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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENÍGMA NA TELEVISÃO / Marcos Rey
ENÍGMA NA TELEVISÃO / Marcos Rey

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ENÍGMA NA TELEVISÃO

 

                                                                                                                    AS SENTINELAS

 

                     O CLUBE DAS SENHORAS ZANGADAS

Eram seis as mulheres, todas de meia-idade pra lá, e usavam vestidos escuros, do mesmo modelo antigo, como se fossem o uniforme da entidade. Todas as terças e sextas-feiras reuniam-se naquela casa de móveis pesados e também escuros para tomar chá e fazer planos para mudarem o mundo. Constituíam uma Liga, ainda pequena, mas com a ambição de se expandir pelo país inteiro. Eram as sentinelas.

▬ A verdade é que nos tem faltado eficiência ▬ lamentou a dona da casa e presidenta da Liga. ▬ A gente fala, fala, porém não faz nada. Poucos sabem que existimos.

Outra sentinela, retirando um recorte de jornal da bolsa, rebateu:

▬ O jornal do bairro já noticiou nossas atividades.

▬ Três linhazinhas apenas! O que adianta isso?

Havia um homem na sala, mas certamente não pertencia à Liga, exclusiva de mulheres. Estava trocando fios elétricos e instalando um abajur. As mulheres, porém, envolvidas com problemas sérios, nem olhavam para ele. O eletricista, no entanto, parecia interessado em não perder palavra.

▬ E se fôssemos em comissão visitar os jornais? ▬ sugeriu uma sentinela baixa e gorda, servindo-se de outra xícara de chá. ▬ Concorda, Petra?

Petra Santana, idealizadora da Liga, chefe e mentora daquele grupo de virtuosas senhoras do bairro da Tijuca, gostava de idéias práticas e passíveis de aperfeiçoamento.

▬ Estou de acordo, Elisa, mas por que não visitarmos também as emissoras de televisão? Hein?

O novo timbre de voz da presidenta, desafiador, forçou o eletricista a interromper momentaneamente o trabalho.

▬ Quer dizer, atacar o inimigo de frente? Na sua própria toca?

▬ Claro, Elisa! Os jornais ajudam, mas não resolvem. Vamos, pois, ao ninho das serpentes.

Uma senhora tímida, que ainda não abrira a boca, revelou receios:

▬ Acredito que a direção nem nos receba.

Petra, já empolgada pelo plano, pôs-se de pé. Viúva de militar, sabia que não se toma uma grande decisão sentado confortavelmente.

▬ Se os diretores não nos receberem, falaremos com os produtores e autores daquelas obscenidades. Ou com ensaiadores, atores, atrizes, técnicos, com todos os que trabalham lá. O que não podemos admitir, de forma alguma, é que essas escandalosas telenovelas continuem invadindo nossos lares e desencaminhando a juventude. Onde se viu, beijos que chegam a demorar quarenta e dois segundos?

▬ Como sabe com tanta precisão? ▬ espantou-se uma das sentinelas.

O eletricista também queria ouvir a resposta.

▬ Porque cronometrei ▬ esclareceu Petra orgulhosamente. ▬ E retirando um cronômetro da gaveta: ▬ É igual ao que usam nas competições esportivas. Assisto aos capítulos com isso na mão.

A exibição do brilhante e responsável aparelho equivaleu a um grito de guerra. Agora a Liga estava equipada. Qualquer excesso ou liberalidade nos programas de televisão seria inapelavelmente combatido.

 

                    O DITO FEITO

Uma Kombi, dirigida com energia pela própria presidenta da Liga das Sentinelas estacionou diante do portão da TV Mundial, verdadeira fábrica de telenovelas e shows, sintonizada, diariamente, por quarenta milhões de telespectadores.

▬ Queremos falar com o diretor-geral ▬ informou Petra à portaria.

▬ Está no exterior.

▬ Falamos então com qualquer diretor de novela. Pode avisar que as sentinelas estão aqui.

Na televisão, lugar de trabalho na base do corre-corre, ninguém

dispõe de tempo para receber visitantes e admiradores. Quem não é da casa atrapalha.

▬ A senhora deve então mandar uma carta com seu telefone e aguardar resposta.

▬ Mas se trata dum assunto de segurança nacional. Urgentíssimo.

▬ Só há um diretor no momento e está no estúdio, gravando.

▬ Vamos entrar de qualquer maneira ▬ decidiu Petra, crescendo diante do porteiro. ▬ Estamos em missão. ▬ E empurrando-o para o lado, invadiu o saguão da Mundial, acompanhada em bloco pelas demais sentinelas.

Um contínuo ainda tentou detê-las:

▬ Aqui ninguém entra sem crachá! Voltem!

Nem foi ouvido. Marchando em passo militar, as senhoras da Liga já haviam chegado a um corredor, no edifício principal da emissora, por onde circulavam atropeladamente funcionários, técnicos, músicos carregando instrumentos, e atores e atrizes vestindo figurinos dos tempos imperiais. Um deles, que devia fazer o papel de Dom Pedro II, quase caiu, ao ser trombado por Petra Santana.

Vendo que muitos entravam por uma porta, as senhoras da Tijuca também entraram e, como se soubessem aonde iam, subiram e desceram escadas, cruzaram um espaço aberto, passaram pelo bar-restaurante, pela sala de maquiagem, pela oficina de costura, pelo depósito de cenários; por fim, estacaram diante duma tabuleta fixada numa porta sanfonada: Estúdio A.

▬ Aqui é que gravam aquelas porcarias! ▬ exclamou Petra, como se diante da entrada do Inferno.

▬ Mas não se pode entrar ▬ disse uma de suas comandadas.

▬ Quem disse? ▬ zombou a presidenta e empurrou a porta, mantendo-a aberta até que todas entrassem no estúdio.

Gravava-se uma cena da telenovela das oito, horário de maior pique de audiência da Mundial, quando o país parava para acompanhar os capítulos. Aquele era o de número 125. No cenário, uma luxuosa cobertura, o jovem ator Fábio Rocha paquerava Luciana Rios, ambos assíduos freqüentadores das capas de revistas. O personagem encarnado por Fábio era um falso garçom, que obtivera o emprego apenas para aproximar-se da moça que amava, cujos pais, muito ricos, não permitiam o namoro.

▬ Vamos gravar esta cena de novo ▬ decidiu o diretor da novela. ▬ Faltou um pouco de naturalidade. Soltem mais o corpo. ▬ E voltando-se para uma linda moça da equipe: ▬ Algum problema de continuidade, Renata?

▬ Não, Daniel. Tudo em cima.

▬ Esta vai valer então. Claquete!

Uma das câmeras gravou os dizeres da claquete: nome da novela, número do capítulo e da cena. Numa das câmeras, acendeu uma luz vermelha: sinal de que ia gravar. As demais foram movimentadas, à procura de novos ângulos.

Fábio, Ricardo na novela, entrou em cena trazendo uma bandeja com suco de laranja. Luciana, interpretando o papel de Andréia, a moça rica, estava largada numa poltrona.

 

ANDRÉIA (vê Ricardo e assusta-se): ▬ Ricardo! O que faz aqui vestido de garçom?

RICARDO (gaiato, folgado): ▬ Seu pai me contratou. Parece ser ótimo patrão.

ANDRÉIA: ▬ Você está maluco! Tire esse paletó branco e desapareça!

RICARDO: ▬ Maluco? Acho que levo jeito. Agora só falta me sindicalizar!

ANDRÉIA: ▬ Mamãe viu você?

RICARDO: ▬ Viu e me deu nota dez. Coroa simpática! (Aproxima-se de Andréia.) Foi uma boa idéia, não? Agora podemos nos ver o dia inteiro. Vamos. Se liga na minha.

ANDRÉIA (afasta-se de Ricardo): - Não se aproxime que chamo o mordomo.

RICARDO (vai-se chegando à Andréia, atrapalhado com a bandeja): ▬ Andréia, um beijinho só e eu volto pra copa. (Segura-a.) Um rapidinho. (Beija Andréia prolongadamente, enquanto equilibra a bandeja, que fica cai-não-cai.)

 

▬ Parem! Indecentes! Já se beijam há dezenove segundos! Petra Santana, de cronômetro em punho, invadira o cenário e,diante das câmeras, bloqueava a gravação. Houve um rebuliço no estúdio.

▬ Quem são as senhoras? ▬ berrou pelo microfone, da técnica, o diretor.  

▬ Estamos gravando, não sabem?

▬ Gravando uma obscenidade! Isso não pode ir para o ar. Proíbo-o.

▬ Proíbe em nome de quem?

▬ Em nome da Liga que presido. Somos as sentinelas, as defensoras da moral.

A bela continuísta, perplexa, entrou na discussão, enquanto Daniel, correndo, pisava o cenário. Ninguém entendia o que estava acontecendo.

▬ As senhoras não têm o direito de interromper nada. Não era nenhum atentado ao pudor, mas um simples e ingênuo beijo de namorados.

▬ Ingênuo? ▬ contestou Petra, com asco. ▬ Sabe o senhor o que se passa na cabeça desses dois? Sabe?

Fábio Rocha, grande gozador, dobrava-se de tanto rir. Luciana, agora gargalhando, sentou-se no tapete. Os técnicos apenas se entreolhavam, mas o que operava a câmera continuou trabalhando.

▬ Essa é chanchada da boa ▬ disse. ▬ Logo elas vão atirar pastelões.

 

Petra começou um discurso:

▬ Vocês da tevê são os culpados da degeneração dos costumes, da dissolução da família, da decadência da sociedade. Estão virando o mundo de pernas para o ar. Mas nós, as sentinelas, daremos um basta a toda essa imoralidade. Estamos de olho em vocês.

Fábio, debochado, acercou-se da presidenta e deu-lhe um beijo no rosto.

▬ Contem comigo, posso colaborar como beijoqueiro arrependido.

A presidenta enxugou o rosto com a costa da mão. Nojo.

▬ Você me pagará, rapaz ▬ ameaçou, abandonando o estúdio, seguida das demais, em fila, todas com cara de "missão cumprida".

Pelo microfone, o operador de som comunicou:

▬ Tudo gravado. Querem ver? Está melhor do que qualquer show da Nina Flores!

 

                               AVANTE SENTINELAS!

Miranda, o diretor do telejornal das 19 horas, pôs no ar a cena da invasão do estúdio pelas senhoras da Tijuca. Coisa tão ridícula que talvez bastasse para sepultar a terrível Liga das sentinelas puritanas. Quem pensou assim enganou-se. Muita gente, apesar do teipe vexaminoso, tomou o partido delas, manifestando-se pelos jornais através de cartas e artigos. Inclusive políticos, como deputados e senadores, bateram palmas à Petra Santana. E em inúmeros bairros da cidade surgiram muros pichados, dizendo: Avante, sentinelas! Vamos limpar a TV! Abaixo a pornografia!

Entrevistados no telejornal, Fábio Rocha e Nina Flores fizeram as maiores piadas com as sentinelas. Enquanto Pedro Ventura, famoso ator de teatro e tevê, chamou-as de fascistas e totalitárias. Gente como Petra Santana, no passado, condenara obras e perseguira artistas que hoje todos admiram e respeitam. Daniel, produtor da novela em questão, foi o mais prático.

▬ Com toda essa polêmica, os índices de audiência aumentaram. Paulo Maciel, o mais jovem repórter da emissora, fez uma sugestão ao Miranda.

▬ O que diz de eu entrevistar a cascavel?

▬ Boa! Vamos pôr mais lenha no fogo. Pegue a equipe e vá. Ao contrário do que supunha, Paulo Maciel foi imediatamente recebido por Petra e suas sentinelas.

▬ Vejam. Começamos com seis sentinelas e já temos mais de cem inscritas. Logo abriremos sedes em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. As sentinelas vão se espalhar pelo Brasil inteiro e acabaremos influindo decisivamente na opinião pública ▬ declarou a presidenta da Liga com os olhos na câmera.

▬ Pretendem censurar tudo que se faz na televisão? - perguntou o repórter.

▬ Não apenas na tevê. Nossa campanha visa também o cinema, o teatro, a literatura, as letras de música e a pintura. Já notaram quanta pintura indecente existe por aí?

▬ Mas exercer censura sobre qualquer tipo de arte não é democrático.

▬ Nossas intenções são morais, não políticas. As sentinelas presentes aplaudiram.

▬ Não acha que o desemprego, a fome e a mortalidade infantil são mais imorais que beijos e abraços? ▬ insistiu o repórter.

▬ São argumentos de esquerdistas. Não nos convencem.

▬ Há padres e até bispos que concordam com eles.

▬ Acho que esses religiosos deviam se ocupar mais com a alma das pessoas.

Mais palmas.

▬ Dizem que as novelas andam até comedidas ultimamente. Concorda?

▬ Do ponto de vista moral, pioraram.

▬ Como a senhora tem tanta certeza, se detesta novelas?

▬ Sei porque não perco nunca um só capítulo ▬ respondeu Petra Santana, dando a entrevista por encerrada.

Na manhã seguinte, Paulo Maciel correu à Mundial para ele mesmo editar a reportagem, enxugá-la, reduzi-la ao essencial, temendo que podassem a última declaração de Petra, engraçadíssima, de que não perdia nunca um único capítulo de novela. O país todo ia curtir essa.

Miranda entrou na redação com uma cara esquisita.

▬ Venha ver a entrevista da Petra ▬ disse Paulo. ▬ Vai morrer de rir. O chefe do departamento continuou com a mesma cara esquisita, até pior.

▬ Fala em morrer de rir? Será que não sabe ainda o que aconteceu?

 

                 FÁBIO ROCHA, O DE MILHÕES DE NAMORADAS

▬ Não sei. O que houve, Miranda?

▬ Vamos pegar o carro de reportagem. Teremos uma edição extra em trinta minutos.

▬ Edição extra? Algum incêndio?

▬ O Fábio.

▬ O que tem o Fábio?

▬ Assassinado.

No carro, correndo a toda pela praia, Paulo pensava em Fábio Rocha. Vinte e poucos anos, bonitão, cuca fresca, apaixonara o público desde sua primeira aparição numa novela, onde interpretava uma simples ponta. Meses depois, assinava um gordo contrato com a Mundial e dali em diante só dava ele nas revistas e colunas especializadas.

Certa vez, Paulo fora a uma festa no amplo apartamento de Fábio Rocha, levado pela irmã do ator, Renata, continuísta da Mundial. Espantou-se.

▬ Pelo menos é vinte vezes maior que minha quitinete.

▬ Há apenas um ano ele lavava carros num posto de gasolina e morava numa vaga na Lapa.

▬ Que salto! Nas Olimpíadas ganharia medalha de ouro!

▬ Pura sorte ▬ disse Renata. Um dia lavou o carro de Sandra Lia, que era uma das atrizes mais badaladas da Mundial. Ela gostou dele e conseguiu-lhe um teste. E aí está o mano, o ator mais votado no concurso da revista A semana na TV.

▬ Isso é que é madrinha! Ainda namoram?

▬ Coitada da Sandra, engordou muito. Fábio agora namora com Luciana Rios, seu par na novela. Mas dizem que já está de olho em outra.

▬ Ele e Sandra Lia ao menos conservaram a amizade?

▬ Ela é sua maior inimiga.

Maior depois de Pedro Ventura, veterano dos palcos e estúdios, que há uma década vencia o concurso, seqüência interrompida ao perder feio para o Fábio Rocha na apuração de dezembro. Dezenas de milhares de votos de diferença! Perdida a coroa, Pedro recusava até a cumprimentar o colega, em sua opinião um oportunista e mero galã de periferia.

Outro, que também não podia ver Fábio, era o veterano Carlos Prata. Alcoólatra e desacreditado por todos, apenas interpretava pontas e papéis inexpressivos, conseguidos geralmente por caridade. Sempre que se acercava de algum produtor ou ator importante era para pedir uma chance. Certamente pedira também para Fábio. O galã, já eleito o mais popular pela revista, olhou o Prata do alto, como se a proximidade dum ator velho e fracassado o repugnasse, e afastou-se em silêncio. A humilhação sofrida pelo Prata foi chorada em todos os corredores, salas e estúdios da Mundial, verdadeiro rio, que só parou de correr quando a mágoa se transformou em ódio.

O Alfa Romeo de Fábio Rocha estava estacionado no trecho final da praia do Leblon. A Polícia chegara e um homem, provavelmente o delegado, conversava com Renata, inconsolável. Na areia, um grupo crescente de curiosos, jornalistas e policiais cercavam um corpo caído.

Paulo e Miranda desceram do carro para colher informações. Fábio fora assassinado na madrugada com golpes de punhal ou faca, arma não encontrada no local. Seu relógio de ouro estava no pulso, seus valiosos anéis nos dedos e muito dinheiro na carteira. Não fora latrocínio; era o começo do mistério.

 

                    O TELEJORNAL PRODUZ UMA BOMBA

A reportagem foi rodada na praia, entre o mar e os altos edifícios da avenida Atlântica, nas casas dos artistas, amigos de Fábio, nas ruas, surpreendendo o espanto dos telespectadores, e na delegacia. Tudo entremeado com cenas das novelas que Fábio Rocha interpretara.

Paulo Maciel desincumbiu-se com tanta segurança das entrevistas, que Miranda, com voz de chefe, decidiu:

▬ Você vai trabalhar só nesse caso. Algo me diz que ainda dará muita matéria. É um mistério!

A entrevista mais comovente foi a concedida por Nina Flores, a comediante, já famosa quando Fábio nascera.

▬ Era um tanto doidão, mas um bom menino. Ele costumava dizer que as coisas iam tão bem para ele que, se melhorassem, podiam estragar tudo.

O delegado, doutor Reis, não tinha muitos esclarecimentos a fazer.

▬ Não sendo latrocínio, podemos pensar em crime passional, vingança ou obra de algum demente, como aquele que matou John Lennon. A câmera focalizou Renata, irmã de Fábio: óculos escuros e cabeça baixa, uma tristeza só. O repórter, embora seu amigo, não conseguiu extrair dela uma só palavra. Mas Luciana Rios, namorada de Fábio, falou, e até demais. Chegou inclusive a formular acusações bem claras, que tiveram enorme repercussão.

▬ Querem saber quem matou Fábio? Pois eu direi. Foi um desses três: Sandra Lia, Pedro Ventura ou Carlos Prata.

Foi uma bomba, como se diz em linguagem jornalística. Miranda, que adorava sensacionalismos, cumprimentou o repórter.

▬ Ótimo, Maciel! Não disse que o negócio ia ferver? Sua reportagem parece cena de filme policial, daqueles bons, do diretor John Huston. Genial! Paulo não estava para elogios, impróprios na situação.

▬ Miranda... Foi um colega nosso que assassinaram.

▬ Sei disso, e estou tão chocado como a mãe dele.

▬ Fábio era órfão.

▬ Isso até que suaviza um pouco a dor da gente, não? Continue mexendo no caso. Sairá dele como um dos melhores repórteres da televisão.

 

                           OS ÁLIBIS

O velório e o enterro de Fábio Rocha foram dois acontecimentos

nacionais. Milhares de pessoas desfilaram diante do caixão mortuário, no teatro da TV Mundial, e a aglomeração no cemitério foi comparada à do sepultamento de Carmem Miranda. Houve choro, gritos e desmaios de fãs. Sandra Lia, mencionada por Luciana Rios, entre os suspeitos, foi a única deles que compareceu nas duas ocasiões. Mas deve ter-se arrependido, porque centenas de pessoas a olharam com rancor, e uma delas, quem sabe a própria Luciana, disse uma frase, logo tornada um coro de centenas de vozes:

▬ Prisão para o assassino! Prisão para o assassino! Prisão para o assassino!

Mais do que uma obrigação policial, era uma imposição popular. A Polícia teria que se rebolar para elucidar tudo.

Paulo Maciel, no telejornal das 19 horas, não abandonou sua trincheira, como lhe ordenara Miranda. Suas contínuas aparições no vídeo tornavam-no tão conhecido do público como os principais atores de novelas.

Sandra Lia, Carlos Prata e Pedro Ventura foram imediatamente interrogados.

▬ Passei a madrugada do crime num hospital ▬ declarou Sandra Lia. ▬ Fiz companhia a uma amiga minha, que sofreu uma operação. ▬ E forneceu espontaneamente o endereço do hospital e o nome da amiga. ▬ Havia uma enfermeira que ia ao quarto de meia em meia hora. Chama-se Wilma. Falem com ela.

Álibi perfeito.

▬ Eu estive parte da noite no bar Manequim ▬ disse Prata.

▬ E depois? ▬ perguntou o delegado, agora sob a luz da câmera.

▬ Fui para outro bar, o Saturno.

▬ E depois?

▬ A última parada foi no Caveira. Aí apaguei. Mas posso lembrar das pessoas que estavam comigo.

O depoimento do Prata deu algum trabalho à Polícia, mas acabou convencendo.

Com Pedro Ventura não foi nada fácil. Recusou-se a depor; tiveram de ir buscá-lo.

▬ Onde estive naquela noite? Não sei ▬ respondeu o ator. ▬ Não lembro nem farei força. Uma pessoa com meu nome, que representa tanto para o teatro e a cultura, não precisa dar explicações de seus passos. Vocês que descubram onde estive. Boa noite!

Miranda, vendo o teipe na redação do telejornal, exultava:

▬ O enigma está crescendo! Vamos dominar a audiência. Os produtores de novelas vão ficar com inveja!

▬ Será que Pedro Ventura está implicado no crime? ▬ admirava-se Paulo Maciel diante de Miranda e de outros companheiros.

▬ Não! ▬ berrou alguém que entrava. ▬ Nem pensem nisso, pelo amor de Deus!

Era um homem duns trinta anos, bastante excitado, que trazia à lapela do paletó um crachá de visitante.

▬ Eu não estava afirmando ▬ disse Paulo.

▬ Não repita coisas assim! E injusto!

▬ Parece que o conheço ▬ lembrou Miranda.

▬ Sou Djalma Ventura, sobrinho de Pedro ▬ disse o do crachá. ▬ Estou passando uma temporada no apartamento de meu tio e posso garantir que naquela noite ele voltou do teatro logo após a sessão e não pôs mais os pés na rua. Não é de badalar, de sair por aí. Se respondeu daquela maneira foi porque se ofendeu com a intimação. E um monumento nacional... Até o presidente da República o admira! A tal moça que levantou a suspeita é insensata, uma doida varrida. O que quer é publicidade. Nada mais que publicidade.

▬ Não duvido ▬ concordou Miranda. ▬ Mas leve essa informação à Polícia, antes que seu tio se complique.

Djalma aceitou o conselho, prometendo ir à delegacia imediatamente. À saída, afobado, chutou uma cadeira.

▬ O homem está descontrolado.

▬ Mas continuo achando que Pedro Ventura pode ser o assassino ▬ disse Miranda.

▬ Sério? Julga-o capaz disso? Um artista tão respeitável?

▬ Houve até um crítico teatral que o acusou de assassinar William Shakespeare ▬ respondeu Miranda.

A turma do telejornal dobrou-se de rir. Quando Miranda fazia piadas tudo corria bem no departamento. Mas, para ele, o dia seguinte começava na véspera. Estava elétrico.

▬ Paulo, vá entrevistar as sentinelas amanhã cedo. Antes, passe aqui, para estudarmos as perguntas. Quero um rebu bem grande.

▬ Eu não posso imaginar minha avó cometendo um crime ▬ atalhou Paulo, farto das sentinelas. ▬ Esqueça as velhinhas.

▬ Você não pode imaginar sua avó, mas eu posso imaginar a minha. Velhinha terrível. Precisava ver com que prazer mórbido, com que deleite torcia o pescoço das galinhas.

Nova gargalhada. O Miranda era assim.

Na manhã seguinte, Paulo passou pelo departamento para ouvir o Miranda e reunir a equipe. O chefe estava sentado à mesa principal, lendo concentradamente uma folha de papel.

▬ Não vamos entrevistar as sentinelas ▬ disse.

▬ Por quê?

▬ Surgiu um fato novo.

Miranda passou ao repórter a folha de papel com o fato novo. Paulo leu. Numa única linha, bem centrada, estava escrito em letras de fôrma vermelhas:

 

                           A PRÓXIMA ATRAÇÃO

 

Paulo devolveu a folha ao Miranda.

▬ Como recebeu isso?

▬ Veio pelo correio, dirigida a mim.

▬ Quem teria mandado?

▬ O provável criminoso esqueceu de colocar no verso do envelope o endereço do remetente ▬ respondeu o chefe, fazendo uma brincadeira, não para rir.

▬ O envelope também está assim, em letras de fôrma?

Miranda mostrou-o:

▬ Letras um pouco tremidas, mas também de fôrma. A carta foi postada na agência da Tijuca.

▬ Disse Tijuca? ▬ perguntou Paulo, quase num grito.

▬ Não aprecia o bairro?

▬ Miranda, ligue as coisas! Tijuca! E onde está o quartel-general das sentinelas. ▬ Pode ser coincidência, mas...

Miranda deu ordem a Paulo:

▬ Reúna a equipe e chispe para lá. ▬ Mas não podia faltar uma piada: ▬ Se encontrar uma faca ensangüentada no guarda-louça, telefone ao delegado.

Batendo um recorde de velocidade, o carro de reportagem da Mundial logo parava diante da casa de Petra Santana. Não era dia de reunião, ela estava só.

▬ O que querem desta vez?

▬ A senhora sabe que Fábio Rocha foi assassinado?

▬ Como não saberia? As tevês e os jornais só falam disso. Mas para mim não foi surpresa.

▬ Não foi surpresa???

▬ Quem procede como ele procedia, estimulando o pecado, perventendo os corações, envenenando a alma dos jovens, um dia recebe o castigo. Fábio simplesmente recebeu o dele. Agora, se me permite, vou ler para a câmera os estatutos de nossa Liga. Apenas dez páginas.

▬ Seria interessantíssimo, dona Petra, mas estamos com pouco espaço no noticiário. Voltaremos outro dia.

 

O telejornal do começo da noite mostrou em dose, inteira no vídeo, a ameaça em vermelho, já nas mãos da Polícia, e a curta entrevista com Petra Santana, que todos julgaram comprometedora. Miranda continuava com a corda toda, vibrante. A mensagem aumentaria o interesse pela novelinha, criando um suspense, digno dum final de novela das oito.

▬ Essa carta pode ser pura brincadeira ▬ opinava Paulo.

▬ Não desejo outra morte ▬ replicou Miranda, ▬ mas que daria um tremendo “auê” daria. Nosso departamento se tornaria o centro da emissora. Também merecemos grandes salários, ou não?

▬ O que sei é que estou muito cansado e que vou ler um bom livro na cama. Não há nada melhor.

▬ Vá, eu ficarei aqui vendo se descubro quem poderia ter mandado essa mensagem. Aguardem a próxima atração ▬ é a nossa frase dos interprogramas. Pode ter saído de gente daqui de dentro...

Paulo, não querendo pensar mais no assunto, saiu. No corredor, encontrou Renata, ainda com óculos escuros.

▬ A Polícia tem novidades? ▬ ela perguntou.

▬ Nenhuma.

▬ Logo tudo estará esquecido. Fábio foi substituído na novela por Milton Brás, que tanto queria o papel. Luciana já andou pedindo desculpas pelas acusações que fez e está trabalhando com muita garra. Ela e Milton vivem juntinhos pelos cantos. O espetáculo continua.

Paulo, sem saber o que comentar, foi pegar o carro no pátio e seguiu para sua quitinete, no Leme. Programou a leitura dum livro: tinha uma estante cheia. Retirou um romance policial, de capa amarela, bem sovado, e levou-o para a cama. Leu algumas páginas, mas o telefone, único luxo de seu apartamento, tocou.

Era de São Paulo, sua cidade.

▬ Olá, mano! Você está ficando famoso. Só dá você na Mundial! ▬ era Ivo, o irmão do meio, mais moço que ele e mais velho que Laura, a caçula. Ele estudava Comunicações e era considerado o prodígio da família; pretendia ser também jornalista, como Paulo.

▬ Como é que vai a vida por aí?

▬ Estou tentando trabalhar nas tevês de São Paulo. Talvez engrene, mesmo antes do diploma. Você sabe, o começo é fogo. Pra você também não foi moleza.

▬ Quem sabe eu lhe consiga uma beirada na Mundial. Dona Beatriz está por perto?

▬ Mamãe e Laura estão aqui com um pacote de beijinhos. Tchau.

Paulo conversou bastante com a mãe e a irmã, que não via há meses. Sempre sonhara com um emprego na Mundial, mas aquele ano de separação fora barra. Se não fosse a necessidade de ajudar a família, abalada com a morte do pai, teria regressado no primeiro mês.

Desligou o telefone, mas não voltou ao livro. A televisão ia exibir o show semanal de Nina Flores, que ninguém gostava de perder. O país inteiro amava a talentosa e piradíssima Nina Flores, jovem ainda nos seus setenta anos; o país é exagero. As sentinelas de Petra Santana a detestavam.

 

               NINA FLORES:

               UM SHOW INESQUECÍVEL

 

O show de Nina Flores era gravado parte no teatro da Mundial, parte nas locações externas e produzido durante a semana. O produtor de Nina, Adriano, selecionava ambientes atrativos como viadutos, coberturas de edifícios, estações do metrô, iates na baía da Guanabara, ou gravava em helicópteros ou no bondinho do Pão de Açúcar. A todos esses cenários, ela levava seu humor, sua malícia e sua irreverência. A próxima locação seria num parque de diversões.

▬ O que vou fazer no parque? ▬ perguntou.

▬ Dar um giro no trem-fantasma. Tem medo do escuro?

▬ Adoro! No escuro, ninguém percebe a idade que tenho.

A locomotiva, puxando meia dúzia de vagõezinhos, cada um transportando dois passageiros, percorria um túnel povoado de aranhas de barbante, morcegos de papelão, um esqueleto que se levantava do túmulo, um Frankenstein que parecia mostruário de parafusos, tudo em apenas dois minutos de trajeto, bem chacoalhados em retas e curvas velocíssimas. E, no final, um espelho para simular a iminência dum choque de trens dentro do túnel.

Nina viajaria com um cameraman, atento às suas cômicas reações de susto, enquanto outro, na locomotiva, focaria os imprevistos engraçados do percurso. Foram feitas várias viagens experimentais para testar o equipamento. Numa delas, Nina bolou atirar uma maçã na cara do Frankenstein, uma de suas idéias malucas que sempre funcionavam.

Muita gente estava naquela manhã ensolarada no parque, embora cedo demais para que os aparelhos funcionassem. A presença de Nina em qualquer lugar era um ímã para curiosos. Até atores e atrizes da Mundial que não participavam do show apareceram por lá, como simples fanzocas, entre eles Luciana Rios e Milton Brás, a nova dupla romântica da televisão, o Prata, e muitos outros. Alguns fizeram questão de viajar com Nina no trem enquanto os técnicos preparavam a gravação.

▬ Podem vir comigo ▬ permitiu a veterana. ▬ Só espero que não aproveitem a escuridão para me dar beijos. Sou uma senhora de muito respeito.

▬ As sentinelas não pensam assim ▬ disse um dos assistentes de produção, provocando-a.

▬ Ah, sabem? ▬ lembrou Nina. ▬ Até já encomendei um quadro, para ser incluído no show, em que apareço como Petra Santana. Vai ser o maior sarro! Um baratão!

▬ Ela vai odiar você! ▬ exclamaram.

▬ Não tenho medo de caretas ▬ replicou a comediante.

Adriano, o diretor do show, deu os preparativos por encerrados.

▬ O único problema é a luz dentro do túnel ▬ disse um dos câmeras.

▬ Colocarei um foco no rosto de Nina. Vai dar tudo em cima. ▬ E dirigindo-se ao grupo que rodeava a estação: ▬ Tomem seus lugares nos vagões. Viaja quem quiser. Não pagaremos cachê para figurantes, hoje.

Os vagões foram logo lotados e, a um sinal do diretor, os técnicos tomaram posição. O trem-fantasma começou a movimentar-se, apitando. Ingressou no túnel. Adriano, às pressas, entrou no caminhão de gravações externas para acompanhar o trabalho pelos monitores de vídeo. Logo esboçou um sorriso, vendo nas telas as aranhas de barbante passando pelo rosto de Nina. Em seguida, a atriz fingiu assustar-se com os morcegos, bem focados pela câmera. O esqueleto levantou-se do túmulo; todos os passageiros gritaram. Lá estava o Frankenstein com seus mil parafusos. Nina atirou-lhe a maçã. O melhor de tudo, porém, era a velocidade do trenzinho, que comprimia emoções e risadas.

Adriano, feliz, saiu do caminhão.

▬ Valeu! ▬ exclamou. ▬ Saiu tudo certinho. Agora vamos cumprimentar a rainha do riso. Ela esteve perfeita.

Todos dirigiram-se à estação. Os passageiros deixavam os vagões e alguns já se confundiam com os curiosos. Os câmeras pareciam satisfeitos e já queriam ver o teipe no caminhão. Apenas Nina Flores não se movia do assento, ligeiramente caída para o lado.

▬ O que foi, queridona? ▬ perguntou Adriano. ▬ Está dormindo?

Não estava. Havia uma mancha vermelha em suas costas. Luciana, que viajara no trem, vendo o sangue, desmaiou.

 

                           MAIS UMA EDIÇÃO EXTRA

No Estúdio A a gravação fora interrompida para que artistas e técnicos assistissem à edição extra, através dum televisor lá colocado. Estavam todos alarmados, e alguns, íntimos de Nina, choravam.

O doutor Reis foi o primeiro a aparecer no vídeo. Não tinha muito a dizer, tão chocado como os curiosos do parque. Apenas mostrou uma faca, que um dos investigadores encontrara numa das curvas do túnel.

Adriano, o diretor que acompanhou a gravação pelo caminhão de externas, nada vira que pudesse ajudar a Polícia. Tudo normal. Nina gritava muito quando o trem chegou diante do espelho, mas era o que todos os passageiros faziam.

Luciana Rios e Milton Brás, que viajaram no trenzinho, emudeceram.

▬ O que faziam esses dois no parque? ▬ exclamou Daniel, o diretor da novela das oito. ▬ O lugar deles era aqui.

▬ Não estavam escalados para esta manhã ▬ disse um dos assistentes.

Em seguida, via-se Paulo entrevistando o Prata.

▬ Viajou com Nina?

▬ Se viajei? Bem... eu ia viajar, mas alguém me empurrou e tomou o meu lugar.

▬ Quem o empurrou?

▬ Uma mulher.

O delegado pediu às pessoas que tinham viajado com Nina que voltassem a seus lugares nos vagões. Uma mulher gorda e baixa ia afastando-se, quando os curiosos se manifestaram.

▬ Ela também estava no vagão.

Constrangida, a mulher sentou-se no vagão. Parecia querer esconder o rosto.

▬ Há um lugar vago, logo atrás de onde Nina estava. Quem se sentava aqui? ▬ perguntou o delegado.

Evidentemente seria a pessoa que tivera a maior possibilidade de cometer o crime. Talvez a única.

▬ Quem se sentou? ▬ repetiu o delegado. Não foi a senhora? ▬ perguntou à mulher que tentara escapar.

▬ Não, juro! ▬ ela respondeu.

Um dos curiosos, jovem ainda, surgiu diante da câmera.

▬ Eu vi quem sentou aí.

▬ Quem foi?

▬ Um punk.

▬ Punk! ▬ admirou-se o delegado.

▬ É, um desses birutas de cabeça raspada, com uma faixa de cabelos espetados, bem no meio. Assim que o trem parou na estação, ele sumiu.

O delegado não ficou convencido.

▬ Alguém mais viu o punk!

Outros populares adiantaram-se. A câmera os focou.

▬ Eu e minha namorada também vimos ▬ disse um estudante uniformizado, que mantinha o braço ao redor dos ombros duma garota. ▬ Diga pra ele, Tina.

A namorada forneceu mais detalhes:

▬ Ele vestia um blusão de couro preto. Era mais alto que baixo e devia ter vinte e poucos anos.

▬ Seriam capazes de reconhecê-lo?

▬ Acho que sim ▬ respondeu o namorado.

O doutor Reis, conversando com seus investigadores, deu a primeira ordem:

▬ Cacem todos os punks que puderem.

 

                       OUTRA MENSAGEM DA TIJUCA E OS PUNKS NA PASSARELA

Paulo Maciel lia o livro que retirara da estante. Parecia realmente bom, embora desconhecido. Era um policial, que agarrava a partir da primeira página. Mas a campainha interrompeu a leitura. Foi abrir a porta.

▬ Você!?

▬ Por que esse espanto?

▬ E muita honra para mim! Receber o chefe do departamento!

▬ Eu ia passando. Moro aqui perto, sabia?

▬ Algum lance novo?

▬ Sim ▬ respondeu Miranda. ▬ Recebi outra mensagem.

▬ Outra?

▬ Trouxe o xerox comigo. ▬ Mostrou envelope e carta a Paulo. ▬ O original já está na Polícia.

▬ Também foi postado na Tijuca?

▬ Aqui está o carimbo da agência, bem nítido.

▬ Continuam querendo incriminar as sentinelas, Miranda.

▬ Não, Maciel, já temos uma provinha contra elas.

▬ Não diga!

▬ Digo! Lembra-se de que havia uma senhora no trem-fantasma?

▬ Lembro, sim. Ia caindo fora para não fazer declarações. Mas se parece tanto com a tia da gente! Deve ser maravilhosa fazendo doce de abóbora.

Miranda, que amava pilhérias, não riu.

▬ Chama-se Elisa Bastos e sabe onde mora? Na Tijuca, pertinho da casa de Petra Santana. Conversei com ela e perguntei se pertencia à Liga das sentinelas. A mulher engasgou, ficou amarela e disse que não. Aliás, disse: "Juro que não".

▬ Estranho, não? Explicou o que fazia no parque?

▬ Aí ela engasgou novamente, recebeu outra mão de tinta amarela e disse que ia passando, quando viu Nina. Curiosa, seguiu-a. E quando Nina entrou no parque, entrou também.

▬ Uma fã, não?

▬ E o engraçado é que essa mulher tão tímida, típica dona-de-casa, que não fora lá para ver a gravação, disputou um lugar no vagão a cotoveladas. Foi quem empurrou o Prata.

▬ Ele a reconheceu?

▬ Reconheceu.

▬ O que pretende fazer?

▬ Amanhã ela estará na delegacia. Apareça lá e observe-a bem. Vamos ficar de olho na peça.

▬ O que ela vai fazer na delegacia?

▬ A Polícia abotoou dezoito punks.

▬ Dezoito?

▬ E vai exibi-los na passarela a algumas pessoas que estiveram no parque, para que reconheçam o que viajou com Nina. Será outro capítulo muito emocionante de nossa novelinha. Às dez.

▬ Estarei lá.

Miranda viu o livro policial sobre o criado-mudo.

▬ Parece bom, estou no começo.

▬ Se gostar, me empreste.

▬ Também gosta de romances policiais?

▬ Onde pensa que adquiri minha cultura? Bom, vou indo. A equipe vai esperá-lo na delegacia. Boa noite.

Quando Miranda saía, Paulo lembrou-se de perguntar:

▬ Como você subiu sem que me avisassem pelo interfone?

▬ Mostrei minha carteira da Mundial. É o que pretendo fazer, no Céu, quando morrer. Não haverá problema.

Paulo voltou ao livro, mas não leu uma linha, pensando na mensagem. A realidade parecia-lhe muito mais aterradora que a ficção policial.

 

Os dezoito punks, todos feitos pela mesma fôrma, iguais no aspecto e nas atitudes, desfilaram na passarela policial, sob fortes luzes. Num pequeno auditório, uma dúzia de pessoas os observava. Paulo ordenou à equipe que gravasse tudo, não só os punks, como a reação dos observadores. Elisa foi a última a chegar e sentou-se na última fila, perto da porta. Mal olhava para os suspeitos. Quando a câmera se aproximava dela, baixava a cabeça.

Depois do desfile, os punks pararam, olhando tudo, distraidamente. O ato teatral foi curto.

O casal de namorados foi o primeiro a manifestar-se:

▬ Não reconhecemos o cara ▬ disse o rapaz. ▬ Todos os punks se parecem.

Os demais repetiram a mesma observação.

▬ Pode ser que o tal seja um deles, mas não saberia dizer qual ▬ disse um homem alto, que colocara óculos para ver melhor.

Elisa Bastos foi a única pessoa presente que não disse uma palavra; Paulo nem viu quando ela deixou a sala.

Os punks, livres, puseram-se a rir, bagunçando o trabalho policial. Um deles mostrou a língua para a câmera. Outro fez um gesto obsceno. O Prata, que estava lá, bêbado como sempre, divertiu-se com a palhaçada que faziam. Luciana Rios e Milton Brás ficaram juntinhos, de mãos dadas, o tempo todo, como se tivessem ido lá só para namorar.

 

               PEDRO VENTURA EM PERIGO

Paulo voltou à emissora. Miranda o esperava.

▬ O espetáculo fracassou ▬ foi dizendo. ▬ Ninguém pôde identificar o punk. Realmente, não era tarefa fácil.

▬ Elisa Bastos foi?

▬ Foi, mas quase nem olhou para a turma.

▬ Não a achou suspeita?

▬ Parece que não gosta de aparecer na televisão.

▬ Agora quero ver o teipe. Vamos lá.

Miranda e Paulo dirigiram-se para a técnica, quando a porta se abriu. Era Djalma Ventura. Assustado. Parecia ter visto um dinossauro na esquina.

▬ Preciso falar com o senhor ▬ disse ao Miranda. ▬ E sobre meu tio. Está correndo perigo.

▬ O que houve?

▬ Ontem à noite, eu estava no apartamento dele quando tocou o telefone. Como ele estava no banho, atendi. Era alguém ameaçando. Disse que meu tio seria o próximo ator a morrer. Só isso, e bateu o telefone.

▬ Pode ter sido brincadeira.

▬ Foi o que pensei, mas fiquei apavorado.

▬ Voz de homem ou de mulher?

▬ Era uma voz disfarçada. Grossa, sim, mas podia ser de mulher.

▬ Foi seu tio que o mandou aqui?

▬ Não ▬ respondeu Djalma. ▬ Quando lhe contei, não deu bola. É desses que não ligam para nada.

▬ Fez bem em vir aqui, mas nós não somos a Polícia. Vá procurar o doutor Reis. Quem sabe ele escale um guarda-costas para seu tio.

▬ É do que ele precisa, um guarda-costas. Eu já vou. Obrigado.

Paulo ficou pensativo.

▬ Acho que realmente Pedro Ventura está ameaçado. O criminoso só tem matado gente famosa.

 

                   UMA COMÉDIA

                   TERMINA NO INTERVALO

 

A Polícia cuidou de proteger Pedro Ventura. Aonde ele ia, um guarda-costas ia atrás. Pedro irritou-se e passou a driblar o investigador para livrar-se dele. Até se divertia com isso. O sobrinho, porém, traía-o, avisando a Polícia quando ele burlava a proteção. Desanimado, Djalma conversou com Miranda.

▬ Meu tio se julga um deus, invulnerável.

▬ Não digo tanto ▬ ponderou Miranda, ▬ mas deve estranhar por que Deus ainda não lhe pediu um autógrafo.

▬ A Polícia está bobeando ▬ comentou Djalma, que não entendera a pilhéria do Miranda. ▬ Já houve dois crimes. Por que não pega logo esse homem?

▬ Porque os grandes detetives só existem nos romances policiais e no cinema ▬ disse o jornalista. ▬ Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Sam Spade, todos feitos de papel e tinta.

 

Dez dias após o assassinato de Nina Flores, aconteceu. O contra-regra da peça teatral em que Pedro Ventura trabalhava, estranhando que o ator não saía do camarim para o segundo ato, foi bater à porta. Fechado. Bateu em seguida nos camarins de Lídia Montes e Marco Nani, também atores da peça. Ele não estava com os colegas. O segundo ato ia começar. Resolveram arrombar a porta do camarim.

Pedro estava sentado diante dum espelho. Às costas, uma enorme e crescente mancha de sangue. Morto.

Quase ao mesmo tempo chegaram o doutor Reis e a equipe da TV Mundial. Os dois atores tinham tanta informação a dar quanto o contra-regra e o iluminador: nenhuma.

▬ Não ouvi nenhum grito durante o intervalo ▬ disse Marco.

▬ Ninguém foi ao camarim dele? ▬ perguntou o delegado.

▬ Pedro detestava que entrassem em seu camarim nos intervalos. Dizia que prejudicava a concentração.

▬ Viram algum suspeito circulando por aí?

▬ O público só vem aos camarins após o espetáculo. Nos intervalos, apenas amigos íntimos.

▬ Hoje viu algum?

▬ Não ▬ respondeu Marco. ▬ Você viu, Lídia?

▬ No intervalo a gente se fecha no camarim e não presta atenção se há gente no corredor.

▬ Há uma saída nos fundos?

▬ Sim, é a que nós usamos. Dá para a ruazinha ao lado ▬ informou Marco.

▬ Há algum porteiro?

▬ Não, nós a fechamos à chave.

O delegado foi até os fundos. A porta não estava fechada à chave.

▬ O criminoso deve ter penetrado por aqui.

▬ Às vezes esquecemos de fechar.

▬ Ele deve ter esperado essa vez ▬ comentou o delegado. Então todos ouviram uma choradeira dramática. Era Djalma Ventura, cercado por pessoas que tentavam consolá-lo.

▬ Sinto-me culpado ▬ dizia. ▬ Vinha todas as noites para protegê-lo. Não o largava um minuto. Hoje não vim.

▬ Não se sinta culpado ▬ disse o delegado. Meu investigador também deu mancada. Achou que aqui ele estava muito seguro e relaxou.

Comentários inúteis. Todos sabiam que, se não fosse no camarim, o assassinato teria se dado noutro lugar.

▬ Estou cansado de ver sangue ▬ declarou Paulo ao Miranda. ▬ Por que não me escala para entrevistar doceiras, coroinhas e guardinhas de automóveis?

 

                       PAULO MACIEL VÊ UMA LUZ

Paulo Maciel voltou à quitinete lembrando que, já com um ano de Mundial, tinha direito a férias. Seu substituto que descascasse aquele abacaxi sangrento. Farto até de assistir televisão, pegou o romance policial na gaveta do criado-mudo e recomeçou a lê-lo, da primeira página. Não parou nem para tomar água. Concluiu a leitura na madrugada. Mas não dormiu imediatamente. Ficou a pensar no enredo. Apagou a luz bem mais tarde. Sem pregar os olhos, acendeu-a outra vez. Releu as últimas páginas do romance. Descobriu então que perdera o sono definitivamente.

Paulo entrava na Mundial e viu Renata estacionando seu fusca verde.

▬ Alguma novidade, Maciel?

▬ Da parte da Polícia, não.

▬ E da parte de vocês?

▬ Acho que estou vendo uma luz... ▬ disse Paulo.

▬ Descobriu alguma coisa?

▬ Depois a gente conversa.

O dia inteiro o assunto foi Pedro Ventura. Paulo teve de fazer entrevistas no velório e no enterro. Voltou exausto para o apartamento e sem ter podido falar com Miranda. Releu o livro, de ponta a ponta.

Miranda conhecia Paulo muito bem. Sabia quando ele estava encucado. No dia seguinte, perguntou-lhe na redação:

▬ Você está usando uma cara estranha. O que fez com a outra?

▬ Se prestar atenção, verá que esta é mais inteligente.

▬ E mais preocupada. Qual é o grilo?

Paulo, prudente, deu só uma dica:

▬ Sobre os assassinatos.

▬ Sim?

▬ Tenho uma teoria.

▬ Pode contar, direi se ela cola.

▬ Agora, não. Ainda estou ruminando, vendo se tem buracos.

 

                    FALANDO COM O CRIMINOSO

No telejornal daquela noite, estando Paulo no estúdio, Miranda resolveu fazer uma provocação diante das câmeras. Era para manter o assunto vivo, não deixar a peteca cair.

▬ Aparentemente, as coisas estão no marco zero ▬ disse. ▬ Mas talvez tenhamos novidades para breve. Pelo menos é o que promete nosso coleguinha, o talentoso Paulo Maciel. Ele possui um montão de romances policiais e sabe como os enigmas funcionam. ▬ E dirigindo-se ao repórter: ▬ Paulo, não quer ao menos erguer uma pontinha do mistério?

Paulo, que não ia participar do noticiário, foi apanhado de surpresa. A luzinha vermelha acendeu para ele.

▬ Não ainda ▬ disse Paulo, confuso. ▬ Eu não sou do ramo, preciso confirmar minhas suspeitas.

▬ Diga ao menos se é homem ou mulher...

▬ E melhor manter o suspense...

▬ Mas quando vai soltar seu cão de fila? ▬ perguntou Miranda, fazendo o assunto render.

Paulo olhou firme para a câmera.

▬ Amanhã, quem sabe.

▬ Supõe que a pessoa esteja nos vendo?

▬ Suponho que sim ▬ disse Paulo, olhando para a câmera com mais determinação. ▬ Espero que nem pense em fugir. Sua fuga seria sua confissão. Uma péssima noite para você!

Fim do noticioso. Miranda agarrou Maciel.

▬ Agora, conte. Ninguém está vendo.

▬ Só coloquei a bola na área, amanhã eu chuto. Cedinho estarei aqui para lhe expor a teoria.

▬ Certo. Meu coração agüenta. Só tive três enfartes.

 

                     UMA CORPO QUE SOBE E DESCE

Paulo, pegou seu carro e saiu pela noite. Num restaurante que freqüentava, perguntou pelo Prata. Mas não jantou. Também foi visto perguntando pelo Prata num bar que ele freqüentava, no Leblon. Alguém o teria visto com outra pessoa no carro; porém, quando retornou ao restaurante, só para dar uma espiada, estava só.

Chegando ao Leme, Paulo desceu com o carro para a garagem do edifício, muito escura. Sempre era lenta a tarefa de estacioná-lo em sua vaga, a 22, quase imperceptível entre tantos automóveis. Desceu do carro e dirigiu-se ao elevador de serviço. Apertou o botão. À noite, sempre esperava muito. Teria ouvido passos? Visto alguém se aproximando? Viu a luz do elevador, abriu a porta e entrou. Foi quando o atacaram pelas costas.

Algum tempo depois, uma empregada doméstica do 9º andar chamou o elevador de serviço. Ao abrir a porta, viu o corpo caído, ensangüentado, e gritou. Acordou o andar inteiro. O mesmo choque sofreu um homem, embriagado, que chamou o elevador também da garagem. E um inquilino idoso, que ia descer para pegar seu carro, à procura de farmácia.

O corpo subiu e desceu inúmeras vezes no elevador, pela madrugada, até a chegada da Polícia. Dessa vez, não coube a Paulo Maciel fazer a reportagem.

 

                             PAULO MACIEL, VIVO?

Miranda estava em sua sala na TV Mundial, escrevendo à máquina, quando ergueu casualmente a cabeça e levou um grande susto. Que era aquilo? Paulo Maciel ressuscitara?

O rapaz que surgira timidamente diante de sua mesa era realmente parecidíssimo com Paulo, embora mais jovem.

▬ Ah, você é o irmão de Paulo. Recebi sua carta. Como é mesmo seu nome?

▬ Ivo.

▬ Em que hotel está hospedado?

▬ Se conseguir o emprego, morarei na mesma quitinete de Paulo. Já está tudo arranjado.

▬ Falei com o homem lá de cima ▬ disse Miranda, referindo-se a quem mandava na emissora. Ele concordou com uma experiência de três meses.

Ivo esboçou seu primeiro sorriso no Rio.

▬ Quer dizer que me aceitam?

▬ Vai depender de você. Estuda Comunicações, não?

▬ Estudo, e vou continuar estudando aqui no Rio.

▬ Fez o Serviço Militar?

▬ Este ano.

▬ Vou levá-lo ao Vadeco, do Departamento de Recursos Humanos. Terá que assinar uma montanha de papéis.

▬ Quando começo?

▬ Hoje é quinta, comece na segunda. Esteja aqui às nove. Espero que goste do Rio.

▬ Creio que gostarei, apesar do calor.

▬ Calor? Estamos no inverno. Venha comigo.

 

                     O PRIMEIRO SUSTO DE UM NOVATO

Ivo, que deixara sua mala na portaria do edifício onde Paulo morou, voltou para lá mais tranqüilo. O porteiro entregou-lhe a chave do apartamento.

▬ E no sétimo, o 71.

▬ Está tudo limpo?

▬ A faxineira esteve limpando-o hoje cedo. Ela trabalhava para seu irmão, duas vezes por semana. Quer que ela continue?

▬ Quero, sim.

Ao girar a chave e abrir a porta do 71, Ivo sentiu um arrepio longo e gelado. Entrou, tudo escuro. Correu lentamente a cortina. Móveis, apenas os essenciais. Nas paredes, pôsteres de velhos atores do cinema: Buster Keaton e o Gordo e o Magro.

Ivo discou para São Paulo e falou com sua mãe, dona Beatriz.

▬ Mãe, já estou instalado no apartamento.

▬ Quando vai à Mundial?

▬ Voltei de lá agora. O emprego está garantido. O tal Miranda é um pai.

Dona Beatriz, comovida demais, passou o telefone para Laura, dois anos mais moça que Ivo.

▬ Então, deu pé?

▬ Estou numa boa.

▬ Espero que não se esqueça daquilo ▬ advertiu Laura.

Quando Ivo decidiu pleitear o emprego no telejornal, para ajudar a mãe, viúva, e a irmã, em apuros financeiros com a morte de Paulo, Laura fez um pedido que exigia um juramento: não descansar enquanto não descobrisse quem matara o irmão.

▬ Ainda nem vi uma câmera, preciso me entrosar primeiro.

▬ Entrose-se, mas não se esqueça. Tchau.

Ao desligar o telefone, Ivo sentiu-se estreando uma sensação nova: a solidão. Estava numa cidade que desconhecia e onde ninguém o conhecia. Como preencher o tempo até segunda-feira? Fazia-se essa pergunta quando levou um susto. A maçaneta da porta! Alguém tentava entrar no apartamento. Num salto, pôs-se de pé e foi espiar pelo visor: escuridão total no corredor. Hesitava se abria ou não a porta, quando tocaram a campainha. Enganchou a corrente de proteção no batente e, sem expor o corpo, abriu a porta.

 

                         A CONTINUÍSTA

▬ Olá! ▬ exclamou uma voz feminina.

▬ Quem é?

▬ Você é o irmão de Paulo Maciel?

▬ Sou.

▬ Posso entrar? Também sou da Mundial. Soube agora de sua chegada.

Ivo destravou a corrente e uma moça entrou. Era uma moça de sua idade, loura, elegante, e linda, linda, linda! Alguma namorada de Paulo. Mas continuava desconfiando.

▬ Por que girou a maçaneta antes de tocar a campainha?

▬ Não conseguia encontrar o interruptor. Que escuro! Queimou a luz do corredor?

▬ Neste prédio velho nada deve andar bem.

▬ Disseram-me que já está empregado. Parabéns!

▬ O que faz lá? Atriz?

▬ Eu, atriz? ▬ riu a moça.

▬ Por que não? Duvido que a Mundial tenha atrizes mais bonitas.

▬ Que é isso? Chegou hoje e já paquerando?

Desajeitado, Ivo recuou.

▬ Oh, desculpe-me. Que tal é sua função lá?

▬ Continuísta de novela.

▬ O que é isso?

▬ Anoto a posição dos artistas, a roupa e o penteado que usam no final das cenas ▬ explicou a moça. ▬ Entendeu?

▬ Não.

▬ Você já observou que às vezes um artista está com uma roupa e, ao passar para outro cenário, está vestido de outra maneira? A continuísta evita esses enganos, anotando tudo. Um trabalho que parece simples, mas exige a máxima atenção.

Ivo relaxou, gostando do jeito descontraído da moça.

▬ Obrigado por ter vindo me visitar. Os cariocas são sempre gentis assim?

▬ Não vim apenas para conhecê-lo ▬ disse a continuísta, séria, dessa vez.

▬ Não? Veio para quê?

Ela fez uma pausa e informou:

▬ Meu nome é Renata Rocha.

▬ Parente de Fábio Rocha, o ator que...

▬ Irmã.

▬ Temos algo em comum ▬ disse Ivo. ▬ Nossos irmãos foram assassinados, e provavelmente pela mesma pessoa.

O motivo da visita:

▬ Seu irmão dizia que tinha uma pista. Sabe, por acaso, qual era?

▬ A mim, não disse. Pouco conversávamos, e quase sempre pelo telefone.

▬ Já examinou tudo que pertencia a ele? Jornalistas costumam fazer anotações.

▬ Cheguei neste momento. Quem sabe, neste criado-mudo... ▬ E abriu a gaveta do móvel. Retirou uma agenda.

▬ Endereços. Isso pode interessar.

Ivo folheou a agenda, logo se decepcionando.

▬ Telefones da Mundial, de jornais, livrarias, oficinas de conserto...

▬ Nenhum endereço pessoal? ▬ perguntou Renata, aproximando-se.

▬ O da casa de Miranda ▬ verificou Ivo ▬ o seu, de amigos de São Paulo e, por último, o de Petra Santana. Por falar nela, ainda existe a tal Liga?

▬ Mais ativa do que nunca. O que há mais na gaveta?

Ivo enfiou a mão na gaveta e retirou duas canetas esferográficas. E um velho romance policial, de páginas soltas e amarelecidas.

▬ Paulo era apaixonado pela ficção policial. Devia estar lendo esse livro, quando o mataram.

Renata, desanimada, caminhou até a porta. Já tocava na maçaneta, quando perguntou:

▬ Tem amigos aqui no Rio?

▬ Ainda não me apresentaram nem ao Cristo Redentor.

▬ Quer jantar comigo?

Ivo sorriu. Era seu dia de sorte?

▬ Claro!

▬ Passo às nove. O meu é um fusquinha verde. Até.

 

                           NAMORO OU ALIANÇA

Pouco antes das nove, Ivo já aguardava Renata diante do edifício. Uma pergunta descera no elevador com ele: Renata teria sido namorada de Paulo? Pergunta que repetia a cada minuto de espera que passava. Ela teria esquecido o compromisso?

Afinal, o fusquinha verde.

▬ Desculpe a demora. O trânsito...

Ivo entrou no carro com a pressa de quem temesse perder o ônibus. Puxa! Renata ficava mais bonita à noite. E como se vestira bem para o jantar!

 

Foi um jantar de novela, ao ar livre, num restaurante do Leblon que dispunha parte das mesas sobre a calçada, o predileto dos artistas do Rio.

▬ Nina Flores vinha aqui freqüentemente ▬ lembrou Renata.

▬ Quem são aqueles? ▬ perguntou Ivo olhando para uma mesa próxima. ▬ Parece que os conheço.

▬ Luciana Rios e Milton Brás, o que substituiu Fábio na novela. Ela morava com o mano, mas, como se vê, esqueceu-se depressa.

Ivo continuou a olhar pelas vizinhanças.

▬ E o velhinho que está sozinho na mesa? Também é ator, não?

▬ É o Carlos Prata. A moça que se aproximou da mesa dele é Sandra Lia, que também foi namorada de Fábio. Luciana lançou suspeitas sobre os dois.

▬ Acha que o criminoso freqüenta este restaurante?

▬ Pode ser que sim.

▬ Desconfia de alguém?

▬ Às vezes desconfio de todos.

▬ Você devia gostar muito de Fábio, nota-se.

▬ Não era dos que ajudam os velhinhos a atravessar a rua, mas tinha meu sangue e me arranjou o emprego na Mundial.

Uma pergunta maneirosa:

▬ E com meu irmão, você se dava bem?

▬ Não éramos namorados, se é que quer saber. Mas lamento não termos sido mais íntimos. Ele teria me contado o que foi que descobriu.

▬ Você pensa o tempo todo nisso, não? Nunca tenta esquecer o que houve?

A mão de Renata cobriu a de Ivo sobre a mesa.

▬ Não posso ficar sozinha nessa luta, Ivo ▬ disse ela, em tom profundo. ▬ Minha cabeça está pegando fogo. Não consigo pensar com clareza. ▬ E pediu, suplicou: ▬ Ajude-me. Vamos trabalhar juntos. Eu perdi Fábio, você perdeu Paulo. Se não nos aliarmos, o assassino jamais será apanhado.

 

                       ROUBAR O QUÊ? NA QUITINETE?

▬ Gostou da quitinete? ▬ o porteiro do edifício perguntou a Ivo no dia seguinte.

▬ Se eu fosse gordo teria de alugar duas.

▬ Já levei a televisão para lá.

▬ Televisão?

▬ Seu irmão tinha mandado para o conserto. Não a levei antes porque houve uma tentativa de assalto. Achei mais prudente esperar que o senhor chegasse.

▬ Tentativa de assalto? Quando?

▬ Faz uma semana. Eu estava no sétimo quando vi um cara diante de sua porta. Quando me viu, escapou pela escada.

▬ Como era o tipo?

▬ Um desses rapazes de cabeça raspada. Vestia uma jaqueta preta.

▬ Um punk! ▬ perguntou Ivo, lembrando que um punk viajara com Nina Flores no trem-fantasma, segundo o noticiário da época.

▬ Sim, é assim que os chamam. Um punk.

Ivo subiu à quitinete e fez nela uma revista geral. O que havia lá para ser roubado? A geladeira?

 

                     IVO FICA CONHECENDO O DOUTOR REIS

O doutor Reis mandou Ivo entrar.

▬ Sou irmão de Paulo Maciel.

▬ Nem precisava dizer, parecem gêmeos.

▬ Mudei para o Rio e estou morando no mesmo endereço de Paulo.

▬ Também jornalista?

▬ Estou tentando.

▬ Posso ser útil em alguma coisa?

Podia. Ivo falou do provável ladrão que tentara entrar no apartamento.

▬ O Rio está cheio de ladrões.

▬ Mas era um punk ▬ informou Ivo. Quem sabe o mesmo que matou Nina Flores. O que não entendo é o que pretendia roubar. Estive pensando... quem sabe algo que o comprometesse. O que a Polícia retirou do apartamento? Agendas, anotações, fitas gravadas, algo assim?

▬ Não retiramos nada do apartamento. Só levamos o carro para recolher impressões digitais. Foi entregue ao juiz. Logo terá notícias dele.

▬ Mas o punk se arriscaria assim, por nada?

▬ Pode ter sido outro punk. Ainda estamos trabalhando no caso. Não ponha a mão nessa ratoeira. Seu irmão ainda estaria vivo se não tivesse se metido. Pobre rapaz!

 

                   O FAQUEIRO DE DONA PETRA

O chá era útil para reunir as sentinelas, mas um bom almoço mensal consolidaria definitivamente a entidade. Grande idéia! Petra abriu seu faqueiro, relíquia da família. Haveria talheres para toda a diretoria? Pareceu-lhe que sim, porém, ao fechar a preciosidade doméstica, notou que alguma coisa estava faltando. Onde estavam as Três Marias, as agudíssimas e cortantes facas, tão úteis na cozinha? No faqueiro não estavam. Procurou-as nas gavetas da copa e da cozinha. Nada.

Precipitadamente ou não, Petra tirou uma conclusão:

▬ Roubaram minhas queridas facas! Mas quem?

 

                           O GAROTO DAS AMENIDADES

Ivo e Renata passaram quase todo o fim de semana juntos; ela mostrando-lhe o Rio.

▬ Você mora sozinha?

▬ Com uma tia ▬ respondeu Renata.

▬ Ela sabe que saiu com um rapaz que acaba de chegar de São Paulo?

▬ Sabe, ela é legal.

▬ Como se chama?

▬ Júlia ▬ disse Renata depois de hesitar um pouco. ▬ Mas o que fez hoje cedo?

▬ Fui à delegacia ▬ respondeu Ivo, contando-lhe em seguida o caso do punk.

▬ Ivo! Isso confirma que há um punk metido na história. Pense nisso, Ivo, pense bastante.

▬ Não consigo ▬ respondeu Ivo. ▬ Amanhã estreio na Mundial. Meu primeiro emprego. E estou morrendo de medo de enfrentar uma câmera.

Segunda-feira, às nove, Miranda já esperava pelo novato.

▬ Vamos pegar o carro de reportagem no pátio. Vou junto para dar uma força. Nervoso?

▬ Apenas tremendo dos pés à cabeça. O que vou fazer?

▬ Entrevistar um camelô, no Lido. Um marreteiro diferente dos outros. Cascateia em inglês, francês, castelhano e até em alemão. Lances assim, engraçados, adoçam o telejornal.

Quando o carro de reportagem estacionou no Lido, Ivo viu logo o camelô, um baixinho elétrico. Mas logo se via que não era poliglota coisa alguma. Fingia conhecer idiomas.

A equipe técnica preparou-se, deu o sinal, e Ivo chegou-se ao vivaldino.

▬ Onde aprendeu tantas línguas, ô da praça?

▬ Fui marinheiro.

▬ No Titanic?

▬ Esse mesmo. Belo navio. Eu lavava o casco com água mineral e sabonete perfumado. Um luxo só!

▬ Pena que naufragou no começo do século.

A câmera focou alguns curiosos que entenderam a graça e riram. Miranda ergueu o polegar, aprovando. O tom só podia ser aquele: gozação.

▬ Sim... naufragou ▬ disse o camelô, como se lembrasse. ▬ Nadei até a praia.

▬ Uns dois mil quilômetros.

▬ E ainda levei comigo uma velhinha que estava se afogando.

▬ Que tal, ô da praça, se transássemos o resto do papo em alemão?

▬ E comigo mesmo ▬ disse o fajuto, inventando um idioma, que tanto podia ser alemão quanto grego.

Ivo, sentindo que deslanchava bem, começou também a imitar alemão, num diálogo muito vivo, que terminou num abraço sob gargalhadas gerais.

▬ Começou com o pé direito! ▬ exclamou Miranda. ▬ Amanhã vamos entrevistar um tocador de realejo. Um dos últimos que sobraram na cidade. Você vai ficar como... "O garoto das amenidades"!

 

                               SÃO PAULO NA LINHA

A mãe de Ivo ao telefone:

▬ Filho, você estava lindo! Que entrevista levinha! O Paulo devia ter feito assim...

Laura:

▬ Estava lindérrimo, Ivo. Com mais pinta que o tal Milton Brás. Mas diga uma coisa: vai continuar nessas?

▬ Calma, mana, comecei hoje.

▬ Não acha que aquele velhote, o Prata, matou todos?

▬ Por quê?

▬ Porque é o assassino, ora!

▬ Laura, sabe quanto custa um minuto de ligação São Paulo-Rio? Tchau.

Ivo largou-se na cama. Paulo só fizera reportagens importantes, quentes, e ele era o garoto das amenidades. O criminoso talvez estivesse rindo dele.

                   NOVA VISITA À CASA DE PETRA SANTANA

Petra Santana esperou Marinalva, a empregada, sair para as compras e entrou no quarto dos fundos. Um minuto depois, tendo aberto todas as gavetas, voltava para a sala, arrependidíssima. Marinalva era honestíssima, o que vinte anos de trabalho naquela casa comprovavam.

A empregada chegou da rua com uma cesta cheia.

▬ Lembra-se daquelas facas, as Três Marias? Desapareceram do faqueiro.

▬ Não estão na cozinha?

▬ Não estão em parte alguma.

Um resto de desconfiança pairava no ar.

▬ Quer revistar o meu quarto?

▬ Está doida, Marinalva? Você é a pessoa em que mais confio no mundo.

 

                 ELES NÃO ESTÃO SOZINHOS NA LUTA

Depois do tocador de realejo, Ivo entrevistou o proprietário dum antigo cinema que ia ser demolido. Há meio século que exibia filmes; com lágrimas nos olhos, disse que, sem sua tela, a vida perderia a graça para ele. Até o câmera se comoveu. Em seguida, uma reportagem engraçada com um nordestino, varredor de rua, que ganhou milhões na loteca.

▬ O que vai fazer com essa bolada?

▬ Comprar uma casinha.

▬ Com esse dinheiro poderia comprar uma rua toda, sabia?

▬ Sei, mas não espalhe, por favor, senão acabo perdendo o emprego.

Miranda aprovou as entrevistas.

▬ O período experimental acabou. Você já é dos nossos, garoto. Certa tarde, ao sair da emissora, alguém deteve Ivo pelo braço.

▬ É o irmão do Paulinho?

▬ Sou.

▬ Meu nome é Djalma Ventura, sobrinho de Pedro Ventura. Vamos a um café?

O sobrinho do grande ator assassinado era um homem duns trinta anos, magro e abatido. Ainda não se recuperara do infortúnio.

▬ Tenho notado que a turma da Mundial já não toca mais no caso. Nem todos são como Paulo. Este tinha garra. Quando anunciou que encontrara uma pista, eu e Valéria nos entusiasmamos.

▬ Quem é Valéria?

▬ Noiva de tio Pedro. Poucos sabiam que ia casar. Pedro não gostava de badalações. Coitada! Não suportou viver mais aqui, voltou para o Triângulo Mineiro, sua terra.

▬ Djalma, lembra que havia um punk no parque onde Nina foi assassinada? Pois saiba que um punk tentou entrar em meu apartamento, que é onde Paulo morava. Isso aconteceu antes de eu chegar. Falei com a Polícia, mas não deram muita importância ao fato.

▬ Ah, a Polícia! ▬ exclamou Djalma com desprezo. ▬ Para ela nada é importante. Pode ser que o punk tenha tentado entrar no apartamento para apanhar alguma prova. Examinou bem o lugar?

▬ Sim, mas não encontrei nada comprometedor.

▬ Dê-me seu endereço. Quatro olhos enxergam mais que dois. Gostaria de fazer uma revista minuciosa. De acordo?

▬ Estava precisando de alguém como você. Vou dar-lhe telefone e endereço.

 

                         VISITA À LIVRARIA

Ivo e Renata passaram a encontrar-se todas as noites, já que na emissora não havia tempo para papos. Com ela, Ivo aprendeu a gostar de teatro, a paixão da continuísta. Mas de livros ele entendia mais. Deu-lhe uma lista de romances de primeira categoria.

▬ Não dá para comprar - disse ela. - Sabe quanto ganho na Mundial?

▬ Venha comigo. Há um sebo aqui perto, livraria de livros usados. Paulo era um grande freqüentador.

No sebo, um homem idoso, vestindo paletó de pijama, os recebeu. Uma surpresa para Ivo.

▬ O senhor não é repórter da Mundial?

Era o primeiro telespectador que o reconhecia. Boa sensação.

▬ Sou Ivo Maciel, e esta é Renata Rocha, continuísta.

▬ Paulo Maciel não era seu irmão? Conhecia-o. Ele vinha sempre aqui. Grande leitor de livros policiais.

▬ No apartamento há uma estante cheia deles. Veja se tem os livros desta lista.

A saída, Renata levava uma pequena pilha de livros usados.

▬ Não posso sair esta noite ▬ disse. ▬ Titia está dodói.

▬ Creio que nem eu poderia. Djalma talvez vá me visitar.

▬ Djalma Ventura?

▬ Conhece-o?

▬ Superficialmente. Ivo, ele pode ajudar-nos muito! Está bastante ligado nesse caso.

▬ Notei isso. Nós três ainda vamos caçar a fera.

▬ Ele é como nós, desses que vão até o final.

▬ Um abraço à titia. Diga que um dia pinto lá.

 

                 ALGUÉM TRAI AS SENTINELAS

Marinalva traía Petra Santana e sua Liga. Traía de segunda a sábado. A noite, sozinha em seu quarto, assistia a todas as novelas, mas sem cronometrar beijos e abraços. Pelo contrário, vibrava com cenas de amor.

▬ A senhora viu o beijo que Milton deu ontem na Luciana?

▬ Durou vinte e nove segundos ▬ disse Petra. ▬ Mas se não fosse nossa campanha, duraria quarenta. Ainda vou acabar com eles.

Marinalva mudou de assunto:

▬ Quando a senhora vai oferecer o almoço?

▬ Com o desaparecimento das facas me esqueci dele...

▬ Estive pensando, dona Petra. Não entrou aqui nenhum vendedor?

▬ Vendedor recebo na porta.

▬ Eu sei que entrou alguém ▬ garantiu Marinalva, ▬ mas não consigo me lembrar...

 

                 UM HOMEM QUE CHORA

Djalma Ventura foi pontual. Chegou na hora marcada e com a maior disposição. Desde a entrada, foi esquadrinhando tudo com olhares rápidos e agudos.

▬ O apartamento é só isso?

▬ Decepcionante para quem pensa que a tevê paga fortunas.

▬ Já morei em lugares piores.

▬ Nunca tentou a profissão de seu tio?

▬ Tentei, mas não nasci para ator. A profissão exige talento e perseverança. Posso ter a primeira qualidade, mas não a segunda. Ao trabalho?

▬ Comecemos pelo banheiro.

Djalma só espiou, não havia nada para ver, a não ser um armário embutido. Lá, Ivo encontrou algumas roupas de Paulo, que deu aos porteiros.

▬ Revistou antes os bolsos?

▬ Encontrei apenas lenços.

Ivo não acreditou que os investigadores houvessem revistado o apartamento com a mesma atenção. Djalma remexeu tudo. Pôs-se a retirar os livros da estante.

▬ Não se assuste, tornarei a colocar todos em seus lugares.

▬ Quer espiar debaixo do colchão?

▬ Por que não? Vamos levantá-lo.

Não faltava mais nada. Faltava, sim. O criado-mudo.

▬ Esta gaveta já abri muitas vezes. ▬ Ivo foi jogando tudo sobre a cama. ▬ Uma agenda, canetas esferográficas e um livro velho.

Djalma olhou o romance com certa repugnância.

▬ Parece o paraíso das traças.

▬ E o que meu irmão estava lendo, tinha retirado da estante. Que péssimo estado! Nem sei se vai dar para ler.

Djalma, que entrara esperançoso, mostrou-se deprimido. Largou-se numa cadeira.

▬ Conheceu meu tio?

▬ Eu o vi representar uma vez, em São Paulo.

▬ Era um grande homem ▬ disse Djalma com amargor na voz. ▬ Uma pessoa como poucas. Nunca prejudicou ninguém na vida e ajudava qualquer um que precisasse dele. Principalmente artistas em começo de carreira ou já na decadência. Não tinha o menor apego pelo dinheiro. Só fazia o bem... Quantas vezes me tirou de apuros ▬ confessou, iniciando um pranto descontrolado e cheio de lágrimas.

Ivo presenciava a cena embaraçado. Djalma continuava a chorar, tentando dominar-se em vão.

▬ A Polícia ainda apanhará o criminoso ▬ disse Ivo, como se para consolá-lo.

▬ Não acredito ▬ gemeu Djalma. ▬ Ela não fez nada ainda. Se vamos esperar por esses tiras...

▬ Você não está nessa sozinho. Eu e Renata estamos nos mexendo e não vamos abandonar a luta. Ainda haveremos de chegar no ponto em que meu irmão chegou.

Djalma enxugou as lágrimas num lenço.

▬ Perdoe-me a choradeira ▬ balbuciou envergonhado. ▬ Não deu para segurar. Vou lhe deixar meu endereço ▬ disse, entregando a Ivo um cartão.

▬ Entre em contato comigo, se descobrir alguma coisa. ▬ Encaminhou-se para a porta. ▬ Boa noite, amigo ▬ e saiu de cabeça baixa.

Ivo, deprimido com a cena, largou-se na cama. O telefone tocou: Renata.

▬ A Ligue a televisão e veja o jornal das onze.

▬ O que houve?

▬ Estão anunciando novidades. Beijo.

                 JACK LIMÃO FAZ UMA DESCOBERTA

A notícia começou com imagens de praia, o trecho onde o corpo de Fábio fora encontrado. Depois, surgiu um sorveteiro apelidado Jack Limão, popular entre os banhistas do Leblon.

▬ Onde encontrou a arma? ▬ perguntou-lhe o repórter da Mundial.

▬ Aqui ▬ mostrou Jack Limão, ▬ enterrada na areia até o cabo. Vi uma coisa brilhando ao sol, me abaixei e fui puxando. Como sabia do crime, avisei a Polícia.

Cortando para a delegacia, o teipe mostrava o doutor Reis diante duma mesa sobre a qual havia duas facas iguais. Exibiu-as à câmera.

▬ Vejam, a que Jack Limão encontrou é igual a que foi jogada no túnel do trem-fantasma. A prova cabal de que quem matou Fábio matou Nina. Apenas não sabemos se, para matar Pedro Ventura e Paulo Maciel, o criminoso usou o mesmo tipo de arma.

▬ Que armas são essas? ▬ perguntou o repórter. ▬ Alguma peculiaridade?

O delegado aproximou-se mais da câmera.

▬ Eu nem chamaria isso de arma. São facas comuns nos faqueiros antigos. No geral, formam um jogo de três.

Petra Santana assistiu ao noticiário e quando terminou estava com dois imensos olhos. As facas mostradas na TV eram, sim, as que haviam desaparecido do seu faqueiro. Nenhuma dúvida. Levantou-se e com pés de veludo foi ao quarto da empregada. Abriu dois dedos de porta: tudo escuro. Marinalva dormia. Melhor assim.

 

                           REUNIÃO NO ESTÚDIO A

Ivo notou um movimento estranho na redação. Aproximou-se de Miranda, que, agitado, segurava uma folha de papel.

▬ Que foi?

▬ O homem outra vez, garoto. Leia.

Apenas uma linha escrita com letras de fôrma vermelhas: Aguardem a próxima atração. No envelope sobre a mesa, via-se o carimbo da agência da Tijuca.

▬ O que vai fazer, chefe?

▬ Já tiramos cópia. Esta vai para o doutor Reis. Eu mesmo levo. Mas aqui o trabalho não vai parar. O que há na pauta para você, garoto?

▬ Vou entrevistar um homem que se comunica com parentes e amigos com pombo-correio.

▬ Deve ser a única pessoa no Rio que não se queixa de atraso da correspondência. Chispe.

No corredor, Ivo encontrou Renata, apressada com sua prancha de continuísta.

▬ Sabe da última? Chegou mais uma mensagem.

▬ Não queria estar na pele de nenhuma atriz famosa ▬ disse ela.

Ivo fez o possível para manifestar bom humor durante a entrevista. O tema ajudava. No entanto, não foi fácil, depois de ter lido a mensagem. Quem morreria agora?

A câmera focou o pombo voando sobre os telhados.

▬ Para onde ele vai? ▬ perguntou Ivo.

▬ Para a Tijuca ▬ respondeu o dono do pombo-correio.

"Provavelmente passará sobre a casa do assassino", pensou Ivo.

Ao voltar à emissora, Ivo soube que o doutor Reis estava lá e que ele e Miranda haviam reunido todos os artistas no Estúdio A. Até artistas de outras emissoras, e os que trabalhavam apenas em teatro ou apenas em cinema estavam presentes. O clima era opressivo. Ivo e Renata entraram juntos.

Miranda tomou a palavra sem sua costumeira intenção de fazer piada.

▬ Como vocês sabem, os crimes têm sido precedidos por avisos iguais, com a frase que a Mundial repete em todos os intervalos: Aguardem a próxima atração. E acaba de chegar mais um ▬ disse Miranda dramaticamente, mostrando a carta. ▬ Não queremos criar pânico, mas um grande perigo ameaça vocês. E é sobre isso que o doutor Reis, o delegado que cuida do caso, vai falar. Peço toda atenção.

O delegado não estava muito à vontade; as promessas feitas pela Polícia não haviam sido cumpridas. Três meses após o primeiro assassinato, nenhuma pista positiva ainda.

▬ Estamos encontrando muita dificuldade ▬ foi admitindo. ▬ É sempre assim quando se lida com dementes. Mas nossa obrigação é também a de evitar novos crimes, o que só podemos conseguir com a colaboração de todos. Miranda garantiu que aqui na Mundial desconhecidos não entram. Nos camarins de teatro e estúdios de cinema o mesmo rigor foi estabelecido. Mas vocês não trabalham o dia inteiro; portanto, as precauções não devem se limitar aos locais de trabalho. Os cuidados devem ser estendidos às ruas e às suas próprias casas. Evitem sair sozinhos, mesmo de automóvel. Estando em suas casas ou apartamentos, não abram a porta antes de identificar a pessoa que os procura. E, sobretudo, desconfiem de estranhos que se aproximam com ou sem pretexto.

▬ Fale dos punks! ▬ lembrou Miranda.

▬ Ah, sim, os punks! Creio que todos sabem que um desses tipos de cabeça raspada viajou com Nina no parque de diversões. E recentemente um punk tentou invadir o apartamento de Paulo Maciel, agora ocupado por seu irmão. Se um desses indivíduos se aproximar, olho aberto. Podem estar diante do assassino.

Os artistas ouviam atentos; nem o diretor deles, Daniel, já obtivera tanta concentração e silêncio.

Miranda acrescentou uma informação importante:

▬ Vamos montar em minha sala uma central de informações. Se acontecer algo estranho, se tiverem alguma suspeita, procurem-me. Às vezes detalhes insignificantes esclarecem tudo. Colaborem, por favor.

Ana Regina, uma das atrizes mais badaladas do elenco, disse:

▬ Como não estou escalada agora, vou viajar. O seguro morreu de velho.

Romeu Santos, que sempre interpretava papéis de políticos ou milionários, bateu a mão espalmada na cintura.

▬ Já estou andando com o berro no coldre. Tenho porte de armas.

Patrícia Lins, que disputava com Luciana Rios a preferência do público jovem, não teve pudor de declarar:

▬ Só sairei à rua se houver incêndio no edifício.

Prata, rindo o tempo todo, disse:

▬ E a primeira vez na vida que acho bom não ser famoso. O tal maníaco apenas mata artistas de muito cartaz. E eu não dou audiência.

Alguns riram; riso forçado. Brincadeira tem hora.

Outro ator, Armando de Sousa, foi prático:

▬ Vou contratar um guarda-costas. Acho até chique ter um.

No final da reunião, Prata, cheirando a álcool, passou por Ivo e aconselhou:

▬ Fique de fora, garoto. Se bancar o detetive como seu irmão, pode sobrar para você.

Ivo e Renata saíram juntos.

▬ Qual foi sua impressão?

▬ Todos apavorados ▬ ela respondeu.

▬ Foi o que vi: pavor. Aposto que os bares do Leblon, freqüentados por artistas, vão andar às moscas.

Todas as precauções foram tomadas, mas no dia seguinte, ao sair da emissora, Luciana Rios sofreu um atentado.

 

                         O ATENTADO

Foi às sete da noite, no término das gravações. Luciana, no portão, esperava por Milton, que fora apanhar seu carro no pátio. Nisso, um jovem maltrapilho que passava pela rua pediu-lhe um autógrafo.

▬ Agora não ▬ recuou a atriz, lembrando-se das palavras do delegado.

▬ Não custa nada, moça.

Luciana viu o carro do namorado, manobrando.

▬ Sinto muito, tenho pressa.

▬ Você é Luciana e eu sou seu maior fã ▬ declarou o rapaz, já próximo dela.

 

Luciana recuou um passo, apavorada e ia correr na direção do carro de Milton, que chegava ao portão, quando o admirador persistente retirou um canivete aberto do bolso. A atriz, vendo a arma, gritou no tom inconfundível dos filmes de terror. Uma fração de segundo e o agressor estava dominado.

Depressa, como acontece nos filmes e telenovelas, chegou a Polícia. O rapaz foi jogado dentro do carro policial, tentando ver Luciana, como se ainda esperasse obter o autógrafo.

▬ Eu já o tinha visto algumas vezes ▬ disse a atriz.

▬ Ontem ele tentou burlar a vigilância e entrar na emissora ▬ informou um dos porteiros.

                   CLEMENTE SILVA O NOME DELE

Na delegacia, o rapaz disse chamar-se Clemente Silva; não portava documento. Borracheiro, desempregado. Nordestino. Confessou que freqüentava o portão da Mundial para ver os artistas. Conhecia todos.

▬ Por que anda com esse canivete? ▬ perguntou o delegado.

▬ Numa cidade como esta a gente tem que ter uma arma.

▬ Costuma pedir autógrafos aos artistas?

▬ Coleciono.

▬ Pediu autógrafo a Fábio Rocha?

▬ Aquele que mataram? Pedi, mas não deu.

▬ Pediu a Nina Flores?

▬ Estava sempre rodeada.

▬ E para Pedro Ventura?

▬ Esse era muito orgulhoso. Até me empurrou.

Nesse momento, chegou a equipe do telejornal, com Miranda à frente. A câmera começou a procurar ângulo. O iluminador jogou um foco de luz no rosto de Clemente. O técnico de som testou o equipamento.

Clemente olhava para tudo, fascinado com a movimentação.

▬ O que vão fazer?

▬ Uma ceninha para o noticiário ▬ respondeu Miranda.

▬ Vou sair na tevê? No duro?

A reportagem já começara no portão da Mundial, com declarações de Luciana e Milton. Prosseguia agora na delegacia, abrindo com um close de Clemente.

▬ Conhecia também Paulo Maciel? ▬ perguntou o delegado.

▬ O moço do telejornal? Conhecia.

▬ Sabe escrever?

▬ Sei, doutor.

Uma pergunta importante:

▬ Conhece a Tijuca?

▬ Eu trabalhava lá, no borracheiro.

▬ Onde, precisamente?

                       MATOU OU NÃO MATOU?

▬ Perto do correio.

A câmera enquadrou a reação do doutor Reis ao ouvir: "Perto do correio". Fez então a pergunta esperada, antecedida por uma pausa para dramatizar a ação. Miranda, feliz. Não era mesmo uma novelinha policial?

▬ Foi você quem matou os artistas e o repórter? ▬ Clemente Silva não se surpreendeu com a pergunta; estava mais interessado no equipamento da tevê. ▬ Foi você? ▬ repetiu o delegado.

▬ A que horas isso vai sair na televisão? ▬ perguntou Clemente.

▬ Fiz uma pergunta ▬ berrou o delegado. ▬ Matou ou não matou?

Clemente ajeitou-se melhor na cadeira. Outra pausa. Parecia final de capítulo! Ia dizer sim ou não?

▬ Fui eu, sim ▬ confessou.

▬ Foi Sim

▬ Por quê?

Clemente encarou a luz vermelha.

▬ Porque não quiseram me dar autógrafo.

A reportagem continuaria mais tarde, no borracheiro onde Clemente trabalhou. O dono do estabelecimento, homem pequeno, pouco maior que um anão, não hesitou em declarar:

▬ Dei o emprego a ele porque é da minha terra, Aracaju. Mas me arrependi. Não levava o trabalho a sério, só pensando na tevê. Gastava tudo que ganhava com essas revistas que publicam retratos de artistas. Uma vez me mostrou as assinaturas de alguns deles. Empregado assim não serve. Mandei embora.

▬ Acha que ele teria matado os artistas e o jornalista? ▬ perguntou Miranda.

▬ Franqueza? Acho que sim ▬ admitiu o borracheiro. ▬ Às vezes aparecia aqui nervoso, nem conseguia trabalhar. Quando mataram os artistas, comprou todos os jornais. Se disse que matou, é porque matou mesmo.

O delegado e a equipe de reportagem foram depois à casa de cômodos onde Clemente morava. Uma mulher gorda, com um turbante vermelho na cabeça, recebeu o pessoal de cara feia.

▬ O que foi que aquele pau-de-arara fez dessa vez? Roubou outra feira?

▬ Ele é ladrão de feiras?

▬ Já foi grampeado por causa disso.

▬ Mas agora a coisa é mais séria. Teria matado quatro pessoas ▬ informou o delegado. ▬ Não ouviu falar das mortes dos artistas?

A mulher até riu; a câmera pegou bem o riso dela.

▬ Aquela porcaria? Essa não. Imaginem, matar logo quatro. O que vocês têm na cabeça?

▬ Mas ele confessou.

A dona da casa não se convenceu.

▬ O Clemente? Papo-furado, moço. Ele não tem competência para isso.

 

                   O QUE DIZEM UNS E O QUE DIZEM OUTROS

Ivo e Renata assistiram à reportagem juntos, na Mundial; não terminava com as declarações da mulher do turbante, mas com uma esferográfica vermelha, encontrada entre os magros pertences do Clemente.

▬ Concordo com ela ▬ disse Ivo. ▬ Clemente não tem cabeça para cometer crimes enigmáticos. Não passa dum ladrãozinho de feira.

▬ Mas trabalhava na Tijuca e tinha uma esferográfica vermelha.

▬ Não me convence.

▬ E os autógrafos? Era um maníaco caçador de autógrafos. Um doente mental. Como sempre, imaginou-se a pessoa que cometeu os crimes.

Diante do televisor da redação, redatores e artistas comentavam a confissão. Luciana e Milton aceitavam Clemente como criminoso. Para eles, caso encerrado. Outros discordavam, usando diversos argumentos.

▬ Ele nem foi visto no parque.

▬ E podem imaginar um sujeitinho desses, que nunca deve ter ido ao teatro, planejar a morte de Pedro em seu próprio camarim?

▬ E Maciel não podia desconfiar dum cara completamente desconhecido. Era uma carta que não estava no baralho.

Ivo e Renata saíram da emissora, foram a uma lanchonete. Olhando a rua, cansados da emoção do dia, viram um punk passar com um copo na mão, a assoprar bolas de espuma como se tal maluquice fosse coisa absolutamente normal. Quando deixaram a lanchonete, viram o punk outra vez, parado diante duma casa, ainda se divertindo em produzir bolas de espuma.

▬ Que cara mais doido! ▬ exclamou Renata.

▬ Será que mora naquela casa?

▬ Nem sei se os punks moram ▬ disse a moça.

Dois outros punks saíram da casa e juntaram-se ao fabricante de bolas.

▬ Aí pode ser uma comunidade deles ▬ disse Ivo. ▬ Gostaria de conhecê-los de perto.

▬ Seriam tão agressivos como parecem?

▬ Já li uma reportagem sobre eles ▬ lembrou Ivo. ▬ Não têm nada a ver com os hippies, como muita gente pensa. Esses, que começaram a aparecer no início da década de 60, se dedicavam ao artesanato, pregavam a Paz e o Amor e combatiam a possibilidade duma guerra atômica. Os punks não são contra nem a favor de nada. Sua filosofia consiste apenas em não colaborar com coisa alguma. Seria interessante entrevistá-los.

▬ O Miranda não consideraria uma entrevista de amenidades.

Ivo passou do desejo ao plano:

▬ Não seria como tarefa da Mundial. Eu me apresentaria a eles como repórter dum jornal que não existe. Só para sondar.

Renata não se entusiasmou:

▬ Houve uma confissão, Ivo. Fique quietinho até que a Polícia esclareça bem o caso do borracheiro.

"Para ela também eu sou o garoto das reportagens leves", pensou Ivo. "Ninguém me confere maioridade."

 

                           ENTRE PARÊNTESES

(Petra Santana, ao assistir pela tevê a confissão de Clemente, respirou aliviada. Andava com caraminholas na cabeça desde que vira duas de suas facas no vídeo: uma de suas sentinelas, para simplificar as metas da Liga, roubara as facas e matara os artistas. Relaxou, tudo fantasia. O criminoso, confesso, já estava detido. Fim do pesadelo. E quanto às facas... E quanto às facas?)

 

                   UM ASTRO QUE A TV NÃO CONTRATOU

Clemente Silva foi submetido a novo interrogatório, agora para valer, e sem a presença incômoda da televisão. Doutor Reis não gostou de ter lido nos jornais que a Polícia encontrara um bode expiatório.

▬ Vamos lá, borracheiro, queremos a história tintim por tintim. ▬ Mostrou-lhe as cartas. ▬ Você que escreveu?

▬ Foi, doutor.

▬ E postou as cartas no correio da Tijuca?

▬ Sim, senhor.

O delegado retirou as duas facas da gaveta.

▬ Usou estas facas para matar Fábio Rocha e Nina Flores?

Clemente mal olhou para as armas.

▬ Sim, senhor.

▬ E com que armas matou Pedro Ventura e o repórter?

A porta abriu e entrou um investigador; já estavam outros dois na sala.

▬ A televisão está aí? ▬ perguntou Clemente.

▬ Hoje não tem televisão ▬ berrou o delegado. ▬ Chega de espetáculo. Diga: com que arma matou Pedro e o repórter?

▬ Com o canivete.

▬ Aproxime-se mais da mesa ▬ ordenou doutor Reis. E deu-lhe um papel e uma esferográfica de tinta vermelha. ▬ Recorda-se do que escreveu nas cartas?

Clemente ficou nervoso. Respondeu baixando a cabeça:

▬ Mais ou menos.

▬ Vou ditar o que escreveu. Pegue a caneta e escreva.

A mão de Clemente tremia ao pegar a caneta, sob o olhar fixo do delegado e dos três investigadores.

▬ Posso fumar um cigarro?

▬Não ▬ respondeu um dos investigadores.

▬ Pegue direito na caneta. Agora escreva: Aguardem a próxima atração" do jeito que escreveu as três outras vezes. Vamos, não fique me olhando com essa cara de imbecil! “Aguardem a próxima atração".

Clemente usou a caneta lentamente, desenhando as letras.

▬ O que mais? ▬ perguntou.

O delegado pegou o papel. Os investigadores aproximaram-se para ler também. Clemente não escrevera em letras de fôrma e fizera seus garranchos no alto da página e não no centro, como nas mensagens anteriores. A ortografia também apresentava inovações:

Os investigadores riram, o delegado não.

▬ Em que teatro matou Pedro Ventura? Dessa vez, o corpo todo de Clemente tremeu.

▬ No Municipal.

Nova risada, agora com a participação do delegado.

▬ Por que confessou que matou as quatro pessoas, borracheiro?

Clemente olhou para todos, um por vez, e depois engoliu em seco. Precisou dum minuto inteiro para responder:

▬ Para aparecer na televisão.

▬ E apareceu ▬ disse o delegado. ▬ Se seu propósito era só esse, conseguiu.

▬ Será que passou lá em Aracaju? ▬ perguntou Clemente, ansioso. ▬ Eu disse para a turma que ia aparecer um dia.

No mesmo dia, os jornais e a televisão desmentiram que o enigma tivesse chegado ao fim. Clemente Silva não matara ninguém e de Luciana Rios queria apenas um autógrafo. Videota, seu único desejo era o de ser visto por milhões, virar atração ao menos durante um dia. Como castigo, o delegado não permitiu que ele próprio se explicasse diante das câmeras. Clemente resignou-se, tanto que saiu da delegacia sorrindo.

Na esquina, o borracheiro viu uma banca de jornais. Parou, extasiado. Lá estava seu retrato. Ia passando um transeunte apressado. Clemente parou-o, obrigando-o a olhar para a banca.

▬ Aquele lá sou eu!

 

                   TODOS FICAM TENSOS OUTRA VEZ

Com o desmentido a tensão voltou à Mundial. Miranda pediu aos artistas que se mantivessem atentos. Olho vivo e nada de folga com estranhos. A portaria recebeu ordem de redobrar a vigilância. Nem fantasma entraria sem crachá de identificação no peito.

Renata almoçou com Ivo no bar-restaurante da emissora.

▬ Você estava certo, Clemente inventou tudo.

▬ Foi o lado humorístico da tragédia. E como vai o clima no estúdio?

▬ Muitos fazem piada, dizem que não estão nem aí, mas no íntimo, morrem de medo. ▬ E mudando de assunto: ▬ O que fez hoje cedo?

▬ Mandaram-me para o zoológico. Nasceu um filhote de rinoceronte. Um bebezinho de quase cem quilos. Mas à tarde estarei livre ▬ concluiu com um significado especial.

Preocupada, Renata perguntou:

▬ E o que vai fazer, então?

▬ Entrevistar aqueles punks para o número de lançamento da revista mensal Estamos aí.

▬ Eu não entrava nessa.

▬ Não me considero valente, mas vou arriscar.

▬ Então vou junto.

▬ Esqueceu que tem estúdio hoje à tarde?

▬ E se lhe acontecer alguma coisa?

▬ Já aconteceu ▬ respondeu Ivo sorrindo. ▬ Não imaginei que se preocupasse tanto comigo. Isso é ótimo!

 

                     PETRA TAMBÉM

Petra entrou na sala. Enquanto espanava os móveis, Marinalva assistia ao noticiário da televisão.

▬ Então era tudo bafo!

▬ O que quer dizer bafo? ▬ perguntou Petra, que não suportava gíria.

▬ Conversa fiada. Zoeira. Mentirinha. O rapaz não tinha nada com o peixe.

▬ Que rapaz?

▬ O borracheiro que confessou os assassinatos. Era falta de parafuso, só.

▬ Então, não foi ele que matou os artistas?

▬ Já está soltinho por aí, belo-belo. Queria apenas aparecer na televisão. Pode?

Um choque para Petra.

▬ Marinalva, tem uns caixotes lá no quintal. Veja se as facas estão dentro deles.

▬ A gente não mexe naquilo há anos!

▬ Obedeça, mulher. Hei de encontrar as facas, mesmo se for para derrubar a casa.

 

                       NO TERRITÓRIO DOS PUNKS

Havia um grande quintal esburacado e três barracos de madeira. A porta de um estava aberta, de lá vinham sons de guitarra. Uma sombra indecisa projetou-se sobre o cimento. Ivo apareceu e ficou parado perto dum ralo. Sempre é mais difícil fazer que planejar, e no caso dum tiro pela culatra a equipe da tevê não estaria ali para protegê-lo.

Foi chegando à porta do barraco a passos curtos. Pelas janelas abertas da casa expandia-se um cheiro desagradável de restos de comida e em alguma parte uma criança chorava com a força de quem não pretendia parar logo. Se não tivesse dito à Renata que ia, teria desistido. Além do mais, sua intenção não era muito clara. Entrevistar punks, por quê? Apenas para apurar se tinham instintos homicidas? Ou por que já sentia a atração do perigo, ímã que puxou seu irmão para a morte?

A porta do barraco, espiou. Ivo viu três punks sentados sobre esteiras, um tocando guitarra. Dois usavam blusão de couro preto, outro apenas camiseta. Nenhum móvel. Tudo o que possuíam era a guitarra, as esteiras e uma moringa tosca. Como se vissem só o que lhes interessava, não tomaram conhecimento de Ivo na porta.

▬ Boa tarde! ▬ cumprimentou o repórter.

Um deles, mais alto, com seu blusão preto todo decorado com placas metálicas, levantou-se; o guitarrista, porém, tentando aperfeiçoar um acorde, continuou a tocar.

▬ O que quer, ó cara?

▬ Eu trabalho numa revista, Estamos aí, que vai ser lançada. Podia entrevistar vocês?

▬ Não estamos a fim, cara. Pode ir andando.

▬ Um momento. Sou da imprensa alternativa, fora do sistema. Também somos marginais, na profissão. Acho que se vocês dessem um plá, podíamos fazer uma boa matéria ▬ disse Ivo, usando uma linguagem que supunha ser a dos punks.

▬ Quem mandou você aqui? A gente não se liga nessas coisas.

▬ Foi um companheiro de vocês, que conheci num parque de diversões.  

▬ Quem? ▬ exigiu dessa vez o que continuava sentado na esteira, ao lado do guitarrista.

▬ Ele não disse o nome.

O mais alto não acreditou.

▬ Você está chutando, garoto. Nós queremos que a imprensa se dane. O que falou com você podia ser tudo, menos punk. Nenhum de nós pinta em parque de diversões. O que está pensando, piolho? Que somos fissurados em besteiras?

Ivo insistiu ainda:

▬ Na entrevista vocês podiam dizer tudo o que pensam das coisas. O que se levantara dirigiu-se para os outros dois:

▬ Estão interessados em dizer o que pensam das coisas?

Nenhum respondeu.

▬ E quanto à música? ▬ perguntou Ivo. ▬ Estão no rock pesado ou partiram para outra? ▬ E ao guitarrista: ▬ O que é isso que está tocando?

▬ Qualquer coisa ▬ respondeu o guitarrista.

▬ Vocês já gravaram? Minha, revista tem uma página só para sons.

▬ Não estamos nessa de vender discos ▬ disse o mais alto. ▬ É fajutagem. Agora pinica, que falamos até demais.

Ivo ia afastar-se, quando chegaram da rua um punk e uma punk, também com blusões pretos adornados com chapas metálicas. O rapaz trazia uma garrafa de vodca.

▬ Quem é o cara? ▬ perguntou a moça.

▬ Jornalista, quer entrevistar a gente. Mas já desistiu ▬ disse o mais alto.

▬ Eu conheço você ▬ disse a moça.

Não era lugar em que Ivo gostaria de ser reconhecido.

▬ Ele é da televisão ▬ lembrou-se a punk. ▬ Estava na casa dos velhos, quando ele apareceu entrevistando um camelô.

▬ Você não disse que era da tevê ▬ falou o mais alto. ▬ Qual é o babado?

Ivo testou uma saída.

▬ Eu não sou, apenas fiz um teste.

▬ Esse pessoal já pôs a gente em fria ▬ disse a moça. ▬ Acham que fomos nós que matamos aqueles caretas da televisão.

Ivo se sentiu empurrado e quando deu por si estava dentro do barraco, cercado pelos cinco punks.

▬ Quando Nina Flores morreu, a Mundial fez xaveco com a gente ▬ acusava o guitarrista. ▬ Eu e ele tivemos de ir à delegacia ▬ disse, referindo-se ao mais alto. ▬ Outros até levaram sopapos. Agora se aparecemos num bar, todo mundo se manda.

▬ A dona daqui anda cabreira e está querendo expulsar a gente ▬ acrescentou o que trouxera a vodca. ▬ Tudo por culpa da Mundial, que pichou os punks.

A moça fez uma suposição:

▬ Pode ser que ele seja espião mandado pela tevê.

▬ Leva jeito ▬ disse o guitarrista.

Ivo respirou fundo; seria pior se perdesse o controle.

▬ Ninguém me mandou. Não tenho nada com a tevê. Apenas queria fazer uma entrevista.

▬ O que a gente faz com ele? ▬ perguntou o mais alto. ▬ Não merece uns tabefes?

▬ É um mentiroso. Merece sim ▬ decidiu o guitarrista.

Ivo sentiu que o medo acabara e começava o pavor. Preferiu apanhar protestando.

▬ Podem me bater. Mas vocês serão expulsos daqui hoje mesmo. Vou pôr a boca no trombone. Irei aos jornais e às tevês. Vocês serão acusados até de coisas que não fizeram.

Alguns continuaram agressivos, prontos a atacar o repórter, mas a moça decidiu contemporizar.

▬ Calma, pessoal. O que ganhamos em machucar esse cara, com a Polícia de olho na gente? Por mim, deixava ele ir. Se a dona disto souber, nos azaramos.

▬ Ela tem razão ▬ disse o mais alto. ▬ Já entramos em muitas frias ultimamente. Pode ir saindo, piolho. Está com sorte. Por que não compra um bilhete de loteria?

Ivo não saiu, desmaterializou-se. Quando voltou à forma corporal, já estava na rua. "E se resolvessem me revistar e encontrassem minha identificação de repórter da Mundial?", pensou. “Acho que me matariam", concluiu. Mas não estava totalmente arrependido de ter ido à comunidade. Apesar das caras feias dos punks, tinha quase certeza agora de que esses não estavam envolvidos com os assassinatos.

                     UMA PISTA SUPERQUENTE

O pequeno fusca verde estacionou próximo à casa da presidenta da Liga. Dentro, um casal de namorados.

▬ O que espera ver aqui? ▬ perguntou Ivo à Renata.

▬ Nunca ouviu falar da famosa intuição feminina? Além disso, não podemos cruzar os braços apenas porque sua reportagem com os punks não deu certo. Temos de nos mexer. Veja! As sentinelas estão chegando para a reunião.

Duas senhoras desceram dum ônibus e dirigiram-se ao quartel-general da Liga. Uma chegou de táxi, e outra, dirigindo seu próprio carro. A mais chique, uma mulher loura, altíssima, chegou num Mercedes. Um motorista fardado abriu-lhe a porta.

▬ A diretoria já está completa?

▬ Não, outra vem vindo a pé.

▬ Deve morar nas vizinhanças.

Renata apertou o braço de Ivo com tanta força que até doeu.

▬ Essa eu conheço!

▬ A baixinha gorda?

▬ E Elisa Bastos! Eu a vi pela tevê!

▬ E quem é Elisa Bastos?

▬ Ela estava no parque de diversões quando mataram Nina.

▬ Fazendo o quê?

▬ Disse que era fã de Nina.

▬ Mas no que a presença dela no parque a compromete?

▬ Ivo, ela viajou no trem-fantasma ▬ assegurou Renata. ▬ E quando lhe perguntavam se conhecia Petra Santana, já que morava na Tijuca, respondeu que não. Era mentira! Ela é uma das diretoras da Liga!

▬ E agora?

▬ Vamos esperar que acabe a reunião e depois a seguiremos. Quero saber onde ela mora, sem recorrer à Polícia.

A reunião foi breve. Menos de uma hora depois de entrarem, as sentinelas deixaram o quartel-general. Renata pôs o carro em movimento e foi seguindo Elisa Bastos, a última a sair da casa de Petra. Ela dobrou a primeira esquina.

▬ Mas ela é tão dona-de-casa! ▬ disse Ivo.

▬ Seu próprio corpo é um disfarce.

Elisa entrou numa casa térrea, com jardim na frente, igual a outras da rua. Ivo anotou o endereço.

▬ E agora? ▬ perguntou.

▬ Você falou com os punks, eu falarei com ela.

▬ Pretende passar pelo quê? Vendedora de cosméticos?

▬ As vendedoras de cosméticos no geral têm o dobro de minha idade. Até amanhã invento uma.

▬ Pretende vir amanhã?

▬ Pretendo. Antes que Elisa Bastos mate mais um artista.

 

                         UMA IDÉIA ARRISCADA

Na Mundial, nenhum artista famoso relaxara as cautelas. Até o anão Jujuba, grande atração nos shows, deixou de circular muito pelos bares e restaurantes. Tais precauções estavam dando resultado, pois a próxima atração continuava sendo aguardada.

Ivo voltou ao apartamento, onde nunca tinha nada a fazer. Pegou o romance no criado-mudo.

O telefone.

▬ Sou eu: Renata. Acabo de bolar uma idéia. Vou apresentar-me à Elisa Bastos como se desejasse criar uma espécie de ala jovem da Liga. O que acha? Vai colar?

▬ Creio que sim, sua espertinha. Mas aconselho a não dar as costas para a tal Elisa, para que ela não lhe espete uma de suas facas domésticas.

▬ Tomarei todo cuidado, mais do que você tomou com os punks.

▬ A que horas vai?

▬ As dez da manhã. A gravação começará à tarde.

▬ Boa sorte.

▬ Beijo.

▬ Renata! Deixe-me cumprimentar a titia.

▬ Já foi dormir. Até.

                      DANIEL TEM UM SUSPEITO

Como sempre, o assunto eram os crimes na redação do telejornal. Todos tinham idéias, arriscavam palpite.

▬ Sei quem matou os colegas ▬ garantiu Daniel.

▬ Quem foi?

Daniel fez a pausa que ensinava a seus atores nos momentos de drama e suspense, e revelou:

▬ O Miranda. Matou para que o telejornal tenha mais audiência que as novelas.

Ivo, presente, por um triz não conta que ele e Renata estavam seguindo uma pista superquente, mas decidiu calar a boca. E saiu com a equipe para entrevistar o proprietário duma mansão, que resolvera trocar seus cães de guarda por um imponente leão.

 

                       RENATA E ELISA FRENTE A FRENTE

Uma empregada introduziu Renata na sala da casa modesta de Elisa Bastos. A sentinela, toda maternal em seus trajes caseiros, apareceu logo.

▬ Dona Elisa, desculpe-me por tomar seu tempo, mas é sobre a Liga.

▬ Para a Liga pode tomar-me o tempo que quiser. Sente-se, minha querida.

▬ Eu e minhas amigas admiramos muito o trabalho das sentinelas. É tão corajoso!

▬ Isso é raro, os jovens em sua maioria estão sempre contra nós. Eles que são as maiores vítimas da degeneração dos costumes!

▬ Mas nossas amigas não pensam assim, tanto que desejam colaborar.

▬ É ainda mais surpreendente!

▬ Inclusive, tivemos uma idéia: a criação duma ala jovem da Liga.

▬ Interessante ▬ admitiu Elisa Bastos. ▬ Uma ala jovem. Sangue novo na liga. Acho que nossa presidenta, Petra Santana, vai receber a sugestão com entusiasmo. Mas por que não a procuraram diretamente? Ela mora aqui perto.

Renata, embora não esperasse pela pergunta, respondeu em tom de confidência:

▬ Sabe, dona Elisa, disseram-me que a senhora é mais receptiva, mais... mais..., quero dizer, mais fácil de conversar.

Elisa sorriu e teceu considerações:

▬ Petra pode até assustar à primeira vista... Você sabe como são os líderes. Mas de uns dias para cá, até que anda meio cansada. Ontem, na reunião, falou até em afastar-se da presidência por algum tempo. Eu, como vice, assumiria. Porém, com ela na presidência, ou comigo, sua sugestão será estudada e provavelmente aceita.

▬ É o que desejamos: colaborar.

▬ Escreva então o seu projeto. Petra gosta das coisas objetivas. E muito em breve terá nossa resposta.

▬ Isso era tudo ▬ concluiu Renata, já convencida de que a entrevista fora inútil.

▬ Mas ainda não disse seu nome.

▬ Dinorá ▬ respondeu Renata. ▬ Pode me chamar de Dina.

▬ Tem ouvido falar muito de nossa Liga?

▬ Tenho, inclusive através de pessoas que a combatem. Há gente muito maldosa. Quiseram até implicar as sentinelas nesses crimes da tevê. A senhora certamente sabe disso.

Com a mesma naturalidade e voz macia, Elisa Bastos confirmou.

▬ Sabemos, sim, mas nada abateu nossas convicções. Na verdade, nem tomamos conhecimento dessas calúnias.

▬ É verdade que dona Petra foi até intimada a comparecer à Polícia?

▬ Isso não aconteceu. A Polícia reconheceu o ridículo dessas suspeitas. O doutor Reis, encarregado de esclarecer os homicídios, tem por Petra uma grande admiração. Bem, está na hora do meu almoço. Aceita almoçar comigo?

Renata sentiu um cheiro bom e quente de bolinhos de bacalhau.

Uma mulher que matou quatro pessoas seria ao mesmo tempo ótima cozinheira e dona-de-casa?

▬ Fica para outro dia ▬ respondeu a falsa Dinorá, já saindo. Mas deteve-se à porta ao olhar para o chão, atraída por alguma coisa. Uma guitarra elétrica. ▬ Alguém toca em sua casa?

▬ Um sobrinho meu, que morava comigo. Amava esse instrumento.

▬ Não toca mais?

▬ Adoeceu e está internado. Acho que foi por causa dele que me tornei uma sentinela. Essas coisas do mundo moderno... Bem, não se esqueça de fazer o projeto e de trazê-lo aqui.

 

                         MAIS INFORMAÇÕES: O DA GUITARRA

Renata foi para o carro, entrou, mas não deu a partida. O que teria acontecido ao sobrinho de dona Elisa? Ligou o motor. A porta da casa da sentinela abriu-se e a empregada, com uma cesta, foi até a esquina, onde havia um armazém. Momentos depois, estacionava lá o fusca verde e Renata entrava no estabelecimento.

▬ Que cabeça a minha! ▬ disse ela à empregada. ▬ Esqueci de perguntar à dona Elisa o nome do sobrinho dela.

▬ Ela lhe falou dele? ▬ admirou-se a empregada. ▬ Sempre faz tanto mistério sobre Antenor.

▬ Ele está muito doente, não?

▬ Dona Elisa disse que ele está internado em Jacarepaguá?

▬ Disse, mas por que o segredo?

▬ O rapaz viciou-se em drogas ▬ respondeu a empregada em voz baixa. ▬ Para uma sentinela não é bom que se saiba disso. Creio que até dona Petra ignora.

Faltava uma pergunta:

▬ Em que hospital de Jacarepaguá Antenor está internado?

▬ No São Mateus, mas, por favor, não diga à dona Elisa que lhe disse. Nem sei o que faria comigo.

▬ Não se preocupe, não direi nada.

 

                       NA PISTA DO PUNK

Ivo esperou Renata no bar-restaurante da emissora. Ela não demorou.

▬ Esteve lá?

Renata sentou-se; seus olhos brilhavam.

▬ A pista é superquente.

▬ Acha que a gorducha baixinha é a pessoa?

▬ Ela não, mas talvez um sobrinho dela, Antenor, um guitarrista que de tanto tomar drogas ficou biruta e está internado num hospital de Jacarepaguá, o São Mateus. Quem me contou tudo isso foi a empregada, que segui até o armazém, logo depois de sair da casa de Elisa.

▬ Quem sabe seja o punk que procuramos.

▬ Pode ser ▬ disse Renata. ▬ Só lamento não poder ir ao hospital nem hoje nem amanhã. Temos muitos capítulos para gravar.

Ivo nem pensou para responder.

▬ Eu vou, amanhã cedo. Acho que estamos chegando lá.

▬ Estamos, sim, Ivo. Esse hospital deve ser apenas um refúgio para o tal Antenor. O lugar onde representa o papel de doido.

 

                            ISSO TERIA ALGUMA COISA A VER COM A HISTÓRIA?

Ivo entrou na quitinete e foi direto para o banheiro; era uma daquelas noites de calor do Rio. Ficou um tempo enorme sob o chuveiro, pensando na visita que faria ao hospital na manhã seguinte. Seria aquela a pista fatal que seu irmão seguira? Ou há pistas diferentes, que acabariam se encontrando?

Saiu do banheiro e deitou-se na cama. Para passar o tempo, resolveu ler. Abriu a gaveta do criado-mudo e tateou buscando o romance policial.

Não encontrou. Abriu a gaveta toda: nada. Foi procurar o livro na estante. Não estava lá. Teria caído atrás do criando-mudo? Não.

Depois de remexer o apartamento todo, pegou o interfone: portaria.

▬ Por favor, entrou alguém no meu apartamento hoje?

▬ A porta está forçada?

▬ Um momento, vou ver. ▬ Ivo foi à porta, examinou-a, e voltou ao interfone: ▬ Não forçaram.

▬ Mas desapareceu alguma coisa?

▬ Um livro.

▬ O senhor deve ter emprestado a alguém.

Ivo sabia que não, mas respondeu:

▬ Pode ser, obrigado. ▬ Tornou a procurar o livro com mais calma. Inútil. Ligou para Renata: ▬ É o Ivo. Desapareceu um livro do meu criado-mudo.

▬ Só por isso é que está nervoso?

▬ Justamente o romance que Paulo estava lendo.

▬ Deu uma olhada geral em tudo?

▬ Cansei de procurar.

▬ E o que mais desapareceu?

▬ Apenas o livro.

▬ Ninguém entraria num apartamento para pegar um livro. Nossos ladrões ainda não atingiram esse nível cultural.

▬ É justamente o que estranho.

▬ Leia outro livro. O importante é o que você vai fazer amanhã.

Na manhã seguinte, quando Ivo ia à Mundial, o porteiro perguntou:

▬ Encontrou o livro?

▬ Não, e também não emprestei a ninguém.

▬ Garanto que nenhum estranho passou aqui pela portaria.

▬ Pode ter entrado pela garagem e subido pelo elevador de serviço.

▬ Impossível ▬ informou o porteiro. ▬ Pusemos fechadura no elevador da garagem. Sem chave ninguém sobe.

Isso não explicava; complicava, mas Ivo não dispunha de tempo para pensar nisso.

 

                           O SANATÓRIO

Não era hospital, a tabuleta dizia Sanatório São Mateus, um casarão pintado de branco, situado numa rua tranqüila. Ivo subiu um lance de escadas de mármore e foi entrando. No alto, empurrou uma porta e deparou com uma enfermeira.

▬ Vim visitar um amigo ▬ disse. ▬ Chama-se Antenor.

▬ Hoje não é dia de visitas. Apenas às quintas e domingos.

▬ Acontece que estou de passagem pelo Rio e viajo hoje mesmo.

▬ Acompanhe-me. Se a diretora permitir, tudo bem.

Ivo seguiu a enfermeira por um extenso corredor acarpetado e entraram numa sala. A diretora, uma cinqüentona simpática, assinava papéis, sentada a uma escrivaninha.

▬ Este rapaz veio visitar o Antenor ▬ disse a enfermeira. ▬ Ele está de passagem pelo Rio.

A diretora dirigiu-se à enfermeira:

▬ Como ele está hoje?

▬ Continua na mesma, doutora.

▬ É um caso difícil ▬ disse a diretora. ▬ O senhor pode entrar, mas, por favor, não demore nem lhe faça muitas perguntas. Antenor precisa de repouso quase absoluto. Qualquer coisa o irrita.

Ivo fez a primeira pergunta:

▬ Há quanto tempo ele está internado?

▬ Seis meses, e não apresentou ainda nenhuma melhora.

O primeiro crime dera-se há quatro meses.

▬ Nesse tempo ele nunca saiu do hospital?

▬ Duas vezes, uma delas no Natal ▬ respondeu a diretora. ▬ Não faz a mínima questão. Na primeira vez, saiu de manhã e voltou à tarde. Apesar de tudo parece que se sente melhor aqui do que em sua própria casa. Ester, pode acompanhá-lo. ▬ E acrescentou para Ivo: ▬ Não se surpreenda de ele não o reconhecer. E como se estivesse envolto numa névoa.

A enfermeira conduziu Ivo através de outro corredor, que levava a um enorme salão, onde alguns internados, de ambos os sexos, assistiam à televisão ou jogavam damas e dominó, num ambiente limpo e sossegado como o dum colégio em férias. Havia também uma tela para exibição de filmes, uma mesa de pingue-pongue e outra de sinuca.

▬ Ele está lá ▬ disse a enfermeira, apontando uma mesa perto duma janela.

Antenor, sentado, olhava fixamente as pedras de dominó, como se disputasse uma partida com um parceiro invisível ou pretendesse movê-las pela força mental. Seu aspecto geral não era no entanto dum demente; apenas sua imobilidade acusava essa condição.

▬ Ele é violento? ▬ perguntou Ivo à enfermeira.

▬ Antenor? E o mais calmo de todos. A doença para ele é isso que está vendo. Fica o dia todo assim, olhando para as pedras de dominó, para a tela ou para as paredes. Desligou-se do mundo.

Ivo aproximou-se, ficando ao lado de sua mesa.

▬ Como vai? ▬ perguntou.

O doente moveu o rosto lentamente na direção de Ivo e, sem esboçar a menor reação, voltou, também devagar, a focalizar as pedras.

▬ Quer jogar dominó? ▬ disse Ivo. ▬ Eu sei.

Nenhuma resposta.

▬ Além de dominó, o que gosta de jogar? Também jogo damas. Acho mais interessante.

O sobrinho de dona Elisa continuou mudo; não demonstrava nenhuma animosidade, apenas ignorava que Ivo estivesse ali. Ivo pegou uma cadeira e sentou-se também à mesa. Podia, assim, ver Antenor de frente. Era um moço de feições regulares, harmoniosas, sem nenhum traço físico da loucura. O corpo estava ali, porém o espírito viajara. Para onde?

▬ Não tem saudade dos amigos? Você deve ter tido muitos. Vamos. Não quer mesmo jogar?

Outro interno, um homem de meia-idade, chegou-se à mesa.

▬ Vai ser difícil fazê-lo falar. Às vezes fica assim semanas.

▬ Nunca recebe visitas?

▬ Apenas duma tia.

▬ Ele não assiste à televisão, não lê jornais?

▬ Nunca. Parece que gosta de banhos frios. Costuma ficar uma hora sob o chuveiro. Gosta também de seguir o vôo dos pássaros no jardim. Acho que é tudo.

Ivo dirigiu-se outra vez a Antenor:

▬ Gostaria de receber sua guitarra? ▬ Pausa. ▬ Você tem uma, lembra-se dela?

Quem falou foi o outro interno.

▬ A guitarra já esteve aqui, ele nem ligou.

▬ Não imaginava que estivesse assim ▬ disse Ivo. ▬ Foram mesmo as drogas?

▬ Parece que ele recebeu um choque muito grande. Que algo se partiu por dentro.

Ivo se lembrou de perguntar:

▬ Ele andava metido com punks!

▬ Quando chegou aqui tinha os cabelos raspados, mais ou menos como um punk, mas não sei se viveu entre eles.

Ivo percebeu que a enfermeira se aproximava, dando fim à visita.

Despediu-se do companheiro de Antenor e acompanhou-a até a porta de saída. O enigma continuava, mas não era isso que o deprimia. Acreditava que custaria a esquecer aquele corpo à espera duma alma, que, por ter ido muito longe, não conseguia mais voltar para casa.

 

                           OUTRA VEZ: O LIVRO

Numa lanchonete, próxima da Mundial, Ivo contou a Renata detalhadamente o resultado de sua visita ao Sanatório São Mateus. Continuava impressionado com o estado de Antenor. Jamais vira alguém assim.

▬ Ele não estaria fingindo?

▬ Ninguém viveria tão bem um papel. Aquele moço está muito doente. Devemos esquecê-lo. Seguimos mais uma pista errada.

▬ Está certo, pode ser que Antenor esteja gravemente enfermo, mas o que Elisa Bastos foi fazer no parque de diversões e por que disse que não conhecia Petra Santana?

▬ Eu não sei ▬ respondeu Ivo, irritado. ▬ Não sou desses detetives de filmes enlatados, que sabem tudo.

▬ Você está querendo desistir?

▬ Renata, nós continuamos no mesmo lugar! Todas as nossas pistas são furadas! Não é para desanimar? E como estou me sentindo, desanimado. Um enigma difícil demais para nós. Nem a Polícia consegue nada!

Renata interrompeu a mordida que dava num sanduíche.

▬ Se quer desistir, desista. Eu continuo sozinha!

A primeira briga dos dois.

▬ Quer saber duma coisa? ▬ disse Ivo. ▬ Estou muito mais preocupado com o livro.

▬ Que livro?

▬ O que foi roubado de meu apartamento, porque foi roubo, sim.

O tema para Renata era uma fuga. Que importância tinha o sumiço dum romanceco policial?

▬ Quem limpa o apartamento? Não há uma faxineira?

Todos os sentidos de Ivo ficaram acesos, como nas novelas, quando acontece alguma coisa decisiva e logo colocam um acorde musical para realçar. O tal: tam-tam-tam-tam.

▬ Faxineira? Como não havia pensado nisso? Há uma faxineira sim. E é a única pessoa que entra no apartamento. Renata, desculpe, mas tenho de ir. Preciso falar com o porteiro.

Uma pergunta angustiada:

▬ Vai desistir ou vai continuar?

▬ Eu nunca a deixaria sozinha nisso - garantiu Ivo.

 

                       A ANALFABETA QUE LÊ ROMANCES

O porteiro dormitava sobre o balcão da portaria.

▬ Preciso falar com o senhor ▬ disse Ivo. ▬ Sobre o livro. Há uma pessoa que poderia ter roubado. A faxineira.

▬ Não pode ser. Rosa é semi-analfabeta. Nunca leria um livro.

▬ Pode ter tirado para dar de presente a alguma pessoa.

▬ Mesmo nisso não acredito, mas vou falar com ela. Acho que ainda está limpando algum apartamento.

▬ Ivo subiu para a quitinete. Às tantas, arrependido do desânimo que mostrara à Renata, telefonou para seu apartamento. Sabia que não a encontraria, ela estava na emissora, mas deixaria recado para que lhe telefonasse. Não deu certo. O telefone tocava, tocava, tocava, e ninguém atendia. A tia tinha saído.

O interfone:

▬ É Manuel, o porteiro. Falei com a Rosa.

▬ Falou?

▬ Confirmado: ela que pegou o livro.

▬ Para que, se mal sabe ler?

▬ Não disse, mas ficou de devolver amanhã.

▬ Devolve mesmo?

▬ Pode confiar, ela é séria.

Durante o resto da tarde, Ivo tornou a ligar mais três vezes para o apartamento de Renata. Nada. "Uma velha doente que não pára em casa!", estranhou Ivo. Mas logo após o telejornal das dezenove horas Renata ligou. Como era bom ouvir sua voz, ainda mais porque dizia:

▬ Vamos dar um giro esta noite?

▬ Estava farto desta quitinete! Se não telefonasse, me atirava pela janela!

▬ Passo em meia hora. Até.

 

                 FÃ DE PETRA SANTANA?

Ivo entrou no carro de Renata felicíssimo e beijou-a.

▬ Estou doido para refrescar a cabeça! Aquela ida ao sanatório foi barra.

▬ E o livro?

▬ Acertou em cheio, gata!

▬ Estava com a faxineira?

▬ Ela devolve amanhã.

▬ Alguma ex-professora?

▬ O porteiro disse que não lê nem anúncio.

▬ Então por que afanou o livro?

▬ Sei lá! Mas que eu estava encucado, estava.

▬ E por causa do clima de mistério que a gente está vivendo ▬ disse Renata, pondo o carro em movimento. ▬ Há uma boa peça de teatro na praça. Vamos conferir?

▬ Toque, mas como vai a velha, sua tia? Telefonei uma penca de vezes para o apartamento e ninguém atendeu.

▬ Estava no apartamento da vizinha. ▬ E confidenciou: ▬ Uma fã de Petra Santana.

 

               FALTAVA UM DETETIVE PARTICULAR?

               AGORA JÁ TEM

 

O teatro foi excelente higiene mental; a peça, além de provocar o riso, provocava sede também, sua vantagem extra. Depois de percorrerem toda a praia, com os bares lotados, encontraram uma mesa vaga. O assunto de sempre foi logo lembrado.

▬ Qual vai ser nosso próximo passo?

▬ Sei lá! Esperar talvez que o acaso colabore. Sabe, acho que foi o que aconteceu com Paulo. Para mim, ele não partiu de investigação alguma. Apenas deu um esbarrão na pista certa e gritou: Eureca! O azar dele, aliás. Se não tivesse descoberto nada, ainda estaria vivo.

Uma dessas lembranças que podem estragar um passeio. Renata sentiu isso.

▬ Não vamos falar dos crimes hoje ▬ disse Renata. ▬ Merecemos um repouso. Ah! ▬ exclamou para iniciar novo assunto. ▬ Tenho uma coisa para lhe contar. Espero que não se zangue. Você vai compreender...

Ivo concentrou-se, todo atenção.

▬ O que é? Você tem outro namorado? E isso?

▬ Calminha, Ivo. E mude de cara já, do contrário não falo.

▬ Algum problema na tevê?

Uma pessoa que ia passando às pressas na rua, reconheceu Ivo e parou diante da mesa. Era Djalma, sem lágrimas, mas ainda descontrolado. Apertou a mão dos dois, entrando imediatamente no seu único assunto.

▬ Agora a gente pega o assassino ▬ disse.

▬ Agora, por quê? ▬ perguntou Ivo, ansioso.

▬ Vou contratar um detetive particular. Há um excelente, um tal de Fagundes, o melhor do Rio. Marquei uma entrevista para amanhã.

Renata, que sabia da fama desse detetive, comentou:

▬ Ele vai cobrar uma nota.

▬ Pago o que ele pedir ▬ respondeu Djalma prontamente. ▬ É a única possibilidade, porque na Polícia não confio mesmo.

▬ Gostaria que me mantivesse informado de tudo, Djalma.

▬ Telefonarei a você ▬ disse Djalma, despedindo-se e afastando-se com a mesma pressa.

Ivo e Renata olharam-se.

▬ Parece que está ficando louco! ▬ observou a moça.

▬ Ele dá essa impressão, mas quem sabe esteja no caminho certo. Nosso problema é enigma para profissionais.

E voltando a falar dos crimes esqueceram da revelação que Renata ia fazer.

 

                       NEM EU, QUE ESCREVI ESTE LIVRO,

                       ESPERAVA POR ESTA

A líder das sentinelas virou o copo: dose dupla de calmante. As duas facas mostradas na televisão, com as quais haviam matado Fábio Rocha e Nina Flores, eram iguais, iguaizinhas às que haviam desaparecido do faqueiro. Era cada vez mais evidente que uma das sentinelas, levando longe demais os objetivos da entidade, decidira acabar com o pecado exterminando os pecadores.

"Vou enlouquecer", Petra Santana avisou a si mesma. "Desse momento em diante serei uma desvairada."

Marinalva entrou na sala.

▬ Dona Ismênia telefonou quando a senhora saiu.

▬ O que queria?

▬ O endereço do eletricista.

▬ Devo ter anotado, vou procurar.

No minuto seguinte, Petra se lembrava; não do endereço, mas da única pessoa estranha ▬ como fora esquecer? ▬ que estivera em sua casa nos últimos tempos: o eletricista.

▬ A senhora está se sentindo mal? Quer que prepare um chá?

 

                     O LIVRO DE PAULO DEVOLVIDO.

                     DEVOLVIDO?

Ivo entrou na quitinete. A gaveta do criado-mudo aberta um dedo. Enfiou a mão e retirou um livro. Devolvido, ainda bem. Tirou a roupa, tomou banho, ligou o televisor e deitou-se com os olhos no vídeo. Luciana Rios e Milton Brás viviam uma cena de amor que terminava em beijo. Petra estaria cronometrando? Desinteressado, pegou o romance no criado-mudo. Não chegou a ler meia página e correu para o interfone.

▬ Seu Manuel!

▬ O que manda?

▬ A faxineira devolveu o livro errado.

▬ O que ela devolveu não era o seu?

▬ Pertencem à mesma coleção, mas não é o meu.

▬ Deixe para mim. Torno a falar com ela.

Ivo desligou o interfone, irritado. Para desanuviar, telefonou para o apartamento de Renata. Ninguém atendeu. A tia devia estar na vizinha, a admiradora de Petra Santana. Folheou o livro. No lugar de O correio da morte, a faxineira devolvera A safra vermelha. Um dia levaria o televisor emprestado e devolveria um radiotransistor.

O telefone. Ivo correu, podia ser Renata.

▬ Ivo?

▬ Quem é?

▬ Djalma.

▬ Ah, você! Alguma novidade?

▬ Contratei o detetive, o Fagundes. Fiquei bem impressionado. O homem tem uma grande folha de serviço. E não vai explorar, não. Como as vítimas foram artistas famosos, a badalação em torno de seu nome será enorme. Aí, então, encherá os bolsos de dinheiro.

▬ Ele acha que pode esclarecer tudo?

▬ Deu certeza. Mas vai começar do começo. Destrinchando caso por caso. Por isso, vai procurar você.

▬ Não tenho muito a dizer, mas pode procurar. E quanto a você, mais aliviado?

▬ Graças a Deus. Agora estamos no caminho certo. Boa noite, Ivo.

Mas não foi uma boa noite. Ivo continuava irritado com a faxineira, que parecia brincar com ele. E a revelação de Renata, interrompida, voltava-lhe à cabeça, cheia de pontos de interrogação. Enquanto Djalma esfalfava-se em agarrar o criminoso, observou, ele deixava dominar-se por uma paixão. O que ela teria para lhe contar?

 

                   O ELETRICISTA MISTERIOSO

Petra tinha um mal: nunca anotava ou mesmo perguntava o nome das pessoas que lhe prestavam serviço. Sabia o nome do encanador? Não. O do cortineiro? Não. O do antenista? Não. Mas esses eram estabelecidos, gente do bairro, com endereço e telefone. O eletricista era outro caso, jamais o vira antes. Lembrou-se de que ele dissera, ao despedir-se:

▬ Como estou de mudança, telefono depois para deixar o novo endereço.

Mas como ele aparecera? Nem disso Petra se lembrava. Perguntou à Marinalva:

▬ Como foi que apareceu o eletricista? Nós o chamamos?

▬ Não, ele bateu à porta. Apresentou-se como encanador, técnico de aparelhos domésticos e não sei o que mais. A senhora ouviu e lembrou que precisávamos dum eletricista. Tínhamos tido um curto-circuito. Mas não aconselho mandá-lo à dona Ismênia. Ele deixou uma porção de fios soltos.

▬ Disse o nome?

▬ Disso não lembro.

Petra fez um esforço para visualizar o eletricista, mas sua memória apenas captou uma cabeleira vermelha.

 

                   ACREDITAM EM CARTOMANTES?

Ivo deu outra espremida no porteiro.

▬ Falou com a faxineira?

▬ Falei, ela vai devolver.

▬ Quando?

▬ Hoje não vai dar. Mandou uma mulher dizer que está doente.

Ivo seguiu para a Mundial e de lá para o Engenho de Dentro

com a equipe, a fim de entrevistar Tia Tutu, a mais antiga cartomante da cidade. A veteraníssima profissional espalhou as cartas sobre uma toalha axadrezada. Luz vermelha na câmera ▬ ação!

▬ Vou tirar sua sorte, garoto. Corte. ▬ Ivo dividiu o baralho em montinhos. Tia Tutu tornou a espalhá-las. Com uma piscada marota, adivinhou: ▬ Você anda caído por uma linda mocinha. Eu a estou vendo aqui. Tem bom gosto. Como ela se chama?

▬ Marcela ▬ inventou Ivo.

▬ Ela mesma! ▬ garantiu Tutu. ▬ Acertei?

▬ Em cima.

▬ Você vai fazer uma bela carreira... Mas tem um mas aqui.

▬ Que mas? ▬ perguntou Ivo, representando, como se estivesse preocupado.

▬ Olho aberto, rapaz! Tenha receio da própria sombra. Você está correndo um grande risco ▬ disse Tia Tutu, apontando sobre a mesa um feio ás de espadas. ▬ Saia dessa ontem. Ainda é moço para se azarar. Falei.

▬ Chega! ▬ disse o chefe da equipe. ▬ Esteve ótimo, Ivo. Que cara de medo! Milton Brás não faria melhor.

 

                   RENATA, SÓ UM POUCO

Ivo e Renata cruzaram-se no corredor da Mundial.

▬ E o livro?

▬ A faxineira não devolveu ainda. Estou com uma pulga atrás da orelha.

▬ Não coce, que é pior.

Ela parecia com pressa, Ivo segurou-a.

▬ Conte-me agora aquilo. Outro dia você ia me dizer qualquer coisa importante.

▬ Ah, sim, ia.

▬ O que era?

Um homem alto e magríssimo aproximou-se dos dois.

▬ A senhorita é Renata Rocha?

▬ Sou.

▬ Eu sou o detetive Fagundes. Podia me ceder uma horinha?

Renata dirigiu-se a Ivo.

▬ Amanhã a gente conversa.

 

                     A SENHORA FICOU SATISFEITA COM MEU TRABALHO?

Petra estava sozinha na sala quando tocou o telefone. As sentinelas costumavam ligar à noite, após a programação, para comentar cenas impróprias que haviam assistido na tevê.

▬ Dona Petra?

▬ Sim.

▬ Aqui é o eletricista.

A líder levou um susto; despencou numa cadeira.

▬ O eletricista...

▬ A senhora ficou satisfeita com meu trabalho?

Respiração forte, tentativa de recuperar a calma.

▬ Sinceramente, não. O senhor deixou um mundo de fios soltos.

▬ Coisas que acontecem quando se faz tudo num só dia. Passarei aí para colocar tudo no lugar. Quero que tenha boa impressão minha. Boa noite.

▬ Um momento. Uma amiga minha está precisando de eletricista. Podia dar seu nome e telefone?

▬ Infelizmente ainda não me estabeleci no bairro. Não tenho telefone nem para recados. Mas ligarei assim que for possível ▬ concluiu num ritmo apressado.

▬ Não desligue ainda. Há uma coisa. Ouça.

▬ Pois não.

▬ Nesta casa nunca entram estranhos. No entanto, três facas desapareceram do meu faqueiro após a sua vinda.

O eletricista fez uma pausa maior que o tempo gasto por Petra para fazer sua acusação.

▬ A senhora está dizendo que roubei suas facas?

▬ E tem algo ainda mais grave ▬ disse a sentinela-mor. ▬ Vi duas daquelas facas na televisão, exibidas por um delegado, o doutor Reis.

▬ Se sabe onde as facas estão, por que não vai buscá-las? ▬ perguntou, admirado, o eletricista.

▬ Porque elas constam duma investigação policial.

▬ Não estou entendendo nada, dona Petra.

▬ Certamente ouviu falar do assassinato dos artistas da tevê. Pois bem, minhas facas foram usadas para matá-los.

▬ Mas há tantas facas iguais!

▬ Como as do meu faqueiro, não.

▬ O que está querendo dizer, afinal! Que matei os atores com suas facas? Por que faria isso?

▬ O porquê a Polícia dirá quando apanhá-lo. Lembro-me bem do seu rosto ▬ mentiu.

▬ Curioso! ▬ exclamou o eletricista. ▬ A senhora preside uma Liga que odeia os atores e acusa um modesto eletricista de matá-los.

▬ Combatemos os maus costumes, mas não somos assassinas.

▬ No seu lugar, dona Petra, calaria a boca. Se eu fosse o criminoso seria fácil envolvê-la nisso, já que as armas são suas. Bastaria dizer que me pagaram para matar. Que foi um serviço encomendado pela Liga. Aliás, não é de seu bairro que partem as tais mensagens?

Petra ouviu passos no corredor. Não queria prosseguir aquela conversa diante de Marinalva. Desligou.

 

                   PROCURANDO ROSA

Antes de ir ao trabalho, Ivo parou na portaria.

▬ A faxineira veio?

▬ Não.

▬ Mandou algum recado?

▬ Não mandou.

Como não tinha reportagem para fazer aquela manhã, perguntou:

▬ Sabe o endereço dela?

O porteiro abriu um caderno e anotou o endereço da faxineira num papel.

▬ Rosa mora no bairro de Fátima.

O repórter apanhou um táxi que passava. Gastar dinheiro e tempo para recuperar um romance policial velho, com a capa rota e os cadernos soltos, podia parecer ridículo, mas havia algum mistério naquilo. Admitia que Rosa podia estar doente, o que não a teria impedido de devolver o livro através da pessoa que levara o recado. Além disso, se não conseguia solucionar esse pequeno enigma, como pensar no mistério do assassinato dos atores e de seu irmão?

Chegou à rua estreita e sem calçamento onde Rosa morava. Parou diante dum casarão de aspecto ainda pior que a residência dos punks. Não dispensou o táxi, entrando com passos rápidos por um portão escancarado. Uma mulher lavava roupa num tanque.

▬ Conhece dona Rosa?

A lavadeira respondeu sem interromper o trabalho.

▬ Conheço.

▬ Qual é o quarto dela?

▬ Era o primeiro, à direita.

▬ Disse... era?

▬ Mudou ontem à noitinha.

▬ Para onde?

▬ Que eu saiba, não disse para ninguém.

▬ Estava doente? Ontem ela não foi trabalhar.

▬ Esteve o dia todo ocupada com a mudança ▬ disse a mulher com os olhos nas peças de roupa que lavava.

Ivo foi dar uma espiada no quarto que Rosa ocupara. Só viu uma garrafa vazia de cerveja num canto. A lavadeira surgiu ao seu lado.

▬ Ela nem chegou a ligar a geladeira. ▬ Tinha comprado uma geladeira?

▬ E um televisor também. Não sei onde arranjou dinheiro para isso, ganhava tão pouco!

                       A CORRIDA ATRÁS DUM LIVRO VELHO

Ivo mandou parar o táxi diante da livraria de livros usados onde estivera com Renata e pagou o motorista.

O proprietário reconheceu-o imediatamente.

▬ Como vai indo na televisão?

▬ Muito bem.

▬ Suas reportagens são ótimas. Gostei daquela do homem que substituiu seu cão de guarda por um leão. É você quem descobre essa gente?

▬ Não, é a produção do telejornal.

▬ Procura algum livro?

▬ Sim, um romance policial dos bem antigos.

▬ Tenho centenas deles. Qual é o título?

▬ O correio da morte, de Douglas Irish.

O livreiro balançou a cabeça.

▬ Ah, esse não tenho. Mas já tive. Não teria vendido a seu irmão?

▬ Ele tinha um exemplar, mas não cheguei a ler. Dizem que é ótimo.

▬ Eu li o livro. É dos bons.

▬ Qual é o tema?

▬ Era sobre... ▬ o livreiro franziu a testa mas não lembrou. ▬ Não recordo. Livro policial é assim, a gente lê e esquece.

▬ Há outros sebos por aqui?

▬ Tenho uma lista deles e vou lhe dar uma cópia. Nós, que trabalhamos com livros usados, ajudamos uns aos outros. Entre nós não há concorrência, somos todos amigos. Os sebos dariam uma boa matéria para a televisão. Aqui está a lista. Há dois outros aqui pertinho.

Ivo andou cem metros e entrou noutro sebo.

▬ Tem O correio da morte, um policial?

O livreiro, um homem que usava um guarda-pó, riu.

▬ O correio da morte...

▬ Tem ou não tem? ▬ perguntou Ivo ansioso.

▬ Estou rindo porque tivemos um exemplar durante anos e ninguém procurou. E, agora, na mesma semana, duas pessoas o procuram. Será que vão adaptar o livro para a televisão?

▬ É curioso mesmo. Quem comprou o exemplar?

▬ Quem? Na minha idade a gente esquece a própria cara. De manhã, quando me olho no espelho, sempre digo: eu conheço esse homem, mas não sei donde.

Ivo tomou a decisão: correr todos os sebos da lista até encontrar O correio da morte. Tarefa dura, porque alguns eram distantes. Foi em frente. Num deles, no centro da cidade, o livreiro conhecia o romance, porém não o tinha no estoque. Outro só negociava com livros de não-ficção. Um, mais amplo e sofisticado, dedicava-se somente a álbuns e livros de arte. Havia um exclusivo para raridades editoriais. Depois desse, Ivo entrou num sebo pequeno e desordenado. Perguntou ao livreiro:

▬ O senhor tem O correio da morte?

▬ Vendi o último exemplar esta semana.

▬ Tenho um amigo que também o procura. Lembra-se do comprador?

▬ Lembro, porque ele me ajudou a procurar o livro.

▬ Como ele era?

▬ Era um cara de óculos pequenos. Mas o mais engraçado nele era a cabeleira, toda vermelha. São raros os tipos de cabelos vermelhos, não?

Ivo não parou por aí. Foi a mais outros sebos, até o último da lista, que, além de livros, vendia revistas velhas, reunidas numa montanha. Os interessados a escalavam apaixonadamente, pisando em edições históricas de A Cena Muda, Radiolândia, A Cigarra, Revista do Rádio, A Noite Ilustrada e O Cruzeiro.

Cansado, Ivo perguntou ao livreiro:

▬ Tem O correio da morte?

▬ Tinha um exemplar, vendi ontem.

▬ Aposto que conheço a pessoa que o comprou ▬ disse Ivo. ▬ Não seria um homem de cabeleira vermelha?

▬ Isso mesmo ▬ concordou o negociante. ▬ E usava óculos minúsculos.

▬ O senhor o conhecia?

▬ Não, freguês novo.

Ivo pediu auxílio ao livreiro.

▬ Percorri todos os sebos desta lista e não encontrei esse livro. O que eu faço?

▬ E uma edição antiga, quase raridade. Não vai encontrá-lo, a não ser...

▬ ... a não ser o quê?

▬ Que o encontre na Biblioteca Nacional.

 

                     A ÚLTIMA POSSIBILIDADE

Ivo, que nunca esteve na Biblioteca Nacional, atrapalhou-se na consulta do seu vasto e complicado arquivo. Um funcionário prontificou-se a ajudá-lo na procura.

▬ O sobrenome do autor? Irish. Autor de romances policiais.

▬ Irish, Irish, Irish, Irish... Seria Douglas Irish?

▬ Esse mesmo! ▬ exclamou Ivo vitorioso.

▬ Temos um romance dele. Aliás, o único.

▬ Como se chama?

▬ Sangue no asfalto. É o que procura?

Ivo sacudiu a cabeça.

▬ Não.

▬ Por que não vai aos sebos?

                  O OVO SERIA MESMO O DE COLOMBO?

Ivo e Renata encontraram-se no bar-restaurante da emissora. Ele, cansado de correr atrás do livro; ela, cansada do trabalho.

▬ Sabe que aquele detetive ficou duas horas me interrogando?

▬ Ah, o tal de Fagundes! Que tal é ele?

▬ Um chato de galocha. Minucioso demais. Mas parece bom. E você, o que fez? Está com cara de quem atravessou um deserto.

▬ Renata, acho que encontrei uma pista.

▬ Uma pista? Por favor, me conte.

Ivo contou tudo, desde sua ida ao casarão da faxineira à procura do livro na Biblioteca, dando ênfase especial ao homem da cabeleira vermelha.

▬ Não entendi muito bem ▬ disse ela. ▬ Por que insiste em encontrar esse livro?

▬ É o romance que encontrei no criado-mudo, certamente o que Paulo lia ou tinha acabado de ler.

▬ E que significado tem isso?

▬ Bem, ele só passou a ter um significado para mim quando a tal Rosa, a faxineira, desapareceu depois de ter ganho dinheiro para comprar uma geladeira e um televisor em cores.

▬ Mas por que esse livro é tão importante para o criminoso?

▬ Ele quer impedir que eu o leia.

▬ Por quê?

▬ Aí está, minha teoria nasceu de alguns por quês. Por que o punk tentou entrar em meu apartamento? Por que o livro desapareceu do criado-mudo? Por que devolveram outro em seu lugar? Por que a faxineira desapareceu? E por que alguém de cabelos vermelhos andou comprando os últimos exemplares de O correio da morte que restavam nos sebos do Rio?

▬ E já tem a resposta? ▬ perguntou Renata.

▬ Acho que o criminoso quer me impedir de ler o romance, porque foi lendo esse livro que Paulo chegou à solução do enigma. Seu enredo deve ter muita semelhança com o assassinato de Fábio, Nina e Pedro.

Renata tomou um copo inteiro de refrigerante antes de dizer:

▬ Há um furo em sua teoria. Seu irmão identificou o criminoso pela leitura do livro, certo. Mas como o criminoso ficou sabendo disso?

A continuísta profissionalizara-se em detectar pequenos erros. A resposta foi demorada.

▬ Já pensei nisso, Renata.

▬ Ele não podia adivinhar que seu irmão tinha lido esse livro, podia?

▬ Adivinhar, não. Mas podia saber.

▬ Saber, como?

▬ Através do próprio Paulo. Quem sabe ele conhecesse o assassino. Talvez fossem até colegas. Amigos. E Paulo resolveu ter uma conversa com ele antes de envolvê-lo numa suspeita.

Renata não ficou totalmente convencida. Olhou no relógio de pulso.

▬ Preciso ir.

▬ Mas ainda temos um assunto. Você ficou de me contar uma coisa, o que era?

Renata levantou-se.

▬ Fica para outro dia. Tia Alice me pediu para voltar cedo.

▬ Alice? O nome dela não é Júlia?

▬ E Alice Júlia ▬ respondeu Renata confusa.

                      UM TELEFONEMA INTERESTADUAL

Ao caminhar pelo corredor frio e escuro do andar onde morava, Ivo sentiu medo. E se o livro fosse uma pista quente e o criminoso soubesse que ele andava atrás dela? Certamente seria assassinado como fora Paulo.

Mesmo depois de ter entrado na quitinete e fechado bem a porta, o medo continuou. Quem era o homem de cabelos vermelhos?

Pegou o telefone. São Paulo. A voz de Laura disse pronto.

▬ Laura, sou eu.

▬ Como vai, maninho? Tenho visto as reportagens. Gracinha. Mas quando você...

▬ Psiu, Laura. Não diga nada à mamma, mas estou quase-quase.

▬ Ivo!

▬ Ouça: vou precisar de você. Quero que me compre um livro. Tem papel aí para anotar? Chama-se O correio da morte, de Douglas Irish. Repita.

▬ O correio da morte, Douglas Irish.

▬ Mas é livro velho, que não se encontra nas livrarias. Tem de procurá-lo nos sebos. Corra todos que puder, até encontrá-lo. Depois, mande-o pelo malote da Mundial.

▬ Espere, mano. O que tem um livro velho a ver com os crimes?

▬ Não dá para explicar. Faça isso, gata. Depressa.

▬ Amanhã já vou à luta.

▬ Um beijo sabor morango. Tchau.

 

                   A TERCEIRA FACA DE DONA PETRA

Ivo chegou à redação do telejornal no horário de sempre: nove horas. Ao entrar, foi empurrado por um grupo de colegas que saía precipitadamente.

Miranda, agitado, dava ordens, aos gritos. Uma equipe era reunida para uma reportagem de última hora.

▬ O que aconteceu? ▬ perguntou.

Ninguém respondeu. Todos já estavam fora da sala, inclusive Miranda.

Quem dá bola para um mero repórter de amenidades? Ivo passou diante do Estúdio A e percebeu que também lá havia uma movimentação inusitada.

Renata correu para ele.

▬ Já sabe?

▬ Não sei de nada.

▬ Mataram o Prata.

▬ O Prata? ▬ surpreendeu-se Ivo. ▬ Não é possível. Ele, que estava tão seguro por não ser famoso.

Renata apertou-lhe o braço.

▬ Estão todos indo para o local. Vamos.

No pátio, Ivo entrou no fusca de Renata. Um figurante de novela pediu carona e também entrou.

▬ Onde foi o crime? ▬ perguntou Ivo.

▬ Na pensão onde ele morava ▬ informou o figurante.

Ivo continuava zonzo.

▬ Por que o Prata? Ator coadjuvante, intérprete de papéis inocentes.

Nas novelas, sempre como vovô, só beijava os netinhos!

▬ Fui continuísta numa novela em que ele era o padre ▬ lembrou Renata.

▬ Na vida real, sim, podia ser mau exemplo ▬ disse o figurante. ▬ Bebia como um gambá.

▬ Coitado do Prata! ▬ lamentou Renata. ▬ Pela primeira vez vai ter o nome nas manchetes.

Já havia uma aglomeração diante da pensão, policiais, jornalistas e curiosos. O detetive Fagundes tentava penetrar na casa. A janela do quarto da frente estavam o doutor Reis e o Miranda. Técnicos da tevê preparavam a gravação.

▬ Não dá para entrar ▬ concluiu Ivo. ▬ Melhor é assistir à edição extra.

Renata concordou, mas viu Daniel e chamou-o.

▬ Como é que foi?

▬ Uma faca espetada no peito. Todo jeito de suicídio. Acho que o velhote quis fazer onda. Este quadro não tem a assinatura do matador.

Ivo e Renata voltaram para a emissora. Meia hora depois assistiam à reportagem. A primeira imagem mostrava o Prata sentado na cama, morto.

Sobre as imagens, alguns dados biográficos do veterano. Começara a carreira no rádio, ultimamente trabalhava pouco devido à sua dificuldade em decorar papéis.

▬ Embora andasse esquecido, nós o amávamos ▬ declarou Miranda.

▬ Que mentira! ▬ exclamou Milton, que também assistia à reportagem.  

▬ No restaurante, se o Prata se aproximava, ele se retirava.

A câmera focou o doutor Reis. Tinha uma revelação a fazer.

▬ A primeira vista parecia tratar-se de suicídio. Mas, observando melhor, vi que estava enganado. Foi assassinato. A faca é do mesmo tipo que usaram para matar Fábio Rocha e Nina Flores.

 

               PETRA SANTANA E SEUS ÍMPETOS

Petra viveu o pior dia de sua vida a partir do momento em que viu a terceira faca do faqueiro espetada no peito de Carlos Prata. Desarvorada, sofreu diversos ímpetos. O primeiro foi o de correr à Polícia e denunciar o eletricista. Mas lembrou-se da voz ao telefone ameaçando-a de envolvimento nos assassinatos. O segundo ímpeto foi o de reunir as sentinelas, contar tudo e pedir um conselho. E o terceiro foi o de fechar a casa e fugir da cidade, temendo que o assassino também a matasse.

▬ Marinalva! ▬ chamou.

▬ Estou aqui, patroa.

▬ Se aquele eletricista aparecer, não o deixe entrar.

▬ Acha que ele vai aparecer depois do serviço porco que fez?

▬ Ele telefonou ontem e eu lhe disse algumas verdades.

Marinalva ficou subitamente tensa:

▬ Dona Petra, a gente se esqueceu dele... Ele ficou um tempão zanzando pela casa. Se alguém roubou as facas, só pode ter sido ele.

▬ Não estou mais preocupada com as facas. Para mim, não ver mais esse homem é o suficiente ▬ disse Petra.

 

                              ADEUS, PRATA

O enterro de Carlos Prata foi no mesmo dia, à tarde. A liberação apressada do corpo parecia atender ao pedido da direção da Mundial, que não desejava prolongar o pânico que se renovara entre os atores. Já não eram apenas os astros e estrelas famosos que se sentiam ameaçados, mas todos.

Ivo procurou o Miranda em sua sala e contou-lhe tudo sobre o desaparecimento do livro de seu apartamento e dos sebos da cidade. O diretor do telejornal não entendeu o que o garoto das amenidades queria dizer.

▬ Há uma faxineira metida nisso? Como se chama?

▬ Rosa.

▬ Descubra o sobrenome. Quem sabe o doutor Reis possa se interessar.

No fim da tarde, Ivo e Renata foram juntos ao cemitério. A sobrinha de tia Alice Júlia estava calada. Lá havia pouca gente para o adeus: Luciana Rios, Milton Brás, Patrícia Lins, Ana Regina e alguns mais.

Alguém tocou no ombro de Ivo: Djalma Ventura.

▬ Meu detetive está firme no caso. Já interrogou muita gente. O tal de Miranda é que não está querendo colaborar.

▬ Ele chegou a alguma conclusão?

▬ É um homem discreto. Só vai falar quando tudo estiver esclarecido.

Ele já conversou com você?

▬ Não.

▬ Mas vai conversar.

                     A VOLTA AO BAIRRO DE FÁTIMA

▬ O nome dela completo? Não tenho. Rosa não era registrada, trabalhava como diarista. E diaristas não têm sobrenome.

▬ Obrigado, Manuel.

Ivo pegou um táxi e voltou ao bairro de Fátima. Se descobrisse o sobrenome de Rosa, poderia apresentar algo mais concreto à Polícia. Falando apenas num romance roubado, até ririam dele.

Ao chegar ao casarão, informado por um menino seminu que brincava no quintal, foi bater na porta do quarto da locadora. A porta abriu-se parcialmente. Ivo viu apenas o nariz e um olho de mulher idosa.

▬ Por favor, queria saber o sobrenome de dona Rosa, a que se mudou outro dia. Pertenço a um departamento de cobrança.

▬ Não sei, moço.

▬ Mas ela não assinava papéis, recibos...?

▬ Não sei ler, moço, não exijo essas coisas.

▬ Sabe ao menos para onde mudou?

▬ Disse que ia para Minas.

▬ Ora, Minas é grande.

▬ É?

Ivo não foi embora logo. Ficou circulando entre o portão e o quintal para perguntar a todos qual era o sobrenome de Rosa. Nenhum inquilino do casarão sabia.

 

                   O MORTO REDIGE UMA MENSAGEM

Ao chegar ao telejornal novamente Ivo deparou com um movimento intenso. Havia um papel que ia de mão em mão, causando a todos igual impacto. Outra mensagem de morte?

▬ Quando chegou? ▬ perguntou a um colega.

▬ Miranda recebeu agora.

Ivo conseguiu ver apenas o envelope endereçado ao Miranda e, como os outros, com o carimbo da agência postal da Tijuca.

▬ Exatamente como as outras? ▬ perguntou Ivo ao chefe.

▬ Deixem o garoto ler ▬ disse Miranda.

Passaram a carta a Ivo. As letras eram de fôrma e vermelhas como as anteriores, mas a redação muito diferente.

Ivo devolveu a carta, sem conseguir fazer comentário.

▬ Quem diria! ▬ exclamou Daniel. ▬ O Prata, que parecia não ser de nada.

▬ E com aquelas mãos trêmulas, que mal seguravam uma xícara ▬ lembrou alguém.

▬ Tudo por despeito! ▬ lamentou um dos redatores. ▬ Despeito e cachaça.

Miranda levantou-se.

▬ Vamos fazer uma edição extra.

▬ Sua novelinha chegou ao fim ▬ disse Daniel. ▬ E com uma grande surpresa no final, como o público gosta.

Ivo saiu da redação; Renata vinha pelo corredor apalermada.

▬ E verdade o que estão dizendo?

▬ Li a carta.

▬ Ela não teria sido escrita por outra pessoa?

▬ Não, quem escreveu essa, escreveu as outras. O mesmo papel, a mesma letra, a mesma tinta.

▬ Então, não resta dúvida. Era ele.

Ivo estava com a boca seca, precisava dum refrigerante. Foi ao bar-restaurante com Renata, para ele, a cada vez mais estranha sobrinha de Alice Júlia. Lá Raul, câmera dos shows de Nina, estava transtornado.

▬ Não me entra na cabeça. Prata não viajou no trem-fantasma. E só quem viajou poderia tê-la matado.

Enquanto a carta-confissão do Prata era comentada pelos quatro cantos da emissora, Miranda, na edição extra, entrevistava os amigos mais íntimos do morto.

Armando de Sousa, ator, disse:

▬ Apenas acreditarei nisso daqui a alguns dias. Trabalhamos juntos trinta anos. Sempre foi um briguento. Mas era desses cães que latem e não mordem.

Ana Regina, entrevistada, acrescentou:

▬ Depois duma briga, sempre se arrependia. Aí, ou pedia desculpas a quem ofendera, ou bebia até se apagar.

E Milton Brás:

▬ Que tivesse matado Fábio e Pedro ainda dava para acreditar. Mas Nina... Era sua maior amiga, a quem recorria quando precisava dum favor!

As últimas declarações foram do doutor Reis.

▬ Sou um policial veterano e experiente, nunca me precipito. Mas posso garantir que esse caso chegou ao final. As pedras se encaixam perfeitamente. Não sabemos exatamente como Carlos Prata agiu, porém não tenho dúvida de que foi o autor dos quatro crimes.

O pessoal que acompanhava a reportagem pelo vídeo, na emissora, continuou calado. Parecia ter assistido a uma novela cujo último capítulo não satisfizera.

 

                               IVO FAZ UMA INVESTIGAÇÃO POR CONTA PRÓPRIA

Ao sair da Mundial, Ivo não voltou para o apartamento. Tomou um táxi e deu ao motorista o endereço da pensão onde o Prata morara. A luz do quarto da frente estava acesa. Desceu do carro e foi tocar a campainha.

Uma mulher de cabelos brancos apareceu à janela.

▬ Sou da Mundial. Podia dar uma olhada no quarto do Prata?

▬ A televisão já esteve aqui na parte da manhã.

▬ Eu sei. Vim apenas pegar um livro que tinha emprestado ao Prata.

▬ Ninguém pode tirar nada, recomendação da Polícia.

▬ Não vou tirar. Quero apenas ter a certeza de que o livro está aí.

▬ Entre, então. Basta empurrar o portão.

Num instante, Ivo estava com a dona da pensão no acanhado quarto onde o velho ator morara durante muitos anos.

▬ Só vou dar uma olhada.

▬ Conhecia bem o Pratinha?

▬ Sou novo na Mundial, mas conhecia.

▬ O que acha disso tudo?

▬ Nem sei o que pensar ▬ respondeu Ivo, procurando o livro.

▬ Pois eu acho que o Pratinha não seria capaz de matar ninguém. Suicidar-se, talvez; matar, nunca. Tinha um bom coração.

Ivo não ouvia, procurava.

▬ Ele não tinha livros?

▬ Só aqueles ▬ disse a dona da pensão, apontando uma pequena pilha sobre uma mesa. ▬ Aqui não há espaço para nada.

Ivo passou os olhos nos livros: a Bíblia, Dom Quixote de La Mancha, Robinson Crusoé, Memórias de um sargento de milícias, Dom Casmurro. Apenas clássicos.

▬ A Polícia levou alguma coisa?

▬ Mexeu em tudo, mas não levou nada.

▬ Obrigado. O livro que procurava não está aqui. ▬ Mas antes de despedir-se fez uma pergunta: ▬ Ele recebia muitas visitas?

▬ Ultimamente só aquele ator novo, o Milton Brás.

▬ Boa noite.

 

                       A TIA DE RENATA

Ainda era o comecinho da noite. Ivo precisava conversar com alguém. De um orelhão, telefonou para o apartamento de Renata. Sem um papo gostoso ou um passeio pela praia sua cabeça explodiria. Atenderam.

▬ Pronto.

▬ E dona Alice?

▬ Quem?

▬ Alice Júlia.

▬ Não, não é.

▬ Mas não é do apartamento de Renata Rocha?

▬ É sim, mas ela ainda não chegou.

▬ A senhora mora aí?

▬ Não, eu sou a diarista. Venho duas vezes por semana.

▬ A tia de Renata não mora aí?

▬ Dona Renata mora aqui sozinha. Nunca me falou de tia nenhuma. Quer deixar seu nome?

▬ Não é preciso. Obrigado.

Foi andando, desolado. Parou diante duma banca de jornais. Lá estava o retrato e o nome de Carlos Prata na primeira página. Pela primeira vez dava ibope no país inteiro.

 

                               PETRA E SUA FACAS

Petra Santana assistira pela tevê a todos os noticiários sobre a carta-confissão do Prata e mandara Marinalva comprar os jornais da tarde. Na carta, ele dizia que comprara as facas dum vendedor de bugigangas. Teria sido do próprio eletricista, que vendia o que roubava? Seria o eletricista apenas um ladrão, que oferecia seus préstimos às dona-de-casa para roubar? Mas por que não roubara suas jóias, já que estivera trocando fios no quarto? Bastaria abrir a gaveta e enfiá-las, com porta-jóias e tudo, no bolso. Na última gaveta da cômoda havia uma carteira com dinheiro. Não era muito dinheiro, mas o suficiente para comprar um faqueiro inteiro.

▬ Ele não era um ladrão ▬ disse Petra em voz alta. ▬ Sua voz parecia ser de alguém que carregava uma culpa muito maior. Se não matou, devia saber que uso deram às facas.

Marinalva, tirando o pó, perguntou:

▬ Falando comigo, patroa?

▬ Falando com ninguém. Está ouvindo demais, Marinalva. E vá buscar meu calmante.

 

                           AINDA O CASO DA TIA

Ivo chegou à emissora, mas não se dirigiu ao telejornal. Ficou à porta do Estúdio A. Renata sempre chegava antes dos atores para fazer marcações nas páginas dos scripts.

O repórter segurou Renata pelo braço.

▬ Quero falar com você.

▬ Madrugou?

▬ Tem um minuto?

▬ Se falar depressa ▬ disse a continuísta, preocupada.

Ivo tentou mostrar naturalidade; fracassou.

▬ Ontem falei com sua tia. Que senhora agradável! Batemos um longo papo. Já somos amigos do peito.

A moça encostou à porta do estúdio abatida.

▬ Telefonou para meu apartamento?

Nesse momento, Daniel ia entrando.

▬ Vamos, Renata. Temos problemas.

Renata acompanhou o diretor sem mais olhar para Ivo.

Ao passar pelo departamento de telejornal Ivo viu o detetive Fagundes, que saía. Entrou e foi receber a ordem do dia com Miranda. O diretor estava irritado.

▬ Hoje só converso sobre assuntos profissionais. Para falar sobre os crimes do Prata não atendo mais ninguém. Para mim acabou. E página virada.

▬ Esse que saiu não é um detetive particular? ▬ perguntou Ivo.

▬ Um sherlock chamado Fagundes. Me fez perder uma hora com besteira. Não acredita que o Prata era o matador. Para mim, ele não passa dum espertalhão que está explorando a pessoa que o paga para investigar. Mas o que você está fazendo aqui, garoto? Pegue a equipe e vá para o Grajaú entrevistar uma família que vive da fabricação de pipas gigantescas. Vai ser empinada uma de dez metros. Um belo visual!

Ivo percebeu que não adiantaria conversar com Miranda sobre o livro desaparecido e a faxineira. Página virada. Já estava preocupado com outras sensações. Reuniu-se à equipe e foi para o Grajaú.

Na hora do almoço, Ivo procurou Renata por toda a parte. Teria ido almoçar com a tia? Só a viu mais tarde, entrando no estúdio. No final das gravações, reencontrou-a outra vez. Caminharam juntos no corredor.

▬ Vamos falar de sua tia?

▬ Vamos.

Daniel aproximou-se com um diretor de imagem, os dois nervosos.

▬ Renata, temos um abacaxi para descascar. Deu chabu na última seqüência. Temos de gravar tudo de novo. Você ainda tem gás para isso?

▬ Vamos nós ▬ disse Renata, repetindo uma expressão em uso na Mundial, nas situações de emergência. ▬ Depois a gente acerta, Ivo.

Ivo começou a andar só pelo corredor. Desde que chegara ao Rio, nunca se sentira tão deprimido. Um boy fardado aproximou-se com um pequeno embrulho.

▬ Chegou pelo malote.

▬ Para mim? ▬ O que seria? Quem lhe teria mandado aquilo? Rasgou o papel de embrulho. Era um livro velho, caindo aos pedaços: O correio da morte, de Douglas Irish.

Laura o encontrara!

 

                           O CORREIO DA MORTE

Valeria a pena ler o romance, agora que a Polícia dava o caso dos assassinatos como encerrado? Deitado na cama, vestindo apenas cueca, Ivo iniciou a leitura pela orelha do livro, que trazia informações sobre o autor. Douglas Irish, falecido em 1944, escreveu apenas meia dúzia de romances policiais. Desses, apenas dois haviam sido traduzidos para o português. Embora norte-americano, ambientara O correio da morte em Londres.

A ação do romance desenvolvia-se quase toda num clube de golfe de grãos-finos, onde três de seus sócios haviam sido assassinados após receberem mensagens pelo correio, avisando-os de que estavam marcados para morrer. Nas mensagens, via-se um sinete de desenho confuso, que parecia pertencer a uma sociedade secreta. A Polícia logo concluiu que os assassinatos seriam obra de terroristas de esquerda, empenhados em dar um susto nos capitalistas londrinos, muitos dos quais sócios do clube.

Seguindo nessa direção, a tradicional Scotland Yard chegou mesmo a prender como suspeitos diversos terroristas conhecidos. Mas, aí, entra na história um tal Jim Wade, detetive particular, que sempre acertava onde a Polícia errava. Jim, examinando o sinete, um trabalho de amador, concluiu que ele não pertencia a sociedade alguma, o que colocava fora de suspeita esquerdistas, maçons, anarquistas e os membros em geral de qualquer partido ou entidade política. O criminoso mandava as mensagens e usara o carimbo para confundir a Polícia e a opinião pública. Portanto, seus interesses eram particulares e não ideológicos. E, com toda a certeza, seria beneficiado apenas por um dos crimes. Os outros dois fariam apenas parte da farsa.

Jim Wade concentrou sua atenção nos herdeiros dos golfistas assassinados. Os herdeiros da primeira vítima eram insuspeitos, todos crianças; a segunda vítima já dividira sua fortuna entre os sucessores; quanto à terceira, possuía um herdeiro só, viciado na roleta e freqüentador das altas rodas. Jim Wade não hesitou; espremeu o suspeito até obrigá-lo a confessar tudo. O romance terminava com uma frase do detetive: há sempre uma montanha de dinheiro atrás dum crime misterioso.

 

                          DEPOIS DA LEITURA

Concluída a leitura do romance, Ivo teve a impressão de ver tudo claro, a mesma que Paulo devia ter sentido. Como no livro, os crimes da tevê não teriam sido cometidos por nenhum fanático ou maníaco. Havia dinheiro atrás de tudo. Num caso e noutro, as mensagens serviam apenas para despistar. Dos três crimes apenas um beneficiava realmente o matador.

E Carlos Prata?

Ivo, como a maioria dos seus colegas, não acreditava que Prata fosse o assassino. Para ele, sua morte e sua confissão não passavam duma hábil jogada para colocar um ponto final em tudo.

Mas havia outras interrogações que fundiam a cuca de Ivo.

E o punk!

E o homem de cabelos vermelhos?

Pensou em telefonar para Renata, pondo-lhe a par de todas suas condições e dúvidas, porém se deteve. Afinal, ela também era uma afortunada herdeira de quem Jim Wade suspeitaria.

 

                         CONVERSA ÍNTIMA COM MIRANDA

Ivo seguiu para a Mundial muito mais cedo que a hora costumeira. Assim que Miranda entrou em sua sala, foi atrás. Na mão levava o exemplar de O correio da morte.

▬ Miranda, preciso falar com você. Encontrei o livro que estava procurando.

▬ Que livro?

▬ Não lhe falei daquele que desapareceu do meu criado-mudo, aquele que Paulo estava lendo?

▬ Ah, sim, você falou duma faxineira ladrona. Descobriu o sobrenome dela?

▬ Não, Miranda. Mas minha irmã me mandou o livro de São Paulo. Nele, há uma série de crimes num clube de golfe, sempre precedidos de mensagens.

▬ Você não vai me contar o romance agora, vai? ▬ interrompeu-o Miranda.

▬ Não, chefe, é que neste romance a seqüência de crimes não passa de mero despiste. Na realidade, o criminoso desejava fazer apenas uma vítima, um tio milionário, para herdar seu dinheiro.

▬ Interessante, mas onde quer chegar?

▬ Paulo deve ter concluído que os crimes aqui da Mundial obedeciam ao mesmo sistema. O verdadeiro objetivo do criminoso era matar um só para herdar os seus bens. Estou sendo claro?

▬ Claríssimo, Ivo. Mas acontece que a novela acabou. Foi Carlos Prata quem fez tudo. O papel, a tinta e a letra da confissão eram os de todas as mensagens. A polícia confirmou.

▬ Mas o assassino poderia...

▬ O que você deve fazer é tirar essa idéia fixa da cabeça e concentrar-se no trabalho. Precisa do emprego, não?

Ivo baixou a cabeça.

▬ Preciso.

▬ Você vai indo bem. Continue assim.

▬ Tem alguma reportagem na pauta?

▬ Ainda não surgiu nada. Relaxe.

Ivo saiu da sala levando o livro. Não tinha mais nenhuma idéia fixa na cabeça. Mas, ao chegar ao corredor, ela voltou.

 

                        UM PAPO COM O DOUTOR REIS

Ivo saiu da Mundial e foi à delegacia. Teve de esperar meia hora pelo doutor Reis, que, ao vê-lo, reconheceu-o logo e introduziu-o em sua sala.

▬ Quem diria que um homem da idade de Carlos Prata seria capaz de matar quatro pessoas e suicidar-se em seguida! ▬ disse o policial. ▬ O mundo é cheio de mistérios!

▬ Carlos Prata, a meu ver, não matou ninguém ▬ começou Ivo. ▬ Nem mesmo cometeu suicídio.

▬ Você não é o único que pensa assim. Razões sentimentais.

Ivo mostrou o romance.

▬ Neste romance conta-se uma história muito parecida com essa. Era o que meu irmão acabara de ler quando o mataram. Aqui, o criminoso mata três, num clube de golfe, mas o homem que desejava mesmo matar era um só, seu tio, para herdar sua fortuna. Aqui deve ter acontecido o mesmo. Alguém matou três atores para atribuir os crimes a um maníaco ou a algum moralista fanático, quando, na verdade, só um crime lhe interessava. Estou convencido disso.

O delegado ouviu Ivo com um sorriso irônico.

▬ Não confunda ficção com realidade, rapaz. Ninguém se arriscaria a matar tantas pessoas para desviar atenções. Num romance, isso pode convencer. Na vida real, não.

Ivo procurou ignorar a ironia do delegado.

▬ Para mim, um velho ator alcoólatra matar quatro pessoas é ainda mais absurdo. Ele não tinha um álibi perfeito por ocasião do assassinato de Fábio Rocha?

▬ Não era tão perfeito assim. Seus amigos, beberrões como ele, depois não confirmaram que Prata estivera mesmo naqueles bares.

▬ E quanto ao assassinato de Nina Flores? Ele não viajou no trem-fantasma com ela.

▬ Matou-a quando o trem chegou à estação e atirou a faca para o interior do túnel.

▬ E ninguém o viu fazer isso?

▬ Não havia uma multidão lá. Apenas um grupo esparso de curiosos.

Ivo resignou-se; não seria capaz de convencer o delegado.

▬ Desculpe-me, doutor. Pensei em colaborar de alguma maneira.

▬ Como disse, você não é o único que não admite o Prata como criminoso. Djalma, sobrinho de Pedro Ventura, também. Até contratou um detetive particular para deslindar o caso. Mas não vai chegar a lugar algum.

 

                             O ALIADO

O próprio Djalma abriu a porta do apartamento para Ivo entrar.

▬ Seu telefonema me encheu de esperanças ▬ disse. ▬ Tem alguma novidade?

▬ Creio que sim ▬ respondeu Ivo.

▬ Vamos entrando. Não repare a desordem. Despedi a faxineira, estou gastando meu dinheiro com o Fagundes. Sente-se aí. Quer um café?

▬ Não, obrigado ▬ respondeu Ivo, sentando-se. ▬ O detetive ainda está trabalhando para você?

▬ Está, apesar de a Polícia ter dado o caso como encerrado. Não me convenci que um homem da idade do Prata, sem antecedentes criminais, pudesse ter eliminado quatro pessoas. Minha cabeça rejeita isso.

▬ Fagundes tem alguma teoria, obteve alguma pista?

▬ Receio que esteja desorientado. Ele já falou com você?

▬ Ainda não. Mas talvez tenha me procurado.

▬ E você? Tem alguma novidade? Qual?

▬ Costuma ler romances policiais? ▬ indagou Ivo, mostrando o exemplar de O correio da morte.

▬ Não, a realidade já é violenta demais.

▬ Este é o romance que Paulo lia ou acabara de ler quando o mataram. Acho que o enredo desse livro o orientou na direção do assassino.

▬ Como concluiu isso?

▬ Comecei a desconfiar devido ao esforço que o criminoso fez para me impedir que o lesse.

▬ Podia explicar melhor?

Ivo contou a história a Djalma desde o início, quando o livro desaparecera do criado-mudo. A medida que falava, o interesse de seu ouvinte crescia. E ele já parecia convencido quando o homem de cabelos vermelhos entrou em ação.

▬ Imagino que Paulo conhecia o criminoso e disse-lhe que passara a suspeitar dele após a leitura do romance.

▬ Isso tudo é um pouco estranho, mas pode ser verdade.

▬ Estranho é Miranda, da Mundial, e o doutor Reis, não me darem a menor atenção. Acham que confundo ficção com realidade.

▬ Mas não houve um autor que disse que a vida imita a arte? ▬ lembrou Djalma. ▬ Agora estou curioso. Qual é o enredo do romance?

▬ A história se passa num clube de golfe, na Inglaterra, quando depois do assassinato de três de seus associados os demais entram em pânico. As mortes ocorrem após o envio de mensagens, que pareciam procedentes duma sociedade secreta, talvez política. Tudo levava a crer que era obra de políticos fanáticos.

▬ E não era?

▬ Não, quem matara os três sócios do clube fora o sobrinho de um deles, para herdar sua fortuna.

▬ Engenhoso. Gostaria de ler o livro. Pode me emprestar?

▬ Com prazer ▬ disse Ivo, entregando o exemplar para Djalma.

▬ O que me diz da teoria? Pode ser aplicada ao caso dos assassinatos que estamos investigando?

▬ Vou conversar ainda hoje com Fagundes a respeito. Mas minha opinião é sim. Nina Flores, por exemplo, tinha diversos herdeiros. Conheci um deles. Sobrinho, parece-me. Um tal de Nelson, sujeito muito estranho. Fábio tinha dois irmãos.

▬ Renata conheço, é insuspeita.

▬ Mas há outro, ela referiu-se a ele de passagem, numa entrevista de televisão.

▬ Ignorava.

▬ E quem pode garantir que eu seja o único parente vivo de tio Pedro? Vou convocar o Fagundes. Aguarde telefonema.

Ivo animou-se; não estava sozinho na luta, e teria até um detetive para ajudá-lo.

▬ Vou prosseguir nessa batalha até o fim ▬ garantiu. ▬ Nada me fará desistir.

Djalma apertou-lhe a mão calorosamente.

▬ E um juramento que também fiz.

 

                                   A TIA QUE NÃO EXISTIA

Ivo aproximava-se da Mundial quando ouviu uma buzina. Era Renata, dirigindo seu carro. Ela fez sinal para ele e encostou o carro.

▬ Zangado comigo? - perguntou.

▬ O que você acha? Que não tenho motivo?

▬ Tem, sim. Entre um pouco.

Ivo entrou no fusca, ainda resistente. Mas como ela estava bonita aquela manhã!

▬ Bem, o que tem a dizer?

▬ Eu tentei lhe contar tudo, faltou oportunidade.

▬ Aquele assunto era sobre sua tia?

▬ Era.

▬ Afinal, você tem uma tia ou não?

▬ Foi idéia de Fábio ▬ contou Renata. ▬ Quando me arrumou o apartamento, inventou a história. "E um perigo uma moça morar sozinha numa cidade como esta", disse. "Não deixe que os outros saibam. Você ficaria na mira dos espertinhos. Espalhe que mora com uma tia. Pega melhor. Impõe mais respeito." E eu aceitei o conselho. Perdoada agora?

Perdoar era tudo que Ivo queria.

▬ Claro... mas entenda o choque que levei quando a empregada disse que você não tinha tia alguma.

▬ Entendo. Mas isso já passou, não?

▬ Passou.

▬ Vamos à Mundial. Tenho gravação agora.

▬ Renata, você não tem parente nenhum?

▬ Tenho ▬ disse ela com alguma tristeza.

▬ Irmão?

▬ Sim, um irmão. ▬ E abrindo a bolsa mostrou o retrato dum garoto de dez a doze anos. ▬ Chama-se Plínio. Está internado. Sofreu paralisia numa perna, mas felizmente está se recuperando muito bem.

 

                         IVO APERTA O CERCO

Depois do encontro com Renata, Ivo telefonou para Djalma.

▬ Podemos riscar o irmão de Renata de nossa lista. É um menino. Agora vou ao Departamento de Recursos Humanos da emissora descobrir quem são os herdeiros de Nina Flores.

▬ Muito bem, Ivo. Eu estou lendo o livro e esperando o Fagundes.

Imediatamente, Ivo dirigiu-se ao Departamento de Recursos Humanos da Mundial; conhecia lá muito bem o Vadeco, funcionário que fizera sua ficha de trabalho.

▬ Queria que me prestasse um favor, Vadeco.

▬ Peça, aqui você tem cartaz, garoto das amenidades.

▬ Queria que visse a ficha de Nina Flores e me desse uma relação de seus dependentes.

▬ Por quê? Vão prestar a ela uma homenagem póstuma?

▬ Quem sabe?

▬ Volte dentro de quinze minutos.

Ivo foi fazer hora no Departamento de Telejornalismo. Miranda e seus imediatos estavam no corre-corre de sempre. Os repórteres iam acompanhar a Polícia numa caça a traficantes de tóxicos nos morros do Rio. O dia não estava para amenidades. Voltou ao Recursos Humanos.

Vadeco já esperava por Ivo com um papel anotado.

▬ Aqui estão os sortudos, os que vão entrar na gaita da velha. Não são muitos, apenas três.

▬ Filhos?

▬ Nina era solteirona. Um primo e dois sobrinhos.

▬ Aí tem o endereço deles?

▬ Tem, e moram todos no Rio.

▬ Tchau.

                 O SUSPEITO Nº1 PRIMO MAURÍCIO

Ivo parou um táxi e deu o endereço do primeiro nome da lista fornecida por Vadeco, Maurício Flores, primo de Nina. O carro parou diante duma bela e antiga casa da Gávea. Tocou a campainha. Uma jovem empregada apareceu diante do portão.

▬ Seu Maurício está? ▬ perguntou Ivo.

▬ Está. O que o senhor deseja?

▬ Sou da Mundial e gostaria de conversar um pouco com ele ▬ disse Ivo, lembrando que na precipitação esquecera de imaginar um bom pretexto.

A empregada abriu o portão.

▬ Acompanhe-me. Ele está nos fundos.

Ivo seguiu a empregada pelo jardim que circundava a casa. Nos fundos, sentado num banco de pedra, tomando sol, estava Maurício. Era um homem duns setenta anos, muito gordo, que usava óculos escuros e grossos como fundo de garrafa. Um gato angorá dormia sobre suas pernas.

▬ Há um moço aqui, que quer falar com o senhor. Maurício ergueu o braço com a mão estendida, mas não precisamente na direção de Ivo. O repórter apertou-a.

▬ Sou da Mundial ▬ disse Ivo.

▬ Muito prazer.

▬ Nós, da emissora, estamos pensando em fazer um programa especial, dedicado à memória de Nina Flores, e eu fui incumbido de visitar seus parentes e amigos íntimos.

▬ Ah, Nina. Aquela simpática tresloucada! Que triste fim foi ter!

▬ O senhor e ela eram primos, não? Davam-se bem?

▬ Na mocidade éramos íntimos. Depois, ficávamos anos sem nos ver. Sempre lamentei não poder ver seus shows de tevê. Apenas ouvia. Mas, antigamente, quando tinha boa visão, não perdia seus espetáculos no teatro.

▬ O senhor não vê nada?

▬ Quase nada, faz vinte anos. Mas não sou desse que se queixam. Deus até foi bom comigo. Desenvolveu meu olfato; sinto como ninguém o perfume das flores. ▬ Acariciou o pêlo do gato. ▬ Meu tato é de primeira qualidade. Como e bebo do melhor e sou capaz de dar uma volta pelo quarteirão sem esbarrões. Meu mundo apenas ficou menor, encolheu, mas ainda gosto dele. O que quer saber sobre Nina?

Durante quase uma hora, Ivo ouviu uma longa seqüência de recordações. Sua atenção, porém, concentrava-se no segundo nome da lista, um sobrinho de Nina chamado Evandro.

 

                   O SUSPEITO Nº 2 PRIMO EVANDRO

Antes de passar pela casa de Evandro, já no período da tarde, Ivo tornou a telefonar para Djalma Ventura.

▬ Já risquei o primeiro nome da lista dos parentes de Nina, o primo dela. É um homem bastante idoso e quase cego há vinte anos.

▬ Não tem filhos?

▬ Não, e é viúvo. Agora vou visitar um sobrinho dela, Evandro.

▬ Mantenha-me informado e não fale a ninguém do nosso trabalho. Um táxi levou Ivo ao bairro do Encantado. A casa de Evandro, geminada, não tinha os jardins e a boa aparência da residência de Maurício. Tocou a campainha. Uma mulher moça, mas prematuramente envelhecida, abriu a porta.

▬ Boa tarde, eu sou da TV Mundial. Vamos fazer um programa especial em homenagem a Nina Flores e desejava conversar com seu Evandro. Ele mora aqui, não? ▬ perguntou Ivo.

▬ Morava ▬ respondeu a mulher. ▬ Morreu há dois anos.

▬ Morreu?

▬ Num desastre de automóvel. Era meu marido.

▬ Oh, não sabia. A senhora tem filhos?

▬ Dois. Estão no colégio. Um tem doze e outro, dez anos.

▬ Conhecia bem Nina Flores?

▬ Se a vi quatro vezes pessoalmente foi muito. Vivíamos mal, mas Evandro nunca lhe pediu favores. Visite Nelson Flores. Dos parentes de Nina, era o único que se relacionava com ela. Meio doido como a tia.

Era o terceiro nome da lista que Vadeco dera a Ivo.

 

                      SUSPEITO Nº 3 NÉLSON FLORES

A locomotiva, atingindo sua velocidade máxima, puxava cinco vagões sobre trilhos, que iam do quarto de brinquedos ao grande living do apartamento, depois de circularem dez metros pelo corredor. Nelson, ajoelhado ao lado da estação, com os cabelos caídos na testa, nem tomava conhecimento do visitante. Apesar de ter uns trinta anos, amava brinquedos eletrônicos. Seu apartamento era uma espécie de Disneylândia.

Controlando a velocidade do trem por um controle remoto, Nelson exultava.

▬ Já viu um trem igual, João?

▬ Meu nome é Ivo.

▬ Desculpe, para mim todo mundo é João. Este é japonês. Custou uma nota, mas valeu a pena. Sabe qual é meu sonho? Participar duma corrida de trens. Como eu gosto desta geringonça, João.

▬ Sua tia também gostava de brinquedos eletrônicos?

▬ Se gostava, não sei, mas era quem pagava as contas.

▬ Ela foi assassinada num trem-fantasma do parque.

Nelson, com os olhos fixos no comboio, que se aproximava da estação, não se perturbou com a lembrança.

▬ Sabe qual é meu plano? Montar um pavilhão de miniaturas. Com ingressos pagos, naturalmente. O que acha da bolação?

▬ Parece boa.

▬ Pavilhão "Nina Flores". Sou tarado por eletrônica desde que a tia me deu o primeiro brinquedo. Gamadão. Mas o que mesmo veio fazer aqui, garoto?

▬ A TV Mundial vai prestar uma homenagem à sua tia e eu estou entrevistando seus parentes e amigos. Vocês eram muito chegados, não?

▬ Sempre fui o queridinho da velha. E é até capaz que fique com toda a herança dela. Evandro morreu e tio Maurício é ricão. Acho que o bolo todo vai ser meu.

Ivo, que não esperava encontrar um suspeito do tipo de Nelson, improvisou uma pergunta.

▬ Sofreu muito quando ela morreu?

▬ Para ser franco, não. Tia Nina já tinha vivido bastante e sempre numa boa.

▬ Conhecia Fábio Rocha e Pedro Ventura?

▬ Às vezes eles iam às festas que tia Nina dava.

▬ E o repórter Paulo Maciel?

Nelson Flores olhou para Ivo desconfiado e apertou o botão onde se lia stop, fazendo o trem parar. A brincadeira acabara, de cara feia.

▬ Não conhecia ▬ respondeu secamente. ▬ Agora tenho mais o que fazer. Vou acompanhá-lo até a porta.

A saída, Ivo disse um "até outro dia", que não obteve resposta. Teve a impressão de que Nelson, pressentindo suas intenções, não o receberia mais. Mas estava satisfeito porque o trabalho resultara no encontro dum suspeito suspeitíssimo.

Na rua, dando mais uma olhada ao longínquo mas elegante edifício onde Nelson morava, Ivo pensou: "Fiz o que pude, o resto é com o detetive".

 

                   IVO INFORMA DJALMA

Assim que Ivo entrou na quitinete, ligou para Djalma.

▬ Djalma, é o Ivo. Acabo de ter encontro com Nelson Flores, sobrinho de Nina. É um cara doidão, que só se preocupa com brinquedos eletrônicos. Um tipo estranhíssimo. Para mim, ele é o homem.

▬ Ótimo, Ivo. Onde você está?

▬ No meu apartamento.

▬ Continue aí e não abra o bico. Vou falar com o Fagundes. Parece que ele também está no seu caminho.

▬ E o romance?

▬ Estou no final. Convenceu-me. Aguarde telefonema.

 

                           A RETA DE CHEGADA

Ivo sentiu que todo o enigma se esclarecia. Quem poderia ser o assassino, a não ser um herdeiro maluco do tipo Nelson Flores? O que não entendia era como a Polícia não batera à sua porta. Tomou três copos de água à espera do telefone de Djalma.

Já era noite, e tarde, quando o telefone tocou.

▬ É seu Ivo?

Ivo não reconheceu a voz.

▬ Sim.

▬ Aqui é Fagundes, o detetive.

▬ Ah, pode falar.

▬ Nossas suspeitas coincidem. Sei de mais coisas sobre o tal Nelson. Vamos dar um apertão nele imediatamente. Pode me esperar hoje, às onze e meia, perto do estacionamento público, próximo ao edifício onde ele mora?

▬ Hoje mesmo?

▬ Ele vai viajar para fora do país e então as coisas se complicariam.

▬ Disse perto do estacionamento público?

▬ Exatamente. Não falte e, por favor, não conte nada a ninguém.

Ivo olhou o relógio. Passava das dez e meia. Precisava ir indo, porque Nelson Flores morava num conjunto de edifícios muito distante. Mas, antes de sair, desobedeceu ao pedido de Fagundes: telefonou para Renata. Ninguém atendeu.

 

                        SOZINHO, NA NOITE ESCURA

Ivo desceu do táxi e despediu-se alguns minutos antes das onze e meia. Lá estava o estacionamento público, com sua entrada em forma de túnel. De dia, o movimento era intenso, mas, à noite, nenhum carro entrava ou saía. A avenida, também deserta, parecia o local certo para encontros secretos. Tudo soturno demais. Por que Fagundes não marcara o encontro próximo ao apartamento de Nelson Flores? Seria ele um desses detetives de comédia que amam os cenários sombrios?

Os minutos passavam, intensificando a escuridão. Sentindo-se solitário demais, Ivo viu um orelhão numa ilhota e atravessou a avenida. Felizmente trazia consigo uma ficha telefônica. Ligou para Renata com receio de não encontrá-la.

▬ Quem fala?

Era a voz de Renata.

▬ Renata, é o Ivo. Estou aqui num estacionamento público, perto do apartamento de Nelson Flores.

▬ Aquele molecão que lida com brinquedos eletrônicos?

▬ Você o conhece?

▬ Fui uma vez com Nina numa festinha no apartamento dele.

▬ Pois ele é o maior suspeito dos assassinatos.

▬ Quem disse isso?

▬ Bem, é a minha opinião e a do detetive Fagundes também.

▬ Estão enganados. Nelson estava no Japão comprando brinquedos eletrônicos quando Fábio e Nina foram assassinados. Nem esteve presente no enterro dela. E, justamente na noite do assassinato de Pedro Ventura, ele dava uma entrevista, ao vivo, sobre um pavilhão de brinquedos que pretende construir. A Polícia não é tão boboca assim, Ivo.

▬ E eu aqui, nesta escuridão, esperando um detetive calhorda.

▬ Não perca mais tempo com isso, volte. Sabia que esse é o local predileto dos assaltantes?

▬ Boa noite, então.

▬ Boa noite, querido.

Ivo desligou o telefone. No mesmo instante aproximava-se dele um homem de cabelos vermelhos. Na mão, parecia segurar um revólver.

 

                           O HOMEM DE CABELOS VERMELHOS

Ivo mal viu o homem de cabelos vermelhos, provavelmente o que andava comprando exemplares de O mensageiro da morte nos sebos, e correu, sem direção. Imediatamente ouviu um tiro. Fugindo, olhou para trás. O homem perseguia-o a pouca distância. Zigue-zagueou para fugir dos disparos. Mas o segundo tiro deu-lhe a impressão de que passara a centímetros de sua cabeça. Entrou no estacionamento, pondo todas as suas forças nas pernas e na garganta.

A medida que gritava, Ivo ouvia o eco de sua voz. O estacionamento era enorme e possuía no mínimo dois pisos, porém não havia nenhum carro particular estacionado, além de um velho furgão. E ninguém atendia a seus gritos. O criminoso, ao marcar o encontro, sabia que o ambiente e horário lhe seriam favoráveis.

Ivo não ouviu mais passos, foi parando. Dentro do estacionamento, a escuridão não era total, havia luzes nas curvas, mas a penumbra dominava quase todo o espaço. Ficou parado numa curva em declive, entre dois salões. Só ouvia sua respiração ofegante. Durante muitos minutos não ouviu nenhum ruído exterior, e quando já acreditava que seu perseguidor desistira, percebeu o ronco suave dum motor. Lentamente, com os faróis altos, um carro entrava no estacionamento.

Voltando a correr, Ivo sentiu que o carro, já mais rápido, aproximava-se, com a intenção clara de atropelá-lo. Correu o mais que pôde, ao ouvir o ranger de pneus numa curva. Atingiu o segundo piso, onde a iluminação era ainda mais escassa. Quando viu o carro vir a toda velocidade em sua direção ficou tonto, por um momento. Saltando como se tivesse molas nas pernas, caiu de comprido no chão. Quando se levantou, com a boca seca e amarga, viu novamente aquele touro diante dos olhos. Dessa vez correu em ziguezague e conseguiu proteger-se atrás duma estreita coluna.

▬ Ei! O que está acontecendo aqui? ▬ gritou alguém, vindo do primeiro piso.

Era um vigilante que afinal aparecia.

▬ Estão querendo me matar! ▬ respondeu Ivo, correndo em sua direção.

O carro fez uma volta completa pelo salão do segundo piso.

▬ Pare! ▬ ordenou o vigilante. ▬ Pare!

Quando Ivo ouviu o impacto, já retornava ao primeiro piso pela curva em aclive, mas, num relance, chegou a ver o corpo do vigilante estendido no chão. Ao passar pelo furgão, sentiu-se exausto. Pensou em proteger-se ao lado dele, o que não o salvaria do revólver do agressor, porém preferiu tentar outra coisa. Na infância, vira um automóvel desbrecado precipitar-se numa ladeira. Abriu a porta do furgão e soltou o freio de mão. Em seguida, atrás dele, esperou ouvir o carro do homem de cabelos vermelhos subindo a rampa para o primeiro piso. Então, empurrou-o com força.

O furgão, a princípio lento, rodou veloz para baixo quando o carro já saía da rampa. O choque entre os dois ecoou como um terremoto. Ivo poderia ter corrido para a rua, mas esperou para constatar o resultado do desastre que provocara. O homem de cabelos vermelhos teria perdido os sentidos? Estaria impossibilitado de se mover? Aguardou.

Minutos depois, Ivo ouvia passos na rampa e logo em seguida viu uma sombra. A frente do túnel de entrada, iluminado pela luz da rua, ele era um bom alvo. O homem de cabelos vermelhos atirou mais uma vez. A mesma sensação de bala passando de raspão. Correu para a avenida, que continuava deserta. Colocou-se no meio da via à espera de que algum automóvel passasse. Mais um tiro: o homem de cabelos vermelhos, à entrada do estacionamento, errava mais uma vez o alvo. Depois, mancando duma perna, correu desesperadamente, aproximando-se de Ivo.

"Ele ainda tem duas balas", pensou o rapaz, já fugindo em ziguezague, "e agora, ferido, não vai me alcançar", concluiu. Vendo que Ivo ganhava distância, o perseguidor disparou outra vez. Olhou para trás; o homem fazia um esforço imenso para correr, mas perdia-o de vista. Ivo sentia-se já livre quando pisou em falso e caiu. Foi o pior momento. Num instante, o criminoso aproximava-se com sua arma.

Ivo saltou de pé e depois baixou o corpo para desnortear o homem de cabelos vermelhos, que se deteve: era a última bala, não podia errar. Ivo gingou, movendo-se todo. Melhor que voltar-lhe as costas. Foi recuando, de frente para a arma, a balançar-se como um capoeirista. E quando não deu para se afastar mais, mergulhou inesperadamente sobre o agressor.

O homem de cabelos vermelhos, que não esperava essa reação, caiu no asfalto, levando Ivo na queda. O rapaz, para evitar um disparo à queima-roupa, segurou-lhe o punho. Estava cansado, mas o outro também estava, além de mais velho e ferido. A luta, no chão, parecia não acabar nunca; Ivo, no entanto, aos poucos, centímetro a centímetro, colocou seu dedo sobre o dedo do criminoso, que estava no gatilho. Apenas um gato vagabundo presenciava a cena de longe. Ivo viu-o fugir quando conseguiu forçar o último disparo da arma.

Com o tambor de seu revólver vazio, o homem de cabelos vermelhos tentou usar as mãos para apertar o pescoço de Ivo. Exausto demais para matar alguém, deu tempo para que Ivo, pegando a arma, lhe desferisse uma coronhada na testa. Levantou-se, então, desarvorado, enquanto o vigilante do estacionamento aproximava-se, com manchas de sangue pelo corpo.

▬ Segure-o ▬ conseguiu dizer. ▬ A Polícia já vem aí. Telefonei.

E vinha mesmo, um carro de cada lado da avenida. Ivo não conseguiu segurá-lo, ele escapou, mas logo além foi cercado pelos policiais. O rapaz abaixou-se e apanhou algo que caíra do fugitivo: uma cabeleira vermelha.

 

               O HOMEM DE CABELEIRA VERMELHA SEM A CABELEIRA

Não adiantava negar nada; o homem de cabeleira vermelha, sem ela, com um ferimento na testa e a perna ferida, estava na delegacia, diante do doutor Reis, da equipe do Miranda, que para lá correra às pressas, e de Ivo, o herói da história. Todos estavam muito tensos e surpresos, e o detetive particular Fagundes, que chegou em seguida, ao saber de tudo, exclamou:

▬ Puxa! Ele me fez de bobo o tempo todo!

Djalma Ventura começou dizendo que já tinha uma bronca contra o tio, pois ele se negara a ajudá-lo na carreira teatral, negando-lhe o talento. Era frio e orgulhoso; para ele o mundo só possui dois gênios da arte de representar, Pedro Ventura e Laurence Olivier.

▬ Meu consolo era que, vinte anos mais moço, eu seria seu herdeiro. Mas levei um choque quando me apresentou Valéria, com quem pretendia casar-se brevemente. Decidi matá-lo, mas teria de ser um trabalho elaborado, digno dum artista. Foi então que me lembrei dum filme que assistira na juventude. Era a história dum homem herdeiro duma fortuna, que mata uma série de pessoas, entre elas seu tio milionário, para que tudo parecesse obra dum maníaco. Fiquei semanas com essa idéia na cabeça.

Foi quando Djalma Ventura teve notícia pelos jornais da campanha moralista, cheia de ódios, que uma certa Liga movia contra os artistas, em especial os da Mundial, que tinham maior ibope. Usando óculos e uma peruca vermelha foi bater na casa de Petra Santana, na Tijuca, oferecendo-se para fazer serviços domésticos. Deu certo: ela precisava dum eletricista. Pretendia conhecer melhor a entidade e furtar qualquer objeto que, deixado no local do crime, desviasse para a Liga a atenção policial. Num momento em que ficou só, na sala de jantar de Petra, abrindo as gavetas, viu o faqueiro e, numa inspiração de momento, retirou as três facas. E levou embora não apenas objetos comprometedores, mas as próprias armas dos crimes.

▬ Eu conhecia Fábio Rocha. Quando ele entrava em seu carro, saindo dum restaurante, pedi-lhe uma carona. Conversávamos sobre fofocas da televisão e, ao passarmos pela praia do Leblon, deserta, eu lhe disse: "Lá está o paspalhão do cometa Halley. Vamos dar uma olhada?" Fomos à praia, na maior escuridão, e, enquanto ele olhava para o céu, à procura do cometa, matei-o e enterrei a faca na areia.

▬ Por que começou a mandar as mensagens a partir da segunda vítima? ▬ perguntou o delegado.

▬ Para implicar ainda mais as sentinelas com o carimbo do correio da Tijuca. Além do mais, mensagens de morte é coisa de maníacos e fanáticos. Quando mandei a primeira, ainda não escolhera quem mataria a seguir. Mas na própria Mundial soube da gravação externa no parque. Fui para lá, vestido de punk, como se fosse um exótico figurante da cena. Não foi nada fácil, só na última viagem, já para gravar, foi que consegui lugar no trenzinho, atrás de Nina. Enfiei a faca nas costas da coroa, joguei a arma no túnel e, ao chegar à estação, desapareci.

Para fazer o punk raspou os cabelos só dos lados e dava um jeito com vaselina e laque. Quando aparecia como Djalma, penteava os cabelos de modo a disfarçar a parte raspada. Para matar o tio, voltou a usar óculos e cabeleira vermelha. Conhecia bem o teatro e entrou pela porta dos fundos durante o intervalo da peça. Pedro estava sentado no camarim, diante do espelho, quando entrou. Foi um golpe só. Levando a faca, foi para seu apartamento, trocou de roupa, guardou a cabeleira e voltou ao teatro para chorar a morte do ator.

▬ Tudo ia bem até o dia em que Paulo Maciel disse na televisão que tinha uma pista quente. Como eu sempre ia à emissora para manter contato com o telejornal, afastando de mim qualquer suspeita, conhecia o jornalista. Segui-o por toda parte, em meu carro, aquela noite. Quando ele entrava num restaurante, abordei-o: "Como é Paulo? Tem mesmo uma pista firme ou é invenção do departamento?" "Não é pista, é uma dedução", respondeu. "Coisa só minha." "Me dê uma dica, estou ansioso." "Você já leu um romance chamado O correio da morte?” "Não." "Nesse romance há uma seqüência de crimes, com envio de mensagens, como está acontecendo aqui. Mas o criminoso não era nenhum doido ou fanático como pretendia fazer crer. Matava para herdar uma herança de uma das vítimas. Amanhã vou expor essa teoria ao delegado."

Djalma não perdeu tempo: telefonou para a Mundial, dizendo-se um amigo de Paulo que acabara de chegar de São Paulo, pediu seu endereço e seguiu para lá. Não havia vigilante na garagem do edifício; entrou, escondeu-se atrás dum carro e ficou à espera do jornalista. Dias depois, voltando a ser punk, tentou entrar no apartamento para apoderar-se do romance.

Receava que Paulo tivesse falado dele a alguém. O porteiro, porém, apareceu e Djalma teve de descer as escadas precipitadamente.

▬ Quando soube que um irmão de Paulo, também da Mundial, passou a ocupar seu mesmo apartamento, fiquei preocupado. E se ele lesse o livro e chegasse à mesma conclusão? Tratei de conhecê-lo, fizemos amizade, e fui visitá-lo sob o pretexto de descobrir o que o punk fora procurar lá. O maldito romance estava lá, no criando-mudo. Usando óculos e cabeleira vermelha, aproximei-me duma faxineira, que fazia a limpeza do apartamento. Meu erro. Fazendo desaparecer o livro, chamei a atenção para ele.

▬ Como conseguiu convencer a faxineira a roubá-lo? ▬ perguntou Miranda.

▬ Disse que era um colecionador e que Ivo recusava-se a vender o livro. Ofereci-lhe uma boa quantia. Ela não aceitou. Tripliquei a oferta. "Ele nem vai notar a falta", disse-lhe. Mas, dois dias mais tarde, ao reencontrar-me com ela, para ver se estava tudo bem, encontrei-a apavorada, pois Ivo dera pela falta do livro. Usei o expediente de devolver outro, de aspecto parecido. Não pegou, ele queria mesmo O correio da morte. Então a coisa ficou cara: tive que lhe dar um pacote de dinheiro para que ela apanhasse seus trastes e desaparecesse, sem deixar o novo endereço com ninguém.

Depois de se livrar da faxineira Rosa, Djalma teve a idéia de percorrer os sebos da cidade à procura dos exemplares remanescentes do romance. Em seguida, mandava outra mensagem sinistra ao Departamento de Jornalismo da Mundial. Estava inseguro; a Polícia não atribuía os crimes à Liga moralista de Petra Santana e Ivo, aliado à Renata, podia causar-lhe complicações. Mas aí teve uma inspiração que julgou genial.

▬ Matar mais alguém que confessasse os crimes ▬ prosseguiu Djalma. ▬ Que pusesse um ponto final em todo o enigma. Assim corrigiria também a tentativa fracassada de envolver as sentinelas no caso. Eu conhecia bem Carlos Prata, era um despeitado. Fiz a confissão, postei-a na caixa de sempre e fui visitá-lo com uma proposta de contrato para trabalhar noutra emissora. E usei a terceira faca.

Mas Djalma não ficou muito tranqüilo mesmo depois do lance genial. Ao telefonar à Petra, para saber se seu serviço fora bem feito, assustou-se ao verificar que ela desconfiava dele. Isso poderia levar a Polícia a reabrir as investigações. Por outro lado, muita gente não acreditava na autenticidade da confissão do Prata. Para tornar-se mais insuspeito, contratou um detetive particular, Fagundes.

▬ O pior, porém, foi quando o garoto foi me visitar, levando-me o romance e pondo-me a par de sua teoria. Como seu irmão Paulo, também Ivo concluíra que só um dos herdeiros poderia ser o criminoso. Cuidei de afastá-lo de Fagundes, mas não pude evitar que ele investigasse por conta própria. Entrevistou herdeiros de Nina, e fixou-se em Nelson Flores, um piradão com mania de brinquedos eletrônicos. O garoto ignorava que Nelson estava no exterior por ocasião dos dois primeiros crimes. Quando soubesse disso, só eu restaria em sua lista.

▬ Então marcou o encontro com... ▬ disse o delegado.

▬ Como Ivo não conversara com Fagundes, telefonei para ele, dizendo ser o detetive e marquei o encontro, perto do apartamento de Nelson, um lugar bastante deserto à noite. Pretendia atropelá-lo, mas decidi matá-lo a tiros e roubar-lhe o dinheiro, como se fosse um assalto. Não deu certo.

▬ Onde acha que errou? ▬ perguntou Miranda.

▬ No roubo do romance. Quis bancar o perfeccionista. Se não o tivesse roubado através da faxineira, ele seria apenas um livro velho, que, talvez, Ivo nem lesse.

▬ E você? ▬ perguntou Miranda. ▬ Leu O correio da morte?

▬ Não. Detesto o gênero. De violenta basta a vida, estão de acordo?

 

                                    O EX-GAROTO DAS AMENIDADES

A solução do mistério foi o assunto da semana, na tevê e nos jornais. Ivo deu várias entrevistas, nas quais só dizia uma coisa:

▬ Apenas terminei o trabalho que meu irmão havia começado.

Dona Beatriz, sua mãe, telefonou só para que o filho ouvisse o seu choro emocionado. Laura, por sua vez, enviou tantos beijos pelo telefone que eles não cabiam na linha.

Elisa Bastos, atendendo à reportagem, deu uma entrevista que teria escandalizado Petra Santana: fora aquela manhã ao parque porque era grande fã da Nina Flores, por mais desbocada que fosse. E rompeu publicamente com a Liga, que a impedia de gostar dos artistas das novelas e dos shows, sua paixão secreta.

Entrevistada, Petra contou tudo sobre as facas e descreveu o susto que levara ao vê-las no vídeo. Mas não esclareceu se pretendia comunicar o fato à Polícia. Terminou a entrevista azeda e enaltecendo sua entidade.

▬ O lugar de muitos artistas é no inferno, mas não são as sentinelas que os levarão para lá.

Miranda deu um tapa nas costas de Ivo:

▬ Você não vai ficar mais nas amenidades, garoto. Já pode enfrentar trabalho de gente grande.

Doutor Reis não concedeu entrevistas, já que o caso se encerrara; como todos sabem, a Polícia é muito ocupada.

 

                              VEJAM QUEM APARECEU NA PRAIA

O melhor de tudo, aquela curtição, foi quando Ivo e Renata se encontraram na praia, no domingo mais azul do mês. Quase não se falavam; sorriam e abraçavam-se.

▬ Puxa, Ivo! Você sozinho acabou abotoando o cabeleira!

▬ Sozinho? Se não fosse seu empurrão, assim que cheguei, eu não teria conseguido!

▬ A gente liga a telinha e só dá você!

 

Iniciado por um ou por outro, talvez por ambos, aquele beijo na praia, sob o sol de verão, diante de tanta gente, parecia ter começo e meio; fim não. E quem sabe tivesse batido o recorde mundial de duração se alguém não o tivesse interrompido.

▬ Desavergonhados! Parem! Estão se beijando há trinta e um segundos!

Era Petra Santana, a líder das sentinelas, com o cronômetro na mão. Mais resoluta que nunca, levava sua campanha às praias do Rio.

Banhistas e transeuntes, no entanto, aplaudiram os namorados.

▬ Acho que estão pedindo bis ▬ observou Ivo.

 

                                                                                Marcos Rey  

 

                      

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