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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENCONTRO EM BERLIM
ENCONTRO EM BERLIM

 

                                                                                                                                               

  

 

 

 

 

 

 

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

O Capitão Sender tranquilizou-o. Era um “amigo” — um cabo da seção de transporte da Estação W.B. Tinha consertado um complicado defeito de motor no Opel. Cada noite, das seis às sete, estaria a postos para provocar uma série de explosões múltiplas pelo escape quando um sinal num radioportátil operado por Sender assim determinasse. Isso daria um pouco de cobertura para o barulho dos tiros de Bond. Caso contrário, a vizinhança poderia alertar a polícia e haveria um monte de explicações difíceis a serem dadas. Seu esconderijo estava no setor americano e embora seus “amigos” americanos tivessem dado à Estação W.B. permissão para esta operação, os “amigos” estavam naturalmente ansiosos de que fosse um trabalho limpo e sem repercussões.

Bond ficou impressionado favoravelmente com o macête do carro, bem como com as preparações muito profissionais que tinham sido feitas para ele na sala de estar. Aqui, além da cabeça desta cama alta, proporcionando uma posição de fogo perfeita, tinha-se erguido um apoio de madeira e metal contra o largo peitoril da janela e ao longo dele repousava a Winchester, a ponta do seu cano tocando apenas as cortinas. A madeira e todas as partes metálicas do rifle e da Sniperscope tinham sido pintadas de preto fosco e, colocado sobre a cama como um sinistro traje de noite, havia um capuz de veludo negro costurado a uma camisa da mesma fazenda que alcançava até a cintura. O capuz tinha aberturas amplas para os olhos e a boca. Lembrava a Bond velhas gravuras da Inquisição Espanhola, ou dos operadores anônimos na plataforma da guilhotina durante a Revolução Francesa. Havia um capuz semelhante sobre a cama do Capitão Sender e, em sua secção do peitoril, binóculos noturnos e o microfone para o aparelho de rádio.

O Capitão Sender, de rosto preocupado e nervos lensos, disse que não havia nenhuma novidade na estação, nenhuma mudança na situação, que soubessem. Queria Bond algo para comer? Ou uma taça de chá? Talvez um tranquilizador — havia dos mais variados no banheiro?

Bond abriu o rosto numa expressão alegre e relaxada e disse não obrigado, e fez um relato bem-humorado do seu dia enquanto uma artéria perto do seu plexo solar começava a pulsar suavemente à medida que a tensão aumentava dentro dele como uma mola de relógio esticada. Por fim, o assunto esgotou-se e ele se estendeu sobre a sua cama com um livro policial alemão que tinha comprado durante o passeio, enquanto o Capitão Sender se movia com impaciência pelo apartamento, olhando a todo instante ao relógio e fumando, um atrás do outro, cigarros Kent com filtro através (era um homem cuidadoso) de uma piteira Dunhill.

A leitura que James Bond escolhera, promovida por uma capa espetacular com uma garota meio nua amarrada a uma cama, foi bastante oportuna para a ocasião. Chamava-se Verderbt, Verdammt, Verraten. O prefixo ver significava não só que a garota tinha sido arruinada, desgraçada e traída, mas que tinha sofrido essas desventuras da maneira mais intensa. James Bond perdeu-se por algum tempo nas tribulações da heroína, Gräfin Liselotte Mutzenbacher, e foi com irritação que ouviu o Capitão Sender dizer que eram cinco e meia, hora de tomarem seus postos.

Bond tirou o paletó e a gravata, pôs dois tabletes de goma de mascar na boca e enfiou o capuz. As luzes foram apagadas pelo Capitão Sender e Bond estirou-se ao longo da cama, aproximou o olho da ocular da Sniperscope e suavemente ergueu a beirada inferior da cortina colocando-a por cima da cabeça sobre seus ombros.

Agora a noite estava chegando, mas fora disso o cenário, que um ano depois se tornaria famoso como Checkpoint Charlie, parecia uma fotografia de que se tinha boa lembrança — o terreno baldio à sua frente, o rio brilhante da rua fronteiriça, o terreno baldio mais adiante e, à esquerda, o horrendo bloco quadrado da Haus der Ministerien com suas janelas acesas e escuras. Bond esquadrinhou tudo lentamente, movendo a Sniperscope, com o rifle, por meio de parafusos de precisão na base de madeira. Estava tudo inalterado, com exceção agora de um punhado de funcionários que saíam e entravam no Ministério pela porta da Wilhelmstrasse. Bond olhou longamente para as quatro janelas escuras — novamente apagadas esta noite — que segundo ele e Sender seriam os pontos de fogo do inimigo. As cortinas tinham sido puxadas e as janelas de guilhotina estavam completamente abertas na parte debaixo. A luneta de Bond não podia penetrar nas salas, mas não havia nenhum sinal de movimento dentro das quatro bocas oblongas e escancaradas.

Agora havia um tráfego extra na rua lá embaixo. A orquestra feminina dirigiu-se marchando sobre a calçada até a porta de entrada — vinte garotas sorridentes, conversando e carregando seus instrumentos — caixas de violinos e instrumentos de sopro, sacolas com partituras e quatro delas com os tambores — um pequenino crocodilo, alegre e feliz. Bond refletia em que algumas pessoas ainda pareciam achar a vida divertida no Setor Soviético, quando suas lentes pegaram a garota que carregava o violoncelo e ficaram com ela. Os maxilares de Bond imobilizaram-se por um instante e logo continuaram a mascar, num ato reflexo, enquanto ele girava o parafuso para baixar a Sniperscope e mantê-la em seu centro.

A garota era mais alta que as outras e seus cabelos longos, lisos e louros, que caíam pelos ombros, reluziam como ouro fundido sob as luzes do cruzamento. Andava apressadamente com um jeitinho encantador e excitado, levando a caixa do violoncelo como se não fosse mais pesada do que um violino. Tudo parecia voar — as abas do seu casaco, seus pés, seus cabelos. Estava cheia de movimento e vida e, parecia, de alegria e felicidade, ao conversar com as duas garotas que a ladeavam e ao pontilhar a conversa de risadas. Quando entrava pela porta do prédio, no meio do seu grupo, as luzes fixaram por instantes um perfil belo e pálido. E então desapareceu e o seu desaparecimento foi para Bond uma ponta de dor cravada em seu coração. Estranho! Que coisa tão estranha! Isso não lhe tinha acontecido desde a juventude. E agora essa simples garota, vista apenas indistintamente e a distância, o fazia sofrer esta pontada aguda de desejo, esta vibração de magnetismo animal! Morosamente, Bond olhou para o mostrador luminoso de seu relógio. Cinco e cinquenta. Só dez minutos mais. Nenhum transporte chegara à entrada. Nenhum daqueles Ziks pretos, fechados e anônimos que ele imaginara viessem. Fechou tanto de sua mente quanto pôde para a lembrança da jovem e aguçou sua inteligência. Vamos, miserável! De volta ao trabalho!

De alguma parte dentro do Ministério vieram os sons familiares de uma orquestra afinando — as cordas afinando seus instrumentos com as notas isoladas do piano, o clangor agudo das madeiras individuais — depois uma pausa e então o impacto coletivo de melodia com toda a orquestra atacando competentemente, na medida em que Bond podia julgar, os compassos iniciais do que até para James Bond era vagamente familiar.

“As Danças Polovtsianas do Príncipe Igor” — disse o Capitão Sender sucintamente. — De qualquer maneira, estão chegando as seis horas — e então com urgência: — Êh! No canto inferior direito das quatro janelas! Olha lá!

Bond baixou milimètricamente a Sniperscope. Sim, ha viu movimento dentro da caverna escura. Agora, do seu interior, um objeto grosso e negro, uma arma, tinha deslizado para fora. Movia-se com firmeza, minuciosamente, girando para baixo e para os lados a fim de cobrir o trecho da Zimmerstrasse entre os dois terrenos baldios cheios de entulho. Então o operador invisível na sala escura pareceu satisfeito e a arma permaneceu fixa, obviamente presa a um apoio tal como o que Bond tinha debaixo do seu rifle.

— O que é? Que tipo de arma? — A voz do Capitão Sender estava mais ofegante do que devia.

Calma, que diabo! Pensou Bond. Eu é que devia estar nervoso.

Forçou a vista, examinando o atarracado liberador de gases na boca da arma, ,a luneta telescópica e o pedaço grosso protuberante do depósito. Sim, só podia ser isto! Absolutamente certo — e o melhor que tinham!

— Kalashnikov — disse brevemente. — Metralhadora de mão. Operada a gás. Trinta cápsulas de 7.62 milímetros. Uma favorita da KGB Afinal resolveram fazer um serviço completo. Perfeita para alvejar. Teremos de apanhá-lo com muita rapidez ou o 272 acabará não só morto como geleia de morango. Fique de olho aguardando qualquer movimento naquele entulho de lá. Ficarei grudado àquela janela e à arma. Ele terá que se mostrar para abrir fogo. Outros sujeitos estarão provavelmente marcando a pontaria atrás dele — talvez de todas as quatro janelas. É bem o tipo de arranjo que esperávamos, mas não pensei que fossem usar uma arma que vai fazer toda a confusão que esta promete. Devia ter imaginado isso. Um homem correndo não seria fácil de acertar nesta luz com arma de um só tiro.

Bond dedilhou delicadamente os parafusos de apontar e de elevar e ajustou as linhas finas da luneta na exata intersecção, bem no ponto em que o cano da arma inimiga emergia da escuridão da janela. Acerte no peito — não se preocupe com a cabeça!

Dentro do capuz, o rosto de Bond começou a suar e a órbita do olho mostrava-se escorregadia contra a borracha da ocular. Não tinha importância. Eram apenas suas mãos, seu dedo de gatilho, que deviam ficar inteiramente secos. À medida que escoavam os minutos, ele frequentemente piscava os olhos para descansá-los, mudava a posição das pernas para mantê-las ágeis, ouvia a música para relaxar sua mente.

Os minutos arrastavam-se com pés de chumbo. Que idade teria ela? Vinte e poucos — uns vinte e três. Com aquela altivez e despreocupação, a sugestão de autoridade em seu fácil caminhar de passos largos, vinha certamente de uma boa ascendência de raça — uma das velhas famílias prussianas, é provável, ou de remanescentes semelhantes na Polônia ou mesmo na Rússia. Por que diabo tinha de escolher o violoncelo? Havia algo quase indecente na ideia daquele instrumento volumoso e deselegante entre as suas coxas abertas. Certo, Suggia tinha conseguido um ar elegante e o mesmo fizera aquela garota Amaryllis qualquer-coisa. Mas deviam inventar um jeito para as mulheres montarem de lado no diabo do instrumento.

A seu lado o Capitão Sender disse: — Sete horas. Nada se mexeu do outro lado. Um pouco de movimento no nosso lado, perto de um porão nas proximidades da fronteira; será o nosso comitê de recepção — dois bons homens da estação. Melhor mantê-los até que o inimigo encerre os trabalhos. Diga-me quando recolherem a arma.

— Está bem.

Eram sete e meia quando a metralhadora de mão da KGB foi suavemente recolhida para o interior escuro. Uma a uma, as vidraças inferiores das quatro janelas foram fechadas. O jogo de sangue-frio terminara por esta noite. O 272 ainda estava encurralado. Mais duas noites pela frente!

Bond puxou cuidadosamente a cortina por cima dos ombros e em frente do cano da Winchester. Levantou-se, tirou o capuz e foi ao banheiro e despiu-se e tomou um banho de chuveiro. Bebeu então dois grandes uísques on the rocks em rápida sucessão, enquanto aguardava, ouvidos atentos, que o som agora abafado da orquestra parasse. Quando isso aconteceu, às oito horas (com o comentário abalizado de Sender, Dança Coral Número 17 do Príncipe Igor de Borodin, creio) ele disse a Sender, que estivera passando o seu relatório em linguagem truncada ao chefe da Estação: — Vou apenas dar uma outra olhada. Fiquei gamado por aquela loura alta do violoncelo.

— Não a notei — disse Sender sem interesse. Foi à cozinha. Chá, pensou Bond. Ou talvez Horlick’s. Bond vestiu o capuz, voltou à sua posição de fogo e apontou a Sniperscope para a porta do Ministério. Sim, lá estavam elas, não tão alegres e sorridentes agora. Cansadas, talvez. E agora vinha ela, menos cheia de vida mas ainda com aquele andar belo e displicente. Bond acompanhou os cabelos dourados ao vento e a capa de chuva até desaparecerem no crepúsculo anil da WiIhelmstrasse. Onde morava? Em algum quartinho sórdido e miserável de algum subúrbio? Ou num dos apartamentos privilegiados da horrenda Stalinallee com suas fachadas em ladriIho de lavatório?

Bond deixou a posição. Em algum lugar, dentro de alcance fácil, vivia aquela garota. Seria casada? Teria um amante? Que fosse tudo para o inferno! Ela não era para ele.

O dia seguinte e a vigília noturna seguinte foram uma reprodução, com pequenas variações, do primeiro. James Bond teve outros dois breves encontros, pela Sniperscope, com a garota, e o resto foi tempo para passar e um aumento da tensão que, ao chegar o terceiro e último dia, era como uma névoa na pequena sala.

James Bond abarrotou o terceiro dia com um programa quase lunático de museus, galerias de arte, o zoo e um filme, quase sem perceber as coisas que olhava, a atenção dividida entre a garota e aqueles quatro quadrados escuros e o tubo negro e o homem desconhecido atrás dele — o homem que ele ia seguramente matar esta noite.

De volta ao apartamento às cinco em ponto, Bond cuidadosamente evitou uma briga com o Capitão Sender, porque tinha-se servido de uma boa dose de uísque antes de colocar o infame capuz que agora cheirava com o seu suor. O Capitão Sender tinha tentado impedi-lo e, não o conseguindo, ameaçara chamar o chefe da Estação e dar parte de Bond por desrespeito às normas.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Bond num tom cansado — tenho que cometer um crime esta noite. Não você. Eu. Portanto seja bonzinho e fique quieto, sim? Você pode relatar a Tanqueray o que quiser quando isso terminar. Pensa que gosto deste serviço? Do meu número Zero-Zero e tudo mais? Ficaria muito feliz se você conseguisse minha demissão da Seção Zero-Zero. Então poderia me acomodar num macio ninho de papéis como um funcionário comum. Certo?

Bond engoliu o seu uísque, alcançou o livro policial, agora atingindo um clímax impressionante, e jogou-se na cama.

O Capitão Sender, com um silêncio glacial, foi à cozinha para preparar, pelos ruídos que fazia, o seu inevitável chazinho.

Bond sentiu o uísque começando a fundir os nervos enrascados em seu estômago. E agora, Liselotte, como é que você vai sair desta embrulhada?


Eram exatamente seis e cinco quando Sender, em seu posto, começou a falar agitadamente: — Bond, tem alguma coisa se mexendo lá adiante. Agora parou — espere, não, ele está se movendo de novo, bem abaixado. Há um trecho de muro derrubado ali. Ele ficará fora da visão do inimigo. Mas tem matagal cerrado à sua frente, jardas e jardas. Cristo! Está atravessando o capinzal. E o capim está se mexendo. Deus queira, pensem que é apenas o vento. Agora atravessou e deitou-se no chão. Alguma reação?

— Não — disse Bond tensamente. — Continue descrevendo. Qual é a distância daqui à fronteira?

— Tem apenas umas cinquenta jardas a cobrir.

A voz do Capitão Sender estava rouca de excitação: — Terreno quebrado, mas parte dele é aberto. Vem então um sólido pedaço de muro separando da calçada. Terá que passar por cima. Não podem deixar de vê-lo então. Agora! Caminhou dez jardas e outras dez. Eu o vi claramente. Escureceu o rosto e as mãos. Atenção! A qualquer momento agora ele fará a corrida final.

James Bond sentiu o suor escorrendo-lhe pelo rosto e pescoço. Assumiu um risco e rapidamente enxugou as mãos nos lados e logo as colocou de volta no rifle, o dedo dentro da guaida, repousando sobre o gatilho encurvado. — Há algo se movendo na sala adiante da arma. Devem tê-lo visto. Ponha em funcionamento aquele Opel.

Bond ouviu a palavra-código entrar no microfone, ouviu o Opel embaixo na rua dar a partida, sentiu o pulso acelerar no instante em que o motor conquistava vida e uma série de estalidos ensurdecedores saíam pelo cano de escape.

O movimento na caverna escura era agora definido. Um braço negro com uma luva negra movia-se para fora e por baixo da coronha.

— Agora! — Explodiu o Capitão Sender. — Agora! Está correndo para o muro! Está subindo! Agora vai pular!

E então, na Sniperscope, Bond viu a cabeça de “Gatilho” — a pureza do perfil, o sino dourado dos cabelos — tudo isso disposto em volta da coronha da Kalashnikov! Ela estava morta, um pássaro no chão! Os dedos de Bond lançaram-se como um relâmpago aos parafusos, giraram e ajustaram as polegadas e, quando uma chama amarela piscou na boca da metralhadora, apertaram o gatilho.

A bala, certeira a trezentas e dez jardas, deve ter atingido onde a coronha terminava, na sua junção com o cano, poderia ter alvejado a jovem na mão esquerda, mas o efeito foi arrancar a arma do seu apoio, esmagá-la contra o lado do peitoril e então lançá-la para fora da janela. A arma rodou várias vezes durante a queda e espatifou-se no meio da rua.

— Atravessou! — Gritou o Capitão Sender. — Ele atravessou! Conseguiu passar! Meu Deus, conseguiu passar!

— Abaixe-se! — Disse Bond bruscamente e atirou-se de lado para baixo da cama enquanto o grande olho de um holofote numa das janelas escuras se acendia, iluminando a rua em direção do seu prédio e do seu apartamento. Então as armas espocaram e as balas atravessaram zunindo as janelas, rasgando as cortinas, despedaçando a madeira e cravando-se com baque surdo nas paredes.

Além do ronco e do zumbido das balas, Bond ouviu o Opel correndo rua abaixo e, ainda adiante, o sussurro fragmentário da orquestra. A combinação dos dois ruídos de fundo funcionou. Naturalmente! A orquestra tinha com certeza promovido um tumulto infernal em toda a Haus der Ministerien, tendo sido usada, como o Opel de escape aberto deste lado, para proporcionar uma cobertura à forte descarga de fogo no lado deles acionada por “Gatilho”. Teria ela carregado sua arma de um lado para outro diariamente naquela caixa de violoncelo? Seria toda a orquestra composta de mulheres da KGB? E as outras caixas de instrumentos, continham apenas equipamento — o grande tambor talvez o holofote — enquanto os instrumentos reais estavam disponíveis na sala de concerto? Elaborado demais? Fantástico demais? Provavelmente. Mas não havia dúvida nenhuma quanto à garota. Na Sniperscope, Bond tinha até chegado a ver um grande olho, com longos cílios, fazendo a mira. Teria ferido a garota? Quase com certeza o braço esquerdo. Não haveria chance de vê-la, de ver como estava, se saísse com a orquestra. Agora ele não a veria nunca mais. A janela seria uma armadilha mortal. Para sublinhar o perigo, uma bala perdida penetrou no mecanismo da Winchester, já atingido e danificado, e o chumbo derretido caiu sobre a mão de Bond, queimando a pele. Com a praga vigorosa de Bond, o tiroteio cessou abruptamente e o silêncio instalou-se no quarto.

O Capitão Sender saiu do lado de sua cama, limpando os cabelos de cacos de vidro. Atravessaram o quarto triturando os cacos e a porta estilhaçada, até a cozinha. Aqui, porque a janela dava para o outro lado da rua, não havia perigo em acender a luz.

— Algum dano? — Perguntou Bond.

— Não. E você, está bem?

Os olhos pálidos do Capitão Sender brilhavam com a febre que a batalha traz. E também, observou Bond, havia neles um vislumbre de acusação.

— Bem. Apenas me consiga um Elastoplast para a mão. Peguei um salpico de uma das balas.

Bond foi ao banheiro. Quando saiu, o Capitão Sender estava sentado junto ao transmissor-receptor que trouxera da sala de estar. Estava falando. Agora disse ao microfone: — É o suficiente por enquanto. Ótimo para o 272. Agora apressem com o carro blindado, se possível. Ficaria satisfeito em sair daqui e o 007 deverá escrever a sua versão do que aconteceu. O.K.? Então CÂMBIO e FORA.

O Capitão Sender voltou-se para Bond. Meio acusador, meio embaraçado, disse: — Sinto, mas o chefe da Estação quer seus motivos para não ter exterminado aquele sujeito. Tive de contar-lhe que vi você alterando sua mira no último segundo. Deu a “Gatilho” tempo de escapar à rajada. Uma sorte danada a do 272 que mal havia começado sua corrida. Explodiram pedaços do muro atrás dele. Mas afinal que foi que houve?

James Bond sabia que podia mentir, sabia que podia inventar uma dúzia de razões para desculpar-se. Em vez disso, sorveu um gole profundo do forte uísque que tinha preparado, depôs o copo e encarou o Capitão Sender bem no olho.

— “Gatilho” era uma mulher.

— E daí? A KGB tem uma porção de agentes femininos — e mulheres atiradoras. Não estou nada surpreso. O time feminino da Rússia sempre se sai bem nos campeonatos mundiais. Na última competição, em Moscou, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares contra sete países. Posso até lembrar dois de seus nomes — Donskaya e Lomova, uns tiros fabulosos. Pode até ser uma delas. Que tipo era ela? Os arquivos provavelmente trarão toda a informação.

— Era uma loura. A garota que levava o violoncelo daquela orquestra. Talvez escondesse a arma na caixa do violoncelo. A orquestra deveria cobrir o tiroteio.

— Oh! — Disse o Capitão Sender lentamente. — Agora vejo. A garota que o entusiasmou?

— Isso mesmo.

— Bem. Lamento, mas terei de colocar isso no meu relatório. Você teve ordens claras para exterminar “Gatilho”.

Ouviram o som de um carro que se aproximava. Parou em algum lugar lá embaixo. A campainha soou duas vezes. Sender disse: — Bom, vamos indo. Mandaram um carro blindado para nos tirar daqui.

Fez uma pausa. Seus olhos tremularam por cima dos ombros de Bond, evitando os olhos de Bond. — Desculpe o relatório. Tenho que cumprir o dever, você sabe. Você devia ter matado aquele tocaia, quem quer que fosse.

Bond levantou-se. Subitamente não queria deixar o pequeno e malcheiroso apartamento destroçado, deixar o lugar de que, durante três dias, tinha mantido este romance unilateral de longo alcance com uma jovem desconhecida — um agente inimigo desconhecido com o mesmo tipo de serviço que o dele. Pobre malandrinha! Agora estaria muito mais complicada do que ele! Certamente iria a conselho de guerra por ter falhado neste serviço. Talvez fosse chutada da K. G. B. Sacudiu os ombros. Pelo menos não chegariam a matá-la — como ele mesmo tinha feito.

James Bond disse com cansaço: — O.K. Com um pouco de sorte, vai-me custar o número Zero-Zero. Mas diga ao chefe da Estação para não se preocupar. Aquela garota não fará mais tocaia. Provavelmente perdeu a mão esquerda. Certamente perdeu os nervos para este tipo de trabalho. Assustou-a como o diabo. Para mim, foi o bastante. Vamos.


007 em Nova York


(007 IN NEW YORK)

 

(Tradução: Mari Oaks, Clubinho)*


Eram umas dez horas de uma manhã azul e dourada de fim de setembro e o BOAC Monarch procedente de Londres tinha chegado ao mesmo tempo que outros quatro voos internacionais. James Bond, o estômago enjoado pela versão BOAC de um “café da manhã campestre inglês”, tomou estoicamente seu lugar na longa fila de desembarque, que incluía muitas crianças aos berros, e na sua vez informou que havia passado as últimas dez noites em Londres. Então, quinze minutos na Imigração para mostrar seu passaporte, que dizia ser ele um “David Barlow, comerciante”, que tinha olhos, cabelos e 1,83 de altura, e depois o inferno da Alfândega do aeroporto de Idlewild, cuidadosamente projetado, na opinião de Bond, para prover um enfarte aos visitantes dos Estados Unidos. Todos, cada um com seu estúpido carrinho, tinham aquele olhar miserável e indigno de uma noite de voo. Todos esperando que sua mala aparecesse, que lhes fosse gentilmente entregue, para em seguida lutar para chegar aos guichês da Aduana, todos superlotados, onde cada volume (por que não uma verificação por amostra?) seria aberto e vasculhado, depois trabalhosamente fechado pelo exausto dono, muitas vezes em meio a tapas em crianças. James Bond olhou para a varanda com paredes de vidro que cercava o grande salão. Um homem de impermeável e chapéu, meia-idade, aparência comum, inspecionava através de pequenos binóculos aquele inferno de operações ordenadas. Qualquer um que o examinasse ou, na verdade, qualquer um de binóculos, era objeto das suspeitas de James Bond, mas agora sua mente conspiratória registrava apenas que este seria um bom método de ação para uma quadrilha de ladrões de hotéis. O homem notaria certamente a mulher de aparência rica declarando suas joias, então a seguiria quando fosse liberada pela Alfândega, depois por Nova York, ouviria na recepção do hotel o número do quarto que lhe seria atribuído, e o resto era automático. James Bond encolheu os ombros. Pelo menos, o homem não parecia interessado nele. Já com sua única mala na mão, passou pelo educado guarda.

Então, suando devido ao desnecessário aquecimento central, passou pelas portas de vidro automáticas para o abençoado ar fresco lá de fora. Um Cadillac da Carey, à espera, tinha um cartaz com seu nome. James Bond sempre usava a Carey Organization. Tinham carros excelentes e finos motoristas, de disciplina rígida e total discrição, que não fediam a charuto barato. Perguntou-se se a organização, supondo-se que tivesse associado David Barlow a James Bond, teria traído seus padrões e informado à CIA de sua presença. Bem, sem dúvida, os Estados Unidos vinham em primeiro lugar mas, em última análise, saberia a Carey quem era James Bond? A Imigração certamente sabia. Do grosso volume preto que o agente da Imigração consultara ao pegar seu passaporte constavam três Bond, e um deles era "James, britânico, passaporte 391354. Informar Diretor”. Até que ponto a empresa Carey seria próxima da Imigração? Provavelmente, só quando se tratasse de assunto policial. De qualquer forma, James Bond se sentia bem confiante de poder passar 24 horas em Nova York, fazer seu contato e sair novamente sem ter que dar explicações embaraçosas aos senhores Hoover ou McCone.

Mas era um assunto chato, nada instigante, por isso M mandara James Bond anonimamente a Nova York. Ele precisava avisar a uma boa garota, que havia trabalhado para o Serviço Secreto britânico, uma garota inglesa agora ganhando a vida em Nova York, que ela morava com um agente soviético da KGB ligado à ONU, e M soubera que o FBI e a CIA estavam em sua cola, muito perto de descobrir sua identidade. Bond passaria a perna em duas organizações amigas, claro, e seria muito constrangedor se fosse flagrado, mas a moça tinha sido um agente de primeira classe e M, quando podia, cuidava dos seus. Então James Bond fora instruído a fazer contato e conseguiu, o encontro sendo marcado para as três da tarde, do lado de fora (o local parecia apropriado para James Bond) da Ala do Réptil no zoológico do Central Park.

James Bond apertou o botão para baixar a divisória de vidro e se inclinou para a frente. “Para o Astor, por favor.”

"Sim, senhor."

O grande carro preto seguiu as curvas para fora do aeroporto e entrou na via expressa Van Wyck, que estava em obras para a Feira Mundial de 1964-1965. James Bond recostou-se e acendeu um de seus últimos Morland Specials. Na hora do almoço seria um Chesterfield king-size. O Astor. Era tão bom quanto qualquer outro e Bond gostava da selva de Times Square — as hediondas lojas de souvenirs, as roupas da moda, os hipnóticos anúncios de néon, um dos quais dizia “BOND” em letras de dez metros de altura. Aqui estavam as vísceras de Nova York, suas entranhas vivas. Seus outros bairros favoritos tinham acabado — Washington Square, Battery, Harlem, que agora exigiam passaporte. O Savoy Ballroom! Que divertido, nos velhos tempos! Ainda havia o Central Park, que devia estar lindo agora, claro e brilhante. Quanto aos hotéis, eles também se foram — o Ritz Carlton, o St. Regis, que morreram com Michael Arlen. O Carlyle seria talvez o único sobrevivente. O resto, todos iguais — aqueles elevadores panorâmicos, as salas cheias de ar do mês passado e uma vaga lembrança de charutos antigos, o vazio "Seja bem-vindo”, o café fraco, os ovos pochês de um branco quase azul no café da manhã (James Bond tivera um pequeno apartamento em Nova York, e procurou ovos vermelhos em toda parte até que, finalmente, o funcionário de um supermercado disse: “Não compramos, senhor, as pessoas acham que eles são sujos”), as torradas (aquela carga de torradas para as colônias devia ter naufragado!). Ai ai... Sim, o Astor servia como outro qualquer.

James Bond olhou para o relógio. Chegaria ao hotel pelas 11h30, com tempo para uma breve expedição de compras, mas muito breve, porque hoje em dia havia pouco para comprar que não viesse da Europa, exceto o melhor mobiliário de jardim no mundo, e Bond não tinha um jardim. Primeiro a farmácia, para comprar meia dúzia de escovas de dente Owens, incomparáveis. Hoffritz, na Madison Avenue, para suas lâminas de barbear pesadas e dentadas, muito melhores que as da Gillette, depois a Tripler, para meias de golfe francesas feitas por Izod, e Scribner, a última grande livraria de Nova York, porque há lá um vendedor com ótimo nariz para bons thrillers, e depois à Abercrombie olhar os novos gadgets e, quem sabe, marcar para a noite um encontro com Solange (apropriadamente empregada no Departamento de Jogos).

O Cadillac passava pelos horríveis depósitos de carros usados, com suas latarias repintadas faiscando. O que aconteceria com tudo aquilo quando o tempo finalmente apodrecesse suas entranhas? Onde eles finalmente morreriam? Seriam jogados ao mar, para que enferrujassem? Carta para o Herald Tribune!

Agora, a questão do almoço. Jantar com Solange seria fácil, no Lutèce dos anos sessenta, um dos grandes restaurantes do mundo. Mas e seu próprio almoço? Nos velhos tempos, ele certamente iria ao 21, mas a aristocracia financeira havia dominado até essa fortaleza, inchando os preços. E, como ela não sabia distinguir o bom do ruim, a comida minguara. Ainda assim gostaria de ir lá, em nome dos velhos tempos, tomar no bar uns dois martinis secos — gim Beefeaters com vermute da casa, batido com um toque de casca de limão. E então, que tal a melhor refeição em Nova York? Ensopado de ostras com cream crackers e Miller High Life no Oyster Bar do Grand Central? Não, ele não queria se sentar em um bar — melhor algum lugar espaçoso e confortável, onde pudesse ler um jornal em paz. Sim. Era isso! O salão Edwardian, no Plaza, uma mesa de canto. Eles não o conheciam lá, mas sabia que conseguiria comer o que quisesse, não como no Chambord ou no Pavillon, com seus irritantes maîtres de vinho e comida, e no caso do Pavillion, o miasma de uma centena de diferentes aromas femininos para confundir seu paladar. Ele beberia mais um martini seco na mesa, em seguida, um salmão defumado e os especiais ovos mexidos que ensinara um dia a fazer (Felix Leiter conhecia o chefe dos garçons)*. Sim, isso parecia bom. Tentaria o salmão defumado. No Edwardian costumava ser escocês, não aquela coisa seca e insípida canadense. Mas nunca se sabe com a comida americana. Contanto que bifes e frutos do mar fossem bons, o resto podia ir para o inferno. E tudo era congelado por tanto tempo, presumivelmente em algum enorme frigorífico com todo tipo de alimento, que o sabor tinha desaparecido da comida americana, exceto da italiana. Tudo tinha o mesmo gosto neutro. Quando foi servido o último frango fresco — não frango de corte —, um ovo de fazenda, um peixe capturado horas antes em um restaurante de Nova York? Haveria algum mercado na cidade, como Les Halles em Paris e Smithfields em Londres, onde se pudesse ver e comprar alimentos realmente frescos? James Bond nunca tinha ouvido falar de um. As pessoas diriam que era anti-higiênico. Como os americanos tinham se tornado tão higiênicos, tão germe-conscientes? Toda vez que James Bond fazia amor com Solange, no momento em que deveriam estar relaxados nos braços um do outro ela saía para o banheiro e lá ficava por longos quinze minutos, e quando voltava eles não podiam se beijar por um tempão, porque ela fizera gargarejo com TCP. E as pílulas que ela tomava se pegasse um resfriado! O suficiente para combater pneumonia dupla. Mas James Bond sorriu ao pensar nela e perguntou-se o que fariam juntos naquela noite, além do Lutèce e do amor. Nova York tinha tudo. Ele ouvira falar, embora nunca tivesse conseguido rastreá-los, que havia uns filmes pornôs sonoros e coloridos que depois de vê-los sua vida sexual nunca mais seria a mesma. Podia ser uma experiência para compartilhar com Solange! E aquele bar, ainda não descoberto, que Felix Leiter lhe dissera ser o ponto de encontro favorito de sádicos e masoquistas de ambos os sexos? O uniforme era jaqueta de couro preta e luvas de couro. Se você fosse sádico, prendia as luvas na alça do ombro esquerdo. Para os masoquistas, no direito. Como com os locais de travestis em Paris e Berlim, seria divertido ir dar uma olhada. No fim, claro, eles provavelmente iriam ao Embers ouvir o jazz favorito de Solange e depois para casa, para mais amor e TCP.

James Bond sorriu para si mesmo. Estavam subindo a Triborough, aquela incrivelmente bela ponte para as cerradas ameias de Manhattan. Ele estava ansioso por seus prazeres roubados entre as horas de trabalho. Apreciava passar o dia sonhando com eles até o mais ínfimo pormenor. E agora que tinha feito seus planos, cada perspectiva era agradável. Claro que as coisas podiam dar errado, teria então de fazer algumas mudanças. Mas isso não importa. Nova York tem tudo.

Nova York não tem tudo. A ausência de amenidades foi a mais angustiante possível para James Bond. Depois dos ovos mexidos no Edwardian, tudo deu absolutamente errado e, em vez do programa de sonho, houve telefonemas urgentes e constrangedores com a sede em Londres, e, em seguida, apenas por pura sorte, um encontro atabalhoado à meia-noite, ao lado da pista de patinação do Rockefeller Center, com lágrimas e ameaças de suicídio da menina inglesa. E tudo culpa de Nova York! Dificilmente alguém acreditaria, mas não há uma Ala do Réptil no Zoo do Central Park.

 

* Ovos mexidos à James Bond

(para quatro pessoas)

12 ovos frescos

Sal e pimenta

Cebolinha ou ervas finas

Meia xícara de manteiga fresca


Quebre os ovos numa tigela. Bata bem com um garfo e tempere a gosto. Numa frigideira de cobre, dissolva a maior parte da manteiga. Quando estiver dissolvida, derrame ali os ovos e cozinhe em fogo bem baixo mexendo continuamente com uma colher.

Com os ovos ainda um pouco moles, tire a panela do fogo, acrescente o restinho da manteiga e continue mexendo por meio minuto, acrescente a cebolinha bem picada (ou as ervas finas). Sirva sobre torradas amanteigadas em pratinhos individuais de cobre (só pela aparência), com champanhe rosé (Taittainger) e música suave.

 

 

                                                                                                    Ian Fleming

 

 

 

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