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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENCONTRO DE AMOR / A. J. Cronin
ENCONTRO DE AMOR / A. J. Cronin

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ENCONTRO DE AMOR

 

Quando Harvey Leith saiu com Ismay do carro-dormitório e se dirigiu à sala de bagagens, ainda estava sob a influência do álcool e curvado pela amarga decepção do acerbo desgosto que o roía sem tréguas havia três semanas, estivesse ou não embriagado.

O cais parecia oscilar docemente a seus pés; a bruma fria da manhã subia no interior da estação de altas abóbadas, envolvendo-o como uma cerração marítima. Não via nada, andava com passo rígido, como perdido num sonho. Aproximando-se de Ismay, escutou-o perguntar:

- Mala de camarote, registrada em Londres pela companhia de vagões-dormitórios, em nome de Leith?

O empregado tirou o lápis preso atrás da orelha e passeou-o de alto a baixo numa lista:

- Registrado para o "Auréola". Sim, perfeitamente, senhor. Aliás, o agente da sociedade Slade está ali. - E sem virar a cabeça, gritou: - Slade!

Um homem de rosto avermelhado se aproximou. Com uma das mãos apertava um registo contra a roupa de trabalhador, e com a outra cumprimentou, levantando o indicador até a pala da casquete agaloada.

- Doutor Leith?

- Sim, perfeitamente.

- Pode confiar em mim, senhor. Esperá-lo-ei com as bagagens no cais da Princesa, às dez horas em ponto. Aqui está o recibo.

Rabiscou um papel azul que destacou do registo e, depois de olhar alternativamente para os dois homens, entregou-o finalmente a Ismay.

- Assine, por favor. Aqui não, na linha de baixo.

E traçou, com a unha amarelada pela nicotina, um risco no papel amarrotado.

- O senhor não tem mais embrulhos?

Ismay balançou negativamente a cabeça e voltou-se para entregar o certificado ao companheiro. Mudou de ideia, escreveu cuidadosamente "H. Leith", e virando-se para O portador:

- Há muitos passageiros?

- Oito, senhor, os camarotes estão completos. bom negócio para os irmãos Slade, muito bom.

Pela satisfação que mostrava o humilde subordinado, bem se poderia tomá-lo por um dos principais acionistas da sociedade. Depois, acrescentou, acentuando ainda mais o ar de proprietário:

- Lady Fielding e seus amigos tomam parte nesta viagem.

Leith escutava com o rosto imóvel, as mãos crispadas com irritação no bolso do impermeável. Depois da atmosfera aquecida do vagão, o cais exposto aos ventos tornava-se glacial. Teve um calafrio. O cérebro entorpecido pela insónia estava vazio de pensamentos, e inerte. O repentino silvo de uma locomotiva, partindo, provocou-lhe um tique nervoso na face esquerda.

- Por Deus, apresse-se, Ismay, - dizia com voz sôfrega. - Quanto tempo iremos mofar aqui?

Ismay voltou-se com presteza e sua voz se tornou persuasiva:

- Pronto, Harvey, já terminei.

- Se as notícias mundanas o apaixonam a esse ponto, vamos tagarelar em outra parte que não seja nesta maldita corrente de ar.

- Vamos - replicou imediatamente Ismay, escorregando uma moeda na mão do empregado. E, caminhando, tirou o relógio: - Veja, são nove horas. Vamos almoçar no Adelphi.

- Não me interessa almoçar. Ismay teve um vago sorriso:

- Podemos sentar-nos no hall para matar o tempo.

- Ao diabo o hall!

O sorriso de Ismay tornou-se conciliador. Tinham saído da estação e se encontravam em Lime Street. A rua, regada por uma chuvinha fina, era guarnecida de altos edifícios enfumaçados. Pesados bondes estremeciam o calçamento com grande barulho de ferragens. A cidade, que acabava de acordar, ia retomando vagarosamente o ritmo da sua vida monótona e provinciana.

Ismay parou.

- Não conheço quase nada dos recursos que pode oferecer Líverpool, a esta hora matinal - disse circunspecto. Mas duvido que sejam muito variados. E ainda mais chovendo. Você não quer almoçar, não quer sentar-se num abrigo? O vapor só sairá às dez e meia. Que é que você deseja fazer?

Distante e sarcástico, Leith parecia preocupar-se um instante com o problema:

- O que eu quero, - disse, enfim, sombrio e como inconsciente, - eu quero é saber por que diabo estou aqui? Parou logo, e seu olhar caiu sobre a figura calma e sempre cordial do amigo. - Perdoe-me, Ismay, eu não estou. .. Novamente excitado, gritou: - Pelo amor de Deus, não me olhe assim! Vamos andar por este maldito cais, vamos não importa aonde, mas andemos, não fiquemos plantados aqui.

Perambularam pelas ruas secas, abrindo passagem através de uma onda de empregados que se apressavam para o trabalho. Os bares e os cafés começavam a se abrir. Velhos taxis procuravam passageiros.

Ao lado de Ismay, atarracado, mas limpo e requintadamente vestido, com ar de homem vencedor, Harvey, grande e anguloso, a fisionomia macilenta, as roupas apertadas, formava um contraste quase doloroso. A magreza comunicava-lhe aos movimentos uma severidade singular; o rosto magro, mal barbeado, de feição dura, dava a impressão de feito a cinzel. Na rigidez da fisionomia, entretanto, adivinhava-se uma chama ardente, um forte desprezo pela vida, um desgosto amargo, sardónico e inflexível. Não obstante, os olhos o traíam: olhos sombrios e profundos, onde se percebia uma lucidez aguda. A testa larga marcava uma inteligência tão pronunciada como a sensibilidade. E, justamente por ser sensível, é que ele se entregava ao desespero. Agora que o ar vivo e úmido dissipava o véu que lhe obscurecia o pensamento, repetia a si mesmo com clarividência dolorosa: "Por que?. .. Por que estou aqui? Por que? Para obedecer a Ismay que me sustem, que me ajuda? Mas eu não quero partir, não quero. O que eu sonho é a paz. É esquecer, e, sobretudo, é estar só, só!" Mas ele não estava só e não podia esquecer. . . Tudo o que havia tentado, ao invés de diminuir-lhe a obsessão, a aumentara ainda mais; tudo, até mesmo as distrações mais triviais, e até mesmo aquelas que, por serem fortes, o libertariam.

Diante dele duas prováveis datilógrafas ondulavam as ancas, caminhando e tagarelando com animação, trocando confidências sobre as aventuras da véspera. Falavam bem alto, requebrando-se. Trechos da conversação chegavam a Leith como baforadas de ar impuro, irritando-o.

- Se soubesses como o meu é amável!... Tão amável! Trabalha numa fábrica de tecidos. Sim, meu bem, pelo menos foi o que me disse... A orquestra tocava justamente "Acredita se quiseres"...

- O meu tem bastante espinhas no rosto, mas como se veste bem!

Para Harvey, absorvido em pensamentos mórbidos, aquelas figuras mal pintadas, com suas tolices e corpos estéreis, se transformavam numa espécie de pesadelo, num símbolo grotesco da humanidade.

Criaturas como essas, e outras ainda, poderiam ter-se beneficiado com seus trabalhos, e ele as teria salvo. Sim, era esta a palavra justa: "salvo"! Que palavra grandiosa, magnífica! Mas esta casta não desejava ser salva. Isto não lhe interessava no momento. Apesar de tudo, era cómico! Sentiu vontade de rir, de se plantar no meio da calçada, de tombar a cabeça para trás e rir, rir às gargalhadas.

- Chegamos, - disse subitamente Ismay, mostrando Mersey com jovialidade, apenas visível por uma brecha de telhados.

Leith não respondeu, a cabeça enterrada nos ombros.

Desceram um declive, passaram por janelas de pequenos vidros sujos, atrás dos quais se adivinhava um aparato de cordoagem, de compassos e acessórios de navegação.

Através de um labirinto de ruelas sórdidas bordando as docas, chegaram cinco minutos mais tarde ao cais da Princesa.

O homem de rosto avermelhado os esperava, atencioso, e lhes falou num tom confidencial, como a velhos conhecidos:

- Lá está a canoa - e cessando de esfregar as mãos designou, sempre com ar, íntimo, um pequeno bote que se balançava docemente junto ao cais. - A mala está a bordo, senhor; tudo pronto.

- Vamos, - e Ismay apressou o passo com decisão.

Embarcaram, deixando o empregado em pé na ponte estreita, a fisionomia a exprimir um obscuro reconhecimento. Um amontoado de malas, de sacos de couro, de valises, de mantas enroladas atulhavam a popa.

Algumas pessoas, agrupadas, observavam os recém-vindos com esse vago sentimento de má vontade que se experimenta, às vezes, diante de desconhecidos. Harvey e o companheiro alcançaram a proa e continuaram silenciosos.

O rio, de um amarelo turvo, corria sem esforço, apenas eriçado aqui e ali por alguma hélice de navio. Às margens, cargueiros ancoravam. Mais longe, outros iam descendo o rio que, num movimento sempre igual, se despejava no mar.

A atmosfera, calma, somente turbada pelo marulhar da correnteza, pelo eco longínquo de martelos, pelo ranger do guindaste. Repentinamente, com grande barulho de correntes, uma balsa ruidosa passou, como um marreco amedrontado, para a outra margem. Como que arrastada pelo exemplo, a canoa assobiou, largou as amarras e lentamente se afastou do cais.

Empolgado pela sensação de deixar a terra, Harvey estremeceu. A umidade penetrava-o e um pressentimento misterioso o agitava, invadindo-o de uma perturbação inexplicável. O olhar, vagando ao longe pelo horizonte, foi atraído por uma pequena embarcação embandeirada de azul para partida. Poderia ter trezentas toneladas e a chaminé estava enfeitada com um fino penacho de fumaça. Distinguia-lhe vagamente as letras na proa: "Auréola". Um bonito navio, se bem que pequeno e transformado em cargueiro.

- Aqui está a sua embarcação, - murmurou Ismay,

quebrando, enfim, um silêncio cheio de tacto. "Auréola" é

um belo nome - deixou escorregar as sílabas na língua, com satisfação. - Um nome que soa bem e que me parece de bom augúrio.

Como também lhe sentisse o encanto e estivesse seduzido pelo seu ritmo, Harvey procurou zombar:

- Vamos, Ismay, seja mais entusiasta! Veja como a proa se tinge de uma claridade mística e o mastro se enfeita de uma auréola, semelhante à que me deve coroar na volta! Não é?... Quando eu voltar purificado e pronto para tudo recomeçar!

Parou rapidamente, os nervos tensos, lastimando logo o seu brilho, dominando-se com dificuldade. Necessitava de álcool para retomar o aplomb. com a clarividência de um espirito científico, calculou, na medida justa, a irritabilidade que sofria, trazendo-a à causa real.

De resto, que lhe importava?... Já não estava tudo acabado, varrido definitivamente?.. . Então, por que a estranha emoção que dele se apoderava no momento em que a canoa se encostava ao "Auréola"?...

Conservando-se afastado, começou a se aperceber ligeiramente dos passageiros que subiam a bordo. Eram quatro - uma mulher gorda, um velho pesado e ossudo, um indivíduo alto, loquaz, apressado, e uma jovem silenciosa.

Subiu por sua vez, e ao pôr o pé no tombadilho lançou em volta um olhar inquiridor. Que procurava? Que poderia esperar? Não viu ninguém senão o camareiro, que Ismay açambarcou imediatamente. Caindo subitamente na apatia, Harvey seguiu o amigo pelo corredor até a curta fileira de camarotes, reservada aos passageiros. Baixando a cabeça para poder entrar pela porta estreita, deixou-se cair na banqueta, medindo, ao mesmo tempo, com olhar moroso, a cela exígua, as paredes esmaltadas que iam guardá-lo durante quatro semanas. Escutou trechos de frases trocadas entre Ismay e o camareiro, e logo em seguida, sentiu que deixavam o lugar juntos. Tudo lhe era indiferente. Mas, analisando bem, não era exato. A atitude de Ismay, e a bondade que lhe testemunhava, não o deixavam indiferente - era preciso ser sincero antes de tudo. Ismay acompanhara-o até aqui, tinha-se encarregado, com paciência incansável, de todos os afazeres fastidiosos. Não seria a demonstração de um sentimento mais forte do que a de uma simples camaradagem que os aproximara durante o trabalho comum no hospital?. .. Um bom homem, na verdade, esse Ismay. Um pouco condescendente demais, talvez, mas natural da parte de um cirurgião em pleno sucesso. O sucesso!...

Harvey sentiu-se estremecer, olhou fixamente o camarote que ia ocupar.

Naquela moldura estreita o lençol tomava o aspecto de mortalha. Em seu passado, três caixões como aquele, pretos e compridos: os despojos de três homens levados para o túmulo com todos os horríveis trofeus da morte. Ele não tinha visto, entretanto, aqueles caixões. Então, por que ouvia como uma reminiscência de cantos fúnebres, uma harmonia cavernosa e sepulcral? Levou a mão à testa, cansado. Fora uma ilusão. Estaria embriagado ou louco? O maxilar endureceu-se-lhe. Um ruído o fez levantar a cabeça. Ismay voltava só desta vez. Fechou novamente a porta e olhou o amigo com ar resoluto.

- vou partir, Harvey, a canoa volta para o cais.

- Onde então tinha ido? - perguntou lentamente Harvey. - Demorou muito tempo.

Ismay não respondeu logo.

- Eu falava com alguém, com o camareiro. Explicava-lhe a sua... neurastenia.

Leith encarava-o sem comentários:

- Faça um esforço, Harvey, prometa-me que vai tentar reagir.

- Tentar o quê? Já lhe disse que abandonei a luta. Outro que tente, que ensaie. Quanto a mim, sou um homem acabado!

Seja razoável, ninguém vai imaginar... Quantas

vezes já lhe disse! Toda pessoa inteligente compreende perfeitamente. ..

- E que é que eles compreendem? - gritou Harvey, amargamente. - Nada, absolutamente nada. Todos são imbecis, idiotas. - O tique nervoso reapareceu-lhe no rosto, com uma agitação dolorosa, Continuou sublinhando as palavras com mímica feroz: "Tome a poção três vezes ao dia, Mme., e volte terça-feira próxima. Sim, cara Mme., são três libras, por favor". - Porcos, é o que lhe digo. Porcos, todos, e vaidosos, ávidos, ignorantes!

- Escute-me...

- Dominados por seus instintos grosseiros, o focinho atolado no esterco... Fuçando eternamente no mesmo lugar de um ano a outro. Cegos diante da verdade, sempre cegos!

A voz de Ismay tornou-se suplicante:

- Seja razoável, meu velho. Esqueça tudo isso. Pense em você e no seu futuro. É preciso.

- Meu futuro?

- Um brilhante futuro.

- Quem diz isto?

- Eu, você bem sabe. Pelo amor de Deus, não o comprometa, Harvey.

- Não há mais nada a fazer. Meu futuro está comprometido, acabado... quebrado em pedacinhos, e suas migalhas me pertencem. Quero usá-las ao meu gosto.

- Então, devo lembrar-lhe os seus deveres para com a humanidade? Zombe à vontade. Sei que você é chamado a um grande futuro, sinto-o. Você traz isto no seu destino, como Pasteur. Fará grandas cousas. Não se deixe abater assim. É um crime!

Empolgado pela emoção, inclinou-se para o amigo e repetiu:

- Você tem deveres para com a humanidade, esqueça!

- A humanidade! - e Harvey soltou uma gargalhada sardónica. - Que o diabo carregue todos os desgraçados que já tiveram dor de barriga! Tenho-lhes ódio!

Houve um silêncio, perturbado pelo barulho de passos em cima. Ismay, muito comovido, procurou dominar-se e dissimulou a ansiedade sob uma aparência calma.

- Não direi mais nada. Vou-me embora; mas conheço-o bastante para ficar inquieto. Você precisa de uma distração. Quatro semanas é pouco mas chegará para você. Tenho confiança. Conheço-o melhor do que você mesmo.

- Você me conhece de verdade? - perguntou Harvey, rindo sarcàsticamente, e soltando uma praga. Houve outro silêncio, depois Ismay estendeu-lhe a mão:

- Até à vista.

- Até à vista - respondeu, seco. Hesitou e acrescentou lentamente, voltando a cabeça, como que tomado de remorso: - Muito obrigado.

- Gostaria de revê-lo, de encontrá-lo pronto a continuar a luta - e sorriu-lhe franco, procurando animá-lo. Em seguida, partiu. A porta fechou-se outra vez.

Voltar! Continuar a luta! Sentado, na solidão em que o deixara Ismay, a certeza de que jamais recomeçaria o invadiu. Mas que lhe importava? Tudo aquilo era o passado. Um passado morto. No momento, precisava beber, isto sim. O desejo do álcool tornava-se tão imperioso que a saliva brotava-lhe na boca. O socorro que encontrava na embriaguez era verdadeiramente curioso: um remédio, um anestésico aplicado deliberadamente para seu sofrimento. Analisou seu estado sem preconceito. Não, evidentemente não era um alcoólatra, e a ciência que possuia lhe permitia escapar às regras vulgares. O único código moral a que se sentia obrigado era a verdade. A verdade, base de todas as suas pesquisas. A verdade acessível aos imbecis, aos ortodoxos, aos simples de espírito. Certamente era livre de modificar seu destino, segundo a própria vontade, - eis um pensamento lúcido que lhe trazia uma certa tranquilidade.

Procurou conservar-se numa imobilidade absoluta, dominado pelo desejo de beber, consciente do tremor que subia dos seus dedos, em espasmos nervosos, ao longo dos seus braços e até os ombros. Mas, por capricho, quis retardar o instante da libertação. Beberia logo que o navio levantasse âncora. Antes não. E continuou sentado, à espera.

 

Também o navio parecia esperar. Na ponte superior os panos estavam fechados, cobertos, em ordem de partida. Mais longe, perto da máquina auxiliar, avistavam-se dois homens de calção azul, mergulhados numa nuvem de vapor. À proa, o mestre de equipagem agitava um apito entre os dedos, e, perto do passadiço, Hamble, o comissário de bordo, ia e vinha, sacudindo agitadamente o pó das dobras da blusa, torcendo o bigodinho e mexendo nervosamente com a fita negra que lhe servia de gravata. A canoa afastara-se há muito tempo. No passadiço um homenzinho de uniforme, solidamente plantado nas pernas curtas, olhava com ar ansioso na direção do cais. Fez subitamente um sinal a que logo respondeu o apito da sirene, lúgubre som muitas vezes repetido. Uma sombra partiu do fundo das docas e avançou rapidamente. Uma chalupa a motor, sem dúvida atendendo ao apelo estridente, corria, deixando atrás um sulco ondulante.

Três minutos mais tarde, ela esbarrava no casco do "Auréola". A seu bordo, atrás de um monte de bagagens elegantes, o piloto parecia desesperado por haver involuntariamente retardado a partida do navio.

Três passageiros surgiram na ponte. O primeiro era Daynes-Dibdin, um velho senhor seco, mas bem conservado, o monóculo encravado na órbita, figura avermelhada, maneiras perfeitamente distintas; um desses gentlemen susceptíveis de adotar, num abrir e fechar de olhos, a atitude que a situação exigia; capaz, com uma imutável correção e uma irresistível estupidez, de estar à vontade, um dia, em Bond Street e no dia seguinte, barbeado de fresco e igualmente estúpido, em pleno Saara. Pôs o pé na ponte, respirando com esforço e voltou-se para estender a mão amiga aos outros retardatários. Foi nesse momento que Harvey, impaciente com a espera, abriu a porta do camarote. com um olhar sonhador

observou a recepção feita aos recém-chegados, a deferência de Hamble, a agitação do pessoal em volta das bagagens, a pressa dos camareiros. com fria indiferença notou esses indícios da chegada de personagens importantes e encarou, com a mesma fleuma, as duas mulheres que acabavam de embarcar com Dibdin.

A mais velha era alta, bem feita, elegantíssima, com ar lânguido e tão arrogante que era impossível não se ficar irritado. Seria esta a razão que conduzira os dois maridos de Elissa Baynham diante dos tribunais para divórcio? Talvez. De qualquer maneira, aos trinta e dois anos, ela era de uma beleza notável, embora parada. A décima parte, no máximo, do seu espírito, parecia interessar-se pelas cousas exteriores (e ao preço de que tédio!), porque somente sua própria pessoa lhe merecia atenção. No momento, se conservava uma expressão fria, era porque, a seu ver, nada do que se passava em redor merecia o menor interesse. Não obstante a ausência de afabilidade, atraia os olhares com sua tez deslumbrante, os olhos magníficos, a boca um tanto grande, e os dentes claríssimos. Sua companheira parecia uma mocinha. O que Mary Fielding tinha de particular era um ar de extrema juventude.

Aos vinte e cinco anos não se lhe daria mais de quinze. De estatura mediana, delgada, fina, mãos e pés pequenos, tinha o rosto ardente e cheio de vida. Os cabelos castanhos, aparados rentes, punham em relevo uma fronte alta, e a boca muito graciosa mostrava dentes pequenos e bem alinhados. Os olhos muito azuis, com o iris curiosamente cercado de uma linha sombria, eram profundos, e neles a luz brincava com a sombra. Havia, neles, em certos momentos, uma expressão de espanto e de esquisita melancolia, mas agora estavam alegres e vivos. Vestia muito simplesmente um costume de tweed marron, com certa desordem. O grupo de recém-chegados se aproximava. Harvey voltou-se. Foi quando Mary Fielding o percebeu. Teve um ligeiro sobressalto, empalideceu, nos olhos passou-lhe uma centelha de alegria e de

medo. i Hesitou, fingiu que parava, e seu olhar encontrou o de Leith, que levantava a cabeça. Ele não a conhecia. Nunca a tinha visto. Encarou-a com frieza, indiferente. Então a moça baixou a testa. Porque experimentava ela esta inquietude, quase terror, a que se misturava uma espécie de felicidade imprecisa? Ainda pálida de emoção, seguiu Elissa sem uma palavra. Harvey, que as observava, notou que seus camarotes eram vizinhos.

A porta fechou-se, e logo depois ele as esqueceu. Apoiou-se cansado contra o parapeito do tombadilho. Na ponte um sino bateu duas vezes. Uma vibração comunicou ao navio um frémito que parecia uma pulsação interior, anunciadora de vida. Harvey sentiu o navio mover-se e, como que libertado por este sinal, voltou-se rapidamente.

Tornou a entrar no camarote, deixou-se cair na banqueta, tocou a campainha e esperou. Passado um momento tocou de novo com violência. Desta vez o camareiro apareceu, ofegante e apressado, desculpando-se pela demora. Era um homenzinho gordo, calvo, de rosto redondo. A blusa branca parecia destacar-lhe os grandes olhos pardos e arregalados.

- Como se chama? - perguntou Harvey com tom seco.

- Truta, senhor, um seu criado.

- Foi necessário que eu tocasse duas vezes para você me atender, Truta.

- Desculpe-me, senhor: eu tinha muito que fazer com as bagagens. Lady Fielding acaba de chegar e preciso estar sempre alerta! Sir Michel Fielding, seu marido, é um dos magnatas de Slade Irmãos, um dos principais acionistas, senhor!

- Fielding é aquele indivíduo de monóculo?

Truta lançou um olhar de protesto para os seus sapatos e esfregou as mãos úmidas nas costuras das calças.

- Sir Michel Fielding não está viajando, senhor. Naturalmente se refere ao respeitável Daynes-Dibdin. Mas não há ofensa. Trata-se de um velho gentleman, um cavalheiro, como se diz. Ele acompanha Lady Fielding e Mrs. Baynham.

Harvey contemplava preguiçosamente o crânio do camareiro.

- Não possuo título nenhum, Truta, nem ações na companhia Slade. Mas eu morro de sede. Traga uma garrafa de whisky, depressa.

O olhar do camareiro não deixou a ponta dos seus sapatos, enquanto guardava um silêncio embaraçoso.

- Sim, senhor, - disse, enfim, com uma voz tão abafada que parecia sair de dentro dos próprios sapatos. Saiu, e logo Harvey perdeu sua expressão irónica.

Levantou-se e olhou através da vigia. Por que maltratara o empregado? Não estava bem, não era decente proceder assim. Seu olhar tingiu-se de melancolia enquanto seguia a estria do navio no nevoeiro. É assim que se desenrola a vida, - distante, vazia e sem finalidade. Agitou-se, rilhou os dentes. O criado era muito lento. Por que não voltava? Harvey fremia de impaciência. Enfim, não aguentando mais, levantou-se com um gesto nervoso, abriu ruidosamente a porta e precipitou-se para fora do camarote.

A ponte varrida pelo vento fresco do estuário estava deserta. Atravessou-a e desceu à sala de jantar. Era uma peça pequena, limpa e alegre, forrada de painéis de madeira clara, com um tapete do oriente sob uma mesa de acajú, onde se destacava um gerânio como se fosse uma mancha brilhante. No canto, com os pés numa almofada, um homem sentado. Teria uns 60 anos e parecia muito alto. O chapéu de coco, enterrado nos cabelos grisalhos e crespos, dava-lhe um ar ao mesmo tempo ousado e profundo. Grandes tufos cinzentos lhe formavam as sobrancelhas, e só possuía um toco de orelha. Em suma, era muito feio, mas toda a sua figura bronzeada e cheia de cicatrizes estava impregnada de jovialidade. Não obstante a mediocridade de uma roupa azul-marinho, apertada e lustrosa, mais ou menos usada, ostentava um ar de audácia e valentia, mais acentuada ainda pelas calças muito justas nas pernas fortes. Uma grossa pérola falsa adornava-lhe a gravata, e a roupa branca, pelo menos em parte, parecia limpa. Segurava nas enormes mãos um volume recoberto de papel, que lia atentamente, mexendo com os lábios. À entrada de Harvey, espiou por cima dos óculos de aros de aço, que cavalgavam seu nariz deformado, e disse com uma voz a que um forte sotaque irlandês misturava um certo sabor:

- Muito bom dia.

- ... dia.

Harvey deixou-se cair numa cadeira e tocou a campainha. Os dedos batiam nos joelhos com impaciência. Logo depois apareceu o camareiro e Harvey o apostrofou num tom que se esforçava em parecer calmo:

Encomendei-lhe uma garrafa de whisky, garçon, para

meu camarote, nº 7. Quer trazê-la, por favor? E enquanto espero, arranje-me um conhaque e uma soda.

O camareiro dissimulou penosamente o embaraço:

- Doutor Leith? Cabine 7?

- Sim.

- Lamento, senhor, o bar está fechado.

- Fechado?

O garçon inclinou , e um tanto desastrado murmurou:

- Fechado para o senhor. Foi a ordem que o capitão Mr. Hamble, o comissário de bordo, me transmitiu.

Harvey, estupefacto, deixou de bater nos joelhos e apertou os lábios.

"Compreendo"

rosnou consigo mesmo. "Compreendo.

Ficou ali certo de ser observado pelos dois homens, depois da partida do camareiro. Ismay havia tudo tramado, naturalmente. Ismay, sob pretexto de amizade, orgulhoso em mostrar influência, dando regras ao mundo. Falara ao comandante. Isto era de exasperar!

- O senhor sabe, - disse subitamente o homem do canto - que há muitos desses comandantes que se irritam a toa? - e um sorriso bom agitou-lhe a careta do rosto. Mais um lunático, não vale a pena se incomodar com isto!

- Parou um momento e sem reparar no mutismo de Harvey:

- Eu o vi na canoa há pouco. Chamo-me Corcoran, Jimmy Corcoran, para servi-lo. Um nome conhecido de norte a sul!

- Apurou o ouvido na esperança ingénua de ouvir a confirmação da celebridade: - Campeão de peso pesado em 88, o único capaz de se medir com Joe Crotty. Quer dizer que eu seria o campeão internacional se não tivesse quebrado uma perna. Palavra! Muita gente conhece Jimmy Corcoran, e o aplaudiu e sabe a sua história. Andei pelos quatro cantos do mundo, exerci todas as profissões, sempre sem dinheiro, nunca roubando, mas sempre alinhado, como dizia minha velha e boa mãe que Deus tenha consigo! Porque era a melhor mulher de Tralee, no reino de Kerry! - Suspirou docemente, tirou uma tabaqueira de metal do bolso do colete, e virando-a nos dedos com ternura tomou uma pitada de tabaco. Depois, estendendo o livro, continuou sem transição:

- O senhor já leu Platão? Francamente, eis aí um camarada sabido! Ele me faz pensar em cousas que eu nunca teria pensado sozinho. É um homem espantoso, não há dúvida. O senhor deveria ler Platão, moço, se é que tem tempo.

Mas Harvey, com o olhar absorto, apenas consciente de ser objeto dessa parolagem, levantou-se, deu meia volta e saiu do salão. Subiu a escada e foi para o passadiço. Lá se achavam o quarto dos mapas e o do comandante. Por uma porta aberta, avistou o comandante escrevendo numa mesa coberta com um pano verde.

Harvey tentou dominar-se e entrou. O comandante Renton levantou a cabeça e encarou-o com seu vivo olhar. Era um homem baixo, com o ar de galo de briga, olhos fixos e queixo afinado, de cabelos grisalhos e demasiadamente frisados. Uma blusa apertada comunicava-lhe certa rigidez, acentuada ainda mais pela atitude intransigente e categórica. Um retrato a crayon de Nelson estava pendurado em frente dele. Tinha, diziam, certa semelhança com esse homem e dedicava-lhe uma admiração sem limites.

- Que há, meu caro senhor? Estou ocupadíssimo neste momento.

- O meu nome é Leith - replicou Harvey num tom rude. - Doutor Leith, Tenho alguma cousa a lhe pedir.

- Impossível neste momento, dr. Leith. Volte dentro de uma hora, se quiser. Veja, o piloto está no passadiço. Alem disso, tenho muito pouco tempo disponível quando viajo.

Harvey não se mexeu, mas uma enorme placa vermelha lhe apareceu no rosto terroso.

O senhor deu ordem ao camareiro. ..

A bordo, quem manda sou eu, dr. Leith, e dou ordens à minha vontade!

Os dois homens mediram-se em silêncio.

Nos olhos de Harvey adivinhava-se uma estranha angústia.

- Queria fazer-lhe compreender - articulou com esforço, - que é uma loucura privar-me sem transição. Conheço esta questão melhor do que ninguém.

- Não duvido, dr. Leith - retrucou Renton, irritado.

- Mas aqui quem decide sou eu. Tive uma conversa com o seu amigo, o dr. Ismay, e concluímos que para grandes males, grandes remédios. O senhor não terá uma gota de álcool enquanto estiver a bordo. Resigne-se, desde já. É preferível. Além de tudo, estou persuadido de que, na volta, o senhor me agradecerá.

Uma palidez mortal invadiu o rosto de Harvey e seus lábios tremiam.

- Compreendo. É preciso que eu seja salvo contra a minha vontade. É preciso que eu alcance o posto enfeitado com uma coroa, apesar de tudo! Meu Deus! É muito cómico. Viva a humanidade! Amai-vos uns aos outros e praticai a caridade! Foi a pontapés que me precipitaram no abismo e é a pontapés que me propõem reconduzir à luz!

O comandante desviou a cabeça, os olhos fixaram-se no retrato de Nelson e depois se voltaram para Harvey:

- O senhor passou por provas cruéis, - sublinhou as palavras, batendo levemente com a caneta na mesa. - Sim, o senhor passou duros momentos, percebo muito bem isso e permito-me assegurar-lhe toda a minha simpatia.

- Sua simpatia, - gritou Harvey, - não me interessa!

Parou de repente, estremeceu, e em seguida o rosto retomou a imobilidade anterior. Sem acrescentar mais nada, saiu do quarto. Um profundo mal-estar invadia-o agora. Sentia forte dor de cabeça, os olhos piscavam penosamente à luz e uma extrema fraqueza o fazia desfalecer. Dominando-se, voltou à cabine. Ali, em pé, teso e concentrado, percebeu, como em uma visão, toda a inanidade da vida, todas as misérias de que a sua era composta. Quando, finalmente, se deitou na cama, os lábios articularam um som que talvez fosse um soluço...

 

No camarote contíguo um homem e uma mulher, em pé, com as mãos postas, rezavam, profundamente unidos naquele impulso de comunhão espiritual.

Ele, com cerca de trinta anos, grande, esbelto, imponente, com um terno cinzento que lhe assentava muito bem, ombros quadrados, cabelos escuros, o queixo acentuado, os lábios grossos, e olhos úmidos. As mãos brancas e finas acompanhavam, com movimento leve, a oração pronunciada em voz alta com sotaque americano, e que não era desagradável.

- Concede à nossa missão - ó Senhor! - teu auxílio e tua bênção. Que a tua luz ilumine aquelas ilhas isoladas na noite e onde tantas almas, ignorantes da boa palavra, estão mergulhadas num deserto tenebroso. Permite a teu humilde servo Robert, a tua humilde serva Susan, serem os instrumentos de tua graça divina; ajuda-nos, Salvador. Que o teu servo Robert obtenha um conhecimento mais perfeito desta língua estrangeira e transmite a tua serva Susan a energia sem desfalecimento e a pureza de alma. Fica ao nosso lado, ó meu Deus! te suplicamos. Dá-nos a coragem de afrontar a doença, a tentação, os sarcasmos dos descrentes. Penetra-nos com tua santa caridade; penetra-nos do desejo de teus dons espirituais e, sobretudo, ajuda-nos a lembrar que nada é impossível aos que recebem a tua proteção divina.

- Amem - acrescentou a mulher, continuando com voz calma, o rosto iluminado por um ardor que embelezava as suas palavras: "Que o meu irmão Robert recupere a saúde por tua graça, ó meu Deus, pelo amor de Jesus, nosso Salvador. Amem".

Ela era menor que o irmão, deselegante, o corpo demasiado robusto, quase desproporcionado. Mãos largas, pés grandes; o rosto era sem finura e sem graça, o nariz achatado, face vermelha, lustrosa. Apesar de tudo, na fisionomia vulgar reinava uma expressão de tocante candura e os olhos castanhos, pequenos e brilhantes, exprimiam uma devoção profunda: a devoção que ela consagrava a Deus e a seu Robby.

Após um instante de recolhimento, o irmão e a irmã olharam-se sorrindo como dois seres unidos por uma profunda afeição.

- vou começar a esvaziar as malas, - disse ela. - Prefiro não esperar o balanço do navio.

Susan Tranter não gostava muito do mar. A travessia de um Atlântico agitado, duas semanas antes, deixara-lhe uma lembrança desagradável. Robert manifestava um ar zombeteiro lembrando-lhe isto.

- Mas fique tranquila, Suzie. Desta vez você não

enjoará. com a ajuda de Deus vamos gozar da calma da Galiléia, depois da tempestade. Alem disso, a viagem é rápida. Dentro de sete dias estaremos em Las Palmas, onde faremos escala um dia, creio. Depois, um dia de navegação ainda, para alcançar Orotava, e vinte e quatro horas mais tarde desembarcaremos em Santa Cruz. Uma brincadeira, em suma, para uma viajante disposta como você. . .

Sentou-se na banqueta e pousou as mãos nos joelhos, observando a irmã desatar as correias da mala.

- Você sabe, Suzie, tenho a impressão de que encontraremos um ótimo terreno para a nossa missão, lá em Santa Cruz. As uvas estão maduras para a colheita - eis as palavras do reverendo Hiram Mac Attie. Ele me escreveu uma longa carta; parece-me excelente homem, Susan. Fiquei comovido com sua saudação fraternal e com o seu encorajamento. Chegamos em boa hora; a revolução acaba de trazer grandes transformações à Espanha, a verdadeira metrópole destas ilhas. O antigo regime está nas últimas. Respondi ao reverendo Hiram que era tempo de semear a boa palavra nesse campo particularmente estéril.

Susan não escutava com muita atenção, mas o tom de voz do irmão lhe era agradável, e quando ele parou para respirar, ergueu os olhos e lançou-lhe um olhar significativo.

- Sinto-me feliz em trabalhar com você, Robby, em qualquer lugar que seja. Para mim, o importante é que o clima seja favorável à sua saúde. Você se lembrou de tomar o remédio hoje de manhã?

Ele meneou a cabeça com uma certa condescendência e continuou com ênfase:

- É claro que esbarraremos em erros, em preconceitos. É inevitável. E ainda há a dificuldade da língua, mas havemos de vencer, Susan. Não é a primeira vez que encontraremos obstáculos. Santa Cruz não será peor que Okeville. "Seja qual for a tarefa a cumprir, o que conta é o valor pessoal, sobretudo quando se trata de espalhar a palavra divina". ..

Empolgado pela eloquência, agitava as mãos, e seus olhos lançavam chispas. A conversação retórica não era isenta de fé.

Uma chama animava-lhe o olhar, e ele se via, ele, Robert Tranter, viril, pioneiro do Senhor, missionário enviado pela Unidade do Sétimo Dia do Estado de Connecticut, pregando o Evangelho aos indígenas de Santa Cruz, conduzindo a Deus almas preciosas, afastadas d'Ele, até agora, pela ignorância e pelo vício.

- Encontramos boa vontade, Susan, eis um ótimo augúrio. O comandante não me fez a menor objeção quando lhe pedi para colocar o harmónio no salão. Soube falar-lhe como convinha. "Estamos prontos a pagar o frete, comandante, disse-lhe sem subterfúgios. Não somos mendigos, mas não quero que o harmónio de minha irmã seja empurrado para o porão. É um instrumento que, para nós, tem mais valor que um Stradivarius autêntico".

- Porque não faria você o serviço divino no salão, domingo? Ficaria muito bem.

- Talvez, talvez; de fato, tudo se anuncia favoravelmente - e lançou um olhar em torno do quarto. - O que me aborrece é o fato de você não ter um camarote pessoal. É desagradável ter de partilhá-lo com uma desconhecida.

- Não tem importância, Robby, desde que você esteja bem instalado.

- Você já viu a dama a que me referi, Susan? Disseram-me que é uma inglesa, Mme. Hemmingway, que volta a Santa Cruz, onde vive há muitos anos. Se ela for cristã, talvez nos seja útil.

Apenas acabara a frase, quando a porta se abriu subitamente, e, sem bater, uma mulher gorda precipitou-se no camarote, fugindo da ponte hostil.

- Que ventania! - gritou sem respirar. - Uma ventania terrível... - Endireitou as saias com certo desembaraço. - Santa Maria! Muito forte para a velha, quase tive um ataque.

E apertando o seio esquerdo, como se recolocasse o coração no ritmo, continuou em pé no meio do camarote procurando cobrar alento.

Eliza Hemmingway era uma senhora gorda, baixa, tão forte que parecia mais larga que alta. O busto pesado ocupava tamanho lugar no espaço estreito, que Robert teve que fazer uma retirada defensiva para o tabique do fundo. A matrona tinha um ar velhaco, os cabelos espessos, de um negro oleoso. A fronte baixa, sob a qual cintilavam olhos de azeviche, o rosto bochechudo, davam-lhe uma fisionomia de sapo, completada por uma expressão curiosamente mista de audácia, molecagem e malícia. Uns pêlos grossos despontavam no lábio superior, acentuando-lhe o ar atrevido. Trazia um vestido cor de ameixa e, pendurado no pescoço, um saquinho negro semelhante ao papo de pelicano.

Tranter encarou-a com desconfiança:

- Quer sentar-se, madame? e apontou a banqueta com certa reserva.

Ela recusou, sacudindo tão violentamente a cabeça que os brincos tiniram, puxou despudoradamente o espartilho e, com um movimento impetuoso, estendeu-se à vontade na caminha inferior.

Soltou dois palavrões, aliando pitorescamente o sotaque londrino às locuções espanholas:

- Ah! assim está melhor. Imaginem que eu tinha subido a escada muito depressa depois de ter conversado um pouco e tomado um copo de cerveja com a criada, - quero dizer, com a camareira!

Suas palavras esfriaram o ambiente. Ao cabo de um momento, Robert insinuou com uma polidez constrangida:

- Julguei, madame, que minha irmã Susan pudesse usar a cama inferior. Custa-lhe suportar as viagens no mar e sentirá mais o balanço lá em cima.

A velha Hemmingway ergueu as sobrancelhas, franziu a testa e esboçou um sorriso de fuinha, fazendo uma careta.

- Quem vai à caça... - disse lentamente. - Conhece o provérbio, senhor? Aqui estou, aqui fico, como diz o outro. Porque não a tomou antes da minha chegada? Respeito-lhe a vontade, sou sensível às suas delicadezas fraternas e me aflijo por causa de Susan. Mas primeiro a idade, depois a polidez. Portanto, está resolvido: a de baixo para a velha, o poleiro para a irm azinha. Espero que ela não vomite em cima de mim.

Um silêncio angustioso seguiu-se a esta tirada, transformando-se em horror quando a velha Hemmingway, mergulhando a mão pesada, cintilante de anéis, na bolsa, tirou um charuto, riscou um fósforo na beira da cama e pôs-se a fumar displicentemente. Tendo soltado outro palavrão, continuou, imperturbável:

- Que felicidade encontrar-me de novo no oceano! Sim, senhor, mal posso conter a alegria de rever as ilhas. É gozado, hein? Entretanto, há dias, em Santa, em que me aborreço muito perto de Wappin, e em que daria cinquenta pesetas para sentir o cheiro dos botequins de Londres numa noite de nevoeiro. Fraqueza feminina, certamente. "Lar, doce lar", como canta a Melba naquele disco que faz todo o mundo chorar. Mas, por Cristo, quando estou em meu país natal, daria cinquenta pesetas para sair.

- A senhora reside em Santa Cruz? - perguntou Robert num tom seco, mas lembrando-se que era melhor sustentar a palestra no interesse da irmã.

- Faz trinta anos no dia da Ascensão, que eu desembarquei naquela terra - e a velha Hemmingway balançava o charuto com ar sonhador. - Meu marido, que o diabo o guarde, era patrão do "Cristopher", um cargueiro que fazia o transporte do guano. Palavra de honra, sobe-me o cheiro disto ao nariz quando penso nele. Completará trinta anos pela Ascensão a bebedeira que, segundo o costume, ele tomou ao dobrar o Cabo de Tenerife, perdendo o rumo e enfiando o barco nos rochedos de Anaga. Eu teria ido para o fundo do mar com ele, se a sua última vontade fosse cumprida, mas tenho fôlego de gato! Único sobrevivente do naufrágio, como Robinson Crusoé. Eis como cheguei a Santa Cruz, e, madre de Dios!, eis como aí fiquei.

- A senhora parece estar bem aclimatada - replicou Robert um tanto constrangido. - Gosta dos habitantes do lugar?

- É preciso aceitá-los como são. Não posso dizer nem que gosto deles, nem que os detesto. São homens como os outros, compreende? Não há espanhóis nas ilhas. O senhor verá tipos de todas as cores, desde o negro puro até a mulata aça. Mas, que é que isso tem demais? Todos nós possuimos uma alma debaixo da pele, como diz o provérbio, e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Isto está na Bíblia, não é? Vi-o escrito com os meus próprios olhos, e ainda mais: o que entrar no meu reino terá o lugar que merece, não há lugar de favor.

- A senhora é do comércio? interrogou Robert, sempre encabulado.

- Sim, senhor. Dirijo um negociozinho na cidade.

De seu canto, Susan estudara a fisionomia da matrona. Saiu do mutismo para perguntar:

- Que género de negócio, madame?

- Uma espécie de hotel, querida. Oh! cousa simples. Alguns quartos e algumas comodidades. Nada de palácio, é claro: uma casinha sem. pretensões, bem tranquila e direita.

Fez-se novo silêncio, e, após um instante, Susan pôs-se a tossir, respirando involuntariamente uma baforada. Este ligeiro incidente, agravado por algumas oscilações do navio, despertou outra vez a atenção de Robert para o odioso charuto. Depois de haver tomado a garrafa na mesinha e enchido um copo de água para a irmã, ele próprio tossiu por duas vezes e, dominando o embaraço, disse gravemente:

- Espero, madame, que não me leve a mal por lhe falar com toda a franqueza. Somos cristãos, membros da Unidade do Sétimo Dia do Estado de Connecticut. Não apreciamos muito o uso do tabaco, particularmente quando se trata do sexo feminino. Além disso, como a senhora acaba de ver, minha irmã não pode tolerar o cheiro desta planta nefasta. Permita-me lhe suplique, em nome da caridade cristã, que não fume na cabine durante a viagem.

A velha Hemmingway abriu a boca, olhou fixamente para Robert, depois desatou a rir como louca. A intempestiva gargalhada sacudia-lhe o corpo enorme. Dir-se-ia uma gelatina agitada por um tremor de terra.

- Isto é formidável! Isto vale tudo! Muy rico, senor! Em todo o caso muito obrigada pela carcajada! Como, na sua idade, o senhor ainda não sabe que a verdadeira caridade começa em casa? Mas, creia, eu gasto um cento de charutos por mês... Ótimo! - e dava pancadinhas na enorme peitaria agitada ainda pelo riso... - Um cento, no mínimo, e de minha marca, perfeito, fabricados em Las Palmas com o meu nome na caixa: "Hemmingway". Porque não me pede também para não jogar mais baralho? Não, senhor, não me privarei de meus charutinhos nem que o senhor viesse oferecer-me a salvação numa bandeja de prata!

Robert tornou-se rubro. Ia responder quando Susan interferiu:

- Deixe, Robert - falava em meio tom -; não se incomode. Saberei me arranjar.

- É claro que ela se arranjará. Deixe por minha conta. O senhor vai ver que seremos as melhores amigas do mundo quando desembarcarmos em Santa - e lançou um olhar oblíquo a Robert. - Você é muito distinto, sabe, mas não compreende a brincadeira. Trate de ser mais camarada.

Robert quis rebater a caçoada, mas se conteve e, rubro ainda, voltou-se para Susan, declarando com perfeito egoísmo:

- Tenho ainda uma hora inteira para trabalhar antes do jantar; vou ao camarote.

Ela respondeu com um sinal de cabeça, e, quando ele passou o limite da porta, apertou-lhe a mão com efusão compreensiva.

Um vento forte varria a ponte e veio refrescar o rosto ardente do missionário. Súbito, ele se acalmou. Recuperando o passo elástico, dirigiu-se para os camarotes de estibordo. No mesmo instante a senhora Baynham penetrava no outro extremo do corredor, inclinando a esguia figura para lutar contra a brisa que lhe avivara o tom da pele. Robert esquivou-se, de chapéu na mão, e, como a senhora o roçasse na estreita passagem, disse suavemente:

- bom dia, madame.

Certamente isto não passava de mera cortesia. Mas a cortesia não é uma das expressões da caridade cristã?

A dama, entretanto, não lhe retribuiu com um único olhar. Os grandes olhos lânguidos pareciam fixados no infinito. Desapareceu no canto do corredor, deixando-o ali, em pé, invadido por um vago mal-estar e envolvido por um ligeiro perfume que se desvaneceu quase logo. Partiu lentamente, muito perturbado pelo desagradável episódio, ainda tão próximo do outro, com a matrona. Talvez ela não tivesse ouvido! Teria o vento levado suas palavras? Mas esta ideia só o tranquilizou pela metade, e ele penetrou no camarote, completamente confuso.

O navio navegava agora no mar de Irlanda; a sineta acabava de anunciar o almoço e, com exceção de um só, os passageiros dirigiam-se à sala de jantar.

O "Auréola" não passava de um simples cargueiro; era às vezes chamado, por zombaria, de "navio de bananas"; mas ninguém se permitiria tal brincadeira diante do comandante. Para ele o navio era uma bela construção de ar nobre, onde era o senhor absoluto. Peter Renton possuía uma compreensão instintiva e profunda do mar, um raro senso de dignidade que, na sua opinião, devem guardar todos os que o percorrem.

Já os seus antepassados haviam escutado o apelo do oceano e sua história lhe era tão familiar como a de outros marinheiros mais célebres. Ele mesmo navegara muito tempo em veleiros e diversas vezes afrontara os rigores do Cabo horn.

Sua biblioteca era amplamente provida de obras sobre navegadores e principalmente sobre Nelson, cuja memória venerava. Quando de bom humor, falava continuamente sobre esses grandes homens e, com os olhos brilhantes, evocava os seus feitos nas ilhas Canárias, objetivo atual de suas viagens. Colombo partindo de Gomera para descobrir a America, Drake e Hawkins sitiando Las Palmas, Nelson perdendo um braço em Santa Cruz, e Trowbridge forçando sua passagem em Piazza dela Iglesifi quando tudo, mesmo o tesouro espanhol, parecia perdido.

Tal era o homem. Quanto ao seu método, consistia em manter a ordem no seu barco com um olhar e palavras de autocrata. Tudo aí devia ser perfeito, até os requintes da mesa que, segundo ele, marcava o nível de um gentleman - toalha imaculada, cristais cintilantes, prataria bem areada, e flóres para descansar a vista. Os oficiais de bordo faziam as refeições na popa, mas ele, entregando-se à fantasia nascida de um certo senso das obrigações mundanas, presidia à mesa dos passageiros.

"Um comandante é um homem solitário, dizia; agindo assim, encontra algumas compensações à sua vida monótona"; ou então: "Meus passageiros são de certo modo meus hóspedes".

Exatamente nesse momento, saboreava como conhecedor uma omelete e examinava os convivas com ar crítico. À sua direita, Lady Fielding estava sentada ao lado de DaynesDibdin, o velho cavalheiro teso e solene que ele imediatamente classificara na categoria dos imbecis. Em seguida vinha Mme. Baynham, "uma mulher bela como quê", mas uma peste, certamente. Do outro lado encontrava-se Tranter, o missionário, um tipo talvez sincero, mas barulhento, vulgar e cacete. De resto Renton detestava os Yankees: seu avô tinha sido fuzilado procurando forçar o bloqueio no Alabama. Não englobava Susan nos. mesmos preconceitos, sem dúvida por causa de sua fisionomia franca, que lhe agradava. Depois seu olhar caiu sobre a cadeira vaga que quebrava a harmonia da mesa, e franziu as sobrancelhas; mas tornou a serenar-se pousando-o em Corcoran, com o qual entrara em relações antes da partida, a propósito de certas dificuldades concernentes ao preço da passagem, e que lhe era, apesar disto, muito simpático. Quanto à velha Hemmingway, antiga frequentadora do "Auréola", relegara-a para o fim da mesa, tão longe dele quanto possível.

Terminada a inspeção, resolveu escutar a palestra. Justamente Dibdin, esticando o pescoço, fazia-lhe uma pergunta com uma curiosidade idiota.

- Que caixa esquisita é aquela ali, hein, comandante?

- É um harmónio, senhor -- respondeu secamente Renton; - pertence a um dos passageiros.

- Um harmónio - repetiu Dibs, esticando as sobrancelhas até a careca. - Mas, palavra de honra, eu pensava que os harmónios estivessem tão fora de moda como as redes para cabelo.

Do seu canto de mesa a velha Hemmingway lançou-lhe um olhar malicioso.

O senhor nunca assistiu a uma sessão de propaganda

religiosa, creio. Lá a gente vê os harmónios brotando da terra como ervas daninhas. Este é da mesma espécie.

Apontou Susan com a ponta do polegar: - Pertence àquela senhora que vai converter os espanhóis com o seu irmão. Ele é doente.

Tendo lançado estas informações como a lula larga a tinta, a matrona voltou alegremente ao seu prato de picadinho.

Houve um silêncio, depois a senhora Baynham dirigiu-se com bom humor a Susan, que estava à sua frente.

- Seu irmão está doente? Pois ele parece ser um rapaz fortíssimo.

Susan ergueu uns olhos cheios de rancor para a criatura indolente que parecia zombar de seu Robby. Na verdade, esforçava-se em dissimular sua crescente aversão por essa mulher.

- Meu irmão, com efeito, não é lá muito forte - respondeu secamente.

Robert pôs-se a rir com essa alegria esfusiante que lhe era própria e que não abandonava mesmo no púlpito:

- Ora, Suzie, a senhora Baynham faz uma simples pergunta; não se trata de um crime. A verdade - continuou voltando-se para Elissa - é que estou muito anêmico, apesar de ter todos os órgãos perfeitamente sãos. Meu médico de Connecticut. .. ou melhor, para ser breve, a análise de meu sangue revelou uma taxa de hemoglobina inferior à normal. Deram-me um novo tratamento de extrato de fígado: esperamos que o sol das ilhas supra essa deficiência.

Elissa olhou-o com ar incrédulo.

- Dibs, exclamou, você que tem experiência de todas as cousas, mesmo as mais inconfessáveis, Já encontrou algum missionário com insuficiência?

Interrompeu-se para pedir, graciosamente:

- Quem quer me passar a manteiga?

Robert, que tinha o pratinho à sua frente, fez um gesto de desculpa e lh'o apresentou.

- Lamento muito, murmurou.

Ela o encarou, com os grandes olhos azuis, que pareciam atravessá-lo sem o ver, e depois virou deliberadamente a cabeça.

Havia algum tempo que Mary Fielding observava com ar absorto a cadeira vazia. Como sob .um impulso súbito, voltou-se para Renton:

- Que pena, comandante, :- disse sorrindo, enquanto um ligeiro frémito lhe agitava os ombros, - esta cadeira vaga desde o começo da viagem é para desafiar a desgraça.

O comandante apanhou o guardanapo que lhe escapava dos joelhos:

- Não sou supersticioso, minha senhora. Esta cadeira estava destinada a um de meus passageiros; se ele quer deixá-la desocupada, creio que tem boas razões para fazê-lo; por causa disto não perco o apetite.

- O senhor não tem coração, comandante, - replicou a senhora Baynham num tom lânguido, - e nos intriga muito. Por acaso não percebemos o passageiro em questão quando subimos para bordo? Aquele homem de aspecto triste que estava no tombadilho. Você o notou bem, não é, Mary?

Lady Fielding não respondeu logo.

- com efeito, Elissa, disse afinal; eu o vi.

- Parecia acabrunhado, como se estivesse consumido por um fogo interior. Fale-nos dele, comandante.

- Aceita omelete, madame? - disse Renton, procurando cortar o assunto. - São uma especialidade do "Auréola" estes ovos com pimentão; foi uma cozinheira espanhola de Las Palmas que me deu a receita. Mas talvez a Sra. prefira o picadinho.

Elissa sorriu com doçura:

- Falávamos do passageiro ausente, comandante. Quem é ele? De onde vem? Onde está?

Os olhos de Renton, sombreados por espessas sobrancelhas, sondavam o rosto de Elissa.

Uma nuvem de constrangimento pairava na assistência. Enfim ele decidiu-se a responder:

- Seu nome é Leith, madame. Harvey Leith.

Uma estupefação geral acolheu estas palavras. Todos os passageiros deixaram de comer e levantaram a cabeça:

- Leith, Dr. Leith?

Elissa parecia refletir, enquanto olhava alternativamente para o comandante e para a cadeira vaga.

- Isto é extraordinário.

- Mas eu vi recentemente este nome nos jornais - exclamou Dibs com um risinho alvar. - Trata-se de um tal Leith, Harvey Leith, e quero ser enforcado se não era médico. Vocês bem sabem, esse homem que.. .

Renton continuava silencioso, o olhar fixo, a fisionomia glacial como esculpida em madeira. A velha Hemmingway pôs-se a chacotear:

- Então isto é desopilante! Trata-se na certa do mesmo tipo. .. basta ver o ar do comandante!

Fez-se novo silêncio. Renton conservava seu ar impenetrável, mas Mary, que o observava com o rabinho do olho, notou que ele estava muito contrariado.

- Um escândalo medonho - continuou Dibs, muito excitado. - Quase um assassínio.

com um gesto inesperado Corcoran pousou na mesa o talher. A face larga, cheia de cicatrizes, mantinha-se imperturbável enquanto ia falando devagarinho.

- Vejo que o sr. conhece a questão a fundo. Quando se é ilustrado como o sr., sabe-se julgar bem as cousas. O sr. estudou muito, vê-se logo, sabe tudo.

- Por favor, que diz o sr.? - replicou Dibs que ouvia mal.

- Oh! nada - redarguiu Jimmy com indiferença, nada disto; não sou muito eloquente, palavra de honra. Mas desde que estamos à mesa observo que o sr. deve ser um poço de ciência; deve ter passado a vida a ler, com certeza. Platão era menino de peito para o sr.

Piscou o olho com ar significativo, ao mesmo tempo que mordia o pão com força.

- O sr. leu os jornais -- disse Dibs, pavoneando-se como uma mulher velha - e reconhece que digo a verdade exata.

- Olá! leio os jornais, evidentemente - replicou Corcoran com a boca cheia - também leio Platão. Há uma diferença bem grande.

Um vago rubor subiu à face rígida do velho gentleman, o monóculo cintilou, marcando a sua agitação:

- Mas todo o mundo conhece essa história; esse indivíduo é um criminoso. O escândalo causou sensação na imprensa.

Sua voz tomava um diapasão agudo.

- Basta, - interrompeu Renton, levantando a cabeça e franzindo o sobrolho. - Detesto escândalo e não quero escândalo aqui. O Dr. Leith é a pessoa de quem o sr. fala, mas a calúnia conduziu à ruína mais de um indivíduo, e fez afundar mais de um navio. Proíbo a calúnia neste navio. Estamos entendidos, e acabemos com o assunto.

Passou-se um instante, depois Robert Tranter exclamou enfaticamente:

- Bravo, comandante! Eis o verdadeiro espírito de fraternidade cristã. Outrora não se lançou a mesma questão: "Quem dentre vós poderá atirar a primeira pedra"? Pois bem! Estou certo de que nenhum de nós pensa nisso. Vi o tal homem na vigia, e me senti tão comovido diante de sua expressão dolorosa que estava resolvido a lhe exprimir espontaneamente toda minha simpatia!

Susan, o nariz enfiado no prato, juntando os pés em baixo da mesa, sentiu-se inflamada pelas palavras do irmão. Dr. Leith, Harvey Leith, aquele mesmo cuja história seguira com tanta compaixão. Também ela o notara na hora da partida, mas sem suspeitar que fosse ele. Impressionara-se principalmente pela expressão trágica, como a de um homem que perdera a fé, e pelos olhos doloridos de Cristo ferido. Como devia ter sofrido! Instintivamente preparou-se para defendê-lo contra essa odiosa Baynham. E a piedade que sentira (porque não podia ser outra coisa senão piedade) aumentava com este pensamento: posso vir-lhe em auxílio, posso socorrê-lo. Furtivamente, ergueu ao céu os olhos.

A refeição terminou sem que ninguém reatasse a palestra. Mary Fielding voltara ao seu mutismo, o olhar triste e um pouco espantado, como quando se procura captar um pensamento obscuro e fugitivo. Seguiu Elissa à ponte, e as duas demoraram-se ali um momento, oscilando com o balanço do navio, as saias coladas às pernas pelo vento, os olhos fixos no horizonte. A costa desaparecera, e, na popa do navio, as ondas formavam um turbilhão cinzento que parecia impelir o "Auréola" para a frente. Para a frente, sempre, nesse caminho traçado a priori. Para a frente, enquanto se elevavam em Mary estranhas reminiscências; para a frente, sim, mas para que destino? Este pensamento abalou a moça já influenciada pela melancolia da paisagem.

Michel Fielding, que via os desejos de simplicidade da mulher com uma desconfiança meio zombeteira, hesitara em dar o seu consentimento para esta viagem extravagante. Mary ainda via a expressão de sua fisionomia quando lhe declarara: "É preciso que eu parta, Michel, que eu parta sozinha nalgum navio bem modesto, afim de evitar a multidão. Pouco importa aonde vou, desde que encontre calma e paz. Deixe-me ir embora, Michel, peço-lhe!"

De onde lhe viera esse desejo de evasão, essa ideia bizarra? . . . Não era, por acaso, feliz em Buckden? Não gostava bem daquela velha casa datando da época dos Tudor. cheia de encanto, de árvores centenárias? Apreciava muito a liberdade que se gozava naqueles bosques espessos, as cavalgadas solitárias sob as altas ramarias, as lagoas escondidas no íntimo das florestas, onde se podia tomar banho à vontade, as corsas delicadas que vinham comer na palma de sua mão, junto às bétulas prateadas.

Seria feliz com Michel? Sem dúvida. Amava-o sinceramente, sempre o amara. Entretanto, fora ele quem procurara retê-la, multiplicando argumentos. Depois capitulara com esse bom humor que era seu grande encanto.

Ceder ao capricho de Mary constituia para ele uma alegria, mas não procurava entendê-la. Invocara as conveniências, encontrara em Elissa uma companheira e em Dibs uma garantia de respeito. Pobre Dibs, sempre sem vintém. Por

isso aceitara imediatamente. Um perfeito parasita, tirando a subsistência dos convites, tanto assim que raramente era visto em seu pequeno apartamento de Davis Street. Pobre Dibs! Todo aparências, mas uma perfeita nulidade: nunca em toda a sua vida abrira um livro ou fizera algum trabalho manual útil. Isto é, já abatera um grande número de pássaros, de animais de toda espécie, sempre como convidado! Apesar da pena que tinha de Dibs, Mary preferiria viajar sozinha, mas evidentemente não era possível.

Porque deixara flutuar assim o pensamento? Porque seu espírito parecia evitar qualquer cousa que não queria fixar? Ah! sim, o estranho encontro da manhã. . .

Elissa agitou-se de repente:

- Estou gelada, - disse batendo os pés para esquentar-se. - Vamos ao meu camarote.

No pequeno quarto acendeu o minúsculo radiador elétrico, enrolou uma coberta nas pernas, depois observou com mau humor:

- É preciso que tenhamos muito sol para que lhe perdoe esta aventura a que você me arrasta, Mary. E neste miserável cargueiro, sem camareira e com esta gente horrível, sim, horrível! Por que diabo você inventou esta viagem?

- Não sei... Sentia-me completamente esquisita, sem equilíbrio, e alguma cousa me impelia a partir, uma força estranha, misteriosa.

Era exato, vinham-lhe às vezes esses impulsos súbitos, irrefletidos. Sobretudo vivia constantemente obcecada por uma paisagem que pouco a pouco se fixara no seu espírito e que se tornava cada vez mais familiar.

No sopé de um pico coroado por um capuz de neve banhado pela claridade lunar, um jardim suntuoso, cheio de aromas penetrantes (conhecia bem esse perfume que logo se desvanecia) e onde cantava uma fonte. Esse jardim surgia continuamente em seus sonhos; passava nele com a alma cheia de imensa alegria, depois, acordava triste, estranhamente deslocada, fora de seus hábitos, com uma cruel sensação de solidão. Um dia descrevera ao marido esta paisagem criada pela imaginação. Ele rira com indulgência.

- Sempre garota, Mary! Já é tempo de crescer!

Ela, entretanto, permanecia receosa, intrigada, atormentada pela visão que chegava a obcecá-la com a força de uma planta que abre caminho para a luz. Tal obsessão acabava por aterrorizá-la.

Erguendo os olhos de repente Elissa observou-a espantada:

- Que ar esquisito que você tem, Mary. Está parecendo uma criança diante de um arco-iris. Olhe, passe-me um chocolate, e, pelo amor de Deus, ponha um disco na vitrola. Aborreço-me até morrer!

 

O sino soara pela segunda vez, e o timbre repercutia ainda aos ouvidos de Harvey, enquanto que estendido, semi-vestido na sua caminha, fixava obstinadamente a fila de cilindros que corria no meio do teto. Dezenove cilindros, esmaltados de branco, simétricos, bem alinhados. Sem descanso, contara-os e recontara-os com a insistência do alucinado, que procura fazer o recenseamento de um rebanho de carneiros imaginários. Às vezes, misturando-se aos ruídos e estalos do navio, um choque de martelos nesses cilindros, outras vezes esse choque era no seu cérebro. Os punhos cerrados, o rosto pálido e espantado, nos olhos uma estranha expressão de fera acuada, Harvey sofria visivelmente, mas aceitava o sofrimento com amargura estóica. Por instantes, entretanto, um pensamento atravessava-lhe o cérebro como um raio: alguns passos para a grande escuridão, alguns passos somente, depois a noite glacial ... O fim de tudo! Não, era muito fácil; resistia à tentação. Outras vezes, com uma consciência feroz, tentava analisar este desejo mórbido, dominado de novo por esta tendência instintiva à pesquisa, esse desejo ardente, que fora sempre o mover de sua vida: descobrir a razão do inexplicável.

Fora educado com toda a austeridade. Seu pai era professor, não desses lentes afamados, gozando bela situação num colégio inglês reservado aos filhos de famílias abastadas, mas um humilde professor de ciências, mal pago, duramente tratado numa pensão modesta nos arredores de Birmingham. Entretanto William Leith era inteligente. Tinha ambição e ideias avançadas para a época, e era muito superior à tarefa ingrata de fazer penetrar no cérebro de garotos rebeldes os elementos áridos de física e química. Mas a necessidade impunha-lhe o ofício penoso. Sua mulher, Júlia, era dessas cuja existência inteira se resume numa palavra: pedir. Insaciavelmente reclamava do marido vestidos, dinheiro, amor, esgotando a modesta renda e queixando-se, sem parar, de sua insuficiência. Depois de haver, durante anos, atormentado o infeliz William, depois de o haver estafado, moido, física e moralmente, fugira um belo dia com um caixeiro-viajante. Nem o marido nem o filho nunca mais tiveram noticias dela.

Quando o abandonou, William Leith já sentia os primeiros sinais de uma lesão pulmonar. As crises de tosse tinham sido, na série de decepções por que passara Júlia, a gota dágua que faz transbordar o cálice, o impulso final que a lançara nos braços do amante. Após a partida, a doença progrediu rapidamente, mas o professor não parecia se incomodar. Abandonando toda a ambição só tinha um pensamento: o filho, que em um dia de fantasia orgulhosa ele batisara com o nome do grande sábio: Harvey.

Talvez fosse essa a origem da paixão precoce do menino pelas pesquisas científicas, e, coisa curiosa, ele manifestou desde cedo desprezo pelas mulheres, inclusive pela própria mãe, de quem jamais gostara muito..

Tinha doze anos quando William Leith foi subitamente levado por uma hemorragia pulmonar. Foi um golpe terrível para Harvey que adorava o pai e sempre vivera com ele na mais estreita união. Ficou a cargo de uma tia solteira, cheia de picuinhas, maníaca e pobre, que, ao mesmo tempo em que se resignava com a situação, considerava o sobrinho um intruso. Mas o jovem Harvey era ambicioso. Seu valor pessoal e perseverança permitiram que obtivesse, depois de haver brilhantemente terminado os estudos preparatórios, uma bolsa de três anos na Faculdade de Medicina da província. Tinha visto o pai, na falta de um pouco de sorte, fracassar numa carreira puramente universitária, e sentia instintivamente que a medicina lhe ofereceria maiores possibilidades de sucesso. Era particularmente dotado para a biologia. Em Birmingham, consideravam-no o mais brilhante aluno da turma; entretanto, depois de haver conquistado o diploma de doutor, de ter alcançado todos os prémios possíveis, recusou uma situação no hospital municipal e partiu de repente para Londres. Sua ambição não era chegar a obter uma importante clientela, ou ganhar dinheiro prodigalizando conselhos à cabeceira dos doentes. Suas aspirações eram mais elevadas, seu ideal, mais nobre. Era possuído por esta paixão reservada no curso dos séculos a uma pequena elite: a das pesquisas pessoais. Estava sem recursos, mas bastava-lhe o estritamente necessário para viver. Alugou um quarto modesto no bairro de Westminster e começou a trabalhar. Teve que lutar, passar privações, mas fechou os punhos, passou um avental na cintura e procurou construir segundo o seu ideal. Foi então que esbarrou em todos os preconceitos que travam o génio, sobretudo quando esse génio sai de uma pequena faculdade de província, quase desconhecida. Mas as decepções, longe da abatê-lo, fortificavam-no em suas resoluções. Vivia como um monge e lutava como um soldado. Obteve uma pequena situação num hospital de segunda ordem nos subúrbios; em seguida, depois de três anos de trabalho encarniçado, designaram-no para o posto de Chefe de Patologia Geral no Hospital Vitória, de Londres. Uma modesta instituição, já velha, sem grande reputação, rotineira em seus métodos, mas que representava para Harvey o primeiro degrau de sua carreira. Na tarde da nomeação, quando entrou em seu medíocre quarto de Vincent Street, contemplou longamente o retrato de Pasteur que reinava na secretária. Pasteur, o único verdadeiro génio, na sua opinião. Depois sorriu - o que raras vezes fazia - sentindo invadir-lhe uma ânsia de conquista.

Tinha - era inevitável - dirigido seus trabalhos para as pesquisas de serum e forjara uma teoria baseada numa série de experiências sobre a aglutinação, - um aperfeiçoamento dos métodos de Koch e de Wright, um progresso realizado sobre as descobertas destes dois sábios, e que, segundo ele, Harvey, devia revolucionar todos os métodos de tratamento.

Ideia imensa, magnífica, que não se aplicava apenas a uma só afecção, mas abraçava todo o campo da inoculação curativa e preventiva. Escolhendo, para começar, um ponto específico de ataque, orientou as pesquisas para a meningite cérebro-espinhal, não só devido à grande mortandade causada por esta doença, mas também porque todos os tratamentos tentados até ali haviam fracassado.

Exercendo de dia no Vitória suas funções médicas, passava as noites em trabalhos pessoais. Tal regime não tardou a alterar-lhe a saúde, mas repelia duramente os conselhos de seu amigo Ismay, cirurgião, que vivia a pedir-lhe que se poupasse. Ao contrário, impelido pelo ardente desejo de vencer, roubou ainda maior número de horas ao repouso. Nervoso, irritável, sentia entretanto que atingia o fim. Depois uma recrudescência têmpora de meningite cérebro-espinhal veio excitar mais violentamente seu zelo. O tratamento habitual, aplicado em toda sua importância medievalesca - era sua própria expressão - revoltava-o.

Uma ocasião, tarde da noite, terminou a última experiência. Feitos todos os controles, era concludente. com cuidado, repetiu uma por uma todas as verificações. Não havia dúvida possível. Dizer que estava satisfeito exprimiria fracamente o contentamento que lhe empolgava todo o ser. Jogou a caneta no ar com um gesto vencedor. Ganhara a partida.

No dia seguinte três casos de meningite cérebro-espinhal verificaram-se no hospital. Nem um instante Harvey pensou em considerar êsse fato como uma simples coincidência. Não, era o encadeamento lógico dos acontecimentos, o reconhecimento tácito da sua vitória. Apresentou-se imediatamente aos diretores do hospital e propôs aplicar seu tratamento.

Chocou-se com uma recusa seca.

Harvey ficou aterrado. Nunca reparara que tinha inimigos, que sua toilete descuidada, suas palavras irónicas, seu desdém arrogante por toda etiqueta haviam suscitado a animosidade, a desconfiança, que a exatidão científica de suas comunicações patológicas desencadeara o mau humor dos clínicos.

Semelhante a todos os que querem ignorar as hesitações dos predecessores, tinha a reputação dum fanfarrão, dum revolucionário, dum ser bem dotado mas perigoso.

Abalado por esse insucesso inesperado, Harvey não aceitou entretanto a derrota. Isso não estava em sua natureza. Começou imediatamente uma campanha, pôs-se pessoalmente em contacto com todos os membros influentes do conselho de administração, provou que o êxito havia coroado suas experiências, fez o cerco de todos cujas opiniões lhe eram favoráveis, afim de demonstrar o valor de seus trabalhos.

Exasperado pela displicência e pela rotina, pela obstrução criada pelas autoridades, insistiu obstinadamente. A amargura que manifestava acabou por abalar a oposição. Formou-se uma corrente de opinião; por causa disso chegou-se mesmo a discutir a política conservadora do estabelecimento. Falou-se de uma reunião excepcional do conselho de administração. Enquanto isso, o estado dos doentes progredia continuamente, tornando-se desesperador.

Depois, subitamente, houve uma reviravolta. A oposição enfraqueceu, tornou-se magnânima. com todo o pedantismo necessário decidiu-se autorizar a experiência do novo remédio. Foi redigido um douto consentimento, sendo o mesmo endereçado a Harvey, que pulou na sala onde agonizavam os doentes, agarrando, sem refletir, a ocasião oferecida.

Infelizmente era muito tarde; ele deveria ter desconfiado. Os pacientes estavam em tratamento havia mais de uma semana e o mal começara alguns dias antes de sua hospitalização. Agora se achavam em estado de coma, e em lugar de ser favorecido pelos acontecimentos, Harvey caía na armadilha preparada pelo destino. De um lado, espectadores, prevenidos, maldosos, esperando ironicamente a realização do milagre; do outro, três seres que, a frio, Harvey certamente teria considerado como perdidos.

Mas a impaciência anulava nele todo o senso crítico. Os nervos, excitados em excesso, recusavam-se a dar aos adversários a alegria de vê-lo renunciar à sua experiência. Pois não tinha ele uma fé absoluta em sua descoberta? Assumiu resolutamente a responsabilidade, injetando doses cavalares de serum nos ventrículos cerebrais dos pacientes. A noite inteira velou à cabeceira deles, renovou a injeção por diversas vezes.

Pela manhã, com espaço de uma hora - a mesma hora lúgubre - os três doentes morriam. Tratados ou não segundo novos métodos, a morte deles era inevitável, mas embora o espírito indomável de Harvey estivesse na altura de suportar sem enfraquecer o insucesso, tais mortes constituíam uma decepção bem amarga.

Seguir-se-ia cousa pior. Um linguarudo, fora do hospital, começou a fazer comentários maldosos. O incidente chegou ao conhecimento dos jornais, que imediatamente começaram a explorá-lo. A história deturpada excitou os cronistas, espalhou-se em toda a imprensa como um rastilho de pólvora. Houve um clamor geral contra o hospital e contra Harvey, que não se incomodou muito, aceitando com desprezo as acusações. Compreendera agora que seu único erro fora em intervir tarde demais. Mas sua fé não ficara abalada. Para o espírito científico e desprovido de sentimentalismo, a morte dos três indivíduos não passava de uma experiência negativa. O sucesso popular nunca fizera parte de suas ambições, e os urros da multidão o deixavam perfeitamente frio.

Mas não continuava a ir como outrora ao hospital, e as autoridades começaram a se impressionar.

Impelido pela opinião, o conselho de administração reuniu-se em sessão secreta. Em vão os poucos amigos de Harvey tentaram intervir em seu favor, mas o presidente, como Pilatos, lavou as mãos e abandonou o pseudo-culpado à vingança pública. Imperava na maioria uma grosseira vontade de se desembaraçar do personagem comprometedor.

No dia seguinte, quando Harvey entrou no laboratório, encontrou uma carta em cima da mesa: era um pedido formal de demissão. A princípio recusou-se a acreditar: a injustiça era grande demais. Mas foi preciso render-se à evidência. Sob a fúria da sorte, tudo se lhe desmoronava em torno.

Quatro anos de trabalho intenso, consagrados inteiramente à ciência, sua única paixão; quatro anos passados à procura da verdade, e agora. .. Num relâmpago de lucidez compreendeu tudo: rejeitavam-no, ia-se tornar um proscrito, sem situação, portanto sem possibilidade de trabalho, sem um vintém sequer. Seu nome achava-se publicamente desonrado. Que ia ser feito de si? com um pouco de sorte talvez pudesse encontrar um lugar de assistente numa clínica de segunda ordem, ao lado de um doutor desconhecido; mas quanto ao resto, era um homem acabado.

Uma ironia amarga obscureceu-lhe o pensamento. Levantou-se em silêncio, lançou ao fogo todos os papéis em que consignara suas observações, quebrou os frascos que continham o produto de seu trabalho, e saiu do laboratório.

Voltando ao aposento, examinou a situação com uma ironia terrível, sem piedade. Só lhe restava um recurso: esquecer, esquecer tão rapidamente quanto possível. E foi por causa disto que se pôs a beber, não por fraqueza, mas por nojo da existência. Nenhum heroísmo em sua atitude, apenas desprezo. O álcool era um remédio: haveria de usá-lo como tal. Sozinho no mundo (porque nunca a ideia de uma mulher brotara no seu pensamento), não tinha amigos, salvo Ismay, o cirurgião, - o único a assistir ao seu naufrágio.

Mas havia justamente Ismay, que todos os dias, no transcurso das três mortais semanas, se impusera com doçura, e pouco a pouco, por alusões discretas, com tato, lhe insinuara a ideia de viajar.

Porque não? Afinal de contas um homem poderia encontrar num navio, tanto quanto noutra parte, a possibilidade de beber e de consumar sua ruína.

Inconsciente da armadilha preparada, Leith consentira, E agora, achava-se prisioneiro no miserável cargueiro, privado de álcool, e tão doente que seu sofrimento lhe parecia pior que antes. A cabeça rolou no travesseiro, e, ao mesmo tempo, num sobressalto, Harvey voltou à consciência. Batiam à porta. A maçaneta mexeu-se e Jimmy Corcoran enfiou a ossuda figura no limiar. Ficou imóvel um instante, a boca aberta num largo sorriso, o chapéu sempre enterrado na cabeça. Depois ergueu o braço com gesto displicente do atleta que levanta enormes halteres:

- Então, meu velho, como vamos? Sente-se agora um pouco mais forte?

Harvey fixou-o com um olhar desconfiado:

- Como pode você saber que não vou bem? Corcoran sorriu de novo, com um sorriso cordial, confidencial, depois atirou o chapéu para trás.

- Não almoçou, não tomou chá, e, pelo que vejo, não tem intenção de jantar. Certamente não é necessário ser Sherlock para compreender que isso não vai bem. E como sou entendido em nocaute, entrei um instante, para saber se você continuará aí no seu canto.

- O bom samaritano, - disse Harvey zombando.

- Certamente.

Os dois permaneceram silenciosos, depois, galvanizado por um súbito pensamento, Harvey levantou-se um pouco, alçando os ombros:

- "Eles" falaram de mim?

Exatamente, - replicou Jimmy. Endireitou as calças e sentou-se confortavelmente na banqueta. - Falaram em você, contaram a sua história, discutiram-na por todos os lados. Havia um sujeito velho que dizia um mundo de cousas. O que eles não sabem a seu respeito é que é pouco, caberia escrito numa moeda de três pence. Mas não vale a pena se incomodar. Conserve a cabeça erguida, meu velho.

- Pelo amor de Deus - exclamou Harvey exasperado,

- chame-me como quiser, mas não assim.

- Bem, está direito - concordou Jimmy de bom humor. Calaram-se de novo. Harvey passou na fronte a mão úmida e continuou com um furor concentrado:

- Que diabo faz você aqui? Não vê que só tenho uma ideia: ficar só?

Jimmy tirou do bolso a tabaqueira de metal, enfiou o polegar enorme, aspirou gravemente a pitada, depois limpou a roupa com a palma da mão.

- "Quando o objeto de seu desejo some, - citou em tom oracular, - ele desaparece logo e ninguém o torna a ver". Lê-se isto em Platão. Sim senhor... Vejamos. Eu que o adivinhei desde que você pôs o pé no salão. É claro que não precisei de olhá-lo duas vezes para compreender o que o fazia virar. A bebida já perdeu mais de um. Eu que lhe falo, também gostava muito. O baralho e a garrafa, o que. . .

Suspirou e lançou um olhar ao mesmo tempo grave e malicioso.

- Mas que o diabo me leve se caio nesta agora. Não estou brincando. Tenho muitos defeitos, mas não costumo pregar petas, e respeito os que dizem a verdade. Quanto ao camarada que é triturado pelo destino, tem a minha simpatia. Minha vida tem sido dura e tenho visto muita cousa, desde que nasci em Clontarf, há uns sessenta anos! Meus pais, que vinham de Tralee, não gastavam ali um tostão, mas eram orgulhosos.

Quando garoto, ganhava o pão de cada dia tomando conta de cavalos em Sackville Street, e aprendi a ler, soletrando os cartazes de "Guinness". Eu, que leio Platão tão bem como um sábio!

Fez uma pausa, como esperando um encorajamento, mas Harvey continuava com os olhos fechados.

- Depois meti-me no boxe, o mais belo de todos os jogos! É preciso dizer que eu era fortíssimo, invencível. Ninguém podia me resistir no ringue Em Belfast, derrotei Smiler Burge. Atirei-o às cordas com um direto da esquerda. É claro que seria campeão do mundo se não houvesse quebrado a perna. Mas foi justamente o que me aconteceu - ainda trago o sinal. O mundo perdeu um campeão que daria o que fazer. E foi assim que me vi obrigado a ire expatriar em 1900. Que ano miserável!

- Chegamos ao fim da história? - gemeu Harvey. Espero que sim, e rogo-lhe que me deixe em paz!

- O fim? Qual o quê! É exatamente o começo. Deus sabe por onde andei depois. Fui garçon de um bilhar em Sidney. Encontrei-me mais tarde no México, no momento de uma daquelas revoluções. No ano seguinte, estava metido na caça de ouro em Buli Gulsh, depois abri um botequim em São Francisco. Mas - acredite se quiser - não estava satisfeito. Tentei então um sítio no Sul. Aquilo é que era boa vida! E se algum dia voltar a ganhar quatro vinténs, é lá que o sr. me verá metido, eu, Jimmy Corcoran, em um sítio, com uma vaca e umas galinhas. Depois, não sei o que me deu na veneta, mandei tudo às favas um belo dia, e parti à procura de prata nas minas do Colorado. Em seguida, entrei para o circo do professor Sinot. Caro Bob! É ele quem me espera em Santa Cruz, para um grande negócio. Ah! que boa temporada a gente passou no circo do velho Bob! Durante um ano, entrava todas as noites na jaula da terrível leoa Dominica, que atacara e fizera em pedaços três guardas sucessivamente. Pelo menos os cartazes o afirmavam. Mas quanto à pobre leoa, morreu entre mim e Bob por ter comido uma porcaria que caira da jaula dos macacos, e foi ela que levou o circo à glória.

Soltou um suspiro e meteu o polegar na cava do colete.

- Triste dia, em verdade, aquele em que me despedi do velho Bob!

Harvey agitava-se impacientemente na cama estreita.

- Pelo amor de Deus, despeça-se de mim também.

- Está bem, vou-me embora, deixo-o. Vejo que o sr. não está de muito bom humor. De qualquer maneira, é necessário que me apresente e que lhe diga que sou o homem de quem precisa. Palavra de honra, conte comigo. E além disso, meu velho, não se deve julgar pelas aparências, não estou nadando em ouro, concordo (interrompeu-se para endireitar com ar vencedor o alfinete ordinário de gravata) mas isso não há de durar sempre. Agora, com o professor, vou arranjar o melhor dos negócios, a fortuna, sim senhor!

O silêncio que se seguiu era tão expressivo que Harvey foi obrigado a abrir os olhos. O sorriso que percebeu desarmou-o. Emanava deste velho aventureiro tal encanto, feito de boémia e de mistificação, que as palavras desagradáveis lhe morreram nos lábios. Todos os dois se observaram em silêncio, depois Corcoran se levantou:

- Está bem, está bem - disse com ar displicente. Não se esqueça do que lhe declarei a respeito deste seu camarada. Uma só palavra e aqui estarei para servi-lo.

Deu dois passos, enterrou o chapéu nas orelhas, abanando a cabeça em conclusão, e retirou-se do camarot . Tinha o ar satisfeito de quem cumpriu seu dever para com o próximo e para consigo mesmo. Cantarolando baixo, avançou para a ponte, procurando a velha Hemmingway.

Sobrava-lhe o tempo exato, antes do jantar, para um aperitivo e uma partida de "rummy".

Harvey, enfim só, apoiava a testa contra a barra de metal da cama estreita.

Como pudera suportar a parolagem daquele velho imbecil? Bondade vulgar, familiaridade irlandesa, impondo-se com desembaraço para adulá-lo com protestos de amizade. Era inverossímil, ridículo. Agitou-se desesperadamente sob a estreita coberta, procurando dormir. Passou-se meia hora,

depois Truta entrou, segurando um balde espelhante. A fisionomia indecisa traía uma vaga expressão de terror. Pousou a água quente no soalho com solicitude e perguntou, todo amável:

- Quer que lhe desarrume as malas?

Harvey nem abriu os olhos. Sem mexer com a cabeça, murmurou:

- Não.

- Quer que lhe traga o jantar?

- Não.

- Não deseja nada?

Pela décima vez, desde o começo da tarde, a vitrola do camarote vizinho vibrava com uma voz agudíssima: "dá-me teus beijos". Um arrepio doloroso sacudiu Harvey. Aquela música estridente, de um sentimentalismo repugnante, girava no seu cérebro, torturando-o. Perdendo a linha, levantou-se na cama e berrou:

- Estou rebentando de dor de cabeça! diga-lhes. . . diga-lhes, por piedade, que parem com esta vitrola.

Truta parecia muito chocado; mas, como se a agulha fosse bruscamente arrancada do disco, a música cessou. Fez-se um silêncio pesado.

-í Este tabique é muito fino, senhor, - disse enfim Truta com agitação. - E o sr. gritando assim tão alto, é ouvido do lado.

Saiu, mas voltou cinco minutos depois, segurando nos dedos estendidos uma bandeja coberta por uma toalhinha, com uma tigela fumegante. A rolha prateada de um tubo de comprimidos brilhava ao lado.

- Talvez o sr. queira tomar um pouco de sopa, - suplicou o homenzinho, como se procurasse fazer-se perdoar de uma falta grave. - Sopa Sidney, muito forte, O capitão me deu ordem para trazê-la, e Lady Fielding, sabendo que o sr. estava com enxaqueca, encarregou-me de lhe oferecer aspirina.

Harvey apertou os lábios. Estava com vontade de gritar, de blasfemar e de chorar ao mesmo tempo.

Deixe a bandeja aí, perto da cama, - murmurou num tom abafado.

Depois deitou-se outra vez, fechou os olhos, escutou os ruídos e estalos que pareciam os suspiros do navio. Furando a escuridão, o "Auréola", força simbólica, arrastava Harvey para a frente, sempre para a frente, contra a sua vontade. E, na noite, esses gemidos, esses estalos do navio tornavam-se vozes misteriosas que cochichavam docemente em torno dele.

 

O "Auréola" vogava desde três dias. Um vento favorável continuava a soprar de sudoeste, balançando o navio em ondas mansas, enquanto a silhueta do cabo Finisterra esbatia-se em uma linha imprecisa contra o costado do navio. O sol da manhã brilhava a intervalos num céu tempestuoso, e quentes chuvaradas tinham acalmado o oceano.

Um ruido de passos ecoava na ponte a estibordo, enquanto que Robert Tranter e a irmã se conservavam sentados no salão, diante do harmónio.

- Que magnífica melodia! exclamou Susan, em tom meditativo. Você a canta muito bem, Robbie.

- Sim. Há um belo impulso neste velho cântico "Gloria".

Aplicando o ouvido em direção ao teto envidraçado, parecia esperar a volta dos passos.

- Creio que podemos parar aqui, agora, Susan. Veja que lindo sol faz. O "coral" bem mereceu vir tomar um pouco de ar.

Os dedos de Susan imobilizaram-se no teclado. Voltou lentamente para o irmão os cálidos olhos castanhos.

- Mas começamos agora mesmo, Robbie, e devíamos trabalhar uma boa hora. Entre todas as horas do dia, é esta a que prefiro, este estudo que nos reúne os dois, tranquilos, sós.

- Não há dúvida, é verdade, Susan, - respondeu com um risinho. - Também eu gosto muito que trabalhemos juntos; mas é curioso como não me sinto mais sossegado desde que ponho os pés num navio.

Ela encarou-o, atenta, ao mesmo tempo que feria um acorde que ressoou docemente no ar.

Não gosto dessa gente, - afirmou de súbito. - Sobretudo da senhora Baynham.

Ele contemplou seus punhos de renda bem engomados, unidos pelos clássicos botões de ouro.

- Oh! Suzie. . . - e sua voz adquiriu um timbre estranho. - Você não tem razão, não tem. Pressinto nessa mulher muitas.. . muitas grandes qualidades.

- Mas a questão é que ela zomba de nós, Robbie. Leva tudo ao ridículo, até. . . até Deus!

Ele apertou o braço da irmã com um gesto de protesto.

- "Sede indulgente para com o vosso próximo". Parece-me que nosso papel não é criticar.

- Ela lhe interessa muito, - disse rapidamente: sinto-o.

Ele não procurou negar.

- Concordo, Susan - e dirigiu o olhar, decidido, para a irmã. - Ela me interessa muito porque vejo ali uma alma que é preciso salvar. Enfim, já estive às voltas com um grande número de mulheres, ao que me parece. Algum dia lhe dei motivo para duvidar de mim?

Era verdade. Muitas mulheres haviam correspondido ao seu fervor espiritual com uma admiração que ele se habituara a considerar como homenagem natural. Jamais, entretanto, experimentara por nenhuma delas nem ao menos a sombra de um sentimento duvidoso. Suas únicas afeições concentravam-se em si mesmo, em Deus e Susan.

Nascido em Trenton, de pais piedosos, era desses predestinados que desde a infância parecem consagrados ao santo ministério. Seu pai, Josias Tranter, modesto padeiro, barbudo, apagado, comerciante medíocre, era membro da seita "Unidade do Sétimo Dia." Seus pães levedavam-se graças ao fermento levítico, e até os seus "sonhos de queijo" cheiravam a sacristia.

Sua mãe, Emília, calma, zelosa, vinda de uma raça crente e sólida, era silenciosa e boa, suportando com uma coragem e uma paciência meritórias as falências sucessivas do marido. Os filhos representavam a sua única alegria. Sobretudo o rapaz, ao qual votava uma adoração apaixonada. Sem dúvida, Robert mostrava-se digno: consciencioso, inteligente, instintivamente religioso, jamais cometia asneiras; e quando pessoas de fora lhe acariciavam familiarmente a cabeça, perguntando: "Então, garoto, que fará quando crescer?", respondia com toda a sinceridade: "Pregarei o Evangelho". Tão alta ambição era largamente estimulada e alimentada. Um pastor, tendo dormido de passagem em casa do padeiro, tinha mesmo feito imprimir um folheto intitulado: "Tocado pela Graça com a idade de nove anos". Assim Roberto conheceu desde cedo a glória da salvação.

Susan, se bem que de natureza mais sensível, ocupava o segundo lugar na família. Boa menina, demonstrava pelo irmão uma grande afeição, mas não era um modelo de inteligência. Todos achavam, portanto, natural que aceitasse um lugar de enfermeira estagiária no hospital John Stirling, enquanto Robert entrava na Faculdade de Teologia. Passou-se o tempo, e, enfim, chegou o dia glorioso da ordenação de Robert. O orgulho que então empolgou o pobre padeiro e sua mulher apagou a lembrança do árduo labor, dos anos de sacrifício. Vestindo roupas solenes, tomaram alegríssimos o trem de Connecticut. A deles! Esse trem era fatal. A seis milhas de Trenton, descarrilou e rolou no declive. Houve poucos prejuízos materiais e somente duas vítimas, mas estas eram precisamente Josias Tranter e sua mulher. Robert ficou abaladíssimo. Houve uma cena muito comovente quando, saindo do templo da Unidade, depois da ordenação, recebeu a notícia da morte trágica de seus pais. Susan manifestou menos abertamente o seu pesar. De resto não se esperava que ela fosse tão sensível ao choque. Entretanto, desmaiou duas vezes, no exercício das suas funções no hospital. Diagnosticaram uma lesão cardíaca e aconselharam-na delicadamente a renunciar ao ofício de enfermeira. Ela veio instalar-se, pois, com seu irmão, em Okeville, consagrou-se inteiramente a ele e considerou-se perfeitamente feliz assim. Mas Robert, embora cheio de zelo e favorecido pelo sucesso, não estava satisfeito. Não podia se fixar. Sem que se apercebesse claramente, seu espírito romântico e impetuoso impelia-o a conhecer os aspectos do mundo e a sondar-lhe os atrativos.

No fim de um ano, pediu demissão de pastor e arranjou para ser colocado na lista dos missionários. Sua sinceridade e talento haviam sido apreciados, e, se bem que a saúde não fosse muito boa, mereceu aprovação. Precisamente a atenção do reverendo Mac Atee, que dirigia a seita, estava nesse momento, tal como a de Alexandre o Grande, voltada para novas conquistas, e havia pedidos urgentes para as Canárias. Robert, em vez de ser despachado para a China ou o Congo, recebeu ordem de se dirigir a Santa Cruz, e, bem entendido, Susan decidiu acompanhá-lo.

Tal era, em breves traços, o passado de Robert Tranter; neste momento, observava a irmã com indulgência:

- Sou muito sério, Suzie, creia-me. Aquele que zomba será mais facilmente accessivel à boa palavra, que o indiferente. Que alegria para mim se eu pudesse me tornar o instrumento do Senhor e guiar para Ele esta ovelha tresmalhada!

Seus olhos fulguravam. Sentia-se arrebatado pelo entusiasmo.

Susan olhava-o sem dizer nada. Um leve rubor acentuava-lhe a ansiedade, quase tristeza. De repente, ouviu-se um barulho de temporal, e logo em seguida escureceu o painel envidraçado do teto. Uma gargalhada ressoou, em cima, na ponte, uma degringolada de passos fez vibrar a escada e Mary entrou com uma rajada de vento, as sandálias de linho branco úmidas de chuva, os cabelos desgrenhados cobertos de gotas de água.

- Chove, chove! gritava. - Todo o mundo para baixo! Elissa, Dibdin e Corcoran rodeavam-na.

- Por Deus! - exclamou Dibdin, recuperando o equilíbrio com a destreza de um marinheiro consumado. - Que borrasca, hein? E tão brusca!

Elissa sacudiu as dobras do capote, depois olhou para Robert e Susan:

- Oh! vocês cantavam. Como é divertido! E você toca harmónio manobrando os pedais, não é? Delicioso, não há dúvida, delicioso! Mas não devemos interrompê-los; pelo contrário, vocês vão nos divertir de modo encantador. - E, sentando-se ao lado dos outros no canapé de pelúcia, tomou uma suave atitude de espera.

Nasceu logo um constrangimento no ambiente. Susan fez-se rubra, mas sua voz estava firme quando respondeu:

- Cantávamos para nosso Criador, madame; não consideramos isso um divertimento.

Elissa franziu o sobrolho, afetando um ar de admiração.

- Mas não poderia cantar, de qualquer forma? Quero dizer, não poderia ao mesmo tempo nos distrair e causar prazer ao seu Criador?

Dibs, como sempre, soltou uma risadinha sarcástica, mas os olhos de Susan se sombrearam, e os lábios perderam a cor. Procurava palavras para replicar, quando Robert interveio :

- Já que insiste, Mme. Baynham, vou cantar para a sra.. Sentiríamos muito se lhe fossemos desagradáveis. vou escolher um trecho que talvez lhe agrade, e que, ao mesmo tempo, glorificará a Deus.

Assumindo um ar cerimonioso, virou-se para a irmã e disse-lhe algumas palavras a meia-voz. Susan, toda tesa no tamborete, parecia decidida a não se mover. Durante alguns segundos, conservou-se imóvel, depois, com um gesto quase resignado, mexeu-se, pousou as mãos no teclado e pôs-se a tocar. Era o "Filhos de Deus". Ao som fraco e fanhoso do medíocre harmónio, Robert começou o canto.

Sua voz de barítono, rude demais nos tons graves, e trémula nos agudos, tinha entretanto um timbre quente e vibrante. com o olhar fixo, inchando a garganta, esforçava-se por dar tudo que podia, o que lhe comunicava um ar solene, quase teatral. Mas a beleza tocante da música fazia esquecer tôda a afetação.

Corcoran inclinava atentamente a orelha mutilada, ao mesmo tempo que abanava de leve a cabeça. Para ele, aquilo era uma bela melodia, nada mais. Dibs, abrindo largamente uns lábios interrogativos que mostravam dentes amarelos, pensava no almoço. A impassibilidade de Elissa não traduzia mais do que um tédio impertinente. Só Mary, toda encolhida no sofá, escondendo os pés debaixo da saia de sarja azul que lhe modelava as pernas finas, o olhar perdido, esquecendo o cantor, escutava como num sonho. A expressão alegre e ousada que tinha um momento antes mudava-se pouco a pouco em tristeza. Os traços encantadores sombreavam-se de uma melancolia misturada com admiração. Diante de seus olhos, visões flutuavam imprecisas e perturbadoras. O murmúrio cristalino de uma fonte ecoava nos seus ouvidos, aliado à impressão de imutável pureza de um luar. Como em tantas outras vezes, estremeceu, à espera de uma revelação.

Num último movimento, a voz de Robert elevou-se, depois calou-se. Ninguém dizia nada. Mary estava muito comovida para falar. Enfim Elissa soltou de propósito um bocejo atrás da mão:

- Mil vezes obrigada. Já ouvi este trecho interpretado por Paul Robson. Ele o cantava maravilhosamente.

Sob o peso da afronta, Robert corou até as orelhas. Susan levantou-se, rígida como um autómato, e apanhou sua música.

Depois Mary murmurou:

- Como era belo! Belíssimo!

Hesitou, procurando concretizar um pensamento misterioso.

- Existe aí algo de inexprimível, um desses sentimentos ocultos que não é dado a todo o mundo experimentar.

- É exatamente isto, milady, - disse Corcoran, galante.

- É verdade mesmo que existe aí alguma cousa que não se pode alinhar com um simples compasso. Cousas de que não se tem uma ideia exata, cousas que não se podem explicar.

Ninguém respondeu à sua observação. Mary levantou-se e deixou a sala sem acrescentar uma só palavra.

A chuva cessara. Andou alguns passos na ponte, inclinou-se sobre o peitoril. "Os sentimentos ocultos, que não é dado a todo o mundo descobrir!" Que grande tola era, sim, muito tola.

Em baixo, o grupo dispersara-se. Corcoran e Dibs alcançaram seus camarotes. Susan esperava, em pé no meio do salão, os olhos pregados em Robert, que continuava sentado diante do harmónio.

- Venha, Robbie - disse, com a maior calma possível. - É hora de você tomar a poção.

Ele ergueu os olhos, como perturbado em sua profunda reflexão:

- vou já, Susan. Você quer me preparar este. . . (sorriu com ar fraternalmente protetor) esta droga imunda.

- Venha, então. Senão você acaba esquecendo. Tornou a sorrir e continuou, com um ar frio, que não

lhe era habitual: I

- Derrame a quantidade necessária, Susan. - Se em meia hora não acabar de beber isto, engolirei a garrafa inteira!

Os dedos de Susan enrijaram-se ao segurar a capa de papelão verde que cobria a música. Entretanto, conseguiu dominar-se até sorrir, e desapareceu silenciosamente.

Elissa, dirigindo o olhar ausente para as cousas reais, deixou-o cair, como por acaso, sobre Robert:

- Ela é ciumenta - comentou ironicamente. - Pergunto: Por que?

- Susan e eu vivemos inteiramente um para o outro.

- E para Deus sem dúvida?

- Sim, para Deus.

Do canapé em que estava sentada, num canto da sala pequena, ela o encarou com um olhar carregado de indolente desprezo e total incompreensão. Em suma ele não passava de um João Ninguém, um pedante insuportável, o ser mais ridículo que jamais ganira um salmo. Tal pensamento transparecia-lhe no olhar, porque Robert, erguendo a cabeça, desabafou, enfim:

- Porque nos despreza, Mme. Baynham? Sem dúvida, não temos, nem minha irmã nem eu, a sua elegância, sua educação. Nossa origem é modesta, mas não somos criaturas de Deus? Humildes criaturas, reconheço, mas que se exercitam na prática da bondade, da caridade, da honestidade.

com perfeita indiferença ela acendeu um cigarro. Mas ele levantou-se, caminhou para ela e sentou-se, muito solene, ao seu lado:

- Mme. Baynham - continuou com a maior seriedade, e sua voz adquiriu inflexões quentes, doces e cerimoniosas - eu procurava uma oportunidade para lhe falar em particular. Queria dizer-lhe com toda a franqueza (seus olhos brilhavam e ele precipitou o prólogo), que a sra. faz de mim e de minha irmã um conceito errado. Toma-nos por uma espécie de impostores. Não é exato. Nós, evangelistas, temos sido arrastados na lama, ridicularizados em livros, parodiados nossos sermões, nossas roupas, nossas maneiras. É uma vergonha, e diante de Deus que me ouve, juro-lhe que tudo isso de que nos acusam não é verdadeiro. Houve, concordo, alguns casos excepcionais. Gente ordinária, homens ou mulheres, ávidos, interesseiros, que prostituíram o evangelho a troco de dinheiro. Mas, para um desses há cem crentes verdadeiros, cheios de fé viva e sincera. Esses livros vergonhosos poderiam fazer-lhe crer que a religião não ensina nem a dedicação nem a coragem; que todo pastor, quando prega aos fieis, torna-se presa da dúvida. Isto é uma mentira abominável. Eu que lhe falo, creio, com todas as fibras do meu ser, Mme. Baynham, admito que a sra. não tenha fé, mas ao menos faça o favor de admitir a nossa sinceridade.

Ela lançou-lhe um olhar protetor.

- Mas que sermão comprido! Que significa tudo isso, e que me importa!

- Importa muito mais do que pensa, madame. E a sra. sabe muito bem o que significa. Estou profundamente entristecido, garanto-lhe, por ver uma mulher de sua inteligência, de sua capacidade, de sua beleza, tão fechada ao sentido da vida. A sra. não é feliz. Experimentou todas as vaidades do mundo e não achou nelas nenhuma satisfação, nenhum prazer.

Ela ergueu as sobrancelhas:

- Nenhum prazer? Acha?

- Não, nenhum. E nunca será feliz, enquanto não encontrar Deus. É nele, e somente nele que reside toda alegria.

Ela tirou uma baforada de cigarro e observou com atenção a ponta incandescente. Em suma, por mais estranho que parecesse, aquele homem era sincero. Assaltou-a o vago desejo de ceder a um capricho. Não era feio, o perfil não era desagradável. . . e era bem construído. . . belo homem afinal. . . Mas de suas narinas saiam pelos, e era aborrecido! E assim ele era: aborrecido, fastidioso, cacete? Surpreendeu-se dizendo:

- E o sr. é feliz? Perfeitamente feliz?

- Não o vê? - respondeu, todo aceso. - A graça divina está na fonte de todas as venturas, agora e para sempre. É evidente. Ah! se quisesse compreendê-lo, madame. Gostaria tanto de convencê-la!

Instalada na sua indiferença, ela replicou:

- O sr. deseja de fato a minha salvação?

Um ímpeto furioso de pregar um tema bem diferente invadiu-a, mas dominou-se, enquanto Robert exclamava exaltado:

- Minha missão consiste em salvar os homens! Havia sinceridade em sua grandiloquência. Inclinou-se

para Elissa, os olhos úmidos, cheios de fervor:

- Por que não tenta chegar a Deus? É bela demais para se desviar. Venha, venha, deixe-me guiá-la para a verdade!

Ela continuava imóvel e esforçava-se para conter a hilaridade contra a qual lutava secretamente. Mas o cómico da situação triunfou, e, bruscamente, estourou numa risada. Acompanhando o riso que a sacudia, a sineta que chamava para o almoço vibrou como a trombeta do juízo final. Virando-se para Robert, gritou-lhe com voz nervosa:

- O sr. esqueceu-se. . . esqueceu-se de tomar o seu extrato de fígado!

 

Às quatro horas desse mesmo dia, Harvey, pela primeira vez desde que o "Auréola" deixara o alto mar, saiu do camarote. Cegado pelo sol forte, parou no corredor, piscando os olhos, dominado pela sensação de ser o isolado, o pária. A luz crua acentuava-lhe no rosto os traços do sofrimento. Mas, apesar das faces cavadas, apesar da fraqueza que o fazia cambalear, sentia-se melhor, infinitamente melhor. Truta, depois de o haver barbeado e ajudado a vestir o deselegante terno cinzento, observava-o agora, no limiar do camarote, com uma espécie de ingénua altivez criadora. No transcurso dos três últimos dias, o camareiro mostrara-se muito dedicado, e Corcoran, por diversas vezes, impusera-se com sua fisionomia cordial.

Sem dúvida, Harvey não era ingrato, mas a ajuda que todos os dois lhe haviam prestado não o impedia de se sentir um estranho no navio. De resto, não era este mesmo o seu desejo? Apoiando-se no corrimão, galgou lentamente a escada que conduzia à ponte superior. A bombordo avistou, enrolada num cobertor, a velha Hemmingway. As mãos gordas, brilhantes de anéis, espalmadas nos joelhos como placas de manteiga, o rosto empastado, flácido como uma bexiga cheia de banha.

Como no momento não estava bebendo nem comendo, não fazia nada. À vista de Harvey, seus olhos brilharam maliciosamente:

- Será possível! - exclamou. - Mas é ele mesmo, o estrangeiro. Santa-Maria! você tem o ar de um afogado. Só de vê-lo de repente, e com este ar, já me sinto toda atrapalhada!

Harvey observou o rosto gordo, tão congestionado que parecia sangrar:

- Devo pedir desculpas? - indagou, todo teso.

- Vamos, vamos, - disse ela em tom amigável. Pensa que vou desprezá-lo porque tomou um pifão? - E soltou um palavrão. - Nada disso. Eu sei que a gente fica pior do que um trapo quando nos tiram a cachaça, pronto. Para reanimá-lo você precisava é de um copinho de "Sangue de negro", cerveja e vinho do porto - que ressuscita até um morto. Ofereço-lhe um trago.

- Não, muito obrigado - disse Harvey secamente, desviando-se para Continuar - seu caminho.

- Alto lá! Você não vai me abandonar sem ao menos bater um papo comigo um pouco! Estou sentindo uma comichão na língua. À mesa não se pode falar nem uma sílaba, por causa desse maldito velho "snob". A gente fica tão embaraçada que se cala logo. "Gosta de caçar"? diz a toda a hora, zombando de mim. A caça! Eu que não distingo uma coxa de cavalo de um osso de pernil! Quer ver o que respondi?

- Soltou outro palavrão.

Sacudiu com indignação os enormes brincos em argola.

- Quanto a você, meu caro, é outra coisa; você passou maus quartos de hora, com os camaradas; pois, que o diabo me carregue se você não me é simpático, e se eu não sou sua amiga.

Piscou os olhos com ar finório.

- É preciso ir ao meu negócio, em Santa Cruz. Toma-se um aperitivo e joga-se uma partidazinha. 160, rua da Tuna

- não se esqueça do endereço.

- Sua bondade me confunde, mas temo não poder visitá-la.

- Nunca se deve dizer: "desta água não beberei". . . Nunca se sabe o que vai acontecer. A propósito, seu amigo Corcoran contou-lhe o que vai fazer em Santa? Tomei-lhe todo o dinheiro no jogo, mas não pude arrancar-lhe os segredos.

- Ignoro - disse Harvey, sempre glacial.

Rodou os calcanhares e procurou um refúgio a estibordo, em busca de paz. Mas, duas pessoas já se haviam instalado nas cadeiras. Harvey não tomou conhecimento delas, e, sentindo-se fraco de repente, deixou-se cair numa espreguiçadeira.

O sol estava forte; o calor aquecia-lhe as pupilas fechadas e penetrava-as como uma carícia. A boca, contraída numa expressão amarga, murchou. A ferida do coração sangrava ainda, mas a dor fez-se menos cruel por um pouco,

O ar estava leve. O mar, levantando em largas ondulações, brilhava na luz, e duas andorinhas giravam em torno do mastreame, felizes por terem encontrado um oásis no meio do deserto marinho.

Bruscamente, Harvey sentiu que era observado e abriu os olhos. Ato contínuo, Susan Tranter desviou os seus, corou, depois empalideceu.

Sentada na cadeira vizinha de Harvey, remendava uma meia cinzenta, o saco de costura pousado ao lado, um caderno aberto nos joelhos. O gesto fora tão rápido que o caderno caiu junto de seu largo sapato chato.

Leith abaixou-se para apanhá-lo, adivinhando, com o dom de intuição que lhe era peculiar, que devia ser aquele o seu diário.

"Fixar conscienciosamente os acontecimentos do dia e consertar a roupa do irmão, eis seu género", pensou sem indulgência.

Uma página do caderno virou enquanto ele o segurava, e o olhar de Harvey esbarrou involuntariamente no seu nome, depois, logo em seguida, notou, em fina caligrafia, estas palavras espantosas: "não creio que esta história seja verdadeira; sua fisionomia é muito nobre". Era tudo. O caderno, fechado, voltara de novo aos joelhos de Susan. Harvey permanecia impassível.

A moça, encabulada, compreendendo que ele ia quebrar o silêncio, não sabendo como principiar a palestra, decidiu-se, afinal:

- Espero... espero que o sr. vá melhor.

Ele desviou a cabeça, irritado com a sua descoberta. Detestou aquela falta de jeito, aquela solicitude. Mas Susan parecia tão intimidada que ele se viu forçado a responder:

- Muito obrigado! Sinto-me mais forte, com efeito.

- Que sorte! Estou certa de que, quando fizermos escala em Las Palmas, o sr. estará pronto para tentar a ascensão do pico.

Ele olhou fixamente para o chão, assaltado de novo por ideias mórbidas:

- Descerei à terra, provavelmente, mas para me embriagar sem heroísmo algum. Simplesmente embriaguez grosseira, o esquecimento bestial.

O olhar de Susan hesitava. Conteve-se e respondeu sem reclamar:

- Queríamos procurá-lo, meu irmão e eu, enquanto . . enquanto o sr. estava doente. Mas impedi Robert de entrar no camarote, pensando que talvez o sr. preferisse não ser incomodado.

- A sra. tinha razão.

Esta afirmação definitiva parecia dar remate à conversação. Entretanto, Susan replicou, sempre timidamente:

- Devo explicar. Passei três anos como enfermeira no Hospital John Stirling, e tenho certa experiência de doenças. Cuidei de febres, desde a malária até as crises de dentição. Isto me permitirá ajudar Robert em sua obra de missionário.

Parou para cortar um fio de lã com os dentes, e acrescentou :

- Creio que o clima de Laguna é salubre.

Ele não ouvia mais. Seus olhares, errando ao acaso, pousaram na mulher que estava à sua frente. Dormia, o peito juvenil alçando-se docemente ao ritmo da respiração, as mãos ao abandono, os cílios sombreando suavemente as faces pálidas avivadas pelo sol. Cílios muito longos, e que pareciam possuir um lustre particular, cada um. Seu capote de peles avermelhadas, aberto à altura do pescoço, mostrava uma fila de pérolas rosadas um pouco maiores que o caroço de uma ervilha.

Dormia cercada de uma tepidez calma, como uma criança. O corpo relaxado tinha toda a beleza viva de uma flor desabrochada, e a boca sorria.

Sentindo Harvey francamente desatento, Susan calara-se, mas observava o vizinho atrás da agulha ágil. Seus olhares, rápidos, detiveram-se afinal na linha de seda amarela, revelada indiscretamente pela saia, um pouco levantada à altura dos joelhos, da moça que dormia.

Enfim não pôde deixar de notar, com um tom circunspecto, e que pretendia ser indulgente:

- Como Lady Fielding é jovem, bem jovem e bem

bonita!

São suas únicas qualidades, sem dúvida - respondeu ele secamente, lamentando no mesmo instante suas palavras, com a penosa impressão de ferir uma criatura bela e sem defesa.

Susan, sem associar-se à ironia, não adiantou protesto algum, e replicou no mesmo tom incolor:

- Veja aquelas pérolas! Dizer-se que cada uma delas bastaria para garantir a alimentação de uma família inteira durante um ano! Que desperdício, não acha, doutor? Tanta gente pobre e miserável morrendo de fome em casebres, e aqui todos estes berloques inúteis!. . .

- Não dou nenhuma importância aos miseráveis famintos dos casebres, a não ser para desejar-lhes morte mais rápida. Assim a raça melhoraria; é disso que ela precisa muito. Mas sem dúvida, a sra. sabe que matar gente está dentro de meus princípios. Enviei três inocentes à morte antes de embarcar; é uma bela estreia!

Susan custou a dominar a emoção, profundamente penalizada com a chaga que adivinhava existir naquela alma, e com aquela fisionomia torturada, semelhante ao quadro que vira outrora do Cristo ferido. Continuou falando um pouco ao acaso para não dar margem ao silêncio:

- Seu marido, sir Michel Fielding, é imensamente rico. Ouvi dizer que tem grandes plantações nas Ilhas. Provavelmente uma fantasia. Mas goza de ótima reputação, um nome histórico. Creio que é muito mais velho que a mulher. Ela é da família Mainwaring. Uma família de marinheiros. Eis as informações que nos deram. Não acha esquisito que ela viaje sem o marido? Por que será?.. .

- A sra. poderia perguntar-lhe isto também - disse Harvey grosseiramente. - Detesto a maledicência, mesmo quando se apoia no Evangelho.

Desconcertada, ela olhou-o, balbuciando:

- Lamento muito. .. sim, eu não deveria ter dito isso, não fica bem...

O sino bateu cinco horas, imediatamente seguido do chamado para o chá. Truta tinha a arte de regular seu instrumento segundo a importância da refeição que anunciava.

Mary Fielding abriu os olhos. Susan apanhou o saco de costura e levantou-se. Todos os vestígios de emoção desapareceram quando se dirigiu a Harvey.

- Se o sr. quiser descer, terei todo o prazer em lhe servir o chá. Mas é melhor não o fazer esperar, porque é sempre muito forte.

Ele desviara a cabeça, de novo às voltas com as suas ideias angustiantes, e fingiu que não ouvia. Por coisa alguma no mundo queria saber daquele chá negro, demasiadamente adocicado. Deixou-a eclipsar-se em silêncio.

Agora, com esquisita impaciência, esperava a partida da outra mulher, calculando com irritação que também ela iria servir o chá adocicado e negro.

Entretanto ela não se mexeu, e foi Truta quem surgiu, trazendo uma bandeja cheia de louça decorada com as rosas do "Auréola".

Depois, Mary falou:

- Tomo sempre o chá na ponte quando o dia está bonito como hoje. Que sol! Dá a tudo um ar delicioso. Deseja que lhe tragam uma chávena aqui?... Creia que não é obrigado a aceitar. Diga não, simplesmente, caso não lhe interesse.

Ouvindo aquela voz encantadora, suave, Harvey teve a sensação de ser feio, rude, mal educado. Veio-lhe uma bruta vontade de se levantar, de desaparecer, de fazer um gesto negativo, mas sem lhe dar um segundo de folga, Truta voltara, pousara com deferência uma chávena na bandeja e fugira na ponta dos pés, como se tivesse acabado de receber um sacramento.

- Esta "truta" do mar negro me agrada muito, - disse Mary alegremente. - Casou-se com a camareira, e tem seis filhos em terra. Que festança não seria se pudéssemos fazer um cruzeiro todos juntos! Falarei a respeito com Michel e, olhe, pedirei para me deixar organizar isto. Harvey teve uma estranha visão do "Auréola" vagando em mares desconhecidos, invadido pelos seis filhos do criado.

Depois notou que, ao mesmo tempo que falava, ela lhe entregava uma chícara de chá. Recebeu-a maquinalmente, observando, não sem tristeza, que os dedos lhe tremiam ainda a ponto de fazer tinir a colher contra o pires.

Ela adivinhou seu pensamento:

- Também eu tremo muitas vezes. Por exemplo, quando sirvo o chá em Buckden. Michel adora as grandes recepções, por isso recebemos sempre. Mas acho odioso.

Ele não respondeu, completamente desnorteado, e olhou para os dedos finos, de veias azuladas, sob a pele branca, a aliança de ouro muito grande, quase grotesca naquela mão infantil de punho delgado, que neste momento tremia ao peso do enorme bule de chá de forma antiga.

- O sr. não sabe quanto é delicioso deixar tudo. Pouco a pouco a gente se sente oprimida, esmagada, como quando se encosta o nariz numa vidraça; então se resolve: não posso mais, é preciso ir embora, longe de tudo, longe de todo o mundo. Nunca teve esse desejo?

Involuntariamente ele caiu na ironia:

- Nunca me foi permitido ceder a tais espécies de fantasia.

Ela sorriu, os olhos cândidos:

- É exato, sou uma tola, me exprimo mal. É difícil explicar o que se sente. . . Mas como este sol é belo!... suspirou. - Quer outra chávena de chá? É chá Twining. Sente o cheiro de laranja?

- Não - respondeu secamente. - Não sinto nada. Alem disso, não estou habituado aos chás de luxo, e, como acabo de sair de uma bebedeira de três semanas, estou com a língua imunizada.

Ela fingiu não reparar na grosseria, e atirou-se na cadeira, erguendo para o céu e o mar um rosto extasiado.

- O sr. nunca se sente feliz, simplesmente, como agora, sem razão?

- Nunca existe razão para tal - replicou. - A felicidade é um estado anormal; analisando-o, desaparece logo.

- Não se deve analisá-lo - murmurou Mary. - Por isso, nesse momento, sou feliz; não posso me impedir de lhe dizer, embora não saiba por quê.

Continuou mais lentamente, encarando-o muito séria, como se procurasse exprimir sentimentos profundos:

- É estranho: quando o avistei tive a impressão que já o conhecia, que já nos havíamos encontrado, que o senhor poderia me compreender. É como uma longínqua lembrança, Nunca tem dessas reminiscências? Elas se impõem às vezes no fim de dias calmos, ensolarados. Parece que se torna a encontrar uma imagem vista no passado. Ficamos imóveis com medo de que ela se apague, não se pode mexer nem um dedo. . . É estranho, não sei explicar direito e entretanto é mais que uma fantasia - é uma cousa real.

Seu encanto e beleza suscitavam em Harvey uma hostilidade inverossimil; e, talvez porque desconfiasse que ela estava zombando, sentiu um incompreensível desejo de magoá-la. Durante toda a vida desconhecera a beleza; passara a seu lado como um cego, absorvido pelas pesquisas científicas como um anacoreta pelas orações. Seu olhar nunca se detivera num pôr de sol, numa árvore em flor, num rosto gracioso de mulher. Isolara-se numa existência à parte. E agora, diante daquele corpo juvenil, daqueles cabelos dourados pela luz forte, daquele rosto ardente, sentia-se angustiado.

- Lamento muito, - disse com voz sibilante. - Não compreendo absolutamente nada do que a sra. diz. Sou biologista, só me interesso pelas realidades e não tenho tempo a perder com sensações absurdas e miragens pueris. De qualquer forma, estou certo de que nunca nos havíamos encontrado.

A fisionomia de Mary revelou viva decepção.

- É evidente - declarou.

Em seguida, como se recolhesse toda a sua coragem, disse muito depressa, sem respirar:

- É exato que o sr. não sabe? Não compreende o que quero dizer, nunca viu a casa dos cisnes, o jardim coberto de árvores em flor e a fonte com a concha rachada, à beira da qual lagartixas se esquentam ao sol? Não lhe pergunto isso por um capricho ridículo, pergunto-lhe porque.. . porque não está em mim evitá-lo.

Será que ela estava caçoando? Por um momento Harvey acreditou. Mas o olhar fixado nele era tão grave, tão profundo, que o cientista ficou impressionado.

Abanou a cabeça.

Não sei o que a sra. quer dizer.

- Pois eu julgava que o sr. soubesse. . .

E, como para forçar a memória de Harvey, acrescentou, o olhar distante:

- Nas grades vêem-se cisnes em ferro batido. Alcança-se a alameda, passa-se a casinha amarela do guarda, e a um canto vê-se uma velha árvore rígida, com os ramos torcidos. Conhece-a certamente, já esteve nesse lugar, não é verdade?

- Não.

Ela suspirou profundamente e esperou um momento para acrescentar ainda com esforço:

- Eu pensava. .. pensava que conhecesse a casa, o Jardim.

com espanto, ele viu lágrimas lhe brotarem dos olhos, e perguntou sem querer:

- Mas onde é essa casa, a casa dos cisnes? - e o olhar vagueou sobre as ondas.

- É um lugar em que vou às vezes, -? disse ela lentamente. - Às vezes também me parece que alguém, vinha comigo. Mas enganei-me, bem o vejo. Sou estúpida... e ridícula. Não pode compreender.

Ele sentiu-se de novo profundamente emocionado. Inclinou-se para Mary; mas, antes que tivesse tempo de falar, um ruído de passos ecoou no tombadilho. Acabara-se o chá, o salão esvaziava-se e os outros passageiros tornavam a subir.

A voz de Tranter vibrou:

- Há lugar para todos lá em cima, meus amigos.

Todos surgiram na ponte e estacaram, devido à presença de Harvey. Dibdin titubeava, procurando o monóculo. Elissa encarou-o com uma curiosidade impertinente e fria. Tranter, os olhos brilhando, esfregou as mãos e assumiu um ar inspirado:

- Bem, muito bem, tenho muita satisfação em vê-lo, meu caro amigo. Completa satisfação. Queria procurá-lo no camarote, durante estes dias, mas Susan não deixou. Tenho o maior prazer em encontrá-lo confortavelmente instalado entre nós, e restabelecido dos seus incómodos.

- Ele recusou a minha companhia há pouco, - disse a velha Hemmingway, chasqueando. - A de Lady Fielding agrada-lhe muito mais, posso garantir. Vale a pena ter sangue azul nas veias! O O riso de Robert vibrou ainda no ar. Deu dois passos pousou familiarmente a larga mão no ombro de Harvey:

- De agora em diante, meu caro, pode contar comigo, na vida e na morte. Não sou tão aristocrático nem tão britânico como Lady Fielding, mas estarei sempre à sua disposição para fazer-lhe companhia todas as vezes que quiser. Sim, caro amigo, se lhe puder prestar algum serviço, basta uma palavra sua.

Seus olhos procuraram os de Elissa.

- Nosso dever não é ajudar o próximo, fazê-lo voltar ao bom caminho?

Harvey endireitou-se na cadeira. Então, ele, o desesperado, seria obrigado a suportar as asneiras daquele odre cheio de ar? Era intolerável. Levantou-se, num movimento brusco, certo de ser alvo de todos os olhares.

Só Mary, perdida em seus pensamentos, os olhos fixos no horizonte, não se ocupava mais com ele. ?

- O interesse que o sr. mostra por mim muito me lisonjeia, - declarou, contendo-se a custo. - Mas não sou digno dele.

- Mas por que fato, meu caro? Estou. . .

- Cale a boca! - gritou Harvey, desabafando. - Não venha mais urrar à minha frente!

O rosto de Robert empalideceu de maneira lamentável. Balbuciou:

- Mas, eu lhe oferecia o meu apoio como ministro de Deus.

- Deus? - disse amargamente Harvey. - Deus? Um Deus em verdade estranho para lhe confiar a tarefa de declamar sobre Ele a torto e a direito!

Baixando a cabeça, investiu para a frente, esbarrou em Robert, galgou a escada da ponte.

Precisamente nesse instante, Renton saiu do quarto dos mapas, segurando um radiograma, o ar sombrio e perplexo.

Naturalmente foi

elissa, sempre no rasto de qualquer distracção, quem o notou:

- temos novidades? - perguntou com displicência. - Alguma causa que possa enfim animar esta fastidiosa viagem?

Renton ergueu a cabeça e observou o grupo:

- Não há nada, absolutamente nada de interessante.

Lamento causar-lhe uma decepção.

Harvey não esperara a resposta. descendo a escada, trancou-se com as ideias desnorteadas na solidão do camarote.

 

Na madrugada de sábado, atingiram Las Palmas em tempo calmo. Deslizando aos primeiros raios do sol no porto,, adormecido, o "Auréola" roçou em barcos silenciosos, cujos

4 mastros empalideciam, e veio alinhar o

casco ensolarado ao longo do quebra-mar.

Três horas mais tarde, Harvey despertou com o ruído dos guindastes. Pela primeira vez desde muitas noites, dormira, e estirando os membros, ficou imóvel, observando o raio de sol que se irradiava nas paredes brancas do camarote. Era estranha, essa sensação de alívio em todo o seu corpo; estranha também a estabilidade de sua cama, na qual, nos dias anteriores, sentia uma impressão de flutuar. O som longínquo dos sinos de terra fê-lo, de súbito, compreender que o navio entrara num porto. Invadido por invulgar agitação, levantou-se, meteu-se num roupão de banho e alcançou a ponte.

A frescura deliciosa da manhã caiu sobre ele como o orvalho. O céu estava azul, o ar impregnado de excepcional luminosidade. O sol que se levantava agora acima das montanhas riscava o mar de rastilhos de fogo. Diante de Harvey arredondava-se um golfo franjado de espuma, em cujo fundo a cidade surgia em divisões pitorescamente coloridas, galgando colinas douradas. Desprendia-se dela uma impressão de calor e suntuosidade; o verde, o vermelho e o branco ostentavam-se com magnificência tropical. Dominando a baía, a linha dos picos dentados, ao pé dos quais se acostava a cidade, um pico longínquo, fantástico, tão misterioso como uma miragem, erguia a ponta nevosa acima de um anel de nuvens cor de leite e parecia suspenso entre o céu e a terra.

Surpreso, deslumbrado, Harvey mergulhou na contemplação da visão maravilhosa, ao mesmo tempo que se sentia dominado por um receio agudo e sutil. Seria a beleza daquela aparição ou o sentido obscuro que se desprendia dela, o que lhe fazia mal? Magnetizado, continha a respiração, incapaz, embora o desejasse, de afastar os olhos dela.

Enfim, com esforço, desviou-se e aproximou-se do cais afim de observar o quebra-mar coberto de poeira. Nas pedras cozidas e recozidas pelo sol, uns vinte nativos, descalços, vestindo calças de saco, descarregavam sacos de farinha com pitoresca indolência. Tagarelavam, fumavam, cuspiam e não pareciam nada apressados. As mãos seguravam os fardos sem pressa, com negligência. Um deles, que trazia uma camisa amarela desbotada, cantava sem parar, com uma voz de falsete, uma melopeia cujo acalanto suave era irritante. Harvey não pôde deixar de escutá-la:

"El amor es dulce

Y él que Io desprecia un loco".

As palavras simples impuseram-se aos ouvidos de Harvey, que as compreendeu apesar de seus fracos conhecimentos de espanhol. "O amor é doce, quem o despreza é louco". Impaciente, procurou um derivativo para aquele insípido sentimentalismo, olhando o cais em que pobres mulas, o lombo sangrando, as costelas salientes, se conservavam inertes entre os varais das carriolas de rodas altas. Uma delas tossiu subitamente com um gargantear quase humano, agitando a coroa de moscas que a importunavam, e deixou-se cair de fraqueza. O condutor encolhido na boleia, as rédeas abandonadas nas mãos cruzadas, com uma flor atrás da orelha, continuou a roncar com a mesma beatitude.

Harvey desviou-se, repentinamente enojado daqueles pobres animais. À impressão de esplendor da praia magnífica, à sublime beleza do pico misterioso, sucedia-se agora o espetáculo degradante de uma vida de miséria. com passo rápido, pôs-se a percorrer a ponte em todos os sentidos, entregue a um incompreensível nervosismo. Olhou o relógio: nove horas. Já? Que iria fazer agora? Achava-se num porto, livre de qualquer constrangimento, livre de promiscuidade forçada com uns companheiros insuportáveis. Por que não descer? Por que não procurar o esquecimento vòluntário e apagar durante alguns instantes as torturantes visões do passado, os fantasmas de vivos e de mortos que se impunham do seu espirito como um pesadelo? Apertou os lábios, enrijou o queixo. É claro que iria a terra - já o decidira desde o começo da viagem. Quem o haveria, pois, de impedir?

Continuou entretanto seu passeio agitado na ponte, deixando o sol penetrar-lhe os ombros com seu calor, consciente da presença distante, quase furtiva, do grande pico coberto de neve. Contra sua vontade, deteve-se, voltou-se para contemplá-lo ainda.

A voz de Renton arrancou-o de sua distração:

- Um esplêndido panorama, não é, Dr. Leith? É o pico de Teyde. Custa a crer, mas acha-se a setenta e três milhas a oeste de nós, em Tenerife. Seu cume domina todas as ilhas. O sr. o verá ainda melhor de Santa Cruz.

Lado a lado, deixaram-se penetrar pela beleza do espetáculo, depois Harvey disse lentamente:

- Sim, o panorama é magnífico.

E, dominado pela necessidade de ridicularizar o próprio entusiasmo, acrescentou com ironia:

- Uma visão paradisíaca.

- Este paraíso tem às vezes seu reverso. Renton parou e olhou para Harvey fixamente:

- Acabo de ser avisado pelo sem-fio. Temos uma brincadeira de mau gosto, atrás de Santa Cruz: a febre amarela.

- A febre amarela!

- Sim, começou em Hermosa, uma aldeia perto de Laguna. Felizmente puderam circunscrevê-la.

Harvey não respondeu, então Renton acrescentou:

- Guarde segredo. Falo-lhe porque é médico, mas é completamente inútil assustar os outros.

- O sr. não lhes disse nada?

- Não sr., acho preferível calar-me enquanto não há perigo real. Disse-lhe que a moléstia estava localizada.

- É difícil localizar a febre amarela; propaga-se por um mosquito, e é um flagelo terrível.

Renton arrepiou-se todo: detestava que o contradissessem :

- Suponho que o sr. não tenha a pretensão de me ensinar meu ofício, - disse brutalmente. - Devo sequestrar meus passageiros, criar o pânico? Digo-lhe que julgo preferível esperar. As notícias me são transmitidas por Mr. Carr, nosso agente, e estamos de acordo, ele e eu.

As notícias propagam-se menos depressa que uma

epidemia.

- Não há epidemia - replicou Renton, de mau humor.

Lamento agora ter-lhe falado desta história. O sr. faz de

um cargueiro um cavalo de batalha. Aqui nunca aparece epidemia nenhuma.

Emproado como galo de briga, o comandante desafiava a contradição, mas Harvey contentou-se em responder com indiferença.

- Então, está tudo muito bem.

Renton sondou-o com o olhar, sem penetrar aquela máscara impassível. Irritado, desapareceu no quarto de mapas sem acrescentar palavras, deixando Harvey apoiado contra o peitoril.

A febre amarela! Uma ameaça sinistra pesava, pois, sobre a tranquilidade da baía, enegrecia-lhe os contornos, as cores cintilantes? Qual o quê. Não havia nada, absolutamente nada. Por causa de um homem doente a algumas milhas dali, iria ele prever calamidades? Afinal, que lhe importava isto? Tudo não lhe era indiferente?

Deu alguns passos com intenção de voltar ao camarote, depois parou. Na ponte inferior perto da coberta, Mary Fielding e Mme. Baynham conversavam animadamente com um indivíduo que acabava provavelmente de subir. Era jovem, bonito físico, muito colorido e pescoço musculoso. Estava vestido com apuro, com um costume de tussor bem talhado, sapatos de camurça, claros. Segurava um chapéu panamá alvíssimo, as pernas muito abertas e ria. A cabeça, inclinada para trás, punha em destaque acima do colarinho uma coleira de carne. Harvey instintivamente passou a detestar aquele homem, julgou-o grosseiro, e repuxou os lábios com desdém, notando a inclinação afetada daquela cabeça, os olhares cruéis e a vaidosa complacência que atenuavam a deferência de sua atitude. Um mau pensamento atravessou-lhe o espírito. Quem sabe seria o amante dela? E aquele encontro talvez fosse o alvo da viagem? Mas podia ser também o amante da outra.

Franzindo o sobrolho, fixava Mary,» procurando surpreender-lhe abandono no olhar, nos gestos rápidos de suas mãos, nos movimentos do corpo apertado num vestido de seda branca. Uma voz que o chamava interrompeu sua observação. Voltando-se, viu Susan Tranter e o irmão, ambos vestidos para saltar em terra.

- Que pensa fazer hoje? - perguntou Susan, olhando-o sem sorrir.

- Que penso fazer?

Apanhado de surpresa, Harvey repetiu as palavras estupidamente, observando a pesada silhueta sem elegância, o olhar sério sob o chapeuzinho de palha, as mãos enluvadas, o ar simples e decente.

- Quero dizer: o sr. tem programa para hoje?

- Não.

Ela baixou os olhos, depois os levantou, dizendo em tom grave:

- Estamos convidados, Robert e eu, para irmos a Arucas, visitar amigos americanos. É boa gente, possue uma linda "vila." Só pelo nome vê-se quanto é agradável: "Bela Vista". Venha conosco.

Ele fez um sinal de recusa.

- Não, muito obrigado.

- Far-lhe-ia bem, - insistiu Susan. - O sítio é magnifico, nossos amigos são cristãos e boníssimos. O sr seria bem-vindo, e ficaria logo à vontade. Não é, Robert?

Este, que olhava para a ponte inferior, fez um gesto de aprovação, mas sem jeito.

- Por que razão eu havia de ir? - disse Harvey sem amenidade. - Não sou bom, não sou cristão, detesto a príori seus amigos, e eles também me detestariam logo. Só o nome de Bela Vista me dá náuseas. Enfim, já lhe disse: saltarei em terra, mas para me embriagar.

Suplico-lhe - murmurou ela com um tom quase imperceptível, baixando os olhos. - Suplico-lhe Eu

rezei. . .

Perdeu o fio da frase, o olhar fixo no soalho. Enfim, ergueu a cabeça:

Pois bem! Partamos, Bobbie. O caminho é longo;

encontraremos uma condução no cais.

Desceram ambos a ponte inferior, escolhendo Susan, de propósito, o lado oposto ao em que se achava Elissa Baynham.

- Diga-me, Susan, - aventurou Robert, - não acha que poderíamos adiar esta visita para logo mais?

- Não, - replicou, olhando direito à sua frente - estamos convidados para almoçar.

- Sim, sim, bem o sei. Mas nada nos obriga a passarmos o dia inteiro na "vila". Bastaria a tarde, parece-me.

Ela parou de andar, sua agitação mudava agora de motivo.. .

- É a terceira vez que me propõe adiar esta visita a Bela Vista. Mas você sabe, Robert, como é importante para nós.

Acrescentou, os lábios trémulos:

- Que há, Robert? Que tem você? Aonde quer chegar?

- Ora, ora, Suzie, - replicou ele. Não se zangue, sim? Apenas, eu julgava que também pudéssemos ir, agora de manhã, a Las Canteras, com Mme. Baynham. Não vejo que mal haveria nisso. Ela me pediu para me encontrar com seus amigos, e ir passar uns momentos na praia. Está horrivelmente quente, e sei quanto você gosta de banhos de mar. Você era a melhor nadadora do nosso país.

- Ah! é aí então que você queria chegar, não é? - exclamou ela com sobressalto involuntário. - Eu já devia ter desconfiado. E esta maneira de apresentar as coisas frisando o prazer que teria de ir a essa praia, porque você sempre detestou a natação, nunca pôde aprender a nadar. Ah! Mme. Baynham nos convidou, hein? com efeito! Oh! Robbie, Robbie, que acontece com você? Estes últimos dias você não largou essa mulher. Disse-lhe que ela zombava de você, mas não adianta, você anda atrás dela como um/Tnsensato.

Ele fêz-se rubro.

- Você não tem razão. Não existe cousa alguma, garanto-lhe, que justifique suas suspeitas.

- É uma criatura muito ruim! .

Susan!

Ela fez um esforço para dominar-se e replicou, autoritária:

- Tenho-lhe grande afeição para poder vê-lo ridicularizado. Iremos a Arucas. Partiremos imediatamente e passaremos o dia lá.

Aquele tom enérgico restituiu a Robert a consciência de sua dignidade. Dissimulou a decepção que experimentava, e replicou, sem impaciência, displicente:

- Muito bem, partamos; mas previno-lhe que na volta não deixarei de conversar com Mme. Baynham.

E, com a cabeça erguida, ganhou o passadiço de desembarque, enquanto Susan caminhava atrás dele abafando um suspiro.

Harvey não assistiu à partida. Aborrecido, voltara ao camarote, e descascava as frutas que Truta lhe trouxera para o almoço. Laranjas sumarentas de casca fina, maçãs compradas de manhã cedinho, no mercado. Uma delicada refeição, mas cujo sabor Harvey não apreciava, absorvido pela lembrança de sua altercação com Susan. Por que usara aquele tom grosseiro? Aquela mulher possuía ótimas intenções, e uma grande qualidade: era absolutamente honesta. Descontente por não ter sabido dominar-se, levantou-se e começou a "toilette". Então porque a vida o havia ferido, seria preciso que ele, como um cão danado, procurasse ferir os outros, por sua vez? Por que atacava primeiro? Seria com o receio de ser provocado? Analisando-se com rigor, Harvey só enxergava maldade no simples reflexo de uma alma injustamente maltratada.

Suspirou, desviando-se do espelho. Entretanto seu rosto perdera o tom terroso e começava a ficar moreno, a mão que segurava a navalha não tremia mais, o olhar tornara-se límpido, mas no fundo do coração subsistia um profundo desprezo por si mesmo.

Alguém bateu à porta. Surpreso, ergueu a cabeça; acreditara-se sozinho no navio, sozinho como desejava.

- Entre!... - ordenou.

A porta abriu-se, e Jimmy Corcoran, o torso arqueado, entrou solenemente no quarto, tão glorioso como a manhã radiosa. Um boné novo, posto bem para trás, quase lhe tocava o pescoço cercado por uma gravata verde esmeralda e brilhante.

- Desde quando você bate à porta antes de entrar? perguntou Harvey, olhando-o surpreso.

- Julgava que você talvez estivesse nu - disse Jimmy com um largo sorriso.

- Ficaria constrangido?

- De maneira alguma! Mas talvez não lhe agradasse. Você é tão esquisito.

Harvey voltou à sua "toilette".

- Por que será que você ainda não antipatizou comigo?

- perguntou com displicência enquanto escovava os cabelos com força. Tenho sido, parece-me... apenas polido desde que começamos esta encantadora viagem.

- Às favas a polidez! Nunca foi minha especialidade. Eu e as luvas não rimamos lá muito bem. Sou pelos tipos que desabafam logo o que sentem, e, se é amizade, provam logo, como eu agora.

Juntando o ato às palavras, Jimmy mandou um bruto golpe nas costas de Harvey. Em seguida, plantando-se diante do espelho, examinou-se com indulgência, endireitou a gravata, alisou os cabelos, e atirou um beijo para si mesmo, cantarolando:

"Arguias voltou à cidade. Ele é o ídolo das mulheres, Todos os homens o invejam".

- Parece-me que hoje está contente consigo mesmo.

- E por que não havia de estar? Sou o único que já atirou Smiler Burge às cordas. E estou pronto a repetir a façanha, palavra de honra, pelo próximo dia de S. Patrício. Sou o mais belo homem nascido em Clontarf, minha velha mãe sempre repetia. "Coragem de leão e beleza de fauno", como diz Platão. Esta manhã sinto-me em perfeita forma. Não ligo nem ao rei.

Continuou:

"É o campeão dos corações, Mais gostoso que baunilha, Quando elas o encontram Gostariam de comê-lo".

Depois voltando-se para Harvey:

- Você e eu vamos saltar em terra, agora de manhã.

- É mesmo, Jimmy?

- Sim, senhor!

Corcoran ilustrou sua afirmação batendo com o punho fechado na palma da mão.

- Vamos a Las Canteras. Acabo de falar ao comandante. Ele me disse que, no género, é o melhor sítio que se pode encontrar por aqui. Um botequim onde se come muito bem e uma praia para se banhar, da gente ficar louco de alegria.

A ideia de uma praia tornando-o louco de alegria fez sorrir Harvey. Não obstante, respondeu:

- Muito bem, vamos embora, Jimmy.

Este tornou a sorrir, fazendo caretas com o rosto cheio de cicatrizes.

- Gostaria de ver você dizer que não! Eu o mataria aqui mesmo, palavra. Logo mais terei muitas coisas que fazer, pequenos negócios pessoais. Mas esta manhã não o deixo.

Desceram até o molhe coberto de poeira, cegados pelo sol forte. Corcoran, majestoso, os polegares enfiados nas cavas do costume, um palito nos dentes, assumia um ar de proprietário para deplorar a indolência dos nativos, e para filosofar sobre as mulheres. Comprou de uma velha toda enrugada um ramo de violetas, e plantou-o na botoeira, ofereceu uma pitada a um mendigo coberto de andrajos, e parou enfim diante de uma espécie de carriola antiquada, puxada por um cavalo magro.

- Ah! ah! - exclamou. - É exatamente isto o que precisamos. O cavalinho parece que se aguenta nas pernas, a carriola ainda tem as rodas. Quanto até Las Canteras, hein, negro?

O cocheiro fez um gesto com os ombros, indicando que se sentia indigno de tanta honra, mas mostrou quatro dedos:

Quatro "shillings" ingleses, senor.

Olha bem pra mim. Dou-te duas pesetas, e uma pitada de quebra.

- Não, não senor, não serve. Minha carriola muito bonita, meu cavalo muito veloz.

- Tu zombas de mim?

O cocheiro cobriu-os de uma onda de palavra e acompanhando a discurseira com gestos suplicantes:

- Que diz ele? - perguntou Corcoran, coçando a cabeça. - Não pesco niquel dessa algaravia.

- Ele diz, - adiantou Harvey, tranquilamente, - que o conhece muito bem, que você é o pior fanfarrão que tem havido na terra, que você nunca mandou Smiler Burge às cordas, que ao contrário foi ele que quase o matou com um direto bem aplicado. Acrescentou que você é velho e feio, que você conta mentiras, que a mulher dele está à morte, que tem dez filhos que não valem grande coisa, e que ficará desesperado se você não lhe pagar quatro "shillings" para subir nesta esplendida carruagem.

Jimmy puxou o boné para trás:

- Então, façamos isso por dois "shillings" - disse em tom menos firme. - Vamos, dois "shillings" ingleses, Kiddo?

O rosto do cocheiro abriu-se num sorriso de êxtase. Descendo da boleia, abriu a portinhola que rangia com um gesto cheio de nobreza, saltou na boleia e agitou o chicote com um gesto vitorioso.. Dois "shillings" ingleses! Cinco vezes o preço normal!

Quanto a Jimmy, desabou nas almofadas furadas, e, enquanto o veículo abalava no calçamento irregular, declarou displicentemente, o ar desdenhoso:

- Veja como se manobra com estes piratas. Sempre tive o faro dos negócios. Se a gente não abre o olho, esses tipos nos passam a perna!

 

Mary Fielding também ouvira Renton gabar os encantos de Las Canteras, e sentira-se atraída por aquela praia pouco conhecida. Já agora, estendida na areia aquecida de sol, deixava a agradável tepidez insinuar-se nela através do "maillot" úmido. Gotas dágua ainda brilhavam em suas pernas lisas. O corpo tonificado pelas ondas palpitava de vida. A curva dos seios pequenos tinha a graça de uma flor, a leveza de um voo de andorinha. Através das pálpebras cerradas, como para encerrar em si a deliciosa sensação que experimentava, distinguia a beleza circunvizinha. A órbita da praia dourada, a água de um azul mais profundo que o céu, a linha de recifes contra os quais a onda vinha se quebrar com um barulho de trovão arremessando penachos de espuma do pico longínquo, cintilante, poderoso como um deus. Como se sentia feliz em ter vindo!

Aqui podia enfim respirar livremente, e o corpo nu contra o sol, e sentia-se inteiramente ela. Nascia-lhe na alma uma sensação ainda imprecisa, mais pura que a brancura da espuma, mais brilhante que o pico nevoso, uma lembrança, uma aspiração, as duas, talvez. Nunca ela compreendera tão bem quanto a sua vida habitual era fictícia, mentirosa, mesquinha. Nunca ela a desprezara e a detestara tanto. Os gestos convencionais do mundo, os rituais de Buckden, sim, até Buckden, com suas paredes de tijolos patinados pareciam esmagá-la sob a dignidade secular e misteriosa do tempo.

Voltando por um momento à simplicidade da natureza, tudo aquilo lhe parecia distante e vago, fugitivo como a areia que lhe escorria entre os dedos.

Soergueu-se um pouco para observar Dibs e Elissa, sentados um pouco mais longe à sombra de um enorme guardassol. Mme. Baynham não se despira, pois a água do mar não era favorável à sua epiderme, mas Gibs, impelido por uma espécie de petulância senil, exibia a pele calosa, pavoneando-se em "short" como uma múmia expondo a velha carcassa às carícias da brisa.

Apoiada num cotovelo, Mary escutava-os, irritada pela futilidade daquela parolagem.

Elissa, - dizia Dibs, - você não vai me convencer

que se aborrece aqui?

Elissa continuou imperturbável, empoando cuidadosamente a ponta do nariz. Era já a quarta vez em uma hora, que se sacrificava ao seu desejo de perfeição.

- Você bem sabe que me entedio sempre, - disse enfim, quando já parecia perdida toda a esperança de uma resposta. - Aqui não há homens!

- Como, - disse Dibs, sarcástico, - não há homens? E eu, então?

- Você?

Só disse isto, depois ela pediu:

- Arranje-me um cigarro e acenda-o para mim. Mas não o molhe, senão terei um ataque de nervos.

Acrescentou depois de refletir:

- Agora que sua anatomia não tem mais segredos para mim, achei um apelido que lhe assentará como uma luva. A partir de hoje batiso-o: "Sex-appeal".

Ele descobriu uma cigarreira de ônix no saquinho em malhas de ouro da jovem dama, e, com seus velhos dedos de veias salientes, tirou dela um cigarro que se obrigou a acender.

- Passe-mo sem que eu precise me virar - disse ela, estendendo a mão acima dos ombros. - Só de ver sua pele fico doente.

- Minha pele? - disse Dibs, vivamente irritado. Que tem minha pele? Trata-se de uma pele que muitas mulheres têm apreciado.

- Sem dúvida antes de você ter começado a usar um colete, meu caro.

Dibs, com raiva, procurou vingar-se:

- Você é muito boba, Elissa. A propósito, não compreendo que deixe esse tipo, Tranter, dar em cima de você.

- Sim, ele é cacete, mas encarregou-se, de me salvar!

- Diga antes que esse imbecil está loucamente apaixonado por você.

- Ele mesmo não sabe. Tirou uma baforada do cigarro.

Se ele não fosse tão fatigante, talvez eu me permitisse este capricho. Ainda uma vez, trata-se de me divertir um pouco, não é, Dibs, - ou antes, "Sex-appeal"?

- Você se excede um pouco, Elissa, - replicou Dibs entesando o dorso ossudo, - você ultrapassa as medidas. Decididamente, não estou mais na moda, e a nova geração me deixa pasmo. No meu tempo, tínhamos também nossas pequenas aventuras, mas éramos discretos, tínhamos tato, e éramos ao menos polidos.

- Você nunca deixou de dizer: "com sua licença", não é, Dibs do meu coração?

Ele teve um sobressalto, indignado:

- Oh! Elissa, você é sem-vergonha demais.

- Sem-vergonha? - Refletiu um instante. -? Não, apenas inconveniente. Não me considerarei desavergonhada enquanto não deixar que me possuam num canapé.

Mary que escutava, inclinando o rosto, fez um gesto de tristeza:

- Não fale assim, Elissa, peço-lhe, - rogou em tom grave, olhando a água fugidia. - Você estraga tudo: é horrível.

- Estrago mesmo? Você é, na verdade, um encanto, Maryzinha. Quem foi que me arrastou até este recanto perdido, onde a gente se aborrece tanto? Quem foi que recusou o convite que Carr nos fez de nos levar a almoçar no Quinney? Quem insistiu para que ele viesse se encontrar conosco aqui? Ele, que entretanto não estava com muita vontade. Parecia ferido em sua dignidade.

Fez um buraco na areia e enterrou delicadamente o cigarro.

- Detesto os restaurantes "chics", - murmurou Mary para se desculpar. - Tudo aí é convencional, regulado, cacete. Foi por isto que propus virmos aqui. É tão pitoresco, o lugar é magnífico. Quanto a Carr, não liga a estas belezas. Alem disso, se não gosta, não precisa vir aqui.

Ele virá, tenho certeza - replicou Elissa. - Ele se

desmancha todo logo que olha para você.

Uma sensação de nojo invadiu Mary. Abanou a cabeça para libertar-se, repelindo uma ideia ainda imprecisa.

- Volto ao banho.

Levantando-se com um gesto gracioso e rápido, correu para a água. Para lá das primeiras vagas que espumavam em torno de sua cintura, a água era opalina, azul, etérea, como a luz filtrada de uma gruta de paredes de cristal. Seus pés deixaram a areia tépida e, com uma sensação deliciosa, lançou-se no mergulhador que se balançava a caminho dos recifes. Enfim, sentia-se relaxada, os membros fustigados pelo sal marinho, o sangue vivificado pela brisa do largo.

Nadava, nadava sempre, depois, com um gritinho de alegria, agarrou-se à jangada e alçou-se, deslumbrada, sobre a prancha coberta com uma esteira. Estendendo os braços, o rosto apoiado à fibra úmida, conservou-se imóvel, sentindo alívio por se ver longe da língua envenenada de Elissa.

Ao cabo de um instante, percebeu que não se achava só. Docemente, virou a cabeça. Harvey Leith estava deitado na outra beirada da jangada.

Olharam-se durante um tempo que pareceu a Mary uma eternidade. Livre das roupas comuns, o corpo de Harvey mostrava uma elegância inesperada. Os ombros eram largos, os quadris estreitos, as pernas finas e musculosas. No fim de alguns momentos, um tanto embaraçada, a moça baixou os olhos:

- Eu não sabia. Não esperava encontrá-lo aqui.

- Eu mesmo estou surpreso, Mas o fato é que estou aqui!

- E eu também - replicou ela com um risinho. Vogamos de novo num outro navio. Não é divertido?

Nada era mais banal do que aquelas palavras e entretanto, sob a aparente facilidade, reaparecia a estranha inquietude que tantas vezes ela experimentava. Sentia brotar de um passado remoto uma espécie de força vital que a atraia para o seu destino. Aquele sopro transformava sua vida, tingia o presente momento das cores do seu sonho. Não compreendia ainda, sentia-se sem defesa. Os dedos machucavam nervosamente um fio de fibra. Os olhos não tinham força para se levantar sobre Harvey.

- Como é belo, - disse agitadamente, - o mar, o sol, a neve em cima do pico! Tão belo que tenho a sensação de já ter visto esta paisagem.

Inerte, mas balançado pela jangada, como se flutuasse entre o mar e o céu num sítio encantado, ele não respondeu, o olhar fixo, o espírito absorvido pela graça daquele corpo de mulher. "É tão belo!", dissera Mary. Repetindo estas palavras, Harvey sentia o sangue bater-lhe nas fontes. A beleza! Algum dia se interessara por ela? Algum dia se inclinara sobre o seu mistério? Sua vida fora rude, austera, governada por leis inflexíveis e dirigidas unicamente para a pesquisa da verdade. Mas por quê? Por amor à humanidade? Para socorrê-la? Certamente que não, mas por fria e simples submissão à razão. Hoje, uma nova luz lhe iluminava a alma, tudo se transformara, e um sentimento desconhecido palpitava em seu coração.

- Chamam esta ilha de "Gran Canária", - disse Mary a meia voz. - Há tanta cor, tanto ritmo nestas palavras, que as repetirei comigo mesma quando quiser me lembrar desta viagem.

As palavras chegavam a Harvey esbatidas, e, a esta nova luz que penetrava no mais íntimo do seu ser, tomava um significado inesperado, estranho.

- A sra. deixa o navio amanhã? - perguntou.

- Sim, vamos fazer uma estadia em Orotava.

Era fatal, inevitável. Ela ia partir. Daí a algumas horas, o "Auréola" singraria de novo as águas, navegaria através da noite cálida até uma outra ilha, depois, pela manhã, Mary desapareceria.

- Orotava é um lugar muito calmo, - continuou, É o que procuro antes de tudo. Mr. Carr preparou-nos tudo. Tomou um apartamento para nós no hotel San Jorge. Mr. Carr é o agente de meu marido nas ilhas.

- Estou vendo, - disse ele.

A alegria diluiu-se, a sensação de claridade interior desapareceu. Entretanto, acontecera alguma coisa.. . Mas estava tudo acabado. Comprimiu os lábios, olhando-a fixamente.

Estou certo de que se divertirá em Orotava.

E o sr.? Continua o cruzeiro no "Auréola"?

- Sim.

Seguiu um silêncio pesado das ideias secretas de ambos. Depois, ela fez um gesto com a mão, como se quisesse captar uma alegria fugitiva.

- Venha almoçar conosco, daqui a pouco, no quiosque. É um restaurante delicioso. Peço-lhe que não falte. Mr. Carr vai se encontrar conosco lá, e o sr. me dará tanto prazer vindo. Consciente de não poder aceitar, ele sentiu um prazer misto de sofrimento.

Fez um gesto para o mar. com efeito, adivinhava-se, lá longe, Jimmy brincando como uma velha foca no meio das ondas.

- Lamento, mas não estou só. Foi Corcoran que me trouxe.

- Que ele venha também, - disse Mary, rapidamente.

- Venham ambos!

- Ele tem negócios na cidade.

- Mas o sr. não tem!

Deveria mostrar-se desagradável mais uma vez, como no navio? Angustiado por essa recordação, deixou as palavras de recusa morrerem-lhe nos lábios.

?- Muito bem! - exclamou Mary, satisfeitíssima. Vem mesmo? Vem almoçar comigo?

Estas palavras fizeram Harvey sorrir ligeiramente, e, diante daquele sorriso, ela deu um salto, levantou os braços num ímpeto alegre, e mergulhou no mar. A impetuosidade de seus movimentos imprimiu uma violenta oscilação à jangada, ao ponto de Harvey rolar na margem, encontrando-se subitamente arrastado por uma vaga.

Abriu os olhos na claridade submarina. O corpo de Mary fugia diante dele, brilhante e puro como um raio de luz. Voltou à superfície para respirar de novo, hesitou em continuar a perseguição, mas mudou de ideia e nadou em largas braçadas para a praia. Na sua cabine cheirando a abeto, pôs-se a se vestir lentamente. A pele vivificada tornara-se rósea, o olhar absorto parecia à cata de uma visão irreal.

Quando Jimmy por sua vez chegou, Harvey transmitiulhe, num tom displicente, o convite que aceitara.

Corcoran, manejando um guardanapo com destreza profissional, lançou-lhe um olhar de surpresa. Ideias obscuras pareciam chocar-se no seu crâneo espesso.

- Francamente, você está todo contente com esse convite. Se eu não tivesse o que fazer, aceitaria. Em todo o caso, irei cumprimentar o pessoal antes de ir embora.

Ela dissera "um recanto delicioso", e, até um certo ponto, justificava-se o adjetivo. O quiosque era pequeno e muito limpo, o soalho bem areado, as mesas graciosamente cobertas de toalhinhas azuis, a frente toda aberta sobre o céu, o mar, o pico longínquo. No fundo, arqueava-se um bar, coroado por uma fila de garrafas.

Mas, coisa curiosa, nem por um instante Harvey se sentira atraído por aquele álcool que antes desejara tanto. Atrás da caixa, um garçon em mangas de camisa estava preguiçosamente sentado num tamborete, machucando um bigodinho parecido com uma sobrancelha mal colocada. Num canto, uma pianola tomava um aspeto incongruente.

Percebendo o instrumento, os olhos de Jimmy brilharam de prazer. Pôs uma moeda na abertura, desencadeando uma música chiante, e, depois de fazer uns movimentos de ombros, entregou-se a uma dança endiabrada. Imediatamente o garçon pôs-se a rir; um rapaz que saboreava lentamente um absinto diante da caixa, ria também. Uma família espanhola que almoçava a um canto ria a bandeiras despregadas. Todos se entendiam perfeitamente, todos estavam satisfeitíssimos com essa explosão de alegria. A música saia em cascatas, Jimmy sapateava, martelando o soalho vertiginosamente, o criado batia as mãos ao ritmo da dança, a gorda mãe espanhola, um guardanapo debaixo da papada, mexia a cabeça alegremente, em cadência, e o moço do absinto, acompanhando a canção com voz de tenor, abria uma enorme boca de cão a uivar. Um cheiro agradável de comida, vindo da cozinha, misturava um apetitoso bafio de alho ao odor e às ondas de harmonia trémula.

Lady Fielding chegou justamente nesse instante, seguida de Carr, Dibdin e Elissa. Tudo parou bruscamente. Jimmy, sem fôlego, imobilizou-se, atónito. O garçon foi saindo do tamborete, e a música cessou logo, com um som cavernoso.

- Bravo! bravo! - gritou Mary, batendo palmas. Adoro esta música, recomecem!

William Carr não ria. Em pé no limiar lançava uma vista de olhos desdenhosa sobre aquela gente cuja alegria se esfriava ao depará-lo. Nunca pusera os pés num cabaré tão vulgar, e certamente não voltaria mais ali. Só mesmo o desejo de satisfazer os caprichos de uma mulher bonita conseguira comprometer a dignidade de um gentleman em semelhante lugar.

Endireitando-se com altivez no seu terno de seda, encarou Harvey com impertinência. Este, com as mãos nos bolsos de seu terno comprado feito, conservava-se não longe de seu companheiro, o velhaco irlandês. A polidez de Carr recolhia-se ante a ideia das apresentações, e ele se manteve prudentemente afastado, enquanto Corcoran se despedia.

- Sinto muito. Boa tarde, pessoal - dizia Jimmy. É mesmo um azar que eu tenha tantas coisas importantes a resolver hoje. Preciso mandar um telegrama, e muitas outras coisas mais!

Seu ar grave deixava transparecer interesses consideráveis para defender, e desapareceu depois de haver cumprimentado com galanteria.

- Quem é este indivíduo? - perguntou Carr, com desprezo.

- Um ótimo amigo meu, - respondeu Harvey, prontamente,

Os dois homens encararam-se.

- Bem que eu desconfiava ?- deixou escapar o outro. Assentaram-se todos em torno de uma das mesas, numa

atmosfera saturada de eletricidade. O cabaretier, que tinha espírito romântico, excedera-se. Não era todos os dias que ingleses de alto estilo frequentavam seu cabaré, e a condessinha que encomendara o almoço era tão encantadora! Hermosa, muy bella! Os guardanapos bem engomados dobravam-se em formas surpreendentes; em cada prato estava pousado um ramo de violeta; as pequenas azeitonas negras estavam mesmo um regalo, e a omelete com pimentão tinha sido batida a capricho. Servia-se agora a salada.

- Oh! - exclamou Mary - Quero alho na minha salada.

Carr fez um gesto de horror, que dissimulou vivamente sob um acesso de tosse.

- Pois não, pois não, - disse.

E, voltando-se para o garçon, apostrofou-o em tom arrogante, em mau espanhol.

Depois inclinou-se para Lady Fielding:

- com franqueza, você deveria ter deixado que eu organizasse o seu programa de hoje, Mary. (O nome familiar parecia vir-lhe naturalmente aos lábios). O almoço no clube teria sido muito mais agradável que aqui. Depois, iríamos passar a tarde no golfe. Estamos muito orgulhosos com o nosso campo.

- Mas, não vim a Las Palmas para jogar golfe!

- Deixe-me arranjar tudo em Orotava. Dentro de dois dias devo ir a Santa Cruz, precisarei atravessar a ilha, e passarei para vê-la.

Seu ar arrogante dizia que ela não podia deixar de ser seduzida pelos seus atrativos e ficar insensível às suas atenções. Tantas mulheres se deixaram prender por esses encantos, que ele se acreditava irresistível. Possuía, com efeito, a maior parte das qualidades requeridas para tal sucesso; dançava maravilhosamente, conduzia-se brilhantemente no golfe e no ténis. Elegante cavaleiro, antigo campeão de boxe no tempo de colégio, bom jogador de "bridge", sentia-se perfeitamente à vontade em qualquer "boudoir". Seu pai, um simples pastor, fizera questão de lhe dar uma educação brilhante, que lhe inculcara as boas maneiras, sem ornar-lhe o espírito. O que possuía, antes de tudo, era um instinto de arrivista, que o impelia a fazer relações, sobretudo as que lhe pudessem ser úteis. Foi assim que se ligara a Michel Fielding. E, usufruindo uma situação garantida, levando boa vida, muito popular na sociedade limitada das Ilhas, reconhecia que não era sem sorte.

Conhecera Mary Fielding na Inglaterra, muitas vezes admirara-a de longe. Agora estava ela ali, encantadora, moça, talvez um pouco desconcertante (que ideia absurda, convidar um homem respeitável a vir àquele imundo cabaré!) Mas sempre tivera a reputação de esquisita, graças à sua preocupação de "procurar a simplicidade" e outros caprichos semelhantes. Um imbecil não a apelidara, um dia, de "Alice no país das maravilhas"? Mas, apesar disto, ou talvez por causa disto, é que era infinitamente sedutora.

Inclinou-se de novo para ela, agitando as bonitas mãos num gesto de lisonja.

- Pode confiar em mim para lhe arranjar boas distrações. Certamente aborreceu-se muito no "navio-banana"?

Ela observou-o com uma curiosidade de uma criança que descobre um caranguejo:

- Não tanto assim, garanto-lhe. Ele riu com indulgência.

- Pois bem, agora é preciso distrair-se, prometa-me, senão ficarei muito triste. Em geral se pensa que a sociedade, aqui, é completamente primitiva, mas não é verdade. Temos todos os recursos possíveis. É o lugar mais agradável, mais delicioso que se possa imaginar.

Exagerava como o colonial que, tendo-se adaptado à região e chegando a apreciá-la, a vê com a imagem que fez da mesma. Acrescentou, cheio de entusiasmo, e reparando com o rabo do olho o efeito de suas palavras:

- O verdadeiro reino da Uterpia. Todo o mundo se diverte. (Tornou-se lírico). Homens è animais sentem-se alegres de manhã à noite.

Harvey, o rosto glacial, dominado por um forte impulso de antipatia, estava desesperadamente, ridiculamente furioso. Voltou-se para Carr:

- Vi algumas mulas no cais, esta manhã. Pobres animais machucados, emagrecidos, torturados pelas moscas. Os pobres animais de maneira alguma pareciam alegres.

Carr endireitou o busto e franziu ligeiramente o sobrolho:

- Quem fala em mulas? Não são interessantes.

- Nem mosquitos, suponho, - disse Harvey, tocando um desses insetos que voava em torno do seu prato. - Também ninguém se ocupa com eles?

Carr franziu completamente o sobrolho.

- Não, - disse com ironia, - ninguém, salvo as velhas e os turistas poltrões.

- Muito bem, - replicou Harvey. - Os mosquitos também sentem-se alegres, e ninguém se acha mal por isto. Febre não existe, tudo vai muito bem no melhor dos mundos possíveis.

Carr pareceu compreender a alusão. Respondeu, sarcástico:

- Vejamos aonde chegamos. O Sr. escutou as comadrices, e está com medo? Devia ter desconfiado.

Dibs, perplexo, pousou o garfo:

- Ah! de que estão falando? Não percebo. Carr fez um gesto de desprezo:

- De nada. Dizem que um vago caso de febre-foi assinalado num recanto das Ilhas. Mas ninguém liga a menor importância. Sempre se encontra algum poltrão entre os nativos para gritar: "Aí vem um lobo!" Não tomemos a sério tais asneiras. Graças a Deus, - acrescentou com patriótica intrepidez, - nós, ingleses, sabemos reduzir as coisas a termo.

- O verdadeiro sangue-frio britânico, - disse Elissa.

- O que não impede que deveríamos ser prevenidos. Olharei agora com horror todos os mosquitos. Já estou sentindo coceiras em toda parte!

- Fomos muito mordidas esta manhã, no porto, - disse Lady Fielding.

- Não se incomode, Mary, - disse Carr, num tom tranquilizador, acariciando-lhe o braço. - Tudo é perfeitamente idiota. Um desgraçado caso de febre num lugar qualquer não merece um comentário. Fique tranquila, tomarei providências para que não corra risco nenhum.

Ela retirou o braço, o olhar estranhamente distante:

- Nunca se corre risco. As coisas acontecem ou não acontecem, pronto.

Evidentemente, - disse Carr com aspereza. - Mas

terei todo o cuidado para que não lhe aconteça nada.

Harvey fervia. Apesar de tudo, não disse uma palavra. Seu pressentimento era ridículo, sem dúvida. Simples especulação de um espírito científico. Mas vira uma vez um caso de febre amarela num marinheiro no porto de Londres, e não podia esquecer os horríveis estragos do mal. Era mais pungente que a cólera, mais mortal que a peste! Por isto, só de ouvir esse ignorante imbecil assegurar que aquí não era nada, só de vê-lo bancar o valente com ostentação, dava vontade de ficar louco. Ia replicar, mas Mary o deteve, levantando-se:

- Vamos tomar o café lá fora, debaixo da varanda. As mesas de zinco estavam dispostas num ângulo, à sombra. O cabaretier trouxe o café com o ar infeliz de alguém que percebe ter se rompido a harmonia do dia.

- Estou com sono, - disse Elissa, baixando as pálpebras.

Ninguém respondeu, ninguém tinha nada para dizer. Harvey, estirando as pernas, as mãos nos bolsos, assumiu um ar de desagrado. Dibs, a boca aberta, o que nele denotava tédio, julgava Carr bem medíocre, o almoço também e além do mais péssimo para seu fígado.

Mary, com os olhos tristes, parecia ruminar um segredo surpreendente e precioso.

- Nas vagas... - disse aHRrvey, com ar sonhador,

- há pouco, lembra-se? Parece-me que ainda flutuo deliciosamente.

E seus olhos derramaram nela uma doçura desconhecida.

Carr, segurando a chícara, percorria a varanda, mostrava-se amuado, parando para empurrar com a ponta do sapato umas lagartixas que corriam no soalho. De vez em quando, acariciava com o olhar a nuca suave e branca de Mary, coberta de cabelos anelados.

Ela o tratara com indiferença verdadeiramente inaudita!

Enfim, arrependido, sorriu, e, voltando-se para a jovem dama, aproximou dela sua cadeira, preparando-se para uma palestra íntima. Ela, entretanto, o deteve logo, dizendo:

- Quero voltar para bordo.

Ele inclinou-se, desfez-se em protestos. Como, já? Mas o "Auréola" só levantava ferros às oito horas. Havia ainda tempo para fazer um passeio no mar, em torno do Porto, sua lancha-automóvel estava lá no desembarcadouro; depois, iriam todos tomar chá no clube. Recuperando seu poder de sedução, estava pronto a fazer as pazes e a achar a existência agradável. Mas Mary, o olhar distante, levantou-se; os outros podiam ficar à vontade, caso gostassem; quanto a ela, estava decidida a se retirar.

Os outros não tinham nenhuma vontade de se eternizar em Las Canteras. Pagaram, pois, a conta, e o grupo pôs-se em marcha para atravessar o istmo estreito que os separava da praia do Porto. Como frisara Carr, sua lancha estava ali, mas não se tratava mais de passeio. com um ar magoado, estendeu a mão a Mary para ajudá-la a embarcar. Os outros se instalaram por sua vez, e o motor começou a roncar. Durante a travessia da baía, Carr teve uma pequena alegria: estava sentado ao lado de Mary, e debaixo da seda fina do vestido, sentia o calor do corpo dela contra o seu. Tentou um ligeiro movimento com o joelho, mas a outra parecia indiferente, os olhos fixos no horizonte. Contudo, não desanimou. Sabe-se jamais o que querem as mulheres? São entes tão bizarros!

Cinco minutos mais tarde, a lancha parava pertinho do "Auréola". Carr levantou-se, solícito, para ajudar Mary a subir a escada da coberta. Ninguém melhor que ele sabia insinuar uma sutil intimidade ao tocar um braço galantemente. Mas, como estendia a mão, alguém o empurrou com violência.

- Isto compete a mim, - disse-lhe Harvey a meia voz, com um furor concentrado. - Percebe?

- Faz favor, - disse Carr, aturdido. - Que quer você?

- Ceda-me o lugar, - replicou o outro, sibilante - ou do contrário atiro-o nágua!

Estupefacto, Carr ficou quieto, diante do olhar ameaçador. Todos haviam deixado a lancha antes que ele voltasse.

"Que este tipo vá para o diabo que o carregue! Por que não lhe mandei um soco bem aplicado na cara?"

O sorriso gelara-se-lhe nos lábios. com um esforço conseguiu mantê-lo. Tirando o chapéu, agitou-o com graça:

- Até breve, - gritou. - Não se esqueça de que nos veremos na próxima semana.

Deixou-se cair pesadamente nas almofadas da lanch urando que não deixaria de ir ver Mary.

 

Nessa tarde, às seis horas, como o sol lançasse reflexos róseos nos cumes de Sant'Ana, Robert e Susan subiram para bordo em último lugar, pois Corcoran já voltara havia muito. Os sapatos estavam cobertos de poeira; como medida de economia tinham dispensado o carro na Plaza. Susan, os ombros caídos, parecia fatigada; Robert conservava a atitude estóica de quem cumprira um dever, e não de quem tivera um prazer.

Subiam lentamente o passadiço de desembarque, silenciosos, absorvidos em seus pensamentos. Depois, como Susan pousasse o pé na ponte, percebeu Harvey passeando para lá e para cá, perto da cobertura de trás. Seus olhos logo se acenderam, e ela endireitou os ombros, como se se libertasse de todo o cansaço e apreensão. Qualquer cousa cantava dentro dela. "Ele voltou, está bem, muito bem!" Seu corpo pesado pareceu subitamente tornar-se mais leve, um raio de sol pôs um furtivo toque de ouro em seus cabelos desbotados. Toda alegre, parou um instante na ponta do passadiço, antes de acompanhar o irmão.

- Estou contente por voltar, Robert, - disse; - afinal de contas, o dia foi fatigante.

Ele não respondeu. Os olhos de Susan sombrearam-se de novo; disse simplesmente:

- vou me deitar um pouco, estou com dor de cabeça. Você está bem, Robbie? Pode me dispensar até a hora de jantar?

Ele endireitou o corpo e assumiu um ar de virtude ultrajada para responder:

- Parece-me que sempre estive perfeitamente bem". E, erguendo a cabeça, desapareceu no seu camarote, cuja

porta fechou cuidadosamente.

Em pé diante do espelho examinou-se "com um olhar distraído, e o rosto pareceu-lhe estranho e pálido. Desorientado sentou-se na banqueta e enterrou a cabeça nas mãos. Aquela visita a Arucas, de que dependia em parte o sucesso de sua missão, fora-lhe um suplício. Distraído, desatento, mesmo na hora de uma importante discussão a propósito de publicação de folhetos em espanhol, quase esquecera a carta de apresentação que lhe haviam preparado para Mr. Rodgers, em Laguna. Uma única ideia ocupava seu espírito: Elissa! Por que este nome, mesmo sem ser pronunciado, fazia-o corar? Havia razão para tal? Não, nenhuma. Susan, os passageiros, todos os caluniadores do mundo podiam apontá-lo com o dedo, suspeitar dele, desconhecer o valor de seu sentimento; quanto a ele, bem sabia que estavam errados. Em sua alma e consciência, sua inclinação só era nobre e pura, sua emoção aproximava-o de Deus. Elissa! Como era bela! Mas seria isto um opróbrio? A beleza é um dom do Criador. Ele próprio a concedeu no sopro que animou a argila grosseira e lhe deu uma alma imortal. E porque essa mulher era uma pecadora, deveria ele, como o Fariseu, condená-la e afastar-se de seu caminho sem lhe estender a mão amiga? Não, não, mil vezes não, mil vezes não! Ajudaria aquela mulher, arrancá-la-ia ao vício, - prometera-se isto a si mesmo - e o fato de se ter afastado dela nesse dia, de ter perdido a ocasião de passar com ela três horas inteiras, enchia-o de um pesar quase doloroso. Sim, doloroso, não havia outro termo. Salvá-la! Uma visão magnífica desenrolou-se diante da seu espírito. Elissa ao seu lado, regenerada, santificada, que sonho sublime! Misturava-se a isto um caos de sons, cores, asas de anjos abrindo-se docemente, trombetas triunfais soando com harmonias celestes, vestimentas de brancura etérea, lábios suaves, cor de rosa, barreiras de ouro abertas sobre o infinito, e seios para se descansar a cabeça. Ergueu os olhos e, com as faces em púrpura, as narinas frementes, exclamou:

- O Cristo é minha força! Posso tentar tudo, mesmo o impossível, com seu apoio!

Continuou sentado um instante, o olhar levantado para o céu. Ergueu-se enfim, lavou as mãos e o rosto, pôs um colarinho bem limpo e subiu ao tombadilho.

Elissa estava lá, sentada a um canto abrigado. Apesar de toda sua esperança, Robert não contava encontrá-la ali no momento, pelo que seu coração pôs-se a bater fortemente. Um pouco mais longe, perto do quarto dos mapas, a velha Hemmingway, prostrada numa cadeira, bem poderia ser confundida com um rolo de cordas ou qualquer outro acessório.

Durante o dia todo não se mexera, e seus olhos observadores e maliciosos estavam bem alertas. Tranter, sem reparar nela, dirigiu-se logo para Elissa, que ergueu a cabeça e disse com languidez:

- O sr. fez-se esquecer.

Gostava de ser adulada, e a devoção servil que o rosto de Robert exprimia tornava-a quase polida.

- Tive de fazer uma visita. Não pude escapar, - explicou com ardor. - Mas, enfim. . . meu pensamento não a abandonou um só minuto.

Ela bocejou, mostrando os dentes brancos bem plantados na larga boca de lábios vermelhos.

- A sra. está cansada, - disse ele, com rapidez. Deve ter-se estafado.

Sua solicitude era puramente fraternal; mas então, por que não a repartia ele com Susan, que andava sempre adoentada?

- Aborreci-me a valer. O dia foi completamente sem interesse, - disse Elissa.

- Posso dizer o mesmo, - replicou sorrindo Robert, apoiando o cotovelo contra o peitoril. - Se bem que tédio seja uma palavra que eu nunca deveria empregar quando tenho a satisfação do dever cumprido. Nossa visita a Arucas certamente dará frutos; refiro-me ao sucesso da minha missão. As pessoas que vimos prometeram nos ajudar pecuniariamente. Deram-nos uma carta de recomendação para um rico plantador de Laguna. Podemos agora tocar para frente sem receio.

Refletiu um instante: como é estranho! O dia inteiro senti-me sem ânimo

nos meus projetos de trabalho e agora que lhe falo não posso me conter. Sinto-me entusiasmado, e isto é tão importante para mim. . .

-? Por quê?

Toda minha vida só tive um alvo: o trabalho. Fui

tocado pela graça e pensei na minha salvação quando era apenas um garoto. Mas era pobre, foi preciso lutar para me instruir, entrar na Escola de Teologia; tive que combater duramente para ser digno de trabalhar nos campos, do Senhor.

Ela o examinou, ceticamente. Seria sincero? Não era possível. Aventurou:

- O sr. está me contando a história de sua vida?

- Oh! não, claro que não, - disse ele com gesto enérgico. -? É que me sinto inclinado a falar-lhe de tudo que tem relação comigo. Não posso me impedir.

Houve um silêncio, a curiosidade de Elissa despontava. Perguntou, levantando de leve as sobrancelhas:

- O sr. nunca teve contacto com mulheres?

- Nunca!

- Nunca, mesmo?

Ele fez um gesto negativo, fixando nela olhos brilhantes, bem abertos como os de um cão olhando a dona.

- Que pixote! - murmurou ela à parte. - Entretanto o caminho desde Connecticut é. longo!

- Que diz, madame?

- Dizia que devo chamá-lo de Joseph. Ele corou bruscamente, sem compreender.

- Joseph? Mas meu nome é Robert.

- Lembrar-me-ei sempre do sr. com o nome de Joseph. Acho que este nome lhe estava predestinado. E ainda.. . não sei.. . veremos.

Apesar da gravidade que ela mostrava, Robert teve a horrível suspeita de que ela estava zombando, e com voz patética exclamou:

- Foi para mim uma sorte tê-la encontrado, uma sorte tão grande que não posso me conformar com a ideia de vê-la escapar da minha vida como. . . - com um gesto animado lançou enfaticamente esta expressão vulgar: - como um navio que passa na noite. Nosso encontro não pode ter sido fortuito, e é preciso que dê bons resultados, sim, é preciso! Todas as nossas conversas não terão sido vãs, porque estou disposto a sacrificar até meu braço direito para ser o instrumento de sua salvação. - Sua voz enfraqueceu, sumiu. Esmagado pela emoção, pôs a mão no ombro de Elissa num gesto de súplica e disse com um tom de convicção: - Queria dar-lhe um testemunho do sentimento que me anima. Permita-me oferecer-lhe uma lembrança, um objeto sem valor material, mas a que dou a maior importância: um livrinho de máximas piedosas que me vem de minha mãe e que me acompanha há vinte anos. Dê-me o prazer de aceitá-lo.

O olhar de Elissa pousou em Robert, depois desviou-se.

- Aquela horrível mulher lá no fundo está nos observando. Eu não ligo, mas o senhor. . .

Ele lançou um olhar para trás e cruzou com o da velha Hemmingway assestado nele:

- Eu? - replicou, - pouco me importa. - Mas, um tanto embaraçado, retirou a mão.

- Traga-me o livrinho depois do jantar, - disse Elissa, -? de noite, quando o navio deixar o porto! Será um momento

misterioso, encantador; e o dia ficará completo.

Enlevado, contemplou-a. Um pouco atrás, a velha Hemmingway, tendo satisfeito a curiosidade, desembaraçava-se das cobertas e com um passo arrastado alcançava a escada. Vastas gargalhadas agitavam seu corpanzil, enquanto pousava com precaução nos degraus os pèzinhos comprimidos pelos cordões.

- Que molengo! - murmurava. - Santa Maria! Que cretino! Não se encontram dois deste género! E Deus que ele chama para benzer tudo isto! Não, é gozado demais. Não posso guardar só para mim. Preciso espalhar a todo o mundo!

Vibrando de alegria andou às apalpadelas ao longo do corredor como um sapo e entrou no camarote onde Susan estava deitada, com uma compressa na cabeça.

- Alo! Alo! - gritou com desembaraço e zombaria Tirando sua soneca, hein? Ótima ideia. Neste país é preciso se tratar bem, senão os demónios tomam conta da gente.

Deve-se levar vida flauteada, meu tesouro, como o irmãozinho, lá no tombadilho.

Susan abriu um olho.

- Meu irmão?

- Ele mesmo, - exclamou a velha Hemmingway com uma alegria cordial. - O mesmíssimo gentleman que toca tão bem harmónio. Santa Maria, se toca neste momento! . . . Tem razão, palavra. É preciso se divertir. Esta é minha divisa.

Susan abriu o outro olho.

- Que quer dizer?

A velha estourou de riso:

- É preciso se habituar, garota. O pequeno Robbie nada arrisca. Somente ele não é de aço, eis tudo.. . Está no seu direito, hein? Para que Deus teria feito as saias?

Susan deixou pender a cabeça e fechou os olhos com uma expressão de repugnância.

- Gostaria de ter um pouco de silêncio. Estou com dor de cabeça.

Mas a velha Hemmingway era inesgotável.

- Dor de cabeça, pobre criança. Também eu conheci isto bem, dor de cabeça, principalmente quando caía na farra. Não quero amolar você, meu anjo; quero apenas preveni-la que seu irmão Bob está às voltas com a tal Mrs. Baynham. Mãos juntas, meu coração é teu! Quero teus beijos!

A cabeça inclinada, o ar galhofeiro, requebrando-se cantarolou:

Valsemos, Willie, valsemos, Giremos, giremos! A música é deliciosa Como pêssego com creme. Arrasta-me, que os pés Nem ao menos toquem o chão.

Depois, continuou a tagarelar:

- O amor é um lindo sonho! Eles me deram uma sede. . .

Não há que censurar.

E, pegando a garrafa, tomou um trago e gargarejou ruidosamente, debruçando-se sobre a bacia.

Susan, já agora sentada na cama, passeava um olhar incerto sobre a matrona gordíssima. Levantou-se, fatigada, e saiu, enquanto a velha Hemmingway, que parecia ter observado todos os seus movimentos, apesar de estar de costas, gritava:

- Apanhe meu xale, garota; o sol se põe, e faz um frio de rachar.

Depois, desabando na banqueta, apertou com as duas mãos os seios trémulos e abriu numa gargalhada homérica.

Susan, com as ideias em desordem, subiu a escada com um passo rijo. Num golpe de vista circular verificou que Robert não estava mais ali, sem dúvida descera; mas Mrs. Baynham não se mexera, sentada em sua cadeira, mergulhada numa espécie de meditação indolente. Sua silhueta elegante e voluptuosa perfilava-se no horizonte, destacada pela intensidade luminosa. Qualquer cousa nesta aparência prestigiosa deslumbrou Susan, impressionou-a vivamente. Os lábios contrairam-se, o rosto exprimiu um vago terror. Entretanto, possuía em si mesma uma força incoercível. Dirigiu-se à outra:

- A sra. não poderia deixar meu irmão em paz? - disse sem hesitar, em voz baixa e concentrada.

Elissa ergueu os olhos, depois os desviou:

- Mexericos de camarote, hein? Naturalmente teve palestras evangélicas com a velha comadre hispino-londrina...

- Pode crer que não me intimidará tão facilmente, disse Susan, glacial. - Já há muito percebi que meu irmão se apaixonou pela senhora.

- Por que então não se dirige a ele?

- Já lhe falei, mas ele não quer compreender. Está alucinado, nunca o vi assim.

Elissa tirou o espelho da bolsa e passou pó de arroz no rosto, com cuidado.

Quer dizer que a sra. está aterrorizada com a ideia

de perdê-lo. Isto salta aos olhos! A sra. o mimou, o adorou durante anos e anos, e a primeira vez que ele ousa se interessar por outra mulher, a sra. perde os sentidos! Susan empalideceu, as mãos se crisparam:

É falso - exclamou com voz trémula. - Só procuro

sua felicidade. Meu amor a Robert é completamente desinteressado, e ninguém seria mais feliz do que eu, se ele amasse uma mulher.. . uma mulher honesta.

- Senhor! - suspirou Elissa, fechando displicentemente o porta-pó. - Tudo isto parece cousa de outras épocas. Poupe-me este sermão ridículo.

- Lamento, - disse friamente Susane - não poder poupá-la, e peço-lhe tomar nota disto.

- Deixe-me agora, - disse Elissa, esgotando a paciência. - Peço-lhe que me deixe. Sua veemência me fatiga. A sra. está fazendo a jovem mártir lançada aos leões na arena. É muito dramático.

- É inútil zombar, - disse Susan, com a voz estrangulada. (Estava sufocada). - Vai me jurar que... que...

Elissa desembaraçou-se de súbito de sua displicência como de um vestido. Ergueu com lentidão a cabeça e fixou em Susan um olhar de impertinente desdém:

- A sra. é uma imbecilzinha, e começa a me amolar. Vocês outras, santas mulheres, não poderão deixar a gente em paz? Quereriam que todos fossem à sua imagem; isto é de um egoísmo incrivel. Alem disto, completamente absorvente! A sra. trancou a cadeado, durante anos, o pobre Robbie, sob pretexto de que ele era uma segunda edição do Salvador! Não ligo a mínima importância, acredit converta quem quiser, não meterei meu bedelho; mas, com os diabos, será preciso que a sra. venha me interrogar para descobrir quem é meu amante?

- A sra. não deve -balbuciou Susan - não deve falar assim... É horrível!

Elissa fez um riso sarcástico, depois levantou-se.

- Nossa conversinha está muito divertida, - disse insolentemente, num tom protetor. - Mas acho melhor acabarmos com ela. vou descer.

E, deixando arrastar atrás dela a coberta que trazia ao braço, passou diante de Susan com um ar gracioso e alcançou a escada.

A outra ficara petrificada, os joelhos trémulos, todo o seu ser dilacerado. Parecia-lhe que qualquer coisa se contraía nela, enfraquecia, caía nas trevas. Entretanto ela falara, dissera tudo que pensava intimamente. Esta ideia consolou-a um pouco. Ergueu o rosto para o céu onde o sol lançava os últimos raios, como correntes de ouro saídas diretamente do trono de Deus.

Deus! Mas ele estava ali. Tudo ia bem pois que ela podia rezar. Sentiu-se reconfortada. com os olhos voltados para o firmamento, abriu a boca e, num murmúrio indistinto, lançou um supremo apelo.

Súbito, como durante o ofício sob a cúpula de uma catedral, um sino vibrou três vezes. E este chamado despertou o navio. Caíam cordas nágua, ruidosamente, os guindastes puseram-se a ranger, gritos ressoaram na popa, logo abafados. Uma brisa ligeira, misteriosa, agitou o ar calmo, e o barco começou a deslizar, cada vez mais rápido. O "Auréola" ganhava de novo o alto mar.

 

O jantar terminava. Uma refeição silenciosa sobre a qual flutuava um certo constrangimento, atravessada por correntes de emoção, e dominada pela iminência de uma partida. O comandante, geralmente hábil para a conversação, apenas pronunciara algumas palavras, e parecia preocupado. Seria a ideia de se separar de uma parte de seus passageiros? Seria um pensamento mais profundo? Por diversas vezes seu olhar descansara em Mary; depois, perguntou:

- A sra. espera passar o tempo todo em Orotava? No hotel?

Ante a resposta afirmativa, parecera hesitar, - indecisão anormal num homem da sua espécie - mas acrescentara:

- É um lugar muito agradável, uma estação de cura excelente. O hotel é limpo, tranquilo, e o vento sopra sempre do largo.

Foi tudo.

Harvey agora subira à ponte superior, feliz em encontrar a calma noturna depois do calor da sala de jantar. A efervescência do poente diluíra-se pouco a pouco na imensidade marinha, e, como após o suspiro que acompanha um desenlace, o céu tornava-se de novo sereno. A lua no crescente subia atrás do mastreame que a engradava. as estrelas brilhavam ainda timidamente, com um brilho menos vivo que as luzes de Las Palmas. O "Auréola" deslizava sem ruído, ao ritmo de cinco nós. Dir-se-ia que o navio moderava a marcha ante tão curta travessia, afim de não lançar a âncora antes da aurora.

O marulho das ondas contra o casco rebentava em bolhas, que se estendiam em sulcos prateados.

Inclinado ao longo do parapeito, Harvey deixava o olhar errar pela quente tranquilidade da noite, dominado pelo encanto dessa paz maravilhosa que unia o mar, a terra e o céu, mas que não reinava em seu coração.

Alguém se aproximou, pôs a mão nos seus ombros, mas ele não fez nenhum movimento, e disse sem virar a cabeça:

- Então, Jimmy, fez o que queria?

- É claro, enviei o telegrama, e o resto. O velho Bob vai dançar de alegria quando o receber. Digo-lhe que parti para fazer fortuna.

- Você é muito misterioso a respeito deste negócio magnífico, Jimmy, - disse Harvey distraidamente.

- Oh! oh! Há tempo para tudo. Não é conversando a torto e a direito que a boa caça nos cai assadinha na boca.

Examinou com olho crítico o perfil sombrio e severo de Harvey:

- Você é um verdadeiro camarada; por isto, posso contar-lhe do que se trata.

- Agora não, Jimmy. Não estou bem disposto para receber confidências.

- Está bem, está bem - disse Jimmy, bonacheirão. Retirou o braço, e, com o punho erguido, fez no ar uns

passes violentos, depois, extenuado, recorreu à tabaqueira.

- De acordo, falaremos oportunamente. Mas vou levá-lo a terra quando chegarmos a Santa Cruz, e você verá o professor - ou então eu não me chamo Corcoran.

No silêncio que se seguiu, Jimmy apurou o ouvido:

- Está escutando, - disse, zombeteiro, - o macaco em casa de louças?

Atrás do quarto de mapas, ouvia-se Robert Tranter batendo com os pés. Cantarolava, o que era nele sinal de preocupação. Quando sua alma evangélica estava ansiosa, cantarolava sempre. Neste momento, os sons baixos que lhe saiam dos lábios em assobio eram "Swing low", "Sweet Chariot".

- Que idiota! - continuou Corcoran. - Platão tem carradas de razão quando diz que o bom senso não se aprende. Vejam só este malandro que se agita como se tivesse sido picado. Palavra, sua irmã vale seis vezes mais.

Bocejou, estirou os braços, com os punhos sempre cerrados, e acrescentou, com um ar displicente: vou descer, vou procurar a velha Hemmingway e

Hamble. .Oh! trata-se de bater língua um pouquinho, nada mais. Até já.

Harvey sorriu vagamente. As desculpas de Corcoran eram sempre grotescas. Mas logo retomou o ar grave, e procurou de novo mergulhar no silêncio da noite e na solidão do oceano. Um minuto depois, Tranter aproximou-se.

- O sr. está sonhando um pouco, não é, dr. Leith? Que noite magnífica para se comunicar com as estrelas! Embora um pouco quente talvez. Está abafado e úmido. Confesso que transpiro demais.

Uma respiração sufocada cortava a franqueza cordial de suas palavras.

- Os outros deveriam vir tomar um pouco de ar no tombadilho.

- Os outros agem como bem entendem, - replicou Harvey, irritado.

Tranter riu-se. Suas risadas grosseiras pareciam esta noite mais dissonantes, quase histéricas.

- É certo. Parece-me entretanto que as senhoras achariam isto aqui mais agradável. Pergunto-me o que é feito delas.

Havia nas palavras de Robert alguma coisa de equívoco, que irritou Harvey.

- Mrs. Baynham deixou-nos depois do jantar - replicou, afastando-se. - Ouvi-a quando declarou que voltava ao camarote por se achar fatigada.

Desaparecida a noite inteira na solidão inviolável do camarote. .. depois de lhe haver prometido.. O choque era cruel. No bolso interior de Robert, o livrinho encadernado em couro flexivel parecia pesar-lhe subitamente no coração como uma barra de chumbo. Esmagado, ficou imóvel, todo o corpo refletindo uma viva decepção. em seguida, baixando a cabeça, pôs-se a passear nervosamente para lá e para cá. Não cantarolava mais.

Em baixo, Harvey hesitou à entrada da estreita passagem. Iria trancar-se no camarote? Sentia-se extenuado sem motivo. A expressão do rosto de Tranter obcecava-o, aparecia-lhe como uma mancha, suscitando nele uma cólera incompreensível. Aquela manifestação mórbida, exibida sem disfarce, fortalecia sua crença na vaidade do amor. Uma necessidade biológica, uma reação animal imposta às vítimas de um instinto grosseiro. Nada mais. Tal havia sido sua teoria até então, mas neste momento a mesma ideia fazia-o sofrer. Que lhe acontecia? Parecia-lhe que uma voz interior zombava dele, e outras vozes também. O esplendor desta noite povoava-se de cochichos galhofeiros ante os quais sua altivez se retraia. A beleza desta noite! como ele lhe era sensível, ele que sempre se desviara da beleza como de uma ficção contrária à verdade, inconciliável com sua crença na razão pura. Tristonho, deu alguns passos, foi além da escotilha. O navio vogava com sua imutável serenidade. Harvey ganhou a proa. Subitamente o coração pulou, se bem que o rosto não lhe traisse a emoção: Mary estava ali.

Palpitando de secreta alegria, ele veio, sem uma palavra, encostar-se perto dela e deixou o olhar perder-se no espaço.

- Sabia que o sr. vinha, - disse ela sem erguer os olhos.

- Agora que está aqui, não me sinto mais triste. - Sua voz não deixava transparecer nenhuma coqueteria. - Tudo me pareceu tão estranho hoje. Estava completamente desnorteada. E parto amanhã.

- Preferia ficar? - perguntou Harvey com uma frieza aparente e amarga.

- Sim. Gosto deste naviozinho. Lamento deixá-lo. Parece tão seguro. .. Mas é preciso partir!

Ele não respondeu. Então ela continuou com a mesma voz surda, uniforme, distante:

- Nunca se sentiu preso por qualquer cousa que o arrasta contra sua vontade? Como uma cadeia que o puxa para frente sem descanso?

Ele procurou uma expressão de mofa para frisar a extravagância dessa reflexão, mas não encontrou nada.

- Fui assim toda a minha vida - continuou Mary. Neste instante, é o navio que me arrasta para alguma cousa. Para que - não sei... Entretanto, parece-me que sei... mas é indefinível, não compreendo bem.

Loucuras! - murmurou o médico.

Oh! bem que o percebo, é ridículo, mas é assim mesmo. Outro dia contei-lhe meu sonho, e o sr. encolheu os ombros. Acha-me tola, ou talvez louca. Mas tal ideia é mais forte do que eu mesma. Qualquer cousa me fascina, qualquer cousa que paira sobre mim como um pássaro enorme. Estou obcecada. Nunca vim às Canárias, e, no entanto, tenho a impressão de regressar. Nunca vira seu rosto, também. . . Mas já lhe expliquei o que sinto. Pense o que quiser. Para mim tudo isso é real, tão real quanto a morte. Esta manhã, na jangada, eu sentia uma convicção maravilhosa de conhecê-lo melhor do que a mim mesma.

Estas palavras extinguiram-se num sobressalto, um suspiro que partiu para o largo como um pássaro branco perdido longe da praia.

Ele fez um esforço para responder:

- Às vezes, a gente tem curiosas ilusões quando no mar, porém elas não têm nenhuma relação com a vida real. Dentro de seis semanas a sra. voltará para a Inglaterra e esquecerá tudo: as tais cadeias serão simples cordéis que a puxarão para os restaurantes da moda, o teatro, os chás de que me falava outro dia. Uma vida cheia de atrativos.

Desta vez ela olhou para ele; seu rosto impreciso e misterioso impregnara-se de grande melancolia:

- Tudo aquilo é aparência - disse tristemente. - Não gosto daquele género de vida, nunca pude gostar. Não me sinto no meu lugar, não me habituo - e um sinal de sofrimento empanou-lhe as pupilas. Acelerou as palavras: - O sr. toma tudo isto como infantilidade, pensa que não compreendo nada da vida. Não é verdade. É exatamente porque a compreendo, que detesto a que me é imposta, que tenho vontade de me evadir, de me ir embora, de partir para longe de tudo. Aquela existência é tão fútil. . Uma agitação perpétua, recepções mais recepções, "cocktails", bailes, cinemas, a vida trepidante cujos momentos vazios são preenchidos pelo "jazz". Veja Elissa e sua vitrola; sem este barulho constante ela morreria. Correr sempre atrás de diversões, não se tem nem tempo de pensar. O sr. me toma por uma louca, julga-me desprovida de todo o senso de humor, de toda noção das proporções. Não é justo. Minha concepção da vida é que nela encontramos tudo o que lhe queremos dar. Ora, todos os que me cercam só querem receber, tomar. Tudo é brilho nesta existência superficial e, em profundidade, é o nada, e ninguém, ninguém compreende.

Calou-se bruscamente e virou a cabeça para o oceano.

Contraindo o corpo, Harvey continuava silencioso; afinal escaparam-se-lhe estas palavras de que seu espírito parecia ausente:

- A sra. é casada, tem seu marido.

Dominada pela tristeza que a envolvia de uma sombra sutil, atenuou a voz e respondeu com o ar de quem recita uma lição:

- Michel é muito bom para mim. Temos grande afeição um pelo outro.

Dilacerado por um combate interior, Harvey deixou de lado o constrangimento e disse com violência:

- De que se queixa então? Seu marido ama-a, a sra. ama seu marido. . .

Tudo parecia recuar repentinamente, o navio, o mar, a noite, e Mary torceu as mãos num gesto de angústia.

- O que vou dizer é horrível. Tenho vergonha, mas preciso responder à sua pergunta. Não posso. .. Nunca amei! Nunca! Tentei, entretanto, mas não me é possivel. Parece-me que me arrancaram de mim mesma há muito, muito tempo.

Passaram-se alguns minutos. Todos os dois estavam silenciosos. O navio continuava a marcha regular, e o mar, suas ondulações calmas. A água murmurava e suspirava contra a brisa e as estrelas cintilavam como olhares puros. Estavam ali os dois, um ao lado do outro, na noite; que importava o resto? O tempo e o espaço dissolviam-se numa misteriosa intimidade. O navio não era mais um navio, mas um elemento celeste que os arrastava para seu destino. Sim, juntos, ligados por um poder que ultrapassava a razão e que todos os dois sentiam presente, ativo, se bem que misterioso; fora do passado, fora do futuro, místico mas real. O coração de Harvey batia, quase estourando; uma doçura divina reinava no ar e parecia prestes a infundir-se nele. Tremia, e só

tinha agora um desejo: saber se ela o amava! Mas continuava mudo, porque falar seria romper a beleza daquele instante.

Atrás deles, longe, um sino bateu. Mary suspirou:

- Agora é preciso que eu parta. É preciso.

Ele a acompanhou em silêncio. Cada um dos movimentos da moça parecia-lhe precioso, cheio de subentendidos. Na estreita passagem, separaram-se sem um único olhar; cada um tornou a alcançar seu camarote sem que Harvey erguesse os olhos, sem ao menos trocarem um cumprimento.

Um grande silêncio envolveu o navio. Os jogadores de baralho também se haviam recolhido, tudo dormia.

Foi então que ressoou de novo o barulho de Robert Tranter batendo com os pés. Por que não se deitara ainda? Há pouco Susan, com verdadeira sensação de alívio, tinha-o visto descer. Mas ele subira de novo ao tombadilho.- Impossível dormir com esse calor, que diabo! Bem que se tinha o direito de tomar um pouco de ar com semelhante temperatura!

Ele andava, pois, para lá e para cá, agitadamente, cercado pela beleza serena da... da... obra do seu Criador. . . Meu Deus, que calor! Desapertou o colarinho. Dormir num camarote era um suplício. Mas certamente não iria passar a noite fora! "Toda" a noite, não. . . Um vago sorriso brotou-lhe nos lábios à ideia de fazer assim o Don Juan. Mas o sorriso sumiu logo, substituído por uma expressão inquieta.

Por que Mrs. Baynham desaparecera depois do jantar, quando ele tanto desejava vê-la? Entretanto ela prometera. . . Vejamos. Mas sim, estava certo disto: Elissa bem que ele podia chamá-la assim, no fim de contas era este seu nome - não era mulher para faltar à sua promessa.

Meu Deus, como fazia calor! Robert batia na testa, tentando ordenar as ideias. Vejamos, ela dissera textualmente: "Traga-me o livro depois do jantar"; entretanto retirara-se. . Então? A conclusão lógica apresentava-se-lhe ao espírito, e assaltou-o de novo. É que ela o esperava em seu camarote. Mas, por que não? Contava que ele lhe trouxesse o livro na intimidade, simplesmente. Engoliu a saliva, enxugou o rosto. Afinal, eram apenas dez horas, ela deixaria o navio pela manhã.

"Amanhã de manhã, sim, amanhã ela parte!" Uma vozinha que bem podia ser a sua repetia obstinadamente estas palavras. Deixaria Elissa partir sem cumprir sua promessa, como um vagabundo? Deixaria Elissa crer que a esquecera?

Parou subitamente. com um olhar hipnotizado, receoso, voltou para a escada do tombadilho, desceu-a lentamente, com hesitação, deslizou ao longo do corredor interno até a porta de Elissa, tateou, as mãos trémulas, bateu e abriu.

Elissa ainda não se deitara, mas estava quase estendida, semi-nua, na banqueta. O olhar de Robert fixou-a na profusão de roupas espalhadas. Mas foi principalmente ela que o deslumbrou:

- Então, - disse com perfeita calma, - tardou muito a se decidir.. .

Ele não respondeu. O olhar fixo, pasmo, amedrontado, contemplava a mulher: os cabelos, a pele, a curva magnífica dos quadris. As ideias de Robert se embaralhavam; esqueceu tudo. Sem respirar, tropeçando, entrou no camarote e fechou a porta.

 

A noite sumiu por sua vez diante da claridade e toda sua cálida beleza enfraqueceu e desapareceu no oceano como uma mão que se abandona, preguiçosa. A alvorada surgiu, fria e insípida, arrastando longas faixas de nuvens que riscavam o céu. O "Auréola" lançara a âncora ao lado de Orotava desde oito horas e balançava em ondas cinzentas, um véu de bruma enrolado nos mastros, os metais embaciados pelo bafo úmido do nevoeiro. A bombordo, a praia era apenas visível, mergulhada no mesmo vapor que envolvia a cidade; a neblina agarrava-se aos flancos do pico, deixando, de quando em quando, adivinhar um toque de cor violenta, um teto ocre, um tufo de palmas verdes ou um buquê de flores vivas, -que logo desapareciam. Na areia negra, vulcânica, as ondas quebravam-se sem descanso; e gaivotas que giravam em torno do mastreame lançavam gritos agudos, cujo tom desolado se aliava lugubremente ao estrondo da ressaca.

- Então - disse Corcoran, que contemplava a paisagem do alto da ponte superior, ao lado da velha Hemmingway.

- Eis aí um lugarzinho que não me diz cousa alguma. Não se enxerga nada, e quando por acaso se enxerga qualquer cousa, não é nada alegre.

A gorda matrona meteu o charuto no canto da boca antes de responder.

- Você não conhece nada disto aqui, meu rapaz, ?disse ela com profundo desdém. - Mas nada mesmo. Você fala como um cego. Se o nevoeiro se dissipasse, veria uma região esplêndida! Flores, tantas que não se sabe onde pousar o pé. "Todas as manhãs eu te compro violetas", como diz a canção. Pois bem, aqui não é preciso comprá-las: brotam em toda parte, enchem-nos a vida. Não quero dizer que troque um "Santa Maria" por violetas; não é meu género, como diz o outro.

- Certamente, - concordou Jimmy, amolado. - Você não trocaria um "Santa Maria" por cousa alguma, e é por isso que você tem uma sorte dos diabos no baralho. . . Quando é que se vai desatracar?

- Levantaremos ferros dentro em pouco, quando todos estes granimos liquidarem as formalidades para desembarcar. O comandante também não gosta do porto. Olhe estes rochedos bem perto, daqui se poderia lançar um biscoito em cima deles. Se você tivesse minha experiência dos naufrágios, saberia o que isto quer dizer! Aposto que largaremos dentro de meia hora. Às cinco devemos estar em Santa Cruz. Meu velho Santa! Garanto que ali ninguém verá mofar a velha Hemmingway. Estará na sua casinha, toda contente, os pés no tapete, os cotovelos na mesa, papando uma boa comida, ou um bródio, como dizem os outros. Aqui, eu tenho o meu apetite cortado por esta espécie de passarinhos depenados com todos os seus "não me toquem". Pode haver prazer, quando se está rodeada por tanto cretino? É melhor comer pão e salsichas sentado num banco. Não é distinto, concordo. Mas, palavra, talvez seja melhor!

Dirigiu um olhar malicioso a Jimmy.

- A propósito, que espera fazer em Santa Cruz?

- Um grande negócio - e acariciou o queixo com um gesto largo. - Nada de farol mas cousa séria.

Ela, incrédula, fez um gesto de escárnio:

- A mim não tapeia. Você não é Rockfeller. . . Não é preciso adivinhar suas ocupações em Las Palmas. Você vendeu seu alfinete de gravata, simplesmente para obter um pouco de dinheiro para jogar o rummy e agora, foi-se tudo para a velha Hemmingway, Está aqui. - Bateu no saquinho pendurado no peito. - No cofre-forte. Você está na quebradeira outra vez.

A fisionomia de Jimmy dilatou-se ao ouvir a diabólica observação. Se não tivesse sido pegado desprevenido, talvez até corasse.

- Mas depois? Olhe que tenho um grande negócio em perspectiva, logo ao desembarcar. Uma ótima combinação. Meu camarada, o professor Sinnot, espera-me lá com os braços abertos, para me dar sociedade.

Pasmada, ela o olhou fixamente, em seguida começou a rir devagarinho, como depois de uma boa brincadeira. E o riso aumentou progressivamente até se tornar uma hilaridade irrefreável. Dando gritinhos, sufocava e se encostava com as duas mãos ao peitoril.

Sinnot, o velho Sinnot, dono daquelas barracas de

diversões perto das dunas? Olé! Um tiro ao alvo, já estragado, para os rapazes, e um brinquedo de cavalinhos onde só tem um cavalo para os garotos! Um "pronto", o velho Sinnot. Conheço-o bem. Nunca foi professor, é um caco de gente, e não tem níquel. Seu negócio só falta cair. . . ele o quer. . . como sócio? Oh! Esta é boa!. . .

Estourou numa risada, de novo, enquanto ele a observava encabulado.

- Não é verdade - murmurou, - tudo isto são blagues, e blagues sem graça. Bob e eu fomos companheiros no Colorado. Conhecemo-nos bem. Por isso ele me escreveu, pedindo-me que o viesse encontrar.

A outra enxugou os olhos e deu voluptuosamente uma chupada no charuto.

- Espere, vai ver se conto lorotas. O velho Sinnot deve dinheiro a todo o mundo. Não tem mais um vintém, é o que lhe digo, nem um vintém; e faria tudo para sair desta situação.

Jimmy, confundido, balbuciou:

- Ah! Tudo não passa de maledicências. A velha meneou a cabeça com vivacidade.

- É preciso acreditar em mim, meu velho. Você visou errado. Não lhe dou muito tempo para vir me procurar. "Um pedaço de pão pelo amor de Deus e de minha pobre mãe". Não se incomode, você não morrerá de fome. A velha Hemmingway é boa como a peste, feia como um piolho, mas tem a mão aberta - e lançou-lhe um olhar finório. Grave bem na memória: 160, Calle de Tuna. Todo o mundo conhece a casa. Basta perguntar onde fica "o negócio da velha Hemmingway" até mesmo a um polícia - e tornou a lançar uma baforada do charuto. - Mas não vale a pena se aborrecer assim, não ligue. Faça como a tal Mrs. Baynham, que nunca perde o sangue frio.

Procurando visivelmente distrair Jimmy de suas preocupações, acrescentou:

- Você não a viu esta manhã? Está com um ar de gata que comeu creme. Sabe por que, hein? - Arregalou os olhos e continuou, zombeteira. - Ninguém ainda viu Tranter hoje, parece-me que ele tinha um rendez-vous piedoso marcado para ontem, bem tarde da noite. Agora, naturalmente, dorme a manhã inteira. Dorme bem, gentil tocador de harmónio, se tens medo de ouvir a música. . .

Jimy olhou-a incrédulo.

- Você não pode deixar os outros em paz? Vê o mal por toda parte.

- O mal! - estourou a velha indignada, - o mal! E pensa então que não vi o Robbie diante do camarote da Baynham, balindo como um carneiro perdido, para ela deixá-lo entrar! Espiei-o. Parou logo, pois Susan aproximava-se.

- Sabe onde está o Dr. Leith? - perguntou.

- Não, minha querida - replicou a velha Hemmingway com uma untuosa efusão. - Não o vimos. Não nos mexemos daqui; falávamos do tempo, das flores e .de uma porção de cousas desse género. "As lindas rosas que florescem na primavera." Isto está no Evangelho, pergunte antes a Jimmy Rockfeller, aqui ao meu lado. Mas não avistámos o doutor. Provavelmente está no camarote. Que quer você com ele, meu anjo?

- Oh! nada, - respondeu Susan num tom falsamente jovial, - nada de importante.

- Espero que seu irmão não esteja doente, - indagou a velha solícita. - Não tem nada que o amole, hein?

- Parece um pouco cansado, mas não há nada de grave.

- Ah! - suspirou com doçura a velha Hemmingway alguma cousa que ainda não passou. Talvez ele tenha dormido mal a noite.

Um silêncio embaraçado seguiu-se a estas palavras; depois, como para romper o mal-estar, um ruído de remos subiu do nevoeiro e logo se percebeu uma canoa puxada por oito remadores.

Aí está o barco que vem procurar o pessoal para

Orotava - indicou Jimmy.

- Que se vão embora - exclamou a velha, jogando nágua o resto do charuto. - Não sentirei saudades. Não tinha nenhuma vontade de chorar esta manhã, quando se despediram ao almoço. Não me refiro à jovem lady: esta é bem simpática. "Mary, Mary quite contrary, how does your garden grow". Um pouco aluada, mas não se pode deixar de ser sua amiga. Mas o resto! Enfim, cada um como Deus o fez, nem todo o mundo é igual.

Depois da explosão, os três olharam em silêncio a canoa que se aproximava. Em baixo, Harvey Leith, pela porta aberta do camarote, também olhava. Seus olhos sombrios pareciam fixados, não no barquinho agitado pelas ondas, mas numa ideia longínqua e inexorável. O rosto estava estremamente pálido. Todas as suas faculdades pareciam inertes. O espírito, invadido por uma espécie de torpor, de indiferença, contemplava espantado o estrangeiro irreconhecível que ele se tornara a si próprio.

A canoa, ao ritmo dos remos, aproximava-se cada vez mais, puxada por vigorosos nativos. Enfim desapareceu sob a curva da popa. Agora devia estar ao longo da praia.

O coração de Harvey contraiu-se. O nevoeiro, agora vazio de movimento, envolvia-o de um véu lutuoso; gotinhas de umidade caíam das esquadrias da porta como lágrimas.

Sombrio, abafado, percebia a azáfama das bagagens, o barulho dos pés e das vozes. Mas tudo isto lhe chegava esbatido, sem substância nem precisão! Súbito ergueu a cabeça. Diante dele surgiu Mary, em pé na estreita passagem, vestida para a partida. Olhava-o gravemente com seus olhos negros, o rosto pequeno e vivo.

vou partir - disse num tom de voz apenas perceptível.

Ele olhava-a como em sonho... Ela partia!

- Disse adeus a todos, na hora do almoço.

- Eu sei - respondeu a moça, não era necessário procurá-lo outra vez. Mas eis-me aqui. . . a canoa me espera. Ele levantou-se.

- Sim, vi-a chegar.

Parou de repente, olhando o relógio, sem jeito. Suas mãos tremiam.

- Essa partida na bruma é quase irreal - replicou Mary. - Mas creio que o sol surgirá de novo amanhã. Tudo se transformará então, não é?

- Sim, com efeito.

Olharam-se. Os olhos de Mary tinham um brilho melancólico, suas feições pareciam abatidas, o rosto frágil e,... pálido.

De repente ele tornou a avistar a gaivota que viera refugiar-se no navio, Mary assemelhava-se ao pobre pássaro cansado.

- Quando a sra. estiver em terra, sentir-se-á mais firme - disse ele resolutamente. - Sei que deixa o navio com pesar,

- Sim, é certo.

Tentou sorrir, mas só conseguiu suspirar, como se seu coração exalasse uma angústia. Uma lágrima rolou-lhe na face,

- Não faça caso, - disse ela, baixinho, - não é nada. Muitas vezes fico tola como agora, não está em mim impedi-lo.

- A sra. não sofre?

- Oh! não, de maneira alguma. Não se atormente. Inclinando o rosto, como um pássaro medroso que esconde a cabeça no próprio peito, continuava imóvel. Súbito, estendêu-lhe a mão.

- Adeus.

Ele tomou a mãozinha tépida, com o coração oprimido,

- Não a acompanho até a canoa - disse, pronunciando com dificuldade as palavras.

- Não, não, não venha.

A angústia forçou-o a acrescentar uma desculpa:

- Os outros. .. os outros reparariam.

- Sim.

- Então, é mesmo o adeus!

Ela repetiu "adeus" dolorosamente. Por um instante viu-a ainda diante dele imóvel e desolada, depois começou a sentir o grande vazio que o invadia de repente: aquela mãozinha despregara-se da sua, os olhos profundos não mais brilhavam diante dos seus. Ela partira!

Deixou-se cair desajeitadamente na banqueta e enfiou a cabeça nas mãos como se se sentisse incapaz de afrontar a luz. Não viu a canoa afastar-se e deslizar para a praia nublada. Nunca se sentira tão terrivelmente só. Até então vivera na inconsciência deste isolamento; agora os anos de solidão, subitamente libertados, apresentavam-se-lhe ao espírito com intolerável acuidade. Viu-se como era, rude, bizarro, ignorando o dom que atrai a amizade, privado do poder que provoca a afeição. Arrancado de seu trabalho, arrastado até este navio pelo destino, abordava em praias desconhecidas e por um instante surpreendera-se no limiar do encantamento, a alma transbordando de surpresa e de alegria. Agora o sonho se desfazia, a alegria desaparecera, e neste navio, símbolo de seu destino, ia se refazer em sentido inverso a trajetória vencida.

Uma horrivel amargura assaltou-o. Acima de sua cabeça o ruido dos passos, os gritos de comando, o rangido do cabrestante em torno do qual se enrolava o cabo que suspendia a âncora, todos esses barulhos percebidos pelos seus sentidos aniquilados não lhe chegavam ao cérebro; continuava sentado, o olhar fixo, preso ao desespero.

A chuva, caindo das nuvens cinzentas, tornava-se torrencial, riscando o ar úmido; o vento soprava para a praia em rajadas bruscas, coroando as ondas de penachos que logo se desfaziam. As gaivotas giravam e mergulhavam com gritos agudos, uma desolação descia do céu, uma impressão de abandono. No dia seguinte, sem dúvida, o sol reapareceria, uma brisa ligeira viria vivificar a terra, mas agora, enquanto o "Auréola" girava a hélice nas águas pesadas do alto mar, só reinavam a angústia e a melancolia.

 

A chuva cessara pouco a pouco atrás do navio.

A curta travessia de Orotava a Santa Cruz terminara. O "Auréula" atracava, sob um sol deslumbrante.

Após ter contemplado a cidade que se comprimia contra o seio da montanha como uma flor brilhante, Susan correu ao camarote do irmão.

- Enfim, Robbie, enfim chegamos.

Estava muito animada com a ideia de chegar ao fim da viagem, e feliz também com a partida de Elissa. Mas, desde que fechou a porta do camarote, imobilizou-se, com todo o seu entusiasmo paralizado.

Robert, curvado sobre uma das malas, voltava-lhe as costas, e apertava as correias com um ar de tal maneira indeciso, que parecia ter se levantado precipitadamente e procurava dominar-se.

- Terei esquecido alguma cousa? - perguntou Susan, que se encarregara, como sempre, da preparação da bagagem do irmão.

- É esta fivela - murmurou Robbie. - Está mal segura, aperto-a um pouco.

Sem replicar, ela o observou enquanto que ele continuava a apertar a correia, sem convicção.

- Sente-se melhor? - perguntou a irmã, quando ele se levantou, enfim, com o rosto avermelhado pelo esforço.

- Sim.

- Eu estava um pouco inquieta, hoje de manhã. Quase pedi ao Dr. Leith para vir vê-lo.

Ele corou ainda mais:

- Oh! não - disse precipitadamente. - É inútil.

- Então, que há, Robbie?

Seu olhar interrogador procurava o do irmão, que olhava obstinadamente pela vigia.

Não há nada, absolutamente nada.

Ela esperou um instante, depois continuou num tom

vivo:

Admiro-me que você não tenha aparecido quando o

barco chegou à vista de Santa Cruz. É uma grande cidade. Avistei Laguna, muito alta, na montanha, como se estivesse a meio caminho do céu. O lugar me pareceu muito bonito: vales verdes e grandes buques de palmas. Nunca pensei que as palmeiras pudessem ser tão altas. O sítio é muito exótico; agrada-me muitíssimo. Estou certa de que esta estada vai marcar uma etapa séria em nossa existência; tenho um pressentimento, Robbie. Quanto aos passageiros, quase todos já desembarcaram. A horrível Hemmingway desapareceu num abrir e fechar de olhos. Duas mulheres esperavam-na no cais; não imagina que espécie de gente! Penduravam-se ao pescoço da velha, os abraços não acabavam mais. Corcoran também partiu, todo na fatiota, de gravata nova. Apenas disse adeus, estava apressadíssimo.

Parou um pouco, depois prosseguiu:

- Também nós devemos sair, já. ? Ele continuava a olhar pela vigia, sem se desviar.

- Quando volta Mr. Rodgers?

- Ele devia se encontrar no cais, à chegada do navio. Não se lembra, Robbie, do que nos disseram em Arucas? É tempo de nos despedirmos do comandante. Foi sempre amável conosco.

Hesitou um instante:

- Ele não gostava dos missionários, mas creio que o fizemos mudar de ideia.

Fez com a mão um gesto nervoso e voltou-se involuntariamente, os lábios trémulos, as narinas dilatadas, como um cavalo rebelde.

- Susan!

- Então? Frenético, exclamou:

- Não vê como... como.. . estou...

Os olhos sérios de Susan não deixavam os do irmão; tomou as mãos dele nas suas:

- Compreendo, compreendo tudo, Robbie, e... oh! como o admiro.

Estupefacto, ele repetiu:

- Admirar-me?

- E por que não? - respondeu a outra com veemência.

- Toma-me por uma cega? Pensa que não vejo como é infeliz? Deus sabe se pressenti tudo desde o primeiro instante. Como lhe foi preciso lutar, Robbie! Mas por isso mesmo a vitória é mais gloriosa.

- Mas, Susan. .. - gemeu Robert.

- Compreendo, - interrompeu com vivacidade - compreendo e me compadeço. Ela é tão bela! Você ainda não havia afrontado esse perigo. Mas é uma mulher ruim, Robert, muito ruim. Se você não tivesse resistido, se tivesse sido fraco, estaria perdido, sua existência inteira estragada. Não notou minha inquietação? Mas rezei tanto para que fosse forte! Agora ela partiu, louvado seja Deus.

Ele a encarava aparvalhado, a boca aberta, os olhos brilhantes.

- Lembre-se - continuou Susan, com voz grave, tranquilizadora. - Também Ele sofreu a tentação. Isto deve adoçar sua amargura.

Os lábios de Robert exalaram uma espécie de queixa. Pensamentos incoerentes tumultuavam-lhe na cabeça. Num estado de super-excitação elevado ao paroxismo pela exaltação do remorso, ia desafogar o coração, falar enfim, quando bateram à porta.

As pancadas rápidas e nítidas ressoavam como tiros de pistola. Susan e Robert viraram-se para o recém-chegado.

Ele era grande, louro, e usava óculos. A figura ossuda e descarnada punha em destaque os ombros muito altos e o terno de brim branco muito largo. Tinha um ar impassivel, mas notava-se-lhe um certo travo no canto dos lábios, e nos olhos sombrios adivinhava-se uma força interior que se consumira como o fogo sob as cinzas. No momento, seu olhar inquisidor pesava sobre Robert e Susan. Enfim estendeu a mão seca e calosa, cheia de cabelos avermelhados.

- São pontuais - observou, com voz rude e fanhosa, como se se tratasse de chegar à hora certa para o almoço, depois da travessia de um rio. Sejam bem-vindos. Sua bagagem está pronta? Meu carro espera-os no cais.

Ah! exclamou Susan, ofegando de emoção. - Sem

dúvida o senhor é Mr. Rodgers?

Meu nome é Aarão Rodgers, plantador de James River. Abandonei tudo no momento da praga das plantações, e há três anos que vivo nesta ilha onde só se encontram uvas, limões, bananas e malfeitores! Sinto-me feliz em lhes oferecer hospitalidade até que se instalem.

Levantou vivamente os olhos e fixou Robert.

- Estou feliz com sua chegada, irmão; este lugar é uma cloaca, apodrece e se corrompe na ignorância e na impiedade.

Sob aquele olhar penetrante, Robert vacilou, corou.

- Não é mais feliz que nós, senhor - murmurou enfim, lacónico. - Estamos muito satisfeitos por vê-lo.

- A messe está madura para a colheita, - continuou Rodgers. - Se não se apressarem em salvar as almas, todos estes ímpios irão torrar no inferno.

Fez uma pausa para continuar, martelando as palavras com uma espécie de morna satisfação.

- Chegam no momento da mais terrivel epidemia que jamais assolou este país: a febre amarela! Dizem que foi trazida por um vapor vindo da Libéria. Mas para mim, é uma advertência de Deus, nem mais nem menos, e o mal. se espalha com uma rapidez fulminante.

- Já ouvimos falar - disse Susan - mas como de uma epidemia benigna.

- Benigna? É terrivel, medonha. Procuram abafá-la, mas, tão certo como Deus é meu criador e juiz, terão muito trabalho para acabar com ela.

Susan comprimiu os lábios:

- Há casos em Laguna?

- Em toda a montanha; e, como se pensa sobretudo em afastar o flagelo de Santa Cruz, não há tempo de nos enviarem os socorros necessários. O pior é que o mal avança para o este, ataca as outras ilhas; assinalaram-se casos em Las Palmas na última semana. Laguna acha-se em pleno centro desta peste. Perto da minha casa, há uma propriedade: a Casa de los Cisnes, que pertence a uma velha dama espanhola meio louca. (Sua voz assumiu uma entonação maldosa). O que eles chamam aqui uma "Marqueza", estes imbecis! Mas o sangue azul não a protege contra a ruína. Suas terras estão cobertas de ervas daninhas, por falta d'água. E enquanto eu estiver lá providenciarei para que ela não a tenha. É nesta propriedade que a febre atinge o paroxismo. A metade dos colonos que lhe restavam morreu, pobres diabos: o cemitério está repleto!

Seguiu-se um silêncio a este discurso pouco animador, depois Robert suspirou profundamente, como se procurasse encher-se de um entusiasmo fictício: ? - Há trabalho urgente - disse. - Para a frente!

- Para a frente! - repetiu Rodgers, com secura. Desembarquem as bagagens.

Sem sair de sua atitude austera, deixou o camarote em primeiro lugar. O sol estava ardente, e parecia dissimular no seu brilho uma formidável ameaça.

Robert, apático um instante atrás, apressava-se, sob o olhar glacial de Rodgers, com um zelo desordenado. Em vez de contemplar Susan agir, com um olhar indulgente, como era seu hábito, repeliu-a e começou a se ocupar com as malas e valises. Ao mesmo tempo em que calçava as luvas (sem este complemento não se sentiria vestida ao pôr o pé em terra), ela o observou um momento, em seguida se afastou lentamente.

Renton saia do quarto dos mapas.

Ela ia dizer: "Vim lhe dizer adeus", quando ele lhe cortou a palavra:

- Eu a procurava - disse com ar muito preocupado, o sangue subindo-lhe ao rosto.

Pareceu hesitar um momento, mas decidiu-se:

- É a propósito desta febre. Receio que seja mais séria do que pensava a princípio; Laguna é um lugar particularmente mau. Porque vai se meter nesta encrenca? Fique em Santa Cruz até abafarem a epidemia. Fique mesmo no navio um dia mais, o tempo de encontrar um aposento. Só levantaremos ferros amanhã.

Ela sorriu ligeiramente.

Não tenho medo, comandante. Alem disso, estaríamos mais seguros em Santa Cruz? A febre já se encontra aí provavelmente, bem como em Las Palmas, segundo diz Mr. Kodgers. Assim sendo, não deveríamos também desembarcar lá.

Renton balbuciou algo de indistinto, e de vermelho tornou-se carmezim. Seu espírito, habituado à disciplina, tinha horror às concessões.

- Fui mal informado, - disse rapidamente - e nosso agente terá notícias minhas. O flagelo é muito mais violento do que ele dissera. Agora, somente agora, sei o que devo fazer. Creia-me, fique em Santa Cruz, a epidemia ainda está benigna. Arranjar-se-á aí durante algum tempo. Para que ir ao encontro do perigo? É o simples bom senso que lhe fala.

- Nem sempre o bom senso é o que dá mais certo. Irritado, ele sacudiu os papéis:

- A senhora parte assim mesmo?

- Sim.

Ele a examinou mais atentamente, o olhar fez-se menos acerbo, o tom mais ameno:

- Seja feliz, - disse estendendo-lhe a mão. - Cuidado com o ar da noite, e não se enerve.

A sensação de que havia ganho sua estima animou-a; sorriu de novo, ligeiramente e disse, despedindo-se:

- Não sou nervosa.

Desceu a escada, atravessou o corredor, e súbito seu olhar vacilou: Harvey vinha em sentido contrário, e com um gesto maquinal e absurdo, ela barrou-lhe a passagem. Encontraram-se, face a face, parados. Houve um silêncio de alguns segundos entre ambos, depois ela balbuciou:

- Partimos agora. Acabo de me despedir do comandante.

Ele a encarou com tal fixidez que sua fisionomia parecia uma máscara. Pareceu a Susan que todo o amargor dos primeiros dias voltara àquele rosto inerte, àqueles olhos frios.

- Então, adeus.

Ela corou violentamente, tornando a sentir com intensidade o cruel poder, que tinha, de feri-la. Ao mesmo tempo a ideia de que ia deixá-lo, que ela nunca mais o veria, a encheu de brusco terror.

- Talvez me deixe passar? - disse ele enfim, com fadiga. - Ou será preciso que cantemos juntos um último cântico?

- Espere - rogou. -? Não parta, não parta assim. Impelida por um violento desejo de retê-lo, segurou-lhe

no braço. A sensação desse braço sob o pano delgado transmitiu-lhe ao longo da pele, até o sangue, um frémito de que ela se envergonhou.

- Quer prometer. . . prometer-me alguma coisa antes de nos separarmos?

Ela quase gaguejava, apenas consciente do que dizia.

- Por que havia de prometer? Nada lhe devo.

- A mim não, - confirmou, ofegante. - Mas ao senhor? Oh! só penso em si neste momento.

Ele olhou fixamente para a pobre fisionomia sem encanto, que se erguia para ele, toda nervosa de emoção contida.

- Sofro - continuou Susan com veemência. - Sofro por ver até que ponto o senhor se descuida, não apareceu em nenhuma das refeições. Não come nada. Não se cuida mesmo nada.

Parou, os olhos acesos, mas prosseguiu, suplicante, com uma coragem renovada:

- Sei que sou ridícula, sei que o senhor me detesta; mas pouco me importa, isto não me deterá. Há qualquer coisa que me força a ajudá-lo, apesar de suas recusas; tenho absoluta confiança no senhor e estou firmemente convencida de que será chamado a cumprir grandes coisas; mas o senhor sofreu muito, e não quero vê-lo sofrer mais. Não posso suportar esta ideia! Peço-lhe, suplico-lhe, prometa-me cuidar da sua pessoa, prometa-me não se entregar ao desanimo, que partirei feliz.

A mão que segurava a manga do paletó escorregou, os dedos procuraram a palma da mão de Harvey.

- Não faça isso - exclamou, recuando diante deste contacto como sob uma picada.

EU Sei, eu sei - exclamou Susan, num movimento

de ciúme. - Sei que a ama. Bem que notei, mas isso não poderá me deter. Ela não sente o que sinto, e partiu. vou partir também, é verdade, mas os meus pensamentos o seguirão sempre; o senhor não poderá se furtar, rezarei pelo senhor, sim, hei de protegê-lo com minhas orações; sim, rezarei!

No silêncio que então se seguiu sua respiração era ofegante.

- Peço-lhe que se acalme - murmurou Harvey em tom contido e doloroso. - A senhora se prejudica inutilmente e sem razão.

A ponta de zombaria que transparecia nesta resposta fez estremecer Susan. Ia replicar, mas uma voz atrás dela a interrompeu, rápida:

- Estamos prontos, esperamos a senhora.

Era Rodgers, armado com seu olhar penetrante e, a seu lado, Robert.

Ela conservou-se imóvel. Deixou cair o braço num gesto de desespero. Olhou para Harvey, depois, sem uma palavra, voltou-se e, baixando a cabeça, dirigiu-se para a porta.

Robert balbuciou um "adeus" embaraçado, estendendo a mão mole e fria como um rabo de peixe. Onde sua jactância, seu gesto cordial?

Rodgers envolveu Harvey com um olhar reprovador, e, sem dizer nada, partiu, teso nas pernas de garça.

Harvey, imóvel, impassível, viu-os atravessar o passadiço de desembarque, subir no carro. Houve um ruido de guisos, um martelar de ferros na calçada, uma nuvem de poeira. Sempre imperturbável ele os viu afastando-se em direção a Laguna - onde reinava a febre amarela.

 

Único, agora, de todos os passageiros, ele ficava naquele barco, que guardava a imobilidade e o silêncio duma casa devastada da qual se foge a toda pressa. Só, estava só. -Que palavra terrível. Uma palavra que parecia agarrar-se a ele, ele que sempre almejara esta solidão, que sempre se bastara a si próprio, e para quem agora a sensação de solidão se tornava uma tortura.

Sentado no camarote com um livro nos joelhos, fingia ler mas as palavras apareciam-lhe embrulhadas e incompreensíveis. Uma curiosa e confusa visão de sua vida superpunha-se aos caracteres da página aberta. A aventura que pusera remate à sua carreira nos hospitais apresentava-se-lhe a uma luz toda nova. Dominava-o uma piedade, não por ele próprio, mas pelos que haviam morrido. Pobres diabos, não haviam tido sorte!

Impaciente, atirou o volume sobre a cama e ficou muito tempo sem movimento, o olhar perdido no vazio. Uma pancada na porta interrompeu sua meditação, e Truta apareceu, trazendo água quente.

Harvey seguiu em silêncio os gestos do camareiro, que pousava o balde familiar no soalho e punha ordem no camarote. com um gesto impulsivo, puxou a carteira, tirou uma nota e a estendeu:

- Tome, por ter cuidado tão bem de um ingrato. Truta teve um gesto discreto.

- Oh! senor, foi com prazer que o servi. Haverá tempo para isto quando voltarmos.

- Tome - insistiu Harvey, rudemente.

Truta, com a nota na mão, ficou um instante desconcertado, e desapareceu, balbuciando agradecimentos.

"Por que, pensou Harvey, por que fiz isto? Eis um pobre tipo que injuriei, e agora dou-lhe, sem razão, uma boa gorgeta."

Mas preferiu não analisar o gesto imprevisto, de que ele próprio se admirava. Seu olhar caiu sobre o balde de água quente, e sentiu-se sem coragem diante da perspectiva dum jantar solitário. Quando o navio chegava a algum porto, Rentôn tomava as refeições no camarote. Corcoran? Até Corcoran partira, aparentemente sem esperança de voltar. Só, estava só! E a melancolia desta palavra penetrou-o mais profundamente ainda. Como é que ele, Harvey Leith, sempre tão seguro de si mesmo, desprezando a amizade, desdenhoso de toda a afeição, de toda a sensibilidade, como é que aprendera a inanidade de sua impassível sabedoria? Pelo amor? Como teria rido seis meses antes se lhe falassem de amor! Como teria metido a ridículo esse sentimento! Mas hoje não pensava nem em rir nem em zombar. Pensava em Mary.

Tornaria a vê-la outra vez? Oh! revê-la! Como este desejo era profundo nele! Ela dissera, com esse jeito misterioso que tinha para exprimir as coisas, que a vida era dirigida por correntes sutis, que escapavam à razão. O fatalismo de Harvey abrandava-se ao pensar na frágil esperança. Sempre se grudara ao fato brutal, aos termos positivos. Agora começava a aceitar a ideia de uma força menos concreta, mais íntima que a razão.

Suspirou pesadamente e levantou-se para lançar um olhar pela vigia. Todo o movimento cessara no porto; mas ainda era dia. Atrás das docas, os telhados da cidade subiam, encostando-se uns aos outros; parecia que uma atração emanava dali. A meditação de Harvey mergulhara-o numa agitação, num nervosismo que se traduzia de súbito por este pensamento: "Não posso ficar a bordo, não, é impossível", e, sem se conter, tomou o chapéu e deixou o camarote para desembarcar.

O ar agora estava fresco. Seus passos, rápidos primeiro, diminuíram logo. Ganhou a extremidade do cais, atravessou a rua além da Alfândega e parou na Plaza.

As lojas estavam fechadas. A fachada brilhantemente iluminada de um hotel causou-lhe repulsa. Sentia-se cercado de estrangeiros. Que fazer? No jardim, passeantes iam e vinham sob as palmeiras; os homens de um lado, as mulheres do outro, em duas correntes separadas, sem animação nem tumulto, num simples gozo indolente da frescura da noite. A ameaça da epidemia não perturbava a aparência daquela vida plácida; ela continuava seu curso lânguido, sem choque, dia a dia, com uma calma filosófica. Harvey observou a multidão um momento, depois, sob um impulso repentino, afastou-se. Tomou à esquerda da Plaza, fugindo ao movimento, às luzes, perdendo-se num dédalo de ruelas estreitas. Uma volta de rua conduziu-o a um monumento antigo. Era a catedral.Harvey entrou. Um serviço religioso terminava, o odor de era e incenso flutuava ainda no ar. Algumas mulheres estavam ajoelhadas diante do altar-mor, mergulhadas na semi-obscuridade azulada. Harvey teve, súbito, como que uma estranha reminiscência, e parou espantado. Parecia-lhe ver aquela igreja nos séculos extintos, ouvir os passos que outrora ressoaram sob aquelas abóbadas - e cujos ecos se haviam calado, - respirar o odor de cera queimando, odor particular às tochas abrazadas. Deu lentamente alguns passos na nave, como à procura de alguma coisa. Seria a paz, talvez? Parando aqui e ali, contemplava os paramentos, os relicários cheios de relíquias. O osso da coxa do papa Clemente, a cruz de ouro plantada pelos Conquistadores. Bandeiras, enfim. Pendiam pesadamente numa vitrina, duas insígnias gloriosas tomadas a Nelson durante o cerco da cidade. Harvey examinou-as com atenção, pensando nas mãos que carregaram estes estandartes, num passado longínquo, e sentiu um curioso desejo de tocar o pano gasto. Seus dedos crisparam-se, ao mesmo tempo. sentia uma impressão dolorosa. Não, não era uma dor, antes uma centelha de emoção, um sentimento de melancolia, uma angústia incontida, logo apagada. De onde provinha essa sensação fugitiva que em vão ele procurava recuperar, situar? Era inexplicável; ficou perturbado, cheio de tristeza.

Contrariado por se sentir tão impressionável, saiu da catedral, e ficou indeciso, no pórtico. Era noite. O raio luminoso de um farol girou na atmosfera, passou pelo seu rosto um instante. Era como seu pensamento: um toque de luz, em seguida a escuridão.

Atrás dele, sentia a sombra da catedral. Diante. . . que havia? Desceu os degraus e adiantou-se ao longo do porto. A solidão oprimia-o como uma praga. Teve mais uma vez o desejo de fugir; pensou: Que me acontece? Se não me liberto desta obsessão, enlouqueço. E, procurando distrair-se, atravessou a rua mal calçada e entrou num café vizinho de um pátio atulhado de velhos materiais de navegação.

Era um café bem pobre. Penetrava-se ali por uma portinha abaixo do nível da rua. Mesas pintadas de branco, fincadas num soalho ladrilhado. Uma lâmpada a óleo, enfumaçada, pendia do teto. Atrás da caixa o patrão, um jovem espanhol em mangas de camisa, comia, em pé, um magro jantar de pão preto e azeitonas. Cuspia os caroços para trás dos ombros, e esse movimento de cabeça era sua única concessão às regras de civilidade. Alguns fregueses, sentados nos bancos, encaravam Harvey com curiosidade, enquanto ele procurava um lugar. Pertenciam a essa classe suspeita que se encontra em todos os portos. Quanto a Leith, o fato de ter passado do navio à catedral, e da catedral ao cabaré, deixava-o bem desorientado. Afinal, era humanamente possivel penetrar a razão que decidia de sua presença aqui ou ali, no tempo e no espaço? A vontade não entrava em conta, o acaso também não, nem o jogo dos acontecimentos, nem a fuga dos segundos na eternidade. Uma convicção absurda implantava-se-lhe no espírito: se estava esta noite naquela taverna mal afamada, era seu destino - eis tudo.

O patrão, calçado com enormes chinelas de ramagem, trouxe-lhe vinho, sacudiu uma toalha suja para secar a mesa toda manchada, e recebeu o dinheiro como um insulto. Depois, arrastando os pés, voltou às azeitonas.

Harvey, de cabeça baixa, olhava a cor quente do líquido; bebeu-o de um só trago. Não havia mais inquietude, o brutal desejo do álcool desaparecera. Convencera-se disto também. Jamais poderia supor que escaparia assim a tal escravidão. Mas transformara-se, sentia-se outro homem, quase irreconhecível, mesmo para si próprio.

Suspirou, ergueu os olhos e ficou surpreso. Um indivíduo estava em pé no limiar da porta, o rosto voltado para trás; ao cabo de um instante, baixou a cabeça para entrar. Era Corcoran.

Percebeu Harvey logo; todos os dois se olharam, depois Jimmy avançou, enxugou o suor da cabeça, e deixou-se cair no banco em frente de Leith. Seu bom humor habitual cedera lugar a uma expressão de viva contrariedade. O rosto todo empoeirado estava sulcado de suor, como se tivesse corrido. Sem uma palavra para Harvey, encomendou uma bebida, enfiou o lenço no bolso, e voltou-se para observar a porta. Agarrando o copo bebeu um gole, enxugou a boca com o dorso da mão, bebeu de novo, suspirou e gemeu. Enfim, sorriu um pouco, mas um sorriso embaraçado, como se estivesse cheio de preocupações.

- É uma sorte a gente se encontrar, - disse, apertando a mão de Harvey. - Mas, se eu não tivesse untado sebo nas canelas não seria neste mundo que nos encontraríamos.

- Que se passa?

Corcoran continuou a gemer.

Uma história bem suja, acredite-me, e por culpa de Bob Sinnot. Não deveria dizer isto: Deus guarde sua alma, pois que ele está bem morto e enterrado.

Harvey, silencioso, encarava-o. Um momento antes seu espírito estava absorvido nos grandes problemas da vida, preocupado com os mistérios do destino, chocado com a vaga preciencia de um apelo do passado, e agora tinha que aturar nada mais nada menos que este inevitável irlandês e suas lamentações acerca de um Sinnot morto e enterrado. com efeito, a vida ia ao acaso, sem nenhum senso dos valores; apenas o dos desenlaces grotescos.

Agitou-se no banco com impaciência, perguntando:

- Este é o tal que você chama de "professor"?

Este mesmo - exclamou Jimmy num tom desesperado. - Um mentiroso ordinário que me atraiu até aqui, prometendo-me mundos e fundos. Santa Mãe de Deus, tende piedade dele no purgatório. Ele me falara de um parque de diversões, de uma espécie de feira perto das dunas; o povo por aqui gosta destas coisas, pelo menos é o que ele dizia. Deus o perdoe! Entretanto, Bob sempre enxergou largo. Mas é de se ver o tal parque de diversões: barracas em ruínas! É aí que ele queria me segurar! Francamente, que um companheiro tenha querido me enganar desta maneira, é incrivel!

- Mas afinal de contas, que quer dizer tudo isto? Jimmy teve um gesto de angústia:

- É exato que Bob estava muito ruim de vida quando me escreveu. com a corda no pescoço, podre de dívidas. E tomou dinheiro emprestado contando que eu ia chegar. Um grande malandro, um mentiroso de marca maior, o velho Bob!

- Você tinha prometido colocar dinheiro no negócio dele?

Corcoran foi tomado de um fortíssimo acesso de tosse, de que saiu todo carmezim. Enfim, com esforço, balbuciou:

- Que ideia!

- Compreendo - disse Harvey, não sem ironia. Pois bem, já que ele morreu, tudo acabou.

- Não há dúvida que ele morreu. Teve esta maldita febre que grassa na cidade, e esticou a canela. Se isso tivesse acontecido há um ou dois meses, vá lá; mas dar o fora na calma, justamente na véspera de minha chegada, é demais, palavra!

Sua indignação era tão violenta que Harvey, lembrando-se da ênfase com que ele falava dos "grandes negócios" e do "professor", não pôde deixar de sorrir.

- É preciso voltar comigo ao "Auréola". É isto que o atormenta?

- Atormentar-me? Não é meu género. Estou simplesmente caceteado com o que me aconteceu,

- O que aconteceu a Bob, você quer dizer?

- O que me aconteceu a mim - retificou Corcoran com rancor. - Digo-lhe que Bob estava podre de dívidas. E é preciso ver a espécie de negro a quem ele devia dinheiro. Este tipo me esperava, perto das barracas, com um bando de sujeitos da mesma laia que ele. Tinha o telegrama que eu enviara de Las Palmas, bem como uma ou duas cartas minhas. E ei-los que caem em cima de mim como a miséria sobre este pobre mundo, dizendo que eu devia pagar as dividas do velho Bob. Como se eu nadasse em ouro! Correram atrás de mim como uma matilha. Felizmente eu sei me arrumar, e corri a toda velocidade: nem sei onde estaria agora!

Soltou um grande suspiro, pegou de novo o copo e acrescentou:

- Eis-me aqui são e salvo. Ainda não nasceu aquele que poderá se gabar de dizer a última palavra a Jimmy Corcoran!

Dominava-se de novo, mas isso não durou muito. A fisionomia retomou uma expressão penosa, e ele descansou o copo sem ter bebido.

Três homens penetraram na taverna, e com ar indiferente lançavam um golpe de vista circular, evitando encarar Jimmy. Depois, com circunspecção, instalaram-se perto da porta.

Ofegante, Corcoran soltou um palavrão.

Harvey voltou-se para examinar os recém-vindos. Formavam um grupo de aspecto crapuloso. Um deles, baixo mas bem fornido, acendia um cigarro e atirava o fósforo aceso no meio da sala, com insolência. Os outros dois pavoneavam-se no banco, observando. O maior repuxou com um gesto fanfarrão a capa que o protegia contra a frescura da noite. O terceiro estava vestido de tricô sujo, calçado com alpercatas furadas, e trazia uma casquete, cuja pala quebrada caía-lhe no rosto como uma asa.

O dono do botequim, solícito, trouxe-lhes com deferência uma garrafa que desarrolhou. Tendo enxugado os copos cuidadosamente no avental, serviu o vinho ao mesmo tempo que escutava, de cabeça baixa, as explicações que dava o homem gordo. Este discorria numa voz rude, temperando com exclamações irónicas uma narrativa rápida; com o polegar apontava para Corcoran. Finalmente, o dono do botequim aprovou com um sinal de cabeça e dirigiu-se a Corcoran.

- El Brazo, - disse, com o olhar voltado para o que o enviou - el Brazo diz que você pagará!

O botequineiro procurou com o olhar o apoio do grupo, e, sustentado por vigorosos sinais de cabeça, continuou:

- El Brazo diz que você pagará a despesa.

- Eles pensam que eu comprei o negócio? - murmurou Corcoran.

Tornara a ficar teso, arqueara o peito e voltara ao seu rosto a expressão de raiva. Agitando os cotovelos como se quisesse abrir caminho na multidão, acrescentou, dirigindo-se ao botequineiro, em tom alto e distinto:

Pago uma história! Diga-lhes que vão para o diabo.

Todos os fregueses apuravam o ouvido: criava-se na sala uma atmosfera de rixa. Harvey tentou interpor-se.

- Não banque o idiota. Você não vai brigar aqui!

- Não dou importância. Desprezo estes negros. Petulante, abotoou o paletó e, franzindo o sobrolho, dirigiu-se ao botequineiro.

- Diga ao El Brazo que ele não passa de um cão sujo. Sujo! está ouvindo? Diga-lhe, não se esqueça: cão sujo, amarelo! Diga-lhe também que tenho nojo e que não lhe darei uma peseta.

O outro deu de ombros e desviou os olhos:

- Vá dizer-lhe você mesmo. El Brazo garante que você lhe deve dinheiro. El Brazo é um matador. Já matou muitos touros.

- Não há dúvida, - disse Jimmy. - E outras coisas além de touros...

- Sim - macaqueou o outro - outras coisas, além de touros.

O homem gordo levantara-se. Seguido de seus companheiros, avançava lentamente, a mão atrás das costas com má catadura.

- Você vai me pagar - disse, num tom sardónico. Pagará tudo o que seu sócio me roubou, a mim, El Brazo, conhecido por sua honestidade e sua coragem. Ele me roubou cem pesetas. Você as pagará, vamos ver.

Fez-se silêncio na sala, seguido de um murmúrio de expectativa. Harvey levantou-se. Corcoran fez o mesmo, atirando longe, com violência, sua cadeira que caiu no chão, ruidosamente.

- Dá o fora! - gritou, avançando o queixo com furor.

- Dá o fora, senão te esmago!

O outro levantou o braço, mas o enorme punho de Corcoran, mais rápido, atingiu-o em pleno centro do queixo com um choque que ressoou na sala. El Brazo, desnorteado, caiu redondamente no ladrilho, onde ninguém mais se ocupou com ele, pois seguiu-se um tumulto indescritível. Todo o mundo se precipitou urrando. O dono do botequim deu um salto acima da caixa, uma garrafa voou. Harvey e Corcoran procuraram abrir caminho para a porta. Quase a atingiam quando o companheiro alto de El Brazo, aproveitando um espaço entre os combatentes, atirou uma faca. Num relâmpago, Harvey viu a arma enfiar-se no braço de Jimmy. Procurou intrometer-se, escorregou e foi atingido por uma cadeira que lhe quebraram na cabeça. Oscilou na escuridão, vagamente con» ciente de pisadelas, de gritos, de pessoas se esfregando nele, de Corcoran puxando-o com violência. Uma corrente de ar fresco. No seu cérebro desorientado flutuou este pensamento: "Eu tinha razão há pouco: não é o acaso que me condUZ, é o destino; o destino que me fora traçado". Na rua sentiu vagamente que Jimmy o sustentava. Vacilou, depois tudo sumiu na noite.

 

Harvey abriu os olhos. Estava estendido num sofá de pelúcia vermelha, numa salinha que cheirava a café, a cebola e a tabaco. Uma dolorosa rigidez imobilizava-lhe o pescoço, e sua cabeça cheia de ruidos fazia-lhe mal.

Ficou completamente imóvel, esperando que os contornos do quarto se destacassem do nevoeiro que afogava tudo. Pouco a pouco as coisas se desvendaram. Na chaminé havia uma pêndula de mármore verde entre dois galgos de orelhas ruivas, em porcelana, de goela fixa num sorriso de cachorro bom. Em cima, um painelzinho bordado mostrava estas palavras: "Deus abençoe nossa querida casa". Nos muros forrados de um horrivel papel cor de chocolate, ostentavam-se gravuras em molduras douradas, rutilantes: Ormonde ganhando o Derby, uma madona policrômica cercada de serafins, o retrato a óleo de um marinheiro barbado, e enfim a sedutora fotografia de uma mulher completamente nua, sorrindo sem nenhum pudor.

Harvey desviou os olhos; sem dúvida estava sonhando, tudo isto era muito feio para ser real.

Mas não estava sonhando. Um raio de sol entrava através da janela fechada. Era de manhã. Ergueu a cabeça com cautela. Perto de uma mesa com pratos, com as curtas pernas cruzadas, um charuto na boca, os olhos atentos, parecendo bolas de vispora, a velha Hemmingway lia o jornal.

Harvey encarou-a, e perguntou, passando a língua nos lábios secos:

- Como é que estou aqui?

A velha matrona soltava baforadas voluptuosas do seu charuto, ao mesmo tempo que continuava, imperturbável, a leitura.

Entretanto, ao cabo de um instante, sem levantar os olhos, notou, em tom de bom humor:

- Ora, ora, você acorda, meu bebé querido. Dormiu bem? - Dobrou o jornal e parece que se absorveu noutra página. - Espero que tenha dormido cómoda e tranquilamente, senão é preciso reclamar da direção. A direção, sou eu!

Harvey apalpou a cabeça com precaução. Imediatamente, como se esperasse este gesto, a velha Hemmingway falou vivamente, e em tom zombeteiro:

Então, que é que há, meu pobre tesouro? Dói? Algum malvado quis espancá-lo? Os homens são bem ordinários, no fim de contas; poderiam ser bem polidos e educados com um cavalheiro tão distinto!

Ele a encarava:

- Como vim parar aqui?

- Foi Jimmy quem o trouxe, caramba. Ele atrapalhou todos os negócios da noite e sangrou como um porco no tapete do salão. Que sorte, este tapete ser vermelho! Vamos, quer almoçar?- ? Apontou para a mesa. - Levante-se e coma qualquer coisa. Afinal não sei por que faço isto: à força de ser tão boa, acordarei uma manhã destas com asas nas costas, garanto!

- Corcoran! Onde está ele?

- Não se incomode com ele. Vai bem. com um arranhão no braço, mais nada. Isto não o impediu de se encher de comida. Pelo menos uma libra de presunto ele me bateu, o glutão.

Suspirando, Harvey levantou-se. Ainda vacilando um pouco, foi à janela e olhou para fora. O quarto estava situado no alto da casa; do outro lado da rua ele avistava o porto, a baía e o cais. Durante um momento olhou fixamente o lugar onde, na véspera, o navio atracara. Depois fez uma exclamação e levantou a cabeça. Lá longe, no horizonte, distinguia-se um penacho distante de fumo. Seria o "Auréola"? Em todo o caso, o navio não estava mais ali perto.

Voltou-se e cruzou com o olhar da velha Hemmingway, que o observava com maliciosa atenção.

- Por que não preveniu Renton ou alguma outra pessoa de bordo? - perguntou.

Dando pancadas na mesa, a velha pôs-se a zombar, deixando-se ganhar pouco a pouco por sua habitual hilaridade.

Ora, veja! Não compreende que é uma farça bem

pregada pela mamãe Hemmingway? Nunca vi nada mais divertido, desde que Noé encalhou com toda sua tropa no monte Ararat. Em primeiro lugar, eu sabia que Renton não esperaria ninguém, nem mesmo o papa. - Riu mais ainda. É claro que vi o navio partir, estava à janela. Mas você estava tão cansado, minha jóia! Não tive coragem de acordá-lo. - Pôs-se a mexer com os pratos, falando em tom tranquilizador. - Vamos, vamos, não vale a pena se entediar. Venha comer, que lhe dará coragem. Quanto a mim, já acabei. Olhe, temos salsichas com tomate.

Ele continuava a encará-la, a testa franzida, e sempre fixando-a, puxou uma cadeira, tomou lugar à mesa.

- Ainda bem - exclamou a velha, servindo-o copiosamente. - Nunca poderia avaliar que eu ainda lhe pagaria, um dia, e com juros as suas delicadezas no navio! - Soltou um palavrão. - Nunca poderia pensar!... Espere, o café está frio, vamos esquentá-lo.

- Muito obrigado. Talvez se espante, mas tenho uma bruta fome.

Enquanto ele cobria de manteiga um pãozinho, a velha Hemmingway estendeu o braço para a campainha. Um minuto depois uma jovem espanhola entrava. Trazia uma saia cor de rosa, e os sapatos de salto alto e estava sem meias. Duas tranças mal feitas caiam-lhe no peito.

- Eh! Cuca! Traga um café bem quente, e depressa!

- Sim, senhora.

- Não vale a pena sorrir, Cuca: este cavalheiro não é um cliente...

- Sim, senhora.

Mas Cuca continuou a sorrir, deixando a sala, e ainda sorria quando reapareceu com a cafeteira que exalava um vapor fino. Não era um sorriso espontâneo, mas uma expressão de amabilidade estereotipada de que ela não parecia capaz de se desembaraçar.

- Bem simpática, esta Cuca - disse a velha Hemmingway, quando a jovem espanhola fechou a porta. Serviu o café e passou a língua nos dentes, refletindo. - Na quarta-feira de cinzas vai fazer cinco anos que ela está aqui, e alegre como um canário. Bem educada, maneiras amáveis. Santa Maria, como engordou! Tornou-se um belo pedaço de mulher. Se a visse quando chegou! Parecia um rato esfolado. E que educação! Fazia pena. Ainda não havia recebido a confirmação, imagine! Tão certo como estou aqui, fiz com que recebesse a confirmação na própria semana em que chegou.

Harvey cortava rodelas de salsichas em silêncio.

- Não me acredita? - continuou a velha com veemência. - Dou-lhe minha palavra de honra que trato bem minhas filhas. É claro que aqui não é um convento, e que não lhes ensino o catecismo. Mas o que faço, faço honestamente. Sou justa, não espero agradecimentos. Quanto às que não gostam, é só dar o fora.

Harvey havia vagamente suspeitado o gênero da casa explorado pela velha Hemmingway; suas suspeitas achavam-se agora inteiramente confirmadas. Mas, transformado como estava, não sentiu nem desprezo nem nojo; somente uma estranha resignação. Os últimos acontecimentos haviam despertado nele uma tolerância, uma humildade que até então lhe eram estranhas. f,

- Este café está excelente - disse. - Os pãezinhos também. Este ótimo almoço me tira todo o pesar de ter perdido o navio.

A observação era tão inesperada que a velha ficou surpresa e colocou-se logo na defensiva.

- Será que você zomba de mim? Comigo isto não pega, sabe?

- Por que haveria de caçoar? Aprecio grandemente sua hospitalidade.

- Você não é amável, meu caro senhor; é seu principal defeito. Crê-se muito sabichão, olha os outros do alto de sua grandeza, e não tem razão. Eu é que lhe digo. Como então? Eu lhe ofereço cama, comida, de boa vontade, e você

faz pouco de mim. É nojento, saiba. Trate de aprender boas maneiras. Parece que isto não está nos livros!

E, apanhando o jornal com ar indignado, tornou a mergulhar na leitura.

Harvey estudava-a com um sorriso agudo.

- Aprendi em quinze dias mais do que a senhora pensa.

- Pensou também no que ia fazer em Santa? Será tão esperto talvez para descobrir algum negócio?

- Será que a senhora tem alguma coisa para me propor? Desconfiando ainda, a velha fungava.

- Fique aqui, se lhe agrada. Não sou tão má como pareço. Mas você enxerga o mal em toda parte. Pois bem! Se quer saber tudo, eu não desconfiava que aquele maldito barco tivesse dado o fora. Pensei que não levantasse ferros antes da tarde. Fiquei desapontada quando olhei para o porto, há uma meia hora, e percebi que ele não estava mais ali. Não lhe quero mal. Fique aqui, se quiser. "Tome ou deixe," como dizia a dama que dava uma banana ao otário.

Harvey, um sorriso ligeiro nos lábios, mergulhado em suas reflexões, não demonstrava nenhuma animosidade. A velha Hemmingway acabou levantando os olhos, encarou-o fixamente e pousou o jornal com um gesto brusco.

- Porque não ir a Laguna, se faz tanta questão de fazer qualquer coisa? Há ali uma epidemia de febre, o povo morre como mosquito, e o doutor espanhol acaba de bater a bota. É o segundo que morre; por isso, os outros não mostram muito fervor pela profissão. Você é médico, pelo menos é o que dizem. Já que é seu ofício, por que não tenta?

Parou de fazer migalhas com o pedaço de pão:

- Sim, por que não?

Os olhos da velha brilharam ainda de malícia:

- E não o amedrontará em nada, espero, a ideia de que qualquer dia poderão levá-lo num belo caixão! Você está muito acima disso, é claro.

Harvey, entretanto, mal a escutava. Submetido agora a este fatalismo tão novo nele, examinava a situação.

Sim, sem dúvida, iria a Laguna. Como não pensara antes? Alguma coisa, mais poderosa que o acaso, fazia dele o joguete dos acontecimentos. Parecia-lhe que há muito esperava este momento.

- É preciso ir à aldeia de Hermosa, - continuou a velha. - À casa de los Cisnes. Foi de lá que partiu a febre. Um diabo de casa caindo em ruínas, que pertence a uma velha meio maluca. Ninguém se atreve a aproximar-se dela, mesmo em tempo normal.

"Irei, pensou.

Uma força imperiosa parecia impulsioná-lo. Contra sua vontade, murmurou: "Casa de los Cisnes".

A velha Hemmingway olhava-o com curiosidade, piscando os olhos.

- Está bem, você tem topete, é preciso que lhe diga. Pense no que vai arriscar; no fim de contas, é preciso ser meio louco para fazer isso.

Ele afastou a cadeira, e, como puxado por uma mão invisível, deu alguns passos para a porta.

- Santa Maria! - exclamou a velha. - Será que já vai partir? É preciso descansar um pouco; e, sem ofensa, convinha barbear-se primeiro. . .

- Não, não parto ainda. Quero ver Corcoran. Já é tempo de lhe examinar o braço.

- Vamos, vamos, tenha calma. Deixe-me respirar um pouco. Estou toda desorientada. E além disto, não acertaria com o caminho, andando sozinho aqui dentro de casa.

Piscou o olho, esmagou a ponta do charuto num prato, e levantou-se para mostrar-lhe o caminho. Uma entrada sem tapete levava a um corredor estreito. A casa cheirava a mofo. Do saguão subia um barulho de vozes agudas.

com uma espécie de altivez, a velha Hemmingway abriu uma porta e introduziu Harvey num vasto quarto com painéis empoeirados. Na cama, Corcoran, metido numa camisa de riscas azuis e vermelhas, encostava-se displicentemente num travesseiro de limpeza duvidosa, conservando um ar de plácida indiferença. Seu braço estava ligado com ataduras, os óculos lhe trepavam no nariz, e aos joelhos ostentava-se, todo aberto, o volume do querido Platão, com as páginas fora do lugar. Lia baixinho, mexendo com os lábios.

- Acorde, vovô! - gritou alegremente a velha. - Olhe o chapelinho vermelho que vem visitá-lo. Não poderia nos sorrir um pouquinho mais e arranjar um ar um pouco mais amável depois de ter sangrado tanto no tapete?

Jimmy levantou a cabeça e encarou-os através dos óculos, piscando como um mocho.

- Eh! Eh! - exclamou com uma alegria e um espanto exagerado. - Eis uma boa surpresa! Eu que pensava que você houvesse partido sem me dizer adeus. Como se explica que não esteja a esta hora no navio?

- O "Auréola" partiu.

- Verdade? Então, está mesmo de azar.

- Cale-se - disse Harvey - você bem que sabia.

- Se isto não é ingratidão! - continuou Corcoran, com uma amável zombaria em direção à velha Hemmingway. Tratar-me assim quando o tirei de tamanho apuro. Mas, não tem importância, - Voltou-se para Harvey. - Apesar de tudo estou contentíssimo por vê-lo bem seguro nas suas pernas.

Harvey aproximou-se, desatou a ligadura, examinou a ferida. A faca atingira superficialmente o triceps.

- Como se sente?

- Eu? Não sinto nada. Para um sujeito habituado a dar e a tomar pancadas, como eu, um arranhão como este não é nada. Tudo o que espero é encontrar de novo aquele negro e pagar-lhe na mesma moeda.

- Dentro de alguns dias ele não aparecerá mais.

Harvey recolocou a ligadura, com cuidado, levantando-se :

- Parto daqui a pouco para Laguna - disse num tom ambíguo. - vou espiar um pouco como vai a febre.

Jimmy pôs-se a refletir, alisando o queixo, e, por fim, exclamou:

- Sim senhor. É de espantar. Mas eu, que será de mim em tudo isto, com meus projetos por água abaixo. Acho melhor partir com você.

- Está falando sério? Precisa ficar pelo menos dois dias deitado.

- Está bem, mas irei encontrá-lo quando estiver mais firme. Não pense que vai se desembaraçar de mim assim sem mais nem menos.

- É inútil vir, não preciso absolutamente de você.

- Está bem, está bem. Irei somente para caceteá-lo um pouco.

E COm a mão válida apanhou a tabaqueira sob o travesseiro.

 

Ao cair da tarde, Harvey partiu a pé para Hermosa, aldeia próxima a Laguna. O caminho era longo e tortuoso. Desde a saída da cidade, subia em curvas vertiginosas, forçando o corpo de Harvey a um exercício violento. Mas resoluto, numa determinação quase feroz, o exercício parecia fazer-lhe bem. E, com efeito, durante a ascensão, sentia-se pouco a pouco mais tranquilo. Ia direito para o poente, ponto negro no rio de luz que se irradiava sobre os flancos vulcânicos do Telde. Acima da boca da cratera, uma nuvenzinha branca flutuava, brilhante, como um penacho de vapor. As bananeiras deixavam cair as pesadas folhas carnudas dilaceradas pelo vento, e cujo verde sombrio destacava-se na atmosfera límpida. Cisternas cheias de água salobra, amarela e preciosa como o ouro, brilhavam sob a copa das árvores das plantações. Três cabras bebiam numa daquelas bacias circulares. Harvey subia sempre. Alcançou um bosque de eucaliptus, altos como cedros, espalhando em torno um forte perfume. Depois, a estrada destacou-se, as sombras se espaçaram, e todo o panorama da baía se ofereceu aos olhos do viajante. A esta altura, os barcos pareciam brinquedos no Oceano, e a cidade, perdendo o relevo, ostentava-se na praia com seus miradouros em miniatura, seus balcões que pareciam boquinhas abertas para respirar, a massa compacta dos telhados cortada pelo brilho prateado do rio, a Barranca Almeida. Depois, o ângulo repentino de um trecho do caminho apagou a visão, substituindo-a por um muro de cumes basálticos, de onde enormes rochedos se levantavam no meio de escórias e de montões de lava.

Harvey caminhava havia uma hora, quando, ao sair de uma aldeia, avistou uma moça com uma bilha à cabeça. Apressou o passo e aproximou-se:

- Senhorita - disse, no seu mau espanhol, - estarei na estrada de Hermosa, a aldeia antes de Laguna?

Sem parar, sem mexer com a cabeça, ergueu-lhe os olhos negros e brilhantes. Teria uns quinze anos. Bem plantada, os quadris ondulantes, vestida com um colete vermelho, rasgado, segurava nos dedos uma flor amarela.

-- San Cristóbal de la Laguna?

- Sin. Estarei no caminho certo?

- O caminho é a estrada real.

- É a estrada de Laguna?

- Carretera real. A velha estrada. É certamente uma boa estrada.

A pergunta parecia diverti-la, seu sorriso mostrou uma fila de dentes brancos; se não tivesse receio de entornar a bilha, provavelmente teria rido.

- Ai de mim! Como me sinto fatigada de ir buscar sempre água!

Depois pareceu esquecer Leith. Os dois caminhavam em silêncio até a curva seguinte. A camponesa esperou que tivessem alcançado um grupo de arbustos, depois indolentemente estendeu a mão que segurava a flor brilhante.

Ele ergueu a cabeça. Ali, bem perto, com muros coroados de musgos, levantavam-se as sombrias torres de uma antiga cidadela.

- A Laguna, San Cristóbal de la Laguna - e as palavras tomavam uma entonação musical em sua boca.

- Há doentes na cidade?

- Sim, senhor.

- Muitos doentes?

- Sim, senhor.

Meteu a haste da flor entre os lábios e mastigou-a com indiferença.

- vou à Hermosa, à casa de los Cisnes. Pode-me indicar a direção?

Ainda uma vez ela o encarou de lado, com seus olhos brilhantes; tomou a flor entre dois dedos como um cigarro.

- É lá que há mais doentes. Em Laguna está tudo acabado; em Hermosa não.

- É lá que quero ir.

- Não, ainda não se acabou, - continuou a moça, e, gravemente, acrescentou: - Jesus-Maria, é uma maldição!

Continuaram a andar, e de repente ela parou, a flor amarela apontada para o lado.

- Veja, senhor, é por ali, se é absolutamente necessário que vá.

O caminho que ela indicava perdia-se num bosque de pinheiros. Ele agradeceu com poucas palavras e enveredou pelo caminho estreito. Quando chegou debaixo das árvores, sentiu-se observado e voltou-se. A moça não se mexeu e seguia-o com os olhos. Depois, endireitou a bilha, persignou-se rapidamente e desapareceu apressando o passo.

O bosque era espesso e sombrio, o caminho estreito riscado .de sulcos profundos, o chão seco, e os ramos baixos, juntinhos, pareciam trocar cochichos e conspirar. Uma pedra em que tropeçara rolou num barranco, com estrondo. Então pareceu-lhe que as árvores se comprimiam ainda mais.

Quase sinistra, a calma encheu Harvey de melancolia. Errava na sombra cada vez mais densa, como se estivesse prestes a aniquilar-se na escuridão. Mas, a uns cem passos à frente, as árvores espaçaram-se. Atravessou uma ponte rústica e achou-se diante de uma casa cercada por um jardim. Era uma propriedade pouco extensa, mas ele pensou que era a que procurava. Um vale fértil atravessado por um riacho exíguo, e onde a vegetação luxuriante afogava tudo num impulso prolífico e desordenado.

Harvey lançou um olhar através das majestosas grades de ferro forjado, e susteve a respiração diante da beleza do espetáculo. O jardim ao abandono em toda sua beleza selvagem e primitiva era todo flores. Em toda parte um impulso de floração espontânea, vibrante de cores violentas na luz crepuscular. O vermelho das azáleas era quase doloroso em sua violência, iris pálidos flutuavam como uma nuvem opalina, uma campânula purpúrea enrolava as trompas em torno de moitas de romãzeiras rutilantes, e os pelargôneos levantavam no meio deste intrincamento suas bolas amarelas ou carmesins. Acima de tudo, em ondas perfumadas, brancas e delicadas como espuma, ondulavam as frésias.

com um sobressalto, Harvey dominou-se e virou o cadeado de ferro da porta, sacudiu-o, deu com os ombros nas barras de metal, mas em vão. A latada que cercava a propriedade apresentava numerosas brechas, de acordo com a desordem geral. Quando se afastava, ergueu os olhos, e avistou o emblema forjado na grade maciça. Era um cisne em pleno voo. Um cisne!

Fascinado, não podia desviar o olhar do pássaro alegórico. Fazia no seu espírito uma ligação involuntária. Um cisne! Mas| sim, naturalmente, "Casa de los Cisnes", como é que não pensara nisto mais cedo? "A Casa dos Cisnes". Ficou com a cabeça voltada para trás durante muito tempo, cheio de espanto e de emoção. Depois deu um suspiro e desviou-se. Deveria ser uma simples coincidência. Afastando, repelindo os pensamentos, deu alguns passos e entrou no jardim, escorregando através de uma das brechas da sebe. De cada lado da alameda, invadida pelas ervas daninhas, havia uma pequena cabana de caniços. Parou diante de uma das portas e bateu com insistência. Só o eco respondeu. Tudo estava fechado, janelas, venezianas; a casa estava deserta, estranhamente desolada.

Voltou-se para a outra cabana. Ali a porta estava completamente aberta, indicando uma única sala. Não havia ninguém. E, sobre uma coberta que formava um retângulo ocre no chão de terra batida, havia um cadáver, de olhos fixos, a boca aberta, como se estivesse dominado pelo espanto... O clarão trémulo de duas velas postas aos pés do morto iluminava fracamente o lúgubre espetáculo, e o perfume das frésias flutuava, tenaz, enchendo o ar como um bálsamo.

Nada mais havia a fazer. Harvey deixou a sala, fechando a porta atrás de si. Tornou a subir a alameda que se encurvava graciosamente para a casa que se adivinhava, branca, contra a verdura sombria do declive. Uma construção baixa, mas de aspecto nobre, feita em pedras de um branco meio creme, e caindo em ruínas. O pórtico estava todo inutilizado, o balcão arrancado, as venezianas pendiam lamentavelmente com os trincos enferrujados, e as paredes estavam manchadas e úmidas, com placas de líquen. Duas grandes urnas, que outrora deveriam emoldurar a porta, jaziam sujas e inúteis. Harvey subiu a escadaria de degraus vacilantes, onde um musgo vermelho despontava entre as fendas cor de sangue, e tocou a campainha. Passaram-se minutos lentos, intermináveis. Reiterou o apelo. Desta vez abriram. Era uma criada de idade indefinível, que trazia um vestido de algodão salpicado de ervilhas, um xale amarelo cobrindo os negros cabelos bem penteados. Encarou Harvey com tanta surpresa como se ele fosse um fantasma.

- Quero ver sua patroa.

A fisionomia da mulher assumiu uma expressão áspera e aterrorizada.

- É tarde, senhor, já vem a noite.

- O dia ainda não acabou.

- Por Deus, senhor, veja: o sol já está atrás do pico. Amanhã seria preferível.

Ele sacudiu a cabeça:

- É preciso que eu a veja.

- Mas, senhor, a marquesa é muito velha e tem muitos receios. Não recebe ninguém.

Ele avançou dois passos, obrigando-a a recuar no vestíbulo:

- Diga-lhe que estou aqui.

Ela continuava no mesmo lugar, encarando-o, embaraçada, torcendo o avental com as mãos. Enfim, decidiu-se a subir a escadaria, em passo lento.

Harvey olhava em torno. O vestíbulo era espaçoso, o teto pesado de arabescos ressoava como uma nave de igreja. Uma luz fraca penetrava por uma estreita janela ornada de um vitral que trazia o emblema do cisne. Nas paredes caiadas pendiam panóplias de sabres, presas lá desde muitos anos. Sob as cimitarras, uma armadura conservava o aspecto feroz e agressivo de um cavaleiro concentrado: a lança em riste, a viseira semi-aberta, o braço teso e os joelhos curvos. A aparição impressionou-o desagradavelmente. O ambiente daquela casa o enchia de uma apreensão estranha, que lhe paralisava os movimentos. Sentia-se fraco, vazio de ideias.

"Estou cansado, pensou. Caminhei durante muito tempo".

Um ruído de passos na escada de madeira fê-lo levantar a cabeça. Uma velhinha descia, avançando lentamente, apertando com uma das mãos o pesado corrimão polido, com o passo hesitante. Não obstante, conservava um porte cheio de nobreza e dignidade. Seu traje era negro, como também a fita que cercava os cabelos brancos, frisados à Pompadour. O vestido, de corte antigo, tinha uma cauda, mangas em fofos . e uma alta gola franzida. Como se aproximasse, Harvey pôde notar os sinais evidentes de uma idade adiantada: a pele empergaminhada, os tendões do pescoço salientes. Um narizinho aquilino dominava uma fina boca amuada. Os olhos sombrios já estavam sem brilho. Nos seus punhos magros tiniam braceletes, e anéis antigos cintilavam-lhe nos dedos trémulos.

HHarvey cumprimentou e apresentou-se: - Sou um médico inglês. Meu nome é Dr. Leith. Sei que há uma epidemia de febre na sua propriedade e na aldeia vizinha. Uma febre perigosa. Vim oferecer-lhe meu auxílio.

Como uma estátua negra a outra continuava diante dele, dura na sua imobilidade senil. Seu olhar opaco, mas vivo penetrava-o.

- Ninguém vem aqui nunca, - retrucou, enfim, em tom encantado. - Ninguém vem ver a marquesa de Luego. Ela é muito velha. O dia inteiro conserva-se sentada no seu quarto e só desce quando lhe pedem. Diga-me, senhor: que fazer? Mas as orações possuem uma grande virtude, não é exato? É o que gostava de dizer Dom Balthasar. Ele morreu, mas Isabela de Luego não morreu. Fica sentada no seu quarto até que a chamem. Certamente, senhor, sua visita é um favor que muito lhe devo agradecer.

Havia qualquer coisa de patético na velha que o comoveu profundamente.

- Estava em Santa Cruz quando soube que havia Uma ePídemia na montanha. Nada tinha de melhor a fazer, senão vir.

- É uma grande generosidade, senhor, e aumenta mais o seu mérito negando-o. Trataram do seu cavalo? os que desapareceram são tão numerosos! Mas precisa jantar. Escute os sábios conselhos dos velhos: é preciso jantar.

Deixe-me primeiro ver os doentes. Onde estão?

Na aldeia. Há muitos, e muitos morreram. Aqui

em casa todos morreram ou fugiram. Só restam Manuela e eu. O último fiel, Pablo, morreu ao meio-dia. Pablo, o guarda. . . Mas o senhor verá mais tarde.

Deu uma risadinha que provocava um arrepio, e, voltando-se para a criada, exclamou:

- Manuela, o cavalheiro jantará esta noite com a marquesa de Luego.

A fisionomia da mulher fez-se mais zangada ainda. Teve um gesto de defesa:

- Mas, marquesa, sua ceia já está servida.

A velha dama não tomou conhecimento do tímido protesto, e repetiu a Harvey, com alegria quase infantil:

- Veja, senhor, a ceia já está servida. O senhor era esperado, é claro. E a marquesa? Vestiu-se exatamente para isto. Que sorte! Venha, senhor.

Ela o precedeu numa longa sala. Das paredes sombrias, guarnecidas de madeira das ilhas, retratos empalidecidos pendiam em molduras desbotadas. Um dos lados era ocupado por um enorme aparador de ébano. No teto achava-se pintado um grande cisne, e uma ceia composta de frutas, leite, queijo e carne fria cobria a mesa de nogueira.

com má vontade, Manuela foi buscar um segundo talher, puxou uma pesada cadeira de encosto alto, e retirou-se, lançando a Harvey um olhar desconfiado.

A marquesa sentou-se com afetação, servindo-se distraidamente de um copo de leite que esqueceu em seguida à sua frente. Depois tomou um figo, cortando-o cuidadosamente em pedacinhos verdes e vermelhos.

- Sirva-se - e levantou delicadamente a cabeça, como um pássaro. - Quem se alimenta razoavelmente já jejua bastante. Sirva-se deste queijo. É bom. É feito de cardo - a flor da alcachofra selvagem. As florzinhas azuis que eu colhia em menina. Há muito tempo. . .

Harvey serviu-se de queijo e dum pedaço de pão meio duro; para sacudir a impressão de irreal que sentia, quis informar-se sobre a epidemia.

- Onde começou o mal?

- O mal, senhor? Que é a vida, senão um mal contínuo? "Fora do lodo, no pântano", diz o provérbio. Foi um homem, um marinheiro, José, que voltou para a família. Vinha de um navio. Morreu, depois todos os seus também. Como no tempo do rei Fernando, a peste de Madorra consumia Laguna. Nas grutas da montanha encontram-se ainda ossadas que datam dessa época: são" os restos dos Guanches que se esconderam lá para morrer. Isto acontecia outrora.

Uma espécie de terror invadiu Harvey:

- Sua família vive aqui há muito tempo?

Os olhos da marquesa pareceram contemplar, muito além do seu hóspede, um passado longínquo.

- Não compreendo, senhor. Que quer dizer muito tempo? Muito mais que meses e que anos. Sim, muito mais ainda.

Parou, pensativa, e, levantando a mão mostrou, pela janela, o pátio onde descia a sombra da noite.

Ali, uma árvore estranha, de tronco liso, torcia os ramos como um animal em agonia.

- Veja, senhor. É a árvore dragão. Parece moça ainda, mas tem 400 anos de existência. Não, não estou caçoando: quatro séculos se passaram desde que Dom Cortez Alonso de Luego, o Conquistador e Adelantado, veio aqui, nesta casa. E, com seus castelhanos, fez uma guerra encarniçada aos Guanches. Na Matança, na Torre do Refúgio. , Enfim, foi ferido na Praça do Massacre. Desde então, os de Luego sempre viveram aqui. Sempre, sempre.

Suspirou e deixou cair a mãozinha nos joelhos.

- Tudo agora mudou. Meu irmão - que Deus lhe guarde a alma - arruinou-se, há alguns anos. Plantara a propriedade de cactus para o cultivo da cochonilha. Pois bem, inventaram uma outra tintura, o senhor sabe, uma tintura química. A cochonilha não vale mais nada. Meu irmão perdeu toda a fortuna, depois morreu, há dez anos. Desde então, as desgraças sucedem-se. "O mal vem em ondas e parte gota a gota." As ervas daninhas invadem tudo, apesar da falta dágua, e ninguém é capaz de dirigir a propriedade. Havia Don Balthazar, mas também morreu. Meu Deus, isto é bem triste para Dona Isabela de Luego, que já é tão velha, mas que ainda tem amor à vida. Quanto mais se vive, mais se gosta. É um provérbio da Galícia, e aqui como lá, o sol é bom para a velha carcaça. Tome um pouco deste leite, peço-lhe. É doce como mel.

Ele obedeceu e serviu-se do leite de cabra, que espumava no copo afunilado. Compreendia agora. Aquela mulher era a única sobrevivente de uma idade em que predominava a nobreza de casta. Morto o irmão, arruinado pela descoberta da anilina, ficava ela agora, destroço infeliz de uma raça gloriosa, fraca e solitária, vítima provavelmente de colonos preguiçosos, de um administrador desonesto, abatida além do mais pela horrível epidemia.

- Ah! senhor. Que pena não ter conhecido antes a Casa de los Cisnes, quando não era uma triste ruína, quando a fonte murmurava no pátio, quando numerosos colonos, bem disciplinados, cantavam à sombra das árvores!

Excitada por tais lembranças, pôs-se em pé, os olhos fixos na alta janela. Era quase noite, e sua mão branca, levantada, tomava um aspecto fantástico.

- Nunca ressoaram mais belas canções nas toucas de bananeiras. Ouço-as ainda, quando o dia acaba.

com o rosto aceso pelas reminiscências, os lábios ardentes, começou a cantar, numa voz hesitante:

"Ao acabar o trabalho Na hora do sol se por Nos reunimos na alameda. Brilham os vagalumes como estrelas A lua está no céu."

Houve um silêncio. A marquesa continuava em pé, com os olhos fixos. Um toque avermelhado subiu-lhe às faces enrugadas. Distraidamente, serviu-se de uns pedaços de frutas, bebeu uns goles de leite. Enfim, baixou a cabeça e encontrou os olhos de Harvey. Lentamente saiu do êxtase, voltou à realidade, acendeu dois candelabros na mesa, e sentando-se de novo tão tranquilamente como se levantara, cruzou as mãos, suspirando profundamente.

Harvey, embaraçado, tirava migalhas do seu pão, meio sem jeito.

- Estou desolado por saber que a senhora passou por tantas desgraças. Agora deve me desculpar, mas preciso partir.

- Sim, é preciso partir.

Depois examinou-o ainda, como animada de uma ideia nova:

- O senhor é inglês, e chega ao cair da tarde. Meu Deus, como é estranho! Tantos anos se passaram desde que um inglês veio à Casa de los Cisnes! E não era o senhor, tenho certeza. .

Um sorriso singular iluminou-lhe o rosto.

- É uma história velha, velhíssima. Remonta ao dia em que Nelson veio bombardear Santa Cruz. Foi vencido, como sabe. A guarnição espanhola era valente. Depois da batalha, um inglês chegou aqui ao cair da tarde. Não, não era o senhor.

O sorriso transformou-se numa gargalhada infantil è misteriosa.

- Tudo está escrito num livro que li muitas vezes na biblioteca. É tão estranho e tão triste! Ele veio com sua bem-amada procurar um refúgio. Ela era a irmã de um capitão inglês. Ele a deixou aqui. Depois voltou. Pobre de mim! A vida é cruel. Ela não estava mais aqui, partira, partira...

Observava Harvey ao mesmo tempo que falava, e sua voz baixava até um fraco murmúrio, quase um gemido. Fez-se novo silêncio. A chama das velas punha sombras nos móveis, nos painéis sombrios da parede, e os pensamentos de Harvey tremiam com as sombras. Naquela casa em que tudo. era reflexo do passado, parecia-lhe que algo o retinha, enfeitiçando-o e sufocando-o de emoção. A Casa dos Cisnes!. .. Seu espírito perdeu-se um instante nas voltas de um misterioso labirinto. Em vão procurava afastar as ideias que lhe traziam perturbações e até mesmo sofrimento. Sentia-se despersonalizado, o espírito confundindo-se às sombras que flutuavam na vasta sala.

Com esforço, sacudiu a impressão singular, dominou-se, e afastando a cadeira, levantou-se:

- Desculpe-me, devo ir à aldeia.

- Sim, sim, vá, já que é preciso. Quem sou eu para contrariar o destino? Não é longe. Manuela vai acompanhá-lo.

Levantou-se por sua vez, e o acompanhou até a entrada.

- Manuela - chamou, batendo palmas. - Manuela! Manuela!

Esperaram em silêncio que a criada surgisse da sombra.

- Tome a lanterna, Manuela, e acompanhe o senhor à aldeia.

A camponesa ergueu a cabeça com uma expressão de terror e fez um violento gesto de negação:

- Não! Não! Já sofri muito. O mal está no ar da noite.

- Basta-me indicar o caminho.

- Sim, vou lhe indicar. com a lua cheia não precisará nem de mim, nem de lanterna.

A marqueza fez um gesto, indicando nada poder fazer.

- Pobre de mim! Manuela não quer, não quer! Quantas vezes devo ouvir tais palavras? Mas só me resta ela. Escute-a, senhor, ela lhe indicará o caminho. Peço que volte depois, queira aceitar a magra hospitalidade desta casa. Também o senhor conheceu a desgraça: lê-se na sua figura. Não se pode ocultar o amor nem a dor. Mas Deus escreve direito por linhas tortas. Quem sabe se sua vinda não é uma felicidade, para o senhor talvez, e para mim! E agora, adeus.

Voltou-se com ingénua dignidade e subiu lentamente a escada. O ruído dos saltos dos seus sapatos ressoou nos degraus de madeira e perdeu-se nas trevas do patamar.

Manuela esperava Harvey à porta, e em tom amuado mostrou-lhe a direção da aldeia. Ele partiu sem responder. A noite resplandecia de claridade, o jardim estava todo iluminado pela lua cheia. O perfume das frésias subia em ondas sucessivas, e tudo estava imóvel, mesmo os vagalumes agarrados às folhas das romãzeiras, e que brilhavam como olhinhos sem pupilas. O caminho subia para este, verdadeiro riacho de claridade. Harvey varou um pequeno bosque de laranjeiras carregadas de frutos, um grupo de velhas bananeiras, invadidas pelas urtigas, uma cocheira vazia, uma forja sem telhado, uma charrete inclinada sobre um eixo sem rodas. Por toda parte sentia-se a vida, mas só se viam ruinas.

Caminhara cerca de cinco minutos, quando viu, um pouco mais alto, um grupo de luzes. Achou-se logo na rua da aldeia.

A miséria que se adivinhava envolvia-a como um sudário. A praça diante da igreja estava deserta, frequentada somente por alguns cães famintos. Súbito, as portas do templo abriram-se, e um lento cortejo começou a andar. Meninos de coro carregando turíbulos, sacristães, o padre, e enfim pessoas de? luto segurando nos cordões do pano mortuário. Harvey imobilizou-se para deixar passar o enterro, e descobriu-se diante do caixãozinho. Ninguém o notou. "É uma criança", pensou. Depois, como a procissão entrava no cemitério, notou os montículos de terra revolvidas de fresco. Mais distante, um grupo de soldados comprimia-se em torno de um caminhão, e a estrada estava juncada de caixões. Duas religiosas vinham rapidamente para os militares.

"Enfim, pensou Harvey, enfim vou poder agir".

Não esperou mais. A casa mais próxima abrira as portas de par em par. Leith penetrou na sala iluminada. Como entrasse, uma mulher inclinada sobre um leito ergueu a cabeça e voltou-se para ele. Teve um sobressalto: era Susan Tranter.

 

Dois dias antes, Mary Fielding em pé no balcão do Hotel San Jorge, avistava o "Auréola" sair da baía de Orotava. Sem se incomodar com o vento e com a chuva que lhe fustigavam o rosto, vira o navio mergulhar no nevoeiro. Os mastros foram a última coisa a desaparecer, mas por sua vez sumiram, e Mary ficou sozinha, entregue a profunda tristeza. Durante muito tempo se conservou imóvel, o ronco das máquinas a ressoar-lhe ainda aos ouvidos, e decidiu-se afinal a voltar para o quarto. Era uma peça encantadora, espaçosa, mobilada com gosto. O leito ostentava um cortinado sem mácula. Sentou-se numa cadeira de vime perto das bagagens cuidadosamente empilhadas. Tinha o coração oprimido. Seria preciso chamar a quarteira, esvaziar as malas, ir ver Elissa, abrir a pilha de cartas ajustadas em cima da mesa. Que teria ela para ficar assim imóvel, fraca, as mãos em abandono? Não poderia sacudir esse torpor? Alguma coisa lhe fazia mal, sim, uma dor picante no lado.

Mordeu os lábios.

"Não seja tola, pensou. Não seja ridícula e estúpida".

Levantou-se de um salto e tocou a campainha. Apresentou-se uma mulatinha, trazendo mangas e golas brancas, que lhe punham em destaque os olhos brilhantes. A um sinal de Mary começou a se ocupar com as bagagens, puxando as correias com os dedos finos, cor de café. Lady Fielding observou-a em silêncio, levantou-se, foi à janela, e, juntando as mãos, contemplou a chuva que caía sem parar.

- O mau tempo durará muito ainda?

A mulatinha ergueu a cabeça, mostrando uma fila de dentes branquíssimos:

- Se gosta, madame, o bom tempo voltará logo. Sempre o bom tempo, Rosita tem certeza.

Sua voz era esquisita, meio velada, com um acento cómico que certamente divertiria Mary em outra época. Mas hoje ela não tinha força nem para sorrir.

- Fará bom tempo em breve?

- Sim, madame, já que gosta. Tempo ótimo amanhã. De madrugada.

Rosita repetiu a frase favorita que rolava nos seus lábios como uma coisa saborosa.

Amanhã! Esta palavra surpreendeu Mary e fez-lhe medo. O dia seguinte, outro depois. Tantos dias em perspectiva, estendendo-se vazios, intermináveis, diante dela. Seus olhos se encheram de lágrimas; apoiou a fronte contra a vidraça fria e suspirou como se o coração se lhe partisse. Mas o tempo passava implacável. As valises estavam

vazias, os vestidos arrumados; a quarteira deixava o quarto com um sorriso e uma reverência; o gongo ressoava, chamando

para o almoço.

Mary desceu lentamente, juntando-se a Dibs e Elissa numa mesinha. Todos os dois estavam de muito bom humor. Elissa encantada por ver gente e Dibs aliviado à vista do menu. Seus risos feriram Mary como uma bofetada.

Tudo era perfeito. O serviço rápido e discreto, a cozinha excelente, a sala de jantar arejada e agradável. Entretanto Mary apenas tocou no guisado ao vinho branco, que deixava Dibs em êxtase. Quase não falava, esforçando-se por dissimular o mal-estar, a dor penosa que sentia no lado.

Após o almoço foram para o hall, e Elissa, depois de olhar para o céu que continuava a despejar chuvaradas, propôs uma partida de bridge.

Um bridge! Mary abriu a boca para recusar, mas mudou de ideia. Apesar do seu horror ao brídge, devia se esforçar em ser amável. Aquiesceu com um sinal de cabeça. O quarto parceiro era um homenzinho correto e velhusco, com um bigode frisado, jaqueta, calças de cavaleiro e um ar militar. Habilmente pescara o convite, é claro que com o maior decoro, pois era de ótima família, o que logo transpareceu na sua conversa e na sua atitude. Já conhecia o nome dos parceiros e seus antecedentes. (Tinha o hábito de estudar todas as manhãs, com o maior cuidado, o livro de registros do hotel). Rapidamente descobriu com os outros relações comuns na aristocracia. Passava o inverno nas Canárias, por causa de sua "mulherzinha"; desenhava, organizava excursões, blasfemava um pouco quando falava, e agradecia a Deus por ser um gentleman e um inglês. Seu nome, Forbes-Smith, escrevia-se, como de justiça, com um traço de união.

O jogo arrastava-se, interminável: misturar, cortar, dar, anunciar, depois o trabalho minucioso das combinações. Fechado o ciclo, começava-se de novo. A Mary tudo isto parecia vão e sem interesse. Por que estava ali, com cartas frias nas mãos, esforçando-se por falar e sorrir? Suas ideias se embaralhavam todas. Os elogios de Forbes-Smith entediavam-na até morrer. Já tardava a ficar sozinha, em colóquio com seus pensamentos.

Já passava de cinco horas quando o jogo terminou. Em seguida foi o ajuste de contas, uma ridícula disputa entre Elissa e Dibs; a insistência de Forbes-Smith em apresentá-la a "pessoas encantadoras". Enfim, quase soava a hora do jantar quando lhe foi possivel escapar. No quarto, banhou a testa quente e dolorida, tomou o primeiro vestido que encontrou e desceu para um simulacro de jantar. Desta vez, terminada a refeição, alegou fadiga e ficou livre para se refugiar na solidão de seu apartamento. Fechou a porta, apoiou-se nela, cansada, e em seguida foi abrir a janela.

 chuva cessara, e atrás de uma cortina de nuvens, a lua difundia doce claridade. A noite estava enevoada, mas luminosa. As cortinas de filó, leves, balançavam-se no ar refrescado. O coaxar das rãs acompanhava o barulho ritmado das

ondas na praia. Sob o balcão, um canteiro de lírios embalsamava o ar. Seu perfume, tão parecido com o das frésias, lançou Mary em profunda perturbação.

Tirou a roupa, lentamente, deixando-a cair no soalho. O ar úmido veio refrescar-lhe o corpo ardente. Agora, estendida na cama, os olhos completamente abertos na escuridão, perdia pouco a pouco a noção do tempo.

As rãs continuavam a coaxar, e as ondas quebravam-se na praia; mas os ruídos do hotel vinham perturbar seu devaneio, expulsando o sono. Além do mais, abafava debaixo do cortinado.

Estaria doente, para sentir-se tão inquieta, tão deprimida? Tal pensamento não aflorou em seu espírito. Entretanto estava febril, e sem saber as toxinas microbianas começavam a invadir-lhe o sangue.

Ignorava a ameaça, e estava irritada por não poder dormir. Três lentas horas se passaram antes que lhe fosse possível fechar os olhos. Enfim, mergulhou no esquecimento, e então tornou a encontrar seu sonho.

Nunca ele a dominara com tal força. Como sempre, começou no pátio, perto da fonte vetusta com a concha ressecada, onde um cisne de bronze fazia o ridículo simulacro de nadar. Lagartixas aquentavam-se na pedra e olhavam-na com benevolência. As calçadas tornavam-se suaves sob seus pássos, a árvore dragão torcia os braços atormentados, e o perfume esquisito das frésias embalsamava o ambiente. Correu ao jardim, e neste momento dois grandes cisnes levantaram-se acima das romãzeiras e voaram para a montanha, com um magnífico ruído de asas. Mary bateu palmas e correu para o bosquezinho de laranjeiras. Ali, imobilizou-se bruscamente, pregada ao chão por uma emoção violenta, transfigurada por alegre surpresa. Aquele que ela sempre esperara, sempre procurara, estava ali, naquele bosquezinho, que era seu refúgio favorito. Mas hoje não estava mais com a fisionomia imprecisa, mergulhada no vago: percebia-o distintamente. Oh! era, pois, verdade: não se enganara? Desta vez ele não poderia negá-la, era impossível. O coração de Mary batia violentamente, uma alegria sobre-humana invadia-a. Estendeu os braços, correu para ele, rindo e chorando ao mesmo tempo, num verdadeiro êxtase. Enfim, enfim, sabia onde a conduzia seu sonho; sabia por que tantas vezes viera a este jardim, compreendia agora o que sempre esperara. Vivera para este instante de felicidade. E agora, no parque perfumado, não estava mais abandonada, só, com um fantasma criado pela imaginação pueril. O sofrimento do mistério acabara, acabara o receio da ilusão. Ele estava ali, enfim; toda sua vida desembocava neste encontro maravilhoso.

Mas era preciso fazer sorrir aquela fisionomia que excitava a piedade; era preciso que ele partilhasse da sua alegria. Era preciso que ela fizesse a confissão deliciosa do seu amor, que fizesse brilhar aqueles olhos tristes. Murmurou seu nome, mas ele não ouviu. Ela o repetiu mais alto, quis caminhar para ele, e subitamente o sorriso morreu-lhe nos lábios, a alegria voou de seu coração. Não podia se mexer, os membros eram de chumbo, os pés estavam colados no chão, o corpo preso a liames invisíveis. Dividida entre a esperança e o terror, lutava, tentava desvencilhar-se, dilacerada por terrível angústia; e com um soluço, acordou.

Os olhos ainda empanados pela emoção e pelo desespero encontraram o esplendor de uma manhã nova. Não estava mais no jardim encantado, mas na realidade daquele quarto de hotel. Respirando pesadamente, continuava rígida, o espírito ainda sob o império do pesadelo que pusera termo ao seu sonho. Depois teve calafrios. Sentira-o tão perto, o jardim encantado, tão próximo como as ondas que se quebravam debaixo de suas janelas. E entretanto tão longe! Suspirou dolorosamente. O amargor da decepção sufocava-a.

Rosita, entrando com uma bandeja, encontrou-a com o rosto apoiado no braço e puxou vivamente as cortinas, dizendo :

- Veja, madame. Ótimo tempo hoje, como Rosita tinha dito. Muito sol para madame.

Mary olhava-a sem responder sempre mergulhada em seus pensamentos. Tão perto, tão perto como as ondas que se quebravam na praia, ali, debaixo de suas janelas...

- Rosita, - disse afinal, impelida por uma secreta esperança. - Não conhece, perto daqui, uma propriedade velha, muito velha, onde os cisnes às vezes vêm ao cair da tarde?

Rosita olhou-a, surpresa, com os olhos estatelados. Depois teve um riso diferente e admirado, como se se tratasse de uma brincadeira particularmente saborosa.

- Não, madame, por favor. Rosita, não conhece, Rosita nunca viu isto. Rosita muitas vezes tem ideias bem esquisitas, mas nunca ouviu falar disto.

- Tem certeza, absoluta certeza?

- Sim, madame, absoluta; - riu-se. - Muitos jardins, oH! muitos! Mas não assim. Rosita está aqui há vinte anos, mas nunca viu nem um cisne.

Mary não respondeu. Seu espírito já estava quase ausente, errava ainda no vago, perseguido por um misterioso pressentimento.

Levantou-se, vestiu um peignoir. Como dissera Rosita, fazia um tempo magnífico, mas já bem quente, ou pelo menos Mary se sentia ainda ardendo, a cabeça pesada, com uma sensação de vertigem.

Como seus olhos procurassem o oceano, pensou quanto um banho lhe traria calma e frescura. Sim, iria se banhar. Quando pegou no maillot, caíram grãos de areia da Praia de Las Canteras - pungente evocação.

Mas não se deteve muito. Uma dolorosa agitação atravessou rapidamente a estranha perplexidade em que estava mergulhada. Apanhou toalhas, desceu os largos degraus de pedra, e, passando diante do canteiro de lírios, alcançou a praia.

Estava deserta, o mar calmo quebrava-se em ondas minúsculas. Mary nadava com uma sensação de leveza, numa água translúcida. Todo o seu corpo parecia fluido e irreal. Nem mesmo percebeu que o braço direito estava teso, e que uma pequena placa vermelha marcava-lhe o punho. Um mosquito picara-a ali três dias antes, quando desembarcava em Las Palmas. "Não se corre perigo, dissera nesse dia; as coisas acontecem ou não acontecem, eis tudo". E, mais ainda: "Não é a sorte, mas o destino, que regula a nossa existência". Hoje, vítima de sua profecia, sofria, suportava o peso do destino: estava com febre amarela.

A estranha inconsistência de seu corpo, a sensação de vertigem na cabeça, eram apenas os primeiros sintomas do mal.

Saiu da água, enrolou-se no roupão e voltou através dos jardins do hotel. Durante um momento errou distraidamente com os ouvidos sempre zunindo, depois, numa curva da alameda, avistou um velho jardineiro que, de joelhos, arrancava as ervas de um canteiro de flores cor de púrpura. Um grande chapéu de palha lhe cobria a cabeça, e, debaixo das largas abas, viam-se suas orelhas compridas e finas; enfeitadas com argolinhas de ouro. O olhar de Mary parou na velha figura enrugada e de pescoço queimado pelo sol. O colono continuava tranquilamente seu trabalho, com movimentos calmos. No fim de um minuto virou um pouco a cabeça, e, com um tímido sorriso, esboçou um cumprimento. Ela sentia-se incapaz de sorrir em retribuição, mas respondeu reprimindo um desejo tenaz de interrogá-lo. Zombava de si própria: "Sempre bizarra, a Maryzinha, sempre extravagante em suas ideias. . . meio louca em suma".

Mas, já que era uma brincadeira, uma brincadeira ridícula, evidentemente, porém mais forte que sua vontade - era preciso fazer ao velhote a pergunta que lhe queimava os lábios. Riria, provavelmente, como Rosita rira havia pouco, mas tanto pior!. .. Entretanto, ele não se riu, nem zombou. Levantou-se e observou-a gravemente, guardando o silêncio tanto tempo que ela repetiu a frase.

- Sim, senhora, - respondeu com hesitação. - compreendo. Creio que conheço esta propriedade.

Um tremor nervoso assaltou Mary. Esperava, os olhos fixos no velho.

- Há muito tempo, - continuou, - trabalhei nas ilhas para uma família de Luego. Nessa época, a estância era muito vasta.

Virava o chapéu nas mãos, procurando as palavras com embaraço.

- E as armas dessa família são precisamente um cisne, sim, senhora, um cisne em pleno voo.

Tomada de vertigem, Mary tapou os olhos com a mão. Sem dúvida era o sol que a cegava.

- Vê-se o cisne nas vastas grades em ferro forjado, perto da casinha amarela do guarda?

- Sim, senhora - confirmou o velho, depois de refletir um pouco. Nas grades e também na fonte, no pátio.. .

Mary o interrompeu com um gritinho.

- Não há mais água na fonte; lagartixas correm à beira da concha, não é? Atrás do pórtico há um canteiro de f résias, e, no alto da alameda, um bosque de laranjeiras. Centenas e centenas?

O velho sorriu, sempre grave, mas franzindo com graça os olhos:

- Sim, senhora, é exatamente isto. Vejo que conhece a Casa de los Cisnes; já esteve lá?

A Casa de los Cisnes! Repetiu o nome como para fazê-lo penetrar até o mais fundo de seu ser, como se receasse esquecê-lo. Depois murmurou:

- É longe daqui? Ele sacudiu a cabeça:

- Oh! Não, senhora, não é longe; é fácil ir lá. Primeiro até Santa Cruz, pelo barco que parte todos os dias ao meio-dia, depois num carro até Laguna.

As palavras estouravam-lhe na cabeça, com forte ressonância. Uma súbita afeição arrastava-a para o velho colono. Ela própria se ouviu agradecer-lhe com uma voz que não parecia mais sua. Já nadava no irreal, já tinha deixado os canteiros do hotel pelo esplendor do jardim encantado, e se dividia em sentimentos contrários, pois estava ao mesmo tempo calma, excitada, melancólica e aterrorizada. O que a deslumbrava era saber exatamente o que era preciso fazer. Quase inconsciente de seus gestos subiu ao quarto, banhou o rosto congestionado, penteou-se e pôs o vestido que usara em Las Palmas. Quando se examinou ao espelho, notou que os olhos brilhavam com brilho anormal. Apanhou dinheiro, refletiu um instante, escreveu um bilhete rápido para Elissa e deixou a folha bem à vista na mesa. Estava pronta enfim, e sempre como em sonho saiu do quarto na ponta dos pés, ansiosa por não ser vista. Era preciso que não a surpreendessem, que não desconfiassem de sua partida. Ninguém deveria ser avisado. Cheia de energia, desceu as escadas, depois parou um instante antes de transpor o limiar, assaltada ainda por uma intolerável nostalgia. Casa de los Cisnes, - repetiu o nome com um frémito de todo o seu ser. "Parto, pensava, parto enfim". E, erguendo a cabeça, os olhos perdidos na distância, pôs-se a caminho.

 

O orvalho do crepúsculo caía já nas largas folhas dos cactus, quando Harvey Leith deixou a aldeia de Hermosa e retomou o caminho da Casa de los Cisnes. O dia, passado na atmosfera da doença e dos desinfetantes, na luta cansativa contra a ignorância, a incompreensão e a sujeira, tinha sido decepcionante, esfalfante. As tropas ocupavam a aldeia. O comandante espanhol acolhera o médico estrangeiro com uma suspeita insolente. "Não pedimos o senhor". Para rematar a obra, Leith percebera que o período agudo da epidemia passara, que o contágio era menos virulento. Como um imbecil, chegara muito tarde; este pensamento mortificava-o. Apesar de tudo, não se deixara abater; trabalhara o dia inteiro como um negro, expusera-se bastante, e agora, fatigado de corpo e de alma, subia a alameda que atravessava o pátio.

Foi então que, levantando a cabeça, avistou-a, e ficou pregado no lugar como um homem mortalmente ferido. Uma palidez angustiosa espalhou-lhe no rosto; tapou os olhos com a mão.

"É o calor, pensou, o calor que me perturba e me dá alucinações".

Mas, quando baixou a mão "ela" ainda estava ali, e a emoção que sentira era tão violenta, tão esquisita, que só pôde balbuciar:

- Mary!

E, outra vez:

- Mary!

Seus lábios não podiam articular outras palavras. Ela estava diante dele; a luz atenuada que dourava o pátio de um último reflexo, caía no rosto da moça, transfigurava-a com uma beleza sobre-humana, iluminando os olhos profundos que procuravam os seus, o corpo encantador que vinha para ele, esbelto como um arbusto tenro, harmonioso como uma música, e na alma de Harvey qualquer coisa subia alegremente como uma chama.

Agora, ela achava-se bem pertinho dele.

- Por que está aqui? - Harvey não reconheceu a própria voz.

Mary também estava pálida, mas sorria-lhe:

- Sou feliz, tão feliz, porque, enfim, o encontrei! Houve um silêncio. Harvey sentia a garganta sufocada.

- Pensava que nunca chegaria até aqui - continuou,

- Pensava que nunca mais tornaria a vê-lo.

Inclinou-se um pouco para ele com fadiga, como no fim de um dia de trabalho.

O ar parecia vibrar entre eles. Os olhos brilhantes de Mary chamaram a atenção de Harvey. Brilhavam com um brilho esquisito, pareciam estar à beira da sombra.

Está cansada, - disse, com voz estrangulada. - É preciso alimentar-se um pouco.

- Não tenho fome, só sede, muita sede.

Ele saiu de sua contemplação, baixando a cabeça voluntariamente :

- Venha, vou dar-lhe leite.

Entrou na casa, o coração batendo violentamente, de tal maneira que ressoava no seu cérebro, embaralhando todas as suas ideias.

A sala de jantar estava vazia; a marquesa acabara de jantar. Ele serviu leite com mão trémula e trouxe-o a Mary, que o seguira no vestíbulo.

- Muito obrigada.

Depois bebeu, sorrindo-lhe por cima do copo, e acrescentou:

- É delicioso. Estava com muita dor de cabeça, mas agora passou.

Harvey estendeu a mão para o copo, tremendo com o pensamento que seus dedos poderiam encontrar os da moça.

- É preciso repousar um pouco. É indispensável. Parece estar cansadíssima.

Ela fez com a cabeça um sinal negativo, mas suave, receando despertar aquela dor lancinante.

Não, não estou mais cansada. Sinto-me bem melhor,

feliz e leve, quase aérea. Queria ir ao jardim.

Ele quis sorrir, mas seus lábios se recusaram, contraídos pela emoção.

- Mas a noite cai. . . Mary. - Contra sua vontade pronunciou ainda o nome amado. Ela repetiu-o com uma voz longínqua, acrescentando:

- Sinto-me tão alegre ao ouvi-lo me chamar Mary.. , Uma alegria que penetra até o mais íntimo do meu ser.

Depois juntou as mãos e disse:

- Vamos sair, vamos ao jardim. Quero passear no meio das frésias, quero ver o bosquezinho de laranjeiras, quero me certificar de que tudo isto é real desta vez; que estamos aqui todos dois, que não vou despertar de repente no frio e na angústia da solidão.

Dominado pelo olhar sombrio mas agradável da moça, Harvey só podia obedecer. Ao mesmo tempo um obscuro pressentimento fazia-o hesitar. Mas diante da doçura da boca amada, toda resistência era vã, toda inquietude absurda. Estava perto dela; que importava o resto? Não tinha outro pensamento, outro desejo.

Fora do pórtico, Mary parou um instante nos degraus rachados, listados de líquen vermelho. Bem juntinho dele, agora, ela voltou os olhos para o oeste, e suspirou, como se estivesse dividida entre a melancolia e a alegria. Lá em baixo, em cima dos picos vulcânicos, o sol parecia ter estourado como uma bola de fogo, semeando o céu de rastos inflamados, que desciam pouco a pouco, enquanto subiam, da sombra, clarões de um verde translúcido.

- Agora que estou perto de você - murmurou Mary

- sinto o coração como abrasado pelo pôr do sol.

Ele não pôde responder. Todas as palavras teriam perdido o sentido neste instante feérico em que o silêncio os unia mais estreitamente que tudo mais. E, sem uma única sílaba, olharam o dia morrer pouco a pouco. Depois, sempre sorridente, ela dirigiu-se ao bosque de laranjeiras, passeando os dedos nas frésias cujos buquês lhe tocavam na saia.

- Tantas vezes fui vítima de uma ilusão! Quando eu queria agarrar estas flores, tudo sumia diante de mim, e só encontrava o vazio.

Súbito, sobrevoando os limites da razão, uma obsessão apoderou-se de Harvey. A obsessão aumentava, aumentava, Uma intuição louca, mas esplêndida, invadiu-o. Em vão resistia com todas as suas faculdades. E, mergulhando nas profundidades do tempo e do espaço, disse com voz baixa:

- É o jardim que você me descreveu? O jardim de seus sonhos, é este mesmo, está certa?

- Mas é claro - respondeu Mary com simplicidade. estou absolutamente certa. Encontro a casa, o pátio, a árvore de ramos retorcidos, o bosque de laranjeiras e minhas

queridas frésias. . .

Parou, e acrescentou em tom pungente:

- Você! você enfim! Compreendo agora por que o sonho só era decepção, por que o jardim estava deserto. É porque o procurava nele; porque já estivemos aqui, unidos por alguma coisa mais poderosa que um simples sonho. Sei disto. É uma coisa certa.

Sua voz fez remontar na alma de Harvey qualquer coisa perturbadora como uma reminiscência. Era louco, era uma miragem imprecisa, uma aberração, mas era mais forte que a realidade. A razão do encontro deles iluminava-se, esclarecia-se, e parecia-lhe que só agora começava a viver. Toda a beleza do mundo parecia concentrada naquela a quem amava; um ardor penetrava-o. Amava, sim, descobrira o amor, felicidade invisível! E eis que a noite caía, que a lua subia no horizonte e prateava as folhas. Aproximou-se de Mary que erguia a mão para um ramo.

- Veja, - disse ela. - Não é uma maravilha?

A árvore, carregada de frutos pesados, estava coberta de flores desabrochadas, de botões entreabertos, cuja brancura era acentuada pelo raio de luz. O fruto, a flor: a inocência, a madureza, duas qualidades que Mary fizera suas, misteriosamente.

Ele levantou a mão por sua vez, e apanhou uma laranja. Descansou-a no côncavo da mão, fresca e lisa como o seio de uma virgem. Largou-a sem colhê-la. Mary só tomara um ramo florido que apertava contra a face, penetrando-se de seu aroma. A linha pura do seu seio, visivel sob o braço ainda erguido, oferecia-se a Harvey, que era tentado a agarrá-lo como agarrava o fruto.

- Mary, - disse com ternura concentrada, e o nome ressoava em seus lábios tão deliciosamente que começou a chorar. - Mary, meu amor. Nunca vi nada tão belo como você. Nunca senti o que sinto neste momento. Não compreendo, não procuro compreender, mas sei que minha vida sem você era terrivelmente vazia.

Ela vivia, enfim, este momento esperado durante tanto tempo; entretanto o olhar que lançou a Harvey era hesitante, A estranha pulsação de suas fontes, que a martirizava o dia inteiro, voltava súbito, martelando-lhe dolorosamente a testa,

"É o excesso de felicidade", pensou.

Harvey, o rosto iluminado de alegria, o sangue fervendo, notava que nunca a tocara; não, nunca tocara nem mesmo nos seus dedos finos, cuja maciez seria deliciosa a seus lábios sedentos. Estendeu a mão.

Por que se sentiria ela tão anormalmente leve, imponderável como o ar etéreo e lunar? Por que a horrível sensação na cabeça voltava, afogando todas as suas ideias? Estendeu para Harvey a flor branca, sem saber direito o que fazia; ele, com um gesto maquinal, enfeitou com ela os cabelos finos da moça. Mary tentou sorrir, mas os lábios estavam secos, rígidos; não era mais senhora de seus gestos, não podia mais exprimir seu amor apaixonado.

Agora ele estava junto de Mary, corpo a corpo, suspendendo a respiração, só, perto dela, naquele jardim deserto, envolvido pela noite perfumada. Os dois estavam longe de tudo, e nada, nem na terra, nem no céu, poderia separá-los.

- Sente-se feliz?

- Sou feliz. Feliz e leve, libertada de todos os entraves.

Sentia que o amado, com toda sua ternura, se inclinava para ela, mas ao mesmo tempo seus sentidos não correspondiam ao seu ardor. O corpo rígido não obedecia mais ao impulso de sua alma, parecendo aprisioná-la numa bainha estreita.

"Oh! não ceder a este amor seria pior que morrer. Amo-o, pensava; encontrei-o enfim, este amor de toda minha vida", Procurava remover as trevas que lhe invadiam o cérebro, murmurando fracamente:

- Amo-o, por isto vim. Meu amor, meu amor, achei-o enfim! .

Depois, num gesto pungente, levou a mão à fronte dolorida.

Ele a encarou surpreso, entre a esperança e o receio. Estava estranhamente pálida, os olhos sem brilho. Harvey segurou a mãozinha que queimava como fogo, como o fogo que batia nas têmporas finas. Os lábios descoloriam-se no rosto lívido.

- Mary! - exclamou, tomado de terror. - Mary bem-amada! Que tem você?

- Um mal-estar, um mal-estar que vai e volta. Daqui a pouco se dissipará! Que importa agora? Nada disto tem importância. Amo-o.

Tentou sorrir ainda, mas - cousa terrível - o rosto de Harvey parecia-lhe uma máscara zombeteira. Não, não era uma máscara, mas um grupo de máscaras que dançava nos ramos.

E, apesar do horror que tal alucinação lhe inspirava, sentia desejos de se fundir no ardor de seu beijo.

Depois, bruscamente, sentiu-se vencida, esmagada. Tentou dizer ainda baixinho: "Amo-o!" Mas as palavras morreram-lhe na garganta; as máscaras comprimiam-se em torno formavam uma ronda fantástica. Tudo mergulhou na escuridão, e ela caiu desmaiada nos braços de Harvey.

Ele deu um grito, tomado de terrível inquietude. Sustentando o corpo leve, apalpou o punho delgado. O pulso galopava com frenesi.

- Meu Deus! Como não pensei antes! É a-febre. Ela abriu a meio as pálpebras, e seu olhar era triste como

o de um pássaro ferido.

- Enfim, - suspirou, - Mas sinto-me tão esquisita!

Depois a cabeça caiu de novo nos braços de Harvey.

Ele a levantou com-uma pressa apaixonada, correndo aos tropeços, até a casa. A porta cedeu ao violento impulso de seus ombros. Sem parar, gritou: "Manuela! Manuela!" Depois subiu a escada, entrou no quarto, descansou o fardo querido na colcha de brocado, e, sem poder respirar, ajoelhou-se. À vista daquele corpo abandonado, sem defesa, um pensamento torturante atravessou-lhe o espírito. As lágrimas cegaram-no, enquanto apertava maquinalmente a mãozinha nas suas.

Um ruído de passos obrigou-o a virar a cabeça. Era Manuela, cujos olhos espantados brilhavam na sombra. Sem se levantar, ele disse rapidamente:

- A senhora inglesa sentiu-se mal; faça o favor de me trazer água bem depressa, sim?

Ela parecia não se mexer, e, no fim de um instante que pareceu interminável a Harvey, replicou secamente:

- Que faz aqui a senhora inglesa?

- Que lhe importa? - gritou Harvey. - Ela está doente; vá buscar água na bilha, depressa.

Sempre imóvel, a criada parecia revolver obscuros pensamentos no seu espírito obtuso. Depois, de repente, inclinou-se por cima do ombro de Harvey e olhou para Mary, com os olhos espantados sob as sobrancelhas negras.

- Por Deus! - exclamou com voz aguda, - ela está doente, não é verdade? Meu Deus, vejo-o no seu rosto, ela pegou a febre.

- Cale-se, - disse Harvey rudemente. - Vá buscar água. E* preciso me ajudar, entende?

Manuela recuou toda rígida, num violento protesto, mas não disse uma palavra. Cruzou os braços, a boca fechou-se como um alçapão, lançou um último olhar ao leito, voltou as costas e desapareceu na escuridão.

Imediatamente Harvey levantou-se e acendeu outra vela. Suas mãos tremiam, derramando a cera em gotas ardentes. Protegendo a chama, aproximou-se de Mary, examinou-lhe o rosto. Um afluxo de sangue o coloria, as pálpebras estavam inchadas, a boca vermelha obstruia-o como uma ferida.

Harvey pôs-se a gemer; Manuela tinha razão.

Manuela! Que fazia esta mulher esse tempo todo? Suas mãos crisparam-se, impacientes, depois decidiu a descer correndo, chamando mais uma vez: "Manuela! Manuela!"

O grito ressoou no vazio do vestíbulo, da sala de jantar, da cozinha. Nada de resposta. Estacou dominado por um súbito pensamento: Manuela ficara com medo, fugira!

A angústia invadiu pouco a pouco sua fisionomia. Estava só (a velha marquesa agora dormia, só, com Mary, na casa mergulhada nas trevas. Ficou alguns instantes como petrificado. Uma caçarola, esquecida nas brasas, fazia um barulhinho manso, e fora o coaxar distante das rãs era como vozes zombeteiras. Uma súbita resolução endureceu-lhe então a fisionomia. Tirou o paletó, apanhou uma bilha completamente cheia, que estava pousada numa tábua, e tornou a subir apertando entre os braços a bilha úmida.

Mary não se mexera. Os lábios vermelhos, entre-abertos, deixavam passar um sopro ofegante. Harvey, a fisionomia tensa, achou de seu dever tirar o vestido de seda. Seus dedos, rígidos e frios, não tremiam mais; entretanto o coração sentia uma angústia mortal. As roupas de Mary escorregaram. Ele dobrou uma por uma as peças leves. Gotas de suor perlavam-lhe a testa; sua fisionomia parecia dura, como esculpida em pedra; mas ele continuava sua tarefa sem hesitar. Antes de tudo era preciso fazer descer a febre; era essencial. Pouco a pouco, o corpo da moça aparecia-lhe em sua nudez. Sombras suaves velavam em alguns pontos a pele acetinada, os seiozinhos firmes, cujos bicos se coloriam de um róseo virginal - enfim, toda aquela beleza adormecida sobre a qual flutuava uma serenidade maravilhosa.

com um gesto convulsivo, soergueu a doente para tirar a colcha, e pousou o fardo querido na frescura do lençol.

O braço de Mary pendeu, sem jeito, como se procurasse enlaçar o pescoço de Harvey.

Numa centelha de consciência ela abriu os olhos e murmurou:

- Como sou tola por lhe dar todo este trabalho!

Foi tudo; tornou a mergulhar nas trevas.

Harvey lavou cuidadosamente a pele ardente com água fresca. Seu espírito pesava todas as probabilidades. Precisava salvar Mary e a salvaria, senão morreria com ela. Sua vida não tinha importância, uma coisa só importava: salvá-la. com seus cuidados produzia-se uma pausa. O corpo úmido parecia menos quente. Gotas d'água mantinham-se nos seios como orvalho. Embora médico, procurava enganar-se, julgando que a respiração estava mais calma.

Pousando a ponta dos dedos no pescoço delicado, julgou perceber uma diminuição de afluxo do sangue. Salvá-la, oh! salvá-la! Que importava o resto? Este pensamento lancinante obcecava-o.

Atirou a toalha, endireitou cuidadosamente o lençol, depois desceu à cozinha e encheu uma chícara com o caldo.

Voltando a Mary, soergueu sua cabeça pesada, para dar-lhe de beber. E Harvey sentiu-se corajoso ao vê-la absorver o líquido. Pousou a chícara, sentou-se à cabeceira da cama, e tomando a mão que se abandonou na sua procurou transmitir-lhe sua força.

Os minutos passavam em silêncio. Aquela vigília dava a Harvey um prazer doloroso. Salvá-la-ia, sim, - jurava-se a si mesmo. Fora, as rãs continuavam a coaxar num murmúrio longínquo. Um pássaro noturno roçou a janela com uma asa de veludo. A lua subiu no céu, iluminou por um momento o quarto, depois desapareceu.

E durante toda a longa noite muda, ele velou e cuidou da amada.

 

As velas consumiam-se nos candelabros. A alvorada surgiu radiosa, as folhas se agitavam na brisa matinal, e Susan Tranter desceu para a Casa de los Cisnes a passos rápidos.

Tinha o rosto levemente corado. "Talvez seja um pouco cedo, pensava. Ousarei entrar na casa?" Abaixou-se para colher uma flor, e, ao mesmo tempo que a levava ao colo, pensava: "Que importa! Não trabalhamos juntos? Deve estar preparando-se para almoçar, e verei sua fisionomia calma. Talvez me sorria, e voltaremos juntos para a aldeia".

Dedicar-se com Harvey a uma causa tão bela era uma alegria para Susan. A epidemia, é verdade, declinava, e, apesar das opiniões de Rodgers, as autoridades haviam tomado providências. Talvez não tanto enérgicas como seria de desejar, mas úteis, apesar de tudo. A guarda que ocupava Hermosa trouxera um médico militar, instalara um hospital provisório, sepultava os mortos, desinfetava as casas, e dispusera um cordão sanitário em torno da aldeia.

Ela teria preferido que houvesse mais trabalho ainda; mas a tarefa era nobre, e cumpri-la ao lado do Dr. Harvey era uma felicidade tão grande que atenuava o cuidado que seu irmão lhe causava. Robert, com efeito, tinha mudado completamente. Não que ela desejasse vê-lo expondo-se ao contágio. Não era bastante forte para afrontar tão grande perigo . Mas, desde a chegada a Laguna, errava como uma alma penada ou se agitava a torto e a direito, sob o olhar irónico de Rodgers. A atitude estranha do irmão causava em Susan uma vaga inquietude.

Entretanto, a preocupação não alterava a vivacidade de seu olhar, e não diminuira o passo quando empurrou a porta e entrou na Casa de los Cisnes. com a fisionomia alegre, penetrou na sala de jantar. Coisa surpreendente: tudo deserto, nenhuma refeição preparada. Susan, admirada, hesitou, depois, tendo refletido, sorriu ligeiramente: ele dormira tarde e não descera ainda. No final das contas, era natural. Sorrindo sempre, subiu lentamente as escadas, hesitou um instante no patamar, mas decidiu-se a bater de leve na porta.

- Já se levantou?

Nada de resposta. Esperou, depois pareceu-lhe perceber a voz de Harvey, mas fraca e indistinta. Houve ainda um silêncio. Finalmente ela o ouviu, desta vez, pedir-lhe para entrar. Mal dera três passos no quarto, sua alegria extinguiu-se instantaneamente. Reprimiu um grito. Seu olhar ia do rosto macilento de Harvey à forma imóvel na cama.

- Ela está doente - disse Harvey com voz fraca. - É esta maldita febre.

E desviou a cabeça.

Parecia a Susan que o chão lhe fugia aos pés. Não pensou em perguntar por que Mary estava ali, como tinha vindo. Sua simples presença bastava para desferir-lhe um golpe mortal, para desfazer todas as suas esperanças. Notou as toalhas espalhadas no chão, as roupas de seda pousadas na cadeira, o braço nu de Mary e sua mão repousando na de Harvey. Apesar de sofrer muito, conseguira falar:

- Ela está muito mal?

- Sim.

- Não tem nada aqui, nem mesmo uma camisa?

- Que importância tem isto? Um silêncio.

- Você a velou a noite inteira?

- Sim.

- E ontem trabalhou durante o dia inteiro, sem repousar um minuto. Deve estar esgotado.

Ele não respondeu, mas pensou que era necessário uma explicação e rapidamente pôs Susan ao par das circunstâncias da chegada de Mary.

Ela ouvia, desviando os olhos e disse:

- Você não pode deixá-la aqui, nesta casa abandonada, onde nada existe para se tratar de uma doente. É preciso transportá-la para Santa Cruz.

- Procurarei tudo o que é preciso. Mexer com ela seria muito perigoso; recuso-me de todo.

Susan não respondeu. Olhava para o soalho, intensamente, estupidamente. Conteve um profundo suspiro, tirou lentamente o chapéu, as luvas de algodão, colocando-os sobre a mesa perto da janela.

- Deveria repousar um pouco, agora. vou substituí-lo.

- Sua voz baixa tinha um tom monótono. - Deve estar esgotado .

Ele parecia não escutar, e seguiu-a com o olhar enquanto ela começava a por ordem no quarto.

- Você quer me ajudar a cuidar dela?

- Sem dúvida. Não sou enfermeira? É meu dever. Os olhos de Harvey, acesos pela insónia, fixaram Susan,

enquanto dizia baixinho:

- Você é boa mesmo. Não o esquecerei.

Susan imobilizou-se, como sob o efeito de uma picada. Imediatamente corou, corou de vergonha. Não respondeu logo, depois estourou:

- Você se engana. Não sou boa. Não é por dedicação, é por ciúme, um ciúme baixo. Sei que você a ama. Não vê que a simples ideia de que você a toca me é odiosa? Não compreende que é por isto que quero ficar? Oh! eu. . . eu. . .

As palavras morreram-lhe na garganta. Levou a mão ao pescoço, os olhos baixaram-se sobre o vestido que ela dobrava, e deixou-se cair na cadeira soluçando.

Harvey levantou-se, foi à janela e fingiu que olhava para fora. Minutos passaram, pesados de silêncio e Susan disse com uma voz que recuperara toda sua calma:

- Vá se deitar e dormir.

- É inútil, estou bem.

- Seja razoável. Se quer conservar suas forças. . . Parou, e continuou num tom amuado:

- Por amor a essa criatura, deve se poupar. Velarei enquanto repousar. vou escrever a Robbie para explicar-lhe o que acontece.

Ele refletiu, e a contragosto afastou-se da janela:

- vou me deitar durante uma hora. Sabe o que é preciso fazer?

- Sim.

- Não devemos deixar a temperatura subir.

Deu instruções, procurando por confiança em suas palavras. Depois acrescentou:

- Vamos entrar breve no período crítico, então precisaremos lutar muito.

Ela aquiesceu com a cabeça, com um olhar trágico nos olhos doloridos. Ele desviou-se e olhou o rosto vermelho de febre na brancura do travesseiro. Durante um momento, sua alma se desvendou, angustiada, torturada. Saiu.

Do outro lado do corredor, abriu uma porta ao acaso. Não era um quarto de dormir, mas uma sala suntuosa com móveis dourados, lustres empoeirados, tapetes onde corriam formigas. As venezianas fechadas produziram uma semi-escuridão nestes vestígios de um esplendor decaído.

Que importava a Harvey! Arrancando o colarinho, atirou-se num canapé forrado de damasco e fechou os olhos.

Mas não podia achar repouso. A sala cheirava a mofo como um armário frequentado pelos ratos. Parecia que os cristais embaciados dos lustres se preparavam para fazer ouvir uma música tininte.

Harvey virava e revirava no sofá duro, perseguido por visões desordenadas. E Mary estava sempre diante dele, chamando-o em seu auxílio.

Pareceu-lhe também que batiam à porta do vestíbulo, e que ouvia um ruido de vozes.

Durante cerca de uma hora ficou nessa semi-inconsciência, e, quando abriu os olhos, não descansara. No teto, o cisne grande, com o pescoço estendido, as asas desfraldadas, parecia voar para ele. A repetição do emblema acabava por tomar um sentido maléfico, gelando-o como uma ameaça.

Levantou-se, sacudiu a letargia. Parou no corredor, surpreendido por um barulho de passos pesados, mas que se procurava abafar, e que lhe pareceu familiar. Escutou, passou adiante do quarto sem entrar, e desceu à sala de jantar. Não se enganara. Da cadeira em que se achava escarranchado, Corcoran, sempre jovial e otimista, dirigia-lhe um sorriso camarada:

- Disse-lhe que viria.

- Estou contente, sim, muito contente por você ter vindo.

Furtivamente, Corcoran lançou a Harvey um olhar cheio de inesperada gravidade. Depois tirou a tabaqueira do bolsoJe, inclinando a cabeça, pareceu examiná-la com profundo interesse.

- Estou ao par do que lhe acontece. Susan Tranter me abriu a porta e me contou tudo. Quase caí para trás, tão espantado fiquei de vê-la. Mas, palavra de honra, diante de

Deus que me ouve, muito me aborreço por vê-lo metido nestas atrapalhações; estou aqui para ajudá-lo.

- Que pode fazer?

- Eu? Você vai ver. Você tem de comer, não é? Pois eu entendo de cozinha. Já preparei a bóia para cincoenta sujeitos num campo de Oregon. Arregaço as mangas e meto mãos à obra. Depois, darei uma volta pela casa. Isto aqui não é nada mau, mas precisa muito de um sujeito para pôr um pouco de ordem.

- Provavelmente precisarei de diversas coisas. Você poderá ir buscá-las na cidade?

- Certamente. Digo-lhe que me coloco à sua disposição . Acabo de desempenhar uma tarefa encomendada por Susan Tranter; por que não o faria para você também? Venho para ajudá-lo, também para brigar se tiver aborrecimentos .

- Que quer você dizer?

- Ouvi uns mexericos na cidade. Nada de positivo, mas umas coisas assim...

- Que coisas?

- Os outros dois, o Dibdin e mistress Baynham, chegaram de Orotava e hospedaram-se no Plaza. Não é tudo. O tal agente, você sabe, o Carr, chegou ontem à noite e pôs-se a fazer um barulho danado e a revolver céus e terra para encontrar a jovem lady. Se você a conservar aqui, tem que ver com eles.

- Estou totalmente decidido a conservá-la aqui.

- Está certo, está certo.

Harvey ia acrescentar qualquer coisa, mas as palavras morreram-lhe na garganta. A campainha da porta ressoou com violência uma vez, depois outra, antes mesmo que o primeiro toque tivesse cessado. Os dois homens se encararam, e a fisionomia de Corcoran tomou uma expressão de vingança.

- Que é que eu tinha dito? Ei-lo já aqui.

- Vá ver, - disse Harvey, conciso.

Jimmy remexeu nos bolsos e tirou um palito, acessório indispensável à sua dignidade, enfiou-o delicadamente nos lábios, e deixou a sala. Houve um ruido de passos apressados no vestíbulo e um homem irrompeu na sala de jantar. Era Carr. Atrás dele vinha um espanhol baixo, de rosto esverdeado, que trazia uma larga pasta de couro. Corcoran entrou e fechou displicentemente a porta.

Carr, a fisionomia congestionada, as veias do pescoço salientes, o ar impaciente e furioso, lançou os olhos em redor e fixou Harvey.

- Mary Fielding está aqui, venho procurá-la. Harvey encarou-o com perfeita tranquilidade, e esperou

um pouco antes de responder:

- Como sabe que ela está aqui?

- Ela deixou Orotava terça-feira, com um bilhete para os amigos. Na véspera estivera muito esquisita o dia inteiro, sem dúvida doente. Foi vista em Santa Cruz, indagando o caminho de Laguna. Um carro conduziu-a à Casa de los Cisnes, e pela criada, Manuela, soubemos que uma senhora inglesa estava doente nesta casa. Está satisfeito agora? Trouxe um doutor, um carro fechado; levo Mary Fielding.

- O senhor é médico? - perguntou polidamente Harvey ao espanhol.

- Sim, senhor.

O homenzinho esverdeado juntou os calcanhares e saudou:

- Farmacêutico, laureado pela Faculdade de Sevilha, e possuidor das referências das melhores famílias de quem tratei.

- Perfeito, - disse Harvey. - Farmacêutico, laureado e recomendado pelas melhores famílias. Perfeito.

Depois voltou a Carr.

- Deseja transportá-la a Santa Cruz? Carr, de vermelho, tornou-se roxo.

- Já disse - declarou com brutalidade. - E não desejo repetir. Onde está Mary? Onde é o seu quarto? Vamos subir imediatamente.

- Não senhor, - disse Harvey, sempre em tom calmo. -i Não subirá! Veio aqui por sua própria vontade, e agora está muito mal. Compreende? Muito mal; em grande perigo. Este farmacêutico não tocará nela. Sou eu, entende? Eu que me encarrego dela.

- Você?

E Carr teve um gesto de desprezo.

Conheço-o. Tomei informações desde que nos encontramos. Não lhe confiaria nem meu cachorro. E quer

cuídar de uma doente nesta casa? Sem enfermeira, sem medicamentos?

Harvey lançou-lhe um olhar glacial.

- Sei muito bem o que faço. Tenho uma enfermeira, e Sei também que transportá-la para outra casa seria matar a doente. Ela não deve se mexer antes de ter a crise aguda. Seu amigo lhe dirá que tenho razão.

O farmacêutico, assim visado, pousou sua pasta e encolheu os ombros, embaraçado.

Carr nem reParou; ameaçava Harvey com o olhar e os olhos se lhe injetavam de sangue.

Disse que levaria Mary Fielding, e farei conforme disse. Tenho pressa. Saberei encontrá-la.

Voltou-se para a porta; mas Harvey, com um gesto rápido, precedera-o e barrava-lhe a passagem.

Não - disse, sempre glacial. - Não subirá.

com grande surpresa sua, mantinha-se senhor de si mesmo, aceitando com uma inabalável resolução a perspectiva de um pugilato com aquele energúmeno.

- Deixe-me passar.

Harvey sacudiu docemente a cabeça. Os dois, face a face, encaravam-se. Uma veia inchou na testa de Carr: E quem me impedirá?

- Eu.

Houve um silêncio, e o espanhol baixinho, aterrorizado, encostou-se à parede. Jimmy observava-os, os olhos acesos, as narinas palpitantes, abrindo e fechando os punhos numa espera alegre.

Carr tomava um ar malvado, a cabeça erguida pondo à mostra um pescoço de touro. Não parecia um adversário desprezível .

- Ah! ah! Pensa que poderá lutar comigo? Tanto atleta quanto intelectual!... É encantador; minhas felicitações .

Depois, mudando de tom:

- Fora daí, imbecil. Sou mais forte que você, conheço o jogo a fundo; você não pesaria nada debaixo do meu punho!

Harvey não fez um movimento sequer. Pálido, apertando os lábios, parecia sorrir interiormente.

- Arreda! - gritou Carr mais uma vez.

Harvey fez um novo gesto negativo, sem perder de vista o adversário.

- Então, tanto pior para você! - urrou Carr.

E, erguendo as mãos, e baixando a cabeça avançou para frente. Traiçoeiramente, ameaçava com o punho esquerdo mas descarregou o direito depois de brusca pausa, assestando um golpe violento na cabeça de Harvey. Uma careta irónica repuxava-lhe a boca. Boxeur experimentado, notava a ignorância do adversário, que não pensava nem mesmo em se proteger e não tinha evidentemente nenhum estilo.

"Apanho-o facilmente, pensava. E esmurro até ele cair.

Concentrado sobre si mesmo, pondo em destaque, com desprezo, o lábio inferior, desviou-se ligeiramente, fez um truque afim de aplicar um direto do esquerdo no queixo de Harvey. Mas este, rápido como o raio, estendeu o braço direito. O soco atingiu Carr em pleno rosto, achatando-lhe o nariz. Uma onda de sangue esguichou das narinas, e, no rosto transtornado pelo choque, o sorriso irónico mudou-se em horrivel careta. Carr engoliu penosamente o sangue que lhe escorria na garganta, recuou sacudindo a cabeça, depois deu um pulo, tão subitamente e com tanta, violência, que fez Harvey dar com os ombros contra a pesada porta. Por sua vez, Leith afastou-se, depois feriu o adversário em pleno peito. O golpe ressoou surdamente, e Carr vacilou. Estava sendo muito mais maltratado do que avaliara, e, louco de raiva, o lábio repuxado pondo à mostra os dentes comprimidos, fez nova carga, continuando a luta, mas sem conseguir vibrar o golpe definitivo. Harvey possuía uma extraordinária rapidez; com o olho vivo, duro, ficava alerta; e, se bem que ignorasse todos os princípios do box, estava decidido a vencer.

Carr recorrera a toda a sua ciência. Estava agora mais arrogante, pois sentia as forças diminuírem, e o importante era acabar o mais depressa possível. Sua respiração tornava-se sibilante; o suor corria atrás de suas orelhas.

com o punho atingiu Harvey no pescoço, e na luta corpo a corpo que se seguiu, enfiou a cabeça no queixo do inimigo, enfim, e, atirando-se sobre ele selvagemente, pegou-o pela cintura e o fez cair sobre o joelho. Leith levantou-se logo, repelindo Carr para o apanhar de novo. Enlaçaram-se ainda, e Harvey sentiu na face a respiração ofegante do antagonista. Era o sinal que esperava. Escapou ao abraço, conservou-se um instante em pé na ponta dos pés, depois, reunindo todas as suas forças, desabou em cima de Carr. Se não conhecia as regras do jogo, sabia bater-se como um demónio. O outro vacilou, procurou proteger-se, mas em vão. O choque fê-lo dobrar-se sobre os joelhos; e foram-lhe precisos alguns segundos para se levantar, titubeante, coberto de sangue, horrível, com o colarinho arrancado, os cabelos caindo nos olhos. Louco de raiva, lançou-se ainda sobre o adversário, que o recebeu com um direto do esquerdo. O golpe formidável deslizou no braço de Harvey. Tal instante valia a pena ser vivido. Carr entregou os pontos. Estava acabado. Harvey enxugou a testa, observando o antagonista que rodava sobre o flanco, erguendo para o teto um olhar vítreo. Carr ficou inerte um momento; depois levantou-se penosamente. Um de seus olhos estava todo inchado, o sangue escorria-lhe da boca. Tropeçando, teve que se apoiar na mesa para tirar o lenço, que levou, tossindo, aos lábios.

Hei de me lembrar disto - articulou com esforço, lançando a Harvey um olhar oblíquo. - E não sou dos que esquecem.

- É claro, - interveio Jimmy com um suspiro de profunda satisfação, - que não esquecerá tão cedo a bela sova que acaba de tomar.

- Não pense que nossas contas estão liquidadas, - continuou Carr. - Tenho-o na mão, apesar de tudo.

Harvey não respondeu.

- Você se lançou numa aventura perigosa. Se acontecer qualquer coisa a lady Fielding, será considerado responsável, previno-o. Além disso, vou telegrafar imediatamente ao seu marido, e, desde que tiver a autorização, tratarei de agir.

A mão contra o rosto machucado, Carr lançou um olhar de ódio a Harvey, depois, baixando a cabeça, alcançou a porta. O farmacêutico, obrigado desta vez a tomar partido, lançava olhares desesperados de um a outro. Enfim, fez uma saudação nervosa, que não se dirigia a ninguém, e seguiu Carr como um cãozinho. Passando diante de Harvey, este estendeu a mão para a pasta de couro e disse tranquilamente:

- Dê-me isto.

- Mas, senhor, - balbuciou, lívido de medo, - meus medicamentos. . .

- Fique tranquilo, eu os devolverei mais tarde.

- Sem dúvida, confio muito no senhor, mas não posso passar sem eles. Não fica bem o senhor privar-me deles, causa-me grande prejuízo. Em nossa profissão, deve-se agir corretamente, segundo a moral, e observando as conveniências.

Firmemente, sem se perturbar, Harvey apoderou-se da pasta. O farmacêutico, espantado, ergueu os braços, articulou qualquer coisa incompreensível e saiu. Ouviu-se a porta de entrada fechar-se pesadamente.

Jimmy soltou um palavrão. O rosto cheio de cicatrizes estava aceso de satisfação.

- Que belo trabalho! palavra de Corcoran. Não trocaria meu lugar por todo o ouro de Klondyke! Que é que lhe deu, meu camarada? Boas pancadas você lhe aplicou!

Pode-se dizer que você lhe triturou bem a cara! Nunca assisti a melhor luta de box, desde que Joe o maluco derrotou Smiler. Espantoso, simplesmente espantoso.

Tomou uma pitada de tabaco, aspirou-a, rindo com delícia e, com gestos cheios de doçura, apalpou os punhos machucados e sujos de Harvey.

 - Nada estragado, hein? Louvado seja Deus. Um ótimo nocaute! Oh! lá lá! Que boa lição este imbecil guardou! E você, vai bem?

- vou muito bem, - disse Harvey.

E, tomando a pasta, pousou-a na mesa e abriu-a. Como supunha, continha todo um arsenal de instrumentos e medicamentos. Fechando-a com um gesto seco, dirigiu-se para a porta, dizendo a Corcoran: - vou subir. Faça o que puder aqui. E foi reunir-se à doente.

 

Algumas horas mais tarde, Corcoran fazia da cozinha seu domínio particular. O chão de terra batida, a larga chaminé edificada quinhentos anos antes para recolher o cheiro bom que se exalava das largas postas de carne, agradavam à sua natureza. Mas, apesar de sua indulgência, o triste abandono da cozinha incomodava-o.

Tirando o paletó e o colete, metera mãos à obra. Oh! certamente não tinha a intenção de limpar tudo, mas resolvera endireitar um pouco aquela desordem, tirar água e arear algumas caçarolas, devido ao emprego em vista.

O trabalho agradava-lhe, e ele assobiava suavemente. Talvez à sua satisfação se misturassem algumas reminiscências de sua velha casa da Irlanda. Havia ali uma certa displicência indígena que o tornava orgulhoso de sua superioridade . Um ligeiro ruido fê-lo erguer a cabeça. Era a marquesa que, do limiar da porta, o observava, surpresa, com seus olhos de pássaro. Rapidamente enfiou a camisa para dentro da calça, esfregou o queixo com a palma da mão e rompeu o silêncio com sua facúndia habitual.

- Faz um bruto calor, não é verdade? É por isso que a senhora me encontra sem colarinho, desculpe-me. Entretanto, tenho o hábito de cuidar sempre de minha toilette!

- Onde está Manuela? - perguntou a velha dama.

- Se é a empregada que a senhora procura, foi-se embora. Pelo menos é o que me contaram. E deixou tudo aí abandonado, sem ao menos dar uma esfregadela, a vagabunda! Parece que varreu a cozinha com um bastão! Preparo-me para dar uma vassourada por aqui, para poder enxergar melhor nesta confusão.

Ela fez um trejeito, contrariada.

- Não compreendo. O senhor, meu hóspede, trabalhando? Desonra-se, e a mim também.

- Não se incomode. O trabalho nunca desonrou ninguém - disse altivamente, endireitando as calças com um gesto pudico. - Nunca, nem mesmo os que vêm de boas famílias. Quanto à empregada, Platão tinha muita razão em dizer que se devia reservar os favores àqueles que merecessem.

- Não estou pedindo favor - disse a velha gravemente. - Aqui, é Isabel de Luego quem concede favores. Mas o senhor é sem dúvida de nobre linhagem?

- Creio no que diz. Por meu pai, descendo em linha reta dos reis de Irlanda. Poderia lhe mostrar meu pedigree. Tenho sangue de Brian Boru nas veias.

Ela soltou uma exclamação, e aproximou-se mais: - É verdade mesmo? Então este trabalho não passa de uma distração? O senhor tem de fato o ar de um cavalheiro.

Jimmy sustentou um instante o olhar ingénuo e curioso, baixou a cabeça, meio envergonhado, ao mesmo tempo que enxugava as mãos nos fundos das calças.

- Enfim, meu pai era quem afirmava, principalmente quando bebia um pouquinho mais. Talvez seja verdade, talvez sejam histórias. Mas basta ser irlandês para ser um gentleman, todo o mundo sabe disso, e aquele que viesse me dizer o contrário receberia uma boa lição.

- Sim, o senhor lutou, - murmurou a velha. - Vê-se no seu rosto, cheio de cicatrizes como o de um matador. Sem dúvida, é feio; mas sente-se que o senhor tem um grande coração.

Ele moveu os pés com embaraço, procurou em vão a tabaqueira, e começou a caçoar:

- Não há dúvida que tenho coração, e grande Como um barco! Bem que precisava de um para não me afogar em todos os meus aborrecimentos.

- O senhor teve aborrecimentos? Ai, ai, ai! Sim, sua magnífica feiura ainda conserva os vestígios dos aborrecimentos. Mas não deve deixar-se abater. Tudo tem fim, e quem sabe se a era das desgraças não se encerrou para o senhor?

Não sabendo bem se ela falava sério ou se zombava, Jimmy encarou-a franzindo as sobrancelhas espessas.

Também a senhora deve ter tido grandes aborrecimentos, a julgar pelo que vejo.

Ela sorriu tristemente, acentuando as rugas do pobre rosto, mas conservando uma expressão maliciosa.

- Jesus Maria! Não diga esta palavra diante de Isabela de Luego. Não está ela cercada de traidores - ou, pelo menos, não o esteve? Tudo está perdido, tudo cai em ruinas. Vire mel, que as moscas não o largarão. Crie corvos, e eles lhe arrancarão os olhos. Só Don Baltazar tinha força. Mas ele morreu!

Jimmy, refletindo, coçava a cabeça. Quem sabe se o tal Don Baltazar não fora o pior corvo do bando, e o mais insaciável?

- A senhora tem uma bela propriedade. Palavra, faz mal vê-la assim, sem trato. Bastaria um homem trabalhador e consciencioso, que olhasse tudo, e isto andaria direito de novo. Ninguém lhe propôs ajudar?

- As palavras são como as pedras da funda. Muitos prometeram, ninguém fez coisa alguma. Todos os que vieram, roubaram em vez de trabalhar. Lá em cima, na propriedade do Americano, captaram minha fonte, embora fosse proibido. A terra não pode prosperar nas mãos de uma mulher. Ai, ai, ai! A vida é cruel para Isabela de Luego.

- Que canalhas! - murmurou Jimmy com uma simpatia cordial. - Lesar desta maneira uma senhora velha, é nojento! com um camarada honesto este domínio se tornaria magnífico em pouco tempo. O terreno é excelente!

E, excitadíssimo pela ideia que tomava corpo em seu espírito engenhoso, Jimmy ia exaltar seus sentimentos virtuosos, quando a marquesa, cortando-lhe o entusiasmo, murmurou:

- Sem dúvida, senhor. Mas previno-o contra o senhor mesmo: falar sem refletir, é atirar sem fazer pontaria.

- Oh! - murmurou Jimmy desconcertado. - Talvez eu seja melhor atirador do que a senhora pensa.

- Não duvido de sua capacidade, o senhor já realizou grandes coisas, viajou muito, e - continuou imperturbável - talvez lhe seja preciso ir mais além ainda?

- Ao diabo as viagens! - declarou Jimmy. - Daria tudo para me instalar numa situação cómoda e estável.

Houve ainda um silêncio, durante o qual Corcoran esperou, ofegante. Iria a velha compreender a alusão? Como a receberia?

- O senhor é um herege, - suspirou. - Ah! não pode ser de outra maneira.

Tomado de súbita inspiração, ele revolveu os bolsos e tirou, não o volume de Platão, mas um rosário de contas , secas, que balançou respeitosamente.

- Queira olhar, disse com fervor. Crê que um diabo

he herege carregaria isto no bolso? É o rosário de minha velha mãe (que Deus guarde sua alma, era uma santa mulher);

nunca me separei dele, sempre me seguiu nas minhas viagens

através dos oceanos, e sempre me protegeu, tanto nos bons

como nos maus dias.

Era verdade! Embora não lhe viesse nem ao menos duas vezes por ano a ideia de desfiar algumas contas, trazia sempre consigo, como um amuleto, o piedoso objeto.

A marquesa olhava, não o rosário, mas alguma coisa de mais longínquo, e sorriu levemente:

- Mãe de Deus, eu pensava que a noz estava vasia, mas me enganei; há um fruto debaixo da casca.

O sentido de suas palavras era claro. Completamente perturbado pela primeira vez desde muito tempo, Corcoran corou e ficou quieto.

- Acalme-se, senhor - continuou a velha, o olhar sempre distante. - Mais vale rosto corado que coração sujo. Tenho consideração pelo senhor. Conversaremos mais tarde.

Deixou lentamente a cozinha; a cauda do seu vestido varria o chão com um fru-fru de seda. Embaraçado, Jimmy ficou boquiaberto como uma carpa esperando o alimento. Levou alguns minutos para recuperar a calma.

- Ora, esta! Francamente! - gritou para espectadores invisíveis. - Já se viu outra igual?

Procurou a tabaqueira no colete pendurado numa cadeira, e teve que recorrer a uma pitada para achar de novo seu "aplomb". Depois, olhando pela janela os canteiros em que a vegetação se comprimia em desordem, esfregou as mãos, entregue à satisfação do projeto que esboçara.

Soltou um palavrão. Pensava:

"Seria ótimo se ela tivesse a mesma ideia que eu sobre o assunto. Isto aqui é um verdadeiro paraíso; e o camarada que tivesse jeito, faria disto qualquer coisa de magnífico, em menos tempo que é preciso para comer uma salsicha. com o sol e este terreno, pode-se fazer crescer tudo o que se quiser. E poderiam contar comigo para tornar mais espertos estes negros safados. Precisam de trabalhar, ou então de dizer por que não trabalham. E depois, que lindo ofício para um gentleman: "bom dia, Don Corcoran, quais são suas ordens para hoje?" Não, palavra de honra, seria uma beleza. Ficaria garantido até o resto de meus dias!"

Tornou a meter cuidadosamente o rosário no bolso, acariciando-o docemente.

"Minha mãe sempre me dizia que este rosário seria mascote para mim; pois bem, por todos os santos, creio que ela falava a verdade".

Num acesso de zelo meritório, pegou de um esfregão e pôs-se a esfregar com ardor uma caçarola cheia de gordura, ao mesmo tempo que cantava:

Derrubarei McKann com socos Porque ele pode me derrubar com socos.

Areava, areava sempre, quando, cinco minutos mais tarde, Susan entrou na cozinha.

A trágica expressão de sua fisionomia fez morrer o sorriso nos lábios de Jimmy, varreu todo o seu otimismo. Esquecera tudo - e agora lembrava-se bruscamente de tudo o que a situação tinha de crítico. Sua alegria murchou, e, vexado, estalou a língua, censurando-se.

- As coisas lá em cima vão melhor?

Susan meneou a cabeça sem responder, os olhos fixos, o rosto lívido e o corpo inteiro numa rigidez que procurava disfarçar o ardente conflito que a dilacerava.

- Precisa descansar um pouco - disse Jimmy oferecendo uma cadeira. - A senhora não pode mais se aguentar, vê-se logo. vou lhe dar uma chícara de caldo, e se sentirá melhor.

Ela recusou com um gesto: - vou buscar minhas coisas e ver meu irmão. . . voltarei depois.

Havia qualquer coisa de definitivo nas palavras e na lentidão com que as pronunciou, tocando o coração compassivo de Jimmy.

- Vamos, vejamos, - disse ele num tom persuasivo.

- Bem que poderia primeiro descansar um pouco. As coisas não piorarão só porque a senhora vai se sentar cinco minutos. Se não gosta de caldo, faço-lhe um café; leva apenas um instante.

Mas a moça continuava em pé no meio da cosinha, indecisa, mas com o olhar glacial de sempre. Depois, como impelida por uma força irresistível, disse com voz surda:

- Ela não está melhor; pelo contrário, está pior.

Ele lançou-lhe um olhar furtivo, e desviou a vista, acariciando o queixo com ar meditativo.

- Por que não me respondeu? - perguntou, num tom monótono. - Digo-lhe que ela está muito mal. Acaba de ter uma crise de vómitos, e a fase aguda começa. Delira e fala de um jardim, de fontes e... - as palavras pareciam cair pesadamente - de suas frésias. . .

- Sinto muito - replicou o outro - muitíssimo.

- Sente mesmo? Tem razão para tal, garanto-lhe. Não creio que ela possa se curar. Sinto que vai morrer. Tenho o pressentimento, o horrível pressentimento.

Sua voz elevava-se pouco a pouco.

- Oh! esta sensação de morte rondando! Não a sente, também, pairar sobre esta casa? Não sente a aproximação do desastre, da noite? Ela está lá em cima, deitada. . . ele está à sua cabeceira... e eu penso...

Não terminou, a fisionomia triste contraiu-se, as palavras sufocavam-na. Houve um momento de silêncio embaraçador.

- Não se entregue desta maneira! Não fique perturbada; não é seu género. Enquanto houver vida e esperança, que diabo! E a senhora faz tudo o que pode para salvá-la, não é? Então!

Mas não fez mais do que agravar a agitação de Susan.

- Fazer tudo para salvá-la? Não há dúvida que faço. Luto com ele para combater o mal. Mas não vê?...

Pegou no braço de Corcoran com inesperada violência e a voz tornou-se confidencial:

- Não vê? Não compreende que o amo? Que no mais profundo do coração não desejo - não! não quero que ela fique boa! Oh! meu Deus! meu Deus! tende piedade de mim. É abominável pensar dessa forma; entretanto não me contenho, e isto me mata!

Era digna de pena na sua miséria. Pareceu-lhe que ela ia rebentar em soluços, mas a moça cerrou os dentes, a face nervosa imobilizou-se, a mão pendeu, sem força.

- O senhor sabe de tudo - murmurou, ofegante de emoção. - Ao menos confessei a alguém o que sou!

E com um passo de autómato deixou a cozinha pelo pátio, seguida pelo olhar perplexo e condoído de Corcoran.

Tomou o caminho mais comprido - o que seguia o riacho - e a caminhada no ar fresco permitiu-lhe dominar-se. A confissão espontânea e febril acalmara-a um pouco, e, quando atingiu a plantação, conseguira recompor uma fisionomia impassível.

Aaron Rodgers, em pessoa, estava sentado numa cadeira de balanço no patamar. Não se levantou à sua chegada, mas lançou-lhe um olhar desconfiado e malévolo, ao mesmo tempo que continuava a se balançar, como um derviche em êxtase.

- Onde está meu irmão? - perguntou Susan.

Ele levou algum tempo antes de responder, olhando para um ponto qualquer, como para afastá-la.

- Aqui não está.

Era uma decepção para Susan: precisava tanto ver seu caro Robbie.

- Onde está ele?

- Foi procurar quinino. Passa o tempo tomando drogas, em vez de se tornar útil. Sim, sim, olhe-me como se quisesse me arrancar os olhos; não mudarei de opinião. Falo de seu irmão, é claro. Nunca encontrei um missionário de seu quilate, desde que nasci. Não tem feito mais nada, desde que chegou, senão andar para lá e para cá, desocupado, com um ar idiota. Entretanto, trabalho não lhe falta! Quando recebeu seu bilhete, ficou agitado como uma mosca. vou dizer-lhe o que penso, assim que regressar. Se ele não gostar, tanto pior!

Embora habituada com as maneiras rudes e desagradáveis de seu hospedeiro, Susan indignou-se. Mas a fadiga venceu. "Para que protestar?" Replicou simplesmente, no momento de entrar em casa:

- Meu irmão não goza de muita saúde, e apenas teve tempo de se instalar.

Depois acrescentou, com uma amargura que não lhe era habitual:

- Dê-nos tempo para tomarmos contacto, antes de nos pedir milagres.

- Milagres!

A exclamação dubiamente desdenhosa alcançou-a em cheio na escada. Não lhe deu atenção. Que era a insolência daquele homem ao lado de seus próprios aborrecimentos?

Entrou no quarto, mexeu numa gaveta e tomou alguns objetos, enfiou-os, sem ordem, na valise que procurou debaixo da cama. Sentia-se despenteada, os olhos pisados. Pensou tristemente em todos os defeitos de seu físico, mas não fez nenhum gesto de coqueteria, nem mesmo o de olhar no espelho. Hesitou em deixar um bilhete para Robert, mas se lembrou que ele já estava ao par de seus projetos. Tomou a valise e desceu.

Rodgers, sempre na cadeira de balanço, fingiu que não a via, mas apenas ela andara seis metros chamou-a:

- Olá! Onde vai com esta valise?

Muito calma ela voltou-se e disse com firmeza:

- O senhor bem sabe. Volto para Los Cisnes.

- Que quer dizer? Levantou-se um pouco.

- Vai se meter ainda com essa gente? Volte, está ouvindo? Volte imediatamente. Não tem vergonha de correr atrás desse homem?

- Sabe bem por que volto, não é? Quando meu irmão chegar, diga-lhe que tornei a voltar, e que não preciso dele.

Quase acrescentou: "Não é prudente". Mas mudou de ideia, e disse apenas:

- Ele não me pode ser útil.

Depois, sem se incomodar com os veementes protestos de Rodgers, pôs-se a caminho através das moitas. Caminhava lentamente, a valise pesando-lhe no braço, envolta em solidão.

 

Não era por causa de quinino que Robert fora a Santa Cruz. Perambulando pelas ruas, afetava, entretanto, procurar uma loja com a marca "Químico", mas no fundo do coração o digno apóstolo da "Unidade do Sétimo Dia" zombava totalmente deste medicamento. O quinino não passava de um falacioso pretexto para salvaguardar sua dignidade já bem diminuída, para evitar as observações acres de Rodgers e afastar suas suspeitas.

Entretanto (procurava iludir-se) havia qualquer coisa de verdadeiro nesta necessidade de procurar quinino. Sim, sem dúvida; mas apesar de todos esses raciocínios artificiosos, os pés o arrastavam traiçoeiramente para a Plaza.

Inopinadamente encontrou-se diante de uma farmácia, e fez estalar a língua, numa expressão de hipócrita satisfação. Entrou no estabelecimento, fez o pedido, sentou-se numa das cadeiras dispostas em roda na sala branca, esperou com paciência, as mãos úmidas pousadas nos joelhos.

Cantarolava um hino mas, em vez dos versículos sagrados, palavras idiotas vinham-lhe à mente. Procurava expulsá-las, mas em vão:

Robert tendo chegado a Laguna Comprou bom quinino na cidade.

ou então:

O boticário mexe no seu almofariz, Não há mal nisto, Senhor que me ouvis.

Robert sentiu-se corar. Que poesia tola! E que maneira esquisita de misturar Deus com essas tolices! Mas também, que pode fazer um pobre sujeito quando a religião constitue parte tão íntima de sua vida? É bem natural que não consiga libertar-se. E não o desejava, é claro!

Quando lhe deram o embrulho, tentou caçoar com o farmacêutico de blusa branca, que se ocultava atrás da caixa:

- Não é chocolate com creme Chantilly que o senhor oferece a seus fregueses, hein?

Sem dúvida isso não era lá muito malicioso; a piada não tinha mais sal que o riso pesadão que a acompanhava. O farmacêutico nem mesmo sorriu. Observando a fisionomia nervosa do freguês, disse secamente:

- Quatro pesetas, senhor.

- Está bem.

Robert remexeu nos bolsos.

- Pensa que ia partir sem lhe pagar?

Parou, hesitante, no limiar da loja. Só lhe restava, agora, voltar a Laguna. Em torno dele o movimento da rua continuava, homens de tez bronzeada passavam por ele, mulheres circulavam, ostentando chales negros; mulas puxando carrinhos tropeçavam na calçada, e um vendedor ambulante oferecia talhadas de melancia. Mais longe um guarda civil, em pé, as pernas separadas, parecia alerta.

O missionário agitou-se, embaraçado no seu lugar. Seria que aquele homem o observava?. . . Não, vejamos. Era absurdo. Encarou-o por sua vez, sobranceiro, e um secreto pensamento fê-lo baixar os olhos. Decidiu-se enfim a descer lentamente a rua. E em que tinha o direito de dar uma volta antes de retornar à solidão da montanha.

Chegou à Plaza, atravessou-a, e, sem saber direito o que fazia, sentou-se num banco, debaixo das palmeiras. Diante dele, na fachada de estuque, as letras douradas indicavam: Hotel de la Plaza".

Quando, de manhã, Corcoran lhe trouxera o bilhete de Susan, uma dedução imediata impusera-se ao espírito de Robert. Jimmy respondeu sem desconfiança à pergunta feita com uma agitação febril. E desde que sentia Elissa nesse hotel, o missionário vivia angustiado, impelido para essa mulher por uma força irresistível, tendo, no íntimo do pensamento, um projeto cuja realização representava a solução de todas as dificuldades, o fim de sua miséria.

O sangue subiu-lhe ao rosto; ao mesmo tempo que mexia, com os dedos nervosos, na corrente do relógio, movia os lábios numa prece:

"Meu Deus, vinde em meu auxílio, fazei com que eu possa encontrá-la. Senhor, vós que me compreendeis, que sabeis que eu quero reparar meus erros, vede quanto é necessário que a veja. Ajudai-me, meu Deus!"

Levantando-se subitamente, dirigiu-se ao hotel. No hall, dois homens estavam sentados em torno de uma mesa: Dibdin, que ele reconheceu sem entusiasmo, e Carr, que desconhecia. Diminuiu o passo para vir-lhes ao encontro.

A acolhida foi glacial. Dibs murmurou uma vaga fórmula de polidez, Carr virou-lhe o olho inchado, depois o desviou com significativo desdém.

- Queria, - balbuciou Robert, - apresentar-lhes meus sentimentos, dizer-lhes quanto nos afeta à minha irmã e a mim, a doença de Lady Fielding. Agradeço ao céu por Susan lhe poder ser útil; sinto-me verdadeiramente feliz por isso, e lhes asseguro minha solidariedade neste transe.

Descansava a mão na beira da mesa e inclinava-se para os dois homens, afim de se tornar mais persuasivo.

Sua profissão de fé não teve eco nenhum. Dibdin perguntou-lhe, sem mais nem menos:

- Que faz aqui?

- Vim a Laguna comprar quinino. Entrei para apresentar-lhes meus sentimentos.. .

Dibdin deixou o monóculo cair da órbita e pender no fim do cordão de seda, e sem se importar mais com Robert, continuou a palestra:

- Se ao menos tivéssemos a resposta, saberíamos o que fazer.

- Mas por que diabo ele pedirá explicações? Quero ser enforcado se compreendo onde quer chegar.

- Michel tem maneiras muito particulares de encarar as coisas, - disse Dibs. - Não poderemos tomar qualquer iniciativa? - acrescentou, depois de ter parado um momento.

- No "Juizado" são tão estúpidos. . . e tão lentos! E depois, o que os atrapalha é o cordão sanitário. Não querem deixar nem entrar nem sair da zona circunscrita. Precisarão de um tempo louco para se movimentarem.

- A verdade é que ela partiu imprevistamente, sem me prevenir - continuou Dibs no tom de um homem que sempre está a repetir. - Não podia de forma alguma prever semelhante logro, e Michel não pode se zangar comigo, não acha?

- Oh! cale-se! Você me aborrece demais com suas eternas queixas. Seja mais homem! Não passa de um maricas.

Começavam uma disputa, pela centésima vez. Robert, sempre em pé, escutava-os com uma cara idiota. Estava louco para lhes perguntar onde se achava Elissa, mas não ousava. Toda a sua vontade se reduzia a zero, como também sua atitude moral caía em poeira.

Finalmente, decidiu-se a balbuciar:

- Sou obrigado a me despedir, pois não devo demorar. Vou-me embora.

Esperou, na expectativa de uma resposta polida, mas nenhum dos dois se dignou nem ao menos a levantar os olhos. . . Então, com um ar contristado, alcançou a porta.

Parou no vestíbulo, o coração batia violentamente, o sangue subia-lhe às faces. "Meu Deus! meu Deus!" - pensava com agitação, "não posso ir embora assim. . . não posso voltar assim para aquela enfadonha barraca do Rodgers! Não é possível. Preciso vê-la, ou então enlouqueço!"

Num olhar furtivo para o hall, certificou-se de que ninguém o observava, e, dirigindo-se ao porteiro negro, sentado atrás de sua mesinha, perguntou:

- Mrs. Baynham está hospedada aqui?

O negro enfiou no bolso, com presteza, o palito com que palitava os dentes, e levantou-se:

- Sim, "sinhó", Mrs. Baynham "tá" no seu quarto. Robert repetiu:

- No seu quarto?

- Sim, "sinhô", apartamento "treis". Primeiro andar à direita.

- Talvez você possa. . . talvez possa me anunciar? com um violento esforço, conseguiu conter o tremor da

voz. Mas, subindo com o groom e esperando atrás da porta, os últimos vestígios de sangue frio desapareceram. Tinha um i ar inseguro ao entrar no quarto. Ficou em pé no soalho encerado, mexendo sempre, com os dedos unidos, na corrente de relógio.

- Vim, - disse em tom profundo.

Depois o tom de pregador diminuiu, e ele continuou:

- Passava, por acaso. . . Pensei então. . . pensei que poderia fazer-lhe uma visita.

 Ela o encarou com um olhar glacial, malévolo. Deitada numa "chaise-longue", perto da janela, parecia uma enorme gata amuada. O quimono de seda caía em pregas volup-

Tinha os cabelos soltos, os braços nus sob as largas .mangas azuis, o seio ligeiramente velado.

Mas não fez nenhum esforço para se cobrir pudicamente, e não mexeu. Olhou-o fixamente até desconcertá-lo por completo. Finalmente disse:

- Ora essa! com que então você pensou em, me visitar, hein?

Ele deu um passo à frente.

- Oh! Elissa, - disse em lágrimas - É a mão de

Deus que de novo nos reúne. Julguei que você tivesse partido, que se separasse de mim para sempre. Parece-me um

autêntico milagre o fato de tornar a vê-la. Mas tanto rezei,

tanto supliquei ao Senhor que ele me atendeu.

- Você rezou mesmo? - perguntou Elissa, com uma incredulidade zombeteira. - Rezando por isso. . . Não é possível!

- Você não me compreende! Meu pensamento era purificado. Arrependo-me, sim; ajoelhado, batendo no peito, com remorso do meu pecado, pedi perdão a Deus. E veja, ele me testemunha sua misericórdia, reunindo-nos outra vez. Oh! Elissa, caríssima Elissa, amamo-nos.. . É tão belo! Por que não havíamos de nos amar? Deus não criou o homem e a mulher um para o outro?

E, com os lábios trémulos, os olhos brilhando, declamou, com a mão erguida: "O Senhor Deus formou a mulher e trouxe-a a Adão. Então Adão disse: "Eis aqui o osso de meus ossos e a carne de minha carne".

Houve um silêncio glacial, depois Elissa perguntou:

- Foi tudo o que ele disse?

Mas nenhuma ironia conseguia deter Robert. Arrebatado num transporte frenético, com um ar inspirado, continuou:

- "Por isto o homem deixará o pai e a mãe e se ligará à sua mulher. E serão dois numa só carne. Ora, Adão e sua mulher estavam então nus todos os dois, e não se envergonhavam por isto".

Os olhos dela dilatavam-se pela estupefação:

- Você está louco?

- Não, não estou louco, a não ser de amor. - O peito se lhe inchava, as lágrimas escorriam-lhe nas faces. - Oh! Elissa, minha bem-amada, pecamos juntos, mas agora nos pertencemos para sempre. Você é minha, a eleita de minha alma.

Secamente, ela gritou:

- Quando é que você vai se calar? Acabe de dizer asneiras! Se continua a me amolar com esta algaravia, ponho-o daqui pra fora.

Ele caiu de joelhos, gaguejando:

- Oh! não, Elissa, não! Você não compreende. Não vê como o cântico de Salomão é belo? Jamais compreendera sua beleza, até o dia em que a encontrei. Durante todas essas longas noites solitárias, esse cântico me obcecava, girava na minha cabeça: "Teus lábios, oh! minha esposa, são como um favo que destila mel. O mel e o leite estão debaixo de tua língua". Oh! não vê, não compreende que a peço em casamento?

Ela recuou na "chaise-longue". Durante um longo minuto só se ouviu a respiração ofegante de Robert. Depois ela rebentou em riso. Sem poder dominar-se, caiu para trás.

- Oh! Deus! - exclamou, - se eu sobreviver a esta viagem será um verdadeiro milagre. É demais! Uma catástrofe atrás da outra, e, para coroar a obra, esta cena ridícula. Isto ultrapassa os limites!

com um ar que fazia pena, Robert continuava a implorar, convulsivamente:

Não ria, não caçoe, suplico-lhe. Bem sei quanto está acima de mim, mas já que se entregou a mim, é porque me ama.

De repente, ela parou de rir, olhou-o com fria ironia, e chacoteou:

Acabe com esta choradeira grotesca.

- Mas não posso!. ..

Sufocado, tentou segurar a mão de Elissa.

- Levante-se.

- Não vê - balbuciou o coitado, fora de si, - não vê que você me fez perder a cabeça? Desde que a vi, não tive mais outra preocupação. Estou completamente obcecado!

- Levante-se - repetiu, fria.

Ele tropeçou ao levantar-se e conservou-se curvado diante dela:

- Escute-me direito, - continuou Elissa, - e procure compreender. Não o amo. Julgo-o o mais odioso cretino que Deus criou. Durante a viagem, pensei um instante que talvez você pudesse me distrair um pouco, mas você não me divertiu coisa alguma; caceteou-me ainda mais. Apenas você é muito vaidoso, muito cheio de si mesmo para percebê-lo. Sua piedade não passa de uma máscara, meu santo amigo, uma máscara atrás da qual só há egoísmo e vaidade. Você não é um homem, não tem a menor energia, você é um imbecil, um estúpido fabricante de sermões, cheio de frases ocas, mas incapaz de agir. Quanto a mim, conheço meus defeitos, sei que sou individualista, mas você é o mais completo egoísta que jamais cantou um salmo. Crê-se o enviado de Deus à terra, presente celeste à humanidade, e, sobretudo, pensa que é sincero. Isto é o pior de tudo! Preferia que fosse francamente hipócrita, talvez tivesse alguma consideração por você. Mas, qual o quê! Você se derrama em homilias, prega a bondade, a caridade, e deixa aos outros a prática dessas virtudes . Proclama-se o salvador das almas, grita bem alto, mas desde que o firam, abandona a luta e põe-se a choramingar como uma criança. Estou presa neste hotel pavoroso, posso de um momento para outro ser vítima da epidemia, não há nenhuma esperança de navio para voltar, e, além de todos esses aborrecimentos, devo ainda suportar as declarações incoerentes que você me faz, com o remorso na alma e o desejo nos olhos! De fato, é cómico demais, mas você me causa nojo; agora basta, peço-lhe que me deixe. Vá-se embora. Faz um calor abominável, falar me cansa, e não quero transpirar .

A fisionomia de Robert traiu sua consternação; pareceu sucumbir de repente. Dirigiu a Elissa um olhar cheio de abjeta suplicação:

- Elissa, não é possível! Não é isto o que você pensa. Não, Elissa, minha querida, meu amor, por que não me pode amar? Mas é preciso. Vejamos, sou um homem honesto, sou bom. Estou disposto a abandonar tudo para segui-la, meu ministério, minhas ambições religiosas, tudo! Farei tudo para agradar-lhe.

- Então, vá-se embora, é tudo o que lhe peço.

- Oh! não! - e no seu desespero, gaguejava e apoiava-se ao braço da moça. - Deixe-me rezar, deixe-me implorar a Deus, aqui, a seus pés. Talvez isso a faça voltar a mim. Não me expulse, suplico-lhe. Pertencemos um ao outro desde aquela noite. . . aquela noite adorável. . .

- Vá-se embora - ela apanhou o livro que deixara no braço da "chaise-longue" e o abriu - peço-lhe que me deixe imediatamente.

Mas ele continuava imóvel, aniquilado, com o ar de um cão escorraçado, apesar de sua imponente estatura. Remexendo no bolso, tirou um lenço e assoou-se discretamente. Passaram-se minutos. Seus olhos seguiam a linha voluptuosa do corpo preguiçoso. Corou de novo, recuou, hesitou, balbuciando :

- Você não quer, Elissa, mesmo sem se casar comigo, não quer ser um pouco... - gaguejava - não quer ser boazinha comigo?.. - Não, - respondeu sem erguer os olhos. - No momento não me interesso.

Ele baixou os olhos, vencido, mas o desespero transformava-se aos poucos em cólera. Não mais imploraria: a derrota enchia-lhe a boca de qualquer coisa como fel.

Então, você me expulsa. Julgou-me bastante bom para diverti-la. Agora só me resta sumir. Repele-me, você que fica aqui bem calma enquanto sua amiga está doente lá longe. Você, que é egoísta demais para ir socorrê-la.

Exatamente. Acabo de dizer que sou egoísta.

Êle pareceu não ouvir.

Quer que eu desapareça, não é? Deseja nunca mais

ouvir falar de mim, quer me riscar definitivamente de sua existência! Pois bem, eu lhe mostrarei que não faço empenho de sua opinião. Eu lhe mostrarei se sou um homem sem energia, sem vontade, - e foi até a entrada, sacudiu a maçaneta, abriu a porta, pôs-se a gritar: - Você não pode descer até mim e pensa que eu só sirvo para lhe lamber a sola do sapato, não é? Está bem, eu lhe farei ver. . . eu lhe farei ver.. . se sou pouca coisa!

Bateu a porta com violência, desceu as escadas a galope, precipitou-se na Plaza. Não sabia como fazer-lhe ver o que prometera. Só sabia que estava sobre brasas. Caminhava apressadamente, ao acaso; estava disposto a ir para qualquer lugar, fugir! Mas não para Laguna! Não consentiria em topar de novo o maldito Rodgers com suas odiosas maneiras de inquisidor. Não, não! antes morrer.

Ficaria em Santa Cruz. Queria ver quem poderia impedi-lo. Mostraria a todos quem era, e o que poderia fazer. Lembrou-se do hotel de Calle de la Tuna. Bem sabia que espécie de casa a velha emingway explorava, ou pelo menos desconfiava. Engoliu a saliva, virando e revirando o problema na cabeça. Não devia ir para lá: era um lugar mal afamado, e indigno. Hesitou, sentindo atração e repulsão ao mesmo tempo. Bem que precisava achar um refúgio, mas não em casa de Rodgers. Sobretudo ali, não! No fim de contas, por que estas suspeitas sobre o hotel de Calle de la Tuna? Nada provava que fossem justificadas. Não tinha o direito de emitir um julgamento temerário. E, depois, se era verdadeiramente um lugar de perdição, não era seu dever purificá-lo? Seu passo, a princípio hesitante, acelerava-se, levando-o involuntariamente ao porto. Ao mesmo tempo, punha-se a rezar interiormente, conforme seu hábito de imploração familiar, receosa, angustiada: "Meu Deus, meu Deus, eu não queria fazer o mal, foi ela quem me impeliu para o mau caminho. Vós bem sabeis, meu Deus: quando a procurei minhas intenções eram puras, mas ela me ridicularizou. Senhor, Senhor, ajudai-me. Preservai-me da tentação!"

Agora ele se apressava, como se fosse perseguido por um demónio, sempre na direção do porto. Os lábios agitavam-se continuamente numa imploração convulsiva. "Ajudai-me, meu Deus, livrai-me do mal".

Dobrou um canto de rua, entrou numa ruela onde as casas eram baixas, e sórdidas. Atrás dele ressoou um riso, acompanhado de um acorde de guitarra. Uma mulher no limiar de sua casa murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Que dissera ela? "Cinco pesetas, senhor". Era adiposa, tinha os seios como bexigas cheias de gordura. Sua chacota crapulosa perseguiu-o na rua estreita. Rezava sempre e seu rosto ardia quando entrou na Calle de la Tuna.

 

O sol deitava-se de novo atrás do grande pico, deixando Los Cisnes afogar-se lentamente no crepúsculo. No quarto da doente, os ângulos da peça tornavam-se já escuros, a sombra agarrava-se às paredes como uma bizarra tapeçaria, comprimindo-a pouco a pouco em torno da luz como em torno de uma vida que era preciso extinguir.

Somente as sombras se moviam no ambiente parado. Pela janela entreaberta, nenhuma brisa vinha refrescar o ar da peça, onde flutuava o odor da doença e dos medicamentos. Um calor forte pesava sobre o campo e, na casa, apenas se respirava.

Harvey estava sentado à cabeceira da cama, o corpo rígido, o queixo fincado na mão, de tal maneira que seu rosto se achava quase completamente escondido. Diante dele, viam-se, numa mesinha, o boletim, bacias pequenas, o termómetro, a seringa hipodérmica e os medicamentos, todos os acessórios médicos que Susan dispunha com meticuloso cuidado. Desde sua chegada, arranjara, limpara o quarto e conservava-o.no estado de asseio escrupuloso de uma sala de hospital. Neste momento, em pé à direita de Harvey, apenas visível na penumbra, ela apoiava-se, como esmagada de fadiga, contra o alto armário.

Um último raio de luz demorava-se na cama, atenuando-se progressivamente com a subida do crepúsculo, envolvendo de um halo dourado o rosto exangue de Mary - pobre fisionomia de traços repuxados que não era mais do que a sombra da fisionomia sorridente e animada dos dias anteriores, os pobres olhos semi-cerrados onde só brilhava um fraco vislumbre de vida.

Susan empertigou-se e falou em tom baixo:

- Não é hora de acender as velas?

Harvey não respondeu. com o espírito aniquilado por horrível apreensão, ouvia a voz sem perceber as palavras. Apenas alguns pensamentos surgiam na onda de desespero que o submergia. Desde quanto tempo estava à cabeceira de Mary? Um tempo tão curto, e entretanto tão longo. Mas na balança do tempo, um minuto não equivale a uma vida? Os grãos da areia caem sem cessar na ampulheta, grão por grão, segundo por segundo, um grão por uma lágrima, outro grão por uma vida, e quando se esvazia, a lágrima rolou, a vida extinguiu-se.

Que tortura, este desejo de reter uma existência humana à beira da eternidade. Harvey entretanto sempre sentira uma hostilidade, um certo nojo mesmo, diante da emoção que se manifesta no momento decisivo de uma doença grave. Até agora, só tivera em vista o sucesso ou o fracasso dos dados científicos. E agora seu coração tornava-se ardente - o mesmo coração que outrora era tão seco.

Mary! Pronunciava o nome tristemente, sem cessar, pois tudo o que sentia se condensava neste: Mary! Como a moça mudara em três dias, em três dias apenas de moléstia! Desde o primeiro minuto, Harvey percebera que a febre assumira um carater maligno, que a paciente ficaria logo entre a vida e a morte, mas esperava que se desse uma folga após a crise aguda. Infelizmente a pausa não se anunciava. Depois de uma breve baixa da febre que lhe dera um vislumbre de esperança, a temperatura tornou a subir e mantinha-se em alturas onde a vida se consome. Temperatura alta, pulso diminuindo pouco a pouco. Conhecia demais a significação dos dois sinais concomitantes; sua alma estava cheia de angústia .

A voz de Susan tirou-o do abismo. - vou trazer as velas.

Colocou o candelabro na mesa. A chama das velas mantinha-se direita, imóvel como uma lança, afastando as sombras que pareciam esperar como carpideiras em torno de um catafalco. Uma grande borboleta noturna entrou, balançando-se no ar como um navio. O ruído dos insetos tornava-se importuno. Dir-se-ia um murmúrio de prece.

Acho melhor fechar a janela, - disse Susan. - Convém desconfiar do ar da noite.

Levantando a cabeça, Harvey encarou-a, com o espírito

ainda ausente.

- Deixe, vou fechá-la.

Dirigiu-se à janela, fechou-a e encostou a testa na vidraça. Todos os seus movimentos se achavam diminuídos pela fadiga. A noite caíra e no jardim as massas sombrias das árvores pareciam sumir. Para o oeste um rastilho de luz, de brilho metálico, anunciava os relâmpagos, - clarão sinistro que enchia de ameaças a noite cálida.

Quando Harvey se voltou, os olhos calmos e tristes de Susan estavam pregados nele.

- Sente- se crescer a tempestade!

- Sim, o trovão se esconde atrás das montanhas.

Quase inconsciente das palavras pronunciadas Leith fixava Susan, notava-lhe a palidez do rosto, os traços repuxados, os cabelos embaraçados, as mangas arregaçadas, o polegar envolvido numa gaze, pois queimara-se com um desinfetante.

- Você está estafada.

A frase fora pronunciada com indiferença, mas Susan corou fortemente, repuxando a boca num sorriso que se assemelhava à careta.

- Absolutamente, não estou estafada. Você é que não se aguenta mais. Você é que trabalhou muito, tentou tudo o que se pode tentar, arriscou-se o mais possível. Você se

mata!

Ele não escutava. Consultou o relógio. - Desça para jantar, deite-se em seguida e repouse. - É inútil. Você precisa mais de repouso do que eu. Ouça-me, peço-lhe.

- Desça! - replicou ele, como se não tivesse ouvido. Ela fez um gesto de negação que logo reprimiu, encarando-o suplicante:

- Uma noite só, consinta em repousar só uma noite. Do contrário não resistirá. Atingiu o extremo limite de suas forças. Vá dormir esta noite, só esta.

Harvey aproximou-se do leito; seu rosto estava oculto na sombra:

- Você bem sabe que esta noite talvez seja a ultima! Susan inclínou-se, tentando encontrar-se com o olhar de

Harvey, mas êsté o desviava. Cansado, pôs a mão no travesseiro, e depois sentou-se de novo à cabeceira da doente.

Susan observava-o furtivamente. Era inútil insistir. Seria indiferente a tudo o que ela pudesse dizer. Suspirando, retirou-se, passou lentamente pelo corredor, desceu a custo as escadas e alcançou a sala de jantar.

O jantar estava na mesa. Corcoran e a marquesa esperavam-na. A vista da velha dama com seus trajes de uma época extinta, seu ar fantástico de autómato, causavam a Susan uma curiosa irritação. Deixou-se cair numa cadeira e mexeu maquinalmente com a colher na chícara de café que Corcoran pusera diante dela.

Durante um longo minuto ninguém disse nada. Jimmy enxugou a testa, e, somente para romper o constrangimento que já estava pesando, notou:

- Meu Deus! Esta tempestade nunca mais vem!

- Não cairá agora, - respondeu a marquesa, que se conservava toda tesa, à cabeceira da mesa. - Amanhã, talvez. . . Esta noite, não!

- Tanto pior! - disse Corcoran. - Esperar assim o primeiro trovão equivale a estar sentado num tonel de dinamite .

Susan agitou-se na cadeira. A fadiga punha-a num estado de nervosismo que não conseguia dominar.

- Que adianta lamentar-se por causa da tempestade?

- perguntou subitamente. - Não faltam coisas mais graves para nos preocupar neste momento. Seria melhor rezar do que lamentar-se.

A marquesa ergueu os olhos ao céu. Englobava Susan na aversão que lhe causava Rodgers, que captara sua mina, privara seu terreno de irrigação. "Os americanos agiram mal comigo", dizia ingenuamente.

- "Palavras de santa e unhas de gato", - murmurou com um vago sorriso. - É um provérbio bem velho; mas todos os provérbios e todas as orações deste mundo não impedirão a tempestade de cair na hora.

Susan corou. Quase respondia grosseiramente à velha senhora, mas dominou-se, baixou os olhos para o prato e, no fim de um instante, pediu desculpas.

Lamento o que disse. Falei sem refletir. Não me

queiram mal por isso. Estou tão cansada!

Não é este o momento de se lamentar, americana, -

disse a marquesa meneando a cabeça com uma expressão estranha. - É quando o trovão rebentar, aquele trovão de que não se deve falar. . . aí então será tempo de lamentações.

Susan encarou-a, apavorada, balbuciando:

- Que quer dizer?

A marquesa bebeu um gole dágua:

- Há coisas que as palavras não conseguem traduzir. É melhor deixá-las inexprimidas e meditá-las intimamente. Poderia dizer muita coisa sobre esta reunião em minha casa. Talvez tenha uma significação que ultrapasse o entendimento humano.. . Nossa sensibilidade é forte, mas somos tão ignorantes. . .

- Não fale assim, - murmurou Susan. - A senhora me causa arrepios. . . Oh! tenho medo, tenho medo, nesta casa!

- Aqui se passaram coisas bem estranhas, - replicou a marquesa sem sair da calma. - E coisas mais estranhas ainda vão talvez se passar. Por que procurar iludir-se? aproxima-se uma calamidade... sinto-o. Está no ar, como o trovão. Serei eu a vítima? Não, minha hora ainda não chegou. Será a senhora? É tão forte, tem tanta inteligência e atividade! Será a senhora inglesa.. . parece evidente, Sim, tudo é possivel. Ai, ai, ai. É livre de tirar todas as conclusões que quiser.

com a mãozinha carregada de anéis fez um gesto impreciso, mas que dava muito que pensar.

Susan contraiu-se como se dedos gelados rasgassem o véu de seu subconsciente.. A sala de paredes sombrias, sobre a qual pairava o grande cisne de asas abertas, envolvia-a de uma atmosfera pesada de terror. Estremeceu, e, ante o súbito pressentimento de um desastre, quase deu um grito. Mary ia morrer.

"Sim - pensava - ela não pode ficar boa. Convenci-me desde o primeiro instante".

O próprio Jimmy se agitou, inquieto, na cadeira.

- Vejamos, - disse inchando o peito com uma segurança fictícia. - Não se deve contar coisas assim. Quem pode predizer o futuro? A moça está bem doente, não há dúvida, mas enquanto existe vida, existe esperança.

Era a décima segunda vez que pronunciava com a mesma segurança esse lugar-comum. A marquesa sorriu outra vez:

- Falar é fácil. Fazer-se compreender é mais difícil. Calo-me. Lembre-se de que o mal vem em ondas e volta gota a gota.

Todos se conservaram silenciosos. Depois Jimmy replicou :

- Desgraça ou não, há uma coisa que não posso compreender e que me causa espécie. Por que será que não se ouve mais falar de Carr? O sujeito saiu batendo com a porta, jurando que as coisas não ficariam neste pé, que ia telegrafar para a Inglaterra - e depois, nada mais! Tanto ele como os outros.

- Que quer que eles façam? - disse Susan secamente. E acrescentou em surdina: - É impossível mexer com a doente antes que se produza uma pausa. Só o marido poderia tomar tão grave decisão.

Corcoran coçou o queixo, o que era nele sinal de grande perplexidade.

- Apesar de tudo não me sinto tranquilo: há em tudo isso alguma coisa que me faz temer por Harvey.

- Que podem censurar-lhe? Ninguém melhor do que ele trataria de Lady Fielding. . .

Sua fisionomia acusava um frémito nervoso. Não pôde pronunciar o nome de Harvey.

- Ele tem sido inexcedivel, saibam bem. Vi-o com meus próprios olhos, e estou pronta a jurar. . . que ele tentou o impossível para salvá-la.

- Sim; mas se a pobre moça não se salvar? - disse Jimmy, num cochicho. - Que irá acontecer ao Dr. Leith?

Esta pergunta redobrou a angústia de Susan, pondo a nu a ideia que a torturava. Sim. Se Mary Fielding morresse, (e ela ia morrer) atacariam o médico. Essa catástrofe, seguindo de tão perto o fracasso anterior, seria fatal a Leith.

Apanhou uma fruta, tentou comer um pedaço mas a garganta apertada recusava qualquer alimento. Uma imploração voltava sem cessar ao seu espírito: "Meu Deus, socorrei-nos! Meu Deus, vinde em nosso auxílio!"

De repente, sem que nada o tivesse feito prever, a marquesa levantou-se. Distraidamente lavou os dedos e os lábios, persignou-se murmurou uma ação de graças, tornou a se persignar ants de declarar:

- Quem come pouco, come depressa. É hora de Isabela de Luego retirar-se. Sim, ela deve voltar para seu quarto.

Dirigiu-se lentamente para a porta, com a mantilha flutuante. Mas, antes de transpor o limiar, passeou um olhar vago em torno da sala, e disse muito distintamente:

- "El gran arroyo pasa póstero".

Depois acrescentou:

 - "Adios".

Susan encarou Corcoran com terror. - Que disse ela?

Ele levantou-se, sacudindo as migalhas que tinham caído na roupa:

- Não sei, não compreendi uma palavra. Mas Susan pegou-lhe no braço com insistência:

- Que queria ela dizer?

- Qualquer coisa de um grande rio, e que deve ser o último a passar. Mas, não se deve prestar atenção ao que ela fala. É uma boa velhinha, quando a gente a conhece. Tirou-me de embaraço em boa hora!

Olhou para Susan disfarçadamente e declarou:

- vou à cozinha. Deixei uns pratos que não podem esperar até amanhã de manhã. . .

Susan ficou sozinha, entregue a um profundo mal-estar. Remexia nervosamente as cascas que ficaram no prato, cujo ácido atingia o dedo ferido. Mas, indiferente à dor, procurava apreender o sentido das palavras da velha: "El gran arroyo pasa póstero". Que frase estranha, inquietante, naquele lugar árido em que todos os regatos tinham secado... Enfim, dominando-se, sacudiu a impressão penosa e levantou-se. Quando afastou a cadeira, a porta abriu-se e Harvey entrou.

Receou tivesse acontecido o pior, vendo-o aparecer assim de repente. Não ousou formular a terrível pergunta e encarou-o, ansiosa, enquanto ele caminhava lentamente, sentando-se à sua frente. Por sua vez ele a encarou e meneou suavemente a cabeça:

- Não é isso, - disse num tom perfeitamente calmo, mas em que transparecia uma fadiga mortal.

- Ela está um pouco melhor? - perguntou Susan timidamente .

- Ah! Não está nada melhor. Pelo contrário! Perde gradualmente as forças. A última hemorragia fê-la desmaiar.

- Então, por que você desceu? Ele custou a responder:

- Ela se consome pouco a pouco, mas o fim da crise se aproxima. Se se pudesse mantê-la até amanhã, haveria uma probabilidade de salvá-la. Há um único meio: apresenta muitos riscos, mas é o único.

- Qual é? - perguntou a outra baixinho. Ele a encarou bem de frente.

- Uma transfusão.

Era tão inesperado que ela ficou surpresa; o coração batia-lhe com violência. Sentiu um calafrio:

- Você não pode fazer isto. É uma coisa que nunca foi tentada em caso igual, numa doente com tanta febre. Como pode encarar semelhante risco? Causa-me espanto ver você...

- Não sou mais eu mesmo.

- Espere mais um pouco..

- Para vê-la esgotada pela próxima hemorragia?

- Mas é uma coisa impossível de se fazer aqui, agora.. . Não tem nada do que é preciso.

É uma loucura! - disse, juntando as mãos. - Correrá

um risco tremendo. Se fracassar, incorrerá em todas as censuras. Todo o mundo o acusará, não compreende? Dirão que...

Ele não respondeu, apertando os lábios, com um sorriso irónico.

Em nome do céu! - gemeu Susan. - Suplico-lhe.

Já lhe quis dizer- isto mais de cem vezes. Sei que ninguém poderia fazer mais que você. Tem sido inexcedível, mas pense na responsabilidade que vai assumir, aqui, nesta casa isolada, longe de todos os olhares. Se ela morrer, dirão que você a matou.

Sua mão apalpava o braço de Harvey e seu olhar procurou o dos pobres olhos no rosto repuxado pela fadiga e pela angústia. Seu amor sufocava-a; gostaria de poder beijar aquelas pálpebras cansadas. Lágrimas escorriam-lhe pelas faces, maculando a fisionomia sem graça.

- Que me importa! - respondeu ele, sem olhá-la. Nada mais existirá para mim se ela morrer.

Estas palavras feriram Susan como um soco. Retirou a mão, erguendo-a até sua testa para ocultar as lágrimas, e procurou dominar-se.

- Se você resolver fazer a transfusão, - disse finalmente em tom que se esforçava por parecer calmo, - quererá sem dúvida que. . . eu seja a doadora, não é?

-Não, - respondeu Harvey. - Isto é comigo. Quero fazer tudo. . Assim, se errar, serei o único responsável. Você me prestará serviço preparando a água quente; vou dar-lhe as agulhas para ferver.

Levantou-se, alcançou a porta em silêncio, sem lançar ao menos um olhar a Susan. Mas ela, levantando-se, também o acompanhou.

 

No fundo do vestíbulo, o velho relógio castelhano, devidamente consertado e posto a funcionar por Corcoran, soou três pancadas. O som repercutiu na escuridão e os ecos vibraram até o quarto da doente. Maquinalmente, Harvey consultou o relógio. Desde uma hora era este o seu primeiro gesto. Três horas da manhã. Fazia profunda calma na casa, salvo onde a respiração oprimida de Mary se tornara um ruído tão familiar que fazia parte do próprio ambiente do quarto, parecendo tecido no seu silêncio. Harvey estava só com a doente. Obrigara os outros a repousar; acabaram por obedecer, não sem protesto. Quanto a Harvey, não havia nenhum heroísmo em sacrificar-se assim: era simplesmente normal. Mary não lhe pertencia agora? Esta ideia de posse impusera-se-lhe ao mesmo tempo em que seu sangue penetrava pouco a pouco no da doente. Aquela transfusão! Nunca mais poderia esquecê-la, nunca! Tentativa in extremis (pura loucura!) na solidão do vasto quarto, com aquele aparelhamento de acaso que o enchia de ansiedade. Revia o ante-braço estendido, banhado no círculo de luz da vela, a sombra em redor, o rosto de Susan branco como giz, os dedos trémulos. Uma verdadeira caricatura de suas experiências no hospital, uma paródia com a morte rindo-se a um canto. Um tratamento nem ortodoxo, nem científico, de que ele zombaria alguns meses antes, chamando de doido a quem o tivesse aplicado. Mas agora, não se tratava mais unicamente de inclinar-se sobre tubos de cultura; era preciso salvar uma existência, e nada poderia fazê-lo desaninar, nem as condições defeituosas, nem o perigo.

Se não conseguisse dar a Mary um pouco de força, ela morreria; tinha-se deixado guiar não pela razão pura, mas por uma intuição apaixonada. agora que a transfusão se operara estavam unidos um ao outro por laços que nada poderia romper.

A atmosfera do quarto era sufocante e Harvey sentia a cabeça girar, entregue a uma vertigem causada tanto pela falta de sono como pela perda de sangue. A luz feria-lhe os olhos; levantou-se para apagar a vela acesa em cima da cómoda que poderia também perturbar a doente. Tomando o outro castiçal e protegendo a chama com a mão inclinou-se mais, examinando com atenção o rosto amado, enquanto sua sombra assumia proporções gigantescas na parede. Deixou-se cair de novo, suspirando, na cadeira. Sempre a mesma coisa, nada mudava, sempre aquela respiração enfraquecida e sibilante! E entretanto, como a beleza subsistia naquela cabeça de lábios entre-abertos, suavemente esbatidos nos cantos, nas faces animadas de um colorido ardente, nos olhos semi-cerrados. . .

Harvey tornou a suspirar. Maquinalmente, tomou um pouco dágua, banhou a testa, os lábios secos. Logo após a transfusão, o pulso se acelerara, batendo melhor, e Harvey sentira forte esperança. Agora o mal triunfava de novo, e Mary caminhava progressivamente para a ilimitada desolação da morte.

Como lutara, entretanto, nestes três dias! Como se esforçara sem se poupar!

Passou a mão debaixo do lençol e pegou nos dedos finos, tão delgados, sem resistência à sua pressão. A sensação daqueles dedos queimados pela febre reavivou toda a sua dor; rilhou os dentes numa raiva de quem sente toda a raiva. Enviou sua vontade à enferma, para infundir-lhe sua força e resistência. Estavam ali os dois, criaturas ínfimas no grande universo indiferente, dois átomos desprezíveis na noite, mas juntos: e isto bastava para espancar as trevas, para suprimir todos os temores - menos um. Era o começo, talvez fosse o fim - e Harvey tinha consciência de que nunca mais poderia zombar da fraqueza humana, nunca mais seria duro, nem desprezaria a vida, - esse bem precioso entre todos, esse tesouro magnífico transbordante de felicidade. Curvado sobre o leito, sentia-se esmagado sob o peso de tantos sofrimentos: a beleza, o amor, misturados intimamente com o suor, as lágrimas, o sangue dos homens. Uma concentração sobre si mesmo mostrou-lhe o orgulho, a aridez de coração que haviam constituído até então o fundo do seu carater. Pensava nos seus doentes quando tratara deles? Pensara neles como criaturas que era preciso salvar? Não. Só valiam para ele o resultado dos seus trabalhos, o sucesso de suas experiências.

Cheio de humildade, sentiu, como sentira na última noite passada no "Auréola", quanto toda sua vida havia sido estragada e vazia.

com lágrimas nos olhos, contemplou o rosto de Mary. Ali jazia a fraca esperança de sua redenção. Se pudesse salvá-la, tudo estaria transformado. Oh! se ela resistisse somente algumas horas, até a pausa libertadora!

Sem querer, inclinou-se até a respiração quente de Mary, tocou-lhe o rosto e murmurou com doçura algumas palavras ao seu ouvido.

A enferma teve um vago sorriso inconsciente. Sem vê-lo nem ouvi-lo, balbuciou qualquer cousa ininteligível, depois continuou o delírio: - "Por que me levam? Por que me levam? Por que? Por que?"

Era como uma lição que uma criança tentasse decorar, como uma luta do cérebro contra algum poder desconhecido que procurasse dominar: "Por que me levam? Por que? Por que?"

Era mais do que Harvey podia suportar. Levantou-se, pôs-se a passear no quarto, os ombros curvos, o corpo inclinado para diante, como se as próprias roupas lhe caissem por cima. De vez em quando apertava nervosamente a testa com a mão, e escutava, o ouvido sempre atento àquela voz alucinante. Não podia continuar assim, - era impossível. Parou diante da janela, ergueu os olhos ao céu. A lua ocultara-se, não se viam as estrelas. A este, nas nuvens pesadas, fracos rastilhos de luz anunciavam a aproximação da aurora. Que haveria atrás desta alvorada lenta? Que traria a manhã custando tanto a chegar?

Como uma resposta à sua pergunta a voz calou-se, da súbito. O coração de Harvey parecia rebentar, e voltou-se, aterrorizado. Não, a respiração sibilante continuava, mas a reação fora tão violenta que ele ficou um instante aniquilado. o coração suspenso nos lábios. Lentamente ajoelhou-se perto do leito, apalpando o pulso. Sempre o mesmo ritmo, lento, irregular, tão fraco! Contou laboriosamente as pulsações, Que fazer? Que mais tentar? O cérebro de Harvey trabalhava febrilmente. Decidiu dar uma injeção de estricnína. Sempre de joelhos preparou a seringa, fez penetrar a agulha, depois apertando os dedos no punho enfraquecido, de veias azuladas, contou mais. Um, dois, três. Quantas vezes medira aquelas fracas pulsações. Quatro, cinco, seis. Como Mary estava imóvel! Como seu rosto ganhava o aspecto de máscara! As lágrimas subiram-lhe aos olhos novamente. Amava-a apaixonadamente, não com desejo carnal, mas com toda a ternura de sua alma, - ele que sempre zombara da união espiritual! Não tinha ideia de rezar, não, era incapaz disto - mas, seu pensamento instintivo era uma imploração. Nada mais valia cousa alguma para ele aqui na terra - a não ser a vida de Mary: não pedia nada mais. Somente isto seria o coroamento do amor dos dois.

A doente gemeu baixinho. Ele banhou outra vez os lábios, a testa. Que mais podia fazer? Apoiado contra o leito, os olhos ardentes de insónia, esperava, com as forças esgotadas, mas resistindo ao sono.

A atmosfera tornava-se cada vez mais irrespirável. A tensão aumentava com a chegada do dia. Quanto tempo se passara desde que Harvey perscrutava a fisionomia inconsciente? Segundos? Minutos? Horas? Não poderia dizê-lo; mas de repente teve um sobressalto, ajoelhou-se e ficou absolutamente imóvel alguns segundos, contendo a respiração.

Algumas gotinhas brilhavam na testa e nos lábios de Mary. Harvey soltou um profundo suspiro. Não ousava acreditar, não ousava nem se mexer.

Tinha medo. Depois, muito timidamente, avançou a mão. Era verdade: a testa, até há pouco ardente, estava úmida e, como sob o efeito de um milagre, a respiração tornava-se mais fácil, mais calma!

"Não é possível, - pensava - não é possível!"

Seus dedos nervosos procuravam o termómetro; enfiou-o cautelosamente debaixo do braço da enferma. Embora fosse um instrumento de uso rápido, esperou dois longos minutos, e as mãos tremiam-lhe de tal maneira, que em seguida quase o deixou cair. Os olhos embaciados pelo temor não chegavam a distinguir os algarismos. Enfim, o nevoeiro dissipou-se e pôde ler: a temperatura baixara.

Foi preciso a Hervey um esforço sobre-humano para reprimir a onda de alegria que o assaltava. Era uma alegria selvagem, tumultuosa. Sabia que uma pausa deste género indicava não só uma diminuição momentânea de febre, mas o começo da convalescença, a indicação certa da cura. Não era belo de mais para ser verdade? Ainda sob o efeito da dúvida, Harvey esforçou-se por esperar pacientemente uma longa meia hora. Tornou a pôr o termómetro; com mão já firme, alçou-o ao seu olhar. Não havia mais ilusão possível: a temperatura baixara mais. Uma benfazeja umidade banhava o corpo de Mary, o pulso estava mais forte, a respiração mais regular; até mesmo os traços apagados pareciam voltar à vida.

A alegria de Harvey não teve mais limites. Exultava; um soluço sufocou-o, e, como se tivesse ouvido, a enferma abriu os olhos lentamente e o fixou com um olhar que recuperara toda a sua consciência.

- Estive doente?

- Está melhor, - disse ele, com inefável felicidade.

- Vai sarar.

- Eu sei...

Esboçou um sorriso. O quarto estava inundado de claridade. As sombras tinham fugido para sempre. Harvey deu-lhe de beber, viu-a fechar de novo os olhos num sono tranquilo, observou longamente o rosto encantador.

Na sua agitação queria acordar Corcoran e Susan, para dar-lhes a boa nova. Mas a fadiga o traiu. Tomado de vertigem, sentiu necessidade de respirar. Já que ela dormia, que provavelmente dormiria muitas horas, e que estava salva, podia, sem risco, ir tomar um pouco de ar. Após um último olhar a Mary, deixou o quarto na ponta dos pés, desceu.

Atravessando o jardim, alcançou o pequeno bosque de laranjeiras, onde se encontrara com a amada durante aquela noite deliciosa e trágica. Continuava exultante, mas o cansaço tornava-lhe os pés pesados, fazendo-o tropeçar. Não dormia havia três noites; estava totalmente esgotado.

Nenhuma brisa animava o ar carregado, nem um pássaro saudava a manhã com gritos ou cantos.

A terra imóvel esperava em silêncio a tempestade.

Que importava a tempestade? Que poderia acontecer de importante? Mary estava viva, salva? Hipnotizado pela felicidade, Harvey caminhava ao acaso; ultrapassou os limites da plantação, chegou a um bosquezinho de aretamas". Foi aí que ouviu um curioso zumbido, que parecia vir muito alto, semelhante a uma libélula gigante que atravessasse as nuvens. Era talvez mais um mugido que um zumbido. Harvey ergueu os olhos, mas o brilho metálico do céu os ofuscou. Como se sentia cansado! Era, pois, à fadiga, que devia atribuir esse barulho nos ouvidos? Riu-se com a ideia de que percebia sons imaginários. Mas não tinha nem mesmo a força de rir mais; as pálpebras fechavam-se contra sua vontade. Bêbedo de sono, tropeçou de novo, e, enquanto um hidroplano girava em torno da baía, e amerissava nas águas do porto de Santa Cruz, Harvey deitava-se no chão, e, oculto pela ramada espessa, adormecia profundamente.

 

Quanto tempo dormira? Seria incapaz de dizer. Seu relógio parara, mas pareceu-lhe que devia ser tarde, pois o céu escurecia. A chuva começava a cair; gotas pesadas e quentes batiam-lhe no rosto, e tinham-no despertado.

Meio surpreso por se encontrar ali, ficou um momento estendido debaixo da moita, olhando entre os ramos as nuvens espessas se amontoarem no céu, deixando a água cair-lhe no rosto, entrar-lhe na boca; tinha um gosto adocicado e insípido. Um violento trovão sacudiu a atmosfera, ribombou ao longe e uma tremenda chuvarada caiu.

Harvey levantou-se bruscamente, rindo como uma criança, e correu para a casa. Sentia-se refeito. A tempestade enfim caía, e, depois de se ter feito esperar muito tempo, parecia querer tomar a desforra. Outra trovoada fez rir Harvey mais ainda. Não tinha todos os motivos para ficar alegre? Seu primeiro pensamento, ao despertar, fora para Mary: estava salva. Esta certeza era magnífica: salva, salva!. . . Pulou através da alameda, mal notando os sulcos traçados de fresco na areia, galgou num segundo o patamar e parou no vestíbulo para sacudir a roupa molhada e ganhar fôlego. Um profundo silêncio reinava na casa, mas desta vez não lhe causou inquietude nenhuma.

com o passo alerta dirigiu-se à sala de jantar, cuja porta estava toda aberta, e parou no limiar. Na sombra e na paz da grande sala solene, misteriosa e familiar, a marquesa estava sentada à mesa comprida. Jantava sozinha. Aquilo era estranho e Harvey foi assaltado pela lembrança de seu primeiro encontro. A velha dama trazia o mesmo vestido negro, as mesmas jóias e guardava toda a dignidade enigmática e antiquada. Talvez tivesse consciência de sua presença, pois ergueu os olhos e o encarou sem surpresa, dizendo:

- Está de volta, senhor? Alegro-me. Veja, era esperado. Eis algumas frutas e leite preparados para o senhor, como no primeiro dia.

- Deixei-me dormir muito tempo, - disse ele sorrindo,

- e num lugar esquisito. Mas, antes de sentar-me, subirei um instante.

- Jante primeiro, - disse a velha com gravidade. - O homem prudente toma logo do pouco que lhe oferecem, enquanto o louco, sem parar, corre atrás das riquezas.

Estas maneiras misteriosas da marquesa divertiram Harvey mais do que de costume.

- Prefiro subir. Mas vou beber um pouco de leite, apenas.

Entrou, aproximou-se da mesa, e bebeu a grandes goles o leite espumante que lhe pareceu delicioso. Apertando ainda o copo entre os dedos, perguntou:

- Onde estão os outros?

- A americana está lá em cima. El Corcoran vai voltar: foi a Santa Cruz com a escolta.

- A escolta? - disse Harvey, admirado. Não conheço esta palavra.

- As palavras e as penas voam. ao vento. Ele sorriu ainda, mas, parecendo hesitar:

- Sou um tolo, não compreendo.

- Não há remédio para a tolice. Não disse que a tempestade rebentaria?

Desta vez o olhar que fixou sobre a marquesa era cheio de apreensão. Aquela velha, com a fisionomia sibilina, deixava-o gelado. Sentiu medo de repente.

- Que aconteceu? Por que Corcoran foi a Santa Cruz? Que significam todos esses mistérios?

Sempre como na primeira noite, ela partia tranquilamente um figo em pedacinhos. Inclinando docemente a cabeça respondeu:

- Quem não sabe prever fica para trás.

Fez-se novo silêncio. Harvey, exasperado por aquelas frases evasivas, pôs bruscamente o copo na mesa e subiu as escadas quatro a quatro. Um novo trovão o ensurdeceu, enquanto atravessava o corredor. Precipitou-se no quarto e parou de repente, não podendo acreditar no que via.

Susan Tranter estava só, ajoelhada perto da janela aberta, com o chapéu na cabeça, vestida para sair. A cama vazia, arrumada de novo. Harvey sentiu o coração enfraquecer.

- Que aconteceu? - exclamou num impulso selvagem.

- Onde está Mary?

- Enfim, enfim, chegou - balbuciou a moça. - Não sabíamos onde procurá-lo, e eu estava com medo.

- Mary! - vociferou Harvey. - Pelo amor de Deus, diga-me o que lhe aconteceu?

Um trovão ainda mais violento que os anteriores respondeu-lhe, e uma rajada fez tremer a janela nos gonzos enferrujados.

- Ela partiu.

- Partiu?

- Eles levaram-na.

- Levaram-na? - e as palavras chegaram-lhe aos ouvidos como um eco estúpido; e no mesmo tom, com esforço acrescentou:

- Quem a levou?

Os olhos de Susan pregaram-se nele com uma expressão mista de piedade e de ciúme:

- Seu marido.

Harvey continuava aparvalhado sem compreender. Susan continuou:

- Sir Michel Fielding chegou esta manhã cedo, depois de haver feito a viagem da Inglaterra a Santa Cruz em aeroplano, ou melhor, em hidroplano. Você não estava aqui. Depois de tê-lo esperado em vão durante horas, decidiu transportar sua mulher à cidade. Partiram há meia hora apenas.

Harvey continuava petrificado, os membros chumbados, quase sem respirar.

Mary partira, levada pelo marido.. . seu marido! Era estupidificante, e apesar de tudo, tão simples! Harvey previra tudo, salvo isto... A dor que sentia o pôs furioso:

- Transportá-la era uma loucura: não se achava em estado de suportar essa fadiga - exclamou. - Era muito cedo ainda. Por que você permitiu que a levassem? Por que, em nome do céu, deixou que a levassem?

Ela baixou os olhos.

- Não tinha nenhum direito de me opor, - disse com agitação. - Mas, não se inquiete: as maiores precauções foram tomadas. Ela estava fora de perigo, e para a convalescença estará melhor em Santa Cruz, na bela casa que ele alugou, do que neste deserto medonho.

Ele apertou a testa nas mãos trémulas. Sua fisionomia tornara-se cor de cera. uma dor violenta atingia-lhe a ilharga, como se lhe enfiassem um punhal no flanco. Sua cólera sumira, pois agora não tinha mais objeto. . . Lembrou-se das

palavras que Mary pronunciara no seu delírio: "Por que me levam? Por que, por que?" Tivera este pressentimento da separação.

O espírito de Harvey perdeu-se em miragens nebulosas. De certa maneira parecia-lhe assistir a um acontecimento longínquo no tempo e no espaço.

Entretanto, ele o via, mais próximo, mais real, corroborando suas fugitivas impressões precedentes. Essa visão era

o resultado de suas emoções; por um instante ela lhe apareceu

com precisão. Uma cortina se ergueu, depois tornou a cair.

Susan levantou a cabeça e um relâmpago, iluminando o

quarto, marcou a consternação que seu rosto exprimia.

- Peço-lhe que se acalme, - suplicou. - Não posso suportar vê-lo transtornado assim.

Pôs-lhe a mão no braço:

- Não vê que tudo é melhor assim.. . infinitamente melhor? Você fez tudo que era humanamente possível fazer...

Acrescentou, com lágrimas de compaixão nos olhos:

- Caro amigo, não vê quanto sofro por vê-lo sofrer? Não compreende que lamento tudo isto de todo o meu coração? Daria minha alma para consolá-lo.

Harvey deixou-se cair numa cadeira e fincou a cabeça nas mãos. As lágrimas inundavam as faces de Susan. Súbito, não pôde conter por mais tempo a confissão do seu amor, embora tivesse jurado a si mesma que nunca. . . Mas, oh!. ..

Pôs-se de joelhos ao lado dele.

- Escute-me, - disse num cochicho, - escute-me, suplico-lhe. .. Salvou-lhe a vida, mas não podia fazer mais. Ela é casada, unida a um homem que lhe dedica a maior afeição. Que pode contra isso? Se a ama, não procurará quebrar esta união; não estragará por uma baixeza o sentimento nobre e puro que experimenta. Seria indigno de você, de sua coragem, de sua ciência. E agora, escute-me e pense o que quiser... pouco me importa, mas escute-me; desde o dia em que vi o sofrimento estampado na sua fisionomia, fiquei louca. Dê-me uma esperança.

Estendeu a mão convulsivamente e tomou a de Harvey.

- Você não me ama, mas quem sabe. . . talvez possa me amar um dia. . . Deixe-me cuidar de você e ajudá-lo. Trabalharei, serei sua escrava. O céu me é testemunho de que estou pronta a dar a vida por você. . . Deixe-me provar-lhe o meu amor!

Ele a encarou, com impassibilidade, mas com um olhar piedoso:

- Não, Susan, - disse lentamente. - Também isso não é possível.. .

Ouvindo-o pronunciar seu nome, ela sentiu-se enfraquecer .

- Está certo?

Ele desviou a cabeça, sem responder; ela ficou silenciosa, cegada pelas lágrimas. Sua cabeça pendeu sobre o peito; teve um calafrio.

- Se é assim, - disse numa voz estrangulada, - compreendo que não vale a pena.. .

Levantou-se. O vento que soprava pela janela aberta tornava-a gelada.

"Meu Deus! Meu Deus! Porque me fizestes sem encantos, sem graça? Por que me recusastes os dons que atraem o amor?"

Qualquer cousa acabava de ser esmagada em seu interior. Era o fim. Encarou ainda Harvey, sucumbido na sua cadeira de encosto de couro:

- Eu ia partir quando você chegou. É melhor, portanto, que eu me vá.

Ele levantou-se, e sempre com olhar desviado perguntou: ?- Quer que a leve até seu irmão?

- Não, deixe-me.

Conservava-se em pé diante dele, os braços pendentes, o corpo abatido, sem forças. Depois alçou-se até ele, pousouos lábios no seu rosto. A pele fria contra sua boca ardente fê-la sofrer ainda mais. Soluçou novamente.

Depois, chorando sempre, saiu do quarto com a trágica impressão de que nunca mais o reveria.

 

Louvado seja Deus, restava-lhe Robert! Ao mesmo tempo que lutava contra o vento e a chuva, no caminho que a conduzia à plantação de Robert, esta ideia sustentava-a: era um clarão no seu desespero. Seu irmão, seu Robbie, seu caro Robbie. Ele a consolaria, e compreenderia.

A tempestade continuava. Uma chuva diluviana transformava o riacho numa torrente estrondosa e lamacenta. A desolação dessa noite unia-se à desolação de sua alma.

Os cabelos soltos caíam-lhe no rosto. com a jaqueta, e a valise ordinária, tinha um aspecto modesto e sem heroísmo. Situada em outro ambiente, em uma rua de Okeville, por exemplo, tomá-la-iam por uma professorazinha partindo calmamente para as férias. Mas a paz desertara do seu coração, e, quanto às férias! Que estranhas férias esperavam a pobre Susan!

Saindo de um grupo de cedros, abriu a porteira da propriedade de Rodgers, e subiu a alameda. Uma única janela estava iluminada no saguão. No vestíbulo, descansou a valise e entrou no gabinete.

O gabinete era de uma austeridade bíblica, severamente mobilado de carvalho claro, o soalho forrado de linóleo. À luz de uma lâmpada com abajur verde, Rodgers, sentado, lia o Novo Testamento. Estava só.

Ergueu os olhos para Susan e examinou-a da cabeça aos pés, apertando os lábios:

- Ei-la de volta! - disse em voz fria.

Susan sentia-se fraca e inquieta. Não podia habituar-se a esta hostilidade perpétua.

- Onde está Robert? Quero ver meu irmão. Rodgers tirou os óculos, colocou-os na caixa com a calma

de um juiz, e fixou de novo Susan com um risinho zombeteiro:

Você quer seu irmão? Isso é verdadeiramente cómico. . . Sim, palavra, é mais engraçado que tudo!

Suas maneiras começavam a espantar Susan, e, na sua desorientação, não se sentia com força para tolerar bobagens.

- Que quer dizer tudo isso? Ele está lá em cima? Saiu? Fale, fale! Quero saber, já!

- É certo? - disse o outro, com uma polidez afetada, que lhe aumentava o tom sarcástico. - Quer saber tudo? É magnifico. . Isso vale tudo! Mas, enfim a irmã do missionário tem o direito de saber. . . É muito natural!

Mudou de tom e pôs-se a vociferar:

- Já que faz questão, vou lhe dizer. . . Sim, ele partiu, foi-se embora, o canalha! Desde o dia em que você foi buscar sua valise, não apareceu mais. Está em Santa Cruz, onde se chafurda numa cloaca de vícios e impurezas.

Susan empalideceu, sem compreender.

- Em Santa Cruz? Que faz ele em Santa Cruz?

O riso desdenhoso de Rodgers chocou-a fortemente.

- Que é que ele faz? Você quer saber isso também? É muito curiosa, realmente. Mas é preciso reconhecer que merece atenções, muitas atenções. . . Não vieram de muito longe, você e seu irmão, para pregar a boa nova nesta terra de pecadores? Eis aí um bom exemplo para os nativos e para os seus compatriotas; que dignos apóstolos de nosso divino mestre!

Alisou com amor a Bíblia que estava na mesa.

Susan estava horrorizada por se achar só nessa casa com aquele maníaco, enquanto o vento e a chuva tumultuavam lá fora. Angustiada, não somente pela ausência de Robert, mas sobretudo por aquela partida misteriosa, ia falar, mas Rodgers continuou a berrar:

- Cale-se! Nem mais uma palavra! E, já que quer saber a verdade, prepare-se para ouvi-la: ele foi para o diabo, pronto! Desde o primeiro minuto desconfiei que ele não valia a corda para o enforcar! Agora minhas suspeitas tornam-se mais amplamente confirmadas. Acha-se em Santa Cruz, na horrorosa casa da tal Hemmingway. Vi-o com meus próprios

olhos. Fui a Santa Cruz para ter a certeza. Ele está lá, afogado no deboche, atolado nos seios de uma prostituta!

As palavras batiam em Susan como uma chuva de pedras, mas enrijou-se para o Defender, para negar.

- Não é verdade!

Ele levantou-se e caminhou lentamente para ela, domínando-a com sua figura esquelética, ameaçando-a com seu olhar sombrio:

- Você me chama de mentiroso! E na minha própria casa! A mim, Aaron Rodgers, fervoroso servidor de Deus!

E levantou os punhos para Susan, como para atrair a cólera celeste sobre ela.

Susan continuava imóvel, curvada por um terror muito maior do que o que lhe inspirava o fanático: o terror de que estivesse dizendo a verdade.

Abafou o grito que ia soltar, imaginando Robert arrastado por algo de impuro. Arrepiou-se toda.

- Pode baixar a cabeça, - continuava a clamar Rodgers com um ardor fanático. - Tratar-me de mentiroso, a mim! Ajoelhe-se com a cabeça na poeira e peça perdão ao Senhor Deus como a mim mesmo!

Mas Susan não o ouvia mais. Um único pensamento a dominava agora: Robert precisava dela. Era necessário, portanto, que fosse em seu ausílio.

com um sobressalto, ela endireitou o corpo cansado e recuou, ao mesmo tempo que desafiava Rodgers:

- Não tenho que lhe pedir perdão.. . Eu mesma vou ver o que se passa, vou procurar meu irmão.

Voltou-se para abrir a porta, foi às pressas ao vestíbulo para apanhar a capa e uma lanterna que se encontrava pendurada na parede.

Rodgers, com a fisionomia sinistra, seguira-a com passo pesado, sem dizer uma só palavra. Pouco a pouco, entretanto, os sinais de cólera desapareciam. Finalmente disse num tom de calma recuperada:

- Há uma tempestade, uma verdadeira tempestade... Está ouvindo?

Susan quasi não ouvia. com os dedos trémulos acendeu o primeiro fósforo, que se apagou em seguida.

A estrada já não é lá muito boa em tempo normal,

continuou Rodgers. - Hoje deve estar intransitável. Você

se arrisca a se perder no mato, ou a ser colhida por um raio. Reflita bem, antes de deixar a minha casa.

A lanterna estava acesa; fechou-a com um gesto seco e dirigiu-se ao patamar.

Ele adiantou-se vivamente:

- Não vá assim, pense bem! Não compreende que sair neste momento é uma grande loucura? Não estou zangado, afinal. . . fique aqui até amanhã de manhã.

Ela voltou-se antes de transpor o limiar, pálida, mas com os olhos enérgicos, brilhantes.

- Não ficarei nem mais um minuto em sua casa. Parto e nunca mais voltarei.

Já corria na alameda antes que ele pudesse responder. Da escuridão tempestuosa em que se lançara, ouvia Rodgers chamá-la uma, duas vezes, mas nem ao menos virou a cabeça. Lutando contra o vento ia embora, caminhando, correndo até sair da fazenda.

A lanterna prestava-lhe muito auxílio, pois fora do seu raio luminoso, as trevas faziam um muro opaco, e a água que invadia tudo afogava o caminho, caindo em torrentes, submergindo tudo debaixo de um verdadeiro dilúvio. Os pés de Susan atolavam-se numa lama espessa que espirrava no seu vestido. A chuva quente como o vento fustigava-lhe o rosto, colava seus cabelos na testa - mas que lhe importava? Caminhando sempre, atravessou a ponte com um suspiro de alívio, encontrou-se enfim na estrada real.

Era a Carretera percorrida por Harvey no dia de sua chegada a Los Cisnes; mas que diferença do calmo crepúsculo de então! Agora, o vento gemendo e assobiando quebrava os ramos, arrancava as folhas. E a chuva era cada vez mais forte.

Nunca Susan vira cargas dágua com tamanha violência. Suas roupas colavam-se-lhe ao corpo como as de uma afogada. A água escorria-lhe da saia. De vez em quando rebentava no céu, não um relâmpago, mas uma espécie de fulguração difusa que atravessava a nuvem como um fogo fátuo.

Uma vontade de ferro sustentava Susan. Atravessou a aldeia de La Cuesta, passou diante dos chafarizes transbordando ao pé das penedias basálticas. A fadiga, entretanto, começava a encurtar-lhe o passo; e, se bem que o vento estivesse para trás e que o caminho descesse em inclinação suave, seu corpo curvava-se, os joelhos enfraqueciam-se, as forças esgotavam-se.

Foi então que, para lhe mostrar que não a abandonava (ela viu nisso um sinal da Sua bondade) Deus lhe mandou uma charrete. Escutando um trote de cavalo no caminho, Susan voltou-se cheia de esperança, e agitou a lanterna.

As mulas pararam perto dela com um sobressalto e o condutor, com os olhos negros brilhando debaixo do saco em que se resguardava, examinou-a com espanto. A moça tinha um ar estranho, pregada ali sob a chuva diluviana, com o rosto lívido, levantado num ansioso esforço para se fazer compreender .

- Leve-me, deixe-me subir. . .

- Pêro yo no entendo.

- Deixe-me subir. . Pelo amor de Deus, leve-me a Santa Cruz! Que entendia ele? Uma cousa, evidentemente: que aquela mulher precisava de socorro, pois a tempestade era medonha. Fez um sinal com o chicote, e, um instante depois, pondo um pé na roda, ela trepava no assento alto da charrete, que partiu com rapidez, sacudida por fortes solavancos.

O condutor era um comerciante da feira de Santa Cruz que, surpreendido pelo temporal, preferira voltar o mais breve possível para a cidade a passar a noite na montanha. Não dizia palavra, mas, de vez em quando, lançava um olhar indagador à passageira, que se conservava tesa ao seu lado, moída de impaciência, apesar da charrete ser rápida como o diabo. Enfim, depois de uma curva as luzes de Santa Cruz tornaram-se visíveis, através de uma cortina de chuva. As ruas e a Plaza estavam desertas, e, em toda a cidade, ressoava um ruído espantoso que intrigou Susan. Entretanto, não era o vento, nem as cargas dáguas. No fim de um instante percebeu que o rio, o Barranca Almeida, desmesuradamente engrossado, rolava com estrondo as águas revoltas.

A charrete parou diante de uma estrebaria, numa ruela atrás do mercado. Susan pôs o pé em terra, remexeu no bolso, tirou uma moeda que estendeu ao homem. Depois olhou em torno de si, procurando orientar-se. Não tardou a encontrar seu caminho, e alguns minutos mais tarde encontrava-se na Calle de La Tuna, diante da casa que procurava.

A entrada não estava iluminada, mas um muxarabe deixava filtrar a luz através da grade. Susan meteu a mão no botão da porta que se abriu sem esforço, e precipitou-se no vestíbulo com um suspiro convulso.

Achava-se numa espécie de comprida galeria, ornada de quadrados de mosaico e de uma fila de palmas que caíam em poeira. Uma frisa meio apagada ocupava a extensão da parede, e, de um lado, pendia uma série de quadrinhos bordados em lãs de várias cores representando navios. À esquerda, um pátio fechado por uma portinhola que deixava passar a fumaça do tabaco e um sulco luminoso. Por detrás ressoavam vozes, risos e um toque de bandolim.

Susan parara. Nada havia de muito alarmante em tudo aquilo; entretanto, ela tremia da cabeça aos pés, sob a horrível apreensão de um desastre. Cerrando os punhos, avançou alguns passos; neste momento, alguém levantou a cortina e dirigiu-se a ela: a velha Hemmingway.

Susan corou fortemente, depois empalideceu, à espera de uma discussão. Mas, cousa incrível - a outra não dizia nada; parecia até muito embaraçada e examinava Susan de alto a baixo.

- Que faz por aqui com este tempo? - exclamou, afinal. - Fez-me medo, entrando assim, sem mais nem menos. Pensei ver um fantasma. . . Mas está toda molhada.. . De onde vem, para se encontrar em tal estado? Não tinha nem um guarda-chuva ao menos?... E com este tempo!. ..

Debaixo de sua volubilidade transparecia uma vaga entonação de pena.

Susan parecia inconsciente de seu aspecto, de suas vestes deformadas e lamacentas, de seus cabelos grudados, de seus sapatos que sujavam os ladrilhos de poças barrentas. Gritou:

- Meu irmão está aqui?

A outra parecia não ouvir. Tomada de súbita energia, pegou Susan pelo braço, arrastou-a para um salãozinho, do outro lado do corredor, e fê-la sentar-se numa poltrona ao mesmo tempo que a sufocava numa onda de palavras.

- Que ideia de sair com este dilúvio! Pensava que eram umas chuvinhas de março, não é? Pois dá para se apanhar uma pneumonia ou cousa pior ainda. Não vou deixar você gelar aí. Precisa secar-se, e bem depressa. . .

Ajoelhou-se diante de uma velha cómoda e começou a remexer numa gaveta, sem deixar de falar.

- Espere, vou arranjar-lhe toalhas num segundo. Onde é que me botaram elas? É sempre assim, quando procuro. Entretanto, bem me lembro que as pus aqui. Você precisava de banhar os pés com mostarda, isto lhe movimentaria o sangue . . . Mas, primeiro, vai tirar a camisa, vou esfregar você um pouco, até que sua pele esteja que nem um tomate. Francamente, não posso avaliar o que veio fazer em Santa Cruz com semelhante tempestade, e molhada como se tivesse vindo a nado!

Mas Susan entendia que não devia ser desviada do seu alvo. Inclinou-se para a velha que, como erguesse a cabeça acima da gaveta, olhou-a bem nos olhos.

- Meu irmão? Onde está meu irmão?

A outra pôs-se a desdobrar as toalhas, sacudindo-as com largos gestos.

- Seu irmão? - disse, como se caísse do outro mundo. - Que irmão? Fala do Robbie? Como poderia saber onde está? Você não me deu para guardar, creio. - Soltando palavrões continuou: -? Vá se secar antes de cuidar dele. Quando a tiver esfregado bem, quando tiver bebido alguma cousa quente para se reanimar, então sim, falaremos de Robert.

Mas Susan não se mexia:

- Não esperarei.. . Preciso saber. Ele está aqui?

A velha hesitou. Seus olhos em forma de bolas de víspora perdiam a expressão habitual de saborosa malícia, denotando estranho embaraço. Afinal decidiu-se a mentir generosamente, e arquejando o peito, exclamou:

- Garanto que não, que não está aqui. . . Que é que ele havia de fazer aqui? Por Deus que me criou, juro-lhe que ele não está nesta casa.

- Não é verdade! - replicou Susan.

Agora seus dentes tremiam tanto de frio como de terror; estendeu a mão à velha, suplicando:

- Diga-me a verdade, peço-lhe: ele está aqui?

- Ora esta! Será que você vai me tratar de mentirosa em minha própria casa? Juro-lhe que ele não está aqui, por tudo o que há de mais sagrado, juro-lhe. . . Isto basta, creio.

A porta abriu-se e Robert apareceu.

Houve um silêncio de morte, perturbado somente pelo barulho da chuva nas vidraças, e do caudal do rio.

Ele entrou com um ar desorientado, como um homem que balança entre os extremos da exaltação e do desespero; seu olhar indicava nitidamente que tinha ido até o fundo da aventura .

Entrara ali perseguido por uma ideia fixa de embriagado, sem saber quem se achava naquela sala. Provaria a todos do que era capaz. Ah! havia de lhes mostrar, sim!. ..

Ergueu a cabeça e avistou Susan. Ficou aterrado. Depois soltou um grito semelhante a um balido. Sua fisionomia era mais expressiva que qualquer palavra e a decepção que denotava era lamentável e grotesca.

Os irmãos encararam-se, e Robert desviou os olhos, com um ar aborrecido.

- Robert, - murmurou Susan com voz cortada pela emoção - Robert! - e ele abateu-se numa cadeira.

- Que quer você comigo? - perguntou com rancor. Que faz aqui?

Ela abafou um grito:

- Oh! Robbie, procurei-o. Não sabia onde achá-lo.. . Vim buscá-lo.

Dominado pela embriaguez, com os olhos fixos na parede, ele soltou uma risada de escárnio.

- Levar-me? Não é possível! E aonde você quer me levar?

- Para qualquer lugar, desde que saiamos daqui. Para qualquer lugar, desde que fiquemos juntos. . . Venha. Oh! venha, Robbie!

A velha Hemmingway, visivelmente aborrecida, perdendo a paciência abandonou sua eterna jovialidade e estourou:

- Leve-o, e bem depressa! Tire-o daqui. Estou farta desse pateta. Está irritado. . . Ora faz "blagues" estúpidas, ora canta hinos. . . De repente cai na farra, daí a pouco vira a cabeça e ninguém mais consegue lhe arrancar uma palavra. Livre-me deste maluco. Tenho conhecido muitos homens na vida - e não só tocadores de harmónio - mas nunca encontrei idiota igual. Aceitei-o aqui para lhe levantar o moral, mas agora estou farta. . . Leve-o e que lhe faça muito bem!

Robert teve um sobressalto e resmungou. Punham-no para fora, despachavam-no assim, sem mais nem menos? E de onde? Desse lugar imundo!

- Ah! ah! - seu risinho que pretendia ser sarcástico desapareceu logo - Ah! ah! então você quer se desembaraçar de mim? É mesmo?

- Você acaba de dizer, meu caro, - replicou a velha Hemmingway. - É exatamente isto.

- Oh!

Susan interpôs-se com agitação.

- Venha, Robbie, venha, peço-lhe. Nós dois vamos voltar, estaremos juntos como sempre! Tudo correrá bem, tudo se arranjará, se você vier comigo.

Ele desviou-se, com a resistência aumentada pelo álcool que acabara de absorver. Ele, o reverendo Tranter, ser tratado assim - que indignidade! Era demais. Lágrimas corriam-lhe pelas faces.

- Deixem-me, deixem-me! Já que não sou digno de ser tocado, não me toquem.

- Oh! - gemeu a velha Hemmingway, desviando-se, enojada. - Que se cale de uma vez e dê o fora logo, idiota!

Como a velha se permitia tratá-lo de idiota? Era demais. Ia-lhes mostrar, às duas, se era ou não um homem!

Deu um pulo; sua cadeira rolou por terra estrepitosamente. Vacilando, o peito arqueado por mórbida emoção, pôs-se a vociferar.

- Sairei se quiser. Mas não tenham medo, não as incomodarei por mais tempo. Podem pensar de mim o que quiserem. Reneguei meu Deus, chafurdei no pecado como um porco imundo. Só viram isto? Nada mais? Será que conhecem o valor da renúncia? Será que compreendem o que é sacrifício?

A última palavra ressoou enquanto ele titubeava. Meu Deus! finalmente ia se revelar capaz de grandes coisas, confundir todos aqueles imbecis, provar sua coragem! Uma grande, uma nobre ideia abriu caminho no cérebro iluminado.

- Estou perdido, não é? Perdido para sempre! Pois bem: vocês se enganam, esquecem o sacrifício. - Sublinhou esta palavra e murmurou em tom confidencial: - Que vale a minha vida? Qual é seu interesse no momento?

- Sua vida? - exclamou Susan, aterrorizada. - Mas você tem toda a sua vida na frente! Não vivemos sempre um para o outro? Robbie, vamos reconstruir nossa existência, vamos começar de novo todos dois, como antigamente.

Um riso selvagem, histérico, acolheu suas palavras. A ideia mirífica tomava corpo naquele cérebro demente; precisava assumir um aspecto sublime. Ah! Alguém se julgava capaz de detê-lo? Não! Não! Bem esperto deveria ser quem conseguisse atravessar no seu caminho, quem o impedisse de fazer o que queria! Já que o empurravam, iriam ver! Desviou os braços, virou a cabeça para trás:

- Não. Não recomeçarei minha vida. Pelo contrário, vou chegar ao fim. Jesus morreu por mim, vou fazer o mesmo por ele.

Endireitou-se e continuou, frenético; um coro de serafins cantava aos seus ouvidos, dominado pelo ruído tumultuoso do rio:

- Sim, atolei-me no pecado, estou sujo, rolei na lama do vício. Agora vou me purificar.

- Não fale assim, - suplicou Susan, desatinada. Você me aterroriza!

Quis pegar-lhe no braço, mas, com sua mão larga, ele a afastou com rudeza. Os olhos brilhando, as narinas dilatadas num ardor extático, as orelhas ressoando de uma música celeste, ele clamou:

- Atolei-me na lama do pecado. Agora vou me lavar para sempre de todas as minhas sujeiras!

Amedrontada, Susan teve subitamente a horrível apreensão do rio cheio. Como num pesadelo, quis agarrar-se a seu irmão, mas era tarde; ele escapou, abriu a porta com violência, e, sempre gritando, abalou para o corredor e desapareceu na rua. Tudo isso durou apenas um segundo.

- Meu Deus! - gritava a velha emmingway. - Ele enlouqueceu!

Susan, apertando as mão no peito, ficou um instante paralisada, depois saiu por sua vez.

A transição súbita da luz à escuridão cegou-a. Piscando os olhos, custou um pouquinho a perceber a sombra de Robert no fim da rua. Uma figura sombria, fantasmal, gesticulante como a de um possesso. Seu caro Robbie! Que iria ele fazer? Não, não era possível!

Ela precipitou os passos, esperando apanhá-lo, mas ele tomara uma grande dianteira, e caminhava direito para o cais. A chuva cegava Susan, o vento sufocava-a, o terror fazia-lhe perder a razão e uma ideia martelava-lhe o cérebro com o mesmo ritmo das pulsações do seu coração: "ele não sabe nadar"!

O barulho da torrente tornava-se mais distinto; em breve ela avistou as águas tumultuosas.

- Robbie! - urrou, - Robbie! - mas ele não a ouvia. Pela última vez sua figura se destacou na beira da praia,

sombra rápida no céu lívido, depois desapareceu. Susan tornou a gritar chamando Deus em seu socorro. Chegando à beira do cais avistou vagamente Robert debatendo-se na correnteza. Parecia ouvir-lhe os gritos de socorro; respondeu, rilhou os dentes, e atirou-se ao rio. Seu mergulho não fez barulho algum; a noite e a corrente caudalosa envolveram-na. Nadava vigorosamente, o coração quase rebentando sob o extremo esforço, seu coração que sempre fora tão fraco - mas neste momento ela não pensava nisto. Avançava, aproximando-se de Robert que se debatia sempre, depois um redemoinho fê-la súbito rodar, chocando-a contra uma ponta rochosa; não era um choque muito violento, mas justamente perto do coração prestes a rebentar. O braço que levantou para segurar Robert pendeu, uma onda projetou-a brutalmente com a cabeça contra as rochas. Uma. . . duas vezes acabou-se tudo.

"O grande rio passará por último".

Susan jamais saberia a significação daquela misteriosa frase.

Quanto a Robert a mesma correnteza depusera-o num banco de areia. Desde que tomara pé, recuperou a consciência, e, curado da bebedeira, aterrorizado por sua vez, lutou para alcançar a praia. Enquanto se alçava penosamente na margem escarpada, voltando as costas ao rio, o corpo de Susan passava na correnteza. Atolando-se, arrastando-se, Robert murmurava:

- Meu Deus, eu me transviara. Meu Deus, eu estava louco, que é que eu ia fazer? Senhor, quase me afoguei. Que diabo, preciso me secar. Escapei de uma boa!

E Susan mergulhava na profundidade do Oceano.

 

Duas semanas depois, no correr do dia, Harvey, descendo da montanha, chegou a Santa Cruz. O vento caíra, o sol brilhava em toda a sua força, um vapor quente subia da terra para o céu radioso. Ninguém mais se lembrava da tempestade .

Entrou na cidade a passo rápido; sem olhar em volta atravessou o mercado, a Plaza, e no porto entrou no edifício da Alfândega.

Na seção de informações, fez uma pergunta ao empregado.

O jovem espanhol, cujas suíças impressionantes emendavam com os cabelos oleosos e colados no crâneo, lançou a Harvey um olhar de indiferença e alçou os ombros:

- O senhor não tem sorte: o navio partiu ontem.

- E o próximo, quando parte?

O moço respondeu displicentemente:

- No mínimo daqui a dez dias. Harvey não se mexeu.

- Obrigado, - e, consciente do olhar desdenhoso que o acompanhava, saiu. Atravessou a Plaza muito devagar. O espelho de um café que lhe transmitia sua imagem fê-lo parar : via um estrangeiro. O rosto invadido pela barba era irreconhecível; o terno estava rasgado, coberto de lama, a calça furada nos joelhos, os sapatos também rotos. "Meu Deus, pareço um espantalho".

Sentou-se num banco de jardim. O vento fazia voar papeis. Talhadas de melancia jogadas ao abandono, como ele próprio, cobriam-se de moscas.

Mas, graças a Deus, sentia-se agora capaz de ficar tranquilamente sentado, o que não lhe fora possível naquela noite de tempestade, quando Susan o deixara para voltar à casa de Rodgers (quantos dias haviam passado desde então perdera a noção do tempo). Logo após a partida da moça pusera-se a andar agitadamente no quarto vazio; sentando-se, levantando-se para caminhar para lá e para cá, enquanto o trovão dominava o céu e as formigas corriam como loucas pelo chão. Todas as suas ideias se entrechocavam no cérebro como os ramos de cedro que o vento torcia e quebrava. Ficar mais tempo naquela casa lhe parecia impossível, impossível também falar à marquesa e esperar a volta de Corcoran. Descendo com passo irresoluto as escadas, hesitara no vestíbulo, depois saíra. Um caminho que subia apresentava-se-lhe aos olhos; tomara-o sem saber aonde conduzia. Diante dele erguia-se o pico, destacando-se na claridade fraca. Quem sabe se lá no alto, tendo vencido a altitude, planando naquele cume, não encontraria a paz, a paz que desejava completa, eterna? Talvez que, perdido nesta imensidade, longe das mesquinharias da terra, cercado de nuvens, pertinho do céu, poderia enfim mergulhar no esquecimento?

Marchava pois sem parar, os olhos fixos no pico inacessível, sentindo pouco a pouco o peso de sua dor aliviar-se, penetrando-se dessa visão inesquecível. Deixando o caminho, continuara a ascensão, inconsciente da chuva, impelido por uma força obscura, mais alto, sempre mais alto. Atravessara declives calcários cobertos de plantas secas e de tufos envenenados do perigoso "verolilio"; terras cor de ocre, barrancos onde desabavam montículos de areia, terraços rochosos, cujas cavidades estavam cheias de pedras-pomes desagregadas. Aqui e ali, penduravam-se trepadeiras selvagens, figueiras de ramos emaranhados como seus pensamentos. A noite caíra, a chuva e o vento estavam furiosos, e ele continuava sempre tropeçando, trepando obstinadamente nas pedras, mais alto, sempre mais alto, através da desolação dos montões de cinza e lava. Foi então que se encontrou diante das grutas cavadas profundamente no flanco do pico, cada uma com seu campo de milho aflorando na terra vulcânica.

Cães latiam, uma fila de caras espiava através das fendas . Formas caminhavam para ele na escuridão, cercando-o. Pequeninos seres que falavam uma linguagem incompreensível haviam-no impedido de continuar o caminho. Discutindo, gesticulando, ao mesmo tempo que apontavam o céu ameaçador, tinham-no arrastado às suas habitações de trogloditas .

Eram as grutas de El Telde, quentes, secas, iluminadas como brasas. Ali ficara estendido no abrigo, enquanto a tempestade desencadeava em torno do pico. Na manhã seguinte poderia partir, mas ficara mais calmo, o corpo todo relaxado, numa imensa fadiga. Aquele pequenino povo era hospitaleiro, repartia com ele as papas de milho, o "gofio".

Logo que o sol furava as nuvens, as crianças saiam das grutas para brincar nos rochedos. Eram minúsculos, nus, tímidos como esquilos. Sentado na pedra vulcânica aquecida pelos raios solares, Harvey observava-os em silêncio. Criavam coragem, vinham rolar entre as pernas do estrangeiro, trepavam-lhe nos joelhos; ele não resistia ao assalto daquelas mãozinhas, aceitava a familiaridade deles, embora sem sorrir. Que curiosa aventura a estada entre aqueles semi-selvagens, ali perto do pico! Passara-se um dia, depois outra noite. Por que não voltava? Mas cada noite pensava: amanhã; e o dia seguinte terminava sem que êle retomasse o caminho. Aonde ir? Ninguém desejava a sua volta, sua presença. Em breve Mary seria levada de Santa Cruz, como tinha sido levada de Los Cisnes. Só desceria depois de sua partida.

Hoje, sim, hoje. . .

Encontrando-se depois de seu devaneio, naquele banco de jardim público; Harvey suspirou. Nem um navio antes de dez dias!

As palmeiras balançavam suavemente as folhas em cima da sua cabeça. A fonte cantava na concha de mármore onde nadavam peixinhos prateados. De vez em quando, pessoas examinavam com surpresa aquele ser bizarro. Um velho mendigo, sujo, maltrapilho, que vendia bilhetes de loteria, passou diante dele mas não lhe ocorreu pedir esmola a um indivíduo mais miserável que ele mesmo. Harvey sentiu uma estranha satisfação por se ver assim desprezado, desconhecido.

Mais tarde, uma sombra projetou-se sobre o banco, oscilou um instante, alongou-se. Harvey ouviu alguém soltar uma exclamação, sentiu um tapa no ombro, ergueu os olhos. Era Corcoran.

Sim, era Jimmy, com o chapéu para trás, as pernas abertas, o sorriso bom. Mas os cantos da boca tremiam de modo estranho: o riso soava falso como um soluço.

- É você, - balbuciou - é bem você! Você, que eu procuro por toda parte desde alguns dias. Você, apenas reconhecivel! Receava que. .. - O sorriso desapareceu. Não pôde acabar, quase começou a chorar. - Meu Deus! - disse com esforço. - Como estou contente em vê-lo.

Houve um silêncio. Jimmy assoou-se com força, o sorriso voltou-lhe pouco a pouco, mudando-se num riso franco. Por um pouco teria desabado sobre Harvey e o teria beijado, sem pudor, diante de todo o mundo.

- É bem você, - repetia, esfregando as mãos, - você mesmo. Onde diabo esteve metido? E o que é que lhe deu de pregar um susto destes a um homem direito?

- Você devia pensar que eu voltaria mais cedo ou mais tarde, - replicou Harvey, com um pouco de rudeza.

Como esta frase era estúpida! Mas na sua emoção sentia-se incapaz de achar alguma cousa mais inteligente. Poderia jamais supor que alguém pudesse ficar tão feliz por encontrá-lo de novo? Afinal de contas, pensava, a amizade é uma bela cousa!

- É verdade, - disse Corcoran sentando-se ao lado de Harvey. - Deveria ter visto logo que você era bem capaz de nos dar cuidados, como deu. - Seus olhos, brilhantes de alegria, estavam ainda úmidos. - Procurei-o em todos os cantos da cidade, dei busca em todo o campo. Palavra de honra, acabei pensando que também você desaparecera no rio.

Harvey encarou-o, surpreso. Corcoran baixou os olhos, como se se arrependesse de ter falado.

- Você não sabe, - disse com voz mudada - o que aconteceu a Susan Tranter?

- Susan?

Jimmy hesitou, mas contou o lamentável fim da infeliz moça, com um mixto de tristeza e mistério:

- Não se encontrou seu corpo. Está nalgum lugar no fundo do mar, a pobre. Esta história me aborreceu muito. Ela não tinha sorte, lia-se isso nos seus olhos. Talvez ela tomasse as cousas muito a sério, o que não lhe deu bom resultado .

Harvey encarava Jimmy, os olhos dilatados de horror. Susan! Era trágico! Tão ardente, tão sensível ! Não era possível.

Teria Jimmy falado sem desconfiar de nada? Corcoran continuava:

- Pois bem, lá no fundo do mar ela não sente mais nada...

Lá no fundo do mar, entre as algas frias e os corais com peixes multicores, agitando-se acima do seu rosto lívido, de seus olhos tão abertos. "Dê-me uma esperança, uma fraca esperança que seja". Revia a mão estendida nessa tocante súplica. Sim, exaltada no seu desejo de felicidade; e agora.. Harvey teve um calafrio.

- Isto me aborrece, me causa uma grande mágoa, disse, como se falasse a si mesmo. - Uma imensa mágoa.

Acrescentou após refletir um instante:

- Que é feito de seu irmão?

- Seu irmão? - exclamou Corcoran, com indizível desprezo. - É incrível, mas tornou a endireitar. Está completamente arrependido, aquele trouxa. Causa-me nojo! Jura por todos os santos que sua irmã se sacrificou para salvar a sua alma. Trouxe o harmónio para Santa, alugou uma sala e prega sermões, com grande reforço de cânticos, rezas e lágrimas na voz. Gloria a Deus, aleluia! Só de pensar fico doente.

- E você?

Corcoran tirando a tabaqueira do bolso tomou um arzinho indiferente, mas dissimulava mal sua satisfação e meteu o dedo na cava do colete para responder:

- Eu achei a mina, - como se diz. - Liguei-me à Casa, como sucessor de Don Baltazar, que Deus lhe guarde a alma! bom negócio, não há dúvida. Engajei doze rapazes nativos e os faço trabalhar; é de se ver! vou endireitar a plantação em três tempos. Tenho minha carruagem própria na qual desci há pouco à cidade. Enfim, tenho um emprego à minha altura - e pode-se dizer que só devido ao meu mérito!

Harvey não pôde deixar de sorrir, estava visivelmente satisfeito.

- Ótimo, Jimmy, - disse com doçura. - Estou muito contente com isso.

Corcoran arqueou o peito e levantou-se.

- Já falamos muito a meu respeito. Agora você terá outras razões de ficar contente. Chegou sua vez. Vamos ao hotel.

- Ao hotel?

- Onde diabo você quer que a gente vá? Será que você pensa esperar o navio sentado aí neste banco? Vamos, seja razoável e deixe-me agir.

Tomou Harvey pelo braço, obrigou-o a levantar-se e arrastou-o ao outro lado da Plaza. O hall do hotel estava vazio. Corcoran, assumindo ares superiores, foi sentar-se a uma mesa e chamou o porteiro com autoridade.

- Sim "sinhô", - disse o negro, adiantando-se pressuroso. Os dentes brilhavam tanto quanto os galões.

- Vá perguntar a Sir Michel Fielding se me pode receber. Caso não incomode, é claro; mas diga que é para uma cousa importante.

- Sim, "sinhô".

Toda a apatia de Harvey desapareceu de repente. Teve um sobressalto e inclinou-se, agitado, para Corcoran:

- Que diz? Eles estão aqui? Ainda não partiram? Corcoran procurou disfarçar reprimindo um bocejo discreto .

- Vamos, vamos, acalme-se, não precisa ficar em tal estado.

Harvey tornara-se lívido.

- Pensei que. . . depois de quinze dias. . .

- Pensou que eles tivessem partido? Nada disso. Não iria mandar chamar um cavalheiro que não está mais aqui!. . .

- Não quero vê-lo. Além disso, ele também não desejará me encontrar.

- É justamente aí que você se engana, - disse Jimmy, agitando-se na cadeira e contemplando os sapatos que brilhavam como espelhos, graças à atividade dos seus "rapazes".

Pelo contrário, ele morre de vontade de vê-lo. Afinal,

compreende-se: não foi você quem salvou a jovem dama? Ele também mandou procurá-lo por toda parte. É um tipo muito distinto, não se pode dizer o contrário. Não é fácil encontrar-se muitos iguais. E lhe é tão reconhecido que, quando fala de você, fica exaltado de reconhecimento.

- Pois que fique com seu reconhecimento.

- Puxa! que asneira. Deve medir as palavras. Talvez você queira voltar para a Inglaterra. Por enquanto não pretende exercer a profissão de mendigo, não é?

Parou para fazer expressivos sinais com a cabeça a um personagem que acabava de entrar.

Harvey também o viu logo. Sentiu-se gelado. Fielding, "seu marido"! Isto parecia quase irreal. Era um belo homem, alto, de traços regulares e cabeleira loura. Uma fisionomia distinta, impregnada de segurança, e de uma amabilidade inalterável. Os olhos, em particular, de um azul absolutamente otimista, pareciam dizer: "Ótimo, tudo está muito bem". Nesse momento, muito excitado, dirigia-se a Harvey, estendendo a mão:

- Magnífico! Como estou feliz! Tudo se arranja, graças a Deus.

Houve um instante de constrangimento durante o qual Harvey deixou que lhe sacudisse cordialmente a mão. Que podia fazer?

- Enfim o achamos, - continuou Fielding. Sentou-se cruzando as pernas. - Primeiro vejamos: já almoçou?

Se tinha almoçado? Os músculos de Harvey contraíram-se. Aquele homem falaria sério? Lançou-lhe um olhar desconfiado, depois mentiu.

- Sim, já almocei.

- Tanto pior, tanto pior, mas janta conosco, bem, entendido. Que digo eu: não só janta, mas fica conosco. Não há outro jeito, não o deixarei escapar, agora que o encontramos. Mary vai ficar contentíssima. Bem que notei quanto ela se atormentava por sua causa.

Harvey agitou-se de novo. Não entendia nada. Que inverosímil placidez, tão diferente do que esperava! Fielding então não compreendera? Ninguém lhe dissera nada? Era exasperante! Era pasmoso!

Sua voz fez-se dura quando perguntou:

- Seu amigo Carr deve ter lhe falado de mim.

- Carr? - Fielding pôs-se a rir. - Nunca presto atenção ao que ele me conta. Nunca. É um bom rapaz, excelente cavalheiro, mas meio maluco. Impulsivo demais; as pessoas assim são cansativas, pessoas que agem sem refletir. Quase me fez perder a cabeça com seus telegramas.

- Não falo de telegramas, - insistiu Harvey; - falo de cousa bem diferente.

Todo teso, contraindo os músculos, esperava a resposta. Mas Fielding parecia absorvido por problemas muito importantes e o observava com olhar indulgente:

- Os colarinhos, - disse afinal. - Sim, aí é que está a dificuldade. Qual é o seu número? Aposto que é um centímetro menos que o meu. Que pouca sorte! Mas o resto ficará tudo direito; tenho aqui por acaso um terno novo que meu velho Martin enfiou à força na valise. Tenho também uma navalha, roupa branca, e objetos de toilette suplementares. Mas, ao diabo os colarinhos! Meu número é 40.

- Franziu as sobrancelhas com bom humor. - Seria grande demais.

Não, aquilo não era simulado. Preocupava-se com um ar sério, absolutamente cómico, com essa questão de colarinho . Harvey quase chorou de irritação. Contara com tudo, menos em encontrar um sujeito dessa espécie. Desviou a cabeça e fixou o soalho com um ar aborrecido.

- Ainda não lhe agradeci, - continuou Fielding, e seu sorriso simpático iluminou-lhe mais a fisionomia. - Esta cura de Mary é um milagre. Nunca poderia ser-lhe bastante reconhecido. São cousas que não se podem exprimir por palavras. Ela se acha em convalescença; começa a se levantar, e em breve poderei levá-la. De aeroplano, bem entendido; os ares de Buckden acabarão de restabelecê-la.

Parou um instante e acrescentou:

- Você volta conosco, é claro. Estou certo que Buckden lhe agradará. É uma bela propriedade. Tenho paixão pelas rosas e acabo de conseguir um espécime híbrido que gostaria de lhe mostrar. Conto expô-lo no salão de horticultura deste ano.

Harvey, pasmo, não sabia o que responder. Fielding devia saber.. . Não era possível que não tivesse suspeitado nenhuma cousa. Que é que ocultariam aquele sorridente bom humor, aquela calma? Isto mantinha a situação em suspenso, as relações tensas. Harvey quereria odiar esse homem e não podia. Se ele tivesse contentado em testemunhar-lhe amizade, em converter-se em gentileza, poderia maldizê-lo facilmente. Mas tudo se passava de outra maneira. Michel Fielding era cheio de encantadora simplicidade, física, material, mundana, e parecia ignorá-la, não ligar nenhuma importância. Era verdadeiramente impossível sentir por ele a menor antipatia.

- Lamento muito não poder aceitar seu convite, - disse Harvey a meia voz. - Volta de avião, eu de navio. Há poucas probabilidades de nos encontrarmos na Inglaterra.

- Como, de navio? - protestou. - Mas, você não sabe o que diz. De navio? Ainda não está construído o navio que o levará. - Riu da maneira mais agradável. - Tem seu lugar no avião conosco.

Levantou-se como se nenhum protesto fosse possível, e passou a outro assunto.

- Já falei bastante - tomou Harvey pelo braço; - venha agora; há um quarto lá em cima para você, e logo que tiver tomado um banho e mudado a roupa, iremos ver Mary. É a dois passos.

A porta do hall rangeu e virou enquanto ele acabava a frase. Elissa entrou, seguida de Dibdin e de Carr. Todos os três estacaram com uma estupefação um tanto grotesca. Adiantaram-se lentamente:

- Oh! magnífico, - disse alegremente Elissa, que recuperava todo o seu "aplomb" e observava a barba de Harvey. - Exatamente o aspecto ideal para o quinto ato de um melodrama.

- Absolutamente heróico, - disse, zombando, Carr, cujo olho direito estava ainda cercado por uma equimose. - Caímos nos seus braços e derramamos lágrimas enternecidas.

- Basta, Wilfrid, - disse Fielding com impaciência. Se continua, ponho-o já para fora. Diga-me antes se viu Stanford, e se o avião está consertado. Responda, seu idiota!

- Sim, vi Stanford, - respondeu Carr de mau humor

- Seu trabalho está quase terminado. Só falta um pequeno detalhe referente à chegada da gasolina, creio. Está pronto para voar a semana próxima, desde que o tempo seja favorável .

- Louvado seja Deus, - disse Dibdin, cuspindo as palavras como um caroço. - Vamos enfim deixar esta terra imunda.

- Você, - disse Fielding, suavemente - voltará de navio, bem entendido.

- De navio! - exclamou Dibs, surpreso.

- Você bem sabe que só há quatro lugares no avião, além de Stanford.

- Mas justamente por isso, - balbuciou Dibs. - Quatro lugares.

Seu olhar aterrorizado ia de Fielding a Harvey.

Depois suas pálpebras lacrimejantes denunciaram amarga decepção: o seu monóculo caiu, e, com a boca aberta, abateu-se numa cadeira, enquanto Elissa rebentava de riso.

- Aonde vão vocês? - perguntou. Do braço da poltrona em que estava empoleirada, observava com curiosidade Fielding, que arrastava Harvey. - Fazer uma visitinha de polidez à convalescente?

- Não, - respondeu alegremente Fielding. - Vamos primeiro comprar colarinhos.

 

O ronco dos motores tornara-se tão familiar que eles nem o ouviam mais. Na cabine do avião, bem isolada, havia um zumbido regular, ao qual não se acrescentava nem mesmo a

sensação de velocidade. Se bem que lançado no ar a duzentos quilómetros a hora, o aparelho parecia simplesmente planar no azul, acima de um imenso manto de nuvens. comparada com a viagem em navio, esta era semelhante à trajetória de uma flecha.

Deixaram Santa Cruz havia apenas dois dias. O hidroplano decolara quinta-feira, antes do meio-dia, com um tempo calmo e claro. O sol não estava muito ardente e a água verde parecia uma relva bem tratada. Um ronco inesperado surpreendeu a velha Hemmingway que se precipitara à janela .

- Deus do céu! Ei-los que partem sem um sinal, nem mesmo um adeusinho. Ingratos! Eu devia ter desconfiado. Isto me servirá para escolher minhas relações na próxima vez. Eh! Cuca, traga depressa um copinho de "sangue de negro" para me reconfortar. Estou toda transtornada.

Alarmado pelo zumbido do céu, Tranter precipitara-se da sala, onde reunia suas ovelhas, e torcia o pescoço para descobrir o hidroplano que desaparecia no horizonte.

- Partem! - exclamou, juntando com fervor as mãos grandes e moles. - Louvado seja o Senhor por me livrar da tentação e me restituir a paz de espírito. Aleluia! Glória a Deus! Nada mais me distrairá da minha gloriosa missão.

Correndo como um enorme coelho, entrou, deixou-se cair na banqueta do harmónio e pôs-se a cantar em voz cheia, fazendo o acompanhamento com grande reforço de acordes ruidosos:

Meus pecados eram grandes como um mundo; Purifiquei-me nas ondas.

Quanto ao próprio Dibs, sombrio e desgostoso, nem mesmo quisera pôr o pé fora do hotel. Em Los Cisnes esperava-se a partida do avião. Uma grande toalha branca fora içada no mastro carunchoso. Em baixo, duas pessoas pouco maiores que formigas, - ? uma cinzenta, outra negra, - agitavam um lenço freneticamente. Uma centelha brilhava, sem dúvida um raio transmitido pela superfície prateada da tabaqueira- Depois, o avião elevara-se tanto que a ilha parecia flutuar no mar como uma folha de nenúfar num tanque. Enfim, o pico desaparecera, dissolvendo-se no céu.

Os viajantes passaram a noite em Lisboa. O aparelho amerissara no Tejo. No dia seguinte, sobrevoaram Porto, Vigo, Luego, cortando transversalmente os montes em direção a Bordéus. Tudo isso parecia tão simples, e isento de precipitação. A temperatura baixara quando planaram acima de Gironda, dirigindo-se a Nantes; o próprio mar parecia mais frio.

Agora era o fim da viagem. O último dia passava com rapidez inexorável. Saint-Malo estendia-se abaixo deles com as areias douradas de Paramé. Visão fugitiva, logo confundida com a imensidade do mar, da atmosfera, mergulhada no ruído regular, contínuo, do tubo de escapamento.

Fielding transbordava de entusiasmo. Com mapas e compassos na mão, acompanhava a rota com o olho no relógio marcando a hora da chegada. Desde a infância guardara uma verdadeira admiração pelo herói de Júlio Verne, Filéias Fogg. Tornar-se senhor, como esse personagem, de todos os obstáculos, para chegar exatamente no instante previsto, provara bem a superioridade do espírito sobre a matéria. Por isso, no momento estava a calcular, com o piloto Stanford, se era possível chegar a Buckden matematicamente à hora.

Do seu assento, Harvey deixava a vista errar pela janela estreitinha, que tocava com os ombros. A massa de nuvens adelgaçava-se, transformava-se em flocos, como se o grande manto tivesse furado e semeado o mar de plumas brancas. Aberturas no céu deixavam ver gotas dágua cor de ardósia.

A volta! Harvey virou a cabeça para Mary. Ela olhava direito à frente, as mãos pousadas de leve no livro fechado nos joelhos, silenciosa, pálida e frágil, tão frágil! Entretanto estava curada, capaz de suportar a viagem; mas continuava impenetrável, misteriosa, o queixo enfiado a meio no manteau de peles, com os cílios sombreando-lhe o rosto.

Qualquer cousa mudara nela. Percebia-se que estava mais razoável, mais distante, mais grave em suas reflexões, como possuidora de um senso de dignidade e de vontade que até aí lhe faltara.

Aqueles movimentos espontâneos, um pouco pueris e impulsivos, aquela graça ligeira e esvoaçante, haviam desaparecido. Sucedera-se-lhe uma consciente madureza. Não era mais uma menina desorientada, ardente - era uma mulher.

Sentiria o olhar ansioso de Harvey? Ele não poderia dizê-lo, e a perplexidade enchia-o de angústia. Desde que se tinham visto de novo, haviam conservado um para o outro a mesma atitude embaraçada. Ficaram rígidos, constrangidos, na apreensão da frase banal que deviam pronunciar, porque não se encontravam nunca sozinhos, e cada um esperava, com uma esperança misturada de temor, o sinal que nem um nem outro ousava fazer.

Harvey fixava Mary com uma força concentrada de vontade e de sugestão, para que ela erguesse os olhos para ele. Queria esse olhar de Mary, exatamente um olhar furtivo, rápido.

Ela, entretanto, não virava a cabeça, com o queixo inclinado, sempre escondido entre as peles, os cílios baixados; e um instante depois Fielding entrava na cabine e vinha sentar-se ao lado de Harvey, passando o braço atrás da poltrona, num gesto cordial.

- O nevoeiro sobe. Deveremos avistar a Mancha.

- com efeito.

- E depois, em marcha para o velho Solo; é lá que pousaremos. O motor funciona maravilhosamente; nem uma falha! Stanford me garante que teremos no máximo uma hora de viagem; estaremos pois em Buckden à hora do chá:

5 e 15. Estou muito satisfeito, mas ao mesmo tempo quase lamento o fim da viagem, pois foi de fato magnífica. Na ida senti-me aborrecido, provavelmente porque estava preocupado, e porque detesto a solidão. Mas agora formamos os quatro um grupo ultra simpático. Se me propusessem recomeçar imediatamente, não hesitaria nem um segundo.

- Oh! não! - protestou Elissa, enfiada na poltrona atrás deles. - Nem por um império. - Bocejou, acrescentando depois de refletir. - A única coisa que me impede de morrer de tédio e me salva de uma crise de nervos, é a lembrança de Dibs, de sua decepção, de sua fisionomia contraída.

Fielding pôs-se a rir, sem demonstrar o menor rancor:

- Vamos, Elissa; você se sentirá em forma quando chegarmos. Não se esqueça de que vamos encontrar a primavera inglesa, com todas as sebes e vergéis floridos.

- Qual o quê! guarda-chuvas abertos e virados pelo vento, pessoas indignadas, ónibus que nos enchem de lama, e nem um táxi vazio. Não seja eternamente otimista, Michel. É muito cacete! Vá pilotar um pouco o avião e envie-nos o jovem Stanfor. Quero ver se está apaixonado por mim. lançou a Harvey um olhar malicioso. - Não compreendo por que Mary monopolizaria as grandes paixões.

Michel riu-se mais ainda e passou o outro braço em torno da poltrona de Mary, unindo-a a Harvey com uma amabilidade grotesca.

- Você está vendo, menina, como zombam de você e de seu glorioso flirt?

Harvey estremeceu, mas Mary continuou impassível, a fisionomia impenetrável. Quanto a Elissa, olhava para Michel com curiosidade:

- Verdadeiramente encantador. Um autêntico gentleman.

Michel sempre alegre tirou uma cigarreira e estendeu-a a Harvey, que recusou.

- Vocês sabem - continuou com bom humor, falando, sério: - é ótimo voltar para casa. É após uma dessas ausências que se aprecia melhor seu próprio país. Alegro-me de lhes fazer as honras de Buckden e de minha notável roseira. E, depois, vocês visitarão os asilos com que me ocupo, outra paixão minha; meu pai os fundou e continuo a mantê-los e melhorá-los. Coleciono os velhos de cem anos como se coleciona borboletas. É um gosto como outro qualquer! Tenho numa das casas um velho avô que, em breve, fará cento e dois anos, e. . Harvey não escutava mais. Agora conhecia Fielding, penetrava-o a fundo. Um autêntico gentleman, como Elissa acabara de dizer. Meu Deus, que palavra arcaica! Mas não havia outra: era bem um gentleman, em toda a horrível acepção antiquada do termo. bom, cativante, de carater agradável, incapaz de fazer mal a uma mosca, de ter um inimigo. Mas tomaria alguma cousa a sério? Se se chocava com uma contradição, brincava, falava de outra coisa. O ciúme parecia não existir para ele, - foi o que mais desnorteara Harvey a princípio. Agora compreendia. No fundo de tudo aquilo havia uma doce indiferença e uma total ignorância do amor. Sem dúvida Fielding tinha real afeição a Mary, mas era só. Quantas vezes, durante os últimos dias, Harvey tivera ímpetos de encará-lo bem de frente e dizer: "Eu amo sua mulher, pronto!" Mas recuara diante da inutilidade de tal explosão. Fielding pularia e gritaria: "Que me diz? Então você é um canalha?" Não! Daria uma risada e responderia jovialmente: "Meu caro, não me admiro. De fato, ela é encantadora. . . Um cigarro? São Regie turcos, muito suaves!" Aquela eterna amenidade tinha qualquer coisa de exasperante. Valeria mil vezes bater com a cabeça numa parede do que nessa almofada de penas.

- Eis aí - disse Fielding, concluindo uma arenga, da qual seu interlocutor não percebeu nem uma palavra. - Eis aí o que me agradaria. Mas é muito difícil. - Esmagou o cigarro no cinzeiro e inclinou-se, sorrindo para Mary: - Então, garota, como se sente? Não está muito fatigada? Está bem aquecida?

- Estou muito bem, Michel.

- Temos pouco tempo na frente. - Olhou pela janela e levantou-se, gritando: - Palavra de honra, estamos chegando! - Era o único a demonstrar entusiasmo. Apontou com o dedo pontos que aos poucos se tornavam nítidos: - Eis Saint-Catherine, Ventnor atrás, e os fortes lá em baixo e Haslar. É magnífico! Ouça Stanford fechando o motor. vou ver.

E, olhando o relógio, saiu da cabine.

Passaram-se dez minutos. Ventnor tornou-se visível pela janela. Pairavam agora, girando acima de Solent. O estreito, a princípio uma simples linha prateada entre a terra e a ilha, alargava-se pouco a pouco, à medida que desciam. A superfície brilhante do fino braço de mar parecia subir para eles. Houve um ligeiro choque, o aparelho deslizou na água, levantando atrás dos flutuadores duas linhas de espumas, leves como plumas. A hélice diminuiu o movimento, e depois parou.

O silêncio repentino deixara a todos assustados. Stanford, descalçando as luvas, inclinou-se para entrar na cabine, seguido de Fíelding. Era um rapaz alto, magro, com os cabelos negros em desordem.

- Pronto, - disse.

Elissa lançou-lhe um olhar lânguido.

- Não lamenta que tenha acabado?

Ele sorriu, mostrando o brilho de um dente de ouro no canto da boca.

- Não.

- Não!... - replicou a outra, caçoando. - É tudo o que achou para me dizer, homem sem alma! E está com óleo na ponta do nariz.

Fíelding pegou no braço de Mary e disse agitadíssimo:

- Veja nosso velho Martin.

Uma lancha a gasolina partia da margem, vindo-lhes ao encontro, e, enquanto Stanford se ocupava em abrir a porta, encostava junto ao hidroplano.

Harvey mantinha-se atrás dos outros, observando-os com uma fisionomia impassível: Fielding, Elissa, Martin, falando ao mesmo tempo, Mary silenciosa, sorrindo de leve ao velho servidor. Foi o último a apertar a mão de Stanford e o último a subir na lancha. Tudo aquilo era horrivelmente doloroso .

- Pensei que valia mais vir buscá-lo em Southsea, Sir Michel - gritava Martin para se fazer ouvir por cima do ruido do motor. - É mais cómodo que por Halsar.

- Está certo, meu velho Martin.

- Pensei também que seria menos fatigante para Lady Fielding.

Sua voz morreu no ar. Piscou os olhos, uns olhos azues apagados, sacudindo com alegria a cabeça de velho. Era um homenzinho magro, com um nariz grande, um rosto pueril e cavalar. O perfeito servidor do gentleman, e gentleman ele

pró§prio na sua tradição de devotamento feudal, - pensou Harvey com a mesma dolorosa clarividência.

Os viajantes chegavam aos degraus verdes do antigo molhe, subiam diante da fila de altas casas, no meio de uma porção de gente curiosa e de bondes barulhentos. Um funcionário terrivelmente obsequioso guiava-os.

- Atenção, minha senhora, atenção!

O auto esperava-os. Um Rolls espelhante, enorme (azul escuro, naturalmente, cor discreta) e, diante da porta, um indivíduo que parecia um manequim de cera do museu Tussaud. Envolvidos em cobertores, eram agora conduzidos por esse chaufeur de grande estilo, que manejava com dêstreza o volante.

A cidade passava, esbatia-se. Estavam agora na estrada de Chichester, e o campo desenrolava-se como se fosse um cromo.

- A Inglaterra é bem regular, - disse Fielding. - Mas espere, vai ver nosso cantinho de Sussex.

As sebes estavam floridas, a vegetação verde; os "cottages" debaixo das árvores, limpos como brinquedos novos. Mas Harvey não se interessava por esse encantador livro de imagens. Que lhe importava?

"Por que estou aqui? - pensava. - Por que me deixei arrastar por esta gente? Por que?"

Sobretudo, por que se deixara despojar de todas as suas armas defensivas: sua grosseria, sua ironia, sua indiferença?

Estava no fundo do carro, ao lado de Mary, tão perto que lhe sentia o corpo quente contra o seu. Fielding empurrara-o para aquele lugar com um: "Fique aí, seu animal!" Era angustiante - e seu coração quase rebentara de tanto bater. Mary olhava sempre à sua frente, com as faces levemente coradas, mas cortando sempre o olhar do médico, esse olhar que mendigava o seu.

- Imaginem uns bolinhos bem quentes na sala bem aquecida, - exclamou Fielding. - Não será nada desagradável.

Estava sentado ao lado do chaufeur, mostrando com ar de proprietário as belezas do caminho, como se voltasse após um ano de ausência. Depois virou a cabeça:

- Estamos chegando, que sorte! Como me sinto feliz por chegar. Não está muito cansada, menina? Vamos daqui a pouco dar um grande jantar em honra de sua volta.

Ela mexeu-se, murmurando:

- Espero que não tenha convidado alguém, Michel.

- Não, senhora. Por enquanto você ficará deitada. Mas assim que estiver bem forte, que grande festa vamos dar! Voltaremos à cidade. Por Deus, temos um mundo de coisas a fazer - compras, melhoramentos, presentes!...

O auto silencioso rodava, atravessando Cosham e Havant: outras bonitas paisagens.

- Chegamos, chegamos! - cantarolava Fielding.

Três avisos alegres da sirene. O auto deixava a estrada real e rodava através de uma aldeia.

Alguns gansos atravessavam o prado da comuna. Crianças de avental paravam de rir para observar os viajantes com profundo respeito. Surgiu uma larga avenida de faias, longa, quase interminável.

Harvey avistou corças que os viam passar com um olhar doce. Compreendeu que estava num imenso parque: a propriedade de Fielding.

No alto de uma colina avistou-se Buckden. Não, não era uma casa. Era um castelo quadrado, maciço, com alas agrupadas em torno de um pátio central; diante dele estendiam-se relvas aveludadas. Do telhado, subia o fumo de altas chaminés em torno das quais grasnavam gralhas. Ao longo de um mastro pendia uma bandeira. Um pavão branco abria a cauda no terraço.

Todo esse esplendor, essa riqueza, essa perfeição surpreenderam Harvey, esmagando-o. Que diferença de Los Cisnes! Lá a paisagem era uma moldura que valorizava a beleza de Mary; aqui, parecia absorvê-la completamente.

As rodas rangeram no cascalho da alameda, o auto virou, parou diante do patamar. Criados precipitaram-se, seguidos de cães latindo e pulando.

- Enfim chegamos, louvado seja Deus! - gritou alegremente Fielding.

 

Estavam todos reunidos na noite seguinte, em Buckden, depois de um jantar que não se assemelhava nem às refeições severas do "Auréola" nem aos bródios fantasistas de Corcoran. "Uma refeição bem simples", segundo a expressão de Fielding. "Vamos comer qualquer coisa", dizia rindo, e acrescentava em tom mais sentencioso: "Graças a Deus, podemos ainda nos permitir o luxo de um modesto cardápio."

Ostras excelentes de Whistable, uma sopa muito condimentada, salmão de Tweed, frangos que se dissolviam na boca, "foie-gras" vindo diretamente de Strasburgo, aspargos suculentos - tudo isso e o "soufflé" que espumava no prato. Podia-se saltar um prato sem morrer de inanição. Harvey servira-se de vários, e Mary de um apenas. Só três criados com dragonas de almirante, e solenes como arquiduques, impediam a reunião de ser de uma simplicidade bucólica. Harvey, observando, perguntava-se se tinha diante dele seres vivos ou manequins. Aqueles homens teriam alma? Uma personalidade? Uma vida própria? O castelo, a criadagem e o ambiente seriam ilusão ou realidade? Embora não se tratasse de ostentação, banhava-se entretanto no luxo fino, suave e amolecedor. Não era preciso nem um gesto: todos os desejos eram adivinhados.

Pela manhã, vinham despertar Harvey, em seguida traziam-lhe o chá numa bandeja, levavam-no mais tarde para uma sala de banho, onde a banheira já estava cheia de água com temperatura ideal, onde toalhas quentes eram oferecidas por mãos atentas. O criado barbeava-o, esfregava-o, vestia-o. Os sapatos, a roupa branca, o terno caíam do céu, escovados, passados a ferro, com as pregas impecáveis. E não lhe custava nada. Podia ter tudo com um simples aceno. Mas como o sufocava! Impossível até puxar um cigarro sem que alguém, rápido, lhe estendesse um fósforo. Harvey lutava contra a revolta que aumentava.

No momento fixava, pensativo, a enorme acha de lenha que se queimava na imensa lareira. Ele e Mary estavam sentados ao canto do fogo no vasto estudio; Fielding e Elissa, displicentemente afundados num divã, preparavam-se para a digestão. Nos velhos painéis chineses, papagaios prateados planavam num azul delicioso.

Aqui e ali, tufos de lírios destacavam-se em grandes vasos, e um ramo de orquídeas refletia-se na superfície polida de um velho cofre de carvalho. Em cima da lareira um retrato de Mary sorrindo, que Harvey não ousava olhar.

- Saibam - disse Elissa, rompendo o silencio, - que esta manhã acordei com a intenção bem clara de ficar de mau humor, mas não consegui. É curioso, hein? - Parecia emitir profundos pensamentos. - Senti-me pensativa durante o dia inteiro. Você fez bem em me obrigar a assistir ao ofício. Michel; afinal, é calmo e reconfortante. Lembrei-me do tal missionário. - Refletiu um instante. - Sua iniciação foi um pouco desagradável, mas estou convencida de que lhe será proveitosa.

Mary, perto da lareira, seguia atentamente as chamas dançantes:

- E sua irmã? - murmurou sem desviar os olhos.

- Oh! Mary, que pena! Você destroe todas as minhas boas disposições. . . - Seguiu-se um silêncio. - Sim, acabou-se. E dizer-se que aqui não há ninguém amável comigo! Que querem que eu me torne?

Mary não respondeu, mas Harvey, irritado, replicou:

- Por que não tenta trabalhar? Isto a distrairia.

- Trabalhar? - perguntou Elissa, espantada. Michel aspirou voluptuosamente a fumaça do charuto:

- Vamos, vamos, cada um de nós cumpre bem sua obrigação.

- Obrigação? - retrucou Harvey amargamente. Qual é? Ficar aqui comendo e dormindo, procurando distrações; Elissa faz coleção de "fans", e você de velhos centenários. Vão à cidade, mas ainda é para comer ou dormir; assistir a peças mais ou menos interessantes, expor algum gerânio azul que outro plantou para vocês, comprar algum objeto antigo, voltar depressa aqui para organizar uma festa, um baile, uma venda de caridade, uma reunião.. .

- Mas que diabo, - replicou Fielding sempre sorridente - e Buckden? Não representa uma ocupação?

- Buckden não lhe custou esforço algum. Não a adquiriu. A propriedade inteira lhe foi entregue um belo dia, inteiramente organizada, com seus asilos, pavões, criados, luxo e o resto.

- E os impostos? - replicou Michel, rindo-se mais ainda. - Não acha que é um trabalho conseguir pagá-los e ao mesmo tempo juntar para viver honestamente?

Harvey não respondeu, mas Elissa lançou um olhar para Mary.

- Sopra um vento democrático! Voltemos à simplicidade e ganhemos o pão com o suor de nosso rosto. "A vida é séria. A vida é ardente", segundo a divisa dos marinheiros da linhagem dos Mainwaring.

Sua observação não encontrou eco. Michel levantou-se para apanhar outro charuto.

- Vamos, - disse, cortando a ponta com cuidado. Não discutamos; antes façamos alguma cousa. Mostremos que não somos tão preguiçosos como querem... Se fossemos jogar bilhar? Que diz, Elissa?

- Bilhar? - respondeu a moça, como se ele propusesse "saute-mouton".

- Perfeitamente, é muito divertido. Vamos fazer uma partida de quatro. vou preparar o que é preciso. Venham todos.

Acendeu o charuto e saiu, enquanto Elissa o seguia com os olhos:

- Por que diabo será que Michel não pode levar nada a sério? Estávamos justamente no ponto crítico e interessante examinando o que poderíamos fazer na vida. Agora.. .

Dançou um olhar a Mary e Harvey, sorriu, bocejou, levantou-se e dirigiu-se displicentemente para a porta, sem acrescentar mais nada.

Encontravam-se a sós pela primeira vez desde Los Cisnes. Sós! Era tão inesperado que Mary teve um arrepio, permanecendo completamente imóvel, como se temesse o menor movimento. Mas reagiu, ergueu a cabeça e olhou Harvey bem de frente. E tudo o que os separara nos últimos dias, se dissipou imediatamente. Exclamou:

- O que Elissa acaba de dizer é verdade. Que iremos fazer agora?

Os olhos sombrios, profundos e graves pareciam machucados. O reflexo da lareira dourava-lhe os cabelos, a brancura dos braços acentuada pelo vestido escuro e simples. Sua fisionomia, ainda pálida, se esforçava por parecer calma, mas os lábios tremiam de emoção.

Harvey não se mexia nem falava, embora os olhos procurassem os de Mary com uma expressão faminta.

"Até que enfim vamos saber..."

- Não nos devemos iludir por mais tempo - cochichou Mary. - É preciso ver as cousas com coragem, bem de frente. Agora você me conhece, sabe como é minha vida, compreendeu por que sentia tanta necessidade de evasão, por que procurava qualquer cousa menos artificial, mais simples, por que me sentia oprimida, abafada, aqui. Viu como Elissa zombava de mim? Mas tem razão. Nunca apreciei o que me foi dado, porque não corresponde ao meu carater. Mas nunca o compreendera antes de encontrá-lo. E é verdade também o que disse a respeito de trabalho. Despertou em mim algo de novo. Já é tempo de deixar de ser uma menina incompreendida, de não sonhar mais com jardins e cousas feéricas, de passar a ser sensata, enfim. Queria tornar-me útil, ser capaz de dar afim de merecer o que recebo. Agora sou uma mulher, sinto-o, estou transformada, acabo apenas de sair da infância. Oh! Harvey! Repare, só tinha dezoito anos quando me casei com Michel; não sabia nada quanto a ele. Nunca pediu outra coisa, mas você vê - falava cada vez mais baixo - como ele é bom... - Parou, as mãos fechadas uma na outra tão fortemente que se tornaram mais brancas que o seu rosto. - Oh! é horrível amá-lo como o amo, Harvey, e não saber o que fazer.

O coração de Harvey batia, quase estourando de novo. Como num sonho respondeu:

- Você veio a mim, uma vez, em Los Cisnes.

- Sim, é verdade, mas não refletia, deixava-me guiar por um instinto; talvez já estivesse doente.

com a emoção, os seios arfavam: Harvey gostaria de repousar a cabeça neles.

- Não esqueça, - murmurou com voz fraca, - não esqueça o que nos liga.

- Sim, - suspirou ao cabo de um momento. Sei, sei mesmo desde muito tempo que lhe pertenço, a você; somente a você. Mas, que fazer? Não sou livre, e não posso, oh! não posso magoar Michel.

- Acha que ele sofreria?

- Não sei. Não posso garantir. Talvez não compreendesse e se limitasse a rir. Bem vê que não vale a pena tentar explicar-lhe. Seria preciso ir-me embora, simplesmente, sem dizer nada. Seria covardia ou coragem? Não sei nada mais, nada mais! Já pensei tanto, que minhas ideias estão completamente embrulhadas. No navio disse-lhe que tinha horror aos compromissos, às situações escusas - a voz tremia-lhe, mas esforçava-se por continuar -, às mulheres que têm amantes, às intrigas que se atam e desatam. As coisas feias me repugnam. Sempre me esforcei em criar um ideal, em viver segundo uma certa linha de conduta. Mas tudo agora está torcido, não distingo mais o bem do mal, e meu único pensamento, o que me obceca noite e dia, é: como poderia viver sem você!

- Seu ideal não mudou, Mary, nada é indigno em você. Amo-a.

Ela ergueu a cabeça e fixou-o com os olhos dilatados e profundos:

- Também eu o amo.

A porta abriu-se e Fielding entrou, com um taco na mão. Parou logo, seus olhos passearam de um lado para o outro, tossiu e sorriu:

- Vocês vêm, não é? Elissa quer fazer uma "poule". É preciso ao menos quatro, senão não tem graça.

Houve um silêncio de morte. Harvey, que corara muito, empalidecia de novo, mas Fielding não abandonou seu sorriso, e disse apenas:

- Lamento tê-los interrompido tão repentinamente. Talvez prefiram não jogar. Venham quando.. . quando... acabarem de conversar.

Mary baixou os olhos. Todo o seu ser pareceu inclinar-se como uma flor murcha na haste! Apoiou-se contra a lareira e disse num tom fraco e incolor:

- Estou muito cansada, Michel, creio que seria melhor ir deitar-me.

Correu para ela:

- Mas é claro. Que imbecil eu sou, por não ter lembrado que esta é a primeira noite que passa de pé! Espere um instante, vou dar ordem para lhe prepararem tudo no seu quarto. Deixe comigo. Lamento muito...

Ela levantou-se e dirigiu-se lentamente para a porta.

- Não é nada, - disse, sempre num tom estranho. Não se incomode, mas prefiro repousar.

- Sem dúvida, sem dúvida. - Tomou o braço dela com carinho, todo comovido, confundindo-se em desculpas. Ia acompanhá-la até seu quarto, ajudá-la a subir a escada, providenciar para que não lhe faltasse nada, evitar-lhe o menor esforço. Como esquecera que Mary ainda precisava de cuidados!

Saíram os dois, e Harvey, imobilizado, ficou muito tempo com o olhar fixo na porta fechada. Oh! poder fazer alguma cousa, poder lutar como lutara com Carr, bater, ferir! Mas nada disto existia diante da doçura, do tacto de um homem como Fielding.

Esmagado, Harvey percebia sua impotência. Estremeceu. Essa situação não podia continuar, era impossível. Precisava partir, fugir, sim, fugir, não importava para onde.

Pulou para a porta, arrancou a cortina, abriu e saiu. O ar fresco nem ao menos lhe acalmava a cabeça ardente. O rosto de Mary parecia-lhe desenhar-se no nevoeiro, enquanto descia a alameda e ganhava o caminho bordado de faias. Atrás, a massa do castelo parecia um grande animal deitado.

Era preciso fugir o mais depressa possível, senão seria sufocado entre aquelas paredes. Agora, à medida que se afastava, parecia-lhe sair pouco a pouco de uma faixa de gaze que lhe havia coberto os olhos, a boca, as orelhas. Enfim estava libertado daquele domínio. Caminhava depressa, muito depressa. Súbito, ouviu o apito de um trem, avistou o clarão vermelho de uma locomotiva entrando numa estação. Pôs-se a correr com todas as suas forças, passou diante do empregado que anunciava o trem de Londres, saltou num vagão e abateu-se no canto de um compartimento. Ali ficou, imóvel, enquanto o trem rodava na noite.

 

Um carvão apagado caiu da grelha onde luzia o fogo, e o ruído seco pareceu acentuar ainda mais o silêncio que reinava no gabinete modesto e sem conforto, do pequeno apartamento de Harvey Leith.

Afundado numa cadeira, Ismay tossiu uma ou duas vezes, preparando-se para falar, mas desistiu e lançou para o amigo um olhar furtivo, Harvey estava sentado, pensativo, sob o globo amarelo que iluminava fracamente o mobiliário pobre: a lareira, a mesa de trabalho coberta de poeira, as grosseiras chícaras de café, agora vazias e gordurosas, pousadas num consolo coberto com um pano de pretensões artísticas, da espécie dos que compram no bazar como reclame, a treze francos e noventa.

Havia quatro dias que Harvey abandonara Buckden.

Fora, em Vincent Street, um nevoeiro primaveril subia do rio, abafando os ruidos da rua, já diminuídos àquela hora tardia. A modesta e pequenina pêndula soou dez horas. Ismay aproveitou para reatar a palestra.

- Então, você me parece mais tagarela que nunca.

- Acha?

- Você não vai me fazer crer que me contou tudo, hein?

- Sim, senhor, contei tudo. Ismay agitou-se com impaciência:

- Você arranjou uma estranha aventura, Verdadeiramente perturbadora.

- com efeito.

- Entretanto, você é o último ao qual eu atribuiria tanta imaginação, tanta fantasia.

- E por que não?

- Porque você sempre foi um homem de ciência, preciso, sempre chamou um gato de gato, e sempre tinha uma pedra científica para jogar no espelho das ilusões.

Harvey não respondeu logo. Disse secamente:

- Agora não tenho mais pedra.

Houve um silêncio embaraçoso, e acrescentou:

- Escute-me direito, Ismay. Fiz uma experiência que destruiu todo o racionalismo, o raciocínio matemático ao qual me habituara. Existem debaixo do céu cousas insuspeitadas, que ultrapassam nossa razão, nosso entendimento. É preciso se convencer. Pensamos que sabemos de tudo, quando na realidade não sabemos de nada - nada!

Ismay endireitou-se.

- Vamos, meu velho; você não está falando sério. Não o compreendo.

- Nem eu nem você compreende, mas, por Deus! isso tudo dá muito que pensar!

Fez-se novo silêncio. Ismay ia falar. Depois mudou de ideia e calou-se. Lançou um olhar a Harvey, desviou os olhos, e enfim alçou vagamente os ombros.

Que diabo! Não ia continuar a discutir. Tinha opiniões muito claras sobre todas essas tolices. Mas, enfim, não era de sua competência. Ah! Se se tratasse de uma apendicite, de uma bela perfuração no intestino, aí então estaria no seu lugar! Mas aquela história inverossimil! No fim de contas o que importava? O principal é que Harvey havia voltado, são de corpo e de espírito, visivelmente em boas condições para trabalhar de novo. Como tivera razão, ele Ismay, de impeli-lo àquela viagem! O plano dera resultado. Sem ligar importância à pêndula, puxou o relógio, verificou as horas, tornou a enfiá-lo no bolso.

- Em que pensa?

- Em qualquer cousa que Corcoran não deixaria de dizer, - respondeu lentamente Harvey, - sobre a necessidade de estar sempre com a cabeça erguida, aconteça o que acontecer. "Deixem-me abandonar tudo, não com lamentações, mas cantando como um cisne". Está em Platão... Era um tipo notável, Platão; você sabe, meu velho? Você deveria ler suas obras, moço, se tivesse tempo.

- Ao diabo as viagens, - exclamou Ismay. - Graças a Deus você não parte mais! É um outro homem, e vai me dar razão.

Levantou-se, tirou o capote do cabide, e vestiu-o, tirando as luvas do bolso. Depois de haver tomado o guarda-chuva e o chapéu, ficou um instante imóvel.

- A propósito, - disse enfim, revelando, com ar misterioso, a noticia que guardara como surpresa - há um lugar vago no Central Metropolitan.

Parou outra vez antes de acrescentar:

- Pensei que poderia interessá-lo. Quem sabe se era até melhor que você se apresentasse?

Harvey ergueu a cabeça.

- O novo hospital de Tuke Street? Mas por cousa alguma no mundo hão de querer saber de mim.

Ismay examinava as unhas com o ar indiferente, que afetava nos casos importantes:

- Eu, se fosse você, ia ver. Harvey sorriu tristemente.

- Sempre arregimentando o universo, hein, Ismay?

- Pelo menos uma boa parte.

- Que quer dizer?

- Que queremos ajudá-lo. Não estive dormindo, falei com Craig, sobre o assunto, na semana passada. Isto, ao menos, é claro; não é como suas histórias nebulosas. Em suma, eles lá desejam a sua colaboração - e subitamente esqueceu as unhas e continuou com entusiasmo juvenil: - Foi sorte você ter chegado na hora, meu caro: um hospital novinho em folha, colaboradores à altura, e o laboratório mais moderno de Londres. Uma ocasião única para voltar ao trabalho. Você vai aceitar, não?

Harvey parecia mergulhado em profundas reflexões. Trabalhar? Sem dúvida, tinha vontade. Uma vaga esperança o invadiu. Suas faculdades pareceram despertar, prontas para reagir contra a melancolia que as aniquilava. Sim, era preciso esquecer o passado, pensar no futuro.

- Sim, aceito.

Ismay enfiou o chapéu na cabeça com um ar alegre.

- Eu sabia. vou chamar Craig ao telefone, logo que chegar em casa.

Chegando em frente à porta, levantou o guarda-chuva:

- Chegou sua vez, Harvey. Aproxima-se o dia em que o pessoal do Victoria sentirá remorsos por tê-lo desconhecido. Disse-lhe que teria a desforra e a terá!

- Não procuro a desforra, - disse Harvey com doçura.

- Mudei muito! Acabou-se o orgulho. Sei que não sou onisciente. Quero trabalhar com simplicidade, Ismay; quero tentar, tentar...

Mas Ismay não o escutava mais, as palavras perderam-se com o barulho da porta que se fechava. Partira.

Harvey continuava em pé no meio da sala. Pequenas chamas dançavam nas brasas quase apagadas. Sentia-se cansado, mas uma energia ardente despertava nele. Suspirou, Era uma oportunidade inesperada, que se apresentava, graças a Ismay. Não a deixaria escapar, é claro! Uma nova fé penetrava-o, novos projetos se esboçavam.

Quanto ao físico, ainda estava meio mole, desanimado: não era sua culpa. Impelido por forças misteriosas, aproximou-se da mesa de trabalho. Nada tinha sido tocado; o microscópio estava ali com as lâminas, os tubos, os vidros: tudo bem cheio de poeira. Pasteur, do seu retrato, contemplava-o com um olhar austero. Uma sensação de rejuvenescimento brotava nele: ia entregar-se de novo ao trabalho.

Nunca seu desejo de ação fora tão ardente, nunca a sensação de um despertar da inteligência fora tão completo.

Pegou num tubo de ensaio. Tocá-lo, seria uma tranquilidade, um consolo. Sim, sentia-se com forças para enfrentar a tarefa!

Agora tudo estava calmo, a casa silenciosa, nenhum ruído mais na rua. Pensou em Mary, procurou rever-lhe o rosto e laboriosamente tentou reconstruir a aventura. Mas as diferentes partes não se juntavam mais; nenhum ser humano jamais poderia juntá-las.

Suspirou. Assim era o passado. Quanto ao futuro, como seria? Não podia saber. Mas restava-lhe a lembrança de Mary, - ideal que se misturaria estreitamente com o trabalho .

E como continuasse ali, em pé, melancólico, um som ressoou na rua deserta, um som curioso que parecia brotar do nevoeiro, entrar na casa, repetir-se no vestíbulo. Pareceu-lhe que alguém se encostava docemente na porta. "É o vento", pensou. Mas não havia vento. É Ismay que volta para procurar alguma coisa que esqueceu". Mas também não era Ismay.

Seu coração bateu então fortemente; ouvia passos leves na escada. E repetia, como para se acalmar: "Não é ninguém, não pode ser"; mas seu rosto estava lívido. Em seguida, o coração deixou de pulsar com violência, pois o barulho cessara e um perfume flutuava muito nítido - um perfume de flores, o perfume das frésias...

 

                                                                                            A. J. Cronin

 

 

                      

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