinho, com o tremor adicional de uma garotinha punida.
“Alguma violência?”
“Não.”
“Ameaças?”
“Não.”
“Nenhuma de sua parte.”
“Não.”
“E sobre a depressão dele? O que pode me dizer?”
Isso é dito gentilmente, e deve ser uma armadilha. Mas Trudy não faz uma pausa. Angustiada demais para inventar novas mentiras, persuadida demais de sua verdade, repete tudo que disse antes, na mesma linguagem inverossímil. Constante dor mental... Vociferava contra aqueles que amava... arrancava os poemas de sua alma. Vem-me a imagem vívida de uma parada de soldados exaustos, as plumas dos chapéus destruídas. A recordação em sépia de um podcast, as guerras napoleônicas em muitos episódios. Na época em que minha mãe e eu estávamos tranquilos. Ah, se Bonaparte tivesse se mantido dentro de suas fronteiras e feito boas leis para a França!
Claude entra na conversa: “Ele era seu pior inimigo”.
A acústica diferente me diz que a inspetora-chefe se voltou a fim de olhar diretamente para ele. “Algum outro inimigo, além dele próprio?”
O tom é despretensioso. Na melhor das hipóteses, uma pergunta pouco relevante; na pior das hipóteses, prenhe de intenções sinistras.
“Eu não saberia dizer. Nunca fomos muito próximos.”
“Me conte”, ela diz, com a voz mais calorosa, “sobre a infância dos dois. Isto é, se o senhor quiser.”
Ele quer. “Eu era três anos mais novo. Ele era bom em tudo. Esportes, estudos, garotas. Me achava um boboca insignificante. Quando cresci, fiz a única coisa que ele não conseguia fazer. Ganhar dinheiro.”
“Propriedades.”
“Esse tipo de coisa.”
A inspetora-chefe se volta de novo para Trudy. “Esta casa está à venda?”
“Claro que não.”
“Ouvi dizer que estava.”
Trudy não reage. Sua primeira jogada certa em muitos minutos.
Será que a inspetora-chefe está de uniforme? Deve estar. Seu quepe estará em cima da mesa, junto a seu cotovelo, como um grande bico. Não vejo nela a simpatia de um mamífero, mas rosto e lábios finos, roupas abotoadas até em cima. Sem dúvida sua cabeça, como a de um pombo, balança para a frente e para trás quando ela anda. O sargento a vê como uma detalhista. Fadada a galgar postos mais altos em que ele não a verá mais. Ela vai voar. Ou concluiu que John Cairncross se suicidou, ou tem razões para acreditar que uma gravidez no nono mês é uma boa maneira de ocultar um crime. Tudo que a inspetora-chefe diz, a observação mais banal, se presta a interpretações. O único poder que temos consiste em projetar. Tal como Claude, ela pode ser esperta ou burra, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Simplesmente não sabemos. Nossa ignorância é o que enche sua mão com as melhores cartas do baralho. Meu palpite é que ela tem poucas suspeitas, que não sabe de nada. Que seus superiores a estão observando. Que precisa ser delicada porque esta conversa é irregular, podendo comprometer o processo legal. Que ela vai preferir o apropriado ao verdadeiro. Que sua carreira é um ovo que ela botou, ela vai se sentar sobre ele, chocá-lo e esperar.
Mas já me enganei antes.
19.
Qual o próximo passo? Clare Allison quer dar uma olhada na casa. Péssima ideia. Mas recusar agora, quando, pelo que sei, as coisas estão indo mal, tornaria tudo pior. O sargento sobe na frente a escada de madeira, seguido por Claude, pela inspetora-chefe, depois por minha mãe e eu. No térreo, a inspetora-chefe diz que, se concordarmos, ela gostaria de ir até o último andar e descer “trabalhando”. Trudy não se interessa em subir mais. Os outros continuam, enquanto nós dois vamos nos sentar na sala — e pensar.
Envio meus pensamentos velozes adiante deles, primeiro à biblioteca. Pó de gesso, cheiro de morte, mas relativamente arrumada. No andar superior, quarto e banheiro, caos de uma espécie íntima, a própria cama um emaranhado de lascívia e sono interrompido, o chão coalhado de roupas largadas por Trudy, o banheiro com potes destampados, unguentos e roupa de baixo suja. Me pergunto o que a desordem significa para olhos desconfiados. Não há de ser algo moralmente neutro. O desdém pelas coisas, pela organização, pela limpeza deve pertencer a uma escala onde existe também o desprezo pelas leis, pelos valores, pela própria vida. O que é um criminoso senão um espírito transtornado? No entanto, um quarto excessivamente arrumado também poderia levantar suspeitas. A inspetora-geral, com os olhos aguçados de uma águia, vai olhar o quarto de relance e se afastar. Mas no subconsciente a repugnância deve afetar seu julgamento.
Há cômodos mais acima, porém nunca fui tão longe. Trago meus pensamentos para o térreo e, como uma criança bem-comportada, atento para o estado de minha mãe. Seu ritmo cardíaco se estabilizou. Ela parece quase calma. Talvez fatalista. A bexiga cheia pressiona minha cabeça. Mas ela não está disposta a se mover. Faz seus cálculos, talvez pensando no plano dos dois. Porém deveria se perguntar qual é o seu próprio interesse. Dissociar-se de Claude. Incriminá-lo de algum modo. De nada serve os dois cumprirem uma pena de prisão. Então ela e eu poderíamos ir ficando por aqui. Ela não ia querer me dar a alguém se estivesse sozinha numa casa grande. Nesse caso, prometo que a perdoaria. Ou me encarregaria dela mais tarde.
Mas não há tempo para maquinações. Ouço-os descer de volta. Passam pela porta aberta da sala, a caminho da porta da frente. A inspetora-chefe certamente não pode ir embora sem um respeitoso adeus à viúva. Na verdade, Claude abriu a porta para mostrar a Allison onde seu irmão tinha estacionado o carro, como no início o motor não pegou, como, apesar da briga, eles tinham acenado quando o carro começou a funcionar e deu marcha a ré para alcançar a rua. Uma lição em matéria de contar a verdade.
Logo depois, Claude e os policiais estão diante de nós.
“Trudy — posso chamá-la de Trudy? Que momento terrível, e você está sendo muito prestativa. Muito hospitaleira. Não sei...” A inspetora-chefe se interrompe, sua atenção desviada. “Aquilo é do seu marido?”
Ela está olhando para as caixas de papelão que meu pai trouxe e deixou embaixo da janela semicircular. Minha mãe se põe de pé. Se vai haver algum problema, melhor que use sua altura. E largura.
“Ele estava voltando para cá. Saindo de Shoreditch.”
“Posso ver?”
“Apenas livros. Mas pode, sim.”
O sargento solta um murmúrio ofegante quando se ajoelha para abrir as caixas. Eu diria que a inspetora-chefe está agachada, agora não como um pássaro, mas como uma pata gigantesca. É errado eu não gostar dela. Ela é a lei, e já me considero no tribunal de Hobbes. O Estado precisa deter o monopólio da violência. Mas o jeitão da inspetora-chefe me irrita, o modo como vasculha as coisas de meu pai, seus livros prediletos, enquanto parece falar consigo mesma sabendo que não temos alternativa senão escutá-la.
“Não entendo. Muito, muito triste... bem na pista de acesso...”
Claro que ela está representando, trata-se de um prelúdio. Ela se levanta. Acho que está olhando para Trudy. Talvez para mim.
“Mas o verdadeiro mistério é o seguinte. Nenhuma impressão digital na garrafa de glicol. Nem no copo. Soube disso há pouco pelo pessoal técnico. Nenhum vestígio. Que estranho!”
“Ah!”, diz Claude, mas Trudy o interrompe. Eu deveria alertá-la. Ela não deve se mostrar tão ansiosa. Sua explicação vem depressa demais. “A luva. Problema de pele. Ele tinha tanta vergonha das mãos!”
“Ah, a luva!”, exclama a inspetora-chefe. “Tem razão. Esqueci completamente!” Ela está desdobrando um pedaço de papel. “Essa?”
Minha mãe dá um passo à frente para olhar. Deve ser a reprodução de uma fotografia. “Sim.”
“Não havia outra?”
“Não como essa. Eu costumava dizer que ele não precisava dela. Ninguém realmente se importava.”
“Ele usava o tempo todo?”
“Não. Mas bastante, principalmente quando estava deprimido.”
A inspetora-chefe está de saída, e isso é um alívio. Nós todos a acompanhamos até o vestíbulo.
“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo... Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto — os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”
A porta da frente é aberta, provavelmente pelo sargento. A inspetora-chefe sai. Ao se afastar, sua voz diminui de volume e se mistura ao som do tráfego. “Não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome em latim. Há muito tempo nenhuma mão calçava aquela luva.”
O sargento toca no braço de minha mãe e por fim fala, dizendo gentilmente ao partir: “Voltamos amanhã de manhã. Para esclarecer umas últimas coisas”.
20.
Por fim, a hora chegou. Há decisões a serem tomadas, urgentes, irreversíveis, autocondenatórias. Mas antes Trudy necessita de dois minutos de solidão. Corremos para o porão, para aquilo que antes chamavam de casinha. Lá, enquanto a pressão sobre meu crânio é aplacada e minha mãe continua sentada alguns segundos mais do que seria necessário, suspirando para si própria, meus pensamentos tornam-se claros. Ou tomam um novo rumo. Pensei que os assassinos deveriam escapar para garantir minha liberdade. Essa pode ser uma visão muito estreita, muito egoísta. Há outras considerações. O ódio a meu tio pode exceder o amor por minha mãe. Puni-lo pode ser mais nobre que salvá-la. Mas talvez seja possível conseguir as duas coisas.
Essas preocupações permanecem comigo ao voltarmos à cozinha. Parece que, depois que os policiais foram embora, Claude percebeu que precisava de um uísque. Ao ouvir a bebida sendo servida quando entrarmos, um som sedutor, Trudy descobre que também precisa de um. Dos grandes. Com água da torneira, meio a meio. Em silêncio, meu tio se desincumbe da tarefa. Em silêncio, ficam de pé frente a frente junto à pia. Não é hora de brindar. Cada um contemplando os erros do outro ou até mesmo os seus. Ou decidindo o que fazer. Esta é a emergência que temiam, e para a qual têm um plano. Bebem o que há nos copos e, sem uma palavra, partem para uma segunda dose. Nossas vidas estão prestes a mudar. A inspetora-chefe Allison paira sobre nós, uma deusa imprevisível e sorridente. Não saberemos, até que seja tarde demais, por que não efetuou as prisões naquele momento, por que nos deixou a sós. Dando os últimos retoques no caso, esperando a análise de DNA no chapéu, seguindo em frente? Minha mãe e meu tio devem levar em conta que qualquer escolha feita agora pode ser a que ela espera deles, e ela está a postos. Também é possível que o misterioso plano dos dois não tenha ocorrido a ela, e então os dois estariam um passo adiante. Boa razão para agir com audácia. Em vez disso, nesse momento eles preferem um drinque. Talvez qualquer coisa que façam preste um serviço a Clare Allison, inclusive esse interlúdio com um single malt. Mas não, a única chance deles é optar pela escolha radical — e agora.
Trudy ergue o braço para impedir uma terceira dose. Claude é mais resoluto. Está empenhado na busca rigorosa da clareza mental. Ouvimos enquanto se serve — ele vem bebendo uísque puro em grandes quantidades —, depois quando engole emitindo um som forte, que conhecemos bem. Devem estar se perguntando como evitar uma briga exatamente no momento que precisam trabalhar juntos. De longe chega o som de uma sirene, apenas uma ambulância, mas que espicaça seus medos. A rede do Estado se estende invisível por toda a cidade. Difícil escapar dela. Mas funciona como um ponto de teatro, porque finalmente ocorre uma fala, uma útil afirmação do óbvio.
“Isto é ruim.” A voz de minha mãe é baixa e gutural.
“Onde estão os passaportes?”
“Estão comigo. E o dinheiro?”
“Na minha maleta.”
Mas eles não se movem, e a assimetria da troca de palavras — a resposta evasiva de minha mãe — não provoca meu tio. Ele está bem avançado na terceira dose, quando a primeira de Trudy chega a mim. Nada sensual, mas, sem exagero, cai bem diante da situação, essa sensação de fim sem um começo à vista. Visualizo uma velha estrada militar através de um desfiladeiro gelado nas montanhas, um leve odor de pedra úmida e turfa, o som de aço e passos obedientes no chão de cascalho, o peso da amarga injustiça. Tão distante das vertentes voltadas para o sul, das flores cobertas de pólen nos fartos ramalhetes roxos que emolduravam as colinas longínquas, com seus tons sobrepostos de um índigo cada vez mais pálido. Eu preferia estar lá. Mas admito — o uísque, meu primeiro, liberta minha mente. Uma cruel libertação: o portão aberto conduz à luta e ao medo do que a mente é capaz de criar. Está acontecendo comigo agora. Me perguntam, eu mesmo me pergunto, o que mais desejo agora. Qualquer coisa. O realismo não é um fator limitativo. Corte as cordas, solte a imaginação. Posso responder sem pensar: vou atravessar o portão aberto.
Passos na escada. Trudy e Claude olham para cima, surpresos. Será que a inspetora encontrou um modo de entrar na casa? Um ladrão escolheu a pior das noites? É uma descida lenta, pesada. Eles veem um sapato preto de couro, um cinto, uma camisa manchada de vômito, e depois uma expressão terrível, ao mesmo tempo vazia e determinada. Meu pai está com as roupas com que morreu. Rosto exangue, lábios preto-esverdeados já em putrefação, olhos pequenos e penetrantes. Agora se postou ao pé da escada, mais alto que em minhas recordações. Veio do necrotério para nos encontrar e sabe exatamente o que deseja. Estou tremendo porque minha mãe também está. A imagem não é bruxuleante, ela nada tem de fantasmagórica. Este é meu pai em carne e osso, John Cairncross, como sempre foi. O gemido aterrorizado de minha mãe serve como estímulo, pois ele caminha em nossa direção.
“John”, Claude diz com cautela, num tom de voz ascendente, como se pudesse despertar aquela figura e levá-la de volta à não existência a que pertence. “John, somos nós.”
Isso parece bem entendido. Ele está à nossa frente, exalando um miasma de glicol e carne visitada por vermes amigáveis. É minha mãe quem ele encara fixamente com olhos pequenos, duros e negros, feitos de uma rocha indestrutível. Seus lábios repulsivos se movem, mas não emitem nenhum som. A língua é mais preta que os lábios. Mantendo o olhar nela o tempo todo, ele estende um braço. A mão descarnada se aferra à garganta de meu tio. Minha mãe não consegue nem gritar. Os olhos ilíquidos continuam pregados nela. Isso é para ela, o presente dele. A mão impiedosa aperta ainda mais. Claude cai de joelhos, olhos esbugalhados, as mãos golpeando e puxando inutilmente o braço do irmão. Só um guincho distante, o som patético de um camundongo, nos diz que ele ainda está vivo. Depois não está mais. Meu pai, que nem de relance olhou para ele uma única vez, deixa-o tombar no chão e agora puxa sua mulher para perto de si, a envolve em braços finos e fortes como vergalhões de aço. Traz o rosto dela para junto do dele e lhe dá um beijo longo e intenso com lábios gelados e apodrecidos. Ela é tomada de horror, de repugnância, de vergonha. Será atormentada por esse instante até o dia de sua morte. Indiferente, ele a liberta e caminha de volta para onde veio. Ao subir a escada, já começa a se desvanecer.
Bem, me perguntaram. Eu mesmo me perguntei. E era isso que eu queria. Uma fantasia infantil do Dia das Bruxas. De que outro modo encomendar a vingança de um espírito numa era de convicções seculares? O gótico foi razoavelmente banido, as feiticeiras largaram às pressas os caldeirões, só nos restou o materialismo, tão perturbador para a alma. Uma voz no rádio me disse certa vez que, quando compreendermos perfeitamente o que é a matéria, vamos nos sentir melhor. Duvido. Nunca terei o que quero.
Volto de meus devaneios e vejo que estamos no quarto. Não me lembro de termos subido. O som oco da porta do armário, o tilintar dos cabides de casacos, uma mala posta na cama, depois outra, o estalido das fechaduras sendo abertas. Eles deveriam ter feito as malas com antecedência. A inspetora poderia vir até mesmo esta noite. É isso que eles chamam de plano? Ouço imprecações e resmungos.
“Onde é que está? Estava aqui comigo. Na minha mão!”
Cruzam o quarto de um lado ao outro, abrem gavetas, entram e saem do banheiro. Trudy deixa cair um copo, que se estilhaça no chão. Ela nem liga. Por algum motivo, o rádio está ligado. Claude senta-se com seu notebook e murmura: “Trem às nove. O táxi está a caminho”.
“Eu preferia Paris a Bruxelas. Melhores conexões para seguir viagem”, Trudy resmunga para si mesma ainda no banheiro. “Dólares... euros.”
Tudo que eles dizem, mesmo os ruídos que fazem, têm um ar de despedida, como um triste acorde final, um adeus cantado. Este é o fim, não voltaremos. A casa, a casa de meu avô em que eu deveria crescer, está prestes a se apagar. Não me lembrarei dela. Eu gostaria de solicitar uma lista de países sem acordo de extradição. Na maioria são desconfortáveis, desorganizados, quentes. Ouvi dizer que Beijing é um lugar aprazível para fugitivos. Uma próspera aldeia de vilões que falam inglês enterrada na vastidão populosa da cidade cosmopolita. Um bom local para terminar.
“Soníferos, analgésicos”, Claude diz em voz alta.
Sua voz, seu tom me instigam. Hora de decidir. Ele está fechando as malas, prendendo as tiras de couro. Foi rápido. Então já deviam ter começado a fazê-las. São daquelas antigas, de duas rodinhas e não quatro. Claude as levanta da cama e põe no chão.
Trudy pergunta: “Qual?”.
Acho que está mostrando dois lenços de pescoço. Claude resmunga sua escolha. Isso não passa de um simulacro de normalidade. Quanto tomarem o trem, quando atravessarem a fronteira, a culpa dos dois vai se revelar. Só dispõem de uma hora e devem se apressar. Trudy diz que há um casaco que que ela quer e que não está conseguindo achar. Claude insiste que ela não vai precisar dele.
“É levinho”, ela diz. “O branco.”
“Você vai se destacar na multidão. Nas câmeras de segurança.”
Mas ela acaba encontrando-o justamente quando o Big Ben bate oito horas e o noticiário começa. Eles não param para escutar. Ainda há algumas últimas coisas para pegar. Na Nigéria, crianças queimadas vivas diante dos pais pelos guardiões das chamas. Na Coreia do Norte, um foguete é lançado. Ao redor do mundo, a elevação do nível do mar supera as previsões. Mas nenhuma dessas é a principal. Tal privilégio é dado a uma nova catástrofe. Uma combinação — pobreza e guerra, com mudança climática na reserva — que vem expulsando milhões de pessoas de seus lares, um antigo épico sob novo formato, vastos movimentos humanos como rios ingurgitados na primavera, Danúbios, Renos e Ródanos de seres irados ou desolados, ou esperançosos, amontoados nas fronteiras contra as cercas de arame cortante, afogando-se aos milhares ao tentarem compartilhar as riquezas do Ocidente. Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.
E, como sempre, há problemas mais perto de casa. Enquanto as emissoras de rádio e televisão prosseguem com suas cantilenas, as pessoas vão tocando seus negócios. Um casal acabou de se aprontar para uma viagem. As malas estão fechadas, mas há uma fotografia de sua mãe que a jovem mulher deseja levar. A pesada moldura esculpida é grande demais para ser posta na bagagem. Sem a ferramenta certa, a fotografia não pode ser removida, e a ferramenta, um tipo especial de chave, está no porão, no fundo de uma gaveta. O táxi espera lá fora. O trem parte dentro de cinquenta minutos, a estação fica um pouco longe, pode haver filas nos controles de segurança e de passaportes. O homem leva uma das malas para o patamar da escada e volta um pouco ofegante. Deveria ter usado as rodinhas.
“Agora temos mesmo que ir de qualquer maneira.”
“Preciso levar essa foto.”
“Leve debaixo do braço.”
Mas, além de ter de puxar a mala, ela carrega a bolsa, o casaco branco e eu.
Com um gemido, Claude pega a segunda mala a fim de levá-la para fora. Com esse esforço inútil quer mostrar o quanto é urgente eles partirem.
“Você não vai demorar nem um minuto. Está no canto da frente da gaveta do lado esquerdo.”
Ele volta. “Trudy. Estamos indo. Agora.”
A troca de palavras passou de lacônica a amarga.
“Leva para mim.”
“Nem pensar.”
“Claude. É minha mãe.”
“Estou pouco ligando. Estamos indo.”
Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais. Hora de entrar em ação. Acabar de uma vez por todas. Hora de começar. Não é fácil libertar meu braço direito, apertado contra o peito, ou movimentar o pulso. Mas agora isso foi feito. Um dedo indicador é a minha ferramenta especial para remover minha mãe da moldura. Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas. Faço a primeira tentativa de incisão. Minhas unhas são macias e, embora fino, o tecido é resistente. A evolução sabe das coisas. Tateio para encontrar a ranhura causada pelo meu dedo. Há uma dobra, bem definida, e é lá que tento de novo, até que na quinta investida sinto uma tênue esgarçadura e, na sexta, um minúsculo rompimento. Consigo enfiar a ponta da unha nesse rasgo, o dedo, dois dedos, três, quatro, até que por fim minha mão fechada abre o caminho e atrás dela vem um grande volume de líquido, a catarata do começo da vida. Minha proteção aquosa desapareceu.
Agora nunca saberei como a história da fotografia ou do trem das nove horas teria sido resolvida. Claude está fora do quarto, no alto da escada. Tem uma mala em cada mão, pronto para descer.
Minha mãe o chama com o que parece ser um gemido desapontado. “Ah, Claude.”
“O que agora?”
“A bolsa rompeu!”
“Cuidamos disso depois. No trem.”
Ele deve ter imaginado que se tratava de uma artimanha, da continuidade da discussão, um tipo repulsivo de problema feminino que ele está agitado demais para levar em conta.
Estou mexendo os ombros para me libertar da membrana embrionária, minha primeira experiência em matéria de me despir. Sou desajeitado. Três dimensões me parecem três a mais do que eu desejava. Prevejo que o mundo material será um desafio. O manto descartado continua retorcido em volta dos meus joelhos. Não faz mal. Tenho uma nova tarefa abaixo da cabeça. Não sei como sei o que devo fazer. É um mistério. Há certos conhecimentos com os quais simplesmente já chegamos. No meu caso, há este, e um punhado de escansões poéticas. Afinal, nenhuma lousa em branco. Trago a mesma mão à bochecha e a deslizo para baixo, ao longo da parede muscular do útero, a fim de achar o colo. Ele está bem apertado contra a parte de trás da minha cabeça. É lá, na entrada do mundo, que eu apalpo delicadamente com meus pequenos dedos e de imediato, como se alguma fórmula mágica houvesse sido pronunciada, o grande poder de minha mãe é estimulado, as paredes a meu redor se encrespam, tremem e se fecham sobre mim. É um terremoto, uma comoção gigantesca na caverna dela. Como o aprendiz de feiticeiro, fico horrorizado e depois esmagado pela força desencadeada. Eu deveria ter esperado a minha hora. Só um idiota se meteria com essa força. Ouço à distância minha mãe gritar. Pode ser um pedido de ajuda, quem sabe um berro de triunfo ou dor. Então sinto alguma coisa no topo da cabeça, minha coroa — um centímetro de dilatação! Não há volta.
Trudy se arrastou para a cama. Claude está em algum lugar perto da porta. Ela está arfando, excitada e muito assustada.
“Começou. Como é rápido! Chame uma ambulância.”
Ele não diz nada por um momento, depois simplesmente pergunta: “Onde está meu passaporte?”.
A derrota é minha, eu o subestimei. O objetivo de chegar mais cedo era para destruir Claude. Eu sabia que ele era um problema. Mas pensei que amava minha mãe e que ficaria com ela. Estou começando a entender a força mental de Trudy. Enquanto ele remexe a bolsa dela e se ouve o tilintar alegre das moedas contra o estojo de maquiagem, ela diz: “Escondi. Lá embaixo. Justamente caso isso acontecesse”.
Ele reflete. Já comprou e vendeu propriedades, possuiu um arranha-céu em Cardiff, sabe como fechar um negócio. “Me diga onde está que eu chamo uma ambulância para você. E aí vou embora.”
A voz dela é cautelosa. Observando de perto seu próprio estado, esperando, desejando e temendo a próxima onda. “Não. Se eu cair, você cai também.”
“Ótimo. Sem ambulância.”
“Eu mesma vou chamar. Assim que...”
Assim que tenha passado a segunda contração, mais forte que a primeira. De novo seu grito involuntário, o corpo todo se contraindo enquanto Claude atravessa o quarto para se aproximar da cama e desconectar da parede o telefone que estava na mesinha de cabeceira. Ao mesmo tempo, sou comprimido violentamente e erguido uns três ou quatro centímetros, sugado para baixo e para trás de onde estava hibernando. Uma cinta de ferro espreme mais e mais minha cabeça. Nossos três destinos esmagados por uma grande boca.
Assim que a onda reflui, Claude, como um guarda de fronteira, diz, impassível: “Passaporte?”.
Ela sacode a cabeça, espera até retomar o fôlego. Os dois mantêm uma espécie de equilíbrio.
Ela se recupera e diz, sem emoção na voz: “Então você vai ter que fazer o papel da parteira”.
“O filho não é meu.”
“O filho nunca é da parteira.”
Ela está apavorada, mas pode aterrorizá-lo com instruções.
“Quando ele sair, vai vir com o rosto para baixo. Você pega o bebê com as duas mãos, bem delicadamente, apoiando a cabeça dele, e põe em cima de mim. Ainda com o rosto para baixo, entre os meus seios. Perto de onde bate o coração. Não se preocupe com o cordão. Vai parar de pulsar sozinho, e o bebê começa a respirar. Ponha umas duas toalhas em cima dele para mantê-lo aquecido. E aí esperamos.”
“Esperamos? Meus Deus! Esperamos o quê?”
“Que a placenta saia.”
Não sei se ele se encolheu ou teve uma ânsia de vômito. Podia ainda estar imaginando que terminaria com aquilo e pegaria um trem mais tarde.
Ouço com atenção, querendo saber o que fazer. Me enfiar embaixo de uma toalha. Respirar. Não pronunciar uma única palavra. Mas não basta ser um bebê. Com certeza rosa ou azul!
“Por isso, vá buscar uma porção de toalhas. Vai ser uma sujeirada. Lave as mãos bem lavadas, com a escovinha de unhas e muito sabonete.”
Tão longe de onde dava pé para ele, tão longe da costa acolhedora, um homem sem seus documentos deveria estar em plena fuga. Ele dá meia-volta para fazer o que lhe foi ordenado.
E assim seguem as coisas, onda atrás de onda, gritos e gemidos, súplicas para que a agonia tenha fim. Progresso impiedoso, ejeção em curso. O cordão se desenrola atrás de mim à medida que avanço lentamente. Para a frente e para fora. Forças cruéis da natureza pretendem me achatar. Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos.
Um momento deslizante de urgência pegajosa, com sons ásperos, e aqui estou eu, trazido nu ao reino. Como o corajoso Cortés (lembro de um poema que meu pai recitou), estou pasmo. Olhando para baixo, maravilhado, para o que presumo ser a superfície felpuda de uma toalha de banho azul. Azul. Eu sempre soube, ao menos verbalmente, sempre fui capaz de deduzir o que era o azul — mar, céu, lápis-lazúli, gencianas — meras abstrações. Agora o tenho por fim, o possuo e ele me possui. Mais grandioso do que eu ousava crer. Isto é só o começo, na extremidade índigo do espectro.
Meu fiel cordão, que me mantinha vivo e não conseguiu me matar, de repente morre como planejado. Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom. Os sons são límpidos, brilhantes graças ao realce dos agudos. A resplandecente toalha, irradiando sua cor, evoca a mesquita de Goharshad no Irã que fez meu pai chorar nas primeiras horas de uma manhã. Minha mãe se mexe e faz com que minha cabeça mude de posição. Vejo Claude de relance. Menor do que eu imaginava, com ombros estreitos e cara de raposa. Sem a menor dúvida, com uma expressão de repugnância. A luz do sol do início da noite de verão atravessa as folhas de um plátano e projeta no teto desenhos tremulantes. Ah, a alegria de esticar as pernas, de verificar no despertador sobre a mesinha de cabeceira que eles jamais pegarão aquele trem. Mas não tenho muito tempo para saborear esse momento. Minha maleável caixa torácica é apertada pelas mãos enojadas de um assassino e sou posto na barriga hospitaleira, branca como a neve, de outra assassina.
As batidas de seu coração soam distantes, abafadas, mas são tão familiares quanto um velho estribilho que não ouvimos há décadas. O ritmo da música é um andante, passos delicados que me conduzem ao verdadeiro portão aberto. Não posso negar o medo que sinto. Mas estou exausto, um marinheiro náufrago que chegou a uma praia bem-afortunada. Estou caindo, mesmo enquanto o mar lambe meus tornozelos.
Trudy e eu devemos ter cochilado. Não sei quantos minutos se passaram até ouvirmos a campainha. Como ela soa claro. Claude ainda está aqui, ainda esperando obter seu passaporte. Ele deve ter descido para caçar o documento. Agora caminha até o interfone. Olha de relance a tela e dá meia-volta. Não pode haver surpresas.
“São quatro”, ele diz, mais para si mesmo.
Contemplamos esse fato. Acabou. Não é um bom final. Nunca seria.
Minha mãe me muda de lugar para que possamos trocar um longo olhar. O momento pelo qual esperei. Meu pai tinha razão, é um rosto adorável. O cabelo mais escuro do que eu pensava, os olhos de um verde mais pálido, as bochechas ainda coradas por causa do esforço recente, o nariz de fato uma coisinha bem pequena. Acho que vejo o mundo inteiro nesse rosto. Belo. Amoroso. Assassino. Ouço Claude atravessar o quarto com passos resignados para descer até a porta. Nenhum clichê. Mesmo nesse intervalo de descanso, durante o longo e ávido olhar no fundo dos olhos de minha mãe, estou pensando no táxi que espera lá fora. Um desperdício. Hora de mandá-lo embora. E estou pensando na nossa cela — espero que não seja pequena demais — e, mais além de sua pesada porta, nos degraus gastos que sobem: primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos.
18.
No começo da tarde, o telefone toca e o futuro se apresenta. Inspetora-chefe Clare Allison, designada para cuidar do caso. A voz soa amistosa, nenhum indício de acusação. Isso pode ser um mau sinal.
Estamos de novo na cozinha, Claude segura o fone. O primeiro café do dia na outra mão. Trudy se posta perto dele e nós dois ouvimos os dois interlocutores. Caso? A palavra contém uma ameaça. Inspetora-chefe? Também não ajuda muito.
Avalio a ansiedade de meu tio por seu zelo em se mostrar solícito. “Ah, sim. Sim! É claro. Por favor, faça isso.”
A inspetora-chefe Allison pretende nos visitar. O normal seria os dois irem à delegacia para uma conversa. Ou prestar depoimento, se apropriado. No entanto, por causa da gravidez avançada de Trudy, da dor da família, a inspetora-chefe e um sargento virão daqui a uma hora. Ela gostaria de dar uma olhada no local onde houve o último contato com o falecido.
Esta última informação, inocente e razoável a meus ouvidos, provoca em Claude um frenesi de boas-vindas. “Venha, por favor. Maravilhoso. Sem dúvida. Será um prazer conhecê-la. Contando os minutos. A senhora...”
Ela desliga. Ele se volta para nós, provavelmente cor de cinza, e diz numa voz desapontada: “Ah”.
Trudy não resiste a imitá-lo: “Tudo... ótimo, não é?”.
“Que caso é esse? Não se trata de uma questão criminal.” Ele apela a uma audiência imaginária, a um conselho de sábios. A um júri.
“Odeio isso”, minha mãe murmura, mais para si mesma. Ou para mim, eu gostaria de acreditar.
“Deve ser para o juiz de instrução.” Claude se afasta de nós, ofendido, dá uma volta pela cozinha e retorna, indignado. Agora sua queixa é dirigida a Trudy. “Não se trata de um caso de polícia.”
“Ah, é mesmo?”, ela diz. “Melhor então telefonar para a inspetora e explicar isso a ela.”
“Aquela poeta. Eu sabia que não podíamos confiar nela.”
Entendemos que, como Elodia é assunto de minha mãe, de algum modo isso constitui uma acusação.
“Você gostou dela.”
“Você disse que ela ia ser útil.”
“Você gostou dela.”
Mas a reiteração deliberadamente impassível não o espicaça.
“Quem não gostaria? E quem se importa com isso?”
“Eu me importo.”
Pergunto-me mais uma vez o que ganho se eles brigarem. Isso poderia arruiná-los. Então eu ficaria com Trudy. Já a escutei dizer que, na prisão, mães que estão amamentando levam uma vida melhor. Mas vou perder meu direito de nascer, o sonho de todos os seres humanos, minha liberdade. Enquanto juntos, como uma equipe, eles podem escapar raspando. E depois me darem para alguém. Sem mãe, mas livre. Portanto, o que é melhor? Já pensei nisso, voltando sempre ao mesmo bendito lugar, à única decisão moralmente correta. Vou arriscar os confortos materiais e me aventurar no mundo. Já estive confinado por tempo demais. Voto pela liberdade. Os assassinos precisam escapar. Então, antes que a discussão sobre Elodia vá longe demais, este é um bom momento para dar outro pontapé em minha mãe, distraí-la da briga com o interessante fato da minha existência. Não um nem dois, mas o número mágico de todas as boas histórias antigas. Três vezes, como Pedro negando Jesus.
“Ai, ai, ai!” Ela quase canta isso. Claude puxa uma cadeira para ela e traz um copo de água.
“Você está suando.”
“Bom, estou com calor.”
Ele testa as janelas. Não são movidas há anos. Procura gelo, mas os recipientes estão vazios depois das três rodadas recentes de gim e tônica. Por isso ele se senta diante dela e oferece sua refrescante solidariedade.
“Vai dar tudo certo.”
“Não, não vai.”
O silêncio dele concorda. Eu estava pensando num quarto chute, mas o estado de espírito de Trudy é perigoso. Ela pode partir para o ataque e provocar uma reação temerária.
Depois de uma pausa, em tom apaziguador, ele diz: “Devíamos repassar mais uma vez”.
“Que tal um advogado?”
“Um pouquinho tarde agora.”
“Diga a eles que não vamos falar sem a presença de um advogado.”
“Não vai cair bem, quando eles só estão vindo bater um papo.”
“Odeio isso.”
“Devíamos repassar mais uma vez.”
Mas não repassam. Estupefatos, contemplam a abordagem da inspetora-chefe Allison. Muito em breve. Dentro de uma hora pode significar em um minuto. Sabendo de tudo, de quase tudo, sou parte do crime, sem dúvida a salvo de um interrogatório, porém amedrontado. E curioso, impaciente para testemunhar as habilidades da inspetora-chefe. Alguém de mente aberta seria capaz de desmascarar esses dois em minutos. Trudy traída pelos nervos, Claude pela burrice.
Estou tentando imaginar onde estão as canecas de café da manhã usadas durante a visita de meu pai. Transferidas, penso agora, para a pia, onde esperam sem ter sido lavadas. DNA numa caneca provará que minha mãe e meu tio dizem a verdade. Os restos dos sanduíches dinamarqueses devem estar por perto.
“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”
“Na cozinha.”
“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”
“Dinheiro.”
“Não. Botar você para fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”
“Anos.”
“Meses. Quanto emprestei para ele?”
“Mil.”
“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”
“Estou grávida. Afeta a memória.”
“Você mesma disse ontem. Tudo como foi, mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga.”
“Mais a luva. Menos que ele estava voltando para cá.”
“Meu Deus, sim. Outra vez. Qual a causa da depressão?”
“Nós. Dívidas. Trabalho. O bebê.”
“Certo.”
Repassam mais uma vez. Na terceira, soa melhor. Que cumplicidade mais doentia, eu desejar que eles tenham êxito!
“Então repita.”
“Tal como aconteceu. Menos a vitamina, mais a briga e a luva, menos a depressão, mais que ele estava voltando para cá.”
“Não. Porra! Trudy. Exatamente como foi. Mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga, mais a luva, menos a volta para cá.”
A campainha toca e eles se imobilizam.
“Diga a eles que não estamos prontos.”
Para minha mãe, essa era a ideia de uma piada. Ou prova de seu terror.
Provavelmente resmungando obscenidades, Claude caminha até o videofone, muda de ideia e segue para a escada em direção à porta da frente.
Trudy e eu damos uma volta nervosa pela cozinha, arrastando os pés. Ela também resmunga enquanto trabalha na história. Isso é proveitoso porque cada esforço sucessivo da memória a afasta mais dos fatos reais. Ela está memorizando suas lembranças. Os erros de transcrição serão a seu favor. Constituirão de início um colchão útil, transformando-se depois em verdade. Também poderia dizer a si mesma: ela não comprou o glicol, não foi à Judd Street, não preparou a bebida, não pôs as coisas no carro, não jogou o liquidificador no lixo. Ela limpou a cozinha — nada de ilegal nisso. Convencida, estará libertada da astúcia consciente e pode ter uma chance. A mentira eficaz, assim como uma tacada de mestre no golfe, está livre da autoconsciência. Presto atenção nos comentários esportivos.
Atento aos passos que descem a escada, eu os diferencio. Os da inspetora-chefe Allison são leves, até mesmo como os de um passarinho, apesar de seu posto elevado. Apertos de mão são trocados. Pelo rígido “Como vai a senhora?” do sargento, reconheço o policial mais velho que esteve aqui ontem. O que terá impedido sua promoção? Classe, educação, Q.I., escândalo — o último, espero, pelo qual ele pode ser culpado, não precisando da minha compaixão.
A ágil inspetora-chefe senta-se à mesa da cozinha e convida todos a fazerem o mesmo, como se a casa fosse dela. Acho que capto minha mãe pensando que seria mais fácil enganar um homem. Allison abre uma pasta e fica apertando repetidamente o botão da mola da caneta enquanto fala. Nos diz que antes deseja expressar — faz uma pausa de grande efeito para olhar, não tenho dúvida, no fundo dos olhos de Trudy e de Claude — seus profundos sentimentos pela perda de um marido querido, de um irmão querido, de um amigo querido. Nada de um pai querido. Estou lutando contra o sentimento gélido e bem conhecido de exclusão. Mas a voz é cálida, maior que seu corpo, enfrentando sem tensões os ossos do ofício. A ligeira pronúncia típica dos habitantes mais pobres do leste de Londres corresponde aos padrões urbanos consagrados, e não será facilmente desafiada. Não pelas vogais forçadas de minha mãe, aprendidas em colégios caros. Esse velho truque já não funcionaria. Os tempos são outros. Um dia a maior parte dos estadistas britânicos falará como a inspetora-chefe. Me pergunto se ela tem uma arma. Desnecessário. Como a rainha, que não carrega dinheiro. Atirar nas pessoas é coisa de sargento para baixo.
Allison explica que se trata de uma conversa informal para ajudá-la a ter uma compreensão mais ampla dos trágicos acontecimentos. Trudy e Claude não têm nenhuma obrigação de responder às perguntas. Mas ela está errada. Eles se sentem obrigados. A recusa os faria dar a impressão de serem suspeitos. No entanto, se a inspetora-chefe estiver uma jogada à frente, pode pensar que a aceitação é ainda mais suspeita. Os que nada têm a esconder insistiriam num advogado como precaução contra os erros policiais ou uma intromissão ilegal.
Ao nos acomodarmos em torno da mesa, reparo na ausência de indagações corteses sobre mim, coisa de que me ressinto. Espera para quando? Menino ou menina?
Em vez disso, a inspetora-chefe não perde tempo. “Vocês podem me mostrar a casa depois que terminarmos a conversa.”
Mais uma afirmação que um pedido. Claude está ansioso, ansioso demais, para obedecer. “Ah, sim. Sim!”
Uma ordem de busca seria a alternativa. Mas não há nada de interessante para a polícia no andar de cima além da imundície.
A inspetora-chefe diz para Trudy: “Seu marido veio aqui ontem por volta das dez horas da manhã?”.
“Isso mesmo.” Seu tom é impassível, um exemplo para Claude.
“E houve alguma tensão.”
“Naturalmente.”
“Por que naturalmente?”
“Estou morando com o irmão dele na casa que John achava que era sua.”
“De quem é a casa?”
“Do casal.”
“O casamento tinha acabado?”
“Sim.”
“Se importa se eu perguntar? Ele achava que tinha acabado?”
Trudy hesita. Pode haver uma resposta certa e uma errada.
“Ele me queria de volta, mas também queria manter suas amigas.”
“Conhece algum nome?”
“Não.”
“Mas ele lhe falou sobre elas?”
“Não.”
“Mas de alguma maneira a senhora sabia.”
“Claro que eu sabia.”
Trudy se permite algum desdém. Como se para dizer: “Sou a mulher de verdade aqui”. Mas ignorou as instruções de Claude. Devia dizer a verdade, acrescentando e subtraindo apenas o que tinha sido combinado. Ouço meu tio se mexer na cadeira.
Sem fazer nenhuma pausa, Allison muda de assunto. “Vocês tomaram café.”
“Sim.”
“Os três? Em volta desta mesa?”
“Os três.” Claude diz isso, talvez preocupado que seu silêncio esteja passando uma má impressão.
“Mais alguma coisa?”
“O quê?”
“Com o café. Vocês lhe ofereceram alguma coisa mais?”
“Não.” Minha mãe soa cautelosa.
“E o que havia no café?”
“Como assim?”
“Leite? Açúcar?”
“Ele sempre tomava sem leite.” O ritmo do pulso dela acelerou.
Mas o comportamento de Clare Allison é impenetravelmente neutro. Ela se volta para Claude. “Então o senhor lhe emprestou algum dinheiro.”
“Sim.”
“Quanto?”
“Cinco mil.” Claude e Trudy respondem num coro mal sincronizado.
“Um cheque?”
“Na verdade em dinheiro vivo. Foi como ele queria.”
“O senhor tem ido àquela loja de vitaminas na Judd Street?”
A resposta de Claude é tão rápida quanto a pergunta. “Uma ou duas vezes. Foi John quem nos falou sobre ela.”
“Imagino que o senhor não tenha estado lá ontem.”
“Não.”
“Nunca pediu emprestado o chapéu preto de aba larga dele?”
“Nunca. Não faz meu estilo.”
Essa pode ser a resposta errada, mas não há tempo para raciocinar. As perguntas adquiriram um novo peso. O coração de Trudy está batendo mais rápido. Eu não confiaria nela para falar. Mas ela fala, e com voz estrangulada.
“Presente meu de aniversário. Ele amava aquele chapéu.”
A inspetora-chefe já está passando para algo diferente, mas volta atrás. “É tudo que se vê na câmera de segurança. Mandamos o chapéu para um teste de DNA.”
“Nem lhes oferecemos chá, café”, diz Trudy com voz alterada.
A inspetora-chefe deve ter recusado com um balançar de cabeça por ela e pelo sargento, ainda em silêncio. “Agora é quase tudo assim”, ela diz num tom nostálgico, “ciência e telas de computadores. Mas onde estávamos? Ah, sim. Houve alguma tensão. Mas vejo em minhas anotações que ocorreu uma briga.”
Claude deve estar fazendo os mesmos raciocínios apressados que eu. Seu cabelo será encontrado no chapéu. A resposta correta era sim, tinha pedido emprestado algum tempo atrás.
“Sim”, diz Trudy. “Uma de muitas.”
“Se importa de me dizer...”
“Ele queria que eu saísse da casa. Eu disse que iria quando estivesse pronta.”
“Quando ele foi embora, qual era seu estado de espírito?”
“Bem ruim. Estava péssimo. Confuso. Na verdade não queria que eu me mudasse daqui. Me queria de volta. Tentou que eu ficasse com ciúme, fingindo que Elodia era sua amante. Ela nos esclareceu tudo. Os dois não tinham um relacionamento.”
Detalhes demais. Ela está tentando retomar o controle. Mas falando muito rápido. Precisa dar uma respirada.
Clare Allison fica em silêncio enquanto aguardamos para saber qual a próxima direção que tomará. Mas ela continua nesse assunto, declarando da forma mais delicada possível: “Não é a informação que tenho”.
Um instante de torpor, como se o próprio som houvesse sido assassinado. O espaço em torno de mim se contrai porque Trudy parece ter se esvaziado como um balão. A coluna se dobra como a de uma velha. Sinto um pequeno orgulho de mim. Sempre tive minhas suspeitas. Com que avidez eles tinham acreditado em Elodia. Agora eles sabem: “Nem o copo-de-leite se demora”. Mas também preciso ter cautela. A inspetora-chefe pode ter razões para mentir. Está apertando o botão da caneta esferográfica, pronta para seguir em frente.
Minha mãe diz baixinho: “Bem, suponho que eu fui a mais enganada”.
“Sinto muito, sra. Cairncross. Mas minhas fontes são boas. Digamos apenas que se trata de uma jovem complicada.”
Eu poderia explorar a teoria de que não é mau negócio para Trudy ser a pessoa injuriada, obter corroboração para a história do marido infiel. Mas estou pasmo; nós dois estamos pasmos. Meu pai, aquela partícula mal compreendida, girando, se afasta ainda mais de mim no momento em que a inspetora-chefe faz outra pergunta a minha mãe. Ela também responde baixinho, com o tremor adicional de uma garotinha punida.
“Alguma violência?”
“Não.”
“Ameaças?”
“Não.”
“Nenhuma de sua parte.”
“Não.”
“E sobre a depressão dele? O que pode me dizer?”
Isso é dito gentilmente, e deve ser uma armadilha. Mas Trudy não faz uma pausa. Angustiada demais para inventar novas mentiras, persuadida demais de sua verdade, repete tudo que disse antes, na mesma linguagem inverossímil. Constante dor mental... Vociferava contra aqueles que amava... arrancava os poemas de sua alma. Vem-me a imagem vívida de uma parada de soldados exaustos, as plumas dos chapéus destruídas. A recordação em sépia de um podcast, as guerras napoleônicas em muitos episódios. Na época em que minha mãe e eu estávamos tranquilos. Ah, se Bonaparte tivesse se mantido dentro de suas fronteiras e feito boas leis para a França!
Claude entra na conversa: “Ele era seu pior inimigo”.
A acústica diferente me diz que a inspetora-chefe se voltou a fim de olhar diretamente para ele. “Algum outro inimigo, além dele próprio?”
O tom é despretensioso. Na melhor das hipóteses, uma pergunta pouco relevante; na pior das hipóteses, prenhe de intenções sinistras.
“Eu não saberia dizer. Nunca fomos muito próximos.”
“Me conte”, ela diz, com a voz mais calorosa, “sobre a infância dos dois. Isto é, se o senhor quiser.”
Ele quer. “Eu era três anos mais novo. Ele era bom em tudo. Esportes, estudos, garotas. Me achava um boboca insignificante. Quando cresci, fiz a única coisa que ele não conseguia fazer. Ganhar dinheiro.”
“Propriedades.”
“Esse tipo de coisa.”
A inspetora-chefe se volta de novo para Trudy. “Esta casa está à venda?”
“Claro que não.”
“Ouvi dizer que estava.”
Trudy não reage. Sua primeira jogada certa em muitos minutos.
Será que a inspetora-chefe está de uniforme? Deve estar. Seu quepe estará em cima da mesa, junto a seu cotovelo, como um grande bico. Não vejo nela a simpatia de um mamífero, mas rosto e lábios finos, roupas abotoadas até em cima. Sem dúvida sua cabeça, como a de um pombo, balança para a frente e para trás quando ela anda. O sargento a vê como uma detalhista. Fadada a galgar postos mais altos em que ele não a verá mais. Ela vai voar. Ou concluiu que John Cairncross se suicidou, ou tem razões para acreditar que uma gravidez no nono mês é uma boa maneira de ocultar um crime. Tudo que a inspetora-chefe diz, a observação mais banal, se presta a interpretações. O único poder que temos consiste em projetar. Tal como Claude, ela pode ser esperta ou burra, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Simplesmente não sabemos. Nossa ignorância é o que enche sua mão com as melhores cartas do baralho. Meu palpite é que ela tem poucas suspeitas, que não sabe de nada. Que seus superiores a estão observando. Que precisa ser delicada porque esta conversa é irregular, podendo comprometer o processo legal. Que ela vai preferir o apropriado ao verdadeiro. Que sua carreira é um ovo que ela botou, ela vai se sentar sobre ele, chocá-lo e esperar.
Mas já me enganei antes.
19.
Qual o próximo passo? Clare Allison quer dar uma olhada na casa. Péssima ideia. Mas recusar agora, quando, pelo que sei, as coisas estão indo mal, tornaria tudo pior. O sargento sobe na frente a escada de madeira, seguido por Claude, pela inspetora-chefe, depois por minha mãe e eu. No térreo, a inspetora-chefe diz que, se concordarmos, ela gostaria de ir até o último andar e descer “trabalhando”. Trudy não se interessa em subir mais. Os outros continuam, enquanto nós dois vamos nos sentar na sala — e pensar.
Envio meus pensamentos velozes adiante deles, primeiro à biblioteca. Pó de gesso, cheiro de morte, mas relativamente arrumada. No andar superior, quarto e banheiro, caos de uma espécie íntima, a própria cama um emaranhado de lascívia e sono interrompido, o chão coalhado de roupas largadas por Trudy, o banheiro com potes destampados, unguentos e roupa de baixo suja. Me pergunto o que a desordem significa para olhos desconfiados. Não há de ser algo moralmente neutro. O desdém pelas coisas, pela organização, pela limpeza deve pertencer a uma escala onde existe também o desprezo pelas leis, pelos valores, pela própria vida. O que é um criminoso senão um espírito transtornado? No entanto, um quarto excessivamente arrumado também poderia levantar suspeitas. A inspetora-geral, com os olhos aguçados de uma águia, vai olhar o quarto de relance e se afastar. Mas no subconsciente a repugnância deve afetar seu julgamento.
Há cômodos mais acima, porém nunca fui tão longe. Trago meus pensamentos para o térreo e, como uma criança bem-comportada, atento para o estado de minha mãe. Seu ritmo cardíaco se estabilizou. Ela parece quase calma. Talvez fatalista. A bexiga cheia pressiona minha cabeça. Mas ela não está disposta a se mover. Faz seus cálculos, talvez pensando no plano dos dois. Porém deveria se perguntar qual é o seu próprio interesse. Dissociar-se de Claude. Incriminá-lo de algum modo. De nada serve os dois cumprirem uma pena de prisão. Então ela e eu poderíamos ir ficando por aqui. Ela não ia querer me dar a alguém se estivesse sozinha numa casa grande. Nesse caso, prometo que a perdoaria. Ou me encarregaria dela mais tarde.
Mas não há tempo para maquinações. Ouço-os descer de volta. Passam pela porta aberta da sala, a caminho da porta da frente. A inspetora-chefe certamente não pode ir embora sem um respeitoso adeus à viúva. Na verdade, Claude abriu a porta para mostrar a Allison onde seu irmão tinha estacionado o carro, como no início o motor não pegou, como, apesar da briga, eles tinham acenado quando o carro começou a funcionar e deu marcha a ré para alcançar a rua. Uma lição em matéria de contar a verdade.
Logo depois, Claude e os policiais estão diante de nós.
“Trudy — posso chamá-la de Trudy? Que momento terrível, e você está sendo muito prestativa. Muito hospitaleira. Não sei...” A inspetora-chefe se interrompe, sua atenção desviada. “Aquilo é do seu marido?”
Ela está olhando para as caixas de papelão que meu pai trouxe e deixou embaixo da janela semicircular. Minha mãe se põe de pé. Se vai haver algum problema, melhor que use sua altura. E largura.
“Ele estava voltando para cá. Saindo de Shoreditch.”
“Posso ver?”
“Apenas livros. Mas pode, sim.”
O sargento solta um murmúrio ofegante quando se ajoelha para abrir as caixas. Eu diria que a inspetora-chefe está agachada, agora não como um pássaro, mas como uma pata gigantesca. É errado eu não gostar dela. Ela é a lei, e já me considero no tribunal de Hobbes. O Estado precisa deter o monopólio da violência. Mas o jeitão da inspetora-chefe me irrita, o modo como vasculha as coisas de meu pai, seus livros prediletos, enquanto parece falar consigo mesma sabendo que não temos alternativa senão escutá-la.
“Não entendo. Muito, muito triste... bem na pista de acesso...”
Claro que ela está representando, trata-se de um prelúdio. Ela se levanta. Acho que está olhando para Trudy. Talvez para mim.
“Mas o verdadeiro mistério é o seguinte. Nenhuma impressão digital na garrafa de glicol. Nem no copo. Soube disso há pouco pelo pessoal técnico. Nenhum vestígio. Que estranho!”
“Ah!”, diz Claude, mas Trudy o interrompe. Eu deveria alertá-la. Ela não deve se mostrar tão ansiosa. Sua explicação vem depressa demais. “A luva. Problema de pele. Ele tinha tanta vergonha das mãos!”
“Ah, a luva!”, exclama a inspetora-chefe. “Tem razão. Esqueci completamente!” Ela está desdobrando um pedaço de papel. “Essa?”
Minha mãe dá um passo à frente para olhar. Deve ser a reprodução de uma fotografia. “Sim.”
“Não havia outra?”
“Não como essa. Eu costumava dizer que ele não precisava dela. Ninguém realmente se importava.”
“Ele usava o tempo todo?”
“Não. Mas bastante, principalmente quando estava deprimido.”
A inspetora-chefe está de saída, e isso é um alívio. Nós todos a acompanhamos até o vestíbulo.
“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo... Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto — os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”
A porta da frente é aberta, provavelmente pelo sargento. A inspetora-chefe sai. Ao se afastar, sua voz diminui de volume e se mistura ao som do tráfego. “Não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome em latim. Há muito tempo nenhuma mão calçava aquela luva.”
O sargento toca no braço de minha mãe e por fim fala, dizendo gentilmente ao partir: “Voltamos amanhã de manhã. Para esclarecer umas últimas coisas”.
20.
Por fim, a hora chegou. Há decisões a serem tomadas, urgentes, irreversíveis, autocondenatórias. Mas antes Trudy necessita de dois minutos de solidão. Corremos para o porão, para aquilo que antes chamavam de casinha. Lá, enquanto a pressão sobre meu crânio é aplacada e minha mãe continua sentada alguns segundos mais do que seria necessário, suspirando para si própria, meus pensamentos tornam-se claros. Ou tomam um novo rumo. Pensei que os assassinos deveriam escapar para garantir minha liberdade. Essa pode ser uma visão muito estreita, muito egoísta. Há outras considerações. O ódio a meu tio pode exceder o amor por minha mãe. Puni-lo pode ser mais nobre que salvá-la. Mas talvez seja possível conseguir as duas coisas.
Essas preocupações permanecem comigo ao voltarmos à cozinha. Parece que, depois que os policiais foram embora, Claude percebeu que precisava de um uísque. Ao ouvir a bebida sendo servida quando entrarmos, um som sedutor, Trudy descobre que também precisa de um. Dos grandes. Com água da torneira, meio a meio. Em silêncio, meu tio se desincumbe da tarefa. Em silêncio, ficam de pé frente a frente junto à pia. Não é hora de brindar. Cada um contemplando os erros do outro ou até mesmo os seus. Ou decidindo o que fazer. Esta é a emergência que temiam, e para a qual têm um plano. Bebem o que há nos copos e, sem uma palavra, partem para uma segunda dose. Nossas vidas estão prestes a mudar. A inspetora-chefe Allison paira sobre nós, uma deusa imprevisível e sorridente. Não saberemos, até que seja tarde demais, por que não efetuou as prisões naquele momento, por que nos deixou a sós. Dando os últimos retoques no caso, esperando a análise de DNA no chapéu, seguindo em frente? Minha mãe e meu tio devem levar em conta que qualquer escolha feita agora pode ser a que ela espera deles, e ela está a postos. Também é possível que o misterioso plano dos dois não tenha ocorrido a ela, e então os dois estariam um passo adiante. Boa razão para agir com audácia. Em vez disso, nesse momento eles preferem um drinque. Talvez qualquer coisa que façam preste um serviço a Clare Allison, inclusive esse interlúdio com um single malt. Mas não, a única chance deles é optar pela escolha radical — e agora.
Trudy ergue o braço para impedir uma terceira dose. Claude é mais resoluto. Está empenhado na busca rigorosa da clareza mental. Ouvimos enquanto se serve — ele vem bebendo uísque puro em grandes quantidades —, depois quando engole emitindo um som forte, que conhecemos bem. Devem estar se perguntando como evitar uma briga exatamente no momento que precisam trabalhar juntos. De longe chega o som de uma sirene, apenas uma ambulância, mas que espicaça seus medos. A rede do Estado se estende invisível por toda a cidade. Difícil escapar dela. Mas funciona como um ponto de teatro, porque finalmente ocorre uma fala, uma útil afirmação do óbvio.
“Isto é ruim.” A voz de minha mãe é baixa e gutural.
“Onde estão os passaportes?”
“Estão comigo. E o dinheiro?”
“Na minha maleta.”
Mas eles não se movem, e a assimetria da troca de palavras — a resposta evasiva de minha mãe — não provoca meu tio. Ele está bem avançado na terceira dose, quando a primeira de Trudy chega a mim. Nada sensual, mas, sem exagero, cai bem diante da situação, essa sensação de fim sem um começo à vista. Visualizo uma velha estrada militar através de um desfiladeiro gelado nas montanhas, um leve odor de pedra úmida e turfa, o som de aço e passos obedientes no chão de cascalho, o peso da amarga injustiça. Tão distante das vertentes voltadas para o sul, das flores cobertas de pólen nos fartos ramalhetes roxos que emolduravam as colinas longínquas, com seus tons sobrepostos de um índigo cada vez mais pálido. Eu preferia estar lá. Mas admito — o uísque, meu primeiro, liberta minha mente. Uma cruel libertação: o portão aberto conduz à luta e ao medo do que a mente é capaz de criar. Está acontecendo comigo agora. Me perguntam, eu mesmo me pergunto, o que mais desejo agora. Qualquer coisa. O realismo não é um fator limitativo. Corte as cordas, solte a imaginação. Posso responder sem pensar: vou atravessar o portão aberto.
Passos na escada. Trudy e Claude olham para cima, surpresos. Será que a inspetora encontrou um modo de entrar na casa? Um ladrão escolheu a pior das noites? É uma descida lenta, pesada. Eles veem um sapato preto de couro, um cinto, uma camisa manchada de vômito, e depois uma expressão terrível, ao mesmo tempo vazia e determinada. Meu pai está com as roupas com que morreu. Rosto exangue, lábios preto-esverdeados já em putrefação, olhos pequenos e penetrantes. Agora se postou ao pé da escada, mais alto que em minhas recordações. Veio do necrotério para nos encontrar e sabe exatamente o que deseja. Estou tremendo porque minha mãe também está. A imagem não é bruxuleante, ela nada tem de fantasmagórica. Este é meu pai em carne e osso, John Cairncross, como sempre foi. O gemido aterrorizado de minha mãe serve como estímulo, pois ele caminha em nossa direção.
“John”, Claude diz com cautela, num tom de voz ascendente, como se pudesse despertar aquela figura e levá-la de volta à não existência a que pertence. “John, somos nós.”
Isso parece bem entendido. Ele está à nossa frente, exalando um miasma de glicol e carne visitada por vermes amigáveis. É minha mãe quem ele encara fixamente com olhos pequenos, duros e negros, feitos de uma rocha indestrutível. Seus lábios repulsivos se movem, mas não emitem nenhum som. A língua é mais preta que os lábios. Mantendo o olhar nela o tempo todo, ele estende um braço. A mão descarnada se aferra à garganta de meu tio. Minha mãe não consegue nem gritar. Os olhos ilíquidos continuam pregados nela. Isso é para ela, o presente dele. A mão impiedosa aperta ainda mais. Claude cai de joelhos, olhos esbugalhados, as mãos golpeando e puxando inutilmente o braço do irmão. Só um guincho distante, o som patético de um camundongo, nos diz que ele ainda está vivo. Depois não está mais. Meu pai, que nem de relance olhou para ele uma única vez, deixa-o tombar no chão e agora puxa sua mulher para perto de si, a envolve em braços finos e fortes como vergalhões de aço. Traz o rosto dela para junto do dele e lhe dá um beijo longo e intenso com lábios gelados e apodrecidos. Ela é tomada de horror, de repugnância, de vergonha. Será atormentada por esse instante até o dia de sua morte. Indiferente, ele a liberta e caminha de volta para onde veio. Ao subir a escada, já começa a se desvanecer.
Bem, me perguntaram. Eu mesmo me perguntei. E era isso que eu queria. Uma fantasia infantil do Dia das Bruxas. De que outro modo encomendar a vingança de um espírito numa era de convicções seculares? O gótico foi razoavelmente banido, as feiticeiras largaram às pressas os caldeirões, só nos restou o materialismo, tão perturbador para a alma. Uma voz no rádio me disse certa vez que, quando compreendermos perfeitamente o que é a matéria, vamos nos sentir melhor. Duvido. Nunca terei o que quero.
Volto de meus devaneios e vejo que estamos no quarto. Não me lembro de termos subido. O som oco da porta do armário, o tilintar dos cabides de casacos, uma mala posta na cama, depois outra, o estalido das fechaduras sendo abertas. Eles deveriam ter feito as malas com antecedência. A inspetora poderia vir até mesmo esta noite. É isso que eles chamam de plano? Ouço imprecações e resmungos.
“Onde é que está? Estava aqui comigo. Na minha mão!”
Cruzam o quarto de um lado ao outro, abrem gavetas, entram e saem do banheiro. Trudy deixa cair um copo, que se estilhaça no chão. Ela nem liga. Por algum motivo, o rádio está ligado. Claude senta-se com seu notebook e murmura: “Trem às nove. O táxi está a caminho”.
“Eu preferia Paris a Bruxelas. Melhores conexões para seguir viagem”, Trudy resmunga para si mesma ainda no banheiro. “Dólares... euros.”
Tudo que eles dizem, mesmo os ruídos que fazem, têm um ar de despedida, como um triste acorde final, um adeus cantado. Este é o fim, não voltaremos. A casa, a casa de meu avô em que eu deveria crescer, está prestes a se apagar. Não me lembrarei dela. Eu gostaria de solicitar uma lista de países sem acordo de extradição. Na maioria são desconfortáveis, desorganizados, quentes. Ouvi dizer que Beijing é um lugar aprazível para fugitivos. Uma próspera aldeia de vilões que falam inglês enterrada na vastidão populosa da cidade cosmopolita. Um bom local para terminar.
“Soníferos, analgésicos”, Claude diz em voz alta.
Sua voz, seu tom me instigam. Hora de decidir. Ele está fechando as malas, prendendo as tiras de couro. Foi rápido. Então já deviam ter começado a fazê-las. São daquelas antigas, de duas rodinhas e não quatro. Claude as levanta da cama e põe no chão.
Trudy pergunta: “Qual?”.
Acho que está mostrando dois lenços de pescoço. Claude resmunga sua escolha. Isso não passa de um simulacro de normalidade. Quanto tomarem o trem, quando atravessarem a fronteira, a culpa dos dois vai se revelar. Só dispõem de uma hora e devem se apressar. Trudy diz que há um casaco que que ela quer e que não está conseguindo achar. Claude insiste que ela não vai precisar dele.
“É levinho”, ela diz. “O branco.”
“Você vai se destacar na multidão. Nas câmeras de segurança.”
Mas ela acaba encontrando-o justamente quando o Big Ben bate oito horas e o noticiário começa. Eles não param para escutar. Ainda há algumas últimas coisas para pegar. Na Nigéria, crianças queimadas vivas diante dos pais pelos guardiões das chamas. Na Coreia do Norte, um foguete é lançado. Ao redor do mundo, a elevação do nível do mar supera as previsões. Mas nenhuma dessas é a principal. Tal privilégio é dado a uma nova catástrofe. Uma combinação — pobreza e guerra, com mudança climática na reserva — que vem expulsando milhões de pessoas de seus lares, um antigo épico sob novo formato, vastos movimentos humanos como rios ingurgitados na primavera, Danúbios, Renos e Ródanos de seres irados ou desolados, ou esperançosos, amontoados nas fronteiras contra as cercas de arame cortante, afogando-se aos milhares ao tentarem compartilhar as riquezas do Ocidente. Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.
E, como sempre, há problemas mais perto de casa. Enquanto as emissoras de rádio e televisão prosseguem com suas cantilenas, as pessoas vão tocando seus negócios. Um casal acabou de se aprontar para uma viagem. As malas estão fechadas, mas há uma fotografia de sua mãe que a jovem mulher deseja levar. A pesada moldura esculpida é grande demais para ser posta na bagagem. Sem a ferramenta certa, a fotografia não pode ser removida, e a ferramenta, um tipo especial de chave, está no porão, no fundo de uma gaveta. O táxi espera lá fora. O trem parte dentro de cinquenta minutos, a estação fica um pouco longe, pode haver filas nos controles de segurança e de passaportes. O homem leva uma das malas para o patamar da escada e volta um pouco ofegante. Deveria ter usado as rodinhas.
“Agora temos mesmo que ir de qualquer maneira.”
“Preciso levar essa foto.”
“Leve debaixo do braço.”
Mas, além de ter de puxar a mala, ela carrega a bolsa, o casaco branco e eu.
Com um gemido, Claude pega a segunda mala a fim de levá-la para fora. Com esse esforço inútil quer mostrar o quanto é urgente eles partirem.
“Você não vai demorar nem um minuto. Está no canto da frente da gaveta do lado esquerdo.”
Ele volta. “Trudy. Estamos indo. Agora.”
A troca de palavras passou de lacônica a amarga.
“Leva para mim.”
“Nem pensar.”
“Claude. É minha mãe.”
“Estou pouco ligando. Estamos indo.”
Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais. Hora de entrar em ação. Acabar de uma vez por todas. Hora de começar. Não é fácil libertar meu braço direito, apertado contra o peito, ou movimentar o pulso. Mas agora isso foi feito. Um dedo indicador é a minha ferramenta especial para remover minha mãe da moldura. Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas. Faço a primeira tentativa de incisão. Minhas unhas são macias e, embora fino, o tecido é resistente. A evolução sabe das coisas. Tateio para encontrar a ranhura causada pelo meu dedo. Há uma dobra, bem definida, e é lá que tento de novo, até que na quinta investida sinto uma tênue esgarçadura e, na sexta, um minúsculo rompimento. Consigo enfiar a ponta da unha nesse rasgo, o dedo, dois dedos, três, quatro, até que por fim minha mão fechada abre o caminho e atrás dela vem um grande volume de líquido, a catarata do começo da vida. Minha proteção aquosa desapareceu.
Agora nunca saberei como a história da fotografia ou do trem das nove horas teria sido resolvida. Claude está fora do quarto, no alto da escada. Tem uma mala em cada mão, pronto para descer.
Minha mãe o chama com o que parece ser um gemido desapontado. “Ah, Claude.”
“O que agora?”
“A bolsa rompeu!”
“Cuidamos disso depois. No trem.”
Ele deve ter imaginado que se tratava de uma artimanha, da continuidade da discussão, um tipo repulsivo de problema feminino que ele está agitado demais para levar em conta.
Estou mexendo os ombros para me libertar da membrana embrionária, minha primeira experiência em matéria de me despir. Sou desajeitado. Três dimensões me parecem três a mais do que eu desejava. Prevejo que o mundo material será um desafio. O manto descartado continua retorcido em volta dos meus joelhos. Não faz mal. Tenho uma nova tarefa abaixo da cabeça. Não sei como sei o que devo fazer. É um mistério. Há certos conhecimentos com os quais simplesmente já chegamos. No meu caso, há este, e um punhado de escansões poéticas. Afinal, nenhuma lousa em branco. Trago a mesma mão à bochecha e a deslizo para baixo, ao longo da parede muscular do útero, a fim de achar o colo. Ele está bem apertado contra a parte de trás da minha cabeça. É lá, na entrada do mundo, que eu apalpo delicadamente com meus pequenos dedos e de imediato, como se alguma fórmula mágica houvesse sido pronunciada, o grande poder de minha mãe é estimulado, as paredes a meu redor se encrespam, tremem e se fecham sobre mim. É um terremoto, uma comoção gigantesca na caverna dela. Como o aprendiz de feiticeiro, fico horrorizado e depois esmagado pela força desencadeada. Eu deveria ter esperado a minha hora. Só um idiota se meteria com essa força. Ouço à distância minha mãe gritar. Pode ser um pedido de ajuda, quem sabe um berro de triunfo ou dor. Então sinto alguma coisa no topo da cabeça, minha coroa — um centímetro de dilatação! Não há volta.
Trudy se arrastou para a cama. Claude está em algum lugar perto da porta. Ela está arfando, excitada e muito assustada.
“Começou. Como é rápido! Chame uma ambulância.”
Ele não diz nada por um momento, depois simplesmente pergunta: “Onde está meu passaporte?”.
A derrota é minha, eu o subestimei. O objetivo de chegar mais cedo era para destruir Claude. Eu sabia que ele era um problema. Mas pensei que amava minha mãe e que ficaria com ela. Estou começando a entender a força mental de Trudy. Enquanto ele remexe a bolsa dela e se ouve o tilintar alegre das moedas contra o estojo de maquiagem, ela diz: “Escondi. Lá embaixo. Justamente caso isso acontecesse”.
Ele reflete. Já comprou e vendeu propriedades, possuiu um arranha-céu em Cardiff, sabe como fechar um negócio. “Me diga onde está que eu chamo uma ambulância para você. E aí vou embora.”
A voz dela é cautelosa. Observando de perto seu próprio estado, esperando, desejando e temendo a próxima onda. “Não. Se eu cair, você cai também.”
“Ótimo. Sem ambulância.”
“Eu mesma vou chamar. Assim que...”
Assim que tenha passado a segunda contração, mais forte que a primeira. De novo seu grito involuntário, o corpo todo se contraindo enquanto Claude atravessa o quarto para se aproximar da cama e desconectar da parede o telefone que estava na mesinha de cabeceira. Ao mesmo tempo, sou comprimido violentamente e erguido uns três ou quatro centímetros, sugado para baixo e para trás de onde estava hibernando. Uma cinta de ferro espreme mais e mais minha cabeça. Nossos três destinos esmagados por uma grande boca.
Assim que a onda reflui, Claude, como um guarda de fronteira, diz, impassível: “Passaporte?”.
Ela sacode a cabeça, espera até retomar o fôlego. Os dois mantêm uma espécie de equilíbrio.
Ela se recupera e diz, sem emoção na voz: “Então você vai ter que fazer o papel da parteira”.
“O filho não é meu.”
“O filho nunca é da parteira.”
Ela está apavorada, mas pode aterrorizá-lo com instruções.
“Quando ele sair, vai vir com o rosto para baixo. Você pega o bebê com as duas mãos, bem delicadamente, apoiando a cabeça dele, e põe em cima de mim. Ainda com o rosto para baixo, entre os meus seios. Perto de onde bate o coração. Não se preocupe com o cordão. Vai parar de pulsar sozinho, e o bebê começa a respirar. Ponha umas duas toalhas em cima dele para mantê-lo aquecido. E aí esperamos.”
“Esperamos? Meus Deus! Esperamos o quê?”
“Que a placenta saia.”
Não sei se ele se encolheu ou teve uma ânsia de vômito. Podia ainda estar imaginando que terminaria com aquilo e pegaria um trem mais tarde.
Ouço com atenção, querendo saber o que fazer. Me enfiar embaixo de uma toalha. Respirar. Não pronunciar uma única palavra. Mas não basta ser um bebê. Com certeza rosa ou azul!
“Por isso, vá buscar uma porção de toalhas. Vai ser uma sujeirada. Lave as mãos bem lavadas, com a escovinha de unhas e muito sabonete.”
Tão longe de onde dava pé para ele, tão longe da costa acolhedora, um homem sem seus documentos deveria estar em plena fuga. Ele dá meia-volta para fazer o que lhe foi ordenado.
E assim seguem as coisas, onda atrás de onda, gritos e gemidos, súplicas para que a agonia tenha fim. Progresso impiedoso, ejeção em curso. O cordão se desenrola atrás de mim à medida que avanço lentamente. Para a frente e para fora. Forças cruéis da natureza pretendem me achatar. Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos.
Um momento deslizante de urgência pegajosa, com sons ásperos, e aqui estou eu, trazido nu ao reino. Como o corajoso Cortés (lembro de um poema que meu pai recitou), estou pasmo. Olhando para baixo, maravilhado, para o que presumo ser a superfície felpuda de uma toalha de banho azul. Azul. Eu sempre soube, ao menos verbalmente, sempre fui capaz de deduzir o que era o azul — mar, céu, lápis-lazúli, gencianas — meras abstrações. Agora o tenho por fim, o possuo e ele me possui. Mais grandioso do que eu ousava crer. Isto é só o começo, na extremidade índigo do espectro.
Meu fiel cordão, que me mantinha vivo e não conseguiu me matar, de repente morre como planejado. Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom. Os sons são límpidos, brilhantes graças ao realce dos agudos. A resplandecente toalha, irradiando sua cor, evoca a mesquita de Goharshad no Irã que fez meu pai chorar nas primeiras horas de uma manhã. Minha mãe se mexe e faz com que minha cabeça mude de posição. Vejo Claude de relance. Menor do que eu imaginava, com ombros estreitos e cara de raposa. Sem a menor dúvida, com uma expressão de repugnância. A luz do sol do início da noite de verão atravessa as folhas de um plátano e projeta no teto desenhos tremulantes. Ah, a alegria de esticar as pernas, de verificar no despertador sobre a mesinha de cabeceira que eles jamais pegarão aquele trem. Mas não tenho muito tempo para saborear esse momento. Minha maleável caixa torácica é apertada pelas mãos enojadas de um assassino e sou posto na barriga hospitaleira, branca como a neve, de outra assassina.
As batidas de seu coração soam distantes, abafadas, mas são tão familiares quanto um velho estribilho que não ouvimos há décadas. O ritmo da música é um andante, passos delicados que me conduzem ao verdadeiro portão aberto. Não posso negar o medo que sinto. Mas estou exausto, um marinheiro náufrago que chegou a uma praia bem-afortunada. Estou caindo, mesmo enquanto o mar lambe meus tornozelos.
Trudy e eu devemos ter cochilado. Não sei quantos minutos se passaram até ouvirmos a campainha. Como ela soa claro. Claude ainda está aqui, ainda esperando obter seu passaporte. Ele deve ter descido para caçar o documento. Agora caminha até o interfone. Olha de relance a tela e dá meia-volta. Não pode haver surpresas.
“São quatro”, ele diz, mais para si mesmo.
Contemplamos esse fato. Acabou. Não é um bom final. Nunca seria.
Minha mãe me muda de lugar para que possamos trocar um longo olhar. O momento pelo qual esperei. Meu pai tinha razão, é um rosto adorável. O cabelo mais escuro do que eu pensava, os olhos de um verde mais pálido, as bochechas ainda coradas por causa do esforço recente, o nariz de fato uma coisinha bem pequena. Acho que vejo o mundo inteiro nesse rosto. Belo. Amoroso. Assassino. Ouço Claude atravessar o quarto com passos resignados para descer até a porta. Nenhum clichê. Mesmo nesse intervalo de descanso, durante o longo e ávido olhar no fundo dos olhos de minha mãe, estou pensando no táxi que espera lá fora. Um desperdício. Hora de mandá-lo embora. E estou pensando na nossa cela — espero que não seja pequena demais — e, mais além de sua pesada porta, nos degraus gastos que sobem: primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos.
18.
No começo da tarde, o telefone toca e o futuro se apresenta. Inspetora-chefe Clare Allison, designada para cuidar do caso. A voz soa amistosa, nenhum indício de acusação. Isso pode ser um mau sinal.
Estamos de novo na cozinha, Claude segura o fone. O primeiro café do dia na outra mão. Trudy se posta perto dele e nós dois ouvimos os dois interlocutores. Caso? A palavra contém uma ameaça. Inspetora-chefe? Também não ajuda muito.
Avalio a ansiedade de meu tio por seu zelo em se mostrar solícito. “Ah, sim. Sim! É claro. Por favor, faça isso.”
A inspetora-chefe Allison pretende nos visitar. O normal seria os dois irem à delegacia para uma conversa. Ou prestar depoimento, se apropriado. No entanto, por causa da gravidez avançada de Trudy, da dor da família, a inspetora-chefe e um sargento virão daqui a uma hora. Ela gostaria de dar uma olhada no local onde houve o último contato com o falecido.
Esta última informação, inocente e razoável a meus ouvidos, provoca em Claude um frenesi de boas-vindas. “Venha, por favor. Maravilhoso. Sem dúvida. Será um prazer conhecê-la. Contando os minutos. A senhora...”
Ela desliga. Ele se volta para nós, provavelmente cor de cinza, e diz numa voz desapontada: “Ah”.
Trudy não resiste a imitá-lo: “Tudo... ótimo, não é?”.
“Que caso é esse? Não se trata de uma questão criminal.” Ele apela a uma audiência imaginária, a um conselho de sábios. A um júri.
“Odeio isso”, minha mãe murmura, mais para si mesma. Ou para mim, eu gostaria de acreditar.
“Deve ser para o juiz de instrução.” Claude se afasta de nós, ofendido, dá uma volta pela cozinha e retorna, indignado. Agora sua queixa é dirigida a Trudy. “Não se trata de um caso de polícia.”
“Ah, é mesmo?”, ela diz. “Melhor então telefonar para a inspetora e explicar isso a ela.”
“Aquela poeta. Eu sabia que não podíamos confiar nela.”
Entendemos que, como Elodia é assunto de minha mãe, de algum modo isso constitui uma acusação.
“Você gostou dela.”
“Você disse que ela ia ser útil.”
“Você gostou dela.”
Mas a reiteração deliberadamente impassível não o espicaça.
“Quem não gostaria? E quem se importa com isso?”
“Eu me importo.”
Pergunto-me mais uma vez o que ganho se eles brigarem. Isso poderia arruiná-los. Então eu ficaria com Trudy. Já a escutei dizer que, na prisão, mães que estão amamentando levam uma vida melhor. Mas vou perder meu direito de nascer, o sonho de todos os seres humanos, minha liberdade. Enquanto juntos, como uma equipe, eles podem escapar raspando. E depois me darem para alguém. Sem mãe, mas livre. Portanto, o que é melhor? Já pensei nisso, voltando sempre ao mesmo bendito lugar, à única decisão moralmente correta. Vou arriscar os confortos materiais e me aventurar no mundo. Já estive confinado por tempo demais. Voto pela liberdade. Os assassinos precisam escapar. Então, antes que a discussão sobre Elodia vá longe demais, este é um bom momento para dar outro pontapé em minha mãe, distraí-la da briga com o interessante fato da minha existência. Não um nem dois, mas o número mágico de todas as boas histórias antigas. Três vezes, como Pedro negando Jesus.
“Ai, ai, ai!” Ela quase canta isso. Claude puxa uma cadeira para ela e traz um copo de água.
“Você está suando.”
“Bom, estou com calor.”
Ele testa as janelas. Não são movidas há anos. Procura gelo, mas os recipientes estão vazios depois das três rodadas recentes de gim e tônica. Por isso ele se senta diante dela e oferece sua refrescante solidariedade.
“Vai dar tudo certo.”
“Não, não vai.”
O silêncio dele concorda. Eu estava pensando num quarto chute, mas o estado de espírito de Trudy é perigoso. Ela pode partir para o ataque e provocar uma reação temerária.
Depois de uma pausa, em tom apaziguador, ele diz: “Devíamos repassar mais uma vez”.
“Que tal um advogado?”
“Um pouquinho tarde agora.”
“Diga a eles que não vamos falar sem a presença de um advogado.”
“Não vai cair bem, quando eles só estão vindo bater um papo.”
“Odeio isso.”
“Devíamos repassar mais uma vez.”
Mas não repassam. Estupefatos, contemplam a abordagem da inspetora-chefe Allison. Muito em breve. Dentro de uma hora pode significar em um minuto. Sabendo de tudo, de quase tudo, sou parte do crime, sem dúvida a salvo de um interrogatório, porém amedrontado. E curioso, impaciente para testemunhar as habilidades da inspetora-chefe. Alguém de mente aberta seria capaz de desmascarar esses dois em minutos. Trudy traída pelos nervos, Claude pela burrice.
Estou tentando imaginar onde estão as canecas de café da manhã usadas durante a visita de meu pai. Transferidas, penso agora, para a pia, onde esperam sem ter sido lavadas. DNA numa caneca provará que minha mãe e meu tio dizem a verdade. Os restos dos sanduíches dinamarqueses devem estar por perto.
“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”
“Na cozinha.”
“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”
“Dinheiro.”
“Não. Botar você para fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”
“Anos.”
“Meses. Quanto emprestei para ele?”
“Mil.”
“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”
“Estou grávida. Afeta a memória.”
“Você mesma disse ontem. Tudo como foi, mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga.”
“Mais a luva. Menos que ele estava voltando para cá.”
“Meu Deus, sim. Outra vez. Qual a causa da depressão?”
“Nós. Dívidas. Trabalho. O bebê.”
“Certo.”
Repassam mais uma vez. Na terceira, soa melhor. Que cumplicidade mais doentia, eu desejar que eles tenham êxito!
“Então repita.”
“Tal como aconteceu. Menos a vitamina, mais a briga e a luva, menos a depressão, mais que ele estava voltando para cá.”
“Não. Porra! Trudy. Exatamente como foi. Mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga, mais a luva, menos a volta para cá.”
A campainha toca e eles se imobilizam.
“Diga a eles que não estamos prontos.”
Para minha mãe, essa era a ideia de uma piada. Ou prova de seu terror.
Provavelmente resmungando obscenidades, Claude caminha até o videofone, muda de ideia e segue para a escada em direção à porta da frente.
Trudy e eu damos uma volta nervosa pela cozinha, arrastando os pés. Ela também resmunga enquanto trabalha na história. Isso é proveitoso porque cada esforço sucessivo da memória a afasta mais dos fatos reais. Ela está memorizando suas lembranças. Os erros de transcrição serão a seu favor. Constituirão de início um colchão útil, transformando-se depois em verdade. Também poderia dizer a si mesma: ela não comprou o glicol, não foi à Judd Street, não preparou a bebida, não pôs as coisas no carro, não jogou o liquidificador no lixo. Ela limpou a cozinha — nada de ilegal nisso. Convencida, estará libertada da astúcia consciente e pode ter uma chance. A mentira eficaz, assim como uma tacada de mestre no golfe, está livre da autoconsciência. Presto atenção nos comentários esportivos.
Atento aos passos que descem a escada, eu os diferencio. Os da inspetora-chefe Allison são leves, até mesmo como os de um passarinho, apesar de seu posto elevado. Apertos de mão são trocados. Pelo rígido “Como vai a senhora?” do sargento, reconheço o policial mais velho que esteve aqui ontem. O que terá impedido sua promoção? Classe, educação, Q.I., escândalo — o último, espero, pelo qual ele pode ser culpado, não precisando da minha compaixão.
A ágil inspetora-chefe senta-se à mesa da cozinha e convida todos a fazerem o mesmo, como se a casa fosse dela. Acho que capto minha mãe pensando que seria mais fácil enganar um homem. Allison abre uma pasta e fica apertando repetidamente o botão da mola da caneta enquanto fala. Nos diz que antes deseja expressar — faz uma pausa de grande efeito para olhar, não tenho dúvida, no fundo dos olhos de Trudy e de Claude — seus profundos sentimentos pela perda de um marido querido, de um irmão querido, de um amigo querido. Nada de um pai querido. Estou lutando contra o sentimento gélido e bem conhecido de exclusão. Mas a voz é cálida, maior que seu corpo, enfrentando sem tensões os ossos do ofício. A ligeira pronúncia típica dos habitantes mais pobres do leste de Londres corresponde aos padrões urbanos consagrados, e não será facilmente desafiada. Não pelas vogais forçadas de minha mãe, aprendidas em colégios caros. Esse velho truque já não funcionaria. Os tempos são outros. Um dia a maior parte dos estadistas britânicos falará como a inspetora-chefe. Me pergunto se ela tem uma arma. Desnecessário. Como a rainha, que não carrega dinheiro. Atirar nas pessoas é coisa de sargento para baixo.
Allison explica que se trata de uma conversa informal para ajudá-la a ter uma compreensão mais ampla dos trágicos acontecimentos. Trudy e Claude não têm nenhuma obrigação de responder às perguntas. Mas ela está errada. Eles se sentem obrigados. A recusa os faria dar a impressão de serem suspeitos. No entanto, se a inspetora-chefe estiver uma jogada à frente, pode pensar que a aceitação é ainda mais suspeita. Os que nada têm a esconder insistiriam num advogado como precaução contra os erros policiais ou uma intromissão ilegal.
Ao nos acomodarmos em torno da mesa, reparo na ausência de indagações corteses sobre mim, coisa de que me ressinto. Espera para quando? Menino ou menina?
Em vez disso, a inspetora-chefe não perde tempo. “Vocês podem me mostrar a casa depois que terminarmos a conversa.”
Mais uma afirmação que um pedido. Claude está ansioso, ansioso demais, para obedecer. “Ah, sim. Sim!”
Uma ordem de busca seria a alternativa. Mas não há nada de interessante para a polícia no andar de cima além da imundície.
A inspetora-chefe diz para Trudy: “Seu marido veio aqui ontem por volta das dez horas da manhã?”.
“Isso mesmo.” Seu tom é impassível, um exemplo para Claude.
“E houve alguma tensão.”
“Naturalmente.”
“Por que naturalmente?”
“Estou morando com o irmão dele na casa que John achava que era sua.”
“De quem é a casa?”
“Do casal.”
“O casamento tinha acabado?”
“Sim.”
“Se importa se eu perguntar? Ele achava que tinha acabado?”
Trudy hesita. Pode haver uma resposta certa e uma errada.
“Ele me queria de volta, mas também queria manter suas amigas.”
“Conhece algum nome?”
“Não.”
“Mas ele lhe falou sobre elas?”
“Não.”
“Mas de alguma maneira a senhora sabia.”
“Claro que eu sabia.”
Trudy se permite algum desdém. Como se para dizer: “Sou a mulher de verdade aqui”. Mas ignorou as instruções de Claude. Devia dizer a verdade, acrescentando e subtraindo apenas o que tinha sido combinado. Ouço meu tio se mexer na cadeira.
Sem fazer nenhuma pausa, Allison muda de assunto. “Vocês tomaram café.”
“Sim.”
“Os três? Em volta desta mesa?”
“Os três.” Claude diz isso, talvez preocupado que seu silêncio esteja passando uma má impressão.
“Mais alguma coisa?”
“O quê?”
“Com o café. Vocês lhe ofereceram alguma coisa mais?”
“Não.” Minha mãe soa cautelosa.
“E o que havia no café?”
“Como assim?”
“Leite? Açúcar?”
“Ele sempre tomava sem leite.” O ritmo do pulso dela acelerou.
Mas o comportamento de Clare Allison é impenetravelmente neutro. Ela se volta para Claude. “Então o senhor lhe emprestou algum dinheiro.”
“Sim.”
“Quanto?”
“Cinco mil.” Claude e Trudy respondem num coro mal sincronizado.
“Um cheque?”
“Na verdade em dinheiro vivo. Foi como ele queria.”
“O senhor tem ido àquela loja de vitaminas na Judd Street?”
A resposta de Claude é tão rápida quanto a pergunta. “Uma ou duas vezes. Foi John quem nos falou sobre ela.”
“Imagino que o senhor não tenha estado lá ontem.”
“Não.”
“Nunca pediu emprestado o chapéu preto de aba larga dele?”
“Nunca. Não faz meu estilo.”
Essa pode ser a resposta errada, mas não há tempo para raciocinar. As perguntas adquiriram um novo peso. O coração de Trudy está batendo mais rápido. Eu não confiaria nela para falar. Mas ela fala, e com voz estrangulada.
“Presente meu de aniversário. Ele amava aquele chapéu.”
A inspetora-chefe já está passando para algo diferente, mas volta atrás. “É tudo que se vê na câmera de segurança. Mandamos o chapéu para um teste de DNA.”
“Nem lhes oferecemos chá, café”, diz Trudy com voz alterada.
A inspetora-chefe deve ter recusado com um balançar de cabeça por ela e pelo sargento, ainda em silêncio. “Agora é quase tudo assim”, ela diz num tom nostálgico, “ciência e telas de computadores. Mas onde estávamos? Ah, sim. Houve alguma tensão. Mas vejo em minhas anotações que ocorreu uma briga.”
Claude deve estar fazendo os mesmos raciocínios apressados que eu. Seu cabelo será encontrado no chapéu. A resposta correta era sim, tinha pedido emprestado algum tempo atrás.
“Sim”, diz Trudy. “Uma de muitas.”
“Se importa de me dizer...”
“Ele queria que eu saísse da casa. Eu disse que iria quando estivesse pronta.”
“Quando ele foi embora, qual era seu estado de espírito?”
“Bem ruim. Estava péssimo. Confuso. Na verdade não queria que eu me mudasse daqui. Me queria de volta. Tentou que eu ficasse com ciúme, fingindo que Elodia era sua amante. Ela nos esclareceu tudo. Os dois não tinham um relacionamento.”
Detalhes demais. Ela está tentando retomar o controle. Mas falando muito rápido. Precisa dar uma respirada.
Clare Allison fica em silêncio enquanto aguardamos para saber qual a próxima direção que tomará. Mas ela continua nesse assunto, declarando da forma mais delicada possível: “Não é a informação que tenho”.
Um instante de torpor, como se o próprio som houvesse sido assassinado. O espaço em torno de mim se contrai porque Trudy parece ter se esvaziado como um balão. A coluna se dobra como a de uma velha. Sinto um pequeno orgulho de mim. Sempre tive minhas suspeitas. Com que avidez eles tinham acreditado em Elodia. Agora eles sabem: “Nem o copo-de-leite se demora”. Mas também preciso ter cautela. A inspetora-chefe pode ter razões para mentir. Está apertando o botão da caneta esferográfica, pronta para seguir em frente.
Minha mãe diz baixinho: “Bem, suponho que eu fui a mais enganada”.
“Sinto muito, sra. Cairncross. Mas minhas fontes são boas. Digamos apenas que se trata de uma jovem complicada.”
Eu poderia explorar a teoria de que não é mau negócio para Trudy ser a pessoa injuriada, obter corroboração para a história do marido infiel. Mas estou pasmo; nós dois estamos pasmos. Meu pai, aquela partícula mal compreendida, girando, se afasta ainda mais de mim no momento em que a inspetora-chefe faz outra pergunta a minha mãe. Ela também responde baixinho, com o tremor adicional de uma garotinha punida.
“Alguma violência?”
“Não.”
“Ameaças?”
“Não.”
“Nenhuma de sua parte.”
“Não.”
“E sobre a depressão dele? O que pode me dizer?”
Isso é dito gentilmente, e deve ser uma armadilha. Mas Trudy não faz uma pausa. Angustiada demais para inventar novas mentiras, persuadida demais de sua verdade, repete tudo que disse antes, na mesma linguagem inverossímil. Constante dor mental... Vociferava contra aqueles que amava... arrancava os poemas de sua alma. Vem-me a imagem vívida de uma parada de soldados exaustos, as plumas dos chapéus destruídas. A recordação em sépia de um podcast, as guerras napoleônicas em muitos episódios. Na época em que minha mãe e eu estávamos tranquilos. Ah, se Bonaparte tivesse se mantido dentro de suas fronteiras e feito boas leis para a França!
Claude entra na conversa: “Ele era seu pior inimigo”.
A acústica diferente me diz que a inspetora-chefe se voltou a fim de olhar diretamente para ele. “Algum outro inimigo, além dele próprio?”
O tom é despretensioso. Na melhor das hipóteses, uma pergunta pouco relevante; na pior das hipóteses, prenhe de intenções sinistras.
“Eu não saberia dizer. Nunca fomos muito próximos.”
“Me conte”, ela diz, com a voz mais calorosa, “sobre a infância dos dois. Isto é, se o senhor quiser.”
Ele quer. “Eu era três anos mais novo. Ele era bom em tudo. Esportes, estudos, garotas. Me achava um boboca insignificante. Quando cresci, fiz a única coisa que ele não conseguia fazer. Ganhar dinheiro.”
“Propriedades.”
“Esse tipo de coisa.”
A inspetora-chefe se volta de novo para Trudy. “Esta casa está à venda?”
“Claro que não.”
“Ouvi dizer que estava.”
Trudy não reage. Sua primeira jogada certa em muitos minutos.
Será que a inspetora-chefe está de uniforme? Deve estar. Seu quepe estará em cima da mesa, junto a seu cotovelo, como um grande bico. Não vejo nela a simpatia de um mamífero, mas rosto e lábios finos, roupas abotoadas até em cima. Sem dúvida sua cabeça, como a de um pombo, balança para a frente e para trás quando ela anda. O sargento a vê como uma detalhista. Fadada a galgar postos mais altos em que ele não a verá mais. Ela vai voar. Ou concluiu que John Cairncross se suicidou, ou tem razões para acreditar que uma gravidez no nono mês é uma boa maneira de ocultar um crime. Tudo que a inspetora-chefe diz, a observação mais banal, se presta a interpretações. O único poder que temos consiste em projetar. Tal como Claude, ela pode ser esperta ou burra, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Simplesmente não sabemos. Nossa ignorância é o que enche sua mão com as melhores cartas do baralho. Meu palpite é que ela tem poucas suspeitas, que não sabe de nada. Que seus superiores a estão observando. Que precisa ser delicada porque esta conversa é irregular, podendo comprometer o processo legal. Que ela vai preferir o apropriado ao verdadeiro. Que sua carreira é um ovo que ela botou, ela vai se sentar sobre ele, chocá-lo e esperar.
Mas já me enganei antes.
19.
Qual o próximo passo? Clare Allison quer dar uma olhada na casa. Péssima ideia. Mas recusar agora, quando, pelo que sei, as coisas estão indo mal, tornaria tudo pior. O sargento sobe na frente a escada de madeira, seguido por Claude, pela inspetora-chefe, depois por minha mãe e eu. No térreo, a inspetora-chefe diz que, se concordarmos, ela gostaria de ir até o último andar e descer “trabalhando”. Trudy não se interessa em subir mais. Os outros continuam, enquanto nós dois vamos nos sentar na sala — e pensar.
Envio meus pensamentos velozes adiante deles, primeiro à biblioteca. Pó de gesso, cheiro de morte, mas relativamente arrumada. No andar superior, quarto e banheiro, caos de uma espécie íntima, a própria cama um emaranhado de lascívia e sono interrompido, o chão coalhado de roupas largadas por Trudy, o banheiro com potes destampados, unguentos e roupa de baixo suja. Me pergunto o que a desordem significa para olhos desconfiados. Não há de ser algo moralmente neutro. O desdém pelas coisas, pela organização, pela limpeza deve pertencer a uma escala onde existe também o desprezo pelas leis, pelos valores, pela própria vida. O que é um criminoso senão um espírito transtornado? No entanto, um quarto excessivamente arrumado também poderia levantar suspeitas. A inspetora-geral, com os olhos aguçados de uma águia, vai olhar o quarto de relance e se afastar. Mas no subconsciente a repugnância deve afetar seu julgamento.
Há cômodos mais acima, porém nunca fui tão longe. Trago meus pensamentos para o térreo e, como uma criança bem-comportada, atento para o estado de minha mãe. Seu ritmo cardíaco se estabilizou. Ela parece quase calma. Talvez fatalista. A bexiga cheia pressiona minha cabeça. Mas ela não está disposta a se mover. Faz seus cálculos, talvez pensando no plano dos dois. Porém deveria se perguntar qual é o seu próprio interesse. Dissociar-se de Claude. Incriminá-lo de algum modo. De nada serve os dois cumprirem uma pena de prisão. Então ela e eu poderíamos ir ficando por aqui. Ela não ia querer me dar a alguém se estivesse sozinha numa casa grande. Nesse caso, prometo que a perdoaria. Ou me encarregaria dela mais tarde.
Mas não há tempo para maquinações. Ouço-os descer de volta. Passam pela porta aberta da sala, a caminho da porta da frente. A inspetora-chefe certamente não pode ir embora sem um respeitoso adeus à viúva. Na verdade, Claude abriu a porta para mostrar a Allison onde seu irmão tinha estacionado o carro, como no início o motor não pegou, como, apesar da briga, eles tinham acenado quando o carro começou a funcionar e deu marcha a ré para alcançar a rua. Uma lição em matéria de contar a verdade.
Logo depois, Claude e os policiais estão diante de nós.
“Trudy — posso chamá-la de Trudy? Que momento terrível, e você está sendo muito prestativa. Muito hospitaleira. Não sei...” A inspetora-chefe se interrompe, sua atenção desviada. “Aquilo é do seu marido?”
Ela está olhando para as caixas de papelão que meu pai trouxe e deixou embaixo da janela semicircular. Minha mãe se põe de pé. Se vai haver algum problema, melhor que use sua altura. E largura.
“Ele estava voltando para cá. Saindo de Shoreditch.”
“Posso ver?”
“Apenas livros. Mas pode, sim.”
O sargento solta um murmúrio ofegante quando se ajoelha para abrir as caixas. Eu diria que a inspetora-chefe está agachada, agora não como um pássaro, mas como uma pata gigantesca. É errado eu não gostar dela. Ela é a lei, e já me considero no tribunal de Hobbes. O Estado precisa deter o monopólio da violência. Mas o jeitão da inspetora-chefe me irrita, o modo como vasculha as coisas de meu pai, seus livros prediletos, enquanto parece falar consigo mesma sabendo que não temos alternativa senão escutá-la.
“Não entendo. Muito, muito triste... bem na pista de acesso...”
Claro que ela está representando, trata-se de um prelúdio. Ela se levanta. Acho que está olhando para Trudy. Talvez para mim.
“Mas o verdadeiro mistério é o seguinte. Nenhuma impressão digital na garrafa de glicol. Nem no copo. Soube disso há pouco pelo pessoal técnico. Nenhum vestígio. Que estranho!”
“Ah!”, diz Claude, mas Trudy o interrompe. Eu deveria alertá-la. Ela não deve se mostrar tão ansiosa. Sua explicação vem depressa demais. “A luva. Problema de pele. Ele tinha tanta vergonha das mãos!”
“Ah, a luva!”, exclama a inspetora-chefe. “Tem razão. Esqueci completamente!” Ela está desdobrando um pedaço de papel. “Essa?”
Minha mãe dá um passo à frente para olhar. Deve ser a reprodução de uma fotografia. “Sim.”
“Não havia outra?”
“Não como essa. Eu costumava dizer que ele não precisava dela. Ninguém realmente se importava.”
“Ele usava o tempo todo?”
“Não. Mas bastante, principalmente quando estava deprimido.”
A inspetora-chefe está de saída, e isso é um alívio. Nós todos a acompanhamos até o vestíbulo.
“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo... Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto — os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”
A porta da frente é aberta, provavelmente pelo sargento. A inspetora-chefe sai. Ao se afastar, sua voz diminui de volume e se mistura ao som do tráfego. “Não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome em latim. Há muito tempo nenhuma mão calçava aquela luva.”
O sargento toca no braço de minha mãe e por fim fala, dizendo gentilmente ao partir: “Voltamos amanhã de manhã. Para esclarecer umas últimas coisas”.
20.
Por fim, a hora chegou. Há decisões a serem tomadas, urgentes, irreversíveis, autocondenatórias. Mas antes Trudy necessita de dois minutos de solidão. Corremos para o porão, para aquilo que antes chamavam de casinha. Lá, enquanto a pressão sobre meu crânio é aplacada e minha mãe continua sentada alguns segundos mais do que seria necessário, suspirando para si própria, meus pensamentos tornam-se claros. Ou tomam um novo rumo. Pensei que os assassinos deveriam escapar para garantir minha liberdade. Essa pode ser uma visão muito estreita, muito egoísta. Há outras considerações. O ódio a meu tio pode exceder o amor por minha mãe. Puni-lo pode ser mais nobre que salvá-la. Mas talvez seja possível conseguir as duas coisas.
Essas preocupações permanecem comigo ao voltarmos à cozinha. Parece que, depois que os policiais foram embora, Claude percebeu que precisava de um uísque. Ao ouvir a bebida sendo servida quando entrarmos, um som sedutor, Trudy descobre que também precisa de um. Dos grandes. Com água da torneira, meio a meio. Em silêncio, meu tio se desincumbe da tarefa. Em silêncio, ficam de pé frente a frente junto à pia. Não é hora de brindar. Cada um contemplando os erros do outro ou até mesmo os seus. Ou decidindo o que fazer. Esta é a emergência que temiam, e para a qual têm um plano. Bebem o que há nos copos e, sem uma palavra, partem para uma segunda dose. Nossas vidas estão prestes a mudar. A inspetora-chefe Allison paira sobre nós, uma deusa imprevisível e sorridente. Não saberemos, até que seja tarde demais, por que não efetuou as prisões naquele momento, por que nos deixou a sós. Dando os últimos retoques no caso, esperando a análise de DNA no chapéu, seguindo em frente? Minha mãe e meu tio devem levar em conta que qualquer escolha feita agora pode ser a que ela espera deles, e ela está a postos. Também é possível que o misterioso plano dos dois não tenha ocorrido a ela, e então os dois estariam um passo adiante. Boa razão para agir com audácia. Em vez disso, nesse momento eles preferem um drinque. Talvez qualquer coisa que façam preste um serviço a Clare Allison, inclusive esse interlúdio com um single malt. Mas não, a única chance deles é optar pela escolha radical — e agora.
Trudy ergue o braço para impedir uma terceira dose. Claude é mais resoluto. Está empenhado na busca rigorosa da clareza mental. Ouvimos enquanto se serve — ele vem bebendo uísque puro em grandes quantidades —, depois quando engole emitindo um som forte, que conhecemos bem. Devem estar se perguntando como evitar uma briga exatamente no momento que precisam trabalhar juntos. De longe chega o som de uma sirene, apenas uma ambulância, mas que espicaça seus medos. A rede do Estado se estende invisível por toda a cidade. Difícil escapar dela. Mas funciona como um ponto de teatro, porque finalmente ocorre uma fala, uma útil afirmação do óbvio.
“Isto é ruim.” A voz de minha mãe é baixa e gutural.
“Onde estão os passaportes?”
“Estão comigo. E o dinheiro?”
“Na minha maleta.”
Mas eles não se movem, e a assimetria da troca de palavras — a resposta evasiva de minha mãe — não provoca meu tio. Ele está bem avançado na terceira dose, quando a primeira de Trudy chega a mim. Nada sensual, mas, sem exagero, cai bem diante da situação, essa sensação de fim sem um começo à vista. Visualizo uma velha estrada militar através de um desfiladeiro gelado nas montanhas, um leve odor de pedra úmida e turfa, o som de aço e passos obedientes no chão de cascalho, o peso da amarga injustiça. Tão distante das vertentes voltadas para o sul, das flores cobertas de pólen nos fartos ramalhetes roxos que emolduravam as colinas longínquas, com seus tons sobrepostos de um índigo cada vez mais pálido. Eu preferia estar lá. Mas admito — o uísque, meu primeiro, liberta minha mente. Uma cruel libertação: o portão aberto conduz à luta e ao medo do que a mente é capaz de criar. Está acontecendo comigo agora. Me perguntam, eu mesmo me pergunto, o que mais desejo agora. Qualquer coisa. O realismo não é um fator limitativo. Corte as cordas, solte a imaginação. Posso responder sem pensar: vou atravessar o portão aberto.
Passos na escada. Trudy e Claude olham para cima, surpresos. Será que a inspetora encontrou um modo de entrar na casa? Um ladrão escolheu a pior das noites? É uma descida lenta, pesada. Eles veem um sapato preto de couro, um cinto, uma camisa manchada de vômito, e depois uma expressão terrível, ao mesmo tempo vazia e determinada. Meu pai está com as roupas com que morreu. Rosto exangue, lábios preto-esverdeados já em putrefação, olhos pequenos e penetrantes. Agora se postou ao pé da escada, mais alto que em minhas recordações. Veio do necrotério para nos encontrar e sabe exatamente o que deseja. Estou tremendo porque minha mãe também está. A imagem não é bruxuleante, ela nada tem de fantasmagórica. Este é meu pai em carne e osso, John Cairncross, como sempre foi. O gemido aterrorizado de minha mãe serve como estímulo, pois ele caminha em nossa direção.
“John”, Claude diz com cautela, num tom de voz ascendente, como se pudesse despertar aquela figura e levá-la de volta à não existência a que pertence. “John, somos nós.”
Isso parece bem entendido. Ele está à nossa frente, exalando um miasma de glicol e carne visitada por vermes amigáveis. É minha mãe quem ele encara fixamente com olhos pequenos, duros e negros, feitos de uma rocha indestrutível. Seus lábios repulsivos se movem, mas não emitem nenhum som. A língua é mais preta que os lábios. Mantendo o olhar nela o tempo todo, ele estende um braço. A mão descarnada se aferra à garganta de meu tio. Minha mãe não consegue nem gritar. Os olhos ilíquidos continuam pregados nela. Isso é para ela, o presente dele. A mão impiedosa aperta ainda mais. Claude cai de joelhos, olhos esbugalhados, as mãos golpeando e puxando inutilmente o braço do irmão. Só um guincho distante, o som patético de um camundongo, nos diz que ele ainda está vivo. Depois não está mais. Meu pai, que nem de relance olhou para ele uma única vez, deixa-o tombar no chão e agora puxa sua mulher para perto de si, a envolve em braços finos e fortes como vergalhões de aço. Traz o rosto dela para junto do dele e lhe dá um beijo longo e intenso com lábios gelados e apodrecidos. Ela é tomada de horror, de repugnância, de vergonha. Será atormentada por esse instante até o dia de sua morte. Indiferente, ele a liberta e caminha de volta para onde veio. Ao subir a escada, já começa a se desvanecer.
Bem, me perguntaram. Eu mesmo me perguntei. E era isso que eu queria. Uma fantasia infantil do Dia das Bruxas. De que outro modo encomendar a vingança de um espírito numa era de convicções seculares? O gótico foi razoavelmente banido, as feiticeiras largaram às pressas os caldeirões, só nos restou o materialismo, tão perturbador para a alma. Uma voz no rádio me disse certa vez que, quando compreendermos perfeitamente o que é a matéria, vamos nos sentir melhor. Duvido. Nunca terei o que quero.
Volto de meus devaneios e vejo que estamos no quarto. Não me lembro de termos subido. O som oco da porta do armário, o tilintar dos cabides de casacos, uma mala posta na cama, depois outra, o estalido das fechaduras sendo abertas. Eles deveriam ter feito as malas com antecedência. A inspetora poderia vir até mesmo esta noite. É isso que eles chamam de plano? Ouço imprecações e resmungos.
“Onde é que está? Estava aqui comigo. Na minha mão!”
Cruzam o quarto de um lado ao outro, abrem gavetas, entram e saem do banheiro. Trudy deixa cair um copo, que se estilhaça no chão. Ela nem liga. Por algum motivo, o rádio está ligado. Claude senta-se com seu notebook e murmura: “Trem às nove. O táxi está a caminho”.
“Eu preferia Paris a Bruxelas. Melhores conexões para seguir viagem”, Trudy resmunga para si mesma ainda no banheiro. “Dólares... euros.”
Tudo que eles dizem, mesmo os ruídos que fazem, têm um ar de despedida, como um triste acorde final, um adeus cantado. Este é o fim, não voltaremos. A casa, a casa de meu avô em que eu deveria crescer, está prestes a se apagar. Não me lembrarei dela. Eu gostaria de solicitar uma lista de países sem acordo de extradição. Na maioria são desconfortáveis, desorganizados, quentes. Ouvi dizer que Beijing é um lugar aprazível para fugitivos. Uma próspera aldeia de vilões que falam inglês enterrada na vastidão populosa da cidade cosmopolita. Um bom local para terminar.
“Soníferos, analgésicos”, Claude diz em voz alta.
Sua voz, seu tom me instigam. Hora de decidir. Ele está fechando as malas, prendendo as tiras de couro. Foi rápido. Então já deviam ter começado a fazê-las. São daquelas antigas, de duas rodinhas e não quatro. Claude as levanta da cama e põe no chão.
Trudy pergunta: “Qual?”.
Acho que está mostrando dois lenços de pescoço. Claude resmunga sua escolha. Isso não passa de um simulacro de normalidade. Quanto tomarem o trem, quando atravessarem a fronteira, a culpa dos dois vai se revelar. Só dispõem de uma hora e devem se apressar. Trudy diz que há um casaco que que ela quer e que não está conseguindo achar. Claude insiste que ela não vai precisar dele.
“É levinho”, ela diz. “O branco.”
“Você vai se destacar na multidão. Nas câmeras de segurança.”
Mas ela acaba encontrando-o justamente quando o Big Ben bate oito horas e o noticiário começa. Eles não param para escutar. Ainda há algumas últimas coisas para pegar. Na Nigéria, crianças queimadas vivas diante dos pais pelos guardiões das chamas. Na Coreia do Norte, um foguete é lançado. Ao redor do mundo, a elevação do nível do mar supera as previsões. Mas nenhuma dessas é a principal. Tal privilégio é dado a uma nova catástrofe. Uma combinação — pobreza e guerra, com mudança climática na reserva — que vem expulsando milhões de pessoas de seus lares, um antigo épico sob novo formato, vastos movimentos humanos como rios ingurgitados na primavera, Danúbios, Renos e Ródanos de seres irados ou desolados, ou esperançosos, amontoados nas fronteiras contra as cercas de arame cortante, afogando-se aos milhares ao tentarem compartilhar as riquezas do Ocidente. Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.
E, como sempre, há problemas mais perto de casa. Enquanto as emissoras de rádio e televisão prosseguem com suas cantilenas, as pessoas vão tocando seus negócios. Um casal acabou de se aprontar para uma viagem. As malas estão fechadas, mas há uma fotografia de sua mãe que a jovem mulher deseja levar. A pesada moldura esculpida é grande demais para ser posta na bagagem. Sem a ferramenta certa, a fotografia não pode ser removida, e a ferramenta, um tipo especial de chave, está no porão, no fundo de uma gaveta. O táxi espera lá fora. O trem parte dentro de cinquenta minutos, a estação fica um pouco longe, pode haver filas nos controles de segurança e de passaportes. O homem leva uma das malas para o patamar da escada e volta um pouco ofegante. Deveria ter usado as rodinhas.
“Agora temos mesmo que ir de qualquer maneira.”
“Preciso levar essa foto.”
“Leve debaixo do braço.”
Mas, além de ter de puxar a mala, ela carrega a bolsa, o casaco branco e eu.
Com um gemido, Claude pega a segunda mala a fim de levá-la para fora. Com esse esforço inútil quer mostrar o quanto é urgente eles partirem.
“Você não vai demorar nem um minuto. Está no canto da frente da gaveta do lado esquerdo.”
Ele volta. “Trudy. Estamos indo. Agora.”
A troca de palavras passou de lacônica a amarga.
“Leva para mim.”
“Nem pensar.”
“Claude. É minha mãe.”
“Estou pouco ligando. Estamos indo.”
Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais. Hora de entrar em ação. Acabar de uma vez por todas. Hora de começar. Não é fácil libertar meu braço direito, apertado contra o peito, ou movimentar o pulso. Mas agora isso foi feito. Um dedo indicador é a minha ferramenta especial para remover minha mãe da moldura. Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas. Faço a primeira tentativa de incisão. Minhas unhas são macias e, embora fino, o tecido é resistente. A evolução sabe das coisas. Tateio para encontrar a ranhura causada pelo meu dedo. Há uma dobra, bem definida, e é lá que tento de novo, até que na quinta investida sinto uma tênue esgarçadura e, na sexta, um minúsculo rompimento. Consigo enfiar a ponta da unha nesse rasgo, o dedo, dois dedos, três, quatro, até que por fim minha mão fechada abre o caminho e atrás dela vem um grande volume de líquido, a catarata do começo da vida. Minha proteção aquosa desapareceu.
Agora nunca saberei como a história da fotografia ou do trem das nove horas teria sido resolvida. Claude está fora do quarto, no alto da escada. Tem uma mala em cada mão, pronto para descer.
Minha mãe o chama com o que parece ser um gemido desapontado. “Ah, Claude.”
“O que agora?”
“A bolsa rompeu!”
“Cuidamos disso depois. No trem.”
Ele deve ter imaginado que se tratava de uma artimanha, da continuidade da discussão, um tipo repulsivo de problema feminino que ele está agitado demais para levar em conta.
Estou mexendo os ombros para me libertar da membrana embrionária, minha primeira experiência em matéria de me despir. Sou desajeitado. Três dimensões me parecem três a mais do que eu desejava. Prevejo que o mundo material será um desafio. O manto descartado continua retorcido em volta dos meus joelhos. Não faz mal. Tenho uma nova tarefa abaixo da cabeça. Não sei como sei o que devo fazer. É um mistério. Há certos conhecimentos com os quais simplesmente já chegamos. No meu caso, há este, e um punhado de escansões poéticas. Afinal, nenhuma lousa em branco. Trago a mesma mão à bochecha e a deslizo para baixo, ao longo da parede muscular do útero, a fim de achar o colo. Ele está bem apertado contra a parte de trás da minha cabeça. É lá, na entrada do mundo, que eu apalpo delicadamente com meus pequenos dedos e de imediato, como se alguma fórmula mágica houvesse sido pronunciada, o grande poder de minha mãe é estimulado, as paredes a meu redor se encrespam, tremem e se fecham sobre mim. É um terremoto, uma comoção gigantesca na caverna dela. Como o aprendiz de feiticeiro, fico horrorizado e depois esmagado pela força desencadeada. Eu deveria ter esperado a minha hora. Só um idiota se meteria com essa força. Ouço à distância minha mãe gritar. Pode ser um pedido de ajuda, quem sabe um berro de triunfo ou dor. Então sinto alguma coisa no topo da cabeça, minha coroa — um centímetro de dilatação! Não há volta.
Trudy se arrastou para a cama. Claude está em algum lugar perto da porta. Ela está arfando, excitada e muito assustada.
“Começou. Como é rápido! Chame uma ambulância.”
Ele não diz nada por um momento, depois simplesmente pergunta: “Onde está meu passaporte?”.
A derrota é minha, eu o subestimei. O objetivo de chegar mais cedo era para destruir Claude. Eu sabia que ele era um problema. Mas pensei que amava minha mãe e que ficaria com ela. Estou começando a entender a força mental de Trudy. Enquanto ele remexe a bolsa dela e se ouve o tilintar alegre das moedas contra o estojo de maquiagem, ela diz: “Escondi. Lá embaixo. Justamente caso isso acontecesse”.
Ele reflete. Já comprou e vendeu propriedades, possuiu um arranha-céu em Cardiff, sabe como fechar um negócio. “Me diga onde está que eu chamo uma ambulância para você. E aí vou embora.”
A voz dela é cautelosa. Observando de perto seu próprio estado, esperando, desejando e temendo a próxima onda. “Não. Se eu cair, você cai também.”
“Ótimo. Sem ambulância.”
“Eu mesma vou chamar. Assim que...”
Assim que tenha passado a segunda contração, mais forte que a primeira. De novo seu grito involuntário, o corpo todo se contraindo enquanto Claude atravessa o quarto para se aproximar da cama e desconectar da parede o telefone que estava na mesinha de cabeceira. Ao mesmo tempo, sou comprimido violentamente e erguido uns três ou quatro centímetros, sugado para baixo e para trás de onde estava hibernando. Uma cinta de ferro espreme mais e mais minha cabeça. Nossos três destinos esmagados por uma grande boca.
Assim que a onda reflui, Claude, como um guarda de fronteira, diz, impassível: “Passaporte?”.
Ela sacode a cabeça, espera até retomar o fôlego. Os dois mantêm uma espécie de equilíbrio.
Ela se recupera e diz, sem emoção na voz: “Então você vai ter que fazer o papel da parteira”.
“O filho não é meu.”
“O filho nunca é da parteira.”
Ela está apavorada, mas pode aterrorizá-lo com instruções.
“Quando ele sair, vai vir com o rosto para baixo. Você pega o bebê com as duas mãos, bem delicadamente, apoiando a cabeça dele, e põe em cima de mim. Ainda com o rosto para baixo, entre os meus seios. Perto de onde bate o coração. Não se preocupe com o cordão. Vai parar de pulsar sozinho, e o bebê começa a respirar. Ponha umas duas toalhas em cima dele para mantê-lo aquecido. E aí esperamos.”
“Esperamos? Meus Deus! Esperamos o quê?”
“Que a placenta saia.”
Não sei se ele se encolheu ou teve uma ânsia de vômito. Podia ainda estar imaginando que terminaria com aquilo e pegaria um trem mais tarde.
Ouço com atenção, querendo saber o que fazer. Me enfiar embaixo de uma toalha. Respirar. Não pronunciar uma única palavra. Mas não basta ser um bebê. Com certeza rosa ou azul!
“Por isso, vá buscar uma porção de toalhas. Vai ser uma sujeirada. Lave as mãos bem lavadas, com a escovinha de unhas e muito sabonete.”
Tão longe de onde dava pé para ele, tão longe da costa acolhedora, um homem sem seus documentos deveria estar em plena fuga. Ele dá meia-volta para fazer o que lhe foi ordenado.
E assim seguem as coisas, onda atrás de onda, gritos e gemidos, súplicas para que a agonia tenha fim. Progresso impiedoso, ejeção em curso. O cordão se desenrola atrás de mim à medida que avanço lentamente. Para a frente e para fora. Forças cruéis da natureza pretendem me achatar. Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos.
Um momento deslizante de urgência pegajosa, com sons ásperos, e aqui estou eu, trazido nu ao reino. Como o corajoso Cortés (lembro de um poema que meu pai recitou), estou pasmo. Olhando para baixo, maravilhado, para o que presumo ser a superfície felpuda de uma toalha de banho azul. Azul. Eu sempre soube, ao menos verbalmente, sempre fui capaz de deduzir o que era o azul — mar, céu, lápis-lazúli, gencianas — meras abstrações. Agora o tenho por fim, o possuo e ele me possui. Mais grandioso do que eu ousava crer. Isto é só o começo, na extremidade índigo do espectro.
Meu fiel cordão, que me mantinha vivo e não conseguiu me matar, de repente morre como planejado. Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom. Os sons são límpidos, brilhantes graças ao realce dos agudos. A resplandecente toalha, irradiando sua cor, evoca a mesquita de Goharshad no Irã que fez meu pai chorar nas primeiras horas de uma manhã. Minha mãe se mexe e faz com que minha cabeça mude de posição. Vejo Claude de relance. Menor do que eu imaginava, com ombros estreitos e cara de raposa. Sem a menor dúvida, com uma expressão de repugnância. A luz do sol do início da noite de verão atravessa as folhas de um plátano e projeta no teto desenhos tremulantes. Ah, a alegria de esticar as pernas, de verificar no despertador sobre a mesinha de cabeceira que eles jamais pegarão aquele trem. Mas não tenho muito tempo para saborear esse momento. Minha maleável caixa torácica é apertada pelas mãos enojadas de um assassino e sou posto na barriga hospitaleira, branca como a neve, de outra assassina.
As batidas de seu coração soam distantes, abafadas, mas são tão familiares quanto um velho estribilho que não ouvimos há décadas. O ritmo da música é um andante, passos delicados que me conduzem ao verdadeiro portão aberto. Não posso negar o medo que sinto. Mas estou exausto, um marinheiro náufrago que chegou a uma praia bem-afortunada. Estou caindo, mesmo enquanto o mar lambe meus tornozelos.
Trudy e eu devemos ter cochilado. Não sei quantos minutos se passaram até ouvirmos a campainha. Como ela soa claro. Claude ainda está aqui, ainda esperando obter seu passaporte. Ele deve ter descido para caçar o documento. Agora caminha até o interfone. Olha de relance a tela e dá meia-volta. Não pode haver surpresas.
“São quatro”, ele diz, mais para si mesmo.
Contemplamos esse fato. Acabou. Não é um bom final. Nunca seria.
Minha mãe me muda de lugar para que possamos trocar um longo olhar. O momento pelo qual esperei. Meu pai tinha razão, é um rosto adorável. O cabelo mais escuro do que eu pensava, os olhos de um verde mais pálido, as bochechas ainda coradas por causa do esforço recente, o nariz de fato uma coisinha bem pequena. Acho que vejo o mundo inteiro nesse rosto. Belo. Amoroso. Assassino. Ouço Claude atravessar o quarto com passos resignados para descer até a porta. Nenhum clichê. Mesmo nesse intervalo de descanso, durante o longo e ávido olhar no fundo dos olhos de minha mãe, estou pensando no táxi que espera lá fora. Um desperdício. Hora de mandá-lo embora. E estou pensando na nossa cela — espero que não seja pequena demais — e, mais além de sua pesada porta, nos degraus gastos que sobem: primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos.
18.
No começo da tarde, o telefone toca e o futuro se apresenta. Inspetora-chefe Clare Allison, designada para cuidar do caso. A voz soa amistosa, nenhum indício de acusação. Isso pode ser um mau sinal.
Estamos de novo na cozinha, Claude segura o fone. O primeiro café do dia na outra mão. Trudy se posta perto dele e nós dois ouvimos os dois interlocutores. Caso? A palavra contém uma ameaça. Inspetora-chefe? Também não ajuda muito.
Avalio a ansiedade de meu tio por seu zelo em se mostrar solícito. “Ah, sim. Sim! É claro. Por favor, faça isso.”
A inspetora-chefe Allison pretende nos visitar. O normal seria os dois irem à delegacia para uma conversa. Ou prestar depoimento, se apropriado. No entanto, por causa da gravidez avançada de Trudy, da dor da família, a inspetora-chefe e um sargento virão daqui a uma hora. Ela gostaria de dar uma olhada no local onde houve o último contato com o falecido.
Esta última informação, inocente e razoável a meus ouvidos, provoca em Claude um frenesi de boas-vindas. “Venha, por favor. Maravilhoso. Sem dúvida. Será um prazer conhecê-la. Contando os minutos. A senhora...”
Ela desliga. Ele se volta para nós, provavelmente cor de cinza, e diz numa voz desapontada: “Ah”.
Trudy não resiste a imitá-lo: “Tudo... ótimo, não é?”.
“Que caso é esse? Não se trata de uma questão criminal.” Ele apela a uma audiência imaginária, a um conselho de sábios. A um júri.
“Odeio isso”, minha mãe murmura, mais para si mesma. Ou para mim, eu gostaria de acreditar.
“Deve ser para o juiz de instrução.” Claude se afasta de nós, ofendido, dá uma volta pela cozinha e retorna, indignado. Agora sua queixa é dirigida a Trudy. “Não se trata de um caso de polícia.”
“Ah, é mesmo?”, ela diz. “Melhor então telefonar para a inspetora e explicar isso a ela.”
“Aquela poeta. Eu sabia que não podíamos confiar nela.”
Entendemos que, como Elodia é assunto de minha mãe, de algum modo isso constitui uma acusação.
“Você gostou dela.”
“Você disse que ela ia ser útil.”
“Você gostou dela.”
Mas a reiteração deliberadamente impassível não o espicaça.
“Quem não gostaria? E quem se importa com isso?”
“Eu me importo.”
Pergunto-me mais uma vez o que ganho se eles brigarem. Isso poderia arruiná-los. Então eu ficaria com Trudy. Já a escutei dizer que, na prisão, mães que estão amamentando levam uma vida melhor. Mas vou perder meu direito de nascer, o sonho de todos os seres humanos, minha liberdade. Enquanto juntos, como uma equipe, eles podem escapar raspando. E depois me darem para alguém. Sem mãe, mas livre. Portanto, o que é melhor? Já pensei nisso, voltando sempre ao mesmo bendito lugar, à única decisão moralmente correta. Vou arriscar os confortos materiais e me aventurar no mundo. Já estive confinado por tempo demais. Voto pela liberdade. Os assassinos precisam escapar. Então, antes que a discussão sobre Elodia vá longe demais, este é um bom momento para dar outro pontapé em minha mãe, distraí-la da briga com o interessante fato da minha existência. Não um nem dois, mas o número mágico de todas as boas histórias antigas. Três vezes, como Pedro negando Jesus.
“Ai, ai, ai!” Ela quase canta isso. Claude puxa uma cadeira para ela e traz um copo de água.
“Você está suando.”
“Bom, estou com calor.”
Ele testa as janelas. Não são movidas há anos. Procura gelo, mas os recipientes estão vazios depois das três rodadas recentes de gim e tônica. Por isso ele se senta diante dela e oferece sua refrescante solidariedade.
“Vai dar tudo certo.”
“Não, não vai.”
O silêncio dele concorda. Eu estava pensando num quarto chute, mas o estado de espírito de Trudy é perigoso. Ela pode partir para o ataque e provocar uma reação temerária.
Depois de uma pausa, em tom apaziguador, ele diz: “Devíamos repassar mais uma vez”.
“Que tal um advogado?”
“Um pouquinho tarde agora.”
“Diga a eles que não vamos falar sem a presença de um advogado.”
“Não vai cair bem, quando eles só estão vindo bater um papo.”
“Odeio isso.”
“Devíamos repassar mais uma vez.”
Mas não repassam. Estupefatos, contemplam a abordagem da inspetora-chefe Allison. Muito em breve. Dentro de uma hora pode significar em um minuto. Sabendo de tudo, de quase tudo, sou parte do crime, sem dúvida a salvo de um interrogatório, porém amedrontado. E curioso, impaciente para testemunhar as habilidades da inspetora-chefe. Alguém de mente aberta seria capaz de desmascarar esses dois em minutos. Trudy traída pelos nervos, Claude pela burrice.
Estou tentando imaginar onde estão as canecas de café da manhã usadas durante a visita de meu pai. Transferidas, penso agora, para a pia, onde esperam sem ter sido lavadas. DNA numa caneca provará que minha mãe e meu tio dizem a verdade. Os restos dos sanduíches dinamarqueses devem estar por perto.
“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”
“Na cozinha.”
“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”
“Dinheiro.”
“Não. Botar você para fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”
“Anos.”
“Meses. Quanto emprestei para ele?”
“Mil.”
“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”
“Estou grávida. Afeta a memória.”
“Você mesma disse ontem. Tudo como foi, mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga.”
“Mais a luva. Menos que ele estava voltando para cá.”
“Meu Deus, sim. Outra vez. Qual a causa da depressão?”
“Nós. Dívidas. Trabalho. O bebê.”
“Certo.”
Repassam mais uma vez. Na terceira, soa melhor. Que cumplicidade mais doentia, eu desejar que eles tenham êxito!
“Então repita.”
“Tal como aconteceu. Menos a vitamina, mais a briga e a luva, menos a depressão, mais que ele estava voltando para cá.”
“Não. Porra! Trudy. Exatamente como foi. Mais a depressão, menos a vitamina, mais a briga, mais a luva, menos a volta para cá.”
A campainha toca e eles se imobilizam.
“Diga a eles que não estamos prontos.”
Para minha mãe, essa era a ideia de uma piada. Ou prova de seu terror.
Provavelmente resmungando obscenidades, Claude caminha até o videofone, muda de ideia e segue para a escada em direção à porta da frente.
Trudy e eu damos uma volta nervosa pela cozinha, arrastando os pés. Ela também resmunga enquanto trabalha na história. Isso é proveitoso porque cada esforço sucessivo da memória a afasta mais dos fatos reais. Ela está memorizando suas lembranças. Os erros de transcrição serão a seu favor. Constituirão de início um colchão útil, transformando-se depois em verdade. Também poderia dizer a si mesma: ela não comprou o glicol, não foi à Judd Street, não preparou a bebida, não pôs as coisas no carro, não jogou o liquidificador no lixo. Ela limpou a cozinha — nada de ilegal nisso. Convencida, estará libertada da astúcia consciente e pode ter uma chance. A mentira eficaz, assim como uma tacada de mestre no golfe, está livre da autoconsciência. Presto atenção nos comentários esportivos.
Atento aos passos que descem a escada, eu os diferencio. Os da inspetora-chefe Allison são leves, até mesmo como os de um passarinho, apesar de seu posto elevado. Apertos de mão são trocados. Pelo rígido “Como vai a senhora?” do sargento, reconheço o policial mais velho que esteve aqui ontem. O que terá impedido sua promoção? Classe, educação, Q.I., escândalo — o último, espero, pelo qual ele pode ser culpado, não precisando da minha compaixão.
A ágil inspetora-chefe senta-se à mesa da cozinha e convida todos a fazerem o mesmo, como se a casa fosse dela. Acho que capto minha mãe pensando que seria mais fácil enganar um homem. Allison abre uma pasta e fica apertando repetidamente o botão da mola da caneta enquanto fala. Nos diz que antes deseja expressar — faz uma pausa de grande efeito para olhar, não tenho dúvida, no fundo dos olhos de Trudy e de Claude — seus profundos sentimentos pela perda de um marido querido, de um irmão querido, de um amigo querido. Nada de um pai querido. Estou lutando contra o sentimento gélido e bem conhecido de exclusão. Mas a voz é cálida, maior que seu corpo, enfrentando sem tensões os ossos do ofício. A ligeira pronúncia típica dos habitantes mais pobres do leste de Londres corresponde aos padrões urbanos consagrados, e não será facilmente desafiada. Não pelas vogais forçadas de minha mãe, aprendidas em colégios caros. Esse velho truque já não funcionaria. Os tempos são outros. Um dia a maior parte dos estadistas britânicos falará como a inspetora-chefe. Me pergunto se ela tem uma arma. Desnecessário. Como a rainha, que não carrega dinheiro. Atirar nas pessoas é coisa de sargento para baixo.
Allison explica que se trata de uma conversa informal para ajudá-la a ter uma compreensão mais ampla dos trágicos acontecimentos. Trudy e Claude não têm nenhuma obrigação de responder às perguntas. Mas ela está errada. Eles se sentem obrigados. A recusa os faria dar a impressão de serem suspeitos. No entanto, se a inspetora-chefe estiver uma jogada à frente, pode pensar que a aceitação é ainda mais suspeita. Os que nada têm a esconder insistiriam num advogado como precaução contra os erros policiais ou uma intromissão ilegal.
Ao nos acomodarmos em torno da mesa, reparo na ausência de indagações corteses sobre mim, coisa de que me ressinto. Espera para quando? Menino ou menina?
Em vez disso, a inspetora-chefe não perde tempo. “Vocês podem me mostrar a casa depois que terminarmos a conversa.”
Mais uma afirmação que um pedido. Claude está ansioso, ansioso demais, para obedecer. “Ah, sim. Sim!”
Uma ordem de busca seria a alternativa. Mas não há nada de interessante para a polícia no andar de cima além da imundície.
A inspetora-chefe diz para Trudy: “Seu marido veio aqui ontem por volta das dez horas da manhã?”.
“Isso mesmo.” Seu tom é impassível, um exemplo para Claude.
“E houve alguma tensão.”
“Naturalmente.”
“Por que naturalmente?”
“Estou morando com o irmão dele na casa que John achava que era sua.”
“De quem é a casa?”
“Do casal.”
“O casamento tinha acabado?”
“Sim.”
“Se importa se eu perguntar? Ele achava que tinha acabado?”
Trudy hesita. Pode haver uma resposta certa e uma errada.
“Ele me queria de volta, mas também queria manter suas amigas.”
“Conhece algum nome?”
“Não.”
“Mas ele lhe falou sobre elas?”
“Não.”
“Mas de alguma maneira a senhora sabia.”
“Claro que eu sabia.”
Trudy se permite algum desdém. Como se para dizer: “Sou a mulher de verdade aqui”. Mas ignorou as instruções de Claude. Devia dizer a verdade, acrescentando e subtraindo apenas o que tinha sido combinado. Ouço meu tio se mexer na cadeira.
Sem fazer nenhuma pausa, Allison muda de assunto. “Vocês tomaram café.”
“Sim.”
“Os três? Em volta desta mesa?”
“Os três.” Claude diz isso, talvez preocupado que seu silêncio esteja passando uma má impressão.
“Mais alguma coisa?”
“O quê?”
“Com o café. Vocês lhe ofereceram alguma coisa mais?”
“Não.” Minha mãe soa cautelosa.
“E o que havia no café?”
“Como assim?”
“Leite? Açúcar?”
“Ele sempre tomava sem leite.” O ritmo do pulso dela acelerou.
Mas o comportamento de Clare Allison é impenetravelmente neutro. Ela se volta para Claude. “Então o senhor lhe emprestou algum dinheiro.”
“Sim.”
“Quanto?”
“Cinco mil.” Claude e Trudy respondem num coro mal sincronizado.
“Um cheque?”
“Na verdade em dinheiro vivo. Foi como ele queria.”
“O senhor tem ido àquela loja de vitaminas na Judd Street?”
A resposta de Claude é tão rápida quanto a pergunta. “Uma ou duas vezes. Foi John quem nos falou sobre ela.”
“Imagino que o senhor não tenha estado lá ontem.”
“Não.”
“Nunca pediu emprestado o chapéu preto de aba larga dele?”
“Nunca. Não faz meu estilo.”
Essa pode ser a resposta errada, mas não há tempo para raciocinar. As perguntas adquiriram um novo peso. O coração de Trudy está batendo mais rápido. Eu não confiaria nela para falar. Mas ela fala, e com voz estrangulada.
“Presente meu de aniversário. Ele amava aquele chapéu.”
A inspetora-chefe já está passando para algo diferente, mas volta atrás. “É tudo que se vê na câmera de segurança. Mandamos o chapéu para um teste de DNA.”
“Nem lhes oferecemos chá, café”, diz Trudy com voz alterada.
A inspetora-chefe deve ter recusado com um balançar de cabeça por ela e pelo sargento, ainda em silêncio. “Agora é quase tudo assim”, ela diz num tom nostálgico, “ciência e telas de computadores. Mas onde estávamos? Ah, sim. Houve alguma tensão. Mas vejo em minhas anotações que ocorreu uma briga.”
Claude deve estar fazendo os mesmos raciocínios apressados que eu. Seu cabelo será encontrado no chapéu. A resposta correta era sim, tinha pedido emprestado algum tempo atrás.
“Sim”, diz Trudy. “Uma de muitas.”
“Se importa de me dizer...”
“Ele queria que eu saísse da casa. Eu disse que iria quando estivesse pronta.”
“Quando ele foi embora, qual era seu estado de espírito?”
“Bem ruim. Estava péssimo. Confuso. Na verdade não queria que eu me mudasse daqui. Me queria de volta. Tentou que eu ficasse com ciúme, fingindo que Elodia era sua amante. Ela nos esclareceu tudo. Os dois não tinham um relacionamento.”
Detalhes demais. Ela está tentando retomar o controle. Mas falando muito rápido. Precisa dar uma respirada.
Clare Allison fica em silêncio enquanto aguardamos para saber qual a próxima direção que tomará. Mas ela continua nesse assunto, declarando da forma mais delicada possível: “Não é a informação que tenho”.
Um instante de torpor, como se o próprio som houvesse sido assassinado. O espaço em torno de mim se contrai porque Trudy parece ter se esvaziado como um balão. A coluna se dobra como a de uma velha. Sinto um pequeno orgulho de mim. Sempre tive minhas suspeitas. Com que avidez eles tinham acreditado em Elodia. Agora eles sabem: “Nem o copo-de-leite se demora”. Mas também preciso ter cautela. A inspetora-chefe pode ter razões para mentir. Está apertando o botão da caneta esferográfica, pronta para seguir em frente.
Minha mãe diz baixinho: “Bem, suponho que eu fui a mais enganada”.
“Sinto muito, sra. Cairncross. Mas minhas fontes são boas. Digamos apenas que se trata de uma jovem complicada.”
Eu poderia explorar a teoria de que não é mau negócio para Trudy ser a pessoa injuriada, obter corroboração para a história do marido infiel. Mas estou pasmo; nós dois estamos pasmos. Meu pai, aquela partícula mal compreendida, girando, se afasta ainda mais de mim no momento em que a inspetora-chefe faz outra pergunta a minha mãe. Ela também responde baixinho, com o tremor adicional de uma garotinha punida.
“Alguma violência?”
“Não.”
“Ameaças?”
“Não.”
“Nenhuma de sua parte.”
“Não.”
“E sobre a depressão dele? O que pode me dizer?”
Isso é dito gentilmente, e deve ser uma armadilha. Mas Trudy não faz uma pausa. Angustiada demais para inventar novas mentiras, persuadida demais de sua verdade, repete tudo que disse antes, na mesma linguagem inverossímil. Constante dor mental... Vociferava contra aqueles que amava... arrancava os poemas de sua alma. Vem-me a imagem vívida de uma parada de soldados exaustos, as plumas dos chapéus destruídas. A recordação em sépia de um podcast, as guerras napoleônicas em muitos episódios. Na época em que minha mãe e eu estávamos tranquilos. Ah, se Bonaparte tivesse se mantido dentro de suas fronteiras e feito boas leis para a França!
Claude entra na conversa: “Ele era seu pior inimigo”.
A acústica diferente me diz que a inspetora-chefe se voltou a fim de olhar diretamente para ele. “Algum outro inimigo, além dele próprio?”
O tom é despretensioso. Na melhor das hipóteses, uma pergunta pouco relevante; na pior das hipóteses, prenhe de intenções sinistras.
“Eu não saberia dizer. Nunca fomos muito próximos.”
“Me conte”, ela diz, com a voz mais calorosa, “sobre a infância dos dois. Isto é, se o senhor quiser.”
Ele quer. “Eu era três anos mais novo. Ele era bom em tudo. Esportes, estudos, garotas. Me achava um boboca insignificante. Quando cresci, fiz a única coisa que ele não conseguia fazer. Ganhar dinheiro.”
“Propriedades.”
“Esse tipo de coisa.”
A inspetora-chefe se volta de novo para Trudy. “Esta casa está à venda?”
“Claro que não.”
“Ouvi dizer que estava.”
Trudy não reage. Sua primeira jogada certa em muitos minutos.
Será que a inspetora-chefe está de uniforme? Deve estar. Seu quepe estará em cima da mesa, junto a seu cotovelo, como um grande bico. Não vejo nela a simpatia de um mamífero, mas rosto e lábios finos, roupas abotoadas até em cima. Sem dúvida sua cabeça, como a de um pombo, balança para a frente e para trás quando ela anda. O sargento a vê como uma detalhista. Fadada a galgar postos mais altos em que ele não a verá mais. Ela vai voar. Ou concluiu que John Cairncross se suicidou, ou tem razões para acreditar que uma gravidez no nono mês é uma boa maneira de ocultar um crime. Tudo que a inspetora-chefe diz, a observação mais banal, se presta a interpretações. O único poder que temos consiste em projetar. Tal como Claude, ela pode ser esperta ou burra, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Simplesmente não sabemos. Nossa ignorância é o que enche sua mão com as melhores cartas do baralho. Meu palpite é que ela tem poucas suspeitas, que não sabe de nada. Que seus superiores a estão observando. Que precisa ser delicada porque esta conversa é irregular, podendo comprometer o processo legal. Que ela vai preferir o apropriado ao verdadeiro. Que sua carreira é um ovo que ela botou, ela vai se sentar sobre ele, chocá-lo e esperar.
Mas já me enganei antes.
19.
Qual o próximo passo? Clare Allison quer dar uma olhada na casa. Péssima ideia. Mas recusar agora, quando, pelo que sei, as coisas estão indo mal, tornaria tudo pior. O sargento sobe na frente a escada de madeira, seguido por Claude, pela inspetora-chefe, depois por minha mãe e eu. No térreo, a inspetora-chefe diz que, se concordarmos, ela gostaria de ir até o último andar e descer “trabalhando”. Trudy não se interessa em subir mais. Os outros continuam, enquanto nós dois vamos nos sentar na sala — e pensar.
Envio meus pensamentos velozes adiante deles, primeiro à biblioteca. Pó de gesso, cheiro de morte, mas relativamente arrumada. No andar superior, quarto e banheiro, caos de uma espécie íntima, a própria cama um emaranhado de lascívia e sono interrompido, o chão coalhado de roupas largadas por Trudy, o banheiro com potes destampados, unguentos e roupa de baixo suja. Me pergunto o que a desordem significa para olhos desconfiados. Não há de ser algo moralmente neutro. O desdém pelas coisas, pela organização, pela limpeza deve pertencer a uma escala onde existe também o desprezo pelas leis, pelos valores, pela própria vida. O que é um criminoso senão um espírito transtornado? No entanto, um quarto excessivamente arrumado também poderia levantar suspeitas. A inspetora-geral, com os olhos aguçados de uma águia, vai olhar o quarto de relance e se afastar. Mas no subconsciente a repugnância deve afetar seu julgamento.
Há cômodos mais acima, porém nunca fui tão longe. Trago meus pensamentos para o térreo e, como uma criança bem-comportada, atento para o estado de minha mãe. Seu ritmo cardíaco se estabilizou. Ela parece quase calma. Talvez fatalista. A bexiga cheia pressiona minha cabeça. Mas ela não está disposta a se mover. Faz seus cálculos, talvez pensando no plano dos dois. Porém deveria se perguntar qual é o seu próprio interesse. Dissociar-se de Claude. Incriminá-lo de algum modo. De nada serve os dois cumprirem uma pena de prisão. Então ela e eu poderíamos ir ficando por aqui. Ela não ia querer me dar a alguém se estivesse sozinha numa casa grande. Nesse caso, prometo que a perdoaria. Ou me encarregaria dela mais tarde.
Mas não há tempo para maquinações. Ouço-os descer de volta. Passam pela porta aberta da sala, a caminho da porta da frente. A inspetora-chefe certamente não pode ir embora sem um respeitoso adeus à viúva. Na verdade, Claude abriu a porta para mostrar a Allison onde seu irmão tinha estacionado o carro, como no início o motor não pegou, como, apesar da briga, eles tinham acenado quando o carro começou a funcionar e deu marcha a ré para alcançar a rua. Uma lição em matéria de contar a verdade.
Logo depois, Claude e os policiais estão diante de nós.
“Trudy — posso chamá-la de Trudy? Que momento terrível, e você está sendo muito prestativa. Muito hospitaleira. Não sei...” A inspetora-chefe se interrompe, sua atenção desviada. “Aquilo é do seu marido?”
Ela está olhando para as caixas de papelão que meu pai trouxe e deixou embaixo da janela semicircular. Minha mãe se põe de pé. Se vai haver algum problema, melhor que use sua altura. E largura.
“Ele estava voltando para cá. Saindo de Shoreditch.”
“Posso ver?”
“Apenas livros. Mas pode, sim.”
O sargento solta um murmúrio ofegante quando se ajoelha para abrir as caixas. Eu diria que a inspetora-chefe está agachada, agora não como um pássaro, mas como uma pata gigantesca. É errado eu não gostar dela. Ela é a lei, e já me considero no tribunal de Hobbes. O Estado precisa deter o monopólio da violência. Mas o jeitão da inspetora-chefe me irrita, o modo como vasculha as coisas de meu pai, seus livros prediletos, enquanto parece falar consigo mesma sabendo que não temos alternativa senão escutá-la.
“Não entendo. Muito, muito triste... bem na pista de acesso...”
Claro que ela está representando, trata-se de um prelúdio. Ela se levanta. Acho que está olhando para Trudy. Talvez para mim.
“Mas o verdadeiro mistério é o seguinte. Nenhuma impressão digital na garrafa de glicol. Nem no copo. Soube disso há pouco pelo pessoal técnico. Nenhum vestígio. Que estranho!”
“Ah!”, diz Claude, mas Trudy o interrompe. Eu deveria alertá-la. Ela não deve se mostrar tão ansiosa. Sua explicação vem depressa demais. “A luva. Problema de pele. Ele tinha tanta vergonha das mãos!”
“Ah, a luva!”, exclama a inspetora-chefe. “Tem razão. Esqueci completamente!” Ela está desdobrando um pedaço de papel. “Essa?”
Minha mãe dá um passo à frente para olhar. Deve ser a reprodução de uma fotografia. “Sim.”
“Não havia outra?”
“Não como essa. Eu costumava dizer que ele não precisava dela. Ninguém realmente se importava.”
“Ele usava o tempo todo?”
“Não. Mas bastante, principalmente quando estava deprimido.”
A inspetora-chefe está de saída, e isso é um alívio. Nós todos a acompanhamos até o vestíbulo.
“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo... Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto — os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”
A porta da frente é aberta, provavelmente pelo sargento. A inspetora-chefe sai. Ao se afastar, sua voz diminui de volume e se mistura ao som do tráfego. “Não consigo de jeito nenhum me lembrar do nome em latim. Há muito tempo nenhuma mão calçava aquela luva.”
O sargento toca no braço de minha mãe e por fim fala, dizendo gentilmente ao partir: “Voltamos amanhã de manhã. Para esclarecer umas últimas coisas”.
20.
Por fim, a hora chegou. Há decisões a serem tomadas, urgentes, irreversíveis, autocondenatórias. Mas antes Trudy necessita de dois minutos de solidão. Corremos para o porão, para aquilo que antes chamavam de casinha. Lá, enquanto a pressão sobre meu crânio é aplacada e minha mãe continua sentada alguns segundos mais do que seria necessário, suspirando para si própria, meus pensamentos tornam-se claros. Ou tomam um novo rumo. Pensei que os assassinos deveriam escapar para garantir minha liberdade. Essa pode ser uma visão muito estreita, muito egoísta. Há outras considerações. O ódio a meu tio pode exceder o amor por minha mãe. Puni-lo pode ser mais nobre que salvá-la. Mas talvez seja possível conseguir as duas coisas.
Essas preocupações permanecem comigo ao voltarmos à cozinha. Parece que, depois que os policiais foram embora, Claude percebeu que precisava de um uísque. Ao ouvir a bebida sendo servida quando entrarmos, um som sedutor, Trudy descobre que também precisa de um. Dos grandes. Com água da torneira, meio a meio. Em silêncio, meu tio se desincumbe da tarefa. Em silêncio, ficam de pé frente a frente junto à pia. Não é hora de brindar. Cada um contemplando os erros do outro ou até mesmo os seus. Ou decidindo o que fazer. Esta é a emergência que temiam, e para a qual têm um plano. Bebem o que há nos copos e, sem uma palavra, partem para uma segunda dose. Nossas vidas estão prestes a mudar. A inspetora-chefe Allison paira sobre nós, uma deusa imprevisível e sorridente. Não saberemos, até que seja tarde demais, por que não efetuou as prisões naquele momento, por que nos deixou a sós. Dando os últimos retoques no caso, esperando a análise de DNA no chapéu, seguindo em frente? Minha mãe e meu tio devem levar em conta que qualquer escolha feita agora pode ser a que ela espera deles, e ela está a postos. Também é possível que o misterioso plano dos dois não tenha ocorrido a ela, e então os dois estariam um passo adiante. Boa razão para agir com audácia. Em vez disso, nesse momento eles preferem um drinque. Talvez qualquer coisa que façam preste um serviço a Clare Allison, inclusive esse interlúdio com um single malt. Mas não, a única chance deles é optar pela escolha radical — e agora.
Trudy ergue o braço para impedir uma terceira dose. Claude é mais resoluto. Está empenhado na busca rigorosa da clareza mental. Ouvimos enquanto se serve — ele vem bebendo uísque puro em grandes quantidades —, depois quando engole emitindo um som forte, que conhecemos bem. Devem estar se perguntando como evitar uma briga exatamente no momento que precisam trabalhar juntos. De longe chega o som de uma sirene, apenas uma ambulância, mas que espicaça seus medos. A rede do Estado se estende invisível por toda a cidade. Difícil escapar dela. Mas funciona como um ponto de teatro, porque finalmente ocorre uma fala, uma útil afirmação do óbvio.
“Isto é ruim.” A voz de minha mãe é baixa e gutural.
“Onde estão os passaportes?”
“Estão comigo. E o dinheiro?”
“Na minha maleta.”
Mas eles não se movem, e a assimetria da troca de palavras — a resposta evasiva de minha mãe — não provoca meu tio. Ele está bem avançado na terceira dose, quando a primeira de Trudy chega a mim. Nada sensual, mas, sem exagero, cai bem diante da situação, essa sensação de fim sem um começo à vista. Visualizo uma velha estrada militar através de um desfiladeiro gelado nas montanhas, um leve odor de pedra úmida e turfa, o som de aço e passos obedientes no chão de cascalho, o peso da amarga injustiça. Tão distante das vertentes voltadas para o sul, das flores cobertas de pólen nos fartos ramalhetes roxos que emolduravam as colinas longínquas, com seus tons sobrepostos de um índigo cada vez mais pálido. Eu preferia estar lá. Mas admito — o uísque, meu primeiro, liberta minha mente. Uma cruel libertação: o portão aberto conduz à luta e ao medo do que a mente é capaz de criar. Está acontecendo comigo agora. Me perguntam, eu mesmo me pergunto, o que mais desejo agora. Qualquer coisa. O realismo não é um fator limitativo. Corte as cordas, solte a imaginação. Posso responder sem pensar: vou atravessar o portão aberto.
Passos na escada. Trudy e Claude olham para cima, surpresos. Será que a inspetora encontrou um modo de entrar na casa? Um ladrão escolheu a pior das noites? É uma descida lenta, pesada. Eles veem um sapato preto de couro, um cinto, uma camisa manchada de vômito, e depois uma expressão terrível, ao mesmo tempo vazia e determinada. Meu pai está com as roupas com que morreu. Rosto exangue, lábios preto-esverdeados já em putrefação, olhos pequenos e penetrantes. Agora se postou ao pé da escada, mais alto que em minhas recordações. Veio do necrotério para nos encontrar e sabe exatamente o que deseja. Estou tremendo porque minha mãe também está. A imagem não é bruxuleante, ela nada tem de fantasmagórica. Este é meu pai em carne e osso, John Cairncross, como sempre foi. O gemido aterrorizado de minha mãe serve como estímulo, pois ele caminha em nossa direção.
“John”, Claude diz com cautela, num tom de voz ascendente, como se pudesse despertar aquela figura e levá-la de volta à não existência a que pertence. “John, somos nós.”
Isso parece bem entendido. Ele está à nossa frente, exalando um miasma de glicol e carne visitada por vermes amigáveis. É minha mãe quem ele encara fixamente com olhos pequenos, duros e negros, feitos de uma rocha indestrutível. Seus lábios repulsivos se movem, mas não emitem nenhum som. A língua é mais preta que os lábios. Mantendo o olhar nela o tempo todo, ele estende um braço. A mão descarnada se aferra à garganta de meu tio. Minha mãe não consegue nem gritar. Os olhos ilíquidos continuam pregados nela. Isso é para ela, o presente dele. A mão impiedosa aperta ainda mais. Claude cai de joelhos, olhos esbugalhados, as mãos golpeando e puxando inutilmente o braço do irmão. Só um guincho distante, o som patético de um camundongo, nos diz que ele ainda está vivo. Depois não está mais. Meu pai, que nem de relance olhou para ele uma única vez, deixa-o tombar no chão e agora puxa sua mulher para perto de si, a envolve em braços finos e fortes como vergalhões de aço. Traz o rosto dela para junto do dele e lhe dá um beijo longo e intenso com lábios gelados e apodrecidos. Ela é tomada de horror, de repugnância, de vergonha. Será atormentada por esse instante até o dia de sua morte. Indiferente, ele a liberta e caminha de volta para onde veio. Ao subir a escada, já começa a se desvanecer.
Bem, me perguntaram. Eu mesmo me perguntei. E era isso que eu queria. Uma fantasia infantil do Dia das Bruxas. De que outro modo encomendar a vingança de um espírito numa era de convicções seculares? O gótico foi razoavelmente banido, as feiticeiras largaram às pressas os caldeirões, só nos restou o materialismo, tão perturbador para a alma. Uma voz no rádio me disse certa vez que, quando compreendermos perfeitamente o que é a matéria, vamos nos sentir melhor. Duvido. Nunca terei o que quero.
Volto de meus devaneios e vejo que estamos no quarto. Não me lembro de termos subido. O som oco da porta do armário, o tilintar dos cabides de casacos, uma mala posta na cama, depois outra, o estalido das fechaduras sendo abertas. Eles deveriam ter feito as malas com antecedência. A inspetora poderia vir até mesmo esta noite. É isso que eles chamam de plano? Ouço imprecações e resmungos.
“Onde é que está? Estava aqui comigo. Na minha mão!”
Cruzam o quarto de um lado ao outro, abrem gavetas, entram e saem do banheiro. Trudy deixa cair um copo, que se estilhaça no chão. Ela nem liga. Por algum motivo, o rádio está ligado. Claude senta-se com seu notebook e murmura: “Trem às nove. O táxi está a caminho”.
“Eu preferia Paris a Bruxelas. Melhores conexões para seguir viagem”, Trudy resmunga para si mesma ainda no banheiro. “Dólares... euros.”
Tudo que eles dizem, mesmo os ruídos que fazem, têm um ar de despedida, como um triste acorde final, um adeus cantado. Este é o fim, não voltaremos. A casa, a casa de meu avô em que eu deveria crescer, está prestes a se apagar. Não me lembrarei dela. Eu gostaria de solicitar uma lista de países sem acordo de extradição. Na maioria são desconfortáveis, desorganizados, quentes. Ouvi dizer que Beijing é um lugar aprazível para fugitivos. Uma próspera aldeia de vilões que falam inglês enterrada na vastidão populosa da cidade cosmopolita. Um bom local para terminar.
“Soníferos, analgésicos”, Claude diz em voz alta.
Sua voz, seu tom me instigam. Hora de decidir. Ele está fechando as malas, prendendo as tiras de couro. Foi rápido. Então já deviam ter começado a fazê-las. São daquelas antigas, de duas rodinhas e não quatro. Claude as levanta da cama e põe no chão.
Trudy pergunta: “Qual?”.
Acho que está mostrando dois lenços de pescoço. Claude resmunga sua escolha. Isso não passa de um simulacro de normalidade. Quanto tomarem o trem, quando atravessarem a fronteira, a culpa dos dois vai se revelar. Só dispõem de uma hora e devem se apressar. Trudy diz que há um casaco que que ela quer e que não está conseguindo achar. Claude insiste que ela não vai precisar dele.
“É levinho”, ela diz. “O branco.”
“Você vai se destacar na multidão. Nas câmeras de segurança.”
Mas ela acaba encontrando-o justamente quando o Big Ben bate oito horas e o noticiário começa. Eles não param para escutar. Ainda há algumas últimas coisas para pegar. Na Nigéria, crianças queimadas vivas diante dos pais pelos guardiões das chamas. Na Coreia do Norte, um foguete é lançado. Ao redor do mundo, a elevação do nível do mar supera as previsões. Mas nenhuma dessas é a principal. Tal privilégio é dado a uma nova catástrofe. Uma combinação — pobreza e guerra, com mudança climática na reserva — que vem expulsando milhões de pessoas de seus lares, um antigo épico sob novo formato, vastos movimentos humanos como rios ingurgitados na primavera, Danúbios, Renos e Ródanos de seres irados ou desolados, ou esperançosos, amontoados nas fronteiras contra as cercas de arame cortante, afogando-se aos milhares ao tentarem compartilhar as riquezas do Ocidente. Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.
E, como sempre, há problemas mais perto de casa. Enquanto as emissoras de rádio e televisão prosseguem com suas cantilenas, as pessoas vão tocando seus negócios. Um casal acabou de se aprontar para uma viagem. As malas estão fechadas, mas há uma fotografia de sua mãe que a jovem mulher deseja levar. A pesada moldura esculpida é grande demais para ser posta na bagagem. Sem a ferramenta certa, a fotografia não pode ser removida, e a ferramenta, um tipo especial de chave, está no porão, no fundo de uma gaveta. O táxi espera lá fora. O trem parte dentro de cinquenta minutos, a estação fica um pouco longe, pode haver filas nos controles de segurança e de passaportes. O homem leva uma das malas para o patamar da escada e volta um pouco ofegante. Deveria ter usado as rodinhas.
“Agora temos mesmo que ir de qualquer maneira.”
“Preciso levar essa foto.”
“Leve debaixo do braço.”
Mas, além de ter de puxar a mala, ela carrega a bolsa, o casaco branco e eu.
Com um gemido, Claude pega a segunda mala a fim de levá-la para fora. Com esse esforço inútil quer mostrar o quanto é urgente eles partirem.
“Você não vai demorar nem um minuto. Está no canto da frente da gaveta do lado esquerdo.”
Ele volta. “Trudy. Estamos indo. Agora.”
A troca de palavras passou de lacônica a amarga.
“Leva para mim.”
“Nem pensar.”
“Claude. É minha mãe.”
“Estou pouco ligando. Estamos indo.”
Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilamento e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais. Hora de entrar em ação. Acabar de uma vez por todas. Hora de começar. Não é fácil libertar meu braço direito, apertado contra o peito, ou movimentar o pulso. Mas agora isso foi feito. Um dedo indicador é a minha ferramenta especial para remover minha mãe da moldura. Duas semanas antes do tempo e unhas muito compridas. Faço a primeira tentativa de incisão. Minhas unhas são macias e, embora fino, o tecido é resistente. A evolução sabe das coisas. Tateio para encontrar a ranhura causada pelo meu dedo. Há uma dobra, bem definida, e é lá que tento de novo, até que na quinta investida sinto uma tênue esgarçadura e, na sexta, um minúsculo rompimento. Consigo enfiar a ponta da unha nesse rasgo, o dedo, dois dedos, três, quatro, até que por fim minha mão fechada abre o caminho e atrás dela vem um grande volume de líquido, a catarata do começo da vida. Minha proteção aquosa desapareceu.
Agora nunca saberei como a história da fotografia ou do trem das nove horas teria sido resolvida. Claude está fora do quarto, no alto da escada. Tem uma mala em cada mão, pronto para descer.
Minha mãe o chama com o que parece ser um gemido desapontado. “Ah, Claude.”
“O que agora?”
“A bolsa rompeu!”
“Cuidamos disso depois. No trem.”
Ele deve ter imaginado que se tratava de uma artimanha, da continuidade da discussão, um tipo repulsivo de problema feminino que ele está agitado demais para levar em conta.
Estou mexendo os ombros para me libertar da membrana embrionária, minha primeira experiência em matéria de me despir. Sou desajeitado. Três dimensões me parecem três a mais do que eu desejava. Prevejo que o mundo material será um desafio. O manto descartado continua retorcido em volta dos meus joelhos. Não faz mal. Tenho uma nova tarefa abaixo da cabeça. Não sei como sei o que devo fazer. É um mistério. Há certos conhecimentos com os quais simplesmente já chegamos. No meu caso, há este, e um punhado de escansões poéticas. Afinal, nenhuma lousa em branco. Trago a mesma mão à bochecha e a deslizo para baixo, ao longo da parede muscular do útero, a fim de achar o colo. Ele está bem apertado contra a parte de trás da minha cabeça. É lá, na entrada do mundo, que eu apalpo delicadamente com meus pequenos dedos e de imediato, como se alguma fórmula mágica houvesse sido pronunciada, o grande poder de minha mãe é estimulado, as paredes a meu redor se encrespam, tremem e se fecham sobre mim. É um terremoto, uma comoção gigantesca na caverna dela. Como o aprendiz de feiticeiro, fico horrorizado e depois esmagado pela força desencadeada. Eu deveria ter esperado a minha hora. Só um idiota se meteria com essa força. Ouço à distância minha mãe gritar. Pode ser um pedido de ajuda, quem sabe um berro de triunfo ou dor. Então sinto alguma coisa no topo da cabeça, minha coroa — um centímetro de dilatação! Não há volta.
Trudy se arrastou para a cama. Claude está em algum lugar perto da porta. Ela está arfando, excitada e muito assustada.
“Começou. Como é rápido! Chame uma ambulância.”
Ele não diz nada por um momento, depois simplesmente pergunta: “Onde está meu passaporte?”.
A derrota é minha, eu o subestimei. O objetivo de chegar mais cedo era para destruir Claude. Eu sabia que ele era um problema. Mas pensei que amava minha mãe e que ficaria com ela. Estou começando a entender a força mental de Trudy. Enquanto ele remexe a bolsa dela e se ouve o tilintar alegre das moedas contra o estojo de maquiagem, ela diz: “Escondi. Lá embaixo. Justamente caso isso acontecesse”.
Ele reflete. Já comprou e vendeu propriedades, possuiu um arranha-céu em Cardiff, sabe como fechar um negócio. “Me diga onde está que eu chamo uma ambulância para você. E aí vou embora.”
A voz dela é cautelosa. Observando de perto seu próprio estado, esperando, desejando e temendo a próxima onda. “Não. Se eu cair, você cai também.”
“Ótimo. Sem ambulância.”
“Eu mesma vou chamar. Assim que...”
Assim que tenha passado a segunda contração, mais forte que a primeira. De novo seu grito involuntário, o corpo todo se contraindo enquanto Claude atravessa o quarto para se aproximar da cama e desconectar da parede o telefone que estava na mesinha de cabeceira. Ao mesmo tempo, sou comprimido violentamente e erguido uns três ou quatro centímetros, sugado para baixo e para trás de onde estava hibernando. Uma cinta de ferro espreme mais e mais minha cabeça. Nossos três destinos esmagados por uma grande boca.
Assim que a onda reflui, Claude, como um guarda de fronteira, diz, impassível: “Passaporte?”.
Ela sacode a cabeça, espera até retomar o fôlego. Os dois mantêm uma espécie de equilíbrio.
Ela se recupera e diz, sem emoção na voz: “Então você vai ter que fazer o papel da parteira”.
“O filho não é meu.”
“O filho nunca é da parteira.”
Ela está apavorada, mas pode aterrorizá-lo com instruções.
“Quando ele sair, vai vir com o rosto para baixo. Você pega o bebê com as duas mãos, bem delicadamente, apoiando a cabeça dele, e põe em cima de mim. Ainda com o rosto para baixo, entre os meus seios. Perto de onde bate o coração. Não se preocupe com o cordão. Vai parar de pulsar sozinho, e o bebê começa a respirar. Ponha umas duas toalhas em cima dele para mantê-lo aquecido. E aí esperamos.”
“Esperamos? Meus Deus! Esperamos o quê?”
“Que a placenta saia.”
Não sei se ele se encolheu ou teve uma ânsia de vômito. Podia ainda estar imaginando que terminaria com aquilo e pegaria um trem mais tarde.
Ouço com atenção, querendo saber o que fazer. Me enfiar embaixo de uma toalha. Respirar. Não pronunciar uma única palavra. Mas não basta ser um bebê. Com certeza rosa ou azul!
“Por isso, vá buscar uma porção de toalhas. Vai ser uma sujeirada. Lave as mãos bem lavadas, com a escovinha de unhas e muito sabonete.”
Tão longe de onde dava pé para ele, tão longe da costa acolhedora, um homem sem seus documentos deveria estar em plena fuga. Ele dá meia-volta para fazer o que lhe foi ordenado.
E assim seguem as coisas, onda atrás de onda, gritos e gemidos, súplicas para que a agonia tenha fim. Progresso impiedoso, ejeção em curso. O cordão se desenrola atrás de mim à medida que avanço lentamente. Para a frente e para fora. Forças cruéis da natureza pretendem me achatar. Atravesso uma região que, eu sei, um pedaço do meu tio frequentou com demasiada frequência indo na direção oposta. Não me preocupo. O que nos dias dele era uma vagina agora tem o orgulho de ser um canal de nascimento, meu Panamá, e sou maior do que ele, um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas. Nenhum caralho ocasional pode competir com isso. Durante algum tempo, fico surdo, cego e mudo, tudo me dói. Mas a dor é maior para minha mãe, que, aos gritos, faz o sacrifício de todas as mães por suas crias de cabeça grande e pulmões vigorosos.
Um momento deslizante de urgência pegajosa, com sons ásperos, e aqui estou eu, trazido nu ao reino. Como o corajoso Cortés (lembro de um poema que meu pai recitou), estou pasmo. Olhando para baixo, maravilhado, para o que presumo ser a superfície felpuda de uma toalha de banho azul. Azul. Eu sempre soube, ao menos verbalmente, sempre fui capaz de deduzir o que era o azul — mar, céu, lápis-lazúli, gencianas — meras abstrações. Agora o tenho por fim, o possuo e ele me possui. Mais grandioso do que eu ousava crer. Isto é só o começo, na extremidade índigo do espectro.
Meu fiel cordão, que me mantinha vivo e não conseguiu me matar, de repente morre como planejado. Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom. Os sons são límpidos, brilhantes graças ao realce dos agudos. A resplandecente toalha, irradiando sua cor, evoca a mesquita de Goharshad no Irã que fez meu pai chorar nas primeiras horas de uma manhã. Minha mãe se mexe e faz com que minha cabeça mude de posição. Vejo Claude de relance. Menor do que eu imaginava, com ombros estreitos e cara de raposa. Sem a menor dúvida, com uma expressão de repugnância. A luz do sol do início da noite de verão atravessa as folhas de um plátano e projeta no teto desenhos tremulantes. Ah, a alegria de esticar as pernas, de verificar no despertador sobre a mesinha de cabeceira que eles jamais pegarão aquele trem. Mas não tenho muito tempo para saborear esse momento. Minha maleável caixa torácica é apertada pelas mãos enojadas de um assassino e sou posto na barriga hospitaleira, branca como a neve, de outra assassina.
As batidas de seu coração soam distantes, abafadas, mas são tão familiares quanto um velho estribilho que não ouvimos há décadas. O ritmo da música é um andante, passos delicados que me conduzem ao verdadeiro portão aberto. Não posso negar o medo que sinto. Mas estou exausto, um marinheiro náufrago que chegou a uma praia bem-afortunada. Estou caindo, mesmo enquanto o mar lambe meus tornozelos.
Trudy e eu devemos ter cochilado. Não sei quantos minutos se passaram até ouvirmos a campainha. Como ela soa claro. Claude ainda está aqui, ainda esperando obter seu passaporte. Ele deve ter descido para caçar o documento. Agora caminha até o interfone. Olha de relance a tela e dá meia-volta. Não pode haver surpresas.
“São quatro”, ele diz, mais para si mesmo.
Contemplamos esse fato. Acabou. Não é um bom final. Nunca seria.
Minha mãe me muda de lugar para que possamos trocar um longo olhar. O momento pelo qual esperei. Meu pai tinha razão, é um rosto adorável. O cabelo mais escuro do que eu pensava, os olhos de um verde mais pálido, as bochechas ainda coradas por causa do esforço recente, o nariz de fato uma coisinha bem pequena. Acho que vejo o mundo inteiro nesse rosto. Belo. Amoroso. Assassino. Ouço Claude atravessar o quarto com passos resignados para descer até a porta. Nenhum clichê. Mesmo nesse intervalo de descanso, durante o longo e ávido olhar no fundo dos olhos de minha mãe, estou pensando no táxi que espera lá fora. Um desperdício. Hora de mandá-lo embora. E estou pensando na nossa cela — espero que não seja pequena demais — e, mais além de sua pesada porta, nos degraus gastos que sobem: primeiro a tristeza, depois a justiça, enfim o significado. O resto é caos.
Ian McEwan
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