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Este romance é uma reconstituição ficcionada, mas baseada em factos reais, dos episódios relativos à decifração do código produzido pelas máquinas alemãs Enigma, durante a Segunda Guerra Mundial. O herói do livro é um jovem matemático de Cambridge, Tom Jericho, discípulo do célebre Alan Turing (1912-1954), que decifra o código de comunicações dos submarinos alemães, que usavam a Enigma. Quando os alemães alteram o código, Tom é chamado pelas autoridades, mas poucos acreditam nas suas capacidades.
Cambridge no quarto Inverno da guerra: uma cidade fantasma.
Um incessante vento siberiano, sem nada que lhe embotasse o gume ao longo de mil milhas, soprava do Mar do Norte rasando os Fens. Fazia tilintar as placas de identificação dos abrigos contra ataques aéreos de Trinity New Court e fustigava as janelas entaipadas da Capela de King's College. Invadia os pátios e escadarias, confinando aos seus quartos os poucos professores e estudantes que restavam. A meio da tarde as ruas estreitas e empedradas apresentavam-se desertas. Ao cair da noite, sem uma única luz a brilhar, a universidade era devolvida a umas trevas que não conhecia desde a Idade Média. Se uma procissão de monges atravessasse naquele momento a ponte de Magdalene arrastando as sandálias, a caminho das Vésperas, não teria parecido deslocada.
Eram os séculos a dissolverem-se no blackout, as trevas de protecção em tempo de guerra.
Foi para este lugar agreste das planuras do leste de Inglaterra que, nos meados de Fevereiro de 1943, veio um jovem matemático chamado Thomas Jericho. As autoridades académicas do seu colégio — King's College — foram informadas da sua chegada com menos de um dia de antecedência, tempo quase insuficiente para lhe arejarem o quarto, fazerem a cama de lavado e limparem as estantes e os tapetes da poeira acumulada ao longo de três anos. E nem a esse trabalho se teriam dado — sendo tempo de guerra e tão grande a escassez de pessoal — se o director não tivesse recebido pessoalmente na sua residência oficial um telefonema de um funcionário obscuro, mas de posição elevada, do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Sua Majestade, com o pedido de «cuidarem de Mr. Jericho até ele estar suficientemente recuperado para poder voltar ao seu trabalho».
— Claro — respondeu o director, que, por mais voltas que desse à cabeça, não conseguia dar um rosto ao nome de Jericho. — Claro. Será um prazer tê-lo de volta.
Enquanto ia falando, abriu o ficheiro dos alunos e passou-o rapidamente até encontrar o que procurava: Jericho, T.R.G.; matriculado em 1935; licenciado em Matemática com distinção em 1938; contratado como Investigador Estagiário com o vencimento anual de duzentas libras; não voltou a ser visto na Universidade depois do começo da guerra.
Jericho? Jericho? Para o director ele era, na melhor das hipóteses, uma memória vaga, uma mancha difusa de um adolescente num retrato de grupo. Em tempos talvez se tivesse lembrado do nome, mas a guerra tinha quebrado o ritmo das matrículas e das licenciaturas, lançando a vida académica num caos — o Clube Pitt estava transformado num restaurante e cultivavam-se batatas e cebolas nos jardins de St. John...
— Ele foi contratado recentemente para um trabalho da mais alta importância para o país — continuou o funcionário. — Agradecíamos que não o perturbassem.
— Compreendo — disse o director. — Compreendo. Vou dar ordens para não o incomodarem.
— Ficamos-lhe muito gratos.
O funcionário desligou. Com que então «Trabalho da maior importância para o país...» O velho professor sabia o que isso significava. Desligou e quedou-se, pensativo, a olhar o auscultador por breves momentos, posto o que foi procurar o chefe do economato.
Um colégio de Cambridge é uma aldeia, com a apetência de qualquer aldeia para a bisbilhotice — apetência que ainda mais se agudiza quando essa aldeia tem apenas,um décimo da população — e o regresso de Jericho deu lugar a horas e horas de especulação entre o pessoal.
Para começar, foi a forma como chegou — algumas horas após o telefonema para o director, de noite, já muito tarde e debaixo de um nevão, embrulhado numa manta de viagem, no banco traseiro de um cavernoso Rover do estado conduzido por uma jovem motorista com o uniforme azul escuro da Força Feminina da Marinha, a Womeris RoyalNavy. Kite, o porteiro, que se ofereceu para transportar as malas do visitante para o quarto, contou que Jericho se agarrou às suas duas malas de couro já muito gastas, recusando-se a largar qualquer delas, apesar de estar tão pálido e abatido que Kite estava a ver que ele não conseguia subir a escada de caracol com elas sem ajuda.
Dorothy Saxmundham, a camareira, foi a segunda pessoa a vê-lo, quando entrou no quarto, no dia seguinte, para o arrumar. Estava encostado às almofadas a olhar para a neve fina que caía na outra margem e nem tinha voltado a cabeça para olhar para ela, coitadinho, era como se ela não estivesse ali. Mas foi só ela puxar uma das malas para o lado e ele pôs-se de pé num ápice — «Por favor, não lhes mexa, muito obrigado, Mrs. Sax, muito obrigado» — e ela viu-se no corredor em menos de dez segundos.
Recebeu apenas uma visita: do médico do colégio, que o foi ver duas vezes, se demorou cerca de quinze minutos de cada vez e saiu sem dizer uma palavra.
Fez todas as refeições no quarto durante a primeira semana — não que comesse muito, segundo Oliver Bickerdyke, que trabalhava na cozinha: levava-lhe um tabuleiro três vezes por dia, que só ia buscar passada uma hora, quase sem que ele lhe tivesse tocado. O grande achado de Bickerdyke, que rendeu pelo menos uma boa hora de especulação à volta do fogão no apartamento do porteiro, foi apanhar o jovem a trabalhar à secretária de casaco vestido por cima do pijama, lenço ao pescoço e luvas calçadas. Geralmente Jericho tomava as suas precauções, ou seja, mantinha a porta do quarto fechada à chave e pedia delicadamente que deixassem ficar o tabuleiro do lado de fora. Mas, nessa manhã, seis dias após a sua chegada teatral, tinha-a deixado ligeiramente entreaberta. Bickerdyke, propositadamente, apenas tamborilou ao de leve na porta, tão ao de leve que ninguém o poderia ouvir excepto talvez alguma gazela que andasse a pastar nos jardins, transpondo o limiar da porta e aparecendo a um escasso metro da sua presa antes que Jericho tivesse tido tempo para se virar. Tudo o que Bickerdyke teve tempo de ver foram pilhas e pilhas de papéis («cheios de números, esquemas, símbolos gregos e coisas assim») antes de o trabalho ser tapado à pressa e ele ser mandado embora. A partir daí a porta nunca mais deixou de estar fechada à chave.
No dia seguinte à tarde, ao ouvir a história de Bickerdyke e não querendo ficar atrás, Dorothy Saxmundham acrescentou-lhe um detalhe da sua lavra. Mr. Jericho tinha um pequeno fogão a gás na saleta e uma lareira no quarto. Na lareira, que ela tinha ido limpar nessa manhã, via-se que ele tinha queimado uma grande quantidade de papéis.
Fez-se silêncio enquanto esta nova informação era digerida.
— Podia ser The Times — disse Kite ao fim de algum tempo. — Eu meto-lhe o jornal por baixo da porta todas as manhãs.
Não, declarou Mrs. Sax. Não era o jornal. Esses ainda estavam empilhados ao lado da cama. —Até parece que nem os lê, pelo menos não parece. Só faz as palavras cruzadas.
Bickerdyke sugeriu a seguir que ele podia ter estado a queimar cartas. — Talvez cartas de amor — acrescentou, com um sorriso trocista.
— Cartas de amor? Ele? Nem pensar — disse Kite, tirando o velho chapéu de coco, examinando em seguida a aba esfiapada e voltando a colocá-lo com aprumo na cabeça calva. — Além disso, ele não tem recebido cartas, nem uma só, pelo menos desde que chegou.
Viram-se por isso obrigados a concluir que o que Jericho andava a queimar na lareira era o seu trabalho — trabalho tão secreto que ninguém podia ver um fragmento que fosse dos desperdícios. Na ausência de factos concretos, a única coisa a fazer era dar largas à fantasia. Resolveram então que ele era um cientista a trabalhar para o governo. Não, trabalhava para os Serviços Secretos. Não, não — era apenas um génio. Tinha tido uma depressão nervosa. A sua presença em Cambridge era segredo de estado. Tinha amigos altamente colocados. Tinha-se encontrado com Mr. Churchill. Tinha-se encontrado com o rei...
Especulações que eram, todas elas — como eles teriam adorado sabê-lo — absoluta e inteiramente correctas.
Passados três dias, na manhã de sexta-feira, 26 de Fevereiro, o mistério ganhou novos contornos.
Kite estava a separar a correspondência, distribuindo as cartas do pequeno saco pelos cacifos cujos proprietários ainda se encontravam no colégio, quando lhe aparece, não um, mas três sobrescritos endereçados a T.R.G. Jericho, originariamente enviados para a Estalagem White Hart, Shenley Church End, Buckinghamshire, e daí para o Kings College. Por momentos Kite ficou confuso. Seria que aquele jovem tão estranho, para o qual tinham construído tão exótica personalidade, geria na realidade um bar? Encarrapitou os óculos na testa, segurou o sobrescrito afastado, com o braço esticado e assestou os olhos para o carimbo dos correios.
Bletchley.
Havia um velho mapa pendurado ao fundo da portaria onde se via o denso triângulo do sul da Inglaterra delimitado por Cambridge, Oxford e Londres. Bletchley estendia-se para um e outro lado de um importante entroncamento ferroviário, exactamente a meio caminho das duas cidades universitárias. Shenley Church End era um pequeno povoado a cerca de seis quilómetros para noroeste desse entroncamento.
Kite examinou o mais interessante dos três sobrescritos. Aproximou-o do nariz bolboso, raiado de pequenas veias azuladas, e cheirou-o. Há mais de quarenta anos que distribuía o correio e facilmente reconhecia uma letra de mulher: mais clara e mais perfeita, mais redonda e menos angular do que a de um homem. A chaleira fervia no bico de gás na parte de trás do fogão. Ele olhou em volta. Ainda não eram oito horas e mal se via lá fora. Poucos segundos depois ele já estava dentro do quarto segurando o sobrescrito por cima do jacto de vapor. Era feito do papel fino e de má qualidade dos tempos da guerra e estava colado com cola vulgaríssima. A ponta do sobrescrito, rapidamente humedecida, encaracolou-se, abrindo-se, e Kite extraiu um cartão.
Tinha acabado de o ler, quando ouviu a porta abrir-se.
A corrente de ar fez abanar as janelas. Devolveu o cartão ao sobrescrito, molhou o dedo mindinho no frasco de cola já a postos junto do fogão, fechou de novo a carta e espreitou para a entrada, para ver quem lá estava. Ia-lhe dando um ataque.
— Meu Deus... bom-dia... Mr. Jericho... senhor doutor...
— Chegou alguma coisa para mim, Mr. Kite? — a voz de Jericho era firme, mas ele parecia um pouco vacilante e agarrava-se ao balcão como um marinheiro que acaba de pôr os pés em terra ao fim de uma longa viagem. Era um jovem pálido, bastante baixo, de cabelo e olhos escuros — o que mais realçava ainda a palidez da pele.
— Que eu visse, não. Mas vou verificar.
Kite retirou-se com dignidade para o seu quarto e tentou alisar e secar o melhor possível com a manga o sobrescrito ainda húmido. Estava apenas ligeiramente amachucado. Meteu-o no meio de uma mancheia de cartas, voltou à portaria e pôs em prática — mesmo sendo ele o único a dizê-lo — uma brilhante pantomima, fingindo procurá-las.
— Não, não, nada, não. Ah, sim, está aqui qualquer coisa. Ora esta. E mais duas. — E Kite deu-lhas por cima do balcão. — Faz hoje anos, senhor doutor?
— Fiz ontem. —Jericho meteu os sobrescritos no bolso de dentro do sobretudo sem olhar para eles.
— Que se repita por muitos anos, e com saúde, senhor doutor. — Kite viu as cartas desaparecerem e deu um silenciosos suspiro de alívio. Encostou-se ao balcão de braços cruzados. — Posso ver se acerto na idade, senhor doutor? Se bem me lembro, veio para cá em trinta e cinco. Por isso, talvez vinte e seis?
— Diga-me uma coisa, Mr. Kite, esse é o meu jornal? Posso levá-lo já. Assim poupo-lhe o trabalho.
Kite tartamudeou qualquer coisa, endireitou-se e foi buscá-lo. Ao entregar-lhe o jornal fez uma última tentativa para meter conversa, congratulando-se com os sinais de progresso na frente russa já que, para ele, Estalinegrado e Hitler estavam arrumados — mas, claro que ele, Jericho, estaria mais actualizado nesses assuntos do que ele, Kite...? O jovem limitou-se a sorrir.
— Duvido que os meus conhecimentos sobre seja o que for possam estar tão actualizados como os seus, Mr. Kite, nem mesmo sobre mim próprio. Conhecendo os seus métodos...
Por um momento Kite não soube se tinha ouvido bem. Fitou Jericho demorada e incisivamente, e ele sustentou-lhe o olhar com os olhos escuros que de repente pareceram ganhar vida. Depois, ainda a sorrir, Jericho disse Bom-dia, meteu o jornal debaixo do braço e saiu. Kite ficou a vê-lo afastar-se através da janela de barras verticais da portaria — magro, enrolado no cachecol vermelho e branco do colégio, de andar incerto e cabeça baixa contra o vento. — Os meus métodos — repetiu de si para si. — Os meus métodos?
Nessa tarde, quando o trio, como sempre, se reuniu à hora do chá à volta do fogão a carvão, ele estava apto a dar uma explicação inteiramente nova para a presença de Jericho naquele local. Claro que não revelou como tinha obtido a informação, dizendo apenas que era digna de todo o crédito (deixou no ar a existência de uma conversa de homem para homem). Esquecendo o que anteriormente pensava das cartas de amor, Kite garantia agora cheio de confiança que o rapaz sofria obviamente de mal de amor.
Jericho foi abrir as cartas imediatamente. Preferiu endireitar os ombros e, ligeiramente projectado para a frente, arrostar com a ventania. Ao fim de uma semana de isolamento no quarto, a intensidade com que o oxigénio lhe fustigava o rosto dava-lhe uma alma nova. Virou à direita no Júnior Combination Room e seguiu pelo caminho de lajes que atravessava o colégio e a pequena ponte arqueada até à várzea da margem oposta. Para a sua esquerda ficava o Salão Nobre do colégio, para a sua direita, e para lá de um extenso relvado, a fachada de pedra maciça da capela. Uma pequena fila de meninos de coro atravessava nesse momento o guarda-vento, de opas adejantes.
Jericho parou. Uma rajada fê-lo perder o equilíbrio, obrigando-o a dar um passo atrás. Um passadiço de pedra saía do caminho, com o arco coberto de hera por podar. Olhou, por força do hábito, para as janelas do segundo andar. Estavam às escuras e com as persianas corridas. Também aí a hera crescia livremente, de tal maneira que vários dos pequenos vidros facetados se perdiam atrás da espessa folhagem.
Ele hesitou, mas depois saiu do caminho, passando por baixo do arco e perdendo-se nas sombras.
A escadaria era exactamente como ele a recordava, mas agora esta ala do colégio estava fechada e o vento tinha enchido o vão das escadas de folhas secas. Um velho jornal veio enrolar-se-lhe às pernas como um gato faminto. Experimentou o interruptor. Ouviu o clique, mas apenas isso. Não havia lâmpada. Mesmo assim, conseguiu ler o nome, um de três nomes pintados a branco numa placa de madeira, com elegantes maiúsculas, agora estaladas e sumidas.
Turing, A.M.
Como ele estava nervoso, quando subira pela primeira vez estas escadas — quando tinha sido? No Verão de 1938? Já lá ia um mundo inteiro — para ir encontrar um homem mais velho do que ele apenas cinco anos e tào tímido como um caloiro, com uma farta melena de cabelo escuro sobre os olhos: o grande Alan Turing, autor de Sobre os Números Computáveis, progenitor da Máquina Universal de Computar...
Turing tinha-lhe perguntado que tema ele ia escolher para o seu primeiro ano de investigação.
— A teoria dos números primos de Riemann.
— Mas eu estou a fazer investigação sobre Riemann.
— Eu sei — atirou-lhe Jericho de chofre. — Por isso é que o escolhi.
Turing tinha-se rido desta manifestação ostensiva de adoração do herói, e tinha acedido a orientar a pesquisa de Jericho, apesar de abominar o ensino.
Jericho estava agora parado no patamar e experimentou a porta de Turing. Fechada, naturalmente. Ficou com a mão cheia de pó. Tentou lembrar-se de como era o quarto. A impressão geral fora de sordidez. Livros, apontamentos, cartas, roupa suja, garrafas vazias e latas de comida espalhadas pelo chão. Um urso de pelúcia chamado Porgy em cima do fogão de sala e um violino decrépito encostado a um canto, que Turing tinha comprado num ferro-velho.
Turing era tímido de mais para se chegar a conhecer bem. Fosse como fosse, desaparecera quase por completo depois do Natal de 1938. Tinha cancelado as reuniões de orientação à última hora dizendo que tinha de ir a Londres. Ou então, Jericho subia as escadas, batia à porta e não obtinha resposta, embora sentisse que ele estava do outro lado. Quando, finalmente, por alturas da Páscoa de 1939, pouco depois de os nazis terem marchado sobre Praga, os dois homens voltaram a encontrar-se, Jericho ganhara coragem para dizer: — Olhe, senhor professor, se não quer orientar-me...
— Não é nada disso.
— Ou se está a fazer progressos na Hipótese de Riemann e não quer partilhar os resultados...
Turing sorrira. — Tom, garanto-lhe que não estou a fazer quaisquer progressos na investigação.
— Então o que...?
— Não é o Riemann. — E depois acrescentara, com toda a calma: — Sabe, há outras coisas a acontecer pelo mundo além da matemática...
Passados dois dias Jericho tinha encontrado um bilhete no cacifo: «Por favor, venha tomar um cálice de xerez ao meu quarto ao fim da tarde. F.J. Atwood.»
Jericho afastou-se do quarto de Turing. Sentia-se um pouco tonto. Agarrou-se ao corrimão já gasto, descendo os degraus um a um com todo o cuidado, como um velho.
Atwood. Ninguém recusava um convite de Atwood, professor de história antiga, director do colégio ainda Jericho não tinha nascido, homem relacionado ao mais alto nível em Whitehall. Era o mesmo que receber um convite do Todo Poderoso.
— Fala línguas? — tinha sido a primeira coisa que Atwood lhe perguntara enquanto servia as bebidas. Andava pelos cinquenta, era solteiro, casado com o colégio. Tinha os seus livros ostensivamente alinhados na estante atrás de si. A Arte da Guerra dos Gregos e dos Macedónios. César, um Homem de Letras. Tucídides e a Sua História.
— Só alemão. —Jericho tinha aprendido na adolescência a ler os grandes matemáticos do século dezanove — Gauss, Kummer, Hilbert.
Atwood meneara a cabeça e oferecera-lhe um dedal de um xerez muito seco num cálice de cristal, acompanhando o olhar de Jericho até aos livros. — Por acaso, conhece Heródoto? E a história de Histiaeus?
A pergunta era retórica, como quase todas as perguntas de Atwood.
— Histiaeus queria enviar uma mensagem da corte persa ao genro, o tirano Aristágoras, de Mileto, instigando-a à revolta. Contudo, receava que a mensagem fosse interceptada. A solução encontrada foi rapar a cabeça do seu servo mais fiel, tatuar a mensagem no crânio a descoberto, esperar que o cabelo voltasse a crescer e enviá-lo então a Aristágoras com o pedido de lhe cortar o cabelo. De êxito duvidoso, mas, neste caso, eficaz. À sua.
Jericho veio a saber mais tarde que Atwood contava a mesma história a todos os seus recrutas. A Histiaeus e o escravo careca seguiu-se Políbio e a cifra em quadrado, e depois a carta de César para Cícero usando um alfabeto em que o a aparecia cifrado como d, o b como e, o c como/ e assim por diante. Finalmente, ainda rodeando o assunto, mas cada vez mais próximo, viera a lição em etimologia.
— O termo latino crypta, da raiz grega krupth que significa «escondido, oculto». Daí, cripta, cemitério, e cripto, secreto. Cripto-comunisra, cripto-fascista... A propósito, você não é nada disso, pois não?
— Não, cemitério não sou.
— Cripto grama... — Atwood tinha levado o xerez à luz e examinado o líquido pálido. — Criptografia... O Turing disse-me que você é capaz de ser muito bom...
Jericho estava com febre quando chegou ao quarto. Fechou a porta e deixou-se cair de bruços na cama por fazer, sem tirar o casaco nem o cachecol. A certa altura ouviu passos e alguém bater à porta.
— O pequeno-almoço, senhor doutor.
— Deixe ficar. Obrigado.
— O senhor doutor está bem?
— Estou óptimo.
Ouviu o tinir do tabuleiro ao ser pousado no chão e passos a afastarem-se. O quarto parecia abater-se sobre ele, aumentando desmedidamente de volume — um canto do tecto tornou-se subitamente enorme, quase ao alcance da mão. Fechou os olhos e as visões assaltaram-no na escuridão.
O Turing e o seu tímido meio sorriso: — Tom, garanto-lhe que não estou a fazer quaisquer progressos na investigação...
O Logie, operando com a descodificadora no Anexo das Descodificadoras, a gritar mais alto do que o ruído das máquinas: — O primeiro-ministro acabou de telefonar para nos felicitar...
A Claire, afagando-lhe a face e sussurrando: — «Tadinho, dei-te mesmo a volta à cabeça, não dei?» Tadinho...
— «Cheguem-se para trás» — dizia uma voz de homem, a voz de Logie — «Cheguem-se para trás, deixem-no respirar..» E, depois, mais nada.
amigo... talvez no futuro... lamento saber que... à pressa... muito amor...» Fechou os olhos.
Quando acordou, a primeira coisa que fez foi olhar para o relógio. Tinha estado inconsciente durante uma hora. Sentou-se na cama e apalpou os bolsos do sobretudo. Tinha algures um bloco de notas onde assentava a duração de cada ataque e os sintomas. A lista era angustiantemente longa. Mas, em vez disso, encontrou os três sobrescritos.
Espalhou-os em cima da cama e examinou-os por uns momentos. Depois abriu dois. Um era um cartão da mãe e o outro da tia, ambas a mandarem-lhe os parabéns. Nenhuma delas fazia a mínima ideia do que ele andava a fazer e ambas, ele sabia-o, viviam com a frustração e o complexo de culpa de não o verem envergar o uniforme e ser abatido a tiro, como os filhos da maior parte das suas amigas.
— Mas o que é que eu digo às pessoas? — tinha-lhe perguntado a mãe, em desespero, numa das suas fugazes idas a casa, depois de mais uma vêz ele se ter recusado a dizer-lhe o que fazia.
— Diga-lhes que estou no serviço de comunicações do governo — respondera ele, recorrendo à fórmula que lhe tinham dito para usar perante interrogatório cerrado.
— Mas as pessoas vão querer saber um pouco mais do que isso.
— Nesse caso a conduta deles é suspeita e devia chamar a polícia. A mãe, perante a catástrofe social da sua mesa de bridge a ser
interrogada pela polícia local, remetera-se ao silêncio.
E a terceira carta? Tal como Kite já antes tinha feito, voltou-a de todos os lados e cheirou-a. Era imaginação sua ou tinha laivos de perfume? Cinzas de Rosas, da Bourjos, um frasquinho minúsculo que o tinha praticamente levado à falência no mês transacto. Usou a régua de cálculo como se fosse uma faca de papel e abriu o sobrescrito. Dentro estava um cartão baratucho, escolhido à pressa — uma taça de frutos, imagine-se — e uma mensagem convencional adequada às circunstâncias, ou pelo menos ele assim pensava, já que era a primeira vez que se via nesta situação. «Querido T... ver-te-ei sempre como um
Mais tarde, depois de ter feito as palavras cruzadas, depois de Mrs. Sax ter vindo arrumar o quarto, depois de Bickerdyke ter deixado mais um tabuleiro com comida à porta e tê-lo levado outra vez intacto, Jericho pôs-se de gatas, tirou uma mala debaixo da cama e abriu-a. Dobradas no meio da sua primeira edição Doubleday de 1930 d'As Histórias Completas de Sherlock Holmes, estavam seis folhas de papel almaço cobertas com a sua letra minúscula. Levou-as para a velha secretária colocada ao lado da janela e alisou-as.
«O codificador converte os dados introduzidos (linguagem normal, N) em cifra (Z) através de uma junção f. Assim Z = fiP,C) em que C corresponde à chave...»
Aparou o lápis, soprou as aparas e debruçou-se sobre as folhas de papel.
«Suponhamos que C tem N valores possíveis. Para cada valor de N temos de ver sef (Z, C) produz linguagem normal, em que f é função decifradora que produz N se C estiver correcta...»
O vento enrugava a superfície do Cam. Uma flotilha de patos balouçava nas ondas, sem se mexer, como barcos ancorados. Ele pousou o lápis e leu outra vez o cartão dela, tentando medir a emoção, o significado por detrás das frases banais. Seria possível, pensou ele, construir uma fórmula semelhante para as cartas de amor — para as cartas de amor que marcavam o fim do amor?
«Os dados introduzidos (sentimento, S) são convertidos numa mensagem (M) por uma mulher, através da função m. Assim M= m(S, V) em que V corresponde ao vocabulário. Suponhamos que V tem N valores possíveis...»
Os símbolos matemáticos esfumaram-se diante dos seus olhos. Levou o cartão para o quarto, para a lareira, ajoelhou-se e acendeu um fósforo. O papel incendiou-se fugazmente e contorceu-se nas suas mãos, transformando-se rapidamente em cinzas.
Gradualmente os seus dias foram ganhando forma. Levantava-se cedo e trabalhava duas ou três horas. Não em criptografia — tinha queimado tudo isso no dia em que queimara o cartão dela — mas em matemática pura. Depois dormia mais um pouco. Fazia as palavras cruzadas de The Times antes do almoço, cronometrando o tempo que levava no velho relógio de bolso do pai — nunca demorava mais de cinco minutos a completar um problema e uma vez levou apenas três minutos e quarenta segundos. Conseguia resolver uma série de complicados problemas de xadrez — «os hinos da matemática», como lhes chamava G.H. Hardy— sem precisar de peças ou tabuleiro. Tudo isto lhe dava a garantia de que o seu cérebro não tinha ficado embotado para sempre.
Depois das palavras cruzadas e do xadrez, passava em revista as notícias da guerra enquanto tentava comer alguma coisa sentado à secretária. Procurava evitar a Batalha de Inglaterra (HOMENS Mortos aos Remos: Vítimas dos Submarinos Congeladas nos SALVA-Vidas) e preferia concentrar-se na Frente Russa: Pavlograd, Demiansk, Rzhev... os Soviéticos pareciam estar a recapturar cidades com poucas horas de intervalo e divertia-se imenso ao ver o jornal falar do Dia do Exército Vermelho com tanto respeito como se fosse o Aniversário do Rei.
De tarde ia dar um passeio, todos os dias mais prolongado —
primeiro dentro dos muros do colégio, depois pela cidade vazia e, finalmente, aventurando-se nos campos gelados —, voltando antes do dia se apagar, para se ir sentar junto ao fogão a gás a ler o Sherlock Holmes. Começou a ir jantar à sala, embora recusasse muito delicadamente o convite do director para a mesa da direcção. A comida era tão má como em Bletchley, mas o ambiente era melhor, com a luz dos candelabros a reflectir-se nos pesados retratos emoldurados e a brilhar nas mesas compridas de carvalho polido. Ele aprendeu a ignorar os olhares ostensivamente curiosos do pessoal do colégio. As tentativas para meter conversa, cortava-as com um aceno.
Não se importava de estar sozinho. A sua vida sempre fora de solidão.
Filho único, enteado, menino «sobredotado» — houvera sempre alguma coisa a isolá-lo. Antes, não podia falar do seu trabalho, porque quase ninguém o entenderia. Agora, não podia falar dele porque era secreto. O que era o mesmo.
No fim da segunda semana já conseguia dormir a noite inteira, proeza que não conseguia fazer há mais de dois anos.
Tubarão, Enigma, beijo, bombe,(1) quebrar, gamar, saída, grelha — todo esse insano vocabulário da sua vida secreta que a pouco e pouco conseguira apagar do consciente. Para espanto seu, até a imagem de Claire lhe surgia difusa. Havia ainda lampejos vívidos da memória, especialmente de noite — o cheiro limonado do seu cabelo recém-lavado, os seus grandes olhos cinzentos, claros como água, a sua voz doce meio trocista, meio amuada — mas as partes surgiam desajustadas cada vez com mais frequência. A imagem completa desvanecia-se.
Escreveu à mãe e convenceu-a a não vir visitá-lo.
— Tempo — dissera o médico, fechando a maleta das mezinhas — só isso é que o vai curar, Mr. Jericho. O tempo.
Para grande surpresa de Jericho, parecia que o velhote tinha acertado. Ele ia pôr-se bom num instante. «Esgotamento nervoso», ou lá como lhe chamavam, não era afinal o mesmo que loucura.
E então, na sexta-feira, 12 de Março, eles vieram buscá-lo sem aviso. Na noite anterior ele tinha ouvido por acaso um professor já de certa idade queixar-se da nova base aérea que os Americanos estavam a construir a leste da cidade.
— Eu até lhes disse, já repararam que estão a escavar num local cheio de fósseis do Pleistoceno? Que eu próprio tirei daqui os cornos do Bos primigenius? Acreditam que o tipo apenas se riu?
Sorte dos Ianques, pensou Jericho, e resolveu nesse mesmo instante que seria o local ideal para o seu passeio da tarde, porque o ia levar cerca de quatro quilómetros mais longe do que antes tinha tentado. Saiu por isso mais cedo do que o habitual, logo após o almoço.
Atravessou rapidamente as traseiras do colégio, passou pela Biblioteca, pelas torres de açúcar de St. John, pelos campos de jogos, onde duas dúzias de miúdos de camisas vermelhas jogavam futebol, e virou à esquerda, seguindo paralelo a Madingley Road. Passados dez minutos tinha alcançado campo aberto.
*1. Termo francês. Grande máquina descodificadora. (N. da T.)
Kite agoirara neve, mas embora o frio se mantivesse, o sol brilhava e o céu apresentava-se gloriosamente luminoso — uma cúpula do mais puro azul por cima das planuras de East Anglia, profusamente cruzada por quilómetros e quilómetros dos reflexos prateados dos aviões e dos traços brancos das suas caudas. Antes da guerra, tinha passeado de bicicleta pela quietude destes campos quase todas as semanas quase sem ver um carro. Mas agora passou por ele a boa velocidade uma interminável correnteza de camiões americanos, obrigando-o a saltar para a berma — mais potentes, mais rápidos e mais modernos que os camiões do exército britânico, com a parte de trás coberta com oleados camuflados. Os rostos brancos dos aviadores dos Estados Unidos espreitavam por entre as sombras. De vez em quando os homens acenavam-lhe e ele acenava também, sentindo-se absurdamente inglês e complexado.
Por fim, avistou a nova base e ficou parado na estrada a ver três Fortalezas Voadoras levantarem voo ao longe, uma atrás da outra — aviões enormes, dir-se-ia que pesados até de mais, ou pelo menos Jericho assim pensava, para descolarem do solo. Aceleraram pela nova pista cimentada, roncando de frustração, sugando o ar em ânsias de libertação até que, de repente, uma nesga de luz surgia por baixo deles, tornando-se cada vez maior, e eles se elevavam nas alturas.
E ficou por ali quase meia hora, a sentir o ar pulsar com as vibrações dos motores, a sentir o cheiro vago do combustível dos aviões no ar gelado. Jamais havia visto tal demonstração de poder. Os fósseis do Pleistoceno, pensou ele com soturno deleite, deviam estar agora reduzidos a pó. Qual era aquela frase de Cícero que Atwood tanto gostava de citar? «Nervos belli, pecuniam infinitam». As contigências da guerra, dinheiro a rodos.
Olhou para o relógio e percebeu que era melhor voltar, se queria chegar ao colégio antes do anoitecer.
Tinha percorrido cerca de dois quilómetros, quando ouviu o ruído de um motor atrás de si. Um jipe ultrapassou-o e parou em derrapagem. O condutor, enfiado num pesado sobretudo, pôs-se de pé e chamou-o:
— Eh, pá! Queres boleia?
— É muito amável. Obrigado.
— Então salta prà'qui.
O americano não estava para conversas, o que muito agradava a Jericho, que ia agarrado ao banco com as duas mãos e a olhar em frente enquanto eles saltavam e chocalhavam a toda a velocidade pelas estradas cada vez mais crepusculares que conduziam à cidade. O condutor deixou-o nas traseiras do colégio, acenou-lhe, acelerou e partiu. Jericho ficou a vê-lo desaparecer, posto o que deu meia volta e entrou pelo portão.
Antes da guerra, este passeio de trezentos metros, a esta hora do dia, era o passeio favorito de Jericho: o caminho atravessava um tapete de crocos malva e amarelos, e as lajes desgastadas eram iluminadas por lanternas vitorianas trabalhadas, tendo à sua esquerda as espiras da capela e, à direita, as luzes do colégio. Mas os crocos estavam atrasados este ano, as lanternas não se tinham voltado a acender desde 1939 e um inestético depósito de água desfigurava os famosos contornos da capela. Só uma luz brilhava tímida no colégio e, à medida que se aproximava, foi-se apercebendo de que era a janela do seu quarto.
Estacou, de sobrolho franzido. Teria deixado o candeeiro da secretária aceso? Tinha a certeza de que não. Voltando a olhar, viu uma sombra, um movimento, uma figura desenhada no pálido quadrado amarelado. Dois segundos depois a luz mantinha-se acesa no seu quarto.
Não era possível, ou era?
Desatou a correr. Cobriu a distância que o separava das escadas em trinta segundos e galgou os degraus como um atleta. As botas matraqueavam as pedras gastas. — Claire? — gritou. — Claire? — Ao chegar ao patamar encontrou a porta do quarto aberta.
— Calma, meu velho — disse uma voz masculina de dentro do quarto. — Vais ter uma desilusão.
Guy Logie era um homem alto, cadavérico, dez anos mais velho do que Jericho. Estava deitado de costas no sofá voltado para a porta, com a cabeça pousada num dos braços e os tornozelos ossudos no outro, e com as longas mãos elegantemente cruzadas sobre o estômago. Apertava um cachimbo entre os dentes e ia lançando anéis de fumo para o tecto. Os halos difusos elevavam-se no ar, contorcidos, acabando por se desfazerem e dissolverem no éter. Tirou o cachimbo da boca que se abriu num bocejar elaborado que pareceu apanhá-lo de surpresa.
— Oh, meu Deus, desculpa. — Abriu os olhos e passou a uma posição sentada. — Olá, Tom.
— Oh, por favor. Por favor não te levantes — disse Jericho. — Por favor, faço questão, faz de conta que estás em tua casa. Talvez queiras um chá?
— Chá. Mas que rica ideia.— Antes da guerra, Logie tinha sido chefe do departamento de matemática de um colégio particular de grandes tradições. Tinha medalhas ganhas no râguebi e no hóquei e a ironia brotava dele como pedras diante de um rinoceronte à desfilada. Atravessou o quarto e agarrou Jericho pelos ombros. — Anda cá. Deixa-me olhar bem para ti, meu velho — disse ele, virando-o de todos os lados debaixo do candeeiro. — Meu Deus, estás com um aspecto terrível.
Jericho conseguiu libertar-se. — Eu estava óptimo.
— Desculpa. Nós batemos. Foi o teu porteiro que nos deixou entrar.
— Nós?
Ouviu-se um ruído no quarto.
— Viemos de carro com bandeira e tudo. O teu querido Mr. Kite ficou impressionadíssimo. — Logie seguiu o olhar de Jericho em direcção à porta do quarto. — Ah, isso? É o Leveret. Não lhe ligues. — Tirou o cachimbo da boca e chamou: — Mr. Leveret! Venha conhecer Mr. Jericho. O famoso Mr. Jericho.
Um homenzinho de rosto miúdo apareceu à porta do quarto.
— Boa tarde, Mr. Jericho. — Leveret envergava uma gabardina e um chapéu de feltro e tinha um ligeiro sotaque do norte.
— Que diabo está você a fazer aqui?
— Ele está só a certificar-se de que estás sozinho — disse Logie docemente.
— Claro que estou sozinho, que diabo!
— E as escadas estão sem ninguém? — inquiriu Leveret. — E também não há ninguém nos quartos de cima e de baixo?
Jericho ergueu as mãos aos céus, exasperado. — Guy, por amor de Deus!
— Acho que está tudo desimpedido — disse Leveret a Logie. — Já corri os reposteiros do blackout lá dentro. — E, voltando-se para Jericho: — Importa-se que faça o mesmo aqui, Mr. Jericho? — Mas não esperou por permissão. Atravessou o quarto em direcção à pequena janela de vidrinhos, abriu-a, tirou o chapéu e deitou a cabeça de fora, espreitando para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita. Do rio elevava-se uma neblina gélida e uma baforada de ar gelado entrou no quarto. Satisfeito, Leveret voltou para dentro, fechou a janela e correu os reposteiros.
Seguiram-se quinze segundos de silêncio. Logie quebrou-o, esfregando as mãos e dizendo: — Dá para acender a lareira, Tom? Já me tinha esquecido de como isto é no Inverno. Pior do que na minha escola. E o chá? Não falaste em chá? Quer um chá, Mr. Leveret?
— Ah, sim. Obrigado.
— E que tal umas torradinhas? Vi que tens aí pão na cozinha, Tom. Uma bela torrada à lareira do colégio, que tal? Era como voltar aos velhos tempos, não achas?
Jericho fitou-o por um instante. Abriu a boca para protestar, mas mudou de ideias. Tirou uma caixa de fósforos do fogão de sala, acendeu um e ligou o gás. Como sempre, a pressão era baixa e o fósforo apagou-se. Acendeu outro e desta vez pegou. Uma chama tíbia brilhou azulada e começou a alastrar. Jericho atravessou o patamar em direcção à pequena cozinha, encheu a chaleira e acendeu o bico de gás. Na lata havia de facto um pão — Mrs. Saxmundham devia tê-lo lá posto no início da semana — de que ele cortou três fatias pardas. No guarda-loiça encontrou um frasco de doce de antes da guerra, surprieendentemente em bom estado depois de ele ter raspado a cobertura branca de bolor que o cobria, e um resto de margarina num pires rachado. Dispôs estas iguarias num tabuleiro e olhou fixamente para a chaleira.
Se calhar tudo isto era um pesadelo? Mas, quando olhou para trás, para a saleta, lá estava Logie estendido outra vez no sofá e Leveret escarranchado na borda de uma das cadeiras, pouco à vontade, com o chapéu na mão, como uma testemunha pouco fidedigna à espera de ir contar no tribunal uma história mal ensaiada.
Era evidente que traziam más notícias. O que mais podia ser, senão más notícias? O chefe do Anexo 8 não ia fazer setenta quilómetros no raio do precioso carro do director interino só para o vir visitar. Iam despedi-lo. «Desculpa, meu velho, mas não podemos levar passageiros...» Jericho sentiu-se de repente muito cansado. Massajou a testa com a base da mão. A por demais conhecida enxaqueca estava de volta, estendendo-se da cavidade sinusoidal até à parte de trás dos olhos.
E ele que julgara que fosse ela. Até parecia anedota. Durante cerca de meio minuto, enquanto corria para a janela iluminada, ele tinha-se sentido feliz. Até dava vontade de chorar.
A chaleira começou a ferver. Abriu a lata do chá e descobriu que os anos tinham reduzido as folhas a pó. Mesmo assim, deitou-as com uma colher para dentro do bule e escaldou-as com a água a ferver.
Logie declarou tratar-se de um verdadeiro néctar.
Depois, mantiveram-se sentados em silêncio na penumbra. A única luz vinha da lâmpada fraca do candeeiro da secretária atrás deles e da chama azulada do bico de gás aos seus pés. O gás silvava. Pelos reposteiros entrou um ténue alvoroço de chapinhadelas e o grasnar triste de um pato.
Logie estava sentado no chão, com as pernas compridas todas estendidas, a brincar com o cachimbo. Jericho estava refastelado numa das duas poltronas, cofiando distraidamente o tapete com o garfo de espetar as torradas. Leveret recebera ordem para montar guarda do lado de fora: — Importas-te de fechar as duas portas, meu velho? A interior e a exterior, se fazes favor?
O cheirinho quente das torradas pairava no quarto. Os pratos tinham sido empurrados para um canto.
— Isto é de facto muito agradável — murmurou Logie. Acendeu um fósforo e os objectos colocados em cima do fogão de sala projectaram sombras breves na parede húmida. — Embora a gente reconheça que é de certa forma afortunado por estar num lugar como Bletchley, se pensarmos onde é que de outra maneira teríamos ido parar, uma pessoa acaba por se sentir muito em baixo com toda aquela monotonia. Não achas?
— Acho que sim. — Por amor de Deus, acaba com isto, pensou Jericho, espetando umas quantas migalhas. Despede-me e vai-te embora.
Logie sorveu o cachimbo com satisfação e disse calmamente: — Sabes, temos andado todos muito preocupados contigo, Tom. Espero que não te tenhas sentido abandonado.
Perante tão inesperada prova de preocupação, Jericho sentiu, envergonhado, duas lágrimas teimosas a picarem-lhe os olhos e continuou de olhos pregados no tapete. — Acho que fiz uma bela figura de urso, Guy. E o pior é que não me consigo lembrar da maior parte do que se passou. Há cerca de uma semana que está quase completamente em branco.
Logie desenhou um gesto compreensivo com o cachimbo. — Tu não és o primeiro a dar cabo da saúde naquele lugar, meu velho. Leste no The Times que o pobre do Dilly Knox morreu a semana passada? Deram-lhe uma medalha no fim. Nada de luxos... Companheiro da Ordem de São Miguel e São Jorge, acho eu. Fez questão de a receber em casa, pessoalmente, sentado na cadeira. Morreu passados dois dias. De cancro. Um horror. E depois foi o Jeffreys. Lembras-te dele?
— Um que também veio para Cambridge para convalescer.
— Esse mesmo. E o que é que aconteceu ao Jeffreys?
— Morreu.
— Ah, que pena. — Logie deu mais umas voltas ao cachimbo, típicas de qualquer fumador, calcando o tabaco e acendendo outro fósforo.
Não os deixes porem-me nos administrativos, foi a prece de Jericho. Ou nos Serviços Sociais. A Claire tinha-lhe dito que havia um homem nos Serviços Sociais encarregado da distribuição dos quartos que obrigava as raparigas a sentarem-se ao colo dele se queriam quartos com casa de banho privativa.
— Foi o Tubarão, não foi — disse Logie, deitando-lhe um olhar astuto por entre a nuvem de fumo — que acabou contigo?
— Sim. Talvez. Acho que acertaste.
O Tubarão acabou quase com todos nós, pensou Jericho.
— Mas tu deste conta dele — continuou Logie. —Tu deste conta do Tubarão.
— Eu não diria isso propriamente. Nós demos conta dele.
— Não. Tu deste conta dele. — Logie fez girar o fósforo apagado entre os longos dedos. — Tu deste conta dele e depois ele deu conta de ti.
Jericho teve uma visão fugaz e viu-se numa bicicleta, sob um céu estrelado. A noite estava gelada e ouvia estalar o gelo.
— Olha — disse ele, tomado de súbita irritação — não achas que devíamos ir direitos ao assunto, Guy? Quero dizer, esta coisa do chá à lareira a recordar os velhos tempos... é tudo muito bonito, mas vamos lá...
— Mas este é o assunto, meu velho. — Logie dobrou os joelhos até tocarem no queixo e colocou as mãos à volta das canelas.
— Tubarão, Lapa, Golfinho, Ostra, Toninha, Caramujo. Os seis peixinhos do nosso aquário, os seis Enigmas navais alemães. E o maior de todos é o Tubarão. — Fitou o lume e Jericho pôde pela primeira vez ver-lhe bem o rosto, fantasmagórico à luz azulada da chama, semelhante a uma caveira. As órbitas eram cavernas de escuridão. Parecia não dormir há uma semana. Bocejou outra vez.
— Sabes, estava a ver se me lembrava, quando vinha para cá no carro, quem é que teve primeiro a ideia de lhe chamar Tubarão.
— Não me lembro — disse Jericho. — Tenho a impressão que foi o Alan. Ou talvez tenha sido eu. Seja como for, o que é que isso interessa?
Surgiu e pronto. Ninguém discutiu. Tubarão era o nome ideal. Via-se logo que ia ser um monstro.
— E era. — Logie soltou uma fumaça, começando a desaparecer atrás da fumarada. O tabaco de má qualidade dos tempos da guerra cheirava a palha queimada. — E ainda é.
Havia algo de estranho na forma como pronunciou a última palavra — uma vaga hesitação — que fez Jericho erguer os olhos, atento.
Os Alemães chamavam-lhe Tritão, como o filho de Posídon, o semideus dos oceanos que soprou por uma concha retorcida para chamar as fúrias das profundezas. — Humor alemão — resmungara Puck, quando descobriram o nome de código. — O estuporado humor alemão... — Mas em Bletchley preferiam Tubarão. Era uma tradição e eles eram britânicos e cultivavam as suas tradições. Deram a todas as cifras do inimigo nomes de seres marinhos. À cifra naval principal chamaram Golfinho. Toninha era a chave do Enigma para os barcos de superfície do Mediterrâneo e a frota mercante do Mar Negro. Ostra era uma variante de Golfinho «só para oficiais». Caramujo era a variante «só para oficiais» de Toninha.
E Tubarão? Tubarão era a cifra operacional dos submarinos.
Tubarão era única. Todas as outras cifras eram produzidas por uma máquina Enigma normalizada de três rotores, mas Tubarão foi produzida por uma máquina Enigma com um quarto rotor especialmente adaptado, o que tornava a cifra vinte e seis vezes mais difícil de descodificar. Só os submarinos tinham direito a ela.
Entrou ao serviço a 1 de Fevereiro de 1942 e lançou Bletechley numa escuridão quase total.
Jericho recordava os meses que se seguiram como um interminável pesadelo. Antes do advento do Tubarão, os criptanalistas do Anexo 8 tinham conseguido decifrar a maior parte das transmissões dos submarinos no espaço de um dia desde a intercepção, o que dava tempo de sobra para redefinir as rotas dos comboios de navios, desviando-os das concentrações de submarinos alemães, «alcateias» na gíria. Porém, nos dez meses que se seguiram ao aparecimento do Tubarão, só conseguiram interceptar mensagens em três ocasiões e, mesmo nessas alturas, levaram de cada vez dezassete dias a decifrá-las, pelo que a informação, quando chegou, era virtualmente inútil, fazia parte do passado.
Para os incentivar, tinham afixado um gráfico no anexo dos criptanalistas, com a tonelagem dos navios afundados mensalmente pelos submarinos alemães no Atlântico Norte. Em Janeiro, antes de terem neutralizado Bletchley, os Alemães destruíram quarenta e oito navios dos Aliados. Em Fevereiro afundaram setenta e três. Em Março, noventa e cinco. Em Maio, cento e vinte...
— A dimensão do nosso insucesso — disse Skynner, chefe da Secção Naval, num dos seus portentosos discursos semanais — mede-se pelos cadáveres dos homens afogados.
Em Setembro, foram afundados noventa e cinco navios. Em Novembro, noventa e três...
Até que apareceram o Fasson e o Grazier.
Algures, na distância, o relógio do colégio fez soar as suas badaladas. Jericho deu por si a contá-las.
— Estás a sentir-te bem, meu velho? De repente ficaste muito calado.
— Desculpa. Estava só a pensar. Lembras-te do Fasson e do Grazier?
— Fasson e quem? Desculpa, mas acho que nunca os vi.
— Não. Nem eu. Nenhum de nós os viu.
Fasson e Grazier. Nunca chegou a saber os primeiros nomes. Um primeiro-tenente e um marinheiro robusto. O torpedeiro deles tinha ajudado a apanhar um submarino, o 459, no Mediterrâneo oriental. Tinham largado cargas de profundidade, obrigando-o a vir à superfície. Foi cerca das dez da noite. O mar estava encapelado e o vento soprava forte. Depois de os sobreviventes alemães terem abandonado o submarino, os dois marinheiros britânicos tinham-se despido e nadado até lá, alumiados pelos holofotes. O submarino já estava a afundar-se, metendo água rapidamente pelo buraco aberto na torre pelos tiros de canhão. Mas eles ainda conseguiram trazer um monte de documentos secretos da sala de transmissões, entregando-os a uma equipa que os abordara num outro barco, e tinham voltado para irem buscar a máquina Enigma, quando o submarino se empinou subitamente e mergulhou a pique. E eles afundaram-se com o submarino — oitocentos metros de profundidade, dissera o tipo da Marinha quando lhes contou a história no Anexo 8. — Resta-nos esperar que já estivessem mortos quando bateram no fundo.
E depois tinha-lhes entregado os livros dos códigos. Isto passou-se no dia 24 de Novembro de 1942. Mais de nove meses e meio depois de o blackout ter começado.
À primeira vista não pareciam sequer valer a vida de dois homens: dois pequenos panfletos: O Livro de Mensagens Curtas e o Livro de Códigos Meteorológicos, impressos a tinta solúvel em mataborrão cor-de-rosa, pensados para serem lançados à água pelo operador de rádio ao primeiro sinal de perigo. Para Bletchley, porém, não tinha preço, valendo mais do que todos os tesouros submersos recuperados ao longo da história. Jericho ainda agora os sabia de cor. Fechou os olhos e lá estavam os símbolos, a queimarem-lhe o fundo da retina.
T= Lufttemperatur inganzen Celsius-Graden. —28C= a. —27C= b. - 26C=c...
Os submarinos emitiam boletins meteorológicos diários: temperatura do ar, pressão barométrica, velocidade do vento, condições de nebulosidade... A Pequena Cifra do Boletim Meteorológico reduzia esses dados a meia dúzia de letras e essa meia dúzia de letras era codificada na Enigma. A mensagem era então transmitida em Morse dos submarinos e captada pelas estações meteorológicas da marinha costeira alemã. As estações meteorológicas usavam os dados enviados pelos submarinos para fazerem boletins meteorológicos próprios. Estes boletins eram depois retransmitidos uma ou duas horas mais tarde, em máquinas Enigma de três rotores para codificação de boletins meteorológicos — uma cifra que Bletchley conseguia decifrar — para uso de todos os barcos alemães. Esta era a porta traseira de ataque ao Tubarão. Primeiro, lia-se o boletim meteorológico. Depois voltava a codificar-se o boletim. E o que ficava, por um processo de dedução lógica, era o texto que tinha sido introduzido na Enigma de quatro rortores algumas horas antes. Era a grelha perfeita. O sonho de qualquer criptanalista.
Mas continuavam a não conseguir decifrá-lo. Todos os dias os criptanalistas, e entre eles Jericho, metiam as possíveis soluções nas descodificadoras — enormes computadores electromecânicos, do tamanho de um roupeiro onde se pode entrar, que produziam um ruído semelhante a uma máquina de tricotar — e ficavam à espera de saber qual das soluções propostas estava correcta. E todos os dias era em vão que esperavam pela resposta. A tarefa era simplesmente incomensurável. Mesmo uma mensagem codificada numa Enigma de três rotores podia levar vinte e quatro horas a descodificar, enquanto as descodificadoras, sempre a matraquearem, procediam a milhões e milhões de combinações. Uma Enigma de quatro rotores, ao multiplicar os números por um factor de vinte-seis, levaria teoricamente quase um mês para fazê-lo. Jericho trabalhou três semanas sem interrupção, e se dormitava uma ou duas horas era para sonhar invariavelmente com homens afogados. «Resta-nos esperar que já estivessem mortos quando bateram no fundo...» O seu cérebro funcionava para lá do cansaço. Doía-lhe fisicamente, como um músculo forçado. Começou a sofrer perdas de memória. Duravam apenas alguns segundos, mas chegavam para o assustar. Num momento estava a trabalhar no anexo, debruçado sobre a régua de cálculo, e no momento seguinte tudo à sua volta se tinha esbatido e saltado em falso, como um filme a saltar num projector. Conseguiu convencer o médico do acampamento a dar-lhe Benzedrina, mas isso só contribuiu para piorar as suas alterações de humor, seguindo-se aos períodos de excitação e frenesi períodos de prostração cada vez maior.
Curiosamente, quando a solução surgiu, verificou-se que nada tinha a ver com a matemática, e posteriormente ele recriminar-se-ia furiosamente por se ter deixado prender demasiado aos pormenores. Se não estivesse tão cansado, talvez tivesse conseguido distanciar-se o suficiente e ter decifrado o código mais cedo.
Foi num sábado à noite, o segundo sábado de Dezembro. Cerca das nove horas, Logie tinha-o mandado para casa. Jericho tentara protestar, mas Logie atalhara: — Não, acabas por te matar se continuas a trabalhar a este ritmo, o que vai ser mau para toda a gente, meu lindo, especialmente para ti. — Assim sendo, Jericho tinha voltado em depauperada pedalada para o seu apartamento por cima do bar de Shenley Church End, arrastando-se em seguida até à cama e enfiando-se debaixo dos cobertores. Ouviu em baixo a campainha anunciar os últimos pedidos, ficou a ouvir sair os últimos clientes e o bar encerrou. As horas mortas, passou-as deitado a olhar para o tecto perguntando-se se mais alguma vez voltaria a ser capaz de adormecer, sentindo a cabeça trepidar como uma máquina que não conseguia desligar.
Tinha-se tornado óbvio desde o primeiro momento em que o Tubarão fizera a sua aparição que a única solução aceitável e duradoura era redesenhar as descodificadoras, de modo a tomar em consideração o quarto rotor. Isto, porém estava a revelar-se um processo assustadoramente lento. Se ao menos eles encontrassem maneira de completar a missão que Fasson e Grazier tinham começado de forma tão heróica e conseguissem roubar uma Enigma Tubarão, isso iria facilitar-lhes grandemente o trabalho. Mas as Enigmas Tubarão eram as jóias da coroa da Marinha alemã. Somente os submarinos as possuíam. Somente os submarinos e, evidentemente, as centrais de comunicações com os submarinos, em Sainte-Assise, no sudoeste de Paris.
Talvez um ataque relâmpago dos comandos a Sainte-Assise? Com pára-quedistas? Considerou a imagem por momentos e depois pô-la de parte. Impossível. E, de qualquer maneira, inútil. Mesmo que, por milagre, conseguissem trazer a máquina, os Alemães ficavam a saber do ocorrido e mudavam o sistema de comunicações. O futuro de Bletchley dependia de os Alemães continuarem convencidos de que a Enigma era inexpugnável. E nada poderia ser feito que viesse abalar essa confiança.
Espera aí.
Jericho sentou-se na cama.
Espera aí, com um raio.
Se só os submarinos e os controladores sediados em Sainte-Assise tinham acesso às Enigmas de quatro rotores — e Bletchley sabia com toda a certeza que assim era — como diabo é que as estações meteorológicas costeiras decifravam as transmissões dos submarinos?
Eis uma pergunta que ninguém se tinha ainda lembrado de fazer e que se afigurava fundamental.
Para se ler uma mensagem codificada numa máquina de quatro rotores era preciso ter-se uma máquina de quatro rotores.
Ou seria que não?
Se é verdade, como alguém disse um dia, que o génio é «um relâmpago a ziguezaguear pelo cérebro», então, nesse instante, Jericho entendeu o que era o génio. E viu a solução iluminar-se diante dos seus olhos como uma paisagem.
Agarrou o roupão e enfiou-o por cima do pijama. Pegou no sobretudo, no cachecol, nas meias e nas botas e, em menos de um minuto, estava montado na bicicleta, ziguezagueando pela vereda batida de luar rumo a Bletchley Park. As estrelas cintilavam e o solo estava duro como ferro, da geada. Sentia-se absurdamente eufórico e ria como um louco, enfiando-se deliberadamente nas poças geladas ao longo da berma, fazendo estalar as crostas geladas, como peles de tambor, sob os pneus da bicicleta. A meia encosta deixou a bicicleta acelerar até Bletchley. O campo fugia para trás e a cidade estendia-se por baixo dele enluarada, pobre e feia, como sempre, mas esta noite belíssima, tão bela como Praga ou Paris, alcandorada de um lado e outro do rio cintilante formado pela linha férrea. No ar parado, ouviu um comboio, a um quilómetro de distância, em manobras num ramal — a explosão súbita e aterradora do escape da locomotiva seguida de uma série de tinidos e, depois, da prolongada expulsão de vapor. Um cão ladrou e outro respondeu. Passou pelo cemitério e pelo monumento aos mortos em combate, travou, para evitar derrapar no gelo, e virou à esquerda em Wilton Avenue.
Estava ofegante de cansaço quando chegou ao anexo, quinze minutos depois, de tal maneira que mal conseguia falar para dar conta da descoberta que tinha feito, tomando o fôlego e parando para rir ao mesmo tempo: — Eles... estão... a usá-la... como se... fosse... de... três... rotores... deixam... ficar... o... quarto... rotor... neutralizado... quando... fazem... as... previsões... meteorológicas... os... filhos... da... mãe...
A sua chegada causou grande alvoroço. O turno da noite parou por completo e juntaram-se todos preocupadíssimos à volta dele — lembrava-se agora de Logie, Kingcome, Puck e Proudfoot — e era visível pelas caras deles que pensavam que era desta que ele tinha enlouquecido de vez. Sentaram-no numa cadeira, deram-lhe uma caneca de chá e disseram-lhe para repetir tudo outra vez desde o início, mas agora devagar.
Ele assim fez, sílaba a sílaba, não fosse haver alguma falha na lógica do seu raciocínio. As Enigmas de quatro rotores estavam restringidas aos submarinos e a Sainte-Assise: certo? Certo. Por conseguinte, as estações costeiras só podiam decifrar mensagens codificadas em Enigmas de três rotores: certo? Pausa. Certo. Por conseguinte, quando os submarinos enviavam os seus boletins meteorológicos, os operadores de rádio tinham logicamente de desligar o quarto rotor, pondo-o provavelmente em zero.
Depois, tudo aconteceu num ápice. Puck galgou o corredor até à Sala Grande e distribuiu as melhores grelhas meteorológicas pelos vários cavaletes. Às quatro da manhã tinham um menu para introduzir nas descodificadoras. À hora do pequeno-almoço um dos painéis da descodificadora anunciava uma solução e Puck atravessou a cantina em louca correria, como um garoto, a gritar: — Já saiu! Já saiu!
O resto é lendário.
Ao meio-dia, Logie telefonou para o Almirantado e disse para a Sala de Detecção de Submarinos ficar em alerta. Duas horas mais tarde tinham decifrado o tráfego Tubarão para a segunda-feira anterior e as Teleprincesas, as lindíssimas raparigas da Sala de Teleimpressão, começaram a enviar para Londres as mensagens descodificadas e traduzidas. Tratava-se na verdade das jóias da coroa. Mensagens de pôr os cabelos em pé.
De: Submarino do capitão Schroder Forçado a submergir por torpedeiros. Contacto nulo. Última posição do inimigo às 0815 quadrícula 1849. Rota 45 graus, velocidade 9 nós.
De: Giladorne
Atacámos. A posição correcta do comboio é AK1984.
050 graus. Estou a reabastecer e mantenho contacto.
De: Hause
às 0115 na quadrícula 3969 atacado, foguetes e fogo de artilharia, mergulhou, cargas de profundidade. danos nulos. Estou na quadrícula AJ3996. Todos os Torpedos, 70 CBM.
De: Oficial Superior, Submarinos
Para: Alcateia «Draufgànger»
Amanhã às 1700 comparecer na nova linha de patrulhamento da quadrícula ak2564 a 2994. operações contra comboio rumo leste que às 1200/7/12 estava na quadrícula AK4189. Rota 050 para 070 graus. Velocidade
APROXIMADA 8 NÓS.
À meia-noite tinham decifrado, traduzido e enviado para Londres noventa e duas mensagens Tubarão dando ao Almirantado a localização aproximada e as tácticas de metade da frota de submarinos alemã.
Jericho estava no Anexo das Descodificadoras, quando Logie o encontrou. Tinha andado a correr de um lado para o outro durante grande parte das últimas nove horas e estava agora a supervisionar a reconversão de uma das máquinas, ainda de pijama por baixo do sobretudo, para gáudio das operadoras do Wren,(1) que trabalhavam com a descodificadora. Logie tomou a mão de Jericho entre as suas e deu-lhe um vigoroso aperto de mão.
— O primeiro-ministro! — gritou ao ouvido de Jericho, sobrepondo-se ao matraquear das descodificadoras.
— O quê?
— O primeiro-ministro acabou de telefonar a dar-te os parabéns! A voz de Logie parecia vir de muito longe. Jericho baixou-se
para ouvir melhor o que Churchill tinha dito, mas nisto o chão cimentado dissolveu-se debaixo dos seus pés e ele sentiu-se a mergulhar na escuridão.
— É — disse Jericho.
— O quê, meu velho?
— Ainda agora disseste que o Tubarão era um monstro e depois disseste que é um monstro. — Apontou o garfo das torradas a Logie e acrescentou: — Já sei porque vieste. Perdeste-o, não foi?
Logie resmungou e pôs-se a olhar para o lume, e Jericho sentiu-se
*1. Wren — Womens Royal Naval Service: Corpo Feminino Da Marinha Real Britânica. (N. da T.)
como se alguém lhe tivesse colocado uma pedra no coração. Recostou-se na poltrona, a abanar a cabeça, e deu uma gargalhada.
— Obrigado, Tom — disse Logie, serenamente. — Ainda bem que achas graça.
— E eu a pensar todo este tempo que tinhas vindo aqui para me mandares embora. Esta tem graça. Imensa graça, não achas, meu velho?
— Que dia é hoje? — perguntou Logie.
— Sexta-feira.
— Certo, certo. — Logie apagou o cachimbo com o polegar e meteu-o no bolso. Depois deu um suspiro. — Ora deixa cá ver. Isso quer dizer que a coisa se deve ter passado na segunda-feira. Não, na Terça. Desculpa. Temos dormido muito pouco ultimamente.
Passou a mão pelo cabelo já a escassear e Jericho reparou pela primeira vez que estava a ficar bastante grisalho. Então não sou só eu, pensou, somos todos nós que estamos a cair aos bocados. É da falta de ar puro. Da falta de sono. Da falta de comida fresca. Das semanas de seis dias e dos dias de doze horas...
— Nós estávamos quase a apanhá-los quando te vieste embora — disse Logie. — Tu sabes como é. Claro que sabes. Foste tu que escreveste aquele maldito livro. Ficávamos à espera que no Anexo 10 decifrassem a cifra principal dos boletins meteorológicos e então, por volta da hora de almoço, se a sorte ajudasse, tínhamos obtido grelhas suficientes para tratar os códigos dos boletins meteorológicos do dia. Isso fornecia-nos três das posições do quarto rotor e depois esbarrávamos com o Tubarão. O tempo variava. Umas vezes chegávamos à solução num dia, outras só em três ou quatro. Mas o que importava é que a coisa valia ouro e nós éramos os meninos bonitos do governo.
— Até terça-feira.
— Até terça-feira. — Logie olhou de relance para a porta e baixou a voz. — É uma verdadeira tragédia, Tom. Nós tínhamos reduzido as baixas no Atlântico Norte em 75 por cento. E isso representa cerca de trezentas mil toneladas de navios por mês. O serviço de informações era fabuloso. Conhecíamos a localização dos submarinos quase com tanta precisão como os Alemães. Claro que agora, olhando para trás, dá para ver que era bom de mais para durar. Os nazis não são estúpidos. E eu sempre disse: «Neste jogo o sucesso atrai o fracasso, e quanto maior for o sucesso maior tenderá a ser o fracasso.» Deves lembrar-te de me ouvires dizer isto. O outro lado começa a desconfiar, percebes. E eu disse...
— O que é que aconteceu na terça-feira, Guy?
— É para já. Desculpa. Terça-feira. Cerca das oito da noite. Recebemos uma chamada de uma das estações de intercepção. Da Flowerdown, acho eu, mas Scarborough também tinha captado. Eu estava na cantina. O Puck veio chamar-me. Eles tinham começado a apanhar qualquer coisa ao princípio da tarde. Uma única palavra, transmitida todas as horas, à hora certa. Emitida a partir de Sainte-Assise nas duas bandas principais dos submarinos.
— E suponho que essa palavra estava cifrada em Tubarão?
— Não, aí é que está. E por isso eles estavam tão excitados. Não estava em cifra. Nem sequer em Morse. Era uma voz humana. Um homem. E repetia sempre a mesma palavra: Akelei
— Akelei— murmurou Jericho. —Akelei... É uma flor, não é?
— Ah! — Logie aplaudiu. — Tu és o máximo, Tom. Estás a ver a falta que nos fazes? Tivemos de ir perguntar a um dos estudantes de alemão do turno Z o que significava. Akelei: flor de cinco pétalas da família dos ranúnculos, Aquilegia em latim. Nós, em inglês, chamamos-lhe columbine.(1)
— Akelei — repetiu Jericho. — O mais certo é isso ser um sinal combinado antecipadamente, não te parece?
— Eé.
— E significa...
— Significa problemas, meu lindo, é o que isso significa. E só ontem à meia-noite pudemos avaliar o tamanho dos problemas. — Logie chegou-se para a frente. A sua voz perdera qualquer laivo de humor. O seu rosto estava carregado e circunspecto. —Akelei significa: «Mudar o Livro de Códigos Meteorológicos.» Eles arranjaram um novo código e nós não sabemos o que fazer. Eles barraram-nos o acesso ao Tubarão, Tom. Estamos de novo às escuras, Tom.
*1. Aquilegia. (N. da T.)
Não foi preciso muito tempo para Jericho fazer as malas. Não tinha comprado nada desde que chegara a Cambridge excepto o jornal diário, pelo que levou exactamente o mesmo que tinha trazido três semanas antes: um par de malas com roupa, alguns livros, uma caneta, uma régua de cálculo e alguns lápis, um xadrez portátil e um par de botas. Colocou as malas em cima da cama e movimentou-se pelo quarto calmamente, reunindo as suas coisas sob o olhar de Logie que o seguia encostado à porta.
Às voltas no mais recôndito do seu cérebro, sem ter sido chamada das profundezas do subconsciente, bailava insistente uma cantiga da infância: «Por falta dum cravo, o cavalo perdeu-se; por falta de um cavalo, o cavaleiro perdeu-se; por falta de um cavaleiro, a batalha perdeu-se; por falta de uma batalha, o reino perdeu-se; e tudo por falta do cravo de uma ferradura...»
Dobrou uma camisa e arrumou-a por cima dos livros.
Por falta de um Livro de Códigos Meteorológicos podiam perder a Batalha do Atlântico. Tantos homens e tanto material ameaçados por algo tão pequeno como uma mudança nos códigos da meteorologia. Era absurdo.
— Conhece-se logo quem andou num colégio interno — disse Logie. — Viajam sempre com pouca bagagem. Deve ser das intermináveis viagens de comboio, acho eu.
— Prefiro assim.
Meteu um par de meias a um canto da mala. Ia voltar. Queriam-no de volta. Mas não sabia se estava feliz ou aterrorizado.
— E também não tens muito mais coisas em Bletchley, pois não? Jericho virou-se e olhou-o de frente. — Como é que sabes?
— Bem... — disse Logie, algo atrapalhado — é que tivemos de arrumar o teu quarto para... o darmos a outra pessoa. Falta de espaço, percebes.
— Então não contavam que eu voltasse?
— Bem, digamos que não esperávamos voltar a precisar de ti tão depressa. Mas já temos um novo apartamento para ti na cidade, o que até é melhor. Acabaram-se as longas estiradas de bicicleta a altas horas da noite.
— Pois eu gosto bastante de fazer longas estiradas de bicicleta a altas horas da noite. Refrescam-me as ideias. — Jericho fechou as malas à chave.
— Vê lá se já estás em forma, meu lindo? Ninguém te quer forçar a nada.
— Estou bem melhor que tu, pelo menos pelo teu aspecto...
— Mas eu não queria que te sentisses pressionado...
— Por favor, Guy, tá caladinho.
— Pronto. Já cá não está quem falou. Acho que não te demos muito por onde escolher, pois não? Queres ajuda?
— Se estou em forma para voltar a Bletchley, também estou em forma para carregar duas malas.
Levou-as até à porta e apagou a luz. Desligou o gás na saleta e deitou um último olhar ao apartamento. Ao sofá demasiado duro. Às cadeiras arranhadas. Ao fogão de sala vazio. Era esta a sua vida, pensou, uma sucessão de apartamentos pobremente mobilados fornecidos pelas instituições inglesas: a escola, a universidade, o governo. Perguntava-se como seria o próximo. Logie abriu a porta e Jericho apagou a luz da secretária.
As escadas estavam às escuras. A lâmpada tinha-se fundido há muito. Logie alumiou a descida acendendo vários fósforos. Ao chegarem ao fundo das escadas, viram o vulto de Leveret, de sentinela, a silhueta emoldurada sobre o fundo negro da capela. Leveret voltou-se, levando a mão ao bolso.
— Tudo bem Mr. Leveret — disse Logie. — Sou eu. Mr. Jericho vem connosco.
Leveret tinha uma lanterna especial para o blackout, uma coisa tosca embrulhada em lenços de papel. Com o auxílio do pálido feixe de luz e de alguma luminosidade que ainda restava no céu, atravessaram o colégio. Quando passaram pelo Salão Nobre, ouviram o tinir de talheres e o ruído das vozes dos comensais, e Jericho sentiu uma pontada de arrependimento. Passaram pela Portaria e transpuseram a portinhola aberta na pesada porta de carvalho. Abriu-se uma nesga de luz numa das janelas, quando alguém correu o reposteiro por uma fracção de segundo. Com Leveret à frente e Logie atrás, Jericho tinha a sensação curiosa de estar a ser levado sob prisão.
O Rover do director interino estava parado na calçada. Leveret abriu-o com todo o cuidado e fez-lhes sinal para entrarem para o banco traseiro. Lá dentro estava frio e cheirava a couro velho e cinza de cigarro. Enquanto Leveret estava a meter as malas na bagageira, Logie perguntou de repente: — A propósito, quem é a Claire?
— A Claire? — ouviu-se Jericho dizer na escuridão, em tom culpado e defensivo.
— Quando vinhas a subir a escada, pensei que te tinha ouvido gritar «Claire». Era Claire? — Logie deu um assobio contido. — Não me digas que é a loira altiva do Anexo 3, ou é? Aposto que é. És um gajo com uma sorte danada...
Leveret pôs o motor a trabalhar. O motor gaguejou e deu um estampido. Ele baixou o travão e o enorme carro começou a descer o empedrado em direcção a Kings Parade. A interminável rua estava deserta nos dois sentidos. Uma vaga humidade brilhava nos faróis velados. Logie ainda se ria sozinho quando viraram à esquerda.
—Aposto que é, olá se aposto. És um gajo com uma sorte danada, isso é que és...
Kite manteve-se no seu posto, junto à janela, até as luzes vermelhas traseiras desaparecerem na curva de Gonville e Caius. Depois baixou o reposteiro.
Bem, bem...
Isto já lhes dava motivo de conversa para a manhã seguinte. Oiça esta, Dottie. Mr. Jericho foi levado pela calada da noite... bem, pronto, eram oito horas... por dois homens, um tipo alto e um outro que se via logo que era um polícia à paisana. Saiu escoltado e sem avisar ninguém. O alto e o polícia tinham chegado por volta das cinco horas, ainda o nosso jovem doutor não tinha voltado do passeio, e o tipo alto... supostamente o detective... tinha feito a Kite todo o tipo de perguntas: «Recebeu visitas desde que chegou? Escreveu para alguém? Alguém lhe escreveu? O que é que ele tem feito?» Depois tinham levado as chaves e passado uma busca ao quarto de Jericho antes de Jericho ter voltado.
Era estranho. Muito estranho.
Espião, génio, amante destroçado... e agora? criminoso? Muito possivelmente.
Falso doente? Fugitivo? Desertor! Sim, era isso: desertor!
Kite voltou para o seu lugar junto ao fogão e abriu o jornal da tarde.
Submarino Nazi Torpedeia Paquete, leu ele. Mulheres e
CRIANÇAS MORTAS.
Kite abanou a cabeça perante a maldade do mundo. Era uma vergonha, um jovem daquela idade, sem envergar um uniforme, escondido no centro de Inglaterra enquanto mães e criancinhas eram assassinadas.
CRIPTOGRAMA: mensagem escrita em cifra ou qualquer outro código secreto cujo significado só pode ser descoberto com a ajuda de uma chave.
Léxico da Criptografia («Altamente Secreto», Bletchley Park, 1943)
A noite estava impenetrável, o frio irresistível. Aconchegado no sobretudo dentro do Rover gelado, Tom Jericho mal via a respiração trémula ou a névoa que, ao seu lado, se formava na vidraça. Esticou-se e abriu um óculo no vidro embaciado, o que lhe deixou os dedos sujos de uma fuligem molhada e fria. De vez em quando, os faróis reflectiam-se nas vivendas caiadas e nas estalagens às escuras, e a certa altura passaram por um comboio de mercadorias que seguia na direcção oposta. Era como se viajassem no vácuo. Não havia luzes nem sinais visíveis nas ruas, que os orientassem, nem janelas iluminadas nem mesmo um simples fósforo a luzir no negrume. Eles podiam bem ser as três últimas pessoas vivas.
Cerca de quinze minutos depois de terem saído do Kings, Logie começou a ressonar, e a sua cabeça caía para a frente, para cima do peito, sempre que o Rover dava um solavanco, movimento que o fazia resmungar e acenar como se em profunda concordância consigo mesmo. Uma vez, quando fizeram uma curva repentina, o seu longo corpo tombou para o lado e Jericho teve de o afastar cuidadosamente com o antebraço.
No banco da frente, Leveret não tinha proferido uma única palavra, excepto para dizer que o aquecimento estava avariado, quando Jericho lhe pediu para o ligar. Conduzia com um cuidado exagerado — o seu rosto curvava-se a poucos centímetros do pára-brisas e o pé direito alternava criteriosamente entre o pedal do travão e o do acelerador. Por vezes, parecia irem mais devagar do que se fossem a pé.
Embora durante o dia a viagem para Bletchley pudesse demorar pouco mais de hora e meia, Jericho calculou que, esta noite, se chegassem ao seu destino até à meia-noite estariam com muita sorte.
— Se estivesse no teu lugar, precisava de dormir um pouco — comentou Logie enquanto fazia do seu casaco uma almofada. — Temos uma longa noite pela frente.
Mas Jericho não conseguia dormir. Enfiou as mãos nos bolsos e fitou a noite inutilmente.
Bletchley, pensou ele com repulsa. Até a sensação do nome na boca lhe era desagradável, encalhado algures entre o desmaio e o vómito. Com tantas cidades em Inglaterra, porque haviam de ter escolhido Bletchley? Há quatro anos, nunca tinha ouvido falar deste local. E poderia ter vivido o resto da vida na mais feliz ignorância, se não fosse aquele cálice de xerez nos aposentos de Atwood, na Primavera de 1939.
Que bizarro, que absurdo traçar o destino de alguém e descobrir que ele girava à volta de um dedal de pálido suco de manzanilha.
Foi logo após aquela primeira aproximação que Atwood lhe arranjou um encontro com alguns «amigos» seus em Londres. Depois disso, todas as sextas-feiras de manhã, e durante quatro meses, Jericho apanhava logo cedo o comboio e fazia o percurso até um bloco de escritórios empoeirados perto da estação subterrânea de St. Jones. Aí, numa velha sala que apenas tinha por mobília um quadro negro e uma secretária, iniciaram-no nos segredos da criptografia. E foi simplesmente como Turing havia previsto: ele adorou.
Adorou a história, tudo, dos sistemas do rúnico antigo e dos códigos irlandeses do livro de Ballymote, com os seus nomes exóticos («A Serpente no Urzal», «Vexame do Coração de um Poeta»), passando pelos códigos do Papa Silvestre II e Hildegard von Bingen, e pela invenção do disco de cifra de Alberti — a primeira cifra polialfabética — e pelas grelhas do cardeal Richelieu, até aos mistérios mecanicamente gerados pela Enigma dos Alemães, lamentavelmente considerada impenetrável.
E ele adorava o vocabulário secteto da decifração criptanalitica, com os seus homófonos e polífonos, os seus dígrafos e bígrafos e nulos Estudou análise das frequências. Ensinaram-lhe as complexidades da supercodificação, do placódigo e do enicódigo. Nos princípios de Agosto de 1939 ofereceram-lhe formalmente um lugar na Escola de Códigos e Cifras do Governo com um salário de trezentas libras por ano e mandaram-no de regresso a Cambridge com ordens para aguardar o desenrolar dos acontecimentos. No dia 1 de Setembro, ao acordar, ouviu na rádio que os Alemães tinham invadido a Polónia. A 3 de Setembro, o dia em que a Inglaterra declarou guerra à Alemanha, chegou um telegrama da portaria que o mandava apresentar-se na manhã seguinte num local chamado Bletchley Park.
Mal amanheceu, deixou o colégio, de acordo com as instruções, enterrado no banco do carro desportivo de modelo antigo de Atwood. Bletchley revelou-se uma pequena cidade ferroviária vitoriana, a cerca de setenta quilómetros para oeste de Cambridge. Atwood, que gostava de se exibir, insistiu em fazer a viagem com o tejadilho aberto, e enquanto desciam ruidosamente as ruas estreitas, Jericho sentia o fumo e a fuligem que impregnavam a cidade de casas em correnteza, pequenas e feias, e chaminés de fornos, altas e negras, em tijolo. Passaram por baixo de uma ponte de comboios, seguiram por uma ruela e foram saudados dos altos muros por guardas armados. À direita, estendia-se um relvado que descia inclinado para um lago debruado com grandes árvores. À esquerda, erguia-se uma mansão — uma monstruosidade comprida, baixa, um dos últimos exemplares do estilo vitoriano, em tijolo vermelho e pedra amarelada, que fez lembrar a Jericho o hospital de veteranos onde o pai havia morrido. Olhou em redor, na esperança de ver enfermeiras com toucas a empurrarem homens inutilizados em cadeiras de rodas.
— Não é perfeitamente hedionda? — disse Atwood, com uma voz aflautada e um certo deleite. — Construída por um judeu. Um corrector da bolsa. Um amigo de Lloyd George. A sua voz elevava-se a cada frase, sugerindo uma escala ascendente de horror social. Estacionou abruptamente às três pancadas, provocando uma chuva de cascalho e falhando por pouco um sapador que desenrolava uma enorme bobina de cabo eléctrico.
Lá dentro, num quarto revestido de painéis, sobranceiro ao lago, encontravam-se dezasseis homens, de pé, a beberem café. Entreolhavam-se embaraçados e divertidos. Com que então, era o que diziam os seus rostos, eles também te caçaram. Atwood foi avançando calmamente entre eles, apertando mãos e fazendo comentários contundentes a que todos se sentiam obrigados a responder com um sorriso.
— Não é a lutar contra os Alemães que eu me oponho. É a irmos para a guerra para defendermos essas bestas dos Polacos. — Voltou-se para um jovem elegante e bem parecido, de fronte larga e alta e farta cabeleira. — E o seu nome, qual é?
— Pukowski — respondeu o jovem num inglês perfeito. — Eu sou uma das bestas Polaca.
Turing trocou um olhar com Jericho e pestanejou.
À tarde, os criptanalistas foram divididos por temas. A Turing coube-lhe ir trabalhar com Pukowski na reconversão da «descodificadora», o decifrador gigantesco que Marian Rejewski do Departamento de Cifra Polaco tinha construído em 1938, para atacar a Enigma. Jericho foi mandado para a área do estábulo, atrás da mansão, para analisar as emissões de rádio codificadas dos Alemães.
Que estranhos foram estes primeiros nove meses de guerra, que irreais, que — agora até parecia absurdo dizê-lo — pacíficos. Faziam diariamente de bicicleta o percurso desde os seus apartamentos nos bares e hospedarias dos subúrbios da cidade. Almoçavam e jantavam todos juntos na mansão. E, à noite, jogavam xadrez e vagueavam pelos campos, antes de saltarem para as bicicletas e pedalarem de volta a casa, para se meterem na cama. Até havia um labirinto vitoriano de sebes de freixo, onde se podiam perder. De dez em dez dias, mais ou menos, juntava-se ao grupo um novo membro — um estudioso dos clássicos, um matemático, um conservador de museu, um negociante de livros raros — cada um deles recrutado por ser amigo de alguém já residente em Bletchley.
Um Outono seco e fumegante profuso em dourados e castanhos, de gralhas rodopiando nos céus como faúlhas, deu lugar a um Inverno de postais natalícios. O lago gelou. Os ulmeiros vergavam-se ao peso da neve. Um tordo bicava migalhas de pão do lado de fora da janela do estábulo.
O trabalho de Jericho era aparentemente académico. Três ou quatro vezes por dia, um estafeta de motocicleta ecoava pelo pátio das traseiras do enorme casarão, carregando uma mala com criptogramas alemães interceptados. Jericho separava-os por frequência ou sinal de chamada e assinalava-os nos mapas a lápis de cor — vermelho para a Luftwaffe, verde para o exército alemão — até surgirem gradualmente daquela ininteligível algaraviada formas compreensíveis. Estações de uma rede de rádio, falando livremente umas com as outras, davam lugar, quando assinalados na parede do estábulo, a um emaranhado de linhas delimitadas por um círculo. As redes em que a única linha de comunicação era de duas vias, entre os quartéis e as suas estações exteriores, assemelhavam-se a estrelas. Redes de círculos e redes de estrelas. Kreis und Stern.
Este idílio durou oito meses, até à ofensiva alemã em Maio de 1940. Até então, raramente tinha aparecido material suficiente para os criptanalistas empreenderem um ataque sério à Enigma. Mas à medida que a Wehrmacht invadia a Holanda, a Bélgica e a França, o tráfego radiofónico transformava-se num rugido. De três ou quatro malas de material entregue pelo motociclista, o volume aumentou para trinta ou quarenta; para uma centena; para duas centenas.
Foi ao fim de uma manhã, cerca de uma semana depois de tudo isto começar, que Jericho sentiu alguém tocar-lhe no cotovelo; voltou-se e viu Turing a sorrir-lhe.
— Tom, quero que conheça uma pessoa.
— Agora, para dizer a verdade, estou bastante ocupado, Alan.
— O seu nome é Agnes. E eu acho que a devia ver.
Jericho quase reclamou. Um ano mais e tê-lo-ia feito, mas naquela altura tinha ainda um certo pavor de Turing, para não fazer o que ele mandava. Encolhendo os ombros, arrancou o casaco das costas de uma cadeira e saiu, sob o sol de Maio.
Por esta altura, o parque tinha começado a transformar-se. A maioria das árvores da margem do lago tinham sido cortadas para construir uma série de barracões de toros. O labirinto tinha sido arrancado e substituído por um edifício baixo de tijolo, ao lado do qual se tinha juntado um pequeno grupo de criptanalistas. De lá saía um som que Jericho nunca tinha ouvido antes, ao mesmo tempo um zumbido e ruído, algo entre o tear e a impressora. Ele entrou atrás de Turing. Lá dentro, o barulho era ensurdecedor, ecoando nas paredes caiadas e no tecto de chapa ondulada. Um brigadeiro, um comodoro, dois homens de fato de macaco e uma Wren, de ar apavorado e com os dedos metidos nos ouvidos, estavam ao canto da sala a olharem para uma enorme máquina repleta de tambores giratórios.
Um raio azul eléctrico atravessou em arco a parte de cima, com um silvo e um estrondo, exalando um cheiro a óleo quente e metal sobreaquecido.
— É a nova descodificadora polaca — disse Turing. — Pensei em chamar-lhe Agnes. —Ternamente, pousou os dedos longos e pálidos na armação de metal. Ouviu-se um estrondo e ele retirou-os de imediato. — Espero que trabalhe bem....
Claro que sim, pensou Jericho, abrindo outra janela na vidraça embaciada, claro que sim, trabalhava até muito bem.
A lua deslizava por detrás de uma nuvem iluminando suavemente a Grande Estrada do Norte. Ele fechou os olhos.
Trabalhava até muito bem e a partir daí o mundo ficou diferente.
Apesar da insónia, Jericho devia ter adormecido, pois quando voltou a abrir os olhos Logie já estava acordado, muito direito no lugar, e o Rover atravessava uma pequena cidade. Ainda estava escuro e ele, a princípio, não conseguia perceber onde estava. Mas após terem passado uma rua cheia de lojas e, quando os faróis mortiçamente se reflectiram no cartaz do cinema Country (Em exibição: A Marinha Cumpre o seu Dever e Tempestade no Pacífico), ele murmurou entre dentes, sentindo a fadiga voltar-lhe à voz: — Bletchley.
— Certíssimo, caramba — disse Logie.
Desceram Victoria Road, passaram os escritórios governamentais, uma escola... A estrada descreveu uma curva e, de repente, à distância, uma multidão de pirilampos rumava direita a eles, um pouco acima do passeio. Jericho passou as mãos pela face e sentiu os dedos dormentes. Sentia-se um pouco enjoado.
— Que horas são?
— Meia-noite — respondeu-lhe Logie. — Mudança de turno. Aquelas pintas luminosas pareciam as lanternas do blackout. Jericho calculava que o pessoal de Bletchley Park devia rondar os
cinco ou seis mil, a trabalharem ininterruptamente em turnos de oito horas — da meia-noite às oito, das oito às quatro e das quatro à meia-noite. O que significava que cerca de quatrocentas pessoas estavam agora em movimento, metade a sair de um turno e a outra metade a começar, e quando o Rover virou para a rua que conduzia ao portão principal, era quase impossível avançar um metro sem bater em alguém. Leveret ia alternando entre deitar a cabeça fora da janela, gritar e tocar a buzina. Havia pequenas multidões espalhadas pela rua, seguindo a maioria das pessoas a pé, mas outras de bicicleta. Um comboio de autocarros esforçava-se por passar. Jericho pensava: as hipóteses de Claire se encontrar entre eles são imensas. Teve o desejo súbito de se encolher no banco, cobrir a cabeça e desaparecer.
Logie olhava-o com curiosidade. — Tens a certeza de estares preparado para isto, meu velho?
— Estou óptimo. É que .... é estranho pensar que tudo isto começou com dezasseis de nós.
— Que maravilha, não é? E no próximo ano seremos o dobro. — O orgulho na voz de Logie rapidamente deu lugar ao alarme. — Por amor de Deus, Leveret, cuidado, quase atropelou aquela senhora, ali!
À luz dos faróis, uma cabeça loira, furiosa, voltou-se e Jericho sentiu uma náusea repentina. Mas não era ela. Era uma mulher que ele não reconheceu, uma mulher com o uniforme do exército e com um risco de bâton encarnado a cruzar-lhe o rosto como uma ferida. Parecia ir toda aperaltada a caminho de algum encontro com um homem. Brandiu o punho, ameaçadora, e gritou-lhes. — Vão-se lixar.
— Bem — disse Logie, desgostoso. — Pensei que fosse uma senhora.
Quando chegaram ao posto do guarda tiveram de mostrar os bilhetes de identidade. Leveret recolheu-os e entregou-os pela janela ao cabo da RAF. A sentinela agarrou na espingarda e analisou os documentos à luz da lanterna, depois baixou-se e iluminou a cara de cada um deles. O clarão atingiu Jericho como uma pancada. Atrás de si ouvia um segundo soldado a revistar a bagageira.
Afastou-se da luz e voltou-se para Logie. — Quando é que tudo isto começou? — Ainda se lembrava do tempo em que não eram exigidos passes.
— Agora que falas nisso, não sei bem. — Logie encolheu os ombros. — Parece que eles apertaram a vigilância de há uma ou duas semanas para cá.
Os documentos foram devolvidos. A barreira subiu. A sentinela fez-lhes sinal para passarem. Ao lado da estrada havia um sinal pintado de fresco. Por alturas do Natal tinha-lhes sido dado um novo nome e Jericho, na escuridão, mal conseguia ler o nome escrito a branco: «Quartel General do Serviço de Comunicações do Governo.»
A barreira de metal caiu atrás deles com estrondo.
Mesmo na escuridão total do blackout era possível ter a noção das dimensões do local. A mansão ainda era a mesma, tal como os anexos, mas estes ocupavam agora uma fracção do terreno. Para trás deles estendia-se uma grande fábrica de informações: escritórios baixos e abrigos à prova de bombas construídos em tijolo, cimento e aço, Blocos-A, Blocos-B e Blocos-C, túneis, abrigos, postos de guardas e garagens... Havia um enorme acampamento militar mesmo colado ao arame farpado. Os canos da artilharia anti-aérea saíam de ninhos camuflados nas matas vizinhas. E havia mais edifícios em construção. Não tinha havido um único dia em que Jericho não tivesse ouvido o barulho das escavadoras mecânicas e das misturadoras de cimento, o ressoar das picaretas e o estalar das árvores ao caírem. Uma vez, mesmo antes de partir, tinha medido a passo a distância desde a entrada até à parte mais afastada da vedação e tinha-a avaliado em cerca de oitocentos metros. Para que seria tudo aquilo? Não fazia a mínima ideia. Por vezes pensava que eles deviam controlar todas as emissões de rádio do planeta.
Leveret passou devagar diante da mansão negra, passou o campo de ténis e os geradores e parou a curta distância dos anexos.
Jericho saiu meio tolhido do banco de trás. Tinha as pernas dormentes e a sensação do sangue a regredir fê-lo dobrar os joelhos. Inclinou-se e apoiou-se no carro. O seu ombro direito estava rígido com o frio. Um pato chafurdava algures no lago e o seu grito levou-o de volta a Cambridge — à sua cama quente e às palavras cruzadas — e teve de abanar a cabeça para limpar a memória.
Logie explicava-lhe agora que podia escolher: Leveret podia levá-lo até ao seu novo apartamento, onde passaria uma noite decente na sua nova cama, ou então podia começar a trabalhar imediatamente e dar uma vista de olhos às coisas.
— Porque não começamos já? — comentou Jericho. A sua reentrada no anexo seria uma provação e o melhor era arrumar logo esse assunto.
— Assim é que é falar, meu lindo. O Leveret toma conta das tuas malas, não é assim, Leveret? E leva-as para o quarto de Mr. Jericho?
— Sim, senhor. — Leveret olhou por uns momentos para Jericho e depois estendeu-lhe a mão. — Boa sorte, Mr. Jericho.
Jericho ouviu-o. Tanta formalidade surpreendeu-o. Até parecia que ia saltar de pára-quedas sobre território hostil. Tentou encontrar algo para dizer. — Muito obrigado por nos ter trazido.
Logie estava a brincar com a lanterna de Leveret, que já não dava luz. — Mas que raio se passa com esta coisa? — e bateu com ela contra a palma da mão. — Maldita lanterna. Ora, que se lixe. Vamos!
Afastou-se em passada larga, à medida das longas pernas, e, após alguns momentos de hesitação, Jericho enrolou o cachecol à volta do pescoço e seguiu-o. Na escuridão, tiveram de contornar às apalpadelas a parede blindada que rodeava o Anexo 8. Logie esbarrou com o que, pelo som, parecia uma bicicleta e Jericho ouviu-o praguejar. Logie deixou cair a lanterna e o impacto fê-la acender. Um fio de luz revelou a entrada do anexo. Havia aqui um cheiro a bafio e a humidade — bafio, humidade e creosoto: os odores da guerra de Jericho. Logie rodou o puxador ruidosamente, a porta abriu-se e entraram para a sala fracamente iluminada.
Como ele tinha mudado tanto no mês em que estivera ausente, ele esperava de algum modo — sem lógica alguma, claro — que o anexo também tivesse mudado. Mas, pelo contrário, no momento em que atravessou a soleira da porta, o anexo quase o oprimiu de tão familiar que era. Era como um sonho periódico, no qual o horror residia em se saber precisamente o que ia acontecer a seguir — a certeza de que tudo tinha sido, e seria sempre, exactamente como era agora.
Um corredor estreito e mal iluminado com cerca de dois mil metros, estendia-se à sua frente, ligado a uma dúzia de portas. As divisórias de madeira eram frágeis e o barulho de cem pessoas a trabalharem com toda a força vazava de quarto para quarto — o matraquear cavo e seco das botas e dos sapatos nas tábuas a descoberto, o sussurro das conversas, os gritos ocasionais, o arrastar de cadeiras, o tocar dos telefones, o claque claque claque das máquinas Type-Xrvn Sala de Descodificação.
A única diferença — e era mínima — era que o grande armário do lado direito, à entrada, tinha agora uma placa a identificá-lo «Ten. Kramer Oficial de Ligação da Marinha dos EUA».
Rostos familiares viravam-se à sua passagem. Kingcome e Proudfoot estavam entretidos a cochichar à porta da Sala de Catalogação e recuaram para o deixarem passar. Ele cumprimentou-os com um aceno de cabeça. Como resposta, eles também lhe acenaram, mas ninguém disse nada. Atwood saiu apressado da Sala das Grelhas, viu Jericho, olhou para ele embasbacado, baixou a cabeça, murmurou um — Olá, Tom — e depois quase correu em direcção à Sala de Pesquisa.
Era óbvio que ninguém esperava vê-lo outra vez. Ele era um empecilho. Um homem morto. Um fantasma.
Logie ignorava quer o espanto geral quer o constrangimento de Jericho. — Olá a todos. — Acenou para Atwood. — Olá, Frank. Olhe quem está de volta! O filho pródigo regressa a casa! Sorri, Tom, meu velho, isto não é um funeral, que diabo. Pelo menos, por enquanto. — Parou em frente ao seu gabinete e rodou a chave durante cerca de meio minuto, até que se apercebeu de que a porta estava aberta. — Entra, entra.
A sala era pouco maior do que uma dispensa. Tinha sido o cubículo de Turing, até pouco antes de terem decifrado o Tubarão, altura em que Turing foi mandado para a América. Agora era de Logie — a sua pequena compensação pelo cargo — e ele parecia absurdamente gigantesco à medida que se curvava sobre a secretária, como um adulto a mexer no recanto de uma criança. Havia um sistema anti-fogo ao canto da sala, detectores de fugas de gás e um caixote do lixo com uma etiqueta que dizia: LIXO CONFIDENCIAL. Havia um telefone com um auscultador vermelho, papéis por todo o lado — no chão, em cima da mesa e em cima do radiador, onde jaziam amarelos e esturricados, em cestos de rede, em caixas de ficheiro, crescendo em monte e em pilhas que tinham desmoronado, abrindo-se em leque.
— Velhaco de merda. — Logie tinha uma mensagem nas mãos, e olhava-a carrancudo. Retirou o cachimbo do bolso e mordeu a haste. Parecia ter-se esquecido da presença de Jericho, até este tossir.
— O quê? Oh! Desculpa, meu lindo. — E começou a sublinhar as palavras da mensagem com o cachimbo. — Parece que o Almirantado está hiperactivo. Às oito, conferência no Bloco-A com altas patentes da Marinha de Whitehall. Querem conhecer os resultados. O Skynner anda numa roda viva e quer falar comigo imediatamente. Velhaco de merda.
— O Skynner já sabe que voltei? — Skynner era o chefe da Secção Naval de Bletchley. Nunca se tinha interessado por Jericho, provavelmente porque Jericho nunca lhe tinha escondido o que pensava dele: que não passava de um pretensioso e de um fanfarrão, cujo principal objectivo na guerra era celebrar a paz como Sir Leonard Skynner, Oficial da Ordem do Império Britânico, com um lugar na Direcção de Segurança e um convite para um mestrado em Oxford. Jericho tinha, na verdade, uma vaga ideia de ter dito a Skynner parte disto ou até tudo — ou se calhar ainda mais — pouco tempo antes de o terem mandado de volta para Cambridge, para recuperar o juízo.
— Claro que ele sabe que estás de volta, meu velho. Primeiro tive de falar com ele.
— E ele não se importa?
— Importar? Nem pensar. O homem está desesperado. Ele faria tudo para voltar e entrar no Tubarão. Logie, apressou-se a acrescentar: — Desculpa, eu não queria dizer... isto não quer dizer que trazer-te de volta seja um acto desesperado. Só que, bem, tu sabes como é... — Deixou-se cair pesadamente na cadeira e olhou outra vez para a mensagem. Passou a haste do cachimbo pelos dentes gastos e amarelos e repetiu: — Velhaco de merda...
Olhando para Logie, Jericho apercebeu-se de que não sabia quase nada acerca dele. Tinham trabalhado juntos durante dois anos, podiam considerar-se amigos, mas nunca tinham tido uma verdadeira conversa. Não sabia se Logie era casado ou se tinha namorada.
- Suponho, que é melhor ir vê-lo. Com licença, meu lindo.
Logie empurrou a secretária para trás e gritou para o corredor:
- Puck! —Jericho ouviu o grito ser repetido até aos confins do anexo por uma outra voz: — Puck! — E depois, por outra: — Puck! Puck!
Logie baixou a cabeça mais uma vez e espreitou para o gabinete.
- Um criptanalista por navio coordena o ataque ao Tubarão. O Puck neste turno, o Baxter no próximo, depois o Pettifer. — A sua cabeça voltou a desaparecer. — Ah-ha, aí vem ele. Vamos, meu velho. Mais genica! Tenho uma surpresa para ti! Olha quem aqui está!
— Ah, estás aí, meu caro Guy — disse uma voz familiar do corredor. — Ninguém sabia onde eu te podia encontrar.
Adam Pukowski passou por Logie com o seu porte flexível, viu Jericho e parou estupefacto. O choque era genuíno. Jericho quase podia ver a sua mente a debater-se para recompor as feições, forçando o seu famoso sorriso a voltar-lhe ao rosto. Por fim, conseguiu. E até lançou os braços à volta de Jericho e o abraçou. — Tom, é que... já tinha começado a pensar que nunca mais voltavas. É maravilhoso.
— É bom ver-te de novo, Puck. — E Jericho bateu-lhe cordialmente nas costas.
Puck era a mascote do grupo, a sua aura de glória, o seu elo de ligação com a aventura da guerra. Tinha chegado na primeira semana para lhes dar instruções sobre a descodificadora Polaca e regressado novamente à Polónia, de avião. Quando a Polónia caiu, ele teve de fugir para França e, quando a França soçobrou, teve de fugir pelos Pirenéus. Peripécias românticas acumulavam-se à sua volta: que tivera de se esconder dos Alemães na cabana de um pastor, que viajara clandestinamente a bordo de um navio a vapor português e obrigara o comandante, sob a ameaça de uma pistola, a alterar a rota para Inglaterra. Quando aparecera inesperadamente em Bletchley, no Inverno de 1940, fora Pinker, o especialista em Shakespeare, quem tinha encurtado o seu nome para Puck («aquele alegre caminheiro da noite»). A sua mãe era britânica, o que explicava o seu inglês quase perfeito, diferente apenas por ele o pronunciar com demasiado rigor.
— Voltaste para nos dares uma ajuda?
— Assim parece. — Timidamente, Jericho libertou-se do abraço de Puck.
— Esplêndido, esplêndido. — Logie observou-os com um olhar terno por momentos e depois começou a rebuscar entre a desordem que havia na sua secretária. — Ora onde é que está aquela coisa? Esta manhã, estava mesmo aqui...
Puck indicou com a cabeça as costas de Logie e bichanou: — Estás a ver, Tom? A velha organização de sempre.
— Bem, bem, Puck, olha que eu ouvi. Ora deixa cá ver. Será que é isto? Não. Sim, Sim!
Voltou-se e entregou a Jericho um documento manuscrito, selado e intitulado «Por ordem do Ministério da Guerra». Era uma nota de aboletamento dirigida a uma tal Mrs. Ethel Armstrong, habilitando Jericho a alojamento na Pensão Comercial, em Albion Street, em Bletchley.
— Lamento, mas não sei se presta, meu velho. Foi o que consegui arranjar.
— Presta com certeza. — Jericho dobrou o papel e meteu-o no bolso. Na verdade, tinha quase a certeza que não prestava — os últimos quartos decentes de Bletchley tinham desaparecido há três anos e agora as pessoas tinham de ir procurar tão longe como Bedford, a cerca (Je trinta quilómetros —, mas para que é que se havia de queixar? A julgar pelas experiências anteriores, não ia usar muito o quarto, apenas para dormir.
— Mas não te canses de mais, meu filho — disse Logie. — Não estamos à espera que aguentes um turno inteiro. Nada disso. Vais e vens conforme entenderes. O que nós queremos é aquilo que nos deste ultimamente. Visão. Inspiração. Detectares aquele pormenor que todos nós deixámos passar. Não é assim, Puck?
— Exactamente. — Jericho nunca tinha visto o seu belo rosto tão depauperado, mais abatido ainda do que o de Logie. — Deus sabe, Tom, que nós lutamos por isso.
— Então quer dizer que não avançámos nada? — disse Logie. — Nada de boas notícias para eu dar ao nosso senhor e mestre?
Puck abanou a cabeça.
— Nem uma luz?
— Não, nem isso.
— Não. Bem, porque não havia de haver? Malditos almirantes. — Logie amarfanhou a tira da mensagem, fez pontaria para o caixote do lixo e falhou. — Eu próprio te levava a dar uma volta pelo anexo, Tom, mas o Skynner não está à espera de mais ninguém. Importas-te, Puck? De fazeres as honras da casa?
— Claro que não, Guy. Como queiras.
Logie acompanhou-os até ao corredor e tentou fechar a porta, mas desistiu. Quando se voltou, abriu a boca e Jericho preparou-se para uma das penosas palestras de Logie armado em anfitrião — que muitas vidas inocentes dependiam deles e da necessidade de eles darem o seu melhor, e que nem sempre eram os mais rápidos a ganhar a corrida nem os mais fortes a ganhar a batalha (na verdade, ele tinha-o dito uma vez) —, mas a sua boca abriu-se-lhe num bocejo.
— Oh, desculpa, meu velho. Desculpa.
E ele seguiu corredor fora a arrastar os pés, batendo nos bolsos para se assegurar de que tinha o cachimbo e a bolsa do tabaco. Ouviram-no resmungar outra vez qualquer coisa como: — malditos almirantes — e desaparecer.
O Anexo 8 media trinta e cinco metros de comprimento por dez de largura e Jericho poderia tê-la percorrido a dormir, provavelmente já a tinha percorrido a dormir, tanto quanto sabia. As paredes exteriores eram finas e a humidade do lago parecia entrar através das tábuas do soalho, pelo que, à noite, as salas eram geladas, mergulhadas numa luminosidade sépia pelas lâmpadas sem globo e de baixa potência. A mobília resumia-se a cavaletes e cadeiras de madeira das de fechar. Tudo isto fazia lembrar a Jericho o vestíbulo de uma igreja numa noite de Inverno. Só lhe faltava um piano desafinado e alguém a martelar nas teclas a «Terra de Esperança e de Glória».
Era como uma linha de montagem, o estádio principal num processo que começava muito longe, algures na escuridão, talvez a três mil quilómetros de distância, quando o casco de um submarino se elevava à superfície e lançava uma mensagem de rádio aos seus controladores. Os sinais eram interceptados em vários postos de escuta e transmitidos para Bletchley, e, dez minutos depois da transmissão, precisamente quando os submarinos se preparavam para mergulhar, saíam por um túnel na Sala dos Arquivos, no Anexo 8. Jericho investigou o conteúdo de um cesto com a etiqueta «Tubarão» e transportou-o até ao candeeiro mais próximo. As horas que se seguiam à meia-noite eram, normalmente, as mais atarefadas. Nos últimos dezoito minutos tinham sido interceptadas seis mensagens. Três delas consistiam apenas em oito letras: ele calculou que deviam ser boletins meteorológicos. Mesmo o mais longo dos criptogramas não possuía mais do que duas dúzias de grupos de quatro letras:
JRLO GOPL DNRZ LQBT...
Puck pôs um ar conformado, como se a dizer-lhe: O que é que tu podes fazer?
Jericho perguntou: — Qual é a quantidade?
— Depende. Cento e quinze, talvez duzentas mensagens por dia. Com tendência para aumentar.
A Sala dos Registos não trabalhava apenas com o Tubarão. Também havia a Toninha e o Golfinho e outros códigos da Enigma para decifrar e depois enviar para a sala em frente, a Sala das Grelhas. Aqui, os criptanalistas passavam-nos a pente fino, à procura de pistas
— sinais de estações de rádio que eles reconheciam (Kiel era JDU, por exemplo,-Wilhelmshaven, KYU), mensagens cujo conteúdo conseguiam advinhar ou criptogramas que já tinham sido cifrados com uma chave e depois retransmitidos com outra (estes, marcavam-nos com «XX» e chamavam-lhes «beijos»). Atwood era um campeão a decifrar grelhas e as Wrens comentavam maliciosamente nas suas costas que estes eram os únicos beijos que ele alguma vez tinha recebido.
Era na grande sala ao lado — a que eles, com o seu humor solene, chamavam a Sala Grande — que os criptanalistas usavam as grelhas para construírem possíveis soluções que podiam ser testadas nas descodificadoras. Jericho contemplou as frágeis mesas, as duras cadeiras, a fraca iluminação, o ar irrespirável do tabaco, a atmosfera de biblioteca de universidade, a noite de gelo (a maior parte dos criptanalistas estavam de casaco e luvas calçadas) e perguntou porquê
— porquê? — porque é que se tinha prontificado logo a regressar. Kingcome e Proudfoot estavam lá, tal como Upjohn, Pinker e De Brooke e talvez meia dúzia de recém-chegados, cujas caras não reconheceu, incluindo um jovem que se sentava com toda a desfaçatez no lugar que outrora tinha sido de Jericho. As mesas estavam cobertas de pilhas de criptogramas, como os boletins de voto na contagem final.
Puck murmurava qualquer coisa acerca de quebra-cabeças, mas Jericho, fascinado pela visão de alguém sentado no seu lugar, perdeu o fio à meada e teve de o interromper. — Desculpa, Puck. O que é que estavas a dizer?
— Estava a dizer que, de há vinte minutos para cá, estamos actualizados. O Tubarão está decifrado até ao ponto da alteração do código. O que significa que nada mais resta para nós a não ser a história. — Esboçou um vago sorriso e bateu no ombro de Jericho. — Anda. Eu mostro-te!
Quando um criptanalista estava convencido de que tinha vislumbrado uma solução possível para a descodificação da mensagem, o seu palpite era enviado para fora do anexo para ser testado numa descodificadora. E se ele tivesse sido suficientemente perspicaz ou suficientemente afortunado, então, dentro de uma hora, ou de um dia, a descodificadora iria efectuar milhões de permutações e revelar como era que a máquina Enigma tinha sido montada. E essa informação era por sua vez enviada da descodificadora de volta à Sala de Descodificação.
Devido ao ruído, a Sala de Descodificação, estava remetida para uma das extremidades do anexo. Pessoalmente, Jericho gostava do barulho. Era o som do sucesso. As suas piores recordações eram das noites em que o edifício estava silencioso. Uma dúzia de máquinas britânicas de codificação Type-X tinham sido modificadas para reproduzirem os processos da Enigma Alemã. Eram grandes e pesadonas — máquinas de escrever com rotores, um quadro de ligações e um cilindro — diante das quais se sentavam jovens principiantes bem-preparados.
Baxter, que era o marxista do anexo, defendia a teoria de que o pessoal de Bletchley (maioritariamente feminino) estava organizado em termos do que ele chamava «o paradigma do sistema de classes inglês». Os interceptadores das mensagens via rádio, a tremerem de frio nas suas estações costeiras, pertenciam em geral às classes trabalhadoras e labutavam na ignorância do segredo da Enigma. Os operadores das descodificadoras, que trabalhavam nos terrenos pertencentes a algumas casas de campo das redondezas e nas novas instalações monumentais nos arredores de Londres, provinham da pequena burguesia e faziam uma vaga ideia do que tinham em mãos. E as raparigas da Sala de Descodificação, situadas no coração de Bletchley Parle, pertenciam na sua maioria à alta classe média, até mesmo à aristocracia e assistiam a tudo — os segredos passavam-lhes literalmente pelas mãos. Eram elas que batiam à máquina as letras dos criptogramas originais enquanto do cilindro à direita da máquina Type-X emergia lentamente uma tira de papel com cola no verso, daquele que vem colado nos telegramas, contendo o texto já decifrado.
— Aquelas três estão a trabalhar no Golfinho — disse Puck, apontando para o outro lado da sala. — E as outras duas junto à porta estão a começar com a Toninha. E esta jovem encantadora, segundo creio — e cumprimentou-a — está com o Tubarão. Dão licença?
Ela era muito nova, por volta dos dezoito anos, cabelos ruivos encaracolados e grandes olhos cor de avelã. Ergueu os olhos, sorriu-lhe, com um sorriso deslumbrante, e ele esticou-se por cima dela e começou a desenrolar a rira autocolante que saía do cilindro. Enquanto fazia isso, Jericho apercebeu-se de que, enquanto isso, ele tinha deixado ficar a outra mão casualmente pousada no ombro dela, tão simples quanto isso, e pensou no quanto invejava Puck pelo à-vontade daquele gesto. Ele teria levado uma semana a ganhar coragem. Puck chamou-o para ler o criptograma decifrado:
VONSCHULZEQU88521DAMPFER1TANKERWAHRSCHEI NLICHAM63 TANKERFACKEL...
Jericho passou o dedo pelo texto, separando as palavras e traduzindo-o mentalmente: o comandante von Schulze do submarino estava na quadrícula 8852 e tinha afundado um navio a vapor (com toda a certeza) e um navio-tanque (provavelmente) e tinha incendiado um outro navio-tanque...
— Que data traz?
— Podes ver ali — disse Puck. — Sechs drei. Seis de Março. Decifrámos tudo esta semana até à alteração do código na quarta-feira, e agora estamos a voltar atrás e a recolher as intercepções
falhadas do início do mês. Isto tem — quê? — seis dias. Herr Kapitán von Schulz pode estar a estas horas a mais de mil quilómetros de distância. Receio que isto tenha apenas interesse académico.
— Pobres diabos — disse Jericho, passando o dedo pela fita pela segunda vez. lDAMPFERlTANKER... Gelo, afundamento e fogo, tudo concentrado numa só linha! Como se chamariam os navios, pensou ele, e seria que tinham avisado as famílias dos tripulantes?
— Temos ainda cerca de oitenta mensagens desde o dia seis para passar pelas Type-X. Vou pôr mais duas operadoras a trabalhar nisto. Mais duas ou três horas e teremos terminado.
— E depois?
— Depois, meu caro Tom? Depois acho que devemos passar aos quebra-cabeças de Fevereiro. Mas isso a bem dizer já quase nem é história. Fevereiro? Fevereiro no Atlântico? É arqueologia!
— Algum progresso na descodificadora de quatro rolamentos? Puck abanou a cabeça. — Primeiro, é impossível. Está fora de
questão. Depois há um esquema, mas esse esquema, teoricamente, é um perfeito disparate. Depois há um esquema que devia resultar, mas não resulta. Depois há a feita de materiais. Depois, a falta de engenheiros... — Fez um gesto de desalento com a mão, como se quisesse tirar tudo do seu caminho.
— Mudou mais alguma coisa?
— Nada que nos diga respeito. De acordo com os localizadores, o submarino HQ partiu de Paris para Berlim. Eles têm um novo transmissor fabuloso em Magdeburgo que dizem que consegue alcançar um submarino a catorze metros de profundidade numa área de duas mil milhas.
— Mas que engenhosos — comentou Jericho.
A rapariga de cabelo ruivo tinha acabado de decifrar a mensagem. Rasgou a tira de papel, colou-a por detrás do criptograma e entregou-a a outra rapariga que saiu apressadamente da sala. Agora iria ser traduzido para Inglês perceptível e enviado ao Almirantado.
Puck tocou no braço de Jericho. — Deves estar cansado. Porque não te vais embora para descansares?
Mas Jericho não tinha sono. — Gostaria de ver todas as mensagens do Tubarão que não conseguimos decifrar. Tudo desde a meia-noite de quarta-feira.
Puck sorriu intrigado. — Porquê? Não há nada que possas fazer com isso.
— Talvez. Mas mesmo assim gostava de ver.
— Porquê?
— Não sei. —Jericho encolheu os ombros. — Só para lhe mexer. Para as ter na mão. Estive um mês fora deste jogo.
— Talvez estejas a pensar que deixámos escapar alguma coisa?
— De modo nenhum. Mas o Logie pediu-me.
— Ah, sim! As famosas «inspiração» e «intuição» do Jericho. — Puck não conseguia esconder a sua irritação. — E, assim, da ciência e da lógica passamos à superstição e aos «sentimentos».
— Por favor, Puck! — Jericho começava a ficar aborrecido. — Pronto, satisfaz-me o capricho, se é assim que preferes ver as coisas.
Por um momento, Puck olhou-o furioso, mas depois, tão rápido como haviam chegado, as nuvens pareciam ter-se dissipado. — Claro. — E ergueu as mãos num gesto de impotência. — Tens de ver tudo. Desculpa. Ando muito cansado. Andamos todos cansados.
Cinco minutos depois, quando Jericho entrou na Sala Grande com a pasta dos criptogramas do Tubarão, descobriu que o seu antigo lugar já estava vago. Além disso, alguém tinha lá deixado um novo monte de papel para anotações e três lápis bem afiados. Olhou em redor, mas ninguém parecia prestar-lhe atenção.
Deixou os textos interceptados em cima da mesa. Desenrolou o cachecol. Apalpou o radiador — estava morno, como sempre. Bafejou para as mãos, para as aquecer, e sentou-se.
Estava de volta.
Quando alguém lhe perguntava, por que razão era matemático
— como, por exemplo, um amigo da mãe ou um colega curioso sem qualquer interesse pela ciência, ele abanava a cabeça, sorria e dizia que não fazia ideia. Se eles insistiam, ele então, com alguma indiferença, remetia-os para a definição de G.H. Hardy em Apologia: «um matemático, tal como um pintor ou um poeta, é um fazedor de padrões.» Se isso não os satisfizesse, ele tentava elucidá-los através da explicação mais básica que podia encontrar: pi-3,14
— a razão da circunferência de um círculo para o seu diâmetro. Calcule-se pi até um milhar de casas decimais, diria ele, ou um milhão ou ainda mais, e descobrir-se-á uma infindável sequência de dígitos sem um padrão aparente. Parece uma sequência casual, caótica e disforme. Todavia, Leibnitz e Gregory podem tomar o mesmo número e extrair dele um gracioso padrão de cristalina elegância:
Pi sobre 4 = 1 – 1 terço + 1 quinto – 1 sétimo + 1 nono - ...
e assim por diante até ao infinito. Este padrão não tinha qualquer utilidade, era simplesmente belo — para Jericho, tão sublime como uma fuga de Bach — e se o seu inquisidor continuasse sem perceber onde ele queria chegar, então ele tinha muita pena, mas desistia, porque não estava para perder mais tempo.
Partindo do mesmo princípio, Jericho achava que a máquina Enigma era uma beleza — uma obra de arte, resultado do engenho humano, capaz de criar o caos e uma ténue faixa com sentido. Nos primeiros dias em Bletchley, costumava imaginar que um dia, quando a guerra acabasse, havia de localizar o seu inventor alemão, Herr Arthur Scherbine, e havia de convidá-lo para uma cerveja. Mas mais tarde, veio a saber que Scherbine tinha morrido em 1929, tinha sido ilógica e absurdamente morto por um cavalo desembestado, não tendo por isso chegado a ver o sucesso da sua patente.
Se o tivesse visto, seria um homem rico. Nos finais de 1942, em Bletchley, calculava-se que os Alemães tivessem produzido pelo menos uma centena de milhar de Enigmas. Havia uma em cada quartel-general do Exército, cada base Luftwaffe, cada navio de guerra, cada submarino, cada porto, cada estação de caminhos-de-ferro importante, cada brigada das SS ou cada quartel-general da Gestapo. Nunca uma nação havia confiado tanto as suas comunicações secretas a uma simples máquina.
Na mansão de Bletchley, os criptanalistas tinham uma sala a abarrotar de Enigmas capturadas e Jericho tinha brincado com elas durante Jioras. Eram pequenas (medindo pouco mais de 30 centímetros por quinze), portáteis (pesavam apenas treze quilogramas) e simples de utilizar. Era só preparar a máquina, escrever a mensagem e o texto cifrado aparecia, letra a letra, num painel de pequenas lâmpadas eléctricas. E quem quer que recebesse a mensagem cifrada tinha apenas de instalar a máquina exactamente do mesmo modo, escrever no criptograma e, escrito nas lâmpadas, aparecia o texto normal original.
A genialidade do invento residia no vasto número de permutações diferentes que a Enigma podia gerar. Numa Enigma normal, a corrente eléctrica passava do teclado para as lâmpadas por uma série de três rotores eléctricos (pelo menos um deles dava uma volta de cada vez que uma tecla era premida) e um quadro de ligações com vinte e seis entradas. Os circuitos alteravam-se constantemente; os seus números potenciais eram astronómicos, mas calculáveis. Havia cinco rotores diferentes à escolha (dois eram mantidos de reserva), o que significava que podiam ser organizados em qualquer das sessenta sequências possíveis. Cada rotor era ranhurado e ligado a um veio e tinha vinte e seis posições de arranque possíveis. Vinte e seis elevado a três são 17 576. Multiplique-se isto pelas sessenta sequências possíveis dos rotores e obtém-se 1 054 560. Multiplique-se isto pelo número de ligações possíveis do quadro — cerca de cento e cinquenta milhões de milhões — e temos à nossa frente uma máquina com cerca de cento e cinquenta milhões de milhões de milhões de possibilidades de arranque. Não importava quantas máquinas Enigma fossem capturadas ou quanto tempo se passasse à volta delas. Era completamente inútil a não ser que se conhecesse a ordem dos rotores, as posições de arranque e as ligações do painel; mas os Alemães mudavam-nas diariamente e, por vezes, duas vezes por dia.
A máquina tinha apenas uma pequena falha, mas, como se veio a revelar, uma falha crucial. Nunca cifrava uma letra como ela realmente era: um A nunca surgiria como um A, ou um B como um B, ou um Ccomo um C... Nada é sempre iguala si mesmo: este era o grande princípio orientador para a decifração da Enigma, a tal fraqueza infinitesimal que as descodificadoras exploravam.
Suponhamos um criptograma que começa assim:
IGWH BSTU XNTX EYLK PEAZ ZNSK UFJR CADV...
E suponhamos que alguém sabia que esta mensagem provinha da estação meteorológica de Kriegsmarine, na Baía da Biscaia, uma velha amiga dos analistas de grelhas do Anexo 8, que começava os seus relatórios sempre do mesmo modo:
WEUBYYNULLSEQSNULLNULL
(«Boletim meteorológico 0600», WEUB era a abreviatura de WETTERÚBERSICHT e SEQS para SECHS; YY e NULL eram introduzidos para confundir os intrometidos.)
Os criptanalistas estendiam o texto cifrado no cavalete e faziam deslizar a grelha por baixo, partindo do princípio de que nada é sempre igual a si mesmo, continuando a passar a grelha até encontrarem uma posição em que não existissem letras em comum do início ao fim do texto. Neste caso, o resultado seria:
BSTUXNTXEYLKPEAZZNSKUF
WEUBYYNULLSEQSNULLNULL
E nesta altura era teoricamente possível calcular a programação da Enigma original, a única que tinha podido produzir exactamente esta sequência de pares de letras. Mesmo assim, tratava-se de um cálculo demoradíssimo que teria mantido ocupada uma equipa de seres nos durante várias semanas. Os Alemães partiam, e bem, do princípio que qualquer que fosse a dimensão da informação obtida, fria já demasiado ultrapassada para ter qualquer validade. Mas Bletchley — e isso os Alemães nunca o imaginaram — Bletchley não usava seres humanos. Usava as descodificadoras. Pela primeira vez na história, uma cifra produzida em série por uma máquina era decifrada por uma outra máquina.
Quem ia precisar agora de espiões? Para que serviam agora as tintas secretas, as cartas sem remetente e os encontros à meia-noite em vagões-cama de cortinas corridas? Agora o que era necessário eram matemáticos e engenheiros com latas de óleo e mil e quinhentos arquivistas capazes de processarem cinco mil mensagens secretas por dia. Eles tinham>empurrado a espionagem para a era da máquina.
Mas nada disto servia de muito a Jericho para decifrar o Tubarão.
O Tubarão desafiava todas as ferramentas que ele pudesse trazer para o atacar. Para começar, quase não existiam grelhas. No caso de uma chave superficial da Enigma, se o Anexo 8 ficasse sem grelhas, tinham truques para rodear o problema — «jardinagem», por exemplo. «Jardinagem» significava mandar a força aérea largar minas numa determinada quadrícula, à saída de um porto Alemão. Uma hora mais tarde, era certo e sabido: o capitão do porto, com teutónica eficiência, enviava uma mensagem usando a composição da Enigma para aquele dia, a avisar os navios para terem cuidado com as minas na quadrícula tal e tal. O sinal era interceptado e enviado imediatamente para o Anexo 8, fornecendo-lhes assim a grelha que faltava.
Mas não era possível fazer isso com o Tubarão e Jericho apenas fazia uma pequena ideia do conteúdo dos criptogramas. Havia oito longas mensagens originárias de Berlim. Supunha que fossem ordens, muito provavelmente para a formação de «alcateias» de
submarinos que deveriam estacionar virados para os comboios de navios aliados que se aproximavam. Os sinais mais curtos — havia cento e vinte e dois, que Jericho empilhou separadamente — tinham sido enviados dos próprios submarinos. Estes podiam conter qualquer tipo de informação: relatórios de barcos afundados ou com problemas nos motores; pormenores sobre sobreviventes a boiarem nas águas e de membros da tripulação atirados borda fora pelas vagas; pedidos de peças e ordens recentes. Os mais curtos de todos eram os boletins meteorológicos dos submarinos ou, mais raramente, relatórios de contactos: «Comboio na quadrícula BE9533 rota 70 graus, velocidade 9 nós...» Mas estes encontravam-se codificados, tal como os boletins meteorológicos, com uma letra do alfabeto a substituir uma parte da informação. E depois eram codificados em Tubarão.
Jericho tamborilou com o lápis em cima da mesa. Afinal, Puck estava certíssimo. Não existia material em quantidade suficiente para se poder trabalhar.
E, mesmo que existisse, havia sempre o maldito quarto rotor da Enigma Tubarão, a inovação que tornava as mensagens dos submarinos vinte e seis vezes mais difíceis de descodificar do que as dos navios. Cento e quinze milhões de milhões de milhões multiplicados por vinte e seis. Um número fenomenal. Há um ano que os engenheiros faziam o possível e o impossível para construírem uma descodificadora de quatro rotores — mas aparentemente sem sucesso. O objectivo parecia estar irremediavelmente fora das suas capacidades técnicas.
E sem grelhas, as descodificadoras eram inúteis. Não havia nada a fazer.
As horas foram passando e Jericho recorreu a todos os truques possíveis para estimular a inspiração. Ordenou os criptogramas cronologicamente. Depois ordenou-os por tamanho. Depois, por frequência. Rabiscou-lhes em cima. Vagueou pelo anexo, sem se preocupar agora com quem estava a olhar para ele e quem não estava. Era nisto que ele se tinha transformado, durante dez intermináveis meses, no ano passado. Não é de admirar que tenha ficado doido. As linhas contínuas de letras sem sentido bailavam-lhe diante dos olhos. Estavam carregados do significado mais vital que se podia imaginar; se ao menos ele pudesse entendê-lo. Mas onde estaria o padrão? Onde estaria o padrão? Sim, onde estaria o padrão?
Era hábito, no turno da noite, toda a gente parar para comer qualquer coisa por volta das quatro da manhã. Os criptanalistas saíam quando quisessem, dependendo do avanço do seu trabalho. As raparigas da Sala de Descodificação e os escriturários das salas de Registo e Catalogação saíam em rotatividade, de modo a haver sempre alguém no anexo.
Jericho nem reparou no fluxo humano em direcção à porta. Estava com os cotovelos apoiados sobre a mesa, debruçado sobre os criptogramas e com os nós dos dedos comprimidos contra as têmporas. A sua mente estava eidética — o que significa, que podia reter e guardar imagens com exactidão fotográfica, fossem elas posições de xadrez, palavras cruzadas ou sinais navais cifrados dos alemães — e trabalhava com os olhos fechados.
— «Sob os trovões da profundidade superior» — entoou uma voz velada atrás dele. — «Nas recônditas, remotas profundezas dos abismos do mar, Mergulhado no seu sono antigo, sem sonhos, impoluto...».
— «...O Monstro jaz adormecido». —Jericho terminou a citação e, quando se voltou, viu Atwood a enfiar um passa-montanha rubro. — Coleridge?
— Coleridge? — O rosto de Atwood surgiu abruptamente evidenciando a mais genuína indignação. — Coleridge? É Tennyson, seu ignorante. Queríamos saber se vem connosco apanhar ar.
Jericho estava quase a recusar, mas achou que seria indelicado. De qualquer modo, estava esfomeado. Nas últimas doze horas não tinha comido nada além de uma torrada com doce.
— É muito simpático da sua parte. Obrigado.
Seguiu Atwood, Pinker e mais dois colegas até ao fundo do anexo e saíram para o relento. Enquanto ele estava perdido no labirinto dos criptogramas devia ter chovido e o ar estava ainda húmido. Ouvia pessoas movimentarem-se nas sombras para a direita, na estrada. Os feixes de luz das lanternas reluziam no saibro molhado. Atwood conduziu-os para lá da mansão e do arvoredo e
saíram pelo portão principal. Fora do anexo era proibido falar de assuntos de trabalho e Atwood, só para irritar Pinker, pôs-se a dissertar sobre o suicídio de Virginia Woolf, que ele sustentava ser o dia mais auspicioso para a literatura inglesa, depois da invenção da impressora.
— Não p-p-posso acreditar que você ppp-ppp-ppp... — Quando Pinker se engasgava numa palavra, todo o seu corpo se sacudia como que a querer libertar-se. Por cima do laço, o seu rosto desabrochava escarlate à luz das lanternas. Pararam e, pacientemente, esperaram que acabasse. — Ppp-ppp...
— Pense o quê? — alvitrou Atwood.
— Pense isso, Frank — desbobinou Pinker, ofegante, com um certo alívio. — Obrigado.
Alguém acorreu em defesa de Atwood e, então, a voz esganiçada de Pinker começou de novo a discordar. Retomaram o passeio, mas Jericho ficou para trás.
A cantina, que ficava mesmo atrás da vedação, era tão grande como um hangar aéreo, profusamente iluminada e ensurdecedoramente barulhenta com cerca de quinhentas ou seiscentas pessoas sentadas a comer ou à espera na bicha.
Um dos novos criptanalistas gritou para Jericho: — Aposto que teve saudades disto! — Jericho sorriu e estava quase a responder, mas o jovem foi buscar um tabuleiro. O barulho era terrível, tal como o cheiro — uma mistura de vapores de comida institucional, peixe cozido com couves e leite creme com fumo de cigarros e roupas húmidas. Jericho sentia-se intimidado por tudo aquilo e ao mesmo tempo distante, como um preso que sai da solitária ou um paciente que sai do isolamento hospitalar e se vê no meio da rua depois de uma doença prolongada.
Pôs-se na bicha e não prestou muita atenção à comida que lhe deitavam no prato. Só depois de ter pago os dois xelins é que olhou — batatas cozidas num óleo amarelo coalhado e um pedaço de uma coisa acinzentada cheia de veios. Espetou o garfo na posta e cautelosamente levou um pedaço até à boca. Sabia a fígado de peixe, a óleo de fígado de bacalhau congelado. Estremeceu.
— É perfeitamente detestável.
Atwood respondeu-lhe com a boca cheia: — É carne de baleia.
— Santo Deus! — Horrorizado, Jericho pousou o seu garfo imediatamente.
— Não desperdice, meu caro. Não sabe que estamos em tempo de guerra? Vá lá, coma isso!
Jericho empurrou o prato pela mesa fora e tentou lavar o mau gosto com café com leite aguado.
O leite-creme parecia uma tarte de fruta e sempre sabia melhor, ou antes, não sabia a nada mais desagradável do que cartão, mas, enquanto comia, o inconstante apetite de Jericho acabou por desaparecer. Atwood dava a sua opinião acerca da interpretação de Hamlet por Gielgud, pulverizando a mesa com partículas de baleia. Jericho não aguentou mais. Pegou nos restos que Atwood não quis e lançou-os para um latão de leite com a etiqueta «lavagem para porcos».
Já ia a meio caminho da porta, quando foi subitamente acometido de remorsos por ter sido tão rude. Seria esse o comportamento de um bom colega, aquilo a que Skynner chamava «trabalho em equipa»? Mas quando se voltou e olhou para trás, viu que ninguém tinha sentido a sua falta. Atwood continuava a falar e a brandir o garfo no ar, Pinker abanava a cabeça e os outros eram todos ouvidos. Jericho voltou-se outra vez para a porta e para a salvação do ar puro.
Trinta segundos depois, estava no passeio, procurando orientar-se na escuridão em direcção ao posto do guarda, a pensar no Tubarão.
Ouvia o tique tique de uns saltos de mulher a cerca de vinte passos. Não havia mais ninguém por perto. Estavam todos divididos por dois lugares: ou a trabalhar ou a comer. Os passos rápidos pararam na barreira e, passado um momento, a sentinela orientou a lanterna para a face da mulher. Esta desviou o olhar, resmungando aborrecida, e foi então que Jericho a viu por um instante, iluminada no negrume, a olhar na sua direcção.
Era Claire.
Por uma fracção de segundo, pensou que ela o tivesse visto. Mas ele permanecia na escuridão, tomado de pânico, recuando cerca de quatro ou cinco passos, e ela estava encandeada pela luz.
Com o que pareceu infinita lentidão, levou as mãos à face para proteger os olhos. O seu cabelo loiro estava raiado de branco.
Ele não podia ouvir o que diziam, mas a lanterna apagou-se no instante seguinte e o negrume reinstalou-se. Depois, ouviu-a descer pelo outro lado da barreira, tique tique tique, certamente apressada, dissolvendo-se na noite.
Ele tinha de a apanhar. Correu, aos tropeções, até ao posto do guarda, procurando a carteira, mas não conseguia encontrar a maldita. A lanterna acendeu-se, ofuscando-o (— boa-noite —;
— boa-noite, cabo) e os seus dedos de pouco serviam, não conseguia pô-los a funcionar, e o passe não estava na carteira, não estava nos bolsos do sobretudo, não estava nos bolsos do casaco nem no bolso de dentro — ele já não ouvia os passos dela, apenas o bater impaciente da bota do guarda — e, sim, estava no bolso de dentro (— aqui tem —; — obrigado —; — obrigado, cabo —;
— boa-noite —; — boa-noite, cabo —) noite, noite, noite... Ela tinha desaparecido.
A luz do guarda tinha-lhe roubado a pouca visão que ainda conservava. Quando fechava os olhos, apenas via a marca da lanterna e quando os abria apenas via a escuridão total. Encontrou a berma da estrada com o pé e acompanhou a curva. Voltou a passar pela mansão e parou perto dos anexos. Ao longe, na outra margem do lago, alguém
— talvez um outro guarda — começou a assobiar «Voltaremos a ir colher lilazes na Primavera» e depois parou.
Estava tudo tão silencioso que era até capaz de ouvir o vento circular por entre as árvores.
Hesitante, pensava no que fazer, quando, de súbito, apareceu um ponto de luz no caminho, do seu lado direito, e depois outro. Sem saber porquê, Jericho chegou-se para trás, para a sombra do Anexo 8, como se as lanternas viessem contra ele. Ouviu vozes que não reconheceu — de homem e de mulher — apenas um sussurro, mas empático. Quando estavam quase junto dele, o homem atirou o cigarro à água: uma cascata de pontos vermelhos terminou num silvo. A mulher disse: — É só uma semana, querido — e depois abraçou-o. Os pirilampos bailavam, separavam-se e afastavam-se.
Jericho voltou de novo para o caminho. A visão nocturna estava quase recuperada. Olhou para o relógio. Eram quatro e meia. Mais noventa minutos e começava a amanhecer.
Obedecendo a um impulso, desceu o caminho, rente ao Anexo 8, mantendo-se perto da parede blindada, até chegar a uma das esquinas do Anexo 6, onde eram interceptados os criptogramas do Exército Alemão e da Luftwaffe. Sempre em frente, havia uma passagem estreita grosseiramente relvada, que separava o Anexo 6 do fim da parede da Secção Naval. Ao fundo, erguendo-se atarracada na escuridão e quase invisível, avistou a empena de outro anexo — o Anexo 3 — para onde os criptogramas cifrados no Anexo 8 eram enviados para serem traduzidos e despachados.
O Anexo 3 era onde Claire trabalhava.
Lançou um olhar rápido em redor. Não havia ninguém à vista.
Saiu do caminho e desceu a passagem. O chão estava escorregadio e irregular e sentia muitas vezes algo agarrar-se-lhe aos tornozelos — heras, talvez, ou pontas de cabos rejeitados — que quase o faziam estatelar-se no chão. Demorou cerca de um minuto a chegar ao Anexo 3.
Também aqui havia um muro de cimento, projectado especialmente para proteger a frágil estrutura de madeira da explosão de uma bomba. Era da altura de uma pessoa e apesar de ele ser baixo, ainda conseguia espreitar-lhe por cima.
Havia uma fila de janelas na parede lateral da construção. Sobre estas, do lado de fora, eram corridas persianas negras todos os dias ao anoitecer. Tudo o que se podia ver eram os fantasmas dos quadrados por onde a luz resvalava contornando os caixilhos. O chão do Anexo 3, tal como o do Anexo 8, era de madeira, suspenso por cima de uma base de cimento e ele conseguia ouvir o ruído surdo, abafado, das pessoas a andarem de um lado para o outro.
Ela devia estar de serviço. Devia estar a trabalhar no turno da meia-noite. Devia estar a um metro de onde ele se encontrava.
Ele estava em bicos de pés.
Nunca tinha estado dentro do Anexo 3. Por razões de segurança, os trabalhadores de uma secção não eram incentivados a irem às outras, a não ser que tivessem uma boa razão para o fazerem. De tempos a tempos o seu trabalho levava-o até ao limiar do Anexo 6, mas o Anexo 3 era, para ele, um mistério. Não fazia a mínima ideia do que ela fazia. Uma vez, ela tentou dizer-lhe, mas ele disse-lhe delicadamente que seria melhor não lho revelar. Pelos comentários que ouvira, concluíra que era algo relacionado com arquivo e que era algo «mortalmente chato, querido».
Esticou-se o mais que pôde, até a ponta dos dedos tocar no revestimento de amianto do anexo.
Que estarás a fazer, querida Claire? Estarás ocupada com o teu arquivo enfadonho ou a namoriscar um dos guardas de serviço ou a cochichar com as outras raparigas ou a fazer palavras cruzadas que nunca consegues acabar?
De repente, a cerca de quinze metros para a sua esquerda a porta abriu-se. Da mancha oblonga de luz difusa emergiu um homem de uniforme que abria a boca ensonado. Silenciosamente, Jericho deixou-se escorregar até ficar de joelhos na terra molhada e colou o peito à parede. A porta fechou-se e o homem começou a andar na sua direcção. Parou a cerca de dez passos, respirando a custo. Parecia estar à escuta. Jericho fechou os olhos e logo a seguir ouviu um tamborilar e depois um ruído semelhante a uma broca e, quando abriu os olhos, viu a vaga silhueta do homem a urinar, com toda a força, contra o muro. Demorou bastante tempo, Jericho estava suficientemente perto para sentir o fedor penetrante daquela urina de cerveja. O cheiro começou a espalhar-se na brisa. Teve de tapar o nariz e a boca. Por fim, o homem deu um forte sinal — talvez um grunhido — de satisfação, apertou os botões da braguilha e foi-se embora. A porta abriu-se e fechou-se de novo e Jericho ficou sozinho.
Havia um certo humor na situação, e mais tarde até ele conseguiu vê-lo. Mas agora estava à beira do pânico. O que é que o homem iria pensar que ele estava ali a fazer? Se fosse apanhado a meio da noite, ajoelhado com a sua orelha colada a um anexo com o qual ele não tinha qualquer relação, teria, no mínimo, longas explicações a dar. Por um momento, pensou simplesmente entrar por ali dentro e exigir falar com ela. Mas a sua imaginação recuou perante a ideia. Podia ser posto na rua. Ou ela podia aparecer furiosa e fazer uma cena. Ou podia aparecer e ser a doçura em pessoa e, nesse caso, o que é que ele diria? —Ah, olá, querida. Ia a passar por aqui. Estás com óptimo aspecto. Já agora, há uma coisa que ando a querer perguntar-te há algum tempo, porque é que destroçaste a minha vida?
Apoiou-se na parede para se pôr em pé. O caminho mais rápido para a estrada era sempre em frente, mas, assim, teria de passar pela porta do anexo. Concluiu que o caminho mais seguro seria voltar por onde tinha vindo.
Apesar do medo, era cauteloso. A cada passo que dava, poisava o pé cuidadosamente e, de quinze em quinze passos, certificava-se de que não havia mais ninguém na escuridão. Dez minutos mais tarde estava de novo na entrada do Anexo 8.
Sentia-se como se tivesse terminado uma corrida de corta-mato. Estava ofegante. Tinha um pequeno buraco no sapato esquerdo e a meia estava molhada. Havia bocados de relva húmida colados ao fundo das suas calças. Os joelhos estavam encharcados. E o sobretudo estava listrado de branco, de roçar pelo muro de cimento. Tirou o lenço do bolso e tentou limpar-se. Quando acabou, ouviu os outros regressarem da cantina. A voz de Atwood projectava-se na noite: — Esse saiu-me uma ovelha negra, muito negra mesmo. Fui eu que o recrutei, sabem — ao que alguém acrescentou: — Sim, mas já foi muito bom, não foi?
Jericho não parou para ouvir o resto. Abriu a porta e percorreu o corredor quase a correr, de tal maneira que, quando os criptanalistas entraram na Sala Grande, já ele estava sentado à secretária, curvado sobre os criptogramas, com os nós dos dedos cravados nas têmporas e os olhos fechados.
Permaneceu nessa posição durante três horas.
Por volta das seis, Puck parou para deixar em cima da mesa outros quarenta sinais cifrados, a última fornada do tráfego do Tubarão, e para perguntar — não sem algum sarcasmo — se Jericho já tinha «dado com a solução»? Às sete, ouviu-se um ruído de escadas contra a parede exterior e as persianas negras foram abertas. Uma luz cinzenta clara entrou no anexo.
O que é que ela fazia, àquela hora da noite, tão apressada a caminho de Bletchey Park? Era isso que ele não entendia. Claro, o mero facto de voltar a vê-la ao fim de um mês passado a tentar esquecê-la era perturbante. Mas eram as circunstâncias passadas que o afligiam. Ela não tinha aparecido na cantina, disso ele tinha a certeza.
Tinha atentado em cada mesa, cada rosto — tinha estado tão distraído que nem se tinha apercebido do que lhe davam para comer. Mas, se ela não estava na cantina, onde é que ela estava? Estaria com alguém? Quem? Quem? E o andar dela, tão apressado... Haveria nele algo de furtivo, de amedrontado?
A memória recapitulava a cena passo a passo: o andar, o feixe de luz, o virar da cabeça, o grito que dera, o brilho do seu cabelo, o modo como ela havia desaparecido... Isso já era outra coisa. Teria sido mesmo capaz de percorrer toda a distância até à cabana enquanto ele procurava o passe?
Mesmo antes das oito horas, juntou os criptogramas e enfiou-os na pasta. Todos os criptanalistas à sua volta se preparavam para a mudança de turno — espreguiçavam-se, bocejavam e esfregavam os olhos de cansaço, juntando os papéis e rabiscando algumas notas para os que vinham substituí-los. Ninguém viu Jericho meter apressado pelo corredor fora até ao escritório de Logie. Bateu uma vez. Não obteve resposta. Tentou abrir a porta. Como sempre: aberta.
Entrou, fechou a porta e pegou no telefone. Se demorasse mais um segundo, os nervos fá-lo-iam fraquejar. Marcou o «0» e, ao sétimo toque, quando já ia desligar, um operador sonolento respondeu.
A sua boca estava demasiado seca para as palavras saírem — Oficial de Serviço, Anexo 3, por favor.
Quase de imediato, a voz irritada de um homem respondeu: — Coronel Coker.
Jericho quase desligou.
— Trabalha aí uma Miss Romilly? Ele não precisava de disfarçar a voz: era tão forçada e trémula que estava irreconhecível. — Miss Claire Romilly?
— Errou completamente a ligação. Quem fala?
— Serviços Sociais.
— Ora, vá pró diabo! — Seguiu-se um som ensurdecedor, como se o coronel tivesse atirado o telefone pela sala fora, mas a ligação não foi cortada. Jericho ouvia o bater de uma teleimpressora e a voz de um homem, muito distinto, a dizer qualquer coisa como: — Sim, sim, percebi. É para já. Muito bom-dia. — O homem terminou uma conversa e começou outra: — índice do Exército... —Jericho deitou um olhar ao relógio colocado por cima da janela. Já passava das oito.
Vá lá, vá lá ... De repente o ruído aumentou, cada vez mais próximo e uma mulher disse suavemente ao ouvido de Jericho: — Sim?
Ele esforçou-se por fazer a voz parecer normal, mas apenas conseguiu grasnar: — Claire?
— Não, lamento, mas hoje é a folga dela. Só pega amanhã às oito da manhã. Posso ajudar?
Jericho pousou gentilmente o auscultador no suporte, ao mesmo tempo que atrás dele a porta se abria.
— Ah, estás aqui, meu velho...
A luz solar fazia as cabanas parecerem mais pequenas.
A escuridão tinha-lhes conferido um certo mistério, mas a manhã revelava-as tal como eram realmente: atarracadas e feias, com paredes castanhas, tectos enegrecidos com alcatrão e um ar de abandono prematuro. Acima da mansão, o céu estava branco e brilhante raiado de cinzento, dir-se-ia uma cúpula de mármore polido. Um pato com a sua plumagem parda de Inverno bamboleava-se pelo caminho do lago, à procura de comida. Logie quase lhe deu um pontapé ao passar por ele e devolveu-o à água entre os protestos veementes do animal.
Não se tinha mostrado minimamente contrariado por encontrar Jericho no gabinete e a desculpa cautelosamente adiantada por Jericho — que tinha vindo devolver os textos interceptados da Tubarão — tinha sido dispensada com um gesto.
— Deixa-os na Sala das Grelhas e vem comigo.
Desceram pelo canto norte do lago, perto das cabanas, ao longo do Bloco-A, uma construção de dois pisos com paredes de tijolo e topo achatado. Logie conduziu-o até um lanço de degraus de cimento e virou à direita. Ao fundo do corredor, uma porta abriu-se e Jericho ouviu uma voz bem conhecida ribombar: — ...todos os nossos recursos, humanos e materiais, concentrados neste problema... — e então a porta fechou-se e Baxter surgiu no corredor diante deles.
— Ora até que enfim. Ia agora mesmo à tua procura. Olá, Guy. Olá, Tom. Como estás? Mal te reconheci. A sério. — Baxter tinha um cigarro na boca e não se preocupou em retirá-lo, deixando-o abanar à medida que falava e cobrindo de cinza a parte da frente da camisola. Antes da guerra, dava aulas na Faculdade de Economia, em Londres.
— O que é que temos agora? — perguntou Logie, inclinando a cabeça em direcção à porta.
— É esse americano, o nosso oficial de «li-ei-son», como ele diz, mais um outro americano... um tipo graúdo da Marinha... um tipo à civil... gigolô da Secreta, pelo aspecto. E mais três da nossa Marinha, claro, um deles almirante. Vieram todos de Londres, expressamente.
— Um almirante? — Logie levou automaticamente a mão à gravata e Jericho reparou que ele tinha mudado para um fato de trespasse de antes da guerra. Passou os dedos pela língua e tentou alisar o cabelo. — Não gosto nada de almirantes. E como está o Skynner?
— Neste momento? Eu diria que bastante em baixo. — Baxter não despregava os olhos de Jericho e tinha os cantos da boca ligeiramente revirados para baixo, o mais perto que Jericho já o tinha visto aproximar-se de um sorriso. — Sim, senhor, acho que não estás assim tão mal como isso, Tom.
— Vá lá, Alec, não comeces a aborrecê-lo.
— Estou bem, Alec, obrigado. Como está a revolução?
— Vai andando, camarada. Vai andando.
Logie bateu no braço de Jericho. — Não digas nada quando estivermos lá dentro, Tom. Estás aqui apenas para a encenação, meu velho.
Só para ser visto, pensou Jericho, que raio é que aquilo queria dizer? Mas antes que ele pudesse perguntar, Logie abriu a porta e tudo o que ele conseguiu ouvir foi Skynner: — devemos contar com estes revezes de vez em quando... — e a seguir entraram.
Havia oito homens na sala. Leonard Skynner, chefe da Secção Naval, sentado num dos topos da mesa, Atwood à sua direita e, à sua esquerda, uma cadeira vazia, que Baxter se apressou a ocupar. Os restantes eram cinco comandantes com o uniforme azul escuro da Marinha, dois deles americanos e três britânicos. Um dos comandantes britânicos, um tenente, tinha uma pala num olho. Estavam todos muito sérios.
O oitavo homem estava de costas para Jericho. Voltou-se assim que eles entraram e Jericho apenas registou um rosto magro com cabelo loiro.
Skynner parou de falar, levantou-se e estendeu a mão sapuda. — Entre Guy, entre Tom. — Era um homem alto, de rosto quadrado, espessa cabeleira negra e sobrancelhas eriçadas que quase se tocavam sobre a cana do nariz, o que fazia lembrar a Jericho o símbolo Morse para M. A sua mão impaciente chamou os recém-chegados, obviamente para ver reforçado o lado dos Aliados. — Este é Guy Logie — disse, voltando-se para o almirante, — chefe dos criptanalistas, e este é Tom Jericho de quem já devem ter ouvido falar. O Tom foi útil para nos abrir caminho para o Tubarão, antes do Natal.
A face dura e envelhecida do almirante mantinha-se inalterável. Estava a fumar um cigarro — estavam todos a fumar excepto Skynner — e olhou desinteressadamente para Jericho, tal como os americanos, através da fumarada. Skynner prosseguiu as apresentações, fazendo girar o braço à volta da mesa como um ponteiro de relógio. — Este é o Almirante Trowbridge. Tenente Cave. Tenente Villiers. Comandante Hammerbeck. — O mais velho dos dois americanos esboçou um aceno — Tenente Kramer, Marinha Americana, Liaison... Oficial de Ligação. Mr. Wigram, observador governamental. — Skynner dirigiu um ligeiro cumprimento a todos e sentou-se outra vez. Transpirava por todos os lados.
Jericho e Logie foram buscar uma cadeira ao monte atrás da mesa e tomaram as suas posições perto de Baxter.
Quase toda a parede atrás do almirante estava coberta com um mapa do Atlântico Norte. Cachos coloridos de discos indicavam a posição dos comboios navais Aliados e das suas escoltas: amarelo para os navios mercantes, verde para os navios de guerra. Triângulos pretos assinalavam o paradeiro suposto dos submarinos alemães. Por baixo do mapa havia um telefone vermelho, com ligação directa à Sala de Localização de Submarinos, nas caves do Almirantado. A restante decoração das paredes caiadas era um par de fotografias emolduradas. Uma, autografada, era do rei, de aspecto bastante nervoso, por sinal, e tinha sido oferecida depois de uma visita recente. A outra era do Grande Almirante Karl Dõnitz, comandante-chefe da Marinha alemã:
Skynner gostava de se imaginar envolvido numa batalha pessoal com esse astuto boche.
Agora, porém, parecia ter perdido o fio à meada. Reordenou os papéis e, enquanto Logie e Jericho ocupavam os seus lugares, um dos homens da Marinha britânica — Cave, o que tinha a pala no olho, recebeu um sinal do almirante para começar a falar.
— Talvez, caso já tenham acabado de esquematizar os vossos problemas, fosse útil delimitar a situação operacional. — A sua cadeira arranhou o chão de soalho, quando ele se levantou. O tom da sua voz era educadamente insultuoso. — A posição a cento e vinte e
uma...
Jericho esfregou o queixo por barbear. Não conseguia decidir se mantinha o sobretudo vestido ou se o tirava. Mantinha-o vestido, acabou por decidir — a sala estava fria, apesar do número de pessoas lá dentro. Desapertou os botões e alargou o cachecol. Enquanto o fazia, reparou que o almirante o observava. Estes oficiais seniores achavam inacreditável a falta de disciplina sempre que vinham de visita: o cachecol e os casacos de malha, o tratamento pelo nome próprio. Contava-se até uma história acerca de Churchill, que tinha visitado as instalações em 1941 e feito um discurso nos relvados para os criptanalistas. Mais tarde, quando já ia embora, disse ao director: Quando eu lhe disse para experimentar tudo, ao recrutar este local, não esperava que me levasse à letra. — Jericho sorriu perante esta lembrança. O almirante pôs um ar agastado e sacudiu a cinza do cigarro para o chão.
O oficial de marinha zarolho tinha pegado num ponteiro e estava em pé diante do mapa do Atlântico, com um monte de notas na mão.
— Infelizmente, temos de dizer que as notícias que nos deram não podiam ter chegado em pior altura. Nada menos que três comboios deixaram os Estados Unidos a semana passada e estão agora no alto mar. O comboio SC-122. - Assinalou-o com uma forte pancada do ponteiro, como se tivesse alguma coisa contra ele, e leu as anotações que trazia: — Partiu de Nova Iorque na passada sexta-feira. Transporta combustível, minério de ferro, aço, trigo, bauxite, açúcar, carne refrigerada, zinco, tabaco e tanques. Cinquenta navios mercantes.
Cave falava com uma voz metálica, cortante, sem olhar para os circundantes. Com o seu olho bom fitava o mapa.
— Comboio HX-229. — E bateu-lhe ao de leve. — Saiu de Nova Iorque na segunda-feira. Quarenta embarcações mercantes. Transporta carne, explosivos, lubrificante, produtos lácteos refrigerados, manganês, chumbo, madeira, fosfatos, gasóleo, combustível para aviões, açúcar e leite em pó. — Pela primeira vez, voltou-se para a assistência. O lado esquerdo do seu rosto era todo ele uma mancha púrpura. — Devo frisar que isto é o fornecimento de leite em pó para abastecer por duas semanas todas as Ilhas Britânicas.
Ouviu-se um riso nervoso. — Isso, é melhor não o perderem — gracejou Skynner. O riso extinguiu-se imediatamente. O responsável parecia tão abandonado no silêncio que Jericho quase sentiu pena dele.
Nova pancada do ponteiro.
— E o comboio HX-229A. Deixou Nova Iorque na terça-feira. Vinte e sete navios. Carregamentos similares aos outros. Gasolina, combustível para aviões, madeira, aço, gasóleo para navios, carne, açúcar, trigo, explosivos. Três comboios. Um total de cento e dezassete navios mercantes com um milhão de toneladas de peso bruto, mais um milhão de toneladas de carga.
Um dos americanos — o sénior Hammerback — levantou a mão. — E quantos homens estão envolvidos?
— Nove mil marinheiros da marinha mercante. Um milhar de passageiros.
— Quem são os passageiros?
— Na maioria, são membros das forças armadas. Algumas senhoras da Cruz Vermelha americana. Um elevado número de crianças. E missionário católicos, simples curiosos.
— Santo Deus!
Cave encrespou um sorriso forçado. — Bem podemos chamá-lo.
— E qual é a localização dos submarinos?
— Talvez seja melhor o meu colega responder a isso.
Cave sentou-se e Villiers, outro oficial britânico, tomou o seu lugar. Também ele empunhava garbosamente um ponteiro.
— A Sala de Localização de Submarinos detectou três concentrações operacionais a partir de zero-zero-cem quinta-feira... aqui, aqui e aqui. — O seu sotaque mal se reconhecia como inglês, era dos que pronunciavam tudo de forma exageradamente afectada, quase sem mexer os lábios, como se articular demasiado o discurso fosse indigno de um gentleman, uma traição ao idioma de Shakespeare. — Gruppe Raubgraf aqui, a duzentas milhas da costa da Gronelândia. Gruppe Neuland aqui, quase no meio do oceano. E Gruppe Westmark aqui, precisamente a Sul da Islândia.
— Zero, zero quinta-feira? Quer dizer que foi há mais de trinta horas? — O cabelo de Hammerback tinha a cor e a espessura da palha de aço e estava cortado à escovinha, rente ao crânio. E brilhava na luz fluorescente sempre que ele se movimentava para a frente. — E onde diabo estão eles agora?
— Lamento, mas não faço a mínima ideia. Pensei que era por isso que aqui estávamos. Pura e simplesmente desapareceram do ecrã.
O almirante Trowbridge acendeu novo cigarro na ponta do que já estava a acabar. Tinha afastado a atenção de Jericho e fitava agora Hammerback com os seus olhos pequeninos e encovados.
De novo o americano ergueu a mão. — De quantos submarinos estamos a falar ao todo nestas três alcateias?
— Lamento dizê-lo... bem... bastantes, calculamos que aí uns quarenta e seis.
Skynner contorceu-se na cadeira. Atwood fez um grande espalhafato a remexer nos seus papéis.
— Vamos lá a ver se eu entendo — disse Hammerbeck. (Ele era decerto persistente e Jericho começava a admirá-lo.) — O que você está a dizer é que um comboio naval com um milhão de toneladas...
— Da marinha mercante.
— ...da marinha mercante, perdão, que um milhão de toneladas de navios da marinha mercante, com dez mil pessoas a bordo, segue a todo o vapor em direcção a quarenta e seis submarinos alemães, e que você não faz a mínima ideia da localização desses submarinos?
— Receio que seja isso, sim...
— Porra — praguejou Hammerbeck, recostando-se na cadeira. — E quanto tempo falta para lá chegarem?
— Isso é difícil de dizer. — Era novamente Cave. Tinha o estranho hábito de se voltar quando falava e Jericho apercebeu-se que ele tentava não mostrar a cicatriz sobre o malar. — O SC é o comboio
mais lento. Está a fazer cerca de sete nós por hora. Os HXs são ambos rápidos, estão a fazer dez nós, um, e o outro onze. Diria que temos no máximo mais três dias. Depois disso, estarão na área operacional do inimigo.
Hammerbeck murmurou qualquer coisa para o outro americano. Ele abanou a cabeça e fez movimentos curtos e categóricos com a mão. O almirante curvou-se e murmurou qualquer coisa para Cave, que respondeu: — Suponho que sim, meu almirante.
Jericho olhou para o Atlântico, para os círculos amarelos dos comboios e os triângulos negros dos submarinos, dispostos como dentes de tubarão ao longo das rotas marítimas. A distância entre os navios e os submarinos era cerca de oitocentas milhas. Os navios mercantes percorriam talvez duzentas e quarenta milhas em cada vinte e quatro horas. Os três dias deviam bater certo. Meu Deus, pensou ele, não admira que o Logie estivesse desesperado para que eu voltasse.
— Por favor, meus senhores, posso? — disse Skynner bem alto, para trazer de novo a ordem à reunião. Jericho viu estampada no seu rosto aquela sua expressão do tipo «vá lá, é preciso sorrir perante a desgraça», sinal invariável de pânico incipiente. — Acho que não nos devemos deixar arrastar por um pessimismo exagerado. O Atlântico cobre trinta e duas milhas, como todos sabem. — Arriscou novo sorriso. — É uma imensidão de oceano.
— Sim — concordou Hammerbeck — e quarenta e seis submarinos também é uma imensidão.
— Concordo. E provavelmente a maior concentração de caixões que já enfrentámos — comentou Cave. — Suponho que temos de partir do princípio que o inimigo vai estabelecer contacto. A menos, é claro, que consigamos descobrir onde eles estão.
Deitou um olhar significativo a Skynner, mas Skynner ignorou-o e prosseguiu: — E não nos esqueçamos de que... estes comboios não estão desprotegidos, pois não? — lançou um breve olhar em torno da mesa em busca de apoio. — Certamente levam escolta?
— Decerto. — respondeu Cave de novo. — Levam uma escolta de... — consultou as suas notas — sete navios torpedeiros, nove corvetas e três fragatas. E outros navios vários.
— Comandados por alguém com larga experiência...
Os oficiais ingleses entreolharam-se e depois olharam para o almirante.
— Na verdade... é o seu primeiro comando.
— Santo Deus! — Hammerbeck balançou-se para a frente na cadeira e apoiou os punhos na mesa.
— Se me é permitido interromper. É óbvio que não sabíamos na passada sexta-feira, quando as escoltas se estavam a formar, que os nossos serviços de informações iam ficar às escuras.
— E quanto tempo acha que isso vai durar? — Era a primeira vez que almirante falava e todos se voltaram para ele. Tossiu brusca e explosivamente, parecendo que pequenas peças do maquinismo lhe voavam do peito, sendo depois sorvidas por um outro pulmão cheio de fumo enquanto gesticulava com o cigarro. — Acha que a coisa estará resolvida dentro de quatro dias?
A pergunta tinha sido dirigida a Skynner e todos se voltaram para ele. Era um administrador, não um criptanalista (antes da guerra tinha sido vice-chanceler numa universidade do norte) e Jericho sabia que ele não tinha qualquer pista. Não podia saber se este hiato ia durar quatro dias, quatro meses ou quatro anos.
Skynner, cauteloso, respondeu: — É possível.
— Bem, tudo é possível. — Trowbridge deu uma gargalhada rouca, desagradável, que veio a redundar em tosse. — Acha provável? Acha provável que consigam decifrar esse... como é que lhe chamam... esse tal Tubarão antes de os nossos comboios chegarem à zona dos submarinos?
— Vamos dar-lhe toda a prioridade
— Raios, eu sei que lhe vão dar toda a prioridade, Leonard. Você não pára de dizer que lhe vão dar toda a prioridade. Mas a questão não é essa.
-— Bem, meu almirante, já que insiste, a resposta é sim. — E Skynner empinou heroicamente a queixada. Na sua imaginação, via-se corajosamente ao leme do navio, pronto a enfrentar o furacão como um homem. — Sim, penso que sim..
Estás completamente doido, pensou Jericho.
— E os senhores, acreditam todos nisto? — O almirante olhou em volta, fitando cada um dos presentes. Tinha olhos de cão de caça, húmidos e vermelhos.
Logie foi o primeiro a quebrar o silêncio. Fitou Skynner, estremeceu e coçou a nuca com a haste do cachimbo. — Acho que não sabemos muito mais agora sobre o Tubarão do que sabíamos antes.
Atwood exaltou-se: — Se o Guy pensa que somos capazes, eu respeito a sua opinião. Eu secundo o que ele disser. — Judiciosamente, Baxter acenou, aquiescente. Jericho olhou para o relógio.
— E você? — perguntou o almirante. — O que é que você pensa? Em Cambridge, estariam a terminar o pequeno-almoço. Kite estaria
a abrir a correspondência ao vapor. Mrs. Sax estaria a tagarelar com os seus baldes e vassouras. Aos sábados, ao almoço, serviam no Refeitório tarte de legumes com batatas...
Ele teve noção de que a sala estava mais calma, ergueu os olhos e encontrou todos os olhares pousados nele. O homem louro de fato à civil fixava-o com particular curiosidade. Sentiu-se ruborescer.
E depois sentiu uma cólica nervosa.
Mais tarde, Jericho havia de pensar muitas vezes neste momento. O que o teria feito reagir como reagiu? O cansaço? Estaria ele apenas desorientado depois de ter sido arrancado a Cambridge e largado no meio deste pesadelo? Estaria ainda doente? A doença iria certamente ajudar a explicar o que estava para acontecer. Ou estaria tão absorvido a pensar em Claire que não conseguia pensar com clareza? Do que melhor se lembrava era de um esmagador sentimento de tédio. — Estás aqui apenas para a encenação, meu lindo. — Estás aqui apenas para fazeres número e o Skynner montar um espectáculo convincente diante dos ianques. Estás aqui para fazeres o que te mandarem, por isso guarda as opiniões para ti e nada de fazeres perguntas. Subitamente ficou farto de tudo, fartíssimo de tudo — farto daquele blackout informativo, farto do frio, farto do tratamento excessivamente íntimo e do cheiro a bafio, a vapor e a carne de baleia — carne de baleia, brrr... — às quatro da manhã...
— Na verdade, não tenho a certeza de ser tão optimista quanto os meus colegas.
Skynner interrompeu-o imediatamente. Quase se podiam ouvir as buzinas dentro da sua cabeça, ver os pilotos a correrem pelo convés e as anti-aéreas a apontarem para o céu enquanto o HMS Skynner corria perigo. — Bem, meu almirante, o Tom tem estado doente. Esteve ausente a maior parte do mês...
— Porque é que não...? — O tom de voz do almirante era perigosamente cordial. — Porque é que não está optimista?
— ...e, por isso, não sei se ele está totalmente a par da situação. Concordas, não é verdade, Tom?
— Bem, Leonard, se há coisa de que eu esteja a par é da Enigma. — Jericho mal podia acreditar nas suas próprias palavras. Mas seguiu em frente: — O Enigma é um sistema de codificação muito sofisticado e o Tubarão é o seu último requinte. Passei as últimas oito horas a rever o material do Tubarão e ... desculpem-me se estou a ser inoportuno, mas parece que a situação é muito grave.
— Mas vocês estavam a descodificar com sucesso...?
— Sim, mas possuíamos uma chave. O código meteorológico era a chave que nos abria a porta. E agora os Alemães alteraram esse código. O que quer dizer que ficámos sem a chave. A menos que tenha acontecido alguma coisa que eu ainda não conheça, não entendo como é que vamos... —Jericho procurou uma metáfora — ...conseguir arrombar a fechadura.
O outro oficial da Marinha americana, o que até agora não tinha falado (por momentos, Jericho esqueceu-se do seu nome) disse: — E ainda não nos entregaram aquelas descodificadoras de quatro rotores que nos prometeram, Frank.
— Isso é um assunto à parte — atalhou Skynner, que lançou a Jericho um olhar letal.
— É mesmo? — Era Kramer quem falava. As coisas começavam a complicar-se. Ele chamava-se Kramer. — Tem a certeza de que se, neste momento, tivéssemos algumas descodificadoras de quatro rotores, não precisávamos das grelhas meteorológicas?
— Esperem lá — disse o almirante, que tinha vindo a seguir a conversa com impaciência crescente. — Eu sou um marinheiro e dos da velha guarda, e não compreendo toda essa... conversa... sobre códigos e descodificadoras com rotores. Nós estamos a tentar manter abertas as vias marítimas da América e, se não o conseguirmos, vamos perder esta guerra.
— Apoiado — disse Hammerbeck. — Muito bem dito, Jack.
— Agora alguém é capaz de me dar uma resposta directa a uma
pergunta directa? Este blackout informativo vai ou não vai estar definitivamente resolvido dentro de quatro dias?
Os ombros de Skynner perderam a pose. — Não — disse ele, vergado. — Se põe as coisas desse modo, meu almirante, não, não posso dizer-lhe que vai ficar definitivamente resolvido.
— Obrigado. Então, se não vai ficar resolvido dentro de quatro dias, quando é que vai? Você. Você, que é o pessimista, o que é que pensa?
Mais uma vez Jericho se apercebeu de que todos os olhos estavam pousados nele.
Jericho falou cautelosamente. O pobre do Logie estava a espreitar para dentro da bolsa do tabaco como que desejasse entrar nela e nunca mais sair. — É muito difícil de dizer. Tudo o que temos como referência é o último blackout informativo.
— E quanto tempo é que esse durou?
— Dez meses.
Foi como se tivesse detonado uma bomba. A algazarra foi geral. Os homens da Marinha gritaram. O almirante começou a tossir. Baxter e Atwood disseram: — Não! — em simultâneo. Logie resmungou qualquer coisa. Skynner abanou a cabeça e comentou: — Isso é mesmo derrotista, Tom. — Até Wigram, o de cabelo louro, bufou, fitou as vigas do tecto e começou a rir de alguma anedota privada.
— Eu não estou a dizer que vai demorar dez meses — continuou Jericho, quando se conseguiu fazer ouvir. — Mas isso mostra bem o que temos de enfrentar, e penso que quatro dias é uma data irrealista. Desculpem, mas é isso que eu penso.
Houve uma pausa e, depois, Wigram disse, muito calmo: — Porquê, eu gostava de...
— Mr. Wigram?
— Desculpe, Leonard. — Wigram distribuiu sorrisos pela mesa e a primeira coisa que Jericho pensou foi como ele tinha um ar dispendioso — fato azul, gravata de seda, camisa comprada em Jermyn Street, cabelo impecavelmente penteado para trás com brilhantina e perfumado com água de colónia masculina — parecia acabadinho de sair do átrio do Ritz. Um gigolô, era o que Baxter lhe tinha chamado, que é o código em Bletchley para espião.
— Desculpe — repetiu Wigram. — Estava a pensar em voz alta. Só gostava de saber porque é que Dõnitz resolveu mudar este bocadinho do código e porque é que resolveu fazê-lo precisamente agora. — Fitou Jericho. — Depois de o ouvir, parece que ele não podia ter escolhido nada mais gravoso para nós.
Jericho não tinha de responder e foi Logie quem o fez no seu lugar.
— Rotina. Quase de certeza. Eles mudam os livros de códigos de tempos a tempos. Foi apenas azar nosso terem-no feito agora.
— Rotina — repetiu Wigram. — Claro. — Sorriu mais uma vez.
— Diga-me, Leonard, quantas pessoas estão a par deste código meteorológico e qual a sua importância para nós?
—Francamente, Douglas — disse Skynner, dando uma gargalhada — o que é que você está a insinuar?
— Quantas?
— Guy?
— Talvez uma dúzia.
— Será que me pode fazer uma lista, por favor?
Logie olhou para Skynner, à espera do consentimento. — Eu... bem... eu...
— Obrigado.
Wigram retomou a sua inspecção do tecto.
O silêncio que se seguiu foi quebrado por um longo suspiro do almirante. — Penso que captei o significado da reunião. — Apagou o cigarro e procurou a pasta debaixo da sua cadeira. Começou a guardar os papéis e os seus tenentes seguiram-lhe o exemplo. — Não posso fingir que esta seja a melhor mensagem para levar ao Chefe do Estado Maior da Marinha.
Ao que Hammerbeck acrescentou: — Acho melhor avisar Washington.
O almirante levantou-se e, de imediato, todos afastaram as suas cadeiras para trás e fizeram o mesmo.
— O Tenente Cave funcionará como elo de ligação com o Almirantado. E, voltando-se para Cave, disse: — Gostaria de ter um relatório diário. Pensando melhor, dois relatórios por dia.
— Sim, meu Almirante.
— Tenente Kramer, fica aqui e mantém o Comandante Hammerbeck informado?
— É isso mesmo que vou fazer, meu Almirante.
— Muito bem. — Calçou as luvas. — Sugiro que se faça nova reunião se e quando houver desenvolvimentos a relatar. O que, esperemos, acontecerá dentro de quatro dias.
À porta, o velho almirante voltou-se e disse ainda: — Não é apenas um milhão de toneladas de navios e dez mil homens, sabem. É um milhão de toneladas de navios e dez mil homens de duas em duas semanas. E não são apenas os comboios. É a nossa obrigação de enviarmos reabastecimento para a Rússia. São as probabilidades de invadirmos a Europa e corrermos com os Nazis. É tudo. É a guerra toda. — Soltou outra das suas gargalhadas estridentes. — Não que eu queira pressioná-lo, Leonard. — E, curvando ligeiramente a cabeça, despediu-se: — Bom-dia, meus senhores.
Enquanto cada um, em resposta, tartamudeava o seu «bom-dia, meus senhores», Jericho ouviu Wigram dizer serenamente a Skynner: — Falo consigo mais tarde, Leonard.
Ouviram os passos dos visitantes pelas escadas de cimento e depois lá fora e, de súbito, a sala mergulhou no silêncio. Uma névoa azul de tabaco pairava sobre a mesa como o fumo que se eleva no fim de uma batalha.
Os lábios de Skynner estavam comprimidos e ia trauteando enquanto juntava os seus papéis num monte e os endireitava com um cuidado exagerado. Por o que pareceu uma eternidade, ninguém falou.
— Bem — disse por fim Skynner — foi um sucesso. Graças a si, Tom. Muito obrigado. Já me tinha esquecido da força que você pode ser. Sentimos muito a sua falta.
— A culpa é minha, Leonard — disse Logie. — Falta de coordenação minha. Devia tê-lo elucidado melhor. Desculpe. Foi da pressa.
— Porque não volta para o seu anexo, Guy? Na verdade, porque não voltam todos, para eu e o Tom podermos ter uma conversinha.
— Seu imbecil — disse Baxter, dirigindo-se a Jericho. Atwood agarrou-o pelo braço. — Vamos embora, Alec.
— Mas ele é um imbecil. Saíram todos.
Mal a porta se fechou, Skynner disse: — Eu nunca quis que você voltasse.
— Não foi isso que Logie disse. — Jericho cruzou os braços para que as suas mãos parassem de tremer. — Ele disse que eu era preciso aqui.
— Eu nunca o quis de volta, não por achar que você seja um imbecil... o Alec está completamente enganado. Você não é um imbecil. Você é um destroço. Está arrumado. Não aguentou a tensão uma vez e vai voltar a acontecer-lhe o mesmo, como ainda agora o demonstrou com a sua atitude.
Skynner tinha o traseiro avantajado encostado à esquina da mesa. Falava num tom cordial e quem o visse à distância diria que estava a trocar gracejos com algum velho conhecido.
— Então porque é que eu estou aqui? Nunca pedi para voltar.
— O Logie tem uma opinião favorável a seu respeito. Ele é o chefe do anexo e eu escuto-o. E, vou ser honesto consigo, a seguir ao Turing, você provavelmente é... ou, melhor era... o mais reputado criptanalista de Bletchley Park. Você já entrou para a história, Tom. Já é uma lenda. Trazê-lo de volta, deixá-lo assistir à reunião desta manhã, foi uma maneira de mostrar aos nossos superiores como levamos a sério esta... bem... esta crise temporária. Foi um risco. Mas, obviamente, eu estava errado. Você falhou.
Jericho não era um homem violento. Nunca tinha batido em ninguém, nem mesmo quando rapaz, e sabia que tinha sido uma bênção ter escapado ao serviço militar: com uma espingarda nas mãos teria constituído uma ameaça, mas só para o seu próprio lado. Havia, porém, um pesado cinzeiro de metal em cima da mesa a transbordar de pontas de cigarros e Jericho sentiu-se seriamente tentado a atirá-lo à cara petulante de Skynner. Skynner pareceu, aliás, pressenti-lo. Fosse ou não por isso, a verdade é que desencostou o traseiro da mesa e começou a andar de um lado para o outro. Esta deve ser uma das vantagens de ser maluco, pensou Jericho, as pessoas nunca sabem com o que podem contar.
— Antigamente era muito mais simples, não era? — disse Skynner. — Uma casa no campo. Um punhado de excêntricos. Ninguém espera grandes resultados. Vai-se levando a vidinha. E, de repente, tem-se nas mãos o maior segredo da guerra.
— E, depois, chegam tipos como você.
— Exactamente, os tipos como eu são bem precisos, para se certificarem de que uma arma de tal calibre está a ser usada correctamente.
— Ah, então é isso que você faz, Leonard? Certificar-se de que a arma é usada correctamente. Muitas vezes me perguntei o que estaria você aqui a fazer.
Skynner perdeu o sorriso. Era um homem alto, quase trinta centímetros mais alto do que Jericho. Aproximou-se dele e Jericho sentiu o cheiro a fumo de cigarro retardado e a suor impregnado nas roupas.
— Você perdeu por completo a noção do que é este lugar. Não faz ideia dos problemas. Por exemplo, os Americanos... em frente dos quais me humilhou... nos humilhou: estamos a negociar um acordo com os Americanos que... — calou-se. — Esqueça. Digamos apenas que quando você... se deixa arrastar como deixou, não pode sequer perceber a gravidade do que está em jogo.
Skynner tinha uma pasta com o brasão real e «G VIR» gravado em letras doiradas e sumidas. Enfiou os papéis dentro da pasta e fechou-a com uma chave presa ao cinto por uma longa corrente.
— Vou arranjar maneira de o tirar da descodificação e pôr num local onde não cause danos. De facto, vou transferi-lo para outro lado qualquer longe de Bletchley. — Meteu a chave no bolso e deu-lhe uma palmadinha. — É lógico que você, sabendo o que sabe, não pode regressar à vida de civil, pelo menos antes de a guerra acabar. Porém, ouvi dizer que o Almirantado anda à procura de outro cérebro para trabalhar na estatística. Um assunto delicado, mas suficientemente confortável para um homem da sua... delicadeza. Quem sabe? Talvez encontre uma rapariga simpática. Alguém mais... como direi... mais conveniente do que a pessoa com quem julgo que você andava.
Jericho tentou atingi-lo, desta vez não com o cinzeiro, mas apenas com o punho, o que, em retrospecção, foi um erro. Skynner desviou-se para o lado com uma rapidez surpreendente e a pancada falhou; depois, a sua mão esquerda subiu rapidamente e agarrou o braço de Jericho, tendo Skynner cravado os dedos com força no músculo fraco.
—Tom, você é um homem doente. E eu sou mais forte, em todos os aspectos. — Aumentou a pressão por um ou dois segundos e depois largou bruscamente o braço. — Agora desapareça da minha vista.
Meu Deus, ele estava exausto. A exaustão atormentava-o como uma coisa viva, trepando-lhe pelas pernas, pesando-lhe nos ombros alquebrados. Jericho encostou-se à parede do Bloco-A, comprimiu a face contra o cimento liso e húmido e esperou que o seu pulso voltasse ao normal.
O que é que ele tinha feito?
Precisava de ficar deitado. Precisava de encontrar um buraco onde se pudesse enfiar e descansar. Tal como um bêbado à procura das chaves, encontrou primeiro um bolso, depois o outro e, por fim, tirou o bilhete e fechou os olhos. Albion Street. Onde é que ficava? Tinha apenas uma vaga ideia. Quando a visse ia reconhecê-la.
Desencostou-se da parede e começou a andar com cuidado, afastando-se do lago em direcção à estrada que conduzia ao portão principal. Alguns metros mais adiante estava estacionado um pequeno carro preto e, quando ele se aproximou, a porta do condutor abriu-se e apareceu uma figura de uniforme azul.
— Mr. Jericho!
Jericho parou, surpreendido. Era um dos americanos. — Tenente Kramer?
— Então? Vai para casa? Posso dar-lhe uma boleia?
— Obrigado, mas não é preciso. O caminho é curto, faz-se bem a pé.
— Vá lá, venha daí! — E Kramer bateu no tejadilho do carro. — Acabei de o ir buscar. Será um prazer. Venha.
Jericho estava quase a recusar outra vez, quando sentiu as pernas fraquejarem.
— Então o que é isso, homem... — Kramer avançou rapidamente e deitou-lhe a mão ao braço. Você está arrasado. Foi uma longa noite, suponho.
Jericho deixou que ele o conduzisse até à porta e o sentasse no banco da frente. O interior do pequeno carro estava frio e tinha um cheiro de falta de uso. Jericho imaginou que devia ter sido o orgulho e a alegria de alguém até ao racionamento da gasolina, que o forçou a ficar parado. O chassi abanou, quando Kramer entrou para o outro lado e bateu a porta.
— Aqui são muito poucas as pessoas que têm carro. — A voz de Jericho soava bizarra aos seus ouvidos, como se lhe chegasse de muito longe. — Tem problemas para arranjar gasolina?
— Não. — Kramer carregou no botão de arranque e o motor acordou. — Você já nos conhece. Conseguimos sempre arranjar o que queremos.
No portão principal, o carro foi minuciosamente inspeccionado. A barreira subiu e eles seguiram, passando pela cantina e pela sala de reuniões, continuando a descer até ao fim da Wilton Avenue.
— Para que lado?
— Esquerda, acho eu.
Kramer ligou o pisca-pisca e virou para a estrada que os levava até à cidade. Tinha um rosto quadrado e harmonioso, de menino, e uma pele a perder o bronzeado, o que sugeria destacamento para regiões tropicais. Tinha cerca de vinte e cinco anos e um físico atlético.
— Acho que tenho de lhe agradecer.
— Agradecer-me?
— Sim, na conferência. Você disse a verdade, enquanto os outros só disseram asneiras. «Quatro dias» — Santo Deus!
— Estavam apenas a ser leais.
— Leais? Por favor, Tom. Importa-se que o trate por Tom? Por falar nisso, o meu nome é Jimmy. Eles estavam era todos feitos uns com os outros.
— Acho que não devíamos estar a ter esta conversa...
A tontura já tinha passado e, no estado de clarividência que sempre se lhe seguia, Jericho lembrou-se de que o americano devia estar ali à espera que ele saísse da reunião. — Aqui está bem, obrigado.
— Tem a certeza? Mas não andámos nada.
— Por favor, encoste.
Kramer encostou à berma, ao lado de uma fiada de pequenas casas, travou e desligou o motor.
— Ouça-me, Tom, está bem? É só um minuto. Os Alemães apareceram com o Tubarão, três meses depois de Pearl Harbor...
— Olhe...
— Calma! Ninguém nos pode ouvir. — E era verdade. A viela estava deserta. — Três meses depois de Pearl Harbor e, de repente, desatámos a perder navios como se estivéssemos prestes a perder a guerra. Mas ninguém nos diz porquê. Apesar de tudo, nós somos os novatos... orientamos os comboios como Londres manda. Por fim, a coisa ficou tão feia que nós tivemos de perguntar — então meninos, o que é que aconteceu a esse maravilhoso serviço de informações que vocês tinham. — E, espetando o dedo na direcção de Jericho, acrescentou: — E só nessa altura é que nos falaram no Tubarão.
— Eu não posso continuar a ouvir esse tipo de coisas — disse Jericho, tentando abrir a porta, mas Kramer esticou-se e agarrou-lhe a mão.
— Não estou a tentar virá-lo contra os seus chefes. Estou apenas a tentar explicar-lhe o que se está a passar. Depois de nos terem falado do Tubarão no ano passado, começámos a investigar, e em contra-relógio. Até que finalmente, depois de uma luta danada, começámos a obter alguns dados. Por acaso sabe quantas descodificadoras é que vocês tinham no fim do Verão passado? Isto depois de dois anos de produção?
Jericho continuou a olhar em frente. — Eu não tenho acesso a informações desse tipo.
— Cinquenta! E sabe quantas é que os nossos chefes em Washington disseram que podiam fazer em quatro meses? Trezentas e sessenta!
— Então façam-nas — disse Jericho, irritado — já que são tão bons.
— Não é nada disso — disse Kramer. — Você não entendeu.
Isso não é permitido. A Enigma é um brinquedo dos Britânicos. Oficialmente. Qualquer alteração nos estatutos tem de ser negociada.
— E está a ser negociada?
— Em Washington. Neste preciso momento. É onde está o vosso Mr. Turing. Entretanto, nós temos de comer o que vocês nos derem.
— Mas isso é absurdo. Porque não fazem as descodificadoras e pronto?
— Então, Tom. Pense um bocadinho. Vocês têm as estações de intercepção aqui. Nós temos a matéria-prima. Nós estamos a três mil milhas de distância. Na Florida é o diabo para se apanhar Magdeburgo. E qual é a vantagem de se terem trezentas e sessenta descodificadoras, se não há nada para meter lá dentro?
Jericho fechou os olhos e viu a expressão ansiosa de Skynner e ouviu-lhe a voz ribombante: — Você perdeu por completo a noção do que é este lugar... Estamos a negociar um acordo com os Americanos... Não consegue sequer perceber a gravidade... — Pelo menos, agora, ele percebia a razão da fúria de Skynner. O seu pequeno império, posto em risco tão dolorosamente, construído tijolo a tijolo com tijolos burocráticos, estava ameaçado de morte pelo Tubarão. Mas a ameaça não vinha de Berlim. Vinha de Washington.
— Não me interprete mal — continuou Kramer. — Estou aqui há um mês e penso que tudo o que vocês conseguiram é fabuloso. Brilhante. E ninguém do nosso lado está a falar em tomar o comando. Mas isto não pode continuar assim. Não há descodificadoras suficientes. Não há máquinas impressoras suficientes. Aquelas cabanas... Santo Deus! «Papá, a guerra era perigosa?» «Se era, qua.se morri congelado.» Sabia que a operação inteirinha esteve quase para parar uma vez, porque se vos acabaram os lápis de cor? Bem, o que é que estamos prà'qui a dizer? Que há homens que têm de morrer, porque não havia lápis suficientes?
Jericho sentia-se demasiado cansado para discutir. Além disso, sabia o suficiente para ter a certeza de que aquilo era verdade: tudo verdade. Lembrava-se de uma noite, há dezoito meses, em que lhe pediram que ficasse de olho em quaisquer estranhos que entrassem no Shoulder ofMutton, sentado junto à porta num canto escuro, enquanto Turing, Welshman e mais um par de altos chefes estavam reunidos numa sala, no andar de cima, a escrever uma carta conjunta a Churchill. Exactamente a mesma história: não havia funcionários suficientes, não havia dactilógrafos suficientes, a fábrica em Letchworth que fazia as descodificadoras — anteriormente fazia, imaginem, caixas registadoras — tinha falta de peças e de pessoal... Deve ter sido o bom e o bonito, quando Churchill recebeu a carta — uma birra monumental em Downing Street, carreiras acabadas, uns safanões no sistema — e as coisas melhoraram por uns tempos. Mas Bletchley era de muito alimento e não se contentava com qualquer coisa. «Nervos belli, pecuniam infinitam.» Ou, como Baxter tinha dito mais prosaicamente, no fim, tudo se resume a dinheiro. Os Polacos tinham sido forçados a dar a Enigma aos Britânicos. E agora os Britânicos iam ter de a partilhar com os Ianques.
— Eu não posso meter-me nisso. Além disso, tenho de ir dormir. Obrigado pela boleia.
Procurou o fecho da porta e desta vez Kramer não tentou impedi-lo. Já ia a sair, quando Kramer disse ainda: — Ouvi dizer que perdeu o seu pai na última guerra.
Jericho ficou paralisado. — Quem lhe disso isso?
— Já não sei. Porquê, tem algum mal?
— Não. Não é nenhum segredo. — Jericho massajou a testa. Sentia uma terrível enxaqueca a aproximar-se. — Foi mesmo antes de eu nascer. Foi atingido por uma granada em Ypres. Ainda viveu mais alguns anos, mas ficou inutilizado. Nunca chegou a sair do hospital. Morreu quando eu tinha seis anos.
— O que é que ele fazia antes de ser atingido?
— Era matemático.
Seguiu-se um momento de silêncio.
— Vemo-nos por aí — disse Jericho e saiu do carro.
— O meu irmão morreu — disse Kramer subitamente. — Foi dos primeiros. Estava na Marinha Mercante. Navios da Liberdade.
Claro, pensou Jericho.
— Durante o blackout do Tubarão, suponho?
— Acertou. — disse Kramer, abatido; depois esboçou um sorriso.
— Vamos manter o contacto, Tom. Se puder fazer alguma coisa por
si... é só pedir.
Esticou o braço e puxou a porta, que se fechou com estrondo. Jericho ficou sozinho, parado na berma, a ver Kramer fazer inversão de marcha. O carro recuou com ímpeto e depois acelerou pela encosta acima em direcção a Bletchley Park, deixando uma pequena nuvem de poeira e fumo a pairar no ar da manhã.
GAMAR: (1) v., roubar material criptográfico inimigo; (2) subs., qualquer objecto roubado ao inimigo que aumenta as hipóteses de decifrar códigos ou cifras.
Léxico da Criptografia («Altamente Secreto», Bletchley Park, 1943)
Bletchley era uma cidade ferroviária. A grande linha de Londres à Escócia cortava-a ao meio e a linha mais pequena, secundária, de Oxford a Cambridge, cortava-a em quartos, de modo que, onde quer que se estivesse, não se conseguia fugir aos comboios: o barulho, o cheiro da fuligem, o fumo castanho a subir por sobre o aglomerado dos telhados. Até as casas em correnteza eram sobretudo de estilo ferroviário, talhadas no mesmo tijolo vermelho da estação e das casas das máquinas, construídas no mesmo estilo industrial e sorumbático.
A Pensão Comercial, na Rua Albion, ficava a cinco minutos a pé de Bletchley Park e as traseiras davam para a linha principal. A sua proprietária, a senhora Ethel Armstrong, tinha, como o estabelecimento, um pouco mais de cinquenta anos, construção sólida e um aspecto vitoriano tardio, medonho. O marido morrera de um ataque de coração um mês depois do eclodir da guerra, tendo ela em seguida convertido a propriedade de quatro andares num pequeno hotel. Tal como as outras pessoas da cidade — e eram umas sete mil — não fazia ideia e sentia ainda menos interesse pelo que se passava nos terrenos da mansão do cimo da estrada. Era rentável e não se importava com mais nada. Cobrava trinta e oito xelins por semana e esperava que os seus cinco hóspedes, em troca das refeições, lhe entregassem todas as suas senhas de racionamento de comida. Em consequência disso, lá pela Primavera de 1943 possuía mil libras em Acções de Poupança da Guerra e tinha acumulado na adega bens comestíveis suficientes para abrir uma mercearia de tamanho médio.
Foi numa quarta-feira que um dos quartos tinha ficado vago e numa sexta que tinha recebido um aviso por escrito para providenciar alojamento para um tal Mr. Thomas Jericho. Os seus pertences, vindos da anterior morada, tinham-lhe sido entregues à porta nessa mesma manhã: duas caixas com bens pessoais e uma bicicleta de ferro antiga. Levou a bicicleta para o pátio e as caixas para o andar de cima.
Uma caixa de papelão estava cheia de livros. Dois da Agatha Christie. Uma Sinopse de Resultados Elementares de Matemática Pura e Aplicada, dois volumes, de um tipo chamado George Shoobridge Garr. Principia Mathematica, o que quer que isso fosse. Um panfleto com um título duvidoso que soava a alemão Sobre Números Computáveis, com uma Aplicação ao de Entscheidungsproblem — com uma dedicatória «Ao Tom, com respeito e amizade, Alan». Mais livros cheios de matemática, um, tão lido e relido que estava quase desfeito e repleto de marcadores — bilhetes de autocarro e de comboio, uma base de copos de cerveja, até uma folhinha de erva. Abriu-se numa parte exageradamente sublinhada:
há, de qualquer forma, um objectivo para o uso da verdadeira matemática durante a guerra. Quando o mundo fica louco, um matemático pode encontrar na matemática um anódino incomparável. Dado que a matemática é, de todas as artes e ciências, a mais remota.
Bem, a última frase é bastante verdadeira, pensou ela. Fechou o livro, virou-o e olhou de soslaio para a lombada: A Desculpa de um Matemático, de G.H. Hardy, da Cambridge University Press.
A outra caixa também suscitou pouco interesse. Um esboço vitoriano da capela de Kings College. Um despertador Waralam barato, marcado para despertar às onze, com uma caixa de fibra preta. Uma telefonia. Um barrete académico e uma toga empoeirada. Um frasco de tinta. Um telescópio. O The Times de 23 de Dezembro de 1942, dobrado na página das palavras cruzadas, que tinham sido feitas por duas mãos diferentes: uma, muito pequena e precisa e a outra, mais redonda, provavelmente feminina. Por cima estava escrito 2712815. E, por fim, no fundo da caixa, um mapa que, quando ela o desdobrou, revelou não ser de Inglaterra, ou mesmo (como suspeitara e secretamente desejara) da Alemanha, mas do céu nocturno.
Ficou tão desconcertada com esta colecção enfadonha que quando, nesse dia, à meia-noite e meia hora, bateram à porta e um homem pequeno com sotaque do norte entregou mais duas malas, nem se deu ao trabalho de as abrir e atirou logo com elas para dentro do quarto vazio.
O dono das malas chegou no sábado de manhã, às nove horas. Tinha a certeza da hora, como explicou mais tarde à vizinha do lado, Mrs. Scratchwood, porque o serviço religioso estava mesmo a acabar na telefonia e as notícias iam começar. Ele era exactamente como ela suspeitara que seria. Não era muito alto. Era magro. Ar letrado. Com aspecto de doente, a proteger o braço como se tivesse acabado de o magoar. Não se tinha barbeado, branco como — bem, ia a dizer «como um lençol», mas já não via lençóis assim tão brancos desde antes da guerra, pelo menos não em sua casa. A roupa era de boa qualidade, mas estava num desalinho: ela reparou que faltava um botão no sobretudo. Mas até era agradável. Bem falante. Muito boas maneiras. Voz baixa. Pessoalmente, nunca tinha tido filhos, nunca tivera um rapaz, mas se tivesse, teria mais ou menos a mesma idade. Enfim, digamos que ele precisava de ser bem alimentado, qualquer um percebia isso.
Era rigorosa em relação à renda. Exigia sempre um mês adiantado — o pedido era feito cá em baixo na entrada, antes de os levar a ver o quarto — e havia vulgarmente uma discussão, no fim da qual, amuada, acabava por aceitar duas semanas. Mas ele pagou sem um murmúrio. Pediu sete libras e seis xelins e ele deu-lhe oito libras e, quando ela fingiu que não tinha troco, ele disse: — Está bem, dá-me depois. — Quando ela se referiu ao livro de senhas de racionamento, ele olhou para ela por um momento, muito intrigado, e depois disse (e ela lembrar-se-ia disto para o resto da vida): — Está a falar disto?
— Está a falar disto?— repetia maravilhada. — Como se nunca tivesse visto um antes! — Entregou-lhe o livrinho castanho — o precioso passaporte semanal para cem gramas de manteiga, duzentos gramas de bacon e trezentos gramas de açúcar — e disse-lhe que ela podia fazer com ele o que quisesse. — Nunca lhe dei uso nenhum.
Por esta altura, ela estava tão aturdida que já nem sabia o que fazia.
Guardou o dinheiro e o livro de senhas de racionamento no avental e, antes que ele pudesse mudar de ideias, conduziu-o ao andar de cima.
Agora, Ethel Armstrong era a primeira a admitir que o quinto quarto da Pensão Comercial não era grande coisa. Ficava mesmo ao fim do corredor, depois de um pequeno lance de escadas e, como mobília, tinha apenas uma cama de solteiro e um guarda-fatos. Era tão pequeno que a porta não abria convenientemente, porque a cama lhe obstruía a passagem. Tinha uma janela minúscula sarapintada de fuligem que dava para a extensa rede de carris dos caminhos-de-ferro. Em dois anos e meio, devia ter tido uns trinta ocupantes diferentes e nenhum deles tinha ficado mais de dois meses, tendo-se alguns recusado mesmo a dormir lá. Mas este sentou-se na borda da cama, apertado entre as caixas e as malas e, fatigado, disse apenas: — Muito agradável, Mrs. Armstrong.
Ela explicou-lhe rapidamente as regras da casa. O pequeno almoço era as sete da manhã, o jantar às seis e meia da tarde e era possível deixar ficar «colações frias» na cozinha para os que trabalhavam em turnos irregulares. Havia uma casa de banho ao fundo do corredor, partilhada por cinco hóspedes. Era-lhes permitido um banho por semana, não devendo a profundidade da água exceder dez centímetros (havia uma linha marcada no esmalte) e ele teria de combinar o horário com os outros. Ser-lhe-iam entregues quatro pedaços de carvão por dia, para aquecer o quarto. A lareira da sala de estar, no rés-do-chão, era apagada às nove da noite, em ponto. Quem fosse apanhado a cozinhar, a beber bebidas alcoólicas ou a receber visitas no quarto, sobretudo do sexo oposto — ele sorriu vagamente — seria despejado, sendo paga uma renda como penalidade.
Ela quis saber se ele tinha perguntas a fazer, ao que ele não respondeu absolutamente nada, o que foi uma bênção, porque naquele momento um expresso sem paragem passou a guinchar, a perto de cem à hora, a uma escassa dezena de metros da janela, fazendo abanar o quartinho com tal violência que Mrs. Armstrong teve uma visão breve e horrenda do chão a ceder, mergulhando ambos por ali abaixo, atravessando o seu próprio quarto e a copa, e indo estatelar-se na terra, entre pernas reluzentes de presunto e pêssegos em lata, cuidadosamente empilhados e escondidos na sua gruta de Aladino, na adega.
— Bem... — disse ela, quando o barulho (a casa não, para já) desapareceu finalmente. — Vou deixá-lo em paz e sossego.
Tom Jericho deixou-se ficar sentado na beira da cama por mais uns minutos, depois de escutar os passos dela pela escada abaixo. Por fim, tirou o casaco e a camisa e examinou o braço latejante. Tinha duas contusões mesmo abaixo do cotovelo, tão nítidas e negras como duas ameixas pretas e, de repente, lembrou-se quem é que Skynner lhe fazia lembrar: um prefeito da escola, chamado Fane, filho de um bispo, que gostava de vergastar os caloiros no seu gabinete, à hora do lanche, e os obrigava depois a dizer: — Obrigado, Fane.
O quarto estava muito frio e começou a tremer, com a pele a franzir até ficar como pele de galinha. Sentia-se desesperadamente cansado. Abriu uma das malas, tirou um pijama e vestiu-o à pressa. Pendurou o casaco e pensou em tirar o resto da roupa das malas, mas decidiu que não. Na manhã seguinte, podia estar a sair de Bletchley. Essa era uma questão importante — passou a mão pela cara — tinha acabado de dar oito libras, mais de uma semana de salário, por um quarto de que podia vir a não precisar. O guarda-fatos vibrou quando o abriu e os cabides de metal produziram um som melancólico. Lá dentro tresandava a bolas de naftalina. Atirou rapidamente com as caixas de papelão lá para dentro e empurrou as malas para debaixo da cama. Depois puxou os cortinados, deitou-se no colchão, todo aos altos e baixos, e puxou os cobertores até ao queixo.
Durante três anos, Jericho tinha levado uma vida nocturna, levantando-se quando estava escuro e indo para a cama quando havia luz, mas nunca se tinha habituado a isso. Estar ali deitado, a prestar atenção aos sons distantes de um sábado de manhã, fê-lo sentir-se um inválido. No andar de baixo alguém estava a deixar correr água para o banho. O depósito da água ficava no sótão, directamente por cima da sua cabeça, e o barulho que fazia a esvaziar e a encher de novo era ensurdecedor. Fechou os olhos e tudo o que via era o mapa do Atlântico Norte. Abriu-os e a cama abanou ligeiramente à passagem de um comboio. Isso fê-lo lembrar-se de Claire. O que saía de Londres-Euston às 15.06 — «com paragem em Willesden, Watford, Apsley, Berkhamstead, Tring, Cheddington e Leighton Buzzard, e chegada a Bletchley às quatro e dezanove» — ainda era capaz de repetir o anúncio e também de a ver. Fora a primeira vez que a vira.
Devia ter sido — quando? — uma semana depois do assalto ao Tubarão? Dois ou três dias antes do Natal ou por aí. Ele, Logie, Puck e Atwood tinham recebido ordens para se apresentarem no edifício de escritórios na Broadway, perto da estação do metro de St. James, de onde eram dirigidas as operações de Bletchley Park. «C» em pessoa tinha feito um pequeno discurso sobre o valor do trabalho deles. Em reconhecimento pelo seu «avanço vital», e por ordem do primeiro-ministro, tinham recebido cada um um férreo aperto de mão e um envelope com um cheque de cem libras, emitido por um banco antigo e obscuro da City. Em seguida, ligeiramente embaraçados, tinham-se despedido uns dos outros no passeio e tinham seguido cada um para seu lado — Logie para um almoço no Almirantado, Puck para ir encontrar-se com uma rapariga, Atwood para um concerto na National Portrait Gallery — e Jericho de volta para Euston, para apanhar o comboio para Bletchley, «com paragem em Willesden, Watford, Apsley...»
Agora não haveria mais cheques, pensou ele. Talvez Churchill quisesse até » dinheiro de volta.
Um milhão de toneladas de navios. Dez mil pessoas. Quarenta e seis submarinos. E isto era apenas o começo.
— É tudo. É a guerra toda.
Virou a cara para a parede.
Passou um comboio, depois outro. Uma outra pessoa começou a deixar correr água para o banho. No pátio, mesmo por baixo da janela, Mrs. Armstrong pendurou a carpete da sala de estar na corda da roupa e começou a batê-la, com força e ritmadamente, como se a pobre fosse um inquilino com a renda em atraso ou algum inspector intrometido do Ministério da Alimentação.
A escuridão envolveu-o.
O sonho é uma recordação, a recordação um sonho.
Uma plataforma de estação fervilhante — vigas de ferro e pombos a esvoaçar contra uma cúpula de vidro imunda. Cânticos metálicos sobrepondo-se ao sistema de altifalantes. Luz de aço e manchas de caqui.
Uma fila de soldados, vergados ao peso das mochilas, corre em direcção a carrinha do guarda. Um marinheiro beija uma mulher grávida de chapelinho vermelho e dá-lhe uma palmada no traseiro. Crianças das escolas a caminho de casa para passarem o Natal, vendedores com sobretudos puídos, um par de mães magras e ansiosas com casacos de peles enxovalhados, uma mulher alta, loura, com um casaco cinzento até aos pés, de bom corte, com a gola e os punhos debruados a veludo preto. Um casaco de antes da guerra, pensa ele, hoje já não se faz nada com tão boa qualidade...
Ela passa pela janela e ele apercebe-se com um baque de que ela reparou que ele a está a olhar fixamente. Deita os olhos ao relógio, baixa a tampa com o polegar fechando-a com um estalido e, quando volta a olhar, ela está exactamente a entrar no compartimento. Todos os lugares estão ocupados. Ela hesita. Ele levanta-se para lhe oferecer o lugar. Ela sorri a agradecer e faz um gesto a mostrar que há espaço suficiente para se enfiar entre ele e a janela. Ele diz que sim com a cabeça e senta-se outra vez, com dificuldade.
As portas batem ao longo de todo o comboio, ouve-se um apito e põe-se em andamento com um estremeção. A plataforma é uma grande mancha difusa de pessoas a acenarem.
Ele está de tal forma entalado, que mal se consegue mexer. Tal intimidade nunca teria sido tolerada antes da guerra mas, hoje em dia, nestas viagens intermináveis e desconfortáveis, homens e mulheres são constantemente atirados uns para cima dos outros, muitas vezes literalmente. A coxa dela está apertada contra a dele, com tanta força que ele sente a firmeza do músculo e do osso por baixo do almofadado da carne dela. O ombro dela está encostado contra o seu. As pernas de ambos tocam-se. As meias dela roçam na sua barriga da perna. Sente o calor dela, o cheiro dela.
Ele olha para lá dela e finge fixar as casas feias que vão deslizando fora da janela. Ela é muito mais nova do que a princípio ele pensara. O rosto dela, de perfil, não é convencionalmente bonito, mas é marcante — angular e forte — «interessante» seria a palavra, supõe. Tem o cabelo muito louro, apanhado atrás. Quando ele tenta mexer-se, o seu cotovelo toca no peito dela, de lado, e ele pensa que vai morrer de embaraço. Pede desculpas profusamente, mas ela não parece reparar. Traz um The Times dobrado várias vezes, deforma a poder segurá-lo na mão.
O compartimento está apinhado. Há soldados deitados no chão a atravancarem o corredor. Um cabo da RAF adormeceu noporta-bagagens e embala a mochila como se fosse uma amante. Alguém começa a ressonar. O ar cheira fortemente a cigarros baratos e corpos por lavar. Mas, para Jericho, tudo isto começa gradualmente a desaparecer. Só existem os dois, a balançar ao ritmo do comboio. Nos sítios onde se tocam, apele dele está em brasa. Doem-lhe os músculos da barriga da perna por causa da força que faz para não se chegar demasiado perto mas também não se afastar.
Interroga-se até onde é que ela irá. Cada vez que param numa das pequenas estações, receia vê-la sair. Mas não: ela continua a olhar fixamente para o seu quadrado de papel impresso. O interior enfadonho da zona norte de Londres dâ lugar ao campo monótono e monocromático naquela tarde escura de Dezembro — campos cobertos de geada e desprovidos de gado, árvores nuas e as linhas esparsas e escuras das sebes, carreiros desertos, pequenas aldeias com chaminés fumegantes que se salientam como borrões de fuligem na paisagem branca.
Passa uma hora. Saem de Leighton Buzzard e estão a cinco minutos de Bletchley, quando, de repente, ela diz: — Cidade alemã parcialmente em francês e em desacordo com Hamelin.
Ele não tem a certeza de estará ouvir bem, ou atese o comentário lhe é dirigido.
— Desculpe?
— Cidade alemã parcialmente em francês e em desacordo com Hamelin.
— Ah, sim — diz ele — Ratisbon.
— Como éque chegou lâ? Acho que nunca ouvi falar. — Volta a cara para ele e a impressão que ele colhe é de feições grandes — nariz afilado, boca larga — mas são os olhos que o prendem. Olhos cinzentos — um cinzento frio, sem vislumbre de azul. Não são cinzento-pomba, decide ele mais tarde; ou cinzento-pérola. São o cinzento das nuvens de neve prestes a irromperem em flocos.
— É uma cidade com uma catedral. No Danúbio, penso eu. Parcialmente em francês — bem, bon, é óbvio. Em desacordo com Hamelin. Esta é fácil. Hamelin — o tocador de flauta — ratos. O que dá em inglês Rat is bon. Bem ao contrário do que Hamelin pensava.
Começa a rir-se, mas pára logo. Ladra, se é isso que queres, mas para ti mesmo, pensa ele, estás a tagarelar como um idiota.
— Mate a íris. Nove letras.
— Isso é um anagrama — diz ele imediatamente. — Artemísia.
— A fúria é tanta que se vira ao contrário para despachar. Cinco letras.
— Aviar.
Ela abana a cabeça, a sorrir, enquanto preenche as respostas. — Como é que consegue fazer isto tão depressa?
— Não edifícil. Vai-se aprendendo o modo como eles pensam. A fúria é tanta, raiva, naturalmente. Ao contrário dá aviar, que é sinónimo de despachar. Dá-me licença?
E, estendendo o braço, pega no jornal e no lápis. Metade do seu cérebro estuda o quebra-cabeças, a outra metade estuda-a a ela — a maneira como tira um cigarro da carteira e o acende, o modo como o observa a ele, com a cabeça ligeiramente deitada de lado. Aster, tasso, ligústica, landó... é a primeira e única vez na relação entre eles em que tem o controlo completo da situação e, quando finaliza as trinta palavras e lhe devolve o jornal, estão a atravessar os arredores de uma pequena cidade, circulando por entre jardins exíguos e chaminés altas. Por detrás da cabeça dela vêem-se as familiares cordas de roupa, os abrigos antiaéreos, as hortas, as casinhas de tijolo vermelho cobertas com uma camada preta da passagem dos comboios. O compartimento escurece quando passam debaixo da abóbada de ferro da estação. — Bletchley — brada o guarda — Estação de Bletchley!
— Receio que seja a minha estação — diz ele.
— Sim. — Ela olha pensativamente para as palavras cruzadas, já acabadas, e depois volta-se e sorri-lhe. — Sim. Sabe, acho que adivinhei que seria.
— Mr. Jericho!— alguém chama. — Mr. Jericho.
— Mr. Jericho!
Abriu os olhos. Por um momento, ficou desorientado. O guarda-fatos pairava sobre ele como um ladrão na luz ténue.
— Sim. — Sentou-se na cama estranha. — Desculpe. Mrs. Armstrong?
— São seis e um quarto, Mr. Jericho — gritava-lhe ela do meio das escadas. — Vai querer jantar?
Seis e um quarto? A divisão estava quase às escuras. Tirou o relógio debaixo da almofada e abriu-o com uma pancada leve. Para espanto seu, apercebeu-se de que tinha dormido todo o dia.
— Se fizesse o favor, Mrs. Armstrong. Obrigado.
O sonho fora perturbadoramente vívido — mais substancial, por certo, que este quarto cheio de sombras — e, enquanto atirava os cobertores para trás e punha os pés descalços no chão frio, sentiu que estava numa terra-de-ninguém entre dois mundos. Tinha a singular convicção de que Claire tinha estado a pensar nele, que o seu subconsciente tinha, não sabia como, funcionado como um receptor de rádio e captado uma mensagem dela. Era um pensamento absurdo num matemático, num racionalista, mas não conseguia desfazer-se dele. Procurou à bolsa com os artigos de higiene e enfiou o sobretudo por cima do pijama.
No primeiro andar, uma figura vestida com um roupão de flanela azul e papelotes no cabelo saiu apressadamente da casa de banho. Ele fez-lhe um aceno delicado com a cabeça, mas a mulher soltou um grito de embaraço e fugiu pelo corredor fora. Em pé, em frente ao lavatório, espalhou os artigos de higiene: uma lasca de sabão carbólico, uma máquina de barbear com uma lâmina com seis meses, uma escova de dentes de madeira, tão usada que estava reduzida a uma penugem de pelos eriçados, uma lata quase vazia de pó cor-de-rosa dos dentes. As torneiras retiniram. Não havia água quente. Raspou o queixo durante dez minutos, até estar todo vermelho e picado de sangue. Era nisto que consistia o diabo da guerra, pensou ele enquanto tocava ao de leve na pele com uma toalha áspera: nos pormenores, nos milhares de mesquinhas humilhações de nunca haver papel higiénico suficiente, ou sabão, ou fósforos, ou banhos, ou roupa lavada. Os civis tinham ficado empobrecidos. Cheiravam mal, essa é que era a verdade. O odor dos corpos espalhava-se sobre as Ilhas Britânicas como um grande nevoeiro azedo.
Havia dois outros hóspedes no andar de baixo, na sala de jantar, uma tal Miss Jobey e um Mr. Bonnyman, e os três mantiveram uma conversa discreta enquanto esperavam pela comida. Miss Jobey estava vestida de preto com um camafeu ao pescoço. Bonnyman tinha um fato de tweedcor de míldio, com um conjunto de canetas no bolso do peito, e Jericho calculou que devia ser um dos engenheiros que trabalhavam com as descodificadoras. A porta da cozinha abriu-se para trás e Mrs. Armstrong apareceu com os pratos.
— Cá vamos nós — sussurou Bonnyman. — Segure-se, meu velho.
— Então, Arthur, não a irrites outra vez — disse Miss Jobey, dando-lhe um beliscão no braço, a brincar, e a mão de Bonnyman escorregou para debaixo da mesa e apertou-lhe o joelho. Jericho deitou-lhes água nos copos e fingiu não reparar. — Empadão de batata — anunciou Mrs. Armstrong, em tom de desafio. — Com molho. E batatas.
Contemplaram os pratos fumegantes.
— É muito... hmm... substancial — disse Jericho, por fim.
A refeição decorreu em silêncio. O pudim da sobremesa era uma espécie de maçã cozida com molho de custarda em pó. Quando aquilo foi levado da mesa, Bonnyman acendeu o cachimbo e anunciou que, como era sábado à noite, ele e Miss Jobey iam ao Eight Bells, em Buckingham Road.
— Naturalmente, é muito bem-vindo, se quiser juntar-se a nós — disse ele, num tom que dava a entender que Jericho, naturalmente, não era nada bem-vindo. — Ou já tem outros planos?
— É muito amável da sua parte, mas na verdade tenho outros planos. Ou melhor, um plano.
Depois de os outros se terem ido embora, ajudou Mrs. Armstrong a levantar os pratos e em seguida foi ao pátio ver como estava a bicicleta. A escuridão era quase total e havia uma aspereza no ar que prometia geada. As luzes ainda estavam a funcionar. Tirou o lixo da chapa branca da matrícula e bombeou ar nos pneus.
Às oito horas, estava de volta ao quarto. As dez e meia, quando Mrs. Armstrong estava seriamente a pensar em pôr a malha de lado e ir para a cama, ouviu-o descer as escadas. Abriu uma nesga da porta, mesmo a tempo de ver Jericho percorrer apressadamente o corredor e sair para a noite.
A lua desafiava o blackout, fazendo brilhar uma luz azulada sobre os campos gelados, suficientemente forte para uma pessoa poder andar de bicicleta. Jericho ergueu-se no selim e pisou com força os pedais, balançando de um lado para o outro enquanto labutava estrada acima, saindo de Bletchley em perseguição da própria sombra, que se recortava com nitidez na estrada à sua frente. Muito ao longe ouvia-se o ronco de um bombardeiro a regressar.
A estrada começou a ficar mais plana e ele voltou a sentar-se no selim. Apesar de todos os seus esforços a dar à bomba, os pneus continuavam meio vazios e as rodas e a corrente estavam rígidas por falta de óleo. Assim, era difícil andar, mas Jericho não se importava. Andava, e isso é que importava. Acontecia o mesmo com o decifrar dos códigos.
Por mais desesperada que a situação fosse, a regra era sempre fazer alguma coisa. Nunca ninguém resolveu um criptograma, costumava dizer Alan Turing, a olhar simplesmente para ele.
Continuou a pedalar por mais uns três quilómetros, subindo agora a estrada suavemente em direcção a Shenley Brook End. Mal chegava a ser uma aldeia, era antes uma aldeola minúscula com uma dúzia de casas ou pouco mais, a maior parte de lavradores. Não conseguia ver os edifícios, abrigados num ligeiro declive, mas quando deu uma curva sentiu um cheiro a fumo de madeira e percebeu que devia estar perto.
Mesmo antes da aldeola, à esquerda, havia um espaço aberto na sebe de espinheiro, onde um carreiro sulcado conduzia a um chalé isolado. Meteu por aí e deixou a bicicleta deslizar até parar, com os pés a escorregarem na lama gelada. Um mocho branco, inesperadamente enorme, levantou voo de um ramo próximo e bateu as asas, silenciosamente, através dos campos. Jericho semicerrou os olhos ao olhar para o chalé. Seria imaginação sua, ou havia uma nesga de luz na janela do rés-do-chão? Desmontou e conduziu a bicicleta até lá.
Sentia-se maravilhosamente calmo. Acima do telhado de colmo, as constelações espalhavam-se como as luzes de uma cidade — a Ursa Menor e a Estrela Polar, Pégaso e Cefeu, o M achatado da Cassiopeia com a Via Láctea fluindo através dela. Nenhum brilho da terra obscurecia a sua luminosidade. Uma coisa, pelo menos, pode ser dita em favor do blackout, pensou ele, devolveu-nos as estrelas.
A porta era sólida e guarnecida a ferro. Era como bater em pedra. Passado meio minuto bateu outra vez.
— Claire? — chamou ele. — Claire? Seguiu-se uma pausa e, depois: — Quem é?
— É o Tom.
Respirou fundo e preparou-se como para um golpe. A maçaneta rodou e a porta abriu-se ligeiramente, apenas o suficiente para mostrar uma mulher de cabelo escuro, nos seus trinta, da mesma altura de Jericho. Tinha óculos redondos e um casacão grosso comprido e, na mão, um livro de orações.
— Sim?
Por um momento, ficou sem fala. Depois disse: — Desculpe, vinha à procura da Claire.
— Ela não está.
— Não está? — repetiu, desanimado. Lembrava-se agora que Claire partilhava o chalé com uma mulher chamada Hester Wallace («trabalha no Anexo 6, é uma querida») mas, por qualquer razão, ele tinha-se esquecido dela. A Jericho, a mulher não parecia assim tão querida. Tinha o rosto esguio, cortado a meio, como se por uma faca, por um nariz longo e aguçado. O cabelo estava arrepanhado para trás, deixando a descoberto uma testa franzida. — Sou o Tom Jericho. — Ela não deu resposta. — Talvez a Claire se tenha referido a mim?
— Eu digo-lhe que esteve cá.
— Ela vai demorar?
— Lamento, mas não faço ideia.
Começou a fechar a porta. Jericho impediu-a, metendo o pé. — Desculpe, eu sei que é tremendamente indelicado da minha parte, mas não seria possível eu entrar e ficar à espera?
A mulher olhou de relance para o pé dele e depois para a cara. — Receio que isso seja impossível. Boa-noite, Mr. Jericho.
— E fechou a porta, empurrando-a com uma força surpreendente.
Jericho deu um passo atrás. Não tinha considerado esta contingência no seu plano. Olhou para o relógio. Eram pouco mais de onze horas. Pegou na bicicleta e levou-a até ao caminho, mas, no último momento, em vez de voltar à estrada, virou à esquerda e seguiu ao longo da sebe. Deitou a bicicleta no chão, acoitou-se na sombra e ficou à espera.
Dez minutos depois, a porta do chalé abriu-se e fechou-se e ele ouviu o chocalhar de uma bicicleta a ser conduzida sobre pedra. Era o que ele pensava: Miss Wallace estava vestida para sair, porque trabalhava no turno da meia-noite. Um aguilhão de luz amarela surgiu a oscilar de um lado para o outro e depois começou a agitar-se na sua direcção. Hester Wallace passou a seis metros dele, ao luar, joelhos para cima e para baixo, cotovelos espetados, tão angulosa como um chapéu de chuva velho. Parou à entrada do caminho e deslizou num esteiro de luz. Jericho infiltrou-se mais na sebe. Meio minuto depois ela tinha desaparecido. Ele esperou um bom quarto de hora, não fosse ela ter-se esquecido de alguma coisa, e depois aproximou-se outra vez do chalé.
Só havia uma chave — de ferro, com adornos, e suficientemente grande para ser de uma catedral. Ficava guardada, lembrava-se ele, sob um bocado de ardósia debaixo de um vaso. A humidade tinha empenado a porta e teve de empurrar com força para a abrir, deixando um arco marcado no chão de laje. Voltou a pôr a chave no sítio, entrou e fechou a porta antes de acender a luz.
Só ali tinha estado uma vez, mas não havia muito a recordar. Duas divisões no rés-do-chão: uma sala de estar, com traves baixas e uma cozinha mesmo em frente. À sua esquerda, uma escada estreita conduzia a um pequeno patamar. O quarto de Claire ficava em frente e dava para o caminho. O de Hester ficava nas traseiras.
O sanitário era químico, logo à saída da porta das traseiras, e para lá chegar passava-se pela cozinha. Não existia casa de banho. Havia uma banheira de metal galvanizado guardada num barracão ao lado da cozinha. Os banhos eram tomados em frente ao fogão. A casa toda era fria e apertada e cheirava a bolor. Ele perguntava-se como é que Claire suportava aquilo.
— «Mas, meu querido, é muito melhor do que ter uma senhoria horrorosa a dar-nos ordens...»
Jericho deu meia dúzia de passos na carpete gasta e parou. Pela primeira vez, começou a sentir-se pouco à-vontade. Para onde quer que olhasse via sinais de uma vida vivida com satisfação sem a presença dele — a porcelana azul e branca, desemparelhada, no aparador, a jarra cheia de narcisos, a pilha de Vogues de antes da guerra, até a disposição da mobília (as duas poltronas e o sofá acolhedoramente colocados à volta da lareira). Todos estes pequenos pormenores domésticos pareciam significativos e premeditados.
Não tinha nada que ali estar.
Naquela altura, foi por muito pouco que não saiu imediatamente. Só o deteve a vaga e patética percepção de que não tinha nenhum sítio em especial para ir. Bletchley Park? Albion Street? Kings College? A vida parecia ter-se tornado um emaranhado de becos sem saída.
Meu Deus, mas estava frio! Tinha os ossos em gelo. Andou de um lado para o outro na sala atravancada, baixando-se para evitar as pesadas traves. Na lareira havia cinza branca e alguns fragmentos de madeira enegrecida. Sentou-se primeiro numa poltrona, depois experimentou a outra. Agora, estava virado para a porta. À sua direita, estava o sofá. O estofo era de seda cor-de-rosa, puída, e as almofadas estavam encovadas e com o enchimento de penas a sair. As molas já não existiam e, quando se sentou, afundou-se quase até ao chão e só com muita ginástica conseguiu levantar-se. Lembrava-se agora do sofá e contemplou-o longamente, como um soldado contemplaria um campo de batalha onde uma guerra tivesse sido irremediavelmente perdida.
Saem do comboio juntos e sobem um carreiro até Bletchley Park. À esquerda fica um campo de jogos, lavrado em talhões para a campanha
Cave Para A Vitória. À direita, vêem através da vedação do parque o amontoado familiar de edifícios baixos. As pessoas caminham apressadas para exorcizarem o frio. A tarde de Dezembro está ríspida e enevoada, e o dia dilui-se no crepúsculo.
Ela diz-lhe que veio até Londres para festejar o aniversário. Que idade é que ele pensa que ela tem?
Ele não faz ideia. Dezoito, talvez?
Vinte, diz ela triunfante, uma antiguidade. E o que está ele afazer na cidade? Ele não pode dizer, claro. A tratar de uns assuntos, diz ele. Só isso.
Desculpe, diz ela, não devia ter perguntado. Ainda não conseguiu dominar toda esta «necessidade de saber». Está em Bletchley Park há três meses e detesta o lugar. O pai trabalha no Ministério dos Negócios Estrangeiros e arranjou-lhe o emprego para a manter afastada de complicações. Há quanto tempo está ele lá?
Três anos, diz Jericho, ela não deve preocupar-se, depois passa.
Ah, para ele é fácil falar, diz ela, mas com certeza «ele» faz alguma coisa interessante?
Nem por isso, diz ele, mas depois pensa que isso o faz parecer maçador e acrescenta: — Bem, bastante interessante, suponho.
Na verdade, tem dificuldade em contribuir activamente para a conversa. O simples caminhar ao lado revela-se suficientemente perturbador. Caem em silêncio.
Junto ao portão principal está um cartaz a anunciar um concerto da Musikalisches Opfer de Bach, tocado pela Sociedade Musical de Bletchley Park. — Ora veja aquilo — diz ela — adoro Bach. — Ao que Jericho replica, com genuíno entusiasmo, que Bach é o seu compositor favorito. Grato por ter finalmente encontrado alguma coisa de que falar, lança-se numa longa dissertação sobre a fuga em seis partes da Musikalisches Opfer, que Bach terá supostamente tocado de improviso para o Rei Frederico, o Grande, um feito equivalente a jogar e ganhar sessenta jogos de xadrez simultaneamente, com os olhos vendados. Talvez ela saiba que a dedicatória de Bach ao Rei — Regis Iussu Cantio et Reliqua Canónica Arte Resoluta — produz o acróstico bastante interessante de RICERCAR, que significa «procurar»?
Não, estranhamente ela não sabe.
Este monólogo progressivamente desesperado leva-os até às cabanas, onde param e, depois de nova pausa embaraçosa, se apresentam.
Ela estende-lhe a mão — o aperto dela é quente e firme, mas as unhas são um choque: dolorosamente roídas até quase ao sabugo. O apelido é Romilly. Claire Romilly. Tem um som agradável. Claire Romilly. Ele deseja-lhe um feliz Natal e afasta-se, mas ela chama-o. Espera que ele não a ache demasiado descarada, mas será não gostaria de ir com ela ao concerto?
Ele não tem a certeza, não sabe...
Ela escreve a data e a hora mesmo por cima das palavras cruzadas do The Times — 27 de Dezembro as 8.15 — e mete-lho nas mãos. Ela compra os bilhetes. Encontram-se lá.
Por favor, não diga que não.
E desaparece antes que ele consiga pensar numa desculpa.
Ele está escalado para o turno da noite do dia 27, mas não sabe onde pode encontrá-la, para lhe dizer que não está disponível. E, de qualquer modo, apercebe-se de que até está bastante interessado em ir. Assim, pede a Arthur de Brooke que lhe pague um favor que lhe deve e espera aporta da entrada, espera, espera. Por fim, depois de todos terem entrado e quando já está para desistir, ela aparece a correr, saída da escuridão, a sorrir e a pedir desculpa.
O concerto é melhor do que ele esperava. O quinteto trabalha todo em Bletchley Park e em tempos trabalhavam como profissionais. O solista de cravo é particularmente excepcional. Na assistência, as mulheres usam vestidos de noite e os homens fato completo. De repente, e pela primeira vez de que se lembra, a guerra parece estar muito distante. Quando as últimas notas do terceiro trecho («per Motum contrarium») morrem no ar, ele arrisca um olhar de relance para Claire e descobre que ela está a olhar para ele. Ela toca-lhe no braço e, quando começa o quarto trecho («per Augmentationem, contrario Motu»), ele perde-se.
Quando terminar tem de voltar logo para o anexo: prometeu que voltava antes da meia-noite. — Pobre Mr. Jericho — diz ela — é como a Gata Borralheira... — Mas, a sugestão dela, encontram-se para o concerto da semana seguinte — Chopin — e, quando acaba, descem a encosta até à estação, para irem beber um cacau no bufete da estação.
— Então — diz ela, quando ele volta do balcão com duas chávenas de espuma castanha — quanto é que me épermitido saber de si?
— Eu? Eu sou muito aborrecido.
— Não acho que seja nada aborrecido. Na verdade, ouvi um rumor de que é bastante brilhante. — Acende um cigarro e ele repara na forma característica de ela inspirar o fumo, parecendo quase engoli-lo, inclinando depois a cabeça para trás e expirando-o através das narinas. Será alguma nova moda, pergunta-se ele? — Suponho que é casado? — diz ela.
Ele quase que se engasga com o cacau. — Não, credo. Quero dizer, dificilmente poderia...
— Noiva? Namorada?
— Agora está a tentar irritar-me. — Tira um lenço e passa-o no queixo.
— Irmãos? Irmãs?
— Não, não.
— Pai ou mãe? Até você deve ter pais.
— Só um é que ainda está vivo.
— Eu estou na mesma — diz ela — A minha mãe já morreu.
— Deve ser horrível para si. Lamento. A minha mãe, tenho de o dizer, está bem viva.
E assim dá continuidade a este prazer até aqui não saboreado de falar de si próprio. Os olhos cinzentos dela nunca saem do rosto dele. Os comboios passam a deitar fumo na escuridão, deixando para trás um rasto de fuligem e ar quente. Os clientes vêm e vão. «Que importa se não há luz» canta um cantor da rádio na telefonia, a um canto, «não podem apagar a lua...» Dá por ele a contar-lhe coisas que, na verdade, nunca tinha dito antes a ninguém — sobre a morte dopai e o segundo casamento da mãe, o padrasto (um homem de negócios de quem ele não gostava), a sua descoberta da astronomia e depois da matemática...
— E o seu trabalho agora? — diz ela — Fá-lo feliz?
— Feliz?— Ele aquece as mãos na chávena epondera a pergunta. — Não. Não posso dizer que me faça feliz. É demasiado exigente, assustador até, de certa forma.
— Assustador? — Os olhos rasgados rasgam-se ainda mais de interesse. — Assustador, como?
— O que poderia acontecer... (Estás a exibir-te, alerta-se ele a si mesmo, pára com isso.) — O que poderia acontecer se me enganasse, acho eu.
Ela acende outro cigarro. — Você está no Anexo 8, não é? O Anexo 8 é da secção naval?
Isto fá-lo cair em si com um baque. Olha rapidamente em redor.
Há um outro casal de mãos dadas na mesa ao lado, a sussurrar. Quatro aviadores jogam às cartas. Uma criada de mesa, com um avental engordurado, esfrega o balcão. Ninguém parece ter ouvido.
— Por falar nisso — diz ele, alegremente — acho que tenho de regressar.
No cruzamento de Church Green Road com Wilton Avenue, ela dá-lhe um beijo breve, na face.
Na semana seguinte é Schumann, seguido de pudim de carne e rocambole de compota no British Restaurant de Bletchley Road («dois pratos por onze dinheiros») e agora é a vez de ela falar. A mãe morreu quando tinha seis anos, diz ela, e o pai levou-a a reboque de embaixada em embaixada. A família foi uma sucessão de amas e educadoras. Pelo menos, aprendeu algumas línguas. Queria alistar-se no Wren, mas o velhote não deixou.
Jericho pergunta como é que era Londres durante o Blitz.
— Muito divertido, na verdade. Montanhas de lugares aonde ir. O Milroy, Os Four Hundred. Uma espécie de alegria desesperada. Todos tivemos de aprender a viver o momento que passa, não acha?
Quando se despedem, ela beija-o outra vez, tocando-lhe com os lábios numa face e a mão fresca na outra.
Em retrospectiva, foi por esta altura, em meados de janeiro, que ele devia ter começado a apresentar os sintomas, pois é nessa época que começa a perder o equilíbrio. Acorda com um sentimento de suave euforia. Entra no anexo a saltitar, assobiando. Vai dar longos passeios a pé à volta do lago, entre os turnos, e leva pão para dar de comer aos patos — apenas pelo exercício, diz para consigo, mas na verdade perscruta as multidões à procura dela e vê-a por duas vezes e, numa delas, ela vê-o e acena-lhe.
No quarto encontro (o quinto, se se contar o do comboio) ela insiste para que façam algo diferente e, assim, vão ao cinema Country, em High Street, ver o novo filme de Noèí Coward Sangue, Suor e Lágrimas.
— Está realmente a querer dizer-me que nunca aqui tinha estado, nem uma vez? Estão na bicha para comprar bilhetes. O filme só está em exibição há um dia e afila estende-se pela esquina atéAylesbury Street.
— Nunca estive, a sério; para ser sincero, não.
— Céus, Tom, é um querido muito engraçado. Eu acho que morria presa em Bletchley se não viesse ver umas fitas.
Sentam-se quase ao fundo da sala e ela passa o braço pelo dele.
A luz do projector lá no alto, atrás deles, desenha no pó e no fumo dos cigarros um caleidoscópio de azuis e cinzentos. O casal ao lado deles beija-se. Uma mulher solta uma risada. Uma fanfarra de clarins anuncia um jornal cinematográfico e ali, no ecrã, longas colunas de prisioneiros alemães, um número impossível, são vistos a serem transportados pela neve enquanto o locutor fala exacerbadamente sobre os avanços do Exército Vermelho na frente oriental. Aparece o Estaline a distribuir medalhas entre ruidosos aplausos. Alguém grita:— Três vivas pelo Tiofosé!—As luzes acendem-se, depois o escuro volta e Claire aperta-lhe o braço. O filme principal começa — «Esta é a história de um navio» — com Coward afazer o papel de um capitão da Marinha britânica, improvavelmente brando. Há muita excitação e movimento. «Embarcação a arder com três - oh... Rasto de torpedo a estibordo, meu capitão... Continuem a disparar...» No clímax da batalha naval, Jericho olha a sua volta, para o tremeluzir das explosões do celulóide nos rostos arrebatados, e dá-se conta de que faz parte de tudo aquilo — uma parte distante e vital — e que ninguém sabe, ninguém nunca saberá... Depois dos comentários finais, os altifalantes tocam «Deus salve o Rei» e todos se levantam, estando muitos dos espectadores tão emocionados com o filme que começam a cantar.
Eles têm as bicicletas quase no fim de um beco perto do cinema. Uns metros à frente uma forma esfrega-se contra a parede. Quando se aproximam, vêem que é um soldado com o sobretudo cinzento embrulhado à volta de uma rapariga. As costas dela estão coladas aos tijolos. O seu rosto branco olha-os fixamente, das sombras, como um animal na toca. O movimento pára durante o tempo que leva a Claire e Jericho a apanharem as bicicletas; depois recomeça.
— Que comportamento tão estranho.
Ele di-lo sem pensar. Para surpresa sua, Claire desata a rir.
— Qual é o problema?
— Nada — diz ela.
Ficam no passeio, a segurar as bicicletas, à espera que passe um camião do Exército, com os faróis baços e a caixa de velocidades a ranger, que se dirige para norte, por Watling Street. O riso dela pára. — Venha ver a minha casa, Tom. — Di-lo quase como um queixume. — Não é assim tão tarde. Adorava mostrar-lha.
Ele não consegue lembrar-se de uma desculpa, não quer pensar numa.
Ela abre caminho através da cidade e pára fora dela, para lá de Bletchley Park.
Não falam durante quinze minutos e ele começa a perguntar-se até onde ela o vai levar. Por fim, quando vão a chocalhar pelo caminho que leva à casa dela, ela diz por cima do ombro. — Não é uma querideza?
— Sim, é longe da estrada principal.
— Então, não seja horrível— diz ela, fingindo estar ofendida. Conta-lhe como a encontrou abandonada, como, com jeito, levou o
proprietário, um lavrador, a alugar-lha. Lá dentro, a mobília é imponente, mas gasta, recuperada da casa de uma tia em Kensington que foi fechada por causa do Blitz e que nunca mais voltou a ser aberta. A escada range de forma tão alarmante que Jericho se interroga se o peso deles combinado não afará saltar da parede. Aquilo está uma ruína, um frio de morrer.
— E aqui é onde eu durmo — diz ela e ele segue-a até um quarto em tons de rosa e creme a abarrotar de sedas, peles e penas de antes da guerra, como um enorme camarim. Uma tábua solta dispara como um tiro debaixo dos pés dele. O olhar não consegue registar tantos pormenores, tantas caixas de chapéus, de sapatos, algumas jóias, frascos de cosméticos... Ela tira o casaco, deixa-o escorregar para o chão e atira-se para a cama de barriga; depois, ergue-se nos cotovelos e arremessa os sapatos para longe. Parece divertida com alguma coisa.
— E o que é isto?—Jericho, em alvoroço, recuou para o patamar e olha, especado, para a outra única porta.
— Esse é o quarto da Hester — diz-lhe ela.
— Da Hester?
— Uma besta qualquer da secretaria descobriu onde eu estava e disse que, se eu tinha um outro quarto, tinha de o partilhar com alguém. E então apareceu a Hester. Trabalha no Anexo 6. É uma querida, a sério. Tem uma paixoneta por mim. Pode dar uma vista de olhos. Ela não se importa.
Ele bate, ninguém responde e abre a porta. Outro quarto minúsculo, mas este espartano, como uma cela: uma cama de ferro, um jarro e um lavatório de bacia, livros empilhados numa cadeira. O Livro Elementar de Alemão, de Ableman. Abre-o. — Der Rhein ist etwas langer ais die Elbe — lê ele. O Reno é um pouco mais extenso do que o Elba. Ele ouve o disparo da tábua do chão atrás de si e Claire tira-lhe o livro das mãos.
— Não seja bisbilhoteiro, querido. É feio. Venha, vamos acender a lareira e beber um copo.
Lá em baixo, ele ajoelha-se ao pé da lareira efaz uma bola com um The Times. Empilha cavacos e dois toros de madeira e acende o papel. A chaminé puxa, voraz, chupando o fumo com um rugido.
— Olha para ele, ainda nem tirou o casaco.
Ele levanta-se, sacode o pó e volta-se para ela. Saia cinzenta, camisola de caxemira azul-marinho, uma volta de pérolas branco-leite na garganta cremosa — o uniforme inalterável, ubíquo, da mulher inglesa da classe alta. Ela consegue, de alguma forma, parecer muito jovem e muito madura ao mesmo tempo.
— Venha cá. Eu ajudo.
Poisa as bebidas e começa a desabotoar-lhe o sobretudo.
— Tom, não me diga — sussurra ela — não me diga que não sabia o que eles estavam afazer atrás daquele cinema?
Mesmo descalça, ela é tão alta como ele.
— Claro que sabia...
— Hoje em dia, em Londres, todas as raparigas lhe chamam «trabalho de parede». O que é que você acha? Dizem que assim não se fica grávida... «
Instintivamente, ele embrulha-a no sobretudo e ela envolve-lhe as costas com os braços.
Maldição, maldição, maldição.
Atirou-se para a frente e saltou da cadeira, espalhando as imagens em cacos pelo chão frio de pedra. Deu duas ou três voltas à minúscula sala de estar e foi para a cozinha. Estava tudo limpo, varrido e arrumado. Trabalho da prendada Hester, calculou ele, não de Claire. O lume ardia muito fraco e estava morno ao tacto, mas resistiu à tentação de lhe deitar mais carvão. Era um quarto para a uma. Onde estaria ela? Deambulou de novo até à sala, hesitou ao fundo das escadas e começou a subir. O estuque das paredes estava húmido e descascava-se ao contacto dos dedos. Decidiu tentar primeiro o quarto de Hester. Estava exactamente como há seis semanas: um par de sapatos práticos ao lado da cama; um armário cheio de roupa escura; o mesmo livro elementar de alemão. «An seinen Ufern sind Berge, Felsen und malerische Schlosser aus den àltesten Zeiten.» «Nas suas praias há montanhas, rochas e castelos pitorescos dos tempos mais antigos». Fechou-o e voltou para o patamar e, finalmente, para o quarto de Claire.
Estava bastante certo agora do que ia fazer, embora a consciência lhe dissesse que era um erro e a lógica lhe dissesse que era uma estupidez. E, em princípio, estava de acordo. Como qualquer menino bonito, tinha estudado Esopo e sabia que «os que escutam nunca ouvem falar bem de si» — mas desde quando, pensou ele enquanto começava a abrir as gavetas, desde quando é que essa sabedoria piedosa tinha detido alguém? Uma carta, um diário, um bilhete, qualquer coisa que lhe dissesse o porquê — ele tinha de ver com os seus próprios olhos, embora as hipóteses de isso lhe proporcionar conforto fossem nulas. Onde estaria ela? Com outro homem? A fazer aquilo que todas as raparigas de Londres, querido, chamavam trabalho de parede?
De repente deu-lhe uma fúria e revistou-lhe o quarto como um assaltante, tirando as gavetas para fora e pondo-as ao alto, varrendo jóias e adereços das prateleiras, puxando a roupa para o chão, atirando os lençóis e cobertores para trás e enrolando o colchão, levantando nuvens de pó, perfume e penas de avestruz.
Dez minutos depois esgueirou-se para um canto e deitou a cabeça numa pilha de sedas e peles.
— Estás um destroço — tinha dito Skynner — estás arrumado. Perdeste. Arranja alguém mais adequado do que a pessoa com quem andas.
Skynner sabia da existência dela e Logie parecia saber também. O que é que lhe tinham chamado? «Loira árctica»? Talvez todos soubessem — Puck, Atwood, Baxter, toda a gente?
Tinha de sair dali, fugir do cheiro do perfume dela e da vista das roupas dela.
E foi esse acto que mudou tudo, pois foi só quando parou no patamar com as costas encostadas à parede e os olhos fechados, que se apercebeu de que havia qualquer coisa que tinha deixado escapar.
Voltou devagar e deliberadamente para o quarto dela. Silêncio. Pisou a soleira e repetiu este movimento. Silêncio de novo. Pôs-se de joelhos. Um dos tapetes da tia de Kensington cobria as tábuas do soalho — um velho trapo oriental manchado e esteticamente puído. Só media cerca de dois metros quadrados. Enrolou-o e colocou-o em cima da cama. As pranchas de madeira que ficavam por baixo do dito tapete estavam arqueadas com a idade, lisas com o uso e pregadas com pregos da cor da ferrugem, intocadas durante dois séculos excepto no sítio onde um pedaço mais curto do tabuado antigo, com cerca de cinquenta centímetros, estava preso com quatro parafusos reluzentes e modernos. Deu uma palmada no chão, triunfante.
— «Há mais alguma coisa para que queira chamar a atenção, Mr. Jericho?»
— «Para o curioso incidente da tábua que range.»
— «Mas a tábua não rangeu.»
— «O incidente curioso era esse.»
Na balbúrdia em que estava o quarto dela não via nenhuma ferramenta apropriada. Desceu à cozinha e encontrou uma faca. Tinha um cabo de madrepérla e um R gravado. Perfeito. Atravessou a sala quase aos saltos. A ponta da faca encaixou na cabeça do parafuso e a rosca rodou facilmente e saiu que foi uma maravilha. Os outros três também. Depois de levantada, a tábua revelou a crina de cavalo e o gesso do tecto do andar de baixo. A cavidade tinha cerca de cinco centímetros de profundidade. Despiu o sobretudo e o casaco e enrolou a manga da camisa. Deitou-se de lado no chão e empurrou a mão para dentro do buraco. A princípio não agarrou nada a não ser mancheias de entulho, sobretudo pedaços de gesso velho e restos de tijolos esboroados, mas continuou a procurar por aqui e por ali até que, por fim, deu um grito de alegria, quando a mão tocou em papel.
Pôs tudo no lugar, mais ou menos como estava. Pendurou as roupas nas traves, empilhou a roupa interior e as écharpes nas gavetas e colocou-as de novo na cómoda de mogno. Amontoou os adereços de joalharia na caixa de cabedal e dispôs os outros habilmente ao longo das prateleiras, com as garrafas, frascos e pacotes, a maior parte dos quais estava vazia.
Fez tudo isto mecanicamente, como um autómato.
Refez a cama, retirando o tapete e alisando o edredão, e deitou-lhe por cima a coberta de renda, que assentou como uma rede. Depois, sentou-se na beira do colchão e inspeccionou o quarto. Não estava nada mal. Claro que, quando ela começasse a procurar as coisas, ia perceber que alguém tinha andado por ali a mexer, mas num relance fortuito parecia tudo como antes — isto é, aparte o buraco no chão. Ainda não sabia o que fazer àquilo. Dependia de voltar ou não a colocar as mensagens interceptadas no lugar. Tirou-as de debaixo da cama e examinou-as outra vez.
Eram quatro, em folhas de papel de tamanho padronizado, de vinte por vinte e cinco. Segurou-as contra a luz. Era papel de má qualidade, dos tempos de guerra, do que em Bletchley se usava às toneladas. Quase conseguia ver uma floresta petrificada na sua textura, as sombras da folhagem e os caules das folhas, os contornos vagos da casca e dos fetos. No canto superior esquerdo de cada sinal estava a frequência em que tinha sido transmitido — 12 260 quilocidos por segundo — e no superior direito o TDI — Tempo de Intercepção. Tinham sido enviados os quatro uns atrás dos outros a 4 de Março, uns escassos nove dias antes, com intervalos de aproximadamente vinte e cinco minutos, começando às 9.30 da noite e acabando mesmo antes da meia-noite. Cada um consistia num sinal de chamada — ADU — e depois cerca de duzentos grupos de cinco letras. Isso em si mesmo era uma pista importante. Significava, independentemente do que quer que fossem mais, que não eram navais: os sinais da Kriegsmarine eram transmitidos em grupos de quatro letras. Por isso, eram presumivelmente do Exército Alemão ou da Luftwaffe.
Ela devia tê-los roubado do Anexo 3.
A enormidade das implicações atingiu Jericho pela segunda vez, vergando-o como um murro no estômago. Dispôs as mensagens em sequência sobre a almofada e esforçou-se seriamente, como um defendor do Conselho do Rei, por arranjar uma explicação inocente. Uma travessura» parva? Podia ser. Era certo que ela nunca tinha prestado muita atenção à segurança — a dizer muito alto uma data de coisas sobre o Anexo 8 no bar da estação, exigindo saber o que ele fazia, tentando dizer-lhe o que ela fazia. Um desafio? Também podia ser. Ela era capaz de tudo. Mas aquele buraco nas tábuas do chão, aquela fria deliberação, retinham-lhe o olhar e troçavam da sua advocatura.
Um som — talvez passos no andar de baixo — arrancou-o ao devaneio e fê-lo pôr-se de pé de um salto.
— Olá — disse ele, em voz alta, num tom que sugeria mais coragem do que sentia. Aclarou a garganta. — Olá? — repetiu. E então ouviu outro barulho, decididamente passos e decididamente lá fora desta vez, e soltou uma descarga de adrenalina. Dirigiu-se rapidamente para a porta do quarto e apagou a luz, de forma que a única iluminação da casa vinha da sala. Agora, se alguém subisse as escadas, poderia ver-lhe a silhueta enquanto permanecia oculto. Mas não aconteceu nada. Talvez estivessem a tentar dar a volta e entrar pelas traseiras. Sentiu-se terrivelmente vulnerável. Esgueirou-se cautelosamente pelas escadas abaixo, encolhendo-se de cada vez que elas rangiam. Um sopro de ar frio bateu-lhe na cara.
A porta da frente estava toda aberta.
Atirou-se pela última meia dúzia de degraus abaixo e correu lá para fora, ainda a tempo de ver o farolim traseiro de uma bicicleta a disparar pelo carreiro, desaparecendo no caminho.
Lançou-se em perseguição da bicicleta, mas deu vinte passos e desistiu. Não tinha qualquer hipótese de apanhar o ciclista.
Havia uma geada forte. Em todas as direcções, o chão brilhava com um azul pesado e luminoso. Os ramos das árvores nuas erguiam-se no céu como vasos sanguíneos. No gelo resplandecente estavam gravados dois grupos de marcas de pneus a entrar e a sair. Seguiu-os até à porta, onde terminavam numa série de pegadas nítidas.
Pegadas claras, grandes, «masculinas».
Jericho ficou a olhá-las durante meio minuto, a tremer, em mangas de camisa. Um mocho piou num matagal vizinho e pareceu-lhe que o grito tinha um ritmo de Morse: dih-dih-dah, dih-dih-dah.
Voltou a correr para dentro de casa.
No andar de cima, fez um rolo apertado com as mensagens, usou os dentes para abrir um buraquinho no forro do sobretudo e meteu os sinais lá para dentro. Depois aparafusou as tábuas e colocou o tapete no lugar. Vestiu o casaco e o sobretudo, apagou as luzes, fechou a porta à chave e deixou a chave no sítio.
A sua bicicleta acrescentou um terceiro grupo às marcas gravadas na geada.
Chegado à entrada do carreiro, parou, olhou para trás, para a casa às escuras e teve a forte sensação — idiota, disse de si para si — de estar a ser observado. Olhou em redor. Uma rajada de vento agitou as árvores; na sebe de espinheiro ao seu lado os pingentes de gelo tocaram-se e tilintaram.
Jericho sentiu um novo tremor, voltou a montar na bicicleta e apontou para o fundo da encosta, em direcção ao Sul, a Orion e Prócion, e a Hidra, que pairavam suspensas no céu nocturno, sobre Bletchley Park, como uma espada.
BEIJO: coincidência de dois criptogramas diferentes, tendo cada um sido transmitido em cifras diferentes, mas contendo ambos o mesmo texto base, donde a solução de um conduzirá à solução do outro.
Léxico da Criptografia («Altamente Secreto», Bletchley Park, 1943)
Jericho não sabe o que o acorda — um som indistinto, um movimento no ar que, como um gancho, o arranca das profundezas do sonho e o traz à superfície.
A princípio, o quarto às escuras parece-lhe absolutamente normal; a sombra escura da trave baixa de carvalho, a suavidade das superfícies cinzentas das paredes e do tecto. Mas, depois, apercebe-se de que uma luz ténue se eleva aos pés da cama.
— Claire? — diz ele, erguendo-se — Querida?
— Está tudo bem, querido. Volta a dormir.
— Que raio estás tu afazer?
— Estou só aqui a mexer nas tuas coisas.
— Estás... afazer o quê?
As apalpadelas, a mão dele desliza pela mesinha de cabeceira e acende o candeeiro. O despertador diz-lhe que são três e meia.
— Assim está melhor— diz ela, apagando a lanterna — De qualquer forma, isto não tem qualquer utilidade.
Está afazer exactamente o que disse. Está nua, de joelhos, só com a camisa dele vestida, a remexer-lhe a carteira. Tira duas notas de uma libra, vira a carteira do avesso e sacode-a.
— Nem uma fotografia?—pergunta.
— Ainda não me deste nenhuma.
— Tom Jericho — diz ela, sorrindo e colocando novamente o dinheiro na carteira. — Deixa que te diga uma coisa, estás a tornar-te quase num veludo.
Remexe-lhe nos bolsos do casaco e das calças, depois arrasta-se de joelhos em direcção à cómoda. Tom entrelaça os dedos atrás da cabeça e encosta-se à armação de ferro da cama a observá-la. É apenas a segunda vez que dormem juntos — uma semana depois da primeira — e, por insistência dela, fazem-no no quarto dele e não no seu chalé, tendo, para tal, de se arrastar até ao fundo do bar escuro da Estalagem White Hart e subir as escadas que não param de ranger. Como o quarto de Jericho se encontra afastado das outras dependências, não correm o risco de serem ouvidos. Os livros dele estão alinhados em cima da cómoda e ela pega num de cada vez, virando-os ao contrário e batendo ao de leve nas páginas.
Será que ele acha estranho tudo isto? Não, não acha. Parece-lhe apenas divertido, mesmo lisonjeador; mais um gesto de intimidade, uma continuação de tudo o resto, uma parte do sonho real em que a sua vida se tornara, dirigida por regras de sonho. Além disso, não tem segredos para ela ou, pelo menos, pensa não ter. Ela encontra o documento de Turing e estuda-o de perto.
— E o que são números computáveis com aplicabilidade ao Entscheidungsproblem, quando existem?
Verificou com surpresa que a pronúncia dela em alemão éperfeita.
— Trata-se de uma ferramenta teórica, capaz de um número infinito de operações numéricas. Apoia as hipóteses de Hilbert e vai contra as de Godel. Volta para a cama, querida.
— Mas não passa de uma teoria?
Tom suspira e aconchega o travesseiro. Dormiam numa cama de solteiro. — Turing está convencido de que não há qualquer razão de fundo para que uma máquina não possa fazer tudo o que o cérebro humano faz. Calcular. Comunicar. Escrever um soneto.
— Apaixonar-se?
— Se o amor for lógico.
— Eé?
— Anda para a cama.
— Esse tal Turing trabalha em Bletchley Park?
Tom não responde. Claire passa os olhos pelo documento, semicerrando os olhos e fazendo uma careta de nojo perante tanta matemática, volta a colocá-lo junto aos livros e abre uma das gavetas. Quando se inclina, a camisa sobe-lhe pelo corpo. A brancura da parte inferior das suas costas brilha de repente na escuridão. Tom fica a olhar hipnotizado para o suave triângulo de carne ao fundo das vértebras enquanto ela passa vistoria às suas roupas.
—Ah — diz ela — está aqui qualquer coisa. — E retira um pedaço de papel. — Um cheque de cem libras, passado em teu nome pelo Fundo de Contigência do Ministério dos Negócios Estrangeiros...
— Dá cá isso.
— Porquê?
— Põe isso onde estava.
Em poucos segundos, Tom está do outro lado do quarto, ao lado dela, mas ela é mais rápida. Estica-se, em bicos de pés, segurando o cheque com o braço todo levantado, e fica mais alta do que ele apenas aquele meio centímetro suficiente; o que não deixa de ser absurdo. E o dinheiro esvoaça como um galhardete fora do seu alcance.
— Eu sabia que ia encontrar alguma coisa. Diz lá, querido, para que é?
Deveria ter depositado aquela porcaria há semanas. Esquecera-se completamente. — Claire, por favor...
— Deves ter feito algo incrivelmente inteligente lá no anexo da marinha. Um novo código? Foi isso? Descobriste algum novo código importante, meu menino inteligente?
Ela pode ser mais alta do que ele, pode até ser mais forte, mas Jericho tem a vantagem do desespero. Agarra-lhe o bícepe distendido em tensão máxima, puxa o braço para baixo e torce-lho. Segue-se uma breve luta, ele empurra-a para cima da cama estreita e arranca-lhe o cheque dos dedos de unhas roídas e afasta-se com ele para o outro lado do quarto.
— Essa não teve graça, Claire. Há coisas que não têm graça nenhuma.
Está de pé em cima dos tapetes toscos; nu, magro, arquejante do esforço. Dobra o cheque e mete-o na carteira, mete a carteira no casaco e volta-se para pendurar o casaco no armário. Nesse momento apercebe-se de um ruído estranho atrás de si; um ruído animalesco, assustador, algo entre uma respiração estridente e um soluço. Claire estava toda encolhida na cama, com os joelhos dobrados sobre o estômago e os braços colados à
cara.
Meu Deus, o que tinha ele feito?
Começa a alinhavar umas desculpas. Não tinha querido assustá-la nem magoá-la. Vai para o outro lado da cama e senta-se ao lado dela. Toca-lhe no ombro, como se a experimentá-la. Ela parece não dar por nada. Tenta puxá-la para si, rolá-la e colocá-la de costas, mas ela está hirta como um cadáver. Os soluços fazem a cama estremecer. Parece estar a ter um ataque, um colapso. Claire está algures para lá da mágoa, muito longe, fora do seu alcance.
— Pronto — diz ele. — Pronto.
Como não consegue puxar as roupas da cama de debaixo dela, pega no sobretudo, coloca-lho por cima e, depois, deita-se ao lado dela, a tremer, naquela noite de Janeiro, afagando-lhe o cabelo.
Assim ficam durante meia hora até que, finalmente, quando fica mais calma, Claire se levanta da cama e começa a vestir-se. Tom não consegue encará-la e sabe que o melhor é ficar calado. Pode ouvi-la a andar pelo quarto a apanhar a roupa espalhada. Depois, a porta fecha-se suavemente. As escadas rangem. Mais um minuto e ouve o ruído da bicicleta dela a passar por debaixo da janela.
E então tem início o seu próprio pesadelo.
Primeiro vem a culpa, a mais corrosiva das emoções, ainda mais torturante do que o ciúme (embora o ciúme surja como catalisador uns dias mais tarde, quando a vê por acaso em Bletchley na companhia de um homem que ele não reconhece: o homem podia ser qualquer pessoa — um primo, um amigo, um colega — mas é óbvio que a sua imaginação não aceita esta hipótese). Porque respondeu ele de forma tão dramática a uma provocação tão insignificante? É claro que o cheque poderia ter sido uma recompensa por qualquer coisa. Não tinha de lhe dizer a verdade. Agora, que ela se foi embora, ocorrem-lhe mil explicações para a existência do dinheiro. E o que terá ele feito para a deixar tão horrorizada? Que recordações horríveis terá reacendido?
Resmunga qualquer coisa e tapa a cabeça com os lençóis.
Na manhã seguinte, leva o cheque ao banco e troca-o por vinte notas das grandes, de cinco libras, ainda estaladiças. Depois, procura a lúgubre joalharia de Blectchley Roadepede um anel, um anel qualquer, desde que valha cem libras, e o joalheiro -— um fuinha com óculos de lentes grossas que nem quer acreditar no que lhe está a acontecer — mostra-lhe um solitário no valor de metade daquela quantia. Jericho compra-o.
Vai compensá-la. Vai pedir-lhe desculpa. Tudo correrá bem.
Mas a sorte não o acompanha. Tornou-se vítima do seu próprio sucesso.
Um criptograma do Tubarão revela depois de decifrado que um submarino — o S-459, sob as ordens de Korvettenkapitán von Williamotuitz-Mollendorf, com 700 toneladas de combustível a bordo — vai reabastecer o submarino italiano Kalvi a 300 milhas a este de St. Pauis Rock, no meio do Atlântico. E um palerma qualquer do almirantado, esquecendo-se de que, por maior que seja a tentação, nunca se deve tomar qualquer decisão que ponha em perigo o segredo do Enigma, deu ordens para a intervenção de um esquadrão de torpedeiros. O ataque toma lugar e falha. O S-459 escapa. E Dónitz, aquela raposa matreira na sua toca de Paris, desconfia imediatamente. Na terceira semana de Janeiro, o Anexo 8 decifra uma série de sinais que ordenavam à frota de submarinos que melhorassem a sua segurança de criptogramas/cifras. O trânsito de mensagens do Tubarão diminui. Quase não existe material para fazer uma lista para as descodificadoras. Em Bletchley, todas as licenças são canceladas. Os turnos de oito horas passam a ser de doze e de dezasseis horas... A batalha diária para decifrar os códigos é um pesadelo quase tão grande como as profundezas do Tubarão e todos sentem nas costas o chicote de Skynner.
No espaço de uma semana, o mundo de Jericho passou de um raio de sol permanente para um Inverno gelado. As suas mensagens de súplica e remorso para Claire, sem resposta, desaparecem num vácuo. Não consegue sair do anexo para a ir visitar. Não consegue trabalhar. Não consegue dormir. E não tem ninguém com quem falar. Com Logie, perdido e difuso por detrás da sua barreira de fumo de tabaco? Com Baxter, que consideraria uma relação com uma mulher como Claire Romilly uma traição ao proletariado mundial? Com Atwood — Atwood! — cujas aventuras sexuais, até ao momento, se resumiam a convidar os estudantes mais bonitões para uma partida de golfe em Brancaster, aos fins-de-semana, onde eles depressa descobrem que todas as fechaduras foram retiradas das portas das casas-de-banho? Puck teria sido uma possibilidade, mas Jericho até já adivinhava o seu conselho — «Sai com outra, meu caro Thomas, e dá-lhe uma foda das valentes.» — Como poderia ele admitira verdade: que Jericho não queria «foder» com mais ninguém, nunca tinha «fodido» com mais ninguém?
No último dia de Janeiro, enquanto compra uma cópia do The Times no quiosque Brinklow em Victoria Road, vê-a, de longe, com o outro homem, e enfia-se no vão de uma porta para que ela não o veja.
Depois disso, nunca mais a vê: Bletchley Park torna-se grande demais, existem muitas mudanças de turnos. Finalmente, limita-se a esperar no carreiro em frente ao chalé dela, como um mirone. Mas parece que ela deixa de ir a casa.
E, depois, quase esbarram um com o outro.
É dia 8 de Fevereiro, uma segunda-feira, são quatro horas. Ele dirige-se, exausto, da cantina para o anexo; ela faz parte de uma torrente de trabalhadores que se escoa em direcção ao portão depois do turno da tarde. Ensaiara tantas vezes este momento, mas tudo o que lhe sai é um lamento do género: «Porque não respondeste às minhas cartas?»
— Olá, Tom.
Ela tenta prosseguir, mas ele não a deixará fugir desta vez. Tem um monte de mensagens do Tubarão em cima da secretária, mas isso é o menos. Agarra-a pelo braço.
— Tenho de falar contigo.
Os seus corpos bloqueiam a passagem. A torrente humana tem de os contornar, como um rio contorna um rochedo.
— Abram alas — diz alguém.
— Tom — diz ela siciando —por amor de Deus, estás afazer uma cena.
— Óptimo. Vamos sair daqui.
Ele tenta puxá-la pelo braço. Ela oferece resistência, mas, relutante, acaba por ceder. A multidão empurra-os para fora do portão e pela estrada fora. O único pensamento de Jericho é afastar-se um pouco de Bletchley Park. Não sabe dizer por quanto tempo caminham — quinze minutos, pode ser, ou talvez vinte — até que, finalmente, a rua fica deserta e se encontram no centro da povoação. Está uma tarde agreste, clara. De ambos os lados, escondem-se casas de campo suburbanas, geminadas, por detrás de sebes de alfena cobertas de pó e lama, com os seus jardins dos tempos de guerra, cheios de galinhas à solta e abrigos anti-bombardeamento de chapa de ferro ondulada. Ela sacode o braço para se libertar.
— Isto não é necessário.
— Andas com outra pessoa? — Ele mal tem coragem para fazer a pergunta.
— Ando sempre com outra pessoa.
Jericho pára, mas ela prossegue. Deixa-a afastar-se uns cinquenta
metros e depois apressa-se a alcançá-la. Neste momento, as casas começam a escassear e encontram-se numa espécie de terra de ninguém entre o campo e a cidade, na fronteira ocidental de Bletchley, onde as pessoas vão despejar o lixo. Um bando de gaivotas grita e paira no ar, qual turbilhão de papéis apanhados pelo vento. A estrada degenera num caminho que leva, a par do caminho-de-ferro, a uma fila de fornos de tijolo vitorianos abandonados. Três chaminés de tijolo vermelho, erguem-se quinze metros em direcção ao céu, tal como num crematório. Uma tabuleta avisa: PERIGO: JAZIDA DE BARRO INUNDADA — GRANDE PROFUNDIDADE.
Clairepuxa o casaco para os ombros e estremece — Que lugar nojento! — mas continua a caminhar.
Durante dez minutos, a fábrica de tijolos em ruínas proporciona uma distracção bem-vinda. De facto, vagueiam pelos fornos e salas de trabalho num silêncio quase amigável. Casais de namorados haviam rabiscado as suas fórmulas nas paredes que caíam aos bocados: AE+GS, Tony = Kath, Sal + eu. Há restos de alvenaria e tijolos pelo chão. Alguns dos edifícios não têm tecto, as paredes estão chamuscadas — é óbvio que houve um incêndio — e Jericho pensa se os alemães a terão confundido com uma grande fábrica industrial, daí o terem-na bombardeado. Volta-se para dizer isto mesmo a Claire, mas ela desapareceu.
Encontra-a lá fora, de costas voltadas para ele, a olhar para a jazida de barro inundada. É enorme, com quase cem metros de comprimento. A superfície da água é negra como o carvão e encontra-se absolutamente imóvel, imobilidade essa que sugere profundidades inimagináveis.
— Tenho de regressar— diz ela.
— O que é que queres saber? — diz ele. — Digo-te tudo o que quiseres saber.
E diz mesmo, se ela quiser. Não se importa com a segurança ou com a guerra. Ele dir-lhe-á tudo acerca do Tubarão e do Golfinho e do Toninha. Dir-lhe-á tudo acerca dos boletins meteorológicos da Baía da Biscaia. Contar-lhe-á todos os seus pequenos truques e segredos, e desenhar-lhe-á um diagrama de como a descodificadora funciona, se éisso que ela quer. Mas tudo o que Claire diz é: «Espero mesmo que não sejas muito chato, Tom.»
Chato. Então é isso que ele é? Um chato?
— Espera — grita ele, chamando-a. —Já agora, fica com isto.
Dá-lhe a caixinha com o anel. Ela abre-a, inclina a pedra para que a luz incida sobre ela, volta a fechar a caixinha e devolve-a. — Não é o meu estilo.
— Tadinho — Jericho lembra-se de a ouvir dizer isto um ou dois minutos mais tarde. — Dei-te mesmo a volta à cabeça, não dei? Tadinho...
E, no fim da semana, encontra-se no Rover do director interino, levado por estradas cheias de neve de volta ao Kings College.
Os odores e os ruídos do pequeno-almoço inglês de domingo subiram as escadas de caracol da Pensão Comercial e flutuaram pelo andar como um chamamento às armas: o sibilar dos fritos na cozinha, as notas de uma melodia do serviço da igreja transmitido pela BBC, o som surdo dos chinelos gastos de Mrs. Armstrong a baterem como castanholas pelo chão de linóleo.
Estes pequenos-almoços de domingo eram um ritual em Albion Street, servidos com a solenidade apropriada em pratos de cerâmica completamente brancos: um pedaço de pão, da grossura de um livro de hinos religiosos, embebido em gordura e muito frito, com duas colheradas de ovos mexidos em pó, deslizando toda essa massa livremente num arco-íris de banha.
Não se tratava, Jericho tinha de o reconhecer, de uma grande refeição, nem mesmo de uma refeição particularmente comestível. O pão tinha a cor da ferrugem e o sabor obscuro dos arenques que haviam sido fritos na mesma gordura na sexta-feira anterior. Os ovos eram amarelo descorado e sabiam a biscoitos atrasados. Contudo, era tal o seu apetite após as excitações da noite anterior que, apesar de toda a sua angústia, rapou tudo até ao fim, empurrou a comida com duas canecas de chá acizentado, ensopou a gordura que ficara com um pedaço de pão e, à saída, deu os parabéns a Mrs. Armstrong pela qualidade dos seus cozinhados; um gesto sem precedentes, que a levou a olhar para a porta da cozinha e esquadrinhar as suas feições em busca de algum traço de ironia. Mas não encontrou esse traço.
Tentou igualmente um animado «Bom-dia» com Mr. Bonnyman, que descia as escadas às apalpadelas, agarrado ao corrimão («Para ser franco, não estou lá muito bem, meu rapaz... passa-se alguma coisa com a cerveja daquele bar») e por volta das sete e quarenta e cinco estava de regresso ao quarto.
Se Mrs. Armstrong visse as mudanças que ele fizera lá em cima, ficaria boquiaberta. Em vez de se preparar para o abandonar após a primeira noite, tal como haviam feito tantos dos anteriores ocupantes do quarto, Jericho havia desfeito as malas. Estavam todas vazias. O seu único fato bom estava pendurado no armário. Os livros encontravam-se alinhados por cima da lareira. E por cima destes, pendurou a sua gravura da Capela de King's College.
Sentou-se na borda da cama e olhou para a gravura. Não se tratava de um trabalho de qualidade. Na verdade, era até bastante feio. Os pináculos gémeos haviam sido desenhados à pressa, o céu era de um azul pouco real, as figuras, que mais pareciam manchas, aglomeradas na sua base, poderiam ter sido obra de uma criança. Mas mesmo a má arte pode por vezes ter a sua utilidade. Por detrás do vidro arranhado, por detrás da própria pintura vitoriana de qualidade inferior, na horizontal e cuidadosamente seguras, encontravam-se as quatro mensagens não decifradas que retirara do quarto de Claire.
É claro que as deveria ter enviado para Bletchley Park. Deveria ter-se dirigido directamente do chalé para o anexo, deveria ter procurado Logie ou qualquer outra autoridade e entregado as mensagens.
Nem mesmo agora conseguia descortinar os motivos que o haviam levado a tomar tal atitude, não conseguia distinguir a abnegação (o seu desejo de a proteger) do egoísmo (o desejo de a ter em seu poder, uma só vez que fosse). Sabia apenas que não a podia trair e que conseguia racionalizar tudo isto mentalizando-se de que não havia nenhum mal em esperar até ao dia seguinte, mal nenhum em dar-lhe uma oportunidade de se explicar.
Assim, passara pelo portão principal com a bicicleta, subira até ao seu quarto em bicos-de-pés e escondera os criptogramas por detrás da gravura, cada vez mais ciente de ter ultrapassado a fronteira que separa a insensatez da traição, e que, a cada hora que passava, mais difícil seria encontrar o caminho de regresso.
Pela centésima vez, sentado na cama, reviu todas as possibilidades.
Que ela era completamente doida. Que a estavam a chantagear. Que o seu quarto estava a ser utilizado como esconderijo sem que ela o soubesse. Que ela era uma espia.
Uma espia? A ideia parecia-lhe fantástica — melodramática, bizarra, ilógica. Para começar, porque havia um espião, no seu perfeito juízo, de roubar criptogramas? Sem dúvida, um espião andaria atrás das descodificações: das respostas e não dos enigmas; da desagradável prova de que o Enigma estava a ser descodificado?
Certificou-se de que a porta estava fechada, depois retirou cuidadosamente a imagem e desmontou a moldura, retirando as tachas com os dedos e erguendo a parte traseira, rígida, do quadro. Agora que pensava no assunto, havia algo de muito estranho nestes criptogramas e, ao olhá-los novamente, descobriu o que era. Deveriam ter as faixas finas de papel de descodificação produzidas pelas máquinas Type-X coladas na parte traseira. Mas não só não existia qualquer faixa como também não existia qualquer vestígio de elas lá terem estado. Assim, ao que parecia, estas mensagens nunca haviam sido descodificadas. Os seus segredos estavam intactos. Estavam virgens.
Nenhuma delas fazia sentido.
Apertou uma das mensagens entre o indicador e o polegar. O papel amarelado tinha um odor ténue, mas perceptível. O que seria? Aproximou-o do nariz e cheirou. O cheiro característico de uma biblioteca ou de um arquivo, talvez? Que rico cheiro — quente, quase enfumarado — tão evocativo como perfume.
Apercebeu-se de que, apesar do medo que sentia, começava a apreciar os criptogramas da mesma forma que qualquer outro homem apreciaria a fotografia de uma mulher. Só que os criptogramas eram melhores do que qualquer fotografia, não eram? Pois as fotografias eram apenas uma imagem, enquanto os criptogramas eram a prova de quem ela era, e assim, não estaria ele, ao possuí-los, de certa forma, a possuí-la também a ela...?
Dar-lhe-ia uma única oportunidade. Nada mais.
Olhou para o relógio. Tinham passado vinte minutos desde o pequeno-almoço. Estava na hora. Escondeu os criptogramas por detrás da gravura, voltou a montar a moldura e a colocá-la sobre a lareira, entreabrindo seguidamente a porta. Os hóspedes habituais de Mrs. Armstrong haviam regressado todos do turno da noite. Conseguia escutar as suas vozes murmuradas na sala-de-jantar. Vestiu o sobretudo e saiu para o corredor. Fez tal esforço para parecer natural que Mrs. Armstrong, mais tarde, seria capaz de jurar que o ouvira falar sozinho enquanto descia as escadas:
«No clarão breve do cigarro vejo-te a sorrir, pois logo se apaga essa imagem que é só tua. Mas vi-te, amor, e mais não posso pedir Eles não podem apagar a lua...»
De Albion Street a Bletchley Park era uma caminhada de pouco mais de meio quilómetro — virar à esquerda à saída e meter pela estrada de casas em correnteza, virar novamente à esquerda e passar por baixo da ponte enegrecida do comboio e tudo para a direita ao longo dos lotes de terreno.
Caminhava depressa sobre o chão gelado com a respiração quente a sair-lhe da boca em nuvens de vapor sob um sol gélido. Oficialmente, era quase Primavera, mas alguém se esquecera de avisar o Inverno. Fragmentos de neve ainda não derretidos da noite anterior estalavam-lhe sob as solas dos sapatos. As gralhas gritavam do alto de esqueléticos ulmeiros.
Passava já das oito horas quando entrou em Wilton Avenue e se aproximou do portão principal. A troca de turnos terminara; a estrada suburbana encontrava-se quase deserta. A sentinela — um enorme jovem cabo de face húmida devido ao frio — saiu do posto, bateu os pés e mal olhou para o seu passe antes de lhe fazer sinal para passar.
Passou pela mansão, olhando para o chão, para evitar ter de falar com alguém, passou pelo lago (que se encontrava orlado de gelo) e entrou no Anexo 8 onde o silêncio reinante na Sala de Descodificações lhe dizia tudo o que precisava de saber. As máquinas Type-X tinham estado a verificar as mensagens atrasadas do Tubarão e não tinham agora mais nada para fazer até surgirem o Golfinho ou o Toninha, o que aconteceria certamente por volta do meio da manhã. Vislumbrou de relance a silhueta alongada de Logie e escondeu-se bruscamente na Sala dos Arquivos. Para surpresa sua, Puck estava lá, sentado a um canto, sob os olhares persistentes de duas Wrens perdidamente apaixonadas. Tinha o rosto macilento e sulcado de rugas e a cabeça encostada à parede. Jericho pensou que estivesse a dormir, mas ele abriu os olhos azuis penetrantes.
— O Logie anda à tua procura.
— A sério? — Jericho despiu o casaco e o cachecol e pendurou-os por detrás da porta. — Ele sabe onde me pode encontrar.
— Corre por aí o boato de que arrumaste o Skynner. Por amor de Deus, diz-me que é verdade.
Uma das Wrens deu uma risadinha.
Jericho tinha-se esquecido completamente de Skynner. Passou a mão pelo cabelo. — Fazes-me um favor, Puck? — disse. — Não digas a ninguém que me viste.
Puck olhou-o atentamente durante um momento, depois fechou os olhos. — Que homem mais misterioso me saíste — murmurou, sonolento.
De novo no corredor, Jericho foi direito a Logie.
— Ah, até que enfim que te encontro, meu lindo. Receio que tenhamos de ter uma conversa.
— Está bem, Guy. Está bem. — Jericho deu uma palmadinha no ombro de Logie e passou por ele. — Dá-me só dez minutos.
— Não, não te dou dez minutos — gritou Logie — Tem de ser agora!
Jericho fez de conta que não ouviu. Saiu para o ar fresco, dobrou rapidamente a esquina e passou pelo Anexo 6 em direcção à entrada do Anexo 3. Só abrandou quando se encontrava a vinte passos e depois parou.
A verdade é que sabia muito pouco acerca do Anexo 3, apenas que se tratava do local onde eram processadas as mensagens descodificadas do Exército alemão e da Lufiwaffe. Era duas vezes maior do que os outros anexos e tinha a forma de um L. Havia sido construído na mesma altura dos outros edifícios contemporâneos, no Inverno de 1939 — Um esqueleto de madeira erguendo-se do barro gelado de Buckinghamshire, coberto por um revestimento de amianto e uma estrutura de madeira insignificante — e para o aquecerem, lembrou-se ele, tinham desmontado um enorme forno de uma das estufas vitorianas.
Claire costumava queixar-se de estar sempre com frio. Com frio e que o seu trabalho era uma «chatice». Mas onde ela trabalhava exactamente, neste labirinto de salas, era para ele um mistério.
Uma porta bateu com força algures atrás de Jericho e ele olhou de relance por cima do ombro e viu Logie a surgir da esquina do anexo da Marinha. Bolas. Bolas. Baixou-se e fingiu estar a mexer nos cordões do sapato, mas Logie não o tinha visto. Encaminhava-se com determinação para a mansão. Assim que perdeu Logie de vista, Jericho percorreu rapidamente o caminho que lhe faltava e entrou no anexo.
Fez os possíveis para parecer que tinha o direito de ali estar. Pegou numa caneta e meteu pelo corredor central, arremetendo entre aviadores e oficiais do Exército, olhando com autoridade para as salas de ambos os lados em grande azáfama. Havia ainda mais pessoas do que no Anexo 8. A algazarra das máquinas de escrever e dos telefones era amplificada pelas paredes de madeira o que gerava um verdadeiro chinfrim.
Ainda não tinha percorrido meio corredor, quando um coronel de farta bigodeira saiu intempestivamente de uma porta e lhe bloqueou a passagem. Jericho acenou-lhe e tentou prosseguir, mas o coronel interpôs-se com destreza.
— Espere aí, estranho. Quem é você?
Instintivamente, Jericho esticou a mão. — Tom Jericho — respondeu. — E o senhor, quem é?
— Não interessa quem raio sou eu — o coronel tinha as orelhas como as pegas dos cântaros e o cabelo negro e espesso com um risco ao meio que mais parecia uma vala aberta numa floresta para evitar que os fogos se propagassem. Ignorou a mão estendida. — A que secção pertence?
— Naval. Anexo 8.
— Anexo 8. O que pretende daqui?
— Procuro o Dr. Weitzman.
Uma mentira inteligente. Conhecia Weitzman do Clube de Xadrez: tratava-se de um judeu alemão naturalizado inglês que jogava sempre um Gambito da Rainha.
— Ai procura? Vejam só! — disse o coronel — Vocês da Marinha nunca ouviram falar de uma coisa chamada telefone? — Passou a mão pelo bigode e olhou Jericho de cima a baixo — Bom, é melhor vir comigo.
Jericho seguiu as costas espadaúdas do coronel pelo corredor fora e entrou numa grande sala. Dois grupos de cerca de doze homens estavam sentados em mesas dispostas num par de semicírculos, remexendo em cestos de arame atafulhados com pilhas de mensagens. Walter Weitzman estava empoleirado num banquinho numa cabina de vidro por detrás deles.
— Ouve lá, Weitzman, conheces este tipo?
A cabeçorra de Weitzman estava inclinada sobre uma pilha de manuais de armas alemãs. Ergueu os olhos, vago e distraído, mas, quando reconheceu Jericho, o seu semblante melancólico esboçou um sorriso. — Olá, Tom. Sim, é claro que conheço.
— «Kriegsnachrichten Ftir Seefahrer» — disse Jericho, um pouco depressa demais. — Disse que já devia ter alguma coisa por esta altura.
Por um momento, Weitzman não reagiu e Jericho julgou que estava perdido, mas depois o velhote disse vagarosamente: — Sim, julgo que tenho a informação que você procura. — Desceu cautelosamente do banquinho. — Precisa de alguma coisa, coronel?
O coronel espetou o queixo. — Por acaso até preciso, Weitzman, já que fala nisso. «Comunicações Inter-anexos, se não autorizadas de outra forma, devem ser efectuadas por telefone ou por memorando.» Trata-se de um procedimento obrigatório. — Olhou para Weitzman e este devolveu-lhe o olhar com uma cortesia admirável. A hostilidade pareceu abandonar o coronel. — Muito bem — murmurou. — Bem, não se esqueçam disso no futuro.
— Parvalhão — sibilou Weitzman enquanto o coronel se afastava. — Bem, bem. É melhor vir comigo.
Conduziu Jericho até uma prateleira de ficheiros e escolheu uma gaveta, abriu-a e começou a procurar. Sempre que os tradutores se deparavam com um termo que não compreendiam, consultavam Weitzman e o seu famoso ficheiro. Havia sido filologista em Heidelberg até os nazis o obrigarem a emigrar. O Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico, num raro momento de inspiração, enviara-o para Bletchley em 1940. Poucas eram as frases que não conseguia decifrar.
— «Kriegsnachrichten Ficr Seefahrer.» «Notícias de guerra para Fuzileiros Navais». Catalogado e interceptado pela primeira vez no dia 9 de Novembro do ano transacto. Como, aliás, você já o sabia perfeitamente. — Colocou o cartão a um palmo do nariz de Jericho e estudou a sua reacção através dos óculos grossos. — Diga-me uma coisa, o coronel continua a olhar para nós?
— Não sei. Acho que sim. — O coronel tinha-se baixado para ler qualquer coisa que um dos tradutores escrevera, mas não parava de deitar os olhos a Jericho e a Weitzman. — Ele é sempre assim?
— O nosso Coronel Coker? É, mas hoje está pior, não sei porquê. Weitzman falava calmamente, sem olhar para Jericho. Abriu outra
gaveta e retirou outro cartão, fingindo estar absorvido. — Sugiro que continuemos aqui até ele sair da sala. Está aqui um termo de submarino que interceptámos em Janeiro: «Fluchttiefe.»
— «Profundidade de evasão» — respondeu Jericho. Poderia jogar este jogo durante horas. Vorhalt-Rechner era um cumputador de deflexão de ângulos. Uma junta soldada a frio era uma kalte Lõtstelle. Fendas nas paredes falsas de um submarino eram Stirnwandrisse...
— «Profundidade de evasão» — concordou Weitzmam. — Muito bem.
Jericho arriscou outra olhadela ao coronel. — Está a sair a porta... agora. Está tudo bem. Já saiu.
Weitzman fitou o cartão por um momento, colocou-o depois entre os outros e fechou a gaveta. — Ora diga lá. Porque é que me está a fazer perguntas para as quais já sabe as respostas? — Tinha o cabelo branco e os pequenos olhos castanhos escondidos sob uma testa saliente. As rugas à volta dos olhos sugeriam uma cara que em tempos se encarquilhara devido às gargalhadas. Mas Weitzman já não se ria muito. Constava que deixara grande parte da família na Alemanha.
— Procuro uma mulher chamada Claire Romilly. Conhece-a?
— Claro que sim. A bela Claire. Todos a conhecem.
— Onde é que ela trabalha?
— Trabalha aqui.
— Eu sei que é aqui. Mas aqui, onde?
— «Comunicações Inter-anexos, se não autorizadas de outra forma, devem ser efectuadas por telefone ou por memorando. Trata-se de um procedimento obrigatório.» — Weitzman bateu com os calcanhares — Heil Hitler!
— Que se lixe o procedimento obrigatório.
Um dos tradutores voltou-se, irritado: — Vocês os dois, aí. Estejam caladinhos, está bem?
— Desculpe — Weitzman pegou em Jericho pelo braço e levou-o consigo. — Sabe, Tom — segredou-lhe — em três anos, esta é a primeira vez que o ouço praguejar.
— Walter. Por favor. É importante.
— E não pode esperar até ao turno terminar? — Olhou cuidadosamente para Jericho. — É claro que não. Bem, mais uma vez. Para que lado foi o Coker?
— Foi outra vez para a entrada.
— Óptimo. Venha comigo.
Weitzman passou pelos tradutores e conduziu Jericho quase até ao outro lado do anexo, passando por duas salas estreitas e compridas, onde inúmeras mulheres trabalhavam à volta de um par de gigantescas fichas bibliográficas, dobrando uma esquina e atravessando uma sala com várias teleimpressoras alinhadas. O ruído contínuo era ensurdecedor. Weitzman levou as mãos aos ouvidos, olhou por cima do ombro e sorriu com malícia. O barulho acompanhou-os até uma passagem estreita, ao fundo da qual se encontrava uma porta fechada. Ao lado, existia uma tabuleta escrita com letra feminina muito bem desenhada: SALA DOS CADERNOS Alemães.
Weitzman bateu à porta, abriu-a e entrou. Jericho seguiu-o. Os seus olhos abarcaram uma sala imensa. Meia-dúzia de cavaletes estavam reunidos de forma a criar uma enorme área de trabalho. Mulheres, quase todas de costas voltadas para ele. Seis, talvez, ou sete? Duas escreviam à máquina com enorme rapidez, as outras andavam de cá para lá amontoando papéis.
Antes de conseguir observar mais alguma coisa, uma mulher roliça, de aspecto cansado, com um casaco de malha por cima de uma saia, veio ao encontro deles. Agora, Weitzman estava todo sorridente, encantador mesmo, como se estivesse ainda no Heidelbergs Europãischer Hof. Pegou-lhe na mão e curvou-se para a beijar.
— Gutten Morgen, mein libes Frãulein Monk. Wie gehts?
— Gut, danke, Herr Doktor. Unddir?
— Danke, sehrgut.
Sem dúvida que se tratava de uma conversa rotineira entre eles. A sua face lustrosa ficou rosada de prazer. — O que posso fazer por ti?
— Eu e o meu colega, querida Miss Monk — Weitzman deu-lhe uma palmadinha na mão, depois soltou-a e fez um gesto em direcção a Jericho — procuramos a adorável Miss Romilly.
Quando ouviu o nome de Claire, o sorriso namoradeiro de Miss Monk desvanesceu-se. — Nesse caso, têm de ir para a bicha, Dr. Weitzman. Para a bicha.
— Perdão. Para a bicha...?
— Andamos todos à procura da Claire Romilly. Talvez tu ou o teu colega tenham alguma ideia de onde possamos começar a procurar?
Afirmar que o mundo pára é um solipsismo, e Jericho apercebeu-se disso mesmo quando o mundo pareceu parar; apercebeu-se de que nunca é o mundo que pára, mas sim o indivíduo que, confrontado com um perigo inesperado, recebe uma carga de adrenalina e fica acelerado. Porém, para ele, por um instante, tudo parou. A expressão de Weitzman transformou-se numa máscara de perplexidade, a expressão da mulher numa máscara de indignação. Enquanto o seu cérebro tentava racionalizar as implicações, conseguia escutar a sua própria voz, muito ao longe, a balbuciar.
— Mas eu pensava... disseram-me... asseguraram-me... ontem... que ela deveria estar de serviço às oito da manhã...
— Exactamente — disse Miss Monk — Nem parece dela. E é muito inconveniente.
Weitzman olhou para Jericho de forma esquisita, como se a dizer, «Onde é que você me foi meter?».
— Talvez esteja doente? — sugeriu Jericho.
— Nesse caso devia ter mandado recado. Uma mensagem. Antes de eu ter deixado sair todo o turno da noite. Mal conseguimos dar conta do recado quando somos oito. Agora, reduzidas a sete...
Miss Monk começou a tagarelar com Weitzman acerca de «3A» e «3M» e de todos os memorandos que tinha escrito e de como ninguém dava valor às suas dificuldades. Como se para provar que tinha razão, nesse mesmo instante a porta abriu-se e entrou uma mulher carregada com uma pilha de ficheiros tão alta que tinha de esticar o queixo por cima dos cartões para os segurar. Deixou-os cair em cima da mesa e as meninas de Miss Monk suspiraram em uníssono. Duas das mensagens esvoaçaram pela mesa fora e caíram ao chão, e Jericho, ávido de acção, baixou-se para as apanhar. Conseguiu dar uma olhadela rápida a uma delas —
ZZZ
Localizado quartel-general do Afrika Korps Alemão esta manhã a treze £ treze quilómetros
E QUINZE PARA OESTE E BEN GãRDANE £ BEN GARDANE
— antes de Miss Monk lha ter arrancado das mãos. Pela primeira vez, ela pareceu aperceber-se da sua presença. Apertou as mensagens contra o peito roliço e olhou-o fixamente.
— Desculpe, quem é você?... Quem é você exactamente? — perguntou. Chegou-se um pouco para o lado para impedir que ele conseguisse ver a mesa. — É o quê? Amigo da Claire, presumo?
— Não há problema, Daphne — disse Weitzman — ele é meu amigo.
Miss Monk voltou a ruborescer. — Peço desculpa, Walter — disse ela. — É claro, eu não quis dizer que...
Jericho interrompeu-os — Posso perguntar-lhe se é a primeira vez que ela faz isto? Não aparecer ao trabalho, quero dizer, sem avisar?
— Oh, não. Nunca. Eu não tolero negligências por parte de ninguém na minha secção. O Dr. Weitzman não me deixa mentir.
— De facto — concordou Weitzman, muito sério. — Aqui ninguém é negligente.
Miss Monk era do género de pessoas que Jericho ficara a conhecer bem nos últimos três anos: moderadamente histéricas em momentos de crise; ciosas do seu precioso posto e das cinco libras extra por ano; convencidas de que a guerra estaria perdida se lhes recusassem uma grosa de canetas ou mais uma dactilógrafa. Devia detestar a Claire, pensou ele: devia detestá-la pela sua beleza, a sua autoconfiança e o facto de se recusar a levar a sério fosse o que fosse.
— Ela não se tem comportado de forma estranha?
— Temos aqui um trabalho importante a executar. Não temos tempo para estranhezas.
— Quando foi a última vez que a viu?
— Foi sexta-feira — não restavam dúvidas de que Miss Monk se orgulhava da sua memória. — Apresentou-se ao trabalho às quatro e saiu à meia-noite. Ontem foi o seu dia de folga.
— Então não deve ser provável que ela tenha vindo cá, digamos, sábado de manhã muito cedo?
— Não. Eu estava cá. Além disso, porque havia ela de o fazer? Geralmente estava sempre ansiosa por sair daqui.
Pois devia estar. Voltou a dar uma olhadela às raparigas que se encontravam por detrás de Miss Monk. Que raio estavam todas elas a fazer? Tinham todas à sua frente um monte de clips, um frasco de cola, uma pilha de pastas e um emaranhado de borrachas. Parecia — seria possível? — que estavam a formar novos ficheiros a partir dos velhos. Tentou imaginar Claire aqui, nesta sala insípida, entre estas raparigas sem graça. Era como imaginar um maravilhoso periquito numa gaiola de pardais. Não sabia o que havia de fazer. Tirou o relógio do bolso e abriu a tampa. Oito e trinta e cinco. Claire já estava atrasada mais de hora e meia.
— Que medidas é que você vai tomar?
— Como é óbvio, devido à quantidade de trabalho, existe um procedimento que temos de seguir. Já avisei os Serviços Sociais. Vão mandar alguém arrancá-la da cama.
— E se ela não estiver lá?
— Nesse caso, entrarão em contacto com a família para ver se sabem onde ela está.
— E se não souberem?
— Bom, nesse caso, a coisa é séria. Mas isso nunca acontece... — Miss Monk aconchegou o casaco ao seu peito de rola e cruzou os braços. — Estou certa de que há um homem por detrás desta situação. — Teve um estremecimento. — Geralmente há.
Weitzman continuava a deitar olhares implorantes a Jericho. Tocou-lhe no braço. — Temos de ir, Tom.
— Tem a morada da família? Ou um número de telefone?
— Sim, julgo que sim. Mas não tenho a certeza se devo...
— voltou-se para Weitzman que, por momentos hesitou, disparou outro olhar para Jericho, forçando seguidamente um sorriso e um aceno afirmativo da cabeça.
— Eu posso responsabilizar-me.
— Bem — disse Miss Monk, em dúvida — se acha que é permitido... — Dirigiu-se a um ficheiro que se encontrava ao lado da sua secretária e abriu-o.
— O Coker ainda me mata por causa disto — segredou Weitzman enquanto ela se encontrava de costas voltadas.
— Ele não vai descobrir. Prometo.
— O que é estranho — disse Miss Monk, como se a falar consigo mesma — é que ela ultimamente tornou-se muito mais atenta. Seja como for, aqui está a ficha dela.
Familiar mais próximo: Edward Romilly.
Parentesco: Pai.
Morada: 27Stanhope Gardens, London SW.
Jericho olhou o cartão por momentos e pegou nele.
— Acho que não há necessidade de o incomodar, pois não? — perguntou Miss Monk. — Pelo menos para já. Estou certa de que a Claire deve estar quase a chegar com alguma história idiota de como não conseguiu acordar.
— Estou certo que sim — concordou Jericho.
— Nesse caso — acrescentou ela, de forma inteligente — quem devo dizer que veio à sua procura?
— Auf Wiedersehen, Fraulein Monk. — Weitzman já estava farto. Encontrava-se já quase fora da sala a puxar Jericho com uma força surpreendente. Jericho vislumbrou por uma última vez Miss Monk, confundida e desconfiada, antes da porta se fechar.
— Auf Wiedersehen, HerrDoktor, undHerr...
Weitzman não conduziu Jericho pelo mesmo caminho por onde tinham vindo. Em vez disso, apressou-se a fazê-lo sair pelas traseiras. Agora, à luz deste dia frio, Jericho conseguia ver por que razão tinha achado tão difícil andar por ali na outra noite. Encontravam-se junto ao terreno de uma construção. Haviam aberto valas de quatro pés de profundidade na relva. Pirâmides de areia e cascalho estavam cobertas por uma camada branca de gelo. Tinha sido um milagre não ter partido o pescoço.
Weitzman tirou um cigarro de dentro de um maço amarrotado de Passing Clouds e acendeu-o. Encostou-se à parede e exalou um suspiro de vapor e fumo.
— Acho que não será necessário perguntar que raio é que se está a passar?
— Você não quer saber, Walter. Acredite.
— Problemas do coração?
— Mais ou menos.
Weitzman murmurou umas palavras em hebraico que talvez fossem uns palavrões e continuou a fumar.
Uns trinta metros mais à frente, um grupo de trabalhadores amontoava-se à volta de uma fogueira, no fim de um intervalo. Dispersaram relutantemente, arrastando picaretas e pás pelo chão duro e Jericho teve uma lembrança repentina de quando era criança, de mãos dadas com a mãe, a passear pela praia, com a pá a tinir atrás dele na estrada de cimento. Algures por detrás das árvores, um gerador começou a funcionar fazendo dispersar um bando de gralhas em direcção ao céu.
— Walter, para que serve a Sala dos Cadernos Alemães?
— É melhor eu regressar — disse Weitzman. Deu uma lambidela nas pontas do polegar e do indicador e deitou fora a ponta incandescente do cigarro, guardando a parte não fumada no bolso do peito. O tabaco era precioso de mais para se desperdiçar nem que fosse só um pedacinho.
— Walter, por favor...
— Ah! — Weitzman fez um gesto brusco de repugnância com o braço, como se a empurrar Jericho, e começou a caminhar, vacilante, mas incrivelmente rápido para alguém da sua idade, pelo lado do anexo em direcção ao caminho. Jericho teve de se esforçar para o acompanhar.
— Sabia que faz perguntas de mais?
— Sabia.
— Quero dizer...
— Quero dizer... meu Deus... o Coker já desconfia que eu sou um espião nazi. Acredita? Posso ser judeu, mas para ele os alemães são todos iguais. O que é precisamente o nosso argumento. Acho que eu deveria sentir-me lisonjeado.
— Eu não queria... mas é que... não há mais ninguém...
Duas sentinelas com espingardas dobraram a esquina e aproximavam-se deles. Weitzman fechou a boca e mudou repentinamente de direcção para o court de ténis. Jericho seguiu-o. Weitzman abriu o portão e pisaram o asfalto. O court havia sido construído dois anos antes, a pedido pessoal de Churchill, segundo constava. Não era utilizado desde o Outono. Mal se conseguiam vislumbrar as linhas brancas por baixo do gelo. As folhas amontoavam-se junto à vedação de arame entrançado. Weitzman fechou o portão e dirigiu-se para o poste da rede.
— Está tudo mudado desde que começámos, Tom. Já nem conheço a maioria do pessoal do anexo. — Mal-humorado, deu um pontapé nas folhas e Jericho reparou pela primeira vez como os pés dele eram pequenos; pés de dançarino. — Envelheci neste sítio. Ainda me lembro da altura em que pensávamos que éramos génios se conseguíssemos ler cinquenta mensagens por semana. Sabe qual é a média agora?
Jericho abanou a cabeça.
— Três mil por dia.
— Santo Deus! — São cento e vinte e cinco por hora, pensou Jericho, uma de trinta em trinta segundos...
— Então ela está metida em sarilhos, a tua rapariga?
— Acho que sim. Quero dizer... está... está metida em sarilhos.
— Lamento. Gosto dela. Ri-se das minhas piadas. As mulheres que se riem das minhas piadas devem ser estimadas. Especialmente se são jovens. E bonitas.
— Walter...
Weitzman voltou-se para o Anexo 3. Escolhera bem o local, com aquele instinto de um homem que a certa altura fora forçado, por necessidade de sobrevivência, a aprender a encontrar privacidade. Ninguém poderia aproximar-se deles por trás sem entrar no court de ténis. E se alguém os estivesse a observar de longe, bem, o que havia para observar além de dois colegas a terem uma conversa em particular?
— Está organizada como uma linha de montagem de uma fábrica
— enrolou os dedos na rede de arame. Tinha as mãos brancas devido ao frio. Apertaram o aço como garras. — As mensagens chegam do Anexo 6 através de um tapete rolante. Primeiro vão para a Supervisão para serem traduzidas... você sabe... é o meu posto. Dois Supervisores por turno, um para material urgente, outro para os quebra-cabeças. As mensagens da Lufiwajfe, depois de traduzidas, passam para a 3A, as do Exército a 3M. A significa aéreo, M significa militar. Meu Deus, está cá um destes frios. Não tem frio? Eu estou todo a tremer. — Pegou num lenço enxovalhado e assoou o nariz. — Os oficiais de serviço decidem o que é mais importante e dão-lhe uma prioridade-Z. Um só Z significa importância reduzida — o Hauptmann Fischer vai ser transferido para a Frota Aérea Alemã em Itália. Um boletim meteorológico seria um três-Z. Cinco-Z é um achado: onde o Rommel vai estar amanhã de tarde, um ataque aéreo iminente. As informações são resumidas e depois efectuam-se três cópias, uma para o SIS na Broadway, uma para o ministério respectivo em Whitehall e outra para o comandante da área respectiva.
— E a Sala dos Cadernos Alemães?
— Todos os nomes próprios são incluídos num índice: todos os oficiais, todos os equipamentos, todas as bases. Por exemplo, à primeira vista, a transferência de Hauptmann Fischer pode parecer irrelevante como informação. Mas depois consulta-se um índice Aéreo e verifica-se que o seu último posto foi numa estação de radar em França. E agora vai para Bari. Logo, os Alemães vão instalar um radar em Bari. Pois que instalem. E, quando estiver quase pronto, é só bombardeá-lo.
— E os Cadernos Alemães, é disso que tratam?
— Não, não — Weitzman abanou a cabeça negativamente, como se Jericho fosse um dos seus alunos do fundo da sala de Heidelberg.
— Os Cadernos Alemães são o fim de todo o processo. Toda esta papelada... a mensagem, a descodificação, a tradução, a prioridade-Z, a lista de referências-cruzadas, todos esses milhares de páginas... tudo isso é reunido no fim para ser metido em ficheiros. Os Cadernos Alemães são uma transcrição exacta de todas as mensagens descodificadas para a sua língua de origem.
— Então é um trabalho importante?
— Em termos intelectuais? Não. Simples trabalho de rotina.
— Mas em termos de acesso? A material confidencial?
— Ah! Aí o caso muda de figura. — Weitzman encolheu os ombros. — É claro que dependeria da pessoa em questão, se ia ou não dar-se ao trabalho de ler o material. A maioria não se dá a esse trabalho.
— Mas... em teoria?
— Em teoria? Num dia normal? Muito provavelmente uma rapariga como a Claire tomaria conhecimento de mais pormenores operacionais acerca das forças armadas alemãs do que o Adolf Hitler.
— Olhou para a face incrédula de Jericho e sorriu. — É absurdo, não é? Que idade tem ela? Dezanove? Vinte?
— Vinte — murmurou Jericho. — Ela sempre me disse que o seu trabalho era uma chatice.
— Vinte! Juro que é a maior anedota da história da guerra. Olha para nós: a principiante com cérebro de lebre, o intelectual imbecil e o judeu cegueta. Se a raça superior conseguisse ver o que lhe estamos a fazer... Às vezes pensar nisso é a única coisa que me faz continuar.
— Levou o relógio até muito perto da cara. — Tenho de regressar. A esta hora o Coker já me lançou um mandato de captura. Julgo que já falei demais.
— De forma alguma.
— Ai falei, falei.
Voltou-se para o portão. Jericho fez um gesto para o acompanhar, mas Weitzman ergueu a mão para o impedir. — Porque não se deixa ficar aí, Tom? Só mais um pouco. Deixe-me desaparecer.
Saiu do court de ténis de forma despercebida. Quando ia a passar pelo outro lado da vedação, lembrou-se de qualquer coisa. Abrandou o passo e acenou a Jericho para que este se aproximasse da rede de arame.
— Oiça — disse em voz baixa — se achar que eu posso ajudá-lo outra vez, se precisar de mais informações, por favor não venha falar comigo. Não quero saber de mais nada.
E, antes que Jericho tivesse tempo de responder, já ele tinha atravessado o caminho e desaparecido por detrás do Anexo 3.
Nas imediações de Bletchley Park, mesmo por detrás da mansão, à sombra de um pinheiro, encontrava-se uma cabina telefónica vermelha, vulgaríssima. Lá dentro, um jovem vestido de couro, à motociclista, estava a acabar de fazer um telefonema. Jericho, encostado à árvore, conseguia ouvir o seu sotaque monótono, surdo, mas audível.
— Tens toda a razão... OK, boneca... Até à vista.
O motociclista pousou o auscultador com estrépito e abriu a porta.
— É todo teu, pá.
A princípio o motociclista não se afastou. Jericho permaneceu na cabina, fazendo de conta que procurava trocos no bolso, e olhou-o pelo vidro. O homem ajustou as perneiras, pôs o capacete, ajustou a tira que o segurava...
Jericho esperou que ele se afastasse para discar o zero.
Uma voz de mulher disse do outro lado: — Telefonista.
— Bom-dia. Gostaria de fazer uma chamada para Kensington dois-dois-cinco-sete, por favor.
Ela repetiu o número. — São quatro dinheiros.
Uma linha terrestre de cem quilómetros ligava todos os números de Bletchley Park à Bolsa de Whitehall. A telefonista pensava que Jericho estava apenas a ligar de um dos burgos de Londres para outro. Introduziu as quatro moedas na ranhura e, após uma série de diques, ouviu um sinal de chamada.
Demorou quinze segundos até que uma voz de homem atendesse:
— Si-im?
Era exactamente a voz que Jericho imaginou que o pai de Claire teria. Lânguida e segura, esticando aquela sílaba curta e formando duas longas. Logo em seguida ouviu-se uma série de bips e Jericho carregou no botão-A. As suas moedas tilintaram na caixa do dinheiro. Para começar, sentia-se em desvantagem: um indigente sem acesso a telefone próprio.
— Mr. Romilly?
— Si-im?
— Peço desculpa por o incomodar, meu caro senhor, principalmente num domingo de manhã, mas é que eu trabalho com a Claire...
Ouviu-se um vago ruído e depois uma pausa, durante a qual Jericho conseguia escutar a respiração de Romilly. Um estalido de estática cruzou a linha. — Está lá?
A voz, quando surgiu de novo, estava tranquila e tinha um som oco como se fosse proferida de uma sala grande e vazia. — Como conseguiu este número?
— Foi a Claire que mo deu. — Foi a primeira mentira de que Jericho se lembrou. — Gostaria de saber se ela por acaso não está aí.
Outra longa pausa. — Não, não está. Porque havia de estar?
— Ela não se apresentou para o turno esta manhã. Ontem foi o seu dia de folga. Pensei que tivesse ido até Londres.
— Quem é que está a falar?
— O meu nome é Tom Jericho — Silêncio. — Ela talvez já lhe tenha falado em mim.
— Não me parece. — Mal se conseguia escutar a voz de Romilly. Aclarou a garganta. —Tenho muita pena, Mr. Jericho. Lamento, mas não posso ajudá-lo. Os movimentos da minha filha são para mim um mistério tão grande como parecem ser para si. Muito bom-dia.
Ouviu-se outro ruído e a ligação caiu.
— Está lá? — disse Jericho. Pareceu-lhe que estava a ouvir alguém a respirar no outro lado da linha. — Está? — Segurou o pesado auscultador durante mais alguns segundos, esforçando-se por ouvir, e depois pousou-o cuidadosamente.
Encostou-se à parede da cabina telefónica e massajou as têmporas. Por detrás do vidro, o mundo permanecia silencioso. Dois civis com chapéus-de-coco e guarda-chuvas enrolados, frescos da chuva londrina, eram escoltados pelo caminho em direcção à mansão. Três patos com a sua penugem de Inverno aterraram no lago, de patas esticadas, cavando sulcos na água cinzenta.
«Os movimentos da minha filha são para mim um mistério tão grande como parecem ser para si.»
Qualquer coisa não batia certo, pois não? Não era esta a reacção que seria de esperar de um pai que ficava a saber que a única filha tinha desaparecido.
Jericho apalpou o bolso e tirou uma mão cheia de trocos. Espalhou as moedas na palma da mão e olhou-as fixamente, com cara de parvo, como um estrangeiro acabado de chegar a um país desconhecido.
Voltou a discar o zero.
— Telefonista.
— Kensington dois-dois-cinco-sete.
Uma vez mais, Jericho inseriu quatro moedas de um penny na ranhura metálica. E uma vez mais ouviu uma série de diques curtos seguidos de uma pausa. Premiu o botão. Desta vez, porém, não ouviu o sinal de chamada, apenas o bip-bip-bip do sinal de interrompido, pulsando no seu ouvido como o bater de um coração.
Nos dez minutos que se seguiram, Jericho fez mais três tentativas de ligação, sempre com o mesmo resultado. Ou Romilly tinha retirado o telefone do descanso, ou estava empenhado numa longa conversa com alguém.
jericho tentaria uma quarta vez, mas apareceu uma empregada da cantina com o casaco por cima do avental e começou a bater com uma moeda no vidro, exigindo a sua vez. Por fim, Jericho deixou-a entrar. Permaneceu na berma da estrada e pensou no que havia de fazer.
Deu uma espreitadela para os anexos. As suas formas atarracadas e cinzentas, outrora tão familiares, pareciam-lhe agora algo ameaçadoras.
Que se lixe. O que tinha ele a perder?
Abotoou o casaco por causa do frio e dirigiu-se para o portão.
A Igreja Paroquial de St. Mary, com oito sólidos séculos de pedra branca e devoção cristã, encontra-se ao fundo de uma avenida de velhos teixos, a menos de cem metros, por detrás de Bletchley Park. Quando Jericho ia a transpor o portão, viu bicicletas, umas quinze ou vinte, alinhadas à entrada, e pouco depois ouviu o som do órgão e a cadência pesarosa de um grupo de fiéis da Igreja Anglicana que entoavam um hino religioso. O cemitério estava mergulhado no mais absoluto silêncio. Sentiu-se como um convidado atrasado ao aproximar-se de uma casa onde a festa vai já extremamente adiantada. «Desabrochamos e florimos como as pétalas duma flor, Definhamos e perecemos, mas tu perduras, Senhor...» Jericho bateu com os pés e esfregou os braços. Pensou em entrar e ficar cá atrás até o serviço terminar, mas a experiência ensinara-lhe que não era possível entrar em silêncio numa igreja. A porta bateria, as pessoas voltar-se-iam, um intrometido membro do conselho eclesiástico acorreria pressuroso pela nave central acima a entregar-lhe uma pagela de orações e um livro de cânticos. Tal atenção era a última coisa que ele queria.
Saiu do caminho e fingiu estudar as lápides. Teias-de-aranha de dimensões e delicadeza incríveis brilhavam qual ectoplasma entre os memoriais: monumentos de mármore para os abastados, ardósia para os lavradores, cruzes de madeira desgastada para os pobres e para as crianças. Ebenezer Slade, de quatro anos e meio de idade, a dormir nos braços de Jesus. Mary Watson, esposa de Albert, levada após prolongada doença, descanse em paz... Em algumas sepulturas, montes de flores mortas, petrificadas pelo gelo, demonstravam uma centelha de interesse entre os vivos. Noutras, o musgo amarelo havia obscurecido as inscrições. Baixou-se e raspou-o, escutando as vozes dos justos por detrás da vidraça pintada.
«A vós, Orvalhos e Geadas, o Senhor vos abençoe: louvai-o e engrandecei-o por todo o sempre.
A vós, Geadas e Frio, o Senhor vos abençoe: louvai-o e engrandecei-o para todo o sempre».
Estranhas imagens percorriam-lhe a mente.
Pensou no funeral do pai, num dia exactamente como este: uma igreja vitoriana, horrenda e gélida na zona industrial dos Midlands, medalhas sobre o caixão, a mãe a chorar, as tias vestidas de preto, toda a gente a estudá-lo com uma curiosidade triste, e ele, a milhares de anos luz, fazendo cálculos mentais com os coeficientes dos cânticos («Deixa o caminho do Mal,/Deixa para trás a noite» — número 392 do livro Antigo e Moderno — foi rapidamente desdobrado na bela sequência 2x7x2x7x2...).
E, por alguma razão, pensou em Alan Turing, excitadíssimo no anexo certa noite, de Inverno, descrevendo como a morte de um amigo muito chegado o tinha ajudado a procurar uma ligação entre a matemática e o espírito, insistindo que eles estavam a criar um novo mundo em Bletchley: que as descodificadoras poderiam ser modificadas em breve, os desajeitados interruptores electro-mecânicos substituídos por interruptores electromagnéticos de válvulas de pêntodos e Thyatrons-GTIC para criarem computadores, máquinas que um dia poderiam imitar o cérebro humano e desvendar os segredos da alma...
Jericho vagueou entre os mortos. Aqui uma pequena cruz de pedra com uma grinalda de flores de pedra entrelaçada, ali um anjo de olhar austero com a cara como a de Miss Monk. Todo este tempo continuava a escutar o serviço religioso. Pensou se estaria alguém do Anexo 8 entre os fiéis e, se estava, quem. Uma vez que tudo o resto fracassara, estaria Skynner a oferecer uma oração a Deus? Tentou imaginar que reservas de sicofanta Skynner inventaria para comunicar com um ser ainda superior ao chefe supremo do Almirantado, e verificou que não conseguia.
«Abençoe-vos Deus Todo-Poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo, para sempre. Amén.»
O serviço terminara. Jericho estugou o passo por entre as lápides afastando-se rapidamente da igreja e parou por detrás de dois grandes arbustos. Daí, conseguia ver com clareza a entrada.
Antes da guerra, os crentes teriam emergido ao som de um repique de júbilo. Mas, agora, os sinos da igreja deveriam ser tocados apenas em caso de invasão, e assim, quando a porta se abriu e o padre mais velho se colocou em posição de se despedir dos paroquianos, o silêncio concedeu à cerimónia um ar reprimido, melancólico até. Um por um, os fiéis saíram para a luz do dia. Jericho não reconheceu nenhum deles. Começou a pensar que tirara uma conclusão errada. Mas depois, estava certo, apareceu uma jovem delgada, de baixa estatura, vestindo um casaco preto e segurando ainda o livro de orações da noite anterior.
Apertou as mãos do vigário fugazmente, abruptamente até, não disse nada, colocou a bolsa de viagem por cima do guiador da bicicleta e dirigiu-se para o portão. Caminhava depressa, com passos curtos e rápidos, empinando o queixo aguçado. Jericho esperou que ela se afastasse um pouco do sítio onde estava; depois saiu do esconderijo e gritou: — Miss Wallace!
Ela parou e olhou para trás, na sua direcção. A sua visão reduzida obrigou-a a franzir as sobrancelhas. A cabeça movia-se vagamente de um lado para o outro. Só quando ele se encontrava a dois metros dela é que deu mostras de o ter reconhecido.
— Olha, éMr...
— Jericho.
— É claro. Mr. Jericho. O estranho daquela noite. — O frio avermelhara-lhe a ponta afiada do nariz e pintara-lhe dois discos rosados, do tamanho de meias-coroas, nas faces brancas. Tinha o cabelo negro comprido e espesso, que usava apanhado para cima, entrançado e preso por um arsenal de alfinetes. — O que achou do sermão?
— Exaltante? — disse ele. Pareceu-lhe mais fácil do que dizer a verdade.
— A sério? Eu achei-o o sermão mais assustadoramente idiota que ouvi no ano inteiro. «Não queira uma mulher ensinar nem usurpar a autoridade do homem, permaneça ela em silêncio...» — Sacudiu a cabeça, furiosa. — Acha que seria uma heresia chamar imbecil a São Paulo?
Retomou a sua rápida marcha em direcção à estrada. Jericho acompanhou-a. Claire dera-lhe algumas informações sobre Hester Wallace. Antes da guerra, havia sido professora num colégio particular para raparigas em Dorset, tocava órgão, era filha de um clérigo e recebia trimestralmente o jornal de informações da Jane Austen Society. Eram indícios que apontavam para o género de mulher que saía directamente do seu turno nocturno de oito horas para a missa de domingo.
— Vem à missa muitas vezes?
— Todos os domingos — respondeu. — Apesar de cada vez mais me perguntar porquê. E o senhor?
Ele hesitou. — De vez em quando.
Era uma mentira e ela percebeu-o de imediato.
— Onde é que se costuma sentar? Não me lembro de o ver.
— Tento ficar sempre cá para trás.
— Também eu. Mesmo cá para trás. — Olhou-o uma segunda vez com os óculos de aros de arame redondos cintilando ao sol de Inverno. — Francamente, Mr. Jericho, um sermão que obviamente não ouviu, um banco que nunca ocupou: quase se pode suspeitar que está a querer fazer-se possuidor de uma religiosidade que não lhe pertence por direito.
— Ah...
— Tenha um bom-dia.
Tinham chegado ao portão. Deu um impulso para cima do selim da bicicleta com uma agilidade surpreendente. Não fora assim que Jericho planeara este encontro. Teve de se esticar e segurar o guiador para impedir que ela se afastasse.
— Eu não estive na igreja. Lamento. Queria falar consigo.
— Tenha a bondade de tirar a mão da minha bicicleta, Mr. Jericho. — Dois paroquianos de idade voltaram-se e olharam-nos. — Imediatamente, se faz favor. — Abanou o guiador para cá e para lá, mas Jericho não o largou.
— Lamento imenso mas isto não demora nada.
Ela olhou-o fixamente. Por um momento, Jericho pensou que ela ia baixar-se, pegar num dos sapatos e bater-lhe nos dedos até que ele a largasse. Mas os seus olhos, além da raiva, transmitiam curiosidade, e a curiosidade ganhou. Suspirou e desmontou.
— Obrigado. Existe ali um abrigo de autocarros. — Acenou para o lado oposto de Church Green Road. — Dê-me apenas cinco minutos. Por favor.
— Isto é absurdo. Absolutamente absurdo.
As rodas da bicicleta faziam um ruído parecido com agulhas de tricotar ao atravessarem a rua em direcção ao abrigo. Ela recusou-se a sentar-se. Ficou de pé com os braços cruzados, a espraiar o olhar encosta abaixo em direcção à povoação.
Ele tentou imaginar alguma forma de tocar no assunto. — A Claire disse-me que trabalha no Anexo 6. Deve ser interessante.
— A Claire não tem nada que lhe dizer onde eu trabalho. Nem ela, nem ninguém. E, não, não é interessante. Parece que tudo o que é interessante é feito por homens. As mulheres fazem o resto.
Ela até podia ser bonita, pensou, se se esforçasse. Tinha uma pele suave e clara como Parian. O nariz e o queixo, apesar de aguçados, eram delicados. Mas não usava qualquer maquilhagem e tinha uma eterna expressão de mau humor e os lábios riscados por uma linha fina, sarcástica. Por detrás dos óculos, os olhos pequenos e brilhantes cintilavam de inteligência.
— A Claire e eu, fomos... —Agitou as mãos com nervosismo e procurou a palavra. Ele não tinha mesmo jeito para este género de coisas. — «Andámos juntos». Acho que é assim que se diz. Até há cerca de um mês. Depois ela não quis mais nada comigo. — A resolução de Jericho foi enfraquecida pela hostilidade de Hester Wallace. Sentiu-se um idiota, a falar para as suas costas estreitas. Mas prosseguiu. — Para ser franco, Miss Wallace, estou preocupado com ela.
— Que estranho.
Encolheu os ombros. — Concordo que éramos um casal fora do vulgar.
— Não. — Voltou-se para ele. — Eu referia-me ao facto de as pessoas se sentirem sempre obrigadas a mascarar a sua preocupação por elas mesmas de preocupação pelos outros.
Os cantos da sua boca descaíram na sua versão pessoal de um sorriso e Jericho apercebeu-se de que começava a antipatizar com Miss Hester Wallace, nem mais nem menos, porque ela estava cheia de razão.
— Não nego um certo egoísmo — reconheceu — mas o que importa é que estou preocupado com ela. Julgo que ela desapareceu.
Miss Wallace fungou. — Que disparate.
— Não apareceu para fazer o turno desta manhã.
— Uma hora de atraso para o trabalho dificilmente constitui prova de desaparecimento. O mais certo é ter adormecido.
— Acho que não foi para casa na noite passada. Pelo menos às duas da manhã não tinha chegado.
— Então talvez tenha adormecido noutro sítio qualquer — disse Miss Wallace com malícia. Os óculos voltaram a cintilar. — Por falar nisso, posso perguntar-lhe como é que sabe que ela não foi para casa?
Já percebera que o melhor era não mentir. — Porque entrei e fiquei à espera dela.
— Com que então, também anda a arrombar casas. Percebo agora porque é que a Claire não quer mais nada consigo.
Isso que se lixe, pensou Jericho.
— Há outras coisas que deve ficar a saber. Ontem à noite, foi lá um homem enquanto eu lá estava. Fugiu a correr quando ouviu a minha voz. E acabei de telefonar ao pai de Claire que afirmou que não sabe onde ela está, mas eu cá acho que está a mentir.
Ela pareceu ficar impressionada. Mastigou a parte interna do lábio e olhou encosta abaixo. Um comboio, um expresso pelo barulho, ia a passar por Bletchley. Uma cortina de fumo castanho, com quase um quilómetro de comprimento, ergueu-se em ruidosas erupções por cima da povoação.
— Nada disso me diz respeito — disse ela, por fim.
— Ela não lhe disse que ia para fora?
— Nunca me diz nada. Porque havia de dizer?
— E não tem andado estranha ultimamente?
— Mr. Jericho, poderíamos provavelmente encher este abrigo de autocarros... não, poderíamos provavelmente encher um autocarro de dois andares, com os jovens que andam preocupados com a sua relação com Claire Romilly. Eu estou mesmo extremamente cansada.
Muito cansada e inexperiente nestes assuntos para poder ajudá-lo de alguma forma. Desculpe-me.
Montou na bicicleta pela segunda vez, e desta vez Jericho não tentou impedi-la. — As letras ADU dizem-lhe alguma coisa?
Abanou a cabeça com irritação e afastou-se da berma da estrada.
— É uma mensagem — gritou ele. — Provavelmente do Exército alemão ou da Luftwaffe.
Meteu travões com tal força que escorregou do assento e os sapatos sem tacão resvalaram na valeta. Ela olhou para ambos os lados da estrada deserta. — Ficou completamente maluco?
— Encontra-me no Anexo 8.
— Espere um momento. O que é que isso tem a ver com a Claire?
— Ou então na Pensão Comercial, em Albion Street. — Acenou com delicadeza. — ADU, Miss Wallace. Os Anjos Elevam-se Dançando. Vou deixá-la em paz.
— Mr. Jericho...
Mas ele não quis responder a nenhuma das suas perguntas. Atravessou a rua e apressou-se a descer a encosta. Quando virou à esquerda para a Wilton Avenue em direcção ao portão principal, olhou para trás. Ela permanecia onde ele a tinha deixado com as pernas magras ao lado dos pedais, olhando-o fixamente, atónita.
Logie estava à espera dele quando regressou ao Anexo 8. Caminhava para cá e para lá no espaço exíguo da Sala dos Arquivos, com as mãos ossudas cruzadas atrás das costas e a cabeça do cachimbo agitando-se aos arrancos enquanto mordia furiosamente a boquilha.
— Este é o teu casaco? — foi o seu único cumprimento. — É melhor trazê-lo contigo.
— Olá, Guy Onde é que vamos? — Jericho retirou casaco do cabide pregado atrás da porta e uma das Wrens atirou-lhe um sorriso triste.
— Nós vamos ter uma conversinha, meu velho. E depois tu vais para casa.
Uma vez no gabinete, Logie atirou-se para cima da cadeira e atirou os pés enormes para cima da secretária. — Fecha lá a porta, homem. Vamos pelo menos tentar manter isto só entre nós.
Jericho obedeceu. Como não tinha onde se sentar, encostou-se à porta. Sentia-se surpreendentemente calmo. — Não sei o que foi que o Skynner te andou a contar — começou ele — mas, na verdade, eu não lhe dei um soco.
— Ah, pronto, então está tudo bem. — Logie ergueu as mãos em tom de piada. — O que eu quero dizer é que desde que não corra sangue nem haja realmente ossos partidos...
— Bolas, Guy. Eu nem lhe toquei. Ele não me pode despedir por causa disso.
— Ele pode fazer aquilo que muito bem lhe der na gana. — A
cadeira rangeu quando Logie se esticou e pegou numa pasta castanha. Abriu-a. — Vamos lá ver o que temos aqui. «Insoburdinação flagrante», é o que diz aqui. E ainda: «Tentativa de agressão física.» É «Último de uma série de incidentes que sugerem que o indivíduo em causa já não se encontra em forma para tarefas activas». — Arremessou a pasta novamente para cima da secretária. — Não sei bem se não concordo com ele. Tenho estado à espera que dês a cara por estas bandas desde ontem à tarde. Por onde é que tens andado? No Almirantado? A dar uns murros no Chefe Supremo?
— Disseste-me para não fazer um turno inteiro. «Podes ir e vir conforme quiseres.» São tuas estas palavras.
— Não te armes em espertinho comigo, meu velho.
Jericho calou-se por um momento. Pensou na gravura da Capela do King's College com as mensagens escondidas na parte de trás. Pensou na Sala dos Cadernos Alemães e na cara assustada de Weitzman. Pensou na voz tremida de Edward Romilly. «Os movimentos da minha filha são para mim um mistério tão grande como parecem ser para si.» Sabia que Logie o estudava minuciosamente.
— Quando é que ele quer que eu me vá embora?
— Já, meu grande idiota: «Manda-o regressar ao Kings College e, desta vez, o parvalhão que vá a pé» — Acho que foram estas as ordens que me foram dadas. — Suspirou e abanou a cabeça. — Não o devias ter deixado fazer figura de parvo. Não à frente dos clientes.
— Mas ele é um parvo. — A fúria e a autocomiseração rodopiavam dentro dele. Tentou manter a voz firme. — Ele não faz a mínima ideia do que está a dizer. Vá lá, Guy. Tu acreditas, honestamente, que conseguimos descodificar o Tubarão nos próximos três dias?
— Não. Mas há maneiras e maneiras de o dizer, se é que me entendes, especialmente quando os nossos queridos e amados irmãos americanos se encontram na mesma sala.
Alguém bateu à porta e Logie gritou: — Agora não, meu velho, mas obrigado de qualquer forma!
Esperou que quem quer que fosse se tivesse ido embora e disse, calmamente: — Acho que tu ainda não te apercebeste bem de como as coisas mudaram por aqui.
— Foi o que disse o Skynner.
— Bem, e ele tem razão. Pelo menos desta vez. Tu próprio verificaste isso ontem na conferência. Já não estamos em 1940, Tom. Já não é apenas a pequena e briosa Inglaterra sozinha. Evoluímos. Temos de ter em consideração o que as outras pessoas pensam. Olha só para o mapa, homem. Lê os jornais. Os comboios zarpam de Nova Iorque. Um quarto das embarcações são americanas. Os carregamentos são todos americanos. Tropas americanas. Tripulações americanas. — De repente, Logie escondeu a cara com as mãos. — Meu Deus, eu não acredito que tenhas tentado agredir o Skynner. És mesmo muito doido, não és? Não tenho a certeza se será seguro deixar-te andar à solta pelas ruas. —Tirou os pés de cima da secretária e pegou no telefone. — Olha, não me interessa o que ele disse, vou ver se consigo o carro para te levar.
— Não! — Jericho surpreendeu-se com a veemência da sua voz. Na sua mente conseguia ver uma cópia perfeita do mapa do Atlântico — a massa de terra castanha da América do Norte, os borrões de tinta das Ilhas Britânicas, o azul do oceano, os inocentes discos amarelos, os dentes de tubarão preparados e carregados como uma ratoeira de homens. E Claire? Se, mesmo agora, que trabalhava em Bletchley Park, era impossível encontrá-la... Enviado de regresso a Cambridge, desprovido do passe de segurança, era como se o mandassem para outro planeta. — Não — repetiu, agora mais calmo. — Não podes fazer isso.
— A decisão não é minha.
— Dá-me dois dias.
— O quê?
— Diz ao Skynner que me queres dar dois dias. Dá-me dois dias, para ver se eu descodifico o Tubarão.
Logie olhou boquiaberto para Jericho durante cinco segundos e depois desatou às gargalhadas. — Tu estás a ficar cada vez mais maluco à medida que a semana passa, meu velho. Ontem dizes que não se descodifica o Tubarão em três dias. Hoje dizes-me que talvez o consigas fazer em dois.
— Por favor, Guy. Estou a implorar-te. — E estava mesmo. Tinha as mãos pousadas em cima da secretária de Logie e inclinava-se por cima dela. Suplicava pela sua vida. — O Skynner não me quer fora só do anexo, sabes? Quer-me fora das instalações.
Quer-me fechado num sótão qualquer do Almirantado a fazer contas de dividir.
— Há sítios piores para passar a guerra.
— Para mim não. Enforcava-me. O meu lugar é aqui.
— Eu já arrisquei tanto o pescoço por tua causa, menino. — Logie espetou o cachimbo no peito de Jericho. — «Jericho?» disseram eles. «Não estás a falar a sério. Estamos perante uma crise e tu queres o Jericho?» — Espetou-o de novo com o cachimbo. — E eu respondi: «Sim, eu sei que ele é meio maluco e está sempre a desmaiar como uma tia solteirona, mas ele tem algo, tem aqueles dois por cento extra. Acreditem em mim.» — E zás, zás, com o cachimbo — Depois imploro que me dêem um raio dum carro... não estou a brincar, como já deves ter percebido... e, em vez de ir dormir, vou beber chá retardado contigo ao King's College, e a primeira coisa que fazes é fazeres-nos passar a todos por idiotas e depois atacas a chefia da secção; está bem, pronto, tentas atacá-lo. E eu pergunto: quem é que me vai dar ouvidos agora?
— O Skynner.
— Deixa-te disso.
— O Skynner tem de te ouvir, e ouve-te se insistires que precisas de mim. Já sei — Jericho estava inspirado — podias ameaçar dizer àquele almirante, ao Trowbridge, que eu tinha sido despedido num momento vital da Batalha do Atlântico só por dizer a verdade.
— Podia, não podia? Obrigadinho. Muito obrigadinho, E íamos os dois fazer contas de dividir para o Almirantado.
— Há sítios piores para passar a guerra.
— Não sejas ordinário.
Voltaram a bater à porta, com muito mais força desta vez. — Por amor de Deus — gritou Logie— põe-te a andar! — Mas, de qualquer forma, o puxador rodou. Jericho afastou-se, a porta abriu-se e Puck entrou.
— Desculpa lá, Guy. Bom-dia, Thomas. — Fez um aceno a ambos com a cabeça. — Aconteceu uma coisa, Guy.
— Boas notícias?
— Para dizer a verdade, não. Provavelmente não são boas notícias. O melhor seria vires comigo.
— Raios, raios!— resmungou Logie. Atirou um olhar assassino a Jericho, agarrou no cachimbo e seguiu Puck até ao corredor.
Jericho hesitou um segundo e foi atrás deles, pelo corredor fora, em direcção à Sala dos Arquivos. Nunca a vira tão cheia. O tenente Cave estava lá e, ao que parecia, estavam lá todos os criptanalistas do anexo — Baxter, Atwood, Pinker, Kingcome, Proudfoot, de Brooke — e ainda Kramer, qual ídolo do celulóide no seu uniforme naval americano, que acenou amigavelmente a Jericho.
Logie deu uma olhadela à sala, surprendido. — Olha, olha, está cá a malta toda. — Ninguém riu. — O que é que se passa, Puck? Organizaste um comício? Vamos entrar em greve? Puck inclinou a cabeça na direcção das três jovens do Wren que faziam o turno de dia na Sala dos Arquivos.
— Ah, sim — disse Logie — é claro — e mostrou-lhes os dentes de fumador num sorriso ocre. — Temos um assunto a tratar, meninas. Vá lá, vá lá. Não se importam de deixar os cavalheiros sozinhos por uns minutos, pois não?
— Eu mostrei isto ao tenente Cave — disse Puck quando as raparigas saíram. — Análise de trânsito. — Ergueu a folha amarela, tão familiar, como se fosse executar um número de magia. — Duas longas mensagens interceptadas, nas últimas doze horas vindas do novo transmissor dos nazis perto de Magdeburgo. Uma, mesmo antes da meia-noite: cento e oitenta e quatro grupos de letras. Emitida duas vezes, nas redes de rádio Diana e Hubertus. Quatro-seis-zero-um quilociclos. Doze-nove-cinquenta.
— Oh, continua — disse Atwood, em surdina.
Puck fingiu não ouvir. — No mesmo período, o número total de mensagens do Tubarão interceptadas dos submarinos do Atlântico Norte até às zero-novecentos esta manhã: cinco.
— Cinco? — repetiu Logie. — Tens a certeza, meu velho? — Tirou-lhe a folha das mãos e, com o dedo, percorreu as colunas de entradas bem visíveis.
— Qual é a frase? — perguntou Puck. — «Tão sereno como a sepultura?»
— Os nossos postos de escuta — disse Baxter, lendo a folha por cima do ombro de Logie — devem estar com qualquer problema. Devem ter adormecido.
— Telefonei para a sala de controlo de intercepções há dez minutos. Depois de ter falado com o tenente. Dizem que não há qualquer erro.
Irrompeu um burburinho excitado de conversas.
— E o que dizes tu, ó grande sábio?
Jericho demorou dois segundos a perceber que Atwood estava a falar com ele. Encolheu os ombros. — É muito pouco. Mesmo muito pouco.
— O Tenente Cave acha que existe um padrão — disse Puck.
— Temos interrogado tripulantes de submarinos capturados acerca de tácticas — o Tenente Cave inclinou-se e Jericho viu Pinker recuar, quando viu a sua cara cheia de cicatrizes. — Quando o Dõnitz suspeita de um comboio, coloca os seus caixões lado a lado na rota que julga que o comboio vai tomar. Doze barcos a, digamos, doze milhas de distância. Possivelmente duas linhas, possivelmente três — hoje em dia ele tem caixões suficientes para montar um belo espectáculo. A nossa estimativa, antes do blackout, era de quarenta e seis operacionais só naquele sector do Atlântico Norte. — Calou-se como se a pedir desculpa. — Desculpem lá — disse ele — mandem-me calar se eu estiver a ensinar a missa ao vigário.
— O nosso trabalho é mais... teórico — disse Logie. Olhou em volta e muitos dos criptanalistas concordaram com um aceno.
— Muito bem. Basicamente, existem dois tipos de linhas. A vossa linha de piquetes que, basicamente, significa submarinos estacionados à superfície à espera que o comboio se aproxime. E a vossa linha de patrulha, que significa que os submarinos se movimentam em formação para o interceptarem. Uma vez estabelecidas as linhas, existe uma regra de ouro. Silêncio de rádio absoluto até que se aviste o comboio. O meu palpite é que é isso que está a acontecer agora. As duas longas mensagens de Magdeburgo são provavelmente Berlim a dar ordens para que os submarinos se alinhem. E se os barcos estão agora a efectuar silêncio de rádio... — Cave estremeceu: lamentava ter de afirmar o que era óbvio — isso significa que devem encontrar-se em posições de combate.
Ninguém disse nada. As abstracções intelectuais dos criptanalistas haviam adquirido uma forma concreta: dois mil homens nos submarinos alemães, dez mil marinheiros aliados e passageiros, convergindo para travarem uma batalha no Inverno do Atlântico Norte, a mil milhas de terra. Pinker estava com cara de quem ia vomitar. De repente, a singularidade da sua posição atingiu Jericho. Pinker era responsável por enviar — quantos? — mil marinheiros alemães para o fundo do mar, contudo a cara de Cave era o mais próximo que ele já estivera da brutalidade da guerra do Atlântico.
Alguém perguntou o que iria acontecer a seguir.
— Se um dos submarinos descobrir o comboio? Segui-lo-á de perto. Enviará uma mensagem de contacto de duas em duas horas — posição, velocidade, direcção. Essa mensagem será recebida pelos outros caixões subaquáticos e eles começarão a convergir para o mesmo local. Sempre o mesmo procedimento, para tentar chamar o maior número possível de caçadores. Geralmente, tentam meter-se dentro do comboio, no meio dos nossos barcos. Esperarão que a noite caia. Preferem atacar no escuro. Os fogos dos barcos que foram atingidos iluminam outros alvos. O pânico é maior. Além disso, a escuridão dificulta a acção dos nossos torpedeiros.
— É claro, o tempo está pavoroso mesmo para esta época do ano — acrescentou Cave, a sua voz afiada a cortar o silêncio — Neve. Nevoeiro gelado. Agua verde sob a proa. Isso está a nosso favor.
— Quanto tempo temos? — perguntou Kramer.
— Menos tempo do que pensávamos, isso é certo. Um submarino é mais rápido do que qualquer comboio, mas não deixa de ser lento. A superfície movimenta-se à mesma velocidade que um homem de bicicleta, debaixo de água é tão rápido como um homem a pé. Mas se Dõnitz souber dos comboios? Talvez um dia e meio. O mau tempo vai causar-lhes problemas de visibilidade. Mesmo assim... sim... julgo que um dia e meio.
Cave pediu licença para ir telefonar para o Almirantado a dar as más notícias. Os criptanalistas ficaram sozinhos. Na extremidade longínqua do anexo ouviu-se um ruído abafado quando as máquinas Type-X iniciaram a sua labuta diária.
— Deve ser o D-D-Dolphin — disse Pinker. — Dás-me licença, G-G-Guy?
Logie ergueu uma mão em sinal afirmativo e Pinker apressou-se a sair da sala.
— Se tivéssemos uma descodificadora de quatro rotores — resmungou Proudfoot.
— Bom, mas não temos, meu velho, por isso não vamos perder tempo com isso.
Kramer estivera encostado a uma das mesas de cavalete. Agora estava de pé. Não tinha espaço para andar de cá para lá, pelo que arrastava os pés inquieto e dava murros na palma da mão esquerda.
— Que raio, sinto-me tão inútil. Um dia e meio. O raio de um mísero dia e meio. Meu Deus! Tem de haver alguma solução. Quero dizer, vocês já conseguiram decifrar esta coisa uma vez, não conseguiram, durante o último blackoutí
Várias pessoas falaram ao mesmo tempo.
— Ah, sim.
— Lembram-se?
— Foi o Tom.
Jericho não estava a ouvir. Algo lhe tumultuava a cabeça, algo minúsculo nas profundezas do seu subconsciente, para lá do alcance de qualquer poder de análise. O que era? Uma memória? Uma ligação? Quanto mais tentava concentrar-se, mais ilusória a sensação se tornava.
— Tom?
Sacudiu a cabeça, surpreendido.
— O tenente Kramer estava a fazer-te uma pergunta, Tom — disse Logie, cheio de paciência — acerca da forma como decifrámos o Tubarão durante o último blackout.
— O quê? — Estava irritado por lhe terem interrompido os pensamentos. As suas mãos tremiam de nervosismo. —Ah, o Dõnitz tinha sido promovido a almirante. Pensámos que no quartel-general dos submarinos iam ficar alegres que nem passarinhos. Tão satisfeitos que transmitiriam a proclamação de Hitler a todos os barcos.
— E fizeram-no?
— Fizeram. Foi uma boa grelha. Tivemos seis descodificadoras a tratar do caso. Mesmo assim, ainda nos levou três semanas a ler o trânsito de um dia.
— Com uma boa grelha? — exclamou Kramer. — Seis descodificadoras? Três semanas?
— É o efeito de uma Enigma de quatro rotores.
— É uma pena que o Dõnitz não seja promovido todos os dias — disse Kingcome.
Esta frase despertou Atwood de imediato. — Da maneira que as coisas estão, provavelmente vai mesmo começar a ser promovido todos os dias.
As trevas foram iluminadas momentaneamente por gargalhadas. Atwood parecia satisfeito consigo mesmo.
— Essa foi boa, Frank — disse Kingcome. — Uma promoção diária. Muito boa.
Apenas Kramer se recusou a rir. Cruzou os braços e pousou os olhos nos sapatos.
Começaram a comentar uma teoria do de Brooke que estivera a trabalhar num par de descodificadoras nas últimas nove horas, mas a metodologia era absolutamente impraticável, como afirmou Puck.
— Bem, pelo,menos tenho uma ideia — disse de Brooke — que é mais do que vocês têm.
— Meu caro Arthur, isso é porque se eu tivesse uma ideia horrível, não a contava a ninguém.
Logie bateu palmas. — Meninos, meninos. Vamos lá a manter as críticas construtivas, está bem?
A conversa arrastou-se, mas Jericho há muito que deixara de a ouvir. Perseguia novamente o fantasma dentro da sua cabeça, procurando no seu arquivo mental dos últimos dez minutos a palavra, a frase que lhe poderia ter dado vida. Diana, Hubertus, Magdeburgo, linha de piquetes, silêncio de rádio, mensagem de contacto...
Mensagem de contacto.
— Guy, onde é que guardas as chaves do Black Museum?
— O quê, meu velho? Ah, na minha secretária. Gaveta superior da direita. Hei, onde é que vais? Espera um minuto, ainda não acabei a minha conversa contigo...
Foi um alívio sair da atmosfera claustrofóbica do anexo para o ar frio e refrescante. Subiu a encosta em direcção à mansão. Ultimamente era muito raro visitar a casa grande, mas, sempre que o fazia, esta lembrava-o de uma casa imponente que existia num livro de crime e mistério dos anos vinte. («Não se esqueça, inspector, de que o coronel estava na biblioteca quando os tiros fatais foram disparados...») O exterior era um pesadelo, como se um carrinho-de-mão gigantesco cheio de pedaços de outras construções se tivesse tombado formando um amontoado. Frontões suíços, pilares gregos, janelas salientes suburbanas, tijolos vermelhos, leões de pedra, o pórtico de entrada de uma catedral; os estilos misturavam-se, disputando-se enfurecidos, cobertos por um telhado de cobre verde em forma de sino. O interior era de um gótico puro e horroroso, cheio de arcos de pedra e janelas de vitral. O soalho polido soava a oco sob os pés de Jericho e as paredes estavam decoradas com painéis de madeira escura dos que se abrem no último capítulo e dão acesso a um labirinto secreto. Não tinha bem a certeza do que se passava agora aqui. O comandante Travis tinha o grande gabinete da frente que dava para o lago, enquanto lá em cima, nos quartos, era efectuado todo o género de coisas misteriosas: ouvira boatos de que estavam a decifrar os criptogramas dos serviços secretos, alemães.
Atravessou o corredor rapidamente. Um capitão do exército deambulava em frente à porta do gabinete de Travis, fingindo ler o Observer e escutando um homem de meia idade que envergava um fato de fazenda e tentava meter conversa com uma mulher da RAF. Ninguém prestou atenção a Jericho. Ao fundo das escadas de carvalho exageradamente trabalhado, um corredor virava à direita em curva fechada, dando acesso à parte de trás da casa. A meio existia uma porta que se abriu, revelando degraus que davam para uma passagem secundária. Era aqui, numa sala fechada da adega, que os analistas dos Anexos 6 e 8 armazenavam os seus tesouros roubados. Jericho tacteou a parede à procura do interruptor. A maior das duas chaves abriu a porta. Empilhadas em prateleiras de metal ao longo de uma das paredes, encontravam-se uma dúzia ou mais de máquinas Enigma capturadas. A chave mais pequena foi introduzida em um de dois grandes cofres de ferro. Jericho ajoelhou-se, abriu-o e começou a remexer o seu conteúdo. Aqui estavam eles todos, todos os seus preciosos furtos: cada um deles representava uma vitória na longa guerra contra o Enigma. Lá estava uma caixa de charutos com uma etiqueta com data de Fevereiro de 1941, contendo o saque da traineira armada alemã Krebs: dois rotores sobressalentes, o mapa da Kriegsmarine do Atlântico Norte e os parâmetros navais do Enigma para Fevereiro de 1941. Por detrás desta caixa, encontrava-se um envelope muito cheio com a inscrição Múnchen — um barco meteorológico cuja captura, três meses depois do Krebs, os impedira de decifrarem o código meteorológico — e outro com a etiqueta «S-110». Retirou de lá braçadas de papéis e mapas hidrográficos.
Por fim, da prateleira do fundo, retirou um pequeno pacote embrulhado num oleado. Fora por este saque que Fasson e Grazier tinham morrido, ainda no seu revestimento original, como se estivesse a sair do submarino a afundar-se. Nunca o olhara sem agradecer a Deus eles terem encontrado algo à prova de água para o embrulharem. O mais pequeno contacto com a água teria dissolvido a tinta. Pilhá-lo de um submarino a afundar-se, de noite, em pleno mar alto... Era mais fácil fazer um matemático acreditar em milagres. Jericho retirou o olideado com muito cuidado, da mesma forma que um sábio desenrolaria um papiro de alguma civilização antiga ou um padre descobriria relíquias sagradas. Dois pequenos panfletos, escritos em gótico num papel cor-de-rosa cheio de borrões. A segunda edição do Livro de Códigos Meteorológicos dos submarinos, agora inútil, graças à alteração do caderno de códigos. E, exactamente como ele se recordava, o Livro de Mensagens Curtas. Passou as folhas com a mão. Colunas de letras e números.
Estava um aviso dactilografado preso à porta do cofre: «É estritamente proibido retirar qualquer artigo sem a minha autorização expressa. (Assinado) L.F.N. Skynner, Chefe da Secção Naval.»
Jericho sentiu um prazer especial ao enfiar o Livro de Mensagens Curtas no bolso e correr com ele em direcção ao anexo.
Jericho atirou as chaves para Logie, que se atrapalhou e só depois as agarrou.
— Mensagem de contacto.
— Como?
— Mensagem de contacto — repetiu Jericho.
— Graças a Deus! — disse Atwood, erguendo impetuosamente as mãos ao céu como um pregador revivalista. — O Oráculo falou.
— Está bem, Frank. Só um minuto. O que é que tem, meu lindo? Jericho conseguia compreender tudo muito mais depressa do que
o conseguia exprimir. De facto, era bastante difícil transmiti-lo por palavras. Falou lentamente, como se estivesse a traduzir de uma língua estrangeira, reordenando tudo mentalmente, transformando a mensagem numa narrativa.
— Lembram-se, em Novembro, quando conseguimos o Livro dos Códigos Meteorológicos do submarino S-459? Quando conseguimos também o Livro de Mensagens Curtas? Só que, na altura, decidimos não nos concentrarmos no Livro de Mensagens Curtas porque ele não continha material suficiente para uma grelha que valesse a pena? Quero dizer, uma mensagem isolada de um comboio não vale um chavo, pois não? São só cinco letras e aparece uma de longe em longe. —Jericho retirou cuidadosamente o panfleto cor-de-rosa do bolso. — Uma letra para a velocidade do comboio, duas para o seu curso, outras duas para a referência da grelha...
Baxter olhou para o livro de códigos como se hipnotizado. — Tiraste isso do cofre sem autorização?
— Mas, se o Tenente Cave estiver certo, seja qual for o submarino que encontre o comboio, vai mandar uma mensagem de contacto de duas em duas horas, e se o vai seguir até cair a noite, então é possível — teoricamente é possível — que envie quatro ou mesmo cinco mensagens, dependendo da hora do dia em que tiver o primeiro contacto visual. — Jericho procurou o único uniforme que se encontrava na sala. — Quanto tempo dura o dia no Atlântico Norte em Março?
— Cerca de doze horas — respondeu Kramer.
— Doze horas, estão a ver? E se outros submarinos se juntarem ao mesmo comboio, no mesmo dia, em resposta à mensagem de origem, e começarem todos a enviar mensagens de contacto de duas em duas horas...
Finalmente, Logie percebeu onde ele queria chegar. Retirou o cachimbo da boca lentamente. — Cos diabos!
— Uma vez mais, teoricamente, teríamos, digamos, vinte letras para a grelha do primeiro submarino, quinze para a do segundo — não sei se se trata de um ataque de oito submarinos — suponhamos que sim — conseguiríamos cem letras sem dificuldade, o que é tão bom como uma grelha meteorológica — Jericho sentiu-se tão orgulhoso como um pai que oferece ao mundo um olhar rápido sobre o seu recém-nascido. — É lindo, não percebem? — Olhou fixamente para todos os outros criptanalistas: Kingcome e Logie pareciam começar a ficar excitados, de Brooke e Proudfoot pareciam pensativos, Baxter, Atwood e Puck pareciam manifestamente hostis.
— Até este momento nunca foi possível, porque até agora os Alemães nunca conseguiram atirar tantos submarinos contra uma tão grande massa de embarcações. É toda a história do Enigma, mas em ponto pequeno. A escala do feito dos Alemães fornecer-nos-á tanto material que disseminará as sementes da sua eventual derrota.
Fez uma pausa.
— Mas não são ses a mais? — disse Baxter, um pouco sarcástico.
— Se o submarino encontrar cedo o comboio, se enviar a mensagem de duas em duas horas, se todos os outros fizerem o mesmo, se conseguirmos interceptar todas as mensagens...
— E se — disse Atwood — o Livro de Mensagens Curtas que sacámos em Novembro não foi alterado a semana passada juntamente com o Livro de Códigos Metereológicos...
Essa era uma possibilidade em que Jericho não pensara. Sentiu o seu entusiasmo desintegrar-se um pouco.
Agora foi Puck que se juntou ao ataque. — Concordo. A concepção é bastante brilhante, Thomas. Louvo a tua... inspiração, acho. Mas a tua estratégia depende do nosso fracasso, não achas? Só conseguiremos decifrar o Tubarão se os submarinos descobrirem o comboio, que é exactamente aquilo que queremos evitar. E, imaginemos que conseguimos mesmo os parâmetros do Tubarão. E depois? Maravilha. Conseguimos decifrar todas as mensagens dos submarinos para Berlim, vangloriando-se das embarcações aliadas que já afundaram. E vinte e quatro horas depois estamos outra vez em blackout.
Vários foram os criptanalistas que trocaram murmúrios concordantes.
— Não, não — Jericho abanou a cabeça com ênfase. — A tua lógica não está correcta, Puck. O que esperamos, como é óbvio, é que os submarinos não encontrem o comboio. Sim, é esse o objectivo do exercício. Mas se o fizerem, podemos, pelo menos, aproveitar esse facto. E não será apenas um dia, se tivermos sorte. Se decifrarmos os parâmetros do Tubarão durante vinte e quatro horas, conseguiremos captar as mensagens meteorológicas codificadas de todo esse período. E, lembra-te disto, teremos os nossos próprios barcos na área, aptos a darem-nos os dados metereológicos exactos que os submarinos enviam codificados. Teremos o texto completo, teremos os parâmetros dos criptogramas do Tubarão e assim conseguiremos começar a reconstruir o novo Caderno de Códigos Meteorológicos. Poderíamos ficar novamente numa posição favorável. Não percebes?
Passou as mãos pelo cabelo e arrepelou-o, exasperado. Porque estavam todos a ser tão pouco compreensivos?
Kramer estivera a rabiscar furiosamente num bloco de apontamentos. — Ele tem uma certa razão, sabem. —Atirou a caneta ao ar e agarrou-a. — Vá lá. Vale a pena tentar. Pelo menos, voltamos ao ataque.
— Continuo a não ver a vantagem — resmungou Baxter.
— Eu também não — concordou Puck.
— Olhe, Baxter, você só não vê a vantagem, porque isso não representa um triunfo para o proletariado mundial — disse Atwood.
As mãos de Baxter transformaram-se em punhos. — Um destes dias, Atwood, alguém ainda lhe vai arrancar essa sua maldita presunção.
— Aha! O primeiro impulso das mentes totalitaristas: a violência.
— Chega! — Logie bateu com o cachimbo numa das mesas de cavalete, como um juiz com o martelo. Nunca ninguém o ouvira gritar antes e a sala ficou silenciosa. — Já tivemos que chegue dessa conversa. — Olhou fixamente para Jericho, com ar severo. —Vamos lá ver, é claro que temos de ter cuidado. Puck, o teu ponto de vista foi tomado em consideração. Mas também temos de encarar a realidade. Estamos em blackout há quatro dias e a ideia do Tom é a única coisa decente que temos. Fizeste um trabalho dos diabos, Tom.
Jericho olhou fixamente para uma mancha de tinta no chão. Oh meu Deus, pensou, lá vem a conversa estimulante do dono da casa.
— Vamos lá ver, todos temos uma grande responsabilidade às costas e quero que todos se lembrem de que fazem parte de uma equipa.
— Nenhum homem é uma ilha, Guy — disse Atwood, muito sério, com as mãos rechonchudas apertadas devotamente sobre o protuberante estômago.
— Obrigado, Frank. Tem toda a razão. Nenhum homem é uma ilha. E, se alguma vez, algum de vocês — seja quem for — se esquecer disso, que pense naqueles comboios, e em todos os outros comboios de que esta guerra depende. Perceberam? Óptimo. Muito bem. Já chega de paleio. Toca a trabalhar.
Baxter abriu a boca para protestar, mas depois pareceu ter pensado melhor. Trocou olhares austeros com Puck à saída. Jericho viu-os afastarem-se e pensou porque seriam eles uns pessimistas tão determinados. Puck não conseguia tolerar a ideologia política de Baxter e geralmente não se aproximavam um do outro. Mas agora, parecia que andavam colados. Qual seria a causa? Uma espécie de ciúme académico? Indignação por ele ter chegado depois de todo aquele trabalho árduo e os ter feito passar por parvos?
Logie abanava a cabeça. — Olha, meu velho, não sei o que havemos de fazer contigo. — Tentou parecer severo, mas não conseguia esconder o prazer que sentia. Colocou a mão no ombro de Jericho.
— Devolve-me o emprego.
— Tenho de falar com o Skynner. — Manteve a porta aberta e empurrou Jericho para o corredor. As três raparigas do Wren observavam-nos. — Meu Deus — disse Logie, estremecendo. — Consegues imaginar o que ele vai dizer? Vai adorar, não vai, ter de dizer aos seus amigos almirantes que a melhor hipótese que temos de decifrarmos novamente o Tubarão é os comboios serem atacados? Ora bolas, acho que o melhor é ir telefonar-lhe. — Entrou no gabinete, depois voltou a sair. — E tu tens mesmo a certeza de que não chegaste a bater-lhe?
— Absoluta, Guy.
— Nem um arranhão?
— Nem um arranhão.
— É pena — disse Logie, para si mesmo. — De certo modo, é uma pena.
Hester Wallace não conseguia dormir. As cortinas estavam fechadas, deixando o dia lá fora. O seu quarto minúsculo estava pintado numa só cor. Um ramalhete de lavanda enviava uma fragrância reconfortante através da almofada. Mas, embora estivesse submissamente deitada de costas com a sua camisa de noite de algodão, as pernas unidas, as mãos cruzadas sobre o peito, tal como uma donzela num túmulo de mármore, o esquecimento continuava a iludi-la.
«ADU, Miss Wallace. Os Anjos Elevam-se Dançando...»
A mnemónica era enfurecedoramente eficaz. Não a conseguia esquecer, embora a disposição das letras não lhe dissesse nada.
«É uma mensagem. Provavelmente do Exército alemão ou da Luftwaffe...»
Aí não havia qualquer surpresa. Era quase obrigatório que assim fosse. Afinal de contas, eram tantas as mensagens: milhares e milhares. A única regra credível era que as mensagens do Exército e da Luftwaffe nunca começavam por D, porque o D indicava uma estação comercial alemã.
ADU... ADU...
Não conseguia compreender.
Virou-se de lado, encolheu os joelhos sobre o estômago e procurou encher a mente de pensamentos reconfortantes. Mas, assim que se conseguiu livrar da face pálida e enérgica de Tom Jericho, a memória mostrou-lhe o padre da igreja de St. Mary, em Bletchley, porta-voz de mau-presságio das misoginias de São Paulo. «É uma vergonha as mulheres falarem na igreja...» (1 Coríntias M.xxxv). «Mulher tola carregada de pecados, levada por várias luxurias...» (2 Timóteo 3-vi). A partir de textos como estes, o padre engendrara um sermão político contra o empregamento do sexo feminino em tempo de guerra — mulheres que conduziam vagões, mulheres de calças, mulheres que bebiam e fumavam em locais públicos sem a companhia dos maridos, mulheres que negligenciavam os seus lares e os seus filhos. «Como uma pérola na boca de um porco, é assim uma mulher honesta que não usa de discrição.» (Provérbios ll.xxii).
Se pelo menos fosse verdade! pensou. Se pelo menos a mulher tivesse usurpado a autoridade ao homem! A imagem embrilhantinada de Miles Mermagen, o responsável pela sua secção, aflorou-lhe à mente. «Minha querida Hester, uma transferência neste momento está completamente fora de questão.» Tinha sido gerente do Barckleys Bank antes da guerra e gostava de aparecer por detrás das raparigas, quando estavam a trabalhar, e massajar-lhes os ombros. Na Festa de Natal do Anexo 6, conduziu-a para debaixo do azevinho e tirou-lhe os óculos desajeitadamente. («Obrigado, Miles — dissera ela, tentando fazer uma piada — sem os óculos também tu pareces minimamente atraente...») Os lábios de Mermagen, pressionados contra os seus, estavam desagradavelmente húmidos, como o interior de um molusco, e sabiam a xerez.
É claro que a Claire soube imediatamente o que fazer.
— Oh, querida, coitadinha, e ele é casado, não é?
— Ele diz que casaram novos de mais.
— Bem, ela é a tua resposta. Diz-lhe que achas correcto ires primeiro falar com ela. Diz-lhe que queres ser amiga dela.
— Mas, e se ele concorda?
— Oh, Deus! Nesse caso, só te resta dar-lhe um pontapé nos tomates.
Hester sorriu ao recordar-se disto. Mudou novamente de posição na cama, mas o lençol de algodão engelhou-se debaixo dela. Não havia nada a fazer. Esticou-se e acendeu o pequeno candeeiro da mesinha de cabeceira, tacteando à volta dele à procura dos óculos.
Ich leme deutsch, ich leme deutsch, ich habe deutschgelernt...
Alemão, pensou: o Alemão seria a sua salvação.
Um conhecimento do alemão escrito levá-la-ia para longe da Sala de Controlo de Intercepções, para longe do beijo de molusco de Miles Mermagen, conduzindo-a para o ar rarefeito da Sala das Máquinas, onde se fazia o verdadeiro trabalho, onde a deveriam ter colocado desde o início.
Sentou-se na cama e tentou concentrar-se no Livro Elementar de Alemão, de Abelman. Dez minutos de leitura eram geralmente o suficiente para a pôr a dormir.
«Os verbos intransitivos que se referem a uma mudança de local ou de condição utilizam o auxiliar sein em vez de haben nos tempos compostos...»
Ergueu os olhos. Seria barulho lá em baixo? «Em frases subordinadas, o auxiliar deverá ficar no fim, logo depois do particípio passado ou do infinitivo...» Lá estava o barulho outra vez.
Enfiou os pés quentes nos sapatos frios, pôs um xaile de lã pelos ombros e saiu para o corredor.
Ouviam-se umas pancadas vindas da cozinha. Começou a descer as escadas.
Tinha encontrado dois homens à espera dela quando chegou da igreja. Um deles estava no degrau da entrada, o outro emergiu das traseiras do chalé com um ar muito natural. O primeiro homem era jovem e louro, de maneiras lânguidas e aristocráticas, com uma espécie de elegância anglo-saxónica decadente. O seu companheiro era mais velho, mais baixo, magro e moreno, com sotaque do norte. Ambos possuíam passes de Bletchley e disseram que vinham dos Serviços Sociais e que procuravam Miss Romilly. Não se apresentara ao trabalho: teria Hester alguma ideia de onde ela pudesse estar?
Hester respondeu que não. O homem mais velho subira as escadas e passara muito tempo a investigar. Entretanto, o louro — não conseguiu perceber o seu nome — estirara-se no sofá e fizera imensas perguntas. Tinha um certo toque condescendente que até ofendia, com todas aquelas boas maneiras. Miles Mermagen seria assim, pensou Hester, se tivesse sido educado num colégio particular, pagando ao todo cinco mil libras. Como era a Claire? Quem eram os seus amigos? Quem era o homem da vida dela? Tinha andado alguém à procura dela? Mencionou a visita de Jericho da noite anterior e o homem tomou nota com uma caneta dourada. Quase deixava escapar a história da abordagem estranha que Jericho lhe fizera no cemitério («ADU, Miss Wallace...») mas, nesta altura, sentia já tal aversão à maneira de ser do homem, que não disse nada.
Toe, toe, toe vindo da cozinha...
Hester pegou no atiçador que se encontrava ao lado da lareira da saleta e abriu a porta da cozinha muito devagar.
Era como entrar num frigorífico. A janela batia com o vento. Devia estar aberta há horas.
A princípio, sentiu-se aliviada, mas só até tentar fechá-la. Nessa altura, reparou que o trinco de metal, enfraquecido pela ferrugem, tinha sido arrancado e parte da caixilharia de madeira que o circundava estava lascada..
Ficou ao frio a racionalizar as implicações, e depressa concluiu que só havia uma explicação plausível. Era óbvio que o homem de cabelo escuro que aparecera por detrás do chalé quando ela chegou da igreja tinha tentado forçar a entrada.
Tinham-lhe dito que não havia razão para preocupações. Mas, se não havia razão para preocupações, porque tinham forçado a entrada?
Estremeceu e aconchegou o xaile.
— Oh, Claire —, disse em voz alta — oh, Claire, sua tonta, sua estúpida, o que foi que fizeste?
Utilizou um pedaço de fita-cola para tentar segurar a janela. Depois, ainda com o atiçador na mão, subiu as escadas e foi ao quarto de Claire. Uma raposa cinzenta estava aos pés da cama a olhá-la fixamente ,com os seus olhos de vidro e a arreganhar-lhe os dentes acerados como agulhas. Por força do hábito, agarrou-a num repelão e colocou-a na prateleira, o seu lugar habitual. O quarto era tão à medida de Claire, tão extravagante de cores, tecidos e perfumes que parecia ressoar com a sua presença, mesmo sem ela lá estar a cantarolar baixinho como as últimas vibrações de um diapasão... Claire, pondo à frente um vestido ridículo, a rir e a perguntar-lhe a opinião, e Hester a franzir a testa e a fingir um ar reprovador de irmã mais velha. Claire, amuada, como uma adolescente, deitada na cama de barriga para baixo a folhear uma revista de mexericos anterior à guerra. Claire a pentear o cabelo de Hester (que lhe chegava quase à cintura, quando o soltava), percorrendo-o com a escova em golpes lânguidos e lentos que faziam Hester ficar sem forças nos braços. Claire a querer por força pintar Hester com a sua maquilhagem, vesti-la como a uma boneca e, depois, dar um passo atrás para admirar a sua obra e exclamar, fingindo surpresa: «Ai, querida, estás linda!» A Claire, apenas com umas calcinhas de seda e um colar de pérolas, saltitando pelo quarto à procura de qualquer coisa, de pernas altas como os atletas, voltando-se e, reparando que Hester a olhava secretamente pelo espelho, sustentando-lhe o olhar, imóvel por um momento, com uma anca atirada para a frente, os braços esticados e um sorriso algures entre o convidativo e o escarninho, antes de retomar arrebatadamente as deambulações...
E, naquela tarde fria e clara de domingo, Hester Wallace, a filha do clérigo, encostou-se à parede, fechou os olhos e meteu a mão entre as pernas, envergonhada.
Pouco depois, recomeçou o barulho na cozinha e ela pensou que o coração lhe ia rebentar de pânico. Correu pelo corredor fora a fechar-se no seu próprio quarto, perseguida pela seca cantilena do vigário de St. Mary — ou seria a voz do pai? — recitando versículos do Livro dos Provérbios:
«Pois os lábios de uma mulher estranha gotejam como favos de mel e a sua boca é mais macia do que o óleo: mas a sua extremidade é amarga como a artemísia, afiada como uma espada de dois gumes. Os seus pés conduzem à morte; os seus passos ao inferno...»
Pela primeira vez em mais de um mês, Tom Jericho reparou que andava ocupadíssimo.
Tinha de supervisionar a reprodução do Caderno de Mensagens Curtas, seis cópias escritas à máquina, todas elas devidamente marcadas com ALTAMENTE SECRETO. As linhas tinham de ser revistas uma a uma, pois um só erro poderia significar a diferença entre uma descodificação, bem sucedida e dias e dias de fracasso. Os controladores de intercepção de mensagens tinham de ser informados. Tinha de enviar ordens teleimpressas a todos os oficiais de serviço de todos os postos de escuta ligados ao Anexo 8 — desde Thurso, alcandorado nos penhascos do extremo norte da Escócia, a St. Erith, perto de Land's End, no extremo da Cornualha. As instruções eram simples: concentrar toda a atenção nas frequências conhecidas dos submarinos do Atlântico, cancelar todas as licenças, chamar os coxos, os doentes e os cegos, se necessário, e dar ainda mais atenção do que a habitual a todos os toques curtos do Código Morse precedidos de E-barra — ponto ponto traço ponto ponto — o código prioritário dos Alemães que limpava o comprimento de onda para informações sobre contacto com os comboios. Nem uma só dessas mensagens deveria passar despercebida, compreendido? Nem uma.
Jericho retirou dos Arquivos três meses de trabalho de criptogramas do Tubarão para ganhar ritmo de novo e, nessa tarde, sentado no seu antigo lugar à janela da Sala Grande, provou, através de cálculos, o que já sabia por instinto: as dezassete mensagens sobre
contacto com comboios, se recolhidas num período de vinte e quatro horas, produziriam oitenta e cinco letras de código que poderiam — poderiam, se os criptanalistas tivessem a percentagem de sorte necessária — dar-lhes oportunidade de entrarem no Tubarão, desde que conseguissem pôr pelo menos dez «bombas» descodificadoras a trabalhar em alternância durante um mínimo de trinta e seis horas...
E durante todo este tempo Claire não lhe saía do pensamento.
Não havia praticamente nada que pudesse fazer por ela. Conseguiu dirigir-se à cabina telefónica por duas vezes para tentar telefonar ao pai dela: uma das vezes, quando saíram todos para almoçar, conseguiu chegar mesmo a tempo, sem que dessem pela sua falta, mesmo antes de chegarem ao portão principal; e da segunda vez, ao fim da tarde, quando disse que precisava de ir esticar as pernas. Das duas vezes conseguiu a ligação, mas o telefone tocou, tocou, e ninguém atendeu. Tinha um sentimento crescente de receio, reforçado pela sua impotência. Não podia regressar ao Anexo 3. Não tinha tempo para ir ao chalé. Só lhe apetecia ir ao quarto buscar as mensagens — escondidas por detrás de um quadro por cima da lareira? Estaria maluco? — mas a viagem de ida e volta demoraria perto de vinte minutos e ele não podia sair dali.
Na verdade, passava já das sete quando se foi embora. Logie ia a passar pela Sala Grande, quando parou junto à mesa de Jericho e lhe pediu, por amor de Deus, para ir para a pensão descansar um pouco. — Aqui já não há mais nada que possas fazer, meu velho. Excepto esperar. Acho que vai ser amanhã, mais ou menos por esta hora, que vamos começar a suar.
Jericho, agradecido, pegou no casaco. — Falaste com o Skynner?
— Sobre o plano, falei. Sobre o teu caso, não. Ele não perguntou nada e eu não quis puxar o assunto.
— Não me digas que já se esqueceu?
Logie estremeceu. — Há outro caso que parece que o fez esquecer o assunto.
— Que outro caso?
Mas Logie já ia longe. — Falamos amanhã de manhã. Vê mas é se dormes.
Jericho devolveu aos Arquivos a pilha de mensagens do Tubarão e saiu.
O sol de Março, que mal tinha ultrapassado as árvores o dia inteiro, tinha-se afundado por detrás da mansão, deixando uma linha amarelo-pálida e alaranjada na orla de um céu azul escuro. A lua já despontara e Jericho ouviu ao longe um ronco de muitos torpedeiros em formação partindo para um ataque nocturno à Alemanha. Enquanto caminhava, ia olhando à sua volta, pensativo. O disco lunar no lago imóvel, o fogo no horizonte — tratava-se de uma conjugação extraordinária de luzes e símbolos, dir-se-ia um presságio. Ia tão absorto que quase passava pela cabina telefónica sem se aperceber de que estava vazia.
Uma última tentativa? Olhou para a lua. Porque não?
O número de Kensington continuava sem atender e, assim, decidiu, numa veneta, tentar o Ministério dos Negócios Estrangeiros. A telefonista ligou-o a um< funcionário de serviço e Jericho pediu para falar com Edward Romilly.
— Qual é o departamento?
— Lamento, mas não sei.
A linha ficou em silêncio. As possibilidades de Edward Romilly estar a trabalhar num domingo à noite eram mínimas. Encostou o cotovelo ao vidro da cabina. Passou um carro, muito devagar, e depois parou cerca de dez metros mais abaixo. As luzes vermelhas dos travões brilharam no crepúsculo. Ouviu-se um dique e Jericho voltou a dar atenção à chamada.
— Vou fazer a ligação.
Um sinal de chamada e, depois, uma voz feminina refinada disse: — Assuntos Alemães.
Assuntos Alemães? Jericho ficou momentaneamente confuso. — Ah, sim, Edward Romilly, por favor.
— Quem devo anunciar?
Santo Deus, ele estava lá. Voltou a hesitar.
— Um amigo da filha.
— Um momento, por favor.
Tinha os dedos apertados com tanta força à volta do auscultador que lhe doíam. Fez um esforço para se acalmar. Não havia nenhuma razão plausível para que Romilly não pudesse trabalhar na Secção de Assuntos Alemães. A Claire já não lhe tinha dito que o pai era funcionário da embaixada em Berlim na altura em que os nazis chegavam ao poder? Ela devia ter uns dez ou onze anos de idade. Devia ter sido aí que ela aprendera a falar alemão.
— Lamento, mas Mr. Romilly já saiu. Quer deixar o seu nome?
— Obrigado. Não vale a pena. Boa-noite.
Desligou rapidamente. Aquilo não lhe agradou. E também não gostava nada do aspecto daquele carro. Saiu da cabina telefónica e começou a caminhar na direcção em que o carro estava estacionado — era um carro preto e baixo com embaladeiras largas, pintadas de branco por causa do blackout. O motor continuava ligado. Quando ele se aproximou, o carro arrancou de repente e virou em direcção ao portão principal. Jericho ainda deu uma corrida, mas, quando chegou à entrada, já o carro ia longe.
À medida que Jericho descia a encosta, o contorno vago da povoação evaporou-se na escuridão. Nenhuma geração desde há pelo menos um século poderia ter presenciado tal espectáculo. Mesmo no tempo do seu bisavô devia ter havido alguma iluminação — a incandescência de um lampião a gás ou a lanterna de uma carruagem, o brilho azulado da lanterna de parafina de um guarda-nocturno — mas agora não. Bletchley desvanecia-se ao ritmo da luz, parecendo afundar-se num lago negro. Ele tanto poderia estar ali como em qualquer outro lugar.
Dava-se agora conta de uma certa paranóia, e a noite aumentava os seus receios. Passou por uma taberna junto à ponte do caminho-de-ferro, um floreado mausoléu vitoriano onde se podia ler em letras gravadas a ouro na pedra negra, como um epitáfio: Os MELHORES UÍSQUES, PORTOS E CERVEJAS. Lá dentro um piano desafinado tocava «The Londonderry Air» e, por um momento, Jericho sentiu-se tentado a entrar, beber um copo, trocar dois dedos de conversa com alguém. Mas depois começou a imaginar a conversa:
— Então, onde é que você trabalha, amigo?
— Para o governo.
— Funcionário público?
— Comunicações. Nada de especial. Oiça, não quer mais um copo?
— Você é cá da terra?
— Não propriamente...
— e pensou: não, é melhor manter-me longe de estranhos; o melhor mesmo é nem beber nada. Quando ia a virar para Albion Street ouviu um arrastar de pés atrás de si e voltou-se. A porta da taberna tinha sido aberta, dando lugar a um momento fugaz de cor e música, mas fechou-se em seguida e a rua ficou novamente na penumbra.
A pensão ficava mais ou menos a meio da Albion Street, do lado direito de quem desce, e Jericho estava quase a chegar quando reparou num carro estacionado do lado esquerdo. Abrandou o passo. Não tinha a certeza se se tratava do mesmo veículo que se tinha portado de forma suspeita em Bletchley Park, mas era muito parecido. Nisto, quando estava já muito perto, um dos ocupantes acendeu um fósforo e, quando o condutor se dobrou para a frente para proteger o fósforo com a mão em concha, Jericho viu-lhe na manga as três divisas brancas dos sargentos da polícia.
Entrou na pensão e rezou para conseguir subir as escadas antes de Mrs. Armstrong surgir de repente no vestíbulo a interceptá-lo como um caça nocturno. Mas... tarde de mais. Ela já devia estar à espera de ouvir o ruído da chave na fechadura, pois saiu da cozinha envolta numa nuvem de vapor que tresandava a couves cozidas e miúdos de carne. Na sala-de-jantar, alguém simulou um vómito, seguido de um coro de gargalhadas.
— Acho que não estou com muita fome, Mrs. Armstrong, mas obrigado de qualquer forma — disse Jericho, com voz sumida.
Ela limpou as mãos ao avental e meneou a cabeça em direcção a uma porta fechada. — Tem uma visita.
Ele tinha acabado de pôr o pé no primeiro degrau, em tom de desafio. — É a polícia?
— Credo, Mr. Jericho, o que é que a polícia havia de vir cá fazer? É um cavalheiro muito jovem e muito bem parecido. Mandei-o esperar... — acrescentou, num tom carregado de intenção — ...no salão.
O salão! Aberto todas as noites para os hóspedes, das oito às dez aos dias de semana e da hora do chá em diante aos sábados e domingos: tão formal como a sala-de-visitas de um duque, com o terno de sofás a condizer, os respectivos panos bordados, feitos pela proprietária, a protegerem os apoios da cabeça e dos braços, o canónico candeeiro de mogno de quebra-luz ornamentado com galões e a colecção de canecas «Toby», com as suas carantonhas sorridentes, alinhadas mesmo por cima da gélida lareira. Quem teria vindo visitá-lo, pensou Jericho, com direito a esperar no salão?
A princípio não o reconheceu. Cabelo dourado, um rosto pálido e sardento, olhos azul-claros, um sorriso bem treinado, atravessando a sala na sua direcção, de mão direita estendida e um chapéu Anthony Éden na mão esquerda, e um casaco comprado em Savile Row que custara à vontade cinco guinéus por cima de uns ombros varonis — um misto de classe, encanto e ameaça.
— Wigram. Douglas Wigram. Negócios Estrangeiros. Conhecemo-nos ontem, mas não fomos devidamente apresentados.
Apertou a mão a Jericho de uma forma estranha, inconsistente com um dedo dobrado sobre a palma da mão, e Jericho levou algum tempo a perceber que tinha acabado de ser alvo de um aperto de mão maçónico.
— Então, que tal o alojamento? Esta sala é o máximo. O máximo. Mas é melhor irmos para outro lado? Onde é o seu quarto? Lá em cima?
Mrs. Armstrong ainda estava no corredor a arranjar o cabelo diante do espelho oval.
— Mr. Jericho diz que é melhor conversarmos lá em cima. no quarto dele, se não se importa, é claro, Mrs. Armstrong? — disse Wigram, sem esperar pela resposta. — Vamos lá então, está bem.
Esticou o braço, sempre a sorrir, e Jericho deu por si a ser empurrado pela escada acima. Sentia-se como se tivesse sido enga nado ou roubado, mas não conseguia perceber de que maneira. No patamar entre os dois lances de escadas, recuperou forças suficientes para se voltar e dizer: — É muito pequeno, sabe, mal tem espaço para nos sentarmos.
— Não faz mal, meu caro. Desde que haja privacidade. Vamos, lá... em frente e para cima.
Jericho acendeu a luz fraca e afastou-se para deixar Wigram entrar. Quando ele passou, ficou no ar um cheiro vago a água-de -colónia e charutos. Os olhos de Jericho foram direitos à gravura da capela que, constatou com alívio, parecia estar exactamente como a deixara. Fechou a porta.
— Percebo o que dizia acerca do quarto — disse Wigram, colocando as mãos no vidro para espreitar pela janela. — O inferno por que temos de passar, hem? E ainda por cima dá para a linha férrea. Uma maravilha. — Correu os reposteiros e voltou-se para Jericho, ao mesmo tempo que limpava os dedos a um lenço com uma delicadeza quase feminina. — Estamos bastante preocupados. — O sorriso alargou-se. — Estamos bastante preocupados com uma rapariga chamada Claire Romilly. — Dobrou o quadrado de seda azul e voltou a colocá-lo no bolso do peito. — Importa-se que me sente?
Tirou o sobretudo e deitou-o em cima da cama; depois puxou ligeiramente as calças listadas à altura dos joelhos, para não danificar os vincos e sentou-se na beira do colchão, começando a balançar-se para cima e para baixo. Tinha o cabelo louro, tal como as sobrancelhas, as pestanas e os pelos das costas das mãos, brancas e limpas... Jericho sentiu comichões na pele, do medo e da aversão.
Wigram deu uma palmada no colchão. — Vamos conversar. — Não pareceu minimamente incomodado por Jericho não ter saído do mesmo lugar. Limitou-se a cruzar as mãos sobre o colo, satisfeito.
— Muito bem — disse ele. — Vamos então começar, está bem? Claire Romilly.» Vinte anos de idade. Funcionária dos serviços administrativos. Oficialmente desaparecida há... — olhou para o relógio — ...doze horas. Não se apresentou para o turno desta manhã. Na verdade, quando se começa a procurar, já ninguém a vê desde a meia-noite de sexta-feira... sim senhor, há quase dois dias... quando saiu dos serviços depois do trabalho. A rapariga que vive com ela jura que não a vê desde quinta-feira. O pai diz que não a vê desde o Natal. Mais ninguém, colegas de trabalho, família, etc, ninguém parece fazer a mínima ideia. Desapareceu. — Wigram estalou os dedos. — Sem mais nem menos. — Pela primeira vez parou de sorrir. — Ela era uma grande amiga sua, não era?
— Eu já não a vejo desde o princípio de Fevereiro. É por isso que a polícia está lá fora?
— Muito amiga mesmo? Tão amiga que tentou falar com ela? Esteve no chalé a noite passada, segundo me disse a nossa pequena Miss Wallace. Muito nervoso. Perguntas e mais perguntas. Depois, esta manhã, foi ao Anexo 3. Perguntas e mais perguntas outra vez. Faz um telefonema para o pai dela. Ah, sim — disse ele, notando a surpresa de Jericho — ele telefonou-nos logo a seguir para nos dizer que você tinha ligado. Não conhece o Ed Romilly? Um tipo impecável. Não chegou a dar tudo o que tinha para dar, segundo consta. Transformou-se completamente, quando a mulher morreu. Diga-me, Mr. Jericho, porquê o interesse?
— Estive fora durante um mês. Ainda não tinha estado com ela.
— Mas tenho a certeza de que, sobretudo agora, tem coisas muito mais importantes a preocupá-lo do que reatar uma velha amizade?
Estas últimas palavras quase se perderam no ruído ensurdecedor de um expresso que passava. O quarto vibrou durante quinze segundos, que foi a duração exacta do sorriso de Wigram. Quando o ruído terminou, disse: — Ficou surpreendido por o terem ido buscar a Cambridge?
— Fiquei. Acho que fiquei. Oiça, Mr. Wigram, exactamente, quem é o senhor?
— Surpreendido, quando lhe disseram por que razão era necessária a sua presença aqui?
— Não. Surpreendido, não — procurou a palavra. — Chocado.
— Chocado. Alguma vez falou com a rapariga acerca do seu trabalho?
— É claro que não.
— É claro que não. Contudo, é muito estranho... possivelmente mais do que uma coincidência, possivelmente até sinistro que num determinado dia os Alemães nos ponham em blackout informativo no Atlântico Norte e dois dias depois a namorada de um criptanalista do Anexo 8 desapareça. Na verdade, precisamente no mesmo dia em que ele regressa.
O olhar de Jericho deambulou involuntariamente para a gravura da capela. — Já lhe disse. Nunca falei com a Claire acerca do meu trabalho. Não a via há um mês. E ela não era minha namorada.
— Ah, não? Então era o quê?
Então era o quê? Boa pergunta. — Só queria vê-la — disse Jericho sem convicção. — Como não consegui encontrá-la, fiquei preocupado.
— Tem alguma fotografia dela? Recente?
— Não. Para dizer a verdade, não tenho nenhuma fotografia dela.
— A sério? Ora cá está outra coisa engraçada. Uma rapariga bonita como ela... Mas conseguiremos encontrar alguma fotografia? Bem, teremos de utilizar a cópia do cartão dela no ficheiro dos Serviços Sociais.
— Para quê?
— Sabe usar uma arma, Mr. Jericho?
— Nem para dar um tirinho na feira popular.
— Bem, isso era exactamente o que eu teria pensado, apesar de uma pessoa nunca dever julgar um tipo pelas aparências. É que a Guarda de Bletchley Park sofreu um pequeno furto no depósito de armas na sexta-feira à noite. Desapareceram dois objectos: um revólver Smith &Wesson 38, fabricado em Springfield, Massachusetts, e enviado pelo Ministério da Guerra no ano passado; e uma caixa com trinta e seis conjuntos de munições.
Jericho não disse uma palavra. Wígram observou-o durante algum tempo, como se estivesse a decidir alguma coisa. — Não vejo qualquer razão para que não saiba. Um tipo de confiança como o senhor. Sente-se aqui. — Voltou a bater no colchão. — Não posso gritar o maior segredo do Império Britânico de um extremo ao outro do quarto. Vá, sente-se. Prometo que não o mordo.
Relutante, Jericho sentou-se. Wigram inclinou-se para a frente. Quando o fez, o casaco afastou-se ligeiramente e Jericho vislumbrou um brilho de couro e de aço de uma arma encostada à camisa branca.
— Quer saber quem eu sou? — disse ele, suavemente. — Eu digo-lhe quem sou. Sou o homem que os nossos superiores escolheram para descobrir o que é que se passa aqui no seu pequeno antes mundi. — Falava tão baixo que Jericho se viu obrigado a aproximar a cabeça para o ouvir. — Há campainhas a tocar, percebe. Campainhas horríveis. Há cinco dias, o Anexo 6 descodificou uma mensagem do Exército Alemão vindo do Médio Oriente. O General Rommel estava a ficar com mau perder. Parece achar que a única razão por que está a perder é porque parecia que, através de algum milagre, nós sabíamos sempre onde ele ia atacar. De repente, o Afrika Corps pede um inquérito à segurança dos criptogramas. Meu Deus. Tlim tlim. Doze horas mais tarde, o almirante Dõnitz, por razões ainda desconhecidas, decide, de repente, apertar os procedimentos do Enigma alterando o código meteorológico dos submarinos. Outra vez tlim tlim. Hoje, foi a LuftwarTe. Cinco navios mercantes, carregados de mercadorias para
o acima mencionado Rommel foram recentemente «surpreendidos» pela RAF e afundados quando vinham da Tunísia. Esta manhã, descobrimos que o comandante alemão do Mediterrâneo, o Marechal de Campo Kesselring em pessoa, nem mais, pergunta como foi que o inimigo conseguiu ler as suas mensagens. — Wigram deu umas palmadinhas no joelho de Jericho. — É campainhas por todo o lado, Mr. Jericho. Um coro de campainhas digno de um Dia de Coroação em Westminster Abbey. E no meio disto tudo, a sua amiguinha desaparece assim como uma arma novinha em folha e uma caixa de balas.
— Ora o que é que nós temos aqui entre mãos exactamente? — perguntou Wigram. Tinha pegado num pequeno bloco de notas em couro e numa caneta dourada. — Claire Alexandra Romilly. Nascimento: Londres, vinte e um do doze de vinte e dois. Pai: Edward Arthur Macauley Romilly, diplomata. Mãe: a Honorável Alexandra Romilly, Harvey de solteira, falecida num acidente rodoviário na Escócia, em Agosto de vinte e nove. A criança é educada no estrangeiro. Colocações do pai: Bucareste, vinte e oito a trinta e um; Berlim, trinta e um a trinta e quatro; Washington, trinta e quatro a trinta e oito. Um ano em Atenas e depois regressa a Londres. A rapariga, nesta altura, está a terminar os estudos em Genebra. Regressa, a Londres, quando a guerra começa; tinha dezassete anos. Principal ocupação para os três anos seguintes, tanto quanto se sabe: divertir-se. —Wigram passou o dedo pela língua e virou a página. — Um serviço voluntário de defesa civil. Nada muito árduo. Julho de quarenta e um: tradutora no Ministério da Economia de Guerra. Agosto de quarenta e dois: candidata-se a um cargo de empregada de escritório no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Falava bem línguas Recomendada para Bletchley Park. Ver carta anexa do pai, etc, etc. Entrevistada a 10 de Setembro. É aceite e começa a trabalhar na semana seguinte. — Wigram folheou o bloco para trás e para a frente. — É isto. Não é propriamente um processo de selecção lá muito rigoroso, pois não? Mas é oriunda de uma família assustadoramente bem. E o papá dela trabalha mesmo no Ministério E estamos mesmo a braços com uma guerra. Quer acrescentar alguma coisa ao processo?
— Não me parece que possa.
— Como foi que a conheceu?
Jericho respondeu às perguntas de Wigram durante os dez minutos que se seguiram. Fê-lo com cuidado e, acima de tudo, com confiança. Sempre que mentia era apenas por omissão. Tinham ido a um concerto, a primeira vez que saíram juntos. Depois disso tinham saído à noite mais algumas vezes. Tinham ido ao cinema. Ver que filme? Sangue, Suor e Lágrimas.
— Gostou?
— Gostei.
— Vou dizer ao Nõel.
Ela nunca tinha falado de política. Nunca tinha falado sobre o trabalho dele. Nunca tinha falado de outros amigos.
— Dormiu com ela?
— Meta-se na sua vida.
— Vou escrever que sim.
Mais perguntas. Não, ele não notara nada de estranho no seu comportamento. Não, ela não lhe tinha parecido tensa ou nervosa, reservada, silenciosa, agressiva, curiosa, mal humorada, deprimida ou exultante — não, nada disso — e, no fim, não tinham discutido. De certeza? Sim. Então... então, o quê?
— Não sei. Separámo-nos.
— Ela andava com mais alguém?
— Talvez. Não sei.
— Talvez. Não sabe. — Wigram abanou a cabeça, pensativo. — Fale-me da noite passada.
— Fui de bicicleta até ao chalé dela.
— A que horas?
— Por volta das dez, dez e meia. Ela não estava. Falei um pouco com Miss Wallace. Depois vim para casa.
— Mrs. Armstrong diz que só o ouviu a entrar às duas da manhã. Não adianta nada passar em bicos de pés em frente à porta dela,
pensou Jericho.
— Devo ter andado às voltas com a bicicleta.
— Digamos que sim. No gelo. No blaçkout. Deve ter andado às voltas durante três horas.
Wigram olhou fixamente para as suas notas, dando pancadinhas
no nariz. — Não bate certo, Mr. Jericho. Não sei exactamente o quê, mas sei que há algo que não bate certo. Contudo... — Fechou o bloco de notas com um estalido e rasgou um sorriso tranquilizador. — Temos muito tempo para tratar disso mais tarde. Apoiou a mão no joelho de Jericho e levantou-se. — Primeiro, temos de apanhar o nosso coelho. Não faz ideia de onde ela possa estar, pois não? Não tinha tias preferidas? Não tinha nenhuma toca onde se pudesse esconder? — Olhou fixamente para Jericho, que tinha os olhos pregados no chão. — Não? Não. Foi o que pensei.
Quando Jericho se sentiu confiante para erguer novamente os olhos, Wigram tinha colocado o seu belo sobretudo pelos ombros e estava preocupado a tirar borboto da gola.
— Pode ter sido tudo uma coincidência — disse Jericho. — Percebe isso, não percebe? Quero dizer, o Dõnitz sempre pareceu desconfiar do Enigma. Foi por isso que deu o Tubarão aos submarinos.
— Oh, sem dúvida — disse Wigram todo sorridente. — Mas, vamos ver as coisas por outro prisma. Imaginemos que chegou aos ouvidos dos Alemães o que nós estávamos a fazer. O que é que eles fariam? Não podiam acabar com cem máquinas do Enigma de um dia para o outro, pois não? E todos os peritos deles, que sempre disseram que o Enigma era impenetrável? Não vão mudar de ideias sem dar luta. Nem pensar. Fariam aquilo que parece que estão a fazer. Começariam a investigar todos os incidentes suspeitos. Entretanto, tentariam encontrar provas concretas. Uma pessoa, talvez. Melhor ainda, uma pessoa com acesso a documentos que o comprovassem. Meu Deus, o que não falta para aí são pessoas dessas. Milhares de pessoas, aqui mesmo, que ou sabem a história toda ou só um pouco, mas o suficiente para somar dois mais dois. E que género de pessoas são essas? — Retirou um papel do bolso de dentro do casaco e desdobrou-o. — Esta é a lista que pedi para ontem. Onze pessoas da Secção Naval tinham conhecimento da importância do Caderno de Mensagens Meteorológicas. Temos aqui uns nomes bastante esquisitos, se pensarmos bem. O Skynner podemos excluir, acho eu. E o Logie... parece-me suficientemente fora de suspeitas. Mas o Baxter? O Baxter é comunista, não é?
— Vai ver que os comunistas não têm muito tempo para dar aos nazis. É essa a regra.
— Então e o Puckowski?
— O Puck perdeu o pai e a mãe, quando a Polónia foi invadida. Tem asco aos Alemães.
— Então e o americano? O Kramer. Kramer? Sabia que ele é da segunda geração de emigrantes alemães?
— Os Alemães também lhe mataram um irmão. Com franqueza, Mr. Wigram, isto é ridículo...
— Atwood. Pinker. Kingcome. Proudfoot. de Brooke. O senhor... Quem é o senhor exactamente? — Os olhos de Wigram percorreram o quarto minúsculo com repugnância: as cortinas esfiapadas, o guarda-fatos em mau estado, a cama aos altos e baixos. Pela primeira vez, pareceu reparar na gravura da capela que estava por cima da lareira. — Quero dizer, só porque um tipo esteve no Kings College, em Cambridge...
Pegou na gravura e inclinou-a por baixo do candeeiro. Jericho observava-o, sem pinga de sangue.
— E.M. Foster — disse Wigram pensativamente. — Ele continua no King's College, não continua?
— Julgo que sim.
— Conhece-o?
— Vagamente.
— Sobre o que era aquela dissertação dele? Como é que era? Aquela acerca de escolher entre o amigo e o país?
— «Detesto a ideia das grandes causas e, se tivesse de escolher entre trair o meu país e trair o meu amigo, gostaria de ter coragem para trair o meu país.» Mas ele escreveu isto antes da guerra.
Wigram soprou o pó da moldura e voltou a colocar a gravura cuidadosamente por cima dos livros de Jericho.
— É o que espero — disse ele, afastando-se para admirá-la. Voltou-se e sorriu para Jericho. — É mesmo o que espero.
Depois de Wigram ter saído, foram precisos alguns minutos para Jericho conseguir mexer-se.
Deitou-se ao comprido na cama, ainda com o cachecol e o sobretudo vestidos, e ficou a ouvir os ruídos domésticos. Um pesaroso quarteto de cordas, que a BBC considerava o entretenimento mais adequado para um domingo à noite, arranhava uns acordes lá em baixo. Ouviu passos no corredor. Seguiu-se uma conversa sussurrada que terminou com um ataque de risinhos de mulher. Miss Jobey, talvez? Ouviu-se uma porta bater. O reservatório de água que se encontrava por cima da cabeça dele esvaziou-se e encheu-se novamente. Silêncio outra vez.
Quando se mexeu, cerca de um quarto de hora depois, as suas acções tinham uma ligeireza frenética, desajeitada. Transportou a cadeira do lado da cama para a porta e entalou-a contra o fino pai nel. Pegou no quadro e pousou-o com a imagem voltada para baixo no tapete puído, retirou as tachas, retirou a parte de trás, enrolou as mensagens e levou-as para a lareira. Por cima do pequeno balde de carvão que se encontrava ao lado da lareira estava uma caixa com dois fósforos.
O primeiro estava húmido e não acendeu, mas o segundo acendeu e Jericho virou-o de lado para se certificar de que a chama pegava e crescia, e depois chegou-o a uma das extremidades das mensagens. Não as largou enquanto não se retorceram e enegreceram, até a dor o obrigar a deixá-las cair na lareira, onde se desintegraram em pequenos flocos de cinza.
GRELHA: uma prova (geralmente um caderno de mensagens capturado ou uma quantidade de texto completo) que proporciona pistas para a descodificação de um criptograma; «Não há dúvida, a grelha... é a ferramenta mais importante para qualquer criptanalista» (Knox et ai., op. áx..,pág. 27)
Léxico da Criptografia («Altamente Secreto», Bletchley Park, 1943)
Os batons do tempo da guerra eram duros e pareciam cera; era como tentar pintar os lábios com uma vela de Natal. Quando, após vários minutos a esfregar, Hester Wallace voltou a pôr os óculos, semicerrou os olhos para o espelho com desagrado. Nunca tinha usado muito maquilhagem, nem mesmo antes da guerra, quando havia muita à venda nas lojas. Mas agora, que não havia nada para comprar, as distâncias que se tinham de percorrer eram bastante absurdas. Conhecia raparigas no anexo que faziam batons de raízes de beterraba misturadas com vaselina, que utilizavam graxa para sapatos e cortiça queimada como base e papel de embrulhar margarina para amaciarem a pele, que deitavam bicarbonato de soda debaixo dos braços para disfarçar o suor... Colocou os lábios em forma de arco de Cupido, mas fez uma careta. Na verdade, era absurdo, mesmo muito absurdo.
Parecia que a falta de cosméticos tinha atingido até Claire. Embora existisse uma grande abundância de boiões e frascos no pequeno toucador — Max Factor, Coty, Elizabeth Arden: nomes de fragrâncias fascinantes anteriores à guerra —- depois de uma investigação mais pormenorizada verificava-se que estavam quase todos vazios. Não sobrava nada excepto um vestígio de perfume. Hester cheirou cada um deles e a sua mente encheu-se de imagens de luxúria — encheu-se de imagens de vestidos de setim para cocktails Worth, de Londres, vestidos com atrevidos decotes, imagens de fogos-de-artifício em Versailles e no baile de Verão da Duquesa de Westminster, e imagens de muitos outros disparates semelhantes sobre que Claire costumava tagarelar. Por fim, encontrou um frasco meio-cheio de base e um boião com tampa de vidro com um centímetro de pó-de-arroz bastante granuloso, e meteu mãos ao trabalho.
Não teve pejo de se servir à vontade. A Claire não lhe dissera sempre que o devia fazer? Tratar da maquilhagem era divertido, era a filosofia de Claire, fazia uma pessoa sentir-se bem consigo mesma, transformava-a numa outra pessoa e, além disso, «se épreciso fazer isso, minha querida, então é isso que se faz». Muito bem. Hester alisou inflexivelmente as faces pálidas. Se era isto que era preciso fazer para a ajudar a convencer Miles Mermagen a aprovar a sua transferência, era mesmo isto que ele ia ter.
Olhou para o espelho sem entusiasmo, depois repôs tudo cuidadosamente no lugar e desceu as escadas. A sala-de-estar tinha sido varrida há pouco. Narcisos silvestres sobre a lareira. O fogo estava aceso. A cozinha também não tinha qualquer mancha de sujidade. Tinha feito uma tarte de cenoura, o suficiente para duas pessoas, com ingredientes que ela própria cultivara no pequeno quintal à porta da cozinha, e colocou um prato para Claire, e deixou um bilhete informando-a de como o poderia aquecer. Hesitou, mas depois acrescentou: «Bem-vinda de volta a casa, de onde quer que tenhas estado! Com muita amizade, H.» Esperava que não parecesse muito intrometida e inquisidora; esperava não estar a transformar-se na mãe de Claire.
«ADU, Miss Wallace...»
É claro que Claire ia regressar. Não passava de uma preocupação estúpida, absurda de mais para ser descrita por palavras.
Sentou-se numa das poltronas e esperou por ela até faltar um quarto para a meia-noite, altura em que decidiu não esperar mais.
Aos saltos na bicicleta pelo caminho que levava à estrada, assustou uma coruja branca que levantou voo em silêncio, qual fantasma banhado pelo luar.
De certa forma, a culpa era toda de Miss Smallbone. Se Angela Smallbone não a tivesse avisado, quando estavam na sala comum da escola preparatória depois das aulas, não a tivesse avisado de que o Daily Telegraph estava a organizar um concurso de palavras cruzadas, a vida de Hester Wallace teria prosseguido normalmente. Não era uma vida particularmente emocionante; era uma vida provinciana e plácida numa remota e excêntrica escola preparatória para raparigas perto de Dorset, Beaminster, a menos de quinze quilómetros do local onde Hester crescera. E também não era uma vida muito afectada pela guerra, exceptuando as caras pálidas das crianças evacuadas alojadas em algumas das quintas das proximidades, o arame farpado ao longo da praia perto de Lyme Regis e a falta crónica de professores; uma falta que significou que, quando as aulas começaram, em Outubro de 1942, Hester teve de dar religião (a sua disciplina habitual) e também Inglês e ainda algum Latim e Grego.
Hester tinha um dom para palavras cruzadas e quando Angela leu, naquela noite, que o prémio era no valor de vinte libras... pensou, bem, porque não? O primeiro obstáculo, um quebra-cabeças extremamente difícil que saiu no jornal do dia seguinte, Hester passou-o com facilidade. Enviou a solução pelo correio e em breve recebia uma carta convidando-a para a final, a ser realizada na cantina do pessoal do Daily Telegraph, quinze dias depois, num sábado. Angela concordou ficar com os treinos de hóquei, e Hester apanhou o comboio de Crewkerne para Londres, juntou-se a outros cinquenta finalistas e ganhou. Fez as palavras cruzadas em três minutos e vinte e dois segundos e foi o próprio Lorde Camrose que a presenteou com o cheque. Deu cinco libras ao pai para o fundo de restauro da igreja, gastou sete libras num casaco novo de Inverno (em segunda mão, para dizer a verdade, mas como novo), e depositou o resto na conta poupança do Posto do Correio.
Fora na quinta-feira que chegara a segunda carta, esta muito diferente da primeira. Carta registada, grande envelope amarelo. Ao Serviço de Sua Majestade.
Mais tarde, ao pensar nisso, não conseguia decidir-se — teria o Daily Telegraph organizado o concurso a pedido do Ministério da Guerra, como forma de pesquisar o país em busca de homens e mulheres com aptidões para jogos de palavras? Ou teria algum inteligente do Ministério da Guerra visto o resultado do concurso e pedido uma lista com o nome dos finalistas ao Daily Telegraph?
Fosse a verdade qual fosse, cinco dos mais capazes foram convocados para uma entrevista num medonho bloco de escritórios de estilo vitoriano no outro lado do Tamisa, tendo três deles recebido ordens para se apresentarem em Bletchley.
A escola não queria que ela fosse. A mãe ficara em lágrimas. O pai detestara a ideia, tal como detestava qualquer género de mudança, e durante dias, antes de ela partir, encheu-se de premonições («Não mais regressará a sua casa e a sua casa deixará de o conhecer» Job 7.x). Mas a lei era a lei. Ela tinha de ir. Além disso, pensou, tinha vinte e oito anos. Estaria ela condenada a passar o resto da vida no mesmo lugar, enfiada naquela entediante manta de retalhos de talhões minúsculos e aldeias cor de mel? Esta era a sua hipótese de fuga. Na entrevista recolhera pistas suficientes para adivinhar que o trabalho envolveria códigos, e as suas fantasias eram todas de bibliotecas silenciosas e do ar puro e limpo do intelecto.
Quando chegou à estação de Bletchley com o casaco em segunda-mão, na manhã húmida de uma segunda-feira, foi levada de imediato para a mansão e deram-lhe para assinar uma cópia do Regulamento dos Segredos Oficiais. O capitão do Exército que os recebeu deitou a pistola em cima da secretária e disse que, se algum deles alguma vez contasse a alguém aquilo que ele lhes ia dizer agora, a utilizaria, e pessoalmente. Depois, foram nomeados. Os dois finalistas masculinos para criptanalistas, enquanto ela, a mulher que os vencera, foi enviada para uma barafunda chamada Controlo.
— Pegas neste impresso aqui, estás a ver, e inseres o código da estação interceptada na primeira coluna. Chicksands, exacto, é CKS, Beaumanor é BMR, Harpendon é HPN. Não te preocupes querida, hás-de habituar-te. Agora, aqui, vês, pões a hora da intercepção, aqui a frequência, aqui o sinal de chamada, aqui o número de grupos de letras...
As suas fantasias caíram por terra. Era uma ilustre escriturária, o Controlo o túnel de ligação entre as estações de intercepção e os criptanalistas, túnel pelo qual fluía uma carga interminável de cerca de quarenta mil sinais de chamada de rádio diferentes, utilizando mais de sessenta chaves do Enigma identificadas separadamente.
— Força Aérea Alemã, certo, são geralmente insectos ou flores. Assim tens Barata, isto é, trata-se da chave de Enigma para os caças ocidentais com base em França. Libélula é a Luftwaffe em Tunes. Gafanhoto é a Luftwaffe na Cecília. Tens uns doze desses. As tuas flores são a Zona Aérea Operacional — Dedaleira: frente oriental, Narciso Silvestre: frente ocidental, Narciso: Noruega. Os pássaros são para o Exército alemão. Tentilhão e Fénix, são Panzerarmee Afrika. Falcão e Abutre — frente russa. Dezasseis passarinhos. Depois há Alho, Cebola, Aipo — todos os vegetais são Enigmas meteorológicos. Vão direitinhos para o Anexo 10. Percebeste?
— O que são Doninha e Porco-espinho?
— Doninha é Fliegerkorps VIII, frente oriental. Porco-espinho é cooperação terra-ar, sul da Rússia.
— Porque é que também não são insectos?
— Sabe-se lá.
As tabelas que tinham de preencher chamavam-se blists ou hankies, o arquivo para vários assuntos de menor importância era conhecido por Titicaca («um lago dos Andes alimentado por vários rios» — disse Mermagen solenemente — «mas sem saída»). Os homens punham nomes idiotas uns aos outros — «o Zebra-Unicórnio», «o Sopa de Tartaruga» — enquanto as raparigas sonhavam com os criptanalistas mais bem-parecidos da Sala das Máquinas. Sentada no anexo gelado, durante todo aquele Inverno, compilando as listas intermináveis, Hester imaginava a Alemanha nazi apenas como uma planície ensombrada e interminável, com milhares de pequenas luzes isoladas tremeluzindo na escuridão. Por estranho que parecesse, pensou que, à sua maneira, tudo isso estava tão longe da guerra como os prados e os celeiros com telhados de colmo de Dorset.
Estacionou a bicicleta no barracão ao lado da cantina e foi arrastada pela corrente de trabalhadores que parou junto à entrada do Anexo 6. O Controlo encontrava-se já em grande reboliço, com Mermagen a correr alvoroçado e cheio de importância por entre as secretárias, batendo com a cabeça nos candeeiros e espalhando luz amarela em todas as direcções. A Quarta Divisão Panzer comunicava a retomada bem sucedida de Kharkov aos Russos e os idiotas do Anexo 3 pediam que todas as frequências do sector sul, frente oriental, fossem reconfirmadas imediatamente.
— Hester, Hester, mesmo a tempo. Falas com o Chicksands, não falas, linda menina, a ver o que eles podem fazer? E já que estás com a mão na massa, a Sala das Máquinas acha que apanharam um texto viciado na última série do Falcão. A operadora precisa de verificar as notas e reenviá-las. E as mensagens das onze de Beaumanor precisam todas de ser registadas nas tabelas. Arranja alguém para te ajudar. Ah, e o índice precisava de ser organizado.
Tudo isto antes mesmo de ela ter tirado o casaco.
Eram já duas horas quando teve tempo para se escapar e falar com Mermagen em particular. Ele estava no seu gabinete tipo armário para vassouras, com os pés em cima da secretária, a estudar um monte de papéis com os olhos semi-cerrados, numa pose horrível que ela adivinhava copiada de algum actor dos filmes.
— Será que te posso dar uma palavrinha, Miles?
Miles. Achava esta insistência nos nomes próprios de uma artificialidade verdadeiramente desagradável, mas ser informal era uma regra de ouro, uma parte essencial da ética de Bletchley: nós, os civis amadores derrotá-los-emos a eles, aos disciplinados Hunos.
Mermagen continuou a estudar os papéis.
Ela bateu com o pé. — Miles?
Passou uma página à frente. — Tens toda a minha dividida atenção.
— O meu pedido de transferência... Resmungou e virou outra página. — Outra vez, não.
— Tenho andado a aprender alemão...
— Que bom.
— Tu disseste que sem saber alemão seria impossível uma transferência, não disseste?
— Disse, mas não disse que saber alemão tornava uma transferência plausível. Oh, que grande chatice! Bem, entra.
Com um suspiro, pousou os papéis e fez-lhe um gesto para que entrasse. Alguém lhe devia ter dito que o Brylcreem lhe dava um ar agradável. O cabelo preto e oleoso estava varrido para trás, deixando-lhe a descoberto a testa e as orelhas, e reluzia como a touca de um nadador. Estava a tentar deixar crescer um bigode à Clark Gable, mas estava um pouco mais comprido do lado esquerdo.
— As transferências de pessoal de uma secção para outra são, como já te disse, extremamente raras. Temos de levar em consideração a segurança.
Levar em consideração a segurança: devia ter sido assim que ele recusara empréstimos antes da guerra. De repente, Mermagen começou a olhá-la com interesse e ela reparou que ele tinha notado a maquilhagem. Mermagen não ficaria com um ar mais surpreendido se ela se tivesse pintado com azul de metleno. A sua voz pareceu cair uma oitava.
— Olha lá, Hester, a última coisa que eu quero é ser difícil. O que precisas é de mudar de ares por um dia ou dois. — Cofiou ao de leve o bigode e esboçou um sorriso vago de agradecimento, como se ficasse surpreendido por o encontrar ainda no mesmo sítio. — Porque não vais visitar uma das nossas estações de intercepção, para perceberes melhor onde é que encaixas na cadeia. A mim — acrescentou — também me fazia bem uma pausa. Podíamos ir os dois.
— Os dois? Sim... Porque não? E depois procurávamos uma taberna confortável onde pudéssemos parar para almoçar?
— Excelente. Fazer uma pausa a sério.
— Talvez uma taberna com quartos, para passarmos a noite, caso ficasse muito tarde?
Ele riu-se com o nervosismo. — Mesmo assim, continuava a não poder garantir a transferência, sabes?
— Mas ajudava?
— És tu quem o diz.
— Miles?
— Mmmm?
— Preferia morrer.
— Sua puta frígida.
Encheu o lavatório com água fria e molhou a cara, furiosa. A água gelada entorpeceu-lhe as mãos e queimou-lhe a cara. A água entrou-lhe pela gola e pelas mangas do casaco. Soube-lhe bem aquele choque e o desconforto. Merecia-o como castigo pela sua leviandade e pelo erro que cometera.
Comprimiu o ventre liso contra a extremidade do lavatório e olhou fixamente para a cara branca como giz reflectida no espelho.
É claro que não valia a pena apresentar queixa. Era a palavra dela contra a dele. Nunca a acreditariam. E mesmo que acreditassem... de que adiantava? Meu Deus, era simplesmente assim que o mundo funcionava. O Miles bem podia encostá-la contra o maldito Lago Titicaca e enfiar-lhe a mão pela saia acima, que eles não a deixariam sair: ninguém que tenha visto tanto como ela teria alguma vez autorização para sair.
Sentiu uma ferroada da sua auto-comiseração no canto dos olhos e, baixando imediatamente a cabeça para o lavatório, encharcou a cara, esfregando as bochechas com uma lasca de sabão carbólico até o pó-de-arroz tingir a água de cor-de-rosa.
Quem lhe dera poder falar com Claire.
«ADU, Miss Wallace...»
Ouviu o som do autoclismo por detrás dela. Retirou apressadamente a válvula do lavatório e secou a cara e as mãos.
Nome da estação de intercepção, tempo de intercepção, frequência, sinal de chamada, grupos de letras... Nome da estação de intercepção, tempo de intercepção, frequência, sinal de chamada, grupos de letras...
A mão de Hester percorria o papel de forma mecânica.
As quatro horas, a primeira metade do turno da noite começou a dirigir-se para a cantina.
— Não vens, Hetty?
— Tenho muito que fazer, infelizmente. Eu já vou lá ter.
— Coitadinha!
— Coitadinha e o estupor do Miles — disse Beryl McCann que tinha ido uma vez para a cama com Mermagen e antes não tivesse.
Hester baixou a cabeça é continuou a escrever com a sua letra cuidada, própria de professora. Viu as outras mulheres vestirem os casacos e saírem umas atrás das outras com os sapatos a bater no soalho de madeira. Ah, mas Claire tinha tido tanta graça a imitá-las. Era uma das coisas que Hester mais apreciava nela, a forma como imitava toda a gente: Anthea Leigh-Delamere, a caçadora, que gostava de ir trabalhar com calças de montar; Binnie com a pele da cor da cera, que queria ser freira Católica; aquela rapariga de Solihull que mantinha o telefone a meio-metro da boca porque a mãe lhe dissera que o auscultador estava cheio de micróbios... Tanto quanto sabia, Claire nunca tinha visto Miles Mermagen, mas sabia imitá-lo na perfeição. Os horrores de Bletchley tinham sido uma piada partilhada só pelas duas, a sua conspiração privada contra a chatíssima rotina.
A porta da rua, ao ser aberta, deixou entrar uma rajada repentina de ar gélido. Blists e hankies esvoaçaram ruidosamente com a corrente de ar.
Chatos. Chatice. Estas eram as palavras preferidas de Claire. Bletchley Park era uma chatice. A guerra era uma chatice. A povoação era uma tremenda chatice. E os homens eram os maiores chatos de todos. Os homens — meu Deus, a que é que ela costumava cheirar? — havia sempre no mínimo dois ou três atrás dela como gatos no cio. E como ela os ridicularizava, naquelas noites inesquecíveis que passavam juntas, sentadas à lareira em amena cavaqueira, como marido e mulher. Ridicularizava as suas atrapalhações, os seus diálogos enfadonhos, a sua ridícula auto-estima. O único homem que ela nunca ridicularizara, agora que pensava no caso, fora o estranhíssimo Mr. Jericho, que ela nem chegara a mencionar.
«ADU, Miss Wallace...»
Agora que se decidira a fazê-lo — e não teria ela sabido desde sempre, no seu íntimo, que o iria fazer? — estava admirada de se sentir tão calma. Daria apenas uma olhadela rapidíssima, dissera para si mesma; que mal poderia ter? Tinha até uma desculpa perfeita para ir ao índice. A besta do Miles não lhe dera ordens, à vista de toda a gente, para verificar se os volumes estavam todos na ordem correcta?
Terminou a tabela e arquivou-a. Depois, obrigou-se a fazer uma pausa credível, fingindo verificar o trabalho das outras, posto o que se dirigiu o mais à vontade que foi capaz para a Sala dos Ficheiros.
Jericho abriu as cortinas para descobrir outra manhã límpida e gélida. Era apenas o seu terceiro dia na Pensão Comercial, mas a vista tornara-se já enfadonhamente familiar. Primeiro aparecia o jardim, comprido e estreito (um pátio cimentado com linha de lavagem, uma pequena horta e abrigo anti-bomba) que terminava ao fim de aproximadamente setenta metros e dava para uma selva de ervas daninhas e uma cerca derrubada e apodrecida. Depois havia um desnível que não conseguia ver, talvez um valado, e depois uma grande extenção de linhas férreas, doze ou mais, que conduziam, por fim, à peça central: um enorme abrigo de máquinas da época vitoriana com as palavras LONDON MIDLAND & SCOTTISH RAILWAY pintadas a branco, quase invisíveis por debaixo da sujidade.
Que dia se adivinhava: aquele género de dias que se passavam com o único objectivo de se chegar ao fim intacto. Olhou para o despertador. Passavam quinze minutos das sete horas. Seria noite no Atlântico Norte pelo menos durante mais quatro horas. Pelos seus cálculos, não tinha nada para fazer até, pelo menos, à meia-noite, hora de Inglaterra, quando os primeiros elementos do comboio começassem a entrar na zona de perigo dos submarinos. Nada a fazer excepto esperar no anexo e preocupar-se.
Durante a noite, houve três ocasiões em que Jericho decidira ir procurar Wigram e fazer uma confissão completa; na última dessas ocasiões chegou mesmo a vestir o casaco. Mas no fim, sentiu-se incapaz de tomar uma decisão. Por um lado, sim, era seu dever dizer a Wigram tudo o que sabia. Por outro, não, o que sabia pouca diferença faria para a encontrarem e, por isso, para quê traí-la? As equações cancelaram-se uma à outra. Pela madrugada rendera-se agradecido à velha inércia, resultado inevitável de se considerarem sempre ambos os lados das questões.
E podia ser tudo apenas um erro lamentável, não podia? Uma brincadeira que correra mal? Tinham-se passado onze horas desde a sua conversa com Wigram. Se calhar, até já a tinham encontrado. O mais certo era ela ter aparecido no chalé ou no anexo, de olhos esbugalhados, espantada com todo aquele alvoroço.
Estava quase a sair da janela quando a sua visão foi apanhada por um movimento na extremidade do abrigo das máquinas. Parecia um animal de grande porte ou um homem a rastejar? Espreitou pelo vidro coberto de fuligem com os olhos semi-cerrados, mas a coisa estava muito longe para conseguir descortinar o que era, por isso, agarrou no telescópio que se encontrava no fundo do guarda-fatos. A janela estava encravada, mas umas pancadas fortes com a mão foram suficientes para a levantarem alguns centímetros. Ajoelhou-se e apoiou o telescópio no peitoril da janela. De início, não conseguia encontrar nada para focar entre as encruzilhadas estonteantes dos carris, mas, de repente, a imagem encheu o óculo: um lobo da Alsácia, do tamanho de um vitelo, farejava por debaixo das rodas de um vagão de mercadorias. Deslocou o telescópio um pouco para a esquerda e apanhou um polícia com um casaco que lhe chegava até abaixo dos joelhos. Na verdade, eram dois polícias, e um segundo cão, à trela.
Observou o pequeno grupo durante vários minutos enquanto revistavam o comboio vazio. Depois, as duas equipas separaram-se, subindo uma um pouco mais as linhas e desaparecendo a outra em direcção às pequenas barracas do caminho-de-ferro que se encontravam no lado oposto. Fechou o telescópio.
Quatro homens e dois cães para o caminho-de-ferro. E, digamos, mais duas equipas para cobrirem as plataformas da estação. Quantas existiriam na povoação inteira? Vinte? E na zona rural circundante?
«Tem alguma fotografia dela? Algo recente?»
Bateu suavemente com o telescópio no queixo.
Devem estar a vigiar todos os portos e todas as estações de caminhos-de-ferro do país.
O que fariam se a apanhassem?
Enforcavam-na?
Então, Jericho. Quase conseguia ouvir a voz do professor de ginástica ao seu lado. Coragem, rapaz.
A vida continuava.
Lavar-se. Fazer a barba. Vestir-se. Fazer uma pequena trouxa de roupa para lavar e deixá-la em cima da cama para Mrs. Armstrong levar; era uma esperança mais do que uma certeza. Descer as escadas. Fazer tentativas para manter uma conversa bem educada. Escutar uma das intermináveis histórias a preto-e-branco de Bonnyman. Ser apresentado a dois dos outros hóspedes: Miss Quince, bastante bonita, uma das Teleprincesas do anexo naval, e Noakes, em tempos especialista em épicos corteses em alemão médio-alto, presentemente criptanalista na secção meteorológica, vagamente conhecido desde 1940: uma pessoa carrancuda, então e agora. Evitar alongar a conversa. Mastigar a torrada seca como cartolina. Beber chá cinzento e aguado como o céu de Fevereiro. Ouvir as notícias na rádio: «A Rádio de Moscovo informa que o Terceiro Exército Russo, sob as ordens do General Vatutin, está a defender fortemente Kharkov face à nova ofensiva alemã...»
As oito menos dez, Mrs. Armstrong entrou com o correio. Nada para Mr. Bonnyman («graças a Deus», disse Bonnyman), duas cartas para Miss Jobey, um postal para Miss Quince, uma conta da livraria Heffers para Mr. Noakes e absolutamente nada para Mr. Jericho — ah, excepto isto, que ela encontrara quando descera e que alguém devia ter metido por debaixo da porta durante a noite.
Recebeu-o com cuidado. Era um envelope de má qualidade, com ar oficial, com o nome dele escrito a tinta azul e palavras «Por mão própria. Estritamente Pessoal» acrescentadas por baixo e sublinhadas com dois traços. As letras «e» estavam escritas em grego. Talvez o seu correspondente nocturno fosse algum estudioso dos clássicos.
Levou-o para o corredor para o abrir, com Mrs. Armstrong atrás.
Hut6 04:45
Caro Mr. Jericho,
Uma vez que se mostrou tão interessado por esculturas medievais em alabastro, quando ontem nos encontrámos, convido-o a encontrar-se comigo no mesmo local às oito da manhã para visitar o túmulo de Lorde Grey de Wilton (Século XV) é mesmo muito interessante).
Atenciosamente, H.A.W.
— Más notícias, Mr. Jericho? — Mrs. Armstrong não conseguia esconder a nota de esperança que tinha na voz.
Mas Jericho ia já a sair porta fora levando o sobretudo atrás.
Mesmo depois de subir a colina em passo acelerado, continuava atrasado cinco minutos, quando passou pelo monumento granítico à guerra. Não havia sinal nem dela nem de ninguém no cemitério, pelo que tentou a porta da igreja. A princípio pensou que estava fechada. Foi preciso usar as duas mãos para conseguir fazer girar a argola de ferro ferrugenta. Empurrou a porta de carvalho gasta pelo tempo, que estremeceu e ressoou.
O interior da igreja parecia uma gruta, de tão gélido e escuro que era, com as sombras perfuradas pelos feixes de luz de um azul ardósia, tão sólidos que pareciam estacas de madeira saídas das janelas. Já não entrava há anos numa igreja e o pivete arrepiante a cera de velas, a humidade e a incenso trouxe-lhe à memória recordações de infância. Pareceu-lhe vislumbrar o contorno de uma cabeça num dos bancos perto do altar e para lá se encaminhou.
— Miss Wallace? — a sua voz soou oca, como se viesse de muito longe. Mas, quando se aproximou, verificou que não se tratava de uma cabeça, eram as vestes do padre, embrulhadas com cuidado nas costas do banco. Passou pela coxia, entre os bancos, em direcção ao altar revestido a madeira. À esquerda existia um caixão com uma inscrição; ao lado, a imagem suave e branca de Richard, Lorde Grey de Wilton, morto há cinco séculos, que ali repousava envergando a armadura completa, com a cabeça a descansar no capacete e os pés nas costas de um leão.
— A armadura é especialmente interessante. Mas a guerra, no século XV, era o mais elevado ofício para um cavalheiro.
Não sabia de onde ela surgira. Ela estava ali simplesmente, quando se voltou, a cerca de dez metros do sítio onde se encontrava.
— E a cara, na minha opinião, também é boa, embora vulgar. Não foi seguido, espero?
— Não. Acho que não. Não.
Ela deu alguns passos na direcção dele. Com aquela face sem expressão e aqueles dedos brancos de cera, dir-se-ia ela própria uma imagem de alabastro apeada do túmulo de Lorde Grey.
— Talvez tenha reparado nas armas reais que se encontram sobre a porta norte?
— Há quanto tempo está aqui?
— São as armas da Rainha Ana mas, inexplicavelmente, ainda são ao estilo dos Stuart. As armas da Escócia foram acrescentadas apenas em 1707. Isso é que é raro. Há cerca de dez minutos. A polícia ia mesmo a sair quando cheguei. — Esticou a mão. — Pode devolver-me a mensagem, por favor.
Como ele hesitasse, ela voltou a estender a mão, desta vez mais enfaticamente.
— A mensagem, por favor, se quiser ter a amabilidade. Prefiro não deixar qualquer prova. Obrigado. — Pegou nela e guardou-a no fundo do volumoso saco de tapeçaria. As mãos tremiam-lhe tanto que teve dificuldade em apertar o fecho. — A propósito, não é preciso sussurrar. Não está aqui mais ninguém. Além de Deus. E Ele deve estar do nosso lado.
Jericho sabia que era melhor esperar, deixá-la tocar no assunto, mas não conseguiu controlar-se.
— Verificou? — perguntou. — O sinal de chamada? Finalmente, ela tinha conseguido fechar o saco. — Sim. Verifiquei.
— E é do Exército ou da Luftwaffe?
Ela esticou o dedo. — Um pouco de paciência, Mr. Jericho. Um pouco de paciência. Antes de mais, gostaria que me desse umas informações, se não se importa. Podemos começar pela razão que o levou a escolher aquelas três letras.
— Você não quer saber, Miss Wallace. Acredite em mim. Ergueu os olhos para o céu. — Valha-me Deus: mais um.
— Perdão?
— Mr. Jericho, a sensação que tenho é que ando a passar de um homem protector para outro, num círculo interminável, sempre a ouvi-los dizerem-me aquilo que posso e não posso saber. Bem, ficamos por aqui. — Apontou para as lajes do chão.
— Miss Wallace — disse Jericho no mesmo tom frio e formal — vim aqui em resposta à sua carta. Não nutro qualquer interesse por esculturas de alabastro, sejam elas medievais, vitorianas ou da China antiga. Se não tem mais nada a dizer-me, tenha um muito bom-dia.
— Então, bom-dia.
— Bom-dia.
Se usasse chapéu, tê-lo-ia erguido.
Voltou-se e começou a caminhar em direcção à porta. Seu parvo, disse-lhe uma voz interior, seu grandecíssimo parvo. Quando ia a meio caminho abrandou e, ao chegar à pia batismal parou, deixando descair os ombros.
— Cheque-mate, se não me engano, Mr. Jericho — disse ela em tom jovial ao lado do altar.
— ADU era o sinal de chamada de uma série de intercepções que a nossa... amiga comum... roubou do Anexo 3. — A sua voz estava fatigada.
— Como sabe que ela os roubou?
— Estavam escondidos no quarto dela. Por baixo das tábuas do soalho. Tanto quanto sei, não nos encorajam a levar trabalho para casa.
— Onde é que estão?
— Queimei-os.
Estavam sentados na segunda fila de bancos, lado a lado, virados para a frente. Quem entrasse na igreja pensaria que se tratava de uma confissão — ela fazia de padre e ele de pecador.
— Acha que ela é espia?
— Não sei. Tem um comportamento suspeito, para não dizer pior. Há quem pense que é.
— Quem?
— Para começar, um tipo do Ministério dos Negócios Estrangeiros chamado Wigram.
— Porquê?
— Obviamente porque ela desapareceu.
— Oh, vá lá. Tem de haver mais qualquer coisa. Todo este alvoroço por ela ter faltado a um turno?
Jericho passou a mão nervosamente pelo cabelo.
— Existem... provas — e, por amor de Deus, não me pergunte que provas são essas — são provas, está bem, de que os Alemães suspeitam que o Enigma está a ser descodificado.
Uma longa pausa.
— Mas porque poderia a nossa amiga comum querer ajudar os Alemães?
— Se eu soubesse, Miss Wallace, não estava aqui sentado consigo, a passar o meu tempo livre a infringir o Regulamento dos Segredos Oficiais. Agora, a sério, já sabe o suficiente?
Outra pausa. Um aceno relutante da cabeça dela.
— O suficiente.
Contou tudo como se se tratasse de uma história, em voz baixa, sem olhar para ele. Jericho reparou que ela utilizava muito as mãos. Não as conseguia manter paradas. Esvoaçavam como pequenos pássaros brancos, ora bicando-lhe a bainha do casaco, puxando-o escrupulosamente para os joelhos, ora empoleirando-se nas costas do banco em frente, ora descrevendo em rápidos movimentos circulares como cometera o crime.
Fica à espera até as outras raparigas saírem da sala para irem para a cantina.
Deixa a porta que dá para a Sala dos Ficheiros entreaberta, para não levantar suspeitas e para se aperceber da aproximação de alguém.
Vai à prateleira de metal coberta de poeira e retira o primeiro volume.
AAA, AAB, AAC...
Passa as folhas até à décima página.
Lá está. A décima terceira entrada.
ADU.
Percorre a linha com o dedo até às entradas de fila e coluna e anota os números num pedaço de papel.
Coloca o volume dos índices no sítio. O livro-razão das filas está numa prateleira mais alta e tem de utilizar um banquinho para lá chegar.
A meio desta operação pára para olhar para a porta e certificar-se de que não está ninguém no corredor.
Deserto.
Agora está nervosa. Porquê? Pergunta a si mesma. O que está ela a fazer que seja assim tão errado? Passa as mãos pela saia cinzenta para secar as palmas e depois abre o livro. Vira as páginas. Encontra um número. E, novamente, segue a linha.
Verifica-o, depois uma segunda vez. Não há erro.
ADU é o sinal de chamada do Nachrichten-Regimenter 537 — uma unidade de sinais motorizada do Exército alemão. As suas transmissões são efectuadas em comprimentos de ondas controladas pela estação de intercepção de Beaumanor, Leicester. Sabia-se que, desde Outubro, a Unidade número 537 estava sediada no distrito militar de Smolensk, na Ucrânia, presentemente ocupado pela Werhmacht, sob as ordens do Marechal de Campo Gunther von Kluge.
Jericho inclinara-se para a frente, antecipando os acontecimentos. Agora, encostou-se para trás, surpreso. — Uma unidade de sinais?
Sentiu-se desiludido. Exactamente, o que é que ele esperava? Não tinha a certeza. Algo um pouco mais... exótico, achava ele.
— 537 — perguntou — é uma unidade da linha da frente?
— A linha desse sector muda todos os dias. Mas, segundo o mapa de posições do Anexo 6, Smolensk ainda fica cerca de cem quilómetros dentro do território alemão.
— Ah.
— Sim. Foi essa a minha reacção; a princípio, pelo menos. Quero dizer, trata-se de um alvo padrão, de segundo plano, de baixa-prioridade. É trabalhar nos limites. Mas existem várias... complicações. — Procurou um lenço no saco e assoou o nariz. Uma vez mais, Jericho observou o ténue tremor dos dedos dela.
Depois de guardar o volume das filas, demora menos de um minuto a pegar no respectivo livro das colunas e a tomar nota dos números de série das intercepções.
Quando sai da Sala dos Ficheiros, Miles («Miles Mermagen», acrescenta ela num parênteses, «oficial de serviço da Sala de Controlo: um urso de cérebro atrofiado») está ao telefone, de costas para a porta, a dar graxa a algum superior — Não, não, não há problema algum, Donald, é um prazer estar de serviço... — o que agrada imenso a Hester, pois assim ele nem repara que ela pega no casaco e sai. Acende a lanterna e embrenha-se na noite. Uma rajada de vento redemoinha beco abaixo entre os anexos e golpeia-lhe a face. Ao fundo do Anexo 8 existe uma bifurcação: o caminho da direita conduz ao portão principal e ao alvoroço quente da cantina, o caminho da esquerda conduz à escuridão da margem do lago.
Segue o caminho da esquerda.
A lua encontra-se envolta num manto de nuvens, mas a sua luz ténue é suficiente para lhe indicar o caminho. Por detrás da cerca do lado oriental estende-se um pequeno bosque que ela não consegue vislumbrar, mas o barulho do vento zumbindo por entre as árvores invisíveis parece fazê-la prosseguir. Passa os Blocos A e B, duzentos e cinquenta metros, e lá está ele, mesmo em frente, de contornos indistintos: o enorme edifício atarracado tipo abrigo subterrâneo, acabado de construir, que abriga agora o Arquivo central de Bletchley. Quando se aproxima, a lanterna ilumina janelas fechadas com aço e, depois, encontra uma pesada porta.
Não roubarás, diz a si mesma, quando ia a pegar na maçaneta.
Não, não. Claro que não.
Não roubarás, darás apenas uma olhadela rápida e depois partirás.
E, de qualquer forma, não é verdade que «as coisas secretas pertencem ao Senhor nosso Deus» (Deuteronómio 29. xxix)
A luz crua do néon branco é um choque depois da escuridão do anexo, tal como a calma que aqui reina, perturbada apenas pelo estrépito distante das máquinas Hollerith de cartões. Os trabalhadores da construção ainda não tinham terminado. Havia pincéis e ferramentas amontoados a um dos lados da área de recepção, área essa onde o ar é denso devido ao cheiro dos trabalhos de construção: cimento fresco, tinta húmida, aparas de madeira. A recepcionista de serviço, um cabo da Força Aérea Auxiliar Feminina, inclina-se por cima do balcão de forma simpática, como se estivesse a servir numa loja.
— Está uma noite fria?
— Bastante. — Hester consegue sorrir e acenar. — Tenho de verificar alguns números de série.
— Para consultar ou requisitar?
— Consultar.
— Secção?
— Anexo 6, Controlo.
— Passe?
A mulher pega na lista de números e desaparece numa sala das traseiras. Hester consegue ver imensas prateleiras de metal e filas infinitas de ficheiros de cartolina através da porta aberta. Um homem passa pela porta e pega numa das caixas. Olha para ela. Ela desvia o olhar. Existe um cartaz na parede pintada de branco, uma caricatura de Bateman mostrando uma mulher a espirrar, acompanhada por uma inscrição pateta típica de Whitehall:
O MINISTÉRIO DA SAÚDE avisa:
A tosse e os espirros espalham doenças
Prenda os micróbios utilizando o lenço
Ajude a manter a Nação em Forma para o Combate
Não há onde se sentar. Por detrás do balcão encontra-se um grande relógio com as letras «RAF» estampadas no mostrador. Na realidade, é tão grande que Hester consegue ver o ponteiro grande a mover-se. Passam-se quatro minutos. Cinco minutos. O Arquivo encontra-se desagradavelmente quente.
Sente que começa a transpirar. O fedor da tinta é enjoativo. Sete minutos. Oito minutos. Gostaria de poder ir-se embora, mas o cabo levara-lhe o bilhete de identidade. Meu Deus, como é que pôde ser tão desmesuradamente estúpida? E se o cabo estiver agora ao telefone com o Anexo 6, a tirar informações sobre ela? A qualquer momento, o Miles pode entrar no Arquivo: «Que raio pensas que estás a fazer, mulher?» Nove minutos. Dez minutos. Tenta pensar noutra coisa. A tosse e os espirros espalham doenças...
Encontra-se num tal estado de ansiedade que não ouve a recepcionista aparecer por detrás dela.
— Desculpe demorar tanto tempo, mas é que nunca me aconteceu nada assim...
A rapariga, coitada, estava bastante nervosa.
— Porquê? — perguntou Jericho.
— O ficheiro — respondeu Hester. — O ficheiro que eu pedi? Estava vazio.
Ouviu-se um estalido metálico por trás deles seguido de uma série de ruídos curtos de algo a ser arrastado à medida que a porta se abria. Hester fechou os olhos e deixou-se cair de joelhos em cima de uma das batinas, puxando Jericho para o lado dela. Entrelaçou os dedos e baixou a cabeça; Jericho imitou-a. Ouviram-se passos a aproximarem-se pelo corredor, depois pararem e recomeçaram em bicos-de-pés. Jericho espreitou furtivamente para o seu lado esquerdo e conseguiu vislumbrar o velho padre dobrando-se para pegar na vestimenta.
— Desculpem interromper as vossas orações — sussurrou o vigário. Dirigiu um pequeno aceno a Hester. — Olá. Desculpe. Deixo-vos com Deus.
Escutaram os passos nervosos a afastarem-se em direcção às traseiras da igreja. A porta fechou-se. O trinco caiu com estrondo. Jericho voltou a sentar-se no banco, levou a mão ao coração e jurou que o conseguia sentir bater por baixo de quatro camadas de roupa. Olhou para Hester — «Deixo-vos com Deus?» — repetiu. Ela sorriu. A mudança efectuada na postura de Hester era extraordinária.
os olhos brilhavam-lhe, a dureza dos seus traços diminuíra e, pela primeira vez, Jericho conseguiu compreender por que razão ela e Claire poderiam ter sido amigas.
Jericho contemplou o vitral que encimava o altar e colocou os dedos em forma de campanário. — Então, o que é que devemos pensar exactamente sobre o assunto? Que Claire roubou todo o conteúdo do ficheiro? Não — contradisse-se de imediato — não, não pode ser... ou será que pode... porque o que ela tinha no quarto eram os criptogramas originais, não as descodificações...?
Precisamente — disse Hester. — Existia um papel escrito à máquina no ficheiro dos Arquivos que a recepcionista me mostrou; esse papel dizia que aqueles números de série haviam sido reclassificados e retirados e que quaisquer pedidos de esclarecimento deveriam ser dirigidos ao escritório do Director-Geral.
— Do Director-Geral? Tem a certeza?
— Eu sei ler, Mr. Jericho.
— Qual era a data do papel?
— 4 de Março.
Jericho massajou a testa. Era a coisa mais estranha que já escutara. — O que aconteceu depois de sair dos Arquivos?
Regressei ao anexo e escrevi a carta que lhe deixei. O tempo que demorei a entregá-la demorou-me o resto do intervalo. Depois era só regressar à Sala dos Ficheiros logo que possível. Possuímos um registo diário de todas as intercepções, efectuado a partir das tabelas. Um ficheiro para cada dia. — Uma vez mais remexeu no saco e retirou uma ficha com uma lista de datas e números. — Como não sabia por onde começar, pura e simplesmente reportei-me ao início do ano. Nada registado até 6 de Fevereiro. Apenas onze intercepções ao todo, quatro das quais efectuadas no último dia.
— Que dia era esse?
— 4 de Março. O mesmo dia em que o ficheiro fora retirado do Registo. O que pensa disto?
— Nada. Tudo. Continuo a cismar no que uma unidade de sinais alemã de segundo plano possa ter dito para justificar a remoção de todo o ficheiro.
— Só por curiosidade, quem é o Director-Geral?
— O chefe dos Serviços Secretos. Um tal «C». Não sei o seu nome verdadeiro. — Lembrou-se do homem que lhe entregara o cheque mesmo antes do Natal. Uma face rosada e um fato rústico de tweed. Parecia mais um camponês do que um mestre da espionagem. — As suas notas — disse Jericho, esticando a mão. — Posso?
Relutante, Hester entregou-lhe a lista das intercepções. Jericho ergueu-a na direcção da luz ténue. Não havia dúvidas de que se tratava de um padrão estranho. Depois da intercepção inicial, mesmo depois do meio-dia de 6 de Fevereiro, havia dois dias de silêncio. A seguir, havia outro sinal às 14.27 do dia 9. Depois um intervalo de dez dias. Depois, uma emissão às 18.07 do dia 20 e outro longo intervalo, seguido por grande actividade: dois sinais a 2 de Março (16.39 e 19.01), dois a 3 de Março (11.18 e 17.27), e, por fim, quatro sinais, em rápida sucessão, na noite de 4 de Março. Eram esses criptogramas que ele tirara do quarto de Claire. A emissão tivera início precisamente dois dias antes da última conversa que tivera com Claire na jazida de barro inundada. E terminara um mês mais tarde, estava ele ainda em Cambridge, menos de uma semana antes do blackout do Tubarão.
Nada daquilo fazia sentido.
— Em que chave do Enigma foram transmitidos? Presumo que estavam codificados no Enigma? — perguntou Jericho.
— No índice estavam catalogados como Abutre.
— Abutre?
— A chave padrão do Enigma da Wehrmacht para a frente russa.
— Decifrada regularmente?
— Todos os dias, tanto quanto sei.
— E os sinais, como foram enviados? Foram enviados pela rede militar habitual?
— Não sei, mas quase de certeza que não.
— Porquê?
— Para começar, não há trânsito suficiente. É muito regular. E não reconheci a frequência. Parece-me tratar-se de algo mais especial, uma linha privada. Apenas as duas estações: a mãe e a estrela solitária. Mas tínhamos de consultar as folhas do diário para termos a certeza.
— E onde é que estão?
— Deveriam estar no Arquivo. Mas, quando as pedimos, também tinham sido retiradas.
— Essa é boa — murmurou Jericho. — Eles foram mesmo eficientes.
— Além de arrancarem as folhas do Ficheiro da Sala de Controlo, não poderiam ter feito muito mais; E acha que ela está a ter um comportamento suspeito? Eu fico com isso, se não se importa.
Pegou no registo das intercepções e dobrou-se para o esconder dentro do saco.
Jericho apoiou a cabeça nas costas do banco e olhou para a abóboda do tecto. «Especial?», pensou. Dir-se-ia mesmo que era mais do que especial, para ser o próprio Director-Geral a surripiar o raio do ficheiro e todas as folhas do diário. Não fazia sentido. Queria não estar tão cansado. Precisava de fechar a porta do estúdio por um dia ou dois, fazer algum exercício, procurar uma boa pilha de folhas de anotações e um conjunto de lápis afiados...
Deixou os olhos descerem lentamente para observar o resto da igreja; os santos dos vitrais, os anjos de mármore, os monumentos de pedra em homenagem aos respeitáveis mortos da paróquia de Bletchley, as cordas da torre do sino amarradas num feixe, qual aranha suspensa sob o imponente e melancólico órgão. Fechou os olhos.
Claire, Claire, o que foi que fizeste? Viste alguma coisa que não deverias ter visto naquele teu trabalho «chato de morrer»? Tiraste alguns papéis dos desperdícios confidenciais, quando ninguém estava a olhar e levaste-os para casa? Se o fizeste, por que razão? E sabem que o fizeste? É por isso que o Wigram anda atrás de ti? Descobriste coisas que não devias?
Viu-a de joelhos na escuridão aos pés da cama, escutou a própria voz indistinta com o sono: «Que raio estás a fazer?». E a resposta ingénua de Claire: «Estou só aqui a mexer nas tuas coisas...»
Andavas sempre à procura de alguma coisa, não andavas? E quando eu não podia oferecer-to, ias ter com outro qualquer. («Há sempre mais alguém», disseste: foram as últimas palavras que me disseste, lembras-te?) Então, o que é essa coisa que procuras com tanta vontade?
Tantas perguntas. Percebeu que estava a começar a congelar. Aconchegou-se no sobretudo, enterrando o queixo no cachecol e enfiando as mãos nos bolsos. Tentou recordar as imagens dos quatro criptogramas — LCNNR KDEMS LWAZA — mas as letras estavam indistintas. Já lhe tinha acontecido isto antes. Era impossível fotografar mentalmente páginas de algaraviadas: para as memorizar tinham de ter algum significado, alguma estrutura.
— Uma mão e uma estrela solitária...
As paredes espessas guardavam um silêncio que parecia tão antigo como a própria igreja; um silêncio sufocante, interrompido de longe em longe pelo ruído de um pássaro a fazer o ninho nas vigas. Durante vários minutos nenhum deles falou.
Sentado no banco duro, parecia-lhe que os ossos tinham congelado, e este entorpecimento, combinado com o silêncio e os relicários e o cheiro enjoativo do incenso, tornavam-no mórbido. Era a segunda vez em dois dias que se lembrava do funeral do pai; a cara descarnada no caixão, a mãe a obrigá-lo a dar-lhe um beijo de despedida, a pele,fria nos lábios emitindo um cheiro forte e acre a produtos químicos, como o laboratório da escola, e depois o cheirete ainda pior do crematório.
— Preciso de ir tomar ar — disse.
Hester agarrou no saco e desceu com ele a coxia. Lá fora, fingiram estudar os túmulos: A norte do cemitério, protegido por árvores, ficava Bletchley Park. Passou uma mota ruidosa pela encosta abaixo em direcção à povoação. Jericho esperou que o estrépito do motor se desvanescesse num zunido distante e disse, quase para si mesmo: — A pergunta que continuo a fazer é por que razão roubou ela os criptogramas. Quero dizer, com tudo o que poderia ter levado, se fosse uma espia. — Hester abriu a boca para protestar e ele ergueu a mão. — Está bem, não estou a dizer que seja; mas, se fosse, ia querer certamente roubar provas de que o Enigma estava a ser decifrado. De que lhe serviria uma intercepção? — Sentou-se sobre os calcanhares e passou os dedos sobre uma inscrição que quase se desagregara. — Se pelo menos soubéssemos mais alguma coisa... Para quem foram enviados, por exemplo.
— Já falámos sobre isso. Retiraram todos os indícios.
— Mas alguém deve saber alguma coisa — cismou. — Para começar, alguém deve ter interceptado as mensagens. E outro alguém deve tê-las traduzido.
— Porque não pergunta a um dos seus amigos criptanalistas? São todos uns compinchas bestiais, não são?
— Nem por isso. Seja como for, somos encorajados a levar as nossas vidas separadas. Há de facto um homem do Anexo 3 que as deve ter visto... — Mas depois lembrou-se da cara assustada de Weitzman («por favor não me perguntes, não quero saber...») e abanou a cabeça. — Não. Ele não ia ajudar.
— Então é uma pena — disse ela com alguma aspereza — ter queimado as nossas únicas pistas.
— Guardá-las era um risco muito grande. — Jericho continuava a esfregar lentamente a pedra. — Pelo que me apercebi, podia ter dito ao Wigram que eu lhe perguntara pelo sinal. — Olhou-a apreensivo. — Não lhe disse, pois não?
—Acha que eu perdi o juízo, Mr. Jericho? Acha que eu estava aqui a falar consigo? — Dirigiu-se para a outra fila de sepulturas a bater com os pés e começou a estudar um epitáfio, furiosa.
Arrependeu-se quase de imediato da sua aspereza. («Aquele que não se encoleriza é melhor do que o poderoso; e aquele que comanda o espírito, melhor do que o que vence uma cidade.» Provérbios ló.xxxii.) Mas então, tal como Jericho referiu mais tarde, quando as relações entre os dois melhoraram o suficiente para ele arriscar a observação, se ela não se tivesse exaltado, nunca teria encontrado da solução.
— Por vezes — disse ele — precisamos de alguma tensão para estimularmos as nossas capacidades mentais.
Ela tinha ciúmes, essa é que era a realidade. Julgava que conhecia Claire melhor do que ninguém mas tornava-se cada vez mais claro que mal a conhecia, conhecia-a apenas um pouco melhor do que ele.
Estremeceu. Aquele sol de Março não aquecia nada. Caía sobre a torre de St. Mary tão frio como a luz emanada de um espelho.
Jericho caminhava agora entre as sepulturas. Hester pensou se seria como ele, se tivesse tido oportunidade de ir para a universidade. Mas o pai não a tinha deixado ir, indo em vez dela o seu irmão George, como se da lei de Deus se tratasse: os homens vão para a universidade, os homens descodificam códigos; as mulheres ficam em casa, as mulheres preenchem tabelas.
«Hester, Hester, mesmo a tempo. Falas com o Chicksands, linda menina, a ver o que eles podem fazer? E já que estás com a mão na massa, a Sala das Máquinas acha que apanharam um texto viciado na última série do Falcão. A operadora precisa de verificar as notas e reenviá-las. E as mensagens das onze de Beaumanor...»
A indolência tinha-a deixado parada a olhar fixamente uma sepultura, mas agora sentia que lentamente o corpo voltava a ficar atento.
«A operadora precisa de verificar as notas...»
— Mr. Jericho!
Quando ouviu o seu nome, ele voltou-se e viu-a a dirigir-se aos tropeções por entre as sepulturas na sua direcção.
Eram quase dez horas e Miles Mermagen estava a pentear-se no gabinete, preparando-se para regressar aos seus aposentos, quando Hester Wallace lhe apareceu à porta.
— Não — disse ele, de costas voltadas.
— Miles, ouve, estive a pensar, tinhas razão, tenho sido uma parva.
Ele espreitou-a pelo espelho, desconfiado.
— O meu pedido de transferência... quero retirá-lo.
— Óptimo. Eu nem cheguei a enviá-lo.
Voltou a dar atenção a si mesmo. O pente deslizou-lhe pelo cabelo negro e espesso como um ancinho a deslizar em óleo.
Ela forçou um sorriso. — Estive a pensar naquilo que disseste... acerca de descobrir onde é que me encaixo na cadeia... — Mermagen acabou de se pentear e virou-se de perfil para o espelho, tentando ver-se de lado. — Se bem te lembras, falámos sobre ser possível eu ir a uma estação de intercepção.
— Tudo bem.
— Pensei, bem, como só tenho turno amanhã de tarde, pensei que podia ir já hoje.
— Hoje? — olhou para o relógio. — Para dizer a verdade, estou muito ocupado.
— Eu podia ir sozinha, Miles. E relatar-te as minhas descobertas — enterrou as unhas na palma da mão por detrás das costas — relatar-te as minhas descobertas uma noite.
Mermagen olhou-a novamente de soslaio e ela pensou, Não, não, é óbvio demais, até para ele, mas depois encolheu os ombros e disse — Porque não? É melhor telefonar-lhes antes. — Ele fez um gesto de superioridade. — Diz que fui eu que te mandei.
— Obrigada, Miles.
— Como é que era a mulher de Lot? — Piscou-lhe o olho. — Uma coluna de sal de dia, uma bola de fogo à noite...?
E, à saída, deu-lhe uma palmada no rabo.
A trinta metros de distância, no Anexo 8, Jericho batia à porta que dizia OFICIAL DE LIGAÇÃO DOS EUA. Uma voz forte disse-lhe para entrar.
Kramer não tinha secretária — a sala não era suficientemente grande — apenas uma mesa de jogar cartas com um telefone em cima e cestos de arame no chão cheios de papelada. Nem sequer tinha janela. Num dos tabiques de madeira que o isolava do resto do anexo tinha colado com fita-cola uma fotografia recente rasgada da revista Life, com Roosevelt e Churchill na conferência de Casablanca, sentados lado a lado num jardim ensolarado. Reparou que Jericho olhava fixamente para ela.
— Quando vocês me deixam mesmo em baixo, ponho-me a pensar: com os diabos, se eles conseguem, eu também consigo. — Esboçou um sorriso malicioso. — Tenho uma coisa para te mostrar. — Pegou na pasta e retirou um maço de papéis com a inscrição ALTAMENTE SECRETO: ULTRA. — Finalmente, o Skynner recebeu ordens para mos dar esta manhã. Devo enviá-los para Washington hoje à noite.
Jericho deu-lhes uma vista de olhos. Um monte de cálculos que lhe eram familiares e alguns complexos esboços técnicos do que lhe pareciam ser circuitos electrónicos.
— Os planos do protótipo das descodificadoras de quatro rotores — disse Kramer.
Jericho olhou-o, surpreendido — Estão a utilizar válvulas?
— Pois estão. Válvulas de tríodo cheias de gás. GTIC thyatrons.
— Santo Deus.
— Chamam-lhe Cobra. As posições dos três primeiros rotores serão resolvidas como habitualmente nas descodificadoras existentes, ou seja, electromecanicamente. Mas a quarta posição... a quarta... será resolvida apenas electronicamente, utilizando um interruptor electromagnético e válvulas, ligados à descodificadora através deste cabo grossíssimo que parece — Kramer desenhou um círculo com as mãos — que parece uma cobra, acho eu. Utilizar válvulas em sequência... uma verdadeira revolução. Nunca foi feito antes. A tua gente diz que deverá tornar os cálculos cem vezes, mil vezes mais rápidos.
— Uma máquina de Turing — disse Jericho quase para si mesmo.
— Uma quê?
— Um computador electrónico.
— Bom, chama-lhe o que quiseres. Em teoria funciona, são as boas notícias. E a julgar pelo que dizem, isto é apenas o começo. Parece que estão a planear uma espécie de super-descodificadora, toda electrónica, chamada Colossus.
De repente, Jericho teve uma visão súbita de Alan Turing, certa tarde de Inverno, sentado de perna traçada no seu estúdio de Cambridge enquanto as luzes se acendiam lá fora, descrevendo o seu sonho de uma máquina de calcular universal. Há quanto tempo fora isso? Há menos de cinco anos?
— E para quando está prevista?
— Essas são as más notícias. Mesmo a Cobra só estará operacional em Junho.
— Mas isso é um horror.
— A mesma história de sempre. Não há componentes, não há oficinas, não há técnicos suficientes. Adivinha quantos homens estão a trabalhar nisso neste preciso momento.
— Não os suficientes, aposto.
Kramer levantou uma mão e separou os dedos perto da cara de Jericho. — Cinco. Cinco! Voltou a enfiar os papéis na pasta e fechou-a com o fecho.
— Tem de se tomar alguma medida. — Falava entre dentes e abanava a cabeça. — Tem de se fazer alguma coisa.
— Vais a Londres?
— Agora mesmo. Primeiro, vou à embaixada. Depois é só atravessar Grosvenor Square para ir ao Almirantado.
Jericho estremeceu com a desilusão. — Penso que vais levar o teu carro.
— Estás a brincar. Com isto? — Deu uma palmadinha na pasta. — O Skynner obriga-me a ir escoltado. Porquê?
— Estava só a pensar... sei que é pedir de mais, mas disseste que, se eu precisasse de alguma coisa... estava a pensar se seria possível emprestares-mo.
— Claro. — Kramer vestiu o sobretudo. — O mais certo é eu estar fora durante dois dias. Vou mostrar-te onde está estacionado. — Retirou o chapéu de detrás da porta e saíam para o corredor.
À entrada do anexo esbarraram com Wigram. Jericho ficou surpreendido com o seu aspecto desleixado. Era óbvio que passara toda a noite acordado. O vermelho dourado da barba por fazer cintilava à luz do sol.
— Ah, o galante tenente e o grande criptanalista. Ouvi dizer que eram amigos. — Fez uma vénia com uma formalidade escarnecedora e disse a Jericho: — Depois tenho de ter uma conversinha consigo, meu velho.
— Aquele tipo dá-me arrepios — disse Kramer enquanto se dirigiam para a mansão. — Esteve no meu quarto esta manhã cerca de vinte minutos a fazer-me perguntas sobre uma rapariga que eu conheço.
Jericho quase tropeçava nos próprios pés.
— Conheces a Claire Romilly?
— Está ali — disse Kramer e, por um momento, Jericho pensou que ele se referia a Claire, mas, na verdade, Kramer estava a apontar para o carro. — Ainda está quente. O reservatório está cheio e há uma lata na mala. — Procurou a chave no bolso e atirou-a a Jericho. — É claro que conheço a Claire. Toda a gente a conhece. Uma rapariga dos diabos. — Deu uma palmadinha no braço de Jericho. — Boa viagem.
Só meia-hora depois Jericho conseguiu mover-se.
Subiu os degraus de cimento que davam para a Sala de Operações onde encontrou Cave sentado sozinho na extremidade da mesa comprida, com um telefone de cada lado, olhando fixamente para o Mapa do Atlântico. Tinham sido interceptadas onze mensagens do Tubarão desde a meia-noite, explicou, nenhuma delas proveniente da zona de batalha esperada, o que eram más notícias. O comboio HX-229 encontrava-se 150 milhas das linhas dos submarinos,, e rumava a todo o vapor em direcção a oeste, a uma velocidade de 10.5 nós. O comboio SC-122 estava um pouco mais à frente, a nordeste. O HX-229A vinha bastante atrás, em direcção ao norte pela costa da Terra Nova. — É quase de dia — disse — mas o tempo está a piorar, coitados.
Jericho deixou-o e foi à procura, primeiro de Logie, que o mandou embora com um aceno de cachimbo («Óptimo, meu lindo, vai descansar, o pano sobe às duas horas») e, depois, à procura de Atwood que, por fim, concordou em emprestar-lhe o seu atlas turístico das Ilhas Britânicas anterior à guerra. («Enrola esse mapa» — citou ele pensativo enquanto o tirava de debaixo da secretária — «não vai ser preciso nos próximos dez anos»).
Agora já estava pronto.
Sentou-se no banco da frente do carro de Kramer, passou as mãos pelos manípulos de controlo desconhecidos e lembrou-se que nunca se tinha interessado em aprender a conduzir. É claro que conhecia os
princípios básicos e que já conduzira o enorme Humber do padrasto, bastante diferente deste pequeno Austin. Contudo, pelo menos não estava a fazer nada ilegal: num país onde, nos dias que corriam, era quase preciso autorização para se ir à casa-de-banho, por alguma razão, já não era necessário ter carta de condução.
Levou uns minutos a tentar diferenciar o pedal do acelerador da embraiagem e o travão de mão da alavanca das velocidades; depois puxou o ar e girou a chave na ignição. O carro estremeceu e imobilizou-se. Colocou a alavanca das velocidades em ponto-morto e tentou novamente; desta vez, como se por milagre, quando retirou o pé da embraiagem o carro começou a andar para a frente.
No portão principal mandaram-no parar e Jericho conseguiu fazer o carro imobilizar-se suavemente. Uma das sentinelas abriu a porta e ele teve de sair enquanto outra entrava para revistar o interior.
Meio-minuto depois a barreira era erguida e ele passava.
Conduziu à velocidade de um ciclista pelas travessas estreitas que levavam a Shenley Brook End, e foi esta velocidade baixa que o salvou. Segundo o plano que combinara com Hester Wallace — partindo do princípio de que Kramer lhe emprestaria o carro — deveria ir buscá-la ao chalé e ia mesmo a dobrar a esquina a um quarto de milha de distância, quando vislumbrou algo preto no campo que se encontrava ao cimo, à direita. Encostou à berma de imediato e travou. Deixou o motor a trabalhar e, cautelosamente, abriu a porta e subiu para a embaladeira para ver melhor.
Outra vez a polícia. Um deles movia-se furtivamente pela extremidade do campo. O outro, meio escondido nas sebes, parecia observar a estrada que passava em frente ao chalé.
Jericho voltou a sentar-se no lugar do condutor e tamborilou com os dedos no guiador. Não tinha a certeza de não ter sido visto, mas quanto mais depressa saísse do raio de visão deles, melhor. A transmissão de velocidades era dura e foi preciso utilizar as duas mãos para engrenar a marcha-a-trás. O motor fez um ruído e lamentou-se. Primeiro, quase caía numa vala, depois corrigiu a trajectória e o carro foi rolando algo ébrio para o outro lado da rua, subiu a berma oposta e parou. Não se tratara de um estacionamento perfeito mas, pelo menos, estava suficientemente afastado da curva para que os polícias o conseguisssem ver.
De certeza que o ouviram. A qualquer momento, um deles apareceria para investigar e Jericho tentou engendrar uma desculpa para o seu comportamento insano, mas os minutos sucederam-se e não apareceu ninguém. Desligou o motor e só se ouvia o chilrear dos pássaros.
Não admirava que Wigram tivesse um aspecto tão cansado, pensou. Parecia que estava a comandar metade da força policial do distrito; provavelmente do país, pelo que se apercebera.
De repente, a escala das probabilidades que existiam contra eles, atingiu-o com tal força que se viu seriamente tentado a esquecer aquele estúpido plano. («Temos de ir à estação de intercepção, Mr. Jericho. Temos de ir a Beaumanor e apoderarmo-nos das notas da operadora. Guardam-nas pelo menos durante um mês e de certeza que eles nem se lembraram de ir lá buscá-las. Aposto que só nós, pobres parasitas, é que andamos à procura delas».) Na verdade, nesse preciso momento, Jericho bem podia ter virado o carro e voltado na direcção de Bletchley, se não tivessem batido no vidro do lado esquerdo, o que o fez saltar uns bons três centímetros no banco do carro.
Era Hester Wallace, embora a princípio não a tivesse reconhecido. Tinha mudado de roupa; vestia agora um pesado casaco de tweed por cima de uma camisola grossa. As calças de bombazina estavam enfiadas numas meias de lã cinzentas, e as botas grossas estavam tão cheias de lama que pareciam do tamanho do casco de um cavalo. Atirou a volumosa bolsa para a parte traseira do Austin e afundou-se no lugar do passageiro, dando um longo suspiro de alívio.
— Graças a Deus. Julguei que não o apanhava. Jericho inclinou-se e fechou a porta muito devagar.
— Quantos são?
—- Seis. Dois no campo em frente. Dois que andam de casa em casa na aldeia. Dois no chalé; um lá em cima, no quarto de Claire, à procura de impressões digitais; e uma mulher polícia cá em baixo. Disse-lhe que ia sair. Ela tentou impedir-me, mas eu disse-lhe que era o meu dia de folga e que fazia o que me apetecesse. Saí pela porta das traseiras e dei a volta à casa.
— Ninguém a viu?
— Acho que não. Aqueceu as mãos bafejando-as e esfregou-as uma na outra. — Sugiro que arranque, Mr. Jericho. Eu é que não volto a Bletchley, faça o que fizer. Ouvi-os a falar. Estão a mandar parar todos os carros na estrada principal que sai da cidade.
Deixou-se escorregar ainda mais para o fundo do banco, para que ninguém a visse de fora do carro, a menos que se aproximassem da janela. Jericho pôs o motor em funcionamento e o Austin arrancou. Se não podiam ir para Bletchley, não lhe restava outra hipótese senão seguir em frente.
Fizeram a curva e não havia ninguém na estrada. A rua que dava para o chalé era à esquerda e estava deserta, mas assim que se aproximaram, surgiu de repente um polícia que estava escondido na sebe do lado oposto e mandou-os parar. Jericho hesitou e depois carregou no acelerador. O polícia, num acto inteligente, desviou-se e Jericho apercebeu-se momentaneamente de uma cara indignada e vermelha como tijolos. Depois desapareceram no vazio e apareceram de novo no meio da povoação, Estava um outro polícia a falar com uma mulher à entrada do seu chalé de telhado de colmo e, quando passaram, voltou-se para os olhar. Jericho voltou a pisar o acelerador e depressa a povoação ficava para trás e a estrada serpenteava rumo a outro vazio frondoso. Apareceram em Shenley Church End, passaram pela Estalagem White Hart, onde Jericho morara, depois por uma igreja e, quase em seguida, tiveram de parar no cruzamento da A5.
Jericho olhou pelo retrovisor, para se certificar de que ninguém os seguia. Parecia que não. — Já se pode levantar — disse ele a Hester. Estava absolutamente confuso. Nem conseguia acreditar no que estava a fazer. Esperou que dois camiões se afastassem, fez o sinal e depois virou à esquerda, para a velha estrada romana. Seguiu sempre em frente, para noroeste, a perder de vista. Jericho engrenou outra velocidade, o Austin ganhou velocidade, estavam salvos.
A Inglaterra do tempo de guerra abria-se perante eles; continuava a ser a mesma, mas era, de alguma forma, subtilmente diferente: um pouco suja, um pouco abalada, como uma propriedade próspera encaminhando-se rapidamente para a ruína ou uma anciã distinta a atravessar tempos difíceis.
Não encontraram qualquer dano causado por bombas até entrarem nos subúrbios de Rugby, onde vislumbraram uma construção que ao longe parecia ser um mosteiro em ruínas, mas era afinal uma fábrica sem telhado. Porém, encontravam-se marcas da guerra por todo o lado. Cercas à beira da estrada, há três anos sem qualquer reparação, meio tombadas ou completamente derrubadas. Os portões e as grades haviam sido retirados dos campos para serem derretidos e transformados em munições. As casas estavam em péssimo estado. Nada havia sido pintado desde 1940. Os vidros partidos eram tapados com tábuas, as peças de ferro estavam enferrujadas ou revestidas de alcatrão. Até as tabuletas das hospedarias estavam amolgadas e gastas. O país inteiro estava degradado.
E também nós, pensou Jericho, enquanto ultrapassavam mais uma figura dobrada para a frente arrastando-se pela estrada, não ficamos pior cada ano que passa? Em 1940 havia pelo menos a energia galvanizante desencadeada pela ameaça da invasão. E em 1941 nasceu alguma esperança quando a Rússia e os Estados Unidos entraram na guerra. Mas 1942 arrastara-se para 1943, os submarinos haviam trazido a morte aos comboios navais, as faltas eram cada vez maiores e, apesar das vitórias em África e na frente oriental, a guerra começara a parecer interminável; um infindável panorama nada heróico de racionamento e exaustão. As aldeias pareciam sem vida, os homens estavam ausentes e as mulheres recrutadas para as fábricas, enquanto em Stony Stratford e em Towcester as poucas pessoas que ainda restavam passavam a vida em bichas à porta de lojas com vitrinas vazias.
Ao lado de Jericho, Hester Wallace seguia em silêncio, prestando atenção ao rumo que levavam com um interesse obsessivo pelo atlas de Atwood. Vai ser bonito, pensou ele. Com todos os sinais de trânsito e placas com os nomes das terras deitados abaixo, não fariam a mínima ideia de onde estavam, se se perdessem. Não se atrevia a conduzir muito depressa. Não conhecia bem o Austin e, aos poucos, descobria que o carro era temperamental. De vez em quando, a gasolina de má qualidade do tempo de guerra fazia-o emitir um sonoro estampido. Tinha tendência a desviar-se para o centro da estrada e os travões também não eram lá grande coisa. Além disso, era tão raro encontrar uma viatura particular que Jericho receava encontrar algum polícia intrometido que os mandasse encostar, se fossem muito depressa e lhes pedisse os documentos.
Conduziu sempre à mesma velocidade durante mais de uma hora até que, mesmo antes de chegarem a uma cidade com mercado que Hester declarou tratar-se de Hinkley, ela o mandou virar à direita para uma estrada mais estreita.
Haviam deixado Bletchley sob um céu limpo mas, quanto mais avançavam para norte, mais escuro o céu ia ficando. Nuvens cinzentas, carregadas de neve ou de chuva, tinham-se colocado à frente do sol. O alcatrão estendia-se por entre uma paisagem plana e desoladora, sem nenhum veículo à vista e, pela segunda vez, Jericho experimentou o estranho sentimento de a história estar a retroceder, pois não era possível as ruas terem estado assim tão desertas nos últimos vinte e cinco anos.
Uns vinte quilómetros mais à frente Hester disse-lhe para virar outra vez à direita e, de repente, entraram numa região muito mais montanhosa, de vegetação mais densa, com assustadores rochedos desnudados encimados por alvas faixas de neve.
— Onde é que estamos?
— Em Charnwood Forest. Estamos quase a chegar. É melhor pararmos um minuto. Aqui, veja — disse ela, apontando para uma área de piqueniques, deserta, à margem da estrada. — Isto serve. Não demoro muito.
Foi buscar a bolsa ao banco de trás e dirigiu-se para as árvores. Ele observou-a. Parecia um pequeno camponês com aquele casaco e aquelas calças. Como foi que Claire disse? «Ela tem um fraquinho por mim?» Era mais do que um fraquinho, pensou ele, muito mais do que um fraquinho, para se arriscar tanto. Reparou que, fisicamente, ela era o oposto de Claire; que Claire era alta, loira e voluptuosa, e Hester era baixa, morena e franzina. Muito parecida com ele, para dizer a verdade. Hester estava a mudar de roupa por detrás de uma árvore que não era suficientemente larga e Jericho conseguiu vislumbrar momentaneamente o seu ombro frágil e claro. Desviou o olhar. Quando voltou a olhar, Hester emergia da floresta escura com um vestido verde azeitona. A primeira gota de chuva caiu no pára-brisas assim que entrou no carro.
— Vamos lá, Mr. Jericho. — Procurou de novo no atlas o local onde se encontravam e deixou lá ficar o dedo.
Pousou a mão na chave da ignição. — Miss Wallace — disse ele, hesitante — acha que, dadas as circunstâncias, poderíamos começar a tratar-nos pelo primeiro nome?
Ela lançou-lhe um sorriso ténue. — Hester.
— Tom.
Apertaram as mãos.
Continuaram a seguir a estrada florestal por mais uns oito quilómetros até que as árvores começaram a escassear e se encontraram numa clareira alta. A chuva e a neve derretida haviam transformado a rua estreita num caminho de lama e, durante cinco minutos, viram-se obrigados a seguir em segunda atrás de um cavalo que puxava uma pequena carroça de duas rodas. Finalmente, o condutor ergueu o chicote como se a pedir desculpa e virou à direita, em direcção a uma minúscula aldeia com anéis de fumo a saírem de meia-dúzia de chaminés, e logo em seguida Hester gritou: — Ali!
Se não fossem tão devagar, talvez não o tivessem visto: um par de portões, uma estrada privada com um poste vermelho e branco atravessado ao meio, uma guarita de sentinela, um sinal enigmático: Woyg, Beaumanori
Ministério da Guerra Grupo «Y», Beaumanoi. «Y» era o código do serviço de intercepções radiofónicas.
— Cá vamos nós.
Jericho tinha de admirar a coragem de Hester. Enquanto ele ainda procurava o passe, a transpirar, já ela se inclinava por cima dele para entregar o seu ao guarda e anunciava jovialmente que estavam à espera deles. O soldado, do exército, confirmou o nome dela numa lista, deu a volta ao carro para tomar nota da matrícula, regressou à janela, deu uma olhadela rápida ao passe de Jericho e fez-lhes sinal que seguissem.
Beaumanor Hall era outra daquelas enormes casas de campo isoladas que haviam sido expropriadas pelos militares aos proprietários agradecidos, quase arruinados, e Jericho até apostava que nunca voltariam a ter uso privado. Tratava-se de uma construção do início da época vitoriana, com uma avenida de ulmeiros gotejantes de um lado e o terreno dos estábulos do outro, para onde foram encaminhados. Passaram por baixo de um arco magnífico. Meia-dúzia de raparigas, a protegerem-se da chuva entre risadas com os casacos por cima das cabeças, como se fossem tendas, passaram a correr à frente deles e desapareceram num dos edifícios. No pátio, estavam estacionadas duas pequenas furgonetas comerciais Morris e uma fila de motocicletas. Quando Jericho estacionou, um homem de uniforme correu na sua direcção com um enorme guarda-chuva gasto pelo uso.
— Heaviside — disse ele — Major Heaviside, como no epónimo(1). E a menina deve ser Miss Wallace... e o senhor é...?
— Tom Jericho.
— Mr. Jericho. Excelente. Esplêndido. — apertou-lhes as mãos com força. — É um grande prazer para nós, deixem-me que lhes diga. Uma visita dos serviços centrais aos primos do campo. O comandante mandou mil perdões e perguntou se não se importam que seja eu a fazer as honras da casa. Ele vai tentar aparecer mais tarde. É uma pena não terem chegado a tempo para o almoço, mas podem tomar um chá. Que tal uma chávena de chá? Maldito tempo...
Jericho esperava que lhes fizessem algumas perguntas desconfiadas e aproveitara a viagem para ensaiar umas respostas cuidadosas, mas o major limitou-se a abrigá-los com o guarda-chuva gotejante e a conduzi-los para dentro do edifício. Era jovem, alto e um pouco calvo, com uns óculos tão engordurados que parecia impossível conseguir ver alguma coisa. Tinha os ombros abaulados, como uma garrafa, e o colarinho da farda estava branco devido à caspa. Conduziu-os a uma sala-de-estar fria e bafienta e mandou buscar chá.
Acabara de contar resumidamente a história da casa («desenhada pelo mesmo fulano que construiu a Coluna de Nelson, segundo consta») e ia já bem lançado numa história pormenorizada dos serviços de intercepções radiofónicas («começou em Chatham até que o bombardeamento foi forte de mais...»). Hester acenava com a cabeça, educadamente. Uma mulher soldado trouxe-lhes um chá denso e castanho como graxa para sapatos e Jericho sorveu-o olhando impacientemente para as paredes vazias. Existiam furos no gesso, de onde tinham sido arrancados os ganchos que seguravam os quadros, e sombras encardidas traçavam os contornos de grandes molduras. Uma moradia ancestral sem ancestrais, uma casa sem alma.
*1. Heaviside layer — região da atmosfera terrestre. (N. da T.)
As janelas que davam para o jardim estavam atravessadas por tiras de fita-cola.
Intencionalmente, pegou no relógio e abriu-o. Eram quase três horas. Tinham de se despachar.
Hester reparou que Jericho estava a ficar inquieto. — Não seria possível dar uma vista de olhos por aí? — perguntou ela aproveitando uma pausa no monólogo do major.
Heaviside pareceu ficar surpreendido e atirou com a chávena para cima do pires. — Oh, raios, desculpem. Muito bem. Se já estão prontos, podemos começar.
A chuva caía misturada com neve e o vento norte soprava-a com força, formando ondas, açoitando-lhes a cara enquanto passavam ao lado da grande casa e enquanto atravessavam um roseiral coberto de lama, o que os obrigava a cobrirem a cara com o braço, como lutadores de boxe que se protegem dos golpes. Escutava-se um ruído agudo que mais parecia um uivo, algo como Jericho nunca escutara antes, vindo de detrás de um muro.
— Que raio é isto?
— O campo das antenas — respondeu Heaviside.
Jericho visitara uma estação de intercepções apenas uma vez, e já há alguns anos, ainda a ciência era uma criança: um anexo cheio de Wrens a tremer, empoleiradas em cima dos rochedos, perto de Scarborough. Isto era diferente. Passaram por um portão para o outro lado do muro e lá estavam elas, imensas antenas de rádio expostas em formas esquisitas, como os círculos de pedras dos Druidas, sobre vários hectares de terreno. Os pilares de metal estavam interligados por milhares de metros de cabos. Algumas das antenas zumbiam ao vento, outras gritavam.
— Configurações Rômbicas e de Beveridge — gritou o major por cima daquela barulheira. — Bipolos e quadra-headrons... Olhem! —Tentou apontar e o guarda-chuva virou-se subitamente do avesso. Ele sorriu e abanou-o na direcção das antenas. — Estamos a cerca de três mil metros de altura, daí este maldito vento. O campo tem duas antenas principais, conseguem vê-las? Uma está virada para sul. Essa apanha França, o Mediterrâneo, a Líbia. A outra tem como alvo a Alemanha e a frente russa. Os sinais são transmitidos para os anexos através de cabos coaxiais.
- Abriu os braços e gritou — É lindo, não é? Conseguimos captar tudo o que é transmitido num raio de mil e quinhentos quilómetros. — Soltou uma gargalhada e abanou os braços como se estivesse a conduzir um coro imaginário. — Cantem para mim, suas danadas.
O vento golpeava-lhes a cara com granizo e Jericho colocou as mãos em forma de copo nas orelhas. Até parecia que estavam a interferir na natureza, bulindo indevidamente com alguma força primordial, tal como Frankenstein ao atrair os raios para o seu laboratório. Outra rajada de vento golpeou-os pelas costas e Hester agarrou-se ao braço de Jericho.
— Vamos sair daqui — berrou Heaviside. Fez um gesto para que o seguissem. Assim que se encontraram do lado de cá do muro, conseguiram abrigar-se um pouco do vento. Uma estrada de asfalto cercava o que, ao longe, parecia ser uma aldeia anichada nos terrenos da mansão: chalés, anexos, uma estufa, até um pavilhão de críquete com uma torre de relógio. Está tudo simulado, explicou Heaviside, jovialmente, tudo projectado para enganar os aviões de reconhecimento alemães. Era aqui que se efectuava o trabalho de intercepção. Havia alguma coisa em que estivessem especialmente interessados?
— Que tal a frente oriental? — perguntou Hester.
— A frente oriental? — disse Heaviside. — Está bem. Avançou cambaleante à frente deles pelo lamaçal, ainda a tentar
arranjar o guarda-chuva partido. A chuva caía com mais intensidade e o passo lesto que levavam transformou-se numa corrida em direcção ao anexo. A porta fechou-se com força atrás deles.
— Dependemos do elemento feminino, como podem verificar — explicou Heaviside enquanto tirava os óculos e os limpava a uma ponta da farda. — Raparigas do exército e civis mais velhas. — Voltou a pôr os óculos e passou os olhos pelo anexo, a pestanejar. — Boa tarde — disse ele a uma mulher corpulenta com galões de sargento. — É a supervisora — explicou, e depois acrescentou entre dentes: — É cá uma fera!
Jericho contou vinte e cinco receptores radiofónicos, dispostos aos pares, de ambos os lados de uma comprida passagem, cada um deles com uma mulher acocorada de auscultadores nos ouvidos.
A sala estava silenciosa, exceptuando o murmúrio das máquinas e o sussurro ocasional das impressoras de intercepções.
—Temos três tipos de conjuntos — prosseguiu Heaviside em voz baixa — HROs, Hallicrafter 28 Skyriders eAR-88s americanos. Cada rapariga tem a sua própria frequência para controlar, apesar de duplicarmos as frequências se a coisa se complicar.
— Quantas pessoas trabalham aqui? — perguntou Hester.
— Umas duas mil.
— E conseguem interceptar tudo?
— Exactamente. A menos que nos digam para não o fazermos.
— O que nós nunca fazemos.
— Claro, claro. — A cabeça calva de Heaviside reluzia com a água da chuva. Dobrou-se para a frente e abanou-se energicamente, como um cão. — Excepto daquela vez na outra semana, é claro.
Mais tarde, o que Jericho melhor recordava era a forma calma como ela tratara do assunto. Nem pestanejou. Pelo contrário, mudou de assunto e perguntou a Heaviside se as raparigas tinham de ser muito rápidas («insistimos numa velocidade de noventa caracteres Morse por minuto, é o mínimo estabelecido») e depois foram descendo calmamente os três o corredor central.
Estes conjuntos estão voltados para a frente oriental — explicou Heaviside, quando iam a meio caminho. Parou e apontou para os desenhos de abutres cuidadosamente elaborados, colados nas partes laterais de vários receptores. — É claro que Abutre não é a única chave do Exército Alemão na Rússia. Há o Papagaio e o Falcão, e o Salmão para a Ucrânia.
— As redes estão particularmente activas neste momento? — Jericho achou que tinha de dizer qualquer coisa.
— Têm estado, desde Estalinegrado. Retiradas e contra-ataques em toda a frente. Alarmes e incursões. Temos de fazer a papinha aos desgraçados dos Vermelhos, sabem, eles mal conseguem lutar.
— Foi uma estação Abutre que lhe disseram para não interceptar, não foi? — perguntou Hester como quem não quer a coisa.
— Exactamente.
— E isso foi por volta do dia 4 de Março?
— Acertou em cheio. Por volta da meia-noite. Recordo-me, porque tínhamos acabado de enviar quatro longos sinais e estávamos todos contentes, quando o vosso colega Mermagen telefona em pânico e diz: «Já chega disso, muito obrigado, nem agora, nem amanhã, nem nunca mais.»
— Deu alguma explicação?
— Nenhuma explicação. Só disse para pararmos. Estava a ver que ele ainda tinha um ataque cardíaco. Foi a coisa mais estranha que já
ouvi.
— Como sabiam que vocês estavam atarefadíssimos, talvez quisessem diminuir o trânsito de prioridade inferior — sugeriu Jericho.
— Bolas — disse Heaviside — desculpem lá, mas, com franqueza! — O seu brio profissional estava ferido. — Podem dizer ao vosso Mr. Mermagen que eu mandei dizer que não era nada que nós não conseguíssemos resolver, pois não, Kay? — Deu uma palmadinha no ombro de uma operadora extremamente bonita, que tirou os auscultadores e puxou a cadeira para trás. — Não, não. Não te levantes, não te quis interromper. Estávamos apenas a falar sobre a nossa estação mistério. — Pôs os olhos em alvo. — Aquela que não podemos ouvir.
— Não podem ouvir? — Jericho olhou para Hester com ar ansioso. — Quer dizer que ainda está a transmitir?
— Kay?
— Está, sim senhor. — A rapariga tinha um sotaque galês bastante melódico. — Ultimamente nem tanto, mas esteve incrivelmente ocupada a semana passada. — Hesitou. — Eu não... não ouço de propósito, mas o operador tem uma mão magnífica. Vê-se que é experiente. Não é como alguns dos miúdos — como que cuspiu a palavra — que utilizam hoje em dia. São quase tão maus como os italianos.
— O estilo Morse de um homem — disse Heaviside com pompa — é tão distintivo como a própria assinatura.
— E qual é o estilo dele?
— Muito rápido, mas muito claro — explicou Kay. — Ondulado, diria eu. Mão de pianista.
— Acho que ela gosta do tipo, não concorda, Mr. Jericho?
- Heaviside riu-se e voltou a dar-lhe uma palmadinha no ombro. — Muito bem, Kay. Bom trabalho. Volta ao que estavas a fazer.
Prosseguiram. — É uma das melhores — confidenciou. — Isto pode ser extremamente desagradável, sabem, oito horas a ouvir um comprimento de onda, a anotar só algaraviadas. Principalmente de noite, no Inverno. Faz um frio dos diabos aqui. Temos de os atafulhar de cobertores. Ah, olhem: está uma a chegar.
Pararam a certa distância, por detrás de uma operadora que copiava freneticamente uma mensagem. Com a mão esquerda estava sempre a ajustar a frequência no receptor radiofónico e com a mão direita lá se ia desenvencilhando entre impressos de mensagens e papel de carbono. A velocidade com que começara a anotar a mensagem era extraordinária, «GLPES», leu Jericho por cima do ombro, «KEMPG NXWPD...»
— Dois impressos — disse Heaviside. — A folha do diário, onde ela regista os murmúrios: são as mensagens de sintonização, código-Q, etc. E o impresso vermelho que é o sinal efectivo.
— O que é que acontece a seguir? — murmurou Hester.
— Existem duas cópias de cada impresso. O original vai para o anexo de Teleimpressão, para ser transmitido de imediato ao vosso pessoal. E aquele anexo por onde passámos que parece um pavilhão de críquete. As outras cópias guardamos-las aqui para o caso de haver algum erro ou desaparecer alguma coisa.
— Durante quanto tempo é que as guardam?
— Uns dois meses.
— Podemos vê-las?
Heaviside coçou a cabeça. — Se quiserem. Mas não há muito que ver.
Conduziu-os até ao fundo distante do anexo, abriu uma porta, acendeu a luz e afastou-se para lhes mostrar o interior. Um armário onde era possível entrar. Um monte de cerca de doze arquivos verde-escuros. Não havia janela. O interruptor da luz ficava à esquerda.
— Como é que estão arquivados? — perguntou Jericho.
— Por ordem cronológica. — Encostou a porta.
Jericho reparou que não a fechara com o trinco e prosseguiu o seu inventário. E a entrada também não era visível, à excepção das quatro operadoras que estavam mais perto. Conseguia sentir o coração começar a bater com mais força.
— Major Heaviside!
Voltaram-se e viram a Kay de pé, fazendo-lhes sinal com a mão, com um dos auscultadores encostado ao ouvido.
— É o meu pianista misterioso. Começou agora mesmo a fazer as suas escalas, se estiverem interessados.
Heaviside tomou a cabeceira do grupo. Pôs-se à escuta com uma expressão ponderada, os olhos focados a média distância, qual médico notável com o estetoscópio a quem pedem uma segunda opinião. Abanou a cabeça, encolheu os ombros e passou os auscultadores a Hester.
— Não nos cabe fazer perguntas, meu velho — disse ele a Jericho. Quando chegou a vez de Jericho, este tirou o cachecol e colocou-o
cuidadosamente no chão perto do cabo que ligava o receptor às antenas e à electricidade. Colocar os auscultadores era como meter a cabeça debaixo de água. Ouviu uma estranha investida de sons. Um uivo que lhe fez lembrar o vento no campo das antenas. Um estalido de energia estática. Duas ou três transmissões Morse muito fracas ao mesmo tempo. E, de repente, o que não deixava de ser curioso, uma diva alemã a cantar uma ária que ele mal reconheceu como fazendo parte do segundo acto de Tannhãuser.
— Não consigo ouvir nada.
— Deve ter perdido a frequência — disse Heaviside.
Kay rodou o botão no sentido oposto aos ponteiros do relógio, o som vibrou uma oitava para cima e para baixo, a diva desapareceu, mais estalidos e, depois, como quem entra num espaço aberto, um rápido staccato da-da-di-da-da de Código Morse, latejando com clareza e com urgência, a mais de mil milhas de distância, algures na Ucrânia ocupada pelos alemães.
Iam já a meio caminho que levava ao anexo de Teleimpressão quando Jericho levou a mão ao pescoço e disse — O meu cachecol. Pararam à chuva.
— Eu mando uma das raparigas buscá-lo.
— Não, não. Eu vou lá. Eu já vos apanho.
Hester percebeu a deixa. — Quantas máquinas disse que têm? — Recomeçou a caminhar.
Heaviside hesitou entre os dois e depois apressou-se a seguir Hester. Até lhe apetecia dar-lhe um beijo. Não chegou a ouvir a resposta do Major. Foi varrida pelo vento.
Estás calmo, disse para si mesmo, estás confiante, não estás a fazer nada de mal.
Voltou a entrar no anexo. A mulher sargento tinha as costas gordas voltadas para ele, inclinadas sobre uma das interceptadoras. Não o viu. Desceu com ligeireza o corredor central, olhando sempre em frente, e entrou na sala dos ficheiros. Fechou a porta e acendeu a luz.
Quanto tempo tinha? Não muito.
Puxou a primeira gaveta do primeiro ficheiro. Fechada. Bolas. Voltou a tentar. Alto. Não, afinal não estava fechada. O armário tinha um daqueles irritantes mecanismos anti-inclinação que evitavam que se abrissem duas gavetas ao mesmo tempo. Olhou para baixo e reparou que a gaveta inferior estava um pouco saída. Fechou-a cuidadosamente com o pé e, para seu alívio, a gaveta de cima abriu-se.
Pastas castanhas. Montes de papéis de carbono manchados, presos com dips de metal. Folhas de diário e impressos vermelhos. Dia, Mês e Ano no canto superior direito. Letras desordenadas escritas à mão, sem qualquer significado. Uma pasta de quinze de Janeiro de 1943.
Recuou um pouco e contou depressa. Quinze armários de quatro gavetas cada. Sessenta gavetas. Dois meses. Dificilmente conseguiria verificar uma gaveta por dia. Seria este?
Dirigiu-se ao sexto armário e abriu a terceira gaveta.
Seis de Fevereiro.
Bingo.
Lembrou-se da anotação esmerada de Hester Wallace. 6.2/1215. .9.2./1427.20.2./1807.2.3./1639, 1901...
Teria sido mais fácil se os dedos não lhe tivessem inchado, se não estivessem grossos como chouriços, se não estivessem a tremer e escorregadios do suor, se ele se conseguisse acalmar.
Alguém ia entrar. Alguém ia ouvi-lo de certeza a abrir e a fechar as gavetas de metal como travas de um órgão, retirando dois, três, quatro criptogramas e as folhas do diário também (Hester dissera que seriam
úteis), enfiando-as no bolso interior do casaco, cinco, seis — deixou cair uma, bolas — sete criptogramas. Estava quase a desistir, naquele «Desiste enquanto estás em vantagem, meu velho», mas precisava dos quatro finais, daqueles quatro que Claire tinha escondidos no quarto.
Abriu a gaveta superior do décimo terceiro armário e lá estavam eles, na parte de trás, na sequência certa, obrigado, meu Deus.
Passos por detrás da sala dos ficheiros. Agarrou nos ficheiros e nos impressos vermelhos e tinha mesmo acabado de os meter no bolso e de fechar a gaveta quando a porta se abriu e apareceu a silhueta agradável de Kay, a rapariga das intercepções.
— Bem me parecia que o tinha visto a entrar — disse ela — esqueceu-se do cachecol, vê? — Ergueu-o e fechou a porta, avançando depois pela sala estreita em direcção a ele. Jericho ficou paralizado com um sorriso idiota na cara.
— Eu não o quero incomodar, mas é importante, não é? —Tinha uns olhos negros e enormes. Jericho mal reparou novamente em como ela era muito bonita, mesmo com o uniforme do Exército. A túnica estava apertada muito justa mesmo na cintura. Algo nela lhe fazia lembrar Claire.
— Perdão?
— Eu sei que não devia perguntar, não temos nada que fazer perguntas, não é? Mas, bem, é importante? É que nunca ninguém nos diz nada, sabe? Lixo, é tudo o que nos calha, só lixo, lixo o dia inteiro. E à noite, também. Quando tento dormir continuo a ouvir bip-bip-o-raio-dos-bips. Uma pessoa até fica maluca passado algum tempo. Eu alistei-me, percebe, como voluntária, mas este lugar não é aquilo que eu esperava. Nem sequer posso dizer à minha mãe e ao meu pai. — Tinha-se aproximado muito dele. — Consegue compreender alguma coisa? É importante? Não digo nada a ninguém — acrescentou, solenemente — juro.
— Sim — disse Jericho. — Nós conseguimos compreender alguma coisa, e é importante. Juro.
Ela acenou aquiescente, para si mesma, sorriu, pôs-lhe o cachecol à volta do pescoço e apertou-o. Depois saiu calmamente da sala dos ficheiros, deixando a porta aberta. Jericho deu-lhe vinte segundos, e saiu também. Ninguém o impediu de sair do anexo ao encontro da chuva.
Heaviside não queria que eles se fossem embora. Jericho tentou protestar, sem grande efeito — a luz era pouca, disse, tinham uma longa viagem pela frente, tinham de chegar antes do blackout— mas Heaviside ficou horrorizado. Insistiu, insistiu para que eles pelo menos dessem uma vista de olhos aos radares e aos receptores Morse de alta-velocidade. Estava tão entusiasmado que parecia prestes a desatar a chorar se recusassem. Assim, não tiveram outro remédio senão seguirem-no humildemente pelo cimento molhado e escorregadio, primeiro para uma fila de barracões de madeira disfarçados de estábulos e depois para um outro falso chalé.
O coro do campo das antenas produzia um som de fundo estranho. Heaviside ficava cada vez mais excitado à medida que ia descrevendo técnicas de comprimentos de ondas e de frequências difíceis de compreender, Hester fingia heroicamente estar interessada e evitava que o seu olhar se cruzasse com o de Jericho, e durante todo esse tempo Jericho acompanhou-os sem os ouvir, num casulo de ansiedade, encorajado pelos sons distantes da descoberta e da inquietação. Nunca estivera tão desesperado para sair de um lugar. De vez em quando a mão deslizava-lhe furtivamente até ao bolso interior e, uma vez lá, tranquilizava-se por sentir a aspereza das intercepções entre os dedos, até que se apercebeu de estar a imitar bastante bem Napoleão, pelo que retirou a mão imediatamente.
No que respeita a Heaviside, tal era o seu orgulho no trabalho desenvolvido por Beaumanor que, de certeza, os teria mantido lá durante mais uma semana se isso fosse possível. Mas então, uma interminável meia-hora mais tarde, quando sugeriu uma visita aos motores e aos geradores auxiliares, foi Hester, tão calma até então, quem finalmente se animou e disse com bastante firmeza que não, obrigada, que tinham mesmo de se ir embora.
— Têm a certeza? Fizeram uma viagem tão grande para estarem cá só duas horas? — Heaviside parecia sentir-se defraudado. — O comandante vai ficar desiludido por não os encontrar.
— Paciência — disse Jericho. — Fica para uma outra vez.
— Você é que sabe, meu velho — disse Heaviside, melindrado. — Não os queremos maçar. — E Jericho amaldiçoou-se por o ter ofendido.
Acompanhou-os ao carro, parando pelo caminho para lhes mostrar uma antiga figura de proa de um barco, que representava um almirante empoleirado em cima de um cavalo. Algum engraçadinho tinha decorado a espada do almirante com uns calções do Exército que pendiam balouçantes naquela humidade gélida. — Cornwallis — disse Heaviside. — Encontrei-o nos campos. É o nosso talismã da sorte.
Quando se despediram, apertou-lhes as mãos, a um de cada vez, primeiro a Hester, depois a Jericho, e fez continência, quando iam a entrar no Austin. Voltou-se como se se fosse embora, depois parou e baixou-se repentinamente para a janela.
— O que foi que disse que fazia, Mr. Jericho?
— Na verdade não cheguei a dizer — Jericho sorriu e ligou o motor. — Sou criptanalista.
— Em que secção?
— Lamento, mas não posso dizer.
Engrenou a marcha-atrás e efectuou uma inversão de marcha desastrada. Enquanto se afastavam, conseguia ver Heaviside pelo espelho retrovisor, de pé, à chuva, com a mão a proteger os olhos, observando-os. A curva da estrada levou-os para a direita e a imagem desapareceu.
—Até aposto — murmurou Jericho — que vai direito ao telefone mais próximo.
— Conseguiu?
Acenou afirmativamente. — Vamos esperar até sairmos daqui.
Passaram pelos portões, seguiram pela alameda, atravessaram a aldeia e seguiram em direcção à floresta. A chuva era batida pelo vento por entre a escura barreira de árvores inclinadas, formava colunas brancas assustadoras, qual estandarte de um exército fantasma. Um grande pássaro solitário esvoaçava por entre o aguaceiro, muito alto e muito longe. Os limpa pára-brisas corriam para um lado e para o outro. As árvores fecharam-se à volta deles.
— Saiu-se muito bem — disse Jericho.
— Até à parte final. Na parte final foi insuportável, sem saber se tinha conseguido.
Jericho começou a contar-lhe o episódio da sala dos ficheiros, mas depois apercebeu-se de um caminho que partia da berma da estrada para a privacidade do bosque.
O sítio perfeito.
Andaram aos solavancos pelo caminho acidentado cerca de cem metros, passando por cima de poças que afinal eram buracos de meio metro de profundidade. A água espalhava-se para ambos os lados do carro, batendo na parte inferior dos chassis. Jorrou por um furo aos pés de Hester e encharcou-lhe os sapatos. Quando, por fim, as luzes mostraram um espaço cheio de lama suficientemente largo para parlamentar, Jericho desligou o motor.
Não se ouvia mais nada senão a chuva a bater no fino tejadilho metálico. Ramos pendentes obscureciam o céu. Estava quase escuro demais para ler. Jericho acendeu a luz interior.
— VWADU QSA? K — disse Jericho, lendo as palavras da primeira folha de diário. — O que, se bem me lembro dos meus dias na análise de trânsito, é traduzido por: Aqui estação de sinal de chamada ADU, peço leitura da potência da nossa frequência, terminado. — Passou o dedo pela cópia de carbono. O código-Q era uma linguagem internacional, o Esperanto dos operadores radiofónicos; sabia-a de cor. — E depois temos VWCPQ BT QSA4 QSA? K. Aqui estação de sinal de chamada CPQ, espaço, a potência do vosso sinal está bom; como está a nossa potência? Terminado.
— CPQ — disse Hester, acenando com a cabeça.
— Reconheço esse sinal de chamada. Tem algo a ver com o Alto Comando do Exército de Berlim.
— Óptimo. Então, já resolvemos um mistério. — Voltou a concentrar-se na folha de diário. — VWADU QSA3 QTCl K: Smolensk para Berlim, a vossa potência de sinal está razoável, tenho uma mensagem para vocês, terminado, QRV, diz Berlim: Estamos prontos, QXH K: Transmitam o vosso trânsito, terminado. Então, Smolensk diz QXA 109: A nossa mensagem consiste em 109 grupos de criptogramas.
Hester abanou o primeiro criptograma, triunfante. — Aqui está ele. Exactamente, cento e nove.
— OK. Muito bem. A transmissão é efectuada logo em seguida porque Berlim responde: VWCPQ R QRU HH VA. Mensagem recebida e compreendida, não tenho nada para vocês, Heil Hitler e boa-noite. Tudo muito suave e melódico. Directamente retirado do manual.
— Aquela rapariga do anexo das intercepções disse que era muito preciso.
— O que infelizmente não acontece com as respostas de Berlim. — Vasculhou nas folhas de diário. — Outro contacto fácil no dia 9, e outro no dia 20. Ah — exclamou. — já no dia 2 de Março .parece mais complicado. — De facto, o impresso era uma massa de diálogo conciso. Voltou-o para a luz. Smolensk para Berlim: QZE, QRJ, QRO. (A vossa frequência está muito alta, os vossos sinais muito baixos, aumentem a potência). E Berlim responde: QWP, QRXlO (respeitem os regulamentos, aguardem dez minutos) e, por fim, um exasperado QRX (silêncio). — Isto é que é interessante. Não admira que, de repente, pareçam estranhos. — Jericho olhou de soslaio para a cópia de carbono. — O sinal de chamada de Berlim foi alterado.
— Alterado? Que absurdo. Alterado para quê?
— TGD.
— O quê? Deixe-me ver isso — disse ela, arrancando-lhe o impresso da mão. — Não é possível. Não, não. Pura e simplesmente, TGD não é um sinal de chamada da Wehrmatch.
— Como é que pode ter tanta certeza?
— Porque sei. Existe uma chave completa do Enigma apelidada a partir de TGD. Nunca foi decifrada. É famosa. — Hester começara a enrolar nervosamente uma mecha de cabelo à volta do dedo indicador. — Notória, talvez seja uma palavra mais adequada.
— O que é?
— É o sinal de chamada do quartel-general da Gestapo em Berlim.
— Gestapo? — Jericho remexeu nas folhas que faltavam. — Mas todas as mensagens a partir do dia 2 de Março — disse — ou seja, oito das onze, todas as mais compridas, incluindo as quatro que estavam no quarto de Claire, foram todas dirigidas para esse sinal de chamada. — Passou os impressos para as mãos de Hester para que ela verificasse com os próprios olhos e encostou-se para trás.
Uma rajada de vento agitou os ramos por cima deles, despejando uma chuveirada de água da chuva que ribombou no pára-brisas.
— Vamos tentar formar uma tese — disse Jericho passado um ou dois minutos, mais para ouvir uma voz humana do que por outro motivo qualquer. O tamborilar descontínuo da chuva e o aspecto ameaçador do crepúsculo começavam a bulir-lhe com os nervos. Hester levantara os pés do chão encharcado e estava aconchegada no banco da frente, olhando fixamente para a floresta, abraçando as pernas, massajando ocasionalmente os dedos por cima das meias húmidas.
— 4 de Março é o dia chave — prosseguiu. (Onde é que eu estava a 4 de Março? Noutro mundo: a ler Sherlock Holmes em frente a um aquecedor a gás em Cambridge, evitando o Kite e a aprender a caminhar de novo.) — Até esse dia, tudo corria normalmente. Uma unidade de sinais que hibernava na Ucrânia, dormindo todo o Inverno, activou-se com o tempo mais quente. Primeiro, alguns sinais para o QG do Exército em Berlim, e depois uma explosão de mensagens mais longas para a Gestapo.
— Não é normal — disse Hester num tom amargo. — Uma unidade do Exército a transmitir relatórios numa chave de Enigma da frente-russa para o quartel-general da polícia secreta? Normal? Eu diria mesmo, sem precedentes.
— Sem dúvida. — Jericho não se importou de ser interrompido. Era bom saber que ela o escutava. — De facto, é tão sem precedentes que alguém de Bletchley repara no que se está a passar e entra em pânico. E todos os sinais anteriores são retirados dos Arquivos. E, mesmo antes da meia-noite, nesse mesmo dia, o seu Mr. Mermagen telefona para Beaumanor e diz-lhes para terminarem com as intercepções. Já tinha acontecido antes algo semelhante?
— Nunca. — Hester fez uma pausa, depois ergueu o ombro em aquiescência. — Bom, está bem, talvez, quando o trânsito é muito acentuado, pode-se negligenciar um alvo de prioridade inferior durante um dia ou dois. Mas você viu o tamanho de Beaumanor. E não é tão grande como a estação da RAF em Chicksands. E deve haver mais uma dúzia de locais mais pequenos, talvez mais até. Os seus colegas estão sempre a dizer-nos que o objectivo do exercício é controlar tudo.
Jericho concordou. Era verdade. Tinha sido a sua filosofia desde o início: abranjam tudo, não percam nada. Não são os grandes que nos fornecem as grelhas — esses são bons de mais. São os pequenos, os incompetentes, esquecidos há muito, enfiados nos cus-de-Judas, que começam sempre as mensagens com «situação normal, nada a registar» e depois usam os mesmos códigos nulos nos mesmos lugares, ou que escrevem em cifra as suas próprias mensagens, ou que geralmente ligam os rotores todas as manhãs com as iniciais da namorada...
— Então não deve ter sido ele que decidiu dar-lhes ordem para pararem? — disse Jericho.
— O Miles? É claro que não.
— Quem é que lhe dá ordens?
— Depende. Geralmente é a Sala das Máquinas do Anexo 6 As vezes o Anexo 3. São eles que decidem as prioridades.
— Poderá ter sido um erro de Mermagen?
— Em que sentido?
— Bem, o Heaviside disse que o Miles telefonou em pânico para Beaumanor mesmo antes da meia-noite do dia 4. Estive a pensar: e se já tinham dito ao Miles que não era para interceptar esta unidade e ele se tivesse esquecido de passar a mensagem?
— É possível. De facto, quem o conhecer bem... Sim, sim. é claro. — Hester voltou-se para o olhar de frente. — Compreendo onde quer chegar. Durante o tempo que mediou entre o momento em que o Miles recebeu as ordens e as fez chegar a Beaumanor foram interceptadas mais quatro mensagens.
— Exactamente. Essas mensagens chegaram ao Anexo 6 às tantas da madrugada do dia 4. Mas então, já tinha sido dada ordem para não as descodificarem.
— E foram apanhadas na burocracia, e seguiram ao longo da linha.
— Até que terminaram na Sala dos Cadernos Alemães.
— Em frente à Claire.
— Sem estarem decifradas.
Jericho abanou a cabeça muito devagar. Sem estarem decifradas. Era esse o ponto crucial. Isso explicava por que razão as mensagens do quarto de Claire não apresentavam vestígios de deterioração. Por isso não tinham as faixas da máquina Type-X coladas nas costas. Não tinham sido decifradas.
Espreitou para o bosque, mas não viu árvores, viu a Sala dos Cadernos Alemães na manhã seguinte ao dia 4 de Março, quando os criptogramas teriam chegado para serem preenchidos e catalogados.
Teria sido a própria Miss Monk a telefonar ao oficial de serviço do Anexo 6, ou teria delegado a tarefa numa das raparigas? «Temos aqui quatro intercepções órfãs, sem as soluções. O que é que lhes havemos de fazer?» E a resposta teria sido: «O quê? Meu Deus! Metê-las nos ficheiros? Esquecê-las? Atirá-las para a caixa que diz DESPERDÍCIOS CONFIDENCIAIS?»
Só que não acontecera nenhuma dessas coisas.
Em vez disso, Claire roubara-as.
— «Em teoria?» — dissera Weitzman. — «Num dia normal? Muito provavelmente uma rapariga como a Claire tomaria conhecimento de mais pormenores operacionais das forças armadas alemãs do que o próprio Adolfo Hitler. É absurdo não é?»
Ah, mas elas não as deviam ler, Walter, essa é que era a questão. Jovens bem-educadas nunca pensariam em ler a correspondência de outra pessoa, a menos que as mandassem fazê-lo pelo Rei e pela Pátria. De certeza que não as liam por curiosidade. Era essa a razão porque Bletchley as empregava.
Mas o que foi que Miss Monk disse acerca de Claire? «Ultimamente ela tornou-se muito mais atenta...» Claro que sim.
Começara a ler o que lhe passava pelas mãos. E no fim de Fevereiro ou no início de Março vira algo que lhe mudara a vida. Algo relacionado com uma unidade de mensagens alemãs de segundo plano cujo operador radiofónico enviava mensagens em código Morse para a Gestapo como se se tratasse de uma sonata de Mozart. Algo tão «nada chato, querido», que quando Bletchley decidiu que já não era possível ler mais o trânsito, ela se sentiu obrigada a roubar as últimas quatro intercepções.
E porque as roubara ela?
Jericho nem teve necessidade de fazer essa pergunta. Hester deu a resposta antes dele, apesar da voz estar fraca e pouco confiante, quase afogada pela chuva.
— Roubou-as para as ler.
Roubou-as para as ler. A resposta deslizou sob o padrão fortuito dos acontecimentos e encaixou-se-lhe como uma grelha. Roubou os criptogramas para os ler.
— Mas será mesmo possível? — perguntou Hester. Parecia desnorteada com a direcção que a sua lógica estava a tomar. — Quero dizer, será que ela as roubou mesmo?
— Sim. É possível. Difícil de imaginar, mas possível.
Oh, que ousadia, pensou Jericho. Oh, que raio de ousadia mais assustadora com que deve ter maquinado tudo. Claire, minha querida, és mesmo uma maravilha.
— Mas não o teria conseguido sozinha — disse ele — ali fechada nas traseiras do Anexo 3. Alguém a deve ter ajudado.
— Quem?
Jericho tirou as mãos do guiador num gesto de desânimo. Era difícil saber por onde começar. — Para começar, alguém com acesso ao Anexo 6. Alguém que pudesse procurar os parâmetros do Enigma para a chave Abutre do Exército Alemão no dia 4 de Março.
— Parâmetros?
Olhou-a surpreendido e depois percebeu que os trabalhos do Enigma não eram o género de informações que ela precisasse de saber. E em Bletchley, aquilo que não era preciso saber, nunca era dito.
— Walzenlage — disse — Ringstellung. Steckerverbindungen.
Ordenação das rodas, colocação das anilhas e entrecruzar as ligações. Se o Abutre estava a ser lido todos os dias, já deveriam ter esses parâmetros no Anexo 6.
— Então o que seria necessário fazer?
—Ter acesso a uma máquina Type-X. Programá-la correctamente. Inserir os criptogramas e rasgar o texto base.
— A Claire poderia tê-lo feito?
— Quase de certeza que não. Nunca a teriam deixado aproximar-se da Sala de Descodificação. E, além disso, não tinha prática.
— Então, o cúmplice dela teria de ter alguma experiência?
— Experiência, sim. E coragem. E tempo, por falar nisso. Quatro mensagens. Mil grupos de criptogramas. Cinco mil letras individuais. Mesmo um operador experiente demoraria cerca de meia hora para descodificar tanta coisa. Pode ter sido feito. Mas era preciso um super-homem.
— Ou mulher.
— Não. — Lembrava-se dos acontecimentos de sábado à noite: o barulho lá em baixo no chalé, as pegadas enormes de homem no gelo, as marcas da bicicleta e a luz vermelha a afastar-se dele, escondendo-se na escuridão.,— Não. É um homem.
Se tivesse sido trinta segundos mais rápido, pensou, ter-lhe-ia visto a cara.
Depois pensou: sim, e ainda apanhava um tiro: uma bala saída de uma Smith & Wesson 38, fabricada em Springfield, no Massachusets.
Sentiu uma ferroada de humidade gelada no pulso e olhou para cima. Seguiu a sua trajectória até ao furo no tejadilho, mesmo por cima do pára-brisas. Ao olhá-lo, outra gota de água da chuva inchou lentamente, ganhou uma cor de ferrugem e caiu.
O Tubarão.
Com sentimentos de culpa, percebeu que quase se esquecera dele.
— Que horas são?
— Quase cinco.
— Já devíamos estar a caminho. Esfregou a mão e estendeu-a para a ignição.
O carro não queria pegar. Jericho rodou a chave para um lado e para o outro ao mesmo tempo que carregava freneticamente no acelerador, mas tudo o que conseguia arrancar do motor era um som seco e mastigado.
— Bolas!
Levantou a gola, saiu do carro e dirigiu-se para a parte de trás. Ao levantar o capo, um bando de pombos levantou voo atrás de si, batendo as asas como estalinhos de festa. Havia uma alavanca de ignição manual por baixo do depósito sobresselente de gasolina e ele meteu-a no respectivo orifício junto ao pára-choques frontal. «Estás a fazer a coisa malfeita, rapaz», tinha-lhe dito o padrasto, «e podes partir o pulso». Mas como é que se devia fazer? No sentido dos ponteiros do relógio ou ao contrário? Deu à manivela um impulso esperançado. Mas nada.
— Puxe o botão do ar para fora — gritou ele a Hester — e carregue no terceiro pedal se o carro começar a dar sinal.
O pequeno Austin balançou, quando ela passou para o lugar do condutor.
Ele concentrou-se de novo na tarefa que tinha em mãos. O chão da floresta estava a um palmo do nariz dele — um tapete castanho, pungente, de folhas apodrecidas e caruma. Tentou dar à manivela mais duas vezes, fazendo força até lhe doer o ombro. Começava a transpirar e o suor misturava-se com a chuva, escorrendo-lhe em gotas pela ponta do nariz e pelo pescoço abaixo. A insanidade de toda esta aventura parecia encapsulada naquele preciso momento. A maior de todas as batalhas navais estava prestes a começar e onde estava ele? Numa maldita floresta dos primórdios, numa maldita terra de ninguém, debaixo de chuva, com um monte de criptogramas da Gestapo roubados e uma mulher que mal conhecia. Sim, que diabo pensavam eles que estavam a fazer? Deviam estar — apertou a manivela com mais força — doidos... Deu um puxão violento à manivela e, de repente, o motor pegou, engasgou-se, quase parou, mas Hester reanimou-o, com estrépito. Foi o som mais melodioso que já tinha ouvido, propagando-se pela floresta. Atirou a manivela para dentro da bagageira e fechou a tampa com estrondo.
A caixa de velocidades gemeu, quando ele inverteu a marcha e tomou o caminho da estrada.
Os ramos pendentes transformavam num túnel a vereda alagada. Os faróis luziam na película de água corrente. Jericho seguia devagar, dando voltas e mais voltas, sempre na mesma estrada, tentando lobrigar algum marco quilométrico na penumbra, tentando não entrar em pânico. Devia ter-se enganado no caminho ao sair da clareira. O volante estava tão molhado e escorregadio ao toque como a própria estrada. Por fim, chegaram a um cruzamento junto a um carvalho decrépito e enorme. Hester debruçou-se de novo sobre o mapa. Uma longa madeixa de cabelo preto atravessou-se-lhe diante dos olhos e ela puxou-a para trás com as duas mãos. Depois, disse, ao mesmo tempo que metia um gancho entre os dentes: — Esquerda ou direita?
— Você é que é a navegadora.
— E você é que resolveu sair da estrada principal — disse, passando a mão pelo cabelo desabridamente, para o pôr no sítio, e acrescentou: — Vire à esquerda.
Ele teria optado pelo outro caminho, mas graças a Deus que o não fez, porque ela é que estava certa. Em breve a estrada começou a clarear. Já se viam retalhos de céu lacrimejante. Ele carregou no acelerador e o ponteiro do velocímetro chegou aos sessenta, quando saíram da floresta para campo aberto. Quando, dois ou três quilómetros mais à frente, chegaram a uma aldeia, ela disse-lhe para parar à porta da minúscula estação de correios.
— Porquê?
— Preciso de saber onde estamos.
— Então despache-se.
— É que de facto não me apetece nada andar a fazer turismo. Hester fechou a porta com força e correu para os correios debaixo
de chuva, saltando por cima das poças de água com uma agilidade de ginasta experimentada.Quando a porta se abriu, uma campainha tilintou.
Jericho olhou para a frente e depois pelo retrovisor. Parecia que a aldeia era apenas aquela rua. Não via nenhum veículo estacionado.
Não havia ninguém nas proximidades. Era óbvio que uma viatura particular, principalmente sendo conduzida por um estranho, era uma raridade, um óptimo tema de conversa. Já conseguia imaginar as cortinas a serem puxadas para trás nos pequenos chalés de tijolo e nas casas de madeira. Desligou os limpa pára-brisas e afundou-se no banco. Pela vigésima vez levou a mão ao monte de criptogramas do bolso interior.
Duas Inglaterras, pensou. Uma Inglaterra, esta, familiar, segura, óbvia. Mas agora, uma outra Inglaterra, secreta, escondida nos terrenos de casas imponentes — Beaumanor, Gayhurst, Woburn, Adstock, Bletchley —, uma Inglaterra de campos de antenas e radares, descodificadoras ruidosas e, em breve, as incandescentes válvulas verdes e cor-de-laranja das máquinas Turing («deverá tornar os cálculos cem vezes, mil vezes mais rápidos»). Uma nova era que estava prestes a nascer no lugar da velha. O que foi que Hardy escreveu na sua Apologia? «A verdadeira matemática não tem qualquer efeito sobre a guerra. Ainda ninguém descobriu qualquer proveito que a guerra possa tirar da teoria dos números.» O velhote nem conseguia imaginar metade do que estava para vir.
A campainha tocou outra vez e Hester saiu da estação dos correios com um jornal por cima da cabeça a fazer de guarda-chuva. Abriu a porta do carro, sacudiu o jornal e atirou-o, não com muito cuidado, para cima das pernas de Jericho.
— Para que é isto? — Era o Leicester Mercury, o jornal local: a edição daquela tarde.
— Imprimem pedidos de ajuda, não imprimem? A polícia? Quando alguém desaparece?
Era uma boa ideia. Tinha de concordar. Mas, apesar de terem esquadrinhado cuidadosamente o jornal — e por duas vezes, para ser mais exacto — não conseguiram encontrar nenhuma fotografia da Claire nem nenhuma alusão ao facto de ela estar desaparecida.
Tudo para sul, a caminho de casa. Uma trajectória diferente para a viagem de regresso, mais para oriente; era este o plano de Hester. Para os manter animados ia dizendo de vez em quando os nomes das aldeias e procurava-os no dicionário de nomes geográficos enquanto desciam as ruas desertas ruidosamente. Oadby, disse ela (repara no termo arcaico para igreja gótica), Kibworth Harcourt, Little Bowden, e depois deixamos para trás o Leicestershire e entramos no Northamptonshire. O céu, para lá das longínquas montanhas empalidecidas, aclarava do preto para o cinzento e, finalmente, para uma espécie de branco neutro e polido. A chuva abrandou e acabou por parar. Oxendon, Kelmarsh, Maidwell... Torres quadradas normandas com seteiras, tabernas com telhados de colmo, minúsculas estações ferroviárias da época vitoriana anichadas entre o arvoredo, altas sebes e densos matagais. Era o suficiente para fazer alguém desatar a cantar «There'll always be an England»(1), mas nenhum deles estava para cantorias.
Porque teria ela fugido? Era o que Hester não conseguia compreender. Tudo o resto parecia ter a sua lógica: como se deveria ter apoderado dos criptogramas, a razão por que teria querido lê-los, a razão pela qual teria necessitado de um cúmplice. Mas, porquê tomar uma atitude que de certeza ia atrair as atenções sobre a sua pessoa? Porque não se apresentara ao turno da manhã?
— É você — disse ela a Jericho, depois de ter matutado no assunto durante» mais uns quilómetros. A voz dela tinha uma nota acusadora. — Acho que só pode ser você.
Tal como no tribunal, Hester levou-o a recordar os acontecimentos de sábado à noite. Ele tinha ido ao chalé, certo? Tinha encontrado as mensagens, certo? Apareceu um homem no piso inferior, certo?
— Certo.
— Ele viu-o?
— Não.
— Você disse alguma coisa?
— Se calhar gritei «Quem está aí?» ou coisa assim.
— Então, é possível que ele lhe tenha reconhecido a voz.
— É possível.
Mas isso quereria dizer que eu o conheço, pensou Jericho. Ou que, pelo menos, ele me conhece.
— A que horas saiu de lá?
*1. «Haverá sempre uma Inglaterra» (N. da T.)
— Não tenho bem a certeza. Por volta da uma e meia.
— Lá está — disse ela. — É você. A Claire regressa ao chalé depois de você se ter ido embora, Repara que as mensagens desapareceram. Percebe que você as deve ter, porque o homem misterioso disse-lhe que você estava lá. Acha que você as vai levar imediatamente às autoridades. Entra em pânico. Foge...
— Isso é de loucos. — Desviou os olhos da estrada para olhar para Hester. — Eu nunca a trairia.
— Isso é o que você diz. Mas ela sabia disso?
Ela saberia disso? Não, concordou, voltando a concentrar-se na condução, não, ela não sabia disso. Para dizer a verdade, depois do comportamento dele na noite em que ela encontrara o cheque, Claire tinha boas razões para pensar que ele era um fanático pela segurança. Conclusão por sinal bastante irónica, uma vez que, neste momento, tinha onze criptogramas roubados enfiados no bolso do sobretudo.
Um autocarro de vinte anos com uma mala exterior no andar de cima, algo que se diria acabado de sair de um museu dos transportes, encostou à berma relvada para lhes dar passagem. As crianças vindas da escola que seguiam a bordo acenaram-lhes vigorosamente.
— Quem eram os namorados dela? Com quem é que ela andava além de mim?
— Você não quer saber. Acredite em mim. — Disse-lhe as mesmas palavras que ele utilizara na igreja com um certo gosto. Ele não a podia censurar.
— Vá lá, Hester. — Agarrou o volante com ansiedade e deu uma olhadela ao retrovisor. O autocarro desaparecia de vista e aparecia um carro a ultrapassá-lo. — Não me poupe. Vamos facilitar as coisas. Fiquemo-nos pelos homens de Bletchley Park.
Bem, eram mais suspeitas, explicou ela, do que nomes. A Claire nunca mencionara nomes.
Então, diga lá quais são as suas suspeitas.
Ela assim fez.
O primeiro que vira era um jovem de cabelo avermelhado, bem barbeado. Encontrara-o a descer as escadas com os sapatos na mão certa manhã no início de Novembro.
Cabelo avermelhado, bem barbeado, repetiu Jericho. Não lhe parecia ninguém que conhecesse.
Uma semana mais tarde passara de bicicleta por um coronel que tinha o carro do Exército estacionado na vereda com as luzes apagadas. E depois havia um tipo da Força Aérea chamado Ivo qualquer coisa, com um vocabulário esquisito, cheio de «estampanços», «calhambeques» e «tretas» que a Claire imitava tão bem. Era do Anexo 6, ou seria do 3? Tinha quase a certeza de que era do Anexo 3. Havia também um Honorável Evelyn com mais dois apelidos — «completamente deshonorável, querida» — que Claire conhecera em Londres durante o Blitz e que trabalhava agora na mansão. Havia ainda um homem mais velho que Hester achava ter algo a ver com a Marinha. E havia um americano: esse era da Marinha de certeza.
— Pode ser o Kramer — disse Jericho.
— Conhece-o?
— Foi o tipo que me emprestou o carro. Há quanto tempo foi isso?
— Há cerca de um mês. Mas fiquei com a impressão de que era apenas um amigo. Uma boa fonte de Cantos e roupas de nylon, nada de especial.
— E antes do Kramer fui eu.
— Ela nunca me falou de si.
— Sinto-me lisonjeado.
— Levando em consideração a forma como ela falava dos outros, deve mesmo sentir-se.
— Mais ninguém?
Hesitou. — É possível que tenha havido alguém novo no último mês. O que é certo é que passava muito tempo fora. E uma vez, há cerca de duas semanas, eu estava com enxaqueca, saí mais cedo do turno e pareceu-me ouvir uma voz de homem vinda do quarto dela. Mas se ouvi, pararam de falar quando me sentiram nas escadas.
— Então, são oito, pelas minhas contas. Contando comigo. E não contando com outros de que se tenha esquecido ou que não conheça.
— Desculpe, Tom.
— Não há problema. — Conseguiu esboçar a imitação burlesca de um sorriso. — Se sinto alguma coisa, é mais fraco do que pensava.
— Estava a mentir, é claro, e Jericho até apostava que Hester o sabia.
— Porque será que não consigo odiá-la?
— Porque ela é assim mesmo — explicou Hester com uma ferocidade inesperada. — Bem, ela nunca tentou escondê-lo, pois não? E, se uma pessoa a detesta pelo que ela é, então é porque essa pessoa não a amou lá muito, não acha? — O pescoço dela ruborescera. — Se o que uma pessoa quer é um reflexo de si própria, então, muito sinceramente, que se veja ao espelho.
Recostou-se no banco, aparentemente tão surpreendida com este discurso como ele.
Jericho voltou a olhar pelo retrovisor. A estrada continuava deserta, exceptuando o mesmo carro solitário. Quanto tempo passara desde que reparara nele pela primeira vez? Cerca de dez minutos? Mas agora que pensava no assunto, era bem provável que já lá estivesse há bastante mais tempo, certamente antes de ultrapassarem o autocarro. Vinha cerca de cem metros mais atrás, e era baixo, largo e escuro, quase rente ao chão como uma barata. Carregou com mais força no acelerador e sentiu-se aliviado por ver a distância entre os dois aumentar até que, por fim, a estrada começou a descer e surgiu uma curva e o enorme carro desapareceu.
Um minuto depois lá estava ele outra vez, mantendo exactamente a mesma distância.
A estrada estreita passava por entre sebes altas e negras salpicadas de flores em botão. Por entre as sebes, Jericho conseguia vislumbrar campos minúsculos, um celeiro em ruínas, um descampado, um ulmeiro preto, petrificado por um raio. Surgiu um pedaço de estrada mais longo e plano.
Não se via o sol. Pelos seus cálculos, deveria restar-lhes cerca de meia hora de luz.
— Quanto é que ainda falta para chegarmos a Bletchley?
— Depois de passarmos Stony Stratford são mais nove quilómetros. Porquê?
Jericho olhou novamente para o espelho e ia começar a dizer: — Receio que... — quando ouviram uma campainha a fazer grande alarido atrás deles. O grande carro cansara-se finalmente de os seguir e fazia sinais de luzes, ordenando-lhes que encostassem.
Até ao momento, os encontros de Jericho com a polícia tinham sido raros e breves, e invariavelmente marcados por aquelas costumeiras exibições exageradas de respeito mútuo entre os agentes da lei e os respeitáveis cidadãos da classe média. Mas desta vez ia ser diferente, como se apercebeu imediatamente. Uma viagem não autorizada entre locais secretos, sem provas de posse do veículo, sem cupões de gasolina, numa altura em que a polícia percorria o país à procura de uma mulher desaparecida: o que é que lhes ia acontecer? Uma visita à esquadra local, certamente. Muitas perguntas. Um telefonema para Bletchley. Uma revista.
Nem valia a pena pensar.
E, assim, o que não deixou de o espantar, deu por si a medir a estrada à sua frente, como um atleta de salto em comprimento a preparar-se para iniciar a corrida. Os telhados vermelhos e o pináculo da igreja cinzenta de Stony Stratford começavam a despontar acima da orla distante do arvoredo.
Hester agarrou-se às bordas do banco. Jericho comprimiu o acelerador com força até ao chão.
O Austin ganhou velocidade lentamente, como num pesadelo, e o carro da polícia, em resposta ao desafio, começou a persegui-los. O velocímetro subiu até aos sessenta, setenta e cinco, oitenta, quase noventa. A paisagem rural parecia correr para eles, desviando-se apenas no último segundo, passando-lhes à tangente de ambos os lados. Surgiu uma estrada principal. Tinham de parar. E, se Jericho fosse um condutor experimentado, era o que teria feito, com polícia ou sem polícia. Mas ele hesitou até não haver mais nada a fazer senão travar com toda a força, engrenar a segunda velocidade e virar o volante todo para a esquerda. O motor guinchou. Rodopiaram e andaram só sobre duas rodas, sendo arremessados para os lados pela força centrífuga. O som da campainha foi afogado pelo rugido de um motor e, em seguida, a grelha do radiador de um camião cisterna enchia-lhe o espelho retrovisor. O pára-choques ainda lhes tocou. Uma blasfémia saída da buzina, estrepitosa como a sereia de um farol, pareceu empurrá-los para a frente. Passaram pela ponte do Canal Grand Union e um cisne voltou-se lentamente para os olhar e, a certa altura, andavam às curvas pelo mercado da cidade — direita, esquerda, direita, saltitando entre vielas de empedrado incerto, com o volante a trepidar nas mãos de Jericho. Davam tudo para saírem daquela miserável estrada romana. De repente, as casas começaram a desaparecer e estavam de novo numa zona rural, seguindo paralelos ao canal. Um barco estreito era rebocado por uma carroça de duas rodas em mau estado. O condutor da barcaça, deitado ao lado do agricultor, cumprimentou-os com o chapéu.
— Vire aqui à esquerda — disse Hester, e afastaram-se do canal, seguindo por uma estrada que não era muito melhor do que o caminho da floresta: apenas duas faixas de buracos, numa estrada de alcatrão, estendendo-se à frente deles como trilhos para pneus, separados por um monte de erva que roçava na parte de baixo do carro. Hester voltou-se para trás e ajoelhou-se no banco olhando pela janela em busca de sinais da polícia, mas a zona rural tinha-se fechado por trás deles como uma selva. Jericho conduziu devagar durante mais três quilómetros. Passaram por uma aldeola minúscula. Cerca de dois quilómetros mais à frente fora aberto um espaço para permitir aos carros, ou melhor, às carroças, efectuarem ultrapassagens. Estacionou aí e desligou o motor.
Não tinham muito tempo.
Jericho não tirou os olhos da estrada enquanto ela trocava de roupa no banco de trás do Austin. Segundo o mapa, encontravam-se apenas a quilómetro e meio para oeste de Shenley Brook End e Hester insistia que conseguia regressar ao chalé a pé antes de anoitecer. Jericho ficou maravilhado com tanta coragem. Para ele, depois do encontro com a polícia, tudo ganhara um aspecto sinistro: as árvores gesticulando com o vento, os espaços densamente sombreados que se juntavam agora na orla dos campos, as gralhas que tinham eclodido a crocitar dos seus ninhos e voavam agora em círculos por cima deles.
— Não os podemos ler? — perguntara Hester depois de terem parado. Jericho tinha tirado os criptogramas do bolso para decidirem que fim lhes haviam de dar. —Vá lá, Tom. Não podemos limitarmo-nos a queimá-los. Se ela achava que os podia ler, porque não podemos nós também?
Oh, por uma dúzia de razões, Hester. Por uma centena delas. Mas aqui iam só três para começar. Primeiro, precisavam dos parâmetros do Abutre para os dias em que as mensagens foram enviadas.
— Eu posso tentar arranjá-los — respondeu. — Devem estar algures no Anexo 6.
Muito bem, talvez pudesse. Mas, mesmo que o conseguisse, continuavam a precisar de várias horas numa máquina Type-X sem que ninguém os incomodasse. E também não podia ser uma Type-X do Anexo 8 porque os Enigmas navais eram transmitidos de forma diferente dos do Exército.
Ela não respondera a estes argumentos.
E, terceiro, tinham de encontrar um sítio para esconder os criptogramas, caso contrário, se fossem apanhados com eles, iam ambos ser julgados no gabinete particular do juiz no Old Bailey.
Também não respondeu a isto.
Houve um movimento nas sebes a cerca de trinta metros. Uma raposa saiu dos arbustos para a estrada a farejar. A meio do caminho, parou e olhou-o directamente nos olhos. Ficou absolutamente imóvel a farejar o ar, depois dirigiu-se calmamente para a fila de sebes oposta. Jericho esvaziou os pulmões.
Além disso, além disso... Mesmo depois de ter exposto todas as objecções mais óbvias, Jericho sabia que ela tinha razão. Não podiam simplesmente destruir os criptogramas agora, não depois de tudo o que tinham passado para os conseguirem obter. E, depois de chegar a esta conclusão, a única razão lógica para não os destruírem era tentarem decifrá-los. Hester teria de arranjar alguma forma de roubar os parâmetros enquanto ele procurava uma forma de ter acesso a uma máquina Type-X. Mas era perigoso. Jericho esperava que Hester soubesse disso. Claire seria a última pessoa a roubar os criptogramas e ninguém sabia o que lhe tinha acontecido. E havia um homem — que talvez andasse à procura deles neste preciso momento — um homem que deixara grandes pegadas no gelo; um homem que, ao que parecia, estava armado com uma pistola roubada; um homem que sabia que Jericho estivera no quarto de Claire e que levara as mensagens.
Não sou nenhum herói, pensou. Estava com um medo de morte.
A porta do carro abriu-se e Hester saiu, outra vez com as calças, a camisola e o casacão vestidos e as botas calçadas. Pegou no saco e meteu-o na mala do Austin.
— Tem a certeza de que não quer que a leve?
— Já falámos sobre isso. É melhor separarmo-nos.
— Por amor de Deus, tenha cuidado.
— Preocupe-se consigo. — O céu estava turvo com a aproximação do crepúsculo — húmido e frio. A face dela começava a toldar-se. — Vemo-nos amanhã — disse ela.
Saltou por cima do portão com facilidade e atravessou o campo. Jericho pensou que Hester talvez se voltasse e acenasse em despedida, mas não o fez. Observou-a durante cerca de dois minutos, até que ela chegou em segurança ao outro lado. Procurou uma passagem na sebe e depois desapareceu como a raposa.
O caminho levou-o para lá do Chase, para lá das grandes antenas transmissoras do posto emissor de Bletchley Park em Whaddon Hall até ao vale, a Buckingham Road, que percorreu cautelosamente com o olhar.
Segundo o mapa, existiam apenas cinco estradas, incluindo esta, que ligavam Bletchley ao resto do mundo e, se a polícia ainda estava a controlar o trânsifo, tinha a certeza de que o mandariam parar. A menos que levasse uma bandeira com a cruz suástica, o Austin não podia ter um ar mais suspeito. Estava salpicado de lama até à altura das janelas. Tinha relva agarrada aos eixos. O pára-choques traseiro estava amassado no sítio onde o camião lhe batera. E o motor vinha a fazer um ruído alarmante desde Stony Stratford. Pensava na desculpa que ia dar a Kramer.
A estrada estava silenciosa em ambos os sentidos. Passou por duas quintas e, passados cinco minutos, entrava nos limites da cidade. Passou pelas casas de campo suburbanas com as suas frontarias salpicadas de seixos e adornadas com imitações de traves Tudor e, depois, subiu a encosta em direcção a Bletchley Park. Quando virou para Wilton Avenue, travou de repente. Estava um carro da polícia estacionado ao fundo da estrada do lado do posto da sentinela. Um agente de sobretudo e chapéu falava com a sentinela com determinação.
Uma vez mais, Jericho teve de usar as duas mãos para conseguir engrenar a marcha-atrás, recuando seguidamente muito devagar até Church Green Road.
Neste momento, estava já muito para lá do pânico e encontrava-se num local de calmaria no centro da tempestade. «Age com a maior naturalidade possível», fora esse o conselho que dera a Hester quando decidiram ficar com os criptogramas. «Não está de serviço até amanhã às quatro da tarde? Óptimo, então não vá para lá antes dessa hora.» A regra deverá aplicar-se também a ele. Normalidade. Rotina. Esperavam-no no Anexo 8 para o ataque ao Tubarão? Lá estaria.
Subiu a encosta e estacionou o carro numa rua de casas particulares a cerca de trezentos metros da igreja de St. Mary. Onde poderia esconder os criptogramas? No Austin? Era muito arriscado. Em Albion Street? Era muito provável que lhe revistassem o quarto. Um processo de eliminação forneceu-lhe a resposta. Existe melhor sítio para esconder uma árvore do que uma floresta? Existe melhor sítio para esconder um criptograma do que no centro de descodificação? Ia levá-los para o serviço.
Tirou o monte de papéis do bolso interior do sobretudo, escondeu-os no forro e fechou o carro. Depois lembrou-se do atlas de Atwood e voltou a abri-lo. Enquanto se curvava para pegar no livro, olhou por acaso para a rua. Estava uma mulher à entrada de uma casa do outro lado da rua, sob um foco oblongo de luz amarelada, a chamar os filhos para dentro. Passou um casal de braço dado. Um cão, de orelhas caídas, passou rente à sarjeta e parou para levantar a pata contra o pneu dianteiro do Austin. Uma vulgar rua inglesa de província ao lusco-fusco. O mundo pelo qual lutamos. Fechou a porta suavemente. Olhos no chão, mãos nos bolsos, dirigiu-se para Bletchley Park em passo rápidos.
Era uma questão de orgulho para Hester Wallace que, ao caminhar, o fazia com a energia de qualquer homem. Mas, aquilo que no mapa lhe parecera um quilómetro e meio em linha recta, acabara por se revelar uma caminhada cheia de curvas e três vezes maior, por entre minúsculas courelas rodeadas por entrançados de sebes e por regos largos como fossos de água castanha liquefeita, de forma que, quando chegou à vereda que levava ao chalé, já tinha escurecido.
Pensou que estivesse perdida mas, um ou dois minutos mais tarde começou a reconhecer a rua estreita; dois ulmeiros plantados muito próximos um do outro, como se saídos da mesma raiz; uns degraus quebrados e cheios de musgo que davam passagem por cima de uma cerca e em breve conseguiu sentir o odor das lareiras da aldeia. Estavam a queimar madeira verde e o fumo era branco e acre.
Procurou polícias, mas não viu nenhum. Nem no campo em frente ao chalé, nem dentro do próprio chalé, que tinha ficado aberto. Fechou a porta da frente com o trinco, parou e chamou do fundo das escadas.
Silêncio.
Subiu as escadas vagarosamente.
O quarto de Claire estava num caos. Profanado foi a palavra que lhe ocorreu. A personalidade que em tempos reflectira, estava agora desarrumada, destruída. As roupas espalhadas, os lençóis arrancados da cama, as jóias dispersas, as caixas dos cosméticos abertas e despejadas por desastradas mãos masculinas. De início, pensou que as superfícies estavam cobertas de talco, mas aquele pó fino e branco não tinha cheiro, e foi então que percebeu que se tratava de pó de impressões digitais.
Começou a limpar tudo, mas depressa desistiu e sentou-se na borda do colchão desnudado com as mãos na cabeça até que um sentimento de auto-repulsa a obrigou a levantar-se de um salto. Assoou o nariz com raiva e desceu as escadas.
Acendeu a lareira na sala-de-estar e colocou uma chaleira cheia de água ao lume. Na cozinha, peneirou o forno e conseguiu encontrar uma brasa entre as cinzas pálidas; amontoou algum carvão e pôs uma panela de água a ferver. Levou para dentro a tina do banho, aferrolhando a porta das traseiras.
Ia reprimir os seus receios com a rotina. Ia tomar banho. Ia comer os restos da tarte de cenoura da noite anterior. Ia deitar-se cedo e esperar pelo sono.
Porque amanhã — amanhã — ia ser um dia assustador.
O interior do Anexo 8 tinha uma atmosfera nervosa, cheia de gente, como os bastidores de um teatro em noite de estreia.
Jericho encontrou o seu lugar habitual perto da janela. À esquerda encontrava-se Atwood, folheando a edição de Dilly Knox das
mímicas de Herodas. Pinker, em frente, estava vestido como se fosse para Covent Garden, o casaco de veludo preto um pouco comprido demais nas mangas, fazendo com que os dedos parecessem patas de toupeiras. Kingcome e Proudfoot estavam a brincar com um tabuleiro de xadrez de bolso. Baxter enrolava uma série de cigarros finos com um aparelho de lata que não funcionava bem. Puck tinha os pés em cima da mesa. Esporadicamente, as máquinas Type-X davam sinais de vida, fazendo um ruído de fundo. Jericho fez um aceno geral de boas-noites, devolveu o atlas a Atwood (— Obrigado, meu caro. Fizeste boa viagem? —) e enrolou o sobretudo nas costas da cadeira. Chegava mesmo a tempo.
— Meus senhores! — Logie apareceu na entrada da sala e bateu palmas duas vezes para lhes chamar a atenção e, depois, afastou-se para dar passagem a Skynner.
Ouviu-se um tropel e um arrastar geral de pernas de cadeiras quando todos se puseram de pé. Alguém enfiou a cabeça na Sala das Descodificações e as máquinas Type-X calaram-se.
— À vontade — disse Skynner fazendo-lhes sinal para que voltassem a sentar-se. Jericho reparou que, enfiando os pés por debaixo da cadeira, podia encostar o tornozelo aos criptogramas roubados.
— Só passei por cá para vos desejar boa sorte. — O corpo pesado de Skynner, qual gangster de Chicago antes da guerra, estava enfarpelado nuns fartos metros bem assertoados de fazenda escura de risca finíssima. — Estou certo de que estão todos tão conscientes do que está aqui em jogo como eu.
— Então, está calado — murmurou Atwood.
Mas Skynner não o ouviu. Disto é que ele gostava. Estava com os pés afastados, firmemente plantados no chão e com as mãos cruzadas atrás das costas. Era Nelson antes de Trafalgar. Era Churchill no Blitz. — Não exagero ao dizer que esta deve ser uma das noites mais decisivas da guerra. — O seu olhar incidiu sobre cada um deles, pousando por fim em Jericho e desviando-se com ar de desagrado. — Uma grandiosa batalha, provavelmente a maior batalha da guerra naval dos comboios, está prestes a começar. Tenente Cave?
— Segundo o Almirantado — disse Cave — às dezanove horas de hoje, os comboios HX-229 e SC-122 foram ambos avisados de que tinham entrado na presumível área de operações dos submarinos.
— Ora, aí está. «Desta urtiga, perigo, podemos colher esta flor, segurança.» — Skynner acenou bruscamente. — Vamos a eles.
— Eu não ouvi já isso em qualquer lado? — disse Baxter.
— Henrique IV, Primeira Parte — respondeu Atwood, a bocejar. — Chamberlain citou esta passagem antes de ir ao encontro de Herr Hitler.
Depois de Skynner se ter ido embora, Logie deu a volta à sala distribuindo cópias da secção do Caderno de Códigos de Mensagens Curtas sobre contactos com comboios. E, à guisa de agradecimento, deu o precioso original a Jericho.
— Andamos atrás de relatórios de contacto com os comboios, meus senhores: o maior número possível entre a meia-noite de hoje e a meia-noite de amanhã. Por outras palavras, a maior quantidade de grelhas cobrindo os parâmetros do Enigma de um dia.
Assim que se escutasse uma mensagem E-barra, o oficial de serviço telefonar-lhes-ia para os avisar. Quando o relatório de contacto chegasse via teleimpressora um minuto depois, seriam efectuadas e distribuídas dez cópias. Teriam ao seu dispor nada mais nada menos do que doze descodificadoras (Logie tinha a garantia do controlador de descodificadoras do Anexo 6) assim que tivessem dados suficientes.
Quando terminou o seu discurso, começaram a colocar as persianas do blackout nas janelas e o anexo foi fechado para a noite.
— Então, Tom — disse Puck, jovialmente. — Quantos relatórios de contacto achas que temos de conseguir para que este teu plano funcione?
Jericho estava a folhear o Caderno de Códigos de Mensagens Curtas. Olhou para cima. — Tentei fazer contas ontem. Diria que aí uns trinta.
—- Trinta? — repetiu Pinker, erguendo a voz horrorizado. — Mas isso significaria um mmm-mmm-mmm...
— Massacre?
— Massacre. Sim.
— Quantos submarinos seriam necessários para produzir trinta mensagens? — perguntou Puck.
— Não sei — respondeu Jericho. — Dependeria do tempo entre o momento que os avistem e o início do ataque. Oito. Talvez nove.
— Nove — murmurou Kingcome. — Céus! É a tua vez, Jack.
— Então, alguém será capaz de me dizer, por favor — disse Puck — o que é que eu devo desejar? Desejo que os submarinos encontrem esses comboios ou não?
— Não — disse Pinker, olhando à volta em busca de apoio.
— É óbvio. Queremos que os c-c-comboios escapem dos submarinos. Esse é que é o objectivo.
Kingcome e Proudfoot concordaram, mas Baxter abanou a cabeça violentamente. O cigarro que fumava desintegrou-se, pulverizando a camisola com pedacinhos de tabaco. — Bolas — disse.
— Eras mesmo capaz de s-s-sacrificar um comboio? — perguntou Pinker.
— É claro. — Baxter varreu cuidadosamente o tabaco para a palma da mão. — Em nome de um bem maior. Quantos homens é que o Estaline já sacrificou até agora? Cinco milhões? Dez milhões? A única razão por que ainda estamos na guerra é a chacina da frente oriental. O que é um comboio comparado com isso, se nos ajudar a descodificar o Tubarão?
— O que é que estás a dizer, Tom?
— Não tenho resposta. Sou um matemático, não um filósofo moralista.
— É típico — disse Baxter.
— Não, não, em termos de lógica moral, a resposta do Tom é, na verdade, a única resposta racional — disse Atwood. Pousou o livro. Era o género de discussão que lhe agradava. — Imagina. Uma senhora agarra nos teus dois filhos, ameaça-os com uma navalha e diz: «Um deles tem de morrer, escolhe.» A quem é que vais cesurar? A ti, por teres de tomar uma decisão? Não. À senhora, de certeza.
— Mas essa analogia não responde à questão de Puck acerca do que devemos desejar — disse Jericho olhando fixamente para Puck.
— Pois eu acho que ela responde precisamente a isso, e que rejeita a premissa da questão: a pressuposição de que nos cabe fazer uma escolha moral. Quod erat demonstrandwn.
— Ninguém consegue dividir um cabelo ao meio mais vezes do que o Frank — disse Pinker, com admiração.
— «A pressuposição de que nos cabe fazer uma escolha moral» — repetiu Puck. Sorriu para Jericho. — É mesmo típico de Cambridge. Com licença. Acho que tenho de ir à casa-de-banho.
Dirigiu-se para as traseiras do anexo. Kingcome e Proudfoot voltaram ao jogo de xadrez. Atwood pegou em Herodas. Baxter pôs-se a assobiar, entretido com a máquina de enrolar cigarros. Pinker fechou os olhos. Jericho folheou o Caderno dos Códigos de Mensagens Curtas e pensou em Claire.
Passou-se a meia-noite sem notícias do Atlântico Norte e a tensão que se fora instalando durante toda a noite começou a afrouxar.
A oferta com que os cozinheiros da cantina de Bletchley Park os presentearam às duas da manhã era suficiente para fazer até Mrs. Armstrong empalidecer: batatas cozidas em molho de queijo com barracuda, seguido por um pudim que consistia em duas fatias de pão coladas com compota envolvidas num polme de farinha e ovos e depois fritas. E, por volta das quatro horas, os efeitos digestivos desta iguaria, combinados com a luz ténue do Anexo 8 e com os fumos do aquecedor de parafina, lançavam uma soporífera cortina de fumo sobre os criptanalistas navais.
Atwood foi o primeiro a sucumbir. A boca abriu-se-lhe e a placa de cima da dentadura soltou-se e fazia um som curioso enquanto ele respirava. Pinker encolheu o nariz com ar de repugnância e foi para um canto arranjar um retiro só para si, e pouco depois também Puck adormeceu, com o corpo inclinado para a frente e a bochecha esquerda a descansar nos braços em cima da mesa. Até Jericho, apesar da sua determinação em se manter de guarda aos criptogramas, deu por si a resvalar para o subconsciente. Puxou-se para trás algumas vezes, consciente de que Baxter o observava, mas, por fim, não conseguiu lutar mais e deslizou para um sonho turbulento de homens a afogarem-se, cujos gritos soavam aos seus ouvidos como o vento no campo das antenas.
DESPIR: retirar uma camada de código de um criptograma que foi sujeito ao processo de super-codificação (US, qv), ou seja, uma mensagem que foi uma vez codificada e depois re-codificada para proporcionar uma segurança dupla.
Léxico da Criptografia («Altamente Secreto», Bletchley Park, 1943)
Mais tarde, soube-se que Bletchley Park sabia quase tudo o que havia para saber acerca do submarino S-653.
Sabiam que era um Tipo VIIc com 66 metros de comprimento e 6 de largura, com capacidade para deslocar 871 toneladas e com um alcance à superfície de 10 quilómetros, e que havia sido fabricado pela Howaldts Werk, de Hamburgo, com motores Blohm und Voss. Sabiam que tinha dezoito meses, porque haviam descodificado as mensagens que descreviam os seus testes de mar no Outono de 1941. Sabiam que se encontrava sob o comando do Kapitãnleutnant Gerhard Feiler. E sabiam que na noite de 28 de Janeiro de 1943 (a última noite que Tom Jericho passara com Claire Romilly) o S-653 tinha lançado amarras no porto naval francês de Saint-Nazaire, tendo posteriormente desatracado numa noite escura e sem lua para se dirigir à Baía da Biscaia a fim de iniciar a sua sexta operação.
Depois de uma semana no mar alto, os criptanalistas do Anexo 8 descodificaram uma mensagem do quartel-general dos submarinos (na altura, ainda sediado no grande edifício de apartamentos do Bois de Boulogne em Paris) ordenando ao S-653 que prosseguisse à superfície para a quadrícula naval KD 63 «A UMA VELOCIDADE REGULAR SEM SE PREOCUPAR COM AMEAÇAS AÉREAS».
A 11 de Fevereiro juntou-se a dez outros submarinos numa nova linha de patrulha com o código Ritter, situada no centro do Atlântico.
As condições atmosféricas no Atlântico Norte foram particularmente abomináveis no Inverno de 1942-43- Foram às dezenas os dias em que os submarinos relataram ventos com força superior a 7 na escala de Beaufort. Por vezes, as ventanias atingiam os 150 quilómetros por hora, formando ondas com mais de 15 metros de altura. Neve, granizo, saraiva e chuva congelada açoitavam sem distinção submarinos e comboios. Um barco aliado virou-se e foi ao fundo em poucos minutos, simplesmente por causa do peso do gelo acumulado na sua estrutura.
A 13 de Fevereiro, Feiler quebrou o silêncio de rádio para relatar que o oficial de vigia, um tal Tenente Laudon, tinha sido atirado borda fora; uma negligência espalhafatosa dos procedimentos operacionais por parte de Feiler que não lhe valeu uma mensagem de condolências, mas sim uma breve repreensão dos controladores, transmitida para toda a frota:
A MENSAGEM DE FEILER SOBRE A PERDA DO OFICIAL DE VIGIA NÃO DEVERIA TER SIDO EMITIDA ATÉ O SILÊNCIO SER QUEBRADO PELO CONTACTO GERAL COM O INIMIGO.
Apenas no dia 23, após quase quatro semanas no mar, é que Feiler se redimiu encontrando, finalmente, um comboio. Às seis da tarde, mergulhou para evitar um torpedeiro que fazia a escolta e, depois, quando a noite caiu, veio à superfície para atacar. Tinha ao seu dispor doze torpedos, todos com 7 metros de comprimento e com motor eléctrico próprio, capazes de passarem pelo meio de um comboio efectuando meios-círculos vezes sem conta até que a energia se esgotasse ou até que afundasse um navio. O mecanismo de sensores era incipiente; não era a primeira vez que um submarino se via a ser perseguido pelas sua próprias armas. Chamavam-lhes FATs: Flashenabsuchendertorpedos, ou «torpedos de busca à superfície». Feiler disparou quatro.
De: Feiler
Na quadrícula BC6956 Às 01.16. Quatro torpedos
DISPARADOS CONTRA UM COMBOIO QUE SEGUIA EM DIRECÇÃO A SUL A UMA VELOCIDADE DE 7 NÓS. UM BARCO A VAPOR DE 6000 TONELADAS: GRANDE EXPLOSÃO E UMA NUVEM DE FUMO, DEPOIS NADA MAIS FOI OBSERVADO. UM BARCO A VAPOR DE 5000 TONELADAS EM CHAMAS. OUVIRAM-SE DUAS OUTRAS EXPLOSÕES, NADA MAIS A ACRESCENTAR.
No dia 25, Feiler transmitiu a sua posição. No dia 26, o azar voltou.
De: S-653
Na quadrícula bc 8747. O grupo 2 de alta-pressão e o tanque de flutuação de estibordo estão avariados. Tanque de lastro 5 em más condições. Faz ruídos estranhos. o motor diesel produz um fumo denso e
BRANCO.
O quartel-general passou a noite inteira a consultar os técnicos e, às dez horas da manhã seguinte, respondeu:
Para: Feiler
a condição do tanque de lastro n.o 5 é a única coisa que pode forçar o regresso. decida e informe.
À meia-noite, Feiler tinha decidido.
De: S-653
Não vou regressar.
No dia 3 de Março, num mar alteroso, o S-653 encostou a um tanque submarino e abasteceu-se com 65 metros cúbicos de combustível e provisões suficientes para se manter por mais quarenta dias no mar.
No dia 6, Feiler recebeu ordens para estacionar numa outra linha de patrulha, com o código Raubgraf (Barão Salteador).
E é tudo.
A 9 de Março, os submarinos alteraram inesperadamente o Caderno de Códigos Meteorológicos, o Tubarão fez blackout, e o S-653 e mais cento e treze submarinos alemães que operavam no Atlântico, desapareceu da vista de Bletchley Park.
Às cinco da manhã TMG de terça-feira, dia 16 de Março, umas nove horas depois de Jericho ter estacionado o Austin e se ter dirigido para o Anexo 8, o S-653 encaminhava-se para oriente à superfície, de regresso a França. No Atlântico Norte eram 3 horas da manhã.
Depois de dez dias estacionado na linha Raubgraf, sem sinais de qualquer comboio, Feiler decidira, finalmente, regressar. Perdera, além do Tenente Laudon, quatro outros homens lançados pela borda fora. Um dos seus oficiais estava doente. O motor diesel de estibordo continuava a dar problemas. O único torpedo que lhe restava estava avariado. O submarino, que não tinha aquecimento, estava frio e húmido e lá dentro estava tudo (armários, alimentos, uniformes) coberto por uma camada de bolor branco-esverdeado. Feiler deitou-se no beliche húmido, todo encolhido para se proteger do frio e assustado com o funcionamento irregular da máquina, e tentou dormir.
Na ponte, quatro homens faziam a vigia nocturna: um para cada ponto da bússola. Com oleados pretos e a escorrerem enfiados na cabeça, como monges, e amarrados à grade da balaustrada com cintos de metal, cada um deles, com uns óculos de protecção e uns binóculos Zeiss firmemente encostados aos olhos, perscrutava o seu sector de escuridão.
A nebulosidade era total. O vento era como um ataque de baionetas de aço. O casco do submarino agitava-se por baixo dos pés deles com tal violência que os fazia escorregar pelo convés molhado e irem uns contra os outros.
Olhando sempre em frente, em direcção à proa invisível, estava um jovem Obersteurmann, um tal Heinz Theen. Pesquisava tal imensidão de trevas que se pode imaginar em que estado de excitação não terão ficado, quando ele, de repente, vislumbrou uma luz. Viu-a a cintilar algures, umas centenas de metros mais à frente, piscando durante dois segundos e desaparecendo em seguida. Se
não tivesse os binóculos virados exactamente para ela, nunca a teria visto.
Por incrível que parecesse, percebeu que tinha visto apenas alguém a acender um cigarro.
Um marinheiro aliado a acender um cigarro no meio do Atlântico Norte.
Dirigiu-se à torre e chamou o capitão.
Quando Feiler escalou com dificuldade a escada escorregadia uns trinta segundos mais tarde, as nuvens tinham-se afastado um pouco com o vento forte e só se viam formas a moverem-se à sua volta. Feiler fez uma volta de 360 graus e contou as silhuetas de vinte barcos, estando o mais próximo a menos de 500 metros de distância a bombordo.
Uma voz sussurrada, tanto de pânico como de comando, gritou: «Aleeeerta!»
O S-653 entrou em posição de submersão de emergência e ficou suspenso sem efectuar qualquer movimento na água, agora mais calma, por baixo das ondas.
Trinta e nove homens agacharam-se em silêncio na penumbra, escutando os ruídos do comboio a passar à sua frente: as rotações rápidas dos modernos motores diesel, a agitação das máquinas a vapor, os ruídos curiosos das turbinas dos navios de guerra que faziam a escolta.
Feiler deixou-os afastarem-se. Esperou duas horas e, depois, voltou à superfície.
O comboio encontrava-se já tão distante que mal o conseguiam ver na luz ténue da madrugada. Avistavam-se apenas os mastros dos navios, algumas manchas de fumo no horizonte e, esporadicamente, quando uma onda mais alta erguia o submarino, o ferro das pontes e dos tubos exaustores.
As ordens que Feiler tinha eram para não atacar (o que aliás era impossível, uma vez que não tinha torpedos), mas para não perder a sua presa de vista enquanto chamavam todos os outros submarinos num raio de 150 quilómetros.
— Comboio virando 070 graus — disse Feiler. — Quadrícula naval BD 1491.
O primeiro oficial fez uma anotação a lápis com uma letra ilegível e desceu da torre para pegar no Caderno de Códigos de Mensagens Curtas. Enfiado no seu cubículo, perto da cabina do capitão, o operador de rádio carregava nos botões. O Enigma surgiu com um zunido.
Às sete da manhã, Logie mandou Pinker, Proudfoot e Kingcome regressarem a casa, para descansarem como devia ser. -— Estão entregues à bicharada — vaticinou, enquanto os via afastarem-se, e estavam mesmo. Vinte e cinco minutos mais tarde, estava de regresso à Sala Grande com aquela expressão nauseante de excitação e culpa que caracterizava todo aquele dia.
— Parece que já começou.
St. Erith, Scarborough e Flowerdown tinham todas relatado um sinal E-barra seguido de oito letras em código Morse e, passado um minuto, uma das operadoras do Wren da Sala dos Registos trazia as primeiras cópias. Jericho colocou as suas cuidadosamente no centro do cavalete.
RGHC DMIG. O seu coração começou a bater mais depressa.
— Rede Hubertus — disse Logie. — 4601 quilociclos.
Cave estava a ouvir alguém ao telefone. Colocou a mão sobre o bocal. — Os radares já têm uma coordenada — disse, estalando os dedos. — Um lápis. Depressa. — Baxter atirou-lhe um. — 49.9 graus norte — repetiu. — 38.8 graus oeste. Entendido. Bom trabalho. — Desligou.
Cave passara toda a noite a assinalar as rotas dos comboios em dois enormes mapas do Atlântico Norte; um deles fornecido pelo Almirantado, o outro, uma grelha naval alemã capturada, na qual o oceano estava dividido em milhares de minúsculos quadrados. Os criptanalistas reuniram-se à volta dele. O dedo de Cave incidiu sobre um local quase exactamente equidistante da Terra Nova e das ilhas Britânicas. — Lá está ele. Está a passar pelo HX-229. — Fez uma cruz no mapa e escreveu 07.25 ao lado.
— Que quadrícula é essa? — perguntou Jericho.
— BD1491.
— E a rota do comboio?
— 070.
Jericho regressou ao seu posto e, em menos de dois minutos, utilizando o Caderno de Códigos de Mensagens Curtas e o livro de instruções da Kriegsmarine para codificação de quadrículas navais («Alfred Krause, Blucherplatz 15»: o Anexo 8 havia-o decifrado antes do blackout às comunicações) tinha uma grelha de cinco letras para fazer deslizar por baixo do relatório de contacto.
RGHCDMIG DDFGRX??
As primeiras quatro letras anunciavam que tinham localizado o comboio a virar 070 graus, as duas seguintes informavam sobre a quadrícula e as duas últimas representavam o código do submarino, que ele não conhecia. Fez um círculo à volta de R-D e de D-R. Uma laçada de quatro letras na primeira mensagem.
— Tenho D-R/R-D — disse Puck alguns segundos depois.
— Também eu.
— E eu — disse Baxter.
Jericho acenou afirmativamente e desenhou as suas iniciais no bloco.— Um bom presságio.
Depois, o ritmo dos acontecimentos começou a acelerar.
As 8.25, foram interceptadas duas mensagens longas originárias de Magdeburgo, que Cave suspeitou de imediato ser o quartel-general a ordenar a todos os submarinos do Atlântico Norte que se dirigissem para a zona de combate. Às 9.20, pousou o telefone e anunciou que o Almirantado acabara de avisar o comandante do comboio de que, provavelmente, estavam a ser seguidos. Sete minutos mais tarde, o telefone voltou a tocar. Era da estação de intercepções de Flowerdown. Um segundo sinal E-barra vindo do mesmo sítio do primeiro. As Wrens apressaram-se a levá-los: KLYS QNLP.
— O mesmo submarino — disse Cave. — Está a seguir os procedimentos operacionais padrão. A enviar relatórios de duas em duas horas, pouco mais ou menos.
— Qual é a quadrícula?
— A mesma.
— E a rota do comboio?
— Também é a mesma. Para já.
Jericho regressou à sua secretária e colocou a grelha por baixo do novo criptograma.
KLYSQNLP DDFGRX??
E, novamente, não houve discordância de letras. A regra de ouro do Enigma, a sua única e fatal fraqueza: nada era sempre igual; um A nunca é um A, um B nunca é um B... Estava a resultar. Os pés de Jericho deram um pequeno passo de dança por baixo da mesa. Olhou para cima e viu que Baxter estava a observá-lo e, horror dos horrores, estava também a sorrir.
— Satisfeito?
— Claro que não.
Mas foi tal a sua vergonha que, uma hora mais tarde, quando Logie entrou e disse que um segundo submarino acabara de enviar uma mensagem de contacto, se sentiu pessoalmente responsável.
SOUY YTRQ
Às 11.40, um terceiro submarino começou a seguir o comboio, às 12.20 um quarto e, de repente, Jericho tinha sete mensagens em cima da secretária. Reparou que se aproximavam pessoas para lhe espreitarem por cima do ombro — Logie com o seu cachimbo fedorento, e o odor a obesidade e a respiração pesada de Skynner. Mas nem levantou os olhos. Não disse uma palavra. Para ele, o mundo exterior tinha-se dissipado. Mesmo Claire não passava agora de um fantasma. Existiam apenas as laçadas de letras, formando-se e estendendo-se à sua frente vindas do pardacento Atlântico, multiplicando-se nas suas folhas de papel, transformando-se em ténues correntes de possibilidades no seu cérebro.
Não pararam para tomar o pequeno-almoço nem para almoçar. Minuto a minuto, pela tarde fora, os criptanalistas seguiram, em terceira mão, o progresso da perseguição a milhares de quilómetros de distância. O comandante do comboio enviava mensagens para o Almirantado, o Almirantado tinha uma linha aberta para Cave e Cave gritava, um a um, cada novo desenvolvimento que pudesse afectar a caça às grelhas. Chegaram duas mensagens às 13.40; uma delas era um curto relatório de contacto, a outra era mais longa, originária quase de certeza do submarino que iniciara a perseguição. Pela primeira vez, tinham sido transmitidas de sítios suficientemente próximos para poderem ser localizados pelos instrumentos dos navios que faziam a escolta. Cave escutou com ar grave durante um minuto e, depois, anunciou que o HMS Mansfield, um torpedeiro, ia separar-se da frota principal dos navios mercantes para atacar os submarinos.
— O comboio acabou de fazer uma mudança de rota de emergência para sudeste. Vai tentar afastar-se dos submarinos enquanto o Mansfield tenta afundá-los.
Jericho olhou para cima. — Que rota vai tomar?
—- Que rota é que vai tomar — repetiu Cave para o telefone. — Eu perguntei — gritou — que merda de rota é que vai tomar? — Estremeceu a olhar para Jericho. Tinha o auscultador apertado com força contra a orelha assustada. — Está bem. Sim. Obrigado. O comboio vai virar 118 graus.
— Vão conseguir escapar? — perguntou Baxter.
Cave dobrou-se por cima do mapa com uma régua e um transferidor. — Talvez. Era o que eu faria se estivesse no lugar deles. Passado um quarto de hora nada tinha acontecido.
— Talvez tenham conseguido — disse Puck. — Depois o que é que fazemos?
— Ainda precisas de muito mais material? — perguntou Cave. Jericho contou as mensagens. —Temos nove. Precisamos de mais
vinte. Vinte e cinco seria melhor.
— Meu Deus! — Cave olhou-os com desagrado. — É o mesmo que estar sentado com uma multidão de cadáveres.
Algures por detrás deles a campainha do telefone não chegou a tocar uma vez completa, pois alguém levantou imediatamente o auscultador. Um pouco depois, Logie apareceu, ainda a escrever.
— Era St. Erith a relatar um sinal E-barra a 49.4 graus norte, 38.1 graus oeste.
— Nova localização — disse Cave, estudando os mapas. Fez uma cruz, depois atirou com a caneta e encostou-se para trás na cadeira a esfregar a cara. — Tudo o que conseguiram fazer foi fugir de um submarino para irem ao encontro de outro. Que é qual? O décimo quinto? Santo Deus, o mar deve estar cheio deles.
— Não vão conseguir escapar, pois não? — perguntou Puck.
— Não têm qualquer hipótese. Nenhuma mesmo, se os submarinos continuarem a aparecer de todos os lados.
Uma Wren passou por entre os analistas, entregando o último criptograma: BKEL UUXS.
Dez mensagens. Cinco submarinos em contacto.
— Qual é a quadrícula? — perguntou Jericho.
Hester Wallace não era jogadora de póquer, o que era um erro, pois fora abençoada com uma fisionomia impassível que lhe renderia uma fortuna. Quem quer que a observasse nessa tarde a guardar a bicicleta no abrigo ao lado da cantina ou que a visse a mostrar o passe à sentinela ou a encostar-se à parede do corredor do Anexo 6 para dar passagem a um colega ou que estivesse sentado em frente dela no Controlo de Intercepções, não suspeitaria do tumulto que lhe ia na mente.
A sua tez estava, como sempre, pálida e a testa ligeiramente vincada, numa expressão carrancuda que desencorajava qualquer conversa. Tratava o cabelo preto e muito comprido como uma dor de cabeça, arrepanhado ao alto e preso por um gancho às três pancadas. Vestia o uniforme habitual das professoras de West Country: sapatos rasos, meias cinzentas de lã, saia cinzenta, camisa branca e um casaco velho, mas de bom corte, que em breve iria tirar e pendurar nas costas da cadeira, pois a tarde estava quente. Os seus dedos percorreram a tabela num movimento curto de staccato. Não dormira quase nada.
Nome da estação de intercepção, hora da intercepção, frequência, sinal de chamada, grupos de letras...
Onde é que se guardavam os registos dos parâmetros? Era a primeira coisa a saber. Não no Controlo, obviamente. Não na Sala dos Ficheiros. Não no Arquivo. E nem na porta ao lado, na Sala dos Registos: já fizera aí uma rápida inspecção. A Sala de Descodificação era uma possibilidade, mas as raparigas das máquinas Type-X estavam sempre a queixar-se de que não tinham espaço, e sessenta chaves do Enigma (os parâmetros eram alterados diariamente; no caso da Luftwaffe, por vezes duas vezes por dia), bem, eram no mínimo quinhentas informações por semana, 25 000 por ano, e este era o quarto ano da guerra. Estes cálculos sugeriam um catálogo de certa dimensão; para ser mais exacto, uma biblioteca.
A única conclusão a tirar era que deveriam guardá-los onde trabalhavam os criptanalistas, na Sala das Máquinas, ou então lá perto.
Acabou de fazer as tabelas de Chicksands, do meio-dia às três, e dirigiu-se para a porta.
A sua primeira tentativa na Sala das Máquinas foi estragada pelos nervos: passou directamente de uma ponta à outra do anexo sem olhar sequer para os lados e parou à porta da Sala das Descodificações, amaldiçoando os seus receios, fingindo estudar o quadro dos anúncios. Com a mão trémula, tomou nota de um recital da Sociedade Musical de Bletchley Park, que iria executar Die Fledermaus, a que não tinha qualquer intenção de assistir.
A segunda tentativa correu melhor.
Não existiam máquinas algumas na Sala das Máquinas; a origem do nome perdia-se nas gloriosas névoas de 1940. Apenas secretárias, criptanalistas, cestos de arame cheios de mensagens e, na parede da direita, prateleiras e prateleiras de ficheiros. Parou e olhou em volta distraídamente, como se estivesse à procura de alguém. O problema era que não conhecia ninguém. Mas então o seu olhar incidiu sobre uma cabeça calva com alguns cabelos ruivos e compridos penteados de forma patética por cima de uma pele cheia de sardas, e chegou à conclusão de que afinal conhecia alguém.
Conhecia o Cordingley.
Aquele velhinho chato do Donald Cordingley, vencedor — num recinto cheio de concorrentes — do concurso O Homem Mais Maçador de Bletchley. Dispensado do serviço militar devido a um peito carregado de fumo. Profissão: perito de uma companhia de seguros. Dez anos ao serviço da Scottish Widows Assurance Society, na City, em Londres, até que um terceiro lugar num concurso de palavras cruzadas do Daily Telegraph lhe conseguira um lugar na Sala das Máquinas do Anexo 6.
O lugar dela.
Observou-o por mais uns segundos; depois afastou-se.
Quando regressou ao Controlo, Miles Mermagen estava junto à secretária dela.
— Que tal foi Beaumanor?
— Absorvente.
Tinha deixado o casaco em cima da cadeira e ele passou-lhe a mão pela gola, apalpando o tecido entre o polegar e o indicador, como se a verificar a qualidade.
— Como é que foste para lá?
— Um amigo deu-me boleia.
— Um amigo homem, suponho. — O sorriso de Mermagen era rasgado e desagradável.
— Como é que sabes?
— Tenho os meus espiões — respondeu.
O oceano fervilhava de mensagens. Aterravam na secretária de Jericho a uma velocidade de uma de vinte em vinte minutos.
As 16.00 um sexto submarino aproximou-se do comboio e logo Cave anunciou que o HX-229 estava a mudar de rota novamente, para 028 graus, numa última e desesperada tentativa de fugir aos seus perseguidores.
Às 18.00 Jericho tinha um monte de dezanove mensagens de contacto, das quais conseguira obter três grupos de quatro letras e vários esboços inacabados de menus para as descodificadoras que pareciam os planos para um complexo jogo de patela. Tinha o pescoço e os ombros tão tensos que mal se conseguia endireitar.
Agora, a sala estava apinhada de gente. Pinker, Kingcome e Proudfoot tinham regressado ao turno. O outro tenente da marinha inglês, Villiers, estava ao lado de Cave que lhe explicava qualquer coisa num dos mapas. Uma Wren com uma travessa na mão ofereceu a Jericho uma sanduíche de carne enlatada e uma caneca de esmalte com chá, o que Jericho recebeu agradecido.
Logie apareceu-lhe por trás e despenteou-lhe o cabelo.
— Como é que te sentes, meu velho?
— Para falar com toda a franqueza, de rastos.
— Queres-te ir embora?
— Que engraçadinho.
— Anda ao meu escritório que eu dou-te uma coisa. Traz o chá. A «coisa» era um enorme comprimido amarelo de Benzedrina.
Logie tinha meia-dúzia guardados numa caixa hexagonal.
Jericho hesitou. — Não sei se deva. Da última vez que tomei disso fiquei esquisito.
— Mas ajudam-te a passar a noite, não ajudam? Vá lá, meu caro, olha que os comandos não passam sem isto. — Rasgou a caixa debaixo do nariz de Jericho. — Vais «aterrar» ao pequeno-almoço? E depois? Nessa altura, já vencemos estes estafermos. Ou não. Seja como for, não interessa, pois não? — Pegou num dos comprimidos e apertou-o contra a palma da mão de Jericho. — Vá lá. Eu não digo nada à Enfermeira. — Fechou os dedos de Jericho à volta do comprimido e disse calmamente: — Porque não te posso deixar ir, sabes, meu velho. Hoje não. A ti não. A alguns dos outros, talvez, mas a ti não.
— Oh, meu Deus. Bem, uma vez que pedes com tanta delicadeza. Jericho engoliu o comprimido com uma golada de chá. Deixou-lhe um sabor imundo na boca e esvaziou a caneca numa tentativa de o fazer desaparecer. Logie olhava-o com um ar terno.
— Lindo menino. — Colocou a caixa de novo na gaveta da secretária e fechou-a à chave. — Por falar nisso, tive de te defender outra vez. Tive de lhe dizer que eras importante de mais para seres incomodado.
— Dizer a quem? Ao Skynner?
— Não. Não foi ao Skynner. Foi ao Wigram.
— O que é que ele quer?
— Quer-te a ti, meu menino. Eu acho que ele te quer a ti. Esfolado, empalhado e espetado num poste em qualquer lado. A sério, não compreendo, para um tipo tão sossegado consegues fazer muitos inimigos. Disse-lhe para regressar à meia-noite. Não te importas?
Antes que Jericho pudesse responder, o telefone tocou e Logie agarrou no auscultador.
— Sim? É o próprio. — Resmungou e esticou-se por cima da secretária para pegar numa caneta. — Hora de origem 19.02, 52.1 graus norte, 37.2 graus oeste. Obrigado, Bill. Não percas a esperança.
Pousou o auscultador.
— E vão sete...
Voltou a escurecer e acenderam as luzes da Sala Grande. As sentinelas estavam a colocar as persianas do blackout lá fora, como guardas prisionais a fecharem os seus presos.
Jericho não saía do Anexo há vinte e quatro horas, e nem olhara uma só vez lá para fora pela janela. Quando escorregou novamente para a cadeira e apalpou o sobretudo para se certificar de que os criptogramas ainda lá estavam, pensou vagamente no dia que tinham tido e no que Hester estaria a fazer.
Não penses nisso agora.
Já sentia a Benzedrina a fazer efeito. Os músculos do coração pareciam-lhe suaves, o corpo parecia-lhe recarregado. Quando olhou para as suas notas, o que lhe parecera inerte e impenetrável há meia-hora era agora fluido e cheio de possibilidades.
O novo criptograma já estava na sua secretária: YALB DKYF.
— Quadrícula naval BD 2742 — disse Cave. Rota 055 graus. Velocidade do comboio nove nós e meio.
— Uma mensagem de Mr. Skynner — disse Logie. — Uma garrafa de uísque para o primeiro a conseguir um menu para as descodificadoras.
Vinte e três mensagens recebidas. Sete submarinos em contacto. Duas horas até ao cair da noite no Atlântico Norte.
20.00: nove submarinos em contacto. 20.46: dez.
As raparigas da Sala de Controlo sentaram-se numa mesa perto da portinhola por onde saía a comida, para tomarem a refeição da noite. Célia Davenport mostrou uma fotografia do noivo, que estava a lutar no deserto, e Anthea Leigh-Delamere pairou incessantemente acerca de um encontro da Bicester Hunt. Hester passou as fotografias sem olhar para elas. Tinha os olhos fixos em Donald Cordingley, que se encontrava na fila para receber a sua ração de crossopterígio, ou outro igualmente absurdo exemplo de criatura marinha que agora se viam obrigados a comer, com a graça de Deus.
Ela era mais esperta do que ele, e ele sabia-o.
Ela intimidava-o.
Olá, Donald, pensou. Olá, Donald... Oh, nada de mais, apenas esta cansativa nova secção, é como varrer a rua depois de um cortejo real... Sabe, Donald, existe uma rede radiofónica engraçada, Konotop-Prihiki-Poltava, no sul da Ucrânia. Nada de importante, mas nunca a decifrámos e o Archie — conhece o Archie — o Archie tem uma teoria de que pode ser uma variante do Abutre... Mensagens de Fevereiro e dos primeiros dias de Março... Exactamente...
Observou-o enquanto se sentava sozinho a esgravatar a sua refeição solitária. De facto, Hester observava-o como se ela fosse um abutre. E quando, passados quinze minutos, ele se levantou para ir deitar os restos do prato no caixote, ela também se levantou e seguiu-o.
Apercebeu-se vagamente de que as outras raparigas a olhavam espantadas. Ignorou-as.
Seguiu-o até ao Anexo 6, deu-lhe cinco minutos para se instalar e depois foi ter com ele.
A Sala das Máquinas estava cheia de sombras e causava sonolência, como a penumbra de uma biblioteca. Deu-lhe uma pancadinha no ombro.
— Olá, Donald.
Cordingley voltou-se e olhou-a surpreendido. — Oh, olá. — O seu esforço de memória foi heróico. — Olá, Hester.
— Já é quase noite no Atlântico — disse Cave, olhando para o relógio. — Já não falta muito. Quantos conseguiste?
— Vinte e nove — respondeu Baxter.
— Creio que disse que seriam suficientes, Mr. Jericho?
— Meteorológico — disse Jericho sem levantar os olhos. — Precisamos de um relatório meteorológico do comboio. Pressão barométrica, densidade das nuvens, tipo de nuvens, velocidade do vento, temperatura. Antes que fique escuro de mais.
—Têm dez submarinos atrás deles e queres que te digam o tempo?
— Isso mesmo. E o mais rapidamente possível. O relatório meteorológico chegou às 21.31.
Não houve mais mensagens de contacto depois das 21.40.
Esta era portanto a situação do comboio HX-229 às 22.00: Trinta e sete navios mercantes, com tamanhos que variavam entre as 12 000 toneladas do navio-tanque inglês Southern Princess e as 3500 toneladas do cargueiro americano Margaret Lykes, progredindo lentamente em mar alteroso, mudando para uma rota de 055 graus, em direcção a Inglaterra, iluminado como uma regata por um luar que proporcionava uma visibilidade de até quinze quilómetros; era a primeira vez em muitas semanas que surgia uma noite destas no Atlântico. Navios de escolta: cinco, incluindo duas lentas corvetas e dois torpedeiros decrépitos oferecidos à Inglaterra pelos Estados Unidos em 1940 em troca de bases, um dos quais, o HMS Mansfield, perdera o contacto com o comboio depois de atacar os submarinos, pois o comandante do comboio (no seii primeiro comando operacional) se esquecera de o avisar desta segunda mudança de rota. Não havia qualquer barco de salvamento disponível. Nenhum apoio aéreo. Nenhum reforço num raio de mil e quinhentos quilómetros.
— Sim, senhor — disse Gave, acendendo um cigarro e olhando para os seus mapas — temos aqui aquilo a que se pode chamar uma completa confusão.
O primeiro torpedo atingiu um alvo às 22.01.
Às 22.32, ouviu-se Tom Jericho a dizer em voz baixa: — Boa!
Eram horas de recolher na estalagem Eight Bells, em Buckingham Road, e Miss Jobey e Mr. Bonnyman tinham esgotado o tema principal da conversa daquela noite: o que Mr. Bonnyman apelidou dramaticamente de «ataque policial» ao quarto de Mr, Jericho.
Tinham ouvido Mrs. Amrstrong a contar os pormenores ao jantar, ainda ruborescida de raiva ao recordar esta violação do seu território. Um polícia de uniforme estivera de guarda à entrada toda a tarde («à vista de toda a rua, acreditam?»), enquanto dois homens à paisana, com uma caixa de ferramentas e um mandato de busca, passaram perto de três horas lá em cima a vasculhar o quarto das traseiras, indo-se embora à hora do chá e tendo levado uma pilha de livros. Tinham desmontado a cama e o guarda-fatos, tinham descolado a alcatifa e levantado o soalho, e traziam um monte de cinza da lareira. — Aquele jovem vai para a rua — declarou Mrs. Armstrong, cruzando os braços balofos — e toda a renda fica confiscada.
— «Toda a renda confiscada» — repetiu Bonnyman, falando para a sua cerveja pela sexta ou sétima vez. — Adoro isto.
— É um homem tão sossegado — exclamou Miss Jobey.
Uma campainha manual tocou por detrás do balcão e as luzes tremeluziram.
— São horas, meus senhores! São horas, por favor! Bonnyman terminou a cerveja aguada, Miss Jobey o seu Porto com limão e Bonnyman acompanhou-a, trôpego, passando pelo alvo dos dardos e pelas pinturas de caçadas em direcção à porta.
O dia que Jericho perdera tinha dado à cidade a primeira amostra da Primavera. Lá fora, na rua, o ar nocturno era ainda ameno. A escuridão tocava a rua lúgubre de forma romântica. Enquanto os clientes recolhiam a cambalear para o blackout, Bonnyman abraçou Miss Jobey na brincadeira. Recuaram até ao vão de uma porta, a boca dela abriu-se na de Bonnyman, o seu corpo apertou-se contra o dele e, em compensação, Bonnyman espremeu-lhe a cintura. O que lhe faltava de beleza (e quem é que o notava na escuridão?) era mais do que compensado pelo fervor. A língua forte e ágil, doce devido ao vinho do Porto, contorcia-se contra os dentes dele.
Bonnyman, engenheiro dos Correios de profissão, tinha sido destacado, conforme Jericho havia adivinhado, para dar assistência às descodificadoras. Miss Jobey trabalhava na sala das traseiras do piso superior da mansão, arquivando criptogramas Abwehr manuais. De acordo com os regulamentos, nenhum deles dissera ao outro o que fazia, uma discrição que Bonnyman ampliara também para encobrir a existência de uma esposa e de dois filhos em Dorking.
As mãos de Bonnyman deslizaram-lhe pelas coxas estreitas e começaram a levantar-lhe a saia.
— Aqui não — disse Miss Jobey para dentro da boca dele, afastando-lhe os dedos.
Bem (como mais tarde Bonnyman confidenciaria com um piscar de olho para o polícia carrancudo que recolheu a sua declaração), as coisas que um adulto tem de fazer durante a guerra, e tudo por uma simples... sabem-o-quê.
Primeiro, uma volta de bicicleta, que os levou por um caminho por baixo da ponte do caminho-de-ferro. Depois, sob o brilho fraco de uma lanterna, passaram por um portão fechado com um cadeado e pelo meio de lama e amoras em direcção à carcaça de um edifício em ruínas. Perto havia uma grande extensão de água. Não era possível vê-la, mas era possível ouvi-la ondear com a brisa e o grito ocasional de uma queda de água, e era possível sentir uma escuridão mais densa, como uma grande jazida negra.
Queixas por parte de Miss Jobey, quando enterrou na lama as preciosas meias e encharcou os tornozelos: imprecações amargas em voz alta contra Mr. Bonnyman e todo aquele trabalho que não augurava nada de bom para o objectivo que tinha em mente. Começou a lamentar-se: — Vá lá, Bonny, estou com medo, vamos embora.
Mas Bonnyman não tencionava regressar. Mesmo numa noite normal, Mrs. Armstrong controlava todas as espreitadelas e todos os gritinhos no éter da sua Pensão Comercial, qual estação de intercepções; hoje, estaria ainda mais alerta do que o habitual. Além disso, ele sempre achara aquele lugar excitante. A luz cintilava nos tijolos despidos e nas provas de relações anteriores: AE + GS, Tony = Kath. O local possuía uma carga erótica estranha. Era óbvio que muita coisa ali acontecera, muitos sussurros e ruídos inequívocos... Faziam parte de um grande fluxo de desejos ardentes que já existia muito antes deles e permaneceria muito para lá deles; ilícitos, irreprimíveis, eternos. Era assim a vida. Eram estes os pensamentos de Bonnyman, embora não os exprimisse naquele momento, nem mais tarde à polícia.
— E o que aconteceu depois? Exactamente. Não o admitiria, muito obrigado, exactamente ou não exactamente.
Mas o que aconteceu depois foi que Bonnyman enfiou a lanterna numa fenda dos tijolos onde algo havia sido arrancado da parede e abraçou Miss Jobey. De início, deparou com uma pequena resistência, um entrelaçamento, um voltear e um «pára», «aqui não» que, depressa se tornaram menos convincentes, até que, de repente, a língua dela estava outra vez a fazer das suas e voltavam ao que estavam a fazer à porta da Eight Bells. Uma vez mais as suas mãos começaram a levantar-lhe a saia e uma vez mais ela o afastou, mas desta vez por outra razão. Com um olhar de reprovação, baixou-se e puxou as meias. Um passo, dois passos, e desapareciam-lhe no bolso. Bonnyman observou-a, extasiado.
— O que aconteceu depois, inspector, exactamente, foi que eu e Miss Jobey reparámos numa serapilheira que estava a um canto.
Ela, com a saia acima dos joelhos, ele com as calças pelos tornozelos, arrastando-se para a frente como um homem de grilhetas e deixando-se cair pesadamente sobre os joelhos, um monte de poeira a levantar-se dos sacos e a espraiar-se à luz da lanterna e, depois, mais voltas e reclamações da parte dela afirmando que algo estava a enterrar-se-lhe nas costas.
Levantaram-se e afastaram os sacos para fazerem um leito mais confortável.
— E foi então que encontraram.
— Foi então que encontrámos.
De repente, o inspector da polícia bateu violentamente com o punho na mesa de madeira e chamou o sargento.
— Já sabem onde está Mr. Wigram?
— Continuamos à procura, senhor inspector.
— Então encontrem-no, homem. Encontrem-no.
A descodificadora era pesada (Jericho apostava que deveria pesar mais de meia tonelada) e embora estivesse montada sobre rodas foi preciso utilizar toda a sua força e a do técnico para a afastar da parede. Jericho puxou enquanto o técnico foi por trás e encostou o ombro à estrutura para a empurrar. Por fim, deslizou com um guincho e as Wrens entraram para a desmontarem.
A «bomba» descodificadora era monstruosa, como se saída de uma fantasia do futuro de H.G. Wells: um armário de metal preto, dois metros e quarenta de largura por um e oitenta de altura, com inúmeros tambores de dez centímetros de diâmetro na parte da frente. A parte traseira era basculante e, aberta, expunha uma massa confusa de cabos e a cor sombria de tambores de metal. No local onde estivera, no chão de cimento, havia uma grande poça de óleo.
Jericho limpou as mãos num pedaço de pano e afastou-se para um canto para observar as operações. Algures no anexo, outras descodificadoras agitavam-se com outras chaves do Enigma e o barulho e o calor eram como ele imaginava que seriam na sala das máquinas de um barco. Uma Wren deu a volta ao armário e começou a desligar e a ligar os cabos. A outra movimentou-se pela frente, puxando para fora um tambor de cada vez e inspeccionando-os. Sempre que encontrava algum defeito nos fios eléctricos passava o tambor para o técnico que colocava de novo os minúsculos fios no devido lugar com um par de pinças. As escovas de contacto estavam sempre a esfiapar-se e a correia que ligava o mecanismo ao enorme motor eléctrico tinha tendência a esticar-se e a escorregar sempre que havia uma carga pesada. E os técnicos não tinham conseguido pôr o fio de terra a funcionar devidamente, de forma que os armários tinham tendência a dar enormes choques eléctricos.
Jericho achava que era a pior tarefa de todas. Uma porcaria de tarefa. Oito horas por dia, seis dias por semana, presos nesta ensurdecedora cela sem janelas. Voltou-se para consultar o relógio. Não queria que reparassem na sua impaciência. Eram quase onze e meia.
O seu menu estava, neste momento, a ser enviado para todas as descodificadoras da área de Bletchley. Doze quilómetros mais a norte, num anexo de uma clareira da área florestal de Gayhurst Manor, uma ninhada de Wrens exaustas recebia ordens para parar as três descodificadoras que funcionavam para Nuthatch (Administração do exército Berlim-Viena-Belgrado), desmontá-las e prepará-las para o Tubarão. Num estábulo de Adstock Manor, quinze quilómetros para oeste, as raparigas espreguiçavam-se ao lado das máquinas silenciosas, a beber Ovaltine e a ouvir Tommy Dorsey no Programa Ligeiro da BBC, quando o supervisor entrou tempestuosamente com um monte de menus e lhes disse que se mexessem, que andassem depressa. E em Wavendon Manor, cinco quilómetros para nordeste, uma história semelhante: quatro descodificadoras numa casamata húmida e sem janelas foram abruptamente retiradas de Osprey (a chave Enigma de segunda prioridade da Organização Todt) e os operadores receberam ordens para se prepararem para um trabalho urgente.
Essas, juntamente com as duas máquinas do Anexo 11, formavam as doze descodificadoras prometidas.
Terminada a verificação mecânica, a Wren regressou à primeira fila de tambores e começou a ajustá-los de acordo com a combinação que constava do menu. Ditou as letras à outra rapariga, que as verificou.
— Fernando, Burro, Quadrado...
— Sim.
— Artur, Xarope, Eduardo...
— Sim.
Os tambores escorregaram para os respectivos eixos e foram presos com um forte ruído metálico. Estavam todos preparados para imitar a acção de um só rotor do Enigma: 108 ao todo, o equivalente a trinta e seis máquinas Enigma a funcionar em paralelo. Quando todos os tambores estavam prontos, a máquina foi arrastada de novo para o seu lugar e o motor posto em funcionamento.
Os tambores começaram a girar, todos à excepção de um, na fila superior, que se avariou. O técnico deu-lhe uma pancada forte com a chave-de-fendas e, também este, começou a girar. A máquina iria agora funcionar continuamente neste menu, certamente durante um dia; segundo os cálculos de Jericho, possivelmente durante dois ou três dias, parando de vez em quando, sempre que os tambores estivessem tão alinhados que completassem um circuito. Depois, as leituras dos tambores seriam verificadas e testadas, a máquina posta novamente em funcionamento, e assim sucessivamente até ser encontrada a combinação de parâmetros exacta, altura em que os criptanalistas seriam capazes de ler o trânsito do Tubarão para aquele dia. Pelo menos, em teoria.
O técnico começou a arrastar a outra descodificadora e Jericho apressou-se a ajudá-lo, mas foi impedido por um puxão no braço.
— Anda daí, meu velho — gritou Logie por cima do barulho contínuo. — Não há mais nada que possamos fazer aqui. — E voltou a puxar-lhe a manga.
Relutante, Jericho voltou-se e seguiu-o para fora do anexo.
Não se sentia nada satisfeito. Talvez amanhã ao fim da tarde ou talvez na quinta-feira as descodificadoras lhes dessem os parâmetros do Enigma para o dia que terminava agora. E então começaria o verdadeiro trabalho; a árdua tarefa de tentar reconstruir o novo Caderno de Códigos Meteorológicos, pegando nos dados meteorológicos do comboio e comparando-os com as mensagens meteorológicas já recebidas dos submarinos, efectuando algumas conjecturas, testando-as, construindo um novo conjunto de grelhas... Era interminável esta batalha contra o Enigma. Era um torneio de xadrez com milhares de partidas contra um adversário com um poder defensivo prodigioso, e todos os dias as peças eram colocadas nas suas posições originais e o jogo começava de novo.
Logie também parecia um pouco cabisbaixo enquanto caminhavam pela passagem de asfalto em direcção ao Anexo 8.
— Mandei os outros para casa para descansarem um pouco — disse Logie — que é o que eu vou fazer. E é o que tu também deves fazer, se não estiveres excitado demais para dormir.
— Vou ficar por aqui a arrumar as coisas, se não houver problema. Vou guardar o caderno de códigos outra vez no cofre.
— Faz isso. Obrigado.
— Depois, acho que o melhor é ir falar com o Wigram.
— Ah, sim. O Wigram.
Regressaram ao anexo. No escritório, Logie atirou a Jericho as chaves do Mausoléu. — É o teu prémio — disse ele, segurando meia-garrafa de uísque. — Não nos podemos esquecer disso.
Jericho sorriu. — Pensei que tinhas dito que o Skynner oferecia uma garrafa inteira.
— Ah, bem, sim, mas sabes como é o Skynner.
— Dá-a aos outros.
— Oh, não sejas tão santinho. — Logie tirou duas canecas de esmalte da mesma gaveta. Soprou-as para retirar alguma poeira e limpou o interiorcom o indicador. — A que havemos de beber? Não te importas que te faça companhia, pois não?
— Ao fim do Tubarão? Ao futuro?
Logie deitou uma boa quantidade de uísque em cada caneca. — Que tal — disse ele, de forma perspicaz, enquanto oferecia uma caneca a Jericho — que tal ao teu futuro?
Fizeram um brinde.
— Ao meu futuro.
Ficaram em silêncio, com os sobretudos vestidos, a beber.
— Estou de rastos — disse Logie, por fim, apoiando-se na secretária para se levantar. — Nem seria capaz de dizer em que ano estamos, meu caro, quanto mais o dia. —Tinha três cachimbos numa prateleira e soprou cada um deles fazendo um ruído desagradável, semelhante a algo a rachar e, depois meteu-os no bolso. — Não te esqueças do uísque.
— Não quero o raio do uísque.
— Fica com ele. Por favor. Por mim.
No corredor, apertou a mão de Jericho, e Jericho receou que Logie fosse dizer algo embaraçoso. Mas, fosse o que fosse que ia dizer, pensou melhor, fez uma saudação sentida e encaminhou-se bamboleante para a saída, batendo com a porta.
A Sala Grande, antes de chegar o turno da noite, estava quase vazia. Efectuava-se um trabalho no Golfinho e no Toninha do outro lado da sala. Estavam duas jovens de joelhos com sobretudos vestidos à volta da secretária de Jericho a recolherem todos os pedaços de papel para dentro de dois sacos, prontos para a incineração. Apenas Cave continuava lá, dobrado por cima dos mapas. Levantou os olhos, quando Jericho entrou.
— Então? Como é que as coisas te estão a correr?
— Ainda é cedo para dizer — respondeu Jericho. Encontrou o caderno de códigos e meteu-o no bolso. — E a ti?
— Três barcos afundados, para já. Um cargueiro norueguês e um holandês. Foram direitinhos para o fundo. O terceiro está em chamas e anda em círculos. Perdida metade da tripulação, a outra metade tenta salvá-lo.
— Que barco é?
— Um americano. O James Oglethorpe. Sete mil toneladas, transporta aço e algodão.
— Americano — repetiu Jericho. Lembrou-se de Kramer. «O meu irmão morreu, um dos primeiros...»
— É uma chacina — disse Cave — uma maldita chacina. E queres que te conte o pior? Não vai acabar esta noite. Vai continuar assim durante dias. Vão ser perseguidos e fustigados e torpedeados por todo o maldito Atlântico Norte. Consegues imaginar pelo que não devem estar a passar? A verem o barco do lado a ir pelos ares? Sem terem autorização para parar e procurar sobreviventes? À espera que chegue a vez deles? — Tocou na cicatriz, depois apercebeu-se do que estava a fazer e deixou cair a mão. Havia uma resignação terrível naquele gesto. — E agora, ao que parece, estão a receber mensagens de submarinos em turbilhão à volta do SC-122.
O telefone começou a tocar e ele inclinou-se para o atender. Enquanto estava de costas voltadas, Jericho colocou silenciosamente a meia garrafa de uísque na secretária, saiu e embrenhou-se na noite.
O seu cérebro, abastecido de Benzedrina e uísque, parecia seguir uma rota própria e imprevisível, agitando-se como as descodificadoras do Anexo 11, fazendo ligações bizarras e fortuitas: Claire, Hester e Skynner, e Wigram com o coldre ao ombro e as marcas dos pneus junto ao chalé, e o barco americano em chamas a andar em círculos por cima dos corpos de metade da tripulação.
Parou junto ao lago para inspirar algum ar puro e lembrou-se de todas as outras ocasiões em que ali estivera na escuridão, olhando fixamente para a ténue silhueta da mansão recortada contra as estrelas. Semicerrou os olhos e viu-a como deveria ter sido antes da guerra. Uma noite de Verão. O som de uma orquestra e o murmúrio de vozes deambulando pelo relvado. Uma fila de lanternas chinesas cor-de-rosa, malva e limão, agitando-se no arvoredo. Candelabros no salão de baile. Cristal branco fracturando-se na superfície lisa do lago.
A visão era tão forte que começou a transpirar dentro do sobretudo devido ao calor imginário e, enquanto subia a encosta em direcção à grande casa, pareceu-lhe vislumbrar uma fila de Roll-Royces com os motoristas encostados às compridas capotas. Mas, assim que se aproximou, verificou que os carros não passavam de autocarros que traziam o turno seguinte e levavam de volta o anterior e que a música da mansão não passava da percussão de campainhas de telefones e do bater de pés apressados no chão de pedra.
No labirinto da casa, acenou cuidadosamente às poucas pessoas com quem se cruzou: um homem de idade com um fato cinzento escuro, um capitão do Exército, uma rapariga do Corpo Feminino da RAF. Pareciam-lhe descorados naquela luz mortiça e adivinhava-lhes nas expressões que também deveria ter um aspecto bastante estranho. A Benzedrina podia fazer coisas engraçadas às pupilas dos olhos, lembrou-se, e já não fazia a barba nem tomava banho há mais de quarenta horas. Mas, em Bletchley, nunca ninguém era expulso só por ter um ar estranho, caso contrário o local estaria deserto. Havia o velho Dilly Knox, que costumava ir trabalhar de roupão, eTuring que entrava de bicicleta com uma máscara anti-gás para tentar curar a febre dos fenos, e o criptanalista da secção japonesa que tomara banho todo nu no lago à hora do almoço. Em comparação, Jericho era tão
convencional como um contabilista. Abriu a porta que dava para a cave. A lâmpada devia estar fundida desde a sua última visita e deu por si a espreitar para uma escuridão tão gelada e negra como uma catacumba. Algo tremeluzia muito tenuemente ao fundo das escadas e Jericho desceu as escadas nessa direcção. Era o buraco da fechadura do Mausoléu, contornado com tinta fluorescente: uma habilidade que tinham aprendido durante o Blitz.
Dentro da sala, o interruptor da luz funcionava. Abriu o cofre, colocou o caderno dos códigos no lugar e, por momentos, teve a ideia louca de esconder os criptogramas roubados lá dentro também. Dobrados dentro de um envelope, poderiam passar despercebidos durante meses. Mas quando, depois desta noite, iria ele ter oportunidade de vir aqui outra vez? E haviam de os encontrar. E então, bastava um telefonema para Beaumanor e tudo seria descoberto; o seu envolvimento, Hester... Não, não.
Fechou a porta de aço.
Mas não conseguia sair dali. Muita coisa da sua vida estava lá. Tocou no cofre e depois nas paredes duras e secas. Passou o dedo pelo pó da mesa. Observou a fila de máquinas do Enigma na prateleira de metal. Estavam todas dentro de caixas de madeira leve, a sua maioria nas caixas alemãs de origem e, mesmo paradas, pareciam emanar um poder constrangedor, quase ameaçador. Eram muito mais do que meras máquinas, pensou. Eram as sinapses do cérebro do inimigo; misterioso, complexo, animado.
Observou-as por alguns minutos, depois começou a voltar-se. Parou.
— Tom Jericho — murmurou. — Seu grande palerma. As duas primeiras máquinas Enigma que tirou da prateleira e inspeccionou revelaram-se bastante danificadas e não podiam ser utilizadas. A terceira tinha uma etiqueta de mala amarrada à pega com um cordel: «Sidi Bou Zid 14/2/43». Uma Enigma do Afrika Corps, capturado pelo Oitavo Exército durante o ataque a Rommel no mês anterior. Pousou-a cuidadosamente em cima da mesa e abriu os fechos de metal. A tampa abriu-se facilmente.
Esta estava em perfeitas condições: uma beleza. As letras das chaves não estavam gastas, o invólucro de metal negro não tinha um único risco, as lâmpadas de vidro estavam limpas e reluzentes. Os três rotores (parados em ZDE) reflectiam prata por baixo da luz nua. Deu-lhe uma pancadinha carinhosa. Nunca devia ter sido utilizada. «Chiffreirmaschine Gesellschaft», leu na etiqueta. «Heimsoeth und Rinke, Berlin-Wilmersdorf, Uhlandstrasse 138».
Carregou numa tecla. Era mais dura do que uma máquina de escrever normal. Quando a pressionou o suficiente, a máquina emitiu um ruído e o rotor direito moveu-se num chanfro. Ao mesmo tempo, uma das lâmpadas acendeu-se.
Aleluia!
A bateria estava carregada. O Enigma estava vivo.
Verificou o mecanismo. Inclinou-se e carregou na tecla C. Acendeu-se a letra J. carregou na tecla L e acendeu um U. Teclou A, I, R e E e surgiu, sucessivamente, X, P, Qe Q outra vez.
Ergueu a tampa interior e desapertou o eixo, voltou a colocar os rotores em ZDE e fechou-os. Teclou o criptograma JUXPQQ e apareceu-lhe a palavra C-L-A-I-R-E letra a letra nas lâmpadas em pequenas erupções de luz.
Vasculhou os bolsos à procura do relógio. Faltavam dois minutos para a meia-noite.
Voltou a fechar a tampa e colocou a máquina Enigma na prateleira, assegurando-se de que a porta ficava bem fechada.
Para as pessoas com quem se cruzava nos corredores da mansão, quem era ele? Nada. Ninguém. Apenas mais um criptanalista ansioso.
Hester Wallace, conforme o combinado, estava na cabina telefónica à meia-noite com o auscultador na mão, sentindo-se mais ridícula do que amedrontada enquanto fingia fazer uma chamada. Por detrás do vidro, duas correntes de pálidos clarões moviam-se lentamente no escuro, quando um turno se dirigia do portão principal para a mansão e o outro se encaminhava na sua direcção. No bolso tinha uma folha de apontamentos acastanhada como a madeira onde tinha apontadas seis entradas.
Cordingley acreditara em toda a sua história. Para dizer a verdade, tinha sido até um pouco zeloso de mais em ajudá-la. Como, de início, não conseguira encontrar o ficheiro que interessava, pediu ajuda a um
jovem cheio de borbulhas, com as orelhas viradas para a frente e o cabelo amarelo em forma de espanador. Seria possível que esta criança, surprendera-se ela, esta cara de feto, fosse na realidade um criptanalista? Mas Donald murmurara que sim, que era um dos melhores: agora que tinham sido feitas selecções em todas as profissões e em todas as universidades, viravam-se para rapazes acabados de sair da escola. Sem qualquer informação. Sem qualquer pergunta. A nova elite.
Assim que o ficheiro apareceu e se arranjou um espaço a um canto, nunca Miss Wallace escrevera tão depressa. A parte mais difícil fora o fim: manter-se calma e não sair a correr depois de terminar, mas sim verificar os números, devolver o ficheiro ao feto e respeitar os códigos sociais habituais com Donald.
— «Temos mesmo de ir beber um copo uma noite destas.»
— «Pois temos.»
— «Eu digo qualquer coisa.»
— Sem dúvida. Eu também.
Como é óbvio, nenhum deles tinha a menor intenção de o fazer.
Anda lá, Tom Jericho.
Já passava da meia-noite. O primeiro dos autocarros passou com um ruído surdo, quase invisível não fossem os fumos do escape que formavam uma nuvem cor-de-rosa nas luzes traseiras vermelhas.
E então, quando começava a perder a esperança, surgiu uma mancha branca. Uma mão bateu suavemente no vidro. Deixou cair o telefone e virou a lanterna para a cara de um lunático encostada ao vidro. Uns olhos negros selvagens e uma máscara convicta de barba sombreada. — Não tinhas mesmo necessidade nenhuma de quase me matares com o susto — murmurou Hester na privacidade da cabina telefónica. Quando saiu, tudo o que disse foi: — Deixei os seus números no telefone.
Manteve a porta aberta para ele entrar. A mão de Jericho pousou na dela. Um breve momento de pressão demonstrou o seu agradecimento; breve de mais para que Hester conseguisse reparar qual deles tinha os dedos mais frios.
— Encontramo-nos aqui às cinco horas.
A alegria deu uma nova energia a Hester e as suas pernas exaustas, enquanto pedalava pela encosta acima afastando-se de Bletchley.
Ele queria encontrar-se com ela às cinco. Que outra interpretação poderia ela fazer, senão que ele encontrara uma solução? Uma vitória! Uma vitória contra os Mermagens e os Cordingleys!
A subida tornou-se mais íngreme. Levantou-se para pedalar melhor. A bicicleta balançava para um lado e para o outro como um metrónomo. A luz dançava na estrada.
Mais tarde, viria a repreender-se por esta alegria prematura, mas a verdade era que, provavelmente, nunca os teria visto, de qualquer forma. Tinham-se colocado de forma bastante cuidadosa, em paralelo com o caminho e escondidos pela sebe — um trabalho de profissionais — de forma que, quando ela deu a curva e começou a balançar-se por cima dos buracos em direcção ao chalé, passou por eles nas trevas sem os ver.
Encontrava-se a cerca de três metros da porta quando os faróis se acenderam; faróis rachados, mas suficientemente ofuscantes para espalharem a sombra dela na parede branca. Ouviu o ruído do motor e voltou-se, cobrindo os olhos, para conseguir ver o enorme carro a aproximar-se dela; vagaroso, sem pressa, implacável, inclinando-se na estrada esburacada.
Jericho disse a si mesmo para não se apressar. Não há pressa. Deste a ti mesmo cinco horas. Utiliza-as.
Fechou-se à chave na cave, deixando a chave meio-virada na fechadura, de forma a que, se alguém tentasse meter a chave pelo lado de fora, ficaria bloqueado. Sabia que teria de a ir abrir, caso contrário o que era ele? Apenas um rato numa ratoeira. Mas assim, pelo menos, tinha trinta segundos para se preparar e pára arranjar uma desculpa, voltou a abrir o cofre da Secção Naval e espalhou um monte de mapas e cadernos de códigos em cima da mesa estreita. Juntou-lhes os criptogramas roubados e os parâmetros das chaves e o relógio, que colocou à sua frente com a tampa aberta. Parecia estar a preparar-se para um exame, pensou. «Os candidatos devem escrever apenas num dos lados da folha; esta margem deverá ficar em branco para ser preenchida pelo examinador.» Depois, pegou na máquina e tirou-lhe a cobertura. Pôs-se à escuta. Nada. Um cano gotejante algures, mais nada. As paredes estavam protuberantes com a pressão da terra fria; conseguia sentir o cheiro do solo, sentir o sabor das sementes do visgo húmido. Soprou nos dedos e dobrou-os.
Decidiu que iria começar pelo fim, decifrando primeiro o último criptograma, esperando que o que quer que tenha provocado o desaparecimento de Claire se encontrasse algures nessas mensagens finais.
Percorreu com os dedos as colunas para encontrar os parâmetros do Abutre do dia 4 de Março; dia de pânico na Sala de Registos de Bletchley.
III V IV GAH CX AZ DV KT HU LW GP EY MR FQ
Os números romanos disseram-lhe quais os três dos cinco rotores que deveriam ser utilizados naquele dia, e em que ordem deveriam ser colocados. GAH dava-lhe as posições de início de funcionamento dos rotores. Os dez pares de letras seguintes representavam as ligações que tinha de fazer no quadro das tomadas na parte de trás do Enigma. Estavam seis letras desligadas que, por algum misterioso e glorioso milagre das leis da estatística, aumentava o número de diferentes ligações cruzadas de quase 8 mil milhões (25x23x21xxl9xl7x 15x13x11x9x7x5x3) para mais de 150 mil milhões.
Primeiro, fez as ligações. Fios curtos e flexíveis da cor do chocolate, com pinos de latão nas extremidades revestidos a baquelite, que entravam com uma precisão satisfatória nas tomadas com letras: C para X, A para Z...
Depois, levantou a tampa interior da Enigma, desprendeu o eixo e fez deslizar os três rotores que já estavam cheios. Retirou os dois suplentes de um compartimento separado.
Os rotores eram do tamanho e da espessura dos objectos utilizados como bolas nos jogos de hóquei sobre o gelo, mas mais pesados: uma roda de códigos com vinte e seis terminais; com a forma de uma cavilha e com molas de um dos lados plano e circular do outro, com as letras do alfabeto gravadas à volta da borda. Enquanto os rotores giravam uns contra os outros, a forma do circuito eléctrico que completavam variava. O rotor da direita movia-se para uma letra sempre que se carregava numa tecla. A cada vinte e seis letras, um entalhe no anel do alfabeto obrigava o rotor do centro a mover-se para determinado sítio. E quando, finalmente, o rotor do centro atingia a posição de mudança, o terceiro rotor movia-se. Dois rotores a moverem-se eram conhecidos em Bletchley por caranguejo; três eram uma lagosta.
Colocou os rotores na ordem daquele dia — III, V e IV — e fê-los deslizar para o eixo. Fez o III rodopiar e fixou-o na letra G, o V no A e IV no H, e fechou a tampa.
A máquina estava agora preparada como a sua gémea estivera em Smolensk na noite de 4 de Março. Tocou nas teclas. Estava pronto.
A Enigma baseava-se num princípio simples. Se, quando a máquina estava preparada de determinada forma, ao carregar-se na letra A se completava um circuito que acendia a lâmpada X, o que se seguia (uma vez que a corrente eléctrica é recíproca) era que, na mesma posição, ao carregar-se na letra X se acendia a lâmpada A. A descodificação estava projectada para ser tão fácil como a codificação.
Jericho apercebeu-se bastante depressa de que algo não estava a correr bem. Ia carregar numa letra do criptograma com o indicador esquerdo e, com a mão direita, tomar nota da letra iluminada no mostrador. O T deu-lhe um H, o R um Y, o X um C... Aquilo não lhe parecia nada alemão. De qualquer forma, continuou na esperança cada vez mais desesperada de que começasse a sair bem. Só desistiu após quarenta e sete letras.
HYCYKWPIOROKDZENAJEWICZJPTAKJHRUTBPYSJMOTYLPCIE
Passou as mãos pelo cabelo.
Às vezes, um operador do Enigma poderia inserir letras sem qualquer significado à volta de palavras correctas para disfarçar o sentido da mensagem, mas nunca tantas, de maneira nenhuma. Não conseguia discernir qualquer palavra escondida naquela gatafunhada.
Resmungou, encostou-se para trás na cadeira e olhou para o tecto de gesso lascado.
Duas explicações, ambas igualmente desagradáveis.
Primeira: a mensagem havia sido super-codificada, o texto misturado uma vez e depois outra vez de forma a tornar o seu significado duplamente indefinido. Uma técnica bastante morosa, geralmente reservada apenas para as comunicações mais secretas.
Segunda: Hester tinha-se enganado na transcrição (tinha-se enganado talvez numa só letra). Fosse qual fosse o caso, bem poderia ficar ali sentado para o resto da vida sem conseguir fazer que o criptograma revelasse os seus segredos.
Das duas explicações, a última era a mais provável.
Andou às voltas na sua cela por uns minutos, numa tentativa de fazer o sangue circular-lhe de novo nas pernas e nos braços. Depois, voltou a fixar os rotores em GAH e efectuou uma tentativa para decifrar a segunda mensagem de 4 de Março. O mesmo resultado:
SZULCJK UKAH...
Nem se preocupou com a terceira e a quarta, em vez disso brincou com os parâmetros do rotor — GEH, GAN, CAH — na esperança de que ela se tivesse enganado apenas numa letra, mas tudo o que o Enigma lhe piscava era cada vez mais confuso.
Iam quatro pessoas no carro. Hester no banco de trás, ao lado de Wigram. Dois homens nos bancos da frente. As portas estavam todas trancadas, o aquecimento ligado, um fedor tão forte a fumo de cigarros e a suor que Wigram levava o cachecol encostado delicadamente ao nariz. Manteve a cara virada para o lado oposto ao dela e só falou quando chegaram à estrada principal. Então, pisaram os traços contínuos para ultrapassarem outro carro e o condutor accionou a sirene da polícia.
— Oh, por amor de Deus, Leveret, pare com isso.
O barulho parou. O carro virou à esquerda, depois à direita. Andaram aos solavancos por um caminho cheio de sulcos e os dedos de Hester afundaram-se mais nos estofos de pele numa tentativa de evitar tombar para cima de Wigram. Ela também não disse nada; este silêncio era o seu único gesto de desdém. Estava tramada se demonstrasse os nervos ao gaguejar como uma rapariga.
Alguns minutos depois pararam e Wigram ficou sentado sem esboçar qualquer movimento, como um estadista, enquanto os seus homens, nos bancos da frente, se arrastaram para fora do
carro. Um deles abriu-lhe a porta. Lanternas reluziam na escuridão. Apareceram sombras. Um comité de boas-vindas.
— Já tem aquelas luzes prontas, inspector? — perguntou
Wigram.
— Sim, senhor — disse uma voz masculina profunda; sotaque do Midlands. — Contudo, temos tido muitas queixas do pessoal
da força aérea.
— Bom, esses para começar que se lixem. Se os boches quiserem vir bombardear isto são bem-vindos. Tem os planos?
— Sim, senhor.
— Óptimo. — Wigram agarrou-se ao tejadilho e puxou-se para fora da embaladeira. Esperou um ou dois segundos e como Hester não se mexeu, voltou a baixar-se e chamou-a com a mão, irritado. — Vamos lá, vamos lá. Está à espera que a leve ao colo?
Hester deslizou do banco e saiu.
Mais dois outros carros, não, três outros carros com os faróis acesos, mostrando as silhuetas de homens em movimento, um camião do Exército e uma ambulância. Foi a ambulância que a assustou. As portas estavam abertas e, quando ia a passar por ela, com a mão de Wigram pousada no seu ombro, conduzindo-a, conseguiu cheirar o desinfectante e ver as botijas de oxigénio de cor parda, as macas com os grosseiros cobertores castanhos, as correias, os inocentes lençóis brancos. Estavam dois homens sentados no pára-choques traseiro com as pernas esticadas, a fumar. Olharam-na sem demonstrar interesse.
— Já aqui tinha estado antes? — perguntou Wigram.
— Onde é que estamos?
— Na ala dos «namorados». Não faz muito o seu género, ao
que sei.
Wigram estava a segurar uma lanterna e, quando se colocou de lado para lhe dar passagem por um portão, leu o aviso: PERIGO: Jazida de barro inundada — Agua muito profunda. Conseguia ouvir o barulho gutural de um motor e o grito das gaivotas. Começou a tremer.
«A mão do Senhor estava em cima de mim, e conduzia-me no espírito do Senhor, e colocou-me no centro do vale que estava cheio de ossos.»
— Disse alguma coisa? — perguntou Wigram.
— Acho que não.
Oh, Claire, Claire, Claire...
Agora, o barulho do motor era mais alto e parecia sair de um edifício de tijolos à sua esquerda. Uma luz fraca surgiu pelas fendas do telhado mostrando uma chaminé alta e quadrangular com a parte inferior mergulhada em heras. Tinha a impressão de que iam à cabeça de uma procissão. Atrás deles vinha o condutor, Leveret, seguido pelo segundo homem do carro com uma gabardina vestida e, depois, o inspector da polícia.
— Cuidado aí — avisou Wigram e tentou pegar-lhe outra vez no braço, mas ela afastou-o. Abriu caminho por entre os montes de tijolos e de ervas, ouviu vozes, dobrou uma esquina e deparou com uma linha de luzes que a ofuscaram e que iluminavam uma passagem larga. Seis polícias andavam de gatas no meio de um resplendor de vidros partidos e cascalho. Por detrás deles, um soldado cuidava de um gerador que não parava de estremecer; outro desenrolava um tambor de cabos; um terceiro, armava mais luzes.
Wigram arjeganhou os dentes e piscou o olho a Hester, como que a dizer: Está a ver o que eu comando? Estava a calçar um par de luvas castanhas de pele de vitelo. — Tenho uma coisa para lhe mostrar.
Num dos cantos do edifício estava um sargento da polícia ao lado de uma pilha de sacos amarrotados. Hester teve de forçar as pernas para avançar. Por favor, Senhor, que não seja ela.
— Pegue no bloco de notas — ordenou Wigram ao sargento. Levantou a parte traseira do sobretudo e pôs-se de cócoras. — Estou a mostrar à testemunha, primeiro, um casaco de senhora comprido, até aos tornozelos, ao que parece, de cor cinzenta, enfeitado com veludo preto. — Tirou-o completamente de dentro do saco e virou-o do avesso. — Forro de cetim cinzento. Bastante manchado. Provavelmente sangue. É preciso alguém verificar isto. Etiqueta: «Hunters, Burlington Árcade.» E a testemunha respondeu? — Ergueu-o, sem olhar à sua volta.
Lembras-te? Eu disse: «É bonito demais para usar todos os dias.» E tu disseste: «Hester, sua tonta, é essa a única razão para o vestir?»
— E a testemunha respondeu?
— É dela.
— «É dela.» Escreveu? Óptimo. OK. O que se segue. Um sapato de senhora. Pé esquerdo. Preto. Tacão alto. Tacão partido. Acha que é dela?
— Como posso saber? Um sapato...
— É grande. Talvez, tamanho sete. Oito. Que tamanho é que
ela calçava?
Uma pausa, depois Hester disse, baixinho: — Sete.
— Encontrámos o outro lá fora — disse o inspector. — Perto
da água.
— E um par de meias. Brancas. Seda. Com muitas manchas de sangue. — Esticou o braço segurando-as entre o polegar e o indicador. — Reconhece-as, Miss Wallace? — Deixou-as cair e remexeu o fundo do saco. — Ultimo objecto. Um tijolo. — Iluminou-o com a lanterna; algo reluziu. — Também com manchas de sangue. Cabelos loiros agarrados.
— Onze edifícios principais — disse o inspector. — Oito deles com estufas, oito com chaminés ainda de pé. A linha passa aqui com ramais, ligando-se à linha principal, e um ramal passa ali, mesmo pelo meio.
Encontravam-se agora no exterior, no local onde fora encontrado o segundo sapato, e o mapa foi colocado em cima de um tanque de água enferrujado. Hester estava de pé, afastada deles, e Leveret observava-a com os braços descaídos. Havia mais homens na margem e lanternas esfaqueando a noite.
— O club de pesca local utiliza aqui um abrigo, perto do molhe. Geralmente, estão lá guardados três barcos a remos.
— Geralmente?
— A porta foi arrombada. A temporada acabou. Por isso ninguém descobriu. Falta um barco.
— Desde quando?
— Bom, houve alguma pesca no domingo. Andaram à carpa. Era o último dia da temporada. Nessa altura estava tudo em ordem. Por isso, teve de ser depois de domingo à noite.
— Domingo. E hoje é quarta-feira. — Wigram suspirou e abanou a cabeça.
O inspector estendeu as mãos. — Com o devido respeito, tenho três homens em Bletchley. Bedford emprestou-nos seis, Buckingham nove. Estamos a duas milhas do centro da cidade. Há um limite.
Wigram pareceu não o escutar. — Qual é o tamanho do lago?
— Mais de trezentos metros de comprimento.
— É fundo?
— Sim, senhor.
— Quanto - seis, sete metros?
— Junto às margens. No centro, sessenta. Pode atingir setenta. É uma obra antiga. Construíram a cidade com o que desenterraram daqui.
— A sério? — Wigram fez incidir a luz da lanterna no outro lado do lago. — Faz sentido, acho eu. Fazer um buraco a partir de outro. — Estava a erguer-se uma neblina, redemoinhando na brisa como vapor por cima de um caldeirão. Voltou a lanterna e apontou-a de novo para o edifício. — Então, o que aconteceu aqui? — perguntou ele, afavelmente. — O nosso homem convence-a a vir até aqui para darem uma cambalhota no domingo à noite. Mata-a, provavelmente com aquele tijolo. Arrasta-a até aqui... — O feixe de luz seguiu o caminho desde as estufas até à água. — Um homem forte; tinha de ser, ela era uma rapariga grande. E depois? Pega num barco. Enfia o corpo num saco, talvez. Enche-o de tijolos. É óbvio. Rema até ao centro. Atira-o borda fora. Um chapinhar surdo à meia-noite, como nos filmes... Talvez tenha tentado regressar para recolher as roupas, mas algo o assustou. Talvez o par seguinte de namorados que já tinha chegado. — Voltou a brincar com a luz na neblina. — vinte metros de profundidade. Raios me partam! Precisamos de meter aqui um submarino para a encontrar.
— Já posso ir? — perguntou Hester. Tinha-se mantido muito calma e composta até ao momento, mas agora as lágrimas começavam a escorrer e estava a engolir grandes golfadas de ar.
Wigram apontou-lhe a lanterna à cara. — Não, — disse ele, com ar triste. — Lamento, mas não pode.
Jericho estava a reactivar a máquina de criptogramas tão depressa quanto os seus dedos entorpecidos lho permitiam.
Parâmetros do Enigma para a chave do Exército Alemão Abutre, 6 de Fevereiro de 1943:
IVIII DMR EY JL AK NV FZ CT HP MX BQ GS
Os quatro últimos criptogramas não tinham solução, um desastre, mero caos saído do caos. Já perdera tempo de mais com eles. Começaria de novo, desta vez pela primeira mensagem. E para Y, J para L. E se não resultasse? Nem era bom pensar nisso. A para K, N para V... Ergueu a tampa, desapertou o eixo, fez os rotores deslizarem. Por cima da sua cabeça, a casa enorme estava silenciosa. Estava enterrado fundo de mais em cogitações para ouvir um passo que fosse. Pensou no que estariam a fazer lá em cima. Andariam à procura dele? Talvez. E se acordassem Logie não demorariam muito a encontrá-lo. Voltou a colocar os rotores no devido lugar — primeiro, quinto, terceiro — e fê-los deslizar para DMR.
Quase de imediato começou a sentir o bom resultado. Primeiro C e X, que eram nulos, e depois A, N, O, K, H.
UmOKH...
Para OKH. Oberkommando des Heeres. O Alto Comando do
Exército.
Um milagre.
Os dedos martelavam as teclas. As luzes relampejavam.
Um OKH/BEFEHL. Para o escritório do Comandante supremo.
Dringend.
Urgente.
Melde Auffindung zahlreicher menschlicher Uberreste zwõlfKm
westlish Smolensk...
Descobertos ontem a doze quilómetros oeste de Smolensk vestígios de restos humanos...
Hester estava trancada no carro com Wigram e Leveret estava de guarda lá fora.
Jericho. Ele perguntava-lhe por Jericho. Onde estava ele? O que estava ele a fazer? Quando o vira pela última vez?
— Já saiu do anexo. Não está no quarto. Não está no chalé. Pergunto-lhe: Que outro sítio há para onde ele possa ir nesta porcaria de cidade?
Hester não respondeu.
Wigram tentou gritar com ela, batendo com o punho no banco da frente e, depois, como isso não resultasse, deu-lhe o lenço e tentou ser simpático, mas o aroma a água-de-colónia na seda e a lembrança do cabelo loiro no tijolo deu-lhe vontade de vomitar e Wigram teve de baixar o vidro e deixar que Leveret abrisse a porta.
— Encontraram o barco — disse Leveret. — Tem sangue no fundo.
Mesmo antes das três horas, Jericho tinha decifrado a primeira mensagem:
Para o escritório do comandante supremo. Urgente. Descobertos a doze quilómetros oeste de Smolensk vestígios de restos humanos, são bastantes, talvez milhares. que providências devo tomar? lachman, oberts, Polícia militar.
Jericho encostou-se para trás e contemplou esta maravilha. Muito bem, Herr Oberst, que providências deverá tomar? Dava a vida para saber.
Uma vez mais, recomeçou a morosa tarefa de preparar a Enigma. A mensagem que se seguia tinha sido enviada de Smolensk três dias mais tarde, a 9 de Fevereiro. A, N, O, K, H, B, E, F, E, H, L... A notável formalidade das forças armadas alemãs abria-se à sua frente. E depois um nulo, e depois G, E, S, T, E, R, N, U, N, D, H, E, U, T, E.
Gestern und heute. Ontem e hoje.
E assim por diante, letra a letra, inevitavelmente, sem remorsos — teclar, claque, luz, anotar — parando de vez em quando para massajar os dedos e endireitar as costas, a horrível história tornava-se ainda mais inquietante pela lentidão com que era obrigado a ler, mantendo os globos oculares assestados sobre o crime. Algumas das palavras criavam-lhe problemas. O que era mumifiziert? Seria «mumificado?» E Sagemehl geknebelt? «Amordaçados com serradura?»
Escavação preliminar efectuada ontem e hoje no castelo da floresta a norte de dnieper. dimensão aproximadamente duzentos metros quadrados. profundidade 1.5 metros. Cinco camadas de cadáveres. Os de cima mumificados, os de baixo líquidos. vlnte corpos recuperados. causa de morte um só tiro na cabeça. mãos amarradas com arame. bocas amordaçadas com panos e serradura. uniformes militares, botas altas e medalhas indicam que as vítimas eram oficiais polacos. o gelo e a neve obrigam-nos a suspender as operações até ao degelo. prosseguirei com investigações. Lachman, Oberst, Polícia militar.
Jericho deu uma volta na sua pequena cela, a abanar os braços e a bater com os pés. Parecia-lhe povoada de fantasmas que lhe mostravam bocas desdentadas devido a um tiro. Ele próprio caminhava na floresta. O frio retalhava-lhe a carne. E quando parou e se pôs à escuta conseguiu ouvir o som de árvores a serem arrancadas pelas raízes, o som de pás e de picaretas a tinir na terra congelada.
Oficiais polacos?
Puck?
A terceira mensagem, enviada após um intervalo de onze dias, fora enviada a 20 de Fevereiro. Nach Eintreten Tauivetter Exchumierungen im Wald bei Katynfortgesetzt...
DEPOIS DO DEGELO AS ESCAVAÇÕES DA FLORESTA KATYN RECOMEÇARAM ÀS DEZOITO HORAS DE ONTEM.
CINQUENTA E DOIS cadáveres examinados. várias cartas pessoais, medalhas e dinheiro polaco recuperados. também cartuxos de pistolas sete ponto seis cinco milímetros com a inscrição passo a citar geco d fim de citação. interrogatórios a habitantes locais demonstram que primeiro as execuções foram levadas a cabo pela nkvd durante a ocupação soviética em Março e Abril de mil novecentos e quarenta, segundo as vítimas talvez tenham sido trazidas do campo de prisioneiros de kozielsk até à estação de gniezdovo e levadas de noite para a floresta em grupos ouvidos cem tiros. o número total de vítimas está estimado em dez mil repito dez mil. é necessária ajuda urgente se desejarem que as escavações prossigam.
Jericho sentou-se sem se conseguir mexer durante quinze minutos, olhando fixamente para a máquina Enigma, tentando compreender a dimensão das implicações. Tratava-se de um segredo que era perigoso saber, pensou. Tratava-se de um segredo suficientemente grande para engolir uma pessoa inteira. Dez mil polacos (os nossos grandiosos Aliados, sobreviventes de um exército que atacara as divisões Panzer da Wehrmatch a cavalo, bramindo espadas), dez mil enforcados, amordaçados e mortos a tiro pelos nossos outros, mais recentes, grandiosos Aliados, a heróica União Soviética? Não admira que o Registo tenha sido apagado.
Teve uma ideia e voltou ao primeiro criptograma. Pois se uma pessoa o olhasse assim:
HYCTKWPIOROKDZENAJEWICZJPTAKJHRUTBPYSJMOTYLPCIE não significava nada, mas assim:
HYCYK, W, PIORO, K., DZENAJEWICZ, J, PTAK, J, HRUT, B., PYS, ]., MOTYL, P., ...
então, do caos, surgia a ordem. Nomes.
Já sabia o suficiente. Podia parar. Mas continuou, pois não era homem para deixar um mistério parcialmente resolvido, uma prova matemática por resolver. Era necessário projectar o caminho a seguir para atingir a resposta, ainda que a tivesse adivinhado muito antes de a viagem terminar.
Parâmetros do Enigma para a chave do Exército Alemão Abutre, 2 de Março de 1943:
IIIIVII LUK JP DY QS HL AE NW CU IK FX BR
An OstubafDorfmann. Ostubafpara Obersturmbannfuhrer. Um posto da hierarquia da Gestapo.
Para Obersturmbannfuhrer Dorfmann RHSA Segundo ordens do comandante supremo seguem
nomes dos oficiais polacos identificados até à data na
floresta de katyn...
Não se deu ao trabalho de os escrever. Sabia do que andava à procura e encontrou-o uma hora depois, escondido no meio de outros nomes. Não fora enviado à Gestapo no dia 2, mas sim no dia 3:
PUKOWSKI, T.
Alguns minutos depois das 5 da manhã, Tom Jericho voltou à superfície, como uma toupeira, vindo do seu buraco subterrâneo, e pôs-se na passagem da mansão, à escuta. A máquina Enigma havia sido devolvida à sua prateleira, a porta do Mausoléu também tinha sido trancada. Tinha os criptogramas e os parâmetros no bolso. Não deixara qualquer vestígio. Ouviu passos e vozes masculinas a virem ao encontro dele e encostou-se à parede, mas, quem quer que fosse, não vinha nesta direcção. A escadaria de madeira rangeu enquanto subiam, desaparecendo, para os escritórios que funcionavam nos antigos quartos.
Caminhou cautelosamente, mantendo-se encostado à parede. Se o Wigram tivesse ido à procura dele ao anexo à meia-noite e não o tivesse encontrado, o que faria a seguir? Iria a Albion Street. E, ao saber que Jericho não tinha regressado, já deveria ter organizado um numeroso grupo de busca. Mas Jericho não queria ser encontrado. Pelo menos, para já. Tinha de fazer ainda muitas perguntas e só um homem tinha as respostas.
Passou pelo fundo da escadaria e abriu as portas duplas que davam para a entrada.
Tornaste-te amante dela, não foi, Puck? Foste tu que entraste atrás de mim na grande porta giratória dos homens de Claire Romilly. E, de alguma forma — mas como? — sabias que se estava a passar algo terrível naquela horrenda floresta. Não foi por isso que a procuraste? Porque ela tinha acesso a informações que tu não tinhas? E ela deve ter concordado em ajudar-te, deve ter começado a copiar tudo o que lhe parecesse ter interesse. («Ultimamente, ela tornou-se muito mais atenta...») E depois veio aquele dia de pesadelo em que descobriste que — quem? — o teu pai, o teu irmão, estava enterrado naquele lugar medonho. E no dia seguinte, tudo o que ela te podia levar eram criptogramas, porque os Ingleses — os Ingleses: os teus Aliados de confiança, os teus leais protectores, a quem os Polacos haviam confiado o segredo do Enigma — os Ingleses tinham decidido que o melhor era não saberem mais.
Puck, Puck, o que foi que fizeste? O que foi que lhe fizeste?
Estava uma sentinela no átrio gótico, dois criptanalistas a conversar em voz baixa num banco e uma operadora do Corpo Feminino da RAF com uma pilha de ceixas de ficheiros a tentar rodar a maçaneta com o cotovelo. Jericho abriu-lhe a porta e ela sorriu-lhe em agradecimento e rebolou os olhos, como se a dizer: Que lugar para nos encontrarmos às cinco horas numa manhã de Primavera, e Jericho retribuiu-lhe o sorriso e acenou, solidário, aquiescente: Sim, de facto, que lugar...
A rapariga tomou uma direcção e ele outra, a direcção da estrela da manhã e do portão principal. O céu estava negro, a cabina telefónica quase invisível nas sombras do arvoredo. Estava vazia. Passou por ela e embrenhou-se na vegetação. Sir Herbert Leon, o último conservador vitoriano de Bletchley Park, tinha sido um dedicado arborizador, plantando nos seus domínios trezentas espécies de árvores diferentes. Quarenta anos a espalhar sementes seguidos de quatro anos sem se efectuar qualquer poda haviam transformado o arvoredo num labirinto de câmaras secretas, e foi aí que Jericho se agachou e esperou por Hester Wallace.
Às cinco e um quarto teve a certeza de que ela não ia aparecer, o que sugeria que tinha sido detida. De qualquer forma, andavam também certamente à procura dele.
Tinha de sair de Bletchley Park, e não podia arriscar o portão
principal.
As cinco e vinte, quando os seus olhos estavam já absolutamente habituados à escuridão, começou a dirigir-se para norte pelo meio do arvoredo, de volta a casa, com o monte de segredos a pesar-lhe no bolso.
Sentia ainda os efeitos da Benzedrina; uma leveza nos músculos, uma grande sensibilidade na mente, principalmente no que respeitava ao perigo, e agradeceu a Logie por o ter obrigado a tomar o comprimido, caso contrário, já estaria quase morto.
Puck, Puck, o que foi que fizeste?
O que foi que lhe fizeste?
Saiu cautelosamente do meio de dois plátanos e pisou o caminho que passava ao lado da mansão. À sua frente, encontrava-se a silhueta comprida e baixa do velho Anexo 4, com a massa da grande casa por trás. Ladeou-a e dirigiu-se às traseiras, passou alguns latões de lixo e entrou no pátio. Eram aqui os estábulos onde começara a trabalhar em 1939 e, para lá destes estábulos, encontrava-se o chalé onde Dilly Knox se ocupara pela primeira vez dos mistérios do Enigma. Conseguia vislumbrar os cilindros e os tubos de escape reluzentes de meia-dúzia de motas formando um semi-círculo no empedrado. Uma porta abriu-se e viu um estafeta, ataviado com joelheiras, capacete e óculos, como um cavaleiro medieval. Jericho encostou-se à parede de tijolo e esperou que o motociclista regulasse o assento, desse vida à mota e acelerasse. A luz traseira foi diminuindo de tamanho até desaparecer pelo portão das traseiras.
Por momentos, pensou utilizar a mesma saída, mas a razão disse-lhe que, se era provável que estivessem a vigiar o portão principal, também estariam a vigiar este. Passou pelo chalé aos tropeções, passou pelas traseiras do court-de-ténis e, por fim, pelo anexo da descodificadora, vibrando na escuridão como um abrigo para motores.
Nesta altura, uma mancha azulada começara a erguer-se na orla do céu. A noite — sua amiga e aliada, e sua única protecção — preparava-se para o abandonar. Mais à frente, conseguia vislumbrar os contornos de uma construção. Pirâmides de terra e de areia. Camadas baixas de tijolos e tábuas de cheiro adocicado formando rectângulos.
Jericho nunca prestara grande atenção à vedação periférica de Bletchley Park que, após uma inspecção, revelou tratar-se de uma formidável paliçada de estacas de ferro de sete pés de altura, com as pontas formadas por lanças triplas dobradas para fora, para impedirem qualquer invasão. Foi quando passava as mãos pelo metal galvanizado que ouviu um som sibilante provocado por algum
movimento nos arbustos mesmo por detrás dele e para a esquerda. Recuou uns passos e escondeu-se atrás de uma pilha de vigas mestras de metal. Um pouco depois, uma sentinela passou lentamente, num estado de alerta muito fraco, a julgar pela silhueta relaxada e o arrastar dos pés.
Jericho agachou-se ainda mais, até ouvir os sons afastarem-se. O perímetro teria talvez quilómetro e meio. Digamos, quinze minutos para uma sentinela completar uma volta. Digamos que havia duas sentinelas a patrulhá-lo. Talvez três. Se fossem três, tinha cinco minutos. Olhou a toda volta para ver o que poderia utilizar. Um latão de cerca de novecentos litros era pesado demais para ele o erguer, mas havia pranchas de madeira e alguns pedaços espessos de manilhas de cimento, os quais era possível levar até à vedação. Começou a transpirar outra vez. O que quer que fossem construir aqui, ia ser enorme, enorme e à prova de bomba. Nas trevas, as escavações eram insondáveis. «ClNCO CAMADAS DE CADÁVERES. Os DE CIMA MUMIFICADOS, OS DE BAIXO LÍQUIDOS...»
Colocou os tubos na vertical e pousou-os a cerca de quinze centímetros um do outro. Deitou uma prancha por cima deles. Depois, montou um segundo conjunto de tubos em cima do primeiro, pegou noutro pedaço de madeira e cambaleou com ele equilibrado no ombro. Pousou-o cuidadosamente, fazendo uma plataforma com dois degraus; devia ser a primeira construção que fazia desde a infância. Subiu para a estrutura em perigo de desmoronamento e agarrou-se às lanças de ferro. Os pés de Jericho lutaram para se apoiarem na grade. Mas a vedação tinha sido desenhada para impedir as pessoas de entrarem e não de saírem. Atestado de fármacos e de desespero, Jericho conseguiu subir para cima da grade, virar-se e deixar-se escorregar para o outro lado, deixando-se cair a um metro do chão e ali se quedando agachado na relva alta, a recuperar o fôlego, à escuta.
A sua última acção foi meter o pé pela vedação e deitar abaixo as pranchas.
Não esperou para ver se o barulho chamara a atenção de alguém. Meteu pés ao caminho pelos campos fora, primeiro a caminhar normalmente, depois em passo acelerado e, por fim, a correr, escorregando e derrapando na relva orvalhada. Para a sua direita encontrava-se um grande acampamento militar, dissimulado por uma fiada de árvores que, apenas agora, se começavam a materializar. Por detrás dele, conseguia sentir a madrugada sobre os ombros, clareando minuto a minuto. Só olhou para trás quando chegou à estrada, e foi essa a sua última impressão de Bletchley Park: uma ténue linha de edifícios baixos e escuros, meros pontos e hífens no horizonte e, por cima deles, a oriente, um imenso arco de luz azul e fria desenhado no céu.
Já estivera uma vez nos aposentos de Puck, numa tarde de domingo, há cerca de um ano, para um jogo de xadrez. Lembrava-se vagamente de uma senhoria idosa que lhes serviu chá num quarto apertado na parte da frente da casa enquanto o marido inválido respirava com dificuldade e tossia e vomitava no andar de cima. Lembrava-se bem do jogo, fora bastante curioso; Jericho muito aberto no início, Puck a meio, e Jericho novamente no fim. Concordaram com um empate.
Alma Terrace.»Era isso. Alma Terrace. Número nove.
Caminhava agora muito depressa com longas passadas entrecortadas esporadicamente por uma corrida, sempre pela berma da estrada, descendo a encosta e entrando na cidade adormecida. À porta da taberna sentia-se o odor a cerveja da noite anterior. A capela Metodista, algumas portas mais abaixo, estava escura e trancada com a placa em mau estado que não fora mudada desde o começo da guerra: «Arrependei-vos: pois o Reino dos Céus está aqui.» Passou por baixo da ponte do caminho-de-ferro. Do outro lado da rua ficava Albion Street e, um pouco mais longe, o Clube dos Trabalhadores de Bletchley («A Sociedade Cooperativa Apresenta uma Palestra pelo Conselheiro A.E. Braithwaite: A economia soviética e o que ela nos pode ensinar»). Cerca de vinte metros mais à frente virou à esquerda para Alma Terrace.
Era uma rua como tantas outras: uma fiada dupla de minúsculas casas de tijolo vermelho paralela ao caminho-de-ferro. A casa número nove era exactamente igual a todas as outras: duas pequenas janelas no primeiro andar e uma no rés-do-chão, todas três tapadas com reposteiros do blackout como se estivessem de luto, um pequeno pátio com um latão de lixo e uma cancela de madeira para a rua. A cancela estava partida e a madeira, muito polida do desgaste, estava lascada e acinzentada como se tivesse andado à deriva no mar; Jericho teve de a levantar um pouco para a abrir. Empurrou a porta — fechada à chave — e bateu-lhe com o punho.
Ouviu uma tosse estridente, tão estridente e imediata como um cão de guarda despertado. Deu um passo atrás e, alguns segundos depois, uma das cortinas de cima abriu-se. Gritou: — Puck, tenho de falar contigo.
Ouviu o som de cascos de cavalo. Olhou para o cimo da rua e viu uma carroça de carvão que acabara de dobrar a esquina — passou muito devagar e o condutor olhou-o demoradamente; depois, bateu com as rédeas e o grande cavalo reagiu e a velocidade dos cascos aumentou. Jericho ouviu um trinco a ser aberto por detrás dele. A porta abriu-se com estrondo. Uma velhota espreitou.
— Desculpe incomodar — disse Jericho — mas é uma emergência. Tenho de falar com Mr. Pukowski.
Ela hesitou, mas deixou-o entrar. Media menos de metro e meio — um fantasma com uma bata acolchoada azul muito pálida apertada por cima da camisa de noite. Falava com a mão à frente da boca e Jericho percebeu que estava envergonhada por não ter a dentadura posta.
— Está no quarto.
— Pode levar-me lá?
Ela meteu pelo corredor a arrastar os pés e ele seguiu-a. A tosse do andar superior tornou-se mais intensa. Parecia que fazia estremecer o tecto, fazendo balançar o candeeiro coberto de sujidade.
— Mr. Puck? — bateu à porta. — Mr. Puck? Deve estar a dormir. Ouvi-o chegar muito tarde — disse ela a Jericho.
— Dá-me licença?
O pequeno quarto estava vazio. Jericho atravessou-o em três passadas e afastou os reposteiros. Uma luz cínzea iluminou o reino do exilado: uma cama de solteiro, um lavatório, um guarda-fatos, uma cadeira de madeira, um pequeno espelho de vidro grosso, cor-de-rosa e límpido com pássaros entalhados suspenso por uma corrente de metal por cima da lareira. Alguém tinha estado deitado na cama por cima da roupa e havia um prato à cabeceira cheio de pontas de cigarros.
Olhou pela janela: a inevitável horta e o abrigo anti-bombas. Um muro.
— O que é aquilo?
— Mas a porta estava trancada...
— Do outro lado do muro? O que é aquilo?
Com a mão à frente da boca, ela olhou, consternada. — É a estação.
Jericho experimentou a janela. Estava encravada.
— Há alguma saída pelas traseiras?
A senhoria conduziu-o por uma cozinha que não fora muito modificada desde a época vitoriana. Uma calandra. Uma bomba manual para puxar água para o lava-loiça...
A porta das traseiras não estava fechada à chave.
— Ele está bem, não está? — já não se preocupava com os dentes. A boca tremia-lhe, a pele que a circundava estava enrugada, encovada, castanha.
— Com certeza que sim. Vá ter com o seu marido.
Agora seguia o rasto de Puck. Pegadas — grandes pegadas — conduziam-no através da horta. Estava uma mesa de chá encostada ao muro que balançou e se estilhaçou, quando Jericho subiu para cima dela, conseguindo mesmo assim atirar-se para cima do muro de tijolos escuros. Quase caía de cabeça no caminho cimentado, mas conseguiu agarrar-se e puxar as pernas para cima.
Ao longe soou o apito de um comboio.
Já não corria assim há quinze anos, desde que andava na escola e participara numa corrida de obstáculos de sete quilómetros. Mas lá estavam eles outra vez, os bem conhecidos instrumentos de tortura: a picada de lado, o ácido nos pulmões, o sabor a ferrugem na boca.
Passou numa correria desenfreada pela entrada das traseiras da Estação de Bletchley, dobrou a esquina em direcção à plataforma por entre uma multidão de pombos cor de chumbo, que bateram as asas e levantaram voo para logo voltarem a pousar. Os seus pés vibravam na estrutura de ferro da ponte. Galgou as escadas duas a duas e atravessou a plataforma a correr. Uma fonte de fumo branco jorrou para a esquerda e para a direita, filtrado pelas placas do chão, enquanto a locomotiva passava por baixo vagarosamente. Era bastante cedo, as pessoas que esperavam eram poucas e Jericho ia a meio dos degraus que davam para a plataforma norte, quando localizou Puck a cerca de cinquenta metros, perto da linha, com uma pequena pasta na mão e seguindo com a cabeça o movimento lento dos compartimentos. Jericho parou e agarrou-se ao corrimão, dobrado para a frente, com falta de ar. Apercebeu-se de que a Benzedrina estava a deixar de fazer efeito. Quando, por fim, o comboio se imobilizou completamente, Puck olhou em volta, avançou normalmente, abriu uma porta e desapareceu.
Utilizando o corrimão para se apoiar, Jericho desceu os últimos degraus e quase caiu num compartimento vazio.
Deve ter desmaiado e durante vários minutos, porque não chegou a ouvir a porta fechar-se nem o apito. A próxima coisa de que teve consciência foi de um movimento oscilante. Tinha a cara encostada ao banco que estava quente e cheio de pó e, através dele, conseguia ouvir o ritmo suave das rodas — da-da-di-di, di-di-da-da, da-da-di-di... Abriu os olhos. Borrões de nuvens azuladas com as extremidades cor-de-rosa passavam vagarosamente por um quadrado de céu branco. Era tudo muito bonito, como num berçário, e teria voltado a adormecer, mas uma vaga recordação de algo escuro e ameaçador que o deveria assustar despertou-o e, então, lembrou-se.
Quando se levantou, verificou que lhe doía a cabeça; abanou-a, fez um movimento rotativo em forma de 8 e depois baixou a janela e enfiou a cabeça no ar fresco. Não havia sinais de qualquer cidade. Apenas zonas rurais absolutamente planas com cercas, celeiros e charcos que reluziam à luz matinal. A linha descrevia uma ligeira curva e Jericho conseguiu ver a locomotiva fazendo esvoaçar o longo galhardete de fumo por cima de uma parede negra de carruagens. Dirigiam-se para norte na linha principal da costa oeste, o que significava — tentou-se lembrar — que se seguiria Northampton, depois Coventry, Birmingham, Manchester (provavelmente), Liverpool... Liverpool? Liverpool. E oferry-boat para atravessar o Mar da Irlanda.
Santo Deus.
Estava espantado com o absurdo de toda a situação e, ao mesmo tempo, com toda a sua simplicidade, a sua evidência. Existia um cordão ligado ao sinal de alarme por cima da fila de bancos oposta («Multa por utilização indevida: 20 libras») e a sua reacção imediata foi puxá-la. Mas, e depois? Pensa. Ver-se-ia com a barba por fazer, sem bilhete, com os olhos dilatados devido ao uso de drogas, a tentar convencer um guarda desconfiado de que havia um traidor a bordo, enquanto Puck, o que faria Puck? Desceria do comboio e desapareceria. De repente, Jericho viu todo o absurdo da situação em que se encontrava. Nem sequer tinha dinheiro suficiente para comprar um bilhete. Tudo o que tinha era um bolso cheio de criptogramas.
Livra-te deles.
Tirou-os do bolso e rasgou-os aos pedaços, depois voltou a enfiar a cabeça na janela e largou-os contra a deslocação de ar. Foram arremessados para longe, subiram e passaram por cima da carruagem, desaparecendo. Virando a cabeça para o outro lado, tentou adivinhar se Puck iria muito à frente. A força do vento sufocava-o. Três carruagens? Quatro? Meteu-se para dentro e fechou a janela; depois atravessou o compartimento oscilante e abriu a porta do corredor.
Espreitou para fora, cuidadosamente.
O comboio era o que seria de esperar; anterior à guerra, preto e imundo. O corredor, iluminado para o blackout por luzes azuis fracas, era da cor de uma garrafa de veneno. Quatro compartimentos de um dos lados. Uma porta de ligação em cada uma das extremidades dava para as carruagens adjacentes.
Jericho lançou-se em direcção à parte da frente do comboio, olhando de relance para todos os compartimentos por que passava. Aqui iam dois marinheiros a jogar cartas, ali um jovem casal abraçado, acolá uma família (mãe, pai, filho e filha) partilhando sanduíches e um cantil de chá. A mãe dava de mamar a um bebé e virou-se para o outro lado, envergonhada, quando o viu a olhar.
Abriu a porta que dava para a carruagem seguinte e entrou na terra de ninguém. O chão movia-se e inclinava-se por baixo dos seus pés qual passadiço num parque de diversões. Tropeçou e bateu com o joelho. Conseguia ver os acoplamentos a baterem uns nos outros
através de uma fenda de três centímetros e, por baixo deles, o chão impetuoso. Entrou na outra carruagem a tempo de ver a tremenda cara de poucos amigos do guarda a emergir de um compartimento. Jericho enfiou-se inteligentemente na casa-de-banho e fechou-se à chave. Por momentos, pensou que a estava a partilhar com algum vagabundo ou com algum alcoólico, mas depois percebeu que era ele; a cara amarelada, os olhos mortiços e febris, o cabelo desgrenhado, a barba de dois dias. Era o seu reflexo. A retrete estava obstruída e tresandava. Um pedaço de papel sujo e encharcado saía da sanita e enrolava-se-lhe à volta dos pés como uma ligadura desenrolada.
— Bilhete, por favor! — Vociferou o guarda. — Passe o bilhete por baixo da porta, por favor.
— Está no meu compartimento.
— Ai, está? — A maçaneta chocalhou. — Então, é melhor vir mostrar-mo.
— Não me estou a sentir lá muito bem. — (O que era verdade) — Deixei-o lá para que o pudesse ver. — Encostou a testa ardente ao espelho frio. — Dê-me só cinco minutos.
O guarda resmungou. — Eu já cá volto. —Jericho ouviu o ruído de rodas quando a porta de ligação se abriu e depois um estrondo, quando se fechou. Esperou alguns segundos e abriu a fechadura.
Não havia sinal de Puck nesta carruagem, nem na seguinte e, quando entrou na terceira sentiu o comboio a diminuir de velocidade. Desceu o corredor.
Dois compartimentos cheios de soldados, seis em cada um, mal-humorados, com as espingardas amontoadas aos pés.
Depois um compartimento vazio.
Depois Puck.
Estava sentado com as costas voltadas para a locomotiva, inclinado para a frente; o velho Puck de sempre, bem-parecido, intenso, com os cotovelos apoiados nos joelhos, a conversar com alguém que Jericho não conseguia ver.
Era a Claire, pensou Jericho. Tinha de ser a Claire. Só podia ser a Claire. Ia levá-la com ele.
Virou costas ao compartimento e andou para trás discretamente, fingindo olhar pela janela imunda. Os seus olhos vislumbraram uma cidade que se aproximava — arbustos, vagões de mercadorias, armazéns — e, depois, uma plataforma anónima com um relógio parado nas dez e doze e cartazes gastos com raparigas bonitas e joviais publicitando férias, há muito terminadas, em Bournemouth e Clacton-on-Sea.
O comboio rastejou mais alguns metros, parando repentinamente em frente ao bar da estação.
— Northampton! — gritou uma voz masculina. — Estação de Northampton!
E, se fosse a Claire, o que havia ele de fazer?
Mas não era ela. Olhou e viu um homem, um jovem; asseado, moreno, bronzeado, aquilino: em todos os aspectos, estrangeiro. Viu-o apenas de relance pois estava já de pé soltando a mão de Puck depois de a apertar entre as suas mãos. O jovem sorriu (tinha uns dentes muito brancos) e acenou — tinha-se efectuado alguma transacção — e depois saiu do compartimento e encaminhou-se rapidamente para a plataforma, ombros aguçados passando por entre a multidão. Puck observou-o por um momento, depois fechou a porta e voltou a sentar-se no seu lugar, escondido.
Fossem quais fossem os planos de fuga de Puck, parecia não incluírem Claire Romilly.
Jericho desviou o olhar.
De repente, descobriu o que deveria ter acontecido. Puck tinha ido de bicicleta ao chalé no sábado à noite para recuperar os criptogramas e, em vez disso, encontrou Jericho. Puck voltou lá mais tarde e verificou que os criptogramas tinham desaparecido e pensou, naturalmente, que Jericho os tinha e ia fazer o que qualquer leal servidor do estado faria: ia a correr às autoridades e entregar Claire.
Voltou a olhar de relance para o compartimento. Puck devia ter acendido um cigarro. Pairavam no ar nuvens de fumo azulado da cor do aço.
Mas tu não podias permitir que isso acontecesse, pois não, porque ela era a única ligação entre ti e os papéis roubados? E precisavas de tempo para planeares a fuga com o teu amigo estrangeiro.
Então, o que foi que lhe fizeste?
Um apito. Um arranque frenético entre baforadas de vapor. A
plataforma estremeceu e começou a deslizar. Jericho mal reparou nisso, inconsciente de tudo menos da soma inevitável dos seus cálculos.
O que aconteceu a seguir foi muito rápido e, se alguma vez houve uma única explicação coerente para os acontecimentos, deveu-se a uma combinação de factores: a amnésia causada pela violência, a morte de dois dos participantes, a máquina burocrática do Regulamento dos Segredos Oficiais.
Mas o que aconteceu foi mais ou menos isto:
Cerca de três quilómetros para norte da estação de Northampton, perto da aldeia de Kingsthorpe, uma série de pontos ligavam a linha principal da costa oeste à linha de Rugby. Com cinco minutos de antecedência, o comboio foi desviado do itinerário previsto, em direcção a ocidente e, logo a seguir, um sinal vermelho avisou o maquinista de que a linha estava obstruída.
Assim, o comboio estava já a reduzir a velocidade, apesar de Jericho não ter dado por isso, quando ele abriu a porta do compartimento de Puck. Abriu-se muito facilmente, só com a pressão do dedo. As camadas de fumo ondulavam e eram expelidas com violência.
Puck estava nesse preciso momento a apagar o cigarro (mais tarde descobriu-se que o cinzeiro continha cinco pontas) e a baixar a janela, presumivelmente por se ter apercebido da diminuição de velocidade e, talvez, do desvio e, desconfiado, queria ver o que se passava. Ouviu a porta por detrás dele e voltou-se: A sua face, de um momento para o outro, transformou-se numa caveira. A pele contraiu-se e ficou tensa como uma máscara. Era já um homem morto e sabia-o. Apenas os olhos tinham vida, brilhando por debaixo da testa alta; moveram-se de Jericho para o corredor, para a janela e para Jericho novamente. Era visível o esforço frenético que ambos faziam, numa louca e desesperada tentativa de calcularem probabilidades, ângulos, trajectórias.
— O que foi que lhe fizeste? — perguntou Jericho. Puck tinha a Smith and Wesson roubada na mão, com a patilha de segurança destravada. Os seus olhos percorreram a mesma trajectória:
Jericho, corredor, janela, depois Jericho outra vez e finalmente a janela. Deitou a cabeça para trás, mantendo a pistola segura com o braço esticado, e tentou ver os carris.
— Porque estamos a parar?
— O que foi que lhe fizeste?
Puck fez-lhe sinal com a arma para que se afastasse, mas Jericho já não se importava com o que poderia acontecer. Deu um passo em frente.
Puck começou a dizer algo como «Por favor não me obrigues» e, depois, ironia das ironias, a porta abriu-se e o guarda entrou à procura do bilhete de Jericho.
E assim ficaram durante um longo momento — este curioso trio; o guarda com a cara enorme e bonacheirona, enrugada pela surpresa; o traidor com a pistola na mão; e o criptanalista entre os dois. Depois, muitas coisas aconteceram mais ou menos ao mesmo tempo. O guarda disse: «Dê cá isso», e avançou para Puck. A pistola disparou. O estrondo parecia um murro. O guarda emitiu um «U-uh?» surpreendido e olhou para o estômago, como se tivesse uma pontada devido a uma indigestão. As rodas do comboio bloquearam-se, chiaram e, de repente, estavam todos no chão.
Talvez tenha sido Jericho o primeiro a levantar-se. Lembrava-se de ter mesmo chegado a ajudar Puck a levantar-se, de o puxar de debaixo do guarda, que fazia um horrendo ruído de lamentação e deitava sangue por todo o lado: pela boca e pelo nariz, pela frente do uniforme, até pelas pernas das calças.
Jericho ajoelhou-se por cima dele e disse, de forma algo fátua, porque nunca tinha visto ninguém ferido: — Ele precisa de um médico. — Houve movimento no corredor. Voltou-se e viu que Puck tinha a porta aberta e a Browning apontada para ele. Estava a segurar o pulso da mão que disparara a arma e a tremer, como se o tivesse deslocado. Jericho fechou os olhos à espera da bala e Puck disse (e disto Jericho estava certo, porque proferiu estas palavras deliberadamente no seu inglês perfeito): — Matei-a, Thomas. Tenho tanta pena.
E, depois desapareceu.
Nesta altura eram sete e um quarto — 7.17, segundo o relatório oficial — e o sol já ia alto. Jericho estava à entrada da carruagem e conseguia ouvir os melros a cantar num matagal próximo e uma cotovia por cima dos campos. As portas batiam por todo o comboio, abrindo-se para deixarem passar a luz do sol, e as pessoas saltavam para fora. A locomotiva escoava vapor e, por trás dela, um grupo de soldados descia o ligeiro aterro, comandado (Jericho verificou com surpresa) por Wigram. Mais soldados saíam do próprio comboio, à direita de Jericho. Puck estava a apenas cerca de vinte metros. Jericho saltou para cima das pedras cinzentas da linha e largou a correr atrás dele.
Alguém gritou muito alto quase por detrás dele: — Sai da frente, idiota de merda! — Conselho sensato que Jericho ignorou.
Não podia acabar assim, não com tanta coisa ainda por saber. Dava tudo por tudo. As pernas pesavam-lhe. Mas Puck também não se conseguia distanciar. Atravessava um prado, a coxear, arrastando a perna esquerda que a autópsia revelaria mais tarde ter sofrido uma fractura devido à queda no compartimento ou ao salto do comboio para o chão, nunca se chegaria a saber, mas cada passo deve ter sido para ele uma agonia. Um pequeno rebanho observava-o, mastigando, como espectadores numa corrida.
A relva tinha um cheiro adocicado, as sebes estavam em flor e Jericho encontrava-se já muito perto dele, quando Puck se voltou e disparou. Não podia ter feito pontaria para Jericho; a bala passou longe de tudo. Era apenas um gesto de adeus. Os seus olhos já estavam mortos. Sem visão, vazios. Ouviu-se um estrondo, em resposta, vindo do comboio. Passaram abelhas diante deles, a zumbir, naquela manhã de Primavera.
Cinco balas acertaram em Puck e duas em Jericho. Uma vez mais, a ordem é irrelevante. Jericho sentiu-se como se tivesse sido atropelado por trás por um carro; não sentia dores, mas era terrivelmente desagradável. O impacto obrigou-o a dobrar-se e arremessou-o para a frente. No entanto, continuou a caminhar aos tropeções e viu penachos de sangue a saírem das costas de Puck, um, dois, três e, depois, a cabeça de Puck explodiu num borrão vermelho, quando um segundo tiro — irresistível desta vez — fez Jericho rodopiar para a direita descrevendo um elegante arco. O céu estava húmido e o seu último pensamento foi que era uma pena, era uma pena, uma pena que a chuva viesse estragar uma manhã tão bonita.
TEXTO BASE: O texto original, inteligível, como era antes de ser codificado, depois de revelado por uma descodificação ou análise de criptogramas bem sucedida.
Léxico da Criptografia («Altamente Secreto», Bletchley Park, 1943)
As macieiras soltavam as suas flores ao vento, como lágrimas, que esvoaçavam sobre o cemitério e se amontoavam como flocos de neve à volta dos túmulos de ardósia e de mármore.
Hester Wallace encostou a bicicleta ao muro de tijolo e observou a cena. Bom, a vida era assim, pensou, não havia dúvida; era a natureza a fazer das suas, indiferente. As notas do órgão ribombavam do interior da igreja. «Oh, Deus, Que Sempre Nos Guiaste...». Resmungou para consigo enquanto calçava as luvas, escondia alguns cabelos rebeldes por debaixo do chapéu, endireitava os ombros e caminhava pelo chão de lajes em direcção à entrada.
A verdade era que, se não fosse ela, não teria havido serviço fúnebre. Fora ela que convencera o vigário a abrir as portas da igreja de St. Mary, em Bletchley, embora tivesse de concordar que «a falecida», como o vigário colocara a questão, não era crente. Fora ela que contratara o organista e lhe dissera o que deveria tocar (Prelúdio e Fuga, de Bach, em Mi bemol, para começar, o «Sanctus» do Requiem de Fauré, para acabar). Fora ela quem escolhera os hinos e as leituras e mandara imprimir os cartões do serviço fúnebre, fora ela quem decorara a nave com flores primaveris, fora ela quem escrevera os avisos e os distribuíra por Bletchley Park («terá lugar um pequeno serviço religioso na sexta-feira, 9 de Abril às dez horas...»), fora ela quem acordara na noite anterior, preocupada com a possibilidade de ninguém se dar ao trabalho de aparecer.
Mas apareceram.
O tenente Kramer apareceu com o seu uniforme da Marinha americana, o velho Dr. Weitzman veio do Anexo 3, e vieram também Miss Monk e as raparigas da Sala dos Cadernos Alemães, os oficiais do Arquivo Aéreo e do Arquivo do Exército, vários jovens com olhos de carneiro mal morto e gravatas pretas e muitos outros cujos nomes Hester nunca chegou a saber, mas cujas vidas haviam sido claramente afectadas pelos seis meses da presença em Bietchley Parke de Claire Alexandra Romilly, nascida a 21.12.22 e falecida (segundo estimativa policial) a 14.3.43: Que descanse em Paz.
Hester sentou-se no primeiro banco com a Bíblia marcada na passagem que pretendia ler (I Coríntias 15-li-Iv: «Olhai e mostro-vos um mistério...») e, sempre que entrava alguém, ela voltava-se para ver se era ele, mas olhava de novo para a frente, desiludida.
— Acho que devíamos mesmo começar — disse o vigário, exasperado, a olhar para o relógio. — Tenho um baptizado daqui a meia hora.
— Mais um minuto, senhor vigário, por gentileza. A paciência é uma virtude cristã.
O aroma dos lírios de Hester toldava a nave; lírios brancos, virginais, com hastes verdes e carnudas, tulipas brancas, anémonas azuis...
Já não via Tom Jericho há imenso tempo. Tanto quanto sabia, até podia estar morto. Tinha apenas a palavra de Wigram de que estava vivo, e Wigram nem sequer lhe disse em que hospital, quanto mais deixá-la visitá-lo. Contudo, concordara em transmitir-lhe o convite para o serviço fúnebre e no dia seguinte comunicara-lhe que a resposta era positiva, Jericho adoraria ir. — Mas o pobrezinho ainda está muito doente, por isso aconselho-a a não ter muitas esperanças. — Em breve, Jericho iria para longe para um longo descanso. Hester não se importara com a forma como ele proferira estas palavras, como se Jericho fosse propriedade do estado.
Às dez e cinco o organista já não tinha mais músicas para tocar e seguiu-se um embaraçoso intervalo de pés a arrastar e gargantas a tossicar. Uma das raparigas da Sala dos Cadernos Alemães começou a dar risadinhas até que Miss Monk lhe disse em voz alta para se calar.
— Hino número 477 — disse o vigário, olhando de relance para Hester. — «O dia que nos deste, Senhor, terminou.»
A assembleia levantou-se. O organista tocou um trémulo Ré. Começaram a cantar. Hester conseguia ouvir a bonita voz de tenor de Weitzman vinda de algures lá para trás. Só quando chegaram ao quinto verso («Assim seja, Senhor; o Teu trono nunca será derrotado/tal como os arrogantes impérios terrenos») é que Hester ouviu a porta a arrastar por detrás deles. Voltou-se, tal como muitos dos outros, e, por debaixo do arco de pedra cinzenta, magro e fraco, apoiado no braço de Wigram, mas vivo, graças a Deus — vivo, sem qualquer dúvida — lá estava Jericho.
Enquanto se mantinha de pé na parte de trás da igreja, com o sobretudo vestido, com os furos das balas acabados de serzir, Jericho desejava várias coisas ao mesmo tempo. Para começar, desejava que Wigram lhe tirasse as malditas mãos de cima, porque aquele homem causava-lhe arrepios. Desejava que não estivessem a tocar precisamente aquele hino, porque o fazia sempre lembrar-se do último dia de aulas. E desejou que não fosse necessário ter vindo. Mas era. Não o poderia ter evitado.
Libertou-se educadamente do braço de Wigram e dirigiu-se, sem ajuda, para o banco mais próximo. Acenou a Weitzman e a Kramer. O hino estava a acabar. Doía-lhe o ombro devido à viagem. «O Teu reino resiste e cresce para sempre», cantou a assembleia, «Até que as Tuas criaturas possuam a Tua força». Jericho fechou os olhos e inalou o aroma pungente dos lírios.
A primeira bala, a que o atingira como a pancada de um carro, tinha-lhe acertado no quadrante inferior esquerdo das costas, atravessado quatro camadas de músculo, cortado a décima primeira costela e saído pelo flanco. A segunda, a que o fizera rodopiar, tinha-se alojado no ombro direito, desfazendo parte do músculo deltóide, e fora essa bala que tivera de ser extraída através de uma cirurgia. Perdeu imenso sangue. Teve uma infecção.
Ficou isolado, sob vigilância, numa espécie de hospital militar mesmo à saída de Northampton — isolado, presumivelmente por temerem que, caso delirasse, balbuciasse coisas acerca do Enigma; sob vigilância, não fosse ele tentar fugir: uma ideia mirabolante, uma vez que nem sequer sabia onde estava.
O seu sonho — pareceu-lhe durar dias, mas talvez isso fizesse apenas parte do sonho: jamais o saberia — o sonho mostrava-o deitado no fundo do oceano numa areia macia e branca, embalado por uma corrente oscilante e amena. De vez em quando vinha a flutuar até à superfície e era de dia, numa sala de tecto alto onde conseguia vislumbrar árvores através de janelas altas com grades. Outras vezes, flutuava e era de noite, com uma lua amarela e redonda a presidir no céu e alguém curvado sobre ele.
Na primeira manhã em que acordou, pediu para falar com um médico. Queria saber o que tinha acontecido.
O médico apareceu e disse-lhe que sofrera um acidente. Ao que parecia, andava a passear muito perto da zona de tiro do Exército («seu grande palerma») e tinha tido sorte em não ter morrido.
Não, não, protestou Jericho. Não tinha sido nada disso. Tentou levantar-se, mas a dor nas costas fê-lo gritar.
Deram-lhe uma injecção e regressou ao fundo do mar.
Gradualmente, à medida que começava a recuperar, o ritmo da dor que sentia começou a alterar-se. De início, eram nove décimos de dor física para um de psicológica; depois, oito para dois, sete para três e assim, sucessivamente, até que as proporções originais se inverteram e Jericho quase ansiava pela agonia diária de fazer os pensos, como forma de queimar a memória do que acontecera.
Lembrava-se de parte dos acontecimentos, não de tudo. Mas, à mais pequena tentativa de fazer qualquer pergunta, qualquer pedido para falar com alguma autoridade (resumindo, qualquer comportamento que fosse considerado «difícil»), lá vinha a agulha com a sua carga de esquecimento.
Aprendeu a fazer o jogo deles.
Passava o tempo a ler histórias de mistério, sobretudo Agatha Christie, que lhe levaram da biblioteca do hospital; pequenos volumes encarnados, empenados pelo uso, com misteriosas nódoas nas páginas que preferia não estudar muito de perto. A Morte de Lord Edgeware, Parker Pyne Investiga, O Mistério dos Sete Relógios, Crime na Abadia. Lia dois, por vezes três por dia. Tinham também algum Sherlock Holmes e, certa tarde, perdeu-se numas duas horas de êxtase a tentar resolver o criptograma de Os Dançarinos (um sistema de grelha simplificado, concluiu, utilizando imagens invertidas e imagens num espelho) mas não podia verificar se estava correcto pois não o deixavam ter caneta e papel.
Ao fim desta primeira semana, já tinha reunido forças suficientes para dar alguns passos pelo corredor e para ir à casa-de-banho sem ajuda.
Durante todo este tempo, recebeu apenas duas visitas: Logie e Wigram.
Logie deve ter ido visitá-lo no princípio de Abril. Foi ao cair da tarde, havia ainda bastante claridade, com as sombras a começarem a invadir o pequeno quarto; a cama de ferro pintada de branco e riscada; o carrinho com o jarro de água e a bacia de metal; a cadeira. Jericho tinha vestido um pijama muito gasto às riscas azuis; as dobras dos punhos estavam quebradiças. Depois de a enfermeira sair, Logie empoleirou-se apreensivo na beira da cama e disse-lhe que todos lhe desejavam as melhoras.
— Até o Baxter?
— Até o Baxter.
— Até o Skynner?
— Bem, esse não. O Skynner talvez não. Mas, para ser franco, não
o tenho visto muito ultimamente. Tem outras coisas em que pensar.
Logie falou um pouco sobre o que os outros estavam a fazer e depois começou a contar-lhe a história da batalha do comboio naval, que durara quase toda a semana, como Cave vaticinara. Vinte e dois navios mercantes afundados, quando o comboio chegou à área protegida pelos aviões e os submarinos puderam ser rechaçados. 150 000 toneladas de navios aliados destruídas e 160 000 toneladas de carga perdida, incluindo o suprimento para duas semanas de leite em pó, sobre o qual Skynner dissera aquela piada infeliz, lembras-te? Ao que parece, quando o barco se afundou, o mar ficou todo branco. «Diegrõsste Geleitzugschlacht aller Zeiten», chamara-lhe a rádio alemã e, pelo menos uma vez, os estafermos não estavam a mentir. A maior batalha de todos os tempos com um comboio.
— Quantos mortos?
— Cerca de quatrocentos. Na sua maioria americanos.
— Meteram no fundo algum submarino? — murmurou Jericho.
— Apenas um. Ao que supomos.
— E o Tubarão?
— Continua por lá, meu velho. — Bateu no joelho de Jericho por cima da roupa. — Mas sabes, no fim de contas valeu a pena, graças a ti.
As descodificadoras tinham demorado quarenta horas para descobrirem os parâmetros, desde a meia-noite de terça-feira até à tarde de quinta. Mas, no fim-de-semana, a Sala das Grelhas tinha recuperado parcialmente o Caderno de Códigos Meteorológicos (ou, pelo menos, o suficiente para lhes dar uma ajuda) e agora estavam a decifrar o Tubarão seis dias por semana, embora por vezes as cifras chegassem bastante tarde. Mas era o suficiente. Era o suficiente até receberem a primeira descodificadora Cobra, em Junho.
Passou um avião a baixa altitude, um Spitfire, a julgar pelo ruído do motor.
— O Skynner teve de entregar os planos das descodificadoras de quatro rotores aos americanos — disse Logie calmamente, passado algum tempo.
— Ah.
— Bem, i claro — disse Logie cruzando os braços — está tudo disfarçado de cooperação. Mas não enganam ninguém. Pelo menos, a mim não me enganam. De agora em diante, temos de enviar para Washington por teleimpressora uma cópia de todo o tráfego de submarinos do Atlântico assim que o conhecermos, passando a haver duas equipas a trabalhar em consulta amigável. Bla, bla, bla, bla. Toda a bendita merda que tivermos. Mas, no fim, vence a força bruta. É sempre assim. E quando tiverem dez vezes mais descodificadoras do que nós, o que não demorará muito, julgo eu, seis meses no máximo, que hipóteses é que nós temos? Limitar-nos-emos a fazer as intercepções e eles decifram tudo.
— Não nos podemos queixar.
— Não, não. Sei que não podemos. Só que... Bom, nós já vimos melhores dias, tu e eu. — Suspirou e esticou as pernas, olhando para os pés enormes. — Contudo, acho que há um lado bom.
— Qual? — Jericho olhou para ele, percebeu o ele que queria dizer e ambos disseram em simultâneo «O Skynner!», e desataram a rir.
— Está danado — disse Logie, todo contente. — A propósito,
lamento imenso aquilo da tua miúda.
— Bem... —Jericho fez um gesto vago com a mão e estremeceu. Seguiu-se um silêncio incómodo, misericordiosamente quebrado
pela enfermeira que entrou e disse a Logie que acabara a visita. Ele levantou-se, aliviado, e apertou a mão de Jericho. — Vê se te pões bom depressa, meu velho, estás a ouvir? Eu venho visitar-te outra vez em breve.
— Está bem, Guy. Obrigado. Mas foi a última vez que o viu.
Miss Monk aproximou-se do púlpito para efectuar a primeira leitura: «Não digas que a luta não compensa» de Arthur Hugh Clough, poema que ela declamou com grande determinação, fixando intensamente a assembleia de vez em quando, como se a desafiar os presentes a contradizerem-na. Foi uma boa escolha, pensou Jericho. Provocadoramente optimista. A Claire teria gostado:
«E não é apenas nas janelas a oriente,
Quando a luz do dia nelas aparece
E o sol se eleva lenta, lentamente,
Mas, vede, a ocidente, a terra resplandece.»
— Oremos — disse o vigário.
Jericho ajoelhou-se cuidadosamente. Tapou os olhos e moveu os lábios como todos os outros, mas não tinha fé em nada do que dizia. Fé na matemática, sim; fé na lógica, é claro; fé na trajectória das estrelas, sim, talvez. Mas fé num Deus, cristão ou não...?
Ao lado dele, Wigram proferiu um sonoro «Ámen».
As visitas de Wigram foram frequentes e solícitas. Apertava a mão de Jericho sempre da mesma forma peculiar e flácida. Aconchegava-lhe as almofadas, deitava-lhe água no copo, ajeitava-lhe os lençóis. — Têm-no tratado bem? Não precisa de nada? — E Jericho respondia que sim, muito obrigado, estava a ser bem tratado, e Wigram, sem perder o sorriso, dizia excelente, era tudo sempre tão excelente; Jericho tinha um aspecto excelente, tinha sido uma ajuda excelente, e mesmo, certa vez, a paisagem que se via da janela do quarto era excelente, como se tivesse sido ele a criá-la. Oh, sim. Wigram era encantador. Wigram dispensava a graça como os pobres dispensam a sopa.
No princípio, era Jericho quem mais falava, respondendo às perguntas de Wigram. Porque não tinha ele entregue às autoridades os criptogramas que estavam no quarto de Claire? Porque fora ele a Beaumanor? O que tinha ele tirado de lá? Como? Como decifrara as intercepções? O que lhe tinha dito Puck quando saltou do comboio?
Wigram ia-se então embora e, no dia seguinte, ou no outro, voltava e fazia-lhe outras perguntas. Jericho tentou também fazer algumas perguntas, mas Wigram respondia sempre com evasivas. Mais tarde responder-lhe-ia. Mais tarde. Tudo a seu tempo.
E então, certa tarde, entrou mais sorridente do que era habitual e anunciou que terminara o inquérito, exibindo uma pequena teia de rugas ao canto dos olhos azuis enquanto sorria para Jericho. Tinha as pestanas espessas e amareladas, como as das vacas.
— Assim, meu caro, se não estiver muito cansado, acho que lhe posso contar a história.
— Era uma vez — disse Wigram, instalando-se aos pés da cama — um homem chamado Adam Pukowski cuja mãe era inglesa e cujo pai era polaco, que viveu em Inglaterra até aos dez anos e que, quando os pais se divorciaram, foi viver com o pai para Cracóvia. O pai era professor de matemática e o filho, que dava mostras de aptidões semelhantes, conseguiu entrar para o Serviço Polaco de Cifras em Pyry, a sul de Varsóvia. A guerra chegou. O pai foi alistado com o posto de major para voltar a juntar-se ao Exército polaco. Seguiu-se a derrota. Metade do país estava ocupada pelos Alemães, a outra metade pela União Soviética. O pai desapareceu. O filho fugiu para França e tornou-se um dos quinze criptanalistas empregados no centro de decifração francês em Gretz-Armainvillers. Nova derrota. O filho fugiu via Vichy, de França para Portugal, que se mantinha neutro, onde conheceu Rogério Raposo, membro do serviço diplomático português e possuidor de uma personalidade extremamente trapaceira.
— O homem do comboio — murmurou Jericho.
— Exactamente. — Wigram pareceu ficar irritado por ser interrompido: afinal de contas, este era o seu momento de glória. — O homem do comboio.
De Portugal, Pukowski veio para Inglaterra.
O ano de mil novecentos e quarenta passou sem notícias do pai de Pukowski ou, para dizer a verdade, de qualquer outro dos dez mil oficiais polacos desaparecidos. Em 1941, depois de a Alemanha ter invadido a Rússia, Estaline tornou-se inesperadamente nosso aliado e foram feitas as necessárias diligências para se encontrarem os polacos desaparecidos. Em resposta foram dadas todas as garantias de que esses oficiais não se encontravam prisioneiros dos Soviéticos; os que tinham estado nessas condições haviam sido postos em liberdade há muito.
— Seja como for — disse Wigram — para encurtar a história, parece que no fim do ano passado começaram a circular rumores entre os polacos exilados em Londres de que oficiais tinham sido fuzilados e enterrados numa floresta perto de Smolensk. Está aqui muito calor ou é de mim? — Levantou-se e tentou abrir a janela, mas não conseguiu e voltou a empoleirar-se aos pés da cama. Sorriu. — Diga-me uma coisa. Foi você que apresentou o Pukowski à Claire?
Jericho abanou a cabeça.
— Ah, bom. — suspirou Wigram — Mas também não tem importância. Há muito da história que nos escapa. É inevitável. Não sabemos como foi que se conheceram, nem quando, ou por que razão ela concordou em ajudá-lo. Ou mesmo o que ela lhe mostrou exactamente. Mas acho que podemos imaginar o que deve ter acontecido. Ela fez uma cópia das mensagens enviadas de Smolensk e escondeu-as nas meias ou em qualquer outro sítio. Depois, escondeu-as por baixo do soalho do chalé até o namorado ir lá buscá-las. Isto pode ter durado uma ou duas semanas. Até que Pukowski descobriu que um dos oficiais mortos era o seu próprio pai. E, no dia seguinte, Claire não tinha nada para lhe levar senão as intercepções por descodificar, porque alguém — Wigram abanou a cabeça, pensativo — alguém muito, mesmo muito importante, como entretanto descobri, decidira que, pura e simplesmente, os Ingleses não queriam saber disso.
De repente esticou-se e pegou numa das histórias de mistério abandonadas por Jericho, folheou-a, sorriu e voltou a colocá-la onde estava.
— Sabe, Tom — disse ele pensativamente — nunca houve nada como Bletchley Park na história da humanidade. Nunca houve nenhuma altura em que um dos lados soubesse tanto acerca do inimigo. Na verdade, por vezes é possível saber-se demais, acho eu. Quando Coventry foi bombardeada, lembra-se? O nosso querido primeiro-ministro descobriu através do Enigma o que ia acontecer cerca de quatro horas antes. Sabe o que ele fez?
Jericho voltou a abanar a cabeça.
— Disse ao seu pessoal que Londres ia ser atacada e que deviam ir todos para os abrigos, mas que ele ia lá para cima observar. E, então, foi para o telhado do Ministério do Ar e passou uma hora ao frio à espera de um ataque aéreo que sabia que ia acontecer noutro sítio qualquer. A fazer o seu papel, percebe? Para proteger o segredo do Enigma. Ou então, outro exemplo: os tanques submarinos. Graças ao Tubarão, sabemos onde vão estar, e quando, e se os afundássemos, talvez salvássemos milhares de vidas de Aliados; a curto prazo. Mas púnhamos o Enigma em perigo, porque, se o fizéssemos, Dõnitz ia descobrir que lhes estávamos a ler os códigos. Percebe o que eu quero dizer? O Estaline matou dez mil polacos? E depois? Quero dizer... por favor... o Tio Zé é um herói nacional. Está a vencer esta maldita guerra por nós. É o terceiro homem mais popular do país, depois do Churchill e do Rei. Como é aquele provérbio hebreu? «Inimigo do meu inimigo, meu amigo é?» Bem, o Estaline é o maior inimigo de Hitler, por isso, no que nos diz respeito, para já ele é um nosso grande amigo. O massacre de Katyn? O maldito massacre de Katyn? Muito obrigado, mas o melhor é ficarmos calados.
— Acho que o Puck não pensava bem assim.
— Pois não, meu caro, acho que não. Quer que lhe diga uma coisa? Acho que ele nos devia detestar. Afinal de contas, se não tivessem sido os Polacos, talvez não tivéssemos decifrado o Enigma. Mas quem ele detestava mesmo eram os Russos. E estava pronto a
fazer qualquer coisa para se vingar. Ainda que isso significasse ajudar os Alemães.
— «Inimigo do meu inimigo, meu amigo é» — murmurou Jericho, mas Wigram não o estava a ouvir.
— E como podia ele ajudar os Alemães? Avisando-os de que o Enigma não era seguro. E como é que o podia fazer? — Wigram sorriu e abriu as mãos. — Com a ajuda do seu velho amigo de 1940, o tal Rogério Raposo, recentemente transferido de Lisboa e colocado como correio na missão diplomática portuguesa em Londres. Que me diz a um pouco de chá?
Aos entes queridos que partiram Ergueremos nossos hinos numa prece; Em nome do amor que em toda a parte Pelos teus filhos vela e enternece...
— O Senhor Raposo — disse Wigram, beberricando o chá depois de a enfermeira ter saído — O Senhor Raposo, de momento residente na Prisão de Sua Majestade, em Wandsworth, confessou tudo.
No dia 6 de Março, Pukowski foi visitar o Raposo a Londres, deu-lhe um envelope selado e disse-lhe que poderia ganhar uma boa maquia se o entregasse às pessoas certas.
No dia seguinte, o Raposo seguiu no voo da British Imperial Airways para Lisboa, levando consigo o envelope, que passou a um contacto que tinha entre o pessoal afecto ao adido da Marinha alemã.
Dois dias depois, o serviço dos submarinos alterou o Caderno dos Códigos Meteorológicos e teve início uma revisão geral da segurança de códigos — Luftwaffe, Afrika Korps... ah, os Alemães estavam interessados, claro que estavam. Mas não queriam abandonar o que os seus peritos continuavam a insistir ser o sistema de códigos mais seguro alguma vez imaginado. Não por causa de uma simples carta. Suspeitavam que se tratasse de um truque. Queriam provas. Queriam este informador misterioso em Berlim, em pessoa.
— É a nossa melhor suposição.
No dia 14 de Março, dois dias antes de começar a batalha com o comboio naval, o Raposo fez a sua viagem semanal seguinte até Lisboa e regressou com instruções específicas para Pukowski. Um submarino estaria à espera dele na costa noroeste da Irlanda na noite de 18.
— E era sobre isso que iam a falar no comboio — disse Jericho.
— E era sobre isso que iam a falar no comboio. Exactamente. O nosso agente Puck estava a receber a mensagem, por assim dizer. E quer que lhe conte uma coisa mesmo assustadora? — Wigram bebeu mais um golinho de chá, com o dedo mínimo delicadamente arqueado, olhando para Jericho por cima do rebordo da chávena. — Se não fosse o senhor, ele tinha mesmo conseguido escapar.
— Mas a Claire nunca teria alinhado nisso — protestou Jericho.
— Passar umas intercepções, sim. Na brincadeira. Por amor, até. Mas não era uma traidora.
— Meu Deus, não — Wigram pareceu chocado. — Não, estou certo de que o Pukowski nunca lhe disse o que planeava fazer. Ponha-se no lugar dele. Ela era o elo fraco. Poderia tê-lo entregado às autoridades em qualquer momento. Então, imagine como ele não se deve ter sentido quando o viu a regressar de Cambridge naquela sexta-feira à noite.
Jericho lembrou-se do olhar aterrorizado de Puck, daquela sua tentativa desesperada de forçar um sorriso. Já tinha percebido o que deveria ter acontecido: Puck a deixar uma mensagem no chalé dizendo que precisava de falar com ela, Claire saindo a correr para Bletchley Park às quatro da manhã, dique, dique, dique, a bater com os saltos altos na escuridão. E disse em voz baixa, quase de si para si.
— Eu fui a sua certidão de óbito.
— Acho que foi. Ele devia saber que ia tentar entrar em contacto com ela. E depois, na noite seguinte, quando foi ao chalé para se livrar das provas, dos criptogramas roubados e o encontrou... Bem...
Jericho recostou-se mais nas almofadas e olhou para o tecto enquanto Wigram contava o resto da história. A forma como, na noite em que começara a batalha com o comboio, a polícia o tinha chamado e dito que tinham encontrado um saco com roupas de mulher. A forma como tentara encontrar Jericho, mas Jericho tinha desaparecido, pelo que deitara a mão a Hester Wallace no seu lugar, levando-a até ao lago. A forma como se tornara óbvio o que
acontecera, que Claire tinha sido ferida na cabeça e estrangulada, e o corpo levado para o lago e atirado borda fora.
— Importa-se que eu fume? — Acendeu o cigarro sem esperar pela resposta, utilizando o prato como cinzeiro. Observou a ponta do cigarro por um momento. — Onde é que eu ia?
Jericho não olhou para ele. — Na noite da batalha com o comboio.
Ah, sim. Bom, Hester, de início, recusara-se a falar, mas não há nada como um bom choque para soltar a língua e, finalmente, ela contou-lhe tudo, e foi quando Wigram se apercebeu de que Jericho não era um traidor; na verdade, apercebeu-se de que, se Jericho tinha decifrado os criptogramas, estava mais perto do que ele de descobrir o traidor.
Assim, duplicou os seus homens. E esperou.
Eram cerca das cinco da manhã.
Primeiro, Jericho foi visto a descer a Church Green Road em direcção à cidade. Depois viram-no entrar em Alma Terrace. Depois foi identificado a entrar para o comboio.
Wigram tinha homens no comboio.
— Depois disso, vocês os três não passavam de moscas dentro de um frasco de compota.
Todos os passageiros que desembarcaram em Northampton foram mandados parar e interrogados, resolvendo-se assim o caso do Raposo. Nessa altura, Wigram tratara de fazer que o comboio fosse desviado para um troço da linha onde ele estava à espera para proceder a uma busca com calma.
Os seus homens tinham ordens para não dispararem a menos que disparassem contra eles primeiro. Mas não se iam correr riscos. Não, com tanta coisa em jogo.
E então Pukowski utilizou a pistola e eles responderam.
— Você meteu-se à frente. Desculpe lá. — Contudo, como tinha a certeza de que Jericho havia de concordar, a preservação do Enigma fora o principal objectivo. E isso tinha sido conseguido. O submarino que fora enviado para recolher Puck fora interceptado e afundado na costa de Donegal, o que era um bónus duplo, pois os Alemães devem ter ficado a pensar que se tratava de uma armadilha desde o início. De qualquer forma, não abandonaram o Enigma.
— E a Claire? — Jericho continuava a fitar o tecto. — Já a encontrou?
— Dê-nos tempo, meu caro. Está submersa por baixo de pelo menos dezoito metros de água, algures no meio de um lago com duzentos e cinquenta metros de comprimento. Pode levar o seu tempo.
— E o Raposo?
— O Gabinete do secretário do ministro dos Negócios Estrangeiros falou com o embaixador português nessa manhã mesmo. Dadas as circunstâncias, ele concordou renunciar à imunidade diplomática. Por volta do meio-dia, tínhamos desmontado o apartamento do Raposo. Um sítio lúgubre do lado errado de Gloucester Road. Coitado do tipo. Estava metido nisto só por causa do dinheiro. Encontrámos dois mil dólares que os Alemães lhe deram enfiados numa caixa de sapatos em cima do guarda-fatos. Duas notas! Patético.
— O que lhe vai acontecer?
— Vai ser enforcado — disse Wigram, prazenteiro. — Mas vamos esquecê-lo. Já passou à história. O que importa é, o que vamos nós fazer consigo?
Depois de Wigram ter saído, Jericho ficou acordado durante muito tempo, tentando decidir que partes da história de Wigram tinham sido verdade.
— Olhai, mostro-vos um mistério — disse Hester.
— Não dormiremos, mas todos nos transformaremos,
— Num instante, num piscar de olhos, no último trunfo: pois o clarim soará, os mortos tornar-se-ão incorruptíveis e todos nos transformaremos.
— Pois o corrupto deve assumir a incorruptibilidade, e o mortal a imortalidade.
— Pois quando o corrupto assumir a incorruptibilidade e o mortal a imortalidade, então realizar-se-á o que está escrito, a Morte será vencida.
— Oh, morte, onde está o teu ferrão? Oh, sepultura, onde está a tua vitória?
Ela fechou a Bíblia devagar e fitou a assembleia com um olhar seco e uniforme. Conseguia ver Jericho no último banco, lívido, olhando em frente.
— Graças a Deus.
Ela encontrou-o à espera à porta da igreja, com as flores brancas a caírem-lhe em cima como confetis. Todos os outros já tinham ido embora. Estava com a cara virada para o sol e, pela forma como sorvia o calor, Hester adivinhou que já não o deveria ver há muito tempo. Quando a ouviu a aproximar-se, voltou-se e sorriu, e ela esperou que o seu próprio sorriso conseguisse ocultar o choque que sentiu. Ele tinha as faces encovadas e a pele da cor da cera das velas da igreja. A gola da camisa pendia larga no pescoço esquelético.
— Olá, Hester.
— Olá, Tom. — Hesitou, depois estendeu-lhe a mão sem tirar a luva.
— Um serviço excelente — disse Wigram. — Absolutamente excelente. Toda a gente disse o mesmo, não disse Tom?
— Toda a gente. É verdade. — Jericho fechou os olhos por um segundo e ela percebeu imediatamente o que ele queria dizer: que lamentava que Wigram estivesse presente, mas que não podia fazer nada. Largou-lhe a mão. — Não queria ir-me embora sem saber como você estava — disse ele.
— Ah, estou bem — disse ela, com uma jovialidade que não sentia. — Estou a aguentar-me.
— Já está a trabalhar?
— Já, já. Continuo a preencher tabelas.
— E continua no chalé?
— Para já. Mas acho que me vou mudar assim que arranjar outro lugar.
— Muitos fantasmas?
— Mais ou menos.
De repente, ela deu-se conta da banalidade da conversa, mas não se lembrava de nada melhor para dizer.
— O Leveret está à espera — disse Wigram. Com o carro. Para nos levar à estação. — Hester conseguia ver a interminável capota preta através do portão. O condutor estava encostado às grades, a observá-los enquanto rumava um cigarro.
— Vai apanhar o comboio, Mr. Wigram? — perguntou Hester.
— Eu não — respondeu ele, como se a ideia fosse ofensiva. — O Tom é que vai. Não vai, Tom?
— Vou regressar a Cambridge — explicou Jericho. — Para descansar durante alguns meses.
— Realmente temos mesmo de ir — prosseguiu Wigram, olhando para o relógio. — Nunca se sabe, há sempre a possibilidade de o comboio chegar a horas.
— Dá-nos licença por um minuto, Mr. Wigram? — disse Tom, irritado. Sem esperar pela resposta, conduziu Hester para longe de Wigram, em direcção à igreja. — Este maldito homem não me deixa em paz nem um minuto — sussurrou. — Olhe, se não se importa, dá-me um beijo?
— O quê? — Ela não tinha a certeza de ter ouvido bem.
— Um beijo. Depressa. Por favor.
— Tudo bem. Não custa nada.
Hester tirou o chapéu, aproximou-se e roçou-lhe a face magra com os lábios. Jericho segurou-lhe os ombros e disse-lhe suavemente ao ouvido: — Convidou o pai da Claire para o serviço?
— Convidei. — Ele tinha enlouquecido, pensou. O choque afectara-lhe o cérebro. — Claro que convidei.
— E o que aconteceu?
— Não respondeu.
— Eu sabia — sussurrou ele. Ela sentiu-o apertá-la com mais força.
— Sabia o quê?
— Ela não está morta...
— Que comovente — disse Wigram em voz alta, aparecendo por detrás deles — e eu detesto interromper, mas vai perder o comboio, Tom Jericho.
Jericho soltou-a e deu um passo atrás. — Cuide bem de si — disse..
Ela, por um momento, não conseguiu falar. — Você também.
— Eu escrevo.
— Sim. Por favor. Mas escreva mesmo.
Wigram puxou-o pelo braço. Jericho lançou-lhe um último sorriso e, encolhendo os ombros, deixou-se conduzir.
Hester ficou a vê-lo caminhar com dificuldade pelo carreiro acima e sair o portão. Quando Leveret abriu a porta do carro, Jericho voltou-se e acenou-lhe. Hester ergueu a mão em resposta, viu-o entrar desajeitadamente para o banco de trás do carro, e depois, a porta fechar-se com estrondo. Deixou cair a mão.
Ficou ali durante vários minutos, muito depois do enorme carro ter arrancado, voltou a pôr o chapéu na cabeça e regressou à igreja.
— Quase me esquecia — disse Wigram, enquanto o carro virava ao fundo da ladeira. — Comprei-lhe um jornal. Para a viagem.
Abriu a pasta e tirou de lá um The Times, abrindo-o na terceira página e passando-o a Jericho. A notícia consistia em apenas cinco parágrafos ladeados por uma fotografia de um autocarro londrino e um pedido da Associação Religiosa de Auxílio a Pobreza:
Oficiais Polacos Desaparecidos
Declarações alemãs
O Ministro polaco da Defesa Nacional, o Tenente-coronel Marjan Kukiel, fez uma declaração sobre os cerca de 8000 oficiais polacos desaparecidos que haviam sido libertados dos campos prisionais soviéticos na Primavera de 1940. Dadas as declarações alemãs de que foram encontrados os corpos de milhares de oficiais polacos assassinados pelos russos perto de Smolensk, o Governo polaco decidiu pedir à Cruz Vermelha Internacional para investigar o assunto...
— Eu gosto particularmente daquela linha — disse Wigram — não concorda?: «libertados dos campos prisionais soviéticos»?
— É uma maneira de o dizer, acho eu. — Jericho tentou devolver-lhe o jornal, mas Wigram não o aceitou.
— Fique com ele. É uma lembrança.
— Obrigado. — Jericho dobrou o jornal e meteu-o no bolso. Depois, olhou firmemente pela janela para evitar qualquer diálogo posterior, já estava farto de Wigram e das suas mentiras. Quando passavam por baixo da ponte enegrecida do caminho-de-ferro pela última vez, tocou na face subrepticiamente e, de repente, desejou ter trazido Hester com ele para este último acto.
Na estação, Wigram insistiu em acompanhá-lo até ao interior do comboio, embora a bagagem de Jericho já tivesse sido despachada no princípio da semana e ele não levasse nada com ele. E Jericho concordou em apoiar-se à mão de Wigram enquanto atravessaram a passagem aérea e percorriam o comboio de Cambridge à procura de um lugar vazio. Jericho certificou-se de que seria ele e não Wigram a escolher o compartimento.
— Cá estamos, meu caro Tom — disse Wigram com uma tristeza simulada. — É aqui que nos despedimos. — Novamente aquele aperto de mão peculiar, o dedo mínimo encostado à palma da mão. Últimos pormenores: Jericho tinha o certificado de viagem? Sim. E sabia que Kite o ia esperar à estação de Cambridge para o escoltar de Táxi até ao colégio? Sim. E sabia que iria todas as manhãs ter com ele uma enfermeira do Hospital de Addenbrooke, para lhe mudar o penso do ombro? Sim, sim, sim.
— Adeus, Mr. Wigram.
Encostou as costas doridas a um banco de costas voltadas para a locomotiva. Iam três outros passageiros no compartimento: um homem gordo com uma gabardina imunda castanho-amarelada, uma senhora de idade com uma estola de raposa prateada e uma rapariga de ar sonhador a ler uma revista. Pareciam todos suficientemente inocentes mas, como ter a certeza? Wigram deu uma pancadinha na janela e Jericho esforçou-se para se levantar e abriu-a. Quando conseguiu abri-la, o apito tinha soado e o comboio começava a avançar. Wigram caminhava ao lado.
— Quando estiver outra vez bom conversamos, está bem? Sabe como contactar-me se acontecer alguma coisa.
— Claro que sei — disse Jericho e fechou a janela com estrondo. Mas Wigram continuava a acompanhar o compartimento, sorrindo, acenando, correndo. Tornara-se um desafio para ele, uma brincadeira terrível. Só parou quando chegou ao fim da plataforma e foi essa a última impressão que Jericho teve de Bletchley: Wigram inclinando-se para a frente com as mãos nos joelhos, a abanar a cabeça e a rir.
Trinta e cinco minutos depois de ter entrado no comboio em Bletchley, Jericho saiu em Bedford, comprou um bilhete de ida para Londres e ficou à espera, ao sol, na extremidade da plataforma, enquanto fazia as palavras cruzadas do The Times. Estava quente, os carris reluziam; pairava um odor forte a carvão queimado e aço quente. Quando terminou a última coluna, enfiou o jornal num caixote do lixo, sem o ler, e pôs-se a andar devagar para cima e para baixo na plataforma, tentando habituar-se a utilizar as pernas. Começava a formar-se uma multidão de passageiros à sua volta e inspeccionou automaticamente todas as caras, apesar de a lógica lhe dizer que era muito pouco provável que estivesse a ser seguido: se Wigram receasse que ele pudesse fugir, teria de certeza arranjado forma de Leveret o ir levar a Cambridge.
As linhas começaram a chiar. Os passageiros avançaram para a frente. Um comboio militar passou lentamente em direcção ao sul com a locomotiva cheia de soldados. Pelas janelas das carruagens espreitava uma fila de caras esqueléticas e exaustas, e ouviu-se um murmúrio no meio da multidão. Prisioneiros alemães! Prisioneiros alemães sob vigilância! O olhar de Jericho cruzou-se brevemente com o olhar de um dos prisioneiros (cara de mocho, com óculos, nada militar: pelo tipo, mais empregado de balcão do que guerreiro) e algo se passou entre eles, algum lampejo de identificação no meio do abismo da guerra. Um segundo depois a cara pálida desapareceu e, logo a seguir, parou o expresso de Londres, a abarrotar e imundo. — É pior do que o maldito comboio dos Boches — queixou-se um homem.
Jericho não conseguiu arranjar lugar sentado e, por isso, encostou-se à porta que dava para o corredor até que o seu aspecto lívido e o reflexo do suor na testa forçaram um jovem oficial do Exército a ceder-lhe o lugar.
Jericho sentou-se agradecido, dormitou e sonhou com o prisioneiro alemão e a sua cara de coruja, e, depois, com Claire naquele primeiro encontro, mesmo antes do Natal, com os corpos a tocarem-se.
Às 2.30 estava em Londres, na estação de St. Pancras, caminhando desajeitadamente entre uma massa de pessoas que se dirigiam para a entrada do Metro. O elevador não estava a funcionar, pelo que teve de ir pelas escadas, parando em todos> os patamares para recuperar o fôlego. As costas latejavam-lhe e escorria-lhe pela espinha abaixo algo húmido, mas se era suor ou sangue não sabia dizer.
Na plataforma este da Linha Circular do Metropolitano, um rato esgueirou-se por entre o lixo que se encontrava debaixo dos carris que se estendiam até à entrada do túnel.
Ao ver que Jericho não descera do comboio de Bletchley, Kite ficou irritado, mas não preocupado. O comboio seguinte chegava duas horas mais tarde e havia uma boa taberna ao virar da esquina. Foi aí que o porteiro do colégio decidiu esperar, na companhia de duas canecas grandes de cerveja e uma empada de carne de porco.
Mas quando o segundo comboio chegou a Cambridge e nem sinal de Jericho, Kite foi possuído de um mau humor que o acompanhou durante a meia-hora que demorou a regressar ao colégio.
Informou o chefe do economato de que Jericho não aparecera, o chefe do economato avisou por sua vez o Director e o Director hesitou entre telefonar ou não para o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
— É de uma falta de consideração...! — queixou-se Kite a Dorothy Saxmundham na portaria. — Uma falta de consideração incrível.
Com a solução no bolso, Tom Jericho saiu do Registo Civil e caminhou lentamente para oeste, ao longo do Embankment, em direcção ao coração da cidade. A margem sul do Tamisa era um jardim de ruínas. Por cima das docas de Londres, os balões prateados de barragem rodopiavam e cintilavam no ar, acenando ao sol do fim da tarde.
Mesmo por baixo da ponte de Waterloo, à entrada do Savoy, conseguiu finalmente arranjar um táxi e deu ordens para que o motorista seguisse para Stanhope Gardens, na zona sul de Kensington. As ruas estavam desertas. Chegaram lá num instante.
A casa era suficientemente grande para ser uma embaixada, larga, com a frontaria de estuque e pilares na entrada. Em tempos devia ter sido imponente, mas agora o trabalho em gesso estava cinzento e todo lascado e, em certos sítios, grandes pedaços haviam sido arrancados pelas explosões. As janelas dos dois andares superiores tinham os reposteiros corridos. A casa vizinha tinha sido bombardeada e cresciam-lhe ervas na cave. Jericho subiu os degraus e tocou à campainha, que pareceu tocar muito longe, mesmo nas entranhas da casa inerte, dando lugar a um silêncio pesado. Voltou a tentar, mesmo sabendo que não valia a pena; depois atravessou a rua para se ir sentar à espera nos degraus da casa fronteira.
Passados quinze minutos, vindo de Cromwell Place, apareceu um homem alto e calvo, assustadoramente magro (um esqueleto com um fato vestido) e Jericho viu logo que devia ser ele. Casaco preto, calças às riscas cinzentas, uma gravata de seda cinzenta: tudo o que faltava para completar o chavão era um chapéu de coco e um guarda-chuva enrolado. Mas, em vez disso, trazia, incongruentemente, além da pasta, um saco cheio de mercearia. Aproximou-se da enorme porta com um andar fatigado, abriu-a e desapareceu no interior.
Jericho levantou-se, sacudiu-se e seguiu-o.
A campainha da porta voltou a tocar; novamente, nada aconteceu. Tentou uma segunda vez, ainda uma terceira e, depois, com dificuldade, ajoelhou-se e levantou a tampa da caixa do correio.
Edward Romilly estava de pé ao fundo de um corredor escuro com as costas voltadas para a porta, completamente imóvel.
— Mr. Romilly? — Jericho teve de gritar pela tampa. — Tenho de falar consigo. Por favor.
O homem alto não se moveu. — Quem é o senhor?
— Tom Jericho. Falámos uma vez ao telefone. Bletchley Park. Os ombros de Romilly descaíram. — Por amor de Deus,
porque é que vocês não me deixam em paz?
— Estive em Somerset House, Mr. Romilly — disse Jericho — no Registo de Nascimentos, Casamentos e Óbitos. Tenho aqui a certidão de óbito dela. — Tirou-a do bolso. — Claire Alexandra Romilly. A sua filha. Falecida a 14 de Junho de 1929- No Hospital de St. Mary, em Paddington. De meningite. Com seis anos de idade. — Meteu-a pela tampa da caixa do correio e viu-a deslizar pelos ladrilhos pretos e brancos até aos pés de Romilly. — Receio bem que eu tenha de ficar aqui o tempo que for necessário.
Deixou cair a tampa da caixa do correio. Cansado e com um sentimento de auto-repulsa, virou-se e encostou o ombro são a um dos pilares. Olhou para o outro lado da rua para os pequenos jardins públicos. Por detrás das casas fronteiras ouvia-se o agradável zunir do trânsito em Cromwell Road. Fez uma careta. A dor começara agora a espraiar-se, estabelecendo linhas de comunicação com as pernas, os braços, o pescoço; com todo o lado.
Não tinha a certeza de quanto tempo ali estivera ajoelhado, olhando para as árvores em botão, escutando os carros, até que, por fim, Romilly abriu a porta.
Tinha cerca de cinquenta anos, uma cara de asceta, quase de frade, e Jericho, enquanto subia atrás dele a larga escadaria, deu consigo a pensar, como acontecia muitas vezes, quando encontrava homens daquela idade, que esta deveria ser a idade do seu pai, se fosse vivo. Romilly parou junto de uma porta e introduziu Jericho numa sala escura, apressando-se a abrir um par de pesados reposteiros. A luz derramou-se numa sala-de-estar cheia de móveis cobertos por lençóis brancos. Apenas um sofá estava descoberto, e uma mesa, que se encontrava perto de uma lareira de mármore. Em cima da mesa, havia um monte de louças de barro sujas; em cima da lareira, um par de grandes molduras para fotografias.
— Moro sozinho — disse Romilly, como se a pedir desculpas, soprando o pó. — Nunca recebo ninguém. — Hesitou, depois dirigiu-se à lareira e pegou numa das fotografias. — Esta é a Claire — disse ele calmamente. — Foi tirada uma semana antes de morrer. Uma menina alta e magra com madeixas pretas sorria para Jericho.
— E esta é a minha mulher. Morreu dois meses depois da Claire.
A mãe tinha a mesma pigmentação e estrutura óssea da filha. Nenhuma delas se parecia nem de perto nem de longe com a rapariga que Jericho conhecera como Claire.
— Ia sozinha no carro — prosseguiu Romilly — quando se despistou numa estrada deserta e foi embater numa árvore. O médico legista teve a amabilidade de registar o acontecimento como um acidente. — A maçã de Adão de Romilly agitou-se e ele engoliu em seco. — Alguém sabe que está aqui?
— Não, senhor.
— Wigram?
— Não.
— Compreendo. — Romilly tirou-lhe as fotografias da mão e voltou a colocá-las em cima da lareira, exactamente na mesma posição em que estavam. Os seus olhos vaguearam da mãe para a filha e vice-versa.
— Pode parecer-lhe absurdo — disse ele, por fim, sem olhar para Jericho — até a mim me parece absurdo, agora, mas pareceu-me uma forma de a trazer de volta. Compreende? Quero dizer, a ideia de uma outra rapariga exactamente com a mesma idade, utilizando o mesmo nome, a fazer o que ela deveria ter feito... A viver a vida dela... Pensei que poderia dar algum sentido ao que aconteceu, percebe? Dar uma razão à morte dela, após todos estes anos. É ridículo, mas... — Levou a mão aos olhos. Passou um minuto até que conseguisse falar de novo. — Exactamente, o que quer de mim, Mr. Jericho?
Romilly levantou um dos panos que protegiam os móveis do pó e descobriu uma garrafa de uísque e um par de copos. Sentaram-se juntos no sofá olhando fixamente para a lareira vazia.
— Exactamente, o que quer de mim?
A verdade, finalmente, talvez. Uma confirmação? Paz de espírito? Um fim...
E Romilly parecia querer dar-lho, como se reconhecesse em Jericho um companheiro de infortúnio.
Fora uma ideia brilhante de Wigram, explicou ele, colocar um agente em Bletchley Park. Uma mulher. Alguém que tivesse debaixo de olho esta curiosa colecção de personalidades, tão essencial para a derrota dos Alemães e, contudo, tão estranha à tradição dos serviços secretos; que, de facto, tinham estragado a tradição, transformando o que fora em tempos uma arte (um jogo, se preferir, para cavalheiros) numa ciência de produção em massa.
— Quem eram vocês? O que eram vocês? Eram todos de confiança?
Ninguém de Bletchley deveria saber que ela era uma agente, isso era muito importante, nem mesmo o comandante. E ela tinha de vir de boas famílias, isso era absolutamente vital, caso contrário ainda a mandavam para alguma deplorável estação exterior, e Wigram precisava dela lá, no coração das operações.
Romilly voltou a encher o copo e ofereceu-se para encher o de Jericho, mas este tapou-o com a mão.
Bem, continuou, suspirando e colocando a garrafa aos pés, era mais difícil do que se possa julgar fabricar uma pessoa assim: mandá-la para a vida com um bilhete de identidade, cadernetas de racionamento e toda a restante parafernália do tempo de guerra, dar-lhe as origens certas («dar-lhe a lenda certa», como disse Wigram), sem arrastar o Ministério do Interior e meia-dúzia de outras agências governamentais que nada sabiam do segredo do Enigma.
Mas depois Wigram lembrara-se de Edward Romilly.
O coitado do Edward Romilly. O viúvo. Pouco conhecido no Ministério, tendo vivido no estrangeiro todos estes anos, com todos os conhecimentos correctos, iniciado no Enigma e, mais importante ainda, com a certidão de nascimento de uma rapariga exactamente da mesma idade dela. Tudo o que lhe exigiam, além da utilização do nome da filha, era que escrevesse uma carta de recomendação para Bletchley Park. Para dizer a verdade, nem mesmo isso, uma vez que Wigram escreveria a carta: uma assinatura seria o suficiente. E, então, Romilly continuaria a levar a sua existência solitária, feliz por saber que cumprira o seu dever patriótico e dera à sua filha uma espécie de existência.
— Não chegou a conhecê-la, suponho? A rapariga que tomou o nome da sua filha? — perguntou Jericho.
— Não, credo. Para dizer a verdade, Wigram assegurou-me que eu não ouviria mais falar do assunto. Foi uma condição que coloquei. E de facto não ouvi, durante seis meses. Até que você me telefonou num domingo de manhã a dizer-me que a minha filha tinha desaparecido.
— E o senhor pegou logo no telefone para relatar ao Wigram o que eu dissera?
— É claro. Fiquei apavorado.
— E, obviamente, perguntou-lhe o que se estava a passar. E ele contou-lhe.
Romilly engoliu o uísque de um trago e franziu o sobrolho para o copo vazio. — O serviço religioso era hoje, não era? Jericho acenou afirmativamente.
— Posso perguntar como correu?
— «Porque a trombeta soará» — disse Jericho — «e os mortos serão incorruptíveis, e todos nos transformaremos...» — Desviou os olhos da fotografia da rapariga que estava por cima da lareira. --Só que a Claire, a minha Claire, não está morta, pois não?
A sala escureceu, a luz era cor de uísque, e agora era Jericho quem falava mais.
Mais tarde, apercebeu-se de que não dissera a Romilly como tinha descoberto tudo: aquele monte de minúsculas inconsistências que tornara a versão original num disparate, embora reconhecesse que muito do que Wigram lhe contara devia ser verdade.
A bizarria do comportamento dela, para começar; e a incapacidade do seu suposto pai em reagir ao seu desaparecimento ou em comparecer no serviço religioso; a forma como as roupas dela tinham sido encontradas — de forma tão conveniente — sem que o corpo aparecesse; a rapidez altamente suspeita com que
Wigram conseguira fazer parar o comboio... Tudo isto se tinha conjugado num padrão da mais perfeita lógica.
Uma vez que se aceitasse o facto de que ela era uma informadora, tudo o resto surgia naturalmente. O material que Claire (ainda lhe chamava Claire) passara a Pukowski fora-o com autorização de Wigram, não fora?
— Porque, verdade seja dita (pelo menos no início) não era nada, ninharias, quando comparado com o que Puck já sabia acerca do Enigma naval. Que mal tinha? E Wigram deixou-a continuar a informá-lo, porque queria saber o que Puck ia fazer. Queria saber se havia mais alguém envolvido. Ela era uma espécie de isco. Estou certo?
Romilly não respondeu.
Só mais tarde é que Wigram se apercebeu de que tinha cometido o maior erro de todos; que Katyn, e mais precisamente a decisão de parar de controlar, levara Puck a decidir-se pela traição, e que, sabe-se lá como, arranjara maneira de avisar os Alemães acerca do Enigma.
— Suponho que não foi Wigram que decidiu parar de controlar?
Romilly acenou com a cabeça quase imperceptivelmente — Foi alguém mais importante.
Muito importante?
Recusou-se a dizê-lo.
Jericho estremeceu. — Não interessa. Desde então, Puck deve ter andado vigiado vinte e quatro horas por dia, para se descobrir quem era o seu contacto e para os apanharem a ambos em flagrante.
— Ora bem, um homem que é vigiado o dia inteiro não está em posição de assassinar ninguém, muito menos um agente das pessoas que o vigiam. A menos que sejam completamente incompetentes. Não. Quando Puck descobriu que eu tinha os criptogramas percebeu que Claire teria de desaparecer, caso contrário seria interrogada. Tinha de desaparecer pelo menos durante uma semana, para que ele pudesse fugir. De preferência, por mais tempo. Assim, simularam o assassínio dela entre eles; o barco roubado, as roupas manchadas de sangue junto ao lago.
Ele julgou que seria o suficiente para a polícia abandonar as buscas. E estava certo: pararam de andar à procura dela. Nunca suspeitou que ela o estava a trair todo esse tempo.
Jericho bebeu um gole de uísque. — Sabe uma coisa, acho mesmo que ele devia amá-la; aí é que está a graça. Tanto que as suas últimas palavras foram, literalmente, uma mentira: «Matei-a, Tom, lamento muito.» Uma mentira deliberada, um gesto da beira da sepultura, para lhe dar uma hipótese de fugir.
— E essa, é claro, foi a pista para Wigram, porque, segundo o seu ponto de vista, essa confissão ligava tudo com clareza. O Puck estava morto. O Raposo estaria morto em breve. Porque não deixar a «Claire» descansar também no fundo do lago? Tudo o que precisava para dar a volta à história era fingir que fora eu quem o levara até ao traidor.
— Por isso, dizer que ela ainda está viva não é um acto de fé, mas sim uma conjectura meramente lógica. Ela está viva, não está?
Uma longa pausa. Algures, uma mosca aprisionada, batia contra o vidro da janela.
Sim, disse Romilly desesperado. Sim, ele sabia que assim era.
O que foi que Hardy escreveu? Que uma prova matemática, tal como um problema de xadrez, para ser esteticamente satisfatória, tem de possuir três qualidades: inevitabilidade, imprevisibilidade e economia; que deveria «parecer uma simples constelação de contornos nítidos, não um aglomerado disperso na Via Láctea».
Bem, Claire, pensou Jericho, cá está a minha prova.
Cá está a minha constelação de contornos nítidos.
Pobre Romilly, não queria que Jericho se fosse embora. Tinha comprado comida, explicou, no regresso do escritório. Podiam jantar juntos. Jericho podia lá passar a noite; só Deus sabia como tinha espaço mais do que suficiente...
Mas Jericho, olhando para os móveis vestidos como fantasmas, para os pratos sujos, para a garrafa de uísque vazia, para as fotografias sentiu, de repente, uma vontade desesperada de fugir dali.
— Obrigado, mas já estou atrasado. — Conseguiu levantar-se. — Já devia estar em Cambridge há horas.
A frustração apoderou-se da face alongada de Romilly, como uma sombra. — Se tem a certeza que não muda de ideias... — As palavras saíam-lhe algo inarticuladas. Estaca bêbado. Junto às escadas deu um encontrão a uma mesa e acendeu um candeeiro, e depois conduziu Jericho, inseguro, pelas escadas abaixo até ao corredor.
— Vai tentar encontrá-la?
— Não sei — respondeu Jericho. — Talvez.
A certidão de óbito ainda estava no suporte para cartas, no corredor. — Então vai precisar disto — disse Romilly pegando nela. — Tem de a mostrar ao Wigram. Se quiser, pode dizer-lhe que esteve comigo, caso ele tente negar tudo. Estou certo de que então o deixará vê-la. Se insistir.
— Isso não o meterá em trabalhos?
— Trabalhos? — Romilly deu uma gargalhada e, com um gesto, remeteu-o para a sua casa tipo mausoléu. — Acha que me importo com os trabalhos? Vá lá, Mr. Jericho. Leve isso.
Jericho hesitou e, nesse momento, teve uma visão de si mesmo, uns anos mais velho, um outro Romilly, esforçando-se em vão por dar vida a um fantasma. — Não — disse ele, por fim. — É muito simpático da sua parte. Mas acho que devo deixá-la ficar aqui.
Deixou a rua silenciosa com alívio e caminhou em direcção ao ruído do trânsito. Chegado a Cromwell Road apanhou um táxi.
Aquela noite de Primavera trouxera para a rua uma multidão. Nos largos passeios de Knightsbridge e em Hyde Park era quase um festival: uma profusão de uniformes, americanos e ingleses, da Commonwealth e do exílio, azul escuro, caqui, cinzento. E, por todo o lado, as manchas coloridas dos vestidos de Verão.
Talvez ela andasse por ali esta noite, algures na cidade. Ou talvez achassem que era muito arriscado e a tivessem mandado para fora, até a poeira assentar. Ocorreu-lhe que, muito do que ela lhe contara podia bem ser verdade, ela podia muito bem ser filha de um diplomata.
Em Regente Street, uma mulher loira de braço dado com um major americano saiu do Café Royal.
Jericho fez um esforço consciente para desviar o olhar.
ÊXITO ALIADO NO ATLÂNTICO NORTE dizia um cartaz de um jornal no outro lado da rua. SUBMARINOS NAZIS AFUNDADOS.
Puxou a janela para baixo e sentiu no rosto o ar ameno da noite.
E aqui estava uma coisa muito estranha: olhando para as ruas apinhadas, começou a experimentar um sentimento bem definido de, bem, não lhe podia chamar exactamente felicidade. Libertação talvez fosse uma palavra mais apropriada.
Lembrou-se da última noite que tinham passado juntos. Deitado ao lado dela, vendo-a chorar. Porque tinha sido aquilo? Remorsos, talvez? Se assim era, então talvez ela tivesse sentido algo por ele.
— Ela nunca falou de si — dissera Hester.
— Sinto-me lisonjeado.
— Levando em consideração a forma como ela falava dos outros, deve mesmo sentir-se.
E tinha havido aquele postal de parabéns: «Querido Tom... sempre te considerei um amigo... talvez no futuro... Lamento saber... com pressa... Muito amor...»
Era uma solução, de certa forma. A melhor solução que ele conseguia arranjar.
Na estação de King's Cross comprou um postal e uma caderneta de selos e enviou uma mensagem a Hester pedindo-lhe que o fosse visitar a Cambridge logo que pudesse.
No comboio, encontrou um compartimento vazio e pôs-se a olhar fixamente para o seu reflexo no espelho — uma imagem que se foi tornando gradualmente mais nítida à medida que a noite caía e as planuras rurais desapareciam — até que adormeceu.
O portão principal do Colégio estava fechado. Apenas a pequena porta do centro estava aberta e deviam ser dez horas quando Kite, a dormitar ao lado do fogão a carvão de coque, foi acordado pelo ruído da porta a abrir e a fechar. Ergueu um canto do reposteiro a tempo de ver Jericho a dirigir-se para o grande pátio.
Kite saiu silenciosamente da Portaria para ver melhor.
Estava uma noite inesperadamente clara, havia imensas estrelas no céu e, por um momento, pensou que Jericho o ouvira, pois o jovem estava de pé à beira do relvado e parecia estar à escuta. Mas depois reparou que Jericho estava era a olhar para o céu. Da forma como Kite descreveu a cena mais tarde, Jericho deve ter permanecido assim durante pelo menos cinco minutos, voltando-se primeiro para a capela, depois para o campo e depois para a entrada, antes de se encaminhar com convicção para a escadaria, desaparecendo em seguida.
Robert Harris
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