Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENQUANTO ELES DORMIAM / Donna Leon
ENQUANTO ELES DORMIAM / Donna Leon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Sentado à mesa, Brunetti encarava os próprios pés. Apoiados sobre a última gaveta do móvel, eles devolviam a seu olhar quatro fileiras horizontais de minúsculos olhos de círculos metálicos arredondados que o encaravam com aparente e multiplicada censura. Na última meia hora ele alternara tempo e concentração entre as portas do armadio de madeira que ficava encostado à parede dos fundos do gabinete e seus sapatos, passando a estes quando aquelas já não conseguiam mais manter sua atenção. Invariavelmente, quando a quina afiada da parte de cima da gaveta começava a incomodar seu calcanhar, ele reacomodava os pés, o que servia apenas para reordenar o padrão dos olhos metálicos sem no entanto servir muito para diminuir-lhes a censura ou aplacar o tédio que ele sentia.
O vice-questore Giusuppe Patta viajara há duas semanas para a Tailândia, em férias — viagem que o pessoal da questura insistira em chamar de a sua segunda lua de mel —, deixando a cargo de Brunetti qualquer crime que ocorresse em Veneza. O crime, porém, aparentemente embarcara no mesmo avião do vice-questore, pois nada significativo acontecera desde sua partida. Patta e a esposa (que havia pouco voltara ao lar e — dava até para sentir um frêmito — a seus braços) tinham carregado tudo consigo, menos os arrombamentos e pequenos assaltos de praxe. O único crime digno de nota ocorrera em uma joalheria no campo San Maurizio dois dias antes, na qual um casal entrou elegantemente trajado, empurrando um carrinho de bebê, e o pai de primeira viagem, não cabendo em si de contentamento, pediu para ver um anel de diamantes para presentear a ainda mais excitada mamãe. Após provar o anel, e depois outro, ela se decidiu por fim por um diamante branco de três quilates, e perguntou se poderia levá-lo para fora e apreciá-lo à luz do dia. Não deu outra: na rua, ela ergueu a mão contra o sol, sorriu e acenou então para o pai, que, a cabeça dentro do carrinho a ajeitar os panos, deu um sorriso constrangido ao proprietário e foi se reunir à esposa. Os dois se mandaram, claro, deixando atrás de si, a bloquear a porta, o carrinho de bebê com a boneca dentro.
Embora engenhoso, o golpe por certo não foi o prenúncio de uma onda de crimes, e Brunetti de repente se viu imerso em tédio e dúvidas, não muito seguro sobre se preferia a responsabilidade de um cargo e o mundo de papel que ele parecia gerar ou a liberdade de ação que sua posição inferior na hierarquia geralmente lhe assegurava.

 

 

 

 

Ergueu o olhar ao ouvir alguém bater à porta, sorrindo em seguida quando ela se abriu e o brindou com a primeira visão matutina da signorina Elettra, a secretária de Patta, que parecia ter considerado a ausência do vice-questore como um convite para chegar ao trabalho às dez, em vez de às oito e meia de sempre.

“Buon giorno, commissario”, ela disse ao entrar, com um sorriso que o fez pensar, enlevado, num gelato all’amarena — vermelho e branco —, as mesmas cores das listras da blusa de seda que ela vestia. Ela entrou no gabinete meio de lado, para permitir a passagem da outra mulher que a acompanhava, a quem Brunetti olhou de relance, notando que ela vestia um terninho quadrado bem vagabundo, de poliéster cinza, e uma saia que não combinava em nada com os sapatos de salto baixo. Observou ainda que as mãos da mulher se agarravam de modo estranho a uma imitação barata de bolsa de couro, após o que se voltou para a signorina Elettra.

“Comissario, tenho aqui alguém que gostaria de falar com o senhor.”

“Pois não?”, ele disse, olhando novamente para a outra mulher, sem aparentar maior interesse. Foi quando percebeu o contorno da bochecha direita dela, e, quando ela fez um movimento de cabeça a explorar o gabinete, os finos traços de seu maxilar e pescoço. E ele repetiu então, agora com maior interesse: “Pois não?”.

Em resposta ao tom de Brunetti, a mulher girou a cabeça em sua direção e concedeu-lhe um meio sorriso, tornando-se com isso estranhamente familiar a Brunetti, embora ele tivesse certeza de nunca tê-la visto antes. Especulou que ela poderia ser a irmã de algum amigo, vindo a ele em busca de auxílio, e julgou que o que havia reconhecido não fora seu rosto, mas um reflexo nele de tal parentesco.

“Pois não, signorina ?”, disse, levantando-se de sua cadeira e indicando com a mão uma outra à frente da mesa. Assim que ele falou, a mulher olhou brevemente para a signorina Elettra, que lhe respondeu com o sorriso que reservava aos que ficavam nervosos por de repente se verem ali na questura. Em seguida, dizendo algo sobre ter de voltar aos seus afazeres, deixou o gabinete.

A mulher foi até a cadeira e sentou-se, ajeitando antes a saia para um lado. Embora esguia, movimentava-se sem elegância, como se não estivesse acostumada a calçar outro tipo de sapatos que não os de salto baixo.

A experiência de anos ensinara Brunetti que era melhor não dizer nada, que devia esperar, o rosto demonstrando calma e interesse, e assim cedo ou tarde o seu silêncio levaria a pessoa à sua frente a falar. Enquanto esperava, ele alternadamente a olhava e desviava o olhar, tentando lembrar por que ela lhe parecia tão familiar. Buscou algum sinal de parentesco em seu rosto, mas talvez ela fosse a vendedora de alguma loja que ele frequentava, irreconhecível agora que não estava atrás do balcão que a teria identificado. Mas se ela realmente trabalhasse em uma loja, ele se pôs a pensar, com certeza não seria nenhuma do ramo de roupas ou de moda: o terninho dela era terrível, parecendo uma caixa e num estilo que já não se via há pelo menos uns dez anos; o cabelo era cortado tão curto e de modo tão descuidado que não dava para afirmar se era um corte infantil ou algo mais estiloso; o rosto não tinha o mais leve traço de maquiagem. No entanto, na terceira olhada ele percebeu que aquilo podia até mesmo ser um disfarce, e que o que ela tentava esconder era a sua beleza. Seus olhos negros eram bem espaçados, os cílios tão compridos e grossos que dispensavam rímel. Os lábios eram pálidos, mas grossos e lisos. O nariz, reto, estreito e pouco arqueado, era — não havia outra palavra para defini-lo — nobre. E abaixo do estranho corte de cabelo era visível que a testa era alta e sem rugas. Mas mesmo essa constatação da beleza dela não despertou nada na memória de Brunetti.

Ela o surpreendeu ao perguntar: “O senhor não me reconheceu, não é mesmo, commissario ?”. Até mesmo a voz lhe era familiar, embora também deslocada. Ele puxou pela memória inutilmente, tentando lembrar, mas sua única certeza era que ela não tinha relação nenhuma com a questura, nem com o trabalho dele.

“Não, signorina, lamento, mas não a reconheci. No entanto, sei que a conheço e que este não é bem o lugar em que esperaria encontrá-la.” E deu a ela um sorriso sincero, do tipo que lhe pedia que fosse complacente com essa falha humana comum a todos.

“E nem eu esperaria que algum de seus conhecidos tivesse motivos para vir à questura”, ela disse, porém logo sorrindo para demonstrar que dizia aquilo sem maldade e que entendia a confusão dele.

“É verdade, foram poucos os meus amigos que vieram para cá porque quiseram, e até agora nenhum deles teve de vir obrigado.” Dessa vez foi ele quem riu, para demonstrar que também podia fazer piada com a polícia, e acrescentou: “Ainda bem”.

“Nunca procurei a polícia antes”, ela disse, passeando os olhos pelo gabinete novamente, como se temerosa de que algo ruim pudesse acontecer a ela agora que o tinha feito.

“A maioria das pessoas nunca procura”, Brunetti concedeu.

“Não, acho que não”, ela disse, baixando os olhos para as suas mãos. E, de chofre: “Eu costumava ser imaculada”.

“Como?” Brunetti ficou totalmente confuso, imaginando de repente se não haveria algo de muito errado com esta jovem.

“Sóror Immacolata”, ela disse, encarando-o e oferecendo aquele sorriso suave que por muito tempo tinha brilhado para ele do interior da engomada touca branca que era parte do seu hábito. O nome a situou e resolveu o enigma: agora se explicava o corte de cabelo, assim como a evidente inadequação das roupas que vestia. Brunetti notara sua beleza desde a primeira vez que a vira naquela casa de repouso em que por anos sua mãe não encontrara descanso. Mas a natureza de seus votos religiosos e o hábito comprido que era deles reflexo a haviam encerrado numa redoma, como se fosse um tabu, e mesmo assim Brunetti tinha registrado a sua beleza, mas como teria registrado a beleza de uma flor ou uma pintura, respondendo a ela como um apreciador, não como um homem. Agora, liberta das restrições e dos disfarces, essa beleza tinha se esgueirado para seu gabinete, a despeito do desmazelo e das roupas baratas que a tentavam ocultar.

Sóror Immacolata sumira de repente da casa de repouso em que a mãe de Brunetti estava internada havia cerca de um ano, e o filho, contrariado com o desespero que se apossara da mãe pela perda da irmã que mais tinha sido gentil com ela, foi informado apenas de que ela tinha sido transferida para outra das casas de repouso da irmandade. Uma porção de perguntas veio a sua mente agora, mas ele preferiu não as fazer por um senso de inadequação. Ela tinha vindo até ali; por certo lhe explicaria o motivo.

“Eu não posso voltar à Sicília”, ela disse abruptamente. “Minha família não iria entender.” Suas mãos relaxaram o aperto em torno de sua bolsa e buscaram confortar uma à outra. Não encontrando o que buscavam, apoiaram-se sobre as suas coxas. Então, como se repentinamente cônscias do calor da carne sob elas, retornaram aos áridos ângulos da bolsa.

“A senhora está...”, Brunetti começou a falar e, incapaz de encontrar o verbo certo, optou por uma pausa seguida de um arremate truncado, “... quanto tempo?”

“Três semanas.”

“Está hospedada aqui em Veneza?”

“Não, aqui não, nos arredores, no Lido. Em um quarto, numa pensione.”

Ele se perguntou se ela teria vindo até ele por dinheiro. Se fosse o caso, ele ficaria honrado e feliz em dar a ela o que pudesse, de tão enorme o crédito que ela angariara pelos anos de caridade despendidos a ele e sua mãe.

Como se tivesse lido seus pensamentos, ela disse: “Estou trabalhando”.

“Sim?”

“Numa clínica particular, no Lido.”

“Como enfermeira?”

“Na lavanderia.” Ela percebeu o discreto olhar que ele dirigiu às mãos dela e sorriu. “Agora as máquinas fazem tudo, commissario. Já vai longe o tempo de levar os lençóis até a beira do rio e batê-los nas pedras.”

A risada que ele deu foi mais em razão de seu próprio embaraço que pela resposta dela. Mas pelo menos aquilo serviu para desanuviar o clima no gabinete e abriu espaço para ele dizer: “Lamento que a senhora tenha sido forçada a isto”. Fosse no passado e ele teria arrematado a frase com o seu título, “sóror Immacolata”, mas agora não havia mais nada do que pudesse chamá-la. Sem o seu hábito, fora-se também o seu nome, e sabe-se lá mais o quê.

“Eu me chamo Maria”, ela disse, “Maria Testa.” E, como uma cantora que faz uma pausa para saborear o som desvanecente de uma nota que marca a mudança de uma clave para outra, ela silenciou para ouvir o eco de seu nome. “Embora eu não esteja mais certa de que esse nome ainda me pertença”, arrematou.

“Como?”, perguntou Brunetti.

“Há um procedimento ao qual submetem os que saem. Da ordem, claro. Creio que é como desconsagrar uma igreja. Algo muito complicado, e pode passar um tempo enorme antes que lhe deixem partir.”

“Imagino que queiram se assegurar da sua certeza”, sugeriu Brunetti.

“É. Pode levar meses, talvez anos. Você tem que levar a eles cartas de pessoas que a conhecem e que a consideram capaz de tomar a decisão.”

“É disso que a senhora precisa? Será que eu posso ajudá-la com isso?”

Com um movimento lateral de uma das mãos, ela como que tirou as palavras do caminho e, com elas, o seu voto de obediência. “Não, não é mais necessário. Já terminou. Encerrado.”

“Entendo”, disse Brunetti, sem entender de fato.

Ela o encarou, um olhar tão direto e com olhos de uma beleza tão impressionante que Brunetti sentiu uma pontada de inveja do homem que a faria romper o voto de castidade.

“Vim procurá-lo por causa da casa di cura. Por causa do que vi acontecer ali.”

O coração de Brunetti singrou a distância que o separava de sua mãe, e ele se pôs imediatamente em alerta em busca de qualquer indício de perigo.

Porém, antes que tivesse tempo de corporificar seu terror na forma de uma pergunta, ela disse: “Não, commissario, sua mãe está bem. Não vai acontecer nada com ela”. Ela fez uma pausa, então, constrangida ao perceber como tinha soado o que dissera e pela tenebrosa verdade contida em suas palavras: a única coisa que ainda poderia acontecer com a mãe de Brunetti seria a morte. “Lamento”, acrescentou ela desajeitadamente, e não disse mais nada.

Brunetti a avaliou por um momento, não entendendo bem o que ela acabara de dizer, mas sem saber como pedir a ela que esclarecesse o que tinha querido dizer. Lembrou então da sua última visita à mãe, quando torceu para que pudesse de algum modo ver por lá a já de há muito ausente sóror Immacolata, por saber que ela era a única pessoa que iria entender o vazio dilacerante de sua alma. Mas em vez da adorável siciliana, encontrou no corredor apenas a sóror Eleanora, uma mulher que o passar dos anos tinha tornado amarga e para quem os votos assumidos eram os de pobreza de espírito, castidade do humor e obediência apenas a alguns rígidos conceitos de dever. Que sua mãe pudesse estar, mesmo por um instante, sob os cuidados daquela mulher o enraivecia como homem; a casa di cura gozar da reputação de ser uma das melhores à disposição o envergonhava como cidadão.

A voz dela resgatou-o de seu longo devaneio, mas por não ter ouvido o que ela tinha dito, teve de pedir que ela repetisse. “Perdão, suora”, disse, percebendo de imediato que o hábito o levara a se referir a ela pelo título, “eu estava distraído.”

Ela retomou, ignorando o modo pelo qual ele a chamara. “A casa di cura a que me refiro é a daqui, de Veneza, onde eu trabalhava até três semanas atrás. Mas não saí de lá apenas, dottore. Eu larguei a ordem, larguei tudo... Para começar minha...” Ela se interrompeu por um momento e olhou pela janela aberta, em direção à fachada da igreja de San Lorenzo, buscando ali o nome do que ela estava prestes a começar. “Minha nova vida.” Ela voltou o olhar para ele e deu um sorriso curto e envergonhado. “La vita nuova”, repetiu, agora num tom que ela se esforçava para tornar mais leve, como se consciente da carga melodramática que se apossara de sua voz. “Somos obrigados a ler La vita nuova na escola, mas não me lembro muito bem do livro.” Ela o encarou, as sobrancelhas franzidas de modo interrogativo.

Brunetti não tinha ideia do rumo que esta conversa estava tomando; começara com a menção a um perigo, e o assunto agora era Dante. “Também lemos o livro, mas acho que eu era muito novo. O fato é que sempre preferi La Divina Commedia”, ele disse, “especialmente o Purgatorio.”

“Curioso”, ela disse com interesse, que poderia ser real ou apenas um modo de protelar o que quer que tivesse vindo dizer a ele. “Nunca ouvi ninguém assumir a preferência pelo Purgatorio. Qual o motivo?”

Brunetti se permitiu um sorriso. “Claro, por ser policial todo mundo conclui logo que eu prefira o Inferno. Os maus são punidos e todo mundo ganha o que Dante achava que eles mereciam. Mas eu nunca gostei disso, a certeza absoluta dos julgamentos, todo aquele sofrimento atroz. Para sempre.” Ela permanecia sentada em silêncio, olhando para o seu rosto e prestando atenção ao que ele dizia. “Gosto do Purgatorio porque ali ainda há a possibilidade de que as coisas possam mudar. Para os outros, estejam eles no Paraíso ou no Inferno, está tudo acabado: ali é o lugar onde ficarão. Para sempre.”

“É nisto que o senhor acredita?”, ela perguntou, e Brunetti sabia que ela não estava falando de literatura.

“Não.”

“Em nada disso.”

“A senhora quer saber se eu acredito que exista um Paraíso ou um Inferno?”

Ela anuiu, e ele imaginou se alguma superstição atávica a impedia de proferir as duvidosas palavras.

“Não”, ele respondeu.

“Nada?”

“Nada.”

Depois de uma pausa muito longa ela disse: “Que horrível”.

Como havia feito diversas vezes desde que concluíra ser nisso que acreditava, Brunetti deu de ombros.

“Bem, suponho que um dia descobriremos”, ela disse, mas sua voz era repleta de possibilidades, e não de sarcasmo ou negação.

Novamente, o impulso de Brunetti foi dar de ombros, pois esta era uma discussão que ele tinha abandonado fazia muitos anos, ainda na universidade, ao deixar a infância, sem paciência para reflexões e louco para viver a vida. Mas ao olhar para ela lembrou-se de que ela acabara, em certo sentido, de sair do ovo, pronta a viver sua própria vita nuova. Assim, esse tipo de indagação, algo impensável no passado, devia ser urgente e vital para ela. “Talvez seja verdade”, concedeu.

A resposta dela foi imediata e incisiva. “O senhor não precisa ser condescendente comigo, commissario. Abandonei a vocação, não a capacidade de pensar.”

Ele preferiu não se desculpar, nem seguir nesse debate teológico periférico. Moveu uma carta sobre sua mesa de um lado para o outro, afastou a cadeira e cruzou as pernas. “Podemos falar sobre aquilo, então?”, perguntou.

“Sobre o quê?”

“Sobre o lugar em que a senhora abandonou sua vocação?”

“A casa de repouso?”, ela perguntou, desnecessariamente.

Brunetti assentiu. “De qual delas a senhora está falando agora?”

“São Leonardo. Perto do hospital Giustiniani. A ordem fornece pessoal para lá.”

Ele notou que ela estava sentada com os pés posicionados um ao lado do outro, totalmente apoiados no chão, os joelhos colados. Ela abriu a bolsa com certa dificuldade, tirou de lá uma folha de papel, desdobrou-a e olhou para o que estava escrito ali. “No último ano”, começou, nervosa, “cinco pessoas morreram na São Leonardo.” Ela virou o papel e se inclinou para colocá-lo à sua frente. Brunetti olhou para a lista.

“Estas pessoas?”, perguntou.

Ela anuiu. “O senhor tem aí os nomes, as idades que tinham e as causas de suas mortes.”

Brunetti olhou novamente para a lista, verificando que ela continha de fato tais dados. Estavam relacionados os nomes de três mulheres e dois homens. Veio-lhe à mente uma estatística que afirmava que as mulheres tendiam a viver mais que os homens. Não estas. Uma das mulheres estava na casa dos sessenta, as outras no começo dos setenta. Os dois homens eram mais velhos. Dentre essas pessoas, duas morreram de ataque cardíaco, duas de infarto e uma de pneumonia.

“Por que a senhora está me entregando esta lista?”, perguntou olhando para ela.

Embora ela seguramente tivesse se preparado para responder a essa pergunta, ainda assim demorou algum tempo para fazê-lo. “Porque o senhor é o único capaz de fazer algo a respeito disso.”

Brunetti esperou um pouco para ver se ela explicava o que acabara de dizer, mas, como isso não ocorreu, ele disse: “Não estou bem certo do que venha a ser ‘isso’”.

“Será que o senhor consegue descobrir do que morreram?”

Ele acenou com a lista entre eles. “Outro motivo que não os mencionados aqui?”.

Ela anuiu. “Sim. Se o que escreveram aí não for a causa real, haverá algum meio de o senhor descobrir do que na verdade eles morreram?”

Brunetti não precisava refletir para responder, já que a lei que previa a exumação era cristalina. “Não, sem um mandado judicial ou um pedido formal de algum membro da família, não é possível.”

“Oh, eu não sabia. Estive — nem sei como dizer is-to —, estive por tanto tempo alheia às coisas do mundo que nem sei mais como ele funciona, como se age.” E acrescentou depois de uma pequena pausa. “Talvez eu jamais tenha sabido.”

“Por quanto tempo a senhora esteve na ordem?”

“Por doze anos. Ingressei lá ao completar quinze anos.” Se ela notou o espanto de Brunetti, preferiu ignorar essa reação. “Sim, é um bocado de tempo.”

“Mas a senhora nunca esteve de fato isolada do mundo, esteve? Afinal, a senhora estudou para ser enfermeira.”

“Não”, ela se apressou a responder, “eu não sou uma enfermeira. Bem, não uma profissional formada, de qualquer modo. A ordem viu que eu tinha certo...”, ela se interrompeu, e Brunetti percebeu que ela se havia apanhado em uma posição a que não estava habituada, a de admitir um talento ou elogiar a si própria, e por isso não viu outra opção que não parar de falar. Após uma pausa que permitiu que ela removesse qualquer orgulho de suas declarações, ela prosseguiu. “Elas decidiram que seria bom para mim se eu tentasse ajudar os idosos, e foi por isso que fui indicada para o trabalho em casas de repouso.”

“Por quanto tempo a senhora exerceu esse trabalho?”

“Por sete anos. Seis na Dolo e um na São Leonardo”, ela respondeu, o que significava, Brunetti calculou, que sóror Immacolata tinha vinte anos ao chegar à clínica onde a mãe do commissario estava internada, uma idade em que a maioria das mulheres está começando a trabalhar, escolhendo que profissão seguir, namorando, parindo. Pensou nas conquistas que essas outras mulheres teriam feito naquele espaço de tempo e no que foi a vida de sóror Immacolata no mesmo período, cercada dos uivos dos loucos e do fedor dos incontinentes. Fosse ele um homem com alguma percepção do religioso, acreditasse em um ente superior, talvez encontrasse consolo na derradeira recompensa espiritual que ela receberia em paga pelos anos que havia desperdiçado. Emergindo dessas reflexões e manuseando a lista à sua frente, perguntou a ela: “O que há de incomum na morte dessas pessoas?”.

Ela esperou um pouco antes de responder, e quando o fez confundiu-o de vez. “Nada. Normalmente temos uma morte de poucos em poucos meses, e algumas vezes até mais que isso logo depois dos feriados.”

As décadas de experiência no interrogatório dos propensos e dos relutantes eram perceptíveis na calma com que Brunetti perguntou: “Então por que a senhora fez esta lista?”.

“Duas das mulheres eram viúvas, a outra nunca se casou. Um dos homens jamais recebeu uma visita.” Ela o observou, esperando que ele a incentivasse a prosseguir, e mesmo assim ele não disse nada.

A voz dela ficou mais suave e Brunetti teve uma repentina visão de sóror Immacolata, ainda em seu hábito preto e branco, lutando contra a admonição de jamais difamar ou falar mal de alguém, mesmo de um pecador. “Eu ouvi dois deles”, ela falou por fim, “em algumas ocasiões, dizerem que iriam deixar parte de sua herança para a casa di cura.” Ela parou por aí e fixou o olhar nas próprias mãos, que haviam largado a bolsa e agora pressionavam dolorosamente uma à outra.

“E eles cumpriram o prometido?”

Ela meneou a cabeça sem dizer nada.

“Maria”, ele disse, com uma entonação intencionalmente baixa, “isto quer dizer que eles não cumpriram ou que a senhora não sabe se o fizeram?”

Ela respondeu sem olhar para ele. “Eu não sei. Mas duas delas, a signorina Da Prè e a signorina Cristanti... as duas disseram que queriam gratificar a casa di cura.”

“O que foi que elas disseram?”

“A signorina Da Prè disse, no dia seguinte à missa — não há coleta quando o padre Pio reza a missa para nós, rezava a missa para nós...” Repentinamente consciente da confusão dos tempos verbais em decorrência de haver deixado a ordem, ela parou. Levou uma mão trêmula até a têmpora, e Brunetti a viu deslizar os dedos para trás, em busca do conforto protetor de sua touca. Mas em lugar dela seus dedos encontraram apenas os cabelos soltos, que ela ajeitou como se tivessem sido queimados.

“Depois da missa”, ela repetiu, “enquanto a ajudava a voltar a seu quarto, ela disse que não fazia diferença não ter havido a coleta, pois descobririam depois que ela tivesse partido quão generosa ela tinha sido.”

“A senhora chegou a perguntar a ela o que ela queria dizer?”

“Não. Achei que era claro o suficiente, que ela deixaria seu dinheiro para eles, ou pelo menos parte dele.”

“E?”

Uma vez mais ela fez um meneio. “Não sei.”

“E depois disso se passou quanto tempo até ela morrer?”

“Três meses.”

“Ela comentou sobre isso, sobre o dinheiro, com mais alguém?”

“Não sei. Ela não conversava com quase ninguém.”

“E a outra senhora?”

“Signora Cristanti”, Maria esclareceu. “Ela foi muito mais incisiva, dizendo que queria deixar o seu dinheiro para aqueles que haviam sido bons para ela. Ela dizia isso para todo mundo, o tempo todo. Mas ela não... Eu não acho que ela fosse capaz de tomar tal decisão, não mesmo, não pelo que eu conhecia dela.”

“O que a senhora quer dizer com isso?”

“Ela não regulava bem”, respondeu Maria. “Pelo menos não o tempo todo. Em certos dias tudo ia bem, mas na maior parte deles ela variava; achava que era jovem de novo, e pedia que a levassem para passear.” Após uma pequena pausa, assumindo um tom completamente clínico, ela acrescentou: “Algo muito corriqueiro”.

“Voltar ao passado?”

“Sim, as pobrezinhas. Suponho que para elas o passado seja melhor que o presente. Não importando que passado for.”

Brunetti lembrou da última visita que fizera a sua mãe, mas afastou a memória para longe. Em vez disso, perguntou: “E o que aconteceu a ela?”.

“Com a signora Cristanti?”

“Isto.”

“Morreu de um ataque do coração há uns quatro meses.”

“Onde?”

“Lá. Na casa di cura.”

“Onde ela teve o ataque do coração? No quarto dela ou em outro lugar onde houvesse outras pessoas?” Brunetti não as chamou de “testemunhas”, nem mesmo em pensamento.

“Não, ela morreu enquanto dormia. Em paz.”

“Percebo”, disse Brunetti, sem no fundo perceber nada. Deixou passar um tempinho antes de perguntar a ela: “Quer dizer que para a senhora esta lista indica que essas pessoas morreram de alguma outra causa? Outra que não a que está escrita ao lado dos seus nomes?”.

Ela o encarou, desconcertando-o pelo olhar de surpresa. Afinal, se tinha chegado ao ponto de procurá-lo para tratar desse assunto, com certeza devia compreender as implicações do que dizia.

Numa tentativa óbvia de ganhar tempo, ela repetiu: “Outra causa?”, e quando Brunetti não respondeu, ela disse: “A signora Cristanti nunca teve problemas cardíacos antes”.

“E as outras pessoas nesta lista que morreram de ataque do coração ou infarto?”

“O signor Lerini tinha um histórico de problemas cardíacos. Só ele, nenhum dos outros.”

Brunetti olhou novamente para a lista. “E essa outra mulher, a signora Galasso, ela teve algum problema de saúde antes?”

Em vez de responder, ela começou a mover um dedo ao longo de sua bolsa, para um lado e para o outro.

“Maria”, ele disse, detendo-se após dizer o nome dela, aguardando que ela voltasse a olhar para ele. Quando ela o fez, ele continuou. “Sei que é muito grave levantar falso testemunho contra o próximo.” Ela ficou surpresa, como se o diabo tivesse começado a citar a Bíblia. “Mas sei também que é importante proteger os fracos e os que não podem proteger a si mesmos.” Brunetti não tinha certeza se isso estava na Bíblia, embora achasse que por certo devia estar. Ela não reagiu ao que ele disse, o que o levou a perguntar: “A senhora entende, Maria?”. Como ela continuou sem responder, ele fez a pergunta de outro modo: “A senhora concorda?”.

“Claro que concordo”, ela disse em tom irritado. “Mas e se eu estiver enganada? E se tudo não passar de imaginação minha e não tiver acontecido nada de anormal a essas pessoas?”

“Não creio que a senhora viria até aqui se não estivesse convencida. E por certo não estaria vestida do jeito que está vestida agora.” Assim que disse isto ele percebeu que parecia estar depreciando o modo como ela estava vestida, embora tivesse apenas querido fazer menção à decisão dela de deixar a ordem e tirar o hábito.

Brunetti empurrou a lista para um lado de sua mesa e, em um equivalente verbal do gesto, mudou de assunto. “Quando foi que a senhora decidiu deixar a vida religiosa?”

A resposta dela não teria sido mais rápida se estivesse esperando por aquela pergunta. “Logo após ter conversado com a madre superiora”, ela disse, a voz embargada pela lembrança emotiva. “Mas antes disso eu já havia conversado com o padre Pio, meu confessor.”

“E eu posso saber o que a senhora disse a eles?” Brunetti estava afastado da Igreja e de todos seus ritos e pompas por tanto tempo que nem se recordava mais com exatidão do que podia e não podia ser repetido de uma confissão, ou mesmo qual seria a penalidade por isso, mas o que ele lembrava era o suficiente para que soubesse que uma confissão era algo que as pessoas não deviam comentar por aí.

“Sim, acho que sim.”

“Esse padre é o mesmo que reza a missa?”

“Sim. Ele faz parte da nossa ordem, mas não mora lá, vai duas vezes por semana.”

“Vindo de onde?”

“De nosso capítulo aqui em Veneza. Ele era meu confessor também na outra casa de repouso.”

Brunetti percebeu que ela estava quase pedindo para desviar do assunto principal agarrando-se a quaisquer detalhes, então perguntou: “O que a senhora disse a ele?”.

Ela refletiu por um momento, e Brunetti julgou que ela estivesse recordando a conversa que tivera com seu confessor. “Eu falei a ele sobre as pessoas que haviam morrido”, ela disse, e parou, desviando o olhar de Brunetti.

Percebendo que ela não diria mais nada além disso, Brunetti perguntou: “O que mais a senhora disse? Falou a ele sobre o dinheiro das pessoas ou sobre o que elas tinham comentado a esse respeito?”.

Ela negou, balançando a cabeça. “Eu não sabia disso na ocasião. Quer dizer, eu não me lembrei disso então. Estava tão abalada com as mortes que isso foi tudo o que eu disse a ele, que tinham morrido.”

“E o que foi que ele disse?”

Ela voltou a olhar para Brunetti. “Ele disse que não estava entendendo. Daí eu expliquei a ele, dizendo os nomes das pessoas que haviam morrido e tudo o que eu sabia sobre o histórico médico delas, que até então a maioria gozava de boa saúde, e que de repente haviam morrido. Ele ouviu tudo o que eu tinha a dizer e perguntou se eu tinha certeza.” Em um comentário paralelo, ela acrescentou: “Por eu ser siciliana, as pessoas daqui sempre consideram que eu sou uma imbecil. Ou uma mentirosa”.

Brunetti a observou para ver se havia oculta nessa declaração alguma reprimenda, alguma indireta sobre a postura dele mesmo em relação a ela, mas não parecia ser o caso.

“Acho que ele simplesmente não pôde acreditar que isso fosse possível”, ela prosseguiu. “Então, quando eu insisti que essa quantidade de mortes não era assim algo normal, ele me perguntou se eu estava ciente do perigo de ficar repetindo essas coisas, do perigo de incorrer em difamação. E, quando eu disse a ele que sim, que tinha consciência disso, ele recomendou que eu orasse a esse respeito.” Ela parou.

“E?”

“Eu disse a ele que já tinha orado, que tinha orado por dias. Então ele perguntou se eu tinha consciência do que estava insinuando, o horror de tudo aquilo.” Ela parou novamente e acrescentou: “Ele estava chocado. Eu não creio que ele conseguia admitir a possibilidade. Ele é um homem muito bom, o padre Pio, e muito alheio às coisas do mundo”. Brunetti conteve um sorriso ao ouvir isso dito por alguém que passara os últimos doze anos de sua vida em um convento.

“E o que aconteceu então?”

“Eu pedi para falar com a madre superiora.”

“E conseguiu?”

“Demorou dois dias, mas finalmente ela me recebeu, no fim de uma tarde, depois das Vésperas. Eu repeti tudo a ela, sobre as mortes dos idosos. Ela não pôde esconder seu espanto, o que me deixou contente, porque isso significava que o padre Pio não comentara nada com ela. Eu sabia que ele não iria comentar, mas o que eu tinha dito era tão terrível que... bem, eu não tinha certeza...” A voz dela foi sumindo.

“E?”

“Ela se recusou a me ouvir, disse que não queria ouvir mentiras, que o que eu estava dizendo iria prejudicar a ordem.”

“E depois?”

“Ela me disse, ordenou, sob o meu voto de obediência, que eu guardasse silêncio por um mês.”

“Isso quer dizer o que eu acho que quer dizer, que a senhora não estava autorizada a falar com ninguém por um mês?”

“Sim.”

“E como a senhora conseguiu trabalhar? Não é preciso falar com os pacientes?”

“Eu não fiquei com eles.”

“Como?”

“A madre superiora ordenou que eu passasse esse tempo em minha cela ou na capela.”

“Por todo um mês?”

“Dois.”

“O quê?”

“Dois”, ela repetiu. “Findo o primeiro mês ela veio me ver em minha cela e perguntou se minhas orações e meditações me haviam orientado no reto caminho. Eu respondi que havia orado e meditado — o que fiz de fato —, mas que ainda permanecia apreensiva em relação às mortes. Ela se recusou a me ouvir e ordenou que eu retomasse o meu silêncio.”

“E a senhora o fez.”

Ela anuiu.

“E como foi?”

“Passei a semana seguinte orando, e foi então que comecei a tentar lembrar qualquer coisa que aquelas pessoas pudessem ter dito a mim, e aí eu lembrei o que a signorina Da Prè e o que a signorina Cristanti tinham comentado, sobre a herança. Eu não tinha refletido anteriormente sobre isso, mas agora que o fizera não parava mais de lembrar.”

Brunetti pensou na ampla variedade de coisas que ela poderia ter “lembrado” depois de mais de um mês de solidão e silêncio. “E o que aconteceu findo o segundo mês?”

“A madre superiora veio novamente a minha cela e perguntou se eu recuperara o juízo. Eu respondi que sim, o que, creio, era verdade.” Ela parou de falar e novamente ofereceu a Brunetti aquele sorriso triste e nervoso.

“E então?”

“Então eu fui embora.”

“Assim, sem mais?” Brunetti pôs-se de imediato a refletir sobre os detalhes práticos: roupas, dinheiro, transporte. Estranhamente significativo, eram os mesmos detalhes a serem considerados por aquelas pessoas que estavam prestes a ser libertadas de uma prisão.

“Naquela mesma tarde, saí junto das pessoas que estavam lá para o horário de visitação. Ninguém pareceu estranhar; ninguém percebeu. Perguntei a uma das mulheres que estava saindo onde eu poderia comprar roupas. Eu só tinha dezessete mil liras.”

Ela parou de falar, e Brunetti perguntou. “E ela lhe respondeu?”.

“O pai dela era um dos meus pacientes, então ela me conhecia. Ela e o marido me convidaram para jantar. Como não tinha para onde ir, aceitei. E os acompanhei, até o Lido.”

“E?”

“Na balsa contei a eles o que decidira fazer, mas sem explicar os motivos. Nem eu mesma tinha certeza de os conhecer, ou de que os conheço agora. Eu não iria difamar a ordem ou a casa de repouso. E não estou fazendo isso agora, estou?” Brunetti, que não tinha a mínima ideia se ela estava ou não, anuiu com a cabeça e ela continuou. “Tudo o que eu fiz foi informar a madre superiora sobre as mortes, e que elas pareciam estranhas para mim, sendo tantas assim.”

Num tom inteiramente informal, Brunetti disse: “Li em algum lugar que de vez em quando os idosos começam a morrer um atrás do outro, sem razão aparente”.

“Eu acabei de dizer isso para o senhor. Normalmente acontece depois dos feriados.”

“Não poderia ser essa a explicação aqui?”

Os olhos dela cintilaram, demonstrando o que Brunetti supôs ser raiva. “Claro que poderia. Mas se fosse isso, por que então ela tentou me silenciar?”

“Acho que a senhora me disse o motivo, Maria.”

“Como?”

“Seu voto. Obediência. Eu não faço ideia da importância que isso tem para eles, mas pode ser que isso os preocupasse mais do que qualquer outra coisa.” Como ela não respondeu, ele perguntou: “A senhora julga que isto seja possível?”. Ela continuou a se recusar a responder, então ele perguntou: “E o que aconteceu então? Com o casal do Lido?”.

“Eles foram muito amáveis. Após o jantar ela me deu algumas de suas roupas.” Ela baixou as mãos abertas indicando a saia que vestia. “Eles me hospedaram durante a primeira semana, e depois me ajudaram a conseguir o emprego na clínica.”

“Não lhe pediram nenhum documento de identidade para começar a trabalhar?”

Ela balançou a cabeça negativamente. “Não. Ficaram tão satisfeitos em encontrar alguém disposto a fazer o trabalho que não fizeram nenhuma pergunta. Mas eu escrevi para a prefeitura da minha cidade natal solicitando a remessa de cópias de minha certidão de nascimento e da minha carta d’identità. Se terei que voltar a esta vida, suponho que vá precisar desses documentos.”

“Para onde a senhora pediu que eles fossem remetidos? Para a clínica?”

“Não, para a casa do casal.” Ela notou a preocupação na voz de Brunetti. “Por que o senhor quer saber?”

Ele desistiu da própria pergunta com um rápido meneio. “Apenas curiosidade. Nunca se sabe quanto esse tipo de coisa pode demorar.” Era uma desculpa esfarrapada, mas ela tinha sido freira por tanto tempo que Brunetti achou que ela teria dificuldade em identificar uma. “A senhora ainda mantém contato com alguém da casa di cura ou da sua ordem?”

“Não. Com ninguém.”

“Elas sabem que a senhora partiu?”

Ela balançou a cabeça. “Acho que não. Não há como possam saber.”

“Será que o casal do Lido não poderia contar a elas?”

“Não. Eu pedi a eles que não dessem notícias minhas a ninguém, e acho que não o farão.” Lembrando novamente do seu incômodo anterior, ela perguntou: “Por que o senhor está me perguntando isto?”.

Ele não via razão para não lhe responder. “Se houver alguma verdade no...”, ele começou, mas percebeu então que não sabia ao certo que nome dar ao que ia dizer, pois certamente não era uma acusação, no máximo um comentário sobre uma coincidência. E começou novamente: “Tendo em vista o que a senhora me disse, seria prudente evitar qualquer tipo de contato com as pessoas da casa di cura”. E foi então que ele se deu conta de que não tinha ideia de quem poderiam ser essas pessoas. “Quando conversou com essas mulheres, a senhora teve alguma ideia de para quem, e quero que a senhora seja específica aqui, elas iriam deixar o dinheiro delas?”.

“Pensei no assunto”, ela disse em voz baixa, “gostaria de não dizer nada.”

“Por favor, Maria, não acho que a senhora possa mais escolher entre o que quer e não quer dizer a esse respeito.”

Ela anuiu, mas muito lentamente, reconhecendo que o que ele havia dito era correto, mas sabendo que isso não tornava a situação mais palatável. “Não sei ao certo, talvez deixasem o dinheiro para a casa di cura mesmo, ou para o diretor. Ou mesmo para a ordem.”

“Quem é o diretor?”

“O doutor Messini, Fabio Messini.”

“Poderiam deixar para outra pessoa?”

Ela refletiu por um momento e continuou a responder: “Talvez deixassem para o padre Pio. Ele é tão bom para os pacientes que a maioria deles tem por ele um carinho enorme. Mas não creio que ele aceitasse”.

“E quanto à madre superiora?”

“Não. A ordem proíbe que possuamos o que quer que seja. Quer dizer, às mulheres.”

Brunetti pegou uma folha de papel. “A senhora sabe o sobrenome do padre Pio?”

Dava pra perceber a apreensão nos olhos dela. “Mas o senhor não vai falar com ele, vai?”

“Não, acho que não. Mas gostaria de saber mesmo assim. Caso se torne necessário.”

“Cavaletti”.

“A senhora sabe mais alguma coisa sobre ele?”

Ela balançou a cabeça. “Não, apenas que ele passa duas vezes por semana para ouvir as confissões. Se alguém fica muito doente, ele vem para dar a extrema-unção. Eu quase não tinha tempo para falar com ele. Quer dizer, fora do confessionário.” Ela fez uma pausa e então acrescentou: “A última vez que o vi foi há cerca de um mês, no dia do santo da madre superiora, em 20 de fevereiro”. De repente, sua boca se fechou e ela cerrou os olhos, como se tivesse sido atingida por uma dor repentina. Brunetti inclinou-se para a frente em sua cadeira, com medo que ela desmaiasse.

Ela abriu os olhos e o encarou, fazendo com a mão um gesto para que ele não se aproximasse. “Não é estranho?”, ela perguntou. “Não é estranho que eu me lembre do seu dia jejuno?”. Ela desviou o olhar e depois voltou a encará-lo. “Não consigo lembrar nem o dia do meu aniversário. Apenas o dia destinado ao jejum de Immacolata, o oitavo do mês de dezembro.” E balançou a cabeça, de tristeza ou espanto, ele não sabia dizer qual. “É como se alguma parte de mim tivesse cessado de existir durante todos aqueles anos e sido cancelada. Eu não consigo mais lembrar quando é o meu aniversário.”

“Talvez a senhora possa fazer que fique sendo o dia em que deixou o convento”, sugeriu Brunetti, sorrindo em seguida para demonstrar que tinha dito aquilo com a melhor das intenções.

Ela cruzou olhares com ele por um momento e então levou os dois primeiros dedos da mão direita até a testa, os olhos voltados para baixo. “La Vita Nuova”, disse, mais para si do que para ele.

Sem aviso, levantou-se. “Acho que tenho que partir agora, commissario.” Seus olhos aparentavam menos calma que a sua voz, de modo que Brunetti não fez nenhuma tentativa de a impedir.

“A senhora pode me dizer o nome da pensão em que está morando?”

“La Pergola.”

“No Lido?”

“Sim.”

“E o casal que a ajudou?”

“Por que o senhor quer saber o nome deles?”, ela perguntou, agora realmente alarmada.

“Porque eu gosto de saber coisas”, ele disse, uma resposta honesta.

“Sassi. Vittorio Sassi. Via Morosini, 11.”

“Obrigado”, disse Brunetti, sem escrever nenhum desses nomes. Ela virou-se em direção à porta, e por um momento cogitou perguntar a ele o que faria com o que ela lhe havia contado, mas ela não disse nada. Ele se levantou e contornou a mesa, na esperança de ao menos poder abrir a porta para ela, mas ela foi mais rápida. Abriu a porta, olhou para ele uma última vez, sem sorrir, e saiu do gabinete.


2

Brunetti retomou a contemplação dos próprios pés, mas eles já não lhe falavam mais de coisas sem importância. Na forma de uma deidade dominante, era sua mãe que preenchia seus pensamentos, ela, já há anos uma desbravadora do território não mapeado da demência. Os temores em relação à segurança dela açoitaram sua mente com suas asas incontroláveis, apesar de ele saber que restava apenas uma, e derradeira, segurança para sua mãe, uma segurança que não era o que seu coração queria para ela, independentemente do que a razão lhe recomendava. Sem poder evitar, viu-se arrastado pelas recordações dos últimos seis anos, passando-as entre os dedos como as contas de algum tenebroso rosário.

Com um movimento inesperado e rude, fechou a gaveta com um pontapé e se levantou. Sóror Immacolata — não conseguia se referir a ela de outra maneira — havia garantido a ele que sua mãe não corria perigo, e ele não ouvira nada que provasse que alguém de fato corresse perigo. Idosos morrem, e isso era muitas vezes uma libertação para eles e para os que lhes eram próximos, como seria para... Ele voltou à mesa e pegou a lista que ela lhe havia entregado, percorrendo novamente os nomes e idades.

Brunetti começou a pensar em como poderia saber mais sobre as pessoas ali relacionadas, algo adicional sobre a vida deles e a morte. Sóror Immacolata havia fornecido as datas em que haviam falecido, o que o levaria aos atestados de óbito na prefeitura, o primeiro passo no vasto labirinto burocrático que cedo ou tarde lhe possibilitaria obter cópias de seus testamentos. Etérea, sua investigação teria de ser tão leve e etérea como uma teia de aranha, as perguntas que fizesse tão delicadas como o toque dos bigodes de um gato. Tentou se lembrar se chegara alguma vez no passado a dizer a sóror Immacolata que era um commissario de polícia. Talvez ele tivesse feito menção a isso durante uma daquelas longas tardes em que sua mãe permitia que ele lhe segurasse a mão, mas somente se a jovem que era a favorita dela ficasse no quarto com eles. Eles, ele e sóror Immacolata, teriam que ter falado de alguma coisa, considerando que a mãe de Brunetti ficava quase sempre calada por horas, cantarolando para si uma desafinada melodia. Como se o hábito que vestia tivesse amputado sua personalidade, sóror Immacolata nunca disse nada de pessoal sobre si, ao menos nada de que Brunetti se lembrasse; assim, deve ter sido numa dessas ocasiões que ele disse a ela o que fazia, nos momentos em que buscava assunto para preencher aquelas horas intermináveis e debilitantes. E ela deve ter escutado e lembrado disso, o que a fez vir procurá-lo, passado um ano, e lhe trazer sua história e seus temores.

Há alguns anos, havia certas coisas que Brunetti achava difícil, algumas vezes até impossível, de acreditar que as pessoas fossem capazes de fazer. Houve um tempo em que ele acreditou, ou talvez tentou acreditar, que havia limites para a maldade humana. Pouco a pouco, à medida que era confrontado com crimes cada vez mais horríveis e testemunhava as profundezas a que as pessoas desciam para satisfazer seus mais variados instintos — a cobiça, o mais comum deles, não era nem de longe o mais tentador —, ele vira essa sua ilusão ser destroçada por aquela imensa onda, até ver-se às vezes na posição daquele rei irlandês, aquele cujo nome jamais conseguia pronunciar de forma correta, que, assumindo uma posição à beira-mar, combatia com sua espada as ondas que sempre avançavam, enlouquecido pela audácia das águas que não se detinham.

Não ficou surpreso, portanto, que idosos pudessem ser assassinados por causa do seu dinheiro; surpreendeu-o, sim, o método utilizado, pois ao menos à primeira vista tratava-se de um esquema repleto de possibilidades de dar errado ou de ser desmascarado.

Durante os anos de treinamento no seu ofício, também aprendeu que a melhor pista a seguir era aquela deixada pelo dinheiro. O lugar onde tudo começara era um dado já oferecido: a pessoa de quem se havia pegado o dinheiro, seja pela força, seja por algum truque. A outra ponta, onde a trilha terminava, era a parte difícil de encontrar, exatamente por ser a principal, pois seria ali que também seria encontrada a pessoa que tinha sido responsável pelo truque ou pela força. Cui Bono?

Se sóror Immacolata estivesse certa — ele se forçava a empregar o condicional —, então a primeira coisa a encontrar seria o fim da trilha, e essa busca somente poderia ter início com a leitura dos testamentos.

Viu signorina Elletra na mesa dela, surpreendendo-se por ela estar atarefada diante do computador, pois esperava que ela estivesse lendo o jornal ou fazendo uma palavra cruzada, como forma de aproveitar a contínua ausência de Patta. “Signorina, o que a senhora sabe a respeito de testamentos?”, perguntou ao entrar.

“Que ainda não fiz o meu”, ela respondeu graciosa, sorrindo em seguida ao responder à pergunta de esguelha e de modo descompromissado, como o faria qualquer pessoa ainda entrando na casa dos trinta.

E quiçá não precise, Brunetti se viu torcendo por ela. Ele lhe retribuiu o sorriso, encerrando-o logo a seguir. “Bem, e quanto aos testamentos dos outros?”

Percebendo que ele falava a sério, ela se virou na cadeira e o encarou, esperando por uma explicação.

“Eu preciso descobrir os termos dos testamentos de cinco pessoas que morreram neste ano na casa de repouso San Leonardo.”

“Eles eram cidadãos venezianos?”

“Não sei. Por quê? Isso tem importância?”

“Testamentos vêm a público por intermédio do notário que os registrou, independentemente do local onde a pessoa tenha morrido. Se eles fizeram seus testamentos aqui em Veneza, então tudo o que eu preciso é do nome do notário.”

“E se eu não tiver esta informação?”

“Então fica mais complicado.”

“Complicado?”

Ela sorria um largo sorriso, sua voz controlada. “Commissario, o fato de o senhor não procurar simplesmente os herdeiros e pedir que lhe forneçam cópias dos testamentos me faz concluir que deseja que ninguém saiba que o senhor está em busca de algumas respostas”, ela sorriu novamente. “Há um ofício central onde são gravados. Os arquivos desse ofício foram informatizados há dois anos, então não deve ser difícil de obtê-los ali, mas, se os notários trabalharem em algum pequeno paese que ainda não tenha sido informatizado, então será mais complicado.”

“Se tiverem sido gravados aqui a senhorita consegue a informação?”

“Com certeza.”

“Como?”

Ela olhou para baixo, para algum ponto em sua saia, e espanou alguma partícula invisível. “O problema é que é ilegal.”

“O que é ilegal?”

“O modo como eu posso obter a informação.”

“Que é...?”

“Não creio que o senhor consiga entender, commissario, ou que eu consiga lhe explicar adequadamente, mas há meios de descobrir os códigos que franqueiam o acesso a quase todo tipo de informação. Quanto mais pública for a informação — uma prefeitura, registros civis —, mais fácil se torna descobrir o código. E, uma vez que a pessoa o obtenha, é como se... bem, é como encontrar uma casa aberta e com as luzes acesas.”

“Isso vale para todos os órgãos governamentais?”, ele perguntou, preocupado.

“Acho que o senhor vai preferir não saber”, ela respondeu, agora sem sorrir.

“E quão fácil é obter essa informação?”

“Eu diria que é algo diretamente proporcional aos talentos da pessoa que a estiver procurando.”

“E quão talentosa é a signorina ?”

A pergunta devolveu um sorriso discreto à signorina Elletra. “Esta é uma pergunta a que eu prefiro não responder, commissario.”

Ele avaliou os traços suaves do rosto dela, notando pela primeira vez duas linhas discretas que se estendiam para baixo a partir dos cantos externos de seus olhos, um resultado indubitável dos frequentes sorrisos, e achou difícil de acreditar que ela fosse uma pessoa com talentos criminosos, ou mesmo intenções criminosas.

Sem pensar nem por um momento sequer em seu juramento profissional, Brunetti perguntou: “Bem, mas se eles moravam aqui então você consegue a informação?”.

Ele percebeu como ela se conteve para esconder qualquer indício de orgulho em sua voz, e como falhou em se conter. “As gravações do ofício de registros, commissario ?”

Deliciado com o tom de condescendência empregado por uma antiga funcionária da Banca D’Italia ao pronunciar o nome de um mero funcionário público, ele assentiu.

“Posso conseguir os nomes dos principais herdeiros para depois do almoço. Cópias integrais dos testamentos podem levar mais um dia ou dois.”

Somente os jovens e belos podem se dar ao luxo de esnobar, ele concluiu. “Após o almoço será perfeito, signorina”, e deixou a relação com os nomes e as datas das mortes na mesa dela, voltando em seguida a seu gabinete.

Ao voltar à sua mesa olhou para os dois nomes que havia escrito: dr. Fabio Messini e padre Pio Cavaletti. Não conhecia nem um nem outro, mas, em uma cidade tão socialmente incestuosa como Veneza, isto não constituía impedimento nenhum para alguém à cata de informação.

Ligou então para a sala dos policiais fardados. “Vianello, será que você podia vir até aqui por um momento? E venha com o Miotti, sim?” Enquanto esperava a chegada dos dois, Brunetti começou a ticar sob os nomes, e só quando Vianello e Miotti surgiram à porta de seu gabinete foi que ele percebeu que fizera tiques no formato de cruzes. Largou a caneta de lado e fez um aceno aos policiais para que se acomodassem nas cadeiras à frente da mesa.

Quando Vianello sentou, a túnica desabotoada de seu uniforme se abriu totalmente, o que permitiu a Brunetti notar que ele parecia agora mais magro que no inverno passado.

“Tá de regime, Vianello?”, perguntou.

“Não senhor”, retrucou o sargento, surpreso por Brunetti ter percebido. “Exercício.”

“O quê?” Brunetti, a quem a noção de exercício beirava os limites do obsceno, não se preocupou em disfarçar seu estupor.

“Exercício”, repetiu Vianello. “Passo na palestra após o trabalho e fico ali por meia hora ou mais.”

“E fazendo o quê?”

“Me exercitando, senhor.”

“Quantas vezes?”

“Sempre que posso”, continuou Vianello, mas agora num tom meio evasivo.

“Mas você pode quantas vezes, afinal?”

“Ah, três ou quatro vezes por semana.”

Miotti permanecia sentado em silêncio, sua cabeça meneando no ritmo dessa estranha conversa que acompanhava. Seria essa a maneira de combater o crime?

“E quando você está lá, o que é que faz?”, prosseguiu Brunetti.

“Eu me exercito, senhor”, apegando-se ao verbo com impressionante tenacidade.

Agora realmente interessado, Brunetti inclinou-se para a frente, os cotovelos apoiados na mesa, o queixo apoiado em uma das mãos, e perguntou com malícia: “Mas de que modo? Correndo? Com cordas?”.

“Não, senhor”, Vianello respondeu, sem sorrir. “Em máquinas.”

“Que tipo de máquinas?”

“Máquinas de exercício.”

Brunetti voltou os olhos para Miotti, que, por ser jovem, talvez pudesse entender alguma coisa sobre o assunto. Mas Miotti, que tinha sua própria juventude para tomar conta do corpo por ele, desviou o olhar de Brunetti para Vianello.

“Bem”, Brunetti concluiu, ao ficar evidente que Vianello não iria tornar-se mais cooperativo, “está dando resultado.”

“Muito obrigado, senhor. O senhor bem que poderia tentar também.”

Alisando a própria barriga e sentando-se ereto em sua cadeira, Brunetti voltou a se concentrar no trabalho. “Miotti, você tem um irmão que é padre, não tem?”

“Sim, senhor”, ele respondeu, nitidamente surpreso por seu superior saber disso.

“De que tipo?”

“É um dominicano, senhor.”

“Ele está em Veneza atualmente?”

“Não, senhor. Esteve aqui por quatro anos, mas o mandaram para Novara já tem três anos, para dar aulas em uma escola só para meninos.”

“E você mantém contato com ele?”

“Sim, conversamos toda semana, e nos vemos três ou quatro vezes ao ano.”

“Bom. Quando você conversar com ele de novo eu gostaria que você lhe fizesse uma pergunta.”

“Do que se trata, senhor?”, perguntou Miotti, retirando do bolso da jaqueta um bloco de anotações e uma caneta, e agradando a Brunetti ao não lhe perguntar o porquê.

“Eu queria saber dele se ele teria algo a dizer sobre o padre Pio Cavaletti, membro da Ordem da Sagrada Cruz aqui na cidade.” Brunetti percebeu que Vianello ergueu as sobrancelhas, mas o sargento permaneceu em silêncio, apenas ouvindo.

“Algo específico que eu deva perguntar a ele, senhor?”

“Não, apenas tudo o que ele possa pensar ou lembrar.”

Miotti fez menção de falar, hesitou, e por fim perguntou: “O senhor poderia dizer mais alguma coisa sobre ele, senhor? Algo que eu possa dizer ao meu irmão?”.

“Tudo o que sei sobre ele é que é o capelão da casa di cura, perto do hospital Giustiniani.” Miotti continuava de cabeça baixa, escrevendo, o que levou Brunetti a perguntar-lhe: “Você tem alguma ideia de quem ele possa ser, Miotti?”.

O jovem policial o encarou. “Não, senhor. Nunca me aproximei dos companheiros de batina do meu irmão.”

Brunetti, em uma resposta dirigida mais ao tom do que às palavras, perguntou-lhe: “Algum motivo para isso?”.

Em vez de responder, Miotti balançou rápido a cabeça e em seguida conferiu as páginas de seu bloco de notas, acrescentando algumas poucas palavras ao que já havia escrito.

Brunetti deu uma espiada em Vianello por sobre a cabeça baixa de seu companheiro mais jovem, mas o sargento deu de ombros quase imperceptivelmente. Brunetti arregalou os olhos e indicou Minotti com um breve aceno. Interpretando o gesto do commissario como um pedido para que descobrisse os motivos da reticência do mais jovem quando voltassem à sala deles, Vianello respondeu positivamente com outro aceno.

“Algo mais, senhor?”, Vianello perguntou.

“Hoje à tarde”, respondeu Brunetti, pensando nas cópias dos testamentos que a signorina Elettra lhe havia prometido, “devo ter os nomes de algumas pessoas que pretendo procurar.”

“E o senhor gostaria que eu o acompanhasse?”

Brunetti fez que sim com a cabeça. “Às quatro da tarde”, decidiu, raciocinando que assim teria tempo suficiente para almoçar e voltar. “Bem, por ora, acho que é só isso. Obrigado, senhores.”

“Quando der a hora subirei para pegar o senhor”, disse Vianello. Enquanto o mais jovem se dirigia para a porta, Vianello se voltou, apontou com o queixo para um Minotti que já ia sumindo e acenou para Brunetti. Se houvesse algo a ser descoberto a respeito da relutância de Minotti em se relacionar com os amigos de bata do irmão, Vianello iria ter a resposta para isso naquela tarde.

Depois que eles saíram, Brunetti abriu uma gaveta e tirou dali um exemplar das Páginas Amarelas. Procurou no índice dos médicos, mas não encontrou nenhum Messini na lista de Veneza. Procurou na lista normal de assinantes e encontrou três deles, um dos quais, certo doutor Fabio, com endereço em Dorsoduro. Anotou o telefone e o endereço desse Messini, em seguida pegou o telefone e discou outro número de memória.

No terceiro toque, atendeu uma voz masculina. “Allò.”

“Ciao, Lele”, saudou Brunetti, reconhecendo a voz rouca do pintor. “Estou ligando para perguntar sobre um vizinho seu, o doutor Fabio Messini.” Se alguém morava em Dorsoduro, Lele Bortoluzzi, cuja família estava em Veneza desde as Cruzadas, com certeza saberia de quem se tratava.

“É aquele do afegão?”

“Vocês está falando do cachorro ou da esposa?”, perguntou Brunetti gargalhando.

“Se for quem eu estou pensando, a esposa é romana e o cachorro é afegão. Uma criatura bela e graciosa. Assim como a esposa, pensando bem. Ela o leva para passear pela galeria pelo menos uma vez por dia.”

“O Messini que estou procurando tem uma casa de repouso próxima do Giustiniani.”

Lele, que sabia tudo, disse: “É o mesmo que administra o lugar em que Regina está internada, não é?”.

“É.”

“Como é que ela está, Guido?” Lele era apenas alguns anos mais novo que a mãe de Brunetti, e tinha convivido com ela por toda a vida, pois fora um dos melhores amigos de seu marido.

“Na mesma, Lele.”

“Que Deus olhe por ela, Guido. Sinto tanto.”

“Obrigado”, disse Brunetti. Era só o que se podia dizer. “E o Messini?”

“Até onde consigo me lembrar, ele começou aqui, com um ambulatório, há vinte anos. Mas então, após ter se casado com a romana, Claudia, usou o dinheiro da família dela para começar a casa di cura, e após isso deixou de exercer a medicina. Bem, pelo menos eu acho que deixou. Acho que agora ele é o diretor de quatro ou cinco instituições do tipo.”

“Você o conhece?”

“Não. Esbarro com ele vez ou outra. Raramente. Mas por certo não tão raramente quanto as vezes em que encontro sua esposa.”

“De onde você a conhece?”

“Ela comprou alguns quadros meus de uns tempos pra cá. Gosto dela. Uma mulher inteligente.”

“Com bom gosto para pinturas?”

Lele soltou uma gargalhada no outro lado da linha. “A modéstia me impede de responder a isso.”

“Tem alguma fofoca sobre ele? Ou sobre eles?”

Houve uma longa pausa, ao fim da qual Lele disse: “Nunca soube de nada. Mas posso sondar por aí se você quiser”.

“Apenas se ninguém perceber que você está sondando”, disse Brunetti, mesmo sabendo que não era necessário.

“Minha língua será uma pluma.”

“Ficarei muito agradecido, Lele.”

“Não tem nada a ver com a Regina, tem?”

“Não, nada.”

“Bom. Ela foi uma mulher maravilhosa, Guido.” Então, percebendo que conjugara o verbo no passado, Lele se apressou em acrescentar: “Te ligo de volta se souber de algo”.

“Obrigado, Lele.” Brunetti chegou bem próximo de recomendar a ele que fosse cuidadoso, mas refletiu que qualquer um que, como Lele, tivesse prosperado no mundo das artes e antiguidades venezianas forçosamente teria bem distribuídas em si quantidades proporcionais de aço e pluma, e então despediu-se apenas com um rápido até logo.

O meio-dia ainda estava longe, mas Brunetti sentiu-se atraído para fora do seu gabinete pelo rumor da primavera que estivera armando o seu cerco à cidade por toda a última semana. E, ademais, ele era o chefe, então o que o impediria de simplesmente levantar e sair se assim o quisesse? E também não se sentiu obrigado a parar para dizer à signorina Elletra para onde estava indo; provavelmente ela estava às voltas com crimes informáticos e ele não queria ser nem um acessório, muito menos, verdade seja dita, um obstáculo, portanto deixou tudo ao encargo dela e tomou o rumo de Rialto direto para casa.

Ao sair do apartamento pela manhã, estava frio e úmido, mas agora, à medida que o dia ia esquentando, ele se sentia cozinhando em sua combinação de paletó e sobretudo. Tirou os dois e pôs o cachecol no bolso, mas ainda assim continuava tão quente que sentiu escorrer pelas costas a primeira transpiração do ano. Sentiu-se aprisionado em sua blusa de lã, e de repente lhe veio o pensamento insidioso de que tanto as calças quanto o paletó estavam mais apertados que no começo do inverno, da primeira vez que vestira o terno. Ao pegar a ponte Rialto, acelerou num jorro repentino de leve energia e subiu trotando os primeiros degraus. Alguns degraus depois, esbaforido, teve de desacelerar e voltar a caminhar normalmente. Quando chegou ao topo, parou e olhou para a esquerda e adiante, em direção à curva que adentrava o Grande Canal na direção da praça San Marco e do Palácio dos Doges. O sol se refletia na superfície das águas por onde singravam as primeiras gaivotas da estação.

Fôlego recuperado, começou a descida pelo outro lado, tão satisfeito com a suavidade do dia que nem se irritou, como normalmente, com as ruas repletas e os turistas a se esbarrar. Caminhando por entre as filas duplas de barracas de frutas e legumes, notou que os primeiros aspargos já estavam à venda e imaginou se conseguiria convencer Paola a lhe preparar alguns. Bastou uma espiada nos preços para perceber que não, no mínimo por mais uma semana, quando inundariam o mercado e o preço cairia à metade. Saltitando por ali, examinou os legumes e os preços, de quando em quando acenando ou cumprimentando seus conhecidos. Na última barraca do lado direito viu uma folha familiar e se aproximou para ver mais de perto.

“Isso é puntarelle ?”, perguntou, surpreso por encontrá-las no mercado assim tão cedo.

“Sim, e é a melhor do Rialto”, garantiu-lhe o merceeiro, o rosto rosado pelos anos bebendo vinho. “Seis mil liras o quilo, o melhor preço.”

Brunetti se recusou a responder a tamanha insânia. Em seus tempos de garoto, cobravam cento e poucas liras o quilo de puntarelle, e não era uma verdura que agradava a todo mundo; a maioria a comprava para dar aos coelhos, que criavam ilegalmente nos quintais ou jardins dos fundos de suas casas.

“Me dê meio quilo”, disse, puxando algumas notas do bolso.

O merceeiro inclinou-se sobre as pilhas de legumes dispostos à sua frente e apanhou um maço generoso das folhas de um verde marcante. Como um mágico, fez aparecer do nada uma folha de papel, colocou-a na balança, pôs as folhas em cima e, num estalo, ajeitou-as em um belo embrulho. Depositou o embrulho em cima de uma caixa de bem-arrumadas fileiras de abobrinhas e estendeu a mão. Brunetti deu a ele três notas de mil liras, dispensou o saco plástico e tomou o caminho de casa.

Na altura do relógio do paredão da San Giacomo ele dobrou à esquerda e pegou a San Aponal, direto para casa. Sem pensar, virou a primeira à direita e entrou no De Mori, onde pediu uma porção de prosciutto enroladinho, um pequeno filão de pão e uma taça de Chardonnay para amenizar o sal da carne.

Pouco depois, e novamente resfolegante em razão dos mais de noventa degraus das escadas que tinha de subir, abriu a porta de seu apartamento e foi saudado pela mistura de odores que aqueciam sua alma e lhe sopravam canções sobre lar, amor, família e alegria.

Embora o delirante odor de alho e cebolas revelasse que ela estava em casa, ainda assim Brunetti chamou ao entrar: “Paola, já chegou?”.

Um “Si ” em voz alta vindo da cozinha foi a resposta, o que o levou a tomar o corredor para encontrá-la. Colocou o embrulho com as folhas na mesa da cozinha, deu-lhe um beijo e aproveitou para dar uma espiada no que ela estava preparando na panela à sua frente.

Tiras amarelas e vermelhas de pimentão borbulhavam num delicioso molho de tomate, do qual emanava um aroma de linguiça. “Tagliatelle?”, ele perguntou. Era sua massa fresca favorita.

Ela sorriu e inclinou-se para mexer o molho. “Mas claro.” Então, voltando-se para a mesa, viu o embrulho. “O que temos aí?”

“Puntarelle. Pensei que podíamos fazer aquela salada ao molho de anchovas.”

“Boa ideia”, ela disse, com deleite na voz. “Onde você achou?”

“É daquele cara que bate na mulher.”

“Como é que é?”, ela respondeu, confusa.

“O da última barraca à direita antes de chegar ao mercado de peixes, o cara com rosácea.”

“E ele bate na mulher?”

“Bom, nós fichamos ele na questura três vezes. Mas a mulher acaba sempre retirando as acusações depois que ele fica sóbrio.”

Brunetti observou-a enquanto ela explorava em sua mente o arquivo dos diferentes merceeiros do lado direito do mercado. “A mulher com o avental marrom?”, perguntou por fim.

“Ela.”

“Eu jamais poderia imaginar.”

Brunetti deu de ombros.

“Não há nada que você possa fazer?”, ela perguntou.

Como estava com fome e discutir o assunto iria atrasar sua refeição, ele foi sucinto. “Não. Não é da nossa conta.”

Pendurou o sobretudo e o paletó no encosto de uma cadeira da cozinha e foi até a geladeira servir-se de um pouco de vinho. Passando por ela para apanhar uma taça, murmurou: “Humm, está cheirando bem”.

“Será que realmente não é da sua conta?”, ela perguntou, e ele soube, tanto pelo tom que ela empregava quanto pelos longos anos de convívio, que ela tinha encontrado Uma Causa.

“Não, não é, a não ser que ela faça uma denúncia formal, algo que ela nunca se dispôs a fazer.”

“Talvez ela tenha medo dele.”

“Paola”, ele respondeu, com esperanças de evitar o assunto, “ela tem o dobro do tamanho dele. Deve pesar uns cem quilos. Se ela quiser, tenho certeza que ela consegue jogar ele pela janela.”

“E?”, ela perguntou, ouvindo as palavras não ditas em sua voz.

“E parece que ela não quer, eu diria. Eles brigam, a coisa sai dos trilhos e ela nos chama.” Ele encheu uma taça e tomou um gole, torcendo para que o assunto estivesse encerrado.

“E?”

“E aí nós vamos até lá, pegamos ele, levamos à questura e o prendemos até a chegada dela na manhã seguinte. Acontece mais ou menos de seis em seis meses, mas nunca encontramos nenhum sinal grave de violência nela, que fica muito satisfeita em levá-lo de volta para casa.”

Paola refletiu sobre isso por alguns momentos, mas acabou deixando para lá. “Estranho, não?”

“Muito”, concordou Brunetti, sabendo pelos anos de experiência que Paola decidira encerrar o assunto.

Ao se abaixar para pegar o sobretudo e o paletó para levá-los novamente pelo corredor, viu um envelope marrom sobre a mesa.

“É o boletim da Chiara?”, perguntou enquanto apanhava o envelope.

“É”, disse Paola, jogando sal na panela de água que fervia na boca de trás do fogão.

“E o que diz aí? Bom?”

“Excelente em quase tudo, com uma exceção.”

“Educação física”, ele arriscou, no escuro, já que Chiara havia se tornado de repente a primeira de sua turma em gramática, mantendo essa posição pelos últimos seis anos. Assim como ele, sua filha preferia ficar largada por aí a fazer exercícios físicos, daí ser essa a única matéria em que, ele imaginava, ela pudesse estar indo mal.

Ele abriu o envelope, puxou a folha e passou os olhos por ela.

“Religião? Religião?”

Paola permaneceu calada e então ele continuou, passando a ler as observações acrescentadas pelo professor explicando por que dera a ela o conceito “insatisfatório”.

“‘Faz muitas perguntas?’”, ele leu. “‘Comportamento desagregador?’ O que significa isto?” Brunetti exigia uma resposta enquanto punha a folha na frente de Paola.

“Você vai ter de perguntar a ela quando ela chegar em casa.”

“Ela ainda não chegou?”, ele perguntou, e passou por sua cabeça, com raiva, que Chiara sabia do boletim negativo e estava se escondendo em algum lugar, sem querer voltar para casa. Brunetti deu uma espiada no relógio e percebeu que ainda era cedo; ela não voltaria para casa senão dali a quinze minutos.

Paola, que estava colocando quatro pratos à mesa, afastou o marido com um movimento dos quadris.

“Ela comentou isso com você?”, ele perguntou, abrindo caminho para ela.

“Nada que fosse digno de nota. Ela disse que não gosta do padre, mas sem explicar o porquê. Ou talvez tenha sido eu que não perguntei o motivo.”

“Que tipo de padre ele é?”, perguntou Brunetti, puxando uma cadeira e sentando-se à mesa.

“O que você quer dizer com ‘que tipo’?”

“É apenas um padre de paróquia, comum, ou é membro de alguma ordem?”

“Acho que é um padre comum, da igreja da escola.”

“San Polo?”

“É.”

Enquanto conversavam, Brunetti ia lendo as observações dos outros professores, todos unânimes nos elogios à inteligência e ao empenho de Chiara. O professor de matemática, na verdade, se referia a ela como “uma aluna extraordinariamente talentosa, com um dom para a matemática”, e o de italiano chegava mesmo a empregar a palavra “elegância” para se referir à escrita dela. Em nenhum dos comentários havia palavras de advertência, traços daquela inclinação natural dos professores de enviar um lembrete austero para afastar o perigo da vaidade que era o resultado esperado de cada palavra de louvor.

“Não consigo entender”, disse Brunetti, colocando a pagella de volta no envelope e jogando-o gentilmente de volta à mesa. Refletiu por um momento, pensando na melhor forma de exprimir suas dúvidas, e perguntou a Paola: “Você não disse nada a ela, disse?”.

Paola era famosa por vários motivos entre o seu vasto círculo de amigos, motivos esses que se alternavam muito, mas todos que a conheciam a consideravam una mangia-preti, uma come-padres. A ira anticlerical que por vezes baixava nela ainda conseguia surpreender Brunetti, mesmo que ele dificilmente se surpreendesse com qualquer coisa que Paola dissesse ou fizesse. Mas este era o assunto delicado que, mais do que qualquer outro, tinha o poder de — sem nenhum aviso prévio e quase sempre sem falhar — despertar nela uma raiva fulminante.

“Você sabe que eu aceito”, ela disse, dando as costas para o forno e o encarando. Brunetti jamais conseguira compreender como Paola tinha concordado tão prontamente com a sugestão das famílias de ambos que seus filhos fossem batizados e tivessem aulas de religião em seus colégios. “Faz parte da tradição ocidental”, ela costumava responder com fria polidez. Não sendo imbecis, os filhos aprenderam rapidamente que Paola não era a pessoa a quem deviam fazer perguntas sobre questões de fé, apesar de terem aprendido com a mesma rapidez que o conhecimento da mãe sobre história da Igreja e das disputas teológicas era virtualmente enciclopédico. Sua exposição sobre as origens da heresia ariana era considerada um estudo de objetividade equilibrada e atenção acadêmica ao detalhe; sua denúncia dos séculos de carnificina que resultaram desse confronto de opiniões na Igreja foi, para fazer uso de uma palavra fria, candente.

Por todos estes anos, ela mantivera sua palavra e jamais falara com franqueza, pelo menos na frente dos filhos, contra o cristianismo, ou, na verdade, contra qualquer religião. Portanto, qualquer antipatia em relação à religião, ou quaisquer ideias que pudessem ter resultado no “comportamento desagregador” de Chiara, não haviam tido origem em nada que Paola pudesse ter dito, ao menos não diretamente.

Ao ouvirem o som da porta se abrindo, os dois se voltaram, mas não era Chiara e sim Raffi que acabava de entrar no apartamento. “Ciao, mamma! ”, ele cumprimentou, indo direto para o quarto para guardar seus livros, “Ciao, papà! ”. Pouco depois, veio até a cozinha. Abaixou-se para beijar Paola no rosto, e Brunetti, ainda sentado, pôde ver seu filho de uma perspectiva diferente, percebendo como o menino espichara.

Raffi levantou a tampa da panela e, ao ver o que estava lá dentro, beijou a mãe novamente. “Estou morto de fome, mamma. Quando é que vamos comer?”

“Assim que a sua irmã chegar”, respondeu Paola, virando-se para baixar o fogo da água que agora fervia.

Raffi ergueu a manga da camisa para ver que horas eram. “Você sabe que ela sempre chega na hora. Daqui a sete minutos ela vai entrar por aquela porta, então por que já não começa a servir a massa?” Ele esticou o braço por cima da mesa, abriu um pacote de grissini e tirou três bem finos. Colocou as pontas deles na boca e, como um coelho roendo hastes compridas de capim, passou a roê-los até o fim. Depois pegou outros três e repetiu o ritual. “Vamos lá, mamma, estou morto de fome, e, além disso, tenho que passar no Massimo esta tarde para estudar física.”

Paola colocou uma travessa de berinjelas fritas na mesa, concordou de repente com um aceno e começou a despejar as tiras fresquinhas de massa na água fervente.

Brunetti tirou a pagella do envelope e passou-a a Raffaele. “Você sabe alguma coisa sobre isto?”, perguntou ao filho.

Foi apenas de uns anos pra cá, coincidindo com o abandono do que seus pais definiam como a “fase Karl Marx”, que os boletins do próprio Raffi tinham passado a apresentar a constante perfeição que os da irmã vinham apresentando desde que ela entrara na escola, mas, mesmo quando confrontado com seus piores desastres acadêmicos daquela fase, Raffi nunca deixou de se orgulhar dos resultados alcançados pela irmã.

Ele olhou o boletim de cima a baixo e o devolveu ao pai sem dizer nada.

“Bem?”, perguntou Brunetti.

“Desagregador, hein?”, foi seu comentário lacônico.

Paola, mexendo a massa, conseguiu de algum modo dar umas batidas pesadas no lado da caçarola.

“Você sabe alguma coisa sobre isto?”, Brunetti repetiu.

“Não, na verdade, não”, Raffi disse. Estava na cara que ele temia explicar o que quer que soubesse. Como o pai e a mãe ficaram calados, Raffi disse, em tom aflito: “A mamma vai ficar uma fera”.

“Com o quê?”, perguntou Paola, afetando tranquilidade.

“Com...”. Começou Raffi, mas foi interrompido pelo som da chave de Chiara na porta.

“Ah, eis que chega a culpada”, disse o irmão, e serviu-se de um copo de água mineral.

Os três ficaram observando Chiara pendurar sua blusa em um gancho no corredor, largar os livros e em seguida colocá-los em uma cadeira. Em seguida ela veio até eles pelo corredor e parou à porta. “Quem foi que morreu?”, ela perguntou, sem nenhum tom de ironia.

Paola se esticou e puxou um escorredor de macarrão do armário. Colocou-o na pia e despejou nele a massa e a água fervente. Chiara continuava à porta. “Que é que há?”, perguntou.

Enquanto Paola se ocupava em pôr a massa e o molho em uma grande travessa, Brunetti explicou à filha: “Seu boletim chegou”.

A expressão de Chiara desmoronou, um “Oh” sendo o melhor que ela encontrou para dizer. Ela se esgueirou por trás de Brunetti e tomou seu lugar à mesa.

Começando por Raffi, Paola serviu quatro porções generosas de massa e em seguida ofereceu-lhes parmesão ralado, que polvilhou generosamente em seus pratos. E começou a comer. Todos começaram a comer.

Com o prato vazio estendido à mãe pedindo mais, Chiara perguntou: “Religião, né?”.

“É. Sua nota foi muito baixa”, respondeu Paola.

“Baixa quanto?”

“Três.”

Chiara conteve o espanto, mas não muito.

“Você sabe o motivo de uma nota tão baixa?”, perguntou Brunetti, pondo as mãos sobre o seu prato vazio para sinalizar a Paola que estava satisfeito.

Chiara começou a comer sua segunda porção enquanto Paola colocava o restante no prato de Raffi. “Não, acho que não sei o motivo”.

“Você não estudou?”, perguntou Paola.

“Não tem o que estudar”, disse Chiara, “somente aquele catecismo imbecil. Dá para decorar tudo numa tarde.”

“Então?”, ponderou Brunetti.

Raffi pegou uma fatia de pão do cesto no centro da mesa, partiu ao meio e começou a limpar o molho do seu prato. “É o padre Luciano?”, ele perguntou à irmã.

Chiara assentiu, largou o garfo e olhou para o fogão para ver o que havia mais para o almoço.

“Você conhece esse padre Luciano?”, Brunetti perguntou ao filho.

O rapaz revirou os olhos. “Caramba! E quem não conhece?” Então, voltando-se para a irmã, perguntou: “Você já se confessou com ele, Chiara?”.

Ela balançou a cabeça rapidamente de um lado para o outro, mas não disse nada.

Paola levantou-se da mesa e retirou os pratos de massa dos aparadores. Dirigiu-se então para o forno, abriu-o e tirou dali uma travessa de cotoletta milanese, colocou alguns limões cortados em gomos em torno da travessa e levou para a mesa. Enquanto Brunetti pegava dois escalopes, Paola serviu-se de uma berinjela, sem dizer palavra.

Percebendo que Paola queria ficar fora disso, Brunetti perguntou a Raffi. “Como é que é se confessar com ele?”

“Ah, ele é popular entre os meninos”, disse Raffi, servindo-se com a colher de dois escalopes.

“Por quê?”

Em vez de responder, Raffi apontou Chiara com o olhar. Tanto Brunetti quanto Paola viram que ela balançou a cabeça quase imperceptivelmente, abaixando-a a seguir e se concentrando totalmente em seu almoço.

Brunetti largou o garfo, Chiara não voltou a erguer o olhar e Raffi olhou para Paola, que continuou calada. “Muito bem”, disse Brunetti, a voz mais grave do que ele gostaria que soasse. “O que é que está havendo aqui? O que é tem esse padre Luciano que não podemos saber?”

Ele passou o olhar de Raffi, que se recusava a encará-lo, para Chiara, e se surpreendeu ao perceber que o rosto dela estava fortemente ruborizado.

Amaciando a voz, perguntou: “Chiara, você permite que o Raffi nos diga o que ele sabe?”.

Ela assentiu, mas não levantou o olhar.

Raffi imitou o pai e largou o garfo. E sorriu em seguida. “Não é nada de mais, papà.”

Brunetti não disse nada. Paola parecia uma muda.

“É o que ele diz aos meninos. Quando eles confessam coisas de sexo.”

“Coisas de sexo?”

“É papà, o senhor sabe, coisas que eles fazem.”

Brunetti sabia. “E o que ele faz, o padre Luciano?”

“Ele pede que eles descrevam tudo. Que falem sobre o que fizeram.” Raffi fez um ruído, algo entre um risinho e um grunhido, e parou de falar.

Brunetti olhou para Chiara e viu que o rubor tinha se aprofundado ainda mais.

“Entendo.”

“É estranho mesmo”, disse Raffi.

“Ele fez isso com você alguma vez?”

“Ah, não, eu parei de me confessar há anos. Mas ele faz isso com os meninos mais novos.”

“E com as meninas”, acrescentou Chiara, num tom de voz bem suave, tão suave que Brunetti não lhe perguntou mais nada.

“E isso é tudo o que ele faz?”, Brunetti perguntou a Raffi.

“É tudo o que eu sei, papà. Tive aula de religião com ele há uns quatro anos, e a única coisa que ele exigia de nós então era que decorássemos o catecismo e o recitássemos para ele. Mas ele costumava dizer coisas sujas para as meninas.” Voltando-se para a irmã, Raffi perguntou: “Ele ainda faz isso?”.

Ela assentiu.

“Alguém quer mais cotoletta ?”, Paola perguntou em um tom de voz absolutamente normal. Recebeu em resposta duas negativas com a cabeça e um grunhido e tomou isso como resposta suficiente para retirar a travessa da mesa. Não teve salada naquele dia e ela tinha planejado servir apenas fruta como sobremesa. Mas mudou de ideia, abriu uma caixa de papelão que estava em cima do armário e tirou dali um bolo bem massudo, recheado de frutas frescas e coberto de creme, que ela tinha planejado levar para a universidade naquela tarde e oferecer aos colegas depois da reunião mensal.

“Chiara, meu amor, você pode pegar os pratos?”, pediu à filha enquanto puxava uma grande faca de prata de uma gaveta.

Os pedaços que ela serviu, Brunetti notou, eram grandes o bastante para provocar em todos um choque de insulina, mas a doçura do bolo, depois o café, seguidos então de uma conversa sobre a doçura semelhante do primeiro dia de fato da primavera foram suficientes para restaurar algum tipo de tranquilidade à família. Terminado o almoço, Paola informou que lavaria a louça e Brunetti resolveu ler o jornal. Chiara sumiu para dentro do seu quarto e Raffi saiu para estudar física com seu amigo. Nem Brunetti nem Paola trouxeram o assunto novamente à baila, embora ambos soubessem que não seria esta a última vez que ouviriam falar do padre Luciano.


3

Ao retornar à questura após o almoço, Brunetti fez o trajeto com o sobretudo jogado sobre os ombros, feliz com a suavidade do dia, confortável e aquecido após a lauta refeição. Recusava-se a admitir que seu paletó estava apertado, atribuindo teimosamente ao inesperado calor que fazia a sensibilidade que experimentava ao peso da indumentária. Além do mais, não era só ele que ganhava um ou dois quilos a mais no inverno, o que provavelmente não causava mal algum, até tornando as pessoas resistentes a doenças e coisas do tipo.

Ao começar a descer os degraus da Rialto, viu um número oitenta e dois se movendo ao longo do embarcadero à sua direita, e correu, esbaforido, para pegá-lo, o que conseguiu fazer no exato momento em que este se afastava da doca para o centro do Grande Canal. Foi para o lado direito do barco, mas preferiu ficar no convés, feliz com a brisa e com o reflexo da luz a dançar sobre as águas. Viu que se aproximavam da Calle Tiepolo pela direita e deu uma espiada por ela, buscando os parapeitos do terraço de seu apartamento, mas o barco passou muito rápido para que ele pudesse ao menos vislumbrá-los, e ele voltou a se concentrar no canal.

Brunetti sempre divagava a respeito de como teria sido viver ali na época da Mais Sereníssima República, ter feito essa grande travessia apenas pela força dos remos, em um deslocamento silencioso, sem motores ou buzinas, um silêncio quebrado apenas pelo comando “Ouie ” gritado pelos barqueiros e pelo marulho dos remos na água. Tudo havia mudado: os mercadores de hoje mantinham-se em contato por meio dos detestáveis telefonini, não mais por galeões de velas estufadas. Até mesmo o ar pesava do miasma da fumaça e da poluição que flutuava vinda da terra; não havia mais brisa marítima que fosse capaz de deixar a cidade totalmente limpa. A única característica que a passagem dos séculos tinha deixado incólume fora a milenar tradição de venalidade, que deixava Brunetti sempre incomodado por ser incapaz de chegar a uma conclusão quanto a isso ser bom ou mau.

Ele tinha planejado descer na San Samuele e fazer a longa caminhada até San Marco, mas, ao pensar na multidão que com certeza tinha sido incentivada a sair às ruas pelo clima ameno, decidiu permanecer no barco, saltando apenas na San Zaccaria. Dali voltou até a questura, chegando pouco depois das três e aparentemente antes da maior parte dos policiais.

Já em seu gabinete, notou que os papéis em sua mesa haviam proliferado — seriam eles capazes de se reproduzir? — enquanto ele estivera almoçando. Como combinado, signorina Elettra deixara para ele uma bem datilografada lista com os principais herdeiros das pessoas cujos nomes sóror Immacolata — quer dizer, Maria Testa, ele se corrigiu — lhe havia fornecido. A signorina havia conseguido também seus endereços e números de telefone. Passando os olhos pela lista, Brunetti notou que três deles moravam em Veneza, um quarto em Turim e que o último dos testamentos listava os nomes de seis pessoas, nenhuma delas moradora de Veneza. Em anexo, uma nota datilografada da signorina lhe informava que ela teria as cópias dos testamentos para mais tarde.

Por um momento considerou ligar para marcar uma entrevista, mas logo refletiu que sempre havia certa vantagem em aparecer sem avisar, pelo menos para a primeira entrevista, e, se possível, de surpresa, o que o levou a organizar os endereços na mais prática ordem geográfica em seu mapa mental da cidade, após o que pôs a lista no bolso de seu paletó. A vantagem propiciada pela surpresa não mantinha relação nenhuma com a culpa ou a inocência das pessoas com quem ele iria falar, mas tão somente com o fato, que ele aprendera da longa experiência, de que a surpresa sempre levava as pessoas a falar a verdade.

Concentrou-se então nos outros papéis sobre a mesa e começou a ler. Após concluída a leitura do segundo, reclinou-se na cadeira, puxou a pilha para perto e continuou a ler. Passados não mais do que alguns minutos, o tédio dos relatórios associado ao conforto do gabinete e a seu processo digestivo conduziram as mãos de Brunetti a seu colo e fizeram seu queixo se abandonar em seu peito. Pouco depois, acordou assustado com o som de uma porta batendo no corredor lá fora. Balançou a cabeça, esfregou o rosto com as mãos algumas vezes e desejou ter um café à mão. Em vez disso, olhou para cima só para ver Vianello aguardando à porta, porta que, Brunetti percebia agora, ficara aberta enquanto ele cochilava.

“Boa tarde, sargento”, ele disse, recebendo Vianello com o sorriso de um homem que se sentia em pleno controle de todos na questura. “O que o traz aqui?”

“Tínhamos combinado que eu viria apanhá-lo, chefe. São quinze para as quatro.”

“Mas já?”, disse Brunetti olhando para o seu relógio.

“Sim, senhor. Passei por aqui antes, mas o senhor estava ocupado.” Vianello deu um minuto para que o commissario entendesse o comentário, e acrescentou: “Estou com o barco esperando lá fora, senhor”.

Enquanto desciam pelos degraus da questura, Brunetti perguntou: “Você conseguiu falar com o Miotti?”.

“Sim, senhor. Foi como eu esperava.”

“O irmão dele é gay?”, Brunetti perguntou, sem se dar nem ao trabalho de olhar para Vianello.

Vianello parou no meio da escada e, quando Brunetti se voltou para encará-lo, perguntou: “Como é que o senhor sabia?”.

“Ele parecia incomodado em relação ao irmão e seus amigos clérigos, e eu não consegui pensar em nada mais relacionado a um padre que pudesse incomodar Miotti. Ele não é bem o mais liberal dentre nós.” Após refletir por um momento, Brunetti acrescentou: “E não há nada de surpreendente num padre ser gay”.

“Eu diria que seria surpresa um que não fosse”, Vianello ressaltou, e tornou a descer a escadaria. Passou então a concentrar-se em Miotti, não achando necessário nenhuma introdução adicional a Brunetti. “Mas o senhor sempre afirmou que ele é um bom policial, senhor.”

“Não é preciso ser liberal para ser um bom policial, Vianello.”

“Não, acho que não”, assentiu Vianello.

Pouco depois, saíram da questura para encontrar Montisi, o piloto, que os aguardava em uma lancha da polícia. Tudo brilhava: os componentes de latão do barco, um dos distintivos de metal no colarinho de Montisi, as novas folhas verdes das trepadeiras que voltavam à vida sobre o muro através do canal, uma garrafa de vinho à deriva sob a água, esta por si só um campo luminoso. Sem outro motivo que não a claridade, Vianello abriu totalmente os braços e sorriu.

A atenção de Montisi foi atraída pelo movimento e ele arregalou os olhos para Vianello, que, apanhado entre o êxtase e o embaraço, transmudou seu movimento no espreguiçar de um escriturário cansado de estar sentado, mas logo um casal de andorinhões enamorados passou num rasante à água e Vianello deixou de se preocupar com as aparências. “É primavera”, cumprimentou alegremente o piloto e saltou para o convés, ao seu lado. Deu um tapinha nos ombros de Montisi, sua alegria de repente exsudando.

“Isso tudo é resultado de suas aulas de ginástica?”, perguntou Brunetti enquanto vinha a bordo.

Montisi, que parecia não estar familiarizado com a recente obsessão de Vianello, encarou o sargento com expressão de desgosto, deu as costas, ligou o motor do barco e conduziu a lancha para o estreito canal.

Sem se deixar afetar, Vianello permaneceu no convés enquanto Brunetti foi para baixo, até a cabine. Pegou um guia da cidade que estava em uma prateleira situada em um dos lados da cabine e conferiu a localização dos três endereços na lista da signorina. Dali, observou a interação dos dois homens: seu sargento, possuído por altas vibrações e sem o mínimo constrangimento por isso, como um adolescente; o piloto cismado, olhando para frente enquanto eles entravam no bacino da San Marco. Enquanto observava, Brunetti viu Vianello pousar a mão sobre o ombro de Montisi e apontar para o leste, chamando a atenção do piloto para um veleiro que vinha na direção deles, com as velas enfunadas pela fresca brisa primaveril. Montisi anuiu uma única vez, mas voltou a se concentrar em seu curso. Vianello inclinou a cabeça para trás e deu uma gargalhada, projetando o som grave até a cabine no fundo.

Brunetti resistiu até chegarem ao meio do bacino, quando se rendeu então à contagiante felicidade de Vianello e passou ao convés. Assim que pôs os pés para fora, uma onda provocada pela passagem de uma balsa do Lido atingiu-os de costado, desequilibrando Brunetti e jogando-o de encontro à parte baixa do barco. A mão de Vianello veio em seu auxílio, agarrando Brunetti pela manga, recompondo-o e sem largar do braço de seu superior até que o barco se estabilizasse, após o que o liberou, dizendo: “Nessa água não”.

“Ficou com medo que eu me afogasse?”

Montisi se intrometeu. “Mais provável que o cólera o infectasse.”

“Cólera?”, Brunetti perguntou, rindo de seu exagero, a primeira tentativa de ser engraçado que ele se lembrava de ter ouvido partir de Montisi.

Montisi chacoalhou a cabeça para um e outro lado e encarou Brunetti: “Cólera”, repetiu.

Quando Montisi voltou ao leme, Vianello e Brunetti encararam-se como colegiais culpados e Brunetti teve a impressão de que Vianello se esforçara muito para não irromper em gargalhadas.

“Quando eu era moleque”, disse Montisi sem aviso, “eu costumava nadar em frente de casa. Simplesmente mergulhava na água do lado do Canale di Cannaregio. Dava pra enxergar o fundo. Dava pra ver os peixes, caranguejos. Agora, só se consegue enxergar lama e fezes.”

Vianello e Brunetti trocaram olhares novamente.

“Quem quer que coma um peixe saído dessa água é um maluco”, disse Montisi.

No final do ano passado foram informados vários casos de cólera, mas no sul, onde esse tipo de coisas acontece. Brunetti lembrou que a vigilância sanitária chegara a fechar o mercado de peixes em Bari e alertou os moradores para que evitassem se alimentar de peixe, o que equivalia, pensava ele, a prevenir as vacas contra comer grama. As chuvas de outono e o aumento das marés tiraram o caso das páginas dos jornais nacionais, mas não antes que Brunetti começasse a se perguntar se era possível que aquilo se repetisse ali, no norte, e quão prudente seria se alimentar de qualquer coisa que procedesse das cada vez mais pútridas águas do Adriático.

Quando a lancha atracou na parada de gôndolas do lado esquerdo do palazzo Dario, Vianello apanhou a ponta de uma corda enrolada e saltou para a doca. Inclinando-se para trás ele aproximou o barco da doca enquanto Brunetti desembarcava.

“O senhor quer que eu o espere, commissario ?”, perguntou Montisi.

“Não, não precisa se preocupar. Eu não sei quanto tempo isso vai nos tomar”, respondeu Brunetti. “Pode voltar.”

Montisi levou a mão vagarosamente até o topo do seu quepe, um gesto que era ao mesmo tempo uma saudação e uma despedida. Reverteu o motor e conduziu o barco para dentro do canal, sem sequer se voltar para observar os dois homens que permaneciam em seu lugar de desembarque.

“Para onde iremos primeiro?”, perguntou Vianello.

“Dorsoduro 723. Fica mais acima, perto do Guggenheim, à esquerda.”

Os dois tomaram a estreita calle e dobraram a primeira à direita. Brunetti se apanhou ainda desejando um café, ficando então surpreso por não haver bar algum em nenhum dos lados da rua.

Ao cruzarem com um senhor que caminhava com seu cachorro, Vianello foi para trás de Brunetti para permitir a passagem de todos, mas sem parar de falar sobre o que Montisi havia dito. “O senhor acha mesmo que a água é tão ruim assim?”, perguntou Vianello.

“Ô.”

“Mas tem gente que ainda nada no Canale della Giudecca”, insistiu o sargento.

“Quando?”

“Redentore.”

“Estão todos bêbados”, disse Brunetti encerrando o assunto.

Vianello deu de ombros e em seguida parou, acompanhando Brunetti.

“Acho que é aqui”, disse Brunetti, puxando o papel do bolso. “Da Prè”, disse em voz alta, procurando entre os nomes gravados nas duas pequenas colunas de placas de latão situadas à esquerda da porta.

“Quem é?”, perguntou Vianello.

“Ludovico, herdeiro da signorina Da Prè. Pode ser qualquer um. Primo. Irmão. Sobrinho.”

“Que idade ela tinha?”

“Setenta e dois”, respondeu Brunetti, lembrando-se das colunas na lista de Maria Testa.

“E do que foi que ela morreu?”

“Ataque do coração.”

“Há alguma suspeita de que esse herdeiro”, Vianello começou, apontando com o queixo para a placa de latão ao lado da porta, “tenha tido algo a ver com isso?”

“Ela deixou para ele este apartamento e mais quinhentos milhões de liras.”

“E isto significa que é possível?”, perguntou Vianello.

Brunetti, que tinha descoberto há pouco que o prédio em que morava precisava de um novo telhado e que a parte dele no rateio seria de nove milhões de liras, disse: “Se o apartamento for bem conservado, eu poderia matar alguém para botar as mãos nele”.

Vianello, que não sabia nada sobre o telhado, olhou com espanto para o commissario.

Brunetti tocou a campainha. Nada aconteceu por um bom tempo, então ele tocou novamente, pressionando-a agora por um tempo maior. Os dois trocaram um olhar e Brunetti puxou de novo a lista, buscando o endereço mais próximo. Assim que virou para a esquerda e começou a se encaminhar em direção da Accademia, uma voz desencarnada respondeu pelo interfone acima das placas de latão.

“Quem é?”

A voz tinha aquele timbre assexuado característico das pessoas de idade, não fornecendo a Brunetti a mínima pista de como responder a seu emissor, se signora, se signore. “É da residência dos Da Prè?”, perguntou.

“Sim. O que o senhor deseja?”

“Precisamos conversar sobre algumas questões que surgiram no espólio da signorina Da Prè.”

Sem mais perguntas, a porta se abriu com um clique e eles entraram em um amplo pátio com uma fonte coberta de parreiras em seu centro. O único acesso ao segundo piso se dava por uma escada após uma porta à esquerda. Ao chegarem ao patamar encontraram uma porta aberta, e à frente dela um dos menores homens que Brunetti já vira.

Embora nem Vianello nem Brunetti fossem particularmente altos, os dois ficavam imensos diante desse homem, que parecia mesmo diminuir à medida que eles se aproximavam.

“Signor Da Prè?”, perguntou Brunetti.

“Sim”, disse o homem, adiantando-se um passo da porta e estendendo a Brunetti uma mão não maior que a de uma criança. Por ele ter estendido a mão quase à altura do próprio ombro, Brunetti não precisou se inclinar para apertá-la, o que de outro modo teria de ter feito. O aperto de mão de Da Prè era firme, e o olhar que cruzou com Brunetti era claro e direto. Sua face era estreita, quase como uma lâmina em sua magreza. E a idade, ou uma doença prolongada, tinha esculpido profundos vincos em cada lado de sua boca e aberto profundos círculos escuros em torno de seus olhos. Seu tamanho tornava impossível determinar sua idade, que poderia estar em algum ponto entre os cinquenta e os setenta.

Percebendo o uniforme de Vianello, o signor Da Prè não lhe estendeu a mão, fazendo apenas um aceno em sua direção. Deu um passo para o interior atrás da porta abrindo-a totalmente e convidando os dois homens a entrarem em seu apartamento.

Murmurando os “permesso” de praxe, os dois policiais acompanharam-no pelo corredor e aguardaram enquanto ele fechava a porta.

“Por aqui, sim”, disse o homem, conduzindo-os pelo corredor.

Por trás dele, Brunetti viu a pontiaguda corcunda que se projetava pelo tecido do lado esquerdo de sua jaqueta como o osso esterno de uma galinha. Embora Da Prè não chegasse a mancar, todo o seu corpo se inclinava para a esquerda quando ele caminhava, como se a parede fosse um ímã e ele fosse um saco de coisas de metal sendo atraídas para ela. Ele os conduziu a uma sala de estar que tinha vidros nos dois lados. As janelas da esquerda davam para alguns telhados, enquanto as outras descortinavam as janelas fechadas de um prédio no outro lado da estreita calle.

Todos os móveis desta sala eram do mesmo tamanho que as duas monumentais cristaleiras que tomavam toda a extensão da parede de fundo: um sofá de seis lugares de encosto alto; quatro cadeiras entalhadas que, pelo trabalho em seus braços, pareciam ser espanholas; e um imenso aparador, com o tampo cheio de uma porção de pequenos objetos que Brunetti mal olhou. Da Prè se sentou em uma das cadeiras e indicou duas outras com a mão para Brunetti e Vianello.

Ao sentar-se, os pés de Brunetti mal conseguiam tocar o assoalho, e ele percebeu que os de Da Prè pairavam à meia altura entre o assento e o chão. De algum modo, a profunda sobriedade do rosto daquele homem impedia que a estranha disparidade das proporções apresentasse qualquer aspecto ridículo.

“O senhor disse que há algo errado com o testamento de minha irmã?”, começou Da Prè com voz fria.

“Não, signor Da Prè”, Brunetti devolveu, “não pretendo confundir as coisas nem lhe dar essa impressão. Nossa curiosidade não tem relação com o testamento de sua irmã ou com quaisquer condições que ela possa ter expressado ao fazê-lo. Estamos mesmo interessados na morte dela, ou, melhor dizendo, na causa de sua morte.”

“Então porque não disseram logo?”, perguntou o pequeno homem, a voz agora mais calorosa, mas não calorosa de um modo que Brunetti apreciasse.

“Aquilo ali são caixas de rapé, senhor Da Prè?”, interrompeu Vianello, saindo de sua cadeira e indo até o aparador.

“O quê?”, disse o homúnculo com voz rascante.

“São caixas de rapé aqui?”, Vianello repetiu a pergunta, inclinando-se sobre o móvel, aproximando o rosto dos pequenos objetos que tomavam toda sua extensão.

“Por que o senhor pergunta?”, disse Da Prè, numa voz não amistosa mas seguramente curiosa.

“Meu tio Luigi, de Trieste, as colecionava. Na minha infância eu sempre gostava quando íamos visitá-lo, pois ele mostrava elas para mim e deixava que eu as tocasse.” E, como se para descartar que aquela temível possibilidade viesse a passar pela cabeça do senhor Da Prè, Vianello cruzou as mãos nas costas e não fez mais nada senão inclinar-se próximo das caixas. Logo as descruzou e apontou para uma das caixas, tomando o cuidado de manter seu dedo pelo menos a um palmo dela. “Esta aqui é holandesa?”

“Qual delas?”, perguntou Da Prè, deixando sua cadeira e se aproximando para se pôr ao lado do sargento.

A cabeça de Da Prè mal chegava ao topo do aparador, o que o forçava a se colocar na ponta dos pés para enxergar a caixa que Vianello estava apontando. “Sim, de Delft. Século XVIII.”

“E esta aqui?”, perguntou Vianello, ainda apontando e sem intenção de tocar. “Bávara?”

“Muito bem”, disse Da Prè, apanhando a minúscula caixa e passando-a ao sargento, que tomou o cuidado de apanhá-la entre as duas mãos em concha.

Vianello a virou para olhar a parte de baixo. “Sim, aqui está o selo”, ele disse, devolvendo-a a Da Prè. “É de fato uma beleza, não?”, disse, num tom cheio de entusiasmo. “Meu tio a teria adorado, principalmente pelo modo como é dividida em duas câmaras.”

Enquanto os dois homens, cabeça a cabeça, continuavam a examinar as caixinhas, Brunetti explorava o aposento. Três das pinturas eram do século XVII, pinturas muito ruins de um século muito ruim: a morte das gazelas, dos javalis, das gazelas de novo. Eram encharcadas de sangue e com uma representação da morte muito artisticamente posada para interessar a Brunetti. Os outros quadros pareciam reproduzir cenas bíblicas, mas também eles apresentavam o derramamento de grandes porções de sangue, desta vez humano. Brunetti voltou sua atenção para o teto, que possuía em seu centro um elaborado medalhão em gesso, do meio do qual pendia um lustre de vidro de Murano na forma de petalazinhas de flores em tom pastel.

Voltou a olhar para os dois homens, agora agachados em frente a uma porta aberta no lado direito do aparador. As prateleiras em seu interior continham o que para Brunetti parecia serem algumas centenas mais de pequenas caixas. Por um momento Brunetti sentiu-se sufocar pela estranheza dessa gigantesca sala de estar em que uma miniatura de homem havia aprisionado a si próprio, dispondo apenas desses brilhantes e ornados mementos de uma era esquecida para o lembrar do que deveria ser, para ele, a real medida das coisas.

Os dois homens se puseram de pé sob o olhar de Brunetti. Da Prè fechou a porta do gabinete, voltou para sua cadeira e, com um pequeno e ensaiado salto, retomou o seu lugar nela. Vianello demorou-se um pouco mais, olhando uma última vez para as caixas dispostas sobre o topo do aparador, depois do que voltou para sua própria cadeira.

Brunetti tentou um sorriso pela primeira vez, e Da Prè, retribuindo e voltando-se para Vianello, disse: “Eu não imaginava que pessoas assim trabalhassem para a polícia”.

Nem Brunetti, o que porém não o impediu de dizer: “Sim, o sargento é bem conhecido na questura por seu interesse em caixinhas de rapé”.

Identificando no tom de Brunetti a ironia que os insípidos estão sempre prontos a dirigir aos verdadeiros entusiastas, Da Prè disse: “Trata-se de uma parte importante da cultura europeia, as caixinhas de rapé. Alguns dos melhores artesãos do continente devotaram anos — décadas — de suas vidas para fazê-las. Não havia modo mais apropriado para uma pessoa demonstrar seu afeto que presenteando com uma caixinha de rapé. Mozart, Haydn...”. O entusiasmo de Da Prè engoliu suas palavras e ele concluiu com um floreio entusiasmado de um dos seus pequenos braços em direção ao repleto aparador.

Vianello, que havia assentido em silêncio durante todo esse discurso, disse a Brunetti: “Não acho que o senhor entenda, commissario”.

Brunetti, que não sabia o que tinha feito para merecer a ventura de ter consigo este homem sagaz, que conseguia desarmar a testemunha mais recalcitrante com tanta facilidade, assentiu em humilde concordância.

“A sua irmã compartilhava de seu entusiasmo?” A pergunta de Vianello parecia disparatada.

O pequenino deu um chutinho na trave de sua cadeira. “Não, minha irmã não tinha o menor entusiasmo por elas.” Vianello chacoalhou a cabeça inconformado com tamanho equívoco, e Da Prè, encorajado por seu gesto, acrescentou: “Na verdade, ela não tinha entusiasmo por nada”.

“Por nada mesmo?”, perguntou Vianello, com um tom que soava realmente interessado.

“Não”, confirmou Da Prè. “A não ser que se possa levar em conta o entusiasmo dela por padres.” O modo pelo qual ele pronunciou esta última palavra sugeria que o único entusiasmo que ele poderia vir a sentir por padres despertaria apenas se lhe fosse concedido assinar as ordens para a execução de todos eles.

Vianello balançou a cabeça como se não pudesse pensar em nada mais ameaçador, especialmente para uma mulher, que cair nas mãos de padres. Então, a voz plena de horror, perguntou: “Ela não deixou nada para eles, deixou?”. E, tão rapidamente quanto perguntara, acrescentou: “Desculpe, não tenho o direito de perguntar”.

“Não, não, está bem, sargento”, disse Da Prè. “Eles tentaram, mas ela não lhes deixou sequer uma lira.” Um riso maroto tomou sua face, e completou: “Ninguém que tentou obter algo do seu espólio teve sucesso”.

Vianello deu um largo sorriso para demonstrar todo o seu contentamento com esse cuidadoso impedimento de um desastre. Apoiando seu cotovelo no braço da cadeira e o queixo na palma da mão, posicionou-se para ouvir a narrativa do triunfo do signor Da Prè.

O pequenino encostou-se na cadeira até que suas pernas ficassem totalmente em paralelo com o assento. “Ela sempre teve uma queda pela religião. Nossos pais a enviaram para escolas de freiras. Acho que foi por isso que ela nunca se casou.” Brunetti olhou para as mãos de Da Prè, agarradas nos braços de sua cadeira, mas não havia sinal de nenhuma aliança.

“Nunca nos demos”, ele disse sem afetação. “Ela tinha seus interesses religiosos, eu tinha meu interesse por arte.” Por arte, Brunetti concluiu, ele queria dizer caixinhas de rapé entalhadas.

“Quando nossos pais morreram, este apartamento foi deixado para nós dois. Mas nós não conseguíamos viver juntos.” Vianello assentiu neste ponto, como se a sugerir quão difícil era viver com uma mulher. “Então eu lhe vendi a minha parte. Há vinte e três anos. E comprei um apartamento menor. Eu precisava do dinheiro para aumentar a minha coleção.” Vianello assentiu novamente, desta vez em compreensão às muitas demandas da arte.

“Então, há três anos, ela caiu e quebrou a bacia, que nunca ficou boa, não restando alternativa senão interná-la na casa di cura.” Ele parou de falar neste ponto, um velho refletindo sobre as coisas que tornam a ida para um asilo inevitável. “Ela pediu que eu me mudasse para cá para tomar conta das coisas dela”, ele continuou, “mas eu me recusei. Eu não sabia se ela ia retornar, e aí eu teria de me mudar novamente. E eu não queria trazer minha coleção para cá — eu não conseguiria viver em lugar algum sem ela — para depois ter de mudar de novo assim que ela se recuperasse. Muito arriscado, muitas oportunidades para alguma coisa se quebrar.” Da Prè contraiu fortemente as mãos, em uma resposta inconsciente ao terror dessa possibilidade.

Brunetti percebeu que à medida que o relato progredia também ele passara a assentir concordando com o senhor Da Prè, arrastado para um mundo lunático em que uma tampa quebrada era uma tragédia maior que a fratura de uma bacia.

“Então, quando ela morreu, eu fui nomeado seu herdeiro, mas ela ainda tentou deixar pra eles cem milhões de liras. Ela fez este adendo a seu testamento durante sua passagem por lá.”

“O que o senhor fez?”, Vianello perguntou.

“Eu levei o documento para o meu advogado”, Da Prè respondeu de pronto. “Ele me fez declarar que seu raciocínio estava debilitado durante os últimos meses de sua vida, que foi quando ela assinou aquela coisa.”

“E?”, Vianello incentivou.

“E foi anulado, claro”, disse o pequenino, com grande orgulho. “Os juízes me ouviram. Tinha sido um delírio da parte de Augusta. Portanto eles anularam sua herança.”

“E o senhor herdou tudo?”, perguntou Brunetti.

“Mas claro”, foi a curta resposta de Da Prè. “Não há mais nenhum parente direto na família.”

“E ela estava mesmo com o raciocínio debilitado?”, perguntou Vianello.

Da Prè encarou o sargento e respondeu prontamente. “Mas claro que não. Ela estava tão lúcida como sempre esteve, até o último momento em que a vi, o dia antes de sua morte. Mas o testamento era insano.”

Brunetti não estava certo de ter compreendido a distinção, mas, em vez de solicitar esclarecimento, perguntou: “As pessoas no asilo aparentavam saber sobre a herança?”.

“O que o senhor quer dizer?”, Da Prè perguntou desconfiado.

“Alguém de lá lhe perguntou sobre o testamento, ou se opuseram a sua decisão em anular o testamento?”

“Um deles me chamou antes do enterro e pediu para fazer um sermão durante a missa. Eu disse a ele que não ia haver sermão nenhum. Augusta tinha deixado instruções para a cerimônia no testamento, queria uma missa réquiem, de modo que não havia jeito de eu evitar aquilo. Mas ela não tinha especificado nada sobre sermão, daí que pelo menos eu evitei que eles ficassem lá tagarelando sobre um outro mundo onde todas as almas felizes vão se encontrar de novo.” A essa altura, Da Prè sorriu, e não era um sorriso simpático.

“Um deles veio ao funeral”, ele prosseguiu, “um homem grande, gordo. Veio me dar os pêsames em seguida dizendo quão imensa tinha sido a perda de Augusta para a ‘comunidade dos cristãos’.” O sarcasmo com que Da Prè pronunciou essas palavras envenenou o ar ao seu redor. “Daí ele falou qualquer coisa sobre quão generosa ela sempre tinha sido, que amiga fora para a ordem.” Aqui, Da Prè parou de falar e sua mente pareceu voltar ao passado para uma prazerosa reconstituição da cena.

“E o que o senhor disse?”, Vianello indagou por fim.

“Eu disse a ele que a generosidade estava sendo enterrada com ela”, respondeu Da Prè com outro riso soturno.

Vianello e Brunetti ficaram mudos por um momento, após o que Brunetti perguntou: “Eles tomaram alguma providência legal?”.

“O senhor quer dizer, contra mim?”

Brunetti assentiu.

“Não, nada.” Da Prè silenciou por um momento e então acrescentou: “O fato de eles terem conseguido controlá-la não implicava que controlariam o dinheiro dela”.

“Ela chegou a comentar algo sobre o que o senhor chamou de ‘controlá-la’?”, perguntou Brunetti.

“O que o senhor quer dizer?”

“Ela lhe disse que eles chegaram a pedir a ela que lhes desse o seu dinheiro?”

“Dizer a mim?”

“Sim, teria ela dito em alguma ocasião, enquanto estava na casa di cura, sobre alguma tentativa deles de convencerem-na a deixar o dinheiro dela para eles?”

“Não sei.”

Brunetti não sabia como pedir a ele que explicasse, e deixou que ele começasse por si, o que Da Prè fez em seguida.

“Fazia parte das minhas obrigações ir visitá-la uma vez por mês, o que era todo o tempo que eu podia dedicar a ela, mas nunca tínhamos nada a dizer um ao outro. Eu levava para ela toda a correspondência acumulada, que não eram senão coisas religiosas: revistas, pedidos de donativos. Eu perguntava como ela estava passando. Mas não havia nada sobre o que conversarmos, então eu ia embora.”

“Entendo”, concluiu Brunetti, levantando-se. Ela passara três anos ali e tinha deixado tudo para o seu irmão, que estivera sempre muito ocupado para visitá-la mais do que uma vez por mês, sem dúvida atarefado com suas caixinhas de rapé.

“Afinal, qual é o problema aqui?”, Da Prè perguntou antes que Brunetti pudesse se despedir. “Eles estão pensando em contestar o testamento?” Da Prè começou a dizer algo, mas resolveu se calar, e Brunetti julgou tê-lo visto ensaiar um sorriso, mas logo o pequenino cobriu a boca com a mão e a impressão foi embora.

“Não é nada importante, mesmo, signore. Na verdade, estamos investigando uma pessoa que trabalhou lá.”

“Aí não posso lhes ajudar em nada. Não conheço nenhum dos empregados.”

Vianello levantou-se e pôs-se ao lado de Brunetti, o entusiasmo de sua conversa de há pouco com Da Prè servindo para mitigar a mal disfarçada indignação que transpirava de seu superior.

Da Prè não perguntou mais nada. Levantou-se também e conduziu os dois homens para fora do quarto e depois pelo corredor, até a porta de saída do apartamento, onde Vianello pegou sua mão estendida devolvendo-lhe o cumprimento, agradecendo a ele por lhe ter mostrado suas adoráveis caixinhas de rapé. Brunetti também apertou a mão estendida, mas não agradeceu por nada e foi o primeiro a sair pela porta.


4

“Que criaturinha horrível, que criaturinha horrível”, Brunetti ouviu Vianello murmurando enquanto desciam os degraus.

Fazia frio do lado de fora, como se Da Prè tivesse roubado o calor do dia. “Que homem repulsivo”, continuou Vianello. “Ele pensa que possui aquelas caixas, o tolo.”

“Que foi, sargento?”, perguntou Brunetti, sem acompanhar o movimento do raciocínio de Vianello.

“Ele pensa que possui aquelas coisinhas, aquelas estúpidas caixinhas.”

“Eu achei que você gostava delas.”

“Deus, não. Eu as acho detestáveis. Meu tio tinha uma porção delas, e toda vez que íamos visitá-lo ele insistia em que eu as visse. Ele era igualzinho ao senhor Da Prè, acumulando coisas, e coisas, e coisas, e acreditando que era ele que as possuía.”

“E não possuía?”, perguntou Brunetti, parando em uma esquina para ouvir melhor o que Vianello dizia.

“É claro que ele as possuía”, disse Vianello, postando-se à frente de Brunetti. “Isto é, ele pagava por elas, tinha os recibos, podia fazer com elas o que quisesse. Mas nunca possuímos nada de fato, possuímos?”, ele perguntou, encarando Brunetti.

“Não estou bem certo do que você quer dizer, Vianello.”

“Basta pensar um pouco sobre isso, senhor. Nós compramos coisas. Coisas que vestimos ou penduramos em nossas paredes, ou nelas sentamos, e, no entanto, basta alguém querer para tirá-las de nós. Ou quebrá-las.” Vianello balançou a cabeça, frustrado por não estar conseguindo explicar um conceito que julgava tão simples. “Veja o caso desse Da Pré. Muito tempo depois de ele ter morrido, uma outra pessoa vai possuir aquelas estúpidas caixinhas, e ainda outra depois dessa, do mesmo modo como alguém já as havia possuído antes dele. O fato é que ninguém pensa nisto: as coisas sobrevivem a nós, e seguem existindo. É uma estupidez acreditar que as possuímos. E torná-las tão importantes é um pecado.”

Brunetti sabia que o sargento era tão ateu e irreverente quanto ele mesmo, que sua única religião era a família e o caráter sagrado dos laços de sangue, de modo que era estranho ouvi-lo falar em pecado e definir as coisas nesses termos.

“E como ele pôde largar a irmã num lugar daqueles por três anos e visitá-la somente uma vez por mês?”, perguntou Vianello, dando a impressão que acreditava de fato que a pergunta pudesse ser respondida.

Brunetti respondeu em voz neutra: “Não creio que seja um lugar tão ruim assim”, mas o tom de sua voz era tão frio que o sargento logo se lembrou de que a mãe do commissario estava em um desses lugares.

“Não foi o que eu quis dizer, senhor”, Vianello se apressou em esclarecer. “Eu quis me referir a qualquer lugar como aquele.” Mas, ao perceber que aquilo não soara nada melhor, continuou: “Quer dizer, e não se esforçar em ir visitá-la, apenas deixando ela ali, à própria custa”.

“Bem, normalmente as equipes nesses lugares são numerosas”, foi a resposta de Brunetti ao retomar a caminhada e virar à esquerda em campo San Vio.

“Mas eles não substituem a família”, insistiu Vianello, acreditando integralmente que a afeição familiar possuía um valor terapêutico muito maior que qualquer pacote de serviços que pudesse ser alugado de profissionais da área dos cuidados paliativos. Quanto a Brunetti, até onde sabia, o sargento podia estar certo, mas este era um tema que ele não queria aprofundar, não agora, nem no futuro imediato.

“Quem é o próximo?”, Vianello perguntou, aceitando desse modo mudar de assunto e desviar os dois, pelo me-nos por ora, de questões que somente resultariam, se é que resultassem em algo, em dor.

“É aqui, no alto, acho”, disse Brunetti, entrando em uma estreita calle transversal ao canal por onde vinham caminhando.

Se o herdeiro do conde Egidio Crivoni estivesse parado à porta à espera deles, a voz que respondeu quando tocaram a campainha não teria vindo mais prontamente. Com rapidez semelhante, a enorme porta se abriu com um clique após Brunetti explicar que viera até ali em busca de informações sobre o espólio do conde Crivoni. E foi assim que galgaram dois lances de escada, seguidos depois de outros dois; Brunetti ficou impressionado pelo fato de que havia apenas uma porta em cada piso, sugerindo que os apartamentos ali eram de andar inteiro, o que, por sua vez, era um indício da riqueza de seus ocupantes.

Assim que Brunetti pôs os pés no pavimento superior, um mordomo trajando preto abriu a porta para eles. Isto é, Brunetti deduziu que o homem fosse um criado a partir de seu sóbrio aceno e de sua pose solene e distante, o que se confirmou no momento em que o homem se ofereceu para pegar o sobretudo de Brunetti e informar que “La contessa” os receberia em seu estúdio, após o que desapareceu por um momento ao cruzar uma porta, ressurgindo imediatamente já sem o sobretudo de commissario.

Brunetti não teve tempo de vislumbrar senão um par de olhos castanhos claros e uma pequena cruz dourada na lapela esquerda do paletó do mordomo antes de este se virar e conduzi-los corredor abaixo. Cobrindo as paredes que o ladeavam, havia várias pinturas, todas retratos de diferentes séculos e estilos. Embora soubesse que retratos eram mesmo assim, Brunetti não deixou de se admirar com quão tristes a maioria das pessoas ali retratadas pareciam; mais ainda, incomodadas, como se a refletir que seu tempo estaria sendo mais bem empregado conquistando os selvagens ou convertendo os infiéis em vez de ficar ali posando para algum memorial vão e mundano. As mulheres pareciam estar convencidas de que poderiam obter essas conquistas pelo mero exemplo de sua vida sem pecado; os homens aparentavam acreditar mais no poder da espada.

O homem parou diante de uma porta, bateu uma vez e em seguida a abriu sem esperar por resposta de dentro. Manteve-a aberta para permitir a entrada de Brunetti e Vianello e em seguida a fechou silenciosamente às costas deles.

Um verso de Dante veio à mente de Brunetti:

Oscura e profonda era e nebulosa

Tanto Che, per ficcar lo viso a fondo

Io non vi discernea alcuna cosa.

Era escuro assim o quarto em que agora entravam, como se, à semelhança de Dante, tivessem deixado para trás a luz do mundo, o sol e a alegria. Janelas altas se alinhavam em uma das paredes do aposento, todas elas cobertas por cortinas de veludo de um tom particularmente sóbrio, algo entre sépia e sangue seco. O pouco de luz que se infiltrou por ali iluminou as lombadas de couro de centenas de volumes muito sisudos que se espalhavam pelas paredes restantes, do chão ao teto. O assoalho era de parquete, nada dessas finas lâminas de madeira aplicadas em folhas, mas o autêntico, cada cubo cortado e colocado de forma precisa em seu lugar.

A um canto, sentada atrás de uma enorme mesa repleta de livros e papéis, Brunetti viu a metade superior de uma grande mulher trajando negro. A sobriedade de seu vestido e de sua expressão teve o condão de repentinamente tornar acolhedor o resto do aposento.

“O que vocês querem?”, ela perguntou, demonstrando que o uniforme de Vianello era aparentemente razão suficiente para não se incomodar em perguntar quem eram.

Do lugar em que se encontrava, Brunetti não tinha como especular qual seria a idade da mulher, cuja voz, contudo — cavernosa, anasalada e imperiosa —, sugeria maturidade, e até mesmo uma idade já avançada. Adentrou então alguns passos no quarto, até ficar a apenas uns poucos metros da mesa dela. “Contessa ”, ele começou.

“Eu perguntei o que vocês querem”, foi a resposta que ela deu.

Brunetti sorriu. “Vou tentar tomar o mínimo possível de seu tempo, contessa. Sei quão ocupada a senhora é. Minha sogra sempre fala de sua dedicação às obras de caridade e do vigor que a senhora generosamente dedica à sagrada mãe Igreja.” Ele tentou fazer que a última parte de sua declaração soasse reverente, algo não tão fácil assim.

“E quem é a sua sogra?”, ela inquiriu, como se esperasse que ele fosse dizer que era a costureira dela.

Brunetti mirou com extremo cuidado e a atingiu bem no meio de seus olhos semicerrados: “É a contessa Falier”.

“Donatella Falier?”, perguntou a mulher, tentando sem sucesso ocultar seu espanto.

Brunetti fingiu não ter notado a tentativa. “Sim. Não faz nem uma semana, acho, ela fez alguma menção a seu último projeto.”

“O senhor está falando da campanha para proibir a venda de anticoncepcionais nas farmácias?”, ela perguntou, dando de bandeja a Brunetti a informação de que ele precisava.

“Exatamente”, ele disse, em tom de total aprovação, e sorriu.

Ela se levantou da cadeira e contornou a mesa, estendendo a mão para o commissario agora que a humanidade deste havia sido confirmada em razão de seu parentesco, mesmo que somente por laços de matrimônio, com uma das mais bem-nascidas mulheres da cidade. De pé, ela revelava toda a extensão do corpo que até então estivera oculto pela mesa. Mais alta que Brunetti, superava-o em peso por no mínimo vinte quilos. Sua compleição, no entanto, não apresentava o peso compacto dos gordos saudáveis, mas sim as gorduras localizadas dos perpetuamente imóveis. Suas bochechas pendiam para baixo, e seu vestido era pouco mais que um imenso tubo de tecido negro que se pendurava em suspensão a partir do apoio imenso fornecido por seu busto. Brunetti não achou que pudesse ter havido muita alegria, nem sequer muito prazer, na criação de toda aquela carne.

“Então é você o marido de Paola?”, ela perguntou enquanto dele se aproximava. Ao chegar mais perto, foi precedida pelo acre olor que os corpos emanam pela ausência de banho.

“Sim, contessa. Guido Brunetti”, ele disse, aceitando a mão que ela lhe oferecia, e, segurando-a como se fosse um pedaço da sagrada e autêntica Cruz, inclinou-se até ela e a ergueu a cerca de um centímetro de seus lábios. Ao retomar sua posição, disse a ela: “É uma honra conhecê-la”, tentando imprimir à fala um tom de que realmente quisesse dizer isso.

Voltou-se então para Vianello. “E este é o sargento Vianello, meu assistente.” Vianello fez uma rápida mesura, o rosto tão solene quanto o de Brunetti, tentando dar a impressão de que emudecera pela honra de ter sido apresentado a ela, ele, não mais do que um inferior policial. A contessa mal lhe dirigiu o olhar.

“Por favor, dottor Brunetti, sente-se”, ela disse, indicando com um gesto de sua gorda mão uma cadeira reclinável à frente de sua mesa. Brunetti foi até a cadeira e virou-se então para Vianello indicando-lhe que se sentasse em uma outra que estava próxima à porta, onde o sargento provavelmente ficaria a salvo do brilho radiante da nobreza da contessa.

A contessa voltou a seu lugar atrás da mesa e aprumou-se lentamente em sua cadeira. Deslocou alguns papéis para a sua direita e encarou Brunetti. “O senhor mencionou a Stefano algum problema com o espólio de meu marido?”

“Não, contessa, nada tão sério assim”, disse Brunetti com o que esperava se aparentasse a um riso tranquilo. Ela assentiu, à espera de sua explicação.

Brunetti sorriu novamente e começou a explicar, inventando algo naquele mesmo momento. “Como a contessa sabe, há hoje em nosso país uma forte tendência à criminalidade.” Ela anuiu. “Nada mais parece ser sagrado, ninguém está a salvo daqueles que não medem esforços para extorquir e trapacear para se apossar do dinheiro daqueles que são os seus legítimos donos.” A contessa concordou com tristeza.

“A forma mais recente assumida por esse tipo de chicanice tem sido levada avante por aqueles que se aproveitam da confiança dos idosos, tentando, e muitas vezes conseguindo, iludi-los e fraudá-los.”

A contessa ergueu uma mão com o dedo em riste. “O senhor estaria por acaso me alertando de que algo assim vai acontecer comigo?”

“Não, contessa. A senhora pode ficar tranquila quanto a isso. O que nós queremos assegurar aqui é que o seu falecido esposo” — e aqui Brunetti se permitiu dois lentos meneios de cabeça, lamentando que os virtuosos tenham que ser tirados tão repentinamente de nosso convívio —, “que seu falecido esposo não tenha sido vítima desse tipo de duplicidade sem consideração.”

“O senhor quer me dizer que julga que Egidio foi roubado? Enganado? Não entendo aonde o senhor quer chegar.” Ela se inclinou para a frente e seu busto acomodou-se sobre a mesa.

“Então, permita que eu fale com franqueza, contessa. Queremos nos assegurar de que ninguém tenha conseguido convencer o conde, antes de sua morte, a deixar algo para eles, que ninguém tenha exercido algum tipo de influência sobre ele de modo a obter parte de seu espólio e evitar que este fosse para os seus herdeiros de fato.”

A contessa refletiu sobre isto, mas não disse nada.

“É possível que algo assim tenha acontecido, contessa ?”

“O que os levou a alimentar essa suspeita?”, ela perguntou.

“O nome de seu marido apareceu quase acidentalmente no curso de um outro caso que estamos investigando, contessa.”

“Sobre pessoas que teriam sido trapaceadas em seu espólio?”

“Não, contessa, sobre algo mais. Mas antes de agir oficialmente, decidi vir procurá-la pessoalmente em razão do alto conceito em que a senhora é tida, e, se puder, convencer-me de que não há nada a investigar.”

“E como é que eu posso lhe ajudar?”

“Assegurando-me de que não há nada inapropriado no testamento de seu esposo.”

“Inapropriado?”, ela repetiu.

“Um legado a alguém que não fizesse parte da família?”, Brunetti sugeiru.

Ela balançou a cabeça.

“Alguém que não fosse um amigo chegado?”

Um novo meneio, tão incisivo que deixou suas papadas chacoalhando.

“Uma instituição para a qual ele deixasse algo como donativo?” Brunetti viu que os olhos dela brilharam ao ouvir isso.

“O que o senhor quer dizer com ‘instituição’?”

“Alguns desses trapaceiros iludem as pessoas a fazer contribuições ao que apresentam como dignas instituições de caridade. Há casos de pessoas sendo convencidas a doar dinheiro a hospitais infantis na Romênia ou para o que eles dizem ser alguma das Santas Casas de Madre Teresa de Calcutá.” Brunetti insuflou a voz com indignação ao acrescentar: “Terrível. Chocante”.

A contessa cruzou olhares com ele e exprimiu a mesma opinião, anuindo com a cabeça. “Não houve nada do tipo. Meu marido deixou seu espólio para a sua família, como um homem deve fazer. Não houve nenhum legado estranho. Ninguém levou nada que não merecesse.”

Por estar na linha de visão da contessa, Vianello tomou a liberdade de anuir firmemente em apoio à propriedade do que fora dito.

Brunetti se levantou. “A senhora me tranquilizou enormemente, contessa. Eu temia que um homem com a fama de tanta generosidade como o conde possuía pudesse ter caído vítima dessas pessoas. Mas, depois desta conversa com a senhora, fico feliz em saber que podemos eliminar seu nome de nossa investigação.” Insuflando ainda mais calor em sua voz, ele continuou. “Falando na condição de servidor público, devo dizer que sempre fico feliz quando isso acontece, mas falo como simples cidadão quando afirmo estar pessoalmente muito satisfeito com isto.” Voltou-se então para Vianello e fez um gesto para que ele se levantasse.

Quando se voltou, a contessa havia saído novamente detrás de sua mesa e estava deslocando sua montanhosa circunferência na direção dele.

“Há algo mais que o senhor possa me dizer sobre isto dottore ?”

“Não, contessa, até onde eu saiba, o seu marido nunca teve nada a ver com essas pessoas, eu posso dizer a meu colega...”

“Seu colega?”, ela interrompeu.

“Sim, um dos outros commissari está no comando dessa investigação para fechar o cerco a esses trapaceiros. Eu vou encaminhar um memorando a ele informando que o seu marido não teve nada com eles, graças a Deus, e depois disso voltarei a cuidar dos meus casos.”

“Se este caso não era seu, então por que foi que o senhor veio até aqui?”, ela perguntou sem rodeios.

Brunetti sorriu antes de responder. “Eu achei que seria menos constrangedor se a senhora fosse interrogada por uma pessoa que, como eu poderia dizer, por alguém que fosse sensível a sua posição na comunidade. Eu não queria que a senhora fosse submetida a nenhum tipo de preocupação, por mais momentânea que pudesse ser.”

Em vez de agradecer a Brunetti por essa amabilidade, a contessa anuiu em aceitação ao que considerava não mais que um direito seu.

Brunetti estendeu a mão a ela e, quando ela lhe estendeu a sua, ele se inclinou novamente, resistindo ao impulso de dar no pé.

Voltou em direção à porta, onde Vianello o aguardava. Ali, os dois fizeram pequenas mesuras e voltaram pelo corredor. Stefano, se é que era este o nome do homem com a cruz na lapela, os aguardava, não encostado à parede, mas postado no meio do corredor, o sobretudo de Brunetti em seus braços. Quando os viu se aproximarem, abriu o sobretudo e o segurou enquanto Brunetti o vestia. Sem dizer palavra, conduziu-os até o final do corredor e segurou a porta para eles enquanto saíam do apartamento.


5

Nenhum deles disse nada enquanto desciam as escadas em direção à rua, onde a repentina noite primaveril havia caído sobre a cidade.

“Então?”, perguntou Brunetti enquanto puxava novamente a lista do bolso. Conferiu o próximo endereço e pôs-se a caminho; Vianello seguiu atrás dele.

“É isto o que se considera uma pessoa de peso na cidade?”, foi a tentativa de resposta de Vianello.

“Creio que sim.”

“Pobre Veneza, então.” Que golpe para o efeito mágico que os galardões de nobreza tinham sobre Vianello. “Foi ela quem pagou o resgate de Lucia?”, perguntou o sargento, fazendo menção ao famoso caso de sequestro de mais de uma década atrás, quando os ossos de santa Lucia haviam sido roubados de sua igreja com os ladrões pedindo um resgate para sua devolução. Uma quantia nunca revelada foi paga aos ladrões, após o que a polícia foi informada do paradeiro de alguns ossos, presumivelmente os da abençoada Lucia, jogados sobre um campo no interior. Esses ossos foram devolvidos à igreja com grande solenidade e o caso foi encerrado.

Brunetti assentiu. “Eu ouvi dizer que foi ela, mas nunca se soube, soube?”

“De qualquer jeito, provavelmente eram ossos de porco”, Vianello sugeriu, num tom que indicava que ele torcia para que fosse mesmo assim.

Percebendo que Vianello não parecia disposto a responder a uma pergunta indireta, Brunetti optou por fazer uma sem margem para dúvidas: “E o que você achou da contessa ?”.

“Ela se interessou assim que o senhor sugeriu que algo pudesse ter ido para alguma instituição. Pessoas ou parentes não provocaram nenhuma reação.”

“Exatamente”, concordou Brunetti, “aqueles hospitais na Romênia.”

Vianello voltou-se para Brunetti, encarando-o longamente. “E de onde o senhor tirou aquela história de pessoas sendo enganadas em nome da Madre Teresa?”

Brunetti sorriu e deu de ombros. “Eu tinha de dizer algo a ela, e me pareceu que aquilo soaria crível.”

“E no fundo não faz diferença, faz?”, Vianello perguntou.

“O que não faz diferença?”

“Se o dinheiro for para Madre Teresa ou para os vigaristas.”

Surpreso, Brunetti perguntou: “E o que você quer dizer com isso?”.

“Ninguém nunca descobre mesmo aonde vai parar o dinheiro, não é? Ela ganhou todos aqueles prêmios, e sempre tinha alguém coletando dinheiro para ela, mas parece que nunca fizeram nada com ele, fizeram?”

Eis aí um tipo de crítica amarga que nem o próprio Brunetti fora capaz de elaborar, o que o levou a dizer: “Bem, pelo menos elas tiveram uma morte decente, quer dizer, aquelas pessoas que ela recolheu”.

A resposta de Vianello foi direta. “Se é que eu posso dizer alguma coisa, o que elas tiveram foi provavelmente uma refeição decente.” Então, olhando intencionalmente para o relógio sem fazer questão de disfarçar seu crescente ceticismo em relação ao modo como Brunetti estava perdendo o seu tempo, acrescentou. “Ou uma bebida.”

Brunetti compreendeu a indireta. Nenhuma das duas pessoas que tinham acabado de interrogar, por mais antipáticas que tivessem sido, tinham parecido ou demonstrado serem culpadas de algo. “Só mais uma”, disse o commissario, feliz por isso ter soado como uma sugestão e não como uma ordem.

Vianello assentiu sem entusiasmo, com um dar de ombros que servia de comentário sobre quão tedioso e repetitivo era a maior parte do trabalho que faziam. “E depois un’ombra”, ele disse, não havendo aí tom fosse de sugestão, fosse de ordem.

Brunetti anuiu, olhou de novo para baixo procurando os endereços, e tomou a calle pela direita. De repente se viram em um quintal, e pararam por um instante, procurando por alguma indicação da existência de algum número na primeira porta com que depararam.

“Qual é o número que buscamos, senhor?”

“Trezentos e doze”, respondeu Brunetti, lendo na folha de papel que segurava.

“Deve ser aquele ali”, disse Vianello, pousando a mão no braço de Brunetti e apontando para o outro lado do quintal.

Ao cruzarem o quintal, notaram que os narcisos e lírios-amarelos estavam brotando da terra escura no centro, e as flores menores já se haviam fechado para se protegerem do frio que se aproximava com o cair da noite.

Ao chegarem ao outro lado descobriram o número que buscavam e Brunetti tocou a campainha.

Passado um instante, uma voz ecoou pelo interfone, perguntando quem era.

“Estou aqui para falar sobre o signor Lerini”, Brunetti respondeu.

“O signor Lerini já não é mais deste mundo”, respondeu a voz.

“Estou a par disto, signora. Vim falar sobre o seu espólio.”

“Seu espólio está no paraíso”, respondeu a voz. Brunetti e Vianello trocaram olhares.

“Vim discutir aquele que ele deixou para trás”, disse Brunetti, não fazendo o mínimo esforço para disfarçar sua irritação.

“E quem é o senhor?”, exigiu saber a voz.

“Polícia”, respondeu também de pronto Brunetti.

Ouviu-se um clique do interfone sendo colocado bruscamente no gancho pela mulher. Depois, por algum tempo, nada aconteceu, até que a porta finalmente se abriu.

Uma vez mais eles tiveram que galgar as escadas. À semelhança do corredor da residência da contessa Crivoni, as escadas eram adornadas com retratos, mas os daqui eram todos da mesma pessoa: Jesus, retratado em seu roteiro de etapas crescentemente sangrentas do percurso da Cruz até a morte no Calvário e o terceiro andar. Brunetti fez uma parada longa o suficiente para examinar um dos retratos, e notou que, em lugar das reproduções baratas de uma publicação religiosa qualquer que ele esperava encontrar, tratava-se aqui de ilustrações cuidadosamente detalhadas em aquarela, em pinceladas que, embora tendo pousado amorosamente sobre as chagas, espinhos e pregos, ainda assim foram capazes de oferecer uma doçura excessiva ao rosto do Cristo supliciado.

Quando Brunetti desviou sua atenção do Cristo crucificado, viu uma mulher postada ao lado de uma porta aberta, e por um instante julgou que de algum modo havia conseguido encontrar-se novamente com sóror Immacolata, e que ela havia retornado a sua ordem e retomado o hábito. Mas ao olhá-la de perto percebeu que a mulher à sua frente era outra, completamente diferente, e que a única semelhança percebida vinha de suas vestes: uma comprida saia branca que arrastava pelo chão e um suéter negro sem forma abotoado sobre uma blusa branca de colarinho alto. Bastaria dar à mulher uma touca e deixar pender um longo rosário de sua cintura para o hábito ficar completo. A pele do seu rosto era muito fina e muito branca, como se raramente, ou nunca, visse a luz do dia. Seu nariz era comprido e rosado na ponta, as bochechas muito pequenas em comparação ao resto do rosto. O curioso aspecto intocado de seu rosto tornava difícil a Brunetti especular sobre sua idade, mas ele arriscou que ela estaria entre os cinquenta e os sessenta anos.

“Signora Lerini?”, perguntou ele, sem se incomodar em desperdiçar um sorriso com ela.

“Signorina”, ela o corrigiu, com uma prontidão tal que sugeria que ela quase sempre fazia essa correção, e talvez até mesmo ficasse à espera da oportunidade de a fazer.

“Estou aqui para lhe fazer algumas perguntas sobre o espólio de seu pai”, disse Brunetti.

“E será que eu posso saber quem são os senhores?”, ela perguntou, num tom de voz que buscava ser um misto de humildade e incisividade.

“Commissario Brunetti”, ele respondeu, voltando-se em seguida para Vianello. “E este é o sargento Vianello.”

“Melhor vocês entrarem.”

Quando Brunetti anuiu, ela se afastou e abriu a porta para eles. Entre murmurantes “permesso” eles entraram no apartamento. Brunetti foi logo atingido por um aroma que, a despeito de não lhe ser estranho, não conseguiu identificar de pronto. No corredor havia um aparador de mogno, a superfície repleta de fotografias em elaborados porta-retratos de prata. Brunetti passou, observou-os por um segundo, voltou a olhar para a frente, mas então recuou a fim de estudá-los mais de perto. Todos os retratados pareciam trajar alguma espécie de veste clerical: bispos, cardeais, quatro freiras posando em rigoroso alinhamento, até mesmo o papa. A mulher voltou para conduzi-los a um outro aposento, mas Brunetti inclinou-se para olhar as fotos mais de perto. Todas estavam autografadas, e a maioria delas com dedicatórias à “signorina Lerini”, um dos cardeais chegando a ponto de dirigir-se a ela como “benedetta, adorada irmã em Cristo”. Brunetti teve a estranha sensação de estar no quarto de uma adolescente, com suas paredes cobertas de cartazes enormes de astros do rock, também eles vestindo as peculiares indumentárias de sua profissão.

Rapidamente, ele alcançou a signorina Lerini e Vianello e os acompanhou a um aposento que a princípio parecia uma capela, mas que após uma mais detida avaliação revelou-se apenas uma sala de estar. A um canto, uma Madonna de madeira, ao lado da qual queimavam seis compridas velas, a origem do aroma que Brunetti não conseguira identificar. Em frente da estátua, um prieu-dieu, sem nenhuma cobertura almofadada sobre o estrado para o genuflexo.

Contra outra parede encostava-se um tipo diferente de oratório, este, aparentemente, dedicado a seu falecido pai; de qualquer modo, melhor dizendo, à foto de um homem de pescoço taurino em traje de executivo, em pose rígida à sua mesa, as mãos apertando fortemente uma à outra diante de si. Em lugar de velas, brilhavam dois suaves focos de luz dirigidos para ela de algum ponto do alto forro; Brunetti teve a nítida impressão de que eles ficavam acesas dia e noite.

A signorina Lerini deixou-se acomodar em uma cadeira, mas sentando-se na ponta, as costas endireitadas e retas como uma espada.

“Gostaria de começar”, disse Brunetti depois que todos se sentaram, “apresentando meus sentimentos por sua perda. Seu pai era um homem popular, por certo um patrimônio da cidade, e sua ausência será por certo muito difícil de suportar.”

Ela juntou os lábios e fez uma mesura ao ouvir isso. “A vontade de Deus deve ser aceita”, disse.

Às suas costas, Brunetti ouviu Vianello sussurrar um “Amém”, a um nível exato de audibilidade, mas resistiu ao impulso de voltar-se para observar o seu sargento. A signorina Lerini, no entanto, fez esse movimento em direção a Vianello, e a expressão que viu em seu rosto igualava a dela mesma em solenidade e fervor. A essa visão, seu rosto relaxou visivelmente, e até mesmo algo de sua rigidez espinal deixou-se amolecer.

“Signorina, não tenho a intenção de interromper o seu luto, por saber que deve ser imenso, mas há algumas perguntas que gostaria de fazer sobre o espólio de seu pai.”

“Como eu lhe disse”, ela falou, “o espólio dele está agora com o Senhor.”

Desta vez, Brunetti ouviu um abafado “Sì, sì ” às suas costas, e imaginou se por acaso Vianello não estaria exagerando em seu desempenho. Aparentemente não, pois neste momento a signorina Lerini examinou o sargento e fez um aceno em sua direção, sem dúvida em reconhecimento da presença de um outro cristão no recinto.

“Infelizmente, signorina, aqueles de nós que ficaram para trás devem continuar a cuidar das coisas terrenas”, disse Brunetti.

Ao ouvir isto, signorina Lerini olhou para a foto do pai, que todavia pareceu incapaz de lhe fornecer qualquer auxílio. “E o que é que os está preocupando?”, ela perguntou.

“Baseados em informações obtidas no curso de outra investigação”, começou Brunetti, repetindo sua inverdade, “descobrimos que algumas pessoas nesta cidade tornaram-se vítimas de golpistas que delas se aproximam sob o falso manto da caridade, isto é, apresentam-se como representantes de várias instituições de caridade e, desse modo, conseguem receber algum dinheiro, não raro grandes quantias, de suas vítimas.” Depois de aguardar em vão por alguns instantes por uma demonstração de curiosidade da signorina Lerini pelo que ele dizia, Brunetti prosseguiu. “Temos razões para crer que uma dessas pessoas tenha conseguido ganhar a confiança de alguns dos pacientes da casa di cura que hospedava seu pai.”

Ao ouvir isto, a signorina Lerini por fim o encarou, os olhos arregalados de curiosidade.

“A signorina saberia me dizer se alguém desse tipo chegou a se aproximar do seu pai?”

“E como eu poderia saber?”

“Achei que talvez seu pai tenha manifestado o desejo de fazer alterações em seu testamento, possivelmente alguma espécie de legado a alguma instituição de caridade da qual a senhorita jamais tivesse ouvido falar antes.” Ela permaneceu calada. “Houve alguma instituição de caridade beneficiada pelo testamento do seu pai, signorina ?”

“O que o senhor quer dizer com ‘instituição de caridade beneficiada’?”, ela perguntou.

Brunetti achava que a pergunta que fizera a ela era relativamente simples, mas mesmo assim ele explicou. “Talvez a um hospital, ou a um orfanato?”

Ela negou com a cabeça.

“É claro que ele deve ter deixado algum dinheiro para alguma organização religiosa honesta”, sugeriu o commissario.

Ela balançou a cabeça novamente, e de novo sem oferecer nenhuma explicação.

De repente, Vianello entrou na conversa. “Desculpe interromper, senhor, mas acho por bem lembrá-lo de que um homem como o signor Lerini não iria por certo aguardar até a morte para partilhar os ganhos de seu trabalho com Nossa Santíssima Igreja.” Finda sua intervenção, e permanecendo sentado, Vianello fez com a parte superior do corpo uma reverência à filha do signor Lerini, que retribuiu esse tributo à generosidade do pai com um gracioso sorriso.

“A mim parece”, continuou Vianello, encorajado por aquele sorriso, “que o dever que temos para com a Igreja é do tipo que carregamos conosco pela vida toda, e não algo de que nos lembremos apenas na hora de nossa morte.” Dito isso, Vianello retornou a seu respeitoso silêncio, demonstrando contentamento por ter a Igreja sido defendida e por ter sido ele a fazê-lo.

“A vida de meu pai”, começou a signorina Lerini, “foi um exemplo resplandecente de virtude cristã. Não apenas sua vida inteira foi um modelo exemplar de empenho, mas o cuidado amoroso que devotava ao bem-estar espiritual de todos com quem mantinha contato, profissional ou pessoal, estabeleceu um padrão que será difícil superar.” Ela continuou nessa toada por mais alguns minutos, o que levou Brunetti a desligar, deixando sua atenção vagar pelo aposento.

A mobília sisuda, relíquias de uma era anterior, era algo com que ele estava familiarizado, toda feita para atravessar as eras e desprovida pelo demônio de qualquer noção de conforto ou beleza. Após observar tudo rapidamente, notando algumas pinturas mais preocupadas com a devoção que com o senso estético, Brunetti limitou sua atenção aos bulbosos pés em forma de garra que se projetavam das pernas das mesas e cadeiras.

Voltou a concentrar-se no que dizia a signorina Lerini no momento exato em que ela chegava à peroração daquele discurso que já devia ter proferido antes em numerosas ocasiões. E ela o dizia de modo tão automático que Brunetti se perguntou se ela ainda pensava no que dizia, suspeitando que possivelmente não falava.

“Espero que isso tenha satisfeito sua curiosidade”, ela disse, chegando finalmente a uma conclusão.

“Deveras, um catálogo impressionante de virtudes, signorina”, disse Brunetti, palavras que a deixaram satisfeita, o que demonstrou ao responder com um sorriso, tendo seu pai recebido a devida homenagem.

Por não tê-la ouvido fazer nenhuma menção a isto, Brunetti perguntou: “A senhorita saberia me dizer se a casa di cura usufruiu da generosidade de seu pai?”.

Ela fechou a cara. “O que o senhor está querendo dizer?”

“Teria ele lembrado dela em seu testamento?”

“Não.”

“E enquanto estava lá? Teria ele doado algo a eles então?”

“Não sei”, ela respondeu, falando baixinho, com isso tentando sugerir sua falta de interesse por essas coisas mundanas, mas conseguindo apenas, pelo olhar cortante que lhe dirigiu à menção de tal possibilidade, aparentar desconforto e confusão.

“Qual era o nível de controle que seu pai tinha sobre o próprio patrimônio enquanto permaneceu internado?”, perguntou Brunetti.

“Acho que não entendi direito a sua pergunta.”

“Ele mantinha contato com o banco em que tinha conta? Podia emitir cheques? Se já não era capaz de fazer esse tipo de coisas, ele pedia à senhorita, ou a quem quer que estivesse administrando seus negócios, que pagasse suas contas ou fizesse as suas doações?” Não havia como ser mais claro do que isso.

Era perceptível que ela não havia gostado do que ouvira, mas Brunetti já tinha chegado ao limite em relação a suas contestações e quanto a sua virtude.

“Pelo que eu entendi, o senhor havia dito que esta era uma investigação sobre trambiqueiros, commissario”, ela disse, num tom tão cortante que fez que Brunetti se arrependesse do tom que ele próprio vinha empregando.

“E é, signorina, por certo que é. E é por isso que eu queria saber se teria sido possível que eles tivessem se aproveitado de seu pai e sua generosidade enquanto ele esteve na casa di cura.”

“E como isso poderia ter acontecido?”

Brunetti percebeu que a mão direita dela segurava os dedos da esquerda, com uma empunhadura incômoda, mantendo a pele espremida como a papada de uma galinha.

“Se tais pessoas tivessem ido visitar outros pacientes, ou passassem por lá por qualquer outro motivo, elas poderiam ter entrado em contato com o seu pai.” Como ela não disse nada, Brunetti perguntou: “Não teria sido possível?”.

“E ele teria lhes dado dinheiro?”, ela perguntou.

“É uma possibilidade, mas somente no campo da teoria. Se não houve nenhuma concessão estranha em seu testamento, e se ele não deixou nenhuma instrução pouco usual para a administração de seu patrimônio, então creio que não há motivo para preocupação.”

“Então pode ficar tranquilo, commissario, era eu que cuidava das finanças de papai enquanto ele convalescia, e ele nunca me falou de nada do tipo.”

“E quanto ao testamento dele? Ele fez alguma mudança nele no tempo que passou ali?”

“Nenhuma.”

“E foi a senhora a herdeira?”

“Sim. Sou a sua única filha.”

Brunetti tinha esgotado tanto sua paciência quanto suas perguntas. “Obrigado pelo seu tempo e por sua cooperação, signorina. O que a senhorita nos disse eliminou quaisquer suspeitas que pudéssemos ter acalentado.” Em seguida, Brunetti se levantou, no que foi acompanhado imediatamente por Vianello. “Sinto-me bem melhor agora, signorina”, continuou Brunetti, sorrindo com toda a aparência de sinceridade. “O que a senhorita disse me trouxe alívio, por indicar que seu pai não foi logrado por essas pessoas desprezíveis.” Então, sorriu novamente e voltou-se para a porta, sentindo a presença de Vianello bem próximo atrás de si.

A signorina Lerini ficou de pé e os foi acompanhando até a porta. “Nada disso aqui tem importância”, ela disse, fazendo um gesto com a mão para abranger todo o quarto e tudo o que continha, numa tentativa talvez de descartar tudo com aquele gesto.

“Não quando é a nossa salvação eterna que está em jogo, signorina”, disse Vianello. Brunetti ficou feliz por estar de costas para os dois, pois achou que não foi rápido o suficiente para ocultar nem o choque nem o engulho nele provocados pela afirmação de Vianello.


6

Já do lado de fora, Brunetti voltou-se para Vianello e perguntou: “E será que eu poderia me atrever a perguntar de onde veio este súbito ataque de devoção, sargento?”. Ele lançou um olhar de impaciência para Vianello, mas o sargento lhe respondeu apenas com um risinho. Brunetti insistiu. “Então?”

“Eu já não sou mais o homem paciente que costumava ser, senhor. E ela ultrapassou tanto os limites que eu achei que ela não se daria conta do que eu estava fazendo.”

“Cá para mim, eu acho que o senhor foi bem-sucedido”, disse Brunetti. “Foi um desempenho maravilhoso: ‘Nossa salvação eterna está em jogo’”, repetiu, sem fazer o menor esforço para esconder seu desgosto. “Espero que ela tenha acreditado, porque para mim você soou falso como uma serpente.”

“Ah, mas ela acreditou, senhor”, disse Vianello, saindo do jardim e tomando o rumo de volta à ponte Accademia.

“E o que lhe dá tanta certeza?”

“Hipócritas nunca imaginam que os outros possam ser tão falsos quanto eles são.”

“E você está seguro de que é isso o que ela é?”

“O senhor notou a expressão dela quando o senhor sugeriu que o pai dela, seu santificado pai, poderia ter dado parte do butim a outros?”

Brunetti assentiu.

“E?”, perguntou Vianello.

“E o quê?”

“Acho que foi o suficiente para demonstrar sobre o que de fato era toda aquela baboseira a respeito de religião.”

“E sobre o que o senhor pensa que é, Sargento?”

“Aquilo tudo só serve para torná-la especial, fazê-la se destacar na multidão. Ela não é bela, não chega sequer a ser graciosa, e não deu nenhuma indicação de que seja inteligente. Daí que a única coisa que lhe restou para diferenciar-se das outras pessoas, algo que todos queremos, suponho, é ser religiosa. Assim, todos que cruzem seu caminho dirão: ‘Oh, mas que pessoa interessante, intensa’. E ela não terá que fazer nada, ou aprender o que quer que seja, ou mesmo trabalhar em algo. Não precisará nem ser uma pessoa interessante. Basta que diga qualquer coisa, coisas piedosas, e todos dirão para cima e para baixo quão boa ela é.”

O discurso do sargento não convenceu Brunetti, mas ele não comentou nada. Havia de fato um tanto de exagero e inadequação na devoção da signorina Lerini, mas Brunetti não achava que fosse hipocrisia. Para o commissario, que por força da profissão já tivera sua parcela suficiente disso, o discurso dela sobre religião e Deus lhe parecia simples fanatismo. Considerava que ela não tinha nem a inteligência nem a dedicação normalmente perceptíveis nos verdadeiros hipócritas.

“Parece que você está bem familiarizado com esse tipo de religião, Vianello”, disse Brunetti entrando num bar. Depois de tão prolongada exposição à santidade ele precisava de um gole. E aparentemente Vianello também, pois se adiantou e pediu duas taças de vinho branco.

“Minha irmã”, disse o sargento esclarecendo. “A diferença é que ela conseguiu superar esse tipo de coisa.”

“E como foi isso?”

“Tudo começou dois anos antes de ela se casar.” Vianello tomou um gole de seu vinho, pousou a taça no balcão e pegou um pedaço de biscoito de um pratinho. “Felizmente, tudo terminou quando ela se casou.” Outro gole, outro sorriso. “Acho que Jesus não cabia na cama.” Outro gole, grande. “Foi um porre. Tivemos que ouvir a conversa dela por meses e meses, numa litania sem fim sobre orações e boas ações e quão grande era o seu amor pela Madonna. Chegou a um ponto em que até minha mãe — esta sim, uma santa — não aguentava mais.”

“E então?”

“Foi como eu disse, ela se casou, os filhos começaram a chegar e aí não houve mais tempo para ser beata e piedosa, e acho que ela acabou esquecendo essas coisas.”

“E você acha que algo assim poderia acontecer com a signorina Lerini?”, perguntou Brunetti, saboreando seu vinho.

Vianello deu de ombros. “Na idade dela — quantos anos ela tem? cinquenta?”, ele perguntou, prosseguindo após Brunetti concordar, “só se casariam com ela por dinheiro. E não creio que haja a menor possibilidade de ela querer partilhar nada com ninguém, não é?”

“Você não gostou dela mesmo, hein?”

“Detesto hipócritas. Odeio carolas. Então, dá para ter uma ideia do efeito que tem em mim quando os dois se combinam.”

“Mas você acabou de dizer que a sua mãe é uma santa. Ela não é religiosa?”

Vianello assentiu e empurrou a sua taça através do balcão. O bartender encheu-a e voltou o olhar para Brunetti, que também estendeu sua taça para ser completada.

“Sim. Mas a fé dela é uma fé verdadeira, ela acredita na bondade humana.”

“Mas não é sobre isso, afinal, o cristianismo?”

A única resposta que Vianello emitiu foi um grunhido de raiva. “Olha, commissario, quando eu disse que a minha mãe é uma santa foi isto mesmo o que eu quis dizer. Ela criou duas outras crianças além de nós três. O pai delas trabalhava com o meu, e quando a mulher dele morreu ele começou a beber e não ligava para os filhos. Minha mãe então simplesmente os trouxe para casa e os criou junto conosco. Sem alarde, sem discursos sobre a generosidade. E um dia ela pegou meu irmão atormentando uma das crianças, dizendo que o pai deles era um bêbado. Naquele momento eu pensei que ela ia matar o Luca, mas tudo o que ela fez foi chamá-lo até a cozinha e dizer quão envergonhada estava dele. Isso foi tudo, ela disse apenas que tinha vergonha dele. E o Luca chorou uma semana inteirinha. Ela foi carinhosa com ele, mas deixou bem claro o que sentia.” Vianello tomou mais um gole de sua bebida, lembrando de sua juventude.

“E o que aconteceu?”

“Hummm?”

“O que aconteceu? Com seu irmão?”

“Oh! Passadas duas semanas, estávamos voltando da escola, todos juntos, quando uns garotos mais velhos da redondeza começaram a provocar o garoto, dizendo a mesma coisa que Luca tinha dito.”

“E?”

“E o Luca ficou louco, eu acho. Encheu dois deles de porrada, até tirar sangue, e correu atrás de outro até Castello. E enquanto corria ia gritando que eles não tinham nada que dizer aquelas coisas sobre o seu irmão.” Os olhos de Vianello brilhavam ao contar a história. “Bem, quando ele chegou em casa estava coberto de sangue. Acho que ele quebrou um dos dedos na briga; bem, seja como for, o fato é que meu pai teve de levá-lo ao hospital.”

“E?”

“Bem, enquanto estavam no hospital, Luca contou ao meu pai o que tinha acontecido, e quando eles voltaram para casa meu pai contou para mamãe.” Vianello terminou seu vinho e tirou algumas notas do bolso.

“E o que a sua mãe fez?”

“Oh, nada de especial, mesmo. Isto é, tirando o fato de que naquela noite ela fez risotto di pesce, o prato favorito de Luca. E que por duas semanas não comemos outra coisa a não ser aquilo, como se ela estivesse numa espécie de greve ou algo do tipo. Ou impondo a nós uma greve de fome por causa do que Luca tinha dito”, Vianello acrescentou com uma gargalhada. “Mas depois disso, Luca voltou a sorrir novamente. E minha mãe jamais fez um único comentário sobre o assunto. Luca era o mais novo, e eu sempre achei que era o queridinho dela.” Ele apanhou o troco e colocou no bolso. “Era assim que ela era. Sem grandes sermões. Mas boa, boa de coração.”

Ele se adiantou até a porta segurando-a para que Brunetti saísse. “Tem mais algum nome nessa lista, commissario? Porque não tem como o senhor me fazer acreditar que alguma das que já vimos seja capaz de algo mais do que falsa devoção.” E Vianello se voltou para olhar o relógio na parede acima do bar.

Tão cansado de devoção quanto o seu sargento, Brunetti disse: “Não, acho que não. O quarto vai dividir tudo igualmente entre os seis filhos”.

“E o quinto?”

“O herdeiro mora em Turim.”

“Isso reduz o número de suspeitos, não é mesmo, senhor?”

“É, reduz mesmo. E estou começando a achar que não há nada do que suspeitar.”

“Será que temos que voltar para a questura ainda?”, perguntou Vianello, desta vez puxando a manga e olhando para o relógio.

Eram 18h15. “Não, não precisamos nos incomodar com isso”, Brunetti respondeu. “Aproveite para chegar em casa mais cedo, sargento.”

A resposta de Vianello foi um sorriso, após o que começou a dizer algo, recuou, mas afinal deu vazão ao impulso e disse: “Vou é passar mais tempo na academia”.

“Nem se atreva a falar disso para mim”, Brunetti voltou à carga, fazendo uma careta exagerada de horror.

Vianello deu uma sonora gargalhada enquanto começava a subir os primeiros degraus da ponte da Accademia, deixando Brunetti tomar seu caminho para casa pelo campo San Barnaba.

Foi neste campo, de pé em frente à igreja recém-restaurada, observando pela primeira vez sua fachada há pouco limpa, que a ideia veio a Brunetti. Ele atravessou a calle atrás da igreja e postou-se à última porta antes do Grande Canal.

A porta se abriu com um clique ao segundo toque, e ele adentrou o imenso quintal do palazzo de seus sogros. Luciana, a governanta que acompanhava a família bem antes de Brunetti conhecer Paola, abriu a porta no topo da escada, que conduzia ao palazzo, e deu um cordial sorriso de boas-vindas. “Buona sera, dottore”, ela disse, afastando-se um pouco para permitir que ele adentrasse o corredor.

“Buona sera, Luciana. Prazer em vê-la novamente”, ele disse, passando a ela o sobretudo, percebendo quantas vezes já tinha feito esse gesto naquela tarde. “Eu gostaria de falar com a minha sogra. Isto é, se ela estiver em casa, claro.”

Se chegou a ficar surpresa ao ouvir esse pedido, Luciana não fez por demonstrar. “A contessa está lendo. Mas é certo que ficará feliz em recebê-lo, dottore.” Enquanto o conduzia à parte habitada do palazzo, Luciana perguntou, numa voz morna de real afeição: “E como vão as crianças?”.

“Raffi está apaixonado”, disse Brunetti, confortado pelo sorriso que Luciana deu em resposta. “E a Chiara também”, acrescentou, divertindo-se agora com o espanto de Luciana. “Para nossa sorte, porém, Raffi está apaixonado por uma garota e Chiara pelo novo urso-polar do zoológico Berlim.”

Luciana se deteve, pondo a mão em sua manga: “Oh, dottore, o senhor não devia assustar assim uma velha senhora”, disse ela, levando sua outra mão, aquela que se destinava ao melodrama, ao coração.

“E essa garota, quem é? É uma boa moça?”

“O nome dela é Sara Paganuzzi, e ela mora no andar de baixo. Eles se conhecem desde que eram pequenos. O pai dela tem uma fábrica de cristais lá em Murano.”

“Aqueles Paganuzzi?”, Luciana perguntou deveras curiosa.

“Isso. A senhora os conhece?”

“Não. Não pessoalmente, mas conheço o trabalho dele. Maravilhoso, maravilhoso! Meu sobrinho trabalha lá em Murano, e ele não perde a oportunidade de dizer que os Paganuzzi são os melhores cristaleiros.” Luciana parou em frente do estúdio da contessa e bateu à porta.

“Avanti ”, ouviu-se a voz da contessa vindo de dentro. Luciana abriu a porta e deixou que Brunetti entrasse sem ser anunciado. Afinal, a probabilidade de que ele surpreendesse a contessa fazendo algo que não devia ou lendo às escondidas alguma revista de halterofilismo era irrisória.

Donatella Falier olhou por sobre seus óculos de leitura, pôs o livro que lia no sofá a seu lado, a capa virada para baixo, os óculos sobre ele e levantou-se de pronto. Alcançou Brunetti num instante, oferecendo o rosto para receber seus dois beijinhos de praxe. Embora soubesse que ela já tinha sessenta e tantos anos, a contessa aparentava ser pelo menos dez anos mais jovem, sem um fio de cabelo branco à vista, e com rugas reduzidas à insignificância pela cuidadosa aplicação de maquiagem, corpo pequeno em forma e rijo.

“Guido, algum problema?”, ela perguntou, demonstrando preocupação sincera, e Brunetti sentiu uma ponta de remorso por ser de tal forma alheio à vida dessa mulher que sua simples presença fosse para ela um sinal de problemas.

“Não, nada disso. Está tudo bem.”

A essa resposta, ela relaxou visivelmente. “Bom, bom. Quer beber alguma coisa, Guido?” Ela olhou pela janela como que buscando adivinhar as horas pela quantidade de luz que entrava, sendo capaz assim de determinar que tipo de bebida seria adequada, e ele percebeu que ela se surpreendeu ao descobrir que as janelas do quarto ofereciam apenas escuridão. “Que horas são?”, perguntou.

“Seis e meia.”

“É mesmo?”, ela perguntou retoricamente, voltando para o sofá onde estivera sentada. “Venha, sente-se aqui comigo e conte como é que vão as crianças.” Voltou a seu lugar, fechou o livro e o colocou na mesinha a seu lado, fazendo o mesmo com seus óculos. “Não, Guido, sente-se aqui”, insistiu, ao ver que ele se movia em direção a uma cadeira no lado oposto da pequena mesa à frente do sofá.

Obedecendo, sentou-se ao lado dela no sofá. Durante os muitos anos que já durava seu casamento com Paola, Brunetti ficou muito pouco tempo sozinho com a mãe da esposa, o que fazia que sua opinião a respeito dela fosse imprecisa. Às vezes ela parecia a mais desmiolada das socialites, incapaz de fazer algo tão simples quanto servir-se de uma bebida; em outras ocasiões, no entanto, impressionara Brunetti ao emitir juízos sobre as motivações de pessoas ou personagens que o espantaram por sua exatidão fria e penetrante. Ele ficava desorientado por ser incapaz de identificar se as observações dela eram intencionais ou acidentais. Fora esta mulher quem, há um ano, ao mencionar Fini, o parlamentar neofascista, chamara-o de “Mussofini”, sem no entanto indicar se o nome trocado fora o produto de confusão ou desprezo.

Ele falou sobre os filhos, garantindo à contessa que os dois estavam indo muito bem na escola, que dormiam com as janelas fechadas para evitar o ar frio da noite e que estavam comendo dois tipos de legumes em todas as refeições. Aparentemente, isso bastava para garantir à contessa que tudo ia bem com seus netos, o que a fez então voltar sua atenção para os pais. “E quanto a você e Paola? Dá prá ver que você está mais robusto, Guido”, ela disse, e Brunetti se apanhou sentando de modo menos relaxado.

“Então, o que você gostaria de beber?”, ela perguntou.

“Na verdade, nada. Passei por aqui para perguntar sobre algumas pessoas que a senhora deve conhecer.”

“É mesmo?”, ela disse, arregalando seus olhos verde-esmeralda em sua direção. “E por quê?”

“Bem, o nome de um deles veio à baila em uma outra investigação que estamos conduzindo e...”, ele começou, deixando a frase solta no ar.

“E você veio até mim para saber se sei de algo a respeito deles?”

“Bem, é.”

“E o que é que eu poderia saber que pudesse ajudar a polícia?”

“Bem..., coisas pessoais.”

“Fofocas, você quer dizer?”

“Humm, é.”

Ela olhou de lado por um instante e alisou uma ruga diminuta no forro do braço do sofá. “Nunca ouvi dizer que a polícia perdesse seu tempo com fofocas.”

“É talvez nossa fonte mais rica de informações.”

“Sério?”, ela perguntou, e, quando ele anuiu, acrescentou. “Que interessante!”

Brunetti não disse nada, e, para evitar enfrentar o olhar da contessa, examinou a lombada do livro sobre a mesinha, esperando encontrar o nome de um romance ou de um policial. “The voyage of the Beagle ”, perguntou ele em voz alta, incapaz de frear seu espanto e pronunciando o nome do livro em inglês.

A contessa olhou para o livro e em seguida para Brunetti. “Ora, sim, Guido. Você já o leu?”

“Quando estava na universidade, há anos, mas traduzido”, ele conseguiu dizer, controlando a voz para limar dela todo o seu espanto.

“Bem, eu sempre gostei de ler Darwin”, explicou a contessa. “E você? Gostou do livro?”, continuou, toda a discussão sobre a fofoca e o trabalho policial agora adiada.

“Sim, gostei quando li. Não acho que me lembre bem dele no entanto.”

“Então você devia lê-lo de novo. É um livro importante, provavelmente um dos mais importantes livros do mundo moderno. Este e o Origem das espécies, eu diria.” Brunetti anuiu. “Quer que eu lhe empreste quando terminar?”, ela perguntou. “Você não tem dificuldade em ler em inglês, tem?”

“Não, creio que não, mas tenho um bocado de coisas na fila de leitura por ora. Talvez mais para o fim do ano.”

“Mas claro. Seria uma bela escolha de leitura de férias, eu acho. Todas aquelas praias. Todos aqueles animais adoráveis.”

“Claro, claro”, concordou Brunetti, completamente sem saber o que dizer.

A contessa foi em seu auxílio. “E sobre quem é que você quer que eu fofoque, Guido?”

“Bem, não precisa ser exatamente fofoca, apenas me diga se a senhora ouviu algo sobre eles que possa ser de interesse para a polícia.”

“E por que tipo de coisas se interessa a polícia?”

Ele hesitou por um instante, mas por fim teve de confessar. “Por tudo, acho.”

“Sim, achei que seria assim”, ela disse. “Bem?”

“Signorina Benedetta Lerini”, ele disse.

“A que mora em Dorsoduro?”

“Essa.”

A contessa refletiu por um momento e então falou: “O que sei dela é que é muito generosa com a Igreja, ou pelo menos alega ser. Grande parte do dinheiro que herdou do pai — um homem terrível, imoral — foi para a Igreja”.

“Para qual paróquia?”

A contessa fez uma pequena pausa. “Não é estranho?”, ela perguntou, com um misto de surpresa e curiosidade. “Não tenho a mínima ideia. Tudo o que ouvi é que ela é muito religiosa e dá um bocado de dinheiro para a Igreja. Mas pelo que sei pode ser para os valdenses ou para os anglicanos, ou mesmo para aqueles terríveis americanos que abordam as pessoas no meio da rua, você sabe, aqueles que têm um monte de mulheres mas que proíbem você de beber Coca-Cola.”

Brunetti não tinha certeza de quanto essa informação servira para aumentar sua compreensão da signorina Lerini, então passou ao nome seguinte: “E a contessa Crivoni?”.

“Claudia?”, perguntou a contessa, sem se dar ao trabalho de disfarçar sua primeira reação a esse nome, que fora de surpresa, nem a segunda, que fora de prazer.

“Não sei se é este o nome dela. Sei que é a viúva do conde Egidio.”

“Oh, isso é muito..., é por demais saboroso”, disse a contessa em meio a uma risada estridente. “Queria contar tudo para minhas parceiras de bridge.” Vendo o pânico no olhar de Brunetti, ela se apressou em acrescentar. “Não precisa se preocupar, Guido. Não direi palavra. Nem mesmo para o Orazio. Paola já me falou de como não pode jamais dizer-me nada do que você comenta com ela.”

“Ela disse?”

“Sim.”

“Mas então ela lhe diz alguma coisa, não é?”, Brunetti perguntou sem poder se conter.

A contessa sorriu em resposta e repousou sua mão repleta de anéis em sua manga. “Me diga uma coisa, Guido, você respeita o seu juramento de policial, não respeita?”

Ele assentiu.

“Pois então... Eu sou leal a minha filha.” Ela sorriu novamente. “Agora, me diga, o que você gostaria de saber sobre a Claudia?”

“Algo sobre o marido dela. Como ela se relacionava com ele?”

“Ninguém se relacionava com Egidio, é preciso admitir”, disse a contessa sem hesitar, acrescentando então com reflexão pausada: “Mas creio que se possa dizer o mesmo com relação a Claudia.” Ela pensou no que acabara de dizer, como se não tivesse se dado conta disso até o momento em que o dissera. “O que você sabe sobre eles, Guido?”

“Nada além dos mexericos de praxe na cidade.”

“Que são...?”

“Que ele fez fortuna nos anos sessenta construindo edifícios irregulares em Mestre.”

“E quanto a Claudia?”

“Que ela se preocupa com a moralidade pública”, Brunetti disse cuidadosamente.

Ao ouvir isso, a contessa sorriu: “Oh, sim, por certo”.

Como ela se calou em seguida, Brunetti perguntou: “O que a senhora sabe sobre ela? Melhor, como a conheceu?”.

“Da igreja, San Simone Piccolo. Ela faz parte do comitê em busca de fundos para o restauro.”

“E a senhora também?”

“Deus do céu, não. Ela me convidou, mas eu sei que o papo de restauro é só fachada.”

“Para esconder o quê?”

“A San Simone é a única igreja na cidade em que a missa se reza em latim, sabia?”

“Não.”

“Acho que eles têm alguma ligação com aquele cardeal francês — Lefevre —, o da volta ao latim e ao incenso. Assim, deduzo que todo o dinheiro que eles arrecadem seja mandado para a França ou empregado na compra de incenso, e não para o restauro da igreja.” Ela ponderou por um momento e então acrescentou. “A igreja é tão feia que nem devia ser restaurada mesmo. Não passa de uma cópia ruim do Panteão.”

Por mais interessante que estivesse achando essa digressão arquitetônica, Brunetti deu um jeito de resgatar a contessa dela. “Mas o que a senhora sabe sobre ela?”

A contessa desviou o olhar de Brunetti para uma fileira de janelas quádruplas que se debruçavam sobre uma visão sem obstáculos dos palazzi do outro lado do Grande Canal. “O que será feito desta informação, Guido? Você pode me dizer?”

“E a senhora pode me dizer por que quer saber?”, ele perguntou a ela em lugar de responder.

“Porque por mais que seja uma pessoa desagradável, como Claudia é de fato, eu não queria vê-la sofrer injustamente por causa de uma fofoca que pode vir a se revelar não verdadeira.” E, antes que Brunetti pudesse dizer qualquer coisa, ela levantou uma mão e disse, a voz um pouco mais alta. “Não, eu acho que é mais honesto dizer que eu não quero ser responsável por infligir esse tipo de sofrimento.”

“Eu posso garantir que ela não vai sofrer nada que não seja merecido.”

“Acho muito ambígua essa sua declaração.”

“Sim, acho que é mesmo. A verdade é que eu não tenho a mínima ideia se ela fez alguma coisa. Na verdade, não tenho a mínima ideia sobre que tipo de coisa ela possa ter feito. Não sei nem mesmo dizer se algo errado foi feito.”

“E no entanto você veio até aqui fazer perguntas sobre ela?”

“Sim.”

“Então você deve ter algum motivo para estar curioso com relação a ela.”

“Sim, tenho. Mas garanto que não tenho nada mais que isso. E, se o que a senhora me disser eliminar minha curiosidade, não importando o que for, isso ficará só entre nós, eu lhe prometo.”

“E se não eliminar?”

Brunetti cerrou os lábios enquanto pensava sobre isso. “Então eu vou investigar o que a senhora tiver me dito para separar a verdade do mexerico.”

“Na maior parte das vezes, não há verdade nenhuma”, ela disse.

Ele sorriu ao ouvi-la dizer isso. Por certo, a contessa não precisava de ninguém que a lembrasse disso, mas com frequência era a verdade que servia de marco sólido para a construção do mexerico.

Depois de um longo intervalo, ela disse: “Há rumores sobre um padre”, e se calou.

“Que tipo de rumores?”

Ela balançou uma das mãos no ar como resposta.

“Qual padre?”

“Não sei.”

“O que a senhora sabe?”, ele perguntou baixinho.

“Foram afirmadas certas coisas. Nada explícito, claro, nada que pudesse ser interpretado senão como uma preocupação profunda e sincera pelo bem-estar dela.” Brunetti estava familiarizado com esse tipo de afirmações: comparativamente, a crucifixão era algo mais delicado. “Você sabe como essas coisas começam, Guido. Se ela falta a um encontro, alguém logo vai perguntar o que está acontecendo, outro alguém manifestará seu pesar desejando que não seja por doença ou algo semelhante, para em seguida acrescentar, naquele tom que as mulheres possuem, que é certo que é uma doença, já que sua saúde espiritual está sendo tão bem cuidada.”

“Isso é tudo?”, perguntou Brunetti.

Ela assentiu: “É o bastante”.

“E por que a senhora pensa tratar-se de um padre?”

A contessa balançou a mão novamente. “Tem algo a ver com o tom. As palavras não significam nada de fato; é tudo dito com o tom, a inflexão, a pista que se esconde sob a superfície da afirmação mais inocente.”

“E isso vem acontecendo há quanto tempo?”

“Guido”, ela disse, aprumando-se, “eu nem sei se algo está mesmo acontecendo.”

“Então, há quanto tempo esses comentários estão circulando?”

“Não sei. Há mais de um ano, acho. Demorei a percebê-los. Ou talvez as pessoas tomassem cuidado em não fazê-los na minha frente. Elas sabem que eu não gosto desse tipo de coisas.”

“Algo mais foi dito?”

“O que você quer dizer?”

“Por ocasião da morte do marido?”

“Não, nada de que eu me lembre.”

“Nada?”

“Guido”, ela disse, inclinando-se na direção dele e mais uma vez pousando sua mão cheia de joias em sua manga, “por favor, tente se lembrar de que eu não sou uma suspeita e tente não falar comigo como se eu fosse uma.”

Ele sentiu-se enrubescer, e disse imediatamente: “Sinto muito, sinto muito. Eu esqueço”.

“Sim. A Paola comentou comigo.”

“Comentou o quê?”

“Quão importante é para você.”

“O que é tão importante?”

“O que você considera ser a justiça.”

“O que eu considero?”

“Ah, desculpe, Guido. Acho que agora fui eu que o ofendi.”

Ele negou com um vigoroso aceno de sua cabeça, mas, antes que pudesse perguntar a ela o que ela quisera dizer por sua “ideia” de justiça, ela se levantou e disse: “Como está ficando escuro!”.

Aparentando tê-lo esquecido, ela foi se postar em frente a uma das janelas, as costas voltadas para Brunetti, as mãos cruzadas às costas. Brunetti a estudou, a roupa de seda pura, saltos altos e seu perfeito penteado. A contessa podia muito bem ser uma jovem ali parada, tão esbelto e esguio o seu perfil.

Após um longo tempo, ela se voltou, os olhos postos no relógio. “Orazio e eu temos um jantar para ir, Guido, então, se você não tem mais nenhuma pergunta, acho que tenho que ir me aprontando.”

Brunetti se levantou e atravessou o cômodo. Atrás da contessa os barcos se movimentavam para cima e para baixo no canal, e luzes escorriam da janela dos prédios do outro lado. Ele queria dizer algo a ela, mas, antes que pudesse falar, ela disse: “Por favor, transmita nosso amor a Paola e às crianças”. Ela deu uma batidinha em seu braço e passou por ele. Antes que ele pudesse dizer algo ela tinha partido, deixando-o a apreciar a vista do palazzo que um dia seria seu.


7

Brunetti voltou a seu apartamento pouco antes das oito, pendurou o sobretudo e foi direto para o escritório de Paola. Encontrou-a ali, como previsto, esparramada em sua alquebrada poltrona, sentada sobre uma perna, uma caneta em uma das mãos, um livro aberto em seu colo. Ela olhou para ele enquanto ele entrava, fez a mímica exagerada de um beijo em sua direção, mas em seguida voltou a concentrar-se no livro. Brunetti sentou-se no sofá em frente a ela e se acomodou deitando de lado nele, repousando a cabeça sobre duas almofadas de veludo. Depois olhou para o teto e fechou os olhos, cônscio de que ela iria primeiro terminar de ler o trecho do que quer que estivesse lendo e só então dedicar a atenção a ele.

Uma página foi virada. Minutos se passaram. Ele ouviu o livro ser largado no chão e disse: “Nunca soube que sua mãe lesse”.

“Bom, ela pede a Luciana que a ajude com as palavras grandes.”

“Não, estou falando da leitura de livros.”

“Em oposição a quê? À leitura de mãos?”

“Não, estou falando sério, Paola. Nunca soube que ela lesse livros sérios.”

“Ela ainda está lendo Santo Agostinho?”

Brunetti não soube dizer se isto era pra ser uma piada ou não, e respondeu: “Não. Darwin. The voyage of the Beagle”.

“Sério?”, disse Paola, parecendo pouco interessada.

“Você sabia que ela lia esse tipo de coisas?”

“Do jeito que você fala dá a impressão que ela está lendo pornografia infantil, Guido.”

“Não é isso, eu apenas queria saber se você sabia que ela lia livros desse tipo, que ela era uma leitora séria.”

“Ela é minha mãe, não é? Claro que eu sabia.”

“Mas você nunca me disse nada.”

“E isso iria fazer você gostar mais dela?”

“Eu gosto de sua mãe, Paola”, ele disse, com um tom de voz talvez excessivamente enfático. “O que eu quero dizer é que eu nunca soube quem ela era. Ou”, ele se corrigiu, “o que ela era.”

“E saber o que ela lê vai fazer você saber quem ela é?”

“Você consegue pensar em um jeito melhor de saber?”

Paola refletiu sobre isso por um longo tempo, e ao final respondeu do modo como ele previra. “Não, acho que não.” Ele ouviu ela se remexer na poltrona, mas continuou de olhos fechados. “E você foi conversar o que com minha mãe? E como descobriu sobre o livro? É claro que você não ligou para ela para pedir alguma sugestão de leitura.”

“Não, eu fui visitá-la.”

“Minha mãe? Você foi visitar a minha mãe?”

Brunetti grunhiu.

“E para quê?”

“Para fazer algumas perguntas sobre conhecidos dela.”

“Quem?”

“Benedetta Lerini.”

“U-lá-lá”, Paola exclamou em voz alta. “O que houve? Ela confessou afinal que deu uma marretada na cabeça daquele velho bastardo?”

“Acho que o pai dela morreu de um ataque cardíaco.”

“Para deleite universal, com certeza.”

“E por que universal?” Como Paola demorava a responder, Brunetti abriu os olhos e deu uma espiada nela, que estava agora sentada sobre a outra perna, o queixo apoiado numa das mãos. “E?”, ele insistiu.

“Engraçado, Guido. Sua pergunta me faz pensar que não sei o porquê. Acho que só disse isso porque sempre ouvi dizerem que ele era um homem terrível.”

“Terrível como?”

De novo ela demorou a responder. “Não sei. Não consigo me lembrar de nada, nada de minimamente específico que eu possa ter ouvido a respeito dele, apenas essa impressão geral de que ele era mau. Estranho, não?”

Brunetti fechou os olhos de novo. “Acho que sim, especialmente nesta cidade.”

“Você quer dizer, porque todo mundo se conhece.”

“Mais ou menos. Isso.”

“Também acho.” Os dois pararam de falar, e Brunetti soube que ela estava repassando em sua mente os longos eventos de sua memória, tentando recordar um comentário, uma afirmação, algum pedaço de opinião do falecido signor Lerini que ela aparentemente tivesse aceitado sem refletir, como se fosse dele.

A voz de Paola despertou um Brunetti prestes a cair no sono. “Foi a Patrizia.”

“Patrizia Belloti?”

“Sim.”

“E o que foi que ela disse?”

“Ela trabalhou para ele por uns cinco anos antes de ele morrer. Era por ela que eu tinha notícias dele e da filha. Patrizia disse que nunca tinha conhecido uma pessoa tão desagradável e que todos que trabalhavam com ele o detestavam.”

“Ele trabalhava no ramo imobiliário, não?”

“Sim, entre outras coisas.”

“E ela chegou a dizer o porquê?”

“O porquê do quê?”

“De as pessoas o detestarem?”

“Deixa eu pensar um pouco”, disse Paola. Então, após alguns instantes, ela continuou: “Acho que tinha alguma coisa a ver com religião”.

Brunetti meio que esperava por isso. Se a filha pudesse servir de exemplo, o pai tinha sido um daqueles santarrões preconceituosos que proibiam palavrões no escritório e davam rosários de presente no Natal. “E o que foi que ela disse?”

“Bem, você sabe como é a Patrizia, não sabe?” Amiga de infância da esposa, Patrizia nunca parecera interessante para Brunetti, embora ele tivesse de admitir que não a vira senão umas poucas vezes nestes anos todos.

“Hum hum.”

“Ela é muito religiosa.”

Brunetti lembrou-se: era esta uma das razões porque não gostava dela.

“Acho que ela me contou que certa vez ele fez um escarcéu porque alguém, uma nova secretária ou outra pessoa, pregou algum tipo de imagem religiosa no mural do escritório. Ou foi uma cruz. Não consigo mesmo lembrar exatamente o que ela me disse. Faz muitos anos. Mas ele fez uma cena, obrigou ela a tirar a imagem. E praguejou terrivelmente, também, lembro dela me dizendo. Um verdadeiro boca-suja — ‘porque a Madonna isto, porque a Madonna aquilo’ —, dizendo coisas que Patrizia era incapaz de repetir. Coisas que acho que ofenderiam até você, Guido.”

Brunetti ignorou essa revelação casual, que indicava que Paola aparentemente o considerava algum tipo de parâmetro para obscenidades; em vez disso, voltou seus pensamentos para essa revelação sobre o signor Lerini, sendo resgatado dessa deriva pela suave pressão do corpo de Paola que agora sentava a seu lado no sofá, próxima de sua coxa. Ele se espremeu mais para abrir espaço para ela, mas sem se preocupar em abrir os olhos, e foi então que sentiu o cotovelo, o braço e o seio roçarem através do seu peito.

“Por que você foi visitar minha mãe?”, sua voz vinha exatamente de baixo de seu queixo.

“Eu achei que ela pudesse conhecer a Lerini e a outra mulher.”

“Quem?”

“Claudia Crivoni.”

“E ela conhece a Claudia?”

“Hum hum.”

“E o que foi que ela disse.”

“Qualquer coisa sobre um padre.”

“Um padre?”, disse Paola, exatamente como Brunetti havia dito ao ouvir a mesma coisa.

“Sim, mas trata-se apenas de rumor.”

“O que significa que provavelmente é verdade.”

“E o que seria verdade?”

“Ah, Guido, não seja tapado. O que você pensa que é verdade?”

“Mas com um padre?”

“E por que não?”

“Mas eles não são obrigados a fazer os votos?”

Ela se afastou. “Você não existe. Será que você acha de fato que isso faz alguma diferença?”

“E não era para fazer?”

“Claro, e os filhos deviam ser obedientes e aplicados.”

“Não os nossos”, ele disse, e sorriu.

Ele sentiu o corpo de Paola chacoalhar-se em uma rápida gargalhada. “Isso lá é verdade. Mas, fala sério, Guido, você não acha mesmo que os padres são assim, acha?”

“Eu não acho é que ela esteja envolvida com alguém.”

“E o que te dá esta certeza?”

“Eu a vi”, ele disse, e subitamente agarrou Paola, segurando-a pelo pulso e jogando por cima de si.

Paola guinchou alto, surpreendida, mas o ruído que emitiu tinha o mesmo horror satisfeito que os gritinhos que Chiara fazia sempre quando Raffi ou Brunetti lhe faziam cócegas. Ela se debateu, mas Brunetti apertou seus braços em torno dela e a forçou a permanecer imóvel.

Após um momento ele disse: “Eu nunca conheci sua mãe”.

“Você a conhece há vinte anos.”

“Não, eu quis dizer que jamais a conheci como um ser humano. Depois de todos estes anos eu não tinha ideia de quem ela era.”

“Você parece triste”, disse Paola, apertando-se contra o peito dele para encará-lo mais de perto.

Ele relaxou o aperto. “É triste, conhecer uma pessoa por vinte anos e não ter sequer a mínima ideia de como ela seja. Todo esse tempo desperdiçado.”

Ela se virou e se mexeu em torno dele até suas curvas se encaixarem melhor em seu corpo. De repente, ele deixou escapar um “ouf” quando o cotovelo dela pressionou o estômago dele, mas logo ela ficou imóvel e ele a envolveu novamente num abraço.

Chiara, ao chegar meia hora depois, faminta e louca por um jantar, encontrou-os dormindo nessa posição.


8

No dia seguinte, Brunetti acordou com uma estranha e desanuviante sensação, como se uma febre repentina tivesse passado durante a noite e ele tivesse voltado ao normal. Ele permaneceu na cama ainda por um longo tempo, repassando toda a informação que havia acumulado nos últimos dois dias. Mas, não podendo admitir que tinha empregado bem o seu tempo, que a questura e suas obrigações estavam em boas mãos e que ele estava combatendo o crime, sentiu-se repentinamente constrangido por ter se ocupado com algo que, agora reconhecia, apresentava todos os indícios de ser uma brincadeira sem graça. Não satisfeito em dar crédito à história de Maria Testa, ele ordenou a Vianello que saísse com ele para interrogar pessoas que obviamente não tinham a mínima ideia da razão pela qual um commissario de polícia tinha ido até elas sem se fazer anunciar.

Patta voltaria dali a dez dias, e Brunetti não tinha dúvidas da reação dele quando soubesse como o tempo da polícia tinha sido empregado. Mesmo ali, na proteção e conforto de sua cama, o commissario podia sentir a frieza gélida dos comentários de Patta: “Com que então, você acreditou nessa história de freira, de uma mulher que esteve se escondendo em um convento durante toda a vida? E daí você foi atormentar essas pessoas, fazendo-as acreditar que seus parentes tivessem sido assassinados? Ficou maluco, Brunetti? Você sabe por acaso quem são essas pessoas?”.

Resolveu então, antes de deixar tudo para lá, ir procurar a última pessoa, aquela que poderia corroborar, se não a história de Maria, ao menos a confiabilidade desta como testemunha. E quem poderia conhecê-la melhor que o homem com quem ela havia se confessado pelos últimos seis anos?

O endereço que Brunetti procurava era próximo ao fim do sestiere de Castello, vizinho à igreja de San Francesco della Vigna. Os primeiros a quem pediu informação não tinham ideia de onde ficava o número que ele indicara, mas, quando ele perguntou onde poderia encontrar os padres da Sagrada Cruz, disseram de imediato que ficavam ao pé da próxima ponte, na segunda porta à esquerda. E assim era, indicado por uma pequena placa de latão com o nome da ordem gravado e ladeado por uma minúscula cruz de Malta.

Quem atendeu à porta após o primeiro toque da campainha foi um homem de cabelos brancos que bem podia ter sido uma daquelas figuras tão características da literatura medieval — o bom monge, cujos olhos irradiavam gentileza assim como o sol irradiava calor, o resto de seu rosto brilhando em um amplo sorriso, como se estivesse realmente feliz com a chegada desse estranho à sua porta.

“Posso lhe ajudar?”, perguntou, como se nada pudesse satisfazê-lo mais do que ser capaz de fazer exatamente isso.

“Gostaria de falar com o padre Pio Cavaletti, irmão.”

“Sim, sim. Entre, meu filho”, disse o monge, escancarando a porta e mantendo-a aberta para a passagem de Brunetti. “Cuidado ali”, disse, apontando para baixo e buscando instintivamente com a mão o braço de Brunetti para apoiá-lo enquanto este passava sobre o brasão de madeira em forma de cruz que era a parte baixa da pesada porta de madeira maciça. O monge trajava o longo hábito branco da ordem da sóror Immacolata, mas o dele tinha uma aparência encardida pelos anos de trabalho no jardim e pela poeira.

Ao entrar, Brunetti foi bafejado por uma doce fragrância, parando na hora para explorar o ambiente em busca de identificar o odor.

“Lilás”, esclareceu o monge, ficando orgulhoso pelo prazer que podia ler no rosto de Brunetti. “O padre Pio tem loucura por lilases, mandando trazê-los de todas as partes do mundo.” E de fato, como Brunetti pôde comprovar olhando ao redor, assim o era. Arbustos, ramos, até mesmo altas árvores preenchiam todo o jardim à frente deles, o aroma envolvendo-o em ondas. Enquanto observava, percebeu que somente alguns dos ramos vergavam sob o peso das flores anis; a maior parte nem sequer tinha florido.

“Mas são tão poucas, e o cheiro é tão forte”, disse Brunetti, sem conseguir disfarçar seu espanto com a força do perfume.

“Pois é”, disse o monge com um sorriso orgulhoso. “São as primeiras florações, as escuras: dilatata, claude bernard e ruhm von horstenstein.” Brunetti concluiu que o voo linguístico do monge estava relacionado aos nomes dos lilases que ele cheirava agora. “Aqueles brancos, ali, contra a parede mais distante”, ele começou, pegando Brunetti pelo cotovelo e apontando para a esquerda deles, para alguns arbustos repletos de folhas verdes que se reuniam contra o alto muro de tijolos, “são os white summers, marie finon e ivory silk — que não florirão antes de junho, alguns não antes de julho, contanto, claro, que o calor mesmo ainda demore.” Olhando em volta com um prazer que preenchia tanto sua voz quanto seu rosto, ele disse: “Há vinte e sete variedades neste jardim. E em nossa residência capitular lá em Trento, temos outras trinta e quatro”. Antes que Brunetti pudesse dizer algo, o monge prosseguiu. “Eles vêm até de Minnesota”, que ele pronunciou com o floreio consonantal típico da língua italiana, “e Wisconsin”, que ele mal conseguiu dizer.

“E o senhor é o jardineiro?”, perguntou Brunetti, apesar de não ser preciso.

“Graças ao bom Deus, sou eu sim. Trabalho neste jardim”, ele começou, observando Brunetti de mais perto, “desde que o senhor era um garoto.”

“É uma beleza, irmão. O senhor deve se orgulhar dele.”

O velho dirigiu a Brunetti um olhar de espanto de sob suas grossas sobrancelhas. Afinal, o orgulho era um dos sete pecados capitais. “Orgulho de algo belo assim render glória a Deus, quero dizer”, emendou Brunetti, restaurando ao monge o seu sorriso.

“O Senhor nunca faz nada que não seja belo”, disse o velho enquanto se punha a percorrer o caminho de tijolos que atravessava o jardim. “Se o senhor tiver alguma dúvida a respeito, tudo o que tem a fazer é dar uma olhada em Suas flores.” E, assentindo ele mesmo em confirmação a essa simples verdade, perguntou: “O senhor tem um jardim?”.

“Não, infelizmente, não”.

“Ah, que pena. Faz bem ver as coisas crescerem. Dá um sentido à vida.” Ele se aproximou de uma porta e a abriu, ficando de lado para dar passagem a Brunetti ao longo corredor do monastério.

“Crianças contam?”, disse Brunetti com um sorriso. “Tenho duas.”

“Oh, elas contam mais do que qualquer outra coisa no mundo”, disse o monge, sorrindo de volta. “Nada é mais belo, e nada oferece glória maior a Deus.”

Brunetti sorriu para o monge e assentiu em completo acordo, pelo menos com a primeira parte da proposição.

O monge parou em frente a uma porta e bateu. “Pode entrar”, ele disse sem esperar por uma resposta. “Padre Pio sempre nos diz para nunca impedirmos quem quer que seja que o queira ver.” E, após um sorriso e um tapinha no braço de Brunetti, o monge se recolheu, de volta a seu jardim e a seus lilases — os quais Brunetti sempre acreditou terem o cheiro do paraíso.

Um homem alto estava sentado à mesa, escrevendo. Quando Brunetti entrou, ele ergueu os olhos, pôs a caneta de lado e se levantou. Saindo de trás da mesa, caminhou em direção de seu visitante desconhecido, a mão estendida, um sorriso começando a se formar em seus olhos e em seguida passando à sua boca.

Os lábios do padre eram tão vermelhos e carnudos que quem o visse pela primeira vez iria por certo se concentrar neles, mas eram seus olhos que revelavam seu espírito. Em algum espectro entre o cinza e o verde, eram olhos ávidos de uma curiosidade e interesse pelo mundo a seu redor, e que fizeram Brunetti suspeitar que marcavam tudo o que ele fazia. Alto e muito magro, esta última característica ressaltada pelas longas dobras do hábito da Ordem da Sagrada Cruz. Apesar de parecer estar na casa dos quarenta anos, o seu cabelo ainda era preto, a única indicação de sua idade sendo uma incipiente tonsura natural no cocuruto.

“Buon giorno”, cumprimentou o padre com voz calorosa. “Como posso ajudá-lo?” Sua voz, apesar de evoluir na cadência sinuosa do Vêneto, não possuía o sotaque da cidade. Talvez fosse de Padova, Brunetti pensou, mas, antes que pudesse começar a responder, o padre continuou. “Mas perdão. Nem lhe convidei a sentar. Por favor, aqui.” E, dizendo isso, pegou uma das duas pequenas cadeiras com assento acolchoado que estavam à esquerda da mesa e aguardou que Brunetti estivesse acomodado antes de ele mesmo se acomodar na cadeira oposta.

De repente, Brunetti foi tomado pelo desejo de resolver isso rapidamente e liquidar a fatura, pôr um ponto final a Maria Testa e sua história. “Gostaria de falar com o senhor sobre um membro de sua ordem, padre.” Um golpe de vento invadiu o aposento, agitando os papéis sobre a mesa e lembrando a Brunetti a promessa de uma boa estação. Ele percebeu que estava muito quente e, olhando ao redor, viu que as janelas que davam para o jardim estavam abertas, permitindo que o odor dos lilases inundasse o aposento.

O padre notou para onde se dirigia o olhar do commissario. “Eu acho que passo o dia inteiro a manter os papéis no lugar com uma das mãos”, disse, com um sorriso envergonhado. “Mas a temporada dos lilases é tão curta, e eu gosto de apreciá-los o máximo que posso.” Ele baixou os olhos por um momento, levantando-os em seguida em direção de Brunetti. “Acho que é uma forma de gulodice.”

“Não acho que seja um vício grave, padre”, disse Brunetti com um sorriso franco.

O padre exprimiu com um aceno seus agradecimentos pela observação de Brunetti. “Espero que isto não soe indelicado, signore, mas acho que antes de discutir um membro de nossa ordem com o senhor tenho que lhe perguntar quem é o senhor.” Pontuou essa declaração com um sorriso encabulado, e estendeu uma das mãos a meio caminho entre eles, a palma aberta, num pedido de compreensão a Brunetti.

“Sou o commissario Brunetti”, ele disse, a modo de explicação.

“Um policial?”, perguntou o padre, sem fazer a mínima menção de tentar ocultar seu espanto.

“Sim.”

“Deus do céu. Não há ninguém ferido, há?”

“Não, não se trata disso. Vim até aqui para lhe fazer algumas perguntas sobre uma jovem que foi membro de sua ordem.”

“Foi, commissario ? Uma mulher?”

“Sim.”

“Então, temo não poder lhe ser de grande ajuda. A madre superiora poderia lhe dar mais informações do que eu. É ela a mãe espiritual das irmãs.”

“Creio que o senhor conhece a mulher de quem falo, padre.”

“Sim? Quem é ela?”

“Maria Testa.”

O sorriso que o padre deu foi uma tentativa completamente tranquilizadora de se desculpar por sua própria ignorância. “Acho que o nome não me diz nada, commissario. O senhor poderia me dizer o nome que ela tinha enquanto ainda era um membro de nossa ordem?”.

“Sóror Immacolata.”

O rosto do padre se iluminou em sinal de reconhecimento. “Ah, sim, ela trabalhou na casa de repouso San Leonardo. Era de grande ajuda aos pacientes. A maioria deles tinha um profundo carinho por ela, um sentimento que ela lhes devolvia. Fiquei triste ao saber de sua decisão em deixar a ordem. Rezei por ela.” Brunetti assentiu, e o padre continuou, a voz repentinamente alarmada. “Mas o que a polícia quer com ela?”

Desta vez, foi Brunetti que estendeu uma mão entre eles. “Queremos apenas fazer algumas perguntas sobre ela, padre. Ela não fez nada, acredite em mim.” O alívio do padre foi explícito. Brunetti prosseguiu. “O senhor a conhecia bem, padre?”

Padre Pio avaliou a pergunta por alguns momentos. “É difícil responder a isto, commissario.”

“Eu achei que o senhor era o confessor dela.”

Os olhos do padre se arregalaram ao ouvir isso, mas ele logo os baixou buscando esconder a surpresa. Juntou as mãos, avaliando o que iria dizer, voltando então a encarar Brunetti. “Imagino que isto possa parecer desnecessariamente complicado para o senhor, commissario, mas é preciso que eu faça aqui uma separação entre o meu conhecimento dela como um superior da mesma ordem e o conhecimento que tenho dela como seu confessor.”

“E por que isso?”, perguntou Brunetti, embora soubesse a resposta.

“Por não poder, sob pena de incorrer em grave pecado, revelar ao senhor nada do que ela me tenha dito sob o selo da confissão.”

“Mas as coisas que o senhor sabe dela como seu superior religioso, estas o senhor pode me dizer?”

“Sim, por certo, especialmente se forem de alguma ajuda para ela.” Ele separou as mãos e Brunetti notou que uma delas buscou as contas do rosário que pendia de seu cinturão. “O que o senhor gostaria de saber?”, perguntou o padre.

“Ela é uma mulher honesta?”

Desta vez, o padre não se preocupou em esconder seu espanto. “Honesta? O senhor quer saber se ela roubava?”

“Ou se mentia.”

“Não, ela nunca fez nem uma nem outra dessas coisas.” A resposta do padre foi imediata e sem restrições.

“E quanto à visão de mundo dela?”

“Acho que não entendi a pergunta”, ele disse, com um leve aceno da cabeça.

“O senhor acha que ela seja uma avaliadora precisa da natureza humana? Seria ela uma testemunha confiável?”

Após um longo momento de reflexão, o padre disse: “Creio que isso depende de o que ela estaria avaliando. Ou de quem”.

“Ou seja...?”

“Acho que ela é, bem, suponho que ‘excitável’ é uma palavra tão boa quanto outra qualquer. Ou ‘emocional’. Sóror Immacolata é muito predisposta a enxergar o bem nas pessoas, uma qualidade sem preço. Mas”, e aqui o rosto do padre ficou sombrio, “ela é ao mesmo tempo igualmente pronta a pressentir o mal.” Ele parou, medindo as palavras que iria dizer. “Temo que o que direi agora vai soar terrivelmente, como o pior tipo de preconceito.” O padre fez uma pausa, nitidamente incomodado pelo que ia dizer. “Sóror Immacolata é do Sul, e acho que, por conta disso, tem certa visão a respeito da natureza humana.” Padre Pio desviou o rosto e Brunetti pôde ver como seus dentes estavam cravados em seu lábio inferior, como se ele quisesse morder a parte ofensora e, assim, punir a si mesmo por ter dito o que dissera.

“Não seria o convento um lugar pouco propício para uma visão desse tipo?”

“Está vendo?”, disse o padre, nitidamente envergonhado. “Eu não sei como dizer o que eu quero dizer. Se eu pudesse falar em termos teológicos, eu diria que ela sofre de falta de esperança. Se ela tivesse mais esperança, então eu acho que ela teria mais fé na bondade das pessoas.” Ele parou de falar e moveu suas contas. “Mas temo que não possa dizer mais nada além disso, commissario.”

“Por temor de revelar algo que eu não deva saber?”

“Que o senhor não possa saber”, o padre disse, a voz repleta com o tom da mais absoluta certeza. Ao perceber a expressão que Brunetti lhe dirigiu, acrescentou: “Eu sei que isso a muitos parece estranho, especialmente no mundo de hoje. Mas trata-se de uma tradição tão velha quanto a Igreja, e eu acho que é uma das tradições que lutamos mais fortemente para manter. E devemos manter”. O sorriso que ele deu era um sorriso triste. “Temo não poder dizer mais nada além disso.”

“Mas ela não poderia mentir?”

“Não. Isso eu lhe asseguro. Nunca. Ela pode interpretar erroneamente ou exagerar, mas sóror Immacolata jamais mentiria intencionalmente.”

Brunetti se levantou. “Obrigado pelo seu tempo, padre”, disse, erguendo a mão em despedida.

O padre devolveu o cumprimento, num aperto firme e seco. Acompanhou Brunetti através do aposento e, à porta, disse apenas um “Vá com Deus” em resposta aos renovados agradecimentos deste.

Ao voltar ao jardim, Brunetti viu o jardineiro se ajoelhando em meio à poeira do muro dos fundos do monastério, as mãos cavando às raízes de uma roseira. O velho viu Brunetti e apoiou uma mão espalmada sobre o solo numa tentativa de se pôr de pé, mas Brunetti dirigiu-se a ele em voz alta: “Não precisa se preocupar, irmão, eu sei onde é a saída”. E, ao sair, o aroma dos lilases o perseguiu calle abaixo, até ele dobrar o primeiro quarteirão, seguindo-o qual uma bênção.

No dia seguinte, o ministro da Economia passou por Veneza, e, embora fosse uma visita de caráter inteiramente pessoal, ainda assim a polícia era responsável por sua segurança enquanto ele ficasse na cidade. Em razão disso e de um último surto de febre invernal que deixou cinco policiais de cama e um hospitalizado, as cópias dos testamentos das cinco pessoas que haviam morrido na Casa di Cura San Leonardo ficaram na mesa de Brunetti sem que ninguém as notasse por todo o fim de semana. Mesmo ocupado, Brunetti conseguiu se lembrar dos documentos, chegando mesmo a cobrá-los da signorina Elettra uma vez, somente para receber dela a resposta curta e grossa de que eles tinham sido deixados em sua mesa já havia dois dias.

Só depois que o ministro retornou para Roma, a um Ministério da Economia que lembrava os Estábulos de Áugias, foi que Brunetti voltou a pensar nas cópias dos cinco testamentos, e isso somente porque sua mão caiu sobre eles quando vasculhava sua mesa à cata de alguns documentos pessoais que perdera. Resolveu então examiná-los antes de passá-los para a signorina Elettra para que ela os arquivasse em algum lugar.

Brunetti era formado em direito, estando portanto familiarizado com a terminologia, com as cláusulas que determinavam, concediam, garantiam a posse de pedaços e porções do mundo a pessoas que ainda não haviam morrido. Lendo as cuidadosas frases não havia como não pensar no que Vianello havia dito sobre a impossibilidade de alguma vez se possuir de fato algo, pois aqui estava a prova dessa impossibilidade. Eles haviam passado adiante, a seus herdeiros, a ficção da propriedade, com isso perpetuando essa ilusão, até que mais tempo passasse e esses herdeiros também viessem a ter sua propriedade roubada deles pela morte.

Talvez os antigos chefes celtas mostrassem que tinham entendido isso direitinho, Brunetti especulou, ao dispor que seus tesouros e seus corpos sem vida fossem colocados em uma embarcação à deriva no mar. Ocorreu a Brunetti que essa repentina condenação das posses materiais não passasse de uma resposta ao período que acabara de despender na companhia do ministro da Economia, um homem tão grosso, vulgar e estúpido que tinha por certo o poder de pôr qualquer um contra a riqueza. Brunetti gargalhou ao pensar nisso e voltou a se concentrar nos testamentos.

Além do da signorina Da Prè, outros dois testamentos listavam a casa di cura, para a qual a signora Cristanti deixara cinco milhões de liras, nem de longe uma quantia considerável, e a signora Galasso, cujo espólio ficara todo para um sobrinho em Turim, outros dois milhões.

Brunetti trabalhava já por tempo suficiente como policial para saber que as pessoas matavam mesmo por quantias pequenas assim, e muitas delas quase despreocupadamente, mas também aprendera que havia poucos assassinos cuidadosos que iriam correr o risco de ir para a prisão por tão pouco. Não parecia ser o caso, portanto, de que tais quantias tivessem fornecido motivação suficiente a qualquer pessoa relacionada com a casa di cura.

Pela descrição do irmão, a signorina Da Prè parecia ser uma velha abandonada que havia se dedicado, até o fim da vida, a atos de caridade para a instituição onde passou seus últimos e solitários anos. O irmão afirmou que ninguém tinha oferecido oposição à contestação que ele fizera do testamento da irmã. Brunetti não conseguia imaginar que alguém que tivesse cometido assassinato para herdar alguma coisa fosse permitir que seu legado fosse tomado assim tão facilmente.

Ao conferir as datas percebeu que os testamentos de Lerini e Galasso que continham os dotes à casa di cura tinham sido feitos bem mais de um ano antes de suas mortes. Dos testamentos restantes, dois haviam sido assinados mais de cinco anos antes das mortes, e o derradeiro, doze anos antes. Seria preciso maiores doses de imaginação e cinismo que os de Brunetti para conceber alguma armação sinistra a partir disso.

O fato de que nada de criminoso tivesse ocorrido fazia sentido, embora um sentido perverso, para Brunetti, já que, ao conceber eventos secretos e malignos na casa di cura, eventos que somente ela podia enxergar, a sóror Immacolata podia justificar assim sua decisão de deixar a ordem que fora seu lar espiritual e físico desde que era uma adolescente. Por certo, Brunetti já presenciara as formas mais estranhas pelas quais a culpa se apresenta, mas raras vezes tinha visto tão poucas razões para a culpa em si. Percebeu então que não acreditava em sóror Immacolata, e foi tomado de uma tristeza profunda por ela ter iniciado de forma tão amargurada a sua vita nuova. Ela merecia mais da vida, e dela mesma, que essa perigosa invenção.

Os papéis, cópias dos cinco testamentos e as poucas notas que ele havia rascunhado após as visitas que fizera com Vianello às pessoas que interrogara foram destinados então não às mãos da signorina Elletra, mas à sua gaveta inferior, de onde não sairiam pelos próximos três dias.

Patta voltou das férias ainda menos interessado no trabalho policial do que quando partira. Brunetti se aproveitou disso e não fez a mínima menção a Maria Testa ou a sua história. A primavera avançava, e Brunetti foi visitar sua mãe na casa de repouso, uma visita tornada agora mais dolorosa pelo renovado sentimento de ausência da caridade instintiva da sóror Immacolata.

A jovem não fizera nenhuma nova tentativa de contatá-lo, de modo que Brunetti se permitiu incorrer na virtude da esperança, torcendo para que ela tivesse desistido de sua história, esquecido seus medos e começado sua nova vida. Brunetti chegou mesmo, por um dia, a decidir ir ao Lido para fazer uma visita a ela, mas, ao vasculhar o arquivo do caso, não conseguiu encontrar o pedaço de papel com o endereço dela, e também não conseguiu lembrar o nome das pessoas que a haviam ajudado a conseguir um emprego. Rossi, Bassi, Guzzi, algo assim, Brunetti tentou lembrar, mas logo a irritação com o retorno do vice-questore Patta à questura se apoderou dele, fazendo que esquecesse tudo que se relacionava à sóror até que, passados dois dias, atendeu o telefone e começou a conversar com um homem que se apresentou como Vittorio Sassi.

“Falo com o homem com quem Maria falou?” — Sassi perguntou.

“Maria Testa?” — perguntou Brunetti em resposta, embora soubesse de que Maria se tratava.

“Sóror Immacolata.”

“Sim, ela me procurou há algumas semanas. Qual o motivo de o senhor ligar para mim, senhor Sassi? Algum problema?”

“Ela foi atropelada.”

“Onde?”

“Perto daí, no Lido.”

“Para onde a levaram?”

“Para o pronto-socorro, de onde estou ligando agora, mas não estão me dando nenhuma informação sobre ela.”

“Quando foi que isto aconteceu?”

“Ontem à tarde.”

“E por que o senhor esperou tanto tempo para ligar para mim?” — Brunetti reclamou.

Fez-se um longo silêncio.

“Signor Sassi?” — chamou Brunetti, e, ao não obter resposta nenhuma, perguntou baixinho: — “Como é que ela está?”

“Mal.”

“Quem a atropelou?”

“Ninguém sabe.”

“O quê?”

“Ela estava voltando do trabalho ontem à tarde, de bicicleta. Parece que um carro a pegou por trás. O carro estava indo muito rápido e o motorista, seja quem for, não parou.”

“Quem a encontrou?”

“Um homem num caminhão. Ele a viu esparramada numa vala no acostamento e a trouxe para o hospital.”

“O estado dela é muito grave?”

“Eu não sei, não mesmo. Quando me localizaram esta manhã, disseram que ela tinha quebrado uma das pernas. Mas acham também que pode ter havido danos cerebrais.”

“Quem acha isto?”

“Eu não sei. Estou apenas repetindo o que disse a pessoa que ligou para mim.”

“Mas agora o senhor está no hospital?”

“Sim.”

“Como é que eles sabiam que deviam ligar para o senhor?”

“A polícia foi até a pensão em que ela estava hospedada ontem, acho que encontraram o endereço na bolsa dela, e o proprietário deu a eles o nome da minha esposa, pois se lembrava de que fomos nós que a levamos até lá. Mas eles só ligaram para mim hoje de manhã, e depois disso eu vim direto para cá.”

“E por que o senhor ligou para mim?”

“Quando ela foi para Veneza no mês passado, perguntamos aonde ela estava indo e ela respondeu que ia falar com um policial chamado Brunetti. Ela não comentou sobre o que ia falar, nem nós perguntamos, mas pensamos..., bem, pensamos que por se tratar de um policial o senhor iria querer saber o que tinha acontecido com ela.”

“Obrigado, signor Sassi. Fico feliz que o senhor tenha ligado. Depois de ter se encontrado comigo, como ela passou a agir?”

Se Sassi achou a pergunta estranha, não demonstrou.

“Do mesmo jeito de sempre. Por quê?”

Brunetti preferiu não responder, e fez outra pergunta.

“Quanto tempo o senhor pode ficar por aí?”

“Não muito mais. Tenho de voltar ao trabalho, e minha esposa está cuidando dos netos.”

“Qual é o nome do médico que está cuidando dela?”

“Não sei, commissario. Está um caos por aqui. Os enfermeiros estão em greve hoje, o que dificulta encontrar alguém para me dar qualquer informação. Ninguém parece saber nada sobre ela. Será que o senhor pode vir até aqui? Talvez o senhor eles atendam.”

“Chego em meia hora.”

“Ela é uma mulher muito generosa”, completou Sassi.

Brunetti, que a conhecia há seis anos, entendeu de coração a verdade contida nessas palavras.

Assim que Sassi desligou, Brunetti chamou Vianello e pediu a ele que agendasse um piloto e um barco para irem até o Lido dentro de cinco minutos. Depois pediu à telefonista que ligasse para o hospital de lá e pedisse para falar com o encarregado do pronto-socorro. Sua chamada foi transferida para a ginecologia, cirurgia e para a cozinha, até que ele perdeu a paciência, desligou e voou pelos degraus ao encontro de Vianello, Montisi e da lancha que os aguardava.

Enquanto singravam a laguna, Brunetti contou a Vianello sobre o telefonema de Sassi.

“Filhos da puta”, disse Vianello quando soube do atropelamento com fuga. “Por que não pararam? Deixá-la assim, para morrer à beira da estrada.”

“Talvez porque era isso o que queriam”, disse Brunetti, observando o sargento por fim compreender.

“Mas claro”, disse Vianello, fechando os olhos quando percebeu como tudo era simples. “Mas nem chegamos a ir até a casa di cura interrogar quem quer que fosse. Como é que eles souberam que ela falou conosco?”

“Não sabemos com quem ela falou desde que veio me procurar, não é?”

“Não, acho que não. Mas ela não teria sido tão tola para simplesmente começar a acusar alguém, seria?”

“Ela passou a maior parte de sua vida em um convento, sargento.”

“E isso quer dizer o quê?”

“Quer dizer que ela provavelmente pensa que basta dizer a alguém que eles fizeram algo errado e que imediatamente eles irão direto para a polícia dizer quanto lamentam e se entregar.”

Ao perceber quão banal soara o que acabara de dizer, Brunetti logo se arrependeu da própria leviandade.

“O que eu quero dizer é que ela provavelmente não é a melhor julgadora de caráter e que a maioria das motivações não iria fazer muito sentido para ela.”

“Acho que o senhor está certo. Um convento não é provavelmente a melhor preparação para este mundo degenerado que nós fizemos.”

Brunetti não conseguiu pensar em nada para responder a isso, então nada disse até que o barco entrasse em uma das baias reservadas para ambulâncias nos fundos do Ospedale al Mare. Ele e Vianello saltaram do barco e disseram a Montisi que esperasse por eles até que tivessem alguma ideia do que estava se passando. Uma porta de passagem abria para um corredor branco com piso de cimento.

Um atendente de jaleco branco veio correndo na direção deles.

“Quem são vocês? O que fazem aqui embaixo? Não é permitido entrar no hospital por esta entrada.”

Ignorando o que o homem dizia, Brunetti puxou sua carteira de policial e a acenou para o homem.

“Onde é o pronto-socorro?”

Ele observou enquanto o homem pensava em resistir ou se opor a eles, mas logo viu prevalecer a costumeira recusa italiana em contestar a autoridade, especialmente a autoridade uniformizada, e o homem indicou-lhes o caminho a seguir. Em minutos estavam aguardando no balcão da enfermaria, atrás do qual portas duplas se abriam para um longo e iluminado corredor. Não havia ninguém no balcão, e ninguém atendeu aos repetidos chamados de Brunetti por atenção.

Passados alguns minutos, um homem em um jaleco branco amarrotado veio detrás das portas.

“Por favor”, disse Brunetti, erguendo a mão num gesto de parar o homem.

“Sim?”, o homem perguntou.

“Onde é que eu encontro o encarregado dos atendimentos de emergência?”

“E por que o senhor quer saber?”, perguntou o homem em tom hostil.

Brunetti puxou de novo sua insígnia e a mostrou ao homem, que olhou para ela, voltou a olhar para Brunetti e perguntou:

“O que o senhor quer saber, commissario ? Sou eu o amaldiçoado a tomar conta deste pronto-socorro.”

“Amaldiçoado?”

“Perdão. Força de expressão. Estou aqui já há trinta e seis horas, tudo porque os enfermeiros resolveram entrar em greve. Estou tentando cuidar de nove pacientes auxiliado somente por um ordenança e um residente. Mas não acho que falar disso tudo vai me ajudar de alguma forma.”

“Lamento, doutor, mas não posso prender seus enfermeiros.”

“Que pena. Como posso ajudá-lo?”

“Vim ver uma mulher que foi trazida para cá ontem. Um caso de atropelamento. Me disseram que ela quebrou uma perna e sofreu algum dano cerebral.”

O médico reconheceu de pronto a descrição.

“Não, não foi a perna que quebrou, foi o ombro, e nem quebrou, mas se deslocou apenas. Algumas costelas podem ter sido quebradas. Eu estava preocupado era com as lesões que teve no crânio.”

“Estava, doutor?”

“Sim. Nós a transferimos para o Ospedale Civile pouco menos de uma hora depois de sua chegada aqui. Mesmo que eu tivesse todo o meu pessoal trabalhando hoje, não dispomos do equipamento necessário para tratar de uma lesão craniana como aquela.”

Não sem dificuldade, Brunetti conseguiu impedir que sua raiva fosse descarregada em alguém que não tinha nada com o caso e perguntou: “É muito grave?”.

“Ela estava inconsciente quando chegou. Coloquei o ombro dela no lugar e enfaixei suas costelas, mas não entendo o suficiente de lesões neurológicas. Fiz alguns testes, queria verificar por que ela não recobrava a consciência. Mas ela ficou tão pouco aqui que não tive o tempo necessário para me assegurar de nada.”

“Um homem esteve aqui há algumas horas, procurando saber dela”, disse Brunetti. “Ninguém lhe disse que ela tinha sido transferida para Veneza.”

O médico negou qualquer tipo de responsabilidade com um dar de ombros.

“Eu já lhe disse, estamos só em três aqui. Alguém deveria ter dito a ele.”

“Sim”, concordou Brunetti, “alguém devia ter dito a ele.” Em seguida, perguntou: “Tem mais alguma coisa que o senhor possa me dizer a respeito das condições dela?”.

“Não, o senhor terá de perguntar ao pessoal do Civile.”

“Onde ela está?”

“Se eles conseguiram encontrar um neurologista de plantão, ela vai ficar na UTI. Ou, pelo menos, deveria ficar.” O médico balançou a cabeça, de cansaço ou pela lembrança das lesões de Maria. Não dava para saber. De repente, uma das portas foi empurrada e de dentro surgiu uma jovem num jaleco também amarrotado.

“Dottore”, ela disse numa voz urgente e alta, “estamos precisando do senhor. Rápido.”

Ele se voltou e seguiu a mulher porta adentro, não se incomodando em acrescentar mais nada para Brunetti, que retornou por onde tinha vindo com Vianello, de volta para a lancha. Ao pisar no convés, disse para o piloto, sem explicar nada do que tinha se passado: “Toca para o Ospedale Civile, Montisi”.

Enquanto abriam caminho por entre as ondas frias, Brunetti permaneceu na parte de baixo, mas sem tirar os olhos das janelas de vidro das portas da cabine, enquanto Vianello contava a Montisi o que tinha acabado de acontecer. Quando terminou, os dois homens balançaram a cabeça desgostosos, sem dúvida a única resposta possível a qualquer tipo de contato mais prolongado com o sistema de saúde público.

Quinze minutos depois, o barco atracou ao lado do hospital municipal e Brunetti pediu de novo a Montisi que os aguardasse ali. Brunetti e Vianello sabiam de longa experiência onde ficava a UTI, e percorreram bem rápido os corredores labirínticos do hospital.

Vendo um médico que conhecia, no corredor do lado de fora da enfermaria, Brunetti foi a ele rapidamente.

“Buon giorno, Giovanni”, ele disse, ao ver que o médico o reconhecia com um sorriso. “Estou procurando por uma mulher que foi encaminhada para cá vinda do Lido, ontem à noite.”

“A da lesão na cabeça?”, perguntou o jovem médico.

“Sim. Como é que ela está?”

“Aparentemente ela bateu a cabeça na bicicleta e bateu de novo quando se chocou contra o chão. Tem um corte acima da orelha. Mas nós não conseguimos reanimá-la.”

“Alguém sabe...?”, Brunetti começou, mas parou por não saber o que iria perguntar.

“Não sabemos nada, Guido. Ela pode acordar hoje. Ou pode permanecer assim. Ou pode morrer.” Ele enfiou as mãos nos bolsos de seu jaleco.

“O que se pode fazer num caso como este?”, perguntou Brunetti.

“Providências médicas?”

Brunetti assentiu.

“Testes e mais testes. E depois rezamos.”

“Posso vê-la?”

“Não há muito que ver além de ataduras”, disse o médico.

“Mesmo assim, eu gostaria de vê-la.”

“Está certo. Mas somente você”, ele disse, olhando na direção de Vianello.

Vianello assentiu e caminhou para uma cadeira perto da parede. Depois de se sentar, pegou o segundo caderno de um jornal de dois dias antes e começou a ler.

O médico conduziu Brunetti corredor abaixo e parou à frente da terceira porta à direita.

“Estamos lotados, por isso colocamos ela aqui.” Ao dizer isso, empurrou a porta e entrou antes de Brunetti.

Era tudo familiar, o cheiro de flores e urina, as garrafas plásticas com água mineral postas em linha contra a janela para refrescar o ambiente, a impressão de miséria expectante. Havia quatro leitos no aposento, um deles vazio. Brunetti a viu assim que entrou, deitada na cama situada contra a parede mais distante. Ele não percebeu quando o médico saiu da enfermaria, fechando a porta. Caminhou logo em direção a Maria Testa, ficando primeiro parado ao pé da cama e depois se postando ao lado dela, atrás de sua cabeça.

Os grossos cílios dela eram agora quase invisíveis contra as escuras sombras sob os dois olhos; um pequeno tufo de cabelos pretos escapava de sob a atadura que cobria o cabelo. Um lado do nariz estava descorado pelo mercuriocromo aplicado sobre um arranhão que começava ali e se estendia pela bochecha. Os fios negros dos pontos começavam bem acima da bochecha esquerda e desapareciam por sob a bandagem.

Sob o leve cobertor azul, seu corpo parecia não ser muito maior que o de uma criança, estranhamente distorcido pela grossa atadura que cobria um ombro. Brunetti encarou primeiramente a boca da mulher e então, por não ter vislumbrado nenhum movimento ali, olhou para o peito. A princípio não teve certeza, mas logo viu o cobertor se erguer, ao ritmo da respiração silenciosa, e logo se abaixar. Com isso, relaxou.

A suas costas, uma das outras mulheres gemeu, e depois outras, talvez incomodadas com o som, e chamaram por “Roberto”.

Depois de algum tempo, Brunetti voltou pelo corredor, onde Vianello ainda lia o jornal. Acenou para ele e juntos voltaram ao barco e à questura.


9

Num acordo tácito e não planejado, os dois decidiram que não iam almoçar. Assim que retornaram à questura, Brunetti pediu a Vianello que ajustasse a ronda e providenciasse vigilância imediata à porta do quarto de Maria Testa, mantendo-a lá dia e noite.

Brunetti ligou para a delegacia do Lido, identificou-se, explicou por que estava ligando e perguntou se tinham descoberto algo sobre o atropelamento com fuga do dia anterior. Nada: nenhuma testemunha, nenhuma chamada para denunciar um amassado suspeito no carro de algum vizinho, nada, mesmo apesar de ter sido publicada uma notícia no jornal matutino fornecendo um número de telefone para onde ligar em caso de quaisquer informações que alguém tivesse sobre o acidente. Brunetti pediu a quem o atendeu que anotasse o seu número de telefone e, mais importante, seu cargo, e lhe informasse de imediato sobre qualquer novidade acerca do motorista ou do carro.

Em seguida, abriu sua gaveta e tirou as coisas dali até encontrar o arquivo abandonado. Pegou a cópia do primeiro testamento, o de Fausta Galasso, a mulher que deixou tudo para o sobrinho em Turim, e leu calmamente os itens relacionados: três apartamentos em Veneza; duas propriedades rurais perto de Pordenone; e dinheiro em três contas em bancos da cidade. Estudou os endereços dos apartamentos, mas não conseguiu extrair nada deles.

Apanhou o telefone e discou um número de memória.

“Imobiliária Bucintoro”, respondeu uma voz de mulher ao segundo toque.

“Ciao, Stefania”, ele disse, “é o Guido.”

“Reconheci sua voz”, ela disse. “Como vai, e, antes que me diga, por acaso você não está querendo comprar um apartamento adorável no Canaregio, cento e cinquenta metros, dois banheiros, três dormitórios, cozinha, sala de jantar e uma sala de estar com vista para a laguna ?”

“E qual o problema dessa maravilha?”, perguntou Brunetti.

“Guido?”, ela perguntou num tom de chocado espanto, emitindo a primeira sílaba com uma duração três vezes maior do que o seu tamanho natural.

“Ocupado e sem ter como botar o inquilino para fora? Precisa de um telhado novo? As paredes estão caindo?”, ele perguntou.

Houve um pequeno silêncio, seguido de uma esfuziante gargalhada.

“Acqua alta”, respondeu Stefania, “se a maré passar de um metro e meio você acordará com peixes em sua cama.”

“Não tem mais peixes na laguna, Stefania. Foram todos envenenados.”

“Algas marinhas, então. Mas, tirando isso, é um apartamento lindo, pode acreditar. Foi comprado por um casal americano há três anos, que gastou uma fortuna com a reforma, centenas de milhões de liras, mas se esqueceram de falar a eles sobre a água. Então, no inverno passado, quando tivemos acqua alta, perderam o parquete, a nova pintura e cerca de cinquenta milhões em mobília e tapeçaria. Finalmente, consultaram um arquiteto, que lhes disse não haver nada a fazer. Daí eles puseram o apartamento à venda.”

“E quanto eles estão pedindo.”

“Trezentos milhões.”

“Por cento e cinquenta metros?”

“Sim.”

“É uma pechincha.”

“Eu sei. Você conhece alguém que possa estar interessado?”

“Stefania, é uma pechincha pelo tamanho. Mas é também um desperdício.”

Ela não negou o fato, não disse nada.

“Você tem alguém em vista?”, ele perguntou por fim.

“Sim.”

“Quem?”

“Uns alemães.”

“Que bom. Espero que você consiga vender para eles.” O pai de Stefania tinha sido prisioneiro de guerra na Alemanha por três anos. A observação de Brunetti prescindia de explicação.

“Se você não está procurando um apartamento, está procurando o quê? Informação?”

“Stefania”, ele cantarolou em resposta, fazendo o mesmo com a segunda sílaba do nome dela que ela fizera com a primeira do nome dele. “Você acha que eu ligaria para você por alguma outra razão que não para ouvir sua doce voz?”

“Você de fato povoa os sonhos de uma garota, Guido. Vai logo, o que você quer saber?”

“Eu tenho três endereços e o nome do último proprietário. Queria saber se eles estão à venda e, se sim, qual o valor deles. Ou, se foram vendidos no ano passado, por quanto.”

“Vai demorar um ou dois dias”.

“Um dia?”

“Tá, um dia. Quais são os endereços?”

Brunetti deu a ela os três endereços e explicou que tinham sido todos deixados como herança para o sobrinho de uma mulher de sobrenome Galasso. Antes de desligar, Stefania disse a Brunetti que, se o negócio com os alemães não vingasse, ela contava com ele para encontrar alguém que a livrasse daquele apartamento. Ele aceitou pensar no assunto, mas parou antes de dizer que iria sugerir o negócio a seu vice-questore.

O testamento que reviu em seguida foi o da signora Renata Cristanti, a viúva de Marcelo. Brunetti não sabia o que o signor Cristanti fizera para ganhar a vida enquanto vivo, mas o que quer que fosse devia ter feito muito bem, pois o patrimônio da signora Cristanti compreendia uma longa relação de apartamentos, quatro armazéns e aplicações e investimentos num total de mais de 4 bilhões de liras, tudo deixado em partes iguais para os seis filhos do casal, os mesmos que nunca se deram ao trabalho de visitar a mãe na casa de repouso. Ao ler o documento, a primeira coisa que lhe ocorreu foi se perguntar como uma pessoa assim tão rica, e ainda por cima com seis filhos, tinha acabado seus dias em uma casa de repouso administrada por uma ordem de freiras com voto de pobreza, em vez de em alguma clínica ultramoderna que oferecesse todo tipo de tratamento e facilidades disponíveis à medicina geriátrica.

O conte Crivoni deixou para a esposa o apartamento em que ela vivia, além de dois outros apartamentos e alguns investimentos de valor impossível de determinar pela simples leitura do testamento. Não havia nenhum outro beneficiário nomeado.

Confirmando o que o signor Da Prè tinha dito, sua irmã tinha deixado tudo — sem contar com o contestado legado à casa de repouso — para ele. Ao nomeá-lo o único herdeiro, o testamento não relacionava propriedades ou aplicações específicas, tornando assim impossível saber o tamanho do espólio.

O signor Lerini tinha deixado tudo para a filha Benedetta, e novamente o fato de que nada havia sido relacionado em separado também impossibilitava uma medida do valor integral do patrimônio.

A campainha do intercomunicador soou.

“Pois não, vice-questore ?”, disse Brunetti ao apanhar o telefone.

“Quero falar com você um minuto, Brunetti.”

“Pois não, senhor. Estou descendo agora.”

Patta havia retomado o controle da questura já há mais de uma semana, mas até agora Brunetti dera um jeito de evitar qualquer encontro pessoal com ele. Ele tinha elaborado, para o retorno de Patta, um longo relatório das ações dos vários commissari durante a ausência do chefe, sem nenhuma menção a Maria Testa, à visita dela ou aos interrogatórios que isso o havia levado a fazer.

A signorina Elletra estava em sua mesa, no pequeno escritório contíguo à porta de Patta. Hoje ela trajava um muito feminino traje de executiva cinza-escuro, quase uma paródia dos paletós de dois botões de que Patta gostava. Como ele, ela tinha um lencinho dobrado no bolso à altura do peito e, também como ele, um alfinete cravejado de pedras preciosas prendendo a gravata de seda.

“Tá bom, pode vender o Fiat”, ele a ouviu dizer ao entrar. Surpreso, quase a interrompeu para dizer que não sabia que ela tinha um carro, mas ouviu-a continuar, “mas capitalize tudo imediatamente e compre umas mil ações daquela empresa de biotecnologia alemã que comentei com você na semana passada.” Ela levantou uma mão indicando a Brunetti que tinha algo para dizer a ele antes que ele entrasse no escritório de Patta. “E me livre daqueles papéis holandeses antes que o dia termine. Recebi uma ligação de um amigo que me disse o que o ministro da Economia deles vai falar na reunião do gabinete de amanhã.” A pessoa com quem ela falava aparentemente disse algo a que ela reagiu com raiva. “Não estou nem aí para o fato de sair no prejuízo, livre-se deles.”

Sem dizer mais nada, ela desligou e voltou a atenção para Brunetti.

“Papéis holandeses?”, ele perguntou a ela, polidamente.

“Se você tiver algum, livre-se deles.”

Brunetti não tinha, mas agradeceu o conselho mesmo assim. “Vai a alguma festa hoje?”, ele perguntou.

“Que gentil de sua parte em notar, commissario. Gostou?”

Ela se levantou e deu alguns passos saindo da mesa. Traje completo, com sapatos Oxford tamanho Cinderela e tudo.

“Uma beleza”, ele disse. “Perfeitos para falar com seu corretor.”

“É mesmo, não é? Pena que ele seja tão imbecil. Tenho que ensinar tudo a ele.”

“E o que é mesmo que você queria dizer pra mim?”

“Antes que você fale com o vice-questore, achei que seria melhor que eu lhe dissesse que estamos prestes a receber uma visita da polícia suíça.”

Interrompendo-a, Brunetti sorriu e, olhando de esguelha para o escritório de Patta, soltou uma piadinha: “Então ele descobriu sobre nossas contas numeradas?”.

Os olhos da signorina Elletra se arregalaram em choque, e com a mesma velocidade se cerraram em desagrado.

“Não, commissario”, ela disse em uma voz completamente profissional, “trata-se de algo relativo à Comissão Europeia, mas talvez o vice-questore Patta possa esclarecer melhor as coisas.” Ela voltou a se sentar e a se ocupar com o seu computador, dando as costas para Brunetti.

Brunetti bateu à porta e, ao ser convidado, entrou no escritório de Patta. O vice-questore, aparentemente, tinha voltado revigorado das férias. Seu nariz clássico e rosto imperial brilhavam com um bronzeado ainda mais impressionante pelo fato de ter sido adquirido em março. Parecia, também, que o vice-questore tinha perdido alguns quilos, ou então os alfaiates de Bangcoc sabiam como disfarçar melhor sua barriguinha que os de Londres.

“Bom dia, Brunetti”, disse Pata em uma voz totalmente agradável.

Tomando isso como um alerta, Brunetti não fez mais que responder com um muxoxo inaudível e se sentou sem ser para isso convidado. Quando Patta não demonstrou contrariedade nem mesmo com isso, Brunetti ficou ainda mais alerta.

“Queria agradecer por sua ajuda enquanto estive fora”, começou Patta, e os sinos de alarme em Brunetti começaram a soar tão alto que tornaram quase impossível prestar atenção ao que Patta dizia. Brunetti assentiu.

Patta deu alguns passos ao lado de sua mesa e de repente retornou a ela. Sentou-se em sua cadeira, reprovando a vantagem artificial de peso que ela lhe concedia sobre a pessoa que sentava à sua frente, levantou-se novamente e foi se sentar na cadeira ao lado de Brunetti.

“Como o senhor sabe, commissario, este ano é o ano internacional da cooperação policial.”

Na verdade, Brunetti não sabia nada disso. Mais, ele não dava a mínima para o fato, por saber que, fosse qual fosse o ano, isso ia acabar sobrando para ele, custando-lhe tempo e paciência.

“Você sabia disso, commissario?”

“Não.”

“Bom, acontece que é. Declarado pela Comissão Soberana da Comunidade Europeia.” Como Brunetti continuava impassível diante de tal maravilha, Patta perguntou: “Você não está curioso em saber qual será a nossa parte nisso tudo?”.

“‘Nossa’? De quem exatamente?”

Depois de uma pausa dedicada a decifrar a gramática, Patta respondeu: “Ora, da Itália, claro”.

“Há um bocado de cidades na Itália.”

“Sim, mas poucas tão famosas quanto a de Veneza.”

“E poucas tão livres do crime.”

Patta fez uma pausa após esse comentário, mas logo continuou, como se Brunetti estivesse concordando e sorrindo aprovadoramente a tudo o que ele dizia.

“No que nos diz respeito, seremos os anfitriões, durante os próximos poucos meses, dos chefes de polícia de nossas cidades-irmãs.”

“Quais cidades?”

“Londres, Paris e Berna.”

“Anfitriões?”

“Sim. Já que os chefes de polícia virão para cá, pensamos que seria uma boa ideia se pudessem trabalhar conosco, para terem alguma ideia de como é o trabalho policial aqui.”

“E deixe eu adivinhar, senhor. Vai começar tudo com Berna, e eu irei receber o policial de lá, e depois da visita dele estarei preparado para ir visitá-lo na dinâmica Berna, a mais excitante e bacana dentre as principais capitais do mundo, e ao senhor caberão as cidades de Paris e Londres?”

Se Patta ficou surpreso com a colocação das coisas nesses termos, não deu a mínima pista.

“Ele vai chegar amanhã, e eu marquei um almoço de negócios para os três. Depois pensei que você poderia levá-lo a um tour pela cidade na parte da tarde. Você poderia usar uma das lanchas da polícia.”

“Talvez até Murano, para uma visita aos sopradores de cristal?”

Patta assentiu e começou a dizer que aquela era uma boa ideia antes de o tom empregado por Brunetti se chocar com suas próprias palavras, e Patta parou.

“Parte das atribuições de nossa delegacia, Brunetti, é manter boas relações públicas.” De maneira típica, Patta disse a última frase em inglês, um idioma que ele não falava.

Brunetti se levantou.

“Está bem”, disse, e olhou para baixo, na direção do chefe ainda sentado. “Algo mais que o senhor queira dizer?”

“Não, acho que não. Nos encontramos amanhã na hora do almoço, certo?”


10

Ao sair, Brunetti surpreendeu a signorina Elletra em confabulação silenciosa com seu computador. Ao sentir a presença dele, ela se voltou e sorriu, numa aparente declaração silenciosa de que estava disposta a perdoar suas insinuações sobre contas secretas em bancos suíços.

“E então?”, ela perguntou.

“E então que eu vou ter que levar o chefe da polícia de Berna para um passeiozinho turístico pela cidade. Acho que devo me considerar um felizardo por ele não ter pedido para que eu o hospedasse em minha casa como meu convidado.”

“E o que ele quer que você faça com ele?”

“Não tenho a mínima ideia. Mostrar a cidade. Trazê-lo até aqui e deixar ele dar uma espiada. Talvez eu deva levá-lo para observar o pessoal fazendo fila em frente ao Ufficio Stranieri em busca de vistos de residência.” Embora não lhe agradasse o modo como se sentia a esse respeito, Brunetti não conseguia se libertar totalmente de um crescente incômodo em relação às hordas de pessoas que se juntavam todas as manhãs em torno daquela imensa fila. A maioria era composta de jovens rapazes, grandes contingentes vindo de países sem um elemento comum de ligação com a cultura europeia. Mesmo ao se apanhar pensando desse modo, ideias que enfeitava com uma linguagem sofisticada, percebia que estes, no fundo, eram exatamente os mesmos sentimentos que tinham constituído a base para os discursos xenófobos mais raivosos dos membros das várias Ligas que prometiam conduzir a Itália de volta a sua pureza cultural e étnica.

A signorina Elletra interrompeu essas lúgubres reflexões. “Pode não ser tão ruim assim, dottore. Os suíços nos ajudaram muito no passado.”

Ele sorriu.

“Quem sabe a senhora não poderia extrair algumas senhas dele, hein, signorina?”

“Oh, não acho que precisemos delas, senhor. Não é difícil obter os códigos da polícia. Já os que são de maior utilidade, os utilizados pelos bancos..., bem, nem mesmo eu desperdiçaria meu tempo tentando obtê-los.”

Sem atinar de onde tirara a ideia, Brunetti disse: “Signorina, queria que a senhora fizesse algo para mim”.

“Pois não, senhor”, ela respondeu, pegando uma caneta quase como se ele jamais tivesse feito a piadinha sobre as contas nos bancos suíços.

“Tem esse padre lá em San Paolo, padre Luciano não sei de quê. Não sei o sobrenome dele. Eu queria que a senhorita descobrisse para mim se ele já esteve envolvido em algum problema.”

“Problema, senhor?”

“Se ele já foi preso ou acusado de algo. Ou se é do tipo que vive sendo transferido de paróquia. Na verdade, eu queria que a senhora tentasse descobrir de que paróquia ele veio antes e o motivo pelo qual foi mandado para cá.”

Quase sem fôlego, ela disse: “Os bancos suíços seriam mais fáceis”.

“Perdão?”

“É muito difícil conseguir o tipo de informação que o senhor está pedindo.”

“Mas e se ele tiver sido preso?”

“O senhor não tem ideia de como coisas desse tipo têm uma tendência a desaparecer, commissario.”

“Coisas de que tipo?”, perguntou Brunetti, curioso pelo tom cauteloso na voz da signorina.

“Coisas como padres sendo presos. Ou quando isso cai na boca do público. Lembra daquele caso da sauna em Dublin e como saiu rápido das manchetes?”

Brunetti lembrou da história, revelada no ano passado, mas somente no Manifesto e no L’Unità, sobre o padre irlandês que tinha morrido de um ataque cardíaco numa sauna gay em Dublin e recebido as exéquias ali mesmo, de outros dois padres que por acaso também estavam ali no momento. O caso, que fizera Paola uivar de satisfação, sumiu dos jornais já no dia seguinte, e isso da imprensa de esquerda.

“Mas isso com certeza não acontece nos arquivos policiais”, ele insistiu.

Ela o encarou dando um sorriso de compaixão igualzinho aos que Paola sempre lhe oferecia ao encerrar uma discussão. “Vou conseguir o nome completo e dar uma verificada, senhor.” E mudando de assunto: “Algo mais?”.

“Não, creio que não”, disse Brunetti saindo dali e voltando lentamente para seu gabinete.

Nestes poucos anos em que a signorina Elettra vinha trabalhando ali na questura, Brunetti se acostumara com a ironia dela, mas ela ainda conseguia dizer coisas que o deixavam totalmente confuso, e ao mesmo tempo envergonhado para pedir a ela algum tipo de explicação, como acabara de acontecer com o comentário sobre os padres. Ele nunca discutira religião ou coisas do clero com ela, mas, após pensar no assunto, concluiu que a opinião da signorina sobre tais assuntos não estava assim tão distante da de Paola.

Já em seu gabinete, afastou da mente as reflexões sobre a signorina Elletra e a Santa Igreja Católica e apanhou o telefone. Quando Lele Bortoluzzi atendeu, no segundo toque, Brunetti disse ao pintor que estava ligando para falar de novo sobre o doutor Messini.

“E como é que você soube que eu já estava de volta, Guido?”, Lele perguntou.

“De volta de onde?”

“Da Inglaterra. Tive uma exposição em Londres e acabei de voltar, ontem à tarde. Ia mesmo ligar pra você.”

“Sobre?”, perguntou Brunetti, muito intrigado com o que o pintor acabara de dizer para se preocupar em fazer as perguntas polidas de praxe acerca da recepção da mostra de Lele.

“Parece que Fabio Messini gosta das mulheres”, respondeu Lele.

“Ao contrário de todos nós que não gostamos, Lele?”

Lele, cuja reputação na cidade nesses assuntos fora bem conhecida em sua juventude, deu uma gargalhada ao comentário de Brunetti.

“Não, o que eu quis dizer é que ele gosta da companhia de jovens e está disposto a pagar por isso. E aparentemente ele tem duas.”

“Duas?”

“Duas. Uma aqui na cidade, num apartamento de quatro quartos alugado por ele perto da San Marco, e outra no Lido. Nenhuma das duas trabalha, mas as duas se vestem muito bem.”

“E ele é o único?”

“Único que faz o quê?”

“Que as visita”, disse Brunetti eufemisticamente.

“Humm, sabe que eu não pensei em perguntar isso?”, disse Lele, num tom que demonstrava arrependimento por sua falta de percepção. “Dizem que as duas são muito bonitas.”

“Dizem? É quem é que diz?”

“Amigos”, respondeu Lele enigmaticamente.

“E o que mais eles dizem?”

“Que ele visita cada uma delas duas ou três vezes por semana.”

“E quantos anos mesmo você disse que ele tinha?”

“Eu não disse, mas ele tem a minha idade.”

“Minha nossa”, disse Brunetti em um tom de voz neutro, e em seguida, depois de uma pausa, perguntou: “E por acaso os seus amigos disseram algo sobre a casa de repouso?”.

“Casas”, Lele o corrigiu.

“E quantas são?”

“Parece que atualmente são cinco, a daqui e outras quatro no continente.”

Brunetti ficou sem falar por um tempo tão longo que Lele teve que perguntar: “Guido, você ainda está aí?”.

“Estou, Lele, estou.” E após refletir por um momento, perguntou: “Os seus amigos sabem de mais alguma coisa sobre as casas de repouso?”.

“Não, somente que a mesma ordem religiosa trabalha em todas elas.”

“As Irmãs da Sagrada Cruz?”, ele perguntou, dando o nome da ordem que administrava a casa de repouso onde ficava a sua mãe e da qual Maria Testa não fazia mais parte.

“Sim. Em todas as cinco.”

“Então, como é que ele pode ser o proprietário?”

“Eu não colocaria as coisas assim. Eu não sei se ele é o proprietário de fato das instituições ou se é apenas o diretor. O fato é que ele está no comando de todas elas.”

“Entendo”, disse Brunetti, já planejando o seu próximo passo. “Obrigado, Lele. E seus amigos disseram algo mais?”

“Não”, Lele respondeu num tom de voz seco. “Há alguma coisa mais em que eu possa lhe ser útil, commissario ?”

“Lele, eu não tive a intenção de ser rude. Desculpe. Você sabe como eu sou.”

Lele, que conhecia Brunetti desde o nascimento, sabia com certeza. “Deixa estar, Guido. Venha me visitar de vez em quando, tá?”

Brunetti prometeu que iria, despediu-se calorosamente, desligou o telefone, em seguida esqueceu a promessa e pegou o telefone de novo, pedindo à telefonista que descobrisse o número da Casa di Cura San Leonardo, que ficava próxima do Ospedale Giustiniani, e ligasse para lá.

Alguns minutos depois ele já conversava com a secretária do dottor Messini, o diretor da instituição, marcando um encontro para as quatro daquela tarde a fim de discutir a transferência de sua mãe, Regina Brunetti, para lá.


11

Apesar de o hospital Giustiniani não ficar muito longe da casa de Brunetti, localizava-se em uma parte que ele não conhecia muito bem, sem dúvida porque ficava fora do trajeto entre sua casa e as partes da cidade que ele frequentava no dia a dia. Ele chegava perto do local somente quando acontecia de cruzar por ali ao voltar da Giudecca ou, às vezes, num domingo, quando ele e Paola iam ao Zattere para aproveitar o sol em um dos cafés à beira dos canais e ler os jornais.

O que ele sabia daquela área era mais lenda do que fato, como de resto o era a maioria do que ele e seus compatriotas venezianos costumavam saber sobre sua própria cidade. Atrás daquele muro ficava o jardim de uma antiga estrela de cinema, que era agora a esposa daquele empresário de Turim. Atrás daquele outro ficava a residência do último membro da família Contradini, que, dizia-se, não saía dali fazia vinte anos. Mais adiante ficava a porta para a residência da última Dona Salva, que só era vista nas noites de estreia das óperas, sempre no camarote real, e sempre trajando vermelho. Brunetti lembrava desses muros e portas do mesmo modo que outras crianças reconheciam os heróis dos desenhos animados e da televisão, e como aquelas figuras, essas casas e palazzi falavam a ele de sua juventude e de um modo diferente de ver o mundo.

Assim como as crianças superavam os absurdos de Topolino ou Braccio di Ferro e passavam a entender a ilusão que os sustentava, Brunetti veio, durante seus anos como um oficial de polícia, a compreender que, na maior parte das vezes, negras realidades espreitavam por trás dos muros de sua juventude. A atriz bebia, e o empresário de Turim tinha sido preso duas vezes por espancá-la. O último dos Contradini tinha de fato ficado isolado dentro da própria casa por vinte anos, mantido confinado atrás de um grosso muro ao qual foram chumbados pequenos cacos de vidro e sendo cuidado por três criados que não o contradiziam em nada em sua crença de que Mussolini e Hitler ainda governavam e mantinham assim o mundo a salvo daqueles judeus nojentos. E, quanto a Dona Salva, poucos perceberam que ela ia à opera acreditando que lá receberia as vibrações do espírito de sua mãe, que morrera no mesmo camarote havia sessenta e cinco anos.

A casa de repouso ficava atrás de outro muro ainda mais alto. Uma placa de bronze informava o nome da instituição e que os horários de visita iam das nove às onze da manhã, todos os dias da semana. Após tocar a campainha, Brunetti recuou alguns passos, mas não conseguiu enxergar cacos de vidro chumbados na parte de cima do muro. Ora, ninguém que estivesse internado em uma casa de repouso teria forças para escalar um muro daqueles, com ou sem cacos de vidro, Brunetti lembrou a si mesmo. Além disso, os velhos e os doentes não tinham nada a perder além de suas vidas.

A porta foi aberta por uma freira em um hábito branco, cuja altura não chegava aos ombros de Brunetti. Por instinto, ele se curvou para falar com ela, explicando: “Boa tarde, irmã, tenho hora marcada com o dottor Messini”.

Ela olhou para cima com expressão confusa. “Mas o doutor só passa por aqui às segundas.”

“Eu falei com a secretaria dele hoje de manhã e ela me pediu para passar por aqui às quatro para tratarmos da transferência de minha mãe para cá.” Após dizer isso, Brunetti olhou rapidamente para o relógio na tentativa de disfarçar o seu desagrado. A secretária tinha sido categórica quanto à hora marcada, e Brunetti se irritou por não haver ninguém à sua espera.

A irmã sorriu, deixando que Brunetti percebesse pela primeira vez quão jovem ela era. “Oh, então o senhor deve ter um horário com a dottoressa Alberti, a vice-diretora.”

“Provavelmente”, concordou Brunetti, afável.

A irmã recuou abrindo passagem para Brunetti, que passou então pela porta e viu-se em um enorme pátio com um poço no centro. No espaço coberto, as rosas estavam prestes a florir, e ele podia sentir o doce aroma de um lilás que floria em um canto. “Que lugar bonito”, ele elogiou.

“É, não é?”, ela disse, voltando e conduzindo-o a uma entrada no lado oposto do pátio.

Enquanto percorriam o pátio ensolarado, Brunetti os viu sob as sombras das varandas externas que cobriam os dois lados daquele espaço. Organizados em um único grupo, como um memento mori rascunhado, sentavam-se ali, seis ou sete, imóveis em suas cadeiras de roda, olhando para a frente com olhos tão ocos como o daqueles ícones gregos. Ele passou caminhando na frente deles, mas nenhum dos velhos registrou sua passagem ou prestou qualquer atenção em Brunetti.

Dentro, Brunetti achou que os muros tinham um tom amarelo-claro mais agradável, com corrimões para apoio em toda a sua extensão. O chão era imaculado, com uma ou outra mancha ocasional deixada pela borracha dos pneus das cadeiras de rodas.

“Aqui embaixo, por favor, senhor”, disse a jovem freira, virando em um corredor à esquerda. Ele a acompanhou, tendo somente o tempo de notar que o que parecia ter sido antes a principal sala de jantar, com afrescos e candelabros, ainda servia para isso, mas agora com mesas com tampo de fórmica e cadeiras de plástico moldado.

A freira parou frente a uma porta, bateu uma vez e, ao ouvir algo vindo de dentro, abriu-a para permitir a entrada de Brunetti.

O escritório em que Brunetti entrou tinha quatro janelas que davam para o quintal, e a luz que recebia se refletia nos pequenos fragmentos de mica presentes no assoalho veneziano, enchendo o local de um brilho mágico. A única mesa ficava em frente das janelas, o que a princípio dificultou a Brunetti identificar a pessoa sentada atrás dela, mas, assim que seus olhos se acostumaram aos raios de luz que caíam sobre si, conseguiu distinguir o perfil de uma mulher encorpada, trajando o que parecia ser um jaleco preto.

“Dotoressa Alberti?”, ele perguntou, aproximando-se um pouco para a frente e para a direita, de modo a ficar sob um retalho de sombra projetada por um pedaço da parede que separava as janelas.

“Signor Brunetti?”, ela disse, saindo de sua mesa e dirigindo-se a ele. Sua primeira impressão se confirmava: tratava-se de uma mulher grande, quase do tamanho dele, e provavelmente com um peso igual, a maior parte dele tendo se acumulado em seus ombros e quadris. Tinha um rosto redondo e rosáceo, o rosto de uma mulher que gostava de comer e beber. O nariz, surpreendentemente minúsculo e empinado. Os olhos, castanhos e bem separados, eram por certo seu ponto forte. Seu jaleco era uma tentativa bem-sucedida de embrulhar seu corpo em negro.

Trocou com ela um aperto de mãos, surpreso em receber de volta uma daquelas mãos abandonadas que a maioria das mulheres costuma oferecer no lugar de um aperto de verdade. “Prazer em conhecê-la, dottoressa, e obrigado por ter encontrado um tempo para me receber.”

“Não é mais do que nossa contribuição para a comunidade”, ela disse simplesmente, e Brunetti ainda demorou um pouco até perceber que ela estava falando sério.

Depois de acomodado na cadeira de frente para a mesa da dottoressa e de ter declinado sua oferta de um café, ele explicou que, como tinha dito à secretária dela por telefone, ele e o irmão estavam pensando em transferir a mãe deles para a San Leonardo, mas queriam saber como era o lugar antes de tomar essa medida.

“A San Leonardo começou suas atividades há seis anos, signor Brunetti, abençoada pelo patriarca e administrada pelas excelentes irmãs da Ordem da Sagrada Cruz.”

Brunetti anuiu, como a indicar que reconhecera o hábito da irmã que o conduzira até ali.

“Somos um estabelecimento misto”, ela disse, e, antes que continuasse, Brunetti disse:

“Acho que não compreendo o que a senhora está querendo dizer, dottoressa.”

“Quero dizer que temos aqui pacientes que vêm do sistema público de saúde, que fica responsável pelas suas despesas. Mas temos também pacientes particulares. O senhor poderia me informar que tipo de paciente é a sua mãe?”

O longo tempo que desperdiçou nos corredores da burocracia, para assegurar que a mãe tivesse o direito ao tratamento garantido a ela pelos quarenta anos de trabalho do pai, faziam que Brunetti soubesse muito bem que ela era uma paciente que tinha cobertura do serviço de saúde público, mas ele sorriu para a dottoressa Alberti ao dizer: “Uma paciente particular, naturalmente”.

Ao ouvir isso, a dottoressa pareceu se expandir e ocupar um espaço ainda maior por trás de sua mesa. “O senhor entende, claro, que isso não implica nenhuma diferença no modo pelo qual nossos pacientes são atendidos. Costumamos perguntar apenas para facilitar os procedimentos de cobrança.”

Brunetti anuiu e sorriu como se acreditasse no que ela havia acabado de dizer.

“E a saúde de sua mãe?”

“Boa. Boa.” Ela pareceu menos interessada nesta resposta do que na anterior.

“E para quando o senhor e seu irmão pensam em transferi-la para cá?”

“Pensamos em fazê-lo antes do fim da primavera.”

A dottoressa voltou a sorrir e assentiu ao ouvir o que ele acabara de dizer.

“Naturalmente”, Brunetti acrescentou, “eu não gostaria de acertar isto antes de ter alguma ideia do que a sua instituição tem a oferecer.”

“Mas é claro”, disse a dottoressa, estendendo o braço para o lado esquerdo de sua mesa, onde havia uma pequena pasta. “Tenho aqui todas as informações, signor Brunetti. A lista completa de todos os serviços que oferecemos a nossos pacientes, uma relação de nossa equipe médica, um pequeno histórico de nossa clínica e da Ordem da Sagrada Cruz, além de uma lista de nossos patronos.”

“Patronos?”, perguntou Brunetti polidamente.

“Aqueles membros da comunidade que se dispuseram a falar bem de nós e que permitiram que fizéssemos uso de seus nomes. É um tipo de recomendação da alta qualidade do cuidado que oferecemos a nossos pacientes.”

“Claro. Entendi. E há também uma tabela dos seus preços aqui?”

Se a dottoressa Alberti achou a pergunta de algum modo brusca ou não de bom-tom, ela guardou essa opinião para si e respondeu afirmativamente a Brunetti com um aceno de cabeça.

“E seria possível dar uma olhada no lugar, dottoressa ?” Ao perceber que ela se surpreendera, ele acrescentou: “Para ter uma ideia se a nossa mãe iria ficar feliz aqui”. Depois, Brunetti desviou a atenção dela, como se estivesse interessado nos livros que preenchiam as paredes daquele escritório. Ele não queria que a dottoressa visse o mínimo indício em seu rosto da dupla mentira: sua mãe jamais iria para aquele lugar, assim como jamais voltaria a ser feliz.

“Não vejo por que uma de nossas irmãs não possa mostrar-lhe o lugar, signor Brunetti, pelo menos algumas partes dele.”

“Isto seria muito gentil de sua parte, dottoressa”, disse Brunetti, levantando-se, com um sorriso de satisfação.

Ela apertou um botão sobre a mesa e, após alguns minutos, a mesma jovem freira entrou no escritório, desta vez sem bater. “Pois não, dottoressa ?”

“Irmã Clara, eu gostaria que a senhora levasse o signor Brunetti para conhecer a sala diurna e a cozinha, e talvez um dos dormitórios privados também.”

“Tenho uma última pergunta, dottoressa”, ele disse, como se tivesse acabado de lembrar disso.

“Sim?”

“Minha mãe é uma pessoa muito religiosa, muito devota. Se for possível, eu gostaria de trocar umas palavrinhas com a madre superiora.” Ao perceber que ela estava propensa a negar o seu pedido, ele se apressou em completar. “Não é que eu tenha alguma dúvida; só ouvi elogios sobre a San Leonardo. Mas eu prometi a minha mãe que falaria com ela. E eu não posso mentir e dizer a ela que falei se não tiver falado.” E completou isso com o seu sorriso bonachão, solicitando a ela que entendesse sua situação.

“Bem, não é algo comum”, ela começou, e voltou-se para a irmã Clara. “A senhora acha que seria possível, irmã?”

A irmã balançou a cabeça afirmativamente, e disse: “Acabei de ver a madre superiora saindo da capela”.

Voltando-se para Brunetti, a dottoressa disse: “Sendo assim, o senhor poderá trocar algumas palavras com ela. Irmã, a senhora poderia levar o signor Brunetti até lá após ele visitar o quarto da signora Viotti?”.

A freira concordou e voltou para a porta. Brunetti aproximou-se da mesa e estendeu a mão. “A senhora me ajudou muito, dottoressa. Obrigado.”

Ela se levantou e devolveu o cumprimento. “Não há mesmo de quê, signore. Se eu puder lhe ajudar mais com quaisquer outras perguntas que o senhor possa ter, não hesite em ligar.” E, dizendo isso, apanhou o folheto e o entregou a Brunetti.

“Ah, sim”, ele disse, apanhando-o com um sorriso agradecido e dirigindo-se para a porta. Ao passar por ela, agradeceu mais uma vez antes de seguir atrás da irmã Clara.

Voltando ao pátio, ela virou à esquerda, entrou novamente no prédio e começou a caminhar por um amplo corredor, que terminava em uma grande área descoberta onde alguns velhos estavam sentados. Um par deles estava absorto em conversas que aparentavam ter ficado desconexas de tanta repetição. Outros se mantinham sentados em suas cadeiras, recordando, ou talvez se lamuriando.

“Este é o solário”, disse a irmã, salientando o óbvio. Deixando Brunetti por um momento, ela se adiantou e apanhou uma revista que havia caído das mãos de uma senhora, devolvendo-a a ela e conversando um pouco com a mulher. Antes de juntar-se novamente a Brunetti, ele a ouviu dizer algo encorajador à velha em veneziano.

Quando ela voltou, ele se dirigiu a ela naquele dialeto: “A casa em que minha mãe se encontra atualmente também é administrada pela sua ordem”.

“Qual delas?”, ela perguntou, não realmente curiosa, mas por força do costume de sempre demonstrar interesse, reação que Brunetti esperava dela, tendo o ofício que tinha.

“Em Dolo, a Casa Marina.”

“Ah, sim, nossa ordem já tem alguns anos lá. E por que o senhor quer mudá-la para cá?”

“Fica mais perto de onde eu e meu irmão moramos. Quem sabe assim nossas esposas terão mais disposição para visitá-la.”

A irmã concordou com um aceno, compreendendo sem dúvida quão arredias eram as pessoas na hora de visitar os velhos, principalmente se não eram seus pais. De novo ela conduziu Brunetti de volta pelo corredor até o quintal.

“Tinha uma irmã que ficou lá por muitos anos, mas que foi transferida para cá, eu acho. Há cerca de uma ano”, disse Brunetti, cuidadosamente, com estudado desinteresse.

“É mesmo?”, perguntou a irmã, com a mesma polida curiosidade. “E como ela se chamava?”

“Sóror Immacolata”, ele disse, observando de cima a reação da freira.

Ele pareceu errar o passo, ou antes, pisar com muita força no chão irregular. “A senhora a conheceu?”

Ele percebeu que ela se debatia com a mentira. Mas ela acabou dizendo “Sim”, mas sem acrescentar mais nada.

Fingindo não ter percebido sua reação, Brunetti acrescentou: “Ela foi muito boa para a minha mãe. Na verdade, minha mãe ficou muito apegada a ela. Meu irmão e eu ficamos muito felizes por ela estar aqui, porque ela parece, bem, ela parece capaz de exercer uma influência calmante em nossa mãe.” Brunetti olhou para a irmã Clara, e acrescentou: “Tenho certeza que a senhora entende como é com os velhos. Eles às vezes...”, ele perdeu intencionalmente a meada.

Abrindo uma porta, a irmã Clara disse: “E esta é a cozinha”.

Brunetti olhou ao redor, aparentando interesse.

Terminada a inspeção da cozinha, ela o conduziu à direção oposta, para o alto, por um lance de escadas. “As pacientes ficam aqui em cima. A signora Viotti saiu com o filho hoje, então dá para o senhor ver o quarto dela.” Brunetti se conteve para não dizer que achava que a signora Viotti devia ser informada disso e acompanhou a freira pelo corredor, cuja cor era creme claro, mas também com os mesmos onipresentes corrimões de apoio.

Ela abriu uma porta e Brunetti observou o interior do quarto, dizendo o mesmo que todos dizem quando apresentados a um ambiente de confortável esterilidade. Findo isso, a irmã Clara tomou novamente o rumo das escadas.

“Antes de encontrar a madre superiora eu gostaria de dar um olá à sóror Immacolata”, disse Brunetti, apressando-se a acrescentar, “se for possível, claro. Não gostaria de atrapalhar seus afazeres.”

“Sóror Immacolata não está mais aqui”, disse a irmã Clara com voz firme.

“Oh, que pena. Minha mãe ficará tão desapontada. Assim como meu irmão.” Ele tentou dar um tom filosófico e resignado à sua voz ao completar: “Mas a obra de Deus deve ser feita, não importando para onde sejamos mandados”. Como a freira não disse nada em resposta, Brunetti perguntou: “Ela foi enviada para trabalhar em outra casa de repouso, irmã?”.

“Ela não está mais entre nós”, respondeu a freira.

Brunetti estacou, como se assombrado. “Morta? Deus do céu, irmã, que terrível.” Então, lembrando-se da fé e de seus ditames, sussurrou: “Que Deus tenha piedade de sua alma”.

“Que Deus tenha piedade de sua alma, mesmo”, ecoou a irmã Clara, voltando-se para ele. “Ela deixou a ordem. Não morreu. Ela foi surpreendida por um dos pacientes quando roubava dinheiro dele em seu quarto.”

“Misericórdia”, exclamou Brunetti, “que coisa!”

“Quando ele a surpreendeu, ela o empurrou e ele caiu no chão e quebrou o pulso, e então ela partiu, simplesmente desapareceu.”

“E chamaram a polícia?”

“Não, acho que não. Ninguém queria provocar escândalo.”

“Quando aconteceu?”

“Há algumas semanas.”

“Bem, eu acho que a polícia devia ser informada. Uma pessoa como essa não devia ficar circulando livre por aí. Aproveitando-se da confiança e da fraqueza dos mais velhos. Que revoltante.”

Irmã Clara não fez nenhum comentário em resposta. Conduziu-o por um corredor estreito, virou à direita e parou em frente a uma pesada porta. Bateu uma vez, ouviu uma voz vindo de dentro, abriu a porta e entrou. Alguns momentos depois, saiu e disse: “A madre superiora vai recebê-lo”.

Brunetti agradeceu-a. “Permesso”, disse ao entrar, fechando a porta atrás de si, de modo a legitimar sua presença no aposento, e virou-se para olhar em volta.

O cômodo estava virtualmente vazio, e tinha como único adorno um enorme crucifixo de madeira na parede dos fundos, ao lado do qual estava de pé, embora desse a impressão de ter acabado de se erguer do prieu-dieu à frente do crucifixo, uma mulher alta trajando o hábito da ordem. Ela carregava ainda, sobre o peito, um crucifixo menor, e olhou para Brunetti sem demonstrar curiosidade ou entusiasmo.

“Pois não?”, ela disse, falando como se ele tivesse interrompido uma conversa particularmente interessante que ela mantinha com o cavalheiro no altar.

“Eu pedi para falar com a madre superiora.”

“Sou eu a madre superiora da ordem. O que o senhor deseja?”

“Saber algo sobre a ordem.”

“E para quê?”, ela perguntou.

“Para entender melhor sua sagrada missão”, Brunetti disse em um tom totalmente neutro.

Ela se afastou do crucifixo e foi até uma pesada cadeira sem forro que ficava à esquerda de uma lareira vazia. Sentou-se nela e apontou na direção de uma cadeira menor à sua esquerda. Brunetti sentou-se ali, de frente para ela.

A madre superiora não disse nada por um longo tempo, uma tática com a qual Brunetti estava familiarizado, e que era destinada a fazer que a outra pessoa falasse primeiro, e frequentemente falasse demais. Sentado, ele analisou seu rosto, os olhos negros brilhantes de inteligência, um nariz pequeno que revelava ou a aristocrata ou a asceta.

“Quem é o senhor?”, ela perguntou.

“Commissario Guido Brunetti.”

“Da polícia?”

Ele anuiu.

“Não é sempre que a polícia vem visitar um convento”, ela disse por fim.

“Depende do que esteja acontecendo no convento, eu diria.”

“E o que o senhor quer dizer com isso?”

“Precisamente o que parece, madre superiora. Minha presença aqui foi provocada por algo relacionado aos membros de sua ordem.”

“Como o quê?”, ela perguntou em tom de troça.

“Crime de calúnia, difamação, e deixar de informar um crime, mas isso apenas para mencionar os crimes dos quais fui testemunha e estou pronto a confirmar em juízo.”

“Não tenho ideia do que o senhor está falando”, ela disse, e Brunetti acreditou nela.

“Um membro da sua ordem me disse hoje que Maria Testa, conhecida aqui por sóror Immacolata, foi expulsa por tentar roubar dinheiro de um de seus pacientes. E que, além disso, no momento em que cometia esse crime, empurrou a vítima ao chão, quebrando-lhe o pulso.” O commissario fez uma pausa, esperando por algum comentário da madre superiora, mas, como ela não disse nada, ele continuou. “Se estas coisas aconteceram de fato, então um crime foi cometido, seguido de outro, que foi o de não informar o primeiro à polícia. Mas, se nada disso aconteceu, então a pessoa que me falou deles é passível de ser acusada do crime de calúnia.”

“Foi a irmã Clara que disse essas coisas para o senhor?”

“Isso não importa. O que importa é que a acusação parece ser fruto de uma crença difundida entre os membros de sua ordem de que esses fatos aconteceram.” Brunetti fez uma pausa, e acrescentou em seguida: “Se é que não aconteceram mesmo”.

“Não, não aconteceram”, ela disse.

“Então qual o motivo desses rumores?”

Pela primeira vez ela sorriu, algo não muito agradável de se contemplar. “O senhor deve saber como são as mulheres; elas adoram matraquear, principalmente a respeito das outras.” Brunetti, que sempre acreditou nisso, mas quando dito dos homens, e não das mulheres, permaneceu calado. Ela continuou: “Sóror Immacolata não é, como o senhor sugere, uma ex-membro de nossa ordem. Muito pelo contrário. Ela ainda está presa a seus votos”. Então, como se concluindo que Brunetti não soubesse direito quais fossem, passou a enumerá-los erguendo um a um os dedos da mão direita enquanto falava: “Pobreza, castidade, obediência”.

“Se ela saiu por vontade própria, por qual lei ela ainda seria um membro de sua ordem?”

“Pela lei de Deus”, ela respondeu em tom ríspido, como se a ressaltar que ela tinha maior familiaridade com aquelas questões do que ele.

“E essa lei em particular teria algum efeito legal?”

“Se não tiver, então há algo de errado com uma sociedade que não permite que seja assim.”

“Sou o primeiro a concordar que há algo errado com nossa sociedade, madre superiora, mas não que um desses erros seria uma lei que permite que uma mulher de vinte e sete anos possa mudar de ideia sobre uma decisão que ela tomou quando era ainda uma adolescente.”

“E como é que o senhor ficou sabendo a idade dela?”

Sem responder, Brunetti perguntou: “Existe algum motivo para a senhora afirmar que Maria ainda faz parte de sua ordem?”.

“Eu não ‘afirmo’ nada”, ela disse com rude sarcasmo. “Simplesmente falo a verdade de Deus. É Ele quem a absolverá de seu pecado, eu apenas a receberei de volta em nossa ordem.”

“Se Maria não fez as coisas das quais é acusada, por que ela decidiu deixar a ordem?”

“Não sei nada a respeito dessa Maria da qual o senhor fala. Conheço apenas a sóror Immacolata.”

“Como queira”, Brunetti concedeu. “Por que ela decidiu deixar a ordem?”

“Ela sempre foi difícil e rebelde. Sempre julgou difícil submeter-se à vontade de Deus e à maior sabedoria de suas superioras.”

“Duas coisas que, imagino, sejam sinônimas”, perguntou Brunetti.

“Faça graça se desejar, mas isso é por sua conta e risco.”

“Não vim aqui para fazer graça, madre superiora, vim para descobrir por que ela abandonou o lugar em que trabalhava.”

A freira avaliou essa exigência por um longo tempo. Enquanto Brunetti a observava, uma de suas mãos se levantou e apontou um dedo para o crucifixo em seu peito, um gesto inteiramente inconsciente e involuntário. “Havia um rumor sobre...”, ela começou, mas não terminou a frase. Baixou os olhos, percebeu o que sua mão estava fazendo e a retirou da cruz. Olhou então para Brunetti: “Ela se recusou a obedecer uma ordem dada a ela por uma superior, e, quando eu sugeri uma punição espiritual para o pecado que ela cometera, ela partiu”.

“A senhora falou com seu confessor.”

“Sim. Assim que ela nos deixou.”

“E ele disse à senhora algo que ela possa ter dito a ele?”

Ela conseguiu de alguma forma parecer chocada com essa pergunta. “Se ela falou a ele em confissão, claro que ele não poderia ter me dito nada. O voto é sagrado.”

“Somente a vida é sagrada”, Brunetti devolveu, e imediatamente lamentou ter respondido.

Ele viu que ela conteve uma resposta e levantou-se. “Obrigado”, disse Brunetti. Se ela ficou surpresa com a forma abrupta com que ele pareceu dar por encerrado seu interrogatório, ela não o demonstrou. Ele foi até a porta e a abriu. Ao se voltar para dizer adeus, ela ainda estava sentada ereta em sua cadeira, a mão remexendo o crucifixo.


12

Ele voltou direto para seu apartamento, parando para comprar água mineral e chegando em casa por volta das sete e meia. Ao abrir a porta, logo percebeu que estava todo mundo em casa; Chiara e Raffi na sala, rindo de algo que passava na televisão; Paola em seu escritório, acompanhando Rossini numa cantoria.

Levou as garrafas de água até a cozinha, disse olá para os filhos e foi até o escritório de Paola. Um pequeno tocador de CDs repousava sobre a estante; Paola estava sentada segurando o pequeno encarte nas mãos, cantarolando.

“Cecilia Bartoli?”, perguntou ele ao entrar.

Ela olhou para cima, admirada por ele ter reconhecido a voz da cantora a quem ela ajudava com a ária, sem perceber que ele havia visto o nome da intérprete no novo CD do Barbiere que ela havia comprado há uma semana.

“Como é que você sabe?”, ela perguntou, interrompendo por um momento sua interpretação de “Una voce poco fa”.

“Eu fico de olho em tudo”, ele disse, corrigindo-se em seguida. “Quer dizer, de ouvidos atentos.”

“Oh, não seja bobo, Guido”, ela disse, sem conter o riso. Fechou o encarte, jogou-o sobre a mesa atrás de si, inclinou-se à frente e desligou o aparelho.

“Você acha que as crianças gostariam de jantar fora?”

“Acho que não. Elas estão assistindo a um desses filmes imbecis que provavelmente só vai terminar por volta das oito. E, além do mais, eu já tenho alguma coisa no fogo.”

“O quê?”, ele perguntou, percebendo que estava faminto.

“O Gianni tinha uma carne de porco ótima hoje.”

“Bom. E como você vai servir.”

“Com porcini.”

“E polenta?”

Ela sorriu para ele. “Claro. É por isso que você está ficando com essa barriguinha.”

“Que barriguinha?”, Brunetti perguntou, pressionando a única que ele tinha. Como ela não respondeu, ele disse: “O inverno está no fim”. E, para fazer a mulher mudar de assunto, quem sabe para fazer ele mesmo parar de discutir a própria barriguinha, ele passou a resumir para ela os acontecimentos do dia, desde o momento em que ele tinha recebido a ligação de Vittorio Sassi de manhã.

“E você ligou de volta?”, Paola perguntou.

“Não, não tive tempo.”

“Então por que você não faz isto agora?”, ela sugeriu, deixando-o a sós ali para que ele ligasse do escritório dela e indo para a cozinha esquentar a água para a polenta.

Dez minutos depois ele apareceu na cozinha.

“E?”, ela perguntou enquanto ele entrava, oferecendo-lhe uma taça de dolcetto.

“Obrigado”, ele murmurou, dando uma goladinha. “Eu disse a ele como e onde ela está.”

“Que tipo de homem ele parece ser?”

“Honesto o bastante para ajudá-la a encontrar um emprego e um lugar para morar. E da mesma forma interessado para ligar e saber como ela está.”

“O que você acha que foi?”

“Pode ter sido um acidente, mas pode ter sido algo pior”, disse Brunetti, saboreando o vinho.

“Quer dizer, alguém tentando matá-la?”

Ele assentiu.

“Por quê?”

“Isso depende de quem ela procurou depois que falou comigo. E do que tenha dito.”

“E ela seria assim tão imprudente?”, Paola perguntou. Ela só conhecia Maria Testa pelo que Brunetti tinha dito a ela sobre sóror Immacolata nos últimos anos, e foram sempre elogios à paciência e caridade dela como freira, dificilmente o tipo de informação que poderia fornecer qualquer indicação sobre como ela se comportaria em uma situação como a que Brunetti lhe descrevera.

“Acho que ela não imaginava que fosse imprudente. Ela foi uma freira durante a maior parte de sua vida, Paola”, ele disse, como se isso pudesse explicar tudo.

“E isso quer dizer o quê?”

“Que ela não tinha uma noção muito precisa de como as pessoas são. É provável que ela não tenha sido exposta ao mal ou às decepções dos homens.”

“Você não disse que ela era siciliana?

“Não achei graça.”

“Não foi minha intenção fazer graça, Guido”, disse Paola, magoada. “Estou falando sério. Se ela cresceu numa sociedade como aquela...” Ela se voltou do fogão. “Quantos anos mesmo você disse que ela tinha quando se juntou à ordem?”

“Quinze, eu acho.”

“Bom, se ela cresceu na Sicília ela foi exposta o suficiente ao comportamento humano para aceitar a possibilidade do mal. Não a romantize. Ela não é um emplastro santo que vai ter um colapso à primeira visão de impropriedade ou má conduta.”

Brunetti não pôde esconder o ressentimento em sua voz ao responder: “O assassinato de cinco pessoas dificilmente se enquadraria em má conduta”.

Paola não replicou, apenas o encarou e voltou ao fogão para pôr mais sal na fervura.

“Está bem, está bem, eu sei que não temos muita prova ainda”, ele contemporizou, e então, como Paola se recusava a olhar de volta para ele, foi além: “Tá, nenhuma prova. Mas por que então esse rumor de que ela teria roubado o dinheiro e ferido um dos velhos? E por que ela teria sido atropelada e abandonada na estrada?”.

Paola abriu o pacote de farinha de milho que estava perto da panela e apanhou um punhado. Enquanto falava, ela deixou escorrer direto na fervura um fino fio do preparado, ao mesmo tempo que mexia a mistura com a outra. “Pode ter sido um atropelamento seguido de fuga”, ela disse. “E mulheres, quando sozinhas, não têm muito que fazer a não ser matraquear.”

Brunetti sentou-se com a boca aberta. “E isso”, disse por fim, “vindo da boca de uma mulher que se julga uma feminista. Que os céus me livrem de ouvir o que as não feministas dizem a respeito das mulheres que vivem sozinhas.”

“É isso mesmo, Guido. Mulheres ou homens, dá no mesmo.” Sem se abalar com a oposição do marido, ela continuou a despejar a farinha na água, mexendo vagarosamente o tempo todo. “Deixe as pessoas sozinhas por tempo suficiente e tudo o que elas vão fazer é matraquear umas sobre as outras. E será ainda pior se não houver qualquer tipo de diversão.”

“Como sexo?”, ele perguntou, esperando chocá-la ou pelo menos arrancar-lhe uma risada.

“Especialmente se não houver sexo.”

Ela terminou com a farinha, e Brunetti refletiu sobre o que haviam acabado de dizer.

“Aqui, mexa um pouco para mim enquanto eu ponho a mesa”, ela disse, ficando de lado, liberando a frente do fogão e passando a colher para ele.

“Eu ponho a mesa”, ele disse, levantando-se e abrindo o armário. Lentamente, ele pôs os pratos, taças e talheres. “Tem salada?”, perguntou. Como ela disse que sim, ele pegou mais quatro pratos de salada e os separou sobre o aparador. “Sobremesa?”

“Frutas.”

Mais quatro pratos.

Ele sentou de novo e pegou a taça de vinho. Tomou um gole, engoliu e disse: “Está bem. Talvez tenha sido mesmo totalmente acidental que elas estivessem falando mal dela lá na casa di cura ”. Baixou o copo e serviu-se de mais vinho. “É isso o que você acha?”

Ela mexeu a polenta de novo e descansou a colher de pau sobre a panela aberta. “Não, eu acho que alguém tentou matá-la. E eu acho que alguém plantou a história sobre o roubo do dinheiro. Tudo o que você disse até aqui sobre ela indica que é impossível que ela mentisse ou roubasse. E eu duvido que qualquer um que a conheça acreditaria nisso. A não ser que a história seja confirmada por alguém em posição de autoridade.” Ela pegou a taça e tomou um gole, voltando a colocá-la na mesa em seguida.

“Curioso, Guido, eu acabei de escutar a mesma coisa.”

“Como assim, a mesma coisa?”

“Há uma ária maravilhosa no Barbiere — e não me interrompa para dizer que há muitas árias maravilhosas no Barbiere. Estou falando daquela em que, qual é mesmo o nome dele?, Basilio, o professor de música, descreve ‘una calunnia ’, e o modo pelo qual uma vez começada ela cresce até que a pessoa acusada” — e neste momento ela assustou Brunetti ao entoar as palavras finais da ária, que eram originalmente em grave, em seu límpido soprano — “Avvilito, calpestrato, sotto il pubblico flagello per gran sorte va a crepar ”.

Antes que ela terminasse, os filhos já estavam à porta da cozinha, olhando para dentro, espantados com a própria mãe. Quando Paola terminou, Chiara ficou de boca aberta. “Mas mamma, você nunca nos disse que cantava.”

Paola olhou para o marido, e não para a filha, ao responder: “Tem sempre alguma coisa que se pode descobrir sobre as pessoas que você pensa que conhece bem”.

* * *

Pouco antes de o jantar terminar, o assunto da escola voltou à baila e, assim como depois do dia vem a noite, aquilo fez que Paola perguntasse a Chiara sobre a aula de religião.

“Eu quero parar de frequentar”, disse a filha, apanhando uma maçã da cesta de frutas no centro da mesa.

“Não entendo por que você não a deixa parar”, interrompeu Raffi. “É só uma perda de tempo, mesmo.”

Paola ignorou a intervenção do filho e perguntou a Chiara: “E por que isto?”.

A filha deu de ombros.

“Pelo que me consta, você foi agraciada com o dom da fala, Chiara”, disse Paola.

“Ah, mamma, qual é. É você começar a usar esse tom comigo para eu saber que você não vai ouvir nada do que eu disser.”

“E que tom seria esse, se mal lhe pergunto?”

“Este”, Chiara arremedou.

Paola olhou para os homens da família em busca de apoio contra o ataque imprevisto da sua caçula, mas os olhos implacáveis deles voltaram-se contra ela. Chiara continuou a descascar sua maçã, empenhada em produzir uma única tira de casca, que agora já estava comprida o bastante para chegar ao outro lado da mesa.

“Desculpe, Chiara”, disse Paola.

Chiara lançou-lhe um olhar, cortou o último pedaço de casca, partiu um pedaço da maçã e o depositou no prato da mãe.

Brunetti decidiu reabrir as negociações. “Por que você não quer mais ir às aulas, Chiara?”

“Raffi tem razão. É uma perda de tempo. Eu decorei o catecismo na primeira semana, e tudo o que fazemos é recitá-lo de volta para ele quando ele faz perguntas para nós. É chato, e eu poderia usar esse tempo para ler ou fazer minhas outras lições de casa. Mas o pior é que ele não gosta quando nós perguntamos alguma coisa.”

“Que tipo de perguntas?”, Brunetti quis saber, aceitando o último pedaço da maçã dela e deixando-a assim livre para descascar outra.

“Bem”, ela disse, totalmente concentrada na faca, “hoje ele falava sobre como Deus é nosso pai, e nessa hora ele ficava dizendo ‘Ele’ e ‘Dele’. Daí eu levantei a mão e perguntei se Deus era um espírito. E ele disse que sim, que Ele era. E então eu perguntei se se podia dizer que um espírito era diferente de uma pessoa porque ele não tinha um corpo, não era material. E, quando nós entramos em acordo quanto a isto, eu perguntei como, se Deus era um espírito, ele podia ser um homem, já que ele não tinha um corpo nem nada.”

Brunetti olhou de relance por sobre a cabeça baixa de Chiara e não percebeu o menor resquício de um sorriso de triunfo no rosto de Paola. “E o que ele disse então, o padre Luciano?”

“Oh, ele ficou fulo da vida e gritou comigo. Disse que eu estava me exibindo.” Ela ergueu o olhar para Brunetti, deixando a maçã de lado por um instante. “Mas eu não estava, papà. Eu não estava me exibindo mesmo. Eu queria saber, de verdade. Não fazia o menor sentido para mim. Quer dizer, Deus não pode ser duas coisas, pode...” Chiara se deteve antes de usar o questionável pronome, e em vez disso perguntou: “Será que pode?”

“Eu não sei, meu anjo, já tem um bocado de tempo desde que eu estudei essas coisas. Eu acho que Deus pode ser o que Deus quiser ser. Talvez Deus seja tão grande que mesmo nossas pequenas regras sobre a realidade material e nosso minúsculo universo não signifiquem nada para ele. Você já pensou nisso?”

“Não, nunca pensei”, ela disse, afastando seu prato. Ela considerou o argumento por um tempo, e então disse: “Eu acho que é possível”. Outro silêncio especulativo. “Posso ir fazer minha lição de casa agora?”

“Claro”, disse Brunetti, inclinando-se para lhe fazer um cafuné. “Se você encontrar qualquer dificuldade com seus problemas de matemática, aqueles realmente difíceis, pode trazê-los direto para mim.”

“E o que você vai fazer, papà, dizer pra mim que não pode resolvê-los porque eles são muito diferentes dos do seu tempo de escola?”, perguntou a filha com uma risada.

“E não é isso o que eu faço sempre com os seus deveres de matemática, cara ?”

“Sim, acho que é a única coisa que você consegue fazer, hein?”

“Pior que sim”, disse Brunetti, empurrando sua cadeira para trás.


13

Incentivado pelo tema da religião, que não conseguia impedir que invadisse tanto sua vida pessoal como a profissional, Brunetti dedicou aquela noite à leitura dos primeiros Padres da Igreja, uma forma de distração a que não era muito afeito. Começou por Tertuliano, mas sua rejeição às imprecações desse homem foi tão imediata que o conduziu aos escritos de São Bento. Ali, porém, ele deparou com uma passagem em que se lia o seguinte: “O esposo que, levado por um amor sem controle e para satisfazer sua paixão, buscar com a esposa um intercurso de tal modo ardente que o levaria a comerciar com ela mesmo se sua esposa não fosse, este esposo incorre em pecado”.

“Comércio?”, Brunetti perguntou em voz alta para si mesmo, erguendo os olhos do livro e tentando despertar Paola, que, sentada a seu lado, cochilava sobre as notas de sua turma, que ela tinha de entregar no dia seguinte.

“Humm?”, ela perguntou, com um interesse polido.

“Nós realmente confiamos a educação de nossos filhos a estas pessoas?”, ele perguntou, e leu a passagem em voz alta para ela, sentindo, sem ver, ela dar de ombros. “O que significa isso?”

“Significa que se você submete as pessoas a um regime, elas começam a pensar em comida. Ou se você obriga alguém a deixar de fumar, ele não pensa em outra coisa que não cigarros. Parece lógico o suficiente para mim que, se você diz a uma pessoa que ela não pode fazer sexo, essa pessoa vai se tornar obcecada pelo assunto. Conceda então a ela o poder de dizer aos outros como administrar o sexo em suas vidas e, bem..., a confusão está armada. De certa forma, é como termos um cego ensinando história da arte, não é mesmo?”

“E por que você nunca comentou nada sobre isso comigo?”

“Nós fizemos um trato. Eu prometi que jamais iria interferir com a educação religiosa das crianças.”

“Mas isso é coisa de lunáticos”, ele disse, batendo a mão sobre as páginas abertas do livro.

“Mas claro que é coisa de lunáticos”, ela replicou em uma voz totalmente calma. “Mas seriam mais lunáticos que a maioria das coisas eles leem ou veem?”

“Não vejo aonde você quer chegar.”

“Madonna. Clubes de sexo, telessexo. Você escolhe, é apenas o outro lado da moeda do maníaco que escreveu isso”, ela disse, apontando com desprezo para o livro nas mãos de Brunetti. “Em qualquer dos casos, o sexo se torna uma obsessão.” Dito isso, ela voltou a suas notas.

Após alguns momentos, Brunetti disse. “Mas”, e então parou até que ela voltasse a olhar para ele, quando, vendo que tinha sua atenção, repetiu: “Mas eles dizem mesmo a nossos filhos coisas desse tipo?”.

“Guido, eu disse a você que deixaria tudo por sua conta. Foi você que insistiu que eles precisavam aprender sobre a — como é que foi mesmo que você disse? — ‘cultura ocidental’. Bem, São Bento — se for ele o autor dessa passagem particularmente infeliz —, São Bento é parte dessa cultura ocidental.”

“Mas eles não podem ensinar isso a eles”, ele insistiu.

Ela deu de ombros. “Pergunte a Chiara”, disse, e voltou a suas notas.

Deixado sozinho com suas imprecações, Brunetti decidiu que seria exatamente o que faria no dia seguinte. Fechou o livro, colocou-o de lado e puxou outro da pilha no chão ao lado do sofá. A leitura fluiu melhor com A guerra judaica, de Flávio Josefo, e ele tinha acabado de chegar à descrição do cerco do imperador Vespasiano a Jerusalém quando o telefone tocou.

Ele esticou a mão por sobre o criado-mudo a seu lado e pegou o aparelho.

“Brunetti falando.”

“Senhor, quem fala é o Miotti.”

“Diga, Miotti.”

“Achei que devia ligar para o senhor.”

“E por que, Miotti?”

“Uma daquelas pessoas que o senhor e Vianello visitaram morreu, senhor. Estou no lugar agora.”

“Qual delas?”

“Signor Da Prè.”

“E como aconteceu?”

“Não temos certeza.”

“Como assim, não têm certeza?”

“Talvez seja melhor o senhor vir até aqui ver por si mesmo, senhor.”

“E onde é que você está?”

“Estamos na casa dele, senhor. Fica na...”

Brunetti o interrompeu. “Eu sei onde é. O que houve?”

“Começou a pingar água pelo teto do apartamento abaixo do dele, daí o vizinho subiu para ver o que estava acontecendo. Como tinha uma cópia da chave, o vizinho entrou e encontrou Da Prè caído no chão do banheiro.”

“E?”

“Parece que ele caiu e quebrou o pescoço, senhor.”

Brunetti esperou por mais esclarecimentos, mas, como estes não vieram, ele disse: “Chame o dottor Rizardi”.

“Já chamei, senhor.”

“Bom. Nos vemos em uns vinte minutos.” Brunetti desligou e se voltou para Paola, que deixara as notas de lado, curiosa em ouvir a outra metade da conversa. “Da Prè. Ele caiu e quebrou o pescoço.”

“O corcundinha.”

“É.”

“Coitado, que má sorte dos diabos”, ela respondeu de pronto.

Brunetti levou mais tempo para tirar uma conclusão, pensando na diferença entre o envolvimento dele e da mulher com o caso, e na relação que isso devia ter com suas profissões. “Talvez.”

Paola ignorou sua observação e olhou para o relógio. “São quase onze horas.”

Brunetti jogou o Josefo sobre o São Bento e se levantou. “Te vejo de manhã, então.”

Paola tocou-o nas costas da mão. “Ponha um cachecol, Guido. Está fazendo frio esta noite.”

Ele se inclinou e a beijou no topo da cabeça, apanhou seu casaco, lembrou-se de pegar o cachecol e saiu.

Ao chegar à residência de Da Prè, viu um policial fardado parado entre a rua e a porta da frente. Ao reconhecer Brunetti, o policial o cumprimentou e, em resposta a uma pergunta do commissario, disse a ele que o doutor Rizzardi já tinha chegado.

Lá em cima, outro policial fardado, Corsaro, montava guarda à porta aberta do apartamento. Cumprimentou Brunetti e ficou de lado para permitir sua entrada. “O dottor Rizardi está lá dentro, senhor.”

Brunetti entrou e foi direto para os fundos do apartamento, de onde vinham as vozes de homens e as luzes. Ele entrou no que devia ser o quarto de dormir e viu uma cama rebaixada, quase do tamanho de um berço, encostada na parede. Ao começar a cruzar o quarto, pisou em algo macio e líquido. Parou na hora e gritou: “Miotti!”.

Imediatamente, o jovem policial surgiu em uma porta no outro lado do quarto. “O que foi, senhor?”

“Acenda a luz.”

Miotti acendeu, e Brunetti olhou para os pés, tentando em vão conter um medo irracional de estar pisando em sangue. Respirou aliviado ao ver que era apenas um carpete encharcado pela água que tinha jorrado pela porta aberta do banheiro. Assim, prosseguiu através do quarto, detendo-se à porta iluminada de onde vinham os sons e movimentos humanos.

Entrando, viu o dr. Rizzardi curvado, do mesmo jeito que ele o havia visto vezes sem conta, sobre o corpo em supino de um homem morto.

Ouvindo o ruído às suas costas, o dr. Rizzardi levantou-se, esticou a mão e começou a tirar a luva de borracha que a envolvia. Estendendo-a novamente, disse: “Buona sera, Guido”. Isso sem sorrir, e mesmo se sorrisse não teria feito muita diferença dada a austera seriedade de seu rosto. Uma exposição muito continuada à morte em todas as suas formas havia lhe enrijecido a carne do nariz e das bochechas, como se seu rosto fosse feito de mármore, e cada morte parecia esculpir um outro minúsculo fragmento.

Rizzardi ficou de lado, para permitir que Brunetti visse o minúsculo corpo que jazia abaixo deles. Tinha mesmo diminuído na morte. Da Prè parecia estar deitado entre pés de gigantes. De costas, a cabeça pendendo horrivelmente para um lado, mas sem tocar o chão, como se ele fosse algum tipo de tartaruga vestida que tivesse sido virada de barriga para cima e abandonada em seu casco por moleques malvados.

“O que houve?”, Brunetti perguntou. E ao falar percebeu que as pernas da calça de Rizzardi estavam ensopadas do joelho até o tornozelo, e que seus próprios sapatos estavam começando a ficar encharcados pela exposição ao meio centímetro de água que tomava todo o assoalho ao redor deles.

“Parece que ele abriu o chuveiro para o banho e escorregou em seguida.” Brunetti observou a cena. A banheira estava vazia, já que a água não mais corria. A tampa preta do ralo largada ali ao lado.

Brunetti olhou de novo para o morto. Ele vestia paletó e gravata, mas sem sapatos ou meias. “Escorregou na cerâmica descalço?”, perguntou.

“Parece que sim”, respondeu Rizzardi.

Brunetti saiu do banheiro, e Rizzardi, tendo terminado a sua parte, o seguiu. Brunetti examinou o quarto, embora não tivesse a mínima ideia do que procurava. Viu três janelas, cortinas abertas com a noite de fundo, alguns quadros nas paredes, aparentando terem sido colocados ali há décadas e nunca mais vistos desde então. O tapete era um velho persa tribal espesso, agora empapado e desbotado. Uma camisa de seda vermelha jazia aos pés da cama, e abaixo dela, exatamente depois do limite atingido pelas águas, Brunetti viu os pequeninos sapatos de Da Prè, caprichosamente dispostos lado a lado, suas meias escuras dobradas e colocadas sobre eles.

Brunetti atravessou o quarto, se abaixou e pegou os sapatos. Segurando as meias com uma mão, virou os sapatos e deu uma olhada nas solas. A borracha preta dos saltos e das solas brilhava e reluzia, como se dá com sapatos que só se usam dentro de casa. O único sinal de já terem sido calçados eram duas marcas de arranhado cinza no lado exposto dos saltos. Ele devolveu os sapatos ao chão e recolocou as meias sobre eles.

“Nunca vi ninguém morrer assim”, Rizzardi disse.

“Não teve um filme ou algo do gênero, há alguns anos, sobre um cara com aquela doença que faz você parecer um elefante? Será que ele não morreu disso?”

Rizzardi balançou a cabeça. “Nunca vi nada assim. Cheguei a ler sobre esse tipo de coisas, quer dizer, pelo menos sobre o perigo que as quedas apresentam para pessoas como ele. Mas, normalmente, tudo o que acontece é quebrarem uma ou outra vértebra.” Rizzardi parou e olhou para o vazio, o que levou Brunetti a concluir que ele estava puxando pela memória algum caso citado na literatura médica. Passados alguns momentos, Rizzardi disse: “Não, engano meu. Já aconteceu antes. É raro. Mas já aconteceu”.

“Bem, talvez você tenha aqui algo diferente o bastante para eternizar o seu nome nos manuais de medicina”, Brunetti disse com cuidado.

“Talvez”, Rizzardi respondeu, buscando sua maleta preta de médico que tinha deixado em uma mesa perto da porta. Jogou as luvas de borracha dentro dela e fechou a maleta. “A primeira coisa que vou fazer amanhã de manhã é trabalhar nele, Guido, mas não vou ser capaz de lhe dizer nada além do que já sei agora. Ele quebrou o pescoço quando sua cabeça se torceu na queda”

“Foi morte instantânea?”

“Deve ter sido. Foi uma só fratura. Ele deve ter sentido o choque da queda nas costas, mas antes mesmo de sentir qualquer tipo de dor já estava morto.”

Brunetti assentiu. “Obrigado, Ettore. Ligo depois para você. Só pra saber se você descobriu algo mais.”

“Depois das onze”, disse o médico, e estendeu a mão novamente.

Brunetti devolveu o cumprimento e o médico foi embora. Então o commissario ouviu falarem em voz baixa enquanto Rizzardi dizia qualquer coisa a Miotti, e a seguir o barulho da porta do apartamento sendo fechada. Miotti veio até o quarto, acompanhado de Foscolo e Pavese, os homens da perícia.

Brunetti cumprimentou-os com acenos e disse: “Peguem para mim todas as impressões que conseguirem, especialmente as do banheiro, e mais ainda aquelas ao redor da banheira. E fotos de todos os ângulos”. Ele recuou, permitindo que eles pudessem ver o que os aguardava lá dentro.

Pavese atravessou o quarto, depositou a maleta com sua câmera em um canto seco, tirou dali as peças que compunham seu tripé e começou a montá-lo.

Brunetti se ajoelhou, já sem ligar a mínima para a água. Apoiando todo o seu peso sobre as duas mãos, inclinou-se para a frente, girando a cabeça para um lado a fim de se permitir uma visão transversal a partir do chão até o lado oposto da porta do banheiro. “Se você puder encontrar um secador de cabelo”, ele disse a Foscolo, “talvez possa secar esta água — não a enxugue — e em seguida tirar fotos desta superfície aqui.” Ele fez um amplo círculo com a mão, abrangendo toda aquela área.

“E para que, chefe?”, perguntou o fotógrafo.

“Quero ver se encontramos marcas de arranhões, algum sinal de que ele possa ter sido arrastado até o banheiro.”

“Como estas aqui, senhor?”, Pavese perguntou ao mesmo tempo em que apertava os parafusos que mantinham sua câmera no topo do tripé.

Em vez de responder, Brunetti apontou para algumas tímidas marcas, quase invisíveis sob a fina cobertura de água. “Aqui. E aqui.”

“Vou registrá-las, senhor. Fique tranquilo.”

“Obrigado”, disse Brunetti, pondo-se de pé e voltando-se para Miotti. “Você teria um par de luvas? Acabei esquecendo as minhas.”

Miotti procurou nos bolsos de seu casaco e tirou dali uma caixa de luvas em sacos plásticos. Abrindo um, deu um par para Brunetti. Enquanto ele as vestia, Miotti retirou um segundo par e fez o mesmo. “Se o senhor pudesse dizer o que estamos procurando...”

“Eu não sei. Qualquer coisa que indique que alguém fez isto com ele ou que alguém pode ter tido motivo para fazê-lo.” Brunetti ficou agradecido por Miotti não ter observado que a explicação não respondera de fato a sua pergunta.

Brunetti foi para a sala e examinou cuidadosamente o aposento em que tinha conversado com Da Prè. As caixinhas ainda dominavam toda a superfície do aparador. Ele foi até o armário de canto e abriu a gaveta de cima que ficava entre as duas portas. Nela havia ainda mais caixas, algumas delas apoiadas em pedaços de algodão, parecendo ovos quadrados em ninhos albinos. A segunda gaveta abrigava ainda mais delas, assim como a terceira. A gaveta de baixo continha papéis. No topo da pilha, havia um arquivo em papel-manilha contendo documentos dispostos em ordenação quase militar, mas por sob este arquivo repousavam mais pilhas de documentos, todos jogados de qualquer jeito, nenhum deles separado em arquivos; alguns com a folha de rosto voltada para cima, outros virados para baixo, alguns dobrados em quatro, outros ao meio. Brunetti puxou o arquivo e os papéis soltos com as duas mãos, mas só então descobriu que não havia uma área livre onde colocá-los; as caixinhas estavam por toda parte.

Conseguiu por fim levá-los para a cozinha e os espalhar sobre a mesa de madeira que achou por ali. Sem que isso o surpreendesse, o arquivo em papel-manilha continha cópias das cartas que Da Prè havia remetido a antiquários e colecionadores particulares indagando sobre a idade, proveniência e preço das caixinhas de rapé. Embaixo dessas cartas estavam as notas de venda relativas ao que parecia somar a quantia de centenas de caixinhas, em certas ocasiões compradas em lotes de vinte ou mais unidades.

Deixando o arquivo de lado, examinou os outros papéis, mas se esperava descobrir entre eles alguma pista a respeito das razões para a morte de Da Prè, Brunetti ficou desapontado. Havia contas de luz, uma carta do senhorio anterior de Da Prè, um folheto de propaganda de uma loja de móveis em Vicenza, um artigo de jornal sobre os efeitos do uso continuado de aspirina e um conjunto de informações que enumeravam os efeitos colaterais dos vários tipos de analgésicos.

Por entre os sons dos peritos nos outros aposentos e dos intermitentes flashes emitidos enquanto fotografavam o corpo, Brunetti concentrou sua atenção no quarto e na cozinha, onde acabou não encontrando nada que pudesse indicar algo mais sinistro que uma fatalidade. Miotti, que encontrou uma caixa de revistas e jornais para serem jogados fora, teve o mesmo sucesso.

Pouco depois da uma da tarde, os maqueiros do hospital foram autorizados a remover o corpo, e por volta das duas os peritos encerraram os trabalhos. Brunetti tentou devolver ao lugar todos os documentos e objetos que haviam sido retirados enquanto ele e Miotti faziam sua criteriosa inspeção do apartamento, mas não tinha ideia de onde colocar as inúmeras caixinhas de rapé das quais haviam sido tiradas as impressões digitais, e que haviam sido depois colocadas no chão. Afinal desistiu e tirou as luvas, dizendo a Miotti que fizesse o mesmo.

Quando os peritos viram que Brunetti estava pronto para sair, eles juntaram suas bolsas, maletas de fotografia e pincéis, felizes por terem terminado e poderem se livrar das terríveis caixinhas que tinham feito com que trabalhassem por tantas horas.

Brunetti explicou pausadamente a Miotti que ele não precisava chegar à questura antes das dez, mas, conhecendo o jovem, sabia que ele estaria lá às oito, se não antes.

Do lado de fora, a neblina o atingiu de cheio no rosto, sendo aquela a hora mais morta e úmida da noite. Enrolando o cachecol em volta do pescoço, ele caminhou até a parada da Accademia, mas ao chegar lá viu que por dez minutos perdera um barco, e agora teria que esperar outros quarenta minutos pelo próximo. Decidiu então voltar a pé, abrindo caminho pelo Campo San Barnaba, pela frente dos portões fechados da Universidade, e até depois da mansão dos Goldoni, também esta protegida da noite. Não encontrou ninguém até chegar ao Campo San Polo, onde um guarda do castelo fazia sua última ronda, tendo por companhia um manso pastor-alemão. Os dois homens trocaram um aceno ao se encontrarem; o cachorro ignorou Brunetti, conduzindo o seu senhor até o lar e o calor. Ao se aproximar da passagem sobre a ponte que conduzia para fora do campo, ouviu um som de algo caindo na água. Da ponte, olhou para baixo na direção da água e viu uma ratazana de rabo comprido nadando lentamente para longe dele. Brunetti soltou um suspiro inesperado, mas o ratão, como o cachorro, o ignorou e continuou seu caminho lento no rumo de casa e do calor.


14

Na manhã seguinte, antes de chegar à questura, Brunetti passou pelo prédio de Da Prè e conversou com Luigi Venturi, o vizinho que descobrira o corpo, sem conseguir obter dele nada que não pudesse ter sido dito por telefone: Da Prè tinha poucos amigos, raramente recebia visitas — as quais Venturi afirmou não conhecer —, e o único parente de quem Da Prè costumava falar era a irmã de um primo, que vivia em algum lugar perto de Verona. Na noite anterior, Venturi não ouvira ou vira nada de extraordinário, não até que a água começasse a pingar pelo teto de sua cozinha. Não, Da Prè jamais mencionara a existência de inimigos que pudessem querer prejudicá-lo. Venturi encarou Brunetti de forma estranha quando ouviu essa pergunta, o que fez que o commissario se apressasse em lhe assegurar que a polícia apenas estava excluindo essa improvável possibilidade. Não, nenhum deles tinha também o hábito de abrir a porta sem primeiro se assegurar da identidade de quem batia. Algumas perguntas mais revelaram que o signor Venturi estivera assistindo a um jogo de futebol na televisão pela maior parte da noite, e que o único momento em que pensara em Da Prè ou no que poderia estar se passando no apartamento dele foi quando entrou na cozinha para preparar uma xícara de chocolate antes de se recolher, viu a água escorrendo pela parede e subiu para ver o que estava acontecendo.

Não, não se podia dizer que os dois eram amigos. Signor Venturi era viúvo; Da Prè jamais se casara. Mas o fato de residirem no mesmo prédio fora suficiente para que cada um tivesse confiado ao outro um molho de chaves da própria residência, embora até a noite anterior nenhum deles tivesse precisado utilizá-los. Além de não ter conseguido extrair nenhuma informação nova de Venturi, Brunetti ficou convencido de que não havia mesmo nada de novo a ser descoberto.

Entre os papéis entulhados na gaveta da residência de Da Prè, havia várias cartas de um advogado com escritório em Dorsoduro, para onde Brunetti ligou assim que chegou a seu gabinete. O advogado já sabia — em Veneza todos parecem ficar sabendo de tudo com uma rapidez impressionante — da morte de Da Prè, e tentara mesmo informar à filha da prima do falecido. Mas ela estava em Toronto, onde iria passar uma semana com o marido ginecologista, que fora até lá para um congresso internacional. O advogado disse que continuaria a tentar entrar em contato com ela, mas não tinha como saber se a informação sobre a morte de Da Prè iria fazê-la interromper a viagem e voltar para a Itália.

Também o advogado não pôde acrescentar quase nada de novo ao que Brunetti já sabia sobre Da Prè. Fora seu advogado por anos, mas numa relação sempre exclusivamente profissional. Não sabia quase nada sobre a vida privada de Da Prè, apesar de estimar que o valor do espólio, tirando o apartamento, não seria muito significativo: quase tudo o que Da Prè possuía tinha sido investido nas caixinhas de rapé, e estas ele tinha deixado para o museu Correr.

Brunetti ligou para o escritório de Rizzardi e, antes mesmo de ele perguntar, o patologista disse: “Sim, tinha um pequeno arranhão no lado esquerdo do pescoço, assim como aquele ao longo da espinha. Os dois podem ter acontecido na queda. O pescoço dele se quebrou quando ele caiu, o que eu lhe disse ontem à noite. Ele morreu na hora”.

“Mas ele pode ter sido golpeado ou empurrado?”

“É possível, Guido. Mas você não vai conseguir me fazer dizer isso, ao menos oficialmente.”

Brunetti sabia que não havia como discutir, portanto agradeceu ao médico e desligou.

O fotógrafo, ao atender a ligação do commissario, sugeriu que ele fosse ao laboratório e desse uma olhada. Quando o fez, Brunetti viu quatro enormes ampliações, duas coloridas e duas em preto e branco, presas com alfinetes no quadro de cortiça na parede do laboratório.

Brunetti aproximou-se do quadro e ficou ali, de frente para as fotos, que começou a encarar, aproximando-se cada vez mais delas com movimentos de cabeça. Ao chegar tão perto que seu nariz quase as tocou, viu duas tênues linhas paralelas embaixo e à esquerda de uma das fotos. Ele pôs os dedos nas linhas e, voltando-se para Pavese, perguntou: “E estas?”.

“Sim”, disse o fotógrafo, aproximando-se e ficando a seu lado. Gentilmente, ele afastou o dedo de Brunetti com a ponta de borracha de um lápis e percorreu as duas tênues linhas.

“Sinais de que ele foi arrastado?”, perguntou Brunetti.

“Pode ser. Mas pode ser também uma porção de outras coisas.”

“Você examinou os sapatos?”

“Foscolo examinou. As partes de trás dos saltos estão gastas, mas em vários pontos.”

“Alguma chance de fazer combinar as marcas nos sapatos com estas?”

Pavese balançou a cabeça. “Não de modo a convencer alguém.”

“Mas ele pode ter sido carregado até o banheiro?”

“Sim”, Pavese disse, e com a mesma presteza acrescentou, “mas pode ter sido um monte de outras coisas. Uma mala. Uma cadeira. Um aspirador de pó.”

“O que você pensa que foi, Pavese?”

Antes de responder, Pavese deu uma batidinha na foto com a ponta do lápis. “Tudo o que eu sei está na foto, senhor. Duas marcas paralelas no chão. Pode ser qualquer coisa.”

Brunetti percebeu que não tiraria nada mais do fotógrafo, então agradeceu e voltou para o seu gabinete.

Ao entrar, viu que havia dois bilhetes com a letra da signorina Elettra. O primeiro informava que tinha ligado uma tal de Stefania, e que ela pedira para ele retornar a ligação. O segundo dizia que a signorina tinha alguma informação sobre “o caso daquele padre”. E era tudo.

Brunetti ligou para o número de Stefania, ouvindo mais uma vez a cordial saudação que sugeria que as coisas estavam devagar no mercado imobiliário.

“É o Guido. Você já conseguiu vender aquele apartamento no Canareggio?”

A voz de Stefania ficou calorosa. “Vão assinar os papéis amanhã à tarde.”

“E você está acendendo as velas para não haver acqua alta ?”

“Guido, se eu achasse que isso iria manter a maré baixa até que os papéis estivessem assinados, eu iria nadando até Lourdes.”

“Os negócios vão indo tão mal assim?”

“Nem te conto.”

“E você está vendendo ele para os alemães?”

“Ja.”

“Sehr gut. E você descobriu algo sobre aqueles outros apartamentos?”

“Sim, mas nada muito interessante. Estão os três há meses no mercado, mas tudo fica muito complicado pelo fato de o proprietário morar no Quênia.”

“Quênia? Eu pensei que ele morasse em Turim. É o endereço que consta no testamento.”

“Pode ser até que seja verdade, mas ele tem estado no Quênia nos últimos sete anos, não tendo mais nenhum imóvel em Veneza. Um imóvel nestas condições fica um pesadelo de caro em termos de impostos, e ninguém quer negociar os apartamentos, menos ainda com o mercado do jeito que está. Você nem queira saber como um negócio desses fica enrolado.”

Não, Brunetti refletiu, ele não queria; bastava saber que o herdeiro estava há sete anos no Quênia.

Stefania perguntou: “Isto é o bastante para...”, mas sua voz foi interrompida pelo som de um telefone no escritório dela. “É a outra linha. Tenho que atender, Guido. Reze para que seja um negócio”.

“Rezarei. E obrigado, Steffi. Auf Wiedersehen.”

Ela riu e desligou.

Ele saiu do gabinete e desceu até a sala da signorina, que o recebeu com um sorriso protocolar. Brunetti notou que hoje ela vestia um terninho preto formal de três botões. Assemelhando-se mais ao modo como o colarinho de um padre salta da lapela, Brunetti viu uma estreita faixa branca de algodão que havia sido lavada até adquirir um tom branco cegante. “É isto o que a senhorita julga ser a simplicidade monástica?”, Brunetti perguntou, ao perceber que o terninho era de seda.

“Ah, isto”, ela disse, como se estivesse apenas esperando a próxima campanha da fraternidade para ter uma desculpa para se livrar da indumentária. “Qualquer semelhança com o clero é totalmente acidental, posso lhe garantir, commissario.” Ela foi até a mesa, apanhou algumas folhas de papel e as entregou a ele. “Depois que o senhor ler isto vai entender minha torcida para que tudo tenha sido acidental.”

Ele pegou os papéis e leu as duas primeiras linhas e perguntou: “Padre Luciano?”.

“Ele mesmo. Um homem bem viajado, como o senhor vai constatar.” Ela voltou a se concentrar em seu computador, deixando que Brunetti lesse os papéis.

A primeira página continha uma história resumida de Luciano Benevento, nascido em Pordenone havia 47 anos. Seu histórico escolar estava ali, assim como a informação de que ele havia ingressado no seminário aos dezessete anos. A partir daí havia um hiato, presumivelmente abrangendo o período em que ele recebia sua educação clerical, mas o histórico escolar que vinha anexado no verso dos papéis não sugeria que ele tivesse sido um aluno acima da média.

Quando ainda estudava no seminário, Luciano Benevento chamou a atenção das autoridades por ter se envolvido em algum tipo de confusão em um trem, uma confusão relacionada com uma criança que tinha sido deixada com ele pela mãe enquanto esta ia até o vagão-restaurante comprar sanduíches. O que havia acontecido enquanto ela esteve fora nunca foi esclarecido, e toda a confusão que se seguiu foi atribuída à imaginação da menininha.

Após sua ordenação, 23 anos antes, padre Luciano foi escalado para um vilarejo no Tirol, onde ficou por três anos, sendo transferido quando o pai de uma estudante de catecismo, uma garota de doze anos, começou a contar aos moradores histórias estranhas do padre e as perguntas que ele fazia à filha do aldeão no confessionário.

Seu próximo prelado foi no Sul, onde ficou por sete anos, até que foi encaminhado para uma casa mantida pela Igreja para padres com problemas. A natureza do problema do padre Luciano não foi revelada.

Depois de passar um ano na instituição, foi designado para uma pequena paróquia na região dos Dolomitas, onde serviu por cinco anos sem distinção, sob as ordens de um vigário cuja severidade tinha a fama de não encontrar par na Itália setentrional. Depois que este morreu, padre Luciano assumiu o posto em seu lugar, mas foi transferido do vilarejo dois anos depois; havia uma menção a um “prefeito comunista criador de caso”.

Dali, padre Luciano foi encaminhado a uma pequena igreja na periferia de Treviso, onde ficou por um ano e três meses antes de ser transferido, havia um ano, para uma igreja da San Polo, de cujo púlpito ele prega agora e de cuja igreja ele foi enviado para dar a sua parcela de contribuição à orientação religiosa dos jovens da cidade.

“Como é que a senhorita conseguiu estas informações?”, perguntou Brunetti ao terminar a leitura.

“Os caminhos do Senhor são muitos e misteriosos, commissario”, foi sua plácida resposta.

“Estou falando sério desta vez, signorina. Eu gostaria de saber como esta informação foi obtida”, ele disse, sem devolver o sorriso dela.

Ela o avaliou por um momento. “Tenho um amigo que trabalha no escritório do patriarca.”

“Um amigo de batina?”

Ela assentiu.

“Que se prontificou a lhe fornecer isto?”

Ela assentiu novamente.

“E como é que a signorina conseguiu esse feito? Eu imagino que esse é o tipo de informação que eles querem manter fora do alcance dos laicos.”

“Eu imagino a mesmo coisa, commissario.” O telefone dela tocou, mas ela não fez nenhum movimento para atender. Após sete toques, desistiram. “Ele está tendo um caso com um amigo meu.”

“Entendi”, ele disse, e em seguida perguntou em tom neutro. “E a senhorita utilizou essa informação para fazer chantagem?”

“Não. Nem pensar. Ele quer deixar o hábito já há meses, apenas sair e começar uma vida decente. Mas meu amigo o convenceu a permanecer lá por mais um tempo.”

“No escritório do patriarca?”

Ela assentiu.

“Como padre?”

Ela assentiu novamente.

“Lidando com documentos e relatos tão delicados quanto este?”

“Sim.”

“E por qual razão o seu amigo quer que ele continue a trabalhar lá?”

“Eu preferia não ter que lhe dizer, commissario.”

Brunetti se recusou a repetir a pergunta, mas se recusou também a sair da frente da mesa dela.

“Não é contra a lei o que ele faz, de jeito nenhum.” Ela avaliou o que acabara de dizer e completou: “Antes o contrário”.

“Eu creio que preciso saber se isso é verdade, signorina.”

Pela primeira vez em todos os anos em que trabalharam juntos, a signorina Elettra endereçou a Brunetti um olhar de franca reprimenda. “Se eu lhe der a minha palavra?”, ela perguntou.

Antes de responder, Brunetti olhou para os papéis em suas mãos, fotocópias malfeitas de documentos originais. Bem borrado, mas ainda visível no topo, encontrava-se o selo do patriarca de Veneza.

Brunetti devolveu-lhe o olhar. “Não acho que isso seja necessário, signorina. Eu costumo duvidar de mim mesmo.”

Ela não riu, mas a tensão abandonou seu corpo e voz. “Obrigado, commissario.”

“A senhorita acha que o seu amigo poderia conseguir alguma informação sobre um padre que é membro de uma ordem, e não de uma paróquia?”

“Se o senhor me der o nome do padre, ele por certo tentaria.”

“Pio Cavaletti, membro da Ordem da Sagrada Cruz.”

Ela anotou o nome e olhou para cima. “Algo mais, senhor?”

“Só mais uma coisa. Ouvi um rumor sobre a contessa Crivoni.” Signorina Elettra sendo uma veneziana, Brunetti não precisou especificar o teor do rumor. “Sobre um padre. Não tenho ideia de quem seja ele, mas gostaria que o seu amigo visse se pode descobrir algo.”

A signorina Elettra fez outra anotação, olhou de novo para cima, e disse: “Só poderei passar isto para ele quando o vir novamente, o que deve acontecer hoje à noite, em um jantar”.

“Na casa de seu amigo?”

“Sim. Nunca falamos dessas coisas ao telefone.”

“Por medo do que possa acontecer com ele?”, Brunetti perguntou, sem muita certeza de que estava falando sério.

“Um pouco”, ela disse.

“E o que mais?”

“Medo do que pode vir a acontecer conosco.”

Ele a encarou para ver se ela estava brincando, mas o rosto dela estava sério e sombrio. “A senhora acredita mesmo nisto, signorina ?”

“Falamos de uma organização que nunca foi gentil com seus inimigos.”

“E é isto o que a senhorita é, um inimigo?”

“De todo o coração.”

Brunetti estava a ponto de perguntar a ela o porquê, mas se deteve. Não que não quisesse saber — antes o contrário —, mas simplesmente não queria começar agora uma discussão sobre esse assunto, e não no escritório, em frente de uma porta da qual a qualquer momento o vice-questore Patta poderia sair. Em vez disso, falou: “Serei muito grato a seu amigo por qualquer informação que ele possa conseguir para mim”.

O telefone tocou de novo, e desta vez ela atendeu, perguntou quem era e então pediu a quem ligara para aguardar na linha por um momento enquanto ela procurava alguns arquivos no computador.

Brunetti acenou para ela e voltou para o gabinete, os papéis ainda em sua mão.


15

E este, Brunetti pensou enquanto caminhava de volta para o seu gabinete, era o homem ao qual ele confiara, por vontade própria, a educação religiosa de Chiara. E ele nem podia dizer que fora uma decisão a dois, pois Paola deixara claro desde o primeiro momento que não iria compactuar com aquilo. Ele sabia, de longa data, assim que os filhos começaram a ir para a escola, ainda no maternal, que ela se opunha à ideia, mas os reflexos sociais de uma rejeição definitiva à instrução religiosa seria uma carga a ser suportada pelos filhos, e não pelos pais que haviam decidido por eles. Onde se sentaria uma criança impedida pelos pais de ter aulas de religião enquanto seus amiguinhos estariam aprendendo o catecismo e a vida dos santos? O que aconteceria a uma criança que não participasse dos ritos de passagem marcados pela primeira comunhão e pelo crisma?

Brunetti lembrou de uma disputa legal que chegara às manchetes dos jornais no ano anterior, envolvendo um casal totalmente respeitável, sem filhos, ele médico, ela advogada. Por serem ateus, a suprema corte de Turim não permitiu que adotassem uma criança, alegando que eles não seriam pais adequados.

Ele rira da história daqueles padres irlandeses em Dublin, que fazia a Irlanda parecer um país do Terceiro Mundo sob o jugo de uma religião primitiva, e agora, aqui, em seu próprio país, indícios do mesmo jugo estavam por certo bem à mostra, mesmo que apenas aos olhos dos pessimistas.

Ele não sabia o que fazer quanto ao padre Luciano, já que não possuía justificativa legal. O homem jamais fora condenado por um crime, e Brunetti intuía que seria impossível encontrar alguém em suas antigas paróquias que se dispusesse a falar abertamente contra ele. A infecção tinha sido passada adiante, para que outras pessoas cuidassem dela, uma resposta compreensível, e aqueles que se livraram dele com certeza permaneceriam em silêncio, se mais não fosse, apenas porque isso lhes asseguraria que continuariam livres dele.

Brunetti sabia que seus conterrâneos tendiam a encarar os delitos sexuais de modo airado, enxergando neles pouco mais do que excessos do ardor masculino. Não era uma visão com a qual ele compactuasse. Que tipo de terapia, ele se perguntou, seria aplicada a padres como o padre Luciano na instituição para a qual ele tinha sido encaminhado? Se os registros do padre desde sua passagem por ali forneciam alguma pista, era a de que, fosse qual fosse o tratamento que lhe haviam dado, este tinha se provado ineficiente.

De volta a sua mesa, ele espalhou os papéis a sua frente. Sentou-se um pouco, e logo se levantou para ir olhar pela janela. Sem ver nada que pudesse interessar a ele, voltou à mesa e juntou todos os relatórios e documentos relativos a Maria Testa e os diversos eventos que poderiam, de algum modo, estar relacionados ao que ela lhe havia dito naquele dia calmo, distante agora algumas semanas. Ele leu todos, aqui e ali anotando alguma coisa. Ao terminar, ficou encarando a parede por alguns minutos, então apanhou o telefone e pediu à telefonista que o pusesse em contato com o Ospedale Civile.

Para sua surpresa, não teve problemas em ser transferido para a enfermeira responsável pelo pronto-socorro, que lhe disse, quando ele se apresentou, que “a paciente da polícia” tinha sido transferida para um quarto particular, e que não, seu estado de saúde não se alterara, ela continuava inconsciente. Sim, se ele aguardasse um momento, ela iria chamar o policial que estava de guarda à sua porta.

Por acaso era Miotti.

“Pois não, senhor?”, ele perguntou após Brunetti se identificar.

“Alguma novidade?”

“Quieto e mais quieto.”

“O que você está fazendo?”

“Lendo, senhor. Espero que o senhor não se importe.”

“Melhor do que ficar olhando para as enfermeiras, eu suponho. Ela recebeu alguma visita?”

“Somente aquele homem do Lido. Sassi. Ninguém mais.”

“Você chegou a falar com o seu irmão, Miotti?”

“Sim, chefe. Na noite passada, na verdade.”

“E perguntou a ele sobre aquele padre?”

“Perguntei, chefe.”

“E?”

“Bem, a princípio ele não queria dizer nada. Talvez porque ele não quisesse espalhar rumores. É típico de Marco, senhor”, Miotti explicou, como se a pedir absolvição a seu superior por tamanha falha de caráter. “Mas então eu disse a ele que eu precisava mesmo saber, e ele me contou que tinha um boato — e apenas um boato, senhor — de que o tal padre tinha ligações com a Opus Dei. Nada de muito certo, apenas coisas que ele ouviu. Compreende, senhor?”

“Sim, eu compreendo. Algo mais?”

“Não, não mesmo, senhor. Fiquei imaginando o que o senhor teria gostado de saber, o que mais o senhor iria perguntar quando eu lhe dissesse o que acabei de dizer, e achei que o senhor gostaria de saber se Marco acreditava no boato, de modo que perguntei isso a ele.”

“E?”

“E ele acredita, senhor.”

“Obrigado, Miotti. Pode voltar à sua leitura.”

“Obrigado, senhor.”

“E o que você está lendo?”

“Quattroroute”, ele disse, dando o nome da mais popular das revistas sobre automóveis.

“Certo. Obrigado, Miotti.”

“Pois não, senhor.”

Oh, sagrado coração de Jesus, tenha piedade de nós. Bastava pensar na Opus Dei para Brunetti lembrar em pensamento de uma das orações favoritas de sua mãe. Se havia algum mistério que se tornara um enigma, era a Opus Dei. Brunetti sabia apenas que era um tipo de organização religiosa, metade clerical, metade laica, que devia total obediência ao papa e que se dedicava a algum tipo de renovação do poder ou da autoridade da Igreja. E, no instante mesmo em que ponderava o que sabia sobre a Opus Dei, e como veio a saber o que sabia, teve a consciência de que não poderia vir a ter certeza sobre o que era ou não verdadeiro em tudo isso. Se uma sociedade secreta é, por definição, um segredo, então tudo o que é “conhecido” sobre ela pode muito bem ser um engano.

Os maçons, com seus anéis, suas colheres de pedreiro e pequenos aventais de garçonetes sempre encantaram Brunetti. Ele tinha muito pouca informação sobre eles, mas sempre os considerara mais inofensivos que ameaçadores, e teve que perceber que uma parte não muito pequena disso se devia a que ele sempre os havia visto neutralizados pela bela diversão proporcionada por A flauta mágica.

Mas a Opus Dei era algo bem diferente. Ele sabia menos sobre eles — tinha que admitir na verdade que quase não sabia nada —, mas mesmo o som do nome era como um bafio gelado em sua nuca.

Ele tentou não se guiar por preconceitos estúpidos, buscando lembrar de algo que pudesse ter lido, ou mesmo ouvido, diretamente sobre a Opus Dei, algo plausível e comprovável, mas não conseguiu pensar em nada. De repente se viu pensando em ciganos, já que “sabia” tanto sobre ciganos quanto “sabia” sobre a Opus Dei: como um apanhado de coisas repetidas, coisas passadas de boca a boca, mas nunca com um nome, uma data ou um acontecimento real. O efeito cumulativo era o ar de mistério que qualquer sociedade fechada devia transpirar para aqueles que dela não faziam parte.

Ele tentou pensar em alguém com quem pudesse obter informação mais apurada, mas não conseguia pensar em ninguém além do anônimo amigo da signorina Elettra que trabalhava no escritório do patriarca. Certamente, se a Igreja estava alimentando uma víbora em seu seio, então seria naquele seio que a informação deveria ser buscada.

Ela olhou para cima quando ele entrou, surpresa por vê-lo novamente. “Sim, commissario.”

“Tenho outro favor a pedir para o seu amigo.”

“Sim”, ela perguntou, buscando sua agenda.

“Opus Dei.”

Sua surpresa, não mais do que um mínimo abrir de olhos, foi evidente a Brunetti. “E o que o senhor gostaria de saber sobre eles, senhor?”

“Se eles poderiam de alguma forma estar relacionados com o que estamos investigando aqui.”

“O senhor quer dizer os testamentos e aquela mulher no hospital?”

“Sim.” Então, como se tivesse pensado nisto naquele exato momento, ele perguntou: “E a senhorita poderia pedir a ele para verificar se haveria alguma conexão com o padre Cavaletti?”.

Ela escreveu um lembrete sobre isso. “E o padre de quem o senhor não sabe o nome? O da contessa Crivoni, se posso me referir a ele dessa maneira?”

Brunetti assentiu e perguntou em seguida: “A senhora sabe algo sobre eles, signorina ?”.

Ela balançou a cabeça. “Não mais do que o resto das pessoas. Eles são discretos, sérios, e perigosos.”

“E a senhorita não acha que esteja exagerando?”

“Não.”

“A senhorita sabe se eles têm um”, Brunetti penou para encontrar o termo apropriado, “capítulo nesta cidade?”

“Não tenho ideia, senhor.”

“É estranho, não é? Nenhum de nós tem nenhuma informação precisa, mas isso não nos impede de suspeitarmos e termos medo deles.” Como ela não disse nada, ele insistiu: “Não é estranho?”.

“Eu acho o contrário, senhor.”

“Que é...?”

“Eu presumo que se nada sabemos sobre eles, aí é que temos que ficar mais assustados.”


16

Entre os papéis em sua mesa, ele encontrou o número do telefone residencial do dottor Fabio Messini, ligou para lá e pediu para falar com o médico. Uma mulher atendeu, disse que o doutor estava muito ocupado para vir ao telefone e perguntou quem estava falando. Brunetti não precisou dizer nada além de “polícia”, com o que a mulher concordou, com audível relutância, a perguntar ao médico se ele podia dispor de um momento para atender.

Passou-se um bom tempo até que uma voz de homem dissesse: “Pois não?”.

“Dottor Messini?”

“Claro. Quem fala?”

“Commissario Brunetti.” Uma pausa, para marcar bem o cargo. “Eu gostaria de lhe fazer algumas perguntas, dottore.”

“E sobre o quê, commissario?”

“Suas casas de repouso.”

“E o que é que tem elas?”, Messini perguntou, soando mais impaciente que curioso.

“Quero algumas informações sobre o pessoal que trabalha lá.”

“Eu não sei nada sobre o pessoal”, disse o médico de modo casual, deixando Brunetti imediatamente intrigado sobre as enfermeiras filipinas que trabalhavam na casa de repouso em que sua mãe vivia atualmente.

“Eu prefiro não discutir isto ao telefone”, disse Brunetti, sabendo que uma pitada de mistério sempre despertava a curiosidade de quem estivesse conversando com ele.

“Bem, é claro que o senhor não está esperando que eu vá até a questura, não é mesmo?”, perguntou Messini, numa voz carregada do sarcasmo dos poderosos.

“Só se o senhor quiser evitar que seus pacientes sejam perturbados por uma blitz da Guardia di Frontiere passando por aí para interrogar suas enfermeiras filipinas”, Brunetti esperou o tempo de uma respiração antes de acrescentar, “Dottore.”

“Não tenho a mínima ideia do que o senhor está falando”, insistiu Messini numa voz que dizia exatamente o oposto.

“Como queira, dottore. Eu esperava que isso fosse algo que pudéssemos ter discutido como dois cavalheiros, talvez até mesmo esclarecendo tudo antes de se tornar um embaraço, mas parece ser impossível. Lamento tê-lo incomodado”, disse Brunetti, num tom de voz que escandiu para que soasse cordialmente definitivo.

“Um momento, commissario. Talvez eu tenha me precipitado e seja mesmo melhor que nos encontremos.”

“Se o senhor estiver muito ocupado, dottore, eu entendo perfeitamente”, disse Brunetti decidido.

“Bem, estou mesmo ocupado, mas por certo posso encontrar um tempinho, talvez hoje à tarde. Deixe eu conferir minha agenda um minuto.” O som se tornou abafado assim que Messini tapou o bocal com a mão e falou ao fundo com alguém. Depois de uma curta pausa, sua voz voltou. “Acabei de descobrir que meu almoço foi cancelado. Posso convidá-lo para almoçar em minha companhia, commissario ?”

Brunetti não disse nada, esperando pelo nome do restaurante, um indicativo do tamanho da propina que Messina julgava ter que pagar.

“Da Fiori?”, sugeriu Messini, oferecendo assim uma pista, ao escolher o melhor restaurante da cidade, da importância que ele próprio atribuía a si, ao assumir que sempre teria ali uma mesa reservada. Mais interessante ainda, ele disse a Brunetti que seria prudente verificar os passaportes e vistos de trabalho das enfermeiras estrangeiras que trabalhavam em suas casas de repouso.

“Não”, disse Brunetti no tom de voz de um funcionário público não acostumado a ser comprado com um almoço.

“Perdão, commissario, achei que seria um lugar agradável para nos conhecermos.”

“Talvez pudéssemos nos conhecer em meu gabinete na questura.” Brunetti esperou uma fração de segundo e então riu com largueza da própria piada, acrescentando: “Se isto lhe for conveniente, dottore ”.

“Claro. Duas e meia é um bom horário para o senhor?”

“Perfeitamente.”

“Espero vê-lo então, commissario”, disse Messini, e desligou.

Três horas mais tarde, à hora marcada com o dottor Messini, uma lista das enfermeiras estrangeiras trabalhando em suas casas de repouso já havia sido compilada. Embora quase todas, como Brunetti tinha lembrado, fossem filipinas, havia duas do Paquistão e uma do Sri Lanka. Todas estavam na lista de pagamentos do computador de Messini, um sistema tão fácil de invadir que a signorina Elettra disse que até mesmo Brunetti poderia ter ligado para o número de Messini e pegado tudo a partir de seu telefone. Como os computadores permaneciam um mistério para ele, Brunetti nunca soube se ela estava falando sério. E, como sempre, não se preocupou em perguntar, ou mesmo especular, se suas invasões eram legítimas ou não.

Com os nomes das enfermeiras à disposição, ele desceu ao Uficio Stranieri para conversar com Anita, e em menos de uma hora ela subiu para lhe entregar os arquivos. Em todos os casos as mulheres haviam entrado no país como turistas e depois tinham conseguido prorrogar seus vistos ao provarem que estavam estudando na Universidade de Pádua. Brunetti sorriu quando viu os vários departamentos em que elas estavam matriculadas, escolhidos sem dúvida para desviar exatamente o tipo de atenção que estavam recebendo agora: história, direito, ciências políticas, psicologia e agronomia. E gargalhou diante da criatividade da última escolha, um curso de matéria não oferecida pela universidade. Talvez o dottor Messini viesse a se revelar um excêntrico.

O médico chegou na hora marcada. Riverre abriu a porta do escritório de Brunetti às duas e meia em ponto e anunciou: “Dottor Messini está aqui para vê-lo, senhor”.

Brunetti ergueu os olhos dos arquivos das enfermeiras, fez um aceno rápido para Messini e então se levantou e ofereceu a cadeira à frente de sua mesa com um gesto de mão.

“Boa tarde, dottore.”

“Boa tarde, commissario”, respondeu Messini, sentando-se e observando ao redor para ter uma ideia do ambiente e, presumivelmente, do homem que tinha ido visitar.

Messini poderia ter sido um nobre da Renascença, um dos ricos e corruptos. Um homem grande, tinha chegado àquele ponto da vida em que os músculos estavam lentamente se tornando um peso, e daí logo virariam gordura. Sua boca era o que tinha de melhor, lábios cheios e precisamente esculpidos, formando com naturalidade nos cantos um sorriso que sugeria bom humor. O nariz era maior do que deveria para uma cabeça tão grande como a dele, e os olhos demasiado juntos, exatamente o bastante para não lhe agraciarem com uma boa aparência.

As roupas sussurravam riqueza; os sapatos refletiam a mesma palavra. Seus dentes, trabalhados tão perfeitamente que davam a impressão de ter escurecido com a idade, mostraram-se em um riso amigável no momento em que ele terminou o exame do aposento e voltou a atenção para Brunetti.

“O senhor disse que tinha algumas perguntas sobre as pessoas que trabalham para mim, commissario ?” A voz de Messini era informal e tranquila.

“Sim, dottore, tenho. Tenho algumas perguntas a fazer sobre suas enfermeiras.”

“E que perguntas seriam?”

“Como se explica que elas estejam trabalhando na Itália?”

“Como eu lhe disse ao telefone hoje de manhã, commissario...”, Messini começou, e puxou um pacote de cigarros do bolso interno da jaqueta. Sem perguntar, acendeu um cigarro, olhou ao redor procurando um cinzeiro e, não encontrando nenhum, depositou o fósforo usado na ponta da mesa de Brunetti. “Eu não me envolvo com as questões de pessoal. Isso é trabalho dos meus administradores. É para isso que lhes pago.”

“E tenho certeza que paga muito bem”, disse Brunetti, com o que, esperava, fosse um sorriso maroto.

“Muito”, Messini confirmou, percebendo tanto a insinuação quanto o tom, mas não passando recibo pelos mesmos. “E qual é o problema?”

“É que parece que alguns de seus empregados não possuem os vistos exigidos para quem queira trabalhar legalmente neste país.”

Messini arqueou as sobrancelhas numa expressão que poderia passar por espanto. “Acho difícil de acreditar. Estou certo que todos os vistos exigidos foram apresentados, bem como preenchidos todos os documentos legais.” Ele encarou Brunetti, que sorria de modo franco, os olhos postos nos papéis à frente dele. “É claro, commissario, que, se por alguma distração se perdeu alguma coisa, que seja preciso preencher outros documentos, e que”, ele fez uma pausa, em busca da forma mais polida de dizer o que ia dizer, e encontrou as palavras, “restem ainda algumas taxas adicionais a serem pagas, eu quero lhe garantir que farei de bom grado tudo o que for necessário para regularizar a minha situação.”

Brunetti sorriu, impressionado pelo uso hábil que Messini fazia do eufemismo. “É muito generoso de sua parte, dottore.”

“E o senhor é muito gentil em dizer isso, mas eu acho que estou apenas fazendo a coisa certa. Farei o que for preciso para permanecer bem com as autoridades.”

“É como eu disse, generoso”, Brunetti repetiu, dando um sorriso que tentou fazer parecer venal, no que aparentemente foi bem-sucedido, pois Messini disse: “Tudo que o senhor precisa fazer é me informar sobre as taxas aplicáveis”.

“Na verdade”, disse Brunetti, deixando os papéis de lado e encarando Messini, que, o commissario percebeu, estava tendo sérias dificuldades com as cinzas de seu cigarro, “não são as suas enfermeiras que eu quero discutir com o senhor, mas sim um membro da Ordem da Sagrada Cruz.”

Por experiência, Brunetti sabia que os desonestos sempre tentam parecer inocentes, mas Messini parecia ao mesmo tempo inocente e confuso. “A Sagrada Cruz? O senhor quer dizer as freiras?”

“Há padres também, não?”

Isso pareceu soar como novidade a Messini. “Sim, creio que sim”, disse ele após uma pausa. “Mas somente as freiras trabalham nas casas de repouso.” O cigarro estava agora quase queimando o filtro. Brunetti viu que ele olhou para o chão, descartando a ideia e não o cigarro, e então, de modo bem cuidadoso, equilibrou-o sobre a ponta não queimada no lugar da mesa onde tinha colocado o fósforo queimado.

“Há cerca de um ano, uma das irmãs foi transferida.”

“E?”, Messini perguntou protocolarmente, obviamente confuso pela mudança de assunto por Brunetti.

“Ela foi transferida da casa de repouso em Dolo para uma daqui do centro, a San Leonardo.”

“Se o senhor está dizendo, commissario. Eu sei muito pouco sobre o pessoal.”

“Além das enfermeiras estrangeiras?”

Messini sorriu. A conversa sobre as enfermeiras o trazia de volta a solo seguro.

“Eu gostaria de saber se o senhor sabe o motivo da transferência dela.” E, antes que Messini pudesse dizer qualquer coisa, Brunetti acrescentou. “E saiba que eu considerarei a sua resposta como uma espécie de taxa adicional, dottor Messini.”

“Acho que não estou entendendo.”

“Não tem importância, dottore. Eu queria que o senhor me dissesse o que sabe sobre a transferência dessa irmã. Eu duvido que ela tenha sido transferida de uma de suas casas de repouso para outra sem que o senhor tenha sido informado.”

Messini refletiu por um momento, e Brunetti observou as alterações de expressão no rosto do outro homem enquanto ele tentava avaliar o perigo que poderia aguardá-lo independentemente da resposta que desse. Por fim, disse: “Não sei que tipo de informação o senhor possa estar buscando, commissario, mas seja qual for, eu não posso dá-la ao senhor. Todas as questões relativas ao pessoal estão a cargo da chefe das enfermeiras. Acredite, se pudesse ajudá-lo aqui, eu o faria, mas trata-se de algo que foge à minha alçada”.

Embora achasse que na maior parte das vezes que as pessoas pediam para que acreditassem nelas elas mentiam, Brunetti concluiu que Messini dizia a verdade. Então, assentiu e disse: “Esta mesma irmã deixou a casa de repouso há algumas semanas. O senhor soube disso?”.

“Não.”

Brunetti acreditou nele novamente.

“Qual o motivo de a Ordem da Sagrada Cruz ajudar na administração das casas de repouso, dottore ?”

“É uma história longa e complicada”, disse Messini, com um sorriso que outra pessoa poderia achar totalmente encantador.

“Não estou com pressa, dottore. O senhor está?” Já o sorriso de Brunetti era completamente desprovido de charme.

Messini pegou sua carteira de cigarros, mas a devolveu para o seu bolso sem tirar dali outro. “Ao assumir a gerência da primeira casa de repouso, há oito anos, elas eram administradas inteiramente pela ordem, e eu fora contratado somente como diretor médico. Mas, com o passar do tempo, ficou cada vez mais evidente que, se eles continuassem a administrar a casa como uma instituição de caridade apenas, seriam forçados a fechar as portas.” Messini encarou Brunetti longamente. “As pessoas não são muito generosas.”

“De fato”, foi tudo o que Brunetti se permitiu comentar.

“De qualquer modo, avaliei o risco financeiro da instituição — eu estava de fato pronto a me dedicar a ajudar os velhos e doentes —, e ficou evidente para mim que ela só se tornaria viável se se tornasse uma instituição privada.” Vendo que Brunetti acompanhava o que ele dizia, Messini continuou. “E, assim, foi feita uma reorganização societária e eu me tornei o administrador e o médico diretor da instituição.”

“E a ordem da Sagrada Cruz?”

“A principal missão da ordem foi sempre cuidar dos velhos, e ficou decidido que ela permaneceria como uma parte integral do pessoal das casas de repouso, mas que eles passariam a ser pagos como empregados.”

“E os salários deles?”

“Pagos para a ordem, claro.”

“Claro”, repetiu Brunetti, mas antes que Messini fizesse qualquer ressalva a seu tom, ele prosseguiu: “E quem recebe tais salários?”.

“Não faço ideia. Provavelmente a madre superiora.”

“Os cheques são feitos em favor de quem?”

“Da ordem.”

Embora Brunetti tenha recebido essa resposta com um sorriso protocolar, Messini estava totalmente perdido. Nada disso fazia mais sentido para ele. Acendeu outro cigarro, colocando o segundo fósforo queimado no outro lado do filtro ereto.

“Quantos membros da ordem trabalham para o senhor, dottore ?”

“Esta é uma pergunta que o senhor terá de fazer ao meu contador. Acho que por volta de trinta.”

“E quanto eles recebem?” Antes que Messini pudesse apelar de novo para o seu contador, Brunetti repetiu a pergunta. “E quanto eles recebem?”

“Acho que algo em torno de quinhentas mil liras por mês.”

“Trocando em miúdos, cerca de um quarto do que uma enfermeira receberia.”

“A maioria delas não é enfermeira”, Messini alegou. “Elas são auxiliares.”

“E, por serem membros de uma ordem religiosa, imagino que o senhor não deva pagar nenhuma contribuição previdenciária ao governo.”

“Commissario”, disse Messini, apresentando pela primeira vez sinais de impaciência em sua voz, “aparentemente, o senhor parece já saber a resposta para tudo o que vem me perguntando, e por isso eu não consigo ver a necessidade de me ter aqui para responder-lhe. Além disso, se o senhor for continuar assim, acho melhor ter meu advogado presente.”

“Só tenho mais uma pergunta, dottore. E eu lhe garanto que não será necessária a presença de seu advogado. Não sou um membro da Guardia di Finanza nem da Guardia di Frontiere. Aqueles que o senhor contrata e quão pouco lhes paga são coisas que só ao senhor dizem respeito.”

“Então faça a pergunta.”

“Quantos de seus pacientes deixaram dinheiro de herança para o senhor ou para a sua casa de repouso?”

Embora Messini tenha sido pego de surpresa pela pergunta, sua resposta foi rápida. “Três, acho. Eu tento desencorajar isso. As poucas vezes em que soube que alguém planejava fazê-lo, eu falei com as famílias e pedi a elas que buscassem persuadir a pessoa do contrário.”

“Algo muito generoso de sua parte, dottore. Pode-se mesmo dizer altamente magnânimo.”

Messini cansou-se dos jogos, e disse então a verdade, e de forma cortante: “Quem quer que dissesse isto seria um tolo”. E deixou cair seu cigarro no chão, esmigalhando-o com o calcanhar. “Basta pensar no que pareceria. Assim que soubessem do fato, as pessoas iriam fazer fila para retirar os seus parentes da instituição e mandá-los para outro lugar.”

“Entendo”, disse Brunetti. “Será que o senhor poderia me fornecer o nome dessas pessoas que o senhor convenceu do contrário? De seus parentes, claro.”

“E o que o senhor vai fazer?”

“Ligar para eles.”

“Quando?”

“Assim que o senhor sair daqui, dottore. Antes que o senhor tenha tempo de telefonar.”

Messini nem se preocupou em parecer ultrajado. “Caterina Lombardi. A família dela reside em alguma parte de Mestre. O nome do filho dela é Sebastiano.”

Brunetti escreveu o nome. Olhando para cima, ele disse: “Acho que encerramos por aqui, dottore. Obrigado pelo seu tempo”.

Messini se levantou, mas não estendeu a mão. Sem dizer palavra, atravessou a sala e saiu do escritório. E não bateu a porta.

Antes que Messini pudesse ter saído da questura ou usado o telefone celular, Brunetti já falara com a esposa de Sebastiano Lombardi, que confirmou a história do médico. Antes de desligar, ela entoou elogios rasgados ao dottor Messini e ao cuidado humano e amoroso que ele devotava a todos os seus pacientes. A concordância de Brunetti era tão efusiva quanto falsa. E, depois disso, encerrou a conversa.


17

Brunetti resolveu passar o resto da tarde na Biblioteca Marciana, mas ao deixar a questura não se preocupou em dizer a ninguém para onde estava indo. Antes de se formar em direito na Universidade de Pádua, ele cursara três anos de história em Cá Foscari, onde acabou por se tornar um razoavelmente competente pesquisador, sentindo-se em casa tanto entre os numerosos volumes da Marciana quanto nas sinuosas galerias do Archivio di Stato.

Enquanto subia a Riva degli Schiavoni, divisou a Biblioteca Sansovino e, como sempre acontecia, a arquitetura não convencional do edifício fez exultar seu coração. Apesar de terem apenas o engenho humano a seu dispor — botes, cordas e roldanas —, os grandes construtores da Serena República ainda assim haviam conseguido criar um milagre como aquele. Brunetti se lembrou de algumas das horrendas edificações com que os modernos venezianos tinham desfigurado a própria cidade: o hotel Bauer Grunwald, a Banca Cattolica, a estação de trens, e ele lamentou, e não era a primeira vez, o custo da ambição humana.

Ao abandonar a última ponte, e caminhar direto para a piazza, aquela melancolia se desvaneceu, afugentada pelo poder de uma beleza que somente o homem podia criar. O vento primaveril brincava com os enormes estandartes esvoaçando na frente da basílica, e Brunetti sorriu ao perceber quão mais imponente que as três faixas paralelas com as cores da Itália era o leão da San Marco, rugindo por sobre o seu campo escarlate.

Ele atravessou a piazza por sob a logetta, entrando então na biblioteca, um lugar que raramente recebia um turista e não era nem de longe uma das atrações principais da cidade. Ele passou entre as duas estátuas gigantescas, mostrou sua tessera na janela da recepção e foi para o hall de consultas. Buscou nos principais catálogos por referências à “Opus Dei”, e passados quinze minutos encontrou menções a quatro livros e sete artigos espalhados em revistas variadas.

Ao passar suas solicitações por escrito à bibliotecária, ela sorriu e sugeriu que ele se sentasse, informando-lhe que levaria uns vinte minutos para reunir o material. Ele se dirigiu para um assento a uma das compridas mesas, com passos silenciosos em um lugar em que até o virar de uma página era uma intrusão. Enquanto esperava, escolheu totalmente ao acaso um volume da Loeb Classical Library e começou a ler o texto latino, curioso em saber quanto, se algo, dessa língua permanecera. O livro que pegara era o das cartas de Plínio, o Jovem, e ele percorreu suas páginas com vagar, procurando a carta que descrevia a erupção do Vesúvio em que o tio do escritor perdera a vida.

No meio da leitura daquele relato, Brunetti estava encantado pelo pouquíssimo interesse que o escritor parecia demonstrar pelo que tinha sido considerado um dos grandes eventos da Antiguidade e pelo quanto ele, Brunetti, conseguira reter daquela língua, quando a bibliotecária retornou e depositou um conjunto de livros e revistas a seu lado.

Ele agradeceu com um sorriso, devolveu Plínio a seu degredo empoeirado e passou a se concentrar nos livros que solicitara. Dois deles pareciam ser tratados escritos por membros da Opus Dei, ou pelo menos por pessoas que aprovavam tanto a organização quanto a sua missão. Brunetti passou os olhos por eles rapidamente, descobrindo que o entusiasmo retórico dos autores e sua incessante menção à “sagrada missão” faziam seus dentes rangerem, e assim os deixou de lado. Os outros dois, por sua vez, eram mais críticos, e, por essa razão, também mais interessantes.

Fundada na Espanha em 1928 por Don Josemaria Escrivá, um padre com fumos de sangue azul, a Opus Dei devotou-se a recapturar, ou ao menos era o que parecia, o domínio político da Igreja católica. Um de seus objetivos juramentados era a extensão dos princípios cristãos ao mundo secular. Para conseguir tal intento, os membros da ordem se empenhavam na transmissão das doutrinas da ordem e da Igreja em seus lugares de trabalho, em seus lares e no entorno social em que viviam.

Desde o princípio, considerou-se que o caminho mais prudente para os membros da ordem era manter sua ligação com ela em segredo. Embora eles negassem com fervor e constância que isso fazia da Opus Dei uma sociedade secreta, uma certa dose de impenetrabilidade a respeito de suas metas e atividades era estritamente mantida, e não se fornecia nenhuma estimativa precisa quanto ao número de seus membros. Brunetti pensou que a justificativa usual para tal atitude estava relacionada à existência de algum tipo de “inimigo” que buscaria a destruição da sociedade — e até mesmo da “ordem moral do universo”. Devido ao poder político da maioria de seus membros e em razão da proteção e apoio oferecido pelo atual papa, a Opus Dei não pagava impostos nem estava sujeita à auditoria legal pelas várias agências governamentais em nenhum dos países em que atualmente levava a efeito sua sagrada missão. Dentre os muitos mistérios que cercavam a sociedade, o de suas finanças provou ser o mais impenetrável.

Brunetti folheou rapidamente o restante do primeiro livro, com suas discussões sobre “membros regulares”, “fidelidades” e “eleitos”, passando então para o segundo. Este apresentava um bocado de especulação, e uma quantidade ainda maior de suspeição, mas fatos mesmo, muito poucos. De certo modo, os livros pareciam ser pouco mais que o lado oposto da brilhante e reluzente moeda oferecida pelos apoiadores da ordem: muita paixão e pouca substância.

Passou às revistas, surpreendendo-se de pronto ao descobrir que todos os artigos sobre a ordem tinham sido cuidadosamente arrancados. Levou-as então de volta à sala de leituras principal. A bibliotecária ainda estava à sua mesa, e dois acadêmicos idosos cochilavam nos bancos que eram iluminados pelos raios das lâmpadas de leitura nas mesas. “Algumas páginas foram cortadas destas revistas”, ele disse enquanto as colocava à frente dela.

“Será que foram os antiabortistas de novo?”, ela perguntou sem surpresa, mas consideravelmente irritada.

“Não, o pessoal da Opus Dei.”

“Pior ainda”, ela disse calmamente, trazendo as revistas para perto de si. Ao abrir uma a uma, caía direto na parte com as páginas arrancadas. Balançou a cabeça diante dos sinais de destruição e ao cuidado que tinha sido empregado em fazer aquilo. “Não sei se temos o dinheiro para continuar a comprar exemplares de reposição de todas elas”, disse enquanto colocava as revistas de lado com delicadeza, como se temerosa de lhes causar mais dor.

“Isto é comum?”

“Tem sido, de uns anos para cá. Parece ter virado moda como forma de protesto a destruição de qualquer artigo que contenha informações que eles não aprovem. Acho que houve um filme assim, há alguns anos, sobre pessoas que queimavam livros.”

“Fahrenheit 451. Pelo menos isto nós não fazemos”, disse Brunetti, tentando com seu sorriso oferecer este mínimo consolo.

“Ainda não”, ela disse, e voltou sua atenção para um dos acadêmicos que tinha se aproximado de sua mesa.

Já na piazza, Brunetti parou e olhou na direção do Bacino da San Marco, depois se voltou e avaliou os ridículos domos da basílica. Tinha lido certa vez sobre um lugar na Califórnia para onde as andorinhas retornam todo ano na mesma data. No Dia de São José? Aqui acontecia quase a mesma coisa, pois todos os turistas pareciam retornar na segunda semana de março, impulsionados por uma bússola interna que os conduzia até este mar particular. Eram mais e mais a cada temporada, e entrava ano, saía ano, a cidade se apresentava mais hospitaleira a eles que a seus próprios cidadãos. As quitandas fechavam, os sapateiros saíam de férias e tudo parecia se transformar em máscaras, laços pré-fabricados e gôndolas de plástico.

Brunetti considerava esta a época mais desagradável da cidade, sem dúvida exacerbada agora por seu encontro com a Opus Dei, e sabia que, para contrabalançar o seu desgosto, era preciso caminhar. Pôs-se então a margear a Riva degli Schiavoni, águas a sua direita, hotéis à esquerda. Quando chegou à primeira ponte, em passo acelerado sob o sol, já se sentia melhor. Então, ao ver os rebocadores ancorados ao longo da Riva, alinhados e em ordem, cada um com seu nome latino, sentiu seu coração flutuar e velejar até a San Giorgio na vaga de um vaporetto que passava.

A placa indicando o Ospedale SS Giovanni e Paolo fez que se decidisse, e vinte minutos depois se encontrava ali. A enfermeira responsável pelo pavilhão para onde tinham removido Maria Testa disse a ele que não tinha havido mudanças em seu estado e que ela havia sido transferida para um quarto privativo, o de número 317, no fim do corredor, virando à direita.

Do lado de fora do quarto, Brunetti encontrou uma cadeira vazia com o exemplar mais recente do Topolino largado sobre ela com a capa virada para baixo. Sem pensar, sem bater, Brunetti abriu a porta do quarto e entrou, o instinto fazendo que se posicionasse suavemente ao lado da porta que ainda se fechava enquanto seus olhos dardejavam pelo quarto.

Uma forma sob os cobertores jazia no leito, com tubos correndo para cima e para baixo e garrafas de plástico por todo lado. O mesmo curativo grosseiro que envolvia o ombro dela permanecia em seu lugar, assim como a bandagem em torno da cabeça. Mas aquela que Brunetti viu enquanto se aproximava da cama parecia uma outra pessoa; o nariz tinha sido reduzido a um minúsculo bico, os olhos tinham afundado profundamente em seu crânio, e o corpo quase que não aparecia sobre as cobertas, tão magra ela havia ficado em tão pouco tempo.

Como fizera da última vez, Brunetti estudou o rosto dela, na esperança de que algo lhe fosse revelado. Ela respirou lentamente, com uma pausa tão grande entre as respirações que Brunetti passou a temer que a próxima não viesse jamais.

Ele explorou o quarto com o olhar e não viu sinal de flores, livros ou da passagem de quem quer que fosse, o que achou estranho, e lhe causou uma súbita tristeza. Ali estava uma bela mulher, na aurora de sua vida, aprisionada e incapaz de fazer algo mais que respirar, e não havia o mínimo indício de que alguém no mundo estivesse a par disso, ou que sofresse com o pensamento de que a aurora pudesse jamais vir.

Alvise, novamente absorto em sua leitura, sentou-se na cadeira do lado de fora do quarto e nem se incomodou em olhar para cima quando Brunetti saiu.

“Alvise”, disse Brunetti.

Ele tirou os olhos distraidamente do gibi e, ao reconhecer Brunetti, assumiu instantaneamente a posição de sentido, sem largar a revista. “Sim, senhor?”

“Onde é que você estava?”

“Eu fico pegando no sono, senhor, então eu tenho que descer para tomar um café. Eu não quero pegar no sono e deixar que algum intruso entre no quarto.”

“E enquanto você sai, Alvise? Não lhe ocorreu que alguém pode entrar enquanto você está lá embaixo?”

Fosse ele o magnífico Cortez, silencioso, no cume do Darien, Alvise não teria ficado mais espantado diante dessa sugestão. “Mas eles teriam que saber que eu saí.”

Brunetti não disse nada.

“Não teriam, senhor?”

“Quem o escalou para cá, Alvise?”

“Está tendo um rodízio no escritório, senhor; estamos vindo para cá por turnos.”

“Quando é que você vai ser dispensado?”

Alvise jogou o gibi na cadeira e olhou para o relógio. “Às seis, senhor.”

“E quem vai substituir você?”

“Não sei, senhor. Eu só confiro as minhas escalas.”

“Eu não quero que você deixe este posto novamente antes de ser substituído.”

“Sim, senhor, claro.”

“Alvise”, continuou Brunetti, aproximando tanto o seu rosto do policial que pôde sentir o odor cortante de café e grappa no hálito do homem, “se eu voltar aqui e encontrá-lo sentado ou lendo, ou em outro lugar que não em pé na frente desta porta, você vai ser dispensado da força tão rapidamente que não vai sequer ter tempo para explicar o que houve para o seu diriginte sindical.” Alvise abriu a boca fazendo menção de contestar, mas Brunetti cortou sua iniciativa. “Uma palavra, Alvise, uma palavra e você está acabado.” E Brunetti se virou e foi embora.

Ele esperou o jantar acabar para dizer a Paola que o nome Opus Dei era agora parte da sua investigação. Não foi por temer a indiscrição da esposa que Brunetti hesitou para lhe contar a nova, mas sim por medo da reação bombástica dela à mera menção do nome da sociedade, o que de fato aconteceu, mas bem depois que o jantar tinha acabado, quando Raffi já tinha ido para o quarto terminar o dever de grego e Chiara para ler. No entanto, quando a explosão veio, ela não foi menos destrutiva por ter sido adiada.

“Opus Dei? Opus Dei?” A salva introdutória de Paola ribombou pela sala de estar, a partir de onde ela estava sentada, pregando um botão em uma de suas camisas, e atingiu Brunetti, estirado no sofá com os pés cruzados à sua frente, apoiados no descanso. “Opus Dei?”, ela atirou novamente, afinal, os filhos podiam não ter ouvido da primeira. “Aquelas casas de repouso estão envolvidas com a Opus Dei? Então não é surpresa que os velhos estejam morrendo; provavelmente estão sendo assassinados para que o dinheiro deles possa ser usado na conversão de alguns selvagens infiéis à Sagrada Mãe Igreja.” Décadas de convívio com Paola o haviam acostumado ao extremismo da maioria de suas posições; e o haviam ensinado que, quando o assunto era a Igreja, ela logo se inflamava, raras vezes mantendo a lucidez. E que jamais estava errada.

“Eu não sei se eles estão envolvidos com elas, Paola. Tudo o que sei é o que o irmão de Miotti falou que corre um boato de que o capelão é um membro da ordem.”

“Bem, e isto não é o suficiente?”

“O suficiente para quê?”

“Para prendê-lo.”

“Prendê-lo com base em quê, Paola? Por ele discordar de você em questões religiosas?”

“Não banque o espertinho comigo, Guido”, ela ameaçou, apontando para ele a agulha que tinha nas mãos para mostrar que falava sério.

“Não estou bancando o espertinho. Não estou sequer tentando. Eu não posso sair por aí prendendo um padre somente porque há um boato de que ele pertence a uma organização religiosa.” Ele sabia que, sob a ótica de justiça de Paola, não era preciso maior evidência de um crime do que isso, mas guardou para si tal observação, já que a ocasião não era exatamente propícia para externá-la.

O silêncio de Paola deixou claro que ela percebera que o marido tinha razão, mas o vigor com que ela enfiou a agulha pela manga de sua camisa era prova de quanto isso a irritara. “Você sabe que eles são bandidos sedentos de poder”, ela disse.

“Pode até ser que seja assim. Eu sei que muita gente acredita nisso, mas eu não tenho nenhuma prova.”

“Ah, qual é, Guido, todo mundo conhece a Opus Dei.”

Ele se aprumou e cruzou as pernas. “Não estou tão certo de que conheçam, não.”

“Quê?”, ela perguntou, olhando com raiva para ele.

“Acho que todos pensam que sabem o que é a Opus Dei, mas o fato é que, no fim das contas, trata-se de uma sociedade secreta. Eu duvido que quem não faça parte da organização saiba muito sobre ela, ou sobre eles. Ou, ao menos, que saibam algo que seja verdade.”

Brunetti observou Paola a ponderar sobre o que ele dissera, a agulha imóvel em sua mão enquanto ela continuava a fitar a camisa. Apesar de o assunto religião a tirar do sério, ela era também uma professora universitária, e foi essa porção de si que a fez erguer os olhos e encará-lo. “Pode ser que você tenha razão.” Ela franziu o cenho diante da própria admissão, e então acrescentou: “Mas não é estranho que se saiba tão pouco a respeito deles?”.

“Mas eu acabei de dizer que eles são uma sociedade secreta.”

“O mundo está repleto de sociedades secretas, mas a maioria delas não é mais que uma piada: maçons, rosa--cruzes, todos aqueles cultos ao demônio que os americanos estão sempre inventando. Mas as pessoas têm medo de verdade da Opus Dei. Da mesma forma que eles tinham medo da SS, da Gestapo.”

“Paola, você não acha que está sendo um pouco extremista?”

“Você sabe que eu não consigo ser racional quando o assunto é este, então não queira que eu seja agora, tá bom?” Nenhum dos dois falou por um bom momento, e de repente ela acrescentou: “Mas é mesmo estranho como eles conseguiram criar essa reputação sobre si próprios ao mesmo tempo que permaneceram quase totalmente secretos”. Ela largou a camisa e enfiou a agulha na almofada de agulhas que estava a seu lado. “O que é que eles querem?”

“Você está parecendo o Freud”, disse Brunetti com uma gargalhada. “‘Afinal, o que quer uma mulher?’”

Ela riu da piada. O desprezo por Freud e todos os seus escritos e pompas era parte da liga intelectual que os mantinha juntos. “Não, é sério. O que você acha que eles realmente querem?”

“Não tenho ideia”, Brunetti se viu forçado a admitir. Então, depois de pensar um pouco sobre o assunto, respondeu: “Poder, acho”.

Paola piscou algumas vezes e balançou a cabeça. “Taí uma coisa que sempre me assusta, que alguém queira isso.”

“Isso é porque você é uma mulher. É a única coisa que as mulheres acreditam não querer. Mas nós queremos.”

Ela olhou para ele, meio rindo, pensando se tratar de uma outra piada, mas Brunetti, o semblante sério, continuou. “Estou falando sério, Paola. Não acho que as mulheres entendam quanto é importante para nós, para os homens, ter poder.” Ele percebeu que ela ia contestá-lo, mas a interrompeu. “Não, não tem nada a ver com a inveja do útero. Bem, pelo menos eu não acho que tenha — você sabe, a sensação de inadequação que temos por não podermos parir e a necessidade de compensar isso de outras maneiras.” Brunetti fez uma pausa, já que nunca dissera tais coisas, nem mesmo para Paola. “Talvez seja só porque somos maiores e por isso possamos continuar a dar um chega para lá nos outros a nossa volta.”

“Isso é de um simplismo atroz, Guido.”

“Eu sei, o que não quer dizer que esteja errado.”

Ela balançou a cabeça novamente. “Eu simplesmente não consigo entender. No fim, não importa quanto poder tenhamos, todos ficamos velhos, depois fracos, e acabamos perdendo tudo.”

Brunetti deu-se conta de repente de quanto ela soava como Vianello, seu sargento, que argumentara que a riqueza material era uma ilusão; e agora sua mulher dizia a ele que o poder não era real. E o que isso fazia dele, o rude materialista, apanhado entre dois anacoretas?

Nem ele nem Paola falaram mais por um longo tempo. Por fim, Paola olhou para o seu relógio, viu que já passava das onze, e disse: “Tenho uma aula bem cedo amanhã”. Entendendo sua indireta, Brunetti se levantou, mas, antes que ela se levantasse, o telefone tocou.

Ela fez menção de atender, mas Brunetti foi mais rápido, seguro de que seria ou Vianello ou alguém do hospital. “Pronto”, ele disse, dominando tanto o temor quanto a excitação, e mantendo a voz calma.

“É o signor Brunetti?”, perguntou a voz de uma estranha.

“Sim.”

“Signor Brunetti, preciso falar com o senhor”, começou a mulher atropeladamente. Mas então, com o espírito aparentemente aliviado, fez uma pequena pausa e disse em seguida: “Não, será que eu poderia falar com a signora Brunetti?”

A tensão na voz da mulher era tão forte que Brunetti não se atreveu a perguntar quem era, temendo que ela desligasse. “Um minuto, por favor. Vou chamá-la”, ele disse, e depositou o aparelho sobre a mesa. Voltou-se para Paola, ainda sentada no sofá, a observá-lo.

“Quem é?”, perguntou baixinho.

“Não sei. Ela quer falar com você.”

Paola foi até a mesa e apanhou o telefone. “Pronto.”

Sem saber o que fazer, Brunetti voltou-se para sair do aposento, mas logo sentiu a mão de Paola segurando-lhe pelo braço. Ela lhe deu um rápido olhar, mas neste exato momento a mulher no outro lado da linha disse algo e a atenção de Paola desviou-se e ela o soltou.

“Sim, sim, claro que você pode ligar.” Como de costume, Paola começou a mexer com o fio espiral do telefone, enrolando-o em torno dos seus dedos numa série de anéis vivos. “Sim, eu me lembro da senhora da reunião de professores.” Ela puxou os fios dos dedos da mão esquerda e começou a enrolá-lo nos da mão direita. “Fico feliz que a senhora tenha ligado. Sim, acho que foi a coisa certa a fazer.”

De repente ela parou de mexer as mãos. “Por favor, signora Stocco, tente se acalmar. Não vai acontecer nada. Ela está bem? E o seu marido? Quando é que ele retorna? O importante é que Nicoletta esteja bem.”

Paola olhou para Brunetti, que arqueou interrogativamente as sobrancelhas. Ela balançou a cabeça duas vezes, embora ele não fizesse ideia do que ela queria dizer com aquilo, e mudou de posição para se apoiar nele. Ele pôs um braço ao seu redor e continuou a ouvir a sua voz bem como o estalar agudo do outro lado da linha.

“Claro, direi a meu marido. Mas eu não creio que ele possa fazer nada a não ser que a senhora...” A voz a interrompeu. E prosseguiu por um bocado de tempo.

“Entendo. Entendo totalmente. Se a Nicoletta está bem. Não, não acho que a senhora deva discutir o assunto com ela, signora Stocco. Sim, falarei com ele hoje à noite e ligarei para a senhora amanhã. A senhora pode me dar o seu número, por favor?” Desviando-se dele, ela rascunhou um número e depois perguntou: “Posso fazer mais alguma coisa pela senhora esta noite?”. Ela fez uma pausa e então disse: “Não, claro que não incomodou. Que bom que a senhora ligou”.

Outra pausa, então ela disse. “Sim, eu ouvi os boatos, mas nada definitivo, nada como isso. Sim, sim, concordo. Vou conversar com meu marido sobre o assunto e ligo para a senhora amanhã pela manhã. Imagine, signora Stocco, fico feliz por ter podido ser útil de algum modo.” Mais sons do outro lado da linha.

“Tente dormir um pouco, signora Stocco. O que importa é que Nicolleta está bem. Isso é tudo o que importa.” Depois de outra pausa, Paola disse: “Claro que a senhora pode ligar de novo se quiser. Não, não importa a que horas for. Estaremos por aqui. Claro, claro. Não há de que, signora. Boa noite”. Ela pôs o fone no gancho e voltou-se para ele.

“Era a signora Stocco. A filha dela, Nicoletta, está na mesma turma da Chiara. Na turma de religião.”

“Padre Luciano?”, Brunetti perguntou, imaginando que novo raio se abateria sobre ele pelas forças da religião.

Paola assentiu.

“O que houve?”

“Ela não disse. Ou não sabia. Ela estava ajudando a Nicoletta com o dever de casa esta noite — o marido está em Roma a negócios a semana toda —, e disse que de repente a filha começou a chorar quando viu o livro de religião. Quando ela perguntou qual era o problema, Nicoletta não quis dizer. Mas depois de um tempo, a menina disse que o padre Luciano tinha dito coisas a ela no confessionário, e que a tinha tocado.”

“Tocado onde?”, Brunetti perguntou, uma pergunta que fez mais como pai que como policial.

“Ela não quis dizer. A signora Stocco decidiu não pressionar muito a filha, mas eu acho que ela está abalada. Ela chorava enquanto falava comigo. Ela me pediu que eu falasse com você.”

Brunetti já estava bem longe, pensando no que teria que acontecer antes que ele pudesse separar o pai do policial e começar a agir. “A garota terá de falar conosco”, ele disse.

“Eu sei. Pelo que a mãe disse, acho pouco provável.”

Brunetti assentiu. “Se ela não falar, eu não poderei fazer nada.”

“Eu sei”, disse Paola. Ela ficou em silêncio por um minuto e então acrescentou. “Mas eu posso.”

“O que você quer dizer?”, Brunetti perguntou, surpreso pela firmeza e prontidão de seu medo.

“Não se preocupe, Guido. Eu não vou tocar nele. Eu prometo. Mas vou garantir que ele seja punido.”

“Você nem ao menos sabe o que ele fez”, disse Brunetti. “Como é que você pode falar em punição?”

Ela recuou alguns passos e olhou para ele. Então começou a falar, parando logo em seguida. Após um intervalo em que ele a viu começar a falar e a parar por duas vezes, ela se aproximou e pôs a mão no ombro dele. “Não se preocupe, Guido. Não farei nada ilegal. Mas vou puni-lo e, se necessário, vou destruí-lo.” Ela viu que o choque dele tornou-se aceitação quando ele percebeu que ela falava sério. “Desculpe”, ela disse, “sempre esqueço que você detesta um melodrama.” Ela olhou para o relógio novamente e depois para ele. “Como eu disse antes, é tarde e eu tenho aula de manhã bem cedo.”

E, deixando-o ali, Paola seguiu pelo corredor até o quarto e a cama deles.


18

Tendo normalmente um sono pesado, Brunetti passou a noite sendo acordado por sonhos, sonhos com animais. Neles viu leões, tartarugas e uma criatura peculiarmente grotesca, careca e com longa barba. Os sinos da San Polo marcaram as horas para ele de modo intermitente, fazendo-lhe companhia enquanto ele enfrentava a longa noite. Às cinco, ele chegou à conclusão de que era preciso que Maria Testa acordasse e começasse a falar, e assim que vislumbrou essa possibilidade caiu em um sono tão calmo e privado de sonhos que nem a saída ruidosa de Paola conseguiu acordá-lo.

Despertou pouco antes das nove, mas permaneceu deitado por mais vinte minutos, planejando tudo, e tentando sem sucesso esconder de si que seria ela a correr todos os riscos decorrentes de sua ressurreição. O desejo de pôr o plano em movimento tomou conta dele de tal forma que o fez levantar-se e ir direto para o chuveiro, saindo em seguida do apartamento em direção à questura. De lá ligou para o chefe da divisão de neurologia do Ospedale Civile, encontrando neste o primeiro revés, pois o médico foi contundente ao afirmar que Maria Testa não podia, de jeito nenhum, ser transferida. Seu estado era ainda muito incerto e precário para permitir qualquer incômodo a ela. A longa história de entreveros de Brunetti com o sistema de saúde sugeriu a ele que a explicação mais realista para a negativa era a de que a equipe do hospital simplesmente não queria ser incomodada por algo que considerava tão sem importância, mas ele sabia que não adiantava discutir.

Pediu então a Vianello que viesse até seu escritório e começou a lhe explicar seu plano. “Tudo o que temos de fazer”, concluiu, “é plantar uma história na edição matutina do Gazzettino de amanhã, dizendo que ela saiu do coma. Você sabe como eles adoram esse tipo de coisa — Recuperação milagrosa à beira da morte. Então, quem quer que tenha sido o motorista daquele carro, no momento em que acreditarem que ela se recuperou e pode falar, tentará de novo.”

Vianello estudou o rosto de Brunetti, como se estivesse vendo algo de novo ali, mas não disse nada.

“E então?”, provocou Brunetti.

“Ainda dá tempo para a história sair no jornal de amanhã?”, perguntou o sargento.

Brunetti olhou para o relógio. “Claro que dá.” Mas vendo que Vianello não parecia mais satisfeito, perguntou: “Qual é o problema?”.

“Eu não gosto da ideia de submetê-la a um risco maior”, respondeu o sargento por fim. “Usá-la como isca.”

“Teremos alguém dentro do quarto, eu já lhe disse.”

“Commissario”, começou Vianello, e Brunetti levantou a guarda de pronto, como fazia sempre que Vianello se dirigia a ele pelo seu título e fazendo uso daquele tom cauteloso. “Alguém no hospital terá de saber o que estará acontecendo.”

“Claro.”

“Bem?”

“Bem o quê?”, estourou Brunetti. Ele tinha pensado em tudo isso e estava a par dos riscos, daí a intensidade de sua reação à pergunta de Vianello ser não mais que um reflexo de seu próprio desconforto.

“É um risco. As pessoas falam. Tudo o que alguém precisa fazer é ir até o bar no térreo e começar a perguntar sobre ela. É provável que alguém — um encarregado, uma enfermeira, até mesmo um médico — vá dizer algo sobre ter um guarda no quarto com ela.”

“Então nós não diremos que há um guarda. Diremos que o guarda foi removido. Podemos dizer que são parentes.”

“Ou membros da ordem?”, sugeriu Vianello, num tom tão normal que Brunetti não pôde dizer se ele estava tentando ajudar ou sendo sarcástico.

“Ninguém no hospital sabe que ela é uma freira”, Brunetti disse, embora tivesse sérias dúvidas a esse respeito.

“Eu queria acreditar nisso.”

“E o que o senhor quer dizer com isso, sargento?”

“Hospitais são lugares pequenos. Não é fácil manter um segredo por tanto tempo. Então é bom pressupormos que eles sabem quem ela é.”

Após ouvir a palavra “isca” ser dita por Vianello, Brunetti relutou em admitir que era exatamente isso o que ele pretendia que ela se tornasse. Cansado de ouvir o sargento dar voz a todas as incertezas e objeções que ele passara a manhã inteira tentando negar ou minimizar, Brunetti perguntou: “É você o responsável pela escala de trabalho desta semana?”.

“Sim, senhor.”

“Bom. Então continue com os revezamentos no hospital, mas eu quero que eles fiquem dentro do quarto com ela.” Lembrando-se de Alvise e do gibi, ele disse: “Diga a eles que não devem sair do quarto em hipótese nenhuma, a não ser que uma enfermeira fique ali enquanto eles tiverem saído. E me escale para um dos plantões, a começar o desta noite, da meia-noite até as oito da manhã.”

“Sim, senhor”, disse Vianello, e levantou-se. Brunetti olhou para os papéis sobre sua mesa, mas o sargento não fez menção de sair. “Uma das coisas estranhas sobre este programa de exercícios...”, começou, aguardando que Brunetti voltasse a olhar para si. Quando ele o fez, Vianello continuou, “...é que eu cada vez preciso dormir menos. De modo que eu posso dividir este plantão com o senhor, se o senhor quiser. Então teremos que usar apenas dois oficiais para os outros dois turnos, e as horas passarão bem mais depressa.”

Brunetti sorriu em agradecimento. “Você quer começar o plantão?”

“Está bem”, Vianello aceitou. “Só espero que isto não dure muito tempo.”

“Pensei ter ouvido você dizer que não precisa mais dormir muito.”

“E não preciso mesmo. É a Nadia que não vai gostar.”

Nem a Paola, Brunetti se deu conta.

Vianello levantou-se e fez um aceno com a mão direita, sendo impossível determinar se se tratava de um aceno descompromissado ou um sinal de cumplicidade entre parceiros.

Após o sargento descer para cuidar da escala e dizer à signorina Elettra para ligar para o Gazzettino, Brunetti decidiu agitar as coisas um pouco mais. Ligou então para a casa de repouso San Leonardo e deixou um recado para a madre superiora, dizendo que Maria Testa — e ele insistiu em usar o seu nome real — recuperava-se bem no hospital municipal, e que ela aguardava por uma visita da madre superiora no futuro, talvez já na próxima semana. Antes de desligar, perguntou à freira com quem falava se ela poderia transmitir o mesmo recado ao dottor Messini. Depois, descobriu o número do telefone do capítulo e, ao ligar para lá, ficou surpreso ao ser atendido por uma secretária eletrônica. Mas deixou a mesma mensagem para o padre Pio.

Ele pensou também em ligar para a contessa Crivoni e para a signorina Lerini, mas resolveu que as deixaria saber da notícia sobre a recuperação de sóror Immacolata pelo jornal.

Brunetti passou então pelo escritório da signorina Elettra e, estranhamente, ela não lhe ofereceu o sorriso de praxe. “Algum problema, signorina?”

Em vez de responder, ela apontou para uma pasta marrom em sua mesa. “Padre Pio Cavaletti é o problema, dottore.”

“Tão ruim assim?”, Brunetti perguntou, embora não tivesse ideia do que queria dizer com aquele “assim”.

“Leia e veja por si.”

Brunetti pegou a pastinha e a abriu com interesse. Dentro havia fotocópias de três documentos. O primeiro era uma carta breve, do escritório de Lugano do Union Bank da Suíça, endereçada ao “Signor Pio Cavaletti”; o segundo era uma carta endereçada ao “Padre Pio”, escrita numa caligrafia tremida, fruto talvez de doença ou idade, ou das duas; o terceiro portava o agora familiar brasão do patriarcado de Veneza.

Ele olhou novamente para a signorina Elettra, que se sentava quieta, as mãos simetricamente abertas sobre sua mesa, aguardando que ele terminasse a leitura. Ele voltou aos papéis e passou a lê-los pausadamente.

“Signor Cavaletti. Confirmamos seu depósito de 27 mil francos suíços em 29 de janeiro em sua conta neste banco.” O documento bancário gerado por computador não trazia assinatura.

“Sagrado padre, o senhor voltou meus olhos pecaminosos para Deus. Sua graça não é deste mundo. O senhor estava certo — minha família não é de Deus. Eles não O conhecem nem reconhecem Seu poder. Somente o senhor, padre, e os outros sagrados santos. É ao senhor e aos santos que temos de agradecer com mais que palavras. Eu vou a Deus sabendo que o fiz.” A assinatura era ilegível.

“Concede-se aqui a permissão à pia união Opus Dei para estabelecer e manter nesta cidade uma missão para o estudo e a realização de obras sagradas sob a direção do padre Pio Cavaletti.” Este trazia a assinatura e o selo do diretor do ofício para as fundações religiosas.

Tendo concluído a leitura das três páginas, Brunetti levantou os olhos. “O que a senhora acha desses documentos, signorina?”

“Eu acho que eles são exatamente o que demonstram ser, dottore.”

“Que é...?”

“Chantagem espiritual. Nada muito diferente do que eles vêm fazendo por séculos, apenas um pouco mais desajeitada e em menor escala.”

“De onde vêm estes papéis?”

“O segundo e o terceiro são de arquivos mantidos no escritório do patriarca. Não do mesmo arquivo.”

“E o primeiro?”

“De uma fonte confiável”, foi a única explicação que ela deu, e Brunetti percebeu que seria a única que ela daria.

“Vou confiar em sua palavra, signorina.”

“Obrigado”, ela disse com graça discreta.

“Eu estive lendo sobre eles, a Opus Dei”, ele disse sem ser perguntado. “Será que o amigo de seu amigo, aquele do patriarcado, sabe se eles são muito” — Brunetti queria usar a palavra “poderosos”, mas algo próximo da superstição o impediu —, “se eles são muito influentes na cidade?”

“Ele diz que é muito difícil ter certeza sobre eles ou sobre o que fazem. Mas ele está seguro de que seu poder é bem real.”

“Isto é exatamente o que as pessoas costumavam dizer das bruxas, signorina.”

“As bruxas não eram proprietárias de bairros inteiros em Londres, dottore. E também não tinham um papa a louvá-las por sua ‘sagrada missão’. E não me consta que as bruxas”, ela começou, apontando para a pasta que ele ainda segurava, “tivessem sanção eclesiástica para fundar centros para estudo e obras sacras.”

“Nunca pensei que a senhorita fosse assim tão crítica da religião”, ele disse.

“Isto não tem nada a ver com a religião”, ela devolveu.

“Não?”, a surpresa de Brunetti era real.

“Tem a ver com poder.”

Brunetti refletiu por um momento sobre o que ela dissera. “Sim, acho que tem.”

Em um tom mais relaxado, a signorina Elettra disse: “O vice-questore Patta pediu que eu lhe dissesse que a visita do chefe da polícia suíça foi adiada”.

Brunetti mal a ouviu. “É o que diz a minha esposa.” Ao ver que ela não tinha entendido, ele acrescentou, à guisa de explicação. “Sobre o poder.” E assim que ela entendeu, ele perguntou: “Perdão, o que a senhorita disse sobre o vice-questore?”

“A visita do chefe da polícia suíça foi adiada.”

“Ah, eu tinha esquecido totalmente disso. Obrigado, signorina.” E, sem dizer mais nada, devolveu a pasta à mesa dela e voltou ao seu escritório para pegar o casaco.

Quem atendeu a campainha desta vez foi um homem de meia-idade, vestindo algo que era, supôs Brunetti, para se assemelhar ao hábito de um monge, mas que não passava de uma saia bem mal cortada. Quando Brunetti explicou que tinha vindo falar com o padre Pio, o porteiro juntou as mãos e abaixou a cabeça, mas não disse nada. Em seguida, conduziu Brunetti através do jardim, onde não havia sinal do jardineiro, embora o aroma de lilás estivesse ainda mais intenso. Dentro, no entanto, os odores acres do desinfetante e da cera abafavam a suave fragrância das flores. No caminho, cruzaram com um jovem que vinha em sua direção. Os dois semiclérigos acenaram silenciosamente um para o outro, e Brunetti viu nisto não mais que uma representação de piedade.

O homem que Brunetti passara a considerar um artista do mutismo parou à porta do escritório do padre Pio e indicou a Brunetti que ele podia entrar. Ao fazê-lo, sem se importar em bater, o commissario deparou com as janelas fechadas, mas desta vez notou o crucifixo que pendia da parede do fundo. Por se tratar de uma imagem religiosa que Brunetti não apreciava, a ela não dedicou senão uma rápida olhada, não demonstrando o mínimo interesse em qualquer que fosse o valor estético que a peça pudesse ter.

Passados alguns minutos, a porta se abriu e o padre Pio entrou. Como Brunetti lembraria depois, o hábito religioso parecia lhe cair bem, e ele parecia confortável dentro dele. A atenção de Brunetti foi novamente atraída pelos lábios carnudos do padre, mas desta vez ele percebeu que o centro do homem ficava em seus olhos, olhos verde-cinza irradiando inteligência.

“Seja bem-vindo novamente, commissario”, disse o padre. “Obrigado por sua mensagem. A recuperação de sóror Immacolata é uma resposta a nossas orações, tenho certeza.”

Embora estivesse tentado, Brunetti não disse que ele dispensava a retórica de hipocrisia religiosa, dizendo, em vez disso: “Eu queria que o senhor respondesse a mais algumas perguntas”.

“Ficarei feliz em fazê-lo. Contanto — como expliquei da última vez — que elas não me peçam para divulgar informações que estejam seladas.” Embora continuasse a sorrir, Brunetti percebeu que o padre havia percebido a alteração em seu humor.

“Não se preocupe, eu duvido que quaisquer dessas informações sejam de alguma forma privilegiadas.”

“Ótimo. Mas antes de o senhor começar, não há motivos para ficar de pé. Vamos pelo menos nos acomodar.” E ele conduziu Brunetti às mesmas duas cadeiras e, ajeitando o seu hábito com graça advinda da prática, acomodou-se na cadeira. Procurou sob o escapulário com a mão direita e começou a manipular o rosário. “O que o senhor gostaria de saber, commissario ?”

“Eu gostaria que o senhor me falasse de seu trabalho na casa de repouso.”

Cavaletti deu uma risadinha e disse: “Não estou seguro de que posso chamar o que faço ali de trabalho, dottore. Eu sirvo ali como capelão para os pacientes e para alguns dos funcionários. Aproximar as pessoas de seu Criador é um prazer; não é trabalho”. Ele olhou para o vazio, para o outro lado do aposento, mas não antes de ter notado a ausência de reação de Brunetti a esses sentimentos.

“O senhor ouve as confissões deles?”

“Não sei se isso é uma pergunta ou uma afirmação, commissario”, retrucou Cavaletti com um sorriso, como se quisesse assim remover qualquer insinuação de sarcasmo em sua observação.

“É uma pergunta.”

“Então vou responder.” O sorriso do padre era indulgente. “Sim, ouço as confissões dos pacientes, assim como as de alguns dos funcionários. É uma grande responsabilidade, especialmente as confissões dos idosos.”

“E por que é assim, padre?”

“Porque eles estão próximos de cumprir seu tempo, de chegar ao seu fim terreno.”

“Entendo”, disse Brunetti, e então, como se fosse a consequência lógica da resposta anterior, ele perguntou: “O senhor tem uma conta na agência do Union Bank da Suíça em Lugano?”.

Os lábios do padre permaneceram moldados em seu pacífico sorriso, mas Brunetti olhava mesmo era para seus olhos, que ficaram tensos por um instante, quase imperceptivelmente. “Que pergunta estranha”, disse Cavaletti, juntando suas sobrancelhas em sinal claro de confusão. “Como é que isto se relaciona às confissões desses idosos?”

“É exatamente o que estou tentando descobrir, padre.”

“Ainda assim, é uma estranha pergunta.”

“O senhor tem uma conta no Union Bank da Suíça em Lugano?”

O padre moveu os dedos para uma nova conta de seu rosário e disse: “Sim, tenho. Uma parte da minha família vive em Ticino, e eu os visito duas ou três vezes por ano. Achei que fosse mais conveniente ter o dinheiro lá do que carregá-lo comigo para cima e para baixo”.

“E quanto é que o senhor mantém depositado nessa conta, padre?”

Cavaletti olhou no vazio, fazendo somas mentais, e finalmente respondeu: “Acho que por volta de mil francos suíços”. Então, prestativo, acrescentou: “Mais ou menos um milhão de liras”.

“Eu sei fazer a conversão de liras para francos suíços, padre. É uma das primeiras coisas que um policial aprende a fazer neste país.” E Brunetti sorriu, sinalizando para o padre que isso era uma piada, mas Cavaletti não devolveu o sorriso.

Então Brunetti fez outra pergunta. “O senhor é membro da Opus Dei?”

Cavaletti deixou cair o rosário e levantou as mãos ao ouvir isso, as palmas voltadas para Brunetti, em um gesto exagerado de súplica. “Oh, commissario, mas que perguntas estranhas o senhor faz. Fico imaginando as relações que as mantêm juntas em sua cabeça.”

“Não tenho certeza se isto foi um sim ou um não, padre.”

Após um longo silêncio, Cavaletti disse: “Sim”.

Brunetti levantou-se. “É tudo, padre. Obrigado pelo seu tempo.”

Pela primeira vez, o padre não pôde esconder sua surpresa e passou alguns segundos encarando Brunetti. Mas logo se pôs de pé e o acompanhou até a porta, segurando-a para que ele pudesse sair do aposento. Enquanto caminhava pelo corredor, Brunetti tinha consciência de duas coisas: dos olhos do padre às suas costas e, ao se aproximar da porta aberta ao final, da rica fragrância dos lilases evanescendo do quintal. Nenhuma das sensações lhe deu prazer.


19

Embora não acreditasse que Maria Testa corresse algum perigo até que o artigo fosse publicado no Gazzettino — e mesmo quando isso acontecesse não poderia saber se haveria mesmo algum perigo —, ainda assim ele se afastou de Paola, levantou-se da cama um pouco depois das três e foi se vestir. Só foi despertar de fato quando estava abotoando a camisa, e foi então que ouviu o ruído da chuva de encontro às janelas do quarto. Praguejando baixinho, foi até a janela, abriu o ferrolho e, rapidamente, puxou-a com força fechando-a contra as rajadas úmidas que se infiltravam no quarto. Ao sair, pôs a capa de chuva, apanhou um guarda-chuva e, lembrando de Vianello, pegou outro.

No quarto de Maria Testa, deparou com um Vianello cheio de sono e mau humor, mesmo que Brunetti tivesse chegado meia hora antes do combinado. Por acordo tácito, nenhum deles se aproximou da mulher adormecida, como se seu estado de completa fragilidade operasse como um tipo de espada flamejante a mantê-los a distância. Cumprimentaram-se em sussurros e foram até o corredor para poder conversar.

“Aconteceu algo?”, Brunetti perguntou, tirando sua capa e encostando os dois guarda-chuvas na parede.

“Uma enfermeira vem de duas em duas horas, mais ou menos”, foi a resposta de Vianello. “Ela não faz nada, até onde eu possa dizer. Apenas olha para a paciente, toma sua pulsação e escreve qualquer coisa no prontuário.”

“Ela chegou a dizer algo?”

“Quem, a enfermeira?”

“Sim.”

“Nem uma palavra. Como se eu fosse invisível.” Vianello bocejou. “Difícil é permanecer acordado.”

“Por que você não fez alguns exercícios?”

Vianello olhou sério para Brunetti, mas não disse nada.

“Obrigado por ter vindo, Vianello”, murmurou Brunetti em tom de desculpas. “Eu trouxe um guarda-chuva pra você. Está chovendo forte.” Quando Vianello assentiu em agradecimento, Brunetti perguntou: “Quem vem me substituir de manhã?”.

“Gravini. E, depois dele, Pucetti. E eu venho no lugar do Pucetti quando o turno dele acabar.” Brunetti notou, com aprovação, que Vianello não reclamara da hora — meia-noite — em que ele iria substituir o jovem oficial.

“Obrigado, Vianello. Vá dormir um pouco.”

Vianello assentiu e conteve um enorme bocejo, apanhando em seguida o guarda-chuva.

Ao abrir a porta para entrar no quarto, Brunetti se voltou e perguntou: “Algum problema com o pessoal?”.

“Nada até agora”, respondeu Vianello do corredor.

“Quanto tempo ainda?”, perguntou Brunetti, não sabendo como chamar a adulteração no quadro de funcionários.

“Não dá para saber, dá?, mas eu acho que temos três ou quatro dias até que o tenente Scarpa comece a perceber alguma coisa. Talvez uma semana. Mas não muito mais.”

“É torcer para que mordam a isca antes.”

“Se é que há algo para morder”, disse Vianello, dando por fim vazão a seu ceticismo, e foi embora. Brunetti observou as largas costas do sargento desaparecerem na primeira escada à esquerda, e voltou então para o quarto. Colocou a capa em torno do encosto da cadeira em que Vianello passara a noite sentado e encostou o guarda-chuva em um canto.

* * *

Uma pequena lâmpada estava acesa ao lado da cama de Maria Testa, não chegando nem sequer a clarear o espaço em torno de sua cabeça e deixando o resto do quarto em forte penumbra. Brunetti não achava que a luz principal fosse incomodá-la em seu leito — seria de fato um bom sinal se incomodasse —, mas ainda não queria acendê-la, portanto sentou-se no escuro, sem ler, embora tivesse trazido consigo um livro de Marco Aurélio, autor que no passado propiciara ao commissario grande conforto em tempos difíceis.

Enquanto a noite avançava, Brunetti se pôs a recordar o que havia acontecido desde que Maria Testa viera a seu gabinete. Isoladamente, os fatos podiam ser não mais do que mera coincidência: a sequência de mortes dos velhos, o acidente que tinha vitimado Maria, a morte de Da Prè. Mas o peso cumulativo de tudo isso havia removido da cabeça de Brunetti a possibilidade de que se tratasse de acidente ou casualidade. No entanto, exatamente como os três fatos estavam relacionados, ele ainda não podia enxergar ao certo.

Messini havia dissuadido as pessoas de deixarem dinheiro para ele ou para as casas de repouso, o padre Pio não tinha sido contemplado em nenhum dos testamentos, e era vedado às irmãs da ordem a posse de qualquer propriedade. A condessa era rica por si só, não precisando em nada do testamento do esposo. Tudo o que Da Prè desejava eram mais caixinhas de rapé para aumentar sua coleção. Quanto à signorina Lerini, esta parecia ter renunciado às pompas mundanas. Cui Bono? Cui Bono? Faltava exatamente descobrir quem teria se beneficiado das mortes para que a trilha se abrisse diante de Brunetti, como se iluminada por tochas empunhados por serafins, e o levasse ao assassino.

Brunetti sabia ser um homem de muitas fraquezas: orgulho, preguiça e ira, só para nomear as que julgava mais evidentes, mas sabia também que a cobiça não era uma delas, de modo que, quando deparava com suas muitas manifestações, sentia-se sempre na presença de um alienígena. Sabia tratar-se de um vício comum, talvez o mais comum dentre os vícios, e com certeza podia compreendê-lo racionalmente, mas era algo que nunca conseguira mover seu coração, e deixava seu espírito impassível.

Seu olhar percorreu o quarto pousando na mulher na cama, totalmente imóvel e muda. Nenhum dos médicos tinha a mínima ideia quanto à extensão dos danos que lhe haviam sido causados, com exceção dos físicos. Um deles dissera ser pouco provável que ela voltasse do coma. Outro que ela provavelmente voltaria dele em poucos dias. Talvez uma das irmãs que trabalhavam ali tivesse respondido a ele com grande sabedoria algo do tipo: “Torça e ore, e confie na misericórdia divina”.

Enquanto observava Maria e recordava as profundezas da caridade que irradiavam dos olhos da freira quando ela falava, outra irmã entrou no quarto e foi até a cama carregando uma bandeja que pôs sobre a mesa ao lado do leito, após o que buscou o braço da paciente e tomou seu pulso, segurando-o por alguns momentos enquanto olhava para o relógio. Depois disso, colocou o braço de novo sob as cobertas e foi anotar os dados no prontuário pendurado no pé da cama.

Ao apanhar a bandeja e dirigir-se para a porta, viu Brunetti, dirigindo a ele um aceno com a cabeça, mas sem sorrir.

Tirando isso, nada aconteceu pelo resto da noite. A mesma enfermeira voltou por volta das seis, e ao entrar encontrou Brunetti em pé contra a parede, numa tentativa de persistir acordado.

Às vinte para as oito, o oficial Gravini chegou, trajando botas de borracha de cano longo, uma capa de chuva e jeans. Antes mesmo de cumprimentar Brunetti, fez questão de explicar: “O sargento Vianello nos disse para virmos à paisana, senhor”.

“Sim, Gravini, eu sei. Está tudo bem.” A única janela do quarto dava para uma galeria, de modo que Brunetti não fazia ideia de como estava o clima. “Como é que está lá fora?”, perguntou ao oficial.

“Está chovendo à beça, senhor. E a previsão é de que continue assim até sexta.”

Brunetti apanhou sua capa e a vestiu em seguida, lamentando não ter vindo de botas. Contava voltar para casa e tomar um banho antes de ir para a questura, mas seria uma insanidade andar até o outro lado da cidade, ainda mais quando estava tão perto do seu gabinete. Além do mais, alguns cafés teriam o mesmo efeito.

Mas não foi bem assim, e, quando chegou ao gabinete estava uma pilha, e louco pra arrumar confusão. O que se deu apenas algumas horas depois, ao receber uma ligação do vice-questore, convocando-o à sua sala.

A signorina Elettra não estava em sua mesa, então Brunetti entrou na sala de Patta sem a apresentação que ela normalmente fazia. Naquela manhã, insone, com os olhos fundos e muito café no estômago, ele estava pouco ligando, para dizer o mínimo, se fora ou não anunciado.

“Tive uma conversa alarmante com meu tenente”, disse Patta sem preâmbulo. Fosse outra ocasião, Brunetti teria ficado discreta e sardonicamente satisfeito diante da admissão acidental de Patta do que a questura inteira já sabia — ou seja, que o tenente Scarpa era cria de Patta —, mas naquele dia ele estava meio lento devido à falta de sono e mal notou o pronome.

“Você me ouviu, Brunetti?”

“Sim, senhor. Mas não consigo imaginar o que poderia alarmar o tenente.”

Patta reclinou-se em sua cadeira. “Seu comportamento, para começar”, Patta retrucou.

“E que parte específica de meu comportamento, senhor?”

Brunetti notou que o vice-questore estava perdendo o bronzeado. E a paciência. “Para começar, esta cruzada que o senhor parece ter lançado contra a Sagrada Igreja, por exemplo”, disse Patta, e calou, como se tivesse sido capaz de perceber ele mesmo o exagero de sua afirmação.

“O senhor pode ser mais específico?”, pediu Brunetti, enquanto passava a palma da mão sobre o queixo, descobrindo um tufo que tinha perdido ao se barbear com o barbeador elétrico que mantinha em sua mesa.

“Com a perseguição que o senhor está movendo contra homens de batina. Com a violência de seu comportamento contra a madre superiora da Ordem da Sagrada Cruz.” Patta parou por ali, como se dando um tempo para que a gravidade dessas acusações se estabelecesse.

“E quanto às minhas perguntas sobre a Opus Dei? Elas também constam da lista do tenente Scarpa?”

“Quem lhe falou disso?”

“Eu deduzi que, se o tenente está fazendo uma lista geral de meus excessos, este por certo estaria nela. Especialmente se, como creio ser o caso, as ordens para fazê-la vieram da Opus Dei.”

Patta bateu a mão sobre a mesa. “O tenente Scarpa recebe ordens minhas, commissario.”

“Devo concluir disso, então, que o senhor também é um membro?”

Patta aproximou sua cadeira da mesa e inclinou-se para a frente, na direção de Brunetti. “Commissario, aqui não é o senhor quem faz as perguntas.”

Brunetti deu de ombros.

“O senhor está prestando atenção, commissario Brunetti?”

“Sim, senhor”, Brunetti respondeu, numa voz que, para sua surpresa, não teve de controlar para fazer que soasse baixa e calma. Ele não estava ligando a mínima para nada daquilo, sentindo-se de repente fora do alcance de Patta e Scarpa.

“Chegaram a meu conhecimento queixas diversas sobre o senhor, queixas bem variadas. O prior da Ordem da Sagrada Cruz ligou para reclamar do tratamento que o senhor dispensou aos membros daquela ordem. Além disso, ele afirmou que o senhor está dando guarida a um membro da ordem.”

“Dando guarida.”

“Que ela teria sido levada ao hospital e, tendo recuperado a consciência, está agora sem dúvida começando a espalhar infâmias sobre a ordem. Confere?”

“Sim.”

“E o senhor sabe onde ela está?”

“O senhor acaba de dizer onde ela está, no hospital.”

“Onde o senhor a visita sem permitir que ninguém mais o faça?”

“Onde ela se encontra sob proteção policial.”

“Proteção policial?”, repetiu Patta, em uma voz que poderia ser ouvida, Brunetti temeu, nos andares inferiores. “E quem foi que autorizou essa proteção? Por que não há nenhuma menção a isso nas escalas de serviço?”

“O senhor conferiu as escalas, senhor?”

“Não se preocupe com quem viu as escalas, Brunetti. Diga-me apenas o motivo de não haver menção a essa moça nelas.”

“Ela estava identificada sob a rubrica ‘vigilância’.”

De novo, Patta repetiu a palavra de Brunetti.

“Policiais têm sido deslocados por dias para fazer nada, sentados em um hospital, e o senhor se atreve a nomear isto ‘vigilância’?”

Brunetti conteve o ímpeto de perguntar a Patta se ele preferia que ele escolhesse outra palavra e denominasse o serviço como “guarda”, optando sabiamente pelo silêncio.

“E quem está lá agora?”, Patta perguntou.

“Gravini.”

“Bem, chame-o de volta. A polícia desta cidade tem mais o que fazer do que sentar do lado de fora do quarto de uma freira fugitiva que acabou num hospital.”

“Eu tenho razões para crer que ela corre perigo, senhor.”

Patta fez um gesto furioso com as mãos. “Não quero saber nada sobre tal perigo. Não estou nem aí se ela está ou não em perigo. Se ela achou que podia deixar a proteção da Sagrada Igreja, então ela devia estar pronta a assumir a responsabilidade por si mesma neste mundo em que ela tanto queria entrar.” Ao ver que Brunetti queria objetar, Patta elevou a voz. “Quero Gravini fora daquele hospital em dez minutos e de volta para cá, para o seu esquadrão.” Mais uma vez Brunetti tentou explicar, mas Patta o interrompeu. “Nenhum policial deve ficar lá, do lado de fora daquele quarto. Se ficarem, se alguém for para lá, serão dispensados de seus serviços imediatamente.” Patta inclinou-se ainda mais sobre sua mesa e acrescentou, ameaçador: “E o mesmo acontecerá com quem os tiver mandado para lá. Entendeu, commissario ?”.

“Sim, senhor.”

“E eu quero que o senhor fique longe dos membros da Ordem da Sagrada Cruz. O prior não espera nenhum pedido de desculpas de sua parte, o que eu considero extraordinário, dado o que ouvi sobre o seu comportamento.”

Brunetti já vira Patta naquele estado, embora nunca o tivesse visto tão alterado. Enquanto o vice-questore continuava a falar, numa espiral cada vez mais alta, realimentando sua ira, Brunetti passou a refletir sobre os motivos para o extremismo da resposta de Patta, e a única explicação satisfatória a que chegou foi a de que era medo. Se Patta fosse um membro da Opus Dei, sua resposta não teria passado da indignação; ele tinha visto esse sentimento em Patta o suficiente para saber que o que ele manifestava agora era algo totalmente diferente e bem mais forte. Medo, então.

A voz de Patta tirou-o de seu devaneio. “Estamos entendidos, Brunetti?”

“Sim, senhor”, disse Brunetti, pondo-se de pé. “Vou chamar Gravini”, ele disse, e começou a sair.

“Se você mandar alguém para lá, Brunetti, você está acabado. Entendeu?”

“Sim, senhor, entendi”, ele respondeu. Patta não disse nada sobre as pessoas irem para lá fora do horário de trabalho, não que fizesse alguma diferença para Brunetti se ele tivesse dito.

Da mesa da signorina Elettra ele ligou para o hospital e pediu para falar com Gravini. Seguiu-se um vaivém de mensagens entre Brunetti e o policial, que se recusou a deixar seu posto mesmo depois de Brunetti ter pedido à pessoa que estava passando os recados no hospital que dissesse a ele que era uma ordem do commissario. Por fim, passados mais de quinze minutos, Gravini veio ao telefone. E a primeira coisa que ele disse foi: “Tem um médico no quarto com ela. Ele não vai sair de lá até que eu volte”. Somente então ele perguntou se estava falando com Brunetti.

“Sim, Gravini, sou eu. Você pode voltar para cá agora.”

“O caso está encerrado, senhor?”

“Você pode voltar para a questura, Gravini”, Brunetti repetiu. “Mas primeiro passe em casa e vista seu uniforme.”

“Sim, senhor”, disse o jovem, e desligou, convencido pelo tom de Brunetti a não fazer mais perguntas.

Antes de voltar para o seu gabinete, Brunetti foi até a sala dos oficiais e pegou um exemplar da edição matutina do Gazzettino que ele vira em cima de uma mesa. Foi direto ao caderno de Veneza, mas não havia ali nenhum artigo sobre Maria Testa. Procurou então no primeiro caderno, mas ali também não havia nada. Puxou uma cadeira e abriu o jornal na mesa à sua frente. Coluna a coluna, ele explorou lentamente os dois cadernos do jornal. Nada. Nenhuma história tinha sido publicada, e no entanto alguém com poder o bastante para amedrontar Patta havia tomado conhecimento do interesse de Brunetti por Maria Testa. Ou, o que seria bem mais interessante, tinha de algum modo descoberto que ela tinha recuperado a consciência. Enquanto subia as escadas em direção a seu gabinete, um breve sorriso atravessou por um segundo o rosto de Brunetti.


20

Na hora do almoço ele deparou, em casa, com um humor tão abatido quanto o que trouxera consigo da questura. Concluiu que o silêncio de Raffi tinha a ver com alguma dificuldade que o filho estaria enfrentando em seu romance com Sara Paganuzzi; Chiara talvez ainda estivesse sob o incômodo da nuvem que havia manchado a perfeição de seu histórico escolar. Como sempre, o mais difícil para ele era deduzir qual seria a causa do mau humor de Paola.

Nada das piadas de sempre com que demonstravam sua mútua e imensa afeição. Em vez disso, em certo momento Brunetti percebeu que os dois falavam do tempo, e depois, como se isso já não fosse suficientemente soturno, de política. A família toda ficou visivelmente contente quando o jantar chegou ao fim. Os filhos, como animais de caverna que tivessem ficado assustados pelos sinais de luz no horizonte, voltaram rapidinho para a segurança de seus quartos. Como já havia lido o jornal, Brunetti foi até a sala e se contentou em ficar observando as línguas de chuva a se chocarem contra os tetos.

Quando Paola entrou, ela trazia o café, o que Brunetti decidiu encarar como uma oferta de paz, sem no entanto estar seguro dos termos do tratado. Pegou o café e a agradeceu. Depois de tomar um gole, perguntou: “E aí?”.

“Falei com meu pai”, disse Paola enquanto se acomodava no sofá. “Foi a única pessoa em quem consegui pensar.”

“E o que você disse a ele?”

“Eu disse a ele o que a signora Stocco me disse, e o que as crianças disseram.”

“Sobre o padre Luciano?”

“Sim.”

“E?”

“Ele falou que iria cuidar disso.”

“Você disse a ele algo sobre o padre Pio?”

Ela o encarou, sem entender. “Não, claro que não. Por que essa pergunta?”

“Só pra saber.”

“Guido”, ela começou, colocando a xícara vazia sobre a mesa, “você sabe que eu não me meto, de nenhum jeito, no seu trabalho. Se você quiser saber do meu pai algo sobre o padre Pio ou sobre a Opus Dei, pergunte a ele você mesmo.”

Brunetti não queria, de jeito nenhum, que o pai da esposa se envolvesse com isso. Mas ele não podia dizer a Paola que sua relutância se baseava em suas dúvidas quanto ao lado a que se inclinaria a balança do conde Orazio, para o de Brunetti ou para o da própria Opus Dei. Assim como não tinha ideia nenhuma da extensão da riqueza e do poder do conde, Brunetti era igualmente ignorante a respeito da origem destes, ou mesmo das relações e das lealdades do sogro que os tinham tornado possíveis. “E ele acreditou em você?”, perguntou a ela.

“Claro que acreditou. Como é que você me faz uma pergunta dessas?”

Brunetti tentou ignorar a reação da esposa, mas a expressão de Paola lhe negou essa alternativa. “É que você não dispõe do tipo mais confiável de testemunhas.”

“Como é que é?”, ela perguntou, ríspida.

“Crianças falando mal de um professor que deu a elas uma nota ruim e palavras ditas por uma outra criança, filtradas além disso por uma mãe que estava claramente histérica ao falar com você.”

“O que você está fazendo, Guido, tentando bancar o advogado do Diabo? Foi você que me mostrou aquele relatório do patriarcado. O que você pensa que este bastardo esteve fazendo durante esses anos todos, tirando notas de mil liras da caixa de donativos?”

Brunetti balançou a cabeça. “Não, eu não tenho dúvidas, nenhuma mesmo, sobre o que ele andou fazendo, mas isso não é o mesmo que possuir provas.”

Com um ríspido gesto de mão, Paola pareceu descartar a declaração do esposo como puro nonsense. “Eu vou detê-lo”, ela disse, agressiva.

“Ou apenas transferi-lo?” Brunetti perguntou. “Como eles vêm fazendo há anos.”

“Eu disse que vou detê-lo, e é isso o que eu vou fazer”, repetiu Paola, falando pausadamente cada sílaba, como se estivesse se dirigindo a um surdo.

“Bom”, disse Brunetti. “Espero que você o faça. Espero que você possa fazê-lo.”

Para enorme espanto seu, Paola respondeu citando a Bíblia: “Caso alguém escandalize um destes pequeninos que creem em mim, melhor seria que lhe pendurassem ao pescoço uma pesada mó e fosse precipitado nas profundezas do mar”.

“De onde você tirou isto?”, perguntou Brunetti.

“Mateus, capítulo dezoito, versículo seis...”

“Não”, disse Brunetti, balançando a cabeça de um lado para o outro. “Estranho ouvir você, dentre todas as pessoas, citar a Bíblia.”

“Mesmo do Diabo se diz ser capaz disso”, ela respondeu, e era a primeira vez que ria ali, e com aquele sorriso iluminou o ambiente.

“Bom”, disse Brunetti. “Espero que o seu pai tenha poder para fazer algo.” Brunetti tinha quase certeza de que ela responderia que não havia nada que o pai dela não pudesse fazer, e ficou surpreso ao perceber que ele próprio acreditava pelo menos cinquenta por cento nisso.

Em vez disso, ela perguntou: “E quanto a você e os seus padres?”.

“Só falta um.”

“E o que significa isso?”

“O amigo da signorina lotado no escritório do patriarcado disse que a contessa Crivoni e o padre, que parece ter fortuna própria, vêm tendo um caso há anos. E aparentemente com o conhecimento do marido.”

“O marido sabe?”, perguntou Paola, sem esconder seu espanto.

“Ele prefere rapazes.”

“E você acredita nisso?”

Brunetti assentiu. “Ter um marido serve de cobertura para eles. Nem ela nem o padre gostariam de vê-lo morto.”

“Então, de fato, só sobrou um.”

“É.” Brunetti contou então a Paola sobre a fúria de Patta e sua ordem para retirar a proteção policial de Maria Testa. Nem sequer tentou disfarçar a convicção de que aquela ordem partira do padre Pio e dos poderes que o sustentavam.

“E o que você vai fazer?”, perguntou Paola quando ele terminou de explicar.

“Conversei com Vianello. Ele tem um amigo que trabalha no hospital como ajudante e que concordou em ficar de olho nela durante o dia.”

“Não basta, basta? E quanto às noites?”

“Vianello se ofereceu — sem que eu pedisse, Paola, ele se ofereceu — para ficar por lá até meia-noite.”

“O que significa que você ficará lá de meia-noite até as oito, certo?”

Brunetti concordou.

“E por quanto tempo?”

“Vai depender de quão temerosos eles estejam. Ou de quanto eles achem que ela sabe.”

“Você acha que é o padre Pio?”

Brunetti sempre buscou evitar nomear aqueles de quem suspeitava, e tentou manter essa tradição dessa vez, mas ela podia ler a resposta no silêncio dele.

Ela ficou de pé. “Se você vai ter de ficar acordado a noite toda, é melhor tentar dormir um pouco agora.”

“‘O que adquire uma mulher inicia a fortuna, auxiliar semelhante a ele, coluna de apoio. Faltando cerca, a propriedade é devastada; faltando a mulher, o homem geme e vaga’”, fez ele a citação, contente da vida de havê-la vencido no jogo em que ela era a melhor.”

E ela não pôde disfarçar nem a surpresa nem o deleite. “Então é verdade?”, ela perguntou.

“O quê?”

“Que o Diabo pode de fato citar a Escritura.”

Naquela noite, mais uma vez, Brunetti se arrastou para fora do morno casulo de sua cama e se trocou ao som da chuva que ainda castigava a cidade. Paola abriu os olhos, ensaiou um beijo em sua direção, mas voltou a dormir de imediato. Desta vez ele lembrou de pegar as botas, mas não se incomodou em levar um guarda-chuva para Vianello.

No hospital, uma vez mais eles saíram para o corredor para poderem conversar, embora não houvesse muito a ser dito. O tenente Scarpa tinha conversado com Vianello naquela tarde e repetira a ele as ordens de Patta. À semelhança do vice-questore, ele não dissera nada sobre o tempo livre dos policiais, o que encorajara Vianello a falar com Gravini, Pucetti e até mesmo com um arrependido Alvise, e todos se prontificaram a cobrir as horas do dia, tendo Pucetti mesmo se oferecido para substituir Brunetti às seis da manhã.

“Até o Alvise?”, perguntou Brunetti.

“Até o Alvise”, respondeu Vianello. “Ser estúpido não o impede de ser generoso.”

“Não”, Brunetti respondeu de pronto, “isso é algo que só acontece no Parlamento.”

Vianello deu uma gargalhada, pegou sua capa e desejou boa-noite a Brunetti.

De volta ao quarto, Brunetti aproximou-se a uma distância de meio metro da cama e observou a mulher adormecida. Suas bochechas haviam murchado ainda mais, e o único sinal de vida era o líquido pálido que pingava vagarosamente de uma garrafa suspensa acima dela, da qual saía um tubo que a alimentava pelo braço, aquilo e o lentamente implacável movimento para cima e para baixo de seu peito.

“Maria?”, ele chamou, e, em seguida, “sóror Immacolata?” O peito dela continuou a subir e descer, o líquido continuou a gotejar, mas nada mais aconteceu.

Brunetti acendeu a luz da cabeceira, puxou seu Marco Aurélio do bolso e começou a ler. Às duas veio uma enfermeira, tomou a pulsação de Maria e anotou o resultado no prontuário. “Como é que ela está?”, perguntou Brunetti.

“A pulsação está mais rápida”, disse a enfermeira. “Isto normalmente é sinal de que vai haver alguma alteração.”

“Você quer dizer que ela vai acordar?”

A enfermeira não sorriu. “É uma possibilidade”, ela disse, e saiu do quarto antes que Brunetti tivesse tempo de perguntar o que mais podia ser.

Ele apagou a luz às três, e fechou os olhos, mas, quando sua cabeça tombou para a frente, batendo em seu peito, ele se obrigou a ficar de pé e se encostou contra a parede atrás da cadeira, jogando a cabeça para trás e fechando os olhos.

Passado algum tempo, a porta se abriu novamente, deixando entrar no quarto escuro uma outra enfermeira. Como na noite anterior, ela carregava uma bandeja. Em silêncio, Brunetti a observou cruzar o quarto e postar-se ao lado da cama, bem sob o facho de luz que emanava da lâmpada de cabeceira. Ela esticou os braços e puxou as cobertas, e Brunetti, julgando impróprio observar o que quer que ela tenha sido mandada fazer em favor da mulher adormecida, baixou os olhos.

Foi quando ele viu as marcas que os sapatos dela haviam deixado no chão, cada pegada molhada cuidadosamente impressa em seu rasto. Antes mesmo de tomar consciência do que fazia, Brunetti se lançou pelo espaço que os separava, a mão direita levantada sobre a cabeça. Embora ainda separado dela por alguns passos, pôde ver a toalha que cobria a bandeja cair ao chão e revelar a enorme lâmina da faca que estava oculta por ela. Gritou bem alto, sem palavras, e viu o rosto da signorina Lerini enquanto ela se virava na direção daquilo que se lançava da contra ela da escuridão.

A bandeja chocou-se com o chão e ela se voltou para Brunetti, cortando com a faca em um arco puramente instintivo. Brunetti tentou desviar-se dos golpes, mas ele estava se movendo muito rápido e ficou ao alcance dela. A lâmina deslizou através do tecido de sua manga esquerda, rasgando os músculos do seu antebraço. Seu grito foi ensurdecedor, e ele gritou e gritou de novo, na esperança de atrair alguém para o quarto.

Com uma das mãos pressionando o corte, tentou deter a mulher, temendo que ela continuasse a atacá-lo. Mas ela se voltou para a paciente sobre a cama e, enquanto ele observava, empunhou a faca à altura de seu quadril. Brunetti lançou-se novamente contra ela, tirando a mão do corte em seu braço. E gritou de novo, o mesmo som gutural, mas ela o ignorou e deu mais um passo na direção de Maria.

Brunetti fechou a mão direita em punho, levantou-a acima da cabeça da mulher e golpeou-a com toda a força no ombro, tentando fazer com que a faca caísse no chão. Primeiro sentiu, depois ouviu, o som de ossos partindo, mas não soube dizer então se eram os ossos do braço dela ou de sua mão.

Então ela se voltou, o braço pendendo ao longo do corpo, a faca ainda em sua mão, e começou a gritar. “Anticristo. Eu tenho que matar o Anticristo. Os inimigos de Deus devem ser tornados em pó e deixar de existir. Sua vingança é a minha vingança. Os servos de Deus não devem ser atingidos pelas palavras do Anticristo.” Em vão ela tentou erguer a mão, e ele observou enquanto os dedos dela se enfraqueciam e a faca caía ao chão.

Com a mão, ele a puxou pela blusa e a afastou com brusquidão da cama. Ela não opôs resistência. Ele a empurrou até a porta, que se escancarou enquanto ele se aproximava dela, abrindo passagem para uma enfermeira e um médico que entravam agora no quarto.

“O que está acontecendo aqui?”, o médico perguntou, parando à porta para acender a luz da cabeceira.

“Nem mesmo a luz do dia permitirá que se escondam de Sua justa ira”, disse a signorina Lerini em uma voz acelerada pela paixão. “Sejam seus inimigos confundidos e destruídos.” Ela ergueu a mão esquerda e apontou um dedo trêmulo para Brunetti. “Você pensa que pode impedir que a vontade de Deus seja obedecida. Tolo. Ele é maior que todos nós. Sua vontade será cumprida.”

Sob a luz que agora preenchia o quarto, o médico viu o sangue que pingava da mão do homem e os perdigotos que se projetavam da boca da mulher. Ela falou novamente, dirigindo-se agora ao médico e à enfermeira. “Vocês tentaram abrigar o inimigo de Deus, fornecendo a ela socorro e conforto, mesmo sabendo que ela era o inimigo do Senhor. Mas outro maior que vocês desvelou todos os seus planos para desafiar a lei de Deus, e me enviou para administrar a justiça ao pecador.”

O médico começou a perguntar “O que está acont...?”, mas Brunetti, com um movimento de mão, fez que ele se calasse.

Foi até a signorina Lerini e pousou sua mão boa gentilmente sobre o braço dela. Sua voz tornou-se um murmuro insinuante. “São muitos os caminhos do Senhor, minha irmã. Outro será mandado para tomar o seu lugar, e todas as Suas obras serão realizadas.”

A signorina Lerini olhou então para ele, que pôde enxergar as pupilas dilatadas e a boca trêmula. “Você também foi mandado pelo Senhor?”, ela perguntou.

“Se tu o dizes”, respondeu Brunetti. “Irmã em Cristo, suas obras anteriores não deixarão de ser recompensadas”, ele anunciou.

“Pecadores. Eles são dois pecadores e merecem o castigo de Deus.”

“Muitos dizem que o seu pai era um incréu, que zombava do Senhor. Deus é paciente e Todo Amoroso, mas não será motivo de zombaria.”

“Ele morreu zombando de Deus”, ela disse, os olhos de repente repletos de horror. “Mesmo no momento em que cerrei seus olhos ele zombou de Deus.”

Atrás dele, Brunetti ouviu a enfermeira e o médico aos cochichos. Virou-se então para eles e ordenou: “Quietos!”. Chocados pelo seu tom de voz e pelo lunatismo audível na mulher, eles obedeceram. Ele pôde então voltar a atenção para a signorina Lerini.

“Mas era preciso. Era a vontade de Deus”, alertou-a.

Seu rosto ficou relaxado. “O senhor entende?”

Brunetti anuiu. A dor em seu braço evoluía a cada minuto, e ao olhar para baixo ele viu a poça de sangue sob a sua mão. “E o dinheiro?”, perguntou a ela. “É sempre preciso uma grande quantia de modo a poder combater os inimigos do Senhor.”

A voz dela ficou mais enérgica. “Sim. A batalha começou e deve ser levada até que recuperemos de volta o reino do Senhor. Os ganhos dos incréus devem ser empregados para fazer o trabalho sagrado de Deus.”

Ele não tinha ideia de por quanto tempo ainda poderia manter a enfermeira e o médico presos ali, portanto arriscou dizer: “O santo padre me falou de sua generosidade”.

Ela saudou esta revelação com um sorriso beatífico. “Sim, ele me disse que a necessidade era premente. Esperar teria tomado anos. Os mandamentos de Deus devem ser obedecidos.”

Ele concordou com a cabeça, como se achasse perfeitamente compreensível que um padre pudesse ter ordenado que ela matasse o próprio pai. “E Da Prè?”, perguntou Brunetti, casualmente, como se se tratasse apenas de um detalhe, algo assim como a cor de um xale. “Aquele pecador”, acrescentou, embora isso não fosse nem de longe necessário.

“Ele me viu, me viu naquele dia em que eu fui instrumento da justiça de Deus para meu pai pecador. Mas só veio falar comigo depois.” Ela se apoiou em Brunetti, enrodilhando-se. “Tratava-se de um pecador também. A ganância é um pecado terrível.”

Às suas costas, ele ouviu o agito de passadas, e, quando olhou ao redor, tanto a enfermeira quanto o médico tinham ido embora. Ele ouviu os passos acelerados desaparecerem no corredor e, ao longe, vozes elevadas.

Aproveitando-se da confusão propiciada pela partida barulhenta dos dois, voltou a perguntar sobre Da Prè, indagando: “E os outros? Os que estavam lá com seu pai. Quais foram os pecados deles?”.

Antes que ele pudesse pensar em um modo de envolver suas perguntas nos farrapos da loucura, ela ficou confusa, olhos curiosos nele. “Quê?”, ela perguntou. “Que outros?”

Brunetti percebeu que a confusão dela era testemunho de sua inocência, e preferiu ignorar suas perguntas, dizendo: “E o anão? Da Prè? O que ele fez, signorina? Ele a ameaçou?”

“Ele pediu dinheiro. Eu disse a ele que não tinha cumprido senão a vontade de Deus, mas ele disse que não existia nem Deus nem vontade. Ele blasfemou. Ele zombou do Senhor.”

“A senhora falou disso ao santo padre?”

“O santo padre é um santo”, ela insistiu.

“Um verdadeiro homem de Deus”, Brunetti anuiu. “E ele lhe disse o que fazer?”

Ela assentiu. “Ele me revelou a vontade de Deus e eu me apressei em realizá-la. Pecado e pecadores devem ser destruídos.”

“Ele chegou a...”, começou Brunetti, mas então três funcionários e o médico entraram atabalhoadamente no quarto, enchendo-o de ruídos e gritos, e ele a perdeu.

Acalmada a situação, a signorina Lerini foi levada para a ala psiquiátrica, onde, após ter os ossos de seu ombro cuidados, foi pesadamente sedada e colocada sob vigilância de vinte e quatro horas. Brunetti foi colocado em uma cadeira de rodas e levado para o pronto-socorro, onde tomou uma anestesia e recebeu catorze pontos no braço. O encarregado da ala psiquiátrica, chamado ao hospital pela enfermeira que testemunhara a cena, proibiu quem quer que fosse de falar com a signorina Lerini, cuja condição foi por ele diagnosticada, sem que a tivesse visto ou falado com ela, de “grave”. Quando Brunetti questionou-os, nem o médico nem a enfermeira que haviam escutado a conversa dele com a signorina Lerini tiveram dela nada além de uma vaga impressão de que fora repleta de invocações religiosas. Ele lhes perguntou se conseguiam lembrar dele perguntando à signorina Lerini sobre o pai dela e o senhor Da Prè, mas eles insistiram que nada daquilo fazia para eles o menor sentido.

Às quinze para as seis, Pucetti se apresentou no quarto de Maria, mas não viu sinal de Brunetti, embora a capa do commissario estivesse pendurada sobre uma cadeira. Quando o oficial viu a poça de sangue no chão, sua primeira preocupação foi com a segurança da mulher. Foi então rapidamente até a cama, ficando aliviado quando, ao olhar para baixo, viu que seu peito ainda se movia para cima e para baixo, sinal de que ela respirava. E, ao mover os olhos para o rosto dela, viu que seus olhos estavam abertos e que ela o encarava.


21

Brunetti só foi saber da mudança no estado de Maria Testa por volta das onze horas daquela manhã, e somente alguns minutos depois de chegar à questura com o braço ferido em uma tipoia, quando Vianello veio até seu gabinete.

“Ela acordou”, ele disse, sem introdução.

“Maria Testa?”, Brunetti perguntou, embora soubesse a resposta.

“Sim.”

“E o que mais?”

“Não sei. Puce ligou para cá por volta das sete e deixou uma mensagem, mas eu não a recebi senão há meia hora. Quando liguei para a sua casa, o senhor já tinha saído.”

“E como é que ela está?”

“Não sei. Tudo o que ele disse foi que ela acordou. Quando ele disse o mesmo aos médicos, três deles foram até o quarto e disseram a ele que saísse. Ele acha que eles iam aplicar alguns testes. Foi quando ele ligou.”

“E ele não disse mais nada?”

“Nada, senhor.”

“E quanto à Lerini?”

“Tudo o que sabemos é que ela está sob sedativos e não pode receber visitas.” Isso não era nada além do que Brunetti já sabia quando saiu do hospital.

“Obrigado, Vianello.”

“Há algo mais que o senhor queira que eu faça, senhor?”

“Não, por ora não. Vou voltar ao hospital mais tarde.” Ele se livrou da capa de chuva com um dar de ombros e a jogou sobre uma cadeira. Antes que Vianello saísse, ele lhe perguntou: “E o vice-questore ?”.

“Não sei, senhor. Ele está no gabinete dele desde que chegou. Ele chegou por volta das dez, portanto eu duvido que ele tenha sabido de algo antes disso.”

“Obrigado”, repetiu Brunetti, e Vianello foi embora.

Sozinho, Brunetti pegou sua capa de novo, tirou dali um vidro de analgésicos e foi até o banheiro masculino no fim do corredor servir-se de um copo d’água. Engoliu dois comprimidos, resolveu tomar um terceiro, e pôs o vidro de volta no bolso da capa. Só então sentiu o baque de não ter dormido na noite passada, refletido do jeito tradicional, em seus olhos, que ardiam de irritação, como se repletos de areia. Recostou-se em sua cadeira, mas recuou assim que a parte traseira de seu braço tocou na cadeira, forçando-o a avançar.

A signorina Lerini mencionara “dois” pecadores. Será que no dia da morte do pai ela fora vista saindo do quarto dele por Da Prè, ali talvez em uma de suas raras visitas à irmã? E teria sido por causa da visita e das perguntas de Brunetti que Da Prè teria começado a pensar sobre o assunto? Se foi assim, então o pequenino deixara passar, em sua tentativa de chantageá-la, o sentido de missão divina que a preenchia e animava, condenando-se assim por essa falta de percepção. Ele tinha colocado em risco o plano divino, por isso tinha que morrer.

Brunetti pôs-se a recordar a conversa que tivera com a signorina Lerini. Ele não se atrevera, não ali na frente dela e confrontando-se com a loucura em seus olhos, a nomear o padre, portanto, a única afirmação que obtivera fora que o “santo padre” havia dito a ela o que fazer. Até mesmo a confissão dela dos assassinatos de seu pai e de Da Prè tinha sido entremeada pelos delírios de sua obsessão religiosa, de tal modo que as duas testemunhas para as quais aquilo seria nada menos que uma confissão não tinham a mínima ideia do que haviam escutado. Como, então, convencer um juiz a emitir uma ordem de prisão contra ela? E, ao lembrar daqueles olhos frenéticos e dos tons de santidade ultrajada com que seu discurso fora proferido, ele se perguntava se haveria algum juiz que autorizaria que ela fosse a juízo. Apesar de já ter tido sua cota justa de contatos com essas manifestações, Brunetti nem de longe se considerava um expert no que se referia à loucura, mas o que havia presenciado na noite anterior lhe parecia ser a sua perfeita expressão. E ao lado da sanidade perdida da mulher se esvaía qualquer possibilidade de se iniciar um processo contra ele ou contra o homem que, Brunetti tinha certeza, a mandara em sua sagrada missão.

Ligou em seguida para o hospital, mas não conseguiu ser posto em contato com a ala de Maria Testa. Inclinou-se à frente, deixando que seu peso o levantasse. Uma olhada pela janela revelou que pelo menos tinha parado de chover. Com o braço direito, pôs a capa sobre os ombros e saiu de seu gabinete.

Ao ver Pucetti à paisana sentado do lado de fora do quarto de Maria Testa, lembrou que, agora que alguém tinha tentado matá-la de fato, a proteção policial poderia ser providenciada.

“Bom dia, senhor”, disse Pucetti, levantando-se e saudando-o formalmente.

“Bom dia, Pucetti”, respondeu Brunetti. “O que está acontecendo?”

“Médicos e enfermeiras não pararam de entrar e sair do quarto a noite toda, senhor. E nenhum deles responde às minhas perguntas.”

“Tem alguém lá dentro agora?”

“Sim, senhor. Uma enfermeira. Acho que ela entrou com um pouco de comida. Pelo menos cheirava a comida.”

“Bom”, disse Brunetti. “Ela precisa comer. Faz quanto tempo mesmo?”, ele perguntou, momentaneamente incapaz de se lembrar há quanto isto vinha se desenrolando.

“Quatro dias, senhor.”

“Sim, sim, quatro dias”, disse Brunetti, sem lembrar de fato, mas disposto a acreditar no jovem. “Pucetti?”

“Sim, senhor?”, ele perguntou, sem prestar continência, embora isso fosse para ele algo difícil de evitar.

“Vá lá embaixo e ligue para Vianello. Diga a ele que mande alguém para substituir você, e que faça o registro na escala de serviço. Depois vá para sua casa comer algo. Quando é que você vai voltar ao serviço de novo?”

“Só depois de amanhã, senhor.”

“Era hoje o seu dia de folga?”

Pucetti baixou os olhos, encarando seus tênis. “Não, senhor.”

“Bem, e era o quê?”

“Eu tinha alguns dias de férias para tirar, então tirei alguns. Aí, pensei, ora, bem que podia dar um mão ao Vianello por aqui. Não tem mesmo para onde ir com toda essa chuva.” Pucetti olhava fixamente para uma mancha na parede, à esquerda da cabeça de Brunetti.

“Bem, quando falar com o Vianello, veja se ele pode mudar isso para você e colocá-lo de volta ao trabalho. Guarde suas férias para o verão.”

“Sim, senhor. Isto é tudo, senhor?”

“Sim, acho que sim.”

“Então, até logo, senhor”, disse o jovem, e tomou o rumo das escadas.

“E obrigado, Pucetti”, disse Brunetti enquanto ele saía. O único agradecimento de Pucetti foi levar a mão ao alto num aceno, mas sem olhar para trás.

Brunetti bateu à porta.

“Avanti ”, alguém respondeu lá de dentro.

Ele abriu a porta e entrou. Uma freira que ele não reconheceu, vestindo o agora familiar hábito da Ordem da Sagrada Cruz, estava de pé ao lado da cama, enxugando o rosto de Maria. Ela avaliou Brunetti com o olhar, mas não disse nada. Na mesa ao lado da cama repousava uma bandeja, no centro da qual havia uma tigela pela metade de comida, que parecia sopa. O sangue — o sangue dele — já não estava mais no chão.

“Bom dia”, disse Brunetti.

A freira balançou a cabeça mas não disse nada. Ela avançou a meio passo até, talvez acidentalmente, se colocar entre ele e a cama.

Brunetti fez um movimento para a esquerda até que Maria pudesse vê-lo. Quando o viu, os olhos dela se arregalaram, as sobrancelhas juntas como se ela estivesse lutando para lembrar-se dele. “Signor Brunetti?”, ela perguntou por fim.

“Sim.”

“O que o senhor está fazendo aqui? Aconteceu alguma coisa com a sua mãe?”

“Não, não. Não aconteceu nada com ela. Eu vim aqui para visitar a senhorita.”

“E o que foi isso no seu braço?”

“Nada, nada.”

“Mas como é que o senhor soube que eu estava aqui?” Ao ouvir o pânico que saiu arrepiando a própria voz, ela parou e fechou os olhos. Ao abri-los, disse, numa voz que tremia com o esforço que empregava para manter-se calma. “Não estou entendendo nada.”

Brunetti se aproximou da cama. A freira fuzilou-o com o olhar e balançou a cabeça, um aviso, se se podia defini-lo assim, que Brunetti ignorou.

“O que é que a senhora não entende?”, ele perguntou.

“Eu não sei como vim parar aqui. Eles disseram que eu fui atropelada por um carro enquanto estava andando de bicicleta, mas eu não tenho uma bicicleta. Não há bicicletas na casa de repouso, e eu não creio que poderíamos andar, mesmo se houvesse. E eles disseram que foi no Lido. Eu nunca fui até o Lido, signor Brunetti, jamais, em toda a minha vida.” Sua voz ia ficando cada vez mais alta.

“Onde a senhora lembra que estava?”, ele lhe perguntou.

A pergunta pareceu alarmá-la. Ela levou a mão à testa, do mesmo modo que ele a vira fazer em seu gabinete naquele dia, e uma vez mais ela se surpreendeu quando não encontrou a confortável proteção da sua touca. Com as pontas de seus dois primeiros dedos, ela pressionou a bandagem que envolvia sua têmpora, puxando pela memória.

“Lembro-me de estar na casa de repouso”, ela disse por fim.

“Aquela em que está a minha mãe?”, Brunetti perguntou.

“Claro. É lá que eu trabalho.”

A freira, talvez em resposta à crescente agitação na voz de Maria, avançou mais. “Acho melhor evitar mais perguntas, signore.”

“Não, não, eu quero que ele fique”, implorou Maria.

Percebendo a indecisão da freira, Brunetti disse: “Talvez fique mais fácil se só eu falar”.

A freira olhou de Brunetti para Maria Testa, que assentiu e sussurou: “Por favor, eu quero saber o que aconteceu”.

Olhando para o seu relógio, a freira disse, naquele tom de voz ríspido que as pessoas adotam quando têm a chance de impor seu limitado poder: “Está bem, mas cinco minutos apenas”. Dito isso, Brunetti pensou que ela fosse sair, mas ela ficou por ali mesmo, somente deslocando-se para o pé da cama e ouvindo abertamente a conversa

“A senhorita estava andando de bicicleta quando foi atropelada por um carro. E na ocasião estava no Lido, onde trabalha em uma clínica particular.”

“Mas não pode ser”, disse Maria. “Eu acabei de lhe dizer que jamais estive no Lido. Nunca.” Mal proferiu essas palavras, parou e disse. “Desculpe-me, signor Brunetti. Diga-me o que o senhor sabe.”

“A senhorita esteve trabalhando ali por algumas semanas. Algumas semanas antes, a senhorita havia deixado a casa de repouso. Conhecidos seus a ajudaram a encontrar trabalho e um lugar onde morar.”

“Um trabalho?”, ela perguntou.

“Na clínica. Na lavanderia.”

Ela fechou os olhos por um momento, e, quando os abriu, disse: “E eu não lembro nada sobre o Lido”. E levou a mão à têmpora novamente. “Mas por que o senhor está aqui?”, ela perguntou a Brunetti, e ele podia dizer, a partir do tom empregado por ela, que ela se lembrava no que ele trabalhava.

“A senhorita veio até o meu gabinete algumas semanas atrás, pedindo que eu investigasse algo.”

“O quê?”, ela perguntou, balançando a cabeça estupefata.

“Algo que a senhorita pensava estar acontecendo na casa de repouso San Leonardo.”

“San Leonardo? Mas eu jamais estive lá.”

Brunetti percebeu que as mãos dela se fecharam em punhos sobre as cobertas e achou que não havia sentido em continuar daquela maneira. “Acho melhor encerrarmos por ora. Talvez a senhorita volte a se lembrar do que aconteceu. É preciso que descanse, e que se alimente, para ficar forte.” Quantas vezes ele tinha ouvido essa mesma mulher dizer coisas semelhantes para sua mãe?

A freira se aproximou. “Agora basta, signore.” Brunetti foi forçado a concordar.

Ele estendeu sua mão boa e deu um tapinha nas costas de Maria. “Vai ficar tudo bem. O pior já passou. Apenas tente descansar e se alimentar.” Ele sorriu e virou-se para sair.

Antes que chegasse à porta, Maria virou-se para a freira e disse: “Irmã, desculpe o incômodo, mas será que a senhora poderia me passar a...”, mas parou encabulada.

“A comadre?”, perguntou a freira, sem se preocupar nem um pouquinho em baixar a voz.

Ainda de cabeça baixa, Maria confirmou.

A freira bufou, os lábios apertados numa exasperação que não se esforçava em disfarçar. Ela se voltou, foi até a porta, abriu-a e a ficou segurando enquanto aguardava que Brunetti saísse.

Lá do fundo, em uma voz frágil e amedrontada, Maria pediu: “Por favor, irmã, será que ele poderia aguardar aqui até a sua volta?”.

A freira olhou para ela, olhou para Brunetti, não disse nada e saiu do quarto fechando a porta.

“Foi um carro preto”, Maria disse sem preâmbulo. “Eu não sei a diferença entre eles, mas este era bem grande, e veio direto para cima de mim. Não foi um acidente.”

Atônito pela surpresa, Brunetti perguntou: “A senhorita se lembra?”.

Ele começou a se aproximar da cama, mas ela estendeu a mão em alerta na direção dele. “Fique aí mesmo. Não quero que ela saiba que conversamos.”

“Por quê?”

Desta vez foram os lábios de Maria que se apertaram de irritação. “Ela é uma deles. Se eles souberem que eu me lembro, vão me matar.”

Ele olhou para ela através do quarto e quase perdeu o prumo diante da contagiante energia que ela irradiava. “O que a senhorita vai fazer?”, ele perguntou.

“Sobreviver”, ela declarou, e então a porta se abriu, trazendo a freira de volta, com a comadre na mão, sem discrição nenhuma. Ela passou por Brunetti sem dizer nada e foi direto para a cama.

Ele não disse nada, nem quis correr o risco de se voltar para dar uma última olhada em Maria, deixando-as lá simplesmente, juntas no quarto.

À medida que avançava corredor abaixo, em direção à ala psiquiátrica, sentiu de repente o chão lhe falhar sob os pés. Parte dele sabia que isso não era senão o resultado de seu cansaço, o que não o impediu de encarar as pessoas que passavam por ele a fim de verificar se ele podia perceber pânico ou medo nos olhos delas e assim consolar a si mesmo com o conhecimento de que ocorria de fato um terremoto. Subitamente amedrontado ao descobrir que buscava conforto em tal possibilidade, foi para o bar no térreo e pediu um panino, mas nem sequer o tocou quando o trouxeram. Não apreciando o gosto, mas sabendo que era disso que precisava, sorveu uma taça de suco de damasco, pedindo depois um copo de água e tomando mais dois analgésicos. Observando as outras pessoas ali naquele bar, com suas bandagens, talas e gessos, sentiu-se em casa pela primeira vez naquele dia.

Ao tomar novamente o rumo da ala psiquiátrica, sentiu-se melhor, embora não tão bem. Cruzou o pátio aberto, cortando caminho pela radiologia, e abriu a porta dupla da ala psiquiátrica. Ao fazê-lo, viu que da outra ponta do corredor uma figura de saia branca caminhava em sua direção, e novamente Brunetti se perguntou se perdera o juízo ou se estava aprisionado em algum tipo de terremoto psicológico. Mas não, não era ninguém senão o padre Pio que avançava em sua direção, seu perfil alto envolto em uma capa negra de algodão que estava bem apertada em seu pescoço — Brunetti viu com nitidez quase alucinatória — por um prendedor feito de uma moeda austríaca Maria Teresa do século XVIII.

Era difícil dizer qual dos dois ficara mais surpreso, mas foi o padre o primeiro a se compor, dizendo em seguida: “Bom dia, commissario. Seria precipitado da minha parte concluir que viemos visitar a mesma pessoa?”.

Brunetti demorou um momento para falar, e quando o fez disse apenas o nome dela: “Signorina Lerini?”.

“Sim.”

“O senhor não pode visitá-la”, disse Brunetti, sem se preocupar mais em disfarçar a animosidade em sua voz.

O rosto do padre Pio abriu-se no mesmo sorriso doce com que havia recebido Brunetti no primeiro encontro dos dois no capítulo da Ordem da Sagrada Cruz. “Mas com certeza, commissario, o senhor não tem o direito de privar uma pessoa doente, alguém que precisa de conforto espiritual, de ver o seu confessor.”

Seu confessor. Claro. Brunetti devia ter pensado nisso. Mas antes que pudesse dizer algo, o padre continuou. “Seja como for, já é tarde para o senhor dar suas ordens, commissario. Eu já falei com ela e ouvi suas confissões.”

“E deu a ela o consolo espiritual?”, perguntou Brunetti.

“Assim o dizes”, foi a resposta do padre Pio, dada com um sorriso que demonstrava jamais ter conhecido a doçura.

Um gosto nauseante subiu à garganta de Brunetti, mas não estava relacionado ao suco de damasco que ele tinha acabado de tomar. Na forma de um espasmo repentino, ira e desgosto irromperam nele, que era tão incapaz de controlar esses sentimentos quanto as pílulas eram incapazes de parar a dor em seu braço. Deixando para trás a experiência de uma geração, Brunetti avançou e agarrou um pedaço da batina do padre, satisfeito ao sentir o tecido fino se amarrotar sob a pressão de seus dedos. Ele puxou, nada gentil, e o padre, perdendo de repente o equilíbrio, caiu para a frente até que somente a distância de uma respiração os separasse. “Nós sabemos sobre o senhor”, advertiu Brunetti.

O padre agitou uma mão furiosa que rompeu com facilidade o aperto de Brunetti. Depois recuou, se voltou e foi em direção da saída. Mas então, tão subitamente quanto antes, ele parou e voltou na direção de Brunetti, sua cabeça chacoalhando para os lados, como uma cobra. “E nós sabemos sobre o senhor”, ele sussurrou, e foi embora.


22

Do lado de fora, no Campo SS. Giovanni e Paolo, Brunetti parou por alguns momentos à porta do hospital, incapaz de decidir se se forçava a ir para a questura ou se voltava para casa para dormir um pouco. Olhou para os andaimes que cobriam a frente da basílica e viu que as sombras já tinham alcançado o centro da fachada. Olhou para o seu relógio e mal pôde acreditar que era o meio da tarde. Não conseguia entender como perdera aquelas horas: talvez tivesse caído no sono no bar, a cabeça repousando contra a parede atrás de sua cadeira. Fosse como fosse, aquelas horas já eram, tinham se escoado do mesmo jeito que os anos de Maria Testa haviam sido roubados dela.

Resolvendo então que seria mais fácil ir para a questura, mesmo que somente por ser mais perto, cruzou o campo e seguiu naquela direção. Assolado pela sede e pela dor recorrente, parou em um bar no caminho, pediu um copo de água mineral e tomou outro comprimido. Ao chegar à questura, deparou com um saguão estranhamente silencioso, e foi só então que se deu conta de que era quarta-feira, o dia em que o Ufficio Stranieri não atendia o público, o que explicava essa raríssima tranquilidade.

Relutando encarar os quatro lances de escada até o seu gabinete, decidiu fazê-lo e falar logo com Patta, e foi até a escada. Assim que venceu o primeiro lance, surpreendeu-se pela facilidade com que subia e se perguntou, sem que conseguisse se lembrar, por que havia relutado tanto em ir para o próprio local de trabalho. Apanhou-se pensando quão agradável seria se pudesse simplesmente voar sobre os degraus, quanto tempo poderia ganhar assim a cada dia, mas logo se viu no escritório da signorina Elettra, e deixou para lá essa ideia de voar.

Ela tirou os olhos do computador assim que ele entrou, e, vendo o seu braço e o estado em que ele se encontrava, saiu detrás de sua mesa e foi até ele. “Commissario, qual é o problema? O que aconteceu?” A sinceridade de sua preocupação era a um só tempo visível e audível, tanto que Brunetti se sentiu estranhamente comovido por isso. Que sorte tinham as mulheres por poderem se permitir demonstrar suas emoções abertamente, pensou, e quão agradáveis eram esses sinais de sua afeição ou preocupação.

“Obrigado, signorina”, ele disse, resistindo ao desejo de colocar sua mão no ombro dela enquanto a agradecia por algo que ela nem suspeitava estar oferecendo. “O vice-questore está?”

“Sim, está. O senhor tem certeza de que quer vê-lo?”

“Oh, sim. Agora é a melhor ocasião.”

“O senhor aceita um café, dottore ?”, ela perguntou, ajudando-o a tirar a capa.

Brunetti balançou a cabeça. “Não, está bem assim, signorina. Obrigado por perguntar, mas só quero mesmo uma palavrinha com o vice-questore.”

Fora o costume, e somente o costume, que fizera Brunetti bater à porta de Patta. Ao entrar, Patta o cumprimentou com o mesmo tipo de surpresa que a signorina Elettra demonstrara ao vê-lo, mas se a surpresa dela fora repleta de preocupação, a de Patta demonstrava apenas desaprovação.

“O que é que há de errado com você, Brunetti?”

“Tentaram me matar”, ele respondeu, fingindo que não tinha entendido.

“Parece que não se empenharam, se isso foi tudo o que conseguiram.”

“O senhor se incomoda se eu me sentar, senhor?”

Encarando isso como não mais que um jeito de Brunetti chamar a atenção para os seus ferimentos, Patta acenou contrafeito e indicou uma cadeira. “O que é que está acontecendo?”, o vice-questore exigiu saber.

“Na noite passada, no hospital...”, Brunetti começou, mas Patta o interrompeu.

“Já sei o que aconteceu no hospital. Aquela mulher foi matar a freira porque teve a louca ideia de que a freira tinha matado o pai dela”, disse Patta, fazendo em seguida uma longa pausa, antes de acrescentar. “Foi bom que o senhor a tenha impedido.” Mesmo se tivesse ensaiado, Patta não poderia ter conseguido soar mais ressentido.

Brunetti ouviu, impressionado apenas pela velocidade com que Patta tinha aceitado tudo. Ele sabia que deviam ter apresentado alguma história para explicar o comportamento da signorina Lerini, mas não imaginara que seria uma versão assim tão descarada.

“Será que não haveria alguma outra explicação, senhor?”

“Que seria...?”, Patta perguntou com a desconfiança de sempre.

“Que ela soubesse de algo que a signorina Lerini quisesse manter em segredo?”

“E que tipo de segredo poderia ter uma mulher como aquela?”

“Uma mulher como o quê?, se o senhor me permite.”

“Uma carola”, Patta respondeu de pronto. “Aquele tipo de mulheres que não pensam em nada senão em religião e Igreja.” O tom de Patta não dava a mínima pista sobre se ele aprovava ou não esse tipo de comportamento nas mulheres. “Bem?”, ele provocou, já que Brunetti não disse nada.

“O histórico do pai dela não indicava que sofresse do coração”, disse Brunetti.

Patta esperou que Brunetti dissesse mais alguma coisa, e, como ele não disse, Patta cobrou: “E isto quer dizer o quê?”. Brunetti continuou calado. “Quer dizer que o senhor pensa que esta mulher matou o próprio pai?” Patta saiu de trás de sua mesa como se para corporificar sua descrença. “Perdeu o juízo, Brunetti? Mulheres que vão à missa todo dia não matam os pais.”

“E como é que o senhor sabe que ela vai à missa todo dia?”, Brunetti perguntou, surpreso com a própria capacidade em manter-se calmo e superior nessa discussão, como se tivesse sido levado até o lugar onde as respostas para todos esses segredos tivessem sido mantidas ocultas.

“Porque eu recebi ligações tanto do médico dela quanto de seu conselheiro espiritual.”

“E o que eles disseram?”

“O médico me disse que parece ter sido um colapso, provocado pelo luto reprimido pela morte do pai.”

“E aquele que o senhor chama de ‘conselheiro espiritual’?”

“Do que você o chamaria, Brunetti, de algo diferente? Ou ele faz parte desse sinistro cenário que o senhor parece estar inventando?”

“O que foi que ele disse?”, Brunetti repetiu.

“Ele disse que concorda com o diagnóstico do médico. E então disse que não ficaria surpreso se fosse descoberto que tinha sido essa ilusão sobre a freira que tinha levado ao ataque no hospital.”

“E eu suponho que quando o senhor perguntou por que, ele disse que não estava autorizado a lhe dizer como obteve tal informação, correto?”, perguntou Brunetti, sentindo-se cada vez mais longe, muito longe mesmo, da conversa e dos dois homens que a estavam tendo.

“Como é que o senhor sabe?”, perguntou Patta.

“Ah, vice-questore”, disse Brunetti, levantando-se e fazendo com o dedo um gesto de alerta para Patta, “o senhor não acha que eu romperia o voto do confessionário, não é mesmo?” E, sem esperar para ouvir se Patta teria algo mais a dizer, foi até a porta e deixou o gabinete.

A signorina Elettra estava se afastando rapidamente da porta quando ele a abriu, e ele acenou para ela com o mesmo dedo acusador. Mas então sorriu e perguntou: “A senhora poderia me ajudar a pôr meu casaco, signorina?”.

“Claro, dottore”, ela disse, apanhando o casaco da cadeira onde repousava e segurando-o para ele.

Quando o casaco já estava em seus ombros, ele a agradeceu e foi até as escadas. Encontrou Vianello à porta, o qual parecia ter surgido ali com rapidez angelical.

“Montisi está com a lancha a postos, senhor”, ele disse.

Depois, Brunetti lembrou ter começado a descer os degraus atrás de Vianello, que o amparava por seu braço bom. E lembrou de ter perguntado a Vianello se também ele teria algum dia pensado em como seria fácil se eles pudessem voar para cima e para baixo sobre os degraus quando a caminho de seus gabinetes, mas então sua memória do dia esvaneceu e foi repousar junto a todas as horas perdidas da vida de sóror Immacolata.


23

A infecção no braço de Brunetti foi depois atribuída aos fios do paletó Harris que foram empurrados para dentro de sua ferida e ali deixados devido a procedimentos médicos pouco cuidadosos. E, claro, não foi o hospital municipal que disse isso, já que o cirurgião dali insistia que a infecção tinha sido provocada por um contágio bacteriológico corriqueiro, e de esperar como consequência de um ferimento tão grave. Mas seu amigo Giovanni Grimani lhe disse depois que algumas cabeças tinham rolado em todo o pronto-socorro, e que um auxiliar cirúrgico fora transferido para a cozinha. Grimani não disse, pelo menos não abertamente, que o cirurgião tinha cometido o erro porque tinha feito a cirurgia às pressas, embora o tom do amigo tenha levado Brunetti e Paola a essa conclusão. Mas só se soube disso tudo bem depois de a infecção ter evoluído tão gravemente, provocando alterações tão estranhas no comportamento de Brunetti que ele teve de ser levado de volta ao hospital.

Graças à generosidade do sogro para aquela instituição, o delirante Brunetti foi levado ao hospital Giustiniani, onde foi hospedado em um quarto privativo e onde toda a equipe que o atendeu, assim que se soube de quem ele era parente, se mostrou atenciosa e polida. Durante os primeiros dias, enquanto ele tinha apenas lampejos de consciência e os médicos lutavam por descobrir o antibiótico ideal para debelar a infecção, Brunetti não recebeu nenhuma informação sobre o que a causara, e, quando finalmente se descobriu o remédio e a infecção foi controlada, e afinal extinta, ele não demonstrou interesse nenhum em saber de quem tinha sido a culpa. “Que diferença isso faz?”, ele perguntou a Grimani, destruindo assim boa parte da satisfação que o médico tivera em ter se demonstrado bem mais leal à amizade que a sua profissão.

No período em que ficou internado, ao menos em seus períodos de lucidez, Brunetti tinha insistido que era absurdo mantê-lo no hospital, e, no dia em que os tubos foram removidos do seu braço e o ferimento foi considerado limpo, ele insistiu para que lhe fosse dada alta. Paola ajudou-o a se vestir, dizendo-lhe que estava tão quente lá fora que ele nem precisaria de um suéter, embora ela tivesse trazido uma jaqueta para jogar por cima dos ombros o marido.

Quando um enfraquecido Brunetti e uma radiosa Paola apareceram no corredor, encontraram Vianello à espera. “Bom dia, signora”, disse ele a Paola.

“Bom dia, Vianello. Que gentil de sua parte ter vindo”, ela disse, fingindo surpresa. Brunetti sorriu diante de vã tentativa dela de parecer casual, certo que estava de que ela tinha combinado com Vianello que ele estaria ali, assim como tinha certeza de que Montisi estaria à entrada, com a lancha da polícia, motores roncando.

“O senhor parece bem”, disse Vianello em cumprimento.

Ao trocar de roupa para sair, Brunetti ficou surpreso ao notar como suas calças pareciam folgadas. Aparentemente, a febre tinha consumido boa parte do peso que ele tinha ganhado naquele inverno, e sua falta de apetite pareceu também ter contribuído para isso. “Obrigado, Vianello”, ele disse, encerrando o assunto. Paola começou a avançar pelo corredor, e Brunetti virou-se, perguntando ao sargento: “Onde é que eles estão?”, sem que fosse preciso explicar a quem se referia.

“Foram embora. As duas.”

“Para onde?”

“A signorina Lerini foi levada para uma clínica particular.”

“Onde”

“Roma. Pelo menos foi o que nos disseram.”

“Você confirmou?”

“A signorina Elettra cuidou disso.” E, antes mesmo que Brunetti pudesse perguntar, Vianello explicou: “A clínica é administrada pela Ordem da Sagrada Cruz”.

Brunetti não sabia que nome utilizar. “E quanto a Maria Testa?”, perguntou finalmente, alinhando-se com aquele nome à decisão que ele esperava ela tivesse mantido.

“Sumiu.”

“Como assim, sumiu?”

“Guido”, Paola disse, voltando para junto deles, “será que isso não pode esperar?” E afastou-se deles novamente, para pegar o lado da saída do hospital onde os aguardava a lancha da polícia.

Brunetti foi atrás dela, com Vianello a seu lado, acompanhando seus passos.

“Fale”, disse Brunetti.

“Mantivemos a guarda lá nos primeiros dias depois que o senhor foi internado aqui.”

Brunetti o interrompeu. “Alguém tentou vê-la?”

“Aquele padre, mas eu disse que tínhamos ordens de não permitir nenhum visitante. Daí ele foi procurar o Patta.”

“E?”

“Patta segurou as coisas por um dia, então disse que devíamos perguntar a ela se ela queria recebê-lo.”

“E o que ela disse?”

“Eu não cheguei a perguntar a ela. Mas disse a Patta que ela disse que não queria recebê-lo.”

“E então, o que aconteceu?”, continuou Brunetti, mas aí eles chegaram à saída do hospital. Paola esperava lá fora, segurando a porta para ele, e, quando ele saiu, ela disse: “Bem-vindo à primavera, Guido”.

E era mesmo. Durante os dez dias que ele havia ficado internado, a primavera tinha avançado magicamente e conquistado a cidade. O ar transpirava suavidade e renovação, os cantos de acasalamento dos pássaros preenchiam o ar acima de suas cabeças, e uma floração de angélicas abria caminho por entre uma grade de metal no muro de tijolos que margeava o canal. Como Brunetti tinha previsto, Montisi estava no convés da lancha da polícia, que fora trazida até os degraus que levavam do hospital ao canal abaixo. Ele os saudou com um aceno e com algo que Brunetti suspeitou ser um sorriso.

Grunhindo um “Buon giorno”, o piloto ajudou Paola a subir no barco, e depois a Brunetti, que quase tropeçou de tão cego que estava com a explosão da luz solar. Vianello liberou a corda de ancoragem e subiu a bordo, e Montisi os conduziu para o canal da Giudecca.

“E então, o que aconteceu?”, continuou Brunetti.

“Uma das enfermeiras disse a ela que o padre queria vê-la, mas que nós não deixamos. Falei com a enfermeira depois e ela me disse que ela — Maria Testa, claro — parecia perturbada por ele querer vê-la, e que tinha ficado contente por termos conseguido impedi-lo.” Uma lancha de corrida passou por eles pelo lado direito, jogando água em cima do barco deles. Vianello deu um pulo para o lado, mas a água se chocou inofensivamente contra o casco da lancha.

“E então?”, continuou Brunetti.

“Então, a madre superiora da ordem a que ela pertencia ligou para nós e disse que queria que ela fosse encaminhada para uma das clínicas da ordem. E foi então que ela sumiu. Já tínhamos suspendido a guarda, embora alguns dos rapazes e eu ainda déssemos uma passada por lá durante as noites, só para ver como é que as coisas estavam indo.”

“E quando foi isso?”

“Há uns três dias. A enfermeira da tarde viu que ela não estava mais lá. As roupas dela também não estavam, e não havia sinal dela.”

“E o que vocês fizeram?”

“Perguntamos em todo o hospital, mas ninguém a viu. Ela simplesmente desapareceu.”

“E o padre?”

“Alguém da matriz em Roma ligou para o vice-questore um dia depois de ela ter desaparecido — isso foi antes que qualquer um de nós soubesse do sumiço — e perguntou se era verdade que seu confessor estava sendo mantido afastado dela. Patta pensava que ela ainda estivesse lá, então ele cedeu, garantindo pessoalmente que ela iria ser autorizada a falar com o seu confessor. Ele ligou para mim para dizer que ela devia vê-lo, e foi aí que eu disse a ele que ela tinha sumido.”

“E o que ele fez? Ou disse?”

Vianello matutou um pouco sobre isso antes de responder. “Achei que ele tinha ficado aliviado, senhor. O homem de Roma deve tê-lo amedrontado de algum modo, pois ele insistia tanto que ela devia ver o padre. Mas quando eu disse a ele que ela sumira, ele pareceu quase feliz ao ouvir aquilo. Na verdade, ele ligou de volta para o homem em Roma enquanto eu ainda estava lá. Eu mesmo tive que falar com o homem e dizer a ele que ela tinha sumido.”

“E você sabe quem era esse homem de Roma?”

“Não, mas quando eles ligaram, a telefonista disse que a ligação vinha do Vaticano.”

“E você tem alguma ideia de para onde ela possa ter ido?”, Brunetti perguntou.

“Nenhuma”. A resposta de Vianello foi rápida.

“E você ligou para aquele homem do Lido? Sassi?”

“Sim. Foi a primeira coisa que eu fiz. Ele disse que eu não me preocupasse com ela e que não podia falar mais do que isso.”

“Você acha que ele sabe onde ela está?”, Brunetti perguntou. Ele não pretendia apressar Vianello e olhou para cima, na direção de Paola, que estava ao lado do leme do barco, jogando conversa fora com Montisi.

Finalmente, Vianello respondeu. “Acho que ele sabe, mas não confia em ninguém o bastante para dizer, nem mesmo em nós.”

Brunetti concordou com a cabeça e deu as costas para o sargento para olhar por sobre as águas, na direção da San Marco, que acabava de surgir à esquerda deles. Lembrou-se daquele último dia com Maria Testa no hospital, recordando a firme determinação em sua voz, e com a lembrança sentiu uma onda de alívio por ela ter decidido fugir. Ele tentaria encontrá-la, mas torcia para que isso fosse impossível — para ele e para qualquer outro. Deus a guarde e lhe dê forças em sua vita nuova.

Paola, percebendo que ele encerrara a conversa com Vianello, foi até eles. Naquele exato momento, uma lufada surpreendeu-a por trás e jogou seus cabelos por sobre o seu rosto, envolvendo-o com seus fios loiros dos dois lados.

Rindo alto, ela levou as duas mãos ao rosto e empurrou os cabelos para cima, tirando-os do rosto, e depois balançou a cabeça de um lado para o outro, como se estivesse vindo à tona depois de um demorado mergulho. Quando abriu os olhos, viu Brunetti observando-a e riu novamente, agora mais alto ainda. Com o seu braço bom ele a enlaçou pelo ombro e puxou-a para si.

Reduzido à adolescência por essa carga amorosa, ele perguntou: “Sentiu a minha falta?”.

Percebendo seu estado de espírito, ela respondeu: “Eu virei um trapo. Não tenho alimentado as crianças. Meus alunos agonizam pela falta de estímulo intelectual”.

Vianello deixou-os e foi até Montisi.

“E o que você tem feito?”, perguntou Brunetti, como se ela não tivesse passado a maior parte do tempo no hospital, a seu lado, nos últimos dez dias.

Ele percebeu a mudança de humor em seu corpo e virou-a para si a fim de encará-la. “O que foi?”, perguntou.

“Não quero estragar seu retorno”, ela disse.

“Nada pode fazer isso, Paola”, ele disse, sorrindo à verdade simples dessa declaração. “Diga pra mim, sim?”

Ela analisou o rosto dele por um momento e então falou: “Eu te disse que ia pedir ajuda ao meu pai”.

“Sobre o padre Luciano?”

“Sim.”

“E?”

“E ele falou com algumas pessoas, amigos dele em Roma. Acho que ele achou uma resposta.”

“Diga.”

E ela disse.

A governanta veio à porta da residência do pároco ao segundo toque da campainha. Era uma mulher esbelta, já nos seus quase sessenta anos, com a pele lisa e sem falhas que ele se acostumara a observar no rosto de freiras e outras mulheres com a virgindade longamente preservada.

“Pois não?”, ela perguntou. “Em que posso ajudá-lo?” Talvez ela tivesse sido bela há muito tempo, com olhos castanhos-escuros e uma boca enorme, mas o tempo fizera com que ela esquecesse desse tipo de coisa ou tivesse perdido a vontade de beleza, e agora seu rosto tinha se apagado e tornara-se plano e delicado.

“Eu gostaria de falar com Luciano Benevento”, disse Brunetti.

“O senhor é um dos paroquianos?”, ela perguntou, surpresa por ouvir o nome do padre desacompanhado do seu título.

“Sim”, Brunetti respondeu, após apenas um instante de hesitação, e dando uma resposta que ao menos geograficamente era verdadeira.

“Se o senhor me acompanhar até o estúdio, eu chamarei o padre Luciano.” Ela se virou, afastando-se de Brunetti, que fechou a porta da frente e a seguiu pelo corredor forrado de mármore. Ela abriu a porta da sala de espera para ele, e em seguida sumiu pelo corredor, saindo em busca do padre.

No estúdio havia duas poltronas dispostas uma ao lado da outra, talvez para facilitar a intimidade da confissão. Um pequeno crucifixo pendia de uma parede, um quadro da Madona de Cracóvia na parede oposta. Numa mesa de centro, cópias da Famiglia Christiana e alguns envelopes destinados a contribuições para os que se sentissem encorajados a fazer uma doação à Primavera missionaria. Brunetti ignorou as revistas, as imagens e as poltronas. Ficou de pé no meio do aposento, a mente vazia, e esperou pela chegada do padre.

Passados alguns minutos, a porta se abriu e por ela entrou um homem alto e magro. Vestindo a longa bata e o alto colarinho próprios a seu ofício, aparentava com eles ser mais alto do que já era, impressão que era intensificada por sua postura ereta e longas passadas.

“Pois não, meu filho?”, ele disse ao entrar. Seus olhos eram cinza-escuro, e deles se projetavam rugas provocadas por risos frequentes. Tinha uma boca ampla e um sorriso que incentivava a confidência e a confiança. Sorriu para Brunetti e se aproximou, oferecendo sua mão num gesto de companheirismo.

“Luciano Benevento?”, perguntou Brunetti, sem esticar as mãos.

Com um sorriso simpático, ele corrigiu Brunetti: “Padre Luciano Benevento”.

“Vim até aqui para falar de sua nova atribuição”, disse Brunetti, recusando conscientemente dirigir-se ao homem pelo seu título.

“Acho que não estou entendendo. Que nova atribuição?” Benevento balançou a cabeça sem tentar disfarçar sua confusão.

Brunetti puxou um grande envelope do bolso interno de sua jaqueta e passou-o silenciosamente ao outro homem.

Instintivamente, o padre apanhou o envelope, olhou para ele e viu seu nome escrito na frente. Tranquilizou-se ao ver que daquela vez seu título tinha sido utilizado. Abriu o envelope, olhou para o silencioso Brunetti, e puxou dali uma folha de papel. Segurando-a um pouco afastada de si, leu o que ali estava escrito. Ao terminar, olhou para Brunetti e de novo para o papel, e então o leu por uma segunda vez.

“Não entendo o que é isto”, ele disse. Sua mão direita, com a qual ele segurava o papel, caiu a seu lado.

“Eu acho que deve estar bem claro.”

“Mas, eu não entendo. Como é que eu posso estar sendo transferido? É preciso que me consultem sobre isto, que obtenham a minha anuência, antes de fazerem algo desse tipo.”

“Não creio que haja alguém interessado em saber o que o senhor queira, não mais.”

Benevento não fez nada para esconder sua confusão. “Mas já faz vinte e três anos que eu sou padre. É claro que eles têm que me ouvir. Eles não podem simplesmente fazer isso comigo, me transferir sem sequer dizer para onde.” O padre agitou furiosamente o papel no ar. “Eles não dizem sequer para que paróquia eu irei, nem mesmo para qual província. Na há nem mesmo uma pista para onde irei.” Ele projetou o braço para a frente e pôs o papel na direção de Brunetti. “Olhe para isto. Tudo o que eles dizem e que estou sendo transferido. Pode ser para Nápoles, ou, Deus me livre, pode ser para a Sicília.”

Brunetti, que estava familiarizado com muito mais do que apenas o conteúdo da carta, não se deu ao trabalho de olhar para ela.

“Que tipo de paróquia será?”, continuou Benevento. “Que tipo de pessoas haverá por lá? Eles não podem simplesmente achar que eu vou aceitar isto calado. Eu vou chamar o patriarca. Vou me queixar sobre isso e garantir que seja mudado. Eles não podem simplesmente me mandar para qualquer paróquia que quiserem, não depois do que eu fiz pela Igreja.”

“Não é uma paróquia”, disse Brunetti com calma.

“O quê?”

“Não é uma paróquia”, Brunetti repetiu.

“O que o senhor quer dizer, não é uma paróquia?”

“Exatamente o que eu disse. O senhor não está sendo mandado para uma paróquia.”

“Isso não faz sentido”, disse Benevento seriamente indignado. “É claro que eu tenho de ser mandado para uma paróquia. Eu sou um padre. É o meu trabalho ajudar as pessoas.”

O rosto de Brunetti ficara impassível durante todo esse tempo. O silêncio dele levou Benevento a inquirir: “Quem é o senhor? O que sabe sobre isto?”.

“Eu sou alguém que vive em sua paróquia”, disse Brunetti. “E a minha filha é uma das crianças de sua aula de catecismo.”

“Quem?”

“Uma das crianças das turmas do secundário”, disse Brunetti, não vendo razão para dar o nome de sua filha.

“E o que isso tem a ver com todo o resto?”, Benevento exigiu saber, sua ira crescente fazendo-se notar agora em sua voz.

“Tem um bocado a ver com isto”, disse Brunetti, indicando a carta com um aceno.

“Não tenho a mínima ideia do que o senhor está falando”, disse Benevento, e em seguida repetiu sua pergunta. “Quem é o senhor? Por que está aqui?”

“Estou aqui para entregar a carta”, disse Brunetti calmamente, “e para lhe dizer para onde o senhor vai.”

“E por que o patriarca faria uso de alguém como o senhor?”, Benevento perguntou, imprimindo um pesado sarcasmo à última palavra.

“Porque ele foi ameaçado”, Brunetti explicou gentilmente.

“Ameaçado?”, Benevento repetiu em voz baixa, olhando para Brunetti com um nervosismo que tentou sem sucesso disfarçar. Não restara muito agora do benevolente padre que entrara no aposento há apenas alguns minutos. “E com o que se pode ameaçar o patriarca?”

“Alida Bontempi, Serafina Reato e Luana Serra”, disse Brunetti simplesmente, dando a ele os nomes das três garotas cujas famílias haviam reclamado ao bispo de Trento.

A cabeça de Benevento recuou como se Brunetti o houvesse estapeado três vezes no rosto. “Eu não conheço...”, ele começou a dizer, mas então, ao ver o rosto de Brunetti, parou de falar por um momento.

Ele deu um sorriso de homem do mundo a Brunetti. “O senhor acredita nas mentiras de jovens histéricas como essas? Contra um padre?”

Brunetti não se deu o trabalho de responder.

Benevento ficou ainda mais furioso. “O senhor pensa honestamente em ficar aí parado e dizer para mim que acredita nas histórias horríveis que essas garotas inventaram contra mim? O senhor acha que um homem que dedicou a sua vida ao serviço de Deus poderia possivelmente ter feito as coisas que elas disseram?” Como Brunetti continuava sem responder, Benevento bateu a carta nervosamente contra o lado de sua perna e deu as costas para ele. Caminhou até a porta e a abriu, mas de repente fechou-a com violência e voltou para Brunetti. “E para onde eles estão pensando que vão me mandar?”

“Asinara”, disse Brunetti.

“O quê?”, gritou Benevento.

“Asinara”, repetiu Brunetti, seguro de que todo mundo, até mesmo um padre, sabia o nome da prisão de segurança máxima no meio do mar Tirreno.

“Mas é uma prisão. Eles não podem me mandar para lá. Eu não sou culpado de nada.” Ele deu dois longos passos através do aposento, como se esperasse com isso obter algum tipo de concessão por parte de Brunetti, mesmo se apenas pela força de sua própria ira. Brunetti, com a força do olhar, fez com que ele parasse. “E o que eles esperam que eu faça lá? Eu não sou um criminoso.”

Brunetti cruzou os olhos com ele quando ele disse isso, mas não disse nada.

Benevento gritou contra o silêncio que irradiava daquele outro homem. “Eu não sou um criminoso. Eles não podem me mandar para lá. Eles não podem me punir. Eu nem sequer fui a julgamento. Eles não podem simplesmente me mandar para a prisão por causa do que disseram algumas garotas, sem um julgamento ou uma condenação.”

“O senhor não foi condenado por nada. O senhor foi designado para lá como capelão.”

“O quê? Capelão?”

“Sim. Para cuidar das almas dos pecadores.”

“Mas eles são homens perigosos”, disse Benevento, numa voz que lutava para se controlar.

“Justamente.”

“O quê?”

“Eles são homens. Não há meninas em Asinara.”

Benevento olhou em torno, desesperado, em busca de algum ouvido são que pudesse ouvir o que estava sendo feito a ele. “Mas eles não podem fazer isto. Eu protestarei. Eu vou até Roma.” Na última frase ele já estava gritando.

“O senhor terá que sair no primeiro dia do mês”, disse Brunetti com calma de ferro. “O patriarcado vai fornecer uma lancha e depois um carro, que o conduzirá até Civitavecchia e providenciará para que o senhor tome o barco semanal para a prisão. Antes disso, o senhor não deve deixar esta casa paroquial. Se o fizer, o senhor será preso.”

“Preso”, Benevento bufou. “E pelo quê?”

Brunetti não respondeu a essa pergunta. “O senhor tem dois dias para se aprontar.”

“E o que vai acontecer se eu decidir que não irei?”, Benevento perguntou em um tom em geral utilizado a partir de posições de elevada força moral. Brunetti deixou-o sem resposta, e então ele repetiu a pergunta. “O que acontecerá se eu não for?”.

“Então os pais daquelas três meninas vão receber cartas anônimas dizendo a eles onde o senhor se encontra. E o que tem feito.”

O choque de Benevento era evidente, assim como o seu medo, tão imediato e palpável que ele não pôde evitar perguntar. “E o que eles farão?”

“Se você tiver sorte, eles procurarão a polícia.”

“O que o senhor quer dizer, se eu tiver sorte?”

“Exatamente o que eu disse. Se você tiver sorte.” Brunetti permitiu que um longo silêncio se expandisse entre eles, e então disse: “Serafina Reato se enforcou no ano passado. Ela tentou por um ano encontrar alguém que acreditasse no que ela disse, mas não encontrou ninguém. Ela disse que fez isso porque ninguém acreditou nela. Agora eles acreditam.”

Os olhos de Benevento se arregalaram por um momento, e sua boca se contraiu em um pequeno e apertado círculo. O envelope e a carta caíram no chão, mas Benevento não percebeu.

“Quem é o senhor?”, ele perguntou.

“Você tem dois dias”, foi a resposta de Brunetti. Ele passou por cima dos dois pedaços de papel que jaziam esquecidos no chão e foi até a porta. Suas mãos doíam por terem sido mantidas fechadas em punho ao longo de seu corpo. Ele não se incomodou em olhar para trás, para Benevento, quando saiu. Nem bateu a porta.

Fora, Brunetti distanciou-se da casa paroquial e entrou em uma estreita calle, a primeira que o levaria direto até o Canal Grande. Ao chegar a seu fim, seu avanço bloqueado pela água, ele parou e fixou o olhar nos prédios do lado de lá. Um pouco à direita, o palazzo em que lorde Byron havia morado por um tempo, e, próximo a ele, aquele em que morara a primeira namorada de Brunetti. Barcos passaram, levando com eles o dia e seus pensamentos.

Ele não sentiu nenhum triunfo com essa vitória barata: se algo, apenas uma densa tristeza pelo homem e por sua existência miserável e alquebrada. Este padre tinha sido parado, pelo menos enquanto pudesse ser mantido na ilha graças às relações e ao poder do conde Orazio. Brunetti pensou no aviso que recebera do outro padre e nos relacionamentos e poderes que estavam por trás daquela ameaça.

De repente, em um mergulho que espirrou água nos sapatos de Brunetti, um par de gaivotas pousou bem a seus pés, disputando um pedaço de pão. Elas se engalfinharam, bico contra bico, puxando o pão, crocitando e gritando no processo. Então, uma delas engoliu o pão, e depois disso as duas se aquietaram e saíram flutuando tranquilamente pelas águas, lado a lado.

Ele ficou por ali ainda uns quinze minutos ou mais, até suas mãos relaxarem. Então colocou-as nos bolsos de sua jaqueta e, dando adeus às gaivotas, tomou o rumo da calle e de casa.

 

 

                                                   Donna Leon         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades