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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENQUANTO AGONIZO / William Faulkner
ENQUANTO AGONIZO / William Faulkner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Jewel e eu saímos da plantação, pela vereda, um atrás do outro. Embora eu esteja uns quinze passos à sua frente, quem nos observasse do depósito de algodão veria o chapéu de palha de Jewel, roto e esfiapado, ultrapassando o meu por uma cabeça.
A vereda, suavizada pelos pés e endurecida, qual tijolo, pelas quenturas de julho, estende-se, reta, entre os renques verdes de algodão capinado, até o depósito no meio do campo, onde ela se torce e contorna o depósito, em quatro ângulos retos de vértices imprecisos, e depois avança novamente pelo algodoal, batida por pés de efêmera precisão.
O depósito é feito de troncos grosseiros, de entre os quais o enchimento caiu há muito tempo. Quadrado, com um telhado esburacado, que se inclina, ele pende, semelhante a uma ruína desolada e fulgurante, à luz do sol; duas amplas janelas, em paredes opostas, abrem para as imediações da vereda. Ao chegarmos ao depósito, eu viro e sigo o caminho que rodeia a casa. Jewel, uns quinze passos atrás, olha em frente e, com uma só pernada, entra pela janela. Ainda com os olhos fitos à sua frente — olhos pálidos, de madeira, incrustados no rosto de madeira —, atravessa o chão do depósito em quatro passadas, com a rígida gravidade de um Índio de tabacaria* vestido com um poncho remendado e dotado de vida dos quadris para baixo, apenas; e sai, com uma só pernada, pela janela fronteira do depósito e entra novamente na vereda, no justo instante em que eu dobro a esquina. Um atrás do outro, a uma distância de cinco passos, e Jewel agora na minha frente, continuamos a subir a vereda rumo ao pé da encosta.
A carroça de Tull está ao lado da nascente, atada ao moirão, as rédeas enroladas atrás do banco. A carroça tem dois assentos. Jewel para na nascente, apanha a cabaça que pende de um ramo do salgueiro e bebe. Tomo sua dianteira e subo pela vereda, começando a escutar a serra de Cash.
Quando chego em cima ele já parou de serrar. De pé sobre uma porção de aparas, ajusta duas tábuas. Entre os espaços de sombra, elas brilham amarelas, como ouro, como ouro pálido, ostentando nos flancos, em ondulações suaves, as marcas da lâmina da enxó: bom carpinteiro, este Cash. Mantém as duas tábuas no cavalete, ajustando as bordas para que formem a quarta parte do caixão. Ajoelha-se e calcula com o olhar as arestas, depois baixa as tábuas e empunha a enxó. Um bom carpinteiro. Addie Bundren não podia desejar um melhor que ele, nem um caixão melhor em que descansar. O caixão lhe dará confiança e conforto. Dirijo-me para a casa, acompanhado pelo chaque chaque chaque da enxó.
* No original, a cigar store Indian: boneco usado como cartaz à porta de tabacarias e estabelecimentos semelhantes (N. do T. )

 


 


Cora
Portanto, guardei os ovos e cozi, ontem, no forno. Os bolas ficaram muito bons. Dependemos um bocado de nossas galinhas. São boas poedeiras, as poucas que nos restaram
das sarigueias e outros contratempos. Cobras também, no verão. Uma cobra devasta um galinheiro mais depressa que outra coisa qualquer. Assim, elas saíram bem mais
caro do que Mr. Tull pensava, e como prometi pagar a diferença com ovos, tive de ser mais cuidadosa do que nunca, porque por minha causa foram compradas. Podíamos
ter comprado galinhas mais baratas, mas eu já havia prometido, como disse Miss Lawington, que me aconselhou uma boa raça, e também porque o próprio Mr. Tull admite
que uma boa raça de vacas ou porcos é que dá bons resultados a longo prazo. Portanto, quando começamos a perder tantas galinhas, tivemos de poupar ovos, pois eu
não suportaria repreensões de Mr. Tull, ainda mais porque as galinhas foram adquiridas com a minha palavra. De maneira que, quando Miss Lawington me falou dos bolos,
pensei em prepará-los e ganhar dinheiro equivalente a duas cabeças de galinhas. E guardando os ovos, um de cada vez, eles não me custariam nada. Esta semana elas
puseram tantos que eu não somente juntei uma quantidade acima do que ia mos vender, como também usei-os nos bolos, e ainda me sobraram bastantes ovos para que a
farinha e o açúcar e a lenha do fogão me saiam de graça. Por isso, fiz bolos ontem, com o maior zelo de minha vida, e os bolos saíram muito bons. Mas quando fomos
à cidade esta manhã, Miss Lawington me disse que a senhora mudara de ideia e que não ia dar festa nenhuma.
"Mesmo assim deve ficar com os belos", diz Kate. "Bem", digo eu, "acho que agora ela não precisa mais deles." "Ela deve ficar, sim", diz Kate. "Mas essas senhoras
ricas da cidade mudam muito de ideia. Os pobres é que não podem ." Riquezas nada significam aos olhos do Senhor, pois Ele vê o fundo dos corações. "Talvez eu consiga
vendê-los, sábado, no bazar", digo. Eles ficaram realmente bons.
"Você não arranjaria dois dólares por um", diz Kate.
"Bem, na verdade é como se eles nada me tivessem custado," digo. Economizei ovos e troquei uma dúzia por açúcar e farinha. Não creio que os bolos custassem alguma
coisa, pois o próprio Mr. Tull sabe que os ovos que guardei ultrapassavam em muito a quantidade que havíamos prometido vender, de forma que, para mim, é como se
tivéssemos encontrado os ovos, ou recebido de presente. "Ela deve ficar com os bolos, pois ela mesma fez a encomenda", diz Kate. O Senhor lê no fundo dos corações.
Se é Seu desejo que os pobres tenham, da honestidade, ideias diferentes de outras pessoas, não sou eu quem vai contrariar Seus desígnios. "Aposto como ela não precisava
dos bolos", digo. Eles ficaram bons, de fato. A enferma tem o cobertor puxado até o queixo, embora faça calor, e mantém descobertos apenas as mãos e o rosto. Está
recostada no travesseiro, com a cabeça alta, de forma que pode ver além da janela, e podemos ouvi-lo sempre que ele empunha a enxó ou a serra. Se fôssemos surdos,
poderíamos, provavelmente, ouvi-lo e vê-lo, através do rosto da mulher deitada. Um rosto consumido, de forma que os ossos apontam logo embaixo da pele, em linhas
brancas. Seus olhos são semelhantes a duas velas que a gente vê derreter-se e pingar o espermacete nas arandelas dos castiçais de ferro. Mas a salvação eterna e
a graça imperecível não descem sobre ela.
"Os bolos ficaram realmente bons", digo. "Mas não iguais aos bolos que Addie costumava fazer." Basta olhar a fronha para ver como essa criatura lavava e passava
bem a ferro, pois a fronha parece engomada para sempre. Talvez isso lhe desse consciência de sua cegueira, ali deitada à mercê e aos cuidados dos quatro homens e
de uma menina traquinas. "Nenhuma mulher por estas bandas fará bolos tão gostosas quanto os de Addie Bundren," eu digo. "Quando a gente menos esperar, ela se levanta
e volta ao forno, e assim não teremos de vender os nossos bolos." Debaixo do cobertor, o volume que ela faz não é maior que o de uma barra de ferro, e a única maneira
de se saber que está respirando é pelo som das molas do colchão. Até o cabelo em suas faces não se move, embora a menina, em pé ao seu lado direito, esteja a abaná-la
com o leque. Enquanto nós a ob sorvamos, ela passa o leque para a outra mão, sem parar de abanar.
"Ela está dormindo?", sussurra Kate.
"Está olhando Cash, lá embaixo", diz a menina. Ouvimos a serra na tábua. Parece roncar. Eula vira-se e olha pela janela. Seu colar assenta bem com o chapéu vermelho.
Difícil pensar que custou apenas vinte e cinco cêntimos.
"Ela devia ficar com esses bolos", diz Kate.
Eu bem que saberia aplicar o dinheiro. Mas, na verdade, é como se nada me tivessem custado, salvo o trabalho de assá-los. Posso dizer-lhe que ninguém está imune
a erros, mas nem todo mundo pode escapar sem prejuízos; é o que pretendo dizer-lhe.
Alguém vem pelo corredor. É Darl. Não olha para dentro ao passar pela porta. Eula observa-o enquanto ele anda e desaparece novamente na direção dos fundos. Ela levanta
a mão e toca, de leve, nas contas do colar, e depois no cabelo. Quando me descobre a observá-la, seus olhos perdem o brilho.
Darl
Pai e Vernon estão sentados no alpendre dos fundos. Pai, inclinando a tampa da tabaqueira no lábio inferior, que ele estica com o polegar e o indicador, deixa cair
tabaco. Olham em volta quando atravesso o alpendre, mergulho a cabaça no balde e bebo.
"Onde está Jewel?", pergunta Pai. Quando eu era menino, aprendi que a água fica mais saborosa quando recolhida, durante algum tempo, numa tina de cedro. Fresca,
com um leve gosto semelhante ao cálido vento de julho tirando aroma das folhas de cedro. Tem de ficar guardada pelo menos seis horas e ser bebida em cabaça. Nunca
se deve beber água em vasilhas metálicas.
E, à noite, é ainda melhor. Eu costumava deitar-me na esteira, no corredor, esperando ouvir que todos dormiam para levantar-me e voltar à tina. Estaria escura, a
superfície quieta da água, brilhando qual redondo orifício no nada, e nela, antes de agitá-la com a cabaça, eu veria, talvez, uma estrela ou duas, e talvez, na cabaça,
uma estrela ou duas antes de beber. Depois eu cresci, fiquei mais velho. Então, eu esperava até que eles todos fossem dormir, e deitava-me com a fralda da camisa
levantada, ouvindo-os dormir, sentindo meu corpo sem tocar-me, sentindo o frio silêncio soprar sobre minhas partes e pensando se Cash estaria, lá embaixo, na escuridão,
fazendo o mesmo, ou se ele já o faria há dois anos, antes que eu tivesse querido fazer ou pudesse fazer.
Os pés de Pai estão em péssimo estado, os dedos engelhados e torcidos e intumescidos, sem sinal de unha nos dois dedos menores, de tanto trabalhar duro, na umidade,
com sapatos feitos em casa, quando era menino. Ao lado de sua cadeira estão os sapatões grosseiros. Dão a impressão de terem sido talhados, com um machado cheio
de dentes, em lingote de ferro. Vernon acaba de chegar da cidade. Nunca o vi ir à cidade de poncho. Por causa de sua mulher, dizem. Ela ensinava, há tempos, na escola.
Atiro ao chão o resto da égua e enxugo a boca na manga. Vai chover antes do amanhecer. Talvez antes de escurecer. "Lá embaixo, na cavalariça", digo. "Atrelando o
cavalo." Lá embaixo, divertindo-se com o cavalo. Passará pela baia e entrará no pasto. O cavalo não estará à vista: está mais em cima, gozando a fresca entre os
pinheiros. Jewel assovia, um único e penetrante assovio. O cavalo relincha, então Jewel o vê brilhando, por um breve instante, entre as sombras azuis. Jewel assovia
novamente; o cavalo aproxima-se, descendo a encosta, com as pernas rígidas, as orelhas erguidas e inquietas, rolando os olhos de grandes órbitas, e para a uns vinte
passos, de lado, observando Jewel por sobre a crina, em atitude travessa e alerta.
"Venha cá, senhor", diz Jewel. O cavalo adianta-se. A pele move-se, estirada e tensa, percorrida por línguas retorcidas semelhantes a chamas. Agitando crina e cauda
e revirando os olhos, o cavalo dá outra curta carreira corcoveante e para outra vez, de patas firmes, observando Jewel. Jewel caminha rapidamente para ele, com as
mãos nos quadris. A exceção das pernas de Jewel, eles parecem duas figuras esculpidas ao sol para um grupo selvagem.
Quando Jewel está prestes a tocá-lo, o cavalo ergue-se sobre as ancas e cai com as patas dianteiras sobre Jewel. Agora Jewel está enclausurado em cintilante labirinto
de cascos que imprimem à cena uma ilusão de asas; entre eles, debaixo do peito levantado do cavalo. Jewel escorrega com a instantânea flexibilidade de uma cobra.
Por um instante, antes que o solavanco lhe chegue aos braços, ele vê seu corpo inteiro no ar, horizontal, mexendo-se como um chicote, até que encontra o focinho
do cavalo e toca novamente a terra. Ficam, então, eretos, imóveis, aterradores, o cavalo sobre as patas traseiras, firmes e vibrantes, mas de cabeça baixa; Jewel,
com os calcanhares fincados no chão, abafa o resfolegar do cavalo com uma mão e, com a outra, acaricia-lhe o pescoço, em inúmeros golpes de afetividade, enquanto
pragueja contra o animal com uma ferocidade obscena.
Permanecem assim, nesse hiato rígido e terrível, o cavalo tremendo e fungando. Então, Jewel, de um pulo, cavalga-o. Corre para cima, em espantoso redemoinho, qual
golpe de chicote, o corpo grudado ao cavalo e recortado no ar. Durante outro instante, o cavalo fica parado de cabeça baixa, antes de lançar-se em desabalada carreira.
Descem a colina numa série de saltos corcoveantes, Jewel no lombo, qual sanguessuga, e chegam à cerca onde o cavalo para, de inopino, na trepidação dos cascos.
"Bem", diz Jewel, "agora fique quieto, se já está satisfeito." Dentro da cavalariça, Jewel escorrega para o chão antes que o cavalo pare. O cavalo entra no Estábulo,
seguido por Jewel. Sem olhar para trás, o cavalo o escoiceia, e a pata ecoa, na parede, qual tiro de pistola. Jewel dá-lhe um pontapé no ventre; o cavalo arqueia
o pescoço e arreganha os beiços, descobrindo os dentes; Jewel atinge-o no focinho, com um murro, e, escapando para o depósito de feno, nele sobe. Pegando um monte
de feno, baixa a cabeça e espia, através dos tabiques, em direção à porta. O caminho está deserto; dali, não pode ouvir sequer a serra de Cash. Ergue-se e, às braçadas,
empilha feno na manjedoura.
"Coma", diz. "Encha a maldita pança enquanto puder, seu comilão estúpido, meu querido filho da puta."
Jewel
Por isso fica aí fora, bem embaixo da janela, serrando e pregando o maldito caixão. Exatamente onde ela pode vê-lo. Onde todo o ar que ela aspira está cheio de suas
marteladas e dos gemidos da serra, onde ela pode vê-lo dizendo "Veja. Veja que caixão bom estou fazendo para você." Eu lhe disse para trabalhar em outro sítio. E"
lhe disse mesmo: "Meu Deus, você quer vê-la ai dentro?" igual ao tempo em que ele era pequeno e ela disse que, se tivesse adubo, tentaria cultivar algumas flores,
e ele apanhou a cesta de pão e trouxe-a, da estrebaria, cheia de estrume.
E agora todos os outros lá estão sentados, como pessoas estúpidas. Esperando, abanando-se. Pois eu já lhe disse: "Será que você não para de pregar e de serrar até
que alguém possa dormir?" E as mãos dela, pousadas no cobertor como raízes desenterradas, que a gente se esforça por lavar e nunca consegue limpar direito. Posso
ver o leque e o braço de Dewey Deli: Eu disse: "Era bom que ela ficasse em paz." Serrando e pregando sempre, e agitando o ar, tão depressa, contra seu rosto, que
uma pessoa cansada não consegue respirar direito, e o diabo daquela enxó dizendo: "Falta pouco. Falta pouco. Falta pouco." Até que todo mundo que passa pela estrada
tenha de parar e ver o caixão e dizer: "Que excelente carpinteiro." Se dependesse de mim, quando Cash despencou daquela igreja, e se dependesse de mim quando Pai
caiu doente, por causa da carga de madeira que lhe desabou em cima, nenhum filho da mãe dessas redondezas viria olhar para ela, porque, se existe Deus, então para
que diabo Ele existe? Ficaríamos sozinhos, eu e ela, no alto de uma colina, e eu rolaria pedras, pela colina, contra essas mesmas caras, e pegaria as caras, dentes
e o resto e atiraria também pela colina, Deus me perdoe, até que ela estivesse tranquila e a maldita enxó parasse de dizer: "Falta pouco, falta pouco", e nós ficássemos
tranquilos.
Darl
Nós o observamos dobrar a esquina e subir os degraus. Não olha para nós. "Estão prontos?", pergunta.
"Se é que você já atrelou", eu digo. "Espere", digo ainda. Ele para, olhando para Pai. Vernon cospe, sem se mover. Cospe com decorosa e deliberada precisão sobre
a poeira acamada embaixo, no alpendre. Pai esfrega as mãos, devagar, nos joelhos. Tem o olhar fixo além do cume do despenhadeiro, do outro lado da plantação. Jewel
observa-o um pouco, depois dirige-se ao balde e bebe novamente.
"Detesto indecisões, mas nada posso fazer", diz Pai.
"Isto significa três dólares", eu digo. A camisa nas costas recurvadas de Pai está mais desbotada que em outros lugares. Não há nódoas de suor na camisa. Nunca vi
manchas de suor em sua camisa. Ele adoeceu uma vez, de tanto trabalhar exposto ao sol, quando tinha vinte e dois anos, e diz a todo mundo que, se suar algum dia,
morrerá. Acho que ele fala a sério.
"E se ela não durar até que vocês voltem?", pergunta ele. "Ela ficaria desgostosa." Vernon cospe na poeira. Choverá, no entanto, antes do amanhecer.
"'Ela conta com isto", diz Pai. "Deseja partir logo. Eu a conheço bem. Prometi-lhe deixar a carroça atrelada, e ela conta com isto." "Então, precisaremos com certeza
dos três dólares"; eu digo. Ele fixa o olhar na plantação, esfregando as mãos nos joelhos. Desde que ficou desdentado, sua boca, quando engole, decai em vagarosas
repetições. Os fios da barba dão-lhe à mandíbula inferior uma aparência comum a cães velhos. Melhor vocês se decidirem logo. Assim, podemos chegar lá e arranjar
uma carga antes que escureça", eu digo.
"Mamãe não está assim tão doente", diz Jewel. "Cala a boca, Darl."
"Está certo", diz Vernon. "Hoje ela parece melhor do que há uma semana atrás. Quando você e Jewel voltarem, ela estará de pé."
"Você é quem sabe", diz Jewel. "Você não se cansou de olhar para ela. Você ou seu pessoal."
Vernon olha para mim. Os olhos de Jewel parecem madeira esmaecida em seu rosto sanguíneo. Ele é uma cabeça mais alto que qualquer um de nós; aliás, sempre foi. Eu
lhes disse que, por causa disso, mamãe surrava-o e dengava-o muito mais. Porque ele se mostrava mais dentro de casa. Por isso ela lhe deu o nome de Jewel,* foi o
que eu lhes disse. *Joia. (N. do T.)
"Cala a boca. Jewel", diz Pai, mas dando a impressão que não ouvia direito. Olha para longe, através da plantação, coçando os joelhos.
"Você podia tomar emprestada a carroça de Vernon e nós iríamos apanhá-lo", eu digo. "Se ela não nos esperar."
"Ah, fecha esta maldita boca", diz Jewel.
"Ela quer ir na nossa carroça", diz Pai. Esfrega os joelhos. "Mas isto não me agrada nem um pouco."
"Está estirada lá, observando Cash preparar o maldito...", diz Jewel. Fala com aspereza, selvagemente, mas não diz a palavra. Como um menino no escuro, para ganhar
coragem, e que, de repente, se assusta, no silêncio, com o barulho que faz.
"Ela assim o quer e também quer ir na nossa carroça", diz Pai. "Descansará melhor se souber que é um bom, feito de encomenda. Sempre foi muito exigente. Vocês sabem
disso." "Nesse caso, que tenha um só para ela", diz Jewel. "Mas que diabo, como vocês podem esperar que seja..." Olha para a nuca de Pai. com seus olhos claros,
de madeira.
"Certamente", diz Vernon. "Ela aguentara até que fique pronto. Aguentara até que tudo fique pronto. Aguardará o momento adequado. Com as estradas secas como estão,
não será difícil levá-la á cidade."
"Vai chover já", diz Pai. "Sou um homem sem sorte. Nunca tive sorte." Esfrega as mãos nos joelhos. "E o danado do médico, que deve chegar de uma hora para outra.
Não pude avisá-lo antes. Se ele chegasse amanhã e lhe dissesse que o instante estava próximo, ela não esperaria. Eu a conheço bem. Com carroça ou sem carroça, ela
não esperaria. Se isso acontecesse, ela ficaria zangada, e eu não quero aborrecê-la de jeito nenhum. Deve estar impaciente, pensando na sepultura da família, no
cemitério de Jefferson, e nos parentes que a esperam lá. Dei-lhe minha palavra que os rapazes a levarão o mais rápido que as mulas puderem, a fim de que ela descanse
em paz." Esfrega as mãos nos joelhos. "Mas não gosto disto, nem um pouco."
"Se vocês todos não estivessem ardendo de vontade para levá-la logo...", diz Jewel, naquela sua voz áspera, selvagem. "Com Cash, o dia inteiro, bem embaixo da janela,
serrando e pregando aquele..."
"Foi ela quem quis", diz Pai. "Você não tem afeto nem consideração por ela. Nunca teve. Não queremos dever nada a ninguém...eu e ela. Aliás, nunca devemos coisa
alguma, e ela descansará melhor se souber que alguém do seu próprio sangue serrou as tábuas e fincou os pregos. Ela sempre preferiu cuidar de suas próprias coisas."
"Isto significa três dólares", eu digo. "Quer que vamos, ou não?"
Pai esfrega os joelhos. "Voltaremos amanhã, quando o sol se puser."
"Bom...", diz Pai. Olha por sobre o campo, com o cabelo despenteado, apertando vagarosamente o tabaco contra as gengivas.
"Então, vamos", diz Jewel. Desce os degraus. Vernon cospe cuidadosamente na poeira.
"Até o sol se pôr, então", diz Pai. "Não quero fazê-la esperar."
Jewel lança um olhar rápido para trás, em seguida rodeia a casa. Entro no corredor, ouvindo as vozes antes de chegar à porta. Nossa casa está inclinada na colina,
e por isso uma brisa sopra sempre no corredor. Uma pluma que se deixasse cair perto da porta de entrada subiria até o teto, até ser colhida na corrente, que a levaria
à porta dos fundos: o mesmo acontece às vozes. Quando a gente entra no corredor, elas parecem soar em pleno ar, sobre nossas cabeças.
Cora
Foi a coisa mais comovente que já vi. Como se ele soubesse que jamais voltaria a vê-la, que Anse Bundren afastava-o do leito de morte de sua mãe, e que ele jamais
voltaria a vê-la neste mundo. Eu sempre disse que Darl era diferente dos outros. Eu sempre disse que, entre todos, ele era o único com a natureza da mãe, o único
que lhe dedicava afeto. Ao contrário de Jewel, que lhe deu tanto trabalho para nascer e que ela dengou e mimou, para ganhar, em troca, demonstrações de cólera e
mau-humor, não se contando as diabruras que a atormentavam e que, se fossem comigo, eu lhe daria uma surra de quando em quando. Não será ele quem lhe virá dizer
adeus. Não será ele quem vá perder a oportunidade de fazer três dólares extras, ao preço do beijo de despedida da mãe. Um Bundren da cabeça aos pés, que a ninguém
ama e só se preocupa mesmo em ganhar algum dinheiro com o mínimo de trabalho. Mr. Tull diz que Darl lhes pediu para esperarem. Disse que Darl quase lhes suplicou
de joelhos para não o obrigarem a deixá-la nessa situação. Mas Anse e Jewel não perderiam, por nada desse mundo, a oportunidade de fazer três dólares. Ninguém que
conheça Anse poderia esperar outra atitude, mas pensar que esse rapaz, esse Jewel, venda todos esses anos de abnegação e ostensiva parcialidade (não me enganam:
Mr. Tull diz que Mrs. Bundren gostava menos de Jewel, entre todos, mas eu é que sei. Sei que ela tinha predileção por ele, porque via nele a mesma qualidade que
a fazia suportar Anse Bundren quando Mr. Tull dizia que ela devia envenená-lo) por três dólares, negando à sua mãe agonizante o beijo de despedida.
Pois, nas últimas três semanas, eu tenho vindo aqui, sempre que posso, às vezes quando não devo, abandonando minha própria família e minhas obrigações para que alguém
possa estar com ela nos seus derradeiros instantes e ela não tenha de enfrentar o Grande Desconhecido sem um rosto familiar a dar-lhe coragem. Não que eu deseje
agradecimentos por isso: espero o mesmo quando chegar a minha hora. Mas, graças a Deus, terei os rostos dos meus, meu sangue e minha carne, pois em matéria de marido
e filhos tenho sido mais feliz que muitas, apesar de provocações ocasionais.
Ela vivia solitária, sozinha com seu orgulho, tentando fazer com que a gente pensasse outra coisa, ocultando o fato de que apenas a suportavam, pois, antes de esfriar
no caixão, eles já estariam levando-a a sessenta quilômetros de distância, para enterrá-la, menosprezando, assim, a vontade de Deus. Negando-lhe o descanso na mesma
terra desses Bundrens.
"Mas ela queria ir", disse Mr. Tull. "Foi seu próprio desejo descansar entre sua gente."
"Então, por que não foi quando estava viva?", eu disse. "Nenhum deles a impediria, nem mesmo o pequeno, agora já bastante velho para ser egoísta e ter o coração
empedernido, como o resto deles."
"Foi desejo dela", disse Mr. Tull. "Ouvi Anse dizer isto."
"E, naturalmente, acreditou em Anse", eu disse. "Só mesmo você. Vá contar esta a outro." "Não vejo por que duvidar de uma coisa que, aliás, ele não tinha interesse
em me contar", disse Mr. Tull. "Não me diga", eu disse. "O lugar de uma mulher é com o marido e filhos, esteja viva ou morta. Você admitiria que eu quisesse voltar
ao Alabama e deixá-lo com as crianças, quando chegasse minha hora? Ao Alabama, que deixei por minha livre vontade, a fim de me unir à sua, nos bons e maus momentos,
até a morte e depois da morte?" "Bom, nem todos são iguais", ele disse. Espero que sim, Tenho procurado viver com retidão aos olhos de Deus e dos homens, para honra
e conforto de meu marido cristão e para o amor e respeito de meus filhos cristãos. De maneira que, quando tiver de morrer, consciente do dever e da recompensa que
mereço, estarei cercada de rostos queridos, recebendo o beijo de adeus de cada um de meus afeiçoados, como recompensa. Não como Addie Bundren, morrendo sozinha,
ocultando o orgulho e o coração despedaçado. Contente por deixar a vida. Estirada na cama, com a cabeça no alto para poder observar Cash a fazer o caixão, obrigada
a vigiá-lo para que ele não poupe madeira, para que trabalhe bem, e os outros homens sem se preocuparem com nada, exceto se haverá tempo de ganhar mais três dólares
antes que a chuva caia e o rio cheio impeça a travessia. Pois, se eles não houvessem resolvido pegar essa última carga, teriam levado Addie na carroça, sobre um
cobertor, e cruzado logo o rio, e depois parado para dar tempo a que ela morresse da morte cristã que seria licito permitir-lhe.
Exceto Darl. Foi a coisa mais confortadora que eu vi. As vezes, eu perco temporariamente a fé na natureza humana; sou assaltada pela dúvida. Mas sempre o Senhor
restaura-me a fé e me revela Seu bondoso amor pelas criaturas. Não por Jewel, a quem ela tanto amou; não por ele. Ele só pensava nesses três dólares extraordinários.
Foi por Darl, de quem todos dizem que é um estranho, um preguiçoso, sempre vadiando, igualzinho a Anse, enquanto Cash é bom carpinteiro sempre mais atarefado do
que pode, e Jewel sempre a fazer algo que lhe rendesse dinheiro ou desse o que falar, e aquela mocinha quase nua, sempre em pé, ao lado de Addie, com um leque, de
forma que, quando a gente tenta conversar com Addie e animá-la, responde logo em vez de Addie, como se quisesse impedir que a gente se aproxime dela.
Foi por Darl. Ele chega à porta e fica parado, olhando a mãe agonizante. Apenas olha para ela, e eu sinto novamente o bondoso amor do Senhor e Sua misericórdia.
Compreendi, então, que ela fora fingida a respeito de Jewel, mas que era entre ela e Darl que havia entendimento e verdadeiro amor. Ele apenas olha" para ela, sequer
entra para que ela possa vê-lo, a fim de não sobressaltá-la, sabendo embora que Anse o espera e que nunca mais voltaria a vê-la. Ele não disse nada, apenas olhou
para ela.
"Que deseja. Dar!?", disse Dewey Dell, sem parar o leque, falando com rapidez, impedindo que ele, mesmo ele, se aproximasse. Ele não respondeu. Continuou em pé,
olhando a mãe moribunda, o coração penalizado demais paia poder falar.
Dewey Dell
A primeira vez que eu e Lafe fomos colher algodão. Pai não quer suar, porque se arriscaria a morrer da doença que tem, por isso todo mundo nos vem ajudar. E Jewel
não se importa com nada, ele não parece de nosso sangue nessa coisa de demonstrar interesse. E Cash é como se serrasse nas tábuas os dias compridos, quentes e tristes,
para pregá-las em alguma coisa. E Pai pensa que os vizinhos sempre se mostrarão solícitos, pois sempre esteve muito ocupado em deixar que os vizinhos trabalhem para
ele, sem imaginar mais nada. E não creio, também, que Darl pense nisso, porque se senta à mesa, para o jantar, com os olhos postos além da comida e da lâmpada, cheios
de terra tirada de sua cabeça, e com as órbitas cheias da distância para além da plantação.
Colhemos algodão ao longo do renque, os bosques cada vez mais próximos e mais próxima a sombra secreta, avançando na direção da sombra secreta com meu saco e o saco
de Lafe. Porque eu disse: "Talvez eu queira ou não, quando o saco estiver pela metade." Porque eu disse: "Se o saco estiver cheio quando chegarmos aos bosques, não
terá sido por minha vontade." Eu disse: "Se não estiver escrito que terei de fazer isto, o saco não estará cheio e eu voltarei pelo ren que próximo, mas se o saco
estiver cheio, não terei jeito a dar." E colhemos algodão na direção da sombra secreta e nossos olhos procuravam os do outro, e nossas mãos se tocavam e eu sem dizer
nada. Eu disse:"Que está fazendo?" E ele disse: "Estou pondo algodão no seu saco." E, assim, o saco estava cheio quando chegamos ao fim do renque de algodão e eu
não pude evitar.
E assim aconteceu porque não tive outro jeito. Aconteceu então, e eu vi Darl e ele soube. Ele disse que sabia sem precisar falar, da mesma forma que me disse que
Mãe está morrendo sem precisar falar, e eu soube que ele sabia por que, se ele dissesse que sabia, com palavras, eu não teria acreditado que ele estivera ali por
perto e nos vira. Mas ele disse que sabia mesmo, e eu disse: "Você vai contar a Pai, você vai matá-lo?" Disse-lhe isto sem falar, e ele disse: "Por quê?", também
sem falar. E por isso é que eu lhe posso falar com certeza, com ódio, porque ele sabe.
Ele fica parado à porta, olhando para ela. "Que deseja, Darl?", eu digo. "Ela vai morrer", ele diz. E aquela velha ave de rapina Tull que vem vê-la morrer, mas eu
posso enganá-los. "Quando ela vai morrer?", eu digo. "Antes de voltarmos", ele diz. "Nesse caso, por que leva Jewel?", eu digo. "Preciso dele para me ajudar com
a carga", ele diz.
Tull
Anse continua a esfregar os joelhos. Seu poncho está desbotado; em um joelho, um remendo de sarja cortado de uma calça domingueira já está reluzente de tanto uso.
"Não gosto disto, nem um pouco", ele diz.
"É preciso a gente antecipar as coisas", eu digo. "Mas, de qualquer forma, não haverá mal algum." "Ela quer partir imediatamente", ele diz. "E Jefferson não fica
nada perto." "Mas as estradas estão boas agora", eu digo. Além disso, vai chover esta noite. E os parentes dele estão enterrados em New Hope, a menos de cinco quilômetros
de distância. Mas é próprio dele ter casado com uma mulher que nasceu a um dia inteiro de viagem e que morre antes dele.
Ele olha a plantação, esfregando os joelhos. "Não gosto nada disso", diz. "Voltarão com tempo de sobra", eu digo. "Se fosse você, não me preocuparia." "Serão três
dólares", diz. "Talvez não precisem voltar a toda pressa", eu digo. "Espero que não." "Ela está se acabando", diz. "Não pensa em outra coisa." Sem dúvida, a vida
das mulheres é dura. De algumas mulheres. Lembro que mamãe chegou até os setenta e poucos. Ocupada o dia inteiro, chovesse ou fizesse sol; não caiu de cama um só
dia, desde que lhe nasceu o último filho, até que, um dia, pareceu olhar em volta, foi apanhar a camisola rendada que tinha há quarenta e cinco anos e nunca havia
tirado da arca, vestiu-a, estirou-se na cama e, puxando o cobertor, fechou os olhos. "Agora vocês todos cuidem de Pai o melhor que puderem", disse ela. "Não aguento
mais." Anse esfrega as mios nos joelhos. "Deus provê", diz. Podemos ouvir a serra e o martelo de Cash, no oitão da casa, É verdade. Nunca ninguém disse nada mais
verdadeiro. "Deus provê", repito. O rapaz sobe a colina. Traz um peixe quase tão comprido quanto ele. Atira-o ao chão e resmunga: "Ahn", e cospe, por cima do ombro,
como um homem. Um peixe quase do seu tamanho. "Que diabo é isto?", digo. "Um peixe-porco? Onde o pegou?" "Perto da ponte", ele diz. Vira o peixe, e a parte de baixo
está grudada de poeira, e o olho fechado intumesceu sob a poeira. "Pretende deixá-lo aí mesmo?", diz Anse. "Vou mostrar a Mãe", diz Vardaman. Olha para a porta.
Podemos ouvir a conversa trazida pela corrente de ar. Também ouvimos Cash, batendo nas tábuas. "Agora ela tem visitas", diz. "É o meu pessoal", digo. "Também gostarão
de ver o peixe." Ele não diz nada, observando a porta. Depois, volta a olhar o peixe tombado no pó. Vira-o com o pé e, com o dedo grande do pé, comprime o olho saltado.
Anse mira a plantação. Vardaman olha o rosto de Anse, depois a porta.
Volta-se, avançando para o canto da casa, quando Anse e chama sem olhar ao redor. "Limpe e peixe", diz Anse.
Vardaman para. "E por que Dewey Dell não o limpa?' "Limpe o peixe, você", diz Anse.
"Ora, Pai"- diz Vardaman.
"Limpe-o, você mesmo", diz Anse. Não olha ao redor. Vardaman volta e apanha o peixe. O peixe escorrega-lhe das mãos, sujando-o de lama, e cai ao chão, emporcalhando-se
novamente; de boca aberta, olhos protuberantes, esconde-se no pó, como se tivesse vergonha de estar morto, como se tivesse pressa de ocultar-se outra vez. Vardaman
pragueja contra ele. Pragueja como um adulto, em pé, com o peixe entre as pernas. Anse não olha ao redor. Vardaman apanha novamente o peixe. Rodeia a casa, levando-o
nos braços como quem carrega uma braçada de lenha, e a cabeça e o rabo do peixe saem pelos lados. Quase do tamanho de Vardaman.
Os punhos de Anse ultrapassam as mangas: nunca o vi, em toda a minha vida, com uma camisa que parecesse sua. Parece até que Jewel lhe dá as camisas que vão ficando
velhas. Mas a camisa não é de Jewel. Ele tem os braços compridos e o corpo espigado. E. além do mais, não há mancha de suor. Pode-se dizer, sem medo de errar, que
elas não pertenceram a mais ninguém, salvo Anse. Seus olhos, estendidos além da plantação, parecem dois carvões queimados fixos no rosto.
Quando a sombra da tarde atinge os degraus, ele diz: "São cinco horas." Assim que me levanto, Cora aparece à porta: diz que chegou a hora de irmos embora. Anse procura
os sapatos. "Ora, Mr. Bundren", diz Cora, "não se levante agora." Ele calça os sapatos, com dificuldade, o que sempre lhe acontece, pois pensa que não tem forças
para nada, mas, assim mesmo, insiste. Quando entramos no corredor, ouvimos os sapatos arrastarem-se no chão como se fossem de ferro. Dirige-se à porta do quarto
onde ela está, piscando os olhos, como quem espera encontrá-la de pé, talvez numa cadeira ou talvez varrendo o chão, e olha, porta adentro, com aquela sua atitude
de surpresa com que sempre a olhou, e sempre a encontra na cama, todas as vezes, e Dewey Dell ainda maneja o leque. Ele para ali, como se não quisesse mover-se,
ou coisa que o valha.
"Bem, acho que é melhor a gente se apressar", diz Cora. "Tenho de dar de comer às galinhas." Além disse, vai chover. Nuvens como essas não enganam, e o algodão recebe
todos os dias as bênçãos do Senhor. Mais um problema para ele. Cash ainda aplaina as tábuas. "Se é que não precisam de nós...", diz Cora.
"Anse nos conhece", eu digo. Anse não nos olha. Olha ao redor, piscando, naquela sua maneira surpreendida, como se fosse a primeira vez, e, ainda mais, como se a
sua surpresa o assombrasse. Ah, se Cash trabalhasse com o mesmo empenho no meu celeiro. "Eu disse a Anse que provavelmente não haverá necessidade de nada", digo.
"Pelo menos, espero que não." "Ela não pensa em outra coisa", diz ele. "Acho que está decidida a ir." "É o que nos espera, a todos nós", diz Cora. "Que Deus não
nos abandone." "Eu me referia àquele milho", digo. E volto a garantir-lhe que o ajudarei, estando ela doente e tudo isso. Como a maior parte das pessoas desta região,
já o ajudei tanto que não posso parar agora. "Queria colher o milho hoje", ele diz. "Mas parece que não consigo pensar em nada." "Talvez ela aguente até você recolher
o milho", cu digo. "Deus queira", diz Cora, Ah, se Cash trabalhasse assim, com todo o cuidado, no meu celeiro. Ele ergue a vista quando passamos. "Não sei se posso
trabalhar para você esta semana", diz. "Não ha pressa", digo. "Vá quando puder." Subimos na carroça. Cora põe a caixa com os bolos no colo. É certo que vai chover.
"Não sei o que vai ser dele", diz Cora. "Juro que não sei." "Pobre Anse", digo. "Ela forçou-o a trabalhar durante trinta anos. Acho que está cansada." "E tenho a
impressão que ela o perseguirá por mais trinta anos", diz Kate. "Se não for ela, Anse arranjará outra_ antes da colheita do algodão." _ "Creio que, agora, Cash e
Darl podem casar", diz Eula. "Esse pobre rapaz", diz Cora. "Esse pobrezinho." "E que me diz de Jewel?", diz Kate. 'Também pode casar", diz Eula. "Uhm", diz Kate.
"Acho que ele quer. Acho que sim.
Mas existem por aqui muitas moças que não gostariam de ver Jewel amarrado. Bem, elas não precisam se preocupar." "Puxa, Kate", diz Cora. A carroça começa a chiar.
"O pobrezinho", diz Cora.
Sem dúvida vai chover esta noite. Sim, senhor. Uma carroça que chia é sinal de tempo excessivamente seco. Especialmente quando se trata de uma Birdsell*. Mas dá-se
um jeito. Tenho certeza.
"Ela devia ficar com os bolos, já que fez a encomenda", diz Kate.
*Marca de carroças e charretes. (N. do T.)
Anse
Diabo de estrada. E vai chover, com certeza. Parece que estou vendo: vai desabar um temporal atrás deles, levantando uma parede entre eles e a minha palavra empenhada.
Faço o que posso, espremo a cabeça, mas o diabo desses rapazes. ..
Estirada aqui, bem à minha porta, um lugar que favorece a má sorte. Eu disse a Addie que não era bom morar à beira de uma estrada, quando a estrada chegou até aqui,
e ela respondeu, no seu rampante de mulher: "Então levante-se e mude-se."
Mas eu lhe disse que não adiantava, porque Deus faz as estradas para a gente viajar: para isso é que Ele as estende por sobre a terra. Quando Ele quer que uma coisa
se movimente, faz a coisa comprida, como uma estrada ou um cavalo ou uma carroça, mas quando Ele quer que uma coisa fique quieta, Ele faz a coisa para cima, como
uma árvore ou um homem. Por isso, Ele nunca quis que as pessoas morassem em estradas, pois, afinal, quem veio primeiro, a estrada ou a casa? É possível colocar uma
estrada perto de uma casa?, eu pergunto. Não, nunca, eu respondo, porque os homens não descansam numa casa onde cospem todos os que passam na estrada, em carroça,
deixando as pessoas inquietas e desejosas de ir para outro lugar, pois Ele quis que ficassem quietas como uma árvore ou um monte de milho. Porque se Ele quisesse
que os homens andassem sempre de um lado para outro, não lhes teria encompridado o ventre, como fez às cobras? Claro que sim, se Ele tivesse querido.
Aí está a estrada, para que todo o azar venha por ela bater direto à minha porta, sem falar, acima de tudo, nos impostos. Tive de pagar para Cash aprender carpintaria,
quando de não teria tido tal ideia se a estrada não viesse ter aqui; e não teria caído da igreja para ficar seis meses de mãos abanando e eu e Addie morrendo de
trabalhar, quando, precisamente, havia tanta coisa a serrar, e ele teria serrado, se estivesse em condições.
E Darl? Todos querendo afastá-lo de mim, malditos sejam. Não é que eu receie o trabalho; sempre ganhei o sustento para mim e os de casa e nunca nos faltou um teto:
o problema é que queriam tirar-me Darl só porque ele sabe onde tem o nariz, só porque ele vive a pensar na plantação. Eu lhes disse: ele ia bem, a principio, com
os olhos postos na terra, porque a terra se estendia para cima e para baixo; foi quando essa estrada apareceu e dividiu e encompridou a terra, e como os olhos de
Darl continuassem postos na terra, então eles começaram a ameaçar-me de tirá-lo de mim, com a ajuda da lei.
Fizeram-me pagar por isso. Ela era uma mulher sã e forte como não havia outra, mas apareceu a estrada. Ela se deitou para descansar, em sua própria cama, sem pedir
nada a ninguém. "Está doente, Addie?", eu disse.
"Não estou doente", ela disse.
"Fique deitada e descanse bem", eu disse. "Sei que não está doente. Está apenas cansada. Fique deitada e descanse."
"Não estou doente", ela disse. "Vou me levantar."
"Esteja quieta e descanse", eu disse. "Você está só cansada. Pode se levantar amanhã."
E ela ficou deitada, sã e forte como não havia outra mulher, se não fosse a estrada.
"Eu nunca mandei chamá-lo", eu disse. "Tomo você como testemunha de que nunca mandei chamá-lo."
"Sei que não mandou", disse Peabody. "Não estou duvidando. Onde está ela?"
"Está deitada", eu disse. "Só um pouquinho cansada, mas ela..."
"Saia daqui, Anse", ele disse. "Vá sentar-se um pouco no alpendre."
E agora tenho de pagar, eu que não tenho um dente na boca, eu que esperava economizar para poder consertar a boca e comer conforme Deus manda que um homem coma,
e ela sã e forte como não havia outra mulher por aqui até aquele dia. Obrigado a pagar para ter necessidade agora desses três dólares. Obrigado a pagar para que
os rapazes tenham de sair para ganhá-los. E agora eu posso ver, como se adivinhasse, que a chuva vai desabar entre nós, que vai chegar por essa estrada como um homem
amaldiçoado, como se não existisse outra casa em que chover por todo o mundo dos vivos.
Tenho ouvido gente maldizer a sorte, e com razão, pois era gente pecadora. Mas, comigo, não é praga, porque nada fiz de que me possa arrepender. Não sou religioso,
reconheço. Mas minha consciência está em paz: sei que está. Fiz coisas nem melhores nem piores do que os outros fazem e disfarçam, e sei que Deus Nosso Senhor cuidará
de mim como de um pardal que não consegue voar. Mas parece duro que um homem se veja em tantas dificuldades só por causa de uma estrada.
Vardaman chega, por trás da casa, com os joelhos sujos de sangue como um leitão, e aquele peixe cortado em postas, provavelmente com um machado, ou quem sabe jogado
fora, para ele me mentir então, dizendo que os cães o comeram. Bem, acho que não posso esperar dele mais do que recebo de seus irmãos maiores. Ele se aproxima, observando
a casa, tranquilo, e se senta nos degraus. "Ufa", diz, "estou morto de cansaço." "Vá lavar as mãos", digo. Não há mulher melhor que Addie para mantê-los na linha,
homens e meninos: tenho de confessar.
"Estava cheio de sangue e de tripas, como um leitão", ele diz. A verdade, porém, é que não tenho disposição para coisa alguma, ainda mais com este tempo que me entristece.
"Pai", ele diz, "Mãe piorou?" "Vá lavar as mãos", digo. A verdade é que não tenho mesmo disposição para nada.
Darl
Ele foi á cidade esta semana: a nuca está toda rapada, com uma linha branca entre o cabelo e a pele tostada, qual junta de osso branco. Não se virou uma só vez para
olhar.
"Jewel", eu digo. Correndo para trás, afunilada entre os dois pares de orelhas inquietas das mulas, a estrada desaparece embaixo de carroça como se fosse uma fita
e o eixo da frente um carretel. "Você sabe que ela vai morrer, Jewel?"
Para fazer a gente, são necessárias duas pessoas; para morrer, basta uma. Assim o mundo marcha para o fim.
Eu disse a Dewey Dell: "Você quer que ela morra para poder ir à cidade, não é?"
Ela não pretendia dizer aquilo que nós dois sabíamos. "A razão de você não querer dizer é que, quando diz, mesmo a você, sabe que é verdade, certo? Ainda agora você
sabe que é verdade. Quase posso dizer o dia em que você soube que é verdade. Por que, então, não dizer isto, mesmo a si própria?" Mas ela não dirá. Insiste apenas
em perguntar:. "Vai contar a Pai? Vai matá-lo?" "Você não pode acreditar que é verdade porque não pode acreditar que Dewey Dell, Dewey Dell Bundren, viesse a ter
tanto azar, certo?" O sol, que permaneceu uma hora acima do horizonte, pousou, qual ovo ensanguentado, sobre uma crista de nuvens ameaçadoras; a luz tomou-se de
cobre: fatídica para os olhos, sulfurosa para o nariz, cheirando a relâmpagos. Quando Peabody chegar, terão de usar a corda. Ele entupiu as tripas de tanto comer
verduras cruas. Com a corda eles o farão subir pela estrada, qual balão no ar sulfuroso.
"Jewel", eu digo, "você sabe que Addie Bundren está morrendo? Que Addie Bundren está morrendo?"
Peabody
Quando Anse, por fim, mandou-me chamar, por sua própria conta, eu disse: "Ele acabou gastando inteiramente a mulher." E eu disse: "Que coisa", e no começo pensei
em não ir, porque, se ainda pudesse fazer alguma coisa, eu teria de arrancá-la à força, Deus me perdoe. Pensei que talvez haja no céu a mesma ética estúpida da Faculdade
de Medicina, e que provavelmente Vernon Tull me mandaria chamar outra vez, no exato momento, como Vernon sempre faz, tirando do dinheiro de Anse maior proveito do
que tira de seu próprio dinheiro. Mas quando o dia, já avançado, não me permitiu prever o tempo, eu compreendi que o chamado viera de Anse e de mais ninguém. Compreendi
que só um homem infeliz teria necessidade de médico quando irromper um ciclone. E eu sabia que, se ocorrera a Anse a ideia de chamar um médico, é porque já seria
tarde demais.
Quando cheguei à nascente e desci e atei as rédeas da parelha, o sol já se escondera atrás de um barranco de nuvens negras semelhantes ao cume de um maciço montanhoso,
semelhantes a um carregamento de cinzas ali derramado, e não ventava. Ouvi a serra de Cash a quilômetro e meio de distância, antes de chegar lá. Anse estava em pé
rio alto do morro acima da vereda.
"Onde está o cavalo?", pergunto.
"Jewel levou-o", ele diz. "Ninguém mais conseguiria. Acho que você tem de ir a pé."
"Eu, subir a pé, com meus cento e dez quilos", digo. "Subir este maldito morro?"
Ele está de pé, junto a uma árvore. Pena que o Senhor tenha feito o erro de dar raízes às árvores e pés e pernas aos Anse Bundrens que Ele espalha no mundo. Se Ele
fizesse ao contrário, não haveria risco algum de esta região ficar algum dia desflorestada. Ou qualquer outra. "Que quer que eu faça?", digo. "Que fique aqui parado,
até que o vento me carregue, quando aquela nuvem despencar?" Mesmo a cavalo seriam necessários quinze minutos para cruzar o pasto até o alto da elevação e chegar
à casa. A vereda parece um membro torto atirado contra a vertente. Anse não vai à cidade há doze «no». Eu só que- ria saber como é que sua mãe subiu até lá para
trazê-lo ao mundo, visto que ele é o filho de sua mãe.
"Vardaman vai trazer a corda", ele diz.
Dentro em pouco Vardaman aparece com a corda do arado. Entende a ponta a Anse e desce pela vereda, desenrolando-a.
"Segure firme", eu digo. "Já registrei esta visita nos meus livros, de forma que, chegue ou não lá em cima, você terá de me pagar".
"Eu aguento firme", diz Anse. "Pode subir."
O diabo me leve se eu sei por que não desisto. Um homem de setenta anos, com mais de 110 quilos, tendo de subir a uma maldita montanha e depois descer, agarrado
a uma corda. Acho que é porque tenho de atingir os cinquenta mil dólares anotados nos livros, antes de me aposentar.
"Por que diabo sua mulher foi cair doente?", eu digo, "e logo no alto de uma condenada montanha?"
"Sinto muito", ele diz.
Larga a corda, deixa-a cair e se vira para a casa. Ela ainda está banhada pela fraca luz do dia, da cor de barras de enxofre. As tábuas parecem tiras de enxofre.
Cash não olha para baixo. Vernon Tull diz que ele leva cada tábua ao peitoril da janela, para que ela a veja e aprove. O rapaz toma a nossa dianteira. Anse volta-se
e olha-o.
"Onde está a corda?", pergunta.
"Está onde você deixou-a", digo. "Mas não se preocupe com a corda. Terei de descer desse despenhadeiro. Não quero que a tempestade me apanhe aqui em cima. Assim
que terminar a consulta sairei correndo, tangido pelo diabo."
A moça está em pé ao lado da cama, abanando-a. Quando entramos, ela vira a cabeça e nos encara. Há dez dias está como morta. Creio que, tendo sido uma parte de Anse
durante tanto tempo, ela não se decide a fazer a mudança, se é que se trata de mudança. Lembro-me que, quando jovem, eu julgava a morte um fenômeno do corpo; agora,
sei que não passa de função do espírito — também do espírito dos que sofrem a perda. Os niilistas dizem que a morte é o fim; os fundamentalistas, que é o princípio;
quando, na realidade, não é mais que um inquilino ou uma família que sai de uma casa alugada ou de uma cidade.
Ela olha para nós. Apenas seus olhos parecem mover-se.
É como se nos tocasse, não com a vista ou os sentidos, mas como nos toca o jorro de uma mangueira, um jorro que, no instante do impacto, se houvesse dissociado do
bocal, como se nunca tivesse saído por ali. Não olha de maneira alguma para Anse. Olha para mim, depois para o rapaz. Debaixo do cobertor ela está reduzida a um
feixe de varas podres.
"Então, Miss Addie", eu digo. A moça não para o leque. "Como vai, irmã?", eu digo. Sua cabeça descarnada no travesseiro olha para o rapaz. "Você escolheu uma bela
ocasião para me trazer aqui, na iminência de uma tempestade." Em seguida, mando Anse e o rapaz saírem. Ela acompanha com os olhos o rapaz sair do quarto. Ainda não
se moveu, à exceção dos olhos.
Ele e Anse estão no alpendre, quando eu saio, o rapaz sentado nos degraus, Anse em pé, junto a um esteio, mas sem se escorar, os braços caídos, o cabelo revolto
e emaranhado no alto da cabeça qual um galo molhado. Vira a cabeça, pestaneja na minha direção.
"Por que não me mandou chamar mais cedo?", eu digo.
"Com uma coisa e outra, o tempo foi passando", ele diz. "Eu e os rapazes queríamos colher o milho, Dewey Dell cuidava bem dela, e os vizinhos vinham ajudar, até
que eu pensei..."
"O dinheiro que vá para o inferno" eu digo. "Você já me viu perseguir alguém antes de me poder pagar?"
"Não foi por causa do dinheiro", ele diz. "Eu apenas pensei... Ela está nas últimas, não é?"
O maldito moleque está sentado no degrau de cima, parecendo menor à luz cor de enxofre. Esta região tem um defeito: tudo, o tempo, tudo dura demais. Nossos rios,
nossa terra: opacos, vagarosos, violentos; modelando e criando a vida do homem à sua implacável e soturna imagem.
"Eu já sabia", disse Anse. "Sempre tive certeza. Ela meteu isso na cabeça."
"Maldita coisa", cu digo. "Com um insignificante..." Ele continua sentado no degrau de cima, pequeno, imóvel no macacão desbotado. Quando eu entrei, olhou-me, depois
a Anse. Mas agora parou de nos olhar. Limita-se a ficar sentado.
"Você avisou-a?", pergunta Anse.
"Para quê?", eu digo. "Para que diabos iria avisá-la?"
"Ela já sabe. Eu sabia que, quando ela visse você, ficaria sabendo, como se a coisa estivesse escrita. Não é preciso dizer-lhe. Ela meteu..."
Atrás de nós, a moça diz: "Pai." Olho para ela, em pleno rosto.
"Melhor que você saia logo", digo.
Quando entramos no quarto ela está vigiando a porta. Olha para mim. Seus olhos parecem candeias que bruxuleiam antes que o querosene acabe. "Ela quer que o senhor
vá embora", diz a moça.
"Ora, Addie", diz Anse, "depois que ele veio de Jefferson para sarar você?"
Ela me observa: posso sentir-lhe os olhos. Como se me enxotasse com os olhos. Já observei isto em outras mulheres. Já as vi expulsar do quarto as pessoas que iam
levar-lhes simpatia e piedade, além de ajuda, e agarrarem-se a um animal insignificante para o qual nunca passaram de besta de carga. Eis o que elas entendem por
amor acima de tudo: esse orgulho, esse furioso desejo de esconder a nudez abjeta que trazemos conosco, que levamos conosco às salas de cirurgia, e devolvemos conosco,
de maneira estúpida e furiosa, à terra.
Saio do quarto. Além do alpendre, a serra de Cash ronca firme na tábua. Um minuto depois ela o chama, em voz áspera e forte.
"Cash", diz. "Escuta, Cash!"
Darl
Pai está em pé ao lado da cama. Por trás de sua perna, Vardaman espia, com a cabeça redonda e os olhos redondos e a boca que começa a se abrir. Ela olha Pai: parece
que toda a sua débil vida flui para os olhos, urgente, irremediavelmente. "É Jewel quem ela quer ver", diz Dewey Dell.
"Ora, Addie", diz Pai, "ele e Darl foram apanhar outro carregamento. Julgaram que haveria tempo. Que você esperaria por eles, e que esses três dólares, afinal..."
Inclina-se e põe a mão na mão dela. Por um Instante ela o olha, sem censura, sem nada, como se os olhos apenas aguardassem o momento de ouvir a irrevogável cessação
da voz dele. Em seguida, soergue-se, ela que não se move há dez dias. Dewey Dell debruça-se sobre a cama, tentando fazer com que se deite.
"Mãe", ela diz, "Mãe."
Está olhando pela janela, para Cash que, inclinado com determinação sobre o cavalete, à luz desfalecente, trabalha quase no escuro, e entra no escuro como se o golpe
da serra iluminasse seu próprio movimento- engendrado pela tábua e pela serra.
"Cash!", ela grita com voz áspera, forte, inalterada. "Escute, Cash!" Ele levanta o olhar para o rosto consumido que o crepúsculo emoldura na janela. O mesmo quadro
desde os seus tempos de criança, Ele pousa a serra e ergue a tábua para que ela a veja, olhando a janela do onde o rosto não se move. Levanta outra tábua e junta
as duas, em sua final justaposição, apontando para as tábuas que ainda estão no solo, e modelando, com a mão vazia, em pantomima, o caixão, quando estiver pronto.
Durante mais um pouco ela olha para ele, do quadro composto pela janela, .sem censura ou aprovação. Depois, o rosto desaparece.
Ela se deita novamente e vira a cabeça, sem um olhar de relance, sequer, para Pai. Olha Vardaman; seus olhos, a vida neles, a vida que ainda tem, ali se concentra;
os dois clarões luzem por um rápido instante, e depois se apagam, como se alguém, tendo se inclinado, houvesse soprado.
"Mãe", diz Dewey Dell, "Mãe!"
Inclinada sobre a cama, as mãos um pouco erguidas, o leque ainda agitando-se, como há dez dias, ela começa a lamuriar-se. Sua voz é forte, juvenil, trêmula e clara,
arrebatada por seus próprio timbre e volume; ainda agita, o leque com firmeza, para cima e para baixo, sussurrando no ar inútil. Depois, ela cai sobre os joe lhos
e Addie Bundren, e agarrando-a, sacode-a com a furiosa força dos jovens, antes de estender-se, de súbito, sobre o punhado de ossos corroídos que resta de Addie Bundren,
abalando a cama com o silvo rangente do colchão, os braços estendidos e o leque, numa das mãos, ainda a bater, com um sopro expirante, no cobertor.
Por trás da perna de Pai, Vardaman espia, de boca bem aberta e a cor fluindo do rosto para a boca, como se, de certo modo, houvesse cravado os dentes em si mesmo,
sugando. Começa a se afastar vagarosamente da cama, os olhos redondos, o rosto pálido desmaiando no crepúsculo qual pedaço de papel colado a uma parede arruinada,
e sai pela porta.
Pai inclina-.se para a cama; ao crepúsculo sua silhueta encovada assemelha-se ao aspecto eriçado, descontente, de um mocho que disfarça uma sabedoria por demais
profunda, ou por demais inerte para ser, sequer, concebida.
"Meninos danados", ele diz.
Jewel, eu digo. Por cima, o dia definha, monótono e cinzento, escondendo o sol atrás de uma nuvem de lanças cinzentas, As mulas fumegam um pouco, sob a chuva, amarelecidas
pelos respingos de lama, e a da direita, apesar de escorregar, mantém se na estrada, acima da valeta. A carga de madeira despede um brilho amarelo-escuro, empapado,
de água e pesado como chumbo, inclinado de banda, para a valeta, por sobre a roda quebrada; em volta dos raios entrançados e em volta dos tornozelos de Jewel, um
fio grosso de água e amarelo, nem água nem terra, gira, seguindo a estrada amarela, nem água nem terra, desce pela encosta em forma de massa dissoluta, verde-escuro,
nem água nem céu. Jewel, eu digo Cash aparece à porta, de serra na mão. Pai continua em pé, ao lado da cama, curvado, os braços pendentes. Volta a cabeça; seu perfil
gasto e seu queixo desaparecem devagar, enquanto ele comprime o fumo contra as gengivas.
"Findou-se", diz Cash.
"Foi embora e nos deixou", diz Pai. Cash não o olha. "Falta muito para acabar o trabalho?", pergunta Pai. Cash não responde- Entra carregando a serra. "Ê melhor
acabar o trabalho", diz Pai. "Você tem de caprichar, agora que os rapazes estão a caminho." Cash pousa os olhos no rosto du mãe. Não ouve Pai de forma nenhuma. Não
se aproxima da cama. Para no meio do quarto, a serra contra a perna, os braços suados polvilhados de serragem, o rosto grave. "Se estiver apertado, talvez alguém
venha amanhã dar-lhe ajuda", diz Pai. "Vernon, por exemplo." Cash não está ouvindo. Olha o rosto da mãe, pacificado e rígido, esmaecendo ao crepúsculo como se as
sombras se antecipassem à última terra, até que, por fim, o rosto parece flutuar, destacado de si mesmo, leve como o reflexo de uma folha morta. "Não faltam bons
cristãos para ajudar você", diz Pai. Cash não escuta. Depois de algum tempo, vira-se sem olhar Pai e deixa o quarto. Depois, a serra começa a roncar novamente. "Vão
nos ajudar em nossa desgraça", diz Pai.
O som da serra é firme, competente, sereno; agita a claridade mortiça, de forma que, a cada golpe, o rosto da morta parece despertar um pouco, em expressão de atenção
e espera, como se ela estivesse contando os golpes. Pai baixa o olhar para o rosto, junto aos cabelos pretos e esparramados de Dewey Dell que, de braços abertos,
tem o leque agora imóvel sobre o cobertor descorado. "Acho que é melhor você preparar o jantar", ele diz.
Dewey Dell não se move.
"Levante-se, já e já, e vá servir o jantar", diz Pai. "Temos de manter as forças. O Dr. Peabody deve estar faminto por causa da caminhada, E Cash terá de comer ligeiro
e voltar ao trabalho a fim de terminar tudo a tempo." Dewey Dell levanta-se com dificuldade. Contempla o rosto da morta. Ele parece um molde de bronze pálido sobre
o travesseiro somente nas mãos um ligeiro vestígio de vida: uma inércia encrespada, nodosa; um aspecto de coisa gasta, mas ainda vigilante, do qual ainda não saíram
a preocupação, a fadiga, o trabalho, como se duvidassem ainda da realidade do repouso, guardando com penosa e eriçada vigilância a imobilidade que bem sabem não
pode durar.
Dewey Dell inclina-se, puxa o cobertor debaixo das mãos e estende-o ate o queixo, alisando-o, estirando-o até que fique bem macio. Depois, sem olhar Pai, ela contorna
a cama e sai do quarto.
Vai ao encontro de Peabody, a um lugar onde passa, em pé «a penumbra, fitar-lhe as costas com tal expressão que, sentindo seus olhos e voltando-se, ele dirá: "Não
fique as sim tão desgostosa. Ela era velha e estava doente. Sofria mais do que se podia imaginar Não ia ficar boa. Vardaman está crescendo e, como você, tomará conta
de todos. Eu, em seu lugar, não ficaria tão desgostoso. Acho que é melhor ir aprontar o jantar. Não preciso fazer muita coisa. Mas eles têm de comer". E ela, olhando-o,
parece dizer: "O senhor bem que podia me ajudar, se quisesse. Se soubesse. Eu sou eu e o senhor é o senhor e eu sei e o senhor não sabe e o senhor podia fazer muito
por mim se quisesse e se o senhor quisesse então eu lhe contaria e então ninguém precisaria ficar sabendo exceto o senhor e eu e Darl".
Pai está em pé ao lado da cama, de braços pendentes, encurvado, imóvel. Leva a mão à cabeça, puxa o cabelo, ouvindo a serra. Aproxima-se e esfrega a mão, a palma
e as costas da mão na coxa, e depois põe a mão no rosto e no dorso do cobertor, onde estão as mãos dela. Toca o cobertor como viu Dewey Dell fazer, tentando alisá-lo
até o queixo, mas, em vez disso, enrugando-o. Procura alisá-lo de novo, desajeitadamente; a mão trapalhona como uma garra alisa as rugas que ele fez e que continuam
a emergir debaixo da mão, com perversa ubiquidade, de forma que, por fim, ele desiste; a mão tomba na ilharga e ele volta a esfregar palma e costas da mão na coxa.
O som da serra ronca com firmeza dentro do quarto. Pai respira com um som tranquilo e rascante, mastigando o tabaco contra as gengivas. "Seja o que Deus quiser",
diz. "Agora posso comprar a dentadura." O chapéu de Jewel pende mole sobre seu pescoço, escorrendo água sobre o empapado saco de aniagem amarrado ao ombro, enquanto
ele, enterrando os pés na valeta lamacenta, levanta o eixo com um pedaço de pau escorregadio e podre, que usa como alavanca. Jewel, eu digo, ela está morta, Jewel.
Addie Bundren morreu.
Vardaman
Então eu começo a correr. Corro para os fundos e chego ao canto do alpendre e paro. Então começo a chorar. Eu posso sentir onde o peixe estava na poeira. Está cortado
agora em pedaços, em pedaços de coisas que não são peixe, e não tenho sangue nas mãos e no macacão. Ainda não tinha acontecido isto. Isto nunca tinha acontecido.
E agora ela está tão longe que eu não posso alcançá-la.
As árvores parecem galinhas quando se revolvem na poeira fria, nos dias quentes. Se eu saltar pelo alpendre, cairei no lugar onde o peixe estava, o peixe que não
é mais peixe, cortado que foi em pedaços. Posso ouvir a cama e o rosto dela e eles todos e posso sentir o chão estalar quando ele caminha, ele que veio e fez isto.
Ele que veio e fez isto quando ela estava boa, mas ele veio e fez isto.
"O gordo filho da puta." Salto o corrimão, na carreira. O topo do celeiro emerge, em curva desgraciosa, do crepúsculo. Se eu saltar, posso atravessá-lo como a senhora
de maiô cor-de-rosa do circo, e penetrar no cheiro quente, sem precisar esperar. Minhas mãos agarram os arbustos; debaixo dos meus pés, as pedras e a terra escorregam.
Agora posso respirar outra vez, no cheiro quente. Entro na cavalariça, (tentando tocar nele, e então posso chorar mas engulo o choro. Assim que ele para de dar coices,
eu posso chorar, eu consigo chorar.
"Ele matou-a. Ele matou-a." A vida corre embaixo de sua pele, debaixo de minha mão, corroído pelas manchas, cheirando em meu nariz onde a coceira começa a se transformar
em choro, engolindo o choro, e então eu posso respirar, contendo o choro. Tudo isto faz barulho. Posso cheirar a vida correndo embaixo de minhas mãos, subindo pelos
meus braços, e então cu posso sair da cavalariça.
Não consigo encontrá-lo. No escuro, na poeira, nas paredes, não consigo encontrá-lo. O choro faz muito barulho. Eu queria que não fizesse tanto barulho. Então eu
o encontro na cocheira, no pó, e cruzo o pátio, na carreira, e entro na estrada, o pau balançando em meu ombro.
Eles me olham enquanto eu subo, e começam a recuar aos saltos, rolando os olhos, resfolegando, puxando as rédeas que os prendem. Eu bato. Posso ouvir o pau batendo;
posso ver o pau atingir-lhes as cabeças, as rédeas, falhando às vezes, enquanto eles recuam e tentam soltar-se, mas eu estou contente.
"Você matou minha mãe!" O pau quebra-se; eles corcoveiam e resfolegam, suas patas batem surdas no chão; surdas, porque vai chover e o ar está vazio para receber
chuva. Mas o pedaço de pau que me restou ainda é comprido. Corro em volta, enquanto eles resfolegam e saltam e puxam as rédeas, e eu bato.
"Você matou-a!" Bato neles, bato, eles giram em longa investida, e o carro gira sobre as duas rodas até ficar imóvel, como se cravado ao chão, e os cavalos param,
imóveis, como se pregados pelas patas traseiras ao centro de uma prancha giratória.
Corro sobre a poeira. Não consigo ver, correndo como estou na poeira absorvente, onde o carro desaparece, inclinado sobre as duas rodas. Bato, o pau fere o chão,
ressalta, fere a poeira e, depois, sobe novamente, e a poeira absorvente corre pela estrada, mais depressa que um automóvel por ali passando. E outra vez posso chorar,
olhando o pau. Está quebrado em minha mão, um pau comprido agora reduzido a um pedaço de lenha para o fogão. Atiro-o fora e posso chorar. Agora o choro não faz muito
barulho.
A vaca está à porta do estábulo, ruminando. Quando me vê entrar no pátio, ela muge, a boca cheia de um verde gotejante, a língua gotejando.
"Não vou ordenhar você. Não quero fazer isto para eles," Ouço-a virar-se quando passo. Quando me viro, ela está bem atrás de mim, soprando seu hálito doce, quente,
pesado.
"Já não falei que não vou ordenhar?" Ela me empurra, resfolegando. Geme por dentro, com a boca fechada. Levanto a mão e praguejo contra ela, como Jewel faz. "Dê
o fora." Abaixo a mão e corro para ela. Ela retrocede com um pulo, gira e para, observando-me. Muge. Dirige-se à vereda e para ali, olhando o alto da vereda, O estábulo
está escuro, quente, cheiroso, silencioso. Posso chorar em paz, olhando o cimo da colina.
Cash aparece na colina, coxeando por causa da queda que sofreu da igreja. Olha, embaixo, a nascente, depois a estrada, em cima, e embaixo, de novo, o estábulo. Desce
pela vereda, rígido, olha as 'rédeas partidas e a poeira da estrada e em seguida a estrada, mais acima, onde a poeira desapareceu.
"Acho que, a essa hora. passavam pela casa de Tull. É o que espero." Cash volta-se e sobe, coxeando, a vereda.
"Maldito seja ele. Vou dar-lhe uma lição. Maldito seja." Não «atou chorando agora, Não sou nada. Dewey Dell aparece na colina e me chama. "Vardaman." Não sou nada.
Estou tranquilo. "Venha cá, Vardaman." Agora posso chorar em paz, sentindo e ouvindo minhas lágrimas.
"Então, não havia acontecido nada. Ainda não havia acontecido. Ele estava aqui, ali, estirado no chão. E agora ela se prepara para cozinhá-lo." Escureceu. Posso
ouvir o bosque, o silêncio: eu os conheço. Mas os sons não são de coisa viva, nem sequer dele. É como se a escuridão o retirasse de sua integridade, espalhando seus
elementos desconjuntados — sopros e ruídos de cascos; cheiros de carne fresca e de cabelo cheirando a amoníaco; a ilusão de uma totalidade coordenada com pele malhada
e ossos fortes sob os quais, isolado e secreto e familiar, há um ser diferente de meu ser. Eu o vejo dissolver-se — pernas, um olho assustado, manchas escuras semelhantes
a frias labaredas — e flutuar na escuridão, em caldo evanescente; nem um, nem outro; um e outro, os dois e, no entanto, nenhum deles. Posso vê-lo, ouvi-lo a recompor-se,
acariciando, modelando sua rude forma — machinho, anca, espádua e cabeça; cheiro e som. Não tenho medo.
"Cozido e comido. Cozido e comido."
Dewey Dell
El e bem que podia me ajudar muito, se quisesse. Podia fazer tudo por mim. Até parece que para mim tudo no mundo está dentro de um balde cheio de tripas, sendo de
admirar que haja ali espaço para uma coisa mais importante. Ele é um grande balde de tripas e eu sou um pequeno balde de tripas e se não há espaço para uma coisa
mais importante num grande balde de tripas, por que procurar, então, num pequeno balde cheio de tripas? Mas eu sei que há, porque Deus deu um sinal às mulheres,
para quando estiverem em desgraça.
Tudo porque estou sozinha. Se eu pudesse sentir apenas isto, seria diferente, porque eu não estaria sozinha. Mas se eu não estivesse sozinha, todo mundo saberia
então. E ele podia fazer muito por mim, e então eu já não estaria só. Pois, nesse caso, eu me sentiria bem, sozinha.
Deixaria que ele se interpusesse entre eu e Lafe, tal como Darl entre eu e Lafe, e por isso Lafe também está sozinho. Ele é Lafe e eu sou Dewey Dell, e guando minha
mãe morreu eu tive de fazer um esforço e sair de mim, e de Lafe e Darl, para lamentar que ele possa Jazer tanto por mim e não saiba disso. Não sabe de modo algum.
Do alpendre dos fundos não posso ver a cavalariça. O som da serra de Cash chega daquela direção. É como um cão fora de casa, rodeando a casa para ver em que porta
a gente assoma, esperando vez de entrar. Ele disse: "Eu me preocupo mais que você." E eu disse: "Você não sabe o que e tormento, e por isso não |posso atormentar-me.
Eu tento, mas não consigo pensar muito a ponto de me afligir." Acendo a candeia na cozinha. O peixe, cortado em pedaços irregulares, sangra tranquilamente na gamela.
Eu o ponho depressa no guarda-louça e presto atenção ao corredor, ouvindo. Ela levou dez dias para morrer. Talvez ainda não saiba que já se foi. Talvez não queira
ir até que Cash... Ou talvez até que Jewel... Tiro o prato com verduras do guarda-louça e a bandeja de pão do fogão apagado, e paro, vigiando a porta.
"Onde anda Vardaman?", diz Cash. À luz da candeia, seus braços polvilhados de serragem parecem ter areia.
"Não sei. Não o vi." "A parelha de Peabody fugiu. Veja se encontra Vardaman. O cavalo se deixará pegar por ele." "Está bem. Avise o pessoal para vir jantar." Não
posso ver a cavalariça. Eu disse: "Não sei como me afligir. Não sei chorar. Tentei, mas não posso." Após um instante, o som da serra chega à cozinha, escuro, rente
à terra, na escuridão crepuscular. Então eu o avisto, avançando e recuando o corpo sobre o cavalete.
"Você aí, venha jantar", digo. "Chame o doutor." Ele podia fazer tudo por mim. E não sabe. Ele é suas tripas e eu sou as minhas tripas. E eu sou as tripas de Lafe.
Eis aí. Não vejo por que motivo ele não ficou na cidade. Somos gente do campo, não melhor que a gente da cidade. Não vejo por que ele não ficou lá. Então, vejo o
alto da cavalariça. A vaca está parada na vereda, embaixo, mugindo. Quando eu me volto, Cash desapareceu.
Entro com a coalhada. Pai e Cash e ele estão sentados à mesa.
"Irmã, onde está aquele peixe grande que Bud pegou?", ele pergunta. Ponho o leite na mesa. "Ainda não tive tempo de cozinhá-lo."
"Umas verdurinhas não devem bastar para um homem do meu tamanho", ele diz. Cash está comendo. Em volta de sua cabeça, a risca do chapéu está gravada, pelo suor,
no cabelo. Sua camisa está manchada de suor. Não lavou as mãos e os braços.
"Você devia ter arranjado tempo", diz Pai. "Por onde anda Vardaman?" Dirijo-me à porta. "Não consigo encontrá-lo." "Ei, irmã", ele diz. "Não se preocupe com o peixe.
Acho que não ficará estragado. Venha sentar-se." "Não estou preocupada", digo. "Vou ordenhar antes que comece a chover." Pai serve-se e passa a travessa. Mas não
começa a comer. Suas mãos estão semifechadas nas bordas do prato, a cabeça um pouco inclinada e o cabelo revolto recortado à luz da candeia. Parece um boi logo após
ter sido abatido pela marreta, já sem vida, mas sem saber ainda que está morto.
Mas Cash está comendo, e ele também. "Melhor você comer alguma coisa", ele diz. Está olhando para Pai. "Como Cash e eu.. Você precisa."
"Ahn", diz Pai. Soergue-se como um boi que, ajoelhado à beira de um poço, recebe uma investida. "Ela não vai me querer mal por isto."
Quando não me podem ver da casa, corro. A vaca muge no sopé do barranco. Empurra-me de leve, resfolegando, soprando seu hálito em doce e quente rajada através de
meu vestido, contra minha pele quente, e mugindo. "Você tem de esperar um pouquinho. Depois eu cuido de você." Ela me segue ao celeiro, onde deixo o balde. Ela sopra
no balde, gemendo. "Tá disse. Você tem de esperar. Agora tenho mais o que fazer." O celeiro está escuro. Quando passo, ele atinge a parede com dou coices. Continuo.
A tábua partida é como uma tábua esmaecida, sempre de pé. Então eu posso ver a colina, sentir o ar passando de novo, vagarosamente, pelo meu rosto — e, onde a escuridão
é menos densa, vejo as manchas dos pinheiros na colina, sigilosos, à espera.
A silhueta da vaca emoldurada pela porta empurra a silhueta do balde, gemendo.
Passo pelo estábulo. Estou quase a ultrapassá-lo. Escuto-o muito tempo antes que ele possa dizer a palavra, e a parte que escuta tem medo que não haja tempo para
ouvir. Sinto que meu corpo, meus ossos e a carne começam a se separar, a se abrirem para a solidão, e o processo de não ficar sozinha é terrível. Lafe. Lafe. "Lafe"
Lafe. Lafe. Inclino-me um pouco para a frente, um pé estendido em passo morto. Sinto que a escuridão passa pelo meu seio, pela vaca; começo a perseguir a escuridão,
mas a vaca me detém e a escuridão foge na doce rajada do queixoso alento da vaca, cheio de madeira e de silêncio.
"Vardaman. Venha cá, Vardaman." Ele sai do estábulo. "Intrometido! Maldito intrometido" Ele não resiste; a última rajada de escuridão escapa, silvando.
"Que é isto? Eu não fiz nada."
"Maldito intrometido" Minhas mãos sacodem-no com dureza. Talvez eu não pudesse dominá-las. Nunca pensei que pudessem sacudir tão forte. Sacodem nós dois, nos fazem
tremer.
"Não fui eu", ele diz. "Não pus as mãos neles."
Minhas mãos param de sacudi-lo, mas eu ainda o seguro. "Que está fazendo aqui? Por que não responde quando eu chamo?" "Eu não estava fazendo nada." "Vá para casa
e coma o seu jantar." Ele recua. Eu não o largo." Largue-me. Deixe-me ir embora."
"Que esteve fazendo aqui? Não veio aqui para me espiar?"
"Nunca. Nunca. Largue-me agora. Eu nem sabia que você estava aqui. Deixe-me ir."
Eu o seguro, inclino-me para perscrutar-lhe o rosto, sinto-lhe bem o rosto. Ela está a ponto de chorar. "Vá embora, ande. Já servi o jantar e voltarei logo que tiver
ordenhado. Melhor andar depressa antes que comam tudo. Espero que a parelha tenha voltado diretamente a Jefferson."
"Ele matou-a", diz. E começa a chorar.
"Cale-se."
"Ela nunca lhe fez mal e ele veio aqui e matou-a."
"Cale-se." Ele debate-se. Eu continuo a agarrá-lo. "Cale se."
"Ele matou-a."
A vaca vem atrás de nós, gemendo. Eu o sacudo novamente. "Pare com isso. Imediatamente. Se você continuar assim, vai cair doente e não pode ir à cidade. Vá para
casa e coma seu jantar."
"Não quero jantar. Não quero ir à cidade."
"Então nós deixaremos você aqui. Se não se comportar bem, ficará aqui. Vamos, vá para casa antes que aquele balde de tripas coma todas as verduras." Ele caminha,
desaparecendo vagarosamente na colina. O cimo, as árvores, o telhado da casa recortam-se contra o céu. A vaca me empurra, gemendo. "Você tem de esperar. O que você
tem ai dentro não é nada em comparação com que eu tenho, embora você também seja mulher."
Ela me acompanha, gemendo. Então o ar morto, quente e pálido, sopra de novo contra meu rosto. Ele podia dar um jeito, se quisesse. Mas nem mesmo desconfia. Ele podia
fazer muito por mim, se soubesse. A vaca sopra em minhas ancas e costas — um hálito quente, doce, estertoroso, queixoso. O céu estende-se raso sobre a encosta, sobre
os secretos vultos de árvores. Além da colina, manchas de relâmpagos sobem e desaparecem. O morto modela a terra morta na escuridão morta, até onde a vista alcança.
Ele desce sobre mim, morto e quente, tocando minha nudez através das roupas. Eu disse: "Você não sabe o que é tormento." Eu também não sei. Nem mesmo sei se estou
aflita ou não. Se posso ou não. Não sei se posso chorar ou não. Não sei se cheguei a tentar ou não. Eu me sinto como uma semente úmida e selvagem na terra quente
e cega.
Vardaman
Quando terminarem eles vão metê-la dentro e então, durante muito tempo não pude dizer isso. Vi a escuridão levantar-se e se afastar em redemoinhos e eu disse: "Vai
pregá-la ai dentro. Cash? Cash? Cash?" Uma vez, estive encerrado no silo a porta nova era muito pesada para mim ela fechou-se eu não pude respirar porque o rato
ficava com o ar todo. Eu disse: "Vai fechá-la ai dentro com pregos. Cash? Com pregos? Com pregos?" Pai caminha em volta. Sua sombra caminha em volta, sobre Cash
que avança e recua o corpo manejando a serra, no cavalete que sangra.
Dewey Dell disse que teríamos bananas. O trem está atrás da cristaleira, vermelho sobre os trilhos. Quando corre, a linha férrea brilha de quando em quando. Pai
disse que a farinha, o açúcar e o café estão muito caros. Porque eu sou um menino do campo e há meninos da cidade. Bicicletas. Por que a farinha, o açúcar e o café
custam tanto, quando a gente e menino do campo? "Em vez disso, você não gostaria de comer mais bananas?" As bananas desapareceram, comidas. Sumiram. Quando ele corre,
a linha férrea brilha novamente. "Por que eu não sou menino da cidade, pai?", perguntei. Deus me criou. Eu não pedi a Deus para me criar no campo. Se Ele pode fazer
o trem, por que não pode nos fazer na cidade, por causa da farinha e do açúcar e do café? "Você não preferia comer bananas?" Ele anda em volta. Sua sombra anda em
volta. Não era ela. Eu estava lá, olhando. Eu vi. Pensei que era ela, mas não era. Não cru minha mãe. Ela havia sumido quando a outra se estirou na cama e puxou
o cobertor. Ela havia sumido. "Será que ela chegou á cidade?" "Ela foi além da cidade." "E todos esses coelhos e sarigueias foram mais longe da cidade?" Deus fez
os coelhos e as sarigueias. Fez o trem. Por que escolhe lugar diferente para eles irem, se ela é igualzinha a um coelho? Pai anda em volta. Sua sombra também. A
serra ronca como se estivesse, a dormir. Mas, se Cash pregar a tampa da caixa, então ela não é um coelho. E se ela não é um coelho eu não podia respirar no silo
e Cash vai pregá-la ai dentro. E se ela permite isto, então não é ela. Eu sei. Eu estava lá. Eu vi quando deixou de ser ela. Eu vi. Eles pensam que é e Cash vai
pregá-la. Não era ela porque elo estava atirado, lá embaixo, na poeira. E agora está cortado em pedaços. Eu cortei-o. Está na cozinha, na gamela manchada de sangue,
à espera de ser cozido e comido. Então, isso não havia acontecido ainda e ela estava viva, e agora isso aconteceu e ela não estava viva. E amanhã ele será cozido
e comido e ela será ele e Pai e Cash e Dewey Dell, e não haverá nada na caixa e então ela pode respirar. Ele estava jogado no chão, lá embaixo.' Posso perguntar
a Vernon. Ele estava lá e ele viu-o, e para nós dois ele estará e ela não estará.
Tull
Era quase meia-noite e tinha começado a chover quando ele nos acordou. Foi uma noite medonha, com a tempestade formando-se; uma noite em que se espera que aconteça
o pior, antes de se trazer o gado do pasto e se entrar em casa para jantar e meter-se na cama com a chuva começando a cair, e então, quando a parelha de Peabody
chegou aqui, coberta de espuma, com o a mês partido, a se arrastar, e a coleira por entre as patas do animal à direita, Cora disse: "É Addie Bundren. Ela acabou-se,
afinal." "Peabody pode ter ido a um das dezenas de casas que existem nas redondezas", digo. "Além disso, como você tem certeza que é z parelha de Peabody?" "Acha
que não?", ela diz. "Vamos, vá atrelar os cavalos." "Para que?", digo. "Se ela acabou-se, nada podemos fazer até de manhã. E a tempestade vai desabar." "É meu dever",
ela diz. "Vá recolher a parelha. Mas eu não queria. "Acho melhor que eles nos chamem, se precisarem de nós. Você nem mesmo tem certeza se ela morreu." "Ora, não
vê que é a parelha de Peabody? Insiste em dizer que não? Como quiser, então." Mas eu não queria ir. Sempre achei que, se alguém quer prestar ajuda, melhor esperar
que lhe peçam. "Fiz meu dever de cristã", diz Cora. "Quer se interpor entre eu e meu dever de cristã?" "Você pode ficar lá o dia inteiro, amanhã, se quiser", digo.
Assim, quando Cora me acordou, já havia começado a cho ver. Mesmo enquanto eu ia à porta, com a candeia, fazendo-a brilhar, através do vidro, para que ele visse
que eu ia atender, ele continuou batendo à porta. Não muito alto, mas com firmeza, como se pudesse cair no sono enquanto batia, mas eu não havia percebido ainda
que as pancadas soavam mais embaixo, na porta, até que abri e não vi nada. Levantei a candeia, a chuva cintilou adiante da candeia e Cora, atrás, no corredor, dizia:
"Quem é, Vernon?", mas eu não podia ver ninguém, a princípio, até que baixei a candeia e examinei o portal.
Ele parecia um cãozinho encharcado, com seu macacão, sem chapéu cheio de lama até os joelhos, pois caminhara seis quilômetros na lama. "Bem, que o diabo me leve",
eu disse.
"Quem é, Vernon?", diz Cora. Ele olhou para mim, seus olhos redondos e pretos no centro, como quando a gente ilumina, de súbito, a cara de uma coruja. "Não se esqueça
daquele peixe", diz. "Venha para dentro", eu digo. "Que aconteceu? Sua ma mãe. .." "Vernon", diz Cora. Ele continuava parado junto à porta, no escuro. A chuva respingava
a candeia, tamborilando de tal forma que eu tinha mede que ela se quebrasse a qualquer instante. "Você estava lá", ele diz. "Você viu o peixe." Então Cora chegou-se
à porta. "Você aí, saia da chuva", ela diz, puxando-o para dentro, enquanto ele contínua a me observar. Parecia mesmo um cachorrinho encharcado, "Eu lhe disse",
diz Cora. "Eu lhe disse que havia acontecido alguma coisa. Agora, vá atrelar os cavalos." "Mas ele não disse..." Ele me olhou, gotas de chuva pingando no chão. "Está
estragando o tapete", diz Cora. "Vá cuidar da parelha enquanto eu o conduzo à cozinha." Mas ele continuava atrás, pingando água, observando-me com aqueles olhos.
"Você estava lá. Você o viu jogado no chão. Cash vai pregá-la, e ele estava estirado no chão. Você o viu. Você viu o sinal na poeira. Eu já vinha para cá quando
começou a chover. Portanto, podemos chegar a tempo." O diabo me leve se não senti calafrios, mesmo não sabendo ainda de nada. Mas Cora sabia. "Apronte a parelha
o mais depressa que puder", diz ela. "Ele está fora de si, de tanta dor e aflição." O diabo me leve se não senti calafrios. De quando em quando, a gente se põe a
pensar. Sobre todas as tristezas e aflições deste mundo; que é capaz de ferir em qualquer lugar, como o raio. Acho que. para a gente se resguardar, é preciso muita
fé em Deus, embora eu sinta, às vezes, que Cora é precavida demais, pois trata de afastar os outros e ficar o mais perto possível do acontecimento. Mas então, quando
acontece uma coisa dessas, acho que ela tem razão e que não se pode dizer o contrário e que é uma bênção ter uma mulher que age sempre com piedade e que me indica
sempre boas ações.
De vez em quando a gente tem de pensar nessas coisas. Sem exageros, porém. O que é bom. Pois o Senhor deseja que a gente aja em vez de passar todo o tempo pensando,
porque o cérebro é como uma peça de maquinismo: não precisa estar sempre em movimento. Melhor deixá-lo funcionar rotineiramente, fazendo as tarefas do dia, sem utilizar,
mais que o necessário, nenhuma de suas partes. Já disse e repito que e isto mesmo o que se passa com Darl: ele pensa muito, sozinho. Cora está certa quando diz que
ele precisa e de uma mulher para fortalecer-se. E quando penso nisso, concluo que, se o casamento é a única salvação de um homem, então ele está perdido. Mas reconheço
que Cora tem razão quando diz que a razão de Deus haver criado as mulheres está em que o homem não conhece seu próprio bem quando este bem aparece.
Quando voltei à casa com a parelha, eles já estavam na cozinha. Ela tinha-se vestido por cima da camisa de dormir e trazia um xale na cabeça e sua sombrinha e sua
bíblia embrulhadas num pedaço de oleado; ele estava sentado num balde de boca para baixo, sobre a chapa de zinco do fogão, onde ela o tinha posto, e pingava água
no chão. "Não consigo fazê-lo falar, a não ser sobre um peixe", ela diz. "É castigo de Deus. Vejo as mãos de Deus pousadas sobre este menino, para castigo e advertência
de Anse Bundren." "A chuva não havia começado quando eu saí", ele diz. "Eu saí antes. Eu já estava na estrada. E ele estava jogado na poeira. Você o viu. Cash vai
pregá-la, mas você o viu." Quando chegamos, a chuva havia engrossado, e ele viajara sentado entre nós dois, envolvido no xale de Cora. Não falara mais nada; sentado,
deixara que Cora segurasse a sombrinha sobre sua cabeça. De vez em quando, Cora parava de entoar um cântico para dizer: "É o castigo de Anse Bundren. Talvez isto
the mostre o caminho do pecado que está trilhando." Depois, voltava a cantar, e ele ali, sentado entre nós dois, inclinado para a frente, como se as mulas não conseguissem
acompanhá-lo na sua pressa.
"Ele estava ali-, atirado ao chão", diz, "mas a chuva só caiu depois que eu comecei a andar. De forma que posso abrir as janelas, pois Cash ainda não bateu os pregos."
Passava muito da meia-noite quando batemos o último prego e era quase de manhã quando voltamos para casa e eu desfiz a parelha e voltei para a cama, e o barrete
de dormir de Cora estava em cima do outro travesseiro. O diabo me carregue se, mesmo então, eu não ouvia ainda o salmo de Cora e sentia que o menino se inclinava
para diante, entre nós dois, como se quisesse ultrapassar as mulas, e ainda via Cash avançando e recuando o corpo, com aquela serra, e Anse em pé, como um estafermo,
semelhante a um boi que, ajoelhado à beira de um poço, ainda não percebeu que alguém chega e o cutuca no flanco.
O dia estava prestes a raiar quando batemos o último prego e levamos o caixão para dentro da casa, onde ela estava estirada na cama, com a janela aberta e a chuva
fustigando-a novamente. Por duas vezes ele fez o caixão, e está tão morto de sono que Cora diz que sua cara se parece com uma dessas máscaras de Natal que esteve
enterrada algum tempo e que alguém desenterra; até que, afinal, puseram-na dentro e fecharam a tampa com pregos, para que ele não possa mais abrir a janela do quarto
dela. E, de manhã, encontraram-no dormindo no chão, de camisa, como um bezerro abatido, e a tampa do caixão estava cheia de buracos e a broca nova de Cash quebrara-se
ao abrir o último. E quando tiraram a tampa eles viram que dois dos buracos tinham penetrado fundo na cara dela.
Se é castigo, não é justo. Porque Deus tem mais com que se preocupar. Não pode ser de outra forma. Porque o único fardo que Anse Bundren tem de carregar é sua própria
pessoa. E quando se põem a criticá-lo, eu digo a mim mesmo que ele é mais homem do que julgam, pois, se assim não fosse, não teria aguentado tanto.
Não é justo. O diabo me leve se é. Porque, se Ele disse: "Deixai vir a mim os pequeninos", o castigo, então, não é Justo. Cora disse: "Tenho dado a você o que Deus
Nosso Senhor me permite. Encarei-o sem medo, nem terror, porque minha fé em Deus era forte, eia sempre me animou e amparou. Se você não tem filho, é porque Deus
assim determinou em sua sabedoria. Minha vida é e sempre tem sido um livro aberto para qualquer homem ou mulher entre as criaturas que Ele criou, pois eu confio
em meu Deus e em minha recompensa." Reconheço que ela está certa. Reconheço que, se há homem ou mulher em quem Ele possa confiar as coisas e descansar, essa pessoa
terá de ser Cora. E reconheço também que ela faria algumas mudanças, por melhor que Ele houvesse disposto as coisas. Acho que as mudanças viriam para o bem de todos.
Pelo menos, teríamos de aceitá-las. Pelo menos, agiríamos como se as aceitássemos.
Darl
A candeia está sobre um toco. Enferrujada, manchada de graxa, com o vidro partido e coberto, de um lado, por uma nódoa de fuligem, ela lança uma claridade fraca
e deprimente sobre os cavaletes, sobre as tábuas e a terra adjacente. Sobre o solo escuro as ripas assemelham-se a manchas irregulares: de tinta pálida, aguada,
em tela negra. As tábuas parecem compridos farrapos lisos, destacados da escuridão plana e virados de revés.
Cash labuta nos cavaletes, avançando e recuando, levantando e ajustando as tábuas que despedem longos revérberos chispantes no ar morto, como se ele as erguesse
e deixasse tombar no fundo de invisível poço, os sons cessando mas não desaparecendo, como se qualquer movimento os deslocasse do ar imediato, em reverberante repetição.
Ele volta a serrar, o cotovelo cintila suavemente, um pálido fio de fogo correndo ao longo do fio da serra, perdido e recuperado no vaivém de cada investida, em
continuo prolongamento, de forma que a serra parece ter quase dois metros de comprimento, quando entra e sai da silhueta inútil e mesquinha de Pai. "Passe-me esta
tábua", diz Cash. "Não, a outra." Ele pousa a serra e avança e apanha a tábua que deseja, afastando Pai com a larga claridade que a tábua emite ao balouçar.
O ar cheira a enxofre. Sobre a impalpável superfície do ar, suas sombras formam, a bem dizer, tuna parede, como se, a exemplo dos sons, não se afastassem muito ao
cair, mas se tivessem apenas coagulado por um breve instante, imediatas e sonhadoras. Cash trabalha, meio voltado para a débil luz, com uma coxa e um dos braços
magros estendidos, o rosto fundido na luz, com uma expressão de imobilidade arrebatada e dinâmica acima do cotovelo incansável. No céu baixo, relâmpagos palpitam
de leve; contra o céu, as árvores, imóveis, estão eriçadas até o Ínfimo ramo, inchadas, aumentadas como se estivessem prenhes.
Começa a chover. As primeiras gotas, esparsas, velozes, caem através das folhas e no chão com um longo suspiro, como de alivio após um intolerável suspense. São
grossa; como chumbo, quentes como se disparadas pelo cano de uma arma de fogo; golpeiam a candeia num tamborilar vicioso. Pai ergue o rosto, com a boca escancarada,
o tabaco preto e úmido amassado contra as gengivas; por trás do rosto atônito chegam, fora de tempo ideias acerca desse supremo ul traje. Cash olha uma só vez para
o céu, depois para a candeia. A serra não parou, não interrompeu o resplendor corredio de seus dentes. "Traga alguma coisa para cobrir a candeia", ele diz.
Pai dirige-se à casa. A chuva tomba violenta, sem estrondo, sem advertência de nenhuma espécie; ele fica molhado ao chegar ao canto do alpendre e, num átimo, Cash
tem a pele encharcada. Contudo, e movimento da serra não parou, como se ela e o braço funcionassem com a tranquila convicção de que a chuva fosse ilusão do espírito.
Então, ele pousa a serra e se debruça sobre a candeia, protegendo-a com o corpo, as costas arqueadas e ossudas coladas na camisa molhada, como se tivesse sido virado,
repentinamente, pelo avesso, camisa e tudo o mais.
Pai volta. Veste o impermeável de Jewel e traz na mão o de Dewey Dell. Curvado por cima da candeia, Cash apanha quatro estacas, finca-as no chão e, pegando a capa
de chuva de Dewey Dell, estende-a sobre os paus, formando um telhado em cima da candeia. Pai observa-o. "Não sei o que você pretende fazer", ele diz. "Darl levou
o casaco."" "Molhar-me", diz Cash. Empunha novamente a serra; novamente ela sobe e desce, dentro e fora da calma impenetrabilidade de um pistão mergulhado em querosene;
encharcado, ossudo, infatigável, com o corpo esguio e encurvado de um menino ou de um velho, Cash trabalha. Pai observa-o, piscando os olhos, a água escorrendo-lhe
pela cara; novamente olha o céu com aquela expressão de afronta e, sobretudo, de represália, como se não esperasse outra coisa; de vez em quando se move, muda de
lugar, descarnado e gotejante, apanha uma tábua ou uma ferramenta e em seguida deixa-a cair. Vernon Tull está ali agora e Cash usa o Impermeável de Mrs. Tull e ele
e Vernon procuram a serra. Pouco depois a encontram na mão de Pai.
"Por que não vai para casa proteger-se da chuva?", diz Cash. Pai olha-o, a água escorrendo lentamente pelo rosto.
É como se em seu rosto esculpido por um caricaturista primitivo flutuasse a monstruosa máscara da privação. "Vá para casa", diz Cash. "Eu e Vernon terminaremos Isto."
Pai olha-os. As mangas do casaco de Jewell são muito curtas para ele. Sobre seu rosto escorre a chuva, devagar e fria nua! glicerina. "Não me importo que a chuva
me molhe", diz. Avança e se curva para apanhar as tábuas, pousando-as. de novo, cuidadosamente, como se fossem de vidro. Dirige-se à candeia e repuxa, de tal forma,
o impermeável esticado, que este cai e obriga Cash a arranjá-lo adequadamente.
"Vá para casa", diz Cash. Conduz Pai à casa e volta com o impermeável e dobra-o e coloca-o embaixo do abrigo onde está a candeia. Vernon não parou. Levanta a vista,
ainda serrando.
"Você devia ter feito isto antes", diz. "Sabia que ia chover." "É a febre dele", diz Cash. E olha a tábua.
"Ah, sim", diz Vernon. "Ele viria, de qualquer forma."" Cash mede a tábua com o olhar. Sobre sua comprida superfície a chuva cai com firmeza, flutuante, em miríades.
"Vou aplainá-la", diz.
"Isso demora ainda mais", diz Vernon. Cash deita a tábua; Vernon olha-o durante um momento, depois lhe passa a plaina.
Vernon segura a tábua, com firmeza, enquanto Cash aplica a plaina com o cuidado tedioso e minudente de um joalheiro. Mrs. Tull chega ao corrimão do alpendre e chama
Vernon. "Vocês ainda demoram?", pergunta.
Vernon não levanta a vista. "Não. Falta pouco." Ela observa Cash debruçado sobre a tábua; o túrgido e bravio brilho da candeia desliza pelo impermeável, quando ele
se movimenta. "Vão apanhar umas tábuas no celeiro e acabem logo e saiam da chuva", ela diz. "Vocês podem pegar um resfriado mortal." Vernon não se move. "Vernon".
ela diz.
"Não vamos demorar muito", diz. "Daqui a pouco está pronto." Mrs. Tull observa-os por um instante. Em seguida, entra na casa.
"Se for preciso mesmo, podemos recorrer àquelas tábuas", diz Vernon. "Eu o ajudarei a trazê-las." Cash para a plaina, mede a tábua com o olhar e passa a palma da
mão por sua superfície. "Passe-me a outra", diz Pouco antes da aurora, a chuva cessa. Mas o dia ainda não rompeu quando Cash bate o último prego e ergue o tronco
e olha para o caixão pronto, com os outros a observá-lo. A luz da candeia, seu rosto está calmo, pensativo; vagarosamente, golpeia as mãos no impermeável, à altura
das coxas, em gesto deliberado, final e compenetrado. Então, os quatro — Cash e Pai e Vernon e Peabody — levantam o caixão nos ombros e se dirigem à casa. Ele é
leve, mas, mesmo assim, os homens movimentam-se devagar; está vazio, e no entanto carregam-no com cuidado; não tem vida, contudo caminham pronunciando entre si palavras
de precaução, falando dele como se, completo, estivesse agora levemente desperto, à espera de acordar de todo. No chão escuro, seus pés pisam desajeitadamente, como
se, há muito tempo, não caminhassem sobre o assoalho de um casa.
Pousam o caixão junto à cama. Peabody diz tranquilamente: "Vamos forrar o estômago. Já e quase dia. Onde está Cash?" Ele voltou aos cavaletes e, outra vez inclinado
à débil luz da candeia, recolhe as ferramentas, envolve-as zelosamente num pano e as põe na caixa com a tira de couro para trespassar no ombro. Em seguida, apanha
a caixa, a candeia e o impermeável e volta à casa, e, ao subir os degraus, sua desbotada silhueta recorta-se contra o palor do dia nascente.
Em quarto estranho é preciso criar em nós mesmos o vazio, para poder dormir. E antes de se ficar vazio para o sono. que é que somos, afinal? E quando ficamos vazios
para o sono, já não somos nada. E quando estamos cheios de sono.
nunca somos nada. Não sei o que sou. Não sei se sou ou não sou. Jewel sabe que ele é, porque não sabe que ele não sabe se é ou não é. Não pode esvaziar-se para dormir
porque não é o que é e é o que não é. Além da parede escura, posso ouvir a chuva modelando a carroça que é nossa, a carga que já não pertence aos que derrubaram
e serraram a madeira, e que também não é deles, que a compraram, e tampouco nossa, embora esteja amontoada em nossa carroça, pois só o vento e a chuva a modelam
para Jewel e para mim, que não estamos dormindo. E já que o sono é o não ser e a chuva e o vento são o que foram, a carroça não é. Contudo, a carroça é, porque,
quando a carroça era, Addie Bundren não seria. E Jewel é, portanto Addie Bundren tem de ser. E, nesse caso, eu devo ser, ou não poderia esvaziar-me para dormir em
quarto estranho, E se ainda não estou vazio, então eu sou.
Quantas vezes já dormi embaixo da chuva, em teto estranho, pensando na minha casa.
Cash
Eu o fiz chanfrado.
A superfície é maior para os pregos entrarem.
Cada junta tem espumo duplo onde se agarrar.
A água terá de correr obliquamente. A água desliza mais facilmente de cima para baixo ou em sentido horizontal.
Numa casa, as pessoas ficam em pé dois terços do tempo. Por isso é que as juntas e ligações são feitas de cima para baixo. Porque a pressão se exerce de cima para
baixo.
Numa cama, onde as pessoas deitam-se, em geral, horizontalmente, as juntas e ligações são feitas dos lados, porque a pressão é lateral.
No entanto: Um corpo não é quadrado como uma travessa.
Magnetismo animal.
O magnetismo animal de um corpo morto faz com que a pressão se exerça obliquamente, de forma que as juntas e ligações de um caixão têm de ser chanfradas.
Pode-se verificar, num túmulo velho, que a terra afunda obliquamente.
Enquanto, num buraco normal, ela afunda pelo centro, a pressão exercendo-se de cima para baixo.
Por isso, eu o fiz chanfrado.
Um trabalho assim é mais perfeito.
Vardaman
Minha mãe é um peixe.
Tull
Eram 10 horas quando regressei, com a parelha de Peabody atada atrás da carroça. Já tinham trazido o carro de onde Quick o encontrou, de rodas para o ar, na valeta,
a um quilômetro e meio da nascente. Já o tinham puxado para a beira da estrada, junto i nascente, e uma dúzia de carroças encontrava-se no lugar. Foi Quick que o
encontrou. Ele disse que o rio está enchendo e continuará a subir. Disse que as águas já tinham quase atingido a marca mais alta do pilar da ponte; uma coisa nunca
vista.
"Essa ponte não resistirá à força de tanta água", eu disse.
"Alguém já foi avisar Anse?"
"Eu avisei", disse Quick. "Ele respondeu que espera que os rapazes tenham sabido, feito a descarga e estejam agora de volta. Acha que podem carregar e fazer a travessia."
"Ele faria melhor enterrando-a em New Hope", disse Armstid. "A ponte é velha. Eu não confiaria nela."
"Ele é teimoso: meteu na cabeça que tem de levá-la a Jefferson", disse Quick.
"Então, é melhor sair o mais cedo possível", disse Armstid.
Anse nos recebe à porta. Barbeou-set mas não muito bem. Tem um "corte longo no queixo e está vestindo as calças domingueiras e uma camisa branca de colarinho abotoado.
Está bem esticada sobre as costas curvas, o que o faz parecer mais curvo ainda, por causa do branco da camisa, e seu rosto também está diferente. Encara, agora,
as pessoas nos olhos, digno, o rosto trágico e compenetrado, apertando nossas mãos quando subimos ao alpendre e esfregamos os sapatos, um tanto rígidos em nossas
roupas domingueiras, nossas roupas domingueiras estalando, sem olhar diretamente para ele, enquanto nos cumprimenta.
"É a vontade de Deus", dizemos.
"É a vontade de Deus."
O menino não está à vista. Peabody contou como ele entrou na cozinha, aos berros, aos tropeções e arranhando Cora, quando a encontrou cozinhando aquele peixe, e
como Dewey Dell levou-o ao celeiro.
"Minha parelha está em ordem?", pergunta Peabody.
"Tudo bem", digo. "Dei-lhes ração esta manhã. E o carro também está perfeito. Sem um arranhão."
"Alguém tem de ser culpado", ele diz. "Eu daria um níquel para saber onde aquele menino estava quando a parelha disparou."
"Se tiver alguma peça quebrada, eu conserto", digo.
As mulheres entram em casa. Podemos ouvi-las falar e abanarem-se. Os leques fazem zis, zis, zis, e elas falando, as conversas parecendo zumbido de abelhas dentro
de uma tina de água. Os homens, parados no alpendre, falam pouco, sem se olharem.
"Olá, Vernon", eles dizem. "Olá, Tull." "Parece que a chuva não para." "Sem dúvida alguma." "Sim, senhor. Vai chover mais ainda." "E não demora muito." "E não para
tão cedo. É sempre assim." Vou aos fundos da casa. Cash está tapando os buracos abertos na tampa. Prepara pregos de madeira para encaixá-los, um a um; a madeira
está úmida e difícil de trabalhar.
Podia cortar uma folha de lata para tapar os buracos e ninguém notaria a diferença. Mas não importa. Já o vi perder uma hora, aparando um tarugo, como se fosse de
vidro, quando poderia abaixar-se, apanhar uma dúzia de gravetos e introduzi-los nos buracos, dando o trabalho por terminado.
Quando acabamos, volto para a frente da casa. Os homens tinham-se afastado um pouco da casa e estavam sentados em tábuas e nos cavaletes onde nós o fizemos a noite
passada; uns, sentados, e outros de cócoras. Whitfield ainda não chegou.
Olham-me com ar interrogativo.
"Tudo pronto", digo. "Agora ele vai pregá-la."
Enquanto eles reerguem, Anse chega à porta e nos olha e nós voltamos ao alpendre. Esfregamos novamente os sapatos, com cuidado, esperando para ver quem entra primeiro,
hesitando um pouco diante da porta. Anse está do lado de dentro da porta, digno, compenetrado. Faz-nos sinal para entrar e nos conduz ao quarto.
Já a tinham colocado no caixão, de revés. Cash o fez em forma de relógio de parede, assim, com todas as juntas e ligações chanfradas e bem aplainadas, tenso como
um tambor e bem — acabado como um cesto de costura, e puseram-na dentro com a cabeça no lugar onde ficariam normalmente os pés, para não enrugar-lhe o vestido. Era
seu vestido de noiva, muito fofo embaixo, e eles a tinham deitado assim, com a cabeça para os pés, a fim de acomodar melhor o vestido, e tinham feito um véu, de
uma tira de mosquiteiro, para esconder os buracos de prego em sua cara.
Quando estávamos saindo, Whitfield chega. Está encharcado e enlameado até a cintura. "Que o Senhor abençoe esta casa", diz. "Demorei porque a ponte desapareceu.
Tive de descer até o antigo vau e, com a ajuda de Deus, passar nadando com o meu cavalo. Que a graça de Deus desça sobre esta casa." Voltamos aos cavaletes e tábuas
e nos sentamos ou ficamos de cócoras.
"Eu sabia que a ponte não aguentava", diz Armstid.
"Estava durando muito, aquela ponte", diz Quick.
"Você quer dizer que o Senhor a manteve firme", diz Tio Billy. "Não conheço ninguém que tocasse ali com um martelo nos últimos vinte e cinco anos."
"Há quanto tempo ela está ali, Tio Billy?", pergunta Quick.
"Foi construída em... deixe-me ver... Foi no ano de 1888", diz Tio Billy. "Eu me lembro porque o primeiro homem a atravessá-la foi Peabody, que ia à minha casa quando
Jody estava nascendo."
"Se eu passei pela ponte todas as vezes que sua mulher pariu, Billy, então ela já devia estar gasta há mais tempo", dia Peabody.
Rimos com estrondo, e paramos repentinamente. Olhamos um para o outro, um pouco de banda. "Muitas pessoas que passaram por ela já não passarão por ponte nenhuma",
diz Houston.
"É verdade", diz Littlejohn. "Assim é."
"Conheço uma, pelos menos", diz Armstid. "Serão precisos dois a três dias para eles a levarem à cidade, na carroça. Gastarão uma semana para ir a Jefferson e voltar."
"Por que Anse está tão ansioso em levá-la a Jefferson?", pergunta Houston. "Prometeu a ela", digo. "Ela queria. Ela é de lá. Não pensava em outra coisa."
"E Anse também não pensa em outra coisa", diz Quick.
"Ahn", diz Tio Billy. "Isto é próprio de um homem que deixou sempre a vida correr, e de repente mete-se numa empresa que trará os maiores problemas a todo mundo."
"Bem, só Deus lhe permitirá cruzar o rio agora", diz Peabody.
"Anse, sozinho, não pode."
"E eu acho que Ele permitirá", diz Quick. "Ele cuida de Anse há muito tempo."
“É verdade", diz Littlejohn.
"Depois de tanto tempo não o abandonará agora", diz Armstid.
"Acho que Ele se parece com todo mundo por aqui", diz Tio Billy. "Acostumou-se tanto a servir que agora não pode negar ajuda."
Cash sai. Vestiu camisa limpa; seu cabelo, molhado, foi penteado para a testa, liso e preto como se o tivesse pintado na cabeça. Acocora-se, rígido, entre nós, que
o observamos.
"Você se ressente deste tempo, não?", pergunta Armstid.
Cash não responde.
"Um osso partido sempre dói", diz Littlejohn. "Um sujeito de osso partido pode prever mudança de tempo."
"Cash teve sorte de escapar só com uma perna quebrada", diz Armstid. "Podia ter ficado aleijado, de cama a vida inteira. De que altura você caiu, Cash?"
"Oito metros e meio, onze centímetros e alguns quebrados, mais ou menos", diz Cash.
Eu me aproximo dele. "A gente escorrega facilmente em cima de tábuas molhadas", diz Quick.
"É uma pena", eu digo. "Mas você não podia fazer nada."
"A culpa é dessas amaldiçoadas mulheres", ele diz. "Eu o fiz de maneira que ficasse bem equilibrado. Ajustado à medida e ao peso dela."
Se são necessárias tábuas molhadas para alguém cair, muita gente vai cair antes que esta tempestade acabe.
"Você não podia evitar", eu digo.
Pouco me importa que alguém caia. Estou preocupado é com o algodão e o milho. Peabody tampouco se importa que alguém caia. Não é mesmo, doutor? É verdade. O campo
é que ficará inteiramente destroçado. Parece até que alguma coisa sempre está a lhe acontecer.
Claro que sim. Isto, aliás, é que lhe dá valor.
Se nunca acontecesse nada e todo mundo fizesse boa colheita, você acha que valia a pena ser lavrador? Bem, o diabo me leve se gosto de ver meu trabalho destruído
no chão, o trabalho que me custou tanto suor.
É fato. Um cara não se incomodaria de ver sua colheita destruída peta água, se pudesse transformar-se na própria chuva.
Mas qual o homem capaz disso? Onde está a cor de seus olhos? Ahn. Deus faz crescer. E Ele pode destruir tudo, com uma chuvarada, se achar melhor assim.
"Você não podia evitar", eu digo.
"A culpa é dessas amaldiçoadas mulheres", ele diz.
Na casa, as mulheres começam a cantar. Ouvimos a primeira estrofe começar, aumentar à medida que suas vozes se firmam, e nos levantamos e vamos para a porta, tirando
os chapéus e cuspindo o tabaco que mascamos. Não entramos. Paramos nos degraus, misturados, segurando os chapéus nas mãos moles, adiante ou atrás, com um pé adiante
e as cabeças curvadas, olhando de banda para chapéus nas mãos e para a terra, ou, de vez em quando, para o céu e para o rosto grave, compenetrado, do companheiro.
O canto termina; as vozes trêmulas apagam-se em desfalecimento rico. Whitfield começa. Sua voz é maior que ele. Como se não lhe pertencesse. Como se ele fosse um
e sua voz outro, nadando sobre dois cavalos, lado a lado, através da correnteza, e entrando na casa, um sujo de lama e o outro nem mesmo molhado, triunfante e triste.
Alguém dentro de casa começa a soluçar. Parece que seus olhos e sua voz entraram dentro do corpo e puseram-se à escuta; nós mudamos de posição, descansando na outra
perna, procurando os olhos um do outro, mas fingindo que não.
Afinal, Whitfield para. As mulheres voltam a cantar. No ar espesso parece que suas vozes saem do ar, escorrem unidas em tristes e confortadoras modulações. Quando
cessam, é como se não houvessem desaparecido ao longe. É como se houvessem apenas desaparecido no ar. E se mudássemos de posição, nós as perderíamos, novamente,
no ar à nossa volta, tristes e reconfortantes. Então eles terminam e põem os chapéus, em gestos rígidos, como se nunca tivéssemos usado chapéu.
A caminho de casa, Cora ainda canta. "Reconheço meu Deus e espero minha recompensa", ela canta, sentada na carroça, o xale em redor dos ombros e a sombrinha aberta,
embora não esteja chovendo.
"Ela teve a sua", eu digo. "Vá para onde for, foi recompensada em ver-se livre de Anse Bundren."
Ela ficou três dias naquela caixa, esperando que Darl e Jewel retornassem,
pegassem uma roda nova e voltassem para onde a carroça estava parada na valeta. Leve minha parelha, Anse, eu disse. Aguardaremos a nossa, ele disse. É o que ela
faria. Sempre foi uma mulher cheia de nós nas costas. No terceiro dia, eles voltaram e a puseram na carroça e partiram e já era muito tarde. Vocês terão de dar a
volta pela ponte de Samson. É preciso um dia de viagem para chegar lá. Depois, serão sessenta quilômetros até Jefferson. Leve minha parelha, Anse. Esperaremos a
nossa. É o que ela faria. A um quilômetro e meio da casa nós o vimos, sentado à beira de um charco. Que eu saiba, nunca vi um peixe ali.
Ele nos olhou com seus olhos redondos e calmos, o rosto sujo. o caniço nos joelhos. Cora ainda cantava.
"O dia não é favorável à pesca", eu disse. "Venha para casa conosco e amanhã cedo você irá ao rio e pegará um peixe."
"Há um aqui", ele disse. "Dewey Dell viu-o."
"Venha conosco. O rio é o melhor lugar."
"Há um aqui", ele disse. "Dewey Dell viu-o."
"Reconheço meu Deus e espero minha recompensa", cantarolava Cora.
Darl
"Não foi seu cavalo que morreu, Jewel", eu digo. Fie está sentado na cadeira, teso, inclinado um pouco para a frente, com as costas abauladas. A fita do chapéu destacou-se
da copa, em dois lugares, caindo sobre seu rosto de madeira, de forma que, baixando a cabeça, ele olha pelo buraco, como através da viseira de um elmo; olha o vale
até o lugar em que o celeiro pende contra o barranco, e modela o cavalo invisível.
"Você os vê?", pergunto. Muito acima da casa, emoldurados no céu mutável e espesso, eles pendem em círculos estreitos. Vistos daqui, não passam de manchas — implacáveis,
pacientes, portentosas. "Mas não é seu cavalo que está morto."
"Vá para o inferno", ele diz. "Vá para o inferno."
Não posso amar minha mãe porque não tenho mãe. A mãe de Jewel é um cavalo. Imóveis, os bútios pendem, no alto, em círculos ascendentes, e as nuvens dão-lhes uma
ilusão de recuo.
Imóvel, com as costas abauladas, a cara de pau, ele imagina o cavalo em rígida investida, semelhante a um falcão, as asas dobradas. Eles esperam por nós, prontos
para transportá-la, esperam por ele. Ele entra na cavalariça e espera que o cavalo lhe atire um coice para, então, escapar por trás, subir ao alto da baia e parar,
espiando, através dos tabiques, a vereda deserta, antes de subir ao depósito de feno.
"O diabo o leve. O diabo o leve."
Cash
Assim ele não mantém o equilíbrio. Se querem transportá-lo com equilíbrio, teremos de..."
"Levantem. Com mil demônios, levantem."
"Já disse que não haverá equilíbrio, a menos..."
"Levantem! Levantem, condenados do inferno, almas do diabo! Levantem!"
Não ficará equilibrado. Se querem transportá-lo com equilíbrio, terão que
Darl
Ele está inclinado, no meie da gente, sobre o caixão, e duas das oito mãos são suas. Em seu rosto, o sangue perpassa em ondas. E, entre elas, sua carne fica esverdeada,
semelhante ao verde pálido, liso e grosso, da erva que uma vaca rumina; rosto sufocado, furioso, dentes à mostra. "levantem!", diz. "Levantem, condenados do inferno,
almas do diabo!" Levanta-o por um lado, tão repentinamente que nós todos saltamos para agarrá-lo e equilibrá-lo antes que ele tombe por completo. Por um instante,
o caixão resiste, uma resistência a bem dizer voluntária, como se, dentro dele, o corpo delgado qual vara conservasse freneticamente, a despeito de estar morto,
uma espécie de pudor, e procurasse esconder a roupa manchada pelo corpo, coisa que ela não conseguiu evitar. E então, o caixão, erguendo-se de súbito, liberta-se,
como se a magreza do corpo houvesse transmitido leveza às tábuas, ou como se, ao ver que a roupa estava quase a ser-lhe arrebatada, ela se precipitasse, de repente,
atrás dela, numa inversão apaixonada que brota de seu próprio desejo e necessidade. O rosto de Jewel fica completamente verde e podemos ouvir a respiração silvar
nos dentes.
Levamos o caixão pelo corredor, nossos pés rudes e desajeitados no assoalho, mo vendo-se em passos arrastados, passando pela porta.
"Aguentem um pouco ai", diz P;ii, soltando. Volta para cerrar a porta e fechá-la a chave, mas Jewel não pretende esperar.
"Vamos", diz em sua voz sufocante. "Vamos." Baixamos o caixão, cuidadosamente, pela escada. Avançamos, equilibrando o caixão como se fosse algo de infinitamente
precioso, os rostos afastados, respirando através dos dentes para manter as narinas fechadas. Descemos a vereda na direção da encosta.
"Melhor esperar um pouco", diz Cash. "Já disse que assim ele não se equilibra direito. Vamos precisar de outra pessoa naquela colina." "Então, solte", diz Jewel.
Não quer parar. Cash começa a ficar atrás, esforçando-se por manter o ritmo, respirando penosamente; acaba por se distanciar e Jewel sustenta sozinho toda a parte
da frente, de forma que o caixão, inclinando-se à medida que o caminho se inclina, começa a escorregar de minha mão e desliza pelo ar como um trenó sobre neve invisível,
abandonando suavemente uma atmosfera na qual sua forma ainda está modelada.
"Espere, Jewel", eu digo, Mas ele não quer esperar. Está agora quase correndo e Cash ficou para trás. Parece-me que a extremidade que eu sustento sozinho não tem
peso, como se fosse uma palha na maré furiosa do desespero de Jewel. Eu nem sequer toco o caixão quando, colocando-se de lado, ele o deixa passar à sua frente, balouçante,
e depois para o caixão e atira-o na traseira da carroça com o mesmo movimento, e me olha, o rosto cheio de fúria e desespero.
"O diabo o leve. O diabo o leve."
Vardaman
Estamos a caminho da cidade. Dewey Dell disse que não iam vendê-lo porque ele pertence a Papai Noel, que o levará consigo até o próximo Natal. Então ele será posto
outra vez na cristaleira, onde ficará brilhando, à espera.
Pai e Cash descem a colina, mas Jewel se dirige ao celeiro. "Jewel", diz Pai. Jewel não para. "Onde vai?", pergunta Pai. Mas Jewel não para. "Deixe o cavalo", diz
Pai. Jewel para e olha Pai. Os olhos de Jewel parecem bolas de gude. "Deixe esse cavalo aqui", diz Pai. "Iremos todos na carroça, com Mãe, como ela queria." Mas
minha mãe é um peixe. Vernon viu-o. Ele estava lá.
"A mãe de Jewel é um cavalo", disse Darl.
"Então, a minha pode ser um peixe, não é, Darl?", eu digo.
Jewel é meu irmão.
"Nesse caso, a minha terá de ser um cavalo também", eu disse.
"Por quê?", perguntou Darl. "Se Pai é seu pai, por que sua mãe tem de ser um cavalo? Só porque a de Jewel é um cavalo?" "Por que não?", eu digo. "Por que, não, Darl?"
Darl é meu irmão.
"Então, quem é sua mãe, Darl?", eu pergunto.
"Não tenho mãe nenhuma", disse Darl. "Porque, se eu tivesse uma, ela era. E se era, não pode ser. Pode?" "Não", eu disse. "Então, eu não sou", disse Darl. "Acha
que eu sou?" "Não", eu disse. Eu sou. Darl é meu irmão. "Mas você é, Darl", eu disse. "Eu sei", disse Darl. "Por isso mesmo é que não sou. Somos é demais. Uma mulher
não pode parir tanto." Cash chega com a caixa de ferramentas. Pai olha-o. "Na volta, ficarei em casa de Tull", diz Cash.»"Para consertar o telhado do celeiro." "Ê
falta de respeito", diz Pai, "ê um insulto deliberada contra ela e contra mim." "Quer que ele volte para cá e depois leve as ferramentas, a pé, até a casa de Tull?",
diz Darl. Pai olha Darl, a mascar tabaco. Pai agora faz a barba todos os dias, porque minha mãe é um peixe. "Não é direito", diz Pai. Dewey Dell tem um embrulho
na mão. Também leva o cesto com a nossa comida. "Que é isto aí?", pergunta Pai. "Os bolos de Mrs. Tull", diz Dewey Dell, entrando na carroça. "Pediu-me que os levasse
à cidade." "Não está direito", diz Pai. "É um insulto à morta." Vai ficar lá. Vai ficar lá, brilhando nos trilhos, até que o Natal chegue, ela diz. Ela diz que ele
não o venderá aos meninos da cidade.
Darl
Ele se dirige ao celeiro e entra no pífio, com as costas abauladas.
Dewey Dell carrega o cesto num braço, e na outra mão alguma coisa quadrada, embrulhada em jornal. Seu rosto está calmo e sério, os olhos cavilosos e alertas; dentro
deles, posso ver as costas de Peabody como duas ervilhas redondas em dois dedais: talvez nas costas de Peabody existam dois desses vermes que nos corroem sub-repticiamente,
com firmeza, e saem do outro lado e então a gente desperta logo do sono ou da vigília, com uma expressão súbita, intensa, de preocupação na cara. Ela põe o cesto
na carroça e sobe, a perna surgindo comprida embaixo do vestido justo: a alavanca que move o mundo; o calibre que mede o comprimento e a largura da vida. Ela se
senta ao lado de Vardaman e deixa o pacote no colo.
Então, ele entra no celeiro. Não olhou para trás. "Não é direito", diz Pai. "Não lhe custa ter um pouco de consideração pela morta."
"Vamos", diz Cash. "Ele que fique aqui, se quiser. E se sentirá muito bem. Talvez vá pernoitar na casa de Tull."
"Ele nos alcançará", eu digo. "Irá pelo atalho e nos pegará no caminho de Tull."
"Ele teria encilhado aquele cavalo", diz Pai, "se eu não o impedisse. Esta maldita besta selvagem, pior que um gato montes. Uma ofensa deliberada contra ela e contra
mim." A carroça se move; as orelhas das mulas sacodem-se. Atrás de nós, por cima da casa, imóveis no céu, em círculos ascendentes, eles diminuem de tamanho e desaparecem.
Anse
Eu lhe pedi para não trazer aquele cavalo, por respeito à sua mãe defunta, porque não seria direito ele sair aos saltos, montado no maldito cavalo de circo, quando
ola queria que fôssemos todos juntos na carroça, fazendo-lhe companhia, todos nós de sua carne e de seu sangue, mas, logo depois da planície de Tull, Darl começou
a rir. Lá está ele, rindo, sentado no banco de tábua, ao lado de Cash, e a mãe morta no caixão a seus pés. Quantas vezes eu lhe falei para não fazer coisas que provoquem
falatório. Perdi a conta. Sempre lhe disse que, se ele não se importa com o que dizem das pessoas da minha carne e do meu sangue, então eu me importo, e embora tenha
sido eu quem educou essa cambada de demônios, quando falam de um, atingem a mãe, não a mim: eu sou homem e posso aguentar; é das mulheres, de sua mãe e de sua irmã,
que vocês têm de cuidar, e eu me viro e olho para ele, e ele está sentado lá atrás, rindo.
"Não espero que você tenha respeito por mim", digo. "Mas, pelo menos, respeite sua mãe, que ainda não está fria dentro do caixão." "Olhe lá", diz Cash, atirando
a cabeça na direção da planície. O cavalo ainda é um ponto reduzido, embora venha a toda pressa, mas não me precisam dizer quem é. Continuo a olhar Darl, sentado
ali atrás, rindo.
"Fiz o que pude", digo. "Procurei fazer o que ela desejava. O Senhor me perdoará e desculpará a conduta dos filhos que me deu." E Darl, sentado no banco de madeira,
com a mãe estirada embaixo, continua rindo.
Darl
El e sobe apressado pela azinhaga, contudo estamos a trezentos metros, mais ou menos, do cruzamento, quando entra na estrada, a lama voando embaixo dos cascos. Então
ele reduz o passo, leve e ereto na sela, o cavalo cortando a lama em pedaços.
Tull está no curral. Olha para nós, levanta a mão. Prosseguimos, a carroça estalando, a lama a murmurar nas rodas. Vernon fica no mesmo lugar. Observa Jewel passar;
o cavalo, a trezentos metros de nós, vai a trote ligeiro. Seguimos caminho com um movimento tão soporífero, tão sonolento, que o avanço parece impossível, como se
o tempo, e não o espaço, aumentasse entre nós e o destino.
A carroça vira em ângulos retos, os sulcos de rodas do último domingo estão agora cicatrizados; uma lisa escoriação vermelha que penetra, curvilínea, nos pinheiros;
um poste branco, em letras esmaecidas, diz: Igreja de New Hope, cinco quilômetros. Ele orienta qual mão imóvel erguida acima da profunda desolação do oceano; adiante,
a estrada vermelha estende-se qual raio de roda de que Addie Bundren fosse o aro. A estrada passa, vazia e uniforme, o poste branco em sua tranquila afirmado desbotada.
Cash olha tranquilamente a estrada e, ao passarmos pelo poste indicador, vira a cabeça semelhante à de um mocho, mostrando o rosto compenetrado. Pai olha em frente,
curvado. Dewey Dell também olha a estrada, depois se volta para mim, com olhos perscrutadores e insolentes, mas sem sugerir a pergunta que brilhou, algum tempo,
no olhar de Cash. O poste passa; a estrada uniforme se desenrola. Dewey Dell afasta os olhos. A carroça estala.
Cash cospe na roda. "Dentro de dois dias começa a feder", diz.
"Você devia dizer isto a Jewel", eu digo.
Ele agora está parado, sobre o cavalo, no cruzamento, a nos observar, não menos que o poste indicador que ergue, diante dele, sua desbotada capitulação. "Não está
bem equilibrado para uma viagem longa", diz Cash.
"Pois diga isto também a ele", respondo. A carroça estala.
Dois quilômetros depois, ele nos ultrapassa; o cavalo, contido pelo peitoral, anda a passo ligeiro, porém medido. Ele mantém-se na sela com agilidade, firmeza e
aprumo, o chapéu roto e esfiapado inclinado, sobre a cara esculpida em madeira, em ângulo faceiro. Passa rápido por nós, sem nos olhar, o cavalo arrancando lama
dos cascos. Um pedaço de lama voa e cai sobre o caixão. Cash se inclina, retira uma ferramenta de sua caixa e remove a mancha cuidadosamente. Quando a estrada atravessa
Whiteleaf, onde os salgueiros são baixos, ele parte um ramo e limpa a mancha com folhas úmidas.
Anse
Terras duras para o homem. Muito duras. Doze quilômetros do suor de alguém, tirado da terra do Senhor, onde o mesmíssimo Senhor lhe disse para mourejar. Em parte
alguma deste mundo pecador um homem honesto, trabalhador, pode tirar proveito. Os que lucram são os donos de negócios da cidade, que não suam, que vivem do suor
alheio. Não os que trabalham duro, não os lavradores. Às vezes eu penso porque continuamos insistindo. É porque há uma recompensa para nós no alto, onde eles não
podem levar seus automóveis e coisa que o valha. Ali, todos os homens são iguais, e Deus tomará dos que têm para dar aos que não têm.
Parece, no entanto, que teremos de esperar muito por isso. Não é direito que um homem obtenha recompensa por sua boa conduta depois de virar pó e de enterrar seus
mortos. Rodamos o resto do dia e chegamos, ao cair da noite, na fazenda de Samson, e vemos, então, que a ponte também desapareceu na enxurrada. Nunca se viu o rio
tão cheio e a chuva não parou de cair ainda. Os velhos daqui nunca viram coisa semelhante, nem ouviram falar, que se lembrem. Sou o eleito do Senhor, pois Ele castiga
as pessoas a quem ama. Mas o diabo me leve se Ele não escolheu maneiras estranhas de demonstrar amor.
Mas agora posso mandar colocar os dentes. Será um conforto. Sem dúvida.
Samson
Aconteceu pouco antes de cair a noite. Estávamos sentados no alpendre quando a carroça surgiu na estrada com os cinco dentro e o outro a cavalo, atrás. Um deles
levantou a mão, saudando, e pelo visto iam passar pelo armazém sem parar.
"Quem é?", pergunta MacCallum. “Não consigo lembrar o nome."
“É o malhado de Rafe. Ou melhor, foi."
"É Bundren, que mora lá embaixo, depois de New Hope", diz Quick. "Jewel está montando um dos cavalos de Snopes.
"Não sabia que restava um daqueles cavalos", diz MacCallum. "Pensei que os moradores lá de baixo houvessem, afinal, desistido deles."
"Tente pegar aquele", diz Quick.
A carroça avança. "Aposto que o velho Lon nunca lhe deu o cavalo", digo.
"É verdade'", diz Quick. "Ele comprou-o de papai."
A carroça continua. "Eles não ouviram as notícias sobre a ponte", diz.
"Afinal de contas, que fazem por estas bandas?", pergunta MacCallum.
"Acho que se divertem, depois que ele sepultou a mulher", diz Quick. "Devem ir à cidade, embora a ponte de Tull também tenha desaparecido. Só queria saber se não
ouviram notícias da ponte."
"Terão de voar, então", eu digo. "Não creio que exista uma ponte daqui até Mouth of Ishatawa."
Levam alguma coisa na carroça. Mas, como Quick estivera no funeral três dias antes, naturalmente não nos passava pela cabeça que eles tivessem saído muito tarde
e sem ouvir falar da ponte. "É melhor a gente chamá-los", diz MacCallum.
“O diabo me leve se não tenho o nome bem na ponta da língua."
Assim, Quick chamou-os e eles pararam e ele foi à carroça e falou-lhes.
Voltou acompanhado por eles.
"Vão a Jefferson", diz. "A ponte de Tull ruiu também."
Como se não soubéssemos, e o rosto dele, ao dizer isto, parecia engraçado, ao redor das narinas. Eles estavam sentados calmamente, Bundren e a moça e o menino no
banco, e Cash e o outro, o de quem falam mal, numa tábua atravessada na parte traseira da carroça, e o último naquele cavalo malhado. Suponho, porém, que já estavam
acostumados, porque, quando eu disse a Cash que o melhor seria voltar e passar par New Hope, ele respondeu apenas: "Acho que poderemos chegar por aqui mesmo." Não
gosto de ser intrometido. Que cada um se arranje como pode, é o que digo. Mas, depois de dizer a Rachel que eles não tiveram quem a embalsamasse, e como estamos
no mês de julho, desci novamente ao celeiro e tentei conversar a respeito com Bundren.
"Eu prometi a ela", ele diz. "Ela não pensava em outra coisa." Sei agora que um homem preguiçoso, um homem que odeia movimentar-se, insiste sempre em avançar quando
se põe a caminho, como se não fosse o movimento que ele odeia, mas a ideia de partir e ter de parar. Parece até que se orgulha de tudo o que lhe dificulta o movimento
ou o fato de estar quieto. Ei-lo na carroça, sentado, o dorso encurvado, pestanejando, ouvindo-nos falar da rapidez com que a ponte caiu e as águas subiram, e o
diabo me leve se ele não agia como se tivesse orgulho de tudo isso, como se ele próprio fizesse o rio encher.
"Você diz que nunca viu uma cheia como esta?", pergunta. "Seja feita a vontade de Deus. Acho que o nível da água não estará mais baixo amanhã de manhã."
"Melhor pernoitar aqui", digo, "e partir cedo para New Hope, de manhã."
Eu tinha pena era das pobres mulas de ossos à mostra. Foi o que eu disse a Rachel: "Bem, não ia deixá-los no escuro, a doze quilômetros de casa. Que mais podia eu
fazer? Passam aqui a noite, no celeiro, e com certeza vão embora de madrugada." Por isso, lhes digo: "Fiquem aqui esta noite e voltem amanhã cedo a New Hope. Tenho
ferramentas suficientes e os rapazes, depois do jantar, cavarão um buraco, se quiserem, e você encontra tudo pronto."
Vi, então, que a moça me observava. Se seus olhos fossem pistolas, eu não estaria aqui agora. Quero ser enterrado vivo se os olhos dela não me queimavam. E depois,
quando desci ao celeiro e me aproximei, ela falava como se não houvesse percebido minha presença.
"Você deu sua palavra", ela diz. "Ela não teria morrido sem a sua promessa. Ela pensou que podia contar com você. Se você falhar, será amaldiçoado."
"Ninguém pode dizer que não procuro manter minha palavra", diz Bundren. "Qualquer um pode ler dentro de meu coração."
"Pouco me importa seu coração", ela diz. Estava murmurando ou, quem sabe, falando depressa. "Você prometeu-lhe. Você tem de continuar. Você..."
Então ela me viu ali em pé, e parou. Se seus olhos fossem pistolas, eu não estaria agora aqui. Assim, quando lhe toquei no assunto, ele apenas disse: "Dei minha
palavra. Ela só pensava nisso."
"Mas me parece que ela preferia ter a mãe enterrada perto, para poder..."
"Foi a Addie que eu dei minha palavra", ele diz. "Ela só pensava nisso."
Dessa maneira, eu lhes disse que a levassem ao celeiro, porque a chuva ameaçava cair novamente e o jantar estiva quase pronto. Só que eles não quiseram entrar. "Eu
lhe agradeço", diz Bundren. "Não queremos incomodá-lo. Temos algumas coisa de comer no cesto. Isso nos basta."
"Bom", eu digo, "se você é tão escrupuloso com as mulheres da família, eu também sou em relação à minha. E quando chegam visitas à hora da refeição e se recusam
a sentar à mesa, minha mulher toma isto como insulto."
Por isso, a moça vai à cozinha ajudar Rachel. E, depois, Jewel aproxima-se.
"Pois não", digo. "Pode pegar o feno que quiser. Dê de comer às mulas quando for cuidar delas."
"Prefiro pagar a parte do cavalo", ele diz.
"Para quê? Não recuso a ninguém a ração de seu cavalo."
"Prefiro pagar", ele diz.
Eu penso que se refere a uma ração especial. "Especial por quê?", pergunto, "Por acaso ele não come feno e milho?"
"Ração extra", ele diz, "Eu lhe dou mais de uma ração e não quero que ele fique a dever nada a ninguém."
"De mim, você não compra alimento, rapaz", eu digo. "E se ele conseguir comer o feno todo, amanhã de manhã eu ajudo você a pôr o celeiro na carroça."
"Ele nunca deveu nada a ninguém", diz. "Prefiro pagar o feno."
Estive para dizer-lhe que, nessa questão de preferências, eu preferia que ele não viesse aqui, de forma nenhuma. Mas me contenho: "Então, é bom ele começar a comer
logo. De mim, você não compra nada, rapaz."
Depois que serviu o jantar, Rachel foi com a moça preparar algumas camas. Mas nenhum deles havia chegado.
"Ela está morta há tanto tempo que não vale a pena fazer tolices", digo. Porque tenho tanto respeito pelos mortos quanto qualquer um, mas é preciso respeitar os
mortos pelo que são, e no caso de uma mulher morta num caixão há quatro dias, a melhor maneira de respeitá-la é metê-la na cova o mais rápido possível. Mas eles
não têm pressa.
"Não ficaria bem", diz Bundren. "Claro, se os rapazes quiserem dormir, eu posso ficar com ela. Não quero desmerecê-la."
Assim, quando voltei lá embaixo, eles estavam de cócoras, no chão, em volta da carroça, todos eles. "Pelo menos, deixe o menino dormir lá em casa", digo. "E acho
bom você vir também", digo à moça. Não tinha a intenção de meter o bedelho em seus assuntos. E, que eu soubesse, nunca havia feito mal à moça.
"Ele já está dormindo", diz Bundren. Tinham-lhe feito uma cama na manjedoura de uma cavalariça vazia.
"Nesse caso, venha você, eu digo à moça. Mas, ainda desta vez, ele não responde. Continuam todos acocorados. Mal se pode distingui-los na escuridão.
"E os rapazes?", pergunto. "Amanhã vão ter um dia trabalhoso."
Depois de um momento, Cash diz: "Eu lhe agradeço. Nós nos arranjaremos."
"Não queremos dar incômodo", diz Bundren. "De qualquer maneira, muito obrigado."
Assim sendo, deixo-os lá, de cócoras. Pergunto a mim mesmo se, depois de quatro dias, eles já se habituaram. Rachel e que não. "É um ultraje", ela diz. "Um ultraje."
"Que é que ele pode fazer?", digo. "Ele deu a palavra."
"Quem está falando dele?", ela pergunta. "Quem se importa com ele?", diz, a chorar. "Eu só desejo que você e ele e todos os homens do mundo que nos torturam, quando
vivas, e nos insultam depois de mortas, arrastando-nos por aí..."
"Chega, chega", eu digo. "Você está zangada sem motivo."
"Não me toquei", ela diz. "Não me toque!"
Difícil um homem saber o que acontece às mulheres. Vivo com a minha há quinze anos e o diabo me leve se eu sei. Tenho imaginado uma porção de coisas que possam nos
separar, mas o diabo me leve se pensei no cadáver de uma mulher morta há quatro dias. Elas tornam a vida difícil, não aceitando as coisas como chegam, à maneira
dos homens.
Deitado, eu ouvia a chuva que havia começado a cair, e pensava neles todos lá embaixo, acocorados em redor da carroça, e pensava em Rachel chorando, até que, algum
tempo depois, pareceu-me ouvi-la ainda a chorar, mesmo depois de estar adormecida, e pareceu-me sentir o cheiro, embora eu soubesse que não podia senti-lo. Não pude
decidir, então, se o cheiro chegava ou não até o meu nariz, ou se isto acontecia apenas por eu saber do que se tratava.
De manhã, não desci até lá. Ouvi-os atrelar os animais, e então, quando soube que estavam prontos para partir, sai pela porta da frente e desci a estrada até a ponte,
até que escutei a carroça sair do curial e regressar a New Hope. E depois, quando voltei à casa, Rachel zangou-se porque tu não ficara ali para convidá-los ao café
da manhã. Difícil saber o que as mulheres querem, Quando a gente pensa que vão dizer uma coisa, o diabo me leve se não nos fazem mudar logo de ideia, e ainda por
cima nos passam um sabão porque acreditamos no que pensavam.
Eu ainda tinha a impressão de estar sentindo o cheiro. E foi então que decidi que não havia cheiro, mas parecia haver, porque eu sabia que ele estava ali; é natural,
de vez em quando a gente se engana. Mas quando fui ao celeiro, mudei de pensar. Ao entrar no corredor, vi uma coisa. Uma coisa de cócoras e que eu julguei, a princípio,
ser um deles que havia ficado para trás; mas não. Era um bútio. Andou em volta, me viu e procurou, apressado, a saída, de patas afastadas e asas entreabertas, olhando-me
primeiro por cima de um ombro, depois por cima do outro, como se fosse um velhinho careca. Ao chegar à entrada, começou a voar. Teve de esvoaçar algum tempo antes
de sustentar-se no ar, com o ar denso, pesado e cheio de chuva como estava.
Se eles pretendem mesmo ir a Jefferson, acho que deviam ter contornado Mount Vernon, como fez MacCallum. Ele deve chegar em casa, a cavalo, depois de amanhã. Então,
eles estariam a apenas vinte e cinco quilômetros da cidade. Mas ao verem que o rio também levou a ponte, talvez sintam, afinal, que é um aviso e castigo de Deus.
Aquele MacCallum. Tem negócios comigo há doze anos. Eu o conheço desde menino; sei o nome dele tão bem quanto o meu próprio nome. O diabo me leve, porém, se consigo
entendê-lo.
Dewey Dell
O poste indicador reaparece. Assoma na estrada, calmo, porque agora pode esperar. New Hope, cinco quilômetros. New Hope, cinco quilômetros. New Hope, cinco quilômetros.
E, em seguida, a estrada começará, serpenteando entre as árvores; vazia de qualquer espera, dizendo New Hope cinco quilômetros.
Ouvi dizer que minha mãe está morta. Quisera dispor de tempo para deixá-la morrer. Quisera dispor de tempo para desejar tê-lo. É que, na terra selvagem e violada,
tudo acontece depressa demais depressa demais depressa demais. Não que eu queira, ou viesse a querer, mas porque é depressa demais depressa demais depressa demais.
Agora o poste começa a dizer: New Hope cinco quilômetros. New Hope, cinco quilômetros. Ê o que se pretende significar quando se fala no ventre do tempo: a agonia
e o desespero de ossos dilatados, a dura girândola em que jazem as violadas entranhas dos acontecimentos A cabeça de Cash volta-se, vagarosa, quando nos aproximamos,
mostrando a cara pálida vazia triste compenetrada e interrogativa que acompanha a curva vermelha e vazia da estrada; ao lado de uma roda traseira, Jewel vai montado
no cavalo e olha em frente, com firmeza.
A terra desenrola-se diante dos olhos de Darl; eles erram, tentando fixar detalhes. Eles começam por meus pés e sobem ao longo de meu corpo até minha cara, e então
meu vestido desaparece: estou sentada, nua, no banco, sobre as mulas vagarosas, em cima das dores. E se eu lhe pedir para desviar a vista? Ele fará o que eu disser.
Você não vê que ele fará o que disser? Uma vez despertei sentindo um grande vazio escuro escorrer por baixo de mim. Eu não podia vê-lo. Vi Vardaman levantar-se e
ir à janela e meter a faca no peixe; o sangue corria, silvava como se fosse vapor, mas eu não podia ver. Ele fará o que eu disser. Sempre fez. Posso persuadi-lo
a fazer tudo. Você bem 'sabe que eu posso. E se eu lhe pedir para desviar a vista? Isso aconteceu aquela vez em que morri.
E se eu lhe pedir? Chegaremos a New Hope. Não teremos de ir à cidade.
Eu me ergui e arranquei a faca do peixe que ainda silvava, emitindo vapor, e matei Darl.
Quando eu costumava dormir com Vardaman tive uma vez um pesadelo pensei que estava acordada mas não podia ver e não podia sentir eu não podia sentir a cama embaixo
de mim e eu não podia pensar o que eu era eu não podia pensar em meu nome eu nem mesmo podia pensar que sou uma moça eu nem mesmo pensava se tinha vontade de acordar
nem lembrava o contrário de estar acordada e tudo o que eu sabia era que eu sabia que alguma coisa estava acontecendo mas eu não podia sequer pensar no tempo então
de repente eu vi que alguma coisa havia ali o vento soprando sobre mim era como se o vento soprasse em minhas costas chegando de onde ele estava e eu não soprava
no quarto e Vardaman dormia e todos os outros atrás debaixo de mim avançando qual pedaço de seda fria por entre minhas pernas nuas Sai um vento frio dos pinheiros,
um som triste e continuo. New Hope. Faltam cinco quilômetros. Faltam cinco quilômetros. Eu acredito em Deus eu acredito em Deus.
"Por que não vamos a New Hope, Pai?", pergunta Vardaman "Mr. Samson disse que íamos, mas já passamos pela estrada."
Darl diz: "Olhe. Jewel." Mas sem olhar para mim. Está olhando o céu. O bútio está tão quieto que parece cravado no céu.
Viramos para o caminho de Tull. Passamos o celeiro e continuamos, as rodas murmurando na lama, deixando atrás os renques verdes de algodão na terra selvagem, e Vernon
que diminui no meio do campo atrás do arado. Ele levanta a mão quando passamos e fica a olhar muito tempo para nós.
"Olhe, Jewel", diz Darl. Jewel está sentado no cavalo como se os dois fossem feitos de madeira, e olha firme, em frente.
Eu creio em Deus. Deus. Deus. Eu creio em Deus.
Tull
Depois que eles passaram eu peguei a mula, recolhi o cabresto e acompanhei-os. Eles estavam sentados na carroça, na extremidade da represa, quando os alcancei. Anse
olhava a ponte bem no lugar onde ela afundara no rio, apenas com as duas pontas à vista. Olhava-a como se tivesse acreditado o tempo todo que as pessoas mentiam-lhe
sobre a queda da ponte, e ele esperasse o tempo todo que ela ali estivesse inteira. Parecia dar mostras de um divertido espanto, ali sentado na carroça, em suas
calças domingueiras, mexendo com a boca. Como um cavalo mal amanhado que alguém houvesse vestido, ou coisa que o valha.
O menino contemplava a ponte no lugar onde ela estava meio imersa, e os troncos e outras coisas que, em cima, tremiam, como se tudo fosse desaparecer dentro de mais
um minuto; olhava com os olhos escancarados, como se estivesse em um circo. E a moça também. Quando me acerquei, ela me olhou, os olhos emitindo um clarão e ficando
duros, como se eu pretendesse tocá-la. Depois, olhou novamente para Anse e, afinal, desviou a vista outra vez para a água.
A água subia quase ao nível da represa, dos dois lados, e a terra, exceto a língua em que estávamos e que dava acesso à ponte, logo desaparecendo, também estava*
coberta pela água, de modo que a gente não saberia direito onde ficava o rio e onde ficava a terra, caso não conhecesse a localização da ponte e da estrada. Tudo
era uma confusão amarelada e a represa não parecia mais larga que a lâmina de uma faca, e nós na carroça e no cavalo e na mula.
Darl me olhava, e depois Cash virou-se e olhou-me, com aquela expressão de quando, aquela noite, pensava se as tábuas formariam um caixão confortável para a mãe,
como se pesasse as coisas dentro de si próprio e sem perguntar o que a gente pensava; sem demonstrar sequer que estava ouvindo o que alguém pudesse dizer, embora
ouvisse perfeitamente. Jewel não se moveu. Estava no lombo do cavalo, um pouco Inclinado para a frente, com aquela mesma expressão de quando ele e Darl passaram
pela casa ontem, ao encontro da mãe morta.
"Se ao menos estivesse em pé, tentaríamos passar", diz Anse. "Tentaríamos passar por cima dela." Às vezes um tronco investia contra o redemoinho e punha-se a flutuar,
ali, rodando, e víamos, então, que ele se dirigia ao lugar onde estaria o vau. Reduzia marcha, girava sobre si mesmo e emergia da água, durante um breve minuto —
e a gente percebia, então, que o vau era ali mesmo.
"Mas isto nada prova", eu digo. "Talvez seja um banco de areias movediças que se formou ali." Observamos o tronco, A moça está outra vez a olhar para mim.
"Mr. Whitfield atravessou", ela diz.
"Ele estava a cavalo", digo. "E isto foi há três dias. Desde então, o rio subiu metro e meio." "Se ao menos a ponte estivesse firme", diz Anse.
O tronco surge novamente e continua a marchar. Há muita terra de aluvião e espuma, e pode-se ouvir o ruído da água, "Mas ela caiu mesmo", diz Anse. Cash diz: "Uma
pessoa cuidadosa podia atravessar por cima das madeiras e dos troncos." "Mas sem carga de espécie alguma", digo. "O mais certo é que tudo desabasse assim que você
pisasse em cima. Qual a sua opinião, Darl?" Ele está me olhando. Não diz nada; limita-se a me olhar com seus olhos estranhos que tanto dão o que falar. Sempre achei
que falam mal dele não pelo que faz ou pelo que diz, senão por sua maneira de encarar as pessoas. É como se ele entrasse na gente. Como se a gente estivesse a olhar
para si mesma, vendo as ações saírem dos próprios olhos. Vejo, então, que a moça me observa como se eu pretendesse tocá-la. Ela diz alguma coisa a Anse. "... Mr.
Whitfield...",é o que diz.
"Eu dei-lhe a minha palavra em presença do Senhor", diz Anse. "Não vejo motivo para preocupações." Mas ele ainda não toca as mulas. Continuamos sentados à beira
da água. Outro tronco emerge do redemoinho e continua a andar. Nós o vemos parar e entrar vagarosamente no lugar onde deve estar o vau. Em seguida, prossegue sobre
a água.
"A água pode baixar durante a noite", digo. "Espere mais um dia."
Então Jewel vira-se em cima do cavalo, Até então não se movera, e é agora que se volta e me olha. Seu rosto esverdeado torna-se vermelho e depois passa a verde,
outra vez. "Vá para o inferno com o seu arado'', diz. "Quem, com todos os diabos, lhe pediu para nos seguir até aqui?"
"Não quis incomodar vocês", digo.
"Cale-se, Jewel", diz Cash. Jewel volta a olhar a água, o rosto de granito ficando vermelho e verde e vermelho.
"Bem", diz Cash depois de uma pausa, "que pretende fazer?"
Anse não responde. Continua sentado, curvo, mexendo com a boca. "Se ela estivesse ao menos em pé, tentaríamos passar", diz.
"Vamos", diz Jewel, tocando o cavalo.
"Espere", diz Cash. Ele olha para a ponte. Nós olhamos para ele, exceto Anse e a moça, que estão fitando a água. "Dewey Dell e Vardaman e Pai devem passar por cima
da ponte", diz Cash. "Vernon pode ajudá-los", diz Jewel. "E nós atrelaríamos sua mula à frente das nossas."
"Não pense que minha mula vai entrar nessa água", eu digo.
Jewel me olha. Seus olhos parecem cacos de um prato quebrado. "Eu pagarei por sua amaldiçoada mula. Eu a compro agora mesmo."
"Minha mula não entra nessa água", digo.
"Jewel vai entrar na água com seu cavalo", diz Darl. "Por que não quer arriscar sua mula, Vernon?"
"Cale-se, Darl", diz Cash. "Você e Jewel também."
"Repito que minha mula não entra nessa água", digo.
Darl
Ele vai montado no cavalo, olhando Vernon, com sua cara magra intumescida além da pálida rigidez dos olhos. No verão em que fez quinze anos teve um ataque de sono.
Uma manhã, quando fui dar de comer às mulas, e as vacas ainda estavam no estábulo, ouvi Pai voltar para casa e chamá-lo. Quando voltávamos para o desjejum, ele passou
por nós, carregando os baldes de leite, tropeçando como se estivesse bêbado, e estava a ordenhar quando recolhemos as mulas e fomos para a plantação sem sua companhia.
Ficamos uma hora ali e nem assim ele apareceu. Quando Dewey Dell chegou com nosso almoço, Pai mandou-a à procura de Jewel. Encontraram-no no estábulo, sentado no
banco, adormecido.
Depois disso, todas as manhãs Pai entrava e acordava-o. Ele ia dormir, então, na mesa, e assim que a refeição terminava, na cama, e quando eu entrava no quarto para
dormir ele estava estirado como um morto. Assim mesmo Pai tinha de acordá-lo pela manhã. Ele se levantava porém entorpecido, e ouvia os insultos e queixas de Pai
sem dizer uma palavra e apanhava os baldes de leite e ia ao celeiro, e uma vez eu o encontrei dormindo junto à vaca, com o balde meio cheio e as mãos metidas no
leite além do pulso e a cabeça encostada ao flanco da vaca.
Depois disso, Dewey Dell teve de ordenhar. Ele ainda se levantava quando Pai o sacudia e fazia as tarefas que lhe indicávamos, com um ar atarantado. Parecia esforçar-se
muito para desempenhá-las; parecia tão espantado quanto nós.
"Está doente?", perguntou Mãe. "Você não se sente bem?"
"Sim", disse Jewel. "Estou ótimo."
"Não passa de um preguiçoso, pelo visto", disse Pai, e Jewel ali a seu lado, quase dormindo em pé. "Não é?", insistiu, sacudindo Jewel para que respondesse.
"Não", disse Jewel. "Fique em casa hoje e descanse", disse Mãe.
"Com todo aquele terreno para limpar?", disse Pai. "Se não está doente, então o que tem?"
"Nada", disse Jewel. "Estou ótimo."
"Ótimo?", disse Pai. "Agora mesmo estava dormindo em pé"
"Não", disse Jewel. "Estou ótimo."
"Quero que ele fique em casa hoje", disse Mãe.
"Preciso dele", disse Pai. "Estamos cheios de trabalho e somos poucos."
"Faça o melhor que puder com Cash e Darl", disse Mãe. "Quero que ele fique em casa hoje."
Mas ele não queria. "Estou ótimo", disse, afastando-se. Mas não estava bem. Qualquer um podia ver. Perdia peso e eu o vi adormecer quando cavava; eu via sua enxada
perder o ímpeto, cada vez mais vagarosa, descrevendo um arco que se reduzia, até que parou e ele encostou-se ao cabo, imóvel, sob a quente cintilação do sol.
Mãe queria chamar o médico, mas Pai não desejava gastar dinheiro sem absoluta necessidade, e Jewel parecia bem, excetuando a magreza e o hábito de cair no seno a
qualquer momento. Comia com bastante disposição, só que costumava adormecer sobre o prato, com um pedaço de pão a meio caminho da boca e os maxilares ainda mastigando.
Jurava, no entanto, que estava ótimo.
Foi Mãe quem encarregou Dewey Dell de tirar o leite das vacas, pagando-lhe alguma coisa, e os outros serviços de casa que Jewel fazia antes do jantar ela encontrou
jeito de passá-los a Dewey Dell e a Vardaman. E ela mesma os fazia quando Pai não estava por perto. Preparava, às escondidas, coisas especiais de comer, e guardava
para ele. Foi então que, pela primeira vez, percebi que Addie Bundren ocultava o que fazia, logo ela que nos havia ensinado que o embuste era a pior coisa desse
mundo triste, e nem mesmo a pobreza se lhe comparava. E, às vezes, quando eu ia dormir, ela ficava sentada no escuro, ao lado de Jewel adormecido. E eu sabia que
ela se odiava por praticar o embuste e odiava Jewel porque o amava e, dessa forma, era forçada ao embuste.
Uma noite, ela caiu doente e quando eu fui ao celeiro atrelar as mulas para ir à casa de Tull, não consegui encontrar a candeia. Eu me lembrava de tê-la visto no
prego, a noite passada, mas agora, à meia-noite, não se encontrava lá. Assim, atrelei no escuro e fui e trouxe Mrs. Tull pouco depois do alvorecer. E lá estava a
candeia, pendendo do prego onde me lembrava de tê-la visto e onde não pudera encontrá-la antes. E depois, uma manhã, pouco antes do sol subir, quando Dewey Dell
ordenhava, Jewel entrou no celeiro, pelos fundos, através do buraco na parede dos fundos, com a candeia na mão.
Contei a Cash, e Cash e eu olhamos um para o outro. "Está no cio", disse Cash.
"Sim", eu disse. "Mas por que a candeia? E, além disso, todas as noites. Não admira que esteja emagrecendo desse jeito. Você pretende dizer-lhe alguma coisa?"
"Não adiantaria", disse Cash.
"O que ele anda fazendo também não adianta nada."
"Eu sei. Mas ele tem de aprender sozinho. Dê-lhe tempo para que ele saiba que isso lhe tira as forças, que perde as forças cada vez mais. Então, ele ficará bom outra
vez. Acho que não vou contar a ninguém."
"Sim", eu disse. "Pedi a Dewey Dell para não contar. Principalmente à Mãe."
"Não. A Mãe, não."
Depois disso, a coisa tornou-se cômica; ele tão perplexo, ansioso e morto de sono, delgado como uma estaca por onde sobem os feijões, e pensando que era muito esperto,
que não percebíamos. Pensei quem poderia ser a moça. Pensei em todas que eu conhecia, mas não pude ter certeza.
"Não se trata de uma moça", disse Cash. "É uma mulher casada desta vizinhança. Uma moça não é tão ousada assim nem tão resistente. É o que mais me desagrada nesse
assunto todo."
"Por quê?", perguntei. "Uma mulher casada é menos perigosa que uma moça. Tem mais juízo."
Ele me olhou com olhos vacilantes, as palavras vacilando no que pretendia me dizer. "Neste mundo, nem sempre são as coisas menos perigosas que um cara..."
"Você quer dizer que as coisas menos perigosas nem sempre são as melhores?"
"Ora, o melhor", disse ele, vacilando novamente. "Não são as coisas melhores aquelas que mais lhe convém... Um rapaz mal saído dos cueiros. É terrível a gente ver...
chafurdando na lama dos outros..."
Eis o que tentava me dizer. Quando uma coisa é nova, difícil e cintilante, deve haver nela algo mais que segurança, pois as coisas seguras são justamente as coisas
que a gente vem fazendo há tanto tempo que as arestas ficaram gastas, e nelas nada resta que leve um homem a dizer: "Isso não foi feito antes e não pode repetir-se."
Por isso, não contamos a ninguém, nem mesmo quando, passado algum tempo, ele apareceu, de súbito, na plantação, ao nosso lado, e se pós a trabalhar, sem ter tempo
para entrar em casa e fingir que estivera na cama a noite toda. Com certeza diria a Mãe que não tinha fome no desjejum e que havia comido um pedaço de pão enquanto
atrelava os animais. Mas Cash e eu sabíamos que ele não passava todas aquelas noites em casa e que saia dos bosques quando nos dirigíamos à plantação. Mas não dissemos
nada. O verão estava quase a findar; sabíamos que, quando as noites começassem a esfriar, ela encerraria o caso, mesmo que ele não quisesse.
Mas quando veio o outono e as noites começaram a ficar mais longas, a única diferença é que ele sempre estava na cama quando Pai ia acordá-lo, e se levantava naquele
primeiro estado de semi-idiotia dos tempos em que o caso começou, e pior ainda do que quando passava noites fora de casa.
"Ela é mesmo de matar", eu disse a Cash. "Até agora eu a admirava, mas confesso que passou a me inspirar respeito."
"Não se trata de mulher", disse ele.
"Você é quem sabe", eu disse.
Mas ele continuava a me observar. "O que é, então?"
"Isto eu gostaria de saber."
"Pode segui-lo pelos bosques, durante a noite, se lhe der vontade", eu disse. "Eu é que não." "Não vou espioná-lo", ele disse. "Eu não quis dizer tal coisa." Algumas
noites depois, senti que Jewel se levantava e saia pela janela, e então ouvi Cash erguer-se e acompanhá-lo. Na manhã seguinte, quando fui ao celeiro, Cash já estava
ali, as mulas tinham comido e ele ajudava Dewey Dell a tirar o leite. E quando eu o vi soube logo que ele sabia de que se tratava. De vez em quando eu o surpreendia
observando Jewel com expressão estranha, como se o fato de haver descoberto aonde ia Jewel e o que este fazia lhe tivesse dado, afinal, o que pensar. Não era, porém,
um olhar de preocupação; era mais o tipo de expressão que eu via nele, quando o encontrava fazendo tarefas de Jewel em redor da casa, tarefas que Pai pensava ainda
que Jewel fizesse e que Mãe pensava que eram feitas por Dewey Dell. Portanto, eu nada lhe disse, acreditando que, quando ele houvesse digerido bem a coisa, então
me contaria. Mas nunca contou.
Uma manhã — estávamos, então, em novembro, cinco meses depois que o caso começara —, Jewel não foi encontrado na cama e não se juntou a nós na plantação. Foi a primeira
vez que Mãe soube alguma coisa do que se passava. Mandou Vardaman ver onde Jewel estava, e depois de algum tempo, desceu também a ver. Parecia que, enquanto o embuste
corria tranquilo e monótono, todos nós o aceitávamos, favorecendo-o com a nossa in consciência e talvez com a nossa covardia, já que todas as pessoas são covardes
e preferem, naturalmente, qualquer gênero de traição, pois a traição tem o seu lado cômodo. Agora, porém, era como se todos nós tivéssemos — e por uma espécie de
acordo telepático de medo admitido — afastados os panos que cobriam a cama e, sentados e nus. olhássemos um ao outro, dizendo: "Esta é a verdade. Ele não voltou
para casa. Alguma coisa aconteceu-lhe. Permitimos que alguma coisa lhe acontecesse." Então nós o vimos. Vinha pelo fosso e, depois, virou-se e atravessou a plantação,
montado a cavalo. A crina e a cauda agitavam-se, como se, no movimento, elas destacassem as manchas do pelo; Jewel parecia cavalgar um grande catavento sem sela,
com uma corda servindo de rédea, e sem chapéu na cabeça. O cavalo era um descendente daqueles pôneis texanos que Flem Snopes trouxera vinte e cinco anos atrás e
vendera a dois dólares por cabeça, e ninguém, salvo o velho Lon Quick, conseguira conservar o seu. O velho Lon Quick ainda tinha animais do mesmo sangue porque não
pudera livrar-se deles.
Jewel galopou e parou, com os calcanhares fincados nos vazios e o cavalo dançando e girando como se a forma da crina e da cauda e as manchas do pelo nada tivessem
em comum com o cavalo de carne e osso a que pertenciam; e ficou ali, em cima do cavalo, a olhar para nós.
"Onde arranjou este cavalo?", perguntou Pai.
"Comprei-o", disse Jewel. "De Mr. Quick."
"Comprou?", disse Pai. "Com quê? Comprou a crédito, confiado em mim?"
"Comprei com o meu dinheiro", disse Jewel. "Ganhei dinheiro. Não precisam se preocupar com isto."
"Jewel", disse Mãe, "Jewel."
"Está certo", disse Cash. "Ele ganhou o dinheiro. Limpou os quarenta acres de terra que Quick comprou na primavera passada. Trabalhou sozinho, de noite, à luz da
candeia. Eu o vi. Portanto, o cavalo não custou nada a ninguém, exceto a Jewel. Não vejo motivo de preocupações."
"Jewel", disse Mãe. "Jewel..."
E, em seguida: "Vá direto para casa e durma."
"Ainda não", disse Jewel. "Agora estou sem tempo. Tenho de providenciar a sela e uma brida. Mr. Quick diz que ele..."
"Jewel", disse Mãe, fitando-o. "Eu lhe darei... lhe darei..."
Então começou a chorar. Chorava forte, sem ocultar o rosto, em pé, em seu casaco puído, olhando para ele e ele no cavalo, olhando para ela embaixo, sua cara adquirindo
uma expressão fria e levemente enfermiça, até que desviou, rápido, os olhos, e Cash aproximou-se e amparou-a.
"Ande, vá para casa", disse Cash. "O terreno aqui é muito úmido para você. Ande, vá agora."
Ela levou as mãos ao rosto e, depois de um instante, afastou-se, tropeçando um pouco nos regos. Mas logo se recobrava e prosseguia. Não olhou para trás. Quando chegou
ao fosso, parou e chamou Vardaman. Ele estava olhando o cavalo, que saltava á sua volta.
"Deixe-me montar, Jewel", pediu. "Deixe-me montar, Jewel." Jewel olhou-o, em seguida desviou de novo a vista, puxando o cavalo pela corda.
Pai observava-o, mordendo o lábio.
"Então você comprou um cavalo", disse. "Sem me consultar, comprou um cavalo. Você nunca pediu meu conselho. Bem sabe como as coisas andam ruins para nós, e mesmo
assim comprou um cavalo para eu alimentá-lo. Usou a carne e o sangue para comprar um cavalo com eles."
Jewel olhou Pai, seus olhos mais pálidos que nunca. "Ele não comerá nada seu", disse. "O menor bocado. Eu o mataria antes. Portanto, não pense nisso. Não pense nunca."
"Deixe-me montar, Jewel", disse Vardaman. "Deixe-me montar, Jewel." Sua voz assemelhava-se ao cricrilar de um grilo na grama, um grilo dos menores. "Deixe-me montar,
Jewel." Aquela noite encontrei Mãe sentada ao lado da cama onde ele dormia, no escuro. Ela chorava forte, talvez porque tinha de chorar discretamente, talvez porque
sentisse, a respeito das lágrimas, o que sentira do embuste, odiando-se por ser forçada a isso, e odiando Jewel porque a forçara. E então eu soube que sabia. Eu
soube de forma tão nítida como naquele dia em que soube a respeito de Dewey Dell.
Tull
Afinal levaram Anse a definir-se sobre o que queria fazer, e ele e a moça e o menino desceram da carroça. Mas, mesmo quando já estávamos sobre a ponte, Anse continuou
a olhar para trás, como se pensasse, talvez, que, não se encontrando mais na carroça, a coisa toda se tivesse dissipado e ele se encontrava lá embaixo, outra vez,
na plantação, e ela em casa, esperando a morte, e tudo começaria novamente.
"Você podia ter-lhes cedido a mula", ele diz, e a ponte estremecia e oscilava embaixo de nós, penetrando na água suja como se quisesse atravessar também para o outro
lado da terra, e a outra extremidade emergia da água, como se não fosse a mesma ponte, absolutamente, e os que desejavam passar pareciam vir do fundo da tenra. Mas
ainda estava inteira; podia-se dizer, muito a propósito, que, quando uma extremidade" oscilava, a outra parecia absolutamente firme: tal e qual as árvores e a ribanceira
do outro lado, que oscilavam, vagarosamente, paia trás" para diante, como o pêndulo de um grande relógio. E os toros de madeira que raspavam e batiam na parte submersa
e endireitavam-se e saltavam acima da superfície e arremessados para o vau, que os espera resvaladiço, turbilhonante e espumoso.
"E daria algum resultado?", pergunto. "Se a sua parelha não pode encontrar o vau e atravessá-lo, que esperar de três mulas, ou mesmo dez?" "Não lhe pedi a mula",
ele diz. "Sempre me arranjo com o meu pessoal. Não lhe pedi para arriscar sua mula. Afinal, a morta não é sua. Não o estou censurando." "Deviam voltar e esperar
até amanhã", digo. A água estava fria. Estava grossa qual gelo derretido. E parecia viva. Uma parte da gente sabia que era apenas água — a mesma coisa que está a
correr sob a mesma ponte há muito tempo; contudo, quando os toros de madeira emergiam, rodopiantes, a gente não se surpreendia, como se eles fizessem parte da água,
da espera e da ameaça.
Igual surpresa eu experimentei quando, passada a ponte e atravessada a corrente, senti terra firme debaixo dos nossos pés. Como se não esperássemos que a ponte findasse
do outro lado, em alguma coisa tranquila como a terra firme que havíamos pisado antes e que conhecíamos bem. Como se eu não pudesse estar ali, porque tivera, certamente,
o bom senso de não fazer o que acabara de fazer. E quando olhei para trás e vi a outra margem e vi minha mula ali onde eu deveria estar, e percebi que teria de voltar
de "qualquer maneira, vi que isto não podia ser, porque eu não conseguia pensar em nada que me fizesse cruzar aquela ponte outra vez. No entanto, ali estava eu,
e a pessoa que teria de atravessar duas vezes não podia ser eu, mesmo se Cora me tivesse ordenado.
Havia, porém, o menino. Eu disse: "Escute aqui: é melhor segurar minha mão", e ele esperou e agarrou-se a mim. O diabo me leve se isto não me deu a impressão de
retrocede» e aguentar-me; como se ele estivesse a dizer: "Veja, não lhe acontece nada." Como se estivesse falando de um lugar agradável que conhecia, onde o Natal
era festejado duas vezes, com o Dia de Ação de Graças, e durava todo o inverno e a primavera e o verão, e, se eu ficasse com ele também me sentiria feliz.
Quando voltei a olhar minha mula, pareceu-me vê-la através de um binóculo pequeno, de olhar a distância, e ela estava em pé, na outra margem, e vi também a terra
extensa e a casa que me haviam custado muito suor, e quanto mais suor eu derramasse, mais ampla seria a terra; quanto mais suor eu vertesse, mais fechada seria a
casa para Cora, para guardar Cora como uma jarra de leite na nascente: é preciso ter-se uma jarra bem fechada, do contrário faz-se mister uma boa nascente; e se
a gente conta com uma boa nascente, procura, então, ter jarras bem feitas, bem fechadas, porque se trata do nosso leite, coalhado ou não; porque a gente prefere
ter leite que coalhe a não ter leite que coalhe, pois um homem é um homem.
E ele segurando minha mão com sua mão quente e confiante, de forma que eu pensei em dizer: "Olhe aqui: está vendo aquela mula no outro lado? Não tem o que fazer
aqui, portanto nunca vem aqui, embora não passe de uma mula." Pois, de vez em quando, um cara percebe que as crianças têm mais sensibilidade que ele. Mas não gosta
de admitir tal coisa, pelo menos até que as crianças tenham barbas. E quando tem barbas, tornam-se muito ocupados e não sabem retroceder aos tempos em que, não tendo
barba, eram mais sensíveis; de maneira que as pessoas que se afligem com a mesma coisa não valem a preocupação que está em nós.
Chegamos, portanto, à outra margem e ficamos em pé, olhando Cash que movimenta a carroça. Nós os observamos descer a estrada até o lugar onde o caminho afunda na
água. Dentro em pouco a carroça desaparece.
"Melhor a gente ir ao vau e dar uma mãozinha", digo.
"Eu empenhei minha palavra", diz Anse. "Ela é sagrada para mim. Sei que você não aprecia isto, mas ela o abençoará no céu."
"Bom, eles têm de circular a terra antes de enfrentar a água", digo. "Vamos."
"É a volta", ele diz. "Voltar para trás dá azar." Continuava em pé, curvado, sombrio, olhando a estrada deserta além da ponte que oscilava e estremecia. E aquela
moça também, com o cesto do almoço num braço e o embrulho embaixo do outro. Como quem ia simplesmente à cidade. Disposta a ir. Eles arrastariam o fogo e a terra
e a água e tudo o mais só para comer um saco de bananas.
"Vocês deviam ter esperado um dia", digo. O rio teria baixado pela manhã. Talvez não chova mais esta noite. De qualquer forma, é impossível que as águas subam ainda
mais." "Eu prometi", ele diz. "Ela confia em minha palavra."
Darl
À nossa frente rola a corrente grossa e escura. Eleva até nós seu murmúrio incessante e múltiplo, a superfície amarela encrespa-se monstruosamente em torvelinhos
que percorrem a superfície durante breve momento, silenciosos, efêmeros e profundamente significativos, como se, logo embaixo da superfície, alguma coisa grande
e viva despertasse subitamente de um estado de estupor e recaísse, a seguir, no seu leve adormecimento.
A corrente chapinha e murmura entre os raios das rodas e em volta dos tornozelos das mulas, amarela, cheia de detritos e de grossas placas de espuma, como se tivesse
suado, como se tivesse escorrido de um cavalo a galopar. Corre, através da vegetação, em tom queixoso, pensativo; nela, os caniços flexíveis e os rebentes inclinam-se
como se enfrentassem um temporal, ondulando sem reflexos, como se suspensos, por invisíveis cordéis, dos ramos em cima. Sobre a superfície incessante, eles surgem
— árvores, caniços, rebentos — desenraizados, arrancados da terra, espectrais na cena de imensa conquanto circunscrita desolação tomada pela vez da água excessiva
e lastimosa.
Cash e eu estamos sentados na carroça; Jewel vai a cavalo, junto à roda direita, atrás. O cavalo está trêmulo e seu olho de um azul puro de olho de criança gira,
selvagem, no comprido focinho encarnado, enquanto a respiração soa estertorosa como um ronco. Jewel está ereto no cavalo, olhando com ar calmo, firme e rápido, em
frente e em volta, com seu rosto tranquilo, um pouco pálido e alerta. O rosto de Cash também está compenetrado; ele e eu nos olhamos com olhares demorados, inquisidores,
que mergulham livremente nos olhos um do outro e no derradeiro lugar secreto onde, por um instante, Cash e Darl se agacham, dominados por antigos terrores e pressentimentos,
alertas, sigilosos e despudorados. Quando falamos, nossas vozes soam tranquilas, destacadas.
"Acho que ainda estamos na estrada."
"Tull veio aqui e derrubou estes dois grandes carvalhos. Ouvi dizer que as árvores serviam para identificar o vau, quando a água subia muito."
"Acho que ele cortou-os dois anos atrás, quando desmatava esta região. Talvez não pensasse que alguém poderia utilizar o vau."
"Deve ter sido. Sim, com certeza. Tirou muita madeira, naquela ocasião. Com ela, pagou a hipoteca. É o que ouvi dizer."
"Sim. Creio que sim. Vernon é bem capaz disso."
"É verdade. A maioria das pessoas que tira madeira por aqui precisa de uma fazenda danada de boa para manter a serraria. Ou talvez um armazém. Mas Vernon sabe se
arranjar." "Também acho. É um espertalhão." "Sim. Vernon é um espertalhão. Sim, o vau deve estar por aqui. Ele nunca teria conseguido tirar aquela madeira daqui
se não nivelasse a estrada velha. Acho que ainda estamos nela." Cash olha em volta, calmamente, atentando na posição das árvores, inclinando-se para um e outro lado,
olhando para trás, ao longo da estrada sem contorno, vagamente modelada no ar pela posição das árvores podadas e abatidas, como se a estrada também houvesse sido
arrancada da terra e flutuasse, deixando em sua espectral trajetória um monumento à desolação, uma desolação, contudo, mais profunda que esta em que agora avançamos,
a conversar tranquilamente sobre a segurança passada e coisas triviais. Jewel olha-o, depois olha para mim, depois seu rosto se desvia para aquela calma, continua
pesquisa do cenário, o cavalo tremendo, com calma e firmeza, entre suas pernas.
"Ele podia adiantar-se e sondar o terreno para nós", digo.
"Sim", diz Cash, sem me fitar. Seu rosto perfila-se quando ele olha para onde Jewel avançou.
"Ele não pode perder o rio", digo. "Não pode deixar de vê-lo cinquenta metros adiante."
Cash não me olha. Continua com o rosto perfilado. "Se eu tivesse a suspeita, teria vindo aqui, na semana passada, dar uma espiada."
"A ponte estava em pé, então", digo. Ele não me olha. "Whitfield atravessou-a a cavalo." Jewel olha outra vez para nós, com expressão sóbria, vigilante e submissa.
Tem a voz calma. "Que querem que eu faça?"
"Eu devia ter vindo aqui, na semana passada, dar uma espiada", diz Cash. Então, ninguém sabia de nada", digo. "Não havia maneira de saber."
"Vou avançar", diz Jewel. "Vocês me acompanhem por onde eu for." Instiga o cavalo. O cavalo recua, arqueado. Jewel inclina-se para ele, fala com ele, convence-o
a avançar, pousando os cascos de leve, tremendo, respirando roucamente. Fala ao cavalo, murmura coisas ao cavalo. "Vamos em frente", diz. "Não deixarei que nada
de mau lhe aconteça. Em frente, agora."
"Jewel", diz Cash. Jewel não olha para trás. Continua a instigar o cavalo.
"Ele pode nadar", digo. "Se deixar o cavalo à vontade..." Quando Jewel nasceu, passava mal de saúde. Mãe sentava-se à luz da candeia, embalando-o num travesseiro
que trazia ao colo. Nós acordávamos e víamos que ela estava ali. Não faziam ruído algum.
"Aquele travesseiro era maior que ele", diz Cash. Inclinava-se um pouco para a frente. "Eu devia ter vindo aqui na semana passada e dar uma espiada. Eu devia ter
feito isso."
"Certo", eu digo. "Nem os pés nem a cabeça dele tocavam as extremidades do travesseiro. Você não podia prever", digo.
"Eu devia ter feito isso", insiste ele. Levanta as rédeas. As mulas avançam por entre os rastos. As rodas murmuram, vivas,. na água. Ele olha para trás e para baixo,
para Addie.
"Não está bem equilibrado", diz. Afinal, as árvores abrem-se; contra o rio agora desvendado, Jewel para o cavalo, meio virado, com água pela barriga. Do outro lado
do rio podemos ver Vernon e Pai e Vardaman e Dewey Dell. Vernon faz sinais para nós, aponta-nos a corrente mais embaixo. "Estamos muito acima", diz Cash. Vernon
também grita, mas não conseguimos distinguir o que diz, por causa do ruído da água. A água corre, agora, firme e profunda, contínua, sem dar impressão de movimento,
até que um toro aparece, girando vagarosamente. "Observe-o", diz Cash. Nós o observamos e vemos que hesita e se imobiliza por um instante, e a corrente acumula-se,
atrás dele, em onda espessa, e submerge-o num átimo, antes que ele volte a ser arrastado, empurrado pela água. "Lá vai", digo.
"Sim", diz Cash. "Lá vai." Olhamos novamente para Vernon. Ele agora levanta e baixa os braços. Descemos a corrente, com lentidão e cautela, observando Vernon. Ele
baixa as mãos. "O lugar é aqui", diz Cash.
"Então, com todos os demônios, vamos atravessar", diz Jewel. E instiga o cavalo.
"Espere", diz Cash. Jewel para outra vez. "Bem, por amor de Deus...", diz. Cash olha para a água, depois olha para Addie. "Não está bem equilibrado", diz.
"Neste caso, volte àquela maldita ponte e atravesse", diz Jewel. "Você e Darl. Deixe a carroça por minha conta." Cash não lhe presta atenção alguma, "Não está bem
equilibrado", diz. "Sim senhor. Temos de o observar bem."
"Observar, observar... Que diabo", diz Jewel. "Saia dessa carroça e deixe por minha conta. Por Deus, se você está com medo de guiá-la..." Seus olhos estão pálidos,
quais dois cavacos esbranquiçados na cara. Cash olha para ele.
"Tudo dará certo", diz. "Ouça o que devemos fazer. Volte com o cavalo até a ponte, atravesse a ponte a pé e desça pela margem, ao nosso encontro, com a corda. Vernon
pode levar seu cavalo para casa e guardá-lo até nossa volta."
"Vá para o inferno", diz Jewel.
"Pegue a corda, desça pela margem e prepare-se", diz Cash. "Aqui, bastam dois: um para guiar, o outro para segurar."
"O diabo o leve", diz Jewel.
"Jewel pega a ponta da corda, atravessa a corrente e estende-a", digo. "Quer fazer isto. Jewel?"
Jewel me observa, com expressão dura. Olha rapidamente para Cash, depois para mim, outra vez, com olhos alertas e duros. "Pouco me importa. Temos é de fazer alguma
coisa. Parados aqui, sem levantar um maldito dedo..."
"Vamos fazer isto mesmo, Cash", digo.
"Não há outra coisa a fazer", diz Cash. O rio, por si mesmo, não tem mais de cem metros de largura, e Pai e Vernon e Vardaman e Dewey Dell são as únicas coisas à
vista, sem falar na monotonia singular daquela desolação que parece estender-se, terrível, da direita para a esquerda, como se tivéssemos atingido o lugar onde o
movimento do mundo devastado se acelera, pouco antes do precipício final. Contudo, eles parecem encolhidos. Como se o espaço entre nós fosse só tempo: uma coisa
irrevogável, Como se o tempo já não corresse diretamente à nossa frente, em linha decrescente, mas se escoasse, paralelo, entre nós, qual corda dobrada, e a distância
fossem as dobras, não o intervalo entre elas. As mulas param, com os quartos dianteiros já um pouco inclinados e as ancas elevadas. Também elas respiram agora com
profundo som enrouquecido, olham uma vez para trás, roçando em nós seus olhos selvagens, tristes, profundos e desesperançados, como se já tivessem visto na água
grossa a imagem do desastre de que não podem falar e que não podemos ver.
Cash volta-se para o interior da carroça. Pousa as mãos estendidas em Addie e balança-a um pouco. Seu rosto está calmo, cabisbaixo, calculista e preocupado. Apanha
a caixa de ferramentas e a põe embaixo do banco; juntos, empurramos Addie, colocando-a entre as ferramentas e o fundo da carroça. Depois, ele me olha.
"Não", digo. "Creio que vou ficar. Talvez sejam necessários os dois."
Da caixa de ferramentas ele retira a corda enrolada, passa-a por trás do banco, em duas voltas, dá-me uma ponta, sem atar, e estende a outra a Jewel, que dá uma
volta no arção da sela.
Ele tem de obrigar o cavalo a entrar na corrente. O cavalo avança, levantando os joelhos, arqueando o pescoço, irritado, de má vontade. Jewel vai sentado um pouco
para a frente, com os joelhos erguidos; mais uma vez seu olhar rápido, firme e calmo passa por cima de nós e segue. Faz o cavalo penetrar na corrente, falando-lhe
com um murmúrio apaziguador. O cavalo escorrega, afunda na água até a sela, volta a pisar firme e a corrente bate contra as coxas de Jewel.
"Cuidado", diz Cash.
"O pior já passou", diz Jewel, "Pode vir agora."
Cash empunha as rédeas e faz a parelha entrar, com cuidado e com perícia, na corrente.
Senti que a corrente nos levava e percebi, assim, que estávamos no vau, pois só por meio desse contato escorregadio sabíamos que avançávamos de verdade. O que havia
sido uma superfície lisa era agora uma sucessão de altos e baixos que se formavam à nossa volta, empurrando-nos, molestando-nos com seus toques ligeiros e preguiçosos,
nos inúteis instantes de solidez embaixo dos pés. Cash voltou-se para me olhar e então eu compreendi que estávamos perdidos. Mas eu não vi justificativa para a corda
até que o tronco apareceu. Emergiu da água e parou um instante, firme como Cristo por cima dessa desolação encrespada e selvagem.
"Saia e deixe que a corrente o leve até a curva do rio", disse Cash. "Você conseguirá facilmente."
"Não", eu disse, "prefiro me molhar dessa maneira."
O tronco aparece de súbito entre duas ondas, como se houvesse subido bruscamente do fundo do rio. De sua ponta pende uma comprida borda de espuma semelhante à barba
de um velho ou de um bode. Quando Cash me fala, sei que ele esteve observando os detalhes, esse tempo todo, e observando Jewel três metros à nossa frente.
"Solte a corda", ele diz. Com a outra mão aperta as duas voltas da corda embaixo do banco.
"Continue, Jewel", ele diz. "Veja se nos leva à frente do tronco."
Jewel grita com o cavalo; mais uma vez parece suspender o cavalo entre os joelhos. Está quase a atingir o vau, e o cavalo sentiu alguma coisa, pois acomete, brilhando
de umidade, meio fora da água, avançando numa sucessão de saltos. Move-se com incrível rapidez; por isso, Jewel percebe, afinal, que a corda está livre, pois eu
o vejo, com a cabeça virada, puxar as rédeas do cavalo, enquanto o tronco recua, entre nós, com um grande salto surdo, batendo contra a parelha. As mulas também
o viram; por um momento elas também brilham, negras, fora da água. Então, a que está mais embaixo na corrente desaparece, arrastando a outra; a carroça fica enviesada,
no alto do vau, enquanto o tronco, arremetendo contra ela, a faz estremecer e avançar. Cash está meio virado para trás, as rédeas escapando-lhe da mãe e desaparecendo
na água, e a outra mão apertando Addie, segurando-a contra o lado mais alto da carroça.
"Salte", diz calmamente. "Separe-se da parelha e não procure lutar. A corrente conduzirá você ao cotovelo do rio."
"Venha você também", digo.
Vernon e Vardaman correm pela margem, Pai e Dewey Dell nos observam, Dewey Dell com o cesto e o embrulho nos braços. Jewel empenha-se em fazer o cavalo recuar. A
cabeça de uma das mulas aparece, de olhos escancarados; olha para trás, para nós, por um instante, e emite um som quase humano. A cabeça desaparece outra vez.
"Atrás, Jewel", grita Cash. "Atrás, Jewel."
Por outro breve instante eu o vejo dobrado contra a carroça oscilante, o braço envolvendo Addie e suas ferramentas; vejo a cabeça espumejante do tronco saltador
surgir novamente e, mais além, Jewel e o cavalo assustado, que torce a cabeça, onde cai, como marteladas, o punho de Jewel. Salto da carroça na corrente que passa.
Entre duas ondas, vejo as mulas uma vez mais. Rolam para fora da água, uma atrás da outra, girando sobre si mesmas, de pernas entesadas, como se tivessem perdido
todo o contato com a terra.
Vardaman
Cash tentou mas ela caiu para fora e Darl saltou e afundou na água e Cash gritando para que a agarrassem e eu gritando e correndo e gritando e Dewey Dell gritando
"Vardaman! Ó Vardaman! Ó Vardaman!" e Vernon me deixou atrás porque a tinha visto subir e ela saltou dentro da água outra vez e Darl ainda não tinha podido pegá-la.
Ele veio à superfície para ver e eu gritando "Agarre-a, Darl, agarre-a" e ele não voltou porque ela era muito pesada e ele tinha de tentar agarrá-la e eu gritando
"Agarre-a, Darl, agarre-a, Darl" porque na água ela podia andar mais depressa que qualquer um e Darl era forçado a procurá-la às apalpadelas portanto eu sabia que
ele podia pegá-la porque ele é o melhor para pegar coisas mesmo incomodado pelas mulas, que davam voltas e mais voltas e agora com os lombos no alto e Darl tinha
de buscá-la novamente porque na água ela ia mais depressa que qualquer pessoa, homem ou mulher, e eu passei por Vernon e ele não queria entrar na água e ajudar Darl
ele não queria agarrá-la junto com Darl ele sabia que era preciso mas não queria ajudar.
As mulas aparecem outra vez com as patas rígidas as patas rígidas rolando devagar e depois Darl novamente e eu gritando "Agarre-a, Darl, agarre-lhe a cabeça e puxe
para a margem" e Vernon não queria ajudar mesmo e então Darl passou as mulas onde podia mantê-la embaixo da água e empurrá-la para a margem, devagar, e então eu
vi que ele a tinha agarrado porque ele vinha devagar e eu desci correndo para a água para ajudar e eu não pude parar de gritar porque Darl era forte e continuava
a mantê-la embaixo da água mesmo se ela lutasse ele não a largaria ele estava me vendo e segurava-a e agora tudo estava bem tudo bem tudo bem.
Agora ele assoma à superfície da água. Aparece bem devagar, muito antes de suas mãos, mas é preciso que ele a segure, do contrário eu não aguento mesmo. Então suas
mãos sobem e ele inteiro surge em cima da água. Eu não posso parar. Nem mesmo tenho tempo para tentar. Tentaria, se pudesse, mas as nãos dele saem vazias a água
esvaziando a água esvaziando tudo.
"Darl, onde está Mãe?", eu digo. "Você não agarrou-a. Sabe que ela é um peixe mas deixou-a escapar. Nunca conseguirá pegá-la. Darl. Darl. Darl."
Eu começo a correr ao longo da margem, vendo as mulas surgirem devagar, afundarem devagar.
Tull
Quando contei a Cora como Darl pulou da carroça e deixou Cash sentado lá dentro, tentando salvá-la, e a carroça virando; e que Jewel, quase na outra margem, forçava
o cavalo a retroceder até onde o animal, com muito tino, não queria ir, ela disse: "E você é um desses que achara Darl esquisito, sem nenhum juízo. No entanto, ele
foi o único a ter o bom senso de saltar da carroça. Vejo que Anse foi muito esperto, pois tirou o corpo fora."
"De nada adiantaria ele ter ficado na carroça", eu disse. "Tudo ia dar certo, e daria mesmo, se não fosse o tronco."
"O tronco... Bobagens", disse Cora. "Foi a mão de Deus."
"Neste caso, como diz que foi bobagem?", perguntei. "Ninguém pode livrar-se da mão de Deus. Seria sacrilégio tentar."
"Então, por que a desafiam?", diz Cora. "Ande, me diga."
"Anse não desafiou", eu disse. "E é justamente isto que você lhe censura."
"Seu lugar era na carroça", disse Cora. "Se fosse homem de verdade, estaria lá, em vez de deixar os filhos fazerem o que ele não se atrevia a fazer."
"Não percebo bem aonde você quer chegar", eu digo. "Uma vez, você acha que desafiavam a mão de Deus. Outra vez, culpa Anse por não estar com eles na carroça."
Então, ela começou a cantar de novo, enquanto trabalhava no coradouro, com aquela expressão gloriosa no rosto, como se houvesse renunciado a todo mundo e a todas
as maluquices, e, na frente de todos, marchasse para o céu, a cantar. A carroça vacilou durante muito tempo, porque a corrente a empurrava por baixo, afastando-a
do vau, e Cash, cada vez mais inclinado, procurava sustentar o caixão, com o braço, a fim de que ele, deslizando, não virasse a carroça. Assim que a carroça ficou
bem inclinada, para que a corrente, sozinha, completasse o serviço, o tronco seguiu caminho. Cabeceou em volta da carroça e partiu, a exemplo de um bom nadador.
Parecia ter sido enviado ali para fazer determinada tarefa e, uma vez feita, saiu logo.
Quando, finalmente, as mulas conseguiram libertar-se, soltando coices, pareceu, durante um minuto, que Cash poderia endireitar a carroça. Tinha-se a impressão que
ele e a carroça não se moviam de forma alguma, e apenas Jewel lutava para fazer o cavalo recuar até a carroça. Então, aquele menino passou por mim, correndo e gritando
para Darl, e a moça tentou agarrá-lo, e então eu vi as mulas rolarem, vagarosas, à superfície, com as pernas entesadas, como se, de cabeça para baixo, tropeçassem
em alguma coisa e tombassem outra vez na água.
Foi quando a carroça virou e ela e Jewel e o cavalo ficaram todos misturados. Cash desapareceu de vista, ainda envolvendo o caixão com o braço, e então eu não pude
ver mais nada, salvo que o cavalo investia e debatia-se. Pensei que Cash havia desistido e conseguia nadar, e gritei a Jewel para que voltasse. E então, em um átimo,
ele e o cavalo afundaram também, e julguei que os dois estariam perdidos. Eu sabia que o cavalo também fora arrastado para fora do vau; com aquele selvagem cavalo
afogando-se, a carroça e o caixão desprendido, as coisas' estavam, de fato, muito ruins. Em pé, com água até os joelhos, eu gritava para Anse atrás de mim: "Viu
só o que fez? Está vendo o resultado?" O cavalo emergiu novamente. Dirigia-se à margem, de cabeça erguida, e vi que tinha alguém agarrado à sela, do lado da corrente,
por isso corri ao longo da margem, na esperança de avistar Cash, que não sabia nadar, e perguntando a Jewel, aos gritos, onde estava Cash. Eu parecia mesmo doido,
tão doido quanto o menino que, na margem, gritava por Darl.
Foi então que me meti na água, tendo o cuidado, porém, de me firmar na lama, e avistei Jewel. Estava meio afundado, por isso verifiquei que se encontrava ainda no
vau, enfrentando a força da corrente, e vi a corda, e depois vi que a água se levantava justamente no lugar onde ele escorava a carroça tombada à beira do vau.
Era Cash, portanto, quem se agarrava ao cavalo quando este chegou patinhando e subiu a ribanceira, gemendo e roncando como um ser humano. Quando me aproximei, o
cava-lo dava coices para sacudir Cash e libertar a sela. O rosto dele apareceu, durante um segundo, quando era sacudido e afundava na água. Estava cinzento, com
os olhos fechados e sujo de lama. Não tardou a cair e afundar. Parecia uma trouxa de roupas velhas malhada contra o barranco. Dava impressão de estar à vontade,
deitado de barriga para baixo, balançando-se à flor da água, como se avistasse alguma coisa no fundo.
Podíamos ver a corda submersa e podíamos sentir o peso da carroça, que puxava por ela, de forma preguiçosa, sem convicção, como se não valesse a pena, e a corda
esticava-se, na água, como uma barra de ferro. Ouvia-se a água silvar na corda, como se esta estivesse em brasa. Como se fosse uma barra de ferro cravada no fundo
e nós segurando a outra extremidade, e a carroça subindo e descendo, empurrando-nos e puxando-nos. preguiçosa, sem maior convicção. Um leitão passou por nós, inchado
como um balão: um dos leitões malhados de Lon Quick. Bateu na corda, como se esta fosse uma barra de ferro, recuou e prosseguiu caminho. E a gente olhando aquela
corda que afundava, oblíqua, na água. Olhando sempre.
Darl
Cash está deitado de costas no chão, a cabeça pousada sobre uma roupa dobrada. Tem os olhos fechados, o rosto cinzento, o cabelo tão grudado à testa, de viés, que
parece pintado ali por uma brocha. Seu rosto parece haver afundado um pouco, encovado ao redor das órbitas, do nariz, das gengivas, como se a água houvesse desfeito
a firmeza da carne que mantinha a pele esticada; os dentes, enfiados nas gengivas esbranquiçadas, estão um pouco entreabertos, como se ele risse para si mesmo. Está
estirado qual uma vara, em suas roupas encharcadas, e uma pequena mancha de vômito formou-se junto à sua cabeça; um fio de vômito escorre-lhe do canto da boca, pelo
queixo, como se ele não pudesse virar a cabeça depressa, ou à distância desejada, até que Dewey Dell se debruça e limpa-o com a barra do vestido.
Jewel aproxima-se. Traz a plaina. "Vernon acaba de encontrar o esquadro", diz. Baixa os olhos para Cash, pingando água também. "Ele ainda não falou?" "Ele trazia
a serra, o martelo, a linha de marcar o nível e a régua", eu digo. "Tenho certeza." Jewel põe o esquadro no chão. Pai observa-o. "As ferramentas não podem estar
longe", diz Pai. "Caíram juntas no mesmo lugar. Que homem mais azarado eu sou." Jewel não olha para Pai. "Melhor chamar Vardaman aqui", diz. Olha Cash. Em seguida,
volta-se e vai embora. "Façam-no falar o mais rápido possível", diz, "a fim de que ele nos informe o que tinha mais." Voltamos ao rio. A carroça está posta a secar,
com as rodas calçadas (cuidadosamente: todos nós ajudamos, e parece que na forma tosca, familiar e inerte da carroça, resta, latente e contudo imediata, aquela violência
que esfalfou as mulas que a puxavam não faz ainda uma hora) na ponta de terra não alcançada pela inundação. No fundo da carroça o caixão jaz profundamente, com as
compridas tábuas ainda marcadas pela umidade, e no entanto ainda amarelas, como ouro visto através da água, a não ser em dois lugares onde há riscos de lama. Passamos
pela carroça e vamos à beira do rio.
Uma das pontas da corda está amarrada a uma árvore. Na fimbria da corrente, com água até os joelhos, Vardaman inclina-se um pouco e contempla Vernon com grande fascínio.
Parou de gritar e está molhado até as axilas. Vernon encontra-se na outra extremidade da corda, mergulhado até os ombros, de rosto voltado para Vardaman. "Um pouco
mais atrás", diz. "Recue até a árvore e segure a corda em meu lugar, para que ela não escape." Vardaman retrocede ao longo da corda, até a árvore, movimentando-se
como um cego, e tendo os olhos postos em Vernon. Ao chegarmos, olha uma vez para nós, com olhos redondos e espantados. Em seguida, volta a olhar Vernon, naquela
atitude de completo fascínio.
"Encontrei também o martelo", diz Vernon. "A linha de marcar já devia ter aparecido. Devia estar flutuando."
"Flutuou rio abaixo", diz Jewel. "Não conseguiremos achá-la. Mas seria bom encontrar a serra."
"Sem dúvida", diz Vernon. Olha para a água. "E a linha de marcar também. Que mais ele tinha?"
"Ainda não voltou a falar", diz Jewel entrando na água. Olha para mim, que estou atrás. "Volte, levante-o e veja se ele fala", diz.
"Pai está lá", eu digo. Acompanho Jewel pela água, ao longo da corda. Sinto a corda viva na minha mão, inchada em arco prolongado e ressonante. Vernon me observa.
"Melhor você ir", diz. "Melhor ficar com ele."
"Vamos ver se tiramos mais alguma coisa da água, antes que a corrente leve tudo", eu digo.
Agarrados à corda, a corrente encrespa-se e redemoinha em volta dos nossos ombros. Mas, sob esta aparente brandura, a verdadeira força da corrente nos empurra preguiçosamente.
Eu não imaginava que a água no mês de julho pudesse ser tão fria. Até parece que mãos geladas modelam nossos ossos. Vernon ainda olha para trás, para a margem.
"Será que a corda aguenta nós todos?", pergunta. Olhamos também para trás, acompanhando a rígida barra da corda, no lugar em que se levanta da água até a árvore,
e Vardaman encurvado, perto da corda, sempre a nos observar. "Tomara que minha mula tenha ido para casa", diz Vernon.
"Vamos", diz Jewel. "Vamos acabar logo com isto aqui." Mergulhamos por turno, segurando a corda, perto um dos outros, enquanto a fria muralha sorve para trás, em
contracorrente, a lama do fundo, e ficamos suspensos, sondando o gelado fundo do rio. Até mesmo o lodo não tem firmeza ali. Tem algo de fugidio, de calafrio, como
se a terra embaixo de nós estivesse também em movimento. Do braços estendidos, tocando-nos, sem perder contato uns com os outros, exploramos cautelosamente o trecho
assinalado pela corda; ou então, de pé, quando nos toca a vez, observamos a água retrair-se e borbulhar no lugar onde um dos outros dois homens perscruta a superfície.
Pai desceu à beira do rio e se pôs a nos observar.
Vernon emerge, pingando água, com a cara descaindo para a boca ofegante. Tem a boca azulada, como um pedaço redondo de borracha estragado pelo tempo. Traz a régua.
"Ele vai ficar contente", digo. "A régua é nova. Ele encomendou-a o mês passado, pelo catálogo!" "Se a gente soubesse o que ele tinha mais... ", diz Vernon, olhando
por sobre o ombro e virando-se, depois, para onde Jewel havia desaparecido. "Ele não mergulhou antes de mim", Vernon diz. "Não sei", eu digo. "Creio que sim. Sim,
ele mergulhou antes." Observamos a espessa superfície encaracolada; que se afasta de nós em círculos vagarosos.
"Deem-lhe um puxão na corda", diz Vernon.
"Ele está do seu lado", eu digo.
"Não há ninguém aqui", ele diz.
"Puxe", eu digo. Mas ele já deu o puxão, esticando a ponta da corda acima da água; e então vemos Jewel. Está a uns dez metros de distância; vem à superfície, respirando
pesadamente, e olha para nós, sacudindo o comprido cabelo preto com um violento movimento da cabeça, depois, olha para a margem; podemos vê-lo a encher os pulmões.
"Jewel", diz Vernon, não muito forte, mas com voz cheia e clara sobre a água, peremptória e, no entanto, comedida. "Deve estar aqui por perto. É melhor você voltar."
Jewel mergulha de novo. Em pé, dobrados contra a corrente, olhamos o lugar onde ele desapareceu, pegando na corda morta como dois homens que empunhassem o bocal
de uma mangueira de incêndio, à espera de que houvesse água. De súbito, Dewey Dell surge às nossas costas, dentro da água. "Façam-no voltar", ela diz. "Jewell",
grita. Ele sobe outra vez, puxando o cabelo preto de cima dos olhos. Agora está nadando na direção da margem, a corrente forçando-o à deriva. "Ei, Jewell", chama
Dewey Dell. Continuamos em pé, segurando a corda, vendo-o chegar à beira do rio e subir a ribanceira. Ao sair da água, abaixa-se e pega alguma coisa. Retrocede ao
longo da margem. Acaba de encontrar a linha de marcar. Chega defronte da gente e fica parado, olhando em redor, como à procura de alguma coisa. Pai caminha pela
margem. Vai até o lugar onde as mulas flutuam os corpos gordos e esfregam-se na água preguiçosa da curva do rio.
"Que fez do martelo, Vernon?", pergunta Jewel.
"Dei-o a ele", diz Vernon, sacudindo a cabeça na direção de Vardaman. Vardaman está olhando para Pai. Em seguida, olha Jewel. "Junto com o esquadro." Vernon observa
Jewel. Dirige-se à margem, passando por Dewey Dell e por mim.
"Saia daqui", eu digo. Ela não responde, olhando para Jewel e Vernon. "Onde está o martelo?", pergunta Jewel. Vardaman corre pela beira do rio, a fim de apanhá-lo.
"Ele é mais pesado que a serra", diz Vernon. Jewel está atando a ponta da linha de marcar na cabeça do martelo. "Mas o martelo tem mais madeira", diz Jewel. Ele
e Vernon estão frente a frente, olhando as mãos de Jewel. "E também é mais liso", diz Vernon. "Flutuaria três vezes melhor, ou quase. Experimente a plaina." Jewel
olha para Vernon. Vernon também é alto; compridos e delgados, eles se encaram em suas roupas molhadas e coladas ao corpo. Lon Quick é capaz de olhar o céu cheio
de nuvens e dizer que horas são, com uma margem de erro de dez minutos apenas. Eu me refiro ao velho Lon, não ao filho.
"Por que não sai para fora da água?", eu digo.
"Não flutuaria tão bem quanto a sena", diz Jewel.
"Flutuará melhor com a serra do que com o martelo", diz Vernon.
"Quer apostar?", diz Jewel.
"Não aposto", diz Vernon.
Continuam em pé, observando as mãos calmas de Jewel. "Diabo", diz Jewel. "Traga a plaina."
Pegam a plaina, amarram-na à linha de marcar e entram outra vez no rio. Pai volta pela margem. Para um instante e nos olha, encurvado, lúgubre, como um boi abatido
ou como um grande pássaro velho.
Vernon e Jewel retomam, fazendo força contra a corrente. "Saia do caminho", Jewel diz a Dewell. "Saia de dentro da água."
Ela se aperta um pouco contra mim para deixá-los passar; Jewel segura a plaina no alto, como se fosse um objeto bem frágil, e o cordel azul deixa um risco preto
em seu ombro. Passam por nós e param; discutem, com calma, qual o exato lugar em que a carroça tombou.
"Darl deve saber", diz Vernon. E olham para mim. "Não sei", digo. "Não fiquei muito tempo lá."
"Diabo", diz Jewel. Avançam cautelosamente, dobrados contra a corrente, procurando sentir o vau com os pés. "Você segurou bem a corda?", pergunta Vernon. Jewel não
responde. Lança um olhar calculista à margem, e depois à água. Atira a plaina longe, deixando o cordel correr entre os dedos, os dedos tomando-se azuis por causa
da fricção. Quando o cordel termina, ele estende-o a Vernon. "Melhor deixar que eu vá esta vez", diz Vernon. Mais uma vez. Jewel não responde. Nós o vemos mergulhar.
"Jewel", geme Dewey Dell. "Não é tão profundo aqui", diz Vernon. Ele não olha para trás. Está olhando a água no lugar onde Jewel mergulhou. Quando Jewel volta à
superfície traz a serra. Ao passarmos pela carroça, Pai está em pé, ao lado do caixão, esfregando as riscas de lama com um punhado de folhas. Contra o fundo do bosque,
o cavalo de Jewel parece uma colcha de retalhos pendurada de uma corda.
Cash ainda não se mexeu. Paramos ao redor, segurando a plaina, a serra, o martelo, o esquadro, a régua, a linha de marcar, enquanto Dewey Dell se debruça para erguer-lhe
a cabeça.
"Cash", ela diz, "Cash." Ele abre os olhos e fita com intensidade nossos rostos invertidos.
"Não pode haver ninguém mais desgraçado que eu", diz Pai.
"Olhe, Cash", dizemos, segurando as ferramentas de forma que possa vê-las. "Você tinha outras coisas?"
Ele tenta falar, rolando a cabeça, fechando os olhos.
"Cash", dizemos. "Cash."
É para vomitar que ele vira a cabeça. Dewey Dell enxuga-lhe a boca com a barra molhada do vestido; só então ele consegue falar.
"É o amolador", diz Jewel. "O novo, aquele que ele comprou quando comprou a régua."
Afasta-se. Vernon, ainda acocorado, acompanha-o com o olhar. Em seguida, ergue-se e segue Jewel até a beira do rio.
"Não pode haver ninguém mais desgraçado que eu", diz Pai. Em pé, como está, sua figura domina a nós todos, que estamos de cócoras; parece uma escultura grosseiramente
esculpida em madeira ruim por um caricaturista bêbado. "É mesmo um castigo", diz. "Mas não lhe quero mal. Ninguém pode dizer que eu me queixei dela."
Dewey Dell deitou a cabeça de Cash no casaco dobrado, torcendo-a um pouco para evitar o vômito. Ao seu lado jazem as ferramentas. "Este pode ser considerado um sujeito
de sorte, pois é a mesma perna que ele quebrou quando caiu do alto da igreja", diz Pai. "Mas eu não me queixo dela."
Jewel e Vernon voltaram ao rio. Daqui de cima, eles não parecem violar, em absoluto, a superfície da água; é como se a água os tivesse cortado de um só talho, deixando
apenas os torsos, que se movem com infinitesimal e cômica cautela sobre a superfície. Tudo aprazível, como um maquinismo que a gente observa e escuta durante longo
tempo. Como se esse coágulo que somos nós, dissolvido na miríade do movimento original, nos tornasse cegos e surdos para ver e ouvir a nós próprios; e toda a nossa
fúria se aplacasse na estagnação. De cócoras, Dewey Dell modela, com seu vestido encharcado, para os olhos de três homens cegos, essas rotundidades mamárias que
são os horizontes e os vales da terra.
Cash
Não estava bem equilibrado. Eu lhes disse que, se quisessem transportá-lo com equilíbrio, teriam que
Cora
Um dia nós conversávamos. Ela nunca foi muito religiosa, nem mesmo depois daquela reunião ao ar livre, no verão, quando o Irmão Whitfield lutou com seu espírito,
levou-a à parte e combateu o orgulho em seu coração mortal, e eu lhe disse muitas vezes: "Deus lhe deu filhos para confortá-la em sua miséria e como penhor de Seu
próprio sofrimento e amor, pois no amor você os concebeu e os trouxe à luz."
Eu disse isto porque ela não tinha seu amor por Deus e seus deveres para com Ele em muita conta, e tal comportamento não lhe agrada.
Eu disse: "Ele nos deu o dom de elevar nossas vozes em louvor de sua glória imortal", porque, segundo creio, há mais alegria no céu por um pecador arrependido do
que por uma centena de pessoas que nunca pecaram.
E eu disse: Minha vida diária é o reconhecimento e expiação de meu pecado", e frisei: "Quem é você para dizer o que é pecado é o que não é pecado? O Senhor é quem
julga; compete-nos apelar à Sua misericórdia e ao Seu santo nome em benefício dos nossos Irmãos mortais", porque só ele pode ver no fundo dos corações, e embora
a vida de uma mulher pareça direita aos olhos de todos, ela não tem certeza de não haver pecado em seu coração, a não ser que abra o coração ao Senhor e receba Sua
graça."
Eu disse: "O fato de ser fiel ao seu mando não é sinal de que não existe pecado em seu coração, e as durezas de sua vida não significam também que a graça do Senhor
a esteja absolvendo."
E ela disse: "Conheço meu próprio pecado. Sei que mereço castigo. Não o lamento."
E eu disse: "É por orgulho que você quer julgar o pecado e a salvação em lugar do Senhor. É nosso fado mortal sofrer e elevar nossas vozes em Seu louvor, pois Ele
é que julga o pecado e oferece a salvação mediante provações e atribulações, desde o princípio dos séculos amém. Não, você não pode julgar, sobretudo agora depois
que o Irmão Whitfield, um santo homem que respira o hálito de Deus, orou por você e lutou como nenhum outro poderia lutar, a não ser ele", eu disse. Porque não nos
compete julgar nossos pecados ou saber o que é pecado aos olhos do Senhor. Ela tem tido uma vida atormentada, mas assim é a vida das mulheres. Mas a gente pensaria,
pela maneira como ela falava, que sabia mais acerca de pecado e salvação do que o próprio Deus Nosso Senhor, do que os que trabalham e lutam para tirar o pecado
deste mundo dos homens. Quando o único pecado que ela cometeu foi o de ser parcial para com Jewel, que nunca a amou — e por isso foi castigada —, em prejuízo de
Darl, que foi tocado pela graça de Deus e julgado esquisito por nós, mortais, e que a queria de verdade.
Eu disse: "Eis o seu pecado. E também o seu castigo. Jewel é o seu castigo. Mas onde está sua salvação? E veja que a vida é muito curta para se conquistar a graça
eterna. E Deus é um Deus ciumento. Ele, e não nós, é quem julga e oferece recompensa."
"Eu sei", ela disse. "Eu..."
E então ela parou, e eu disse: "Sabe o quê?"
"Nada", ela disse. "Ele é minha cruz e será minha salvação. Ele me salvará da água e do fogo. Mesmo que eu já esteja dormindo o sono eterno, ele me salvará."
"Como é que você tem a certeza disso, sem ter aberto seu coração a Deus e erguido a voz em Seu louvor?", eu disse.
Então, percebi que ela não se referia a Deus. Percebi que, levada pelo orgulho que havia em seu coração, ela falara de forma sacrílega. E eu me ajoelhei ali mesmo.
Pedi-lhe para se ajoelhar também e abrir o coração e expulsar dele o demônio do orgulho e entregar-se à misericórdia do Senhor. Mas ela não quis. Continuou sentada,
perdida na sua vaidade e no seu orgulho, que lhe tinham fechado o coração a Deus e posto, em Seu lugar, aquele rapaz mortal, cheio de egoísmo. Rezei por aquela pobre
mulher cega como nunca tinha orado por mim e por minha família.
Addie
A tarde, quando a escola fechava e o último aluno saia com seu narizinho sujo, em vez de ir para casa eu descia a colina até a fonte, onde podia ficar tranquila
e odiá-los. Tudo ali era tranquilo, com a água fluindo e rumorejando e o sol caindo oblíquo nas árvores e o calmo odor das folhas úmidas e meio podres e da terra
nova, principalmente no início da primavera, quando, então, era pior.
Eu só me lembrava, então, de como meu pai costumava dizer que a verdadeira razão de se viver era preparar-se para ficar morto durante muito tempo. E quando eu descobria
que tinha de olhar para eles, dia após dia, cada um, homem e mulher, com seus segredos e egoísmos, o sangue de um alheio ao sangue de outro e diferente do meu; e
pensava que aquela seria a única maneira de eu me preparar para morrer, eu odiava, então, meu pai por me haver concebido. Eu fazia tudo para apanhá-los em falta
e chicoteá-los. Quando o chicote tombava, eu o sentia em minha cama; quando fazia vergões e inchava a pele, era meu sangue que corria, e eu pensava, a cada golpe
do chicote: "Agora vocês têm consciência de minha pessoa. Agora eu sou alguma coisa em suas vidas secretas e egoístas, eu que marquei seus sangues com o meu, para
todo o sempre."
De modo que aceitei Anse. Eu o vi passar pela escola três ou quatro vezes, antes de saber que fazia uma volta de seis quilômetros para me ver. Observei, então, como
ele começava a ficar encurvado, embora sendo alto e moço, de tal maneira que já parecia um pássaro grande, encolhido no inverno, assim sentado no banco da carroça.
Passava pela escola, a carroça estalando vagarosamente, e a cabeça virava-se, sem pressa, para olhar a porta da escola, enquanto a carroça passava, até que ele desaparecia
na curva. Um dia eu fui à porta e fiquei ali quando ele passava. Ao me ver, olhou rapidamente para ou ira direção e não voltou a olhar a escola.
No início da primavera era pior. Às vezes eu pensava que não ia aguentar aquilo, deitada na' cama a noite toda, com os patos selvagens voando para o norte e seus
grasnidos chegando nítidos, altos e selvagens, como se saídos da escuridão selvagem, e durante o dia era como se eu mal pudesse esperar que o último aluno saísse,
a fim de descer à fonte. Assim, quando ergui os olhos, aquele dia, e vi Anse de pé, em suas roupas domingueiras, amassando o chapéu nas mãos, eu disse: "Se há mulheres
em sua casa, então por que diabo não lhe dizem para cortar o cabelo?"
"Não tenho nenhuma", ele disse. Em seguida, acrescentou de súbito, fixando em mim os olhos que pareciam dois cães bravios em terreiro alheio: "Foi por isso que eu
vim lhe ver."
"E fazer você endireitar estes ombros", eu disse. "É verdade que não tem mulher? Mas deve ter uma casa. Disseram-me que você tem casa e uma boa fazenda. E vive sozinho,
fazendo tudo sozinho, não é?"
Ele continuava a me olhar, girando o chapéu nas mãos. "Uma casa nova", eu disse. "Você pretende casar-se?"
E ele disse outra vez, olhando-me com firmeza: "Foi para isto que eu vim lhe ver."
Mais adiante, confessou: "Não tenho parentes. De forma que, por este lado, você não terá preocupações. Não creio que você possa dizer o mesmo."
"Não. Eu tenho parentes. Em Jefferson."
Seu rosto emsombreceu-se um pouco. "Bem, possuo uma pequena propriedade. Sou econômico, tenho nome limpo. Sei bem como são as pessoas da cidade, mas talvez, quando
me ouvirem..."
"Talvez o ouçam", eu disse. "Mas dificilmente falarão com você."
Ele me observava o rosto. "Estão no cemitério."
"Mas seus parentes vivos", ele disse. "Com certeza serão diferentes."
"Serão mesmo?", eu disse. "Não sei. Nunca tive outros parentes."
Desse modo, aceitei Anse. E quando soube que ia ter Cash, percebi que viver era terrível e que aquilo era a resposta. Então eu soube que palavras não têm importância;
que palavras nunca exprimem o que tentam dizer. Quando ele nasceu, compreendi que a palavra maternidade foi inventada por alguém que precisava de uma palavra para
justificar-se, pois os que têm filhos não se preocupam em arranjar palavra para isso. Eu soube que a palavra medo foi inventada por alguém que nunca teve medo; orgulho,
por alguém que jamais teve orgulho. Compreendi, então, que a culpa não era de seus narizes sujos, mas de termos de trocar palavras que, como aranhas, pendiam das
bocas, por um fio, oscilantes, sem nunca se tocarem; e que, somente por meio de golpes do chicote, meu sangue e o sangue deles poderiam fluir num fluxo único. Compreendi
que minha solidão em verdade nunca fora violada, até que Cash chegou. Nem mesmo por Anse, à noite.
Também ele tinha uma palavra. Amor, era como ele a chamava. Só que eu estava acostumada às palavras há muito tempo. Eu sabia que aquela palavra era como as outras:
apenas uma forma de preencher uma lacuna; que, quando chegasse a ocasião adequada, não precisaríamos de uma palavra para isso, a exemplo de orgulho ou medo. Cash
não precisou dizer-me a palavra, nem eu a ele, e eu pensava: "Anse que a diga, então, se quiser." Seria, portanto. Anse ou amor; amor ou Anse; pouco importava.
Eu assim pensava, mesmo quando deitada no escuro, ao lado dele, e Cash dormindo no berço, ao alcance de minha mão. Eu pensava, também, que se ele acordasse chorando,
teria que dar-lhe de mamar. Anse ou amor: pouco importava. Minha solidão fora violada e restabelecida inteiramente pela violação: tempo, Anse, amor, tudo o que quisessem,
fora do circulo.
Depois descobri que estava grávida de novo, que ia ter Darl. A principio, não quis acreditar. Pensei que ia matar Anse. Foi como se ele me tivesse enganado, oculto
dentro de uma palavra, como atrás de um biombo de papel, a fim de me atingir pelas costas. Mas então percebi que tinha sido enganada por palavras mais velhas que
Anse ou amor, e que a mesma palavra enganara Anse também, e que minha vingança seria a de nunca deixá-lo saber que eu tirava vingança. E quando Darl nasceu, eu exigi
de Anse a promessa de me levar a Jefferson quando eu morresse, porque eu sabia que meu pai tinha razão, mesmo que não soubesse que tinha razão, da mesma forma que
eu podia não ter sabido que estava enganada.
"Bobagem", disse Anse. "Com apenas dois filhos, você e eu ainda temos muito que fazer."
Ele não sabia, então, que estava morto. As vezes, deitada junto dele, no escuro, ouvindo a terra que era agora meu sangue e minha carne, eu pensava: "Anse. Por que
Anse? Por que você é Anse?" Eu pensava em seu nome até que, dentro em pouco, eu via a palavra tomar uma forma, a de um vaso, e eu o observava liquefazer-se e escorrer,
qual melado frio escorrendo na escuridão para o vaso, até que o vaso ficava cheio e imóvel: uma forma cheia de expressão, mas tão sem vida quanto a moldura de uma
porta vazia; e, a essa altura, eu descobria que havia esquecido o nome do vaso. Eu pensava: a forma de meu corpo onde eu era virgem é a forma de um... e eu não podia
pensar Anse, não conseguia lembrar Anse. Não, porém, que eu fosse capaz de pensar em mim como tendo recobrado a virgindade, porque, agora, eu era três. E quando
pensava Cash e Darl, dessa mesma maneira, até seus nomes morrerem para se solidificarem numa forma e depois se desvanecerem, eu dizia: "Muito bem. Não importa. Não
importa os nomes que lhes deem."
Assim, quando Cora Tull me disse que eu não era uma mãe de verdade, pensei em como as palavras sobem retas, numa linha tênue, rápida, inofensiva, enquanto as ações
rastejam, pegadas à terra, de forma que, decorrido algum tempo, as duas linhas se distanciam tanto que uma pessoa não pode mais abrangê-las com as pernas; e que
o pecado, o amor e o medo não passam de sons que as pessoas que nunca pecaram, amaram ou temeram, empregam para denominar o que nunca sentiram e não poderiam sentir,
até que viessem a esquecer as palavras. Como Cora, que nem mesmo aprendeu a cozinhar.
Ela me falava das obrigações que eu devia a meus filhos e a Anse e a Deus. Dei a Anse os filhos. Não os pedi. Nem mesmo pedi-lhe o que ele poderia ter-me dado: o
não Anse. Era minha obrigação não lhe pedir isto, e esta obrigação eu cumpri. Eu seria eu mesma; eu o deixaria ser a forma e o eco de sua palavra. Isto ultrapassava
o que ele pedia, pois ele não podia pedir tal coisa e, ao mesmo tempo, ser Anse, servindo-se de si próprio por meio de uma palavra.
E, então, ele morreu. Ele não soube que estava morto. Deitada ao seu lado, na escuridão, ouvindo a terra escura falar do amor de Deus e de Sua beleza e de Seu pecado;
ouvindo a mudez escura em que urnas palavras são os feitos, e outras palavras não são os feitos, são apenas os espaços vazios do que falta às pessoas, descendo como.
gritos de gansos saidos da escuridão selvagem nas terríveis noites de outrora, à procura de ações, como órfãos a quem são apontados, numa multidão, dois rostos,
e se diz: "Este é o seu pai. Aquela é sua mãe." Acreditei que havia encontrado. Julguei que a razão era a obrigação para com a coisa viva, para com o sangue terrível,
esse fluxo vermelho e amargo que borbulha pela terra. Eu pensava no pecado como pensava nas roupas que vestíamos aos olhos do mundo, por motivos de compostura, uma
vez que ele era ele e eu era eu; o pecado supremo e mais terrível, pois ele era o instrumento ordenado de Deus, que havia criado o pecado, para santificar o pecado
que havia criado. E enquanto eu o esperava no bosque, enquanto o esperava até que ele me via, eu o imaginava vestido de pecado. Eu pensava que ele me imaginava também
vestida de pecado, só que ele estava mais bonito, porque a roupa que havia substituído pelo pecado estava santificada. Eu pensava no pecado como roupas que removíamos
a fim de modelar e represar o terrível sangue segundo o eco da palavra morta perdida no ar. Depois, voltava a deitar-me ao lado de Anse — mas sem lhe mentir; apenas
me recusava, tal como havia recusado o seio a Cash e a Darl após a fase da amamentação —, ouvindo o discurso inaudível da terra escura.
Eu nada escondia. Não procurava enganar ninguém. Não tinha maiores preocupações. Limitava-me às cautelas que ele julgava necessárias à sua segurança, não à minha,
já que eu usava roupas aos olhos do mundo. E, quando Cora me falou, eu pendei até que ponto as mais sublimes palavras mortas parecem perder o significado de seu
som morto.
Depois, tudo terminou. Acabou no sentido de que ele foi embora e eu me dei conta de que, embora ainda o quisesse, não voltaria a vê-lo, jamais, aproximar-se rápido
e furtivo ao meu encontro, nos bosques, vestido de pecado, como se levasse um galante terno que a rapidez de sua aproximação secreta já estivesse a entreabrir.
Mas, para mim, não havia acabado. Quero dizer, acabado no sentido de começo e fim, porque, para mim não havia começo e fim de coisa alguma. Continuava a repelir
Anse, não que pensasse agora, pela primeira vez, em furtar-me ao seu contato, mas como se isto houvesse sempre acontecido entre nós. Meus filhos eram só meus, do
sangue selvagem que ferve na terra, meus e de tudo o que está vivo; de ninguém mais e de todos. Então eu descobri que ia ter Jewel. Quando recobrei o senso para
ver o que havia acontecido, estava grávida há dois meses.
Meu pai disse que a razão para se viver é preparar-se para ficar morto. Eu sabia, finalmente, o que ele queria dizer, e sabia, também, que ele não poderia ter sabido
o que isto significava, porque um homem não entende de limpeza da casa no devido tempo. Portanto, limpei minha casa. Depois que Jewel nasceu — deitada junto à candeia,
sustentando minha própria cabeça, eu vi o módico cortar e suturar, antes da criança chorar —, o sangue selvagem espalhou-se e cessou de ferver. Restou somente o
leite, quente e tranquilo, e eu, deitada no silêncio vagaroso, também tranquila, aguardava a ocasião de limpar minha casa.
Dei Dewey Dell a Anse, para compensar Jewel. Depois, dei-lhe Vardaman, para substituir o filho que lhe havia roubado. E agora ele tem três filhos que são seus e
não meus. E então eu posso preparar-me para morrer.
Certo dia, comecei a conversar com Cora. Ela rezou por mim, porque me julgava cega em relação ao pecado. Queria que eu me ajoelhasse e rezasse também, porque, para
as pessoas que julgam o pecado apenas questão de palavras, a salvação também não passa de uma palavra.
Whitfield
Quando me avisaram que ela estava morrendo, travei combate, a noite inteira, com Satã, e saí vitorioso. Despertei para a enormidade de meu pecado; vi, afinal, a
verdadeira luz, e, caindo de joelhos, confessei-me a Deus, pedindo Sua orientação, que me foi dada. "Levanta-te", Ele disse; "leva consolo à casa em que puseste
uma mentira viva, às pessoas com quem ultrajaste Meu Verbo; confessa teu pecado em voz alta. A eles, ao marido enganado, compete o teu perdão, não a Mim." Portanto,
eu fui. Ouvi dizer que a correnteza levara a ponte de Tull. Eu disse: "Obrigado, ó Senhor, ó Mestre Todo-Poderoso de todas as coisas", pois, pelos perigos e dificuldades
que teria de sobrepujar, vi que Ele não me tinha abandonado; que minha readmissão em Sua santa paz e em Seu santo amor seria ainda mais doce, por causa disso. "Apenas
não me faças perecer antes que eu peça perdão ao homem a quem trai", orei. "Que não seja demasiado tarde; que a narrativa da transgressão minha e dela não venha
de seus lábios, em vez dos meus. Ela jurou que jamais diria coisa alguma; a eternidade, porém, é uma coisa terrível, quando encarada face a face: eu mesmo não lutei
renhidamente com Satã? Não permitas também que caia sobre minha alma o pecado de seu perjúrio. Que as águas de Tua Divina Ira não me sorvam até que eu tenha purificado
a alma na presença daqueles a quem injuriei." Foi Sua mão que me transportou são e salvo pela correnteza, que afastou de mim os perigos das águas. Meu cavalo eslava
assustado, e meu próprio coração desfalecia quando os troncos e as árvores desenraizadas precipitavam-se sobre minha débil pessoa. Mas não minha alma: de quando
em quando eu os via desviarem-se. no instante supremo da destruição, e levantava minha voz acima do ruído da corrente: "Glória a Ti, Senhor e Rei Todo-Poderoso.
Esta provação permitirá que eu limpe a consciência e volte novamente ao seio de Teu amor eterno." Compreendi, então, que o perdão me fora concedido. A correnteza,
o perigo, tudo ficou atrás, e eu pisava novamente terra firme; à medida que se aproximava a cena de meu Getsêmane, eu elegia as palavras que ia pronunciar. Eu entraria
na casa, eu a deteria antes que ela falasse, eu diria a seu marido: "Anse: pequei, Faça de mim o que quiser." Parecia que isto já estava feito. Minha alma sentia-se
a mais livre, a mais tranquila dos últimos anos; enquanto cavalgava, eu já sentia uma paz duradoura. Para onde quer que me voltasse, eu via Sua mão; em meu coração,
eu sentia Sua voz dizendo: "Coragem. Estou contigo." Então eu cheguei à casa de Tull. Sua filha mais moça saiu e me chamou quando eu ia passando. Disse-me que ela
já estava morta.
Pequei, ó Senhor. Tu sabes a extensão de meu remorso e a determinação de meu espírito. Mas Ele é misericordioso. Ele aceitará a intenção em lugar da ação. Ele não
ignora que, ao eleger as palavras de minha confissão, era a Anse que eu me dirigia, embora Anse ali não estivesse. Foi Ele, em Sua infinita sabedoria, que susteve
a confissão nos lábios da moribunda, enquanto ela esteve cercada por todos que a amavam e nela confiavam; minha, apenas, a tributação de vencer a água, o que consegui
pela força de Sua mão. Glória a Ti em Teu amor onipotente. Glória. Entrei na casa lutuosa, na humilde casa em que outro pobre mortal entregara o corpo, enquanto
sua alma enfrentava o terrível e irrevogável julgamento. Repouse em paz. "A graça de Deus desça sobre esta casa", eu disse.
Darl
A cavalo ele foi à casa de Armstid e voltou a cavalo, conduzindo a parelha de Armstid. Atrelamos as mulas e deitamos Cash em cima de Addie. Quando o deitamos, ele
vomitou de novo, mas teve tempo de pôr a cabeça por cima da borda.
"Levou também uma pancada no estômago", disse Vernon. "O cavalo deve tê-lo escoiceado no estômago", eu disse.
"Ele lhe deu um coice no estômago, Cash?" Tentou dizer alguma coisa. Dewey Dell enxugou-lhe a boca outra vez.
"Que diz?", perguntou Vernon.
"Que é, Cash?", disse Dewey Dell. E inclinou-se mais.
"Suas ferramentas", ela disse. Vernon trouxe-as e colocou-as na carroça. Dewey Dell levantou a cabeça de Cash, para que ele pudesse vê-las. Partimos, Dewey Dell
e eu sentados ao lado de Cash, para sustentá-lo, e ele na frente, montado no cavalo. Vernon ficou a nos observar um pedaço. Depois, virou-se e dirigiu-se à ponte.
Caminhava com cautela, sacudindo as mangas da camisa como se elas acabassem de ficar molhadas.
Ele eslava montado a cavalo diante da cancela. Armstid esperava na cancela. Nós paramos e ele desmontou e descemos Cash e o levamos para dentro da casa, onde Mrs.
Armstid tinha a cama pronta. Deixamos que ela e Dewey Dell o despissem. Acompanhamos Pai quando ele saiu da carroça. Mas ele voltou, subiu à boleia e tocou a carroça
para o curral, enquanto nós o seguíamos a pé. A chuva tinha ajudado, pois Armstid disse: "Sejam bem-vindos a esta casa. Podem deixá-la ai."
Ele seguiu a gente, no cavalo, e parou ao lado da carroça, empunhando as rédeas. "Eu lhe agradeço", disse Pai. "Vamos usar o barracão lá embaixo. Sei que estamos
incomodando."
"Vocês são bem-vindos", disse Armstid. Ele tinha na cara, outra vez, aquele olhar de madeira; aquele olhar cego, audacioso, rígido, como se a cara e os olhos fossem
de madeira diferente, escura a que devia ser clara, e vice-versa. Sua camisa começava a secar, mas ela ainda aderia ao corpo quando ele se movimentava.
"Ela ficará agradecida", disse Pai.
Desatrelamos as mulas e empurramos a carroça para o barracão. Um lado do barracão estava aberto. "Não há perigo de ievar chuva", disse Armstid. "Mas se vocês quiserem..."
Atrás do celeiro havia umas folhas-de-flandres enferrujadas. Pegamos duas e tapamos o lado aberto. "Estejam como em sua casa", disse Armstid.
"Obrigado", disse Pai. "Eu ficaria muito agradecido se você lhes desse alguma coisa de comer."
"Claro", disse Armstid, "Lula cuidará do jantar, assim que houver instalado Cash."
Ele voltara para junto do cavalo e tirava a sela, e sua camisa molhada colava-se de leve ao corpo, quando se movia.
Pai não queria entrar em casa.
"Entre e coma", disse Armstid. "Está quase pronto."
"Estou sem vontade", disse Pai. "Muito obrigado."
"Ora essa. Entre, seque a roupa e coma", disse Armstid. "Não há problema."
"É por causa dela", disse Pai. "Aceito a comida em sua homenagem. Perdi as mulas, não tenho mais nada. Mas ela lhe ficará muito agradecida."
"Claro", disse Armstid. "Vocês aí, rapazes, entrem e sequem-se."
Mas depois que Armstid lhe deu uma bebida, Pai sentiu-se melhor, e quando entramos para ver como passava Cash ele ainda não se tinha juntado a nós. Quando olhei
para trás, ele conduzia o cavalo para dentro do celeiro, ele já falava em arranjar outra parelha, e à hora do jantar o assunto parecia decidido. Ele está lá embaixo,
no celeiro escorregando, com elasticidade, por aquele torvelinho de clarões e relinchos, e entrando na estrebaria com o cavalo. Sobe à manjedoura, atira feno para
baixo, sai da estrebaria e procura e encontra uma raspadeira. Em seguida, volta e se furta rapidamente ao único e poderoso coice que lhe desfere o cavalo, e coloca-se
onde o cavalo não o pode alcançar. Empunha a raspadeira, esquivando-se, com a agilidade de um acrobata, aos coices do animal, e amaldiçoa o cavalo num cochicho que
é uma careta obscena. O animal volta a cabeça cintilante, exibe os dentes; seus olhos rolam, no crepúsculo, como bolas de gude em cima de uma roupa de veludo, enquanto
ele lhe golpeia a testa com as costas da raspadeira.
Armstid
Quando lhe dei outra dose de uísque e o jantar estava quase preparado, ele já tinha como certa a compra de uma parelha, a crédito, de alguém. Estava a escolher,
dizendo por que não gostava desta parelha, e por que não poria um só níquel em nada que fosse assim ou assado, nem sequer uma galinha choca.
"Experimente o Snopes", eu disse. "Ele tem três ou quatro parelhas. Talvez uma delas lhe convenha." Então, ele pôs-se a resmungar, olhando-me como se eu fosse o
proprietário da única parelha de mulas do condado e não quisesse lhe vender, quando eu sabia que, muito provavelmente, seria a minha parelha que os tiraria daqui,
no fim das contas. Mas eu não sabia o que eles fariam com as mulas, caso tivessem uma parelha. Littlejohn me tinha dito que o dique, no fundo do vale de Haley, havia
sangrado e inundado três quilômetros de terras, e que a única maneira de se chegar a Jefferson seria dando uma volta por Mottson. Mas isto era assunto de Anse.
"Ele é um homem difícil para tratar de negócios", diz, falando entredentes. Mas quando lhe dei outra dose, depois do jantar, alegrou-se um pouco. Queria voltar ao
celeiro e velar a morta. Talvez pensasse que, se ficasse ali, pronto para partir, Papai Noel lhe traria uma parelha de mulas. "Mas acho que posso convencê-lo", diz.
"Um homem sempre ajuda um amigo num aperto, se tiver uma gota de sangue cristão nas veias." "Naturalmente eu lhe empresto as minhas, com boa-vontade", eu disse,
indagando a mim mesmo até que ponto ele acreditaria nisso.
"Muito obrigado", disse. "Ela prefere ir nas nossas", sabendo até que ponto eu acreditava nisso.
Depois do jantar, Jewel foi a Bend apanhar Peabody. Ouvi dizer que ele estaria ali hoje, em casa de Vamer. Jewel voltou cerca da meia-noite. Peabody tinha ido a
um certo lugar além de Inverness, mas Tio Billy veio com Jewel, trazendo sua sacola de veterinário. Conforme ele diz, um homem não é assim tão diferente de uma mula
ou de um cavalo; um pouco mais alto ou mais baixo, apenas; a diferença é que uma mula ou um cavalo tem um pouco mais de juízo. "Que foi que lhe aconteceu, rapaz?",
pergunta ele, olhando Cash. "Tragam-me um colchão, uma cadeira e um copo de uísque", diz.
Faz Cash beber o uísque, depois põe Anse para fora do quarto. "Sorte dele. É a mesma perna que quebrou no último verão", diz Anse, lúgubre, resmungando e pestanejando.
"Já é alguma coisa."
Dobramos o colchão sobre as pernas de Cash e pusemos a cadeira em cima do colchão e eu e Jewel sentamos na cadeira e a moça suspendeu a candeia e Tio Billy meteu
na boca um naco de tabaco e começou a trabalhar. Cash debateu-se durante algum tempo, até que perdeu os sentidos. Então, ficou quieto, com grandes bolas de suor
imóveis no rosto, como se houvessem começado a rolar e, em seguida, parado, a fim de esperar por ele.
Quando voltou a si, Tio Billy já tinha embrulhado suas coisas e partido. Ele ainda se esforçava por dizer algo, até que a moça inclinou-se e lhe enxugou a boca,
"São as ferramentas", ela disse. "Estão ai", disse Darl. "Eu as trouxe." Ele tentou falar outra vez. A moça debruçou-se. "Quer ver as ferramentas", ela disse. Assim,
Darl trouxe-as para o quarto, onde ele as pudesse ver. Puseram-na ao lado da cama, ao alcance da mão, a fim de que pudesse tocá-las quando se sentisse melhor. Na
manhã seguinte, Anse pegou o cavalo e foi a Bend ver Snopes. Ele e Jewel foram ao curral e ficaram conversando um bocado, depois Anse pegou o cavalo e partiu. Acho
que era a primeira vez que Jewel deixava alguém montar no cavalo, e até Anse voltar, andou para cima e para baixo, com aquela expressão de cólera, olhando a estrada,
como se estivesse querendo ir atrás de Anse, tomar-lhe o cavalo e trazê-lo.
Por volta das nove horas, o tempo começou a esquentar. Foi então que eu avistei o primeiro bútio. Por causa da umidade, eu suponho. Seja como for, só os percebi
quando o dia já avançava. Uma sorte o vento não soprar na direção da casa, do contrário teriam aparecido muito mais cedo. Mas assim que os vi, fui capaz de sentir-lhes
o cheiro a mais de um quilômetro de distância, em redor, e eles circulavam e circulavam para que todos nas redondezas vissem o que havia em meu celeiro.
Eu já estava a mais de um quilômetro da casa quando ouvi aquele menino gritar. Pensei que talvez houvesse caldo no poço ou coisa semelhante, de modo que chicoteei
o cavalo e entrei no terreiro a galope.
Devia haver, pelo menos, uma dezena de bútios pousados nas vigas do celeiro, e o menino corria atrás de outro, no terreiro, como se fosse um peru, e o bútio esvoaçava
o suficiente para livrar-se e retornar ao telhado do barracão, onde o menino o encontrara sentado no ataúde. A essa altura, fazia calor e o vento havia parado ou
mudado de direção ou o que fosse. Fui à procura de Jewel, mas Lula foi quem saiu de casa. "Você tem de fazer alguma coisa", ela disse. "É uma vergonha."
"Eu já tinha pensado nisso."
"Uma vergonha", ela disse. "Ele devia ser processado por tratar a mulher dessa forma."
"Pretende enterrá-la o melhor que puder", eu disse.
Assim, quando encontrei Jewel, perguntei-lhe se ele não queria pegar uma mula e ir a Bend ver o que havia acontecido a Anse. Ele não respondeu. Ficou a me encarar
com aquelas mandíbulas que eram de um branco cor de osso e com aqueles olhos da mesma cor esbranquiçada de osso; depois, entrou e começou a chamar por Darl.
"Que vai fazer?", perguntei. Não respondeu. Darl saiu.
"Venha", disse Jewel.
"Que vai fazer?", disse Darl.
"Tirar a carroça", disse Jewel por cima do ombro.
"Não seja tolo", eu disse. "Eu não quis ofender dizendo aquilo. Você não pode fazer nada para remediar a situação."
E Darl ficou indeciso, mas Jewel não estava disposto a ouvir ponderações.
"Feche a matraca", ele diz. "É preciso levá-la a algum lugar", disse Darl. "Partiremos assim que Pai voltar."
"Vai me ajudar ou não?", diz Jewel com os olhos brancos a flamejarem e o rosto tremendo como se tivesse febre alta.
"Não", disse Darl. "Não quero. Vou esperar que Pai volte."
Assim, fiquei à porta, vendo como ele puxava e depois empurrava a carroça.
O terreno era inclinado e houve um instante em que pensei que ele pretendia arrebentar a parede dos fundos do barracão. Então, a sineta tocou para o almoço. Eu o
chamei, mas ele não olhou em redor. "Venha comer", eu disse. "Avise o menino."
Mas ele não respondeu, de forma que fui almoçar. A moça desceu para pegar o menino, mas voltou sem ele. Estávamos em meio ao almoço quando o ouvimos gritar outra
vez, espantando o bútio.
"É uma vergonha", disse Lula. "Uma vergonha."
"Ele faz o melhor que pode", eu disse. "Ninguém acerta negócio com Snopes em meia hora. Passarão a tarde inteira na sombra, a conversar."
"Ah", é?, diz Lula. "Não me diga. Na verdade, ele já fez muito."
Reconheço que é verdade. O problema é que, se ele parar, temos de fazer, então, alguma coisa. Ele não pode comprar uma parelha a pessoa alguma, exceto Snopes, sem
hipotecar algo, e já não tem o que hipotecar. De modo que, ao voltar para o campo, eu olhei minhas mulas como se lhes desse adeus por uma longa temporada. E quando
voltei ao cair da tarde, depois que o sol batera, o dia todo, no barracão, não tinha mais a certeza de lamentar as mulas. Ele chegou a cavalo justamente quando eu
saía ao alpendre, onde todos estavam reunidos. Tinha uma expressão realmente estapafúrdia, mais que a um cão enxotado e, no entanto, conservando um pouco de orgulho.
Como se houvesse feito alguma coisa que julgava sagaz, mas sem estar certo de que os outros assim pensariam.
"Consegui uma parelha", disse.
"Comprou uma parelha a Snopes?", perguntei.
"Acho que Snopes não é o único sujeito nesta zona que sabe fazer negócios", disse.
"Claro", eu disse. Ele estava olhando para Jewel com aquela expressão engraçada, mas Jewel havia descido do alpendre e dirigia-se ao cavalo. Para ver o que Anse
fizera com ele, eu supus.
"Jewel", diz Anse. Jewel olhou para trás. "Venha cá", diz Anse. Jewel retrocedeu um pouco e depois parou.
"Que é que você quer?"
"Então você comprou uma parelha de Snopes", eu disse. "Ele deve mandá-la trazer esta noite, não? Com certeza vocês querem sair bem cedo amanhã, por causa da volta
que têm de fazer por Mottson."
A essa altura, ele mudou o aspecto que vinha assumindo há certo tempo. Adquiriu aquele outro, de vitima, que lhe era habitual, resmungando entredentes. "Faço o que
posso", disse. "Juro, diante de Deus, que não houve neste mundo homem que sofresse mais atribulações e pesares do que eu."
"Uma pessoa que acaba de vencer Snopes num negócio deve sentir-se bem feliz", eu disse. "Que lhe deu em troca, Anse?"
Ele não me olhou. "Dei o semeador e o desçaroçador", disse.
"Mas não valem quarenta dólares. Até onde você iria para obter uma parelha de quarenta dólares?"
Todos o observavam agora, calmos e firmes. Jewel estava parado, meio virado, aguardando o momento de se dirigir ao cavalo.
"Dei outras coisas", disse Anse. Começou a mexer novamente com a boca, ali em pé, como se esperasse que alguém fosse golpeá-lo e ele já decidido a não resistir de
forma alguma.
"Que outras coisas?", disse Darl.
"Diabo", eu disse. "Peguem minha parelha. Devolvam-na assim que terminarem. Enquanto isso, eu me arranjo."
"Por isso era que você mexia, ontem à noite, nas roupas de Cash", disse Darl. Falou como se estivesse lendo um papel. Como se isto não o preocupasse de maneira alguma.
Jewel voltara, desta vez, e, em pé, olhava Anse com seus olhos de bola de gude.
"Cash queria comprar aquela máquina falante de Suratt com o dinheiro", disse Darl.
Anse continuou firme, mexendo com a boca. Jewel observava-o. Ainda não havia pestanejado uma vez sequer.
"Mas isto são apenas mais oito dólares", disse Darl, como se ele se limitasse a ouvir, sem maior interesse pessoal. "Não daria para comprar uma parelha."
Anse olhou para Jewel, rápido, com um olhar furtivo, depois baixou novamente a vista. "Deus é testemunha. Nunca houve um homem...", disse.
Os outros não responderam. Apenas o observavam, à espera, e ele desviando os olhos para os pés e fazendo-as subir pelas pernas, mas daí não passando.
"E o cavalo", ele diz.
"Que cavalo?", disse Jewel.
Anse não se mexia, o diabo me leve. Se um homem não pode governar os filhos com mão firme, o melhor que tem a fazer é pô-los porta afora, não importa a sua idade.
E se não pode fazer isto, o diabo me leve se ele não devia, então, ir embora. Quero ir para o inferno se não fosse isto o que eu faria.
"Quer dizer que fez negócio com meu cavalo?", diz Jewel.
Anse continua ali em pé, de braços caídos. "Há quinze anos não tenho um só dente na boca", diz. "Deus é testemunha. Ele sabe que há quinze anos não como os alimentos
que destinou ao homem para o homem conservar as forças, e eu guardando um níquel aqui e outro ali, para que a família não sofresse ao me ver desse jeito, para comprar
uma dentadura a fim de comer os alimentos designados por Deus. Pois bem: dei esse dinheiro. Pensei que, se eu podia passar sem comer, meus filhos podiam passar sem
um cavalo. Deus é testemunha."
Jewel continuava em pé, com as mãos nas cadeiras, olhando para Anse. Depois, desviou a vista. Olhou através do campo, o rosto duro como rochedo, como se outra pessoa
estivesse a falar do cavalo de outra pessoa e ele não ouvisse. Em seguida, cuspiu devagar e disse: "Diabo" e, dando meia-volta, dirigiu-se à cancela, soltou o cavalo
e pulou em cima.
O cavalo já estava em movimento quando ele caiu na sela, e, mal sentou-se, os dois partiram pela estrada como se tivessem a Lei nos seus calcanhares. Perderam-se
de vista, cada um deles semelhante a um ciclone malhado.
"Bem", eu disse. "Leve minha parelha".
Mas ele não queria. E os outros não queriam ficar, e ainda por cima, aquele menino caçando bútios o dia inteiro, ao sol quente, até ficar quase tão louco quanto
os outros. "Deixe Cash aqui, ao menos", eu disse. Mas eles. não queriam. Fizeram-lhe uma cama com cobertores sobre o caixão e o deitaram e puseram suas ferramentas
perto e atrelamos as minhas mulas e levamos a carroça cerca de dois quilômetros além, pela estrada. "Se estivermos incomodando", diz Anse, "é só dizer."
"Claro", eu disse. "Ficará bem aqui. E em segurança também. Agora, vamos voltar e jantar."
"Eu lhe agradeço", disse Anse. 'Temos alguma coisa de comer na cesta. Podemos nos arranjar."
"Onde compraram a comida?", eu perguntei. "Trouxemos de casa."
"Então deve estar passada", eu disse. "Venham, vamos comer alguma coisa quente."
Mas eles não quiseram. "Acho que nos arranjaremos", disse Anse.
Dessa forma, fui para casa e comi e levei uma cesta de comida para eles e tentei novamente levá-los para casa.
"Eu lhe agradeço", ele disse. "Acho que podemos nos arranjar."
Por isso, deixei-os ali, acocorados ao redor de pequena fogueira, esperando. Deus sabe o quê.
Fui para casa. Continuava a pensar nos que ali haviam estado e naquele outro que tinha disparado naquele cavalo. E não creio que voltassem a vê-lo. O diabo me leve
se eu o culpava. Não por não querer entregar o cavalo, mas por haver abandonado o estúpido Anse.
Pelo menos, foi o que pensei então. Porque o diabo me leve se não há alguma coisa nesses sujeitos malditos, tipo Anse, que nos obrigam a ajudá-los, mesmo que, no
minuto seguinte, a gente esteja com vontade de dar pontapés em si própria. Porque uma hora depois do café, na manhã seguinte, Eustace Grimm, que trabalha para Snopes,
apareceu com uma parelha de mulas, à procura de Anse.
"Pensei que ele e Anse não houvessem feito negócio", eu disse.
"Ahn", disse Eustace. "Eles só pensavam no cavalo. Conforme eu disse a Mr. Snopes, ele ia entregar a parelha por cinquenta dólares, porque, se seu tio Flem tivesse
conservado os cavalos texanos que possuía então, Anse jamais..."
"O cavalo?", eu perguntei. "O filho de Anse disparou nele, a noite passada, e provavelmente está, agora, a meio caminho do Texas, e Anse..."
"Então não sei quem o levou", disse Eustace. "Eu não os conheço. Encontrei o cavalo no estábulo, esta manhã, quando fui dar comida aos animais. Contei a Mr. Snopes
e ele me mandou trazer a parelha aqui."
Bem, é a última vez que terão notícias dele, sem dúvida alguma. Quando chegar o Natal, talvez recebam um cartão postal, enviado por ele do Texas, é o que penso.
E se não fosse Jewel, suponho que seria eu. Devo-lhe isso. O diabo me leve se Anse não enfeitiça a gente, de certa maneira. O diabo me leve se ele não tem jeito
para isso.
Vardaman
Agora são sete ao todo, em círculos negros, lá em cima. "Olhe, Darl", eu digo. "Está vendo?"
Ele olha para o alto. Nós os observamos em seus negros círculos imóveis, lá em cima.
"Ontem eram apenas quatro", eu digo. Havia mais de quatro no celeiro. "Sabe o que vou fazer se tentarem pousar de novo na carroça?", pergunto.
"Que é?", diz Darl.
"Eu não deixaria um deles pousar em cima dela", digo.
"Também não deixaria pousar em Cash."
Cash está doente. Está doente em cima do caixão. Mas minha mãe é um peixe.
"Temos de comprar remédio em Mottson", diz Pai. "Acho que não há outro jeito."
"Como se sente, Cash?", pergunta Darl.
"Estou melhor", diz Cash. "Quer que eu levante um pouco a perna?", diz Darl.
Cash está com uma perna quebrada. Já quebrou a perna duas vezes. Está deitado no caixão, com um cobertor enrolado embaixo da cabeça e um pedaço de madeira embaixo
do joelho.
"Acho que devíamos tê-lo deixado na fazenda de Armstid", diz Pai.
Eu nunca quebrei uma perna e Pai também não e Darl também não e "São os solavancos", diz Cash. "Parece que alguma coisa se desloca com os solavancos. Mas não me
sinto muito mal."
Jewel foi embora. Ele e seu cavalo foram embora na hora do jantar.
"É porque ela não gostaria que devêssemos favor a ninguém", diz Pai. "Diante de Deus eu digo que fiz o que era possível."
É porque a mãe de Jewel é um cavalo, Darl?, eu perguntei.
"Talvez fosse bom apertar um pouco as cordas", diz Darl.
Por isso é que Jewel e eu estávamos no celeiro e ela estava na carroça, porque o cavalo vive no celeiro e eu tinha de continuar espantando o bútio de
"Se você quiser", diz Cash.
E Dewey Dell não tem uma perna quebrada, nem eu. Cash é meu irmão. Paramos. Quando Darl afrouxa a corda, Cash começa a suar novamente. Seus dentes castanholam.
"Dói?", pergunta Darl.
"Acho melhor colocar de novo o pedaço de madeira", diz Cash. Darl amarra a corda, puxando com força. Os dentes de Cash trincam.
"Dói?", diz Darl. "Não dói muito", diz Cash. "Quer que Pai guie mais devagar?", pergunta Darl.
"Não", diz Cash. "Não podemos perder tempo. Estou melhor."
"Vamos ter de comprar remédio em Mottson", diz Pai. "Acho que não há outro jeito."
"Diga-lhe para andar", diz Cash.
Continuamos. Dewey Dell inclina-se para trás e enxuga o rosto de Cash. Cash é meu irmão. Mas a mãe de Jewel é um cavalo. Minha mãe é um peixe. Darl diz que quando
chegarmos outra ver. à água eu posso vê-la, e Dewey Dell disse: "Ela está no caixão." Então, como foi que ela saiu? Ela saiu pelos buracos que eu fiz para dentro
da água, eu disse, e quando chegarmos à água outra vez eu vou vê-la. Minha mãe não está no caixão. Minha mãe não cheira assim. Minha mãe é um peixe.
"Estes bolos estarão em belo estado quando chegarmos a Jefferson", diz Darl.
Dewey Dell não olha em redor.
"Melhor tentar vendê-los em Mottson", diz Darl.
"Quando chegaremos a Mottson, Darl?", eu pergunto.
"Amanhã", diz Darl. "Se esta parelha não cair aos pedaços. Snopes deve ter-lhe dado serragem, em vez de feno."
"Por que ele lhes dá serragem para comer, Darl?"
"Olhe", diz Darl. "Está vendo?"
Agora são nove ao todo, em pequenos círculos negros, lá em cima.
Quando chegamos ao pé da colina, Pai para e Darl e Dewey Dell e eu descemos. Cash não pode caminhar porque quebrou a perna. "Força, mulas", diz Pai. As mulas fazem
força; a carroça estala. Darl e Dewey Dell e eu caminhamos atrás da carroça, subindo a colina. Quando chegamos no alto da colina, Pai para e nós voltamos para a
carroça.
Agora há dez ao todo, em pequenos círculos negros, no céu.
Moseley
Levantei os olhos, casualmente, e vi-a do lado de fora da janela, a olhar para dentro. Nem muito próxima da vítima nem olhando para alguém em particular; apenas
em pé, com a cabeça virada para cá e com os olhos postos em mim, de uma maneira vaga, como se esperasse um sinal. Quando voltei a levantar a vista, ela se dirigia
para a porta.
Parou um pouco diante da porta metálica, indecisa, como em geral acontece a todos, e entrou. Trazia um chapéu de palha de abas duras no alto da cabeça e alguma coisa
embrulhada em jornal: pensei que, se da tivesse um quarto de dólar, ou quando muito um dólar, talvez comprasse um pente barato ou uma garrafa de água-de-colônia
para negros, depois de examinar tudo em volta; por isso, durante um minuto ou pouco mais, não me preocupei com ela, exceto para observar que era bonita, de uma forma
melancólica, terrível, e que parecia bem melhor em seu vestido de percal e em sua cor natural do que depois de comprar o que acabaria decidindo-se a comprar. Ou
dizer que queria. Eu sabia que ela já se havia decidido antes de entrar. Mas é preciso dar-lhes tempo. Assim, continuei ocupado com o que fazia, pensando em deixar
que Albert a atendesse, quando acabasse de arrumar os refrigerantes, mas ele voltou para junto de mim.
"Aquela mulher", disse. "Melhor ver o que ela quer".
"O que ela quer?", perguntei.
"Não sei. Não consigo arrancar-lhe nada. Melhor você atendê-la".
Por isso, rodeei o balcão. Vi que ela estava descalça, com os pés nus aderindo plenamente ao chão, como se estivesse habituada a andar assim. Olhava-me com firmeza,
apertando o embrulho; tinha os olhos mais pretos que já vi e era forasteira. Não me lembrava de tê-la visto em Mottson antes. "Às suas ordens", eu disse.
Continuou sem falar. Fitava-me sem pestanejar. Depois, olhou para as pessoas no balcão de refrigerantes. Passou por mim, em seguida, na direção dos fundos da casa.
"Quer ver artigos de perfumaria?", perguntei. "Ou deseja comprar remédios?" "Isto mesmo", ela disse. Olhou de novo, rapidamente, para o balcão dos refrigerantes.
Pensei, por isso, que talvez sua mãe ou alguém mais mandara-a comprar uma dessas drogas que as mulheres usam e ela estava com vergonha de pedir.
Eu sabia que, com uma pele como a sua, era-lhe impossível usar uma das tais drogas, ainda mais porque, sendo tão moça, não teria ideia da finalidade com que são
usadas. Uma vergonha a maneira como as mulheres se envenenam com essas coisas. Mas a gente tem de expô-las à venda ou então renunciar ao comércio neste pais.
"Ah", eu disse.
"Qual sua marca preferida? Nós temos..."
Ela olhou de novo para mim, quase como se houvesse dito "Chiu!", e olhou mais uma vez para o balcão dos refrigerantes.
"Preferia que falássemos nos fundos", disse.
"Está bem", eu disse. É preciso satisfazer-lhes os caprichos. Perde-se assim menos tempo. Acompanhei-a aos fundos. Ela pousou a mão na portinhola.
"Não há nada aí, a não ser o armário de medicamentos", eu disse. "Que deseja?"
Ela parou e olhou-me. Foi como se houvesse tirado uma espécie de véu do rosto, dos olhos. Uns olhos espantados, esperançosos e, ao mesmo tempo, querendo ser desapontados.
Sim, ela estava com algum problema. Isto eu podia ver.
"Qual é o problema?", perguntei. "Diga-me o que quer. Estou muito ocupado."
Eu não queria apressá-la, mas um homem não pode dar-se ao luxo de desperdiçar o tempo como elas fazem.
"É problema feminino", ela disse.
"Ah", eu disse. "Apenas isto?"
Pensei que ela fosse mais jovem do que parecia, e seu primeiro incômodo a assustasse, ou talvez o sangramento fosse um pouco anormal, como acontece a mulheres jovens.
"Onde está sua mãe?", perguntei. "Você ainda tem mãe?"
"Está lá embaixo, na carroça", ela disse.
"Por que não conversou com ela a respeito, antes de tomar algum remédio?", perguntei. "Qualquer mulher lhe daria uma indicação."
Ela me olhou, e eu lhe retribui o olhar e disse: "Quantos anos tem?"
"Dezessete", ela disse.
"Ah", eu disse. "Pensei que fosse..."
Ela me observava atentamente. Mas, então, seus olhos deram a impressão de não terem idade definida e de saberem tudo acerca do mundo.
"Você é regular ou irregular?"
Ela deixou de me fitar, mas não saiu do lugar.
"Sim", disse. "É isto mesmo. Acho que sim."
"Sim, o quê?", eu disse. "Você não tem certeza?"
É uma vergonha, é um crime. Mas, de qualquer forma, elas acabam comprando em mãos de alguém. Ela continuava ali, sem me olhar. "Quer alguma coisa para parar?", perguntei.
"É isto?"
"Não", ela disse. "Já parou."
"Bem, então .." O rosto dela bancara um pouco, como elas fazem ao falar com um homem, de forma que não sabemos onde o próximo raio nos ferirá. "Você não é casada,
é?", perguntei.
"Não."
"Ah", eu disse. "E quanto tempo faz que parou? Talvez uns cinco meses?"
"Não passa de dois", ela disse.
"Bem, não tenho nada aqui que você queira comprar", eu disse, "a não ser uma chupeta. E eu lhe aconselho a comprar uma, voltar para casa e pedir ao seu pai, se é
que tem pai, que descubra alguém para levar você ao altar. Era só o que queria?"
Mas ela continuava ali, parada, sem me olhar. "Tenho dinheiro para lhe pagar", disse.
"É dinheiro seu, ou ele foi bastante homem para lhe dar?"
"Ele me deu. Dez dólares. Disse que seria bastante."
"Mil dólares não bastariam em minha casa. Nem dez centavos. Siga meu conselho: vá para casa e conte ao seu pai ou aos seus irmãos ou ao primeiro homem com quem esbarrar
no caminho."
Mas ela não se moveu. "Lafe disse que eu compraria o remédio numa casa como esta. Pediu que eu lhe dissesse que nem eu nem ele jamais diremos a ninguém que o senhor
nos vendeu."
"Eu só queria que o seu adorado Lafe tivesse vindo em pessoa. Era só o que eu queria. Não sei: acho que o teria respeitado mais. Volte e diga-lhe... se é que ele,
a essa altura, não está a meio caminho do Texas, o que não me causaria surpresa. Eu, um farmacêutico respeitável, estabelecido há muitos anos neste ramo, pai de
família e paroquiano há cinquenta e seis anos! Tenho vontade de ir contar a seus pais, se conseguisse encontrá-los."
Ela voltou a olhar-me, os olhos e o rosto semelhantes aos que eu vira, espantados, atrás da vitrina.
"Eu não sabia", ela disse. "Ele me disse que eu podia arranjar alguma coisa numa farmácia. Disse que talvez não me quisessem vender, mas se eu tivesse dez dólares
e prometesse não contar nunca a ninguém..."
"Ele não indicou esta farmácia", eu disse. "Caso lenha indicado, ou mencionado meu nome, desafio-o a provar. Eu o desafio a repetir, ou então o processarei com todos
os rigores da lei. Você pode dizer-lhe isto."
"Talvez eu possa comprar em outra farmácia", ela disse.
"Então, eu nem quero saber. Isto é, eu..."
Olhei para ela. Elas têm uma vida dura; às vezes, um homem... admitindo que se possa justificar o pecado, coisa impossível. Além disso, a vida não dá facilidades
a ninguém; do contrário, não haveria motivos para sermos bons e morrer.
"Olhe aqui", eu disse. "Ponha isto na sua cabeça: o Senhor lhe deu o que você traz na barriga, mesmo que Ele tenha usado, para isso, o demônio; deixe que Ele o tire,
se é este o Seu desejo. Volte para o seu Lafe e você e ele usem os dez dólares para casarem."
"Lafe disse que eu podia arranjar alguma coisa na farmácia".
"Então, saia e arranje", eu disse. "Aqui você não consegue nada." Ela saiu, levando o embrulho, os pés fazendo um pequeno assovio no chão. Hesitou novamente à porta
e saiu. Eu pude vê-la através da vitrina, descendo a rua.
Albert contou-me o resto. Disse que a carroça havia parado em frente da casa de ferragens de Grummet, e que as senhoras fugiram em todas as direções, pela rua, com
o lenço nos narizes, e que uma multidão de homens e meninos de narizes entupidos postara-se em volta da carroça, para ouvir o delegado discutir com o homem. O homem,
alto e descarnado, sentado na carroça, dizia que a rua era pública e que ele tinha tanto direito como os outros de ficar ali, e o delegado insistia em que ele tinha
de ir embora. As pessoas não suportavam o fedor. A mulher estava morta há oito dias, segundo Albert. Eles vieram de algum lugar do condado de Yoknapatawpha, tentando
chegar a Jefferson. Era como se um pedaço de queijo podre entrasse num formigueiro, e a carroça estava tão desmantelada que Albert me disse que as pessoas tinham
medo que ela caísse aos pedaços antes que eles saíssem da cidade, com aquele caixão feito em casa e mais o outro sujeito de perna quebrada deitado em cima, envolvido
num cobertor, e o pai e o menino sentados no banco da frente e o delegado tentando expulsá-los da cidade.
"É uma rua pública", diz o homem. "Acho que podemos parar para comprar qualquer coisa, Temos dinheiro para pagar, e não há lei que impeça um homem de gastar o seu
dinheiro como quiser."
Tinham parado para comprar cimento. O outro estava no Grummet, tentando convencer Grummet a abrir um saco e vender-lhe dez cêntimos de cimento, e finalmente o Grummet
concordou, só para se ver livre. Queriam o cimento para imobilizar a perna partida do outro, pelo visto.
"Olhem, vocês vão matá-lo", disse o delegado. "Vocês vão fazê-lo perder a perna. Levem-no a um médico e enterrem esta coisa aí o mais depressa possível. Vocês não
sabem que podem ir para a cadeia por arriscarem a saúde pública?".
"Fazemos o possível", disse o pai. E contou uma longa história de como tiveram de esperar pelo regresso da carroça, e que a ponte tinha sido destruída pela enchente,
e que eles fizeram uma volta de doze quilômetros para passar por outra ponte, e que a outra ponte também havia caído e eles, então, tiveram de passar pelo vau, a
nado, e as mulas se afogaram e eles foram obrigados a arranjar outra parelha e descobriram que a estrada estava inundada e fizeram outra volta por Mottson. A este
ponto, o do cimento chegou e disse-lhe para fechar a boca.
"Vamos sair agora mesmo", disse ele ao delegado.
"Nunca quisemos incomodar ninguém", disse o pai.
"Levem este homem a um médico", disse o delegado ao do cimento.
"Acho que ela está bem", respondeu.
"Não pense que temos coração duro", disse o delegado. "Mas a situação é esta, você sabe"
"Claro", disse o outro. "Sairemos daqui assim que Dewey Dell volte. Ela foi entregar um embrulho."
Assim, ficaram ali, parados, com as pessoas em volta, de lenço no rosto, até que, dentro em pouco, a moça chegava com aquele embrulho em jornal.
"Vamos embora", disse o que tinha o cimento, "já perdemos muito tempo."
Tocaram a carroça e foram embora. E quando eu fui jantar ainda me parecia sentir o fedor. E no dia seguinte encontrei o delegado e comecei a fungar e disse: "Ainda
sente o fedor?"
"Acho que agora estão em Jefferson", ele disse.
"Ou na cadeia. Bem, graças a Deus não é a nossa cadeia."
"É verdade", ele disse.
Darl
"Este lugar serve", diz Pai. Puxa as rédeas, parando as mulas, e se recosta para olhar melhor a casa. "Podemos arranjar água lá embaixo."
"Muito bem", eu digo. "Dewey Dell, peça um balde emprestado."
"Deus sabe", diz Pai. "Não quero dever nada a ninguém. Deus sabe."
"Se arranjar uma lata de bom tamanho, pode trazê-la", eu digo.
Dewey Dell desce da carroça, levando o embrulho.
"Você não esperava tantas dificuldades para vender esses bolos em Mottson", digo.
É incrível como nossas vidas se desfazem na incomunicabilidade, no silêncio, nos gestos tediosos que repetimos com tédio: ecos de antigos acordes que se diria arrancados
com braços sem mãos de instrumentos sem cordas: ao crepúsculo, adotamos atitudes furiosas, gestos mortos de bonecas. Cash quebrou a perna e agora a serragem escorre.
É Cash quem está sangrando até morrer.
"Eu não queria causar incômodos", diz Pai. "Deus é testemunha."
"Então faça água você mesmo", eu digo. "Podemos usar o chapéu de Cash."
Quando Dewey Dell aparece, vem acompanhada de um homem. Depois, ele para e ela se aproxima e ele volta para casa e fica no alpendre, a nos observar.
"Melhor não tentar descê-lo", diz Pai. "Podemos cimentar aqui mesmo."
"Quer que a gente desça você, Cash?", pergunto.
"Não chegaremos a Jefferson amanhã?", ele diz.
Está a nos observar com atenção, os olhos interrogativos, intensos e tristes. "Posso esperar."
"Você ficaria aliviado", diz Pai. "O cimento impedirá a coceira."
"Posso esperar", diz Cash. "Não devemos perder tempo com outra parada."
"Mas o cimento foi comprado", diz Pai.
"Posso esperar", diz Cash. "Mais um dia não faz diferença. Não está doendo muito".
Olha para nós, com os olhos escancarados no rosto magro e cinzento, olhos interrogativos. "Isto se arranja sozinho", diz.
"Já compramos o cimento", diz Pai.
Misturo o cimento na lata, mexendo a água grossa em grandes espirais de um verde pálido. Levo a lata à carroça onde Cash pode vê-la. Ele está deitado de costas,
seu magro perfil em silhueta, ascético e profundo contra o céu. "Acha que está bem assim?", pergunto.
"Não ponha muita água, do contrário não grudará bem", ele diz.
"Botei água demais?"
"Talvez fosse bom acrescentar um pouco de areia", ele diz. "Falta só um dia. E a perna não me incomoda em absoluto."
Vardaman desce pela estrada, até o lugar onde cruzamos o regato, e volta com areia. Despeja-a devagar na espiral espessa dentro da lata.
Vou novamente à carroça, "Está bem assim?"
"Está", diz Cash. "Eu podia muito bem esperar. A perna não me incomoda em absoluto."
Afrouxamos as talas e colocamos cimento sobre a perna, devagar. "Cuidado", diz Cash. "Não deixem cair cimento no caixão, se puderem evitar."
"Sim", eu digo.
Dewey Dell rasga um pedaço de papel do embrulho e enxuga o cimento em cima do caixão, quando ele pinga da perna de Cash.
"Como se sente?"
"Estou melhor", ele diz. "Está fresco. Agora me sinto melhor."
"Ainda bem que lhe alivia", diz Pai. "Eu lhe peço perdão. Não podia prever que isto acontecesse, nem você também."
"Estou melhor", diz Cash.
Se a gente pudesse desfazer-se no tempo. Isto seria agradável. Seria agradável a gente desfazer-se no tempo. Recolocamos as talas, as cordas, apertamos os nós, o
cimento aparece em sobras grossas, de um verde pálido, entre as cordas, e Cash nos olha calmamente, com aquele profundo olhar interrogativo.
"Está firme agora", eu digo.
"Sim", diz Cash. "Muito obrigado."
Então nós viramos a cabeça, em cima da carroça, e o observamos. Ele está subindo a estrada, atrás de nós, com suas costas abauladas, o rosto de madeira, movendo-se
apenas dos quadris para baixo. Chega sem dizer palavra, com seus pálidos olhos cravados na cara sombria, e entra na carroça.
"Outra subida", diz Pai. "Acho que vocês têm de descer e andar a pé."
Vardaman
Darl e Jewel e Dewey Dell e eu subimos a colina, atrás da carroça. Jewel voltou. Chegou pela estrada e subiu na carroça. Estava a pé. Jewel não tem mais cavalo.
Jewel é meu irmão. Cash é meu irmão. Cash está com a perna quebrada. Nós prendemos a perna de Cash para ela não doer. Cash é meu irmão. Jewel é meu irmão também,
mas ele não tem uma perna quebrada.
Agora há cinco, em pequenos círculos negros, lá em cima. "Onde será que eles pousam à noite, Darl?", eu digo. "Quando paramos á noite no celeiro, onde é que eles
pousam?"
A colina encosta no céu. Depois, o sol surge por trás da colina e as mulas e a carroça e Pai andam no meio do sol.
Não se pode vê-los quando eles caminham devagar para o sol. Em Jefferson há um trem vermelho sobre os trilhos, atrás da vitrina. A linha férrea dá muitas voltas.
Dewey Dell é quem diz.
Esta noite vou ver onde é que eles pousam quando estamos dentro do celeiro.
Darl
"Jewel", eu pergunto, "de quem você é filho?"
A brisa soprava do celeiro, de forma que a pusemos embaixo da macieira, onde a luz do luar pode recortar a macieira sobre as compridas tábuas adormecidas, dentro
das quais, de vez em quando, ela fala, soltando bolhas que rebentam em misterioso sussurro. Levo Vardaman para que escute. Quando chegamos, o gato saltou de cima
do caixão, fugindo na sombra com sua garra de prata e seu olho de prata.
"Sua mãe era um cavalo, mas quem era seu pai, Jewel?"
"Maldito mentiroso filho da puta."
"Não me chame assim", eu digo.
"Maldito mentiroso filho da puta."
"Não me chame assim, Jewel."
Ao luar, seus olhos pareciam dois pedaços de papel branco grudados numa bola de futebol solta no ar.
Depois do jantar, Cash começou a suar um pouco. "A perna está esquentando", ele disse. "Acho que é porque o sol brilhou nela o dia todo."
"Quer que ponhamos água em cima?", perguntamos. "Talvez sirva de alívio."
"Muito obrigado", disse Cash. "Acho que foi porque o sol ardeu nela. Eu devia ter pensado nisso e coberto a perna."
"Nós é que devíamos ter previsto", dizemos. "Você não poderia adivinhar."
"Não observei que ela ficava quente", disse Cash. "Eu devia ter pensado."
Assim, derramamos água em cima. Sua perna e pé fora do cimento pareciam cozidos.
"Sente-se melhor?", perguntamos.
“Muito obrigado", disse Cash. "Estou bem."
Dewey Dell enxuga-lhe o rosto com a barra da saia. "Veja se dorme um pouco", dizemos.
"Sim", diz Cash. "Estou muito agradecido a vocês. Agora me sinto melhor."
Jewel, eu digo. Quem era seu pai. Jewel? Maldito Maldito.
Vardaman
Ela estava embaixo da macieira e Darl e eu atravessamos a lua e o gato salta e corre e nós a podemos ouvir dentro da madeira.
"Está ouvindo?", diz Darl. "Aproxime mais o ouvido."
Eu aproximo o ouvido e posso ouvi-la. Só que eu não. posso dizer o que ela está dizendo.
“O que ela diz, Darl?", pergunto. "A quem está falando?"
"Está falando com Deus", diz Darl. "Ela o está chamando em seu socorro."
"Que quer que Ele faça?", pergunto.
"Ela quer que Ele a esconda da vista dos homens", diz Darl.
"Por que ela quer ocultar-se da vista dos homens, Darl?"
"Para desprender-se de sua vida", diz Darl.
"Por que ela quer desprender-se de sua vida, Darl?"
"Escute", diz Darl.
Nós a ouvimos. Nós a ouvimos virar-se.
"Escute", diz Darl.
"Ela virou-se", eu digo. "Está me olhando através da madeira."
"Sim", diz Darl.
"Como é que ela pode ver através da madeira, Darl?"
"Vamos", diz Darl. "Devemos deixá-la quieta. Vamos."
Ela não pode ver porque os buracos estão na tampa", eu digo. "Como é que ela vê, Darl?"
"Vamos ver como está Cash", diz Darl.
E eu vi uma coisa que Dewey Dell me pediu para não contar a ninguém.
Cash está doente da perna. Nós apertamos sua perna esta tarde, mas ele está doente da perna novamente estirado na cama. Nós pomos água na perna e então ele se sente
melhor. "Estou melhor", diz Cash. "Fico-lhes agradecido."
"Tente dormir um pouco", nós dizemos.
"Estou bem", diz Cash. "Muito obrigado."
E eu vi uma coisa que Dewey Dell me pediu para não contar a ninguém Não é a respeito de Pai e não é a respeito de Cash e não é a respeito de Jewel e não é a respeito
de Dewey Dell e não é a respeito de mim
Dewey Dell e eu vamos dormir no enxergão. Está nos fundos do alpendre, de onde podemos ver o celeiro, e a lua brilha na metade do enxergão e nós ficamos metade no
branco e metade no preto, com o luar em nossas pernas. E depois eu vou ver onde é que eles pousam à noite enquanto estamos no celeiro. Esta noite não estamos no
celeiro, mas eu posso ver o celeiro e portanto vou descobrir onde eles pousam à noite.
Estamos estirados no enxergão, com nossas pernas na lua.
"Olhe", eu digo, "minhas pernas parecem pretas. Suas pernas parecem pretas também."
"Trate de dormir", diz Dewey Dell.
Falta um bom pedaço para chegar a Jefferson.
"Dewey Dell."
"Que é?"
"Se ainda não chegou o Natal, como é que ele está lá?"
Ele dá voltas e mais voltas na reluzente linha férrea. E os trilhos reluzem dando voltas e mais voltas.
"O que está lá?"
"Aquele trem. Na vitrina."
"Trate de dormir. Amanhã você verá se ele está mesmo lá."
Talvez Papai Noel não saiba que eles são meninos da cidade.
"Dewey Dell."
“Trate de dormir. Ele não o dará a nenhum menino da cidade."
Estava atrás da vitrina, vermelho nos trilhos, os trilhos brilhando em voltas e mais voltas. Fez meu coração doer. E então aparecem Pai e Jewel e Darl e o menino
de Mr. Gillespie. As pernas do menino de Mr. Gillespie sobressaem da camisa de dormir. Quando ele entra no luar suas pernas ficam peludas. Eles rodeiam a casa na
direção da macieira.
"Que é que eles vão fazer, Dewey Dell?"
Eles rodearam a casa na direção da macieira. "Eu posso cheirá-la", digo. "Você também pode cheirá-la?"
"Chiu", diz Dewey Dell. "O vento mudou. Vá dormir."
E assim, logo mais vou saber onde é que eles pousam à noite. Eles rodeiam a casa, atravessam o pátio ao luar, carregando-a nos ombros. Eles a carregam para o celeiro,
a lua brilhando claramente e tranquilamente sobre ela. Depois, voltam e entram de novo em casa. Enquanto estiveram no luar, as pernas do menino de Mr. Gillespie
estavam peludas. E então eu esperei e disse: "Dewey Dell?", e esperei mais um pouco e depois fui descobrir onde eles pousam à noite e eu vi uma coisa que Dewey Dell
me disse para não contar a ninguém.
Darl
Contra a escura moldura da porta ele parece materializar-se, saindo da escuridão, garboso, em suas roupas de baixo, como um cavalo de raça, no inicio de seu resplendor.
Salta para o chão tendo no rosto uma expressão de furiosa incredulidade. Ele me viu sem virar a cabeça ou os olhos nos quais o resplendor nada como dois pequenos
archotes. "Vamos", ele diz pulando a elevação na direção do celeiro.
Por um instante mais longo ele corre prateado ao luar, depois salta qual figura chata recortada de uma folha de flandres contra uma abrupta e inaudível explosão,
enquanto todo o feno do celeiro pega. fogo imediatamente, como se estivesse, recheado de pólvora,. Entra em, relevo a fachada da frente, de forma cônica, com o quadrado
orifício do portal Interrompido somente pela forma quadrada e acachapada do caixão sobre os cavaletes, qual escaravelho "cubista. Atrás de mim, Pai e Gillespie e
Mack e Dewey Dell e Vardaman saem da casa.
Para perto do caixão, inclinado, e me olha, o rosto furioso. Em cima, as labaredas soam como trovões; uma corrente de ar frio nos atinge: nela ainda não há calor,
e um punhado de gravetos ergue-se de súbito e é sugado rapidamente para os estábulos, onde um cavalo relincha. "Depressa", eu digo. "Os cavalos." Ele me fita mais
algum tempo, depois olha o telhado em cima, e em seguida salta na direção da cavalariça onde o cavalo relincha. O cavalo pula e escoiceia, e o som das patas ao tombarem
é amortecido pelo crepitar das "chamas. O ruído assemelha-se ao de um trem interminável atravessando uma ponte sem fim. Gillespie e Mack passam por mim, em suas
camisas de dormir que descem até os joelhos; gritam, e seus gritos, finos, altos e inexpressivos, resultam, ao mesmo tempo, profundamente selvagens e tristes: "...
vaca... cavalariça ..." A camisa de Gillespie enfuna-se, à sua frente, com a corrida, transformando-se em balão á altura das coxas peludas.
A porta da cavalariça fechou-se. Jewel força-a com as nádegas e aparece de costas arqueadas, os músculos desenhados através da roupa, a puxar o cavalo para fora,
pelo focinho. No clarão, os olhos do cavalo rolam com um fogo suave, rápido, selvagem e opalino; seus músculos ondulam e correm, enquanto ele sacode a cabeça em
várias direções, levantando Jewel do chão. Jewel puxa-o -aos poucos, com um esforço terrível; e novamente me lança por cima do ombro um único olhar furioso e breve.
Mesmo quando estão fora do celeiro, o cavalo continua à lutar, na tentativa de retroceder para a porta, até que Gillespie passa por mim, nu em pelo, a camisa de
dormir enrolada na cabeça da mula, e bate no cavalo enlouquecido, a fim de afastá-lo da porta.
Jewel retrocede a correr; novamente olha para o caixão. Mas não para. "Onde está a vaca?", grita, ao passar por mim. Eu o acompanho. Na cavalariça, Mack está lutando
com a outra mula. Quando a cabeça do animal é colhida pelo clarão, eu posso ver também o selvagem rolar de seus olhos, mas sem qualquer som. Deixa-se ficar ali,
com as patas dianteiras para cima, observando Mack por sobre o lombo, sempre que ele se aproxima. Ele olha para nós, que estamos atrás, e seus olhos e boca são três
buracos redondos no rosto onde as sardas parecem ervilhas numa travessa. Sua voz é aguda, alta, remota.
"Não posso fazer nada..." É como se o som lhe fosse arrancado dos lábios e, disperso no ar, nos falasse de Uma imensa e esgotante distância. Jewel desliza à nossa
frente; a mula gira e escoiceia, mas ele já lhe agarrou a cabeça. Eu digo ao ouvido de Mack: "A camisa de dormir. Ao redor da cabeça da mula."
Mack me encara. Depois, arranca a camisa e envolve a cabeça da mula, e imediatamente o animal fica dócil. Jewel está gritando para ele: "E a vaca? E a vaca?"
"Nos fundos", grita Mack. "Na última cavalariça. A vaca nos observa quando entramos. Está acuada a um canto, de cabeça baixa, mas ainda ruminando rapidamente. Não
se move, porém. Jewel faz uma pausa, olhando para cima, e subitamente todo o pavimento do feno se dissolve. Ele se transforma simplesmente em fogo; começa a tombar
uma fina chuva de faíscas. Jewel olha em volta. Atrás, embaixo do pilão, há um banco de ordenhar, de três pernas. Ele o agarra e começa a golpear ás tábuas da parede
dos fundos. Derruba uma, outra, mais outra; nós arrancamos os pedaços que restam. Enquanto estamos encurvados, aumentando a abertura, alguma coisa acomete, de trás,
contra nós.
É a vaca. Com um silvo único, rompe entre nós e passa pela brecha e entra na claridade externa, com a cauda ereta e rígida qual vassoura pregada na extremidade de
sua espinha.
Jewel entra no celeiro.
"Ei", eu digo. "Jewel!" E o agarro, mas ele se livra, afastando minha mão com um golpe.
"Seu louco", eu digo, "não está vendo que nunca chegará lá embaixo?"
O corredor parece um projetor que espalhasse uma chuva de fogo.
"Venha", eu digo, "vamos por aqui."
Quando saímos pela brecha, ele começa a correr.
"Jewel", eu digo, correndo atrás dele.
Ele dispara pela esquina. Quando chego ali, ele já está quase na outra esquina, correndo contra o clarão, como aquela silhueta recortada em folha de flandres. Pai
e Gillespie e Mack encontram-se afastados, observando o celeiro que está encarnado contra a escuridão e onde, por algum tempo, o luar se desvaneceu.
''Agarrem-no!", eu grito. "Detenham-no!"
Quando chego em frente da casa, ele está lutando com Gillespie; um, em roupa de baixo, e outro nu em pelo. Parecem duas figuras de um friso grego, isoladas de qualquer
realidade pelo rubro clarão. Antes que eu possa alcançá-los, ele atira Gillespie ao chão, vira-se e corre em direção ao celeiro.
Agora o estrépito das labaredas aquietou-se, como aconteceu ao rumor do rio cheio. Através do dissolvido proscênio da porta, observamos Jewel chegar, correndo, a
uma ponta do caixão e debruçar-se. Por um instante ele olha para cima e para fora, em nossa direção, em meio à chuva de feno incendiado que cai qual reposteiro de
pérolas ardentes, e eu posso ver-lhe a boca modelar o meu nome quando ele chama por mim.
"Jewell", grita Dewey Dell. "Jewell"
Parece-me ouvir agora a acumulação da voz dela nos últimos cinco minutos, e eu a ouço debater-se contra Pai e Mack que a seguram, e gritando sempre: "Jewel! Jewel!"
Mas ele não olha mais para nós. Vemos seus ombros endireitarem-se quando suspende o caixão por uma extremidade e o faz resvalar, então, dos cavaletes, com uma só
mão. O caixão sobe, incrivelmente grande, e oculta Jewel: nunca pensei que Addie Brunden precisasse de tanto espaço para repousar confortavelmente. Dentro em pouco
o caixão está em pé, enquanto a chuva de fagulhas o envolve, como se, ao seu contato, gerasse outras fagulhas. Depois, no impulso, tomba para a frente, revelando
Jewel e a chuva de fagulhas que cai também sobre ele, de tal forma que parece envolto em tênue nimbo de fogo. O caixão sobe e desce, avança e recua, para, depois
romper vagarosamente a cortina de chamas. Desta vez Jewel o cavalga, agarrando-o com firmeza, até que ele se despenha e o arremessa a lugar seguro e Mack, sentindo
um débil odor de carne chamuscada, debruça-se sobre Jewel e apaga, a tapas, os buracos acesos que avançam com suas margens carmesins, quais flores brotando na camiseta.
Vardaman
Quando eu fui descobrir onde é que eles pousam à noite, vi uma coisa
Eles disseram: "Onde está Darl? Para onde foi Darl?"
Eles transportaram-na para debaixo da madeira. O celeiro ainda estava vermelho, mas agora não era mais um celeiro. Tinha afundado e o vermelho subia em torvelinhos.
O celeiro desapareceu, em turbilhões de pedacinhos vermelhos, contra o céu e as estrelas, de tal modo que as es trelas recuaram.
E Cash ainda estava acordado. Virava a cabeça de um para outro lado, com o suor na cara.
"Quer mais um pouco de água na perna, Cash?", perguntou Dewey Dell. .. A perna e o pé de Cash ficaram pretos. Apanhamos a candeia e olhamos o pé e a perna de Cash
nos lugares onde estavam negros.
"Seu pé parece o pé de um negro, Cash", eu disse.
"Creio que teremos de quebrar", disse Pai.
- "Por que diabos puseram isto aí?", disse Mr. Gillespie.
"Pensei, que ajudaria a firmar a perna", disse Pai. "Eu só queria ajudá-lo."
Trouxeram o escopro e o martelo. Dewey Dell segurava a candeia. Tinham de bater com muita força. E Cash logo caiu no sono.
"Agora ele está dormindo", eu disse. "Enquanto estiver dormindo, não sente dor."
O cimento apenas estalava. Não queria partir-se.
"Assim, acabam arrancando-lhe também a pele", disse Mr. Gillespie. "Com os diabos, por que puseram isto aí? Nenhum de vocês pensou primeiro em untar-lhe a perna?"
"Eu só queria ajudá-lo", disse Pai. "Foi Darl quem pôs o cimento."
"Onde está Darl?", perguntaram.
"Será que nenhum de vocês tem mais um pouco de juízo?", disse Mr. Gillespie. "Pensei que ele, pelo menos, tivesse algum:"
Jewel estava deitado de barriga para baixo. Suas costas estavam vermelhas. Dewey Dell pôs remédio nelas. O remédio era feito de manteiga e fuligem, para tirar o
fogo. Então suas costas ficaram pretas.
"Dói muito, Jewel?", perguntei. "Suas costas parecem as de um negro, Jewel", eu disse. O pé e a perna de Cash parecem os de um negro.
Afinal, quebraram o cimento. A perna de Cash sangrou.
"Agora vá dormir", disse Dewey Dell. "Você já devia estar dormindo."
"Onde está Darl?", perguntaram.
Está lá fora, embaixo da macieira, junto dela, deitado sobre ela. Está ali para evitar que o gato volte.
Eu disse: "Você pretende espantar o gato, Darl?"
O luar cobria Darl de manchas. Em cima dela, o luar estava quieto, mas em cima de Darl ele dançava para cima e para baixo.
"Não precisa chorar", eu disse. "Jewel conseguiu tirá-la. Não precisa chorar, Darl."
O celeiro ainda está vermelho. Antes, estava ainda mais. Depois ele subiu em turbilhões, fazendo as estrelas recuarem, mas sem caírem. Isto fez meu coração doer,
como o trem.
Quando eu fui descobrir onde eles pousam à noite, vi uma coisa que Dewey Dell diz que não devo contar nunca a ninguém.
Darl
Faz tempo que deixamos anúncios para trás drugstores, lojas de roupas feitas, especialidades médicas, garagens e cafés, e os marcos quilométricos vão diminuindo,
assinalando distâncias menores: 4 km, 3 km. Do alto de uma ladeira, ao subirmos outra vez à carroça, podemos ver a fumaça baixa e densa, parecendo imóvel na tarde
sem vento.
"É ela, Darl?", pergunta Vardaman. "É mesmo Jefferson?"
Ele também emagreceu; como nós, seu rosto tem uma expressão tensa, sonhadora e descarnada.
"Sim", digo.
Ele levanta a cabeça e olha o céu. Altos contra o céu, eles pendem em círculos decrescentes, como a fumaça, e com uma aparência de forma e de objetivo, mas sem indicação
alguma de movimento, avanço ou retrocesso. Subimos outra vez à carroça onde Cash está deitado sobre o caixão, com pedaços de cimento ainda grudados à perna. As mulas
esquálidas descem a colina em meio ao estalar de madeira e aos gemidos da carroça.
"Temos de levá-lo ao médico", diz Pai."
"Creio que não há outro jeito."
A camisa de Jewel, nos pontos onde toca em suas costas, mancha-se de graxa e se torna preta.
A vida foi criada nos vales. Subiu às colinas atiçada pelos velhos terrores, as antigas luxúrias, os antigos desesperos. Por isso é preciso subir a pé as colinas
e descê-las de carro.
Dewey Dell está sentada no banco, o embrulho de jornal no regaço. Quando chegamos ao pé da colina onde a estrada se torna plana entre paredes grossas de árvores,
ela começa a olhar tranquilamente para um e outro lado. Afinal, diz: "Tenho de descer."
Pai olha-a, seu perfil escalavrado como que antecipando manifesta contrariedade. Não sofreia as mulas. "Para quê?"
"Tenho de ir ao mato", diz Dewey Dell.
Pai não para as mulas. "Não pode esperar até chegarmos à cidade? Falta só um quilômetro."
"Pare", diz Dewey Dell. "Tenho de ir ao mato."
Pai para no meio da estrada e nós olhamos Dewey Dell descer, levando o pacote. Não olha para trás.
"Por que não deixa os bolos aqui?", pergunto. "Nós cuidaremos bem deles."
Ela desce com decisão, sem nos olhar.
"Ela saberia onde ir, se esperasse até chegarmos à cidade?", pergunta Vardaman. "Dewey Dell, onde é que você ia fazer isto na cidade?" Ela volta-se, baixa o pacote
e depois desaparece entre as árvores e as ervas.
"Não demore mais que o necessário", diz Pai. "Não temos tempo a perder."
Ela não responde. Dentro em pouco não conseguimos sequer ouvi-la. "Devíamos ter feito o que Armstid e Gillespie disseram e mandar mensagem à cidade para que cavassem
e preparassem tudo", ele disse.
"Por que não mandou?", perguntei. "Podia ter telefonado."
"Para quê?", diz Jewel. "Demônios, não seremos capazes de abrir um buraco na terra?"
Um automóvel sobe a colina. Começa a tocar a buzina e reduz a velocidade. Passa pelo acostamento em marcha lenta, com as rodas na valeta, ultrapassa-nos e prossegue.
Vardaman observa-o até que ele sai de vista.
"Ainda falta muito, Darl?", pergunta.
"Não muito", digo.
"Devíamos ter feito aquilo", diz Pai. "Mas eu não queria dever nada a ninguém que não fosse da nossa carne e do nosso sangue."
"Será que não podemos cavar um maldito buraco no chão?", diz Jewel.
"É falta de respeito referir-se desse modo ao túmulo dela", diz Pai. "Nenhum de vocês tem consciência disso. Nunca a amaram de verdade, nenhum de vocês."
Jewel não responde. Continua sentado em atitude ereta; as costas abauladas tentam evitar o contato da camisa. O queixo sanguíneo projeta-se para a frente.
Dewey Dell volta. Nós a olhamos sair do mato, carregando o pacote, e subir à carroça. Usa agora o vestido domingueiro, o colar, os sapatos e as meias.
"Pensei ter-lhe dito para deixar estas roupas em casa", diz Pai. Ela não responde, não olha para nós. Põe o pacote dentro da carroça e sobe. A carroça movimenta-se.
"Quantas colinas faltam agora, Darl?", diz Vardaman.
"Só uma", digo. "A próxima nos deixará dentro da cidade."
A colina é de areia vermelha, bordejada dos dois lados por cabanas de negros; contra o céu correm as linhas telefônicas e o relógio do tribunal ergue-se entre as
árvores. Na areia as rodas sussurram, como se a própria terra fizesse "chiu" à nossa chegada. Descemos quando a colina começa a subir. Seguimos a carroça, as rodas
sussurrante?, passando pelas cabanas onde rostos aparecem de súbito às portas, com olhos escancarados. Ouvimos vozes repentinas, exclamativas. Jewel esteve a olhar
de um lado para outro, mas agora virou a cabeça para a frente e posso ver que suas orelhas adquirem um tom de vermelho mais pronunciado. Três negros caminham à margem
da estrada, à nossa frente; dez passos adiante deles, vai um homem branco. Quando passamos pelos negros, suas cabeças voltam-se, de repente, com aquela expressão
de choque e repulsa instintiva.
"Grande Deus", diz um. "O que eles levam nesta carroça?"
Jewel gira rapidamente. "Filho da puta", diz.
Ao fazê-lo, defronta o homem branco, que parou. Parece que Jewel ficou cego por um instante, pois é ao homem branco que se dirige.
"Darl", diz Cash de dentro da carroça. Eu me agarro com Jewel. O homem branco recuou um passo, com o rosto ainda tomado pela surpresa; depois, o rosto endurece,
a boca se aperta. Jewel inclina-se para ele, com os músculos do queixo embranquecidos.
"Que foi que disse?", pergunta o homem.
"Escute", eu digo. "Ele não quis ofender, mister. Jewel", eu digo.
Quando toco nele, ele salta para o homem. Agarro lhe o braço; lutamos. Jewel não olha para mim. Tenta libertar o braço. Quando olho o homem outra vez, ele tem uma
navalha aberta na mão.
"Calma, mister", eu digo. "Ele está seguro. Jewel." "Ele pensa que só porque é da cidade", diz Jewel, arquejando, lutando para se desvencilhar. "Filho da puta",
diz.
O homem avança. Começa a me rodear, observando Jewel, a navalha arriada contra a coxa. "Ninguém me chama desse nome", ele diz. Pai desceu e Dewey Dell segura Jewel,
puxando. Eu o liberto e encaro o homem.
"Espere", eu digo. "Ele não quis ofender. Está doente; queimou-se ontem à noite, em um incêndio, e não sabe bem o que diz."
"Com incêndio ou sem incêndio, ninguém pode me chamar desse nome", diz o homem.
"Ele julgou que o senhor houvesse dito alguma coisa", eu digo.
"Nunca lhe disse nada. Nunca o vi na minha vida."
"Pelo amor de Deus", diz Pai. "Pelo amor de Deus."
"Eu sei", digo. "Ele não quis ofender. Ele vai se desculpar."
"Então, peça desculpa logo".
"Feche a navalha e ele pedirá."
O homem me olha. Olha para Jewel. Jewel está quieto agora.
"Feche a navalha", digo.
O homem fecha a navalha.
"Pelo amor de Deus", diz Pai. "Pelo amor de Deus."
"Diga-lhe que você não quis ofender, Jewel", eu digo.
"Pensei que ele houvesse dito uma coisa", diz Jewel. "Só porque ele é..."
"Chiu", digo. "Diga-lhe que você não quis ofender."
"Eu não quis ofender", diz Jewel.
"Melhor assim", diz o homem. "Chamar-me de ..."
"Pensa que ele tem medo de chamar-lhe assim?", eu digo.
O homem me olha. "Não foi isto o que eu disse", falou.
"Nem pense nisso", diz Jewel.
"Cale a boca", eu digo. "Vamos. Toque a carroça, Pai."
A carroça se movimenta. O homem fica parado a nos observar. Jewel não olha para trás.
"Jewel teria amassado ele", diz Vardaman.
Estamos perto do alto, onde a rua começa, onde os carros andam para trás e para diante; as mulas puxam a carroça, vencem o alto e entram na rua. Pai para. A rua
estende-se à nossa frente, até onde a praça aparece com o monumento diante do tribunal. Subimos novamente enquanto as cabeças se voltam para nós com aquela expressão
que já conhecemos. Só Jewel não sobe. Ele não entra na carroça quando esta começa a andar de novo.
"Suba, Jewel", eu digo. "Vamos embora. Vamos de uma vez."
Mas ele não entra. Em vez disso, põe o pé no cubo da roda traseira, agarra-se com uma mão às costas do banco e, enquanto o cubo roda embaixo de sua sola, ele levanta
o outro pé e fica acocorado, olhando diretamente à frente, sem se mover, esbelto, com as costas de madeira, como se talhado, de cócoras, em madeira leve.
Cash
Não resta alternativa. Ou o mandamos para Jackson ou Gillespie nos processará judicialmente, pois ele soube, de alguma forma, que Darl tocou fogo no celeiro. Ignoro
como soube, mas aí está. Vardaman viu-o atear o incêndio, mas jura não ter contado a ninguém, exceto Dewey Dell, e ela lhe disse para não contar a ninguém. Mas Gillespie
soube. De qualquer forma, viria a desconfiar, mais cedo ou mais tarde. Talvez aquela mesma noite, só em observar o comportamento de Darl.
E, por isso, Pai disse: "Acho que não temos outro jeito", e Jewel disse: "Quer amarrá-lo agora?"
"Amarrá-lo?", disse Pai.
"Pegá-lo e amarrá-lo", disse Jewel.
"Diabo, quer que ele ponha fogo nas malditas mulas e na carroça?"
Mas não havia necessidade.
"Não é preciso", eu disse. "Podemos esperar até que ela esteja enterrada."
Um sujeito que vai passar o resto da vida trancafiado deve ter permissão para divertir-se um pouco antes de partir.
"Acho que devemos mandá-lo para lá", diz Pai. "Deus sabe que isto é uma provação para mim. Quando o azar começa, parece que não há meio de parar."
Às vezes eu me pergunto se alguém tem o direito de dizer se um homem está maluco ou não. Às vezes eu penso que nenhum de nós é inteiramente louco ou inteiramente
são, até que a maioria nos identifica de uma ou de outra maneira. Não importa muito a maneira como um homem age, e sim a maneira como a maioria das pessoas olha-o
enquanto ele age.
Porque Jewel é muito duro para com ele. Naturalmente, foi o negócio com o cavalo de Jewel que nos permitiu trazê la até aqui, e, até certo ponto, foi o valor do
cavalo que Darl tentou queimar. Mas tenho pensado mais de uma vez, antes de cruzar o rio e depois, que teria sido uma bênção se Deus a tirasse de nossas mãos, de
maneira simples e discreta; e pareceu-me que, quando Jewel se empenhou tanto em retirá-la do rio, contrariava, de certo modo, a vontade de Deus; então, quando Darl
percebeu que um de nós, pelo visto, devia fazer alguma coisa, quase sou levado a crer que sua conduta ficou, em certo sentido, justificada. Reconheço, no entanto,
que não há razão para incendiar o celeiro de alguém e pôr em perigo seu gado e ameaçar destruir sua propriedade. Aí é que se vê se um homem é de fato maluco. Nesses
casos, ele não vê as coisas da mesma maneira que as outras pessoas. Reconheço que não se tem outra coisa a fazer com ele senão o que a maioria julga conveniente.
De certa forma, no entanto, é uma vergonha. As pessoas parecem afastar-se daquele velho e justo principio segundo o qual devemos bater os pregos e aparar os cantos
com capricho, como se a encomenda fosse feita para nosso próprio uso e comodidade. É como se umas pessoas tivessem tábuas lisas e bonitas com que construir um tribunal,
e outras não contassem senão com troncos próprios para levantar um galinheiro Mas sempre é melhor construir um galinheiro bem caprichado que um tribunal de justiça
mal-acabado, embora ninguém se sentisse melhor ou pior pelo fato de serem construídas coisas caprichadas ou mal-acabadas.
Assim, subimos a rua, em direção à praça, e ele disse: "Melhor levarmos Cash ao médico, em primeiro lugar. Podemos deixá-lo e voltar depois para apanhá-lo."
É isto mesmo. É porque entre eu e ele a diferença de idade é pouca, enquanto passaram-se quase dez anos antes que Jewel e Dewey Dell e Vardaman começassem a aparecer.
Eu me sinto bem com todos, é claro, mas não sei. E como sou o mais velho, e continuo pensando no que ele fez: não sei não.
Pai estava olhando para mim, depois para ele, mordendo os lábios.
"Vamos lá", eu disse. "Vamos ver isto primeiro."
"Ela gostaria de ver todos nós juntos", diz Pai.
"Primeiro, vamos levar Cash ao médico", disse Darl. "Ela pode esperar. Está esperando há nove dias."
"Vocês não sabem mesmo o que dizem", diz Pai. "A pessoa com quem passaram a juventude, com quem envelheceram e que envelheceu em vocês, vendo a velhice chegar e
dizendo sempre que isso não tinha importância, e vocês sabendo que isto era verdade neste mundo duro, cheio de dores e provações. Vocês não sabem mesmo o que dizem."
"Temos ainda de abrir a cova", eu disse.
"Armstid e Gillespie disseram-lhe que mandasse uma mensagem antecipando isto", disse Darl. "Não quer ir ao médico agora. Cash?"
"Vamos continuar", eu disse. "A perna está melhor. Melhor fazer cada coisa em sua ocasião oportuna."
"Se a cova já estivesse aberta...", diz Pai. "Ainda por cima, esquecemos a pá."
"Sim", disse Darl. "Terei de ir a uma casa de ferragens. Precisamos comprar uma."
"Custará caro", diz Pai.
"Pretende negar-lhe isto?", diz Darl.
"Vá buscar a pá", disse Jewel. "Vamos, dê-lhe o dinheiro."
Mas Pai não parou. "Acho que podemos arranjar uma pá emprestada", disse. "Acho que deve haver cristãos por aqui."
Assim, Darl continuou calmo e nós continuamos a andar, com Jewel de cócoras na retaguarda, com os olhos na nuca de Darl. Parecia um desses bulldogs, um desses cães
que não ladram nunca, encolhido contra a corda, olhando a coisa sobre a qual vai pular.
Ficou assim durante todo o tempo em que estivemos na frente da casa de Mrs. Bundren, ouvindo a música, olhando a nuca de Darl com aqueles seus olhos brancos e duros.
A música tocava dentro de casa. Era um dos tais gramofones. Tão natural como se uma banda entoasse a música.
"Quer ir agora ao Peabody?". perguntou Darl. "Eles podem ficar aqui e avisar Pai. Eu o levarei ao Peabody e virei apanhá-los."
"Não", eu disse. Melhor enterrá-la de uma vez, agora que estávamos quase em condições, apenas à espera que emprestassem uma pá a Pai. Ele tinha percorrido a rua
até o lugar onde se ouvia música.
"Talvez tenham uma aqui", disse. Parou a carroça à porta de Mrs. Bundren. Era como se tivesse certeza. Às vezes eu penso que um trabalhador vê trabalho à sua frente,
enquanto um preguiçoso só vê preguiça. Assim, ele parou ali, como se tivesse a certeza, diante daquela casinha nova de onde saia música. Esperamos, ouvindo a música.
Acho que, pechinchando um pouco, teria comprado um ao Suratt por cinco dólares. Coisa confortadora é a música. "Talvez tenham uma aqui", diz Pai.
"Quer que Jewel vá?", pergunta Darl, "ou prefere eu?"
"Creio que irei eu mesmo", diz Pai. .Desceu e, entrando no caminho, rodeou a casa até os fundos. A música parou, em seguida recomeçou.
"Conseguiu", disse Darl.
"Sim", eu disse. Foi como se ele tivesse certeza, como se pudesse ver através das paredes e saber o que vai acontecer nos próximos dez minutos.
Só que foram mais de dez minutos. A música parou novamente, desta vez um bom pedaço, lá onde Pai e ela estavam conversando, nos fundos. Nós esperávamos na carroça.
"Deixe-me levar você ao Peabody", disse Darl.
"Não", eu disse. "Primeiro, vamos enterrá-la."
"Se ele voltar", disse Jewel. Começa a praguejar. Prepara-se para descer da carroça. "Vou ver o que se passa", disse.
Então vimos Pai de volta. Trazia duas pás e rodeava a casa. Colocou-as na carroça, subiu e continuamos. A música havia recomeçado, sem parar. Pai olhou para trás,
para a casa. Parece que levantou um pouco a mão, acenando, e eu vi a cortina afastar-se um pouco, na janela, e a sombra do rosto da mulher.
A coisa mais curiosa, porém, foi a atitude de Dewey Dell. Surpreendeu-me. Compreendo bem que as pessoas o considerem estranho, e, por essa mesma razão, ninguém pode
ficar ofendido. Era como se ele estivesse sempre em órbita, alheio às coisas, como a gente, e aborrecer-se com ele, por causa disso, seria o mesmo que aborrecer-se
com uma poça de lama que respinga em nós quando pomos o pé dentro. E, no entanto, sempre tive a ideia de que ele e Dewey Dell guardavam um segredo qualquer. Se havia
um de nós de quem ela gostava mesmo, essa pessoa era Darl. Mas quando, depois de abrir a cova, pôr o caixão dentro e cobri-la, saímos do cemitério e chegamos ao
lugar onde os guardas esperavam, e quando eles avançaram e caíram sobre Darl e Darl deu um salto para trás, foi justamente Dewey Dell quem o agarrou, antes mesmo
que Jewel pudesse segurá-lo. E então eu julguei saber como Gillespie descobriu quem lhe incendiou o celeiro.
Ela não havia dito uma palavra, nem mesmo o olhara, mas quando os guardas disseram-lhe o que pretendiam e que tinham vindo para levá-lo e ele saltou, então ela pulou
sobre ele como um gato selvagem, de tal forma que um dos guardas teve de correr e segurá-la, e ela ferindo-o e arranhando-o com as unhas, como um gato selvagem,
enquanto o outro e Pai e Jewel derrubavam Darl e o mantinham, de costas, contra o chão, a olhar para mim.
"Pensei que você me avisaria", ele disse. "Nunca pensei que você não me avisasse."
"Darl", eu disse.
Mas ele resistiu outra vez. Lutaram ele e Jewel e um dos guardas, enquanto o outro guarda segurava Dewey Dell e Vardaman gritava e Jewel dizia: "Matem-no. Matem
o filho da puta."
Foi muito triste. Muito triste. É difícil alguém escapar de uma sujeira. Ele não pôde. Tentei dizer-lhe isto, mas ele se limitava a queixar-se: "Pensei que você
me avisaria. Porque não é que eu...", ele disse, e então começou a rir. O outro guarda afastou Jewel dele e ele sentou-se no chão e continuou a rir.
Tentei dizer-lhe. Se ao menos pudesse mexer-me, ou me sentar. Mesmo assim, tentei explicar-lhe e ele parou de rir e me olhou.
"Quer que eu vá?", perguntou.
"Será melhor para você", eu disse. "Lá você ficará tranquilo, sem ter ninguém que o incomode e essa coisa toda. Será melhor para você, Darl", eu .disse.
"Melhor", ele disse. Começou a rir novamente. "Melhor", disse. Mal podia pronunciar a palavra, de tanto rir. Sentado no chão, ele nos observava, rindo perdidamente.
Foi triste. Foi realmente muito triste. O diabo me leve se eu podia ver motivo de riso. Porque nada há que justifique a deliberada destruição do que um homem construiu
com seu próprio suor e do fruto do seu suor, que guardou com carinho.
Mas não sei se alguém tem o direito de dizer se um homem está louco ou não está. É como se em cada homem houvesse uma personalidade à margem da sanidade ou da loucura,
uma personalidade que observasse o são e o insano no homem com o mesmo horror e a mesma estupefação.
Peabody
Eu disse: "Admito que um homem em aperto permita que Bill Varner o trate como trata uma maldita mula, mas o diabo me leve se um homem que deixa Anse Bundren tratá-lo
com cimento sem mistura não merece ter mais pernas sobressalentes do que eu."
"Pensaram que isso me traria alívio", ele disse.
"Pensaram, que diabo", eu disse. "Por que cargas d'água Armstid permitiu que o pusessem outra vez na carroça?"
"Não havia observado nada de anormal", ele disse. "E nós não tínhamos tempo a perder."
Ele olhou para mim. "De qualquer maneira, a perna não doía nada."
"Não venha com mentiras, tentando me convencer que andou seis dias em carroça sem molejo, com uma perna quebrada e sem sentir dor alguma."
"Quase não chegou a doer", ele disse.
"Quer dizer, não chegou a doer para Anse", eu falei. "E também não lhe doeu ao derrubar aquele pobre-diabo em plena rua e entregá-lo aos guardas, algemado como um
assassino cruel. Não me venha com esta. E não me queira convencer também que não se importa de perder sessenta polegadas quadradas de pele quando removermos o concreto
todo. E não me diga que não se aborrecerá quando tiver de coxear de uma perna pelo resto de sua vida... se é que algum dia você voltará a andar. Concreto, puxa vida",
eu disse.
"Deus Todo-Poderoso, por que Anse não levou você ao moinho mais próximo e lhe cortou a perna com a serra? Isto o teria curado. Depois, vocês lhe enfiariam a cabeça
na serra e curariam a família inteira... A propósito, onde está Anse? Que andará tramando agora?"
"Foi devolver as pás que tomou emprestadas", ele disse.
"Claro", eu disse. "Naturalmente ele tinha de pedir uma pá emprestada para enterrar a mulher. A não ser que arranjasse emprestado um buraco no chão. Pena vocês não
o terem enterrado também... Dói?"
"Muito pouco", ele disse, e o suor, em grandes pingos, como bolas de gude, corria-lhe pelo rosto, e o rosto estava da cor de um mata-borrão.
"Claro que sim", eu disse. "No verão que vem, você poderá coxear com esta perna. E ela continuará a doer muito pouco... Se acredita em sorte, pode-se considerar
com sorte por haver quebrado a mesma perna pela segunda vez", eu disse.
"É o que meu pai diz", ele falou.
MacGowan
Aconteceu que eu estava atrás do armário de medicamentos, preparando um chocolate, quando Jody voltou e disse: "Olhe, Skeet, há uma mulher lá na frente querendo
ver o médico, e quando eu disse que médico deseja?, ela disse que queria ver o médico que trabalha aqui, e quando eu disse não há nenhum médico que trabalhe aqui,
ela continuou parada, olhando para cá."
"Que tipo de mulher ela é?", eu digo. "Mande-a subir à sala de Alford."
"Mulher da roça", ele diz.
"Mande-a ao Tribunal", digo. "Diga-lhe que todos os médicos foram a Memphis, a um Congresso de Barbeiros."
"Está bem", ele diz, afastando-se. "Ela parece bonita demais para uma roceira"
"Espere", eu digo. Ele esperou e eu fui olhar pela fenda. Mas não pude garantir nada, a não ser que suas pernas eram bem feitas, vistas contra a luz. "Ela parece
jovem?"
"Para uma camponesa, parece uma brasa", ele diz.
"Tome isto", eu digo, dando-lhe o chocolate. Tiro o avental e subo. Ela parecia bem bonita. Uma dessas moças de olhos negros, capazes de enfiar a faca na gente,
quando se sentem enganadas. Bastante boa. Não havia ninguém mais no lugar; era hora do jantar.
"Às suas ordens", eu digo.
"O senhor é o médico?", ela pergunta.
"Claro", eu digo. Ela deixa de me olhar e passeia os olhos em volta. "Podemos ir lá para os fundos?", diz. Eram apenas 12h15, mas eu entrei e disse a Jody para ficar
de vigia e assoviar se o velho aparecesse, porque ele nunca volta antes de uma.
"Melhor você não se envolver nisso", diz Jody. "Ele despedirá você, com um pontapé no rabo, antes que você pisque um olho."
"Ele nunca volta antes de uma", eu digo. "Você poderá vê-lo entrando na agência do correio. Fique de olho alerta, agora, e me avise com um assovio."
"Que vai fazer?", ele pergunta.
"Fique de olho. Mais tarde eu lhe contarei."
"Você me deixa ir em segundo lugar?", ele diz.
"Que diabo pensa que é isto?", pergunto. "Uma cavalariça? Fique de olho nele. Vou iniciar a consulta."
Assim, volto para os fundos. Paro diante do espelho e aliso o cabelo, depois vou para trás do armário de remédios, onde ela estava à espera. Ela olha para as prateleiras,
depois para mim.
"Agora, minha senhora, qual é o seu problema?"
"É o incômodo feminino", ela diz, observando-me. "Tenho dinheiro."
"Ah", eu digo. "Você está com o incômodo ou quer tê-lo? Se é isto, procurou o médico certo."
Essa gente da roça. Na maior parte dos casos não sabe o que quer, e no restante não sabe se explicar direito. O relógio marcava 12h20.
"Não", ela diz.
"Não o quê?", eu digo.
"Não tenho", ela diz. "Ai é que está." E olhou para mim.
"Tenho o dinheiro", diz.
Percebi, então, sobre o que ela falava. "Ah", eu digo. "Você tem na barriga uma coisa que não quis."
Ela me olha. "Você preferia ter um pouco mais ou um pouco menos, não é?"
"Tenho dinheiro", ela diz. "Ele disse que eu podia arranjar alguma coisa na farmácia."
"Quem foi que disse?", pergunto.
"Ele disse", ela responde, sempre a me olhar.
"Você não precisa mencionar nomes", eu digo. "Foi o homem que lhe pôs a semente na barriga? Foi ele que lhe disse aquilo?"
Ela não responde. "Você não é casada, certo?", digo. Não vi aliança. Mas, em todo caso, era bem possível que as alianças fossem ignoradas na roça.
"Tenho dinheiro", ela diz. E mostrou-me, desatando o lenço. Uma nota de dez.
"Nunca duvidei disso", eu digo. "Ele lhe deu o dinheiro?"
"Sim", ela diz.
"Qual deles?", eu digo. Ela me olha. "Qual deles lhe deu o dinheiro?"
"Só tenho um", ela diz. E me olha com firmeza.
"Ora, ora", eu digo. Ela não diz nada. O problema do porão é que ele só tem uma saída pelo lado traseiro, embaixo da escada principal. O relógio marca 25 minutos
para uma hora. "Uma moça bonita como você", eu digo.
Ela me olha. Começa a amarrar o dinheiro no lenço.
"Com licença", eu digo. Rodeio o armário de medicamentos. "Você não ouviu falar do sujeito que apurou muito o ouvido?", pergunto. "Depois disso, não conseguia ouvir
nem mesmo um arroto."
"Melhor você tirar a moça daqui antes que o velho apareça", diz Jody.
"Se você ficasse lá na frente, onde lhe pagam para ficar, ele não pegaria ninguém de surpresa, muito menos eu", digo. Ele se afasta, vagaroso, na direção da frente.
"Que vai fazer com ela, Skeet?", pergunta.
"Não posso contar", digo. "Não seria de boa ética. Vá lá para a frente e observe bem."
"Conte, Skeet", ele diz.
"Ora, vá indo", eu digo. "Nada mais farei além de passar uma receita."
"Talvez ele não faça nada, ao descobrir a mulher lá atrás, mas se encontrar você mexendo no armário dos remédios, vai lhe enxotar com pontapés no rabo pela escada
do porão."
"Meu rabo já recebeu pontapés de filhos da mãe piores que ele", digo. "Volte e fique de olho até ele aparecer."
Depois, retomo para trás do armário. O relógio marcava quinze para uma. Ela está amarrando o dinheiro no lenço.
"Você não é o médico", diz.
"Claro que sou", digo.
Ela me observa. "Será porque pareço muito moço ou porque sou muito simpático?", pergunto. "Tínhamos aqui uma porção de médicos caindo aos pedaços", digo. "Jefferson
era o Asilo dos Médicos Idosos. Mas os negócios deram para declinar e as pessoas sentiam-se bem, fisicamente, até o dia em que descobriram que as mulheres nunca
ficavam doentes. Assim, expulsaram todos os médicos velhos e trouxeram as jovens de boa aparência, como nós. As mulheres ficaram agradecidas e, então, começaram
a adoecer de novo e os negócios melhoraram. Estão fazendo o mesmo em toda a região. Você não ouviu falar? Talvez seja porque você nunca precisou de médico."
"Preciso de um agora", ela diz. "E veio procurar o médico certo", eu digo. "Já lhe falei isto."
"O senhor tem alguma coisa a indicar?", ela diz. "Posso pagar."
"Bem", digo, "naturalmente um médico tem de aprender uma porção de coisas, quando aprende a enrolar calomelanos. Ele não pode adivinhar. Mas, quanto ao seu incômodo,
eu nada sei."
"Ele me disse que eu arranjaria alguma coisa. Disse que eu podia comprá-la na farmácia."
"Ele lhe disse o nome do remédio?", pergunto.
"É melhor você voltar e perguntar-lhe."
Ela deixa de me olhar, apertando o lenço nas mãos. "Tenho de fazer alguma coisa", diz.
"E tão grave assim?", pergunto.
Ela olha para mim.
"Naturalmente, um médico aprende uma porção de coisas de que as pessoas sequer desconfiam. Mas ele não pode dizer tudo o que sabe. É contra a lei."
Bem de perto, Jody diz: "Skeet."
"Com licença", eu digo. Vou para a frente do prédio.
"Você o viu?", pergunto.
"Ainda não terminou?", ele diz. "Melhor você ficar aqui, vigiando, e me deixar terminar aquela consulta."
"Melhor você ir pentear macacos", eu digo.
Volto para os fundos. Ela está me olhando. "Naturalmente você sabe que posso ir para a penitenciária se fizer aquilo que você quer", digo. "Eu perderia o diploma
e então teria de trabalhar em outra profissão mais dura. Já pensou nisso?"
"Eu só tenho aqui dez dólares", ela diz. "Poderia trazer o resto no mês que vem, talvez."
"Bolas", eu digo, "dez dólares? Meu conhecimento e minha perícia não têm preço. Certamente estão além de tão ínfima quantia."
Ela me olha. Nem mesmo pestaneja. "O que o senhor quer, então?"
O relógio marcava quatro para uma. Decidi, então, que era melhor fazê-la sair. "Pense bem e descobrirá logo", eu digo.
Ela nem mesmo pestaneja. "Tenho de fazer alguma coisa", diz. Olha para trás e para os lados, em seguida para a porta da frente.
"Dê-me o remédio primeiro", diz.
"Quer dizer, está pronta agora mesmo?", pergunto. "Aqui?"
"Dê-me o remédio primeiro", ela diz. Assim, peguei um copo graduado e, dando-lhe as costas, apanhei uma garrafa que parecia inofensiva, porque um homem que guarda
veneno por aí, sem letreiro de advertência, devia estar na cadeia. Cheirava a terebintina. Derramei um pouco no copo e dei-lhe. Ela cheirou-o, olhando para mim através
do vidro...
"Parece terebintina", diz.
"Claro", eu digo. "É apenas o inicio do tratamento. Volte aqui às 10 da noite e eu lhe darei o resto e farei a operação.
"Operação?", ela diz. "Não vai doer. Você já passou pela mesma operação. Já ouviu falar em água da mesma bica?" Ela olha para mim. "Vai adiantar?", pergunta. "Claro
que dará certo. Se você voltar e for boazinha." Então ela bebeu tudo o que havia no copo, sem pestanejar, e saiu. Fui para a frente do prédio. "Conseguiu?", diz
Jody. "O quê?", eu digo. "Ora, não banque o sonso. Não pretendo entrar na sua festa." "Ah, ela. Queria apenas um remédio sem importância. Estava com uma disenteria
grave e tinha vergonha de mencionar o caso diante de um leigo." Era minha noite de sorte, por isso ajudei o velho filho da mãe a arrumar tudo, pus o chapéu em sua
cabeça e tirei-o da loja às 8h30. Acompanhei-o à esquina e observei-o passar por baixo de dois postes de luz e desaparecer de vista. Então, voltei à loja e esperei
até 9h30 e apaguei as luzes da frente e fechei a porta e deixei somente uma luz acesa nos fundos, e voltei e pus um pouco de talco em seis cápsulas e arrumei o porão
e depois eu estava pronto.
Ela chegou às dez em ponto, antes que o relógio batesse. Abri-lhe a porta e ela entrou apressada. Olhei pela porta, mas não havia ninguém por perto, a não ser um
menino de macacão, sentado no meio-fio.
"Quer alguma coisa?", perguntei. Ele não respondeu, limitando-se a me olhar. Fechei a porta e apaguei a luz e fui para os fundos. Ela estava à espera. Desta vez
não me olhou.
"Onde está o remédio?", disse.
Dei-lhe a caixa de cápsulas. Ela apertou a caixa na mão, olhando os comprimidos. "Tem certeza que vai adiantar?", ela diz.
"Claro", eu digo. "Quando você completar o tratamento."
"Onde tenho de completá-lo?", pergunta.
"Lá embaixo, no porão", digo.
Vardaman
Agora o espaço é maior e mais luminoso, mas as lojas estão escuras porque todos foram para casa. As lojas estão escuras, mas as luzes se refletem nas vitrinas quando
nós passamos. As luzes estão nas árvores em redor do tribunal. Pendem dos ramos, mas o tribunal está escuro. O relógio nele tem quatro faces, porque não está no
escuro. A lua também não está escondida. Não muito escura. Darl ele foi para Jackson é meu irmão Darl é meu irmão
Só que ele estava do outro lado, brilhando sobre os trilhos.
"Vamos por ali, Dewey Dell", eu digo.
"Para quê?", diz Dewey Dell.
Os trilhos brilhavam na vitrina, e ele, vermelho, sobre os trilhos. Mas ela disse que Papai Noel não o venderia aos meninos da cidade.
"Ficará aqui até o Natal", diz Dewey Dell. "Você terá de esperar até lá, quando ele, então, lhe trará o trem."
Darl foi para Jackson. Muita gente não foi para Jackson. Darl é meu irmão. Meu irmão está indo para Jackson..
Enquanto caminhamos, as luzes giram, pendendo das árvores. Por todos os lados é a mesma coisa. Ela» rodeiam o tribunal e então se perdem de vista. Mas se pode vê-las
além das janelas escuras. Todo mundo foi para casa dormir, exceto eu e Dewey Dell.
Indo de trem para Jackson. Meu irmão
Há uma luz na loja, nos fundos. Na vitrina há dois grandes frascos de soda, um vermelho e o outro verde. Dois homens não seriam capazes de beber tudo. Duas mulas
não poderiam beber tudo. Duas vacas também não. Darl.
Um homem vem à porta. Ele olha para Dewey Dell.
"Espere aqui fora, diz Dewey Dell.
"Por que não posso entrar?", digo. "Quero entrar também."
"Espere aqui fora", ela diz.
"Está bem", digo. Dewey Dell entra.
Darl é meu irmão. Darl ficou louco.
Pior andar do que sentar no chão. Ele está agora na porta aberta. Ele me olha.
"Quer alguma coisa?", diz. Sua cabeça está bem penteada. A cabeça de Jewel às vezes está bem penteada. A cabeça de Cash não está bem penteada. Darl ele foi para
Jackson meu irmão Darl.
Na rua ele comeu uma banana.
Você não preferia bananas? disse Dewey Dell. Espere até chegar o Natal. Ele estará lá, então. Você poderá vê-lo.
Assim, vamos ter bananas. Vamos ter um saco cheio, eu e Dewey Dell.
Ele fecha a porta. Dewey Dell está dentro. Depois a luz se apaga.
Ele foi para Jackson. Ele ficou maluco e foi para Jackson. Muitas pessoas não ficam malucas. Pai e Cash e Jewel e Dewey Dell e eu não ficamos malucos. Nunca ficamos
doidos. Não fomos também para Jackson.
Ouço a vaca muito tempo, clope na rua. Depois ela entra na praça. Ela atravessa a praça, a cabeça baixa clope. Ela muge. Não havia nada na praça antes de ela mugir,
mas a praça não estava vazia.,Agora está vazia depois que ela mugiu. A vaca continua a andar, clope. Ela muge.
Meu irmão é Darl, ele foi para Jackson de trem. Não foi de trem para ficar louco. Ficou louco em nossa carroça. Darl
Ela já está lá dentro há muito tempo. E a vaca desapareceu também. Muito tempo. Ela demora mais lá dentro do que a vaca demorou na praça. Mas não mais do que quando
estava vazio. Darl é meu irmão. Meu irmão Darl
Dewey Dell sai. Ela olha para mim.
"Vamos agora por ali", digo.
Ela me olha. "Não vai adiantar", diz. "Aquele filho da puta."
"O que não vai adiantar, Dewey Dell?"
"Sei apenas que não", ela diz. Não está olhando para nada. "Tenho certeza."
"Vamos por ali", digo.
"Temos de voltar ao hotel. É tarde. Temos de entrar de mansinho, pelos fundos."
"Não podíamos passar só para uma espiada?"
"Você não preferia bananas? Não preferia?"
"Está bem." Meu irmão ele ficou louco e foi para Jackson também, Jackson está mais longe do que maluco
"Não vai adiantar", diz Dewey Dell. "Tenho certeza que não."
"O que não vai adiantar?", eu digo. Ele tinha de pegar o trem para ir para Jackson. Eu não estive no trem, mas Darl esteve no trem. Darl. Darl é meu irmão. Darl.
Darl.
Darl
Darl foi para Jackson. Puseram-no no trem, e ele ria, ele ria no vagão comprido, e as cabeças viravam-se, como cabeças de corujas, quando ele passava.
"De que está rindo?" eu perguntei.
"Sim sim sim sim sim." Dois homens puseram-no no trem. Tinham roupas desiguais, que faziam protuberância em cima dos bolsos, no quadril direito. Suas nucas estavam
bem barbeados, como se dois recentes o simultâneos barbeiros houvessem usado a linha de marcar de Cash. "Está rindo das pistolas?", eu disse. "Por que está rindo?",
eu disse. "É porque odeia o som do riso?"
Juntaram dois bancos, de forma que Darl pudesse sentar-se à janela para rir. Um deles sentou-se ao seu lado, o outro no banco fronteiro, de costas para a locomotiva,
Um dos dois tinha de viajar assim, porque o dinheiro do Estado tem uma cara para cada lado e um lado para cada cara, e eles viajavam no dinheiro de Estado, o que
é incestuoso. Um níquel tem uma mulher de um lado e um bufalo no outro; dois rostos sem reverso. Não entendo. Darl tinha um binóculo que trouxe da França na guerra.
Nele havia uma mulher e um porco, com duas costas e sem cara. Eu agora entendo.
"É por isso que você está rindo, Darl?"
"Sim sim sim sim sim sim." A carroça está parada na praça, com as mulas atreladas, mas imóveis, as rédeas atadas nas costas do banco, o fundo da carroça virado para
o tribunal. Não parece diferente de uma centena de outras carroças ali; Jewel está em pé, ao seu lado, e olha para a rua como qualquer outro homem da cidade aquele
dia, contudo existe alguma coisa diferente, distinta. Há essa inequívoca atmosfera de partida definitiva e iminente que os trens possuem, talvez devido ao fato de
Dewey Dell e Vardaman, no banco, e Cash, sobre um colchão, no fundo, estarem comendo bananas que tiram de um saco de papel.
"É por isso que está rindo, Darl?"
Darl é nosso irmão, nosso irmão Darl. Nosso irmão Darl está numa gaiola em Jackson onde, com as mãos sujas agarrando de leve os intervalos frios das grades, olha
para fora, com a boca cheia de espuma.
"Sim sim sim sim sim sim sim sim."
Dewey Dell
Quando ele viu o dinheiro, eu disse: "Não é dinheiro meu. Não me pertence."
"De quem é, então?"
"É de Cora Tull. O dinheiro é de Mrs. Tull. O dinhei ro dos bolos que eu vendi."
"Dez dólares por dois bolos?"
"Não toque nele. Não é meu."
"Você não trouxe bolo nenhum. É mentira. Eram as rou pas de domingo que você trazia naquele embrulho."
"Não toque nele! Se tirar o dinheiro, você é um ladrão."
"Minha própria filha me acusa de ser ladrão. Minha própria filha."
"Pai. Pai."
"Eu lhe dei de comer e lhe dei abrigo. Eu lhe dei amor e assistência, e no entanto minha própria filha, a filha de minha mulher morta, me chama de ladrão sobre o
túmulo da mãe."
"Não e meu dinheiro, já disse. Se fosse. Deus sabe que você poderia pegá-lo."
"Onde arranjou dez dólares?"
"Pai. Pai."
"Você não quer contar. Fez uma coisa tão vergonhosa que não tem coragem de me contar?"
"Não é meu, já lhe disse. Será que você não compreende que o dinheiro não é meu?"
"Eu não disse que não pretendia devolver. E no entanto ela chama o próprio pai de ladrão."
"Não posso dar, já disse. O dinheiro não é meu. Deus é testemunha de que, se fosse meu, eu lhe daria."
"Não é que eu queira. Minha própria filha, que eu alimento há dezessete anos, recusa-se a me emprestar dez dólares."
"Não é meu. Não posso."
"De quem é, então?"
"Deram-me o dinheiro. Para comprar uma coisa."
"Para comprar o quê?'"
"Pai. Pai."
"É só um empréstimo. Deus sabe, detesto que filhos de minha carne me reprovem. Mas eu lhes dei o que era meu sem hesitar. Dei contente, sem hesitar. E agora me negam.
Addie, que sorte a sua ter morrido, Addie."
"Pai. Pai."
"Deus sabe".
Ele pegou o dinheiro e saiu.
Cash
Então, quando paramos lá para pedir as pás emprestadas ouvimos o gramofone tocando na casa, e quando terminamos com as pás o Pai disse, "melhor eu devolver as pás".
Então nós voltamos à casa. "Nós devíamos levar Cash ao Peabody", Jewel disse.
"Não vai levar um minuto", o Pai disse. Ele desceu da carroça. A música não estava tocando.
"Deixe Vardaman fazer isso", Jewel disse. "Ele levaria a metade do tempo. Ou então deixe eu..."
“Melhor eu", disse Pai. "Foi a mim que emprestaram."
Então nós esperamos na carroça. A música não estava tocando.
Não acho que fosse bom termos um gramofone. Nunca terminaríamos um serviço. Mas talvez um pouco de música seria bom no descanso. Chegar à noite cansado e descansar
ouvindo um pouco de música. E desliga, e fecha a caixa e tem uma alça, pode carregar para onde quiser.
"O que acha que ele está fazendo", Jewel disse. "Eu devolveria dez vezes as pás nesse tempo..."
"Deixa ele. Ele não é tão ágil como você, lembre-se", eu disse.
"Por que ele não me deixou ir? Temos que consertar sua perna a tempo de partir amanhã para casa", Jewel disse.
"Temos bastante tempo", eu disse. "Eu me pergunto de quanto seria a prestação de uma dessas..."
"Prestação de quê? O que você compraria a prestação?"
"Acho que se pode comprar no Suratt por 5 dólares."
Então o Pai voltou e fomos ao Peabody. Enquanto estávamos lá o Pai disse que iria à barbearia fazer a barba. E então à noite ele disse que tinha negócios para tratar,
meio sem olhar para nós enquanto falava isso, o cabelo molhado e arrumado, cheirando a um perfume doce, mas eu disse, deixa ele. Eu não me importaria de ouvir também
um pouco mais de música.
E então na manhã seguinte ele saiu outra vez, depois voltou e disse que nos aprontássemos para partir.
"Acho que você não tem dinheiro."
"Peabody me deu só para pagar o hotel", eu disse. "Não é preciso mais nada, não é?"
"Não", ele disse. "Não é preciso mais nada. Esperem por mim na esquina."
Assim, Jewel trouxe a parelha e me apanhou e arranjaram um colchão na carroça para mim, e atravessamos a praça até a esquina que Pai havia indicado, e ficamos esperando
ali, sentados na carroça, com Dewey Dell e Vardaman comendo bananas, quando nós os vimos subindo a rua. Pai tinha aquele jeito característico, a um tempo humilhado
e orgulhoso, que assumia sempre ao fazer uma coisa que tinha a certeza de desgostar Mãe. Tinha uma maleta na mão, e Jewel perguntou: "O que é?".
Então, vimos que não era a maleta que o fazia parecer diferente; era sua cara, e Jewel disse: "Ele mandou pôr os dentes."
Era verdade. Parecia ter agora mais uns trinta centímetros de altura, mantinha a cabeça aprumada, humilhado e ao mesmo tempo orgulhoso, e então nós a vimos atrás
dele, carregando a outra maleta — uma mulher com jeito de pato, toda embonecada, com olhos saltados e duros, como se desafiassem todo mundo a dizer-lhe alguma coisa.
Sentados, nós os observamos; Dewey Dell e Vardaman ficaram com as bocas meio-abertas e com as bananas meio comidas nas mãos, e ela se aproximando, atrás de Pat,
olhando-nos como se nos desafiasse. E então eu vi que a maleta que ela trazia era um dos pequenos gramofones, Não havia dúvida: fechado como estava, parecia tão
bonito quanto um quadro, e sempre que um novo disco chegasse pelo correio e a gente se sentasse, no inverno, para ouvi-lo, eu pensaria: "Que pena Darl não estar
aqui para apreciá-lo também. Mas assim é melhor para ele. Este não e o seu mundo; sua vida é outra."
"Apresento-lhe Cash e Jewel e Vardaman e Dewey Dell", diz Pai, com aquele seu jeito entre humilhado e orgulhoso, de dentadura nova e todo o resto, mas sem se atrever
a nos olhar de frente.
"Esta é Mrs. Bundren."
FIM
Odisseia grotesca
ALFREDO MONTE
http://armonte.wordpress.com/tag/helio-polvora/
Costumo citar sempre a maneira singela e lapidar como um dos personagens de Crimes e Pecados (1989), de Woody Allen, resumia a condição humana. É mais ou menos o
seguinte: o universo é basicamente inóspito e nós tentamos povoá-lo com nossos afetos.
É uma boa descrição do que ocorre no genial Enquanto Agonizo, componente do trio supremo (os outros são Luz em Agosto e Absalão! Absalão!) de obras-primas de William
Faulkner. A nova tradução de Wladir Dupont, publicada pela Mandarim, é bastante inferior à de Hélio Pólvora (dos anos 70, pela Expressão & Cultura).
Enquanto Agonizo é dividido em 59 monólogos de 15 personagens, com destaque para a quantidade dos que focalizam a mente de Darl Bundren e seu irmão caçula, Vardaman.
Até a agonizante do título, Addie Bundren, mãe deles, tem um monólogo, o quadragésimo, um momento central do romance. Não se trata de uma simples tomada de palavra
por determinado personagem (todos os 15 com uma gritante individualidade), privilegiando a oralidade, isto é, o modo de expressão peculiar de cada um deles. Enquanto
Agonizo é, ao contrário, um dos textos mais escritos da literatura, com um uso da palavra que só pode ser lido, sem qualquer possibilidade de ser transmitido de
outra forma. Por exemplo, entre uma pergunta do pai, Anse, e a resposta do filho, Darl, se interpõe uma página de lembranças e associações. De forma mais sofisticada
ainda, há monólogos de Darl em que ele visualiza para si mesmo (ele e seu irmão Jewell, nascido do adultério de Addie com o pastor, Mr. Whitfield, estão longe na
hora do falecimento da mãe) o que está acontecendo em casa, o que reduplica o foco ficcional: estamos acompanhando a imaginação narrativa de um personagem, talvez
o mais complexo entre os criados por Faulkner, o qual nos surpreende com imagens extraordinárias, como na descrição que o dr. Peabody faz do olhar de Addie: “É como
se nos tocasse, mas como nos toca o jorro de uma mangueira, um jorro que, no momento do impacto, se houvesse dissociado do bocal, como se nunca tivesse saído por
ali”.
Tudo para mostrar os Bundren e seus afetos diante do universo inóspito. Eles são sulistas brancos e pobres (portanto, loosers, lixo branco) de Yoknapatawpha (o condado
imaginário do Mississipi inventado pelo maior dos autores de ficção, junto com Thomas Mann). Addie agoniza (enquanto o filho mais velho, Cash, prepara seu caixão,
à sua vista) e morre, dando início a uma difícil viagem até Jefferson, centro da região (ela queria ser enterrada ali, pelo menos é o que o marido, Anse, insiste
em dizer), enfrentando uma grande enchente (na travessia do rio, a ponte foi levada e a carroça que transportava o caixão afunda e Cash quebra a perna) e depois
um incêndio num celeiro, provocado por Darl, que será levado para um hospício.
Após o sepultamento de Addie (que demorou nove dias, por isso os Bundren eram acompanhados por urubus na sua jornada e expulsos de povoados), Anse aparece com nova
esposa diante dos filhos (além dos já citados, Cash, Darl, Vardaman e Jewell, há uma garota, Dewey Dell, que está grávida). No final, não sobrou a Addie nem o consolo
da “morte digna”, que redima a vida sem sentido e sórdida.
A odisséia grotesca dos Bundren até Jefferson vai esgarçando ponto por ponto a devoção aparente e realçando apenas o lado fanático e maníaco, quando não o lado mesquinho
e calculista: no final, o pai espolia os filhos (vende o cavalo que é a paixão de Jewell, rouba o dinheiro da filha, arranja nova mulher); Dewey queria ir à cidade
para conseguir um abortivo; e Darl, a má consciência da família, o Hamlet dos brancos pobres do fundamentalista sul dos EUA, “enguiça”, e é neutralizado (como diz
o vizinho da família, Mr. Tull: “pois o Senhor quer que o homem aja e não perca muito tempo pensando, porque seu cérebro é como uma peça de máquina, não aguenta
funcionar em excesso”).
Num mundo inóspito e cheio de estranhos, mesmo que sejam da própria família, a vida, como se afirma em O Velho (texto magnífico que compõe uma das narrativas alternadas
de Palmeiras Selvagens) “consiste em ter que se levantar mais cedo ou mais tarde e então ter que se deitar mais cedo ou mais tarde novamente”. Entenda-se o “deitar” no sentido de Addie Bundren.

 

 

                                                                  William Faulkner

 

 

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