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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENTRE A PAIXÃO E O PERIGO / Patrícia Ryan
ENTRE A PAIXÃO E O PERIGO / Patrícia Ryan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Hugh de Wexford gosta de vinho, de mulheres e, acima de tudo, de sua liberdade. Traumatizado por uma criação desumana, ele jurou conquistar sua independência no mundo, livre de vínculos de qualquer tipo, especialmente os românticos...

Phillipa de Paris é culta, instruída e completamente desprovida de malícia, o que fica claro quando Hugh a envolve numa intriga chocante ao recrutá-la para uma perigosa missão de espionagem...

Para desmascarar o corrupto clérigo Aldous Ewing e salvar a Inglaterra de mais uma guerra civil, o corajoso guerreiro e a inocente intelectual embarcam numa perigosa empreitada como marido e mulher, tentando encontrar provas de que Ewing está envolvido numa trama de traição. Conseguirá Phillipa, com seu poder de sedução, convencer o traidor a fazer-lhe confidências? Ou as mentiras de Hugh e Phillipa serão descobertas? Será que a irresistível paixão que existe entre eles irá pôr a vida de ambos em perigo?

 

 

 

 

Junho de 1172, Oxford, Inglaterra

A igreja, iluminada com velas, estava lotada naquela noite. Estudantes, mestres e clérigos ouviam, aten­tos, o jovem orador que discorria sobre a correlação entre a razão e a fé.

— A mulher que você procura é aquela — sussurrou um rapaz, apontando para um dos bancos da última fileira.

— Qual delas? — perguntou Hugh de Wexford, oculto pelas sombras da nave, olhando na direção das moças. Eram as únicas em meio ao mar de homens trajados com vestes pretas e idênticas, em sua maioria com tonsura, alguns com solidéu clerical.

— A mais bonita, sem véu — informou o estudante, muito pobre a julgar pela capa preta e surrada e pela ansiedade com que esperava os dois pence prometidos por Hugh.

Sete mulheres ocupavam o banco em questão. Quatro usavam hábito negro e toucado, indicando que eram frei­ras. Duas vestiam trajes escuros e véu preto. Eram, pro­vavelmente, senhoras, que tiveram dos respectivos ma­ridos permissão para assistir à palestra promovida pela Oxford Studium Generale, uma associação independente de alunos e mestres. A organização ainda era nova, con­tudo, já famosa em toda a Europa por seus membros es­clarecidos: humanistas, estudiosos e sábios.

Restava a mulher sem véu.

— Aquela é Phillipa de Paris? — Hugh franziu a testa ao observar a moça.

Segundo lhe haviam informado, Phillipa tinha vinte e cinco anos; porém a moça delicada, de grandes olhos es­curos, parecia muito mais jovem. Na túnica azul simples mas elegante, e tendo os longos cabelos negros penteados em duas trancas caídas sobre o peito, parecia mais uma devota do que uma intelectual. Decididamente, Phillipa não correspondia à imagem que ele fazia de uma pensado-ra, ainda que aquele fosse seu primeiro encontro com esse tipo de pessoa. Apenas a pasta para documentos de couro trabalhado, presa ao cinto de Phillipa, era uma indicação de que ela se interessava por assuntos acadêmicos.

— Sim, é ela mesma — confirmou o estudante. — Ela assiste a quase todas as palestras sobre aritmética, geome­tria, e a todos os debates sobre lógica. Às vezes levanta-se do banco e faz seus apartes. Eu mesmo a vi apresentando seus pontos de vista e discutindo com outros participantes.

— É mesmo? — Hugh esfregou o queixo áspero, coberto pela barba de quase uma semana, intrigado. Esperava não apenas encontrar uma mulher mais velha, mas também uma sem graça. Talvez até masculinizada, dada sua imersão naquele universo acadêmico, domínio de homens.

Além disso, Phillipa desafiava as convenções, optando por levar uma vida independente. Mesmo em comunida­des de mente aberta como Oxford, era incomum encon­trar-se uma mulher, filha de um nobre, vivendo só, sem a orientação e a proteção do pai ou do marido.

Hugh suspirou, discreto. Aquela moça, tão pequenina e delicada, conseguira um feito extraordinário.

Ele não se sentia muito à vontade por ter sido enviado para falar com uma mulher como aquela. Mas fora en­carregado de uma tarefa e iria cumpri-la.

Os olhos do estudante brilharam ao reparar nos cabe­los crescidos de Hugh, na mochila velha de couro, presa nos ombros, e finalmente na adaga turca, curva e afiada que lhe pendia do cinto, cujo punho aparecia acima da bainha de prata ricamente trabalhada.

— Perdoe-me, mas que tipo de assunto o senhor tem a tratar com lady Phillipa? — indagou, curioso.

— Nenhum. — Com a mão esquerda, que era perfeita, Hugh tirou da bolsa dois pennies de prata e os entregou ao rapazinho.

— E que eu... Bem, não costumo ver pessoas como o senhor aqui em Oxford.

— Pois esta noite você também não viu. — Tirou mais duas moedas e pressionou-as na mão do rapaz como pa­gamento extra, lançando-lhe um olhar significativo.

O moço aquiesceu, nervoso, e guardou as moedas.

— Pode ir. — Hugh o dispensou e voltou a atenção para a mulher sentada no banco.

— Sim, senhor. Boa noite.

Hugh permaneceu no lugar mal iluminado onde se encontrava, até o jovem orador, que havia feito a palestra em latim, passar a discorrer em bom francês, anunciando o término de sua apresentação e convidando os interessa­dos para um disputatio no dia seguinte, na terceira hora canônica. Uma conversa sussurrada encheu a igreja de St. Mary quando os assistentes se levantaram e saíram para o ar fresco da noite.

Hugh escondeu-se atrás de uma coluna quando lady Phillipa passou por ele, prendendo sobre os ombros o manto cinzento e, ao mesmo tempo, conversando com dois rapazes sobre o que tinham ouvido.

— É, de fato, muito importante entender a natureza dos universais — dizia com sua voz de garota. — Se acei­tamos a posição nominalista de que os universais nada são além de um elemento no campo da lógica, e que di­zem respeito mais às palavras ou o modo como expressa­mos conceitos do que à verdade absoluta, o que significa que os assuntos da metafísica...

— Por Deus — Hugh murmurou, observando Phillipa sair da igreja.

Verdade absoluta era estar armado com uma espada e se ver face a face com um guerreiro gentio empunhando um kilij afiado como navalha. Era saber que ou você ou ele es­taria ferido ou morto antes mesmo de encher os pulmões.

Universais... Nominalismo... Metafísica. Palavras, pa­lavras, e mais palavras.

Hugh saiu da igreja atrás das últimas pessoas que ali estavam. Sentia a cabeça latejando só de ouvir aquelas tolices. Embora sua vida como soldado tivesse sido dura e brutal, agradecia a todos os santos por ter se livrado da contemplativa e monótona vida eclesiástica.

Entrando na Shidyerd Street, que além de estreita e suja era escura, devido às casas e lojas de telhado de pa­lha encobrindo os poucos raios de luar que conseguiam passar por entre as densas nuvens, Hugh seguiu na dire­ção sul com o olhar fixo em lady Phillipa e seus acompa­nhantes. Precisava ficar a sós com ela. E depressa, pois o ar estava úmido, indicando chuva.

Na esquina com a High Street, a via principal da cida­de murada de Oxford, Phillipa despediu-se dos amigos, dobrou à esquerda e eles, à direita. Hugh a seguiu a uma distância discreta, oculto pelas sombras. Além da pouca claridade da lua, apenas uma ou outra lanterna projeta­va sua fraca luz amarelada.

Para Hugh era estranho ver uma aristocrata andan­do desacompanhada pelas ruas da cidade àquela hora. Somente prostitutas tinham o hábito de vagar pelas ruas durante a noite. O que daria a Phillipa de Paris a ilu­são de invulnerabilidade? Sua arrogância intelectual ou simplesmente a falta de bom senso, tão comum entre as mulheres da alta sociedade?

Chegando a uma esquina, ela dobrou à direita e de­sapareceu de vista. Hugh esperou, impaciente, que um grupo de estudantes, com suas capas desalinhadas e às gargalhadas, passasse por ele. Não haviam assistido à palestra na igreja St. Mary; vinham da direção oposta e cheiravam a cerveja.

Ao ver o último dos rapazes pelas costas, Hugh correu pela High Street e parou na esquina que Phillipa havia contornado. Observou a ruazinha sinuosa, estreita, escu­ra como o inferno, onde havia apenas uma janela pobre­mente iluminada. Apressou o passo, mas continuou com seu andar furtivo até vê-la adentrar uma pequena loja, ainda aberta. Era uma livraria, como tantas que havia em Oxford. Na tabuleta de madeira sobre a porta esta­va escrito em latim: ALFRED DE LENNE, VENDITOR LIBRORUM.

Aproximando-se, Hugh espiou pela janela entreaberta. Havia dezenas de volumes, com capa de madeira e presos por correntes, sobre as pesadas mesas de leitura que atravancavam o pequeno espaço. Os mais valiosos, muitos encadernados em camurça, outros em tecido de linho bordado, ficavam expostos nas gaiolas de ferro en­costadas nas paredes do fundo.

Apesar da hora tardia, o proprietário, homem de expressão severa, testa franzida, papada e barriga tão grande que ficava comprimida na túnica verde, parecia feliz com o movimento. Cinco ou seis jovens estudantes e um homem mais velho, todos usando capas, folheavam, à luz das lanternas que pendiam do teto, os livros presos às mesas, para decidir qual deles iriam comprar ou alu­gar. Lady Phillipa, de costas para Hugh, olhava para os volumes de uma das gaiolas.

O corpulento proprietário aproximou-se dela com o molho de chaves pendurado no cinto.

— Boa noite, lady Phillipa.

— Boa noite, mestre Alfred.

— Gostaria de ver alguma coisa em particular, milady?

— Aquele ali: Rhetorica ad Herennium. — Ela indicou um pequeno volume com capa de camurça vermelha.

Mestre Alfred pegou uma das chaves e abriu a gaio­la. Nesse instante, Phillipa virou-se e olhou justamente para a janela através da qual Hugh a espiava.

Ele se abaixou e praguejou baixinho. Detestava ter de se esconder. Tinha sido treinado para enfrentar o perigo, manter-se firme e lutar; não para andar furtivamente, ocultando-se nas sombras como um felino farejando sua caça.

Entretanto, as ordens recebidas tinham sido bem cla­ras: ele deveria executar a missão em segredo, agir com o maior cuidado, evitando que pessoas erradas ficassem a par do ocorrido.

Após algum tempo, Hugh arriscou-se a espiar nova­mente. Os clientes continuavam folheando os livros pre­sos às mesas, o proprietário devolvia o pequeno volume vermelho ao seu lugar, na gaiola.

Mas, inferno!, onde estava Phillipa?

Hugh entrou impetuosamente na livraria e todos os presentes olharam para ele, surpresos. Mestre Alfred in­terrompeu o que estava fazendo e mediu o intruso da cabeça aos pés.

— Onde ela está? — Hugh indagou ao notar outras duas possíveis saídas além da porta da frente: uma era a escada lateral de acesso ao andar superior, a outra, a porta dos fundos.

— Escute aqui... — mestre Alfred começou, bloquean­do a porta dos fundos com seu corpanzil. — O que você pode querer com uma dama?

Desastrado!, Hugh pensou, recriminando-se. Um mi­nuto antes havia refletido sobre a necessidade de discri­ção, no entanto, invadira o lugar sem o menor cuidado, despertando suspeitas. Além disso, o proprietário e os outros homens que ali se encontravam poderiam discutir com ele, detendo-o e dando a lady Phillipa chance de se afastar ainda mais.

Em tempo, Hugh lembrou-se de que, nos últimos tem­pos, sua sobrevivência dependia mais de inteligência e astúcia do que de músculos. Infelizmente, ele não era bri­lhante nem esperto.

— A moça que estava aqui deixou cair uma coisa ao sair da igreja St. Mary, instantes atrás. Eu queria devolvê-la.

— O que ela deixou cair? — indagou mestre Alfred, claramente desconfiado.

Hugh tirou do ombro a mochila de couro, colocou-a sobre a mesa mais próxima, abriu-a e pegou um documento sela­do que ele carregava no meio de algumas peças de roupa.

— Isto; Creio que é uma carta. Há alguma coisa escri­ta aqui. — Franziu a testa ao olhar para o nome escrito a tinta na folha de pergaminho dobrada, como se não fosse capaz de decifrar os sinais.

O homem mais velho, que Hugh julgou ser um pro­fessor, aproximou-se, olhou para o pergaminho e disse a mestre Alfred:

— A carta está endereçada a lady Phillipa de Paris. Ele está dizendo a verdade. Deixe-o ir.

Mestre Alfred afastou-se da porta, sem esconder sua irritação, e deu um suspiro.

— Se é o senhor quem diz, professor...

Hugh agarrou a mochila, empurrou para o lado o cor­pulento mestre Alfred, abriu a porta e saiu da livraria. Viu-se em um pátio comum a vários prédios, cuja saída era um beco estreito entre duas casas de pedra que ti­nham a fachada voltada para a rua de cima. Levando a carta numa das mãos e a mochila na outra, seguiu de­pressa pelo beco. Parou, de repente. Tinha o pressenti­mento de que não estava sozinho. Não viu ninguém, não ouviu nada, entretanto continuava com aquela impres­são de que alguém o observava no escuro.

Olhou para trás. O que poderia causar aquela sensa­ção? Teria ouvido um sussurro? Percebido um movimen­to? A respiração de alguém?

— Quem está aí?

Seria ela? Ou um assaltante?

Pôs a carta sob o cinto e a mochila nas costas. Precisava ficar com as mãos livres.

— Apareça! Silêncio.

Não há ninguém aqui, concluiu. Mesmo assim, por precaução, levou a mão ao punho da ajambiya e continuou a andar, atento. Encontrou um vão, na parede de pedra, onde havia uma porta de madeira. Girou a maçaneta de latão, mas a porta estava trancada.

Notou alguma coisa movendo-se nas sombras: uma figura delicada, feminina. Usava manto com capuz e aca­bava de sair de outra porta, a pouca distância dali.

Era ela!

À medida que Phillipa corria, o som de seus passos tornava-se mais indistinto. Hugh não demorou a alcan­çá-la, agarrá-la pelos ombros e virá-la para que o enca­rasse. O capuz que a cobria escorregou-lhe da cabeça.

— Afaste-se! — O aço de uma lâmina brilhou na mão da moça. — Erga os braços!

— Pela cruz de Cristo, isso é uma adaga? — Ele esbo­çou um sorriso zombeteiro. — Você é pequena, mas tenho de admitir que é corajosa.

— Mãos para o alto! — Phillipa ordenou, o tremor na voz quase imperceptível. — Não hesitarei em usar isto.

— Está ciente de que terá de alcançar a minha garganta se quiser me machucar com essa coisa? — Inconseqüente, Hugh deu um passo na direção dela.

Ela se afastou, meio desajeitada, procurando manter entre eles a distância de um braço.

— Faça o que eu mandei!

Sua admirável ferocidade era causada pelo desespero. Phillipa sabia que se corresse, seria facilmente alcança­da por aquele homem. Portanto, tinha de ficar ali. Mas o que fazer para defender-se?

Hugh, que a observava, quase sentiu pena dela.

Cocou o queixo, encostou-se de modo indolente na pa­rede de pedra, tirou a rolha do odre de vinho que carre­gava e tomou um gole da bebida.

— É preciso ter muita força para enterrar uma adaga no peito de um homem ou mesmo na barriga. Especialmente se a faca tiver de atravessar algo semelhante a isto. — Bateu na pesada túnica de couro. — Não quero faltar com o respeito, milady, no entanto acho que você...

— Segure sua língua e erga os braços!

Como Hugh esperava, ela se moveu, ficando diante dele para observá-lo bem. Ele continuou falando.

— Por outro lado, é muito fácil abrir a garganta de um homem com uma arma dessas. Uma criança pode fazer isso, desde que saiba o que está fazendo. — Hugh fechou o odre com cuidado para o vinho não derramar. — O se­gredo é usar a lâmina no lugar certo.

Com um gesto rápido, desembainhou a ajambiya e avançou em Phillipa, obrigando-a a recuar contra a pa­rede de pedra.

— Não! — pediu ela, arquejante.

Ele manteve a lâmina larga e curva quase tocando o pescoço delicado. Phillipa arregalou os olhos diante do brilho letal do aço. Permaneceu imóvel e alerta, ainda segurando a adaga, embora com a mão trêmula. Bem que gostaria de usar sua arma na garganta daquele miserá­vel, mas nada podia fazer. Considerava-se corajosa, po­rém reconhecia que fora imprudente e que agora estava nas mãos do inimigo. Restava-lhe descobrir quem era ele e o que pretendia.

— Vejo que é uma novata: não entende nada de luta com facas e outras armas brancas — Hugh disse, seco. — Note a diferença entre a minha ajambiya e a sua adaga. Com essa adaga você pode me atacar durante horas e só me causará uns arranhões. Mas se eu puser o mínimo de força nesta lâmina, assim... — Abaixou a arma sobre o pescoço dela, tendo o cuidado de não cortá-la.

Sorriu consigo. A maioria dos homens submetidos a uma demonstração daquele tipo, gritaria e deixaria cair suas ar­mas. Lady Phillipa de Paris, no entanto, simplesmente fe­chou os olhos e apertou o punho da adaga ainda mais.

— O que você quer? Prata? — indagou, a voz baixa e tensa.

— Não quero prata nenhuma.

Os olhos dela agora estavam fixos em Hugh, e ele os admirou por um momento. Através deles, quase podia ver a intensidade com que seu cérebro trabalhava.

— Se não é dinheiro, o que você quer, então? Ele sorriu.

— O que pode querer um homem que mantém uma mulher presa num beco, à noite, ameaçando-a com uma arma?

— Tenho ligação com pessoas muito poderosas — Phillipa mencionou, depressa. — Meu pai é um impor­tante barão da Normandia. Se você me fizer algum mal, será caçado e morto.

De fato, o pai de Phillipa era o barão Guy de Beauvais, homem muito influente e renomado. Mas, na verdade, ela e sua irmã gêmea, Ada, eram filhas ilegítimas. A mãe de ambas não era a esposa de Guy, e sim uma costureira de Paris, com quem o barão mantivera um romance.

Guy sempre dera toda assistência a Phillipa e Ada. Amava-as incondicionalmente e as considerava como filhas legítimas, embora tivesse sido obrigado a deixá-las em Paris. Phillipa tinha razão. Se alguém molestasse uma das moças, certamente seria caçado e morto... Isso se Guy Beauvais não tivesse morrido de velhice quatro anos antes.

Lady Phillipa fitava Hugh nos olhos ao falar sobre lorde Guy. Embora estivesse mentindo, parecia em pleno controle de suas emoções.

— Não será uma morte agradável — ela prosseguiu.

— Os homens de meu pai irão torturá-lo e...

— Só está tentando encontrar um meio de livrar-se desta situação — Hugh observou, impressionado com sua frieza.

— Se fosse sensata e esperta, teria evitado tudo o que está acontecendo. Quando percebeu que estava sendo seguida, devia ter mudado o itinerário, enganando seu perseguidor. Foi um erro sair para um beco escuro e ermo como este.

Phillipa ergueu o queixo e seus olhos brilharam de indignação.

— Eu pretendia segui-lo para ver aonde você estava indo. Depois procuraria o xerife.

Hugh soltou uma risada.

— Você pretendia me seguir? Realmente, não sabe com quem está lidando, moça. Foi uma idiotice inventar esse joguinho do qual poderia sair muito machucada.

— Para justificar sua violência, você me acusa de ser a responsável por esta situação?

— Você provocou tudo isto, claro. Uma mulher não deve andar sozinha pelas ruas, à noite, como se fosse dona do mundo, convencida de que é inteligente e esper­ta demais para ser vítima de um biltre como eu.

— Ando sozinha, mas carrego uma arma.

— Essa faquinha? — Hugh questionou com menos­prezo.— Se conta com essa arma para se proteger, só pode estar ficando louca.

— Esta adaga me protegeu no passado e tingiu-se de sangue! Não pense que tenho medo de usá-la. Não esteja tão certo de que me derrotou. Posso ser pequena, mas sou ágil, rápida e não hesitarei em cortar qualquer parte do seu corpo.

— Ah, isso não vai acontecer. — Hugh torceu a mão de Phillipa, que gemeu, furiosa, e deixou cair a adaga. — Amo todas as partes do meu corpo e não quero perder nenhuma delas — completou, chutando a arma para lon­ge. — Basta o que eu já perdi.

Com os olhos já acostumados ao escuro, ele pôde ver Phillipa mais claramente. Soube, pelo rápido movimento de seu peito, que ela finalmente compreendia a inutilida­de da situação.

Ótimo.

— A adaga serviu somente para torná-la mais vulnerá­vel, pois lhe deu a falsa sensação de estar protegida. Como você já percebeu, mesmo que eu estivesse desarmado, poderia derrotá-la. — Hugh deu um passo à frente, apoiou a mão esquerda na parede e, com a direita, manteve a ajambiya bem perto do pescoço dela. Phillipa se encolheu, a expressão grave. — Tendo duas vezes o seu tamanho, sou muito, muito mais forte do que você e estou determinado a conseguir o que quero.

Embora estivesse tremendo da cabeça aos pés, ela manteve os olhos fixos nele.

— Você cometeu um grave erro. — Hugh inclinou-se, ficando ainda mais perto, a sua voz baixa adquiriu um tom íntimo e ameaçador. — Uma moça bonita como você deveria saber que é perigoso ficar a sós com um tipo como eu num beco escuro, isolado, sem ter como se defender e sem ninguém para ajudá-la... Ninguém irá ouvi-la se você gritar. Você está inteiramente nas minhas mãos.

Por um momento, Hugh admirou os olhos escuros de Phillipa, a pele clara e sedosa, a boca rosada, de contornos tão perfeitos que pareciam ter sido pintados a mão. Mudou a posição da ajambiya e foi descendo a lâmina pelo pescoço delicado como numa carícia. Com a ponta da lâmina em­purrou para trás o manto que ela usava. Phillipa prendeu a respiração e fechou os olhos. Hugh a observou ali, encos­tada na parede, os braços rígidos ao lado do corpo. Ela era realmente uma coisinha delicada, de ossatura frágil, seios pequenos, altos e firmes. O cinto de contas evidenciava a cintura minúscula e, sob o franzido da túnica, ele percebia as curvas femininas dos quadris.

Voltou o olhar para o rosto de Phillipa e notou que ela o fitava com desprezo, além de surpreendente calma e indiferença.

— Acabe logo com isto — falou por entre os dentes.

Hugh afastou-se da parede.

— Simples assim?

— Você venceu — volveu ela, demonstrando notável serenidade apesar de tudo. — Reconheço que não sairei daqui ilesa. Mesmo assim, quero sair daqui. Não vou lu­tar, portanto, afaste essa faca da minha garganta, faça o que pretende fazer e acabe logo com isto.

— Certamente. — Hugh deu uma risada de triunfo e guardou a ajambiya na bainha. — Como você é gentil e compreensiva.

Mantenha-se calma e pense bem no que vai fazer. O pânico é seu pior inimigo.

Phillipa fechou os olhos e respirou fundo. Tinha de encontrar um meio de confundir aquele bastardo e fu­gir. Acreditava que o miserável não pretendia cortar-lhe a garganta e sim violentá-la; porém empregaria todos os esforços para evitar qualquer um desses destinos. Já conseguira convencer o ordinário de que fora derrotada, e ele baixara a guarda. Sabendo que aquela adaga es­tranha estava bem guardada na bainha, Phillipa pensou que teria alguma chance de escapar se agisse depressa, com firmeza e coragem.

— Abra os olhos... — disse Hugh. — Quero que você veja isto.

Ela o atendeu. No entanto ergueu os braços, com as mãos unidas e os dedos entrelaçados, e baixou os punhos sobre o nariz dele.

Hugh virou a cabeça para o lado, recebendo o golpe no rosto.

— Maldição! — A incredulidade de Hugh tornou-se um gemido de dor quando ele recebeu o segundo golpe.

Desta vez Phillipa acertou o alvo. Usou tanta força que o impacto causou-lhe violento choque no braço.

Hugh caiu sentado e soltou o que segurava. Phillipa calcou o salto da sandália sobre seu pé, porém ele nada sentiu sob a pesada bota. Desesperada, deu-lhe um chute na garganta. Ele caiu para trás.

Phillipa arregaçou as saias e saiu correndo pelo beco, mas, com algumas passadas, Hugh a agarrou e ambos rolaram no chão, ficando ele deitado de costas e ela, por cima. Soltando um braço com um gemido, ela segurou a mão direita dele e ia torcer-lhe o polegar para trás... Contudo não encontrou polegar nenhum.

Aproveitando-se de sua momentânea distração, Hugh a pôs de bruços, imobilizando-a com o peso do corpo.

— Fique quieta, para seu próprio bem! — ordenou, pois Phillipa dava-lhe chutes, ou pelo menos tentava, para se libertar.

Vendo que seus esforços eram inúteis, ela proferiu uma blasfêmia. Na verdade, era a primeira vez que tal palavra passava por seus lábios.

Hugh caiu na risada e o som gutural ressoou nos ou­vidos dela.

— Que vergonha, lady Phillipa. Não posso acreditar que o bom cônego Lotulf a tenha ensinado a praguejar como um estivador.

Phillipa ficou imóvel. O homem não apenas a chamava pelo nome; como sabia a respeito do cônego Lotulf, o tio que ela amava! Lotulf a havia criado, junto com sua irmã Ada, perto do claustro da catedral de Notre-Dame, em Paris. Em Oxford tudo o que costumavam saber sobre ela era que havia começado seus estudos na Universidade de Paris antes de se mudar para ali, sete anos antes. Revelar que tinha sido criada em Paris e não em Beauvais, a pro­priedade do pai, suscitaria incômodas perguntas. De qual­quer modo, apenas na infância se referiam a ela como a brilhante filha bastarda de Guy de Beauvais.

— Como sabe quem eu sou? Qual a razão de tudo isto? — exigiu, perplexa.

— Talvez isto ajude a esclarecer alguma coisa. — Hugh rolou para o lado, pegou a carta que deixara cair e a entregou a Phillipa, para depois se levantar. — Está endereçada a você. Foi enviada por Richard de Luci.

— O magistrado do rei? — Phillipa sentou-se e olhou para o documento, tentando em vão reconhecer a letra ou a imagem no selo enorme.

— Ele mesmo.

Hugh ofereceu a mão para ajudá-la a se levantar, mas ela fez pouco do gesto e ergueu-se sozinha. Não iria aceitar a ajuda de um homem que minutos antes encos­tara uma faca em sua garganta e ameaçara sua virtude. Talvez a ameaça ainda existisse, pensou, tensa. Como saber se aquele estranho não estava querendo se diver­tir com ela?

De qualquer modo, tentar correr seria tolice. O melhor a fazer era chegar ao fim daquele mistério.

Uma vez de pé, sacudiu a túnica e o manto para tirar o excesso de pó.

— Não acredito que esta carta tenha sido enviada por Richard de Luci. Nunca vi esse homem e ele não faz idéia de quem eu seja.

— Você subestima seu valor — ele observou com uma nota divertida na voz.

Tinha uma voz profunda, meio rouca, Phillipa notou. E com algo indicando que, apesar dos trajes e da conduta, ele era de origem nobre.

Ele abriu novamente o odre com o vinho e o ofereceu.

— Aceita?

Ignorando-o, Phillipa passou a mão pelo pergaminho.

— O que Richard de Luci pode querer comigo? Lorde Richard, magistrado do Reino, era também o principal ministro do rei Henrique II e regente de facto durante as freqüentes viagens de Sua Majestade.

— Tenho uma vaga idéia, mas não estou a par de de­talhes — Hugh respondeu. — Pode ser que lorde Richard explique tudo nessa carta, o que eu duvido. Mais prova­velmente você terá de esperar até sua audiência com ele, em Westminster.

Phillipa olhou para Hugh, muito surpresa.

— Não tenho audiência nenhuma em...

— Tem. Sua Excelência a espera na quinta-feira pela manhã, em seu gabinete, no palácio real.

— Quinta-feira? Mas faltam apenas dois dias... Não será possível. Westminster fica na periferia de Londres, a uns oitenta quilômetros daqui.

— Quase cem, provavelmente. Se partirmos amanha cedo, e se o tempo estiver bom, conseguiremos fazer a viagem em dois dias. Passaremos a primeira noite em um mosteiro. Há muitos pelo caminho. Na noite seguinte poderemos nos hospedar na casa de minha irmã.

— Teremos de viajar juntos e nos hospedar no mesmo lugar? Ora, isso é ultrajante!

— Lorde Richard precisa falar com você o quanto an­tes. — Hugh olhou para o céu. — Vai chover. Temos de procurar abrigo onde haja claridade, assim você poderá ler a carta para saber o que ele...

— Não quero saber de nada. Será que lorde Richard espera realmente que eu abandone tudo para fazer essa viagem com... Afinal, quem é você?

— Hugh de Wexford, a seu dispor, milady. — Ele se cur­vou, e Phillipa teve a nítida sensação de que zombava dela.

Em seguida, ele se endireitou, afastou da testa uma mecha de cabelo e tomou mais um gole de vinho. Hugh de Wexford era alto, de pernas e braços longos, ombros largos e retos. Magro porém forte, com músculos bem de­finidos. Seu nome não lhe era estranho. Phillipa certa­mente se lembraria de ter alguma vez encontrado aquele homem insuportável.

— Já nos vimos antes? — perguntou, intrigada.

— Não. Mas temos um conhecido comum. Graeham de Eastingham é meu cunhado.

— Graeham de... Você se refere a Graeham Fox?

— Sim. Graeham tornou-se lorde de Eastingham. Ele se casou com minha irmã. Estaremos com eles na quar­ta-feira à noite. Eastingham fica a Leste de Londres, e um pouco fora do nosso caminho, mas acho que teremos mais conforto lá do que numa hospedaria ou num mos­teiro. Além disso, Graeham está ansioso para revê-la.

No passado, Graeham Fox, o vassalo de maior confian­ça do pai de Phillipa, tinha sido prometido a ela em casa­mento quando eles ainda nem se conheciam. Entretanto, Graeham apaixonara-se por Joanna, uma jovem inglesa com quem acabara se casando.

Phillipa bufou, discreta. Então Joanna era a irmã de Hugh de Wexford.

O rompimento nem a deixara aborrecida, na época, pois só concordara com o compromisso por conta da vasta propriedade em Oxfordshire, que seu pai acabara transfe­rindo a ela por escritura, tão logo o noivado fora desfeito.

O último trabalho prestado por Graeham a lorde Guy foi acompanhá-la na viagem de Paris à Inglaterra, para deixá-la em segurança em Oxford. Durante aquelas se­manas ela pôde conhecer bem Graeham Fox, passando a gostar dele e a admirá-lo.

— Agora me lembro de Graeham ter falado sobre você — comentou Phillipa. — Ele me contou que você traba­lhava para uma princesa em troca de ouro. Disse também que era mestre no manejo da espada e que exigia alto pre­ço por seus serviços. A meu ver, devia ser um mercenário.

— Não sou mais o espadachim de outrora — ironizou Hugh com uma nota de amargura na voz.

Phillipa tentou ver a mão direita dele para certificar-se de que ele perdera mesmo o polegar, mas estava escuro.

— Então agora você trabalha para lorde Richard. É oficial de justiça ou algo assim?

— Digamos que eu seja algo que se esconde nas som­bras e causa arrepios.

— Deve ser um espião.

— Lorde Richard se refere a mim como agente da Coroa. Minhas funções são variadas, em geral de caráter investigativo, porém toda tarefa que exija passos silen­ciosos e uma lâmina afiada é a mim atribuída.

— Suas tarefas incluem abordar mulheres inocentes em becos escuros?

— Fugir para este beco foi idéia sua. Aliás, péssima idéia. — Hugh deu um passo na direção dela e Phillipa se encolheu. — Você acabou ficando presa neste lugar de­serto, escuro, com um homem armado e muito mais forte do que você.

— Eu também estava armada. Corri para cá porque sabia que era um bom esconderijo.

— Ninguém consegue fugir de um tipo como eu. Tampouco se esconder. Sua intuição devia ter-lhe dito isso, mas você preferiu ignorar o instinto e seguir o cérebro bri­lhante que lhe assegurava que isto... — ele pegou a adaga que estava no chão e a ergueu — iria protegê-la.

Phillipa sentiu o rosto queimar e ficou aliviada por estar escuro.

— Como uma arma destas poderia protegê-la se você nem sequer pensou em usá-la na minha garganta? — Hugh continuou. — Outro erro seu foi permitir que eu a encostasse à parede, deixando-a sem saída. Foi muito fácil desarmá-la.

— Mas eu também pude desarmá-lo.

— É verdade. — Ele balançou a cabeça, demonstrando que concordava com ela. — Você não foi totalmente inábil. Cometeu alguns erros por falta de experiência.

— Você estava apenas me testando! Tentou me aterro­rizar deliberadamente para saber como eu reagiria.

— Segundo a orientação de lorde Richard, eu precisa­va, de alguma forma, avaliar sua potencialidade, sua for­ça e seus pontos fracos para saber se você teria condições de realizar esse tipo de trabalho.

— Que trabalho? O que você...

— Eu estava mesmo testando seu autocontrole, seu vigor, e tentando descobrir de que estofo você é feita. — Hugh virou a adaga nas mãos e admirou o punho rica­mente incrustado com pedras preciosas. — Você cometeu erros, naturalmente, no entanto não sucumbiu ao pânico, o que é muito importante. Manter a cabeça fria represen­ta vencer metade da batalha. Você conseguiu me surpre­ender e me obrigou a largar minha arma. Também pare­ce ter grande capacidade de análise, embora confie mais no cérebro do que na intuição. Em resumo, você pode ser treinada. Talvez lorde Richard não esteja completamente louco em querer recrutá-la, lady Phillipa.

— Recrutar-me para quê? Ele não pode estar pensan­do em me transformar em uma espiã!

— "Espiã" é uma palavra patética e simplista. Entretanto, parece-me que lorde Richard está pensando em treiná-la para realizar um serviço dessa natureza em favor da Coroa. Convém que você leia a carta antes de me crivar de perguntas. — Com certa impaciência, Hugh perguntou: — Não há aqui por perto algum lugar ilumi­nado aonde possamos ir, sem ser a livraria? Talvez um pub, onde possamos nos sentar e conversar.

Havia a estalagem Red Bull, logo depois da esquina, mas Phillipa hesitou. Não queria ir a nenhum lugar com aquele homem. Não fazia muito tempo ele encostara uma lâmina em sua garganta.

Bem, ele havia afirmado que a estava testando para certo tipo de trabalho, o que a deixara menos desconfia­da. E havia o fato de ele ser cunhado de Graeham Fox.

Contudo, Hugh era um desconhecido, parecia perigoso e podia não estar dizendo a verdade.

— Quero ficar com a minha adaga, se não se importa — pediu Phillipa, estendendo a mão.

— É melhor eu não devolvê-la. Uma arma a deixará exposta a riscos.

— Essa adaga foi um presente de meu tio Lotulf! Se você ficar com ela estará cometendo um furto.

— Se a minha companhia já a faz sentir-se mais se­gura... — Hugh devolveu a arma e Phillipa a guardou na bainha presa ao cinto. Sorrindo, ele desatou da cintura a ajambiya com a bainha e entregou tudo a ela. — Fique também com isto para redobrar sua falsa sensação de segurança.

Após um instante de hesitação, Phillipa aceitou a pe­sada arma. Admirou o estojo curvo, todo trabalhado em prata, e prendeu-o na cintura, desajeitada.

— Começou a chover — Hugh anunciou com um suspiro.

Phillipa sentiu os pingos no rosto e puxou o capuz so­bre a cabeça. Trovões ribombavam, e o céu não tardou a se abrir. A chuva pesada logo encharcou os telhados de palha das casas ao redor deles.

Rapidamente, Phillipa guardou a carta na pasta de documentos onde estavam cópias, já gastas pelo uso, de Lógica Nova e Lógica Vetus, de Aristóteles. Ao erguer a cabeça, viu Hugh bem perto dela. Nesse instante, um re­lâmpago cortou o céu, iluminando o rosto dele, eviden­ciando a testa larga, as maçãs do rosto bem cinzeladas, a covinha no queixo escurecido pela barba. Seu olhar pa­recia quase gentil, e isso tornou mais fácil para Phillipa aceitar a mão que ele lhe ofereceu.

— Aonde vamos? — ele gritou devido ao barulho da chuva, dos raios e trovões.

— Por ali. Conheço um bom lugar.

De mãos dadas, eles saíram correndo do beco, atraves­saram a rua e dobraram a esquina. As passadas de Hugh eram largas, e Phillipa não conseguia acompanhá-las, por isso era praticamente arrastada por ele.

Quando entraram na estalagem Red Bull, ela estava tremendo e molhada até os ossos.

— A taberna fica lá embaixo.

Desceram uma escada iluminada com tochas e che­garam a um porão com teto formando arcos, onde havia longas mesas e bancos.

Sentados à mesa maior estavam doze estudantes uni­versitários. Um deles recitava versos obscenos que, ul­timamente, corriam pela cidade. Ocupavam outra mesa dois cidadãos, os quais conversavam em voz baixa. As outras mesas estavam vazias. Apenas a proprietária, a gorducha e corada Altheda, servia os clientes.

— A chuva a surpreendeu, milady? — indagou a mu­lher. Pendurou o manto de Phillipa num cabide fixo na parede e levou o casal a uma mesa de canto. — Não de­via ficar molhada desse jeito. Pode pegar uma doença do peito. Você é tão inteligente... Devia deixar de lado esses assuntos intelectuais e ficar em casa quando estivesse ameaçando chuva.

— Que bom encontrar alguém com bom senso nesta cidade cheia de filósofos e grandes pensadores — Hugh dirigiu a Altheda um sorriso. — Gosto de mulheres previdentes.

Altheda enrubesceu.

Phillipa observou o comportamento de seu acom­panhante, divertida. Hugh de Wexford era do tipo que encantava muito facilmente as mulheres. Ao que tudo indicava, elas gostavam de homens altos, fortes, com ca­belos desarranjados e sorriso sedutor... Mas ela não se sentia atraída por nada disso. Admirava homens com cérebro, que pensassem e fossem cultos e sábios. Uma criatura como Hugh de Wexford certamente dava mais valor aos músculos do que ao intelecto.

Sentando-se à frente de Phillipa, Hugh pediu uma jarra de clarete, que Altheda trouxe para a mesa imedia­tamente com dois copos e um lampião. Depois, que Deus a abençoasse, colocou no piso de pedra um vaso de ferro com brasas para aquecer os pés de Phillipa.

— A proprietária a conhece bem. Pelo visto você fre­qüenta este lugar — Hugh observou, enchendo os copos de vinho. — Nunca imaginei que uma dama de categoria pusesse os pés num estabelecimento como este; muito menos que viesse aqui regularmente.

— Há muitos debates nas cervejarias e tabernas de Oxford — Phillipa esclareceu. — Acontecia o mesmo em Paris. Logo entendi que eu precisava freqüentar esses am­bientes se quisesse participar das trocas de idéias acalora­das que tornam a vida na universidade tão emocionante.

— Você acha Oxford emocionante?

O tom de Hugh e seu sorriso zombeteiro irritaram Phillipa.

— Oxford pode não ser excitante para alguém que gos­ta de ficar à espreita em vielas escuras para aterrorizar mulheres inocentes... Mas para mim é uma cidade ótima.

Hugh riu e tomou o vinho. Ficou observando Phillipa por cima da borda do copo, parecendo divertir-se imensamente. Um tanto constrangida, ela desviou o olhar e notou algo brilhando no lóbulo da orelha direita dele. Um brinco?!

Sim, e um brinco muito curioso: uma pequena argola de ouro com um desenho gravado que parecia um sím­bolo pagão. Soltou o ar, perplexa. Nunca tinha visto um homem do seu meio usando brinco. Apenas em Paris, e uma vez em Oxford, vira homens de pele escura com tra­jes exóticos, usando brincos semelhantes àquele.

Quando ele abaixou o copo, Phillipa notou o calombo vermelho em seu nariz.

— Eu fiz isso? — perguntou, assustada. — Oh, eu sin­to muito por dar-lhe aquele golpe, eu...

— Não precisa se desculpar. Uma das poucas coisas sensatas que você fez, quando estávamos naquele beco, foi me golpear daquele jeito.

— Está quebrado?

— Está. Mas não pense que tem um soco formidável... Foi Graeham Fox quem quebrou meu nariz seis ou sete anos atrás. Fiquei assim, porém ele também levou uma boa surra.

— Por que vocês brigaram? Pensei que fossem amigos. — Phillipa tomou um pouco do clareie e notou que Altheda não havia colocado tanta água no vinho como de costume.

— Somos amigos. Tivemos apenas um pequeno desen­tendimento por causa de minha irmã e decidimos escla­recer tudo.

— Esclarecer tudo lutando? Não podiam conversar como duas pessoas racionais?

Hugh arqueou as sobrancelhas.

— Você não sabe muita coisa sobre os homens, não é mesmo?

Indignada pelo ar condescendente dele, Phillipa replicou:

— Pelo contrário. Tenho vivido, desde criança, cerca­da de intelectuais, clérigos e pessoas brilhantes. Quase todos são homens.

— Eunucos em sua maioria. Eles sabem menos sobre masculinidade do que você.

—Acha que para um homem provar sua masculinida­de deve esmurrar outro?

— Se esse homem ferir minha irmã ou alguém que eu ame, ou se ele representar uma ameaça ao meu patrimô­nio, sim. Faria isso sem a menor hesitação.

— Também se dispõe a lutar se lhe pagarem um bom preço? — Phillipa perguntou acidamente.

Em vez de responder, ele tomou devagar mais um gole do vinho, fitando-a por sobre a borda do copo. Mas, dessa vez, estava bem sério.

— Você não acha que deve ler a carta de lorde Richard?

Ah, a carta...

Abrindo a pasta de documentos, Phillipa pegou o pergaminho e olhou com atenção o grande selo, onde es­tava impressa uma figura que ela deduziu ser a do rei Henrique II. Sua Majestade estava sentada no trono, ti­nha os braços estendidos e segurava um objeto em cada mão. A um canto estava escrito a tinta: "Lady Phillipa de Paris, Oxford".

Phillipa quebrou o selo, puxou as fitas e desenrolou a grossa folha.

Hugh apoiou os cotovelos na mesa e continuou apre­ciando seu vinho enquanto observava Phillipa ler a carta escrita por lorde Richard. Estava curioso para ver a reação dela quando soubesse por que o ministro do rei havia se interessado por ela, e o que ele pretendia que ela fizesse.

Phillipa estava concentrada na leitura. Tinha as so­brancelhas quase unidas, com uma pequenina ruga no meio. Parecia muito séria e absorta: um contraste com suas feições delicadas e aquele ar de garota empres­tado pelas trancas. Hugh admirou os cabelos negros e brilhantes, repartidos ao meio com precisão e graciosa­mente trançados. Prendeu-lhe a atenção a mecha rebel­de, molhada pela chuva, caída do lado da testa como um encantador arabesco.

Phillipa ergueu a cabeça e, notando que ele tinha o olhar fixo nela, empurrou para trás a caprichosa mecha, incomodada.

— É verdade... — começou a dizer, demonstrando seu espanto. — Lorde Richard quer atribuir-me uma missão de espionagem.

Hugh sorriu. Apesar da fria intelectualidade, lady Phillipa tinha olhos de criança. Sem dúvida ela se julga­va sábia, mas as pessoas com muito estudo costumavam confundir conhecimento teórico com experiência de vida.

E experiência ela, certamente, não tinha. Havia nela um ar de cordeirinho inocente, resultado, sem dúvida, de ter vivido sempre protegida e em contato com pessoas dos meios universitários. Por mais estudos que tivesse, não sabia quase nada do que era realmente importante.

Na opinião de Hugh, era perigoso para uma pessoa com essa formação participar de uma missão secreta para a Coroa. Não cabia a ele questionar os critérios e decisões de seu superior imediato, o qual, como ministro do rei e regente, era o segundo homem mais importante da Inglaterra. Para ele era sempre desagradável subme­ter-se à autoridade de outros. No entanto, os quinze anos como soldado o haviam ensinado a acatar ordens. Até mesmo comandos dados por pessoas cujo bom senso ele questionava.

— Está a par desse plano de lorde Richard? O que ele quer que eu faça? — Phillipa indagou.

Hugh tomou outro gole do clarete doce demais.

— O que ele escreveu nessa carta?

— Pouca coisa. Diz que ficará muito agradecido se eu for com você a Westminster para uma audiência com ele. Acrescentou que se trata de assunto sigiloso, urgente e de grande importância para o Reino. Mas isso você já me tinha dito.

Hugh respirou fundo. Então ele teria de adiantar al­guma coisa sobre a missão.

— Lorde Richard não pode me obrigar a ir com você a Westminster — ela prosseguiu, exasperada. — Ele mes­mo reconhece isso na carta. Francamente, não me agra­da deixar meus compromissos, minha casa e fazer essa viagem de dois dias com...

Phillipa baixou os olhos. Compreendendo o motivo da hesitação dela, Hugh completou:

— Com um tipo como eu.

— Exatamente. — Ela o encarou. — Lorde Richard imaginou como eu iria reagir ao ler a carta. Por isso es­creveu muito sobre você.

— Sobre mim?

— Escreveu sobre a sua experiência e seu caráter. Naturalmente, ele quis me tranqüilizar, uma vez que, na Carta, ele pede para eu fazer essa viagem na companhia de um completo estranho. Ora, Hugh, você não espera que eu fique radiante ao receber uma notícia dessas. E detestável a simples idéia de ficar aos seus cuidados du­rante dois dias e duas noites.

E por mais algum tempo depois disso, Hugh completou em pensamento, certo de que ambos iriam trabalhar juntos.

Entretanto, decidiu não tocar nesse assunto. Phillipa iria descobrir tudo quando tivesse a audiência com lorde Richard e aceitasse a missão.

— O que Sua Excelência escreveu sobre mim? Phillipa dirigiu-lhe um olhar hostil.

— Nada que possa apagar a péssima impressão que você causou ao colocar aquela faca na minha garganta e ameaçar violentar-me.

Hugh deu um suspiro exasperado.

— Já falamos sobre isso. Eu estava apenas...

— Testando meu sangue-frio. Meu autocontrole. — Ela ergueu o copo e tomou um pouco do vinho, os olhos fixos nele. — Como você acha que lorde Richard reagiria se soubesse que seu comportamento desmentiu todas a coisas admiráveis que ele escreveu a seu respeito?

Não reagiria bem. Hugh forçou um sorriso e perguntou:

— Que coisas admiráveis ele escreveu a meu respeito? Consultando a carta, Phillipa respondeu:

— Está escrito que você é o filho mais velho de William de Wexford, pertencente a uma das famílias mais nobres da Inglaterra. Seu pai o educou para ser o maior... — Phillipa olhou para Hugh com ar de dúvida — ...o maior cavaleiro do mundo cristão?

Hugh terminou de beber o vinho e, com um gesto dis­plicente, pegou a jarra e encheu o copo.

— Meu pai fracassou.

Phillipa reparou nos cabelos crescidos, no brinco de ouro e na túnica suja de couro.

— Lorde Richard parece ter a maior estima e consi­deração por você. Vejamos... — Procurou um trecho na carta. — Aqui está. Ouça o que ele escreveu: "Aos doze anos, Hugh de Wexford era famoso por sua extraordiná­ria habilidade com a espada. Aos dezoito, foi consagrado cavaleiro e passou quinze anos lutando no exterior como estipendiário, tornando-se uma lenda".

Automaticamente, Hugh apertou o copo como se esti­vesse segurando o punho de ouro e prata da espada que ele não mais carregava consigo.

Phillipa continuou lendo o trecho da carta.

— "Sir Hugh de Wexford trabalha para mim há dois anos, tendo sido recomendado por Richard de Clare, lor­de de Chepstow e conde de Pembroke, mais conhecido como Richard Strongbow. Durante a tomada de Dublin, na Irlanda, Hugh foi ferido e viu-se obrigado a deixar de lutar com a espada. Strongbow, entretanto, achou que um homem de caráter e coragem como ele seria de valor inestimável trabalhando para a Coroa."

Enquanto dobrava a carta e a guardava na pasta de documentos, Phillipa olhou discretamente para a mão mutilada do homem à sua frente.

— Imaginei que você trabalhasse apenas para reis es­trangeiros — comentou.

— Minha espada estava a serviço de quem me prome­tesse mais ouro. Três anos atrás lutei para Strongbow. Ele estava determinado a recolocar no poder o rei de Leinster, Dermot, que tinha sido exilado, casar-se com a filha dele e herdar suas terras. Com a minha ajuda e a de muitos outros soldados pagos, Strongbow conseguiu o que queria. No fim, viu-se obrigado a entregar ao rei Henrique suas novas terras, que eram um belo pedaço da Irlanda, e tornar-se seu vassalo. Eu sabia de antemão que isso iria acontecer.

— Mas você também tinha certeza de que ficaria com a bolsa cheia de ouro e era isso que importava, não é mesmo?

Hugh teria ficado ofendido ao notar o tom de desprezo na voz de Phillipa, porém tinha de admitir que ela disse­ra a verdade pura e simples.

— Um dia, quando você tiver mais experiência, talvez possamos conversar — observou calmamente. — No mo­mento não estou com paciência para esse tipo de assunto.

Phillipa sustentou o olhar no dele, depois bebeu um pouco do vinho e retomou a conversa.

— Por que se tornou um mercenário? Quem lhe conce­deu a dignidade de cavaleiro? Foi seu pai?

— Sim. Eu jurei fidelidade a ele. Assim, fui obrigado a permanecer em Wexford, sob suas ordens, até terminar o que ele chamava de "treinamento para tornar-me um perfeito cavaleiro". — Hugh levou o copo à boca. — Você faz muitas perguntas.

— Esse é um defeito de todo estudioso. — Ela apoiou os braços na mesa e inclinou-se para a frente. — Quer dizer que se tornou um estipendiário, mesmo prometendo conti­nuar na casa de seu pai e devendo servi-lo e obedecê-lo?

— Um dia depois de ter sido nomeado cavaleiro, dei­xei Wexford para sempre.

— Está dizendo que cortou de vez os laços com sua família?

— Só com meu pai. Minha irmã Joanna estava em Londres, na ocasião. Se ela estivesse em casa, eu não te­ria partido. Minha mãe morreu logo após o nascimento de Joanna.

— Mas você não é o herdeiro de Wexford? O que vai ser de sua herança?

— Meu pai não é o dono direto de Wexford. Tem a con­cessão das terras. Se meu pai morrer, talvez eu não ocupe o lugar dele.

— Bem, como cavaleiro você jurou fidelidade a...

— Há um momento em que um homem tem de decidir entre viver de acordo com o que os outros esperam dele ou ser seu próprio mestre, ainda que isso exija sacrifícios. Não é certo tirar de um homem a liberdade, o direito de fazer suas escolhas. Tenho certeza de que entende o que estou dizendo, milady, pois traçou seu próprio caminho na vida. Aliás, um caminho incomum.

— Compreendo perfeitamente — Phillipa respondeu suavemente, os grandes olhos castanhos refletindo a cha­ma dançante da lâmpada de azeite.

Fez-se entre eles um silêncio pesado, interrompido pouco depois, quando um grupo de estudantes entrou lia taberna. Riam, pediam vinho, embora muitos deles demonstrassem ter bebido além do limite em algum ou­tro lugar. Eles ocuparam uma das mesas, na qual come­çaram a bater os punhos querendo, evidentemente, que Altheda viesse logo atendê-los.

Erguendo bem a voz para Hugh poder ouvi-la, Phillipa disse:

— Lamento, mas não posso ir com você a Westminster, sir Hugh. Por favor, diga a lorde Richard que agradeço a demonstração de confiança, no entanto não será possível atender ao pedido.

— Não vamos discutir este assunto aqui — ele disse, olhando rapidamente para a mesa dos estudantes baru­lhentos e bêbados. — Se não estiver mais chovendo, po­deremos conversar lá fora, onde ninguém nos ouvirá.

— Não está chovendo, mas eu já disse tudo o que ti­nha a dizer. Tomei a minha decisão e não volto atrás.

— Como sabe que não está chovendo se aqui não há janelas, e as paredes são grossas?

— As capas dos rapazes estão secas.

Hugh sorriu, reconhecendo que Phillipa era observadora e rápida de raciocínio. Ergueu-se do banco, tirou da bolsa algumas moedas e deixou-as sobre a mesa.

— Você mora na Kibald Street, não é mesmo? Ela se pôs de pé, mal-humorada.

— O que mais sabe sobre mim?

— Muito mais do que você gostaria que eu soubesse. Espere só para ouvir tudo o que tenho para lhe dizer, ele pensou consigo.

Tirou o manto de Phillipa do cabide, ajudou-a a co­locá-lo e alisou a lã úmida para ajeitar as dobras sobre os ombros dela, sentindo-os delicados, quase frágeis sob suas mãos.

— Se está pensando que vou permitir que você entre no meu apartamento... — ela começou, tensa.

— A minha intenção é apenas levá-la para casa — ele a tranqüilizou num tom gentil. — Pense o que quiser a meu respeito, mas saiba que nunca forcei minha entrada nos aposentos de uma mulher. Você pode não acreditar em mim depois do que ocorreu naquele beco, porém é a pura verdade. Não represento nenhum perigo.

— Está bem — volveu Phillipa, dirigindo-se para a porta.

A chuva tinha passado e não havia mais sinais das nuvens escuras. O céu estava claro e as ruas, banhadas pelo luar. A noite tinha aquele agradável frescor de casa lavada que permanece no ar após uma chuva de verão. Aquela noite de junho seria perfeita para um passeio, não tivesse a tempestade transformado as ruas em ver­dadeiros rios de lama.

Hugh olhou ao redor para ver se não havia ninguém por perto antes de dizer:

— Acredito que você esteja sabendo que há dois anos a rainha Eleanor abandonou o rei, deixou a Inglaterra e mudou-se para seu palácio em Poitiers.

O ostentoso romance do rei Henrique com Rosamund Clifford provocara a ira da rainha Eleanor, condessa de Poitou, duquesa de Aquitaine e rainha da Inglaterra, le­vando-a a retirar-se, furiosa e mortificada, para sua ci­dade ancestral. Uma vez no conforto da terra natal, no Sudoeste da França, Eleanor estabeleceu uma corte real essencialmente feminina, presidida pela filha, Marie de Champagne, na qual a alta sociedade francesa misturava-se com poetas e trovadores, filósofos e clérigos.

— Sim, já ouvi falar muito sobre a corte de Poitiers — Phillipa assentiu, erguendo as saias enquanto andava e Cuidando para evitar as poças lamacentas. — Comentam que a rainha Eleanor e a condessa Marie têm grande interesse em desenvolver o que eles chamam de amor Cortês. A idéia é que os romances sigam certas regras de cavalheirismo, elegância e cortesia.

— Você sabe que o chamado "amor cortês", com todas as suas minuciosas e complicadas regras de conduta, abrange algumas idéias nada ortodoxas. Em Poitiers os romances ilícitos são, não apenas tolerados, como encora­jados, porque nada deve interferir no caminho da flecha de Cupido. Para os adeptos desse amor cortês, o casa­mento sufoca o verdadeiro amor, acaba com a sedução. E sedução é uma forma de arte que deve ser sempre apri­morada.

— Sei disso. — Phillipa riu ao ver a expressão em­baraçada de Hugh. — Achou mesmo que tais revelações iriam me deixar escandalizada? Passei a vida trocando idéias com algumas das mentes mais brilhantes do mun­do. Tive como professores homens que foram excomun­gados por heresia. Idéias radicais não me assustam, sir Hugh. Pelo contrário, me estimulam!

Eles já estavam na Kibald Street quando Hugh sen­tiu um formigamento na nuca. Ficou atento, certo de que havia alguém por perto. Não demorou muito, ouviu um gemido seguido de um sussurro, vindo de um beco.

Phillipa ia dizer alguma coisa, mas ele fez sinal para que ela ficasse quieta. Estendeu a mão para pegar a ajambiya e não a encontrou, claro. A adaga turca estava com Phillipa. Virou-se depressa, pegou Phillipa pela cintura, e tirou a ajambiya da bainha, fazendo um gesto em dire­ção à travessa.

Ela arregalou os olhos e balançou a cabeça, indicando que tinha entendido a mensagem. Hugh fez sinal para que ela ficasse parada; agachou-se, andou rente ao muro e entrou no beco com a ajambiya erguida.

A risada de uma mulher fez com que ele parasse imediatamente. Viu à luz da lua, uma ruiva de seios grandes, encostada no muro com as saias erguidas, as pernas brancas como leite, cruzadas ao redor dos quadris do parceiro. O homem estava de costas, mas Hugh pode ver que tinha tonsura e usava a capa de estudante, toda amarfanhada.

Hugh abaixou a adaga.

A mulher o viu, sorriu para ele de modo malicioso, passou a ponta da língua pelos lábios num gesto grossei­ro de promessa sexual e gritou com voz rouca:

— Terá de esperar que eu termine com este aqui, amorzinho. Vai lhe custar três pennies.

O estudante vestido de preto virou-se depressa e disse rispidamente:

— Suma daqui!

Hugh notou que ele era muito jovem, não devia ter mais de dezesseis anos.

— Desculpe-me pela intrusão — respondeu, curvando-se como se estivesse na presença de um rei.

— Não vá embora! Faço por dois pence — a prostituta gritou. — Você parece do tipo ardente...

— E você, a mulher perfeita para inspirar um ho­mem... — Hugh respondeu, magnânimo. — Mas é uma pena. Tenho compromisso em outro lugar.

— Estou vendo seu "compromisso" — volveu a vaga­bunda, olhando sobre o ombro dele.

Hugh virou-se e viu Phillipa parada à entrada do beco, olhando calmamente para o casal que fornicava en­gastado no muro. Perplexo, ele deduziu que ela devia es­tar acostumada a ver tais cenas em vielas, uma vez que Insistia em andar pelas ruas da cidade sozinha, à noite.

— Divirta-se com o seu "compromisso"... — disse a prostituta e voltou a atenção para o jovem estudante, que parecia muito zangado. Para acalmá-lo, deu-lhe um beijo lascivo e ambos continuaram agarrados, movendo-se em ritmo frenético.

Hugh virou-se para ir ao encontro de Phillipa, porém não a viu mais. Correu até a rua e a viu caminhando como se nada estranho tivesse acontecido. Quando a al­cançou, ela devolveu-lhe a bainha da ajambiya.

— Esta bainha estava me machucando. Vou ficar com manchas roxas.

Prendendo a bainha ao cinto, Hugh observou:

— Lamento que tenha sido obrigada a ver aquela cena.

— Aquele beco é muito freqüentado por meretrizes — ela replicou com uma indiferença que a Hugh pareceu um pouco forçada. — As vezes há mais de um casal ali, e até duas mulheres com... Bem...

— Eu sei.

— Não que eu fique espiando — ela disse depressa. — Mas tenho de passar por aqui e percebo o movimento.

— Você é muito discreta — Hugh sorriu e pensou: Eu espiaria.

Caminharam em silêncio, não muito à vontade, até Phillipa retomar com certo entusiasmo a conversa sobre a rainha Eleanor e sua corte em Poitiers.

— Ouviu falar sobre os "tribunais do amor" que a rai­nha Eleanor e a filha criaram em Poitiers? É um costume fascinante, originado na região da Gasconha, sudoeste da França. Funciona assim: os casais, por intermédio de ad­vogados, apresentam anonimamente seus problemas ro­mânticos, ressentimentos e queixas diante de uma mesa formada por mulheres. Cada caso é discutido e julgado, mas a sentença é proferida pela rainha e a filha.

— Não pode estar falando sério — Hugh comentou, rin­do. — Você acha fascinantes esses tribunais? E pensar que eu a considerava uma mulher com algum discernimento!

— Por que o relacionamento íntimo entre um homem e uma mulher deve ser excluído das regras da conduta civilizada?

Um tanto receoso, Hugh considerou que talvez deves­se escolher suas palavras com maior cuidado. Afinal, es­tava conversando com uma mulher que, apesar da aura de intelectualidade e sofisticação, devia ser donzela. As donzelas, em sua maioria, eram naturalmente recatadas e ficavam constrangidas quando ouviam falar sobre as­suntos relativos a sexo.

Phillipa de Paris, no entanto, comportara-se com na­turalidade ao presenciar, fazia instantes, a cena impró­pria no beco.

Decidido a usar de franqueza, sem ser grosseiro, observou:

— O que se passa entre um homem e uma mulher na cama não pode ser chamado de "civilizado". Nessa hora o homem e a mulher liberam sua natureza animal.

Phillipa murmurou alguma coisa demonstrando sua irritação.

— Eu me refiro à paixão, seja a que nasce do coração ou do... sexo.

— A paixão surge do sexo e ali permanece.

— Em sua opinião, o desejo físico é superior ao desejo do coração e da mente? Ou seja, a união espiritual de duas pessoas que se amam não passa de mera satisfação animal?

Novamente Hugh riu.

— Essa união espiritual de que você fala, esse novo con­ceito de amor romântico e cortês, é uma bela invenção das damas de Poitiers, com o propósito de tornar efeminado todo homem tolo o bastante para levar esse conceito a sério.

— Tornar efeminado? — Phillipa deu uma risada desdenhosa. — Francamente, sir Hugh...

— Você não viu esses homens, mas eu vi. São jovens cavaleiros e príncipes que se deixaram prender na rede desse amor cortês. São tipos que usam mangas bufantes, sapatos pontudos, luvas, andam com passinhos saltitantes, adulam as mulheres e esperam receber agrados como cãezinhos de estimação. Eles não caçam, não participam de justas, não treinam falcões nem jogam dados. Tudo o que fazem é recitar versos românticos, enfadonhos, so­bre lânguidas cotovias e alegres estorninhos, enquanto olham, enlevados, para a amada. Uma exibição patética.

— Já esteve na corte de Poitiers?

— Já. Há um ano e meio passei três meses em Poitiers. Foi uma experiência incomum. Se você permanecesse numa dessas cortes de amor não teria essa...

— Um ano e meio atrás... — Phillipa murmurou, a testa franzida. — Na ocasião você já trabalhava para lorde Richard. Isso quer dizer que ele não fez nenhuma objeção ao fato de você passar três meses... — Phillipa parou de repente. — Lorde Richard mandou você para Poitiers como espião! Você esteve no palácio espionando a rainha!

Hugh também parou. Abriu o odre, ofereceu o vinho a Phillipa, que não o aceitou. Resignado, ele tomou um gole e continuou andando.

— Essa palavra "espião" que você gosta de usar, é muito...

Phillipa não ouviu o que ele disse. Correu para alcan­çá-lo, enterrando as sandálias no barro.

— Lorde Richard só pode ter mandado você a Poitiers a pedido do rei Henrique. Sendo assim, o próprio marido da rainha mandou alguém espioná-la?

— O próprio marido infiel, que tinha ouvido certos ru­mores preocupantes enquanto estava na Irlanda.

— Rumores preocupantes? — Phillipa indagou com uma nota blasé na voz.

— Isso mesmo. Comentavam que a corte de Poitiers tornara-se um reduto de sedição que tinha a rainha no centro de uma aliança com um grupo desleal ao rei, pla­nejando uma revolta armada contra ele. Não ouviu nada a esse respeito?

— Não. Devia ter ouvido?

— Não.

E claro que Phillipa tinha ouvido comentários sobre essa rebelião e estava mentindo, Hugh pensou, dando um suspiro. Mas tinha de admitir que ela mentia com grande habilidade, e admirava isso nela. Quem sabe a missão como espiã seria mais fácil para ela do que tinha sido para ele.

— Os principais conspiradores, segundo dizem, são os próprios filhos do rei Henrique, o mais novo, Richard e Geoffrey.

— Que coisa triste, pai e filhos se tornarem estranhos um para o outro.

— Não é fácil para um filho ter um pai poderoso e com ambições desmedidas; especialmente quando esse pai planeja para o filho uma vida muito diferente daquela com a qual ele sonha.

— Você fala por experiência própria — concluiu Phillipa, dirigindo a Hugh um olhar compreensivo.

Falei desse jeito por ser um idiota. O que dera nele para expor suas velhas feridas a uma mulher que ele mal conhecia? O desentendimento entre ele e o pai acontece­ra anos atrás e de nada adiantava reviver o passado.

— Se as informações forem dignas de crédito, além dos filhos do rei, estão envolvidos nesse plano de rebelião, William, rei dos escoceses, Philip, conde de Flandres, os ba­rões da Bretanha, de Aquitaine, de Anjou e até o rei Louis da França — prosseguiu, retomando o assunto anterior.

— Meu Deus!

Era mesmo de se admirar. Louis Capet era inimigo de longa data de Henrique Plantagenet, rei da Inglaterra, du­que da Normandia e conde de Anjou por direito, e também duque de Aquitaine e conde de Poitou em virtude do casa­mento. O rei Louis tinha sido o primeiro marido de Eleanor de Aquitaine, de quem se divorciara depois de lhe dar duas filhas, sendo a mais velha Marie de Champagne.

— Se a rainha estiver realmente planejando uma re­belião, está mantendo tudo em segredo — contou Hugh. — Ela é uma mulher brilhante, capaz de arquitetar uma conspiração sem que saibam disso. Mas eu não descobri nada importante durante minha estada em Poitiers.

Possivelmente o trabalho dele fora infrutífero, Hugh considerou, pois, na ocasião ele fora obrigado a deixar o campo de batalha e não estava preparado para as intri­gas e as frivolidades da vida palaciana. Mas os outros colaboradores de lorde Richard também não descobriram na corte de Poitiers nada que despertasse suspeitas.

— Quer dizer que o rei Henrique não tem dados con­cretos sobre uma possível rebelião? As informações que lhe deram foram baseadas em boatos?

— Sim, o que o deixa numa posição desconfortável, sem ter motivos para preparar uma defesa. Como ele pode ir contra a esposa e os filhos, sem provas? Para piorar, o prestígio dele está caindo cada vez mais. O descontenta­mento pela morte de Becket, e agora aquele romance com Rosamund Clifford, tornaram-no impopular. Ele traiu a esposa abertamente, e, com isso, a rainha ganhou a sim­patia dos súditos. Se ele tomar qualquer medida contra Eleanor, será execrado. Não pode agir precipitadamente.

Phillipa refletiu por um momento, depois observou: — Suponho que esse trabalho, para o qual lorde Richard quer me contratar, tenha a ver com esses rumores.

— Sim. No momento o rei Henrique está na Normandia. Recentemente, o conde de Toulouse procu­rou Sua Majestade e, numa conversa sigilosa, avisou-o que, de fato, estão organizando uma rebelião em Poitiers. O rei só precisa de uma prova dessa traição para poder agir. Acredito que lorde Richard queira mandá-la para Poitiers. Não posso lhe adiantar mais nada, pois não es­tou a par dos planos dele.

Phillipa parou na frente de uma loja que tinha na por­ta uma placa no formato de uma bota.

— Moro aqui. Meu apartamento fica no primeiro andar. Hugh olhou muito surpreso para o prédio modesto.

A filha de um barão morava num pequeno apartamento acima da loja de um sapateiro.

— Esta conversa não me fez mudar de opinião — continuou Phillipa. — Não vou acompanhá-lo a Westminster. Entretanto, estou curiosa de saber o que levou lorde Richard a escolher-me para ajudá-lo. E, por favor, não diga novamente que foi por minha fama de intelectual. Mesmo que o regente tenha ouvido falar a meu respeito, o que é improvável, não vejo motivo para ele recorrer a mim a fim de ajudá-lo num assunto que nada tem a ver com minhas atividades. O que o levaria a pensar que tenho algum interesse em me envolver em espionagem? Na verdade, ele está se arriscando ao tentar me recrutar... E se eu tiver simpatia à causa da rainha Eleanor?

— Isso não acontecerá, embora haja essa possibilida­de — volveu Hugh sorrindo. Encostando-se na porta, vi­rou o odre na boca e tomou mais um gole do vinho.

Phillipa cruzou os braços.

— Você não tem como saber se eu apoio ou não a rainha.

—Tenho. Lorde Richard e eu sabemos muito sobre você. Há algum tempo ele me encarregou de interceptar a cor­respondência que certos grupos mantêm com a França.

Phillipa empalideceu ligeiramente.

— Há grupos descontentes com o rei da Inglaterra. Um deles é liderado por Lotulf de Beauvais, cônego de Notre-Dame e há muito tempo conselheiro do piedoso rei Louis.

—Tio Lotulf? — Ela descruzou os braços e deu um passo na direção de Hugh. — Esteve lendo as cartas de meu tio?

— Sim. Descobri que o jovem acólito que seu tio emprega como mensageiro tem uma queda por prata. Foi simples.

— Todas as cartas? — Phillipa entreabriu os lábios, chocada.

— Todas, milady. Temos todas as cartas que seu tio lhe escreveu nos dois últimos anos. Ou melhor, são cópias. As originais foram entregues a você, naturalmente.

Hugh notou que Phillipa, embora furiosa, procurava manter a calma e refletir sobre a situação.

— Eu teria percebido que as cartas tinham sido vio­ladas. Elas estavam endereçadas a mim, e os selos pare­ciam intatos.

Hugh deu um sorriso complacente.

— Não é um desafio muito grande refazer o lacre.

— E claro que você tem seus truques. — Ela esfregou as têmporas, que começavam a latejar. — Suponho que você saiba...

— Que seu tio, sendo íntimo do rei Louis, suspeita de que haja na França um movimento para destronar o rei Henrique, Você há de convir que Lotulf foi muito indiscre­to. Ele não devia ter-lhe escrito sobre suas desconfianças. Para piorar, ele deixou transparecer que é a favor dessa insurreição. O rei Henrique Plantagenet é um... como di­rei... "ladrão de esposa, assassino de um arcebispo e fornicador, além de seguidor de Lúcifer", ao passo que o querido e piedoso Louis Capet é santo e só falta ser canonizado. Sabemos de tudo, milady. Até o detalhe mais deplorável.

— Deplorável em sua opinião e na de lorde Richard. Mas lembre-se de que meu tio é francês, e vocês não têm o direito de puni-lo.

— Não sou nenhum assassino, milady. Entretanto, a Coroa emprega homens com o propósito de matar. Homens com veneno nas veias, maus por natureza, que matam por esporte e pouco se importam se têm ou não o direito de fazer o que fazem.

— Meu Deus! — Phillipa murmurou, parecendo mui­to jovem e perdida.

Hugh sentiu vontade de abraçá-la e dizer-lhe que lor­de Richard não pretendia ameaçar Lotulf. Não gostava de aterrorizá-la, falando sobre a ameaça que pairava so­bre o tio dela. O dever, no entanto, fez com que ele perma­necesse encostado à porta, enquanto ela torcia as mãos nervosamente.

Hugh suspirou, aborrecido. Não devia sentir pena dela. Nada disso aconteceria se Phillipa, em vez de mos­trar-se tão obstinada, decidisse colaborar.

— Sabemos que você não apoia a rainha Eleanor nem seu plano de revolta — falou em voz baixa. — Em uma carta recente, você escreveu que, após morar sete anos em Oxford, se considera mais inglesa do que francesa e que se sente na obrigação de ser leal ao rei Henrique. Repetidas vezes tentou dissuadir o cônego Lotulf de en­volver-se nos planos de traição que o rei Louis está ar­quitetando com a rainha Eleanor, e seus apelos de nada valeram. Seu tio é tão obstinado quanto você.

— Tio Lotulf é um homem bom! — Phillipa declarou com emoção, os olhos escuros úmidos e brilhantes. — Depois que minha mãe morreu de febre tifóide, tio Lotulf escreveu a meu pai dizendo que era um homem muito ocupado com os assuntos da igreja e que não podia cuidar de duas criancinhas; portanto, deveríamos ser mandadas para um internato. Contudo, quando viu Ada e eu, cada uma abraçada à sua boneca, ele se enterneceu e desistiu de nos mandar embora. Ele nos criou, sir Hugh, não como tutor, mas como pai. Deu-nos tudo e ensinou-nos a ser in­dependentes. Eu tive os melhores professores de Paris.

Hugh colocou a mão perfeita, a esquerda, sobre a mão dela.

— Milady, por favor...

— Tio Lotulf pode ter cometido o erro de apoiar aque­les que estão contra o rei Henrique, mas isso porque é muito leal ao rei Louis Capet. Meu tio é velho, às ve­zes obstinado, porém é piedoso e tem um grande coração. É um homem maravilhoso, sir Hugh e... — A voz de Phillipa falhou. Tinha os olhos rasos d'água. — Se algum mal acontecer a ele, eu morrerei.

Era tão grande a aflição de Phillipa que Hugh, curio­samente, sentiu faltar-lhe o ar.

— Eu... Fique tranqüila. Nenhum mal irá acontecer a seu tio.

— Não? — Ela piscou e as lágrimas rolaram-lhe pelas faces.

Hugh soltou a mão dela para enxugá-las. A pele de Phillipa estava quente e era suave como a de um bebê.

— O cônego Lotulf não é tão importante, muito menos um conspirador. É apenas um velho religioso e submisso que não representa perigo nenhum à Coroa.

Não se deixe influenciar pelas lágrimas dela, Hugh censurou-se, irritado.

Lembre-se de seu objetivo!

Phillipa arregalou os olhos diante da reação dele. Hugh parecia confuso e indeciso.

— Não preciso me preocupar com o que possa aconte­cer a meu tio desde que eu coopere. É isso? — Olhou para a ajambiya e depois para o rosto moreno. Ele respirou fundo.

— Digamos que sim. Não posso garantir o que acontecerá caso você se recuse a trabalhar conosco. Mas, se concordar em nos ajudar, lorde Richard não aplicará nenhuma penalidade a seu tio apenas por suas idéias extravagantes. Ele é um idoso e nós somos civilizados.

— Ora, por favor, não me diga que vocês são civiliza­dos! Instantes atrás, ameaçou, ainda que implicitamente, assassinar um velho inofensivo!

Phillipa deu as costas para Hugh e massageou a tes­ta, tensa. Ele se controlou para não lhe dizer palavras de conforto. Deus do Céu, estava sendo muito mais difí­cil suportar aquilo do que enfrentar turcos armados com seus sabres!

— Então é isso. Sou obrigada a abandonar tudo para servir o magistrado e ministro do rei. O pior é que a ativi­dade que ele quer me atribuir ainda é um mistério. Estão me chantageando. Se eu quiser que meu tio continue são e salvo terei de deixar que você me leve daqui para tra­balhar como espiã.

— No momento, tudo o que esperamos de você é que permita que eu a leve a Westminster para uma audiên­cia com lorde Richard. Após ouvir o que ele tem a dizer, você decidirá se aceita ou não a missão. Se não aceitar, estará livre para retornar a Oxford, certa de que seu tio será deixado em paz.

— É verdade?

— E. Mas espero que lorde Richard consiga convencê-la a abraçar nossa causa. Afinal, você acredita que nosso rei, Henrique Plantagenet, deve, por direito, permane­cer no trono da Inglaterra. Talvez seja interessante para você deixar Oxford por algum tempo para ver um pouco do mundo real.

Phillipa arqueou as sobrancelhas.

— Acha que aqui estou muito protegida?

— Tenho certeza disso. Quero ver como você irá reagir quando tiver de lidar com pessoas menos dóceis do que clérigos e pensadores.

— Isto é um desafio, sir Hugh?

— Exatamente — ele respondeu com um breve sorri­so. — Agora vou deixá-la dormir algumas horas. Teremos pela frente uma viagem longa e cansativa. Voltarei para buscá-la assim que amanhecer.

— Onde você está hospedado? Na estalagem ao lado do portão leste?

— Não. Estou no mosteiro Agostiniano, junto do muro da cidade, ao sul.

— O mosteiro de St. Frideswide? E lá que eu deixo a minha égua. Não precisa vir até aqui. Eu o encontrarei no estábulo do mosteiro. Estarei lá assim que tocar o sino para a segunda hora canônica.

— Está certo. Ah, leve pouca bagagem. Não temos outra montaria para transportar carga.

— Isso não é problema. Só tenho mais uma túnica.

A filha de um barão só tem duas túnicas?, Hugh pen­sou enquanto seguia pela Kibald Street, a caminho de St. Frideswide.

Isso não devia surpreendê-lo. Phillipa de Paris era uma mulher incomum e com uma personalidade comple­ta. Parecia haver nela duas metades opostas: a da jovem aristocrata ingênua e a da intelectual sofisticada. No entanto, essas duas metades se fundiam e se completavam de um modo curioso e sensato. Havia certa lógica nela, e uma certa previsibilidade.

Um vulto que caminhava a pouca distância de Hugh chamou-lhe a atenção e ele diminuiu o passo. Chegando perto da esquina da Kibald Street com a Grope Lane, constatou que era uma mulher bem pequena, e que não representava perigo nenhum.

— Boa noite, senhor — ela o saudou com uma voz agu­da e infantil.

Observando-a melhor, Hugh percebeu que, apesar das faces pintadas, ela não passava de uma criança. Com os cabelos negros, trançados, os grandes olhos escuros e a constituição delicada, parecia uma versão mais jovem e vulgar de lady Phillipa.

— Está só? Quer companhia? — A jovem prostituta perguntou com um sorriso tímido.

Por que, Hugh questionou-se, as prostitutas costuma­vam perguntar se um homem queria companhia? Para curar a solidão ele procurava se reunir com os amigos. Em ocasiões como a daquele dia, tendo ficado muito tempo sem uma mulher, não se importava de pagar para ter os favo­res de uma meretriz... Mas fazia questão de ser o primeiro cliente da noite. Não gostava de pensar que a mulher pode­ria ter recebido um bastardo sifilítico antes dele.

Notando o ventre crescido da menina, Hugh pergun­tou-lhe:

— Você está grávida?!

— Não se preocupe. A barriga não atrapalha, eu fico de joelhos — a garota assegurou. — Costumo cobrar dois pence, mas de você vou cobrar apenas um. Que noite, esta! Você vai ser meu primeiro cliente.

— Que idade você tem?

Após um instante de hesitação, a meretriz deu um sorriso faceiro e perguntou:

— Que idade você quer que eu tenha?

Em vez de responder, Hugh olhou para ela, zangado. A garota virou os olhos e suspirou.

— Catorze.

Hugh arqueou as sobrancelhas.

— Está bem... Quase catorze. Vamos, sir. Há um lugar perto daqui aonde podemos ir. Vou fazer você feliz e só vai lhe custar um pennie.

— Está perdendo seu tempo, Mae — disse uma mulher, saindo das sombras. Era a mesma ruiva que ele tinha visto no beco. — Ele já se satisfez esta noite... Cortesia de uma certa dama.

A mulher estava pensando que ele tinha ido para a cama com lady Phillipa?

O pensamento fez com que Hugh desse uma gargalha­da. Ele tirou da bolsa algumas moedas de prata.

— Tome. — Segurou a mão da menina e colocou nela todas as moedas. — São dois xelins. O convento St. Ermenegild fica aqui perto. Ouvi dizer que a abadessa cuida de mulheres que precisam de ajuda. Vá até lá quando o bebê estiver para nascer. Acho bom você não perder tempo.

Mae olhou para as moedas mal acreditando que tudo aquilo era dela.

— Sir, eu...

— O cavalheiro é distinto, não é mesmo? — ironizou a outra. — Eu avisei que ele não ia querer nada com você. Ele tem uma dama pronta para erguer a saia para ele.

— De onde tirou essa idéia? — Hugh perguntou, fechando a bolsa.

— Oh, você é mesmo muito fino. — A mulher mais ve­lha deu uma risada debochada. — Não precisa proteger a reputação de lady Phillipa... Poupe seu fôlego. Todos sabem quem ela é.

— E o que ela é? — exigiu Hugh, sério.

— É uma daquelas livre-pensadoras. Essas mulheres acham que tem os mesmos direitos dos homens. Acham que podem ir para a cama com quem quiser e não acredi­tam em casamento.

Hugh lembrou-se das palavras de Phillipa: Idéias ra­dicais não me assustam, sir Hugh. Pelo contrário, me es­timulam!

Com desdém, a prostituta acrescentou:

— Aposto como ela abre as pernas com a mesma faci­lidade com que eu abro as minhas. A diferença é que ela não recebe nenhuma prata por seus favores... E ainda dizem que é esperta.

— Gildy está dizendo a verdade, sir — afirmou Mae, enchendo a bolsinha com as moedas. — Lady Phillipa tem seus amantes. Aqueles homens que usam capa pre­ta. Ela os convida para entrar na casa dela... Eu já vi isso com estes dois olhos.

— Os homens que dormem com ela não fazem segredo disso — Gildy completou. — Eles se vangloriam de seus feitos até quando estão se deitando comigo.

— Não me diga. — Hugh passou a mão no queixo, sem saber o que pensar.

Phillipa tinha a mente aberta, uma visão avançada do mundo e prezava demais sua liberdade e independência. Isso sem contar que era muito bonita. Entretanto, nada havia nela de vulgar ou que lembrasse uma mulher leviana ou de costumes lassos.

Poderia Phillipa de Paris esconder sob aquela fachada de moça inocente e estudiosa uma natureza devassa? A intui­ção dele lhe dizia que aquelas mulheres estavam erradas.

Contudo, sua intuição às vezes falhava.

Mas não no que dizia respeito ao caráter de Phillipa. Ele não podia ter-se enganado tanto a respeito dela. Além do mais, quem eram Gildy e Mae para julgar uma jovem como Phillipa de Paris?

— Sinto muito, sir. Parece que você não sabia de nada — Mae desculpou-se.

— Não tem importância. — Hugh sorriu. — E melhor você ir para casa. Amanhã cedo, arranje uma condução para levá-la até o convento de St. Ermenegild.

— Vou fazer isso — prometeu a menina. Ficou na pon­ta dos pés e deu um beijo no rosto dele. — Muito obriga­da. Nunca vou esquecer você.

Gildy olhou Hugh da cabeça aos pés e observou:

— Se a sua dama voltar para aqueles intelectuais de­pois de ter dormido com um homem como você, vai provar que é mesmo uma idiota — declarou, para depois fazer meia-volta e desaparecer nas sombras da noite.

 

Dois dias depois, no solar de Eastingham

— Hugh de Eastingham, pare de chutar sua irmã! — Graeham gritou para o filho de cin­co anos.

Protegendo os olhos com a mão por causa do brilho do sol poente, Phillipa olhava a campina aberta onde Graeham Fox acompanhava o jogo do qual participavam o filho dele e outros garotos, filhos dos vassalos. O jogo devia ser uma tradição de verão em Eastingham a jul­gar pela euforia dos vinte meninos que se reuniram na campina depois do jantar com seus bastões achatados e bolas revestidas de couro. Várias garotinhas cheias de entusiasmo assistiam à partida, sentadas na mureta de pedra tal como uma fileira de pardais barulhentos. Entre elas estava Cateryn, de seis anos, a filha mais velha de Graeham e Joanna.

Phillipa e Joanna, esta última grávida pela quarta vez, também se encontravam sentadas na mureta, porém a al­guma distância das meninas, para poderem conversar com relativo sossego. Na grama, aos pés de Joanna, estavam deitados um velho gato branco e preto e um cão spaniel que seguiam sua dona a qualquer lugar que ela fosse.

— Eu já disse para parar com isso! — Graeham repe­tiu para o filho.

— Eu não chutei com força! — o menino se defendeu e puxou o bastão, mantendo-o fora do alcance de Nell, a irmãzinha de três anos.

— Eu quero ver — pediu a garotinha, erguendo os braços.

Joanna, que observava a cena, provocou o marido:

— Problemas?

Graeham olhou para a esposa, mal-humorado, e ela fez uma careta. Durante o jantar, ele tinha dito que Joanna ficava ainda mais linda durante a gravidez, e Phillipa se enternecera com o comentário. De fato, parecia haver na moça uma luz que tornava seu olhar cintilante.

Graeham pegou Nell no colo, trazendo a menina que se contorcia para voltar ao chão. Não havia dúvida de que aqueles dois eram pai e filha. Ambos possuíam os mesmos luminosos olhos azuis e os cabelos vermelhos que brilhavam como chamas ao sol poente. Cateryn tinha os cabelos castanhos como os da mãe, e Hugh era muito parecido com o tio, de quem herdara o nome. Graeham entregou a pequena Nell para Joanna, a qual deixou de lado o bastidor para pegar a filha.

— Fique um pouquinho com a mamãe — ele pediu, dando um beijo na menina e outro na esposa. De volta ao campo, reuniu os meninos.

— Muito bem, garotos. Vamos terminar o jogo enquan­to há claridade.

Nell continuou a espernear no colo da mãe e a gritar, querendo descer para ir de novo até o campo.

— Quieta, Nell! — Joanna ralhou, zangada. Phillipa estendeu os braços.

— Venha com a titia.

— Tem certeza? Ela é pesada e não para quieta. Phillipa sorriu. Que desafio poderia representar man­ter no colo uma garotinha de três anos?

Logo soube a resposta. Segurar Nell era o mesmo que ter nos braços um saco de vinte quilos cheio de cobras se deba­tendo. A menina era muito mais forte do que ela imaginava e estava determinada a libertar-se a qualquer custo.

E fez isso quase instantaneamente.

— Você tem de segurá-la com força! — Joanna gritou para Phillipa, que saíra, apressada, atrás da criança.

— Tive medo de machucá-la — Phillipa explicou, as­sim que alcançou Nell.

Porém, não conseguiu segurá-la. A menina era um azougue e escapou de novo.

Joanna riu e ficou olhando para a filha, que corria e dava gritinhos de alegria.

— Você não vai machucá-la, nem mesmo se a segurar com firmeza. Nunca segurou uma criança no colo?

— Não.

— Nunca?! — Joanna riu, perplexa.

Com dois largos passos, Phillipa alcançou Nell e a prendeu nos braços, quase arrastando a menina de volta para a mureta.

— Eu nunca tive crianças por perto — afirmou. Mesmo quando era jovem, só tivera contato com Ada, sua irmã.

— Desculpe o meu jeito. — Joanna colocou a mão no braço de Phillipa. — É que a sua vida é muito diferente da minha.

— Entendo. — Phillipa forçou um sorriso.

Até então ela não havia sentido necessidade de assu­mir uma atitude defensiva por conta de sua existência solitária. Isso porque até o momento vivera cercada por outros acadêmicos, pessoas que compreendiam como era difícil estudar, aprimorar a mente, o espírito e, ao mesmo tempo, manter uma vida familiar. Na igreja, por exemplo, o casamento era proibido para diáconos e padres, e per­mitido para os que recebiam as ordens menores. Quando estes se casavam, entretanto, perdiam alguns privilégios, até mesmo o de lecionar.

— Se você está feliz assim, é o que importa. — Joanna voltou ao bordado que estava fazendo: em seda azul, com um desenho intrincado representando pavões e trepadeiras floridas. — É muito bom fazermos aquilo que nos dá prazer.

Seu irmão não tem tanta sensibilidade para se expres­sar, Phillipa pensou, lembrando-se das conversas que Hugh e ela haviam tido durante a viagem de Oxford até Eastingham. Ele praticamente a acusara de levar uma vida confortável, segura, mas medíocre, fechada dentro de um casulo de erudição, sem ver, sem sentir, sem ouvir o mundo ao seu redor.

Como se pressentisse que ela pensava em Hugh, Joanna observou:

— Eu gostaria que meu irmão não tivesse desapare­cido depois do jantar. Nell fica sossegada no colo dele. Hugh é o único que consegue controlá-la.

Ao ouvir o nome do tio, Nell parou de se mexer e sorriu.

— Cadê titio?

Phillipa sorriu. Naquela mesma tarde, quando ela e Hugh tinham chegado a Eastingham, a garotinha agar­rara-se ao tio e não quisera sair do colo dele durante o jantar. Hugh, longe de se aborrecer, dera comida para a sobrinha, demonstrando infinita paciência e carinho. Sem dúvida, era o favorito da pequena Nell.

— Hugh lhe disse aonde ia antes de sair de casa, de­pois do jantar? — Joanna perguntou.

— Falou apenas que precisava se livrar do pó da viagem.

— Ah, ele gosta de tomar banho no ribeirão que há no bosque, ao sul da propriedade.

— Quero o tio Hugh! — Nell gritou e deu chutes com as perninhas gorduchas.

— Tio Hugh vai encontrar-se com um homem mui­to importante, filhinha, e quer estar bem bonito e limpo — Joanna falou para a menina.

De acordo com Hugh, apenas Joanna e Graeham, além do rei Henrique e de lorde Richard, sabiam daquele trabalho secreto em favor da Coroa. Para os conhecidos, Hugh de Wexford era simplesmente um nobre amável, com tempo de sobra e bastante dinheiro nas mãos. O fi­lho mais velho e esbanjador, que esperava chegar o tem­po de tornar-se o senhor do castelo e dos bens da família. Pouquíssimas pessoas sabiam que ele servira durante quinze anos como soldado mercenário. Se alguém notava a falta do polegar em sua mão, tinha a delicadeza de não fazer perguntas. Também ignoravam que Hugh se desen­tendera com o pai e passara a vida adulta distante dele. Nem mesmo Joanna sabia se o irmão iria ser nomeado senhor de Wexford quando lorde William falecesse.

— Se você gosta de banho de rio, pode descer até o ri­beirão. Mas se preferir um banho tépido antes de dormir, temos uma banheira. Posso mandar um criado levá-la ao seu quarto e enchê-la com água morna, assim você não precisará ir ao banheiro.

— Será maravilhoso tomar um bom banho antes de me deitar. Vocês são muito hospitaleiros.

— Espero que tenha gostado do seu quarto. Se não lhe agradou, temos outros.

— O quarto é perfeito — Phillipa disse depressa, aten­ta a Nell que continuava irrequieta, mas não lutava para escapar.

— E um quarto pequeno, eu sei. Na época em que Graeham mandou construir a nova ala, quis vários quar­tos privativos, e estes acabaram perdendo em tamanho. Alguns são pouco maiores do que um banheiro.

— São quartos arejados, com grandes janelas — Phillipa comentou, olhando para o solar que ficava além da campina.

A parte antiga do sólido edifício de pedras tinha forma de "L" e continha um grande saguão, um salão, uma capela, diversas salas, quartos, a cozinha e outras depen­dências. A ala nova fora construída para abrigar vários aposentos individuais, como Joanna acabara de explicar. — Quando Graeham e eu nos casamos, viemos para cá e ele mandou construir a nova ala. Pretendíamos encher nossa casa de filhos, mas não queríamos ver as crianças com suas babás e seus criados correndo e brincando na parte social — Joanna contou. — Você sabe... Graeham passou a infância no mosteiro Holy Trinity, dormindo no mesmo dormitório com outros cem garotos. Depois foi para o castelo de lorde Guy, seu pai, em Beauvais, e dor­mia no alojamento. Nunca teve privacidade.

— Mamãe! — Nell contorceu-se no colo de Phillipa. — Preciso fazer xixi agora!

— Lady Nellwyn, mamãe já não lhe disse para não esperar até o último minuto?!

Phillipa arregalou os olhos. Tinha apenas aquele traje limpo, pois o azul estava sujo de barro depois da chuva que ela havia tomado na noite antes de deixar Oxford. Se a menina urinasse em seu colo... Deus do Céu, ela não teria uma roupa decente para usar na entrevista com lorde Richard na manhã seguinte!

— Caty! Preciso de você — Joanna chamou a filha mais velha.

Cateryn, que estava sentada a uma boa distância con­versando com as amiguinhas, veio até elas, obediente.

— Quero que você leve Nell para casa, ela precisa usar o banheiro — Joanna orientou a filha mais velha.

— Depois, troque a roupa dela e coloque-a na cama. Cateryn fez uma careta, mas tirou Nell do colo de Phillipa.

— Venha, menininha irritante. — Deu um beijo na ca­beça da irmã, segurou com firmeza na mão dela e ambas se afastaram.

Phillipa soltou um longo suspiro de alívio e Joanna sorriu.

— É impressionante como você é parecida com sua irmã. Nós nos tornamos amigas quando Ada morou em Londres. Na época ela estava muito doente.

— Ada contou-me que você foi maravilhosa e que cuidou dela com muito carinho. Somos muito gratas por tudo que você e Graeham fizeram por ela.

— Ela ainda está no exterior?

Embora não fosse tão estudiosa como a irmã, Ada de­cidira cursar ciências médicas depois de ficar longo tem­po se tratando no hospital St. Bartholemew, em Londres. Recuperando a saúde, retornara a Paris, conversara com o pai e manifestara o desejo de estudar medicina, especializando-se em doenças da mulher. Lorde Guy, então, a mandara para uma grande escola em Salerno, onde acei­tavam alunos de ambos os sexos.

— Minha irmã está em Salerno — Phillipa contou sor­rindo. — E acho que continuará na Itália... Ela casou-se em março.

— Ada está casada?!

— Sim, o marido dela também é médico. E um italia­no chamado Tommaso Salernus. Em suas cartas, Ada diz que Tommaso é muito inteligente, um marido devotado e muito bonito. É alto, tem cabelos negros, encaracolados e, segundo ela, parece um deus romano.

— Um deus romano! — Joanna exclamou, rindo. — Ela deve estar apaixonada.

— Tenho certeza de que Ada lhe escreveu dando a no­tícia do casamento, porém demora muito para as cartas vindas da Itália chegarem à Inglaterra. Ela está muito feliz em Salerno. O clima é temperado, e ela adora seu trabalho quase tanto quanto adora o marido. Está ansiosa para engravidar, mas...

— Mas?

— Acredito que Ada tenha medo de não poder se dedicar tanto à medicina quando tiver filhos. Ela ama a profissão.

— Não poderá mesmo. Os filhos tolhem a liberdade da mãe. — Joanna olhou, absorta, para o campo onde os meninos jogavam. — Entretanto, haverá compensações.

— Nada pode compensar a perda da liberdade de al­guém — protestou Phillipa com veemência. — Ainda que seja só uma pequena parte dessa liberdade.

— Meu irmão é muito parecido com você, sabia? — Espantou-se Joanna.

— Você deve estar brincando. — Phillipa riu.

— Falo sério. Ele é autossuficiente e faz questão de viver segundo suas próprias regras. Creio que isso vocês tenham em comum.

— Sim, temos — Phillipa admitiu. — Mas seu irmão não gosta muito de refletir. Faz dois dias que o conheço e não vi Hugh sentar-se uma única vez para analisar uma situação com calma. Pelo contrário, ele age... Vou dar um exemplo. Ontem, quando começou a escurecer, passamos por um mosteiro perfeito para pernoitarmos. Hugh recu­sou-se a dormir ali simplesmente porque não havia lugar no prédio principal, e teríamos de dormir no albergue com outros viajantes, em geral indigentes. Por mim eu ficaria ali, mas ele insistiu em continuar a viagem. Finalmente, chegamos a outro mosteiro em Chertsey. Era muito tarde e estávamos exaustos. Se eu tivesse de fazer uma viagem dessas, teria reservado as acomodações com antecedên­cia e evitaríamos... — Phillipa interrompeu o que estava dizendo ao ver que Joanna olhava para ela com um am­plo sorriso nos lábios. — Qual é a graça?

— Estou pensando que nunca vi meu irmão planejar alguma coisa ou analisar uma situação com cuidado. Ele prefere lidar com as circunstâncias quando elas surgem.

— Atitude de uma pessoa nada criteriosa. No mesmo instante, Phillipa reconheceu que estava sendo tola e pedante. Devia lembrar-se de que não estava em Oxford. Tio Lotulf costumava dizer que as opiniões francas, até rudes, condiziam com uma comunidade uni­versitária, mas deveriam ser abolidas da sociedade, onde a diplomacia tinha mais valor do que a franqueza.

— O que eu quis dizer é que, considerando a confiança que lorde Richard tem em Hugh para atribuir-lhe tanta responsabilidade...

— Eu entendi. Mas não se preocupe porque, de uma forma ou de outra, meu irmão resolve as coisas a seu modo, e com ele tudo acaba dando certo. No caso de on­tem à noite, pense de outra forma. Afinal, ele encontrou acomodações para vocês, não encontrou? E aposto que teve muito mais conforto em Chertsey do que teria no ou­tro mosteiro, dormindo na palha entre estranhos. Vocês ainda tiveram a vantagem de chegar cedo a esta casa porque Chertsey fica mais perto daqui. Esta noite você poderá descansar bastante e estará bem-disposta para a entrevista, amanhã cedo. Admito que Hugh muitas vezes é petulante, impulsivo... porém não é estúpido.

— Eu não disse que ele era estúpido. Na verdade, acho que ele é dotado de grande inteligência natural e instintiva. Não fosse isso, ele não sobreviveria às guerras que lutou durante quinze anos.

A si mesma, Phillipa disse que as habilidades cognitivas de Hugh de Wexford como soldado eram limitadas ao campo de batalha, sendo sua especialidade improvisar estratégias. O fato de ele ser um cavaleiro, não queria dizer nada. A maioria dos cavaleiros não sabia escrever o próprio nome.

Os gritos dos meninos interromperam seus pensa­mentos.

— Muito bem! — Joanna exclamou.

— O que aconteceu? — Phillipa quis saber.

— O jogo terminou. Você não estava prestando atenção? Phillipa sorriu. Nunca tivera interesse por jogos e espor­tes, admitiu. E, sinceramente, havia ignorado a partida.

Mas não podia deixar de admirar a capacidade de Joanna de conversar com ela, acompanhar o jogo e fazer seu bordado.

Hugh correu ao encontro da mãe, tendo um largo sor­riso nos lábios, e ela, largando seu trabalho, abraçou o menino, beijou-o e o elogiou repetidas vezes. Graeham e os outros garotos do time se reuniram aos dois.

O entusiasmo do casal deixou Phillipa perplexa. Afinal, para que tanta festa por causa de um jogo de crianças? E um jogo sem graça, que se resumia no manuseio de uma bola de couro.

Assaltou-a a sensação de não pertencer àquele lugar. Isso acontecia sempre que ela se arriscava a sair de seu refúgio acadêmico e entrar num mundo bem maior. Um mundo freqüentado por pessoas muito diferentes daque­las com quem ela convivia.

— Gostou do jogo, lady Phillipa? — Graeham perguntou. Ele havia mandado o filho para casa e saltara a mure-ta, ficando junto da esposa.

— Ela não tinha a menor idéia do que estava acon­tecendo. — Joanna apertou a mão de Phillipa sorrindo. — Passe o verão conosco. Você precisa ganhar um pouco de cor nesse rosto! Vou mandar pôr uma rede no campo, assim poderei lhe ensinar ojeu de paume.

Graeham passou a mão sobre a barriga da esposa e deu um sorriso indulgente.

— Acho que você não irá participar de jogo da palma nenhum neste verão, minha querida.

— É verdade. — Joanna suspirou. — Por que eu tinha de dar à luz logo no verão? Gosto tanto de me divertir ao sol...

— Porque no inverno você gosta de ficar num lugar quentinho e aconchegante... com seu marido — ele res­pondeu, carinhoso. Curvando-se, sussurrou alguma coisa ao ouvido de Joanna, provocando uma risada. Em segui­da eles se beijaram.

Phillipa olhou em outra direção, sentindo-se uma voyeur. Assumindo um ar casual, levantou-se da mureta e alisou a túnica.

— Vou dar uma volta enquanto há claridade. Após dois dias cavalgando será bom exercitar as pernas.

— Quer que nós a acompanhemos? — Graeham per­guntou, mas Phillipa teve a impressão de que ele quis apenas ser gentil.

— Obrigada. Se vocês não se importarem, prefiro ca­minhar sozinha. Não tenho feito isso ultimamente.

— Compreendo. — Graeham sorriu. — Aproveite o passeio.

Tinha de ser um passeio rápido, pois em breve estaria completamente escuro, Phillipa pensou, afastando-se do casal.

Caminhou, absorta, sobre a relva levemente agitada pela brisa. O lugar era muito bonito. As verdes pasta­gens para ovelhas e os campos cultivados estendiam-se no terreno ondulante, parecendo uma imensa colcha de retalhos. A direita, no vale, pôde ver as casas da vila de Eastingham com seus tetos cobertos de palha, as quais, à luz dos últimos raios do sol, ganhavam um lindo tom dourado. Do outro lado, a pouca distância dela, avistou um pomar, mas não era muito boa para identificar ár­vores. Além do pomar ficava um tanque com peixes e, depois deste, o denso bosque.

Phillipa suspirou. Sete anos antes, seu pai lhe dera a linda propriedade de Linleigh, em Oxfordshire. Todavia, ela era uma pessoa essencialmente urbana. Por mais bela e agradável que pudesse ser a paisagem campestre, as atividades pastoris a aborreciam. Gostava de Linleigh também porque era ótima fonte de renda. Graças àquela propriedade, ela podia se manter e comprar os livros que amava. De qualquer forma, tinha um administrador de confiança que cuidava de tudo.

O pomar chamou-lhe a atenção, talvez porque as filei­ras de árvores altas e bem desenvolvidas apresentassem uma ordem e precisão que agradavam seu senso estético e seu espírito metódico. Andou entre duas dessas fileiras, sentindo o ar perfumado e escutando o suave coro ves­pertino de gorjeios e trinados vindos da copa das árvores. O sol, que já estava muito baixo no horizonte, lançava seus últimos raios por entre as árvores, produzindo no pomar faixas de luz e sombra.

Após caminhar vários metros, Phillipa olhou para trás. A distância viu Joanna e Graeham ainda sentados na mureta, olhando um para o outro.

O carinho entre o casal despertou sua curiosidade e ela se escondeu atrás de uma árvore para observar os dois sem ser vista. Joanna segurou a mão do marido e a colocou sobre a barriga volumosa. Graeham riu. Teria sentido o bebê se movimentando no ventre da mãe? Continuaram conversando e rindo por mais algum tem­po, então Graeham acariciou o rosto da esposa.

Phillipa sentiu um aperto na garganta e respirou fun­do. Poderia ser ela, ali, em vez de Joanna. Poderia es­tar esperando o quarto filho enquanto o marido olhava para ela, apaixonado. Se tudo corresse como o barão de Beauvais tinha planejado, sete anos antes... Se Graeham não tivesse escolhido Joanna, estaria casado com ela.

Entretanto, não era inveja o que a perturbava. Não sen­tia nada além de alívio e gratidão. Recebera a linda pro­priedade de Linleigh e tivera a chance de continuar seus estudos em Oxford, que se tornava o mais avançado centro de erudição da Europa. Sem ter as responsabilidades de uma esposa e obrigações para com um marido, podia levar uma vida independente e tinha extraordinária autonomia. Esse era o tipo de vida sonhado pela maioria das mulheres, especialmente pelas da aristocracia, que, educadas para o casamento, eram impedidas de estudar e de aprender qualquer coisa mais complexa do que bordado.

O mais importante era que ela não nutria por Graeham outro sentimento que não o de amizade. Mas tinha de admitir: não poderia haver marido mais atencioso ou pai mais devotado do que ele. A sorte tinha sorrido para Joanna quando Graeham Fox se mostrara disposto a sa­crificar tudo para se casar com ela.

Graeham abraçou a esposa e ambos se beijaram demoradamente. Phillipa continuou a observá-los, envergonhada de seu comportamento, porém incapaz de desviar o olhar.

— Que coisa feia, lady Phillipa... — soou uma voz masculina e risonha, bem atrás dela.

Phillipa virou-se de repente, a respiração acelerada, e viu Hugh de Wexford parado nas sombras, a menos de dois metros de distância. Parecia muito diferente vestido daquele modo casual, com a camisa comprida e solta so­bre as calças justas e cinzentas, os cabelos úmidos bem penteados e afastados do rosto. Como de costume, Hugh trazia a mochila de couro pendendo do ombro, tinha o in­separável odre com vinho atravessado sobre o peito, mas não carregava sua estranha adaga.

Phillipa engoliu em seco. Havia nele alguma coisa mais que ela não podia definir.

— Você não devia se aproximar assim, tão sorrateira­mente.

— Existe maneira melhor de se descobrir os defeitos de alguém? — Sorrindo, ele deixou a mochila no chão e abriu o odre. — Se eu não chegasse sorrateiramente, não a surpreenderia espionando aqueles dois.

— Olhe só quem está falando! — Phillipa exclamou com desdém.

— Eu espiono pelo bem da Coroa.

— Pelo bem do seu bolso, você quer dizer.

Hugh suspirou e deu um passo à frente. A faixa de luz do sol, incidindo sobre ele, tornou mais branca a camisa de linho e fez o brinco de ouro brilhar. Ele estendeu o odre para ela.

— Quer um pouco?

Phillipa ia recusar a oferta, como tinha feito durante toda a viagem. Mas pensou melhor e concluiu que não havia mal nenhum em aceitar um gole do vinho.

Aproximou-se de Hugh e estendeu a mão. Ele arqueou as sobrancelhas, ligeiramente surpreso, e a observou en­quanto ela erguia o saco de couro de cabra e despejava na boca um pouco da bebida. Perturbado, notou os lábios carnudos e o longo pescoço.

Phillipa também olhava para ele e soube por que ele estava diferente.

— Você fez a barba — observou, devolvendo-lhe o odre. Hugh passou a mão no rosto.

— Não ficaria bem apresentar-me no palácio de Westminster com a barba crescida, parecendo um varredor de rua.

Ela teve vontade de rir só de pensar no arrogante Hugh de Wexford varrendo ruas ou esvaziando latrinas.

— Como conseguiu barbear-se à beira do ribeirão, no meio do bosque?

— Um soldado aprende a dormir e a barbear-se em qualquer lugar... E também a comer qualquer coisa. — Ele olhou sobre o ombro dela. Joanna e Graeham conti­nuavam abraçados, mas agora apenas conversavam. — E verdade que você não acredita no casamento?

— Onde você ouviu uma coisa dessas? — inquiriu Phillipa em tom cortante.

Hugh ficou meio embaraçado.

— Alguém em Oxford me disse isso. E verdade ou não? Phillipa perguntou a si o que mais Hugh poderia saber a seu respeito.

— Não é tão simples. Acho que, teoricamente, nada há e errado com o casamento. Mas, na prática, receio que vida conjugal seja sufocante. Especialmente para al­ém que busca o conhecimento, que prefere atividades intelectuais e procura aperfeiçoar o espírito. É por isso que os clérigos são encorajados a manter o celibato.

— Você não é um clérigo.

— Nenhuma mulher recebe as ordens sacras. Em Oxford, os que levam o estudo a sério costumam receber as ordens menores. Se eu fosse homem, teria recebido a tonsura anos atrás.

— Você pode tornar-se freira. Já pensou nisso?

— Eu não quis dizer que tenho inclinação para viver enclausurada. Em minha opinião, casamento e estudos não se entrosam bem.

— Estranho. Você vê com reservas o casamento e o verdadeiro amor, no entanto acredita nessa tolice que é o amor cortês.

— Eu nunca disse que acredito no amor cortês! Mas também não tenho motivos para duvidar dele.

Hugh colocou novamente o odre a tiracolo.

— Já experimentou essa explosão de amor de que fa­lam tanto em Poitiers? Certamente sentiu essa emoção. Já deve ter ficado apaixonada, perdida de amor...

— É claro que não! — Phillipa respondeu com convicção. — Mas admito que o assunto desperta o meu interesse.

— Não. — Hugh riu e balançou a cabeça. — Desperta seu sentimentalismo.

— Sentimentalismo! — Um súbito calor subiu ao ros­to de Phillipa. — Está dizendo que sou sentimental?

Ele deu uma gargalhada ao ver a indignação dela.

— Acredito que Você seja suscetível ao sentimentalis­mo, apesar da aparência de pessoa fria e intelectual que faz questão de ostentar. Se isso não é verdade, como ex­plica tanto interesse por essa tolice que é o amor cortês?

— Vou explicar. Suponho que você não tenha ouvido falar de uma mulher chamada Heloise. Ela ficou famosa em Paris, cerca de cinqüenta anos atrás, por causa de seu romance com Abelardo, grande filósofo e professor. Heloise era brilhante. Da mesma forma que eu, Heloise foi educada por um tio, cônego de Notre-Dame. Seu nome era Fulbert.

— Interessante. — Hugh encostou-se a uma árvore e tomou mais um pouco do vinho. — Continue.

— Eu sei que você vê com certo desprezo o conceito de união espiritual, sir Hugh, mas Abelardo e Heloise nutriam um pelo outro um amor imenso, que vinha do coração e da mente. Toda Paris apoiava o amor deles. Entretanto, sendo clérigo e professor, esperava-se que Abelardo fosse casto.

— Então a união deles era mais carnal do que espiritual...

— Eu não disse que a união dos dois era platônica. — Phillipa retrucou, exasperada. — Eles tiveram um fi­lho. Mesmo assim, Heloise resistiu aos apelos de Fulbert para que se casasse com Abelardo e salvasse sua repu­tação. Ela sabia que o casamento iria destruir Abelardo como professor. Ele era o maior pensador da Europa, grande teólogo, filósofo, brilhante dialético. Para ela, o importante era o amor que sentiam um pelo outro, não o casamento. — Phillipa suspirou. — No final, a história de ambos complicou-se.

— É sempre assim — Hugh murmurou em tom quase melancólico.

— Heloise concordou em se casar com Abelardo em segredo. Mas o sigilo do casamento não durou muito e começaram a falar mal dela e da educação que o tio lhe dera. Zangado, Fulbert mandou castrar Abelardo. Heloise ingressou num convento e Abelardo tornou-se monge. Mesmo separados, sem poder se falar nem se ver, man­tinham seu amor trocando cartas apaixonadas. Heloise, embora fosse freira, nunca foi esposa de Cristo. Pertenceu de coração e alma a Abelardo até o dia de sua morte.

— Não pode afirmar isso.

— Posso — contrapôs Phillipa, triunfante. — Estive com Heloise quando eu tinha catorze anos. Ela morreu três anos depois disso. Tio Lotulf levou-me ao convento de Paraclete, onde ela era a abadessa. Eu a considero a mulher mais extraordinária que já conheci. Era inte­ligentíssima, extremamente bondosa, tinha presença de espírito e continuava apaixonada por Abelardo, embora ele tivesse falecido vinte anos antes. Eu sempre desejei ser como ela, ainda que nunca tenha pensado em me tornar freira. Ela era realmente uma pessoa fascinante. Imagine, possuir tanta força, todo aquele espírito, aquele esplendor, apesar de enclausurada. E que tragédia...

— Mas essa Heloise, que você tanto admira, bem como Abelardo, foram destruídos pela mesma paixão que você acha tão interessante.

— O que os destruiu foi a idéia de que seu amor era vergonhoso simplesmente porque eles não estavam uni­dos pelos laços sagrados do matrimônio.

— Você acha que eles não deviam ter se casado e sim continuado a viver em pecado?

— Eles poderiam ter saído de Paris e ido para outro lugar. Quem sabe para Oxford, onde não há tanto pre­conceito.

Hugh ficou pensativo.

— Lorde Richard me contou que você teve muitos pre­tendentes, todos nobres e universitários, quando morava em Paris. Em Oxford teve bem poucos.

— Será que existe alguma coisa a meu respeito que você não saiba? — Phillipa indagou, contrariada.

— Há coisas a seu respeito sobre as quais não pos­so ter certeza absoluta. — Sem dar a Phillipa chance de perguntar o que ele estava querendo dizer, continuou: — Imagino que você tenha evitado o casamento por causa do que aconteceu a Heloise.

— Eu seria ingênua demais, especialmente depois de ter conhecido Heloise, se achasse que seria possível ter uma vida acadêmica e ser mãe e esposa ao mesmo tempo.

Phillipa se afastou de Hugh. O sol desaparecera, dei­xando o pomar envolto num véu purpúreo e frio.

— Como é a vida de uma intelectual que sacrifica tan­ta coisa pelo aprimoramento da mente? O que você faz?

A pergunta de Hugh surpreendeu Phillipa.

— Estudo, ora — ela respondeu, arrancando um galhinho da árvore mais próxima.

Hugh aproximou-se dela.

— Você só estuda, dia após dia?

— Não vejo mal nenhum nisso. — Phillipa encolheu os ombros. — Há monges e freiras que não fazem outra coisa senão rezar.

Ele sorriu.

— Pelo que você já disse sobre a vida no claustro, ima­gino que não seja uma pessoa devota.

— Não tenho uma fé cega. Sou racional, gosto de pes­quisar, questionar. — Phillipa brincou distraidamente com o galhinho, passando as folhas entre os dedos. — Abelardo disse: "As dúvidas nos levam à pesquisa. Pela pesquisa chegamos à verdade". Se dedico minha vida ao estudo é porque procuro melhorar a mente. Não se pode dizer o mesmo de monges e freiras, que rezam o tempo todo atrás das paredes de um convento.

— Talvez eles estejam tornando o mundo melhor — Hugh contrapôs, chegando tão perto dela que Phillipa se viu obrigada a encostar-se a uma árvore.

— Talvez eles estejam apenas se escondendo do mundo.

— E você não faz a mesma coisa? Também se esconde no seu refúgio acadêmico e nem pensa em sair dali para o mundo e usar seu cérebro privilegiado para alguma coi­sa realmente útil. De que adianta tanto conhecimento, Phillipa, se ele não é empregado para o bem das pessoas?

Hugh chegou ainda mais perto e a tocou de leve na testa. O contato dos dedos ásperos a deixou arrepiada. Ela quis dar uma resposta inteligente, mas o ar parecia ter-lhe fugido dos pulmões.

— Na verdade, você está se escondendo em um casulo — ele prosseguiu num sussurro, enquanto acariciava o rosto dela.

Phillipa fechou os olhos, atônita com o vendaval de sensações provocado por algo tão simples como um ro­çar de dedos em sua pele. O cheiro dele misturado ao do sabão de Castela e ao da camisa de linho limpa a deixou estranhamente atordoada.

— Estou aqui imaginando o que acontecerá com você... — Hugh não interrompeu as carícias. Passou os dedos pelo pescoço dela e contornou o decote da túnica.

— Lagartas transformam-se em borboletas, porém têm de romper o casulo e sair da segurança de seu abrigo. Elas devem deixar o santuário que sempre conheceram para se tornarem parte de um mundo muito maior.

Phillipa abriu os olhos e viu que Hugh a fitava in­tensamente. Havia algo quase terno em sua expressão. Delicadamente, ele a segurou pelo queixo.

— Por que está fazendo isto? — ela perguntou com o coração aos saltos.

Fez-se um instante de silêncio que ele rompeu pouco depois.

— Precisa haver um motivo?

— Tudo o que acontece tem uma razão — ela respon­deu e cruzou os braços sobre o peito.

— Meu toque a aborrece?

Phillipa quase riu. Ela estava sentindo a temperatura subir, faltava-lhe o ar. O que faria se fosse realmente o tipo de mulher licenciosa que todos em Oxford imagina­vam que ela era? Como reagiria às carícias de Hugh se fosse como Heloise?

— Claro que não me aborrece. Mas não vejo motivo para...

— Motivo? — Hugh voltou a encostar-se à árvore da qual se afastara instantes antes e cruzou os braços. — Os animais da floresta têm motivo para esfregar o focinho um no outro, para se lamber ou para se acasalar?

Phillipa franziu o cenho. Qual seria a intenção de Hugh? Confundi-la?

— Não somos animais.

— Pois, da mesma forma que os animais, o ser huma­no anseia por carícias que lhe proporcionam bem-estar, ternura ou satisfação carnal. — Hugh observou Phillipa, atento. — O erro está em desvirtuar uma necessidade instintiva como o sexo, relacionando-a a esse conceito fal­so de amor romântico.

— Você não acredita no casamento? — Phillipa quis saber, desejando que a voz não traísse seu nervosismo. Heloise certamente não ficaria perturbada se ouvisse um homem falar em "satisfação carnal" e "sexo".

— O casamento é útil para legitimar os filhos e asse­gurar a herança à qual eles têm direito. Só isso.

— Então pretende se casar quando se tornar o senhor de Wexford, apenas para que seus filhos herdem a pro­priedade.

— O que a faz pensar que serei um dia o senhor de Wexford? — Hugh perguntou, esboçando um sorriso.

— Eu sei que há a chance de o senhor de Wexf...

— Se ele me conceder a propriedade, eu a rejeitarei.

Phillipa o fitou, aturdida. Era estranho um homem rejeitar sumariamente um patrimônio hereditário.

— Pretende desistir de uma das melhores e maiores propriedades da Inglaterra?

Hugh cerrou o maxilar.

— Passei os piores anos da minha vida em Wexford. Não tenho a menor vontade de voltar a por os pés lá.

— Você é o filho mais velho, o único filho varão. Não é seu dever manter Wexford na família? Quanto ao casa­mento, você não acha que tem obrigação de perpetuar...

— Quem é você para fazer preleção sobre minhas obrigações?

— Eu só...

— Embora você não tenha nada com a minha vida, milady, vou lhe dizer uma coisa, assim, quem sabe, fico livre de suas perguntas. Minhas obrigações começam e terminam em mim. — Ele bateu o punho no peito. — O castelo de Wexford pode ficar em ruínas que não me im­porto. E nunca tive de pensar nessa desagradável possi­bilidade de unir-me em matrimônio, graças aos santos.

Para não levar Hugh a concluir que as referências que ele fizera sobre sexo a deixaram chocada, Phillipa observou:

— Se você não vê o casamento como uma união de amor, nem para gerar filhos, devo concluir que acasala como um animal, apenas por prazer.

Hugh bufou, incrédulo.

— Você já disse que não é adepta do matrimônio e que nunca esteve apaixonada. Também devo concluir que se deita apenas pelos prazeres da carne?

Phillipa arregalou os olhos de leve. Ele ouvira algum comentário sobre ela? Hugh acreditava que ela... Não. Estava impresso no olhar dele: não acreditava que ela fosse uma devassa. Ou então ele não sabia o que pensar a seu respeito, porque os comentários que tinha ouvido não condiziam com sua imagem de moça estudiosa e modes­ta. Ele a estava testando, claro. Queria ver sua reação. Esperava que ela enrubescesse, ficasse zangada e defendesse sua reputação. Decidida a não lhe dar esse gostinho, ela retrucou:

— Eu perguntei primeiro.

Fez-se um longo silêncio enquanto Hugh refletia so­bre o que Phillipa acabara de dizer. Ou melhor, sobre o que ela não dissera. Ao contrário do que ele esperava,

Phillipa não respondera negativamente à sua pergunta.

— Se você imagina que o prazer dos sentidos seja uma coisa simples e comparável ao acasalamento de animais, deve ter buscado esse prazer com os homens errados.

— É verdade — ela concordou com um riso nervoso. De repente, Hugh diminuiu a distância entre eles e segurou o rosto dela entre as mãos.

— Nem mesmo um beijo pode ser considerado sim­ples, desde que seja dado de maneira correta...

Curvando a cabeça, apossou-se dos lábios cheios e co­meçou a beijá-la, ignorando seus murmúrios de protesto.

Phillipa sentiu o coração disparar. Os lábios dele eram quentes, úmidos e macios. Nunca havia imaginado que os lábios de um homem pudessem ser tão suaves. Mesmo assim, tentou resistir ao beijo e empurrou os ombros lar­gos, surpreendendo-se com o volume e a rigidez dos mús­culos de seu tórax sob o tecido de linho.

Ignorando o esforço que ela fazia para se libertar, Hugh a beijou ávida e possessivamente; mas devagar, como se a saboreasse. Aos poucos, Phillipa parou de lu­tar e apreciou o momento. Tinha a sensação de estar so­nhando. Era um sonho febril, louco, inebriante.

Ele a trouxe para junto de si e prolongou o beijo, estimulando-a a fazer o mesmo. Phillipa o segurou pela ca­misa, a respiração acelerada. Um calor irradiou-se por seu corpo, como se pequeninas chamas ardessem dentro dela, emprestando-lhe um prazer que ela nem imaginava que pudesse existir.

Ele roubou-me a razão com um beijo!, pensou, atordoada.

Hugh não parou ali. Passou as mãos por cima de sua túnica, acariciando-lhe os braços, as costas e a curva dos quadris. Então a agarrou pelas nádegas e a pressionou contra o próprio corpo quase com desespero.

Algo rijo tocou na parte inferior do ventre de Phillipa e ela prendeu o ar. Devia ser aquela estranha adaga, pensou, mas lembrou-se de que ele estava sem a arma. Hugh continuou a movimentar-se, esfregando-se nela, pressionando aquela ponta rija entre suas pernas. Só então Phillipa percebeu, pelo formato e o calor que atravessava suas roupas, do que se tratava.

Jesus!

Afastou-se imediatamente, despertando de seu deva­neio sensual.

— Hugh...

— Não se preocupe. Ninguém pode nos ver — ele dis­se, ofegante, erguendo             dela com mãos trêmulas. — Posso colocar minha camisa no chão para você se dei­tar sobre ela, assim...

— Não é isso! — Ela tentou segurar os pulsos dele, mas a força de Hugh era maior, e ele continuou a afastar-lhe a roupa.

Phillipa arregalou os olhos, assustada. Hugh parecia , surdo aos seus apelos.

— Se preferir, podemos ir para o meu quarto sem que nos vejam... — A essa altura, ele já lhe acariciava suas nádegas, lascivo.

— Pare! — ela gritou e deu-lhe um sonoro tapa no rosto, depois sacou a pequena adaga da bainha, trêmula.

Hugh a soltou, aturdido. Por algum tempo, ninguém se mexeu nem disse nada.

Então ele afastou as mechas de cabelos caídas sobre a testa e soltou um suspiro, traindo seu estado de espírito.

— Se eu fosse um homem capaz de possuir uma mulher a força, essa droga de faca não a ajudaria em nada — disse com voz grave e fria. — Pensei que a nossa aventura naquele beco, em Oxford, tivesse lhe ensinado alguma coisa.

— Eu lhe disse para parar — retorquiu Phillipa, guar­dando a adaga.

— Eu imaginei que estivesse preocupada apenas em não sujar a túnica e não com a sua virtude, uma vez que esta já está perdida.

Ela sentiu o rosto em brasa.

— Você agiu dessa forma por causa dos comentários que deve ter ouvido a meu respeito... Mas está enganado.

Hugh tirou a rolha do odre e tomou um gole do vinho.

— O que me diz das idéias de liberdade sexual que você defende?

— Liberdade sexual não significa promiscuidade.

Com calma, ele fechou o odre, curvou-se e disse em tom glacial:

— Perdoe-me, lady Phillipa. Eu devia saber que você não concede seus favores a alguém como eu, uma vez que pode escolher universitários de Oxford, de mãos delica­das e mente brilhante.

O primeiro impulso de Phillipa foi dizer a Hugh que ele estava equivocado, que não tivera a intenção de ofen­dê-lo. No entanto, resolveu conter-se. Era melhor manter respeitável distância entre ela e sir Hugh de Wexford. A experiência lhe ensinara a usar todo meio ao seu alcance para desestimular as atenções amorosas dos homens.

Só que nunca se sentira tão ameaçada como agora.

Porque, pela primeira vez, um homem a perturbou.

Phillipa afastou depressa o pensamento. Hugh de Wexford não era digno dela. Era atraente, mas um liber­tino, acostumado a seduzir sem o menor esforço. Queria apenas usá-la. Ele mesmo havia admitido isso, sem pu­dor algum ou hesitação.

E entregar-se a um homem assim seria aviltante. Só de pensar que ela havia sucumbido ao beijo dele, ainda que momentaneamente, tinha vontade de morrer.

— Para mim, o importante numa relação é o entendi­mento — replicou laconicamente, por fim.

— Não posso dizer que a entendo, lady Phillipa. Mas não vou perder meu tempo tentando fazer isso.

Abaixando-se, Hugh ergueu a mochila do chão, jogou-a nas costas e se afastou na direção da casa.

 

De pé, à janela do gabinete de Richard Luci, no palá­cio real, Hugh olhava para o pátio iluminado pelo sol da manhã. Sentada num banco de pedra estava Phillipa de Paris, lendo um dos livretos que sempre carregava consigo naquela pequena pasta de couro presa ao cinto, enquanto esperava ser chamada para sua entrevista com o ministro. Lorde Richard quis conversar com Hugh em primei­ro lugar para saber quais suas impressões sobre lady Phillipa e, principalmente, se, depois de conhecê-la, ele achava que ela poderia desempenhar a contento o traba­lho de espionagem. Feito isso, expôs brevemente que tipo de trabalho seria aquele.

Ao terminar de ouvi-lo, Hugh teve vontade de levar Phillipa de volta a Oxford.

— Eu não atribuiria uma missão dessas a uma mulher casada, tampouco a uma donzela — explicou lorde Richard de sua mesa de trabalho. — Mas como você confirmou, lady Phillipa é conhecida por ser... liberal. Por não se prender às convenções no que diz respeito ao relacionamento com homens.

Hugh ficou intrigado. Se lorde Richard já obtivera in­formações sobre lady Phillipa e não lhe revelara esse fato quando o enviara a Oxford, com certeza esperava que ele se envolvesse com ela, tendo assim uma prova irrefutá­vel de que Phillipa era realmente uma mulher liberada.

— Para nós é muito conveniente que lady Phillipa seja tão avançada. Além disso, ela é simpática à causa do rei Henrique — lorde Richard prosseguiu. — E há, natural­mente, o fato de lady Phillipa ter tido um envolvimento com o cavalheiro em quem estamos interessados. Ela é a pessoa perfeita para a missão.

— Continuo não gostando disto — Hugh declarou, ainda olhando para ela lá de cima.

No momento, Phillipa interrompera a leitura e obser­vava dois filhotes de cão de caça brincando no pátio. Com aquele sorriso nos lábios, parecia tão jovem e inocente. Seria a mesma mulher que, tendo correspondido ao beijo dele com abandono, chegara a ameaçá-lo com uma faca quando ele tentara possuí-la?

— Nem eu — lorde Richard admitiu com um suspiro. — A questão não é considerarmos se o plano é ou não agradável, mas se ele irá funcionar. Parece que não há melhor meio do que este para termos prova da traição da rainha. Se for confirmado que ela conspira contra o rei, teremos tempo de fazer alguma coisa para sufocar uma possível rebelião.

Afastando-se da janela, Hugh viu lorde Richard sen­tado na beirada da mesa de carvalho. Embora enorme, esta parecia pequena em meio à magnificência do gabi­nete de teto alto.

O magistrado cruzou os braços e o observou com seus penetrantes olhos azuis. Naquela manhã, lorde Richard estava ainda mais imponente do que de costume. Usava túnica preta com enfeites dourados e trazia os cabelos grisalhos penteados para trás, evidenciando a testa am­pla, tida como sinal de sua inteligência prodigiosa.

— E se lady Phillipa não aceitar a missão? — Hugh quis saber.

— Eu a desafiarei. Você não disse que ela não resiste a um desafio?

De fato, Hugh admitiu em silêncio.

Lorde Richard chamou um dos criados que esperavam no corredor e o mandou descer até o pátio para chamar lady Phillipa antes de se voltar para ele novamente.

— Você é experiente e não espero condescendência de um homem como você, Hugh. Cumpra as ordens recebi­das do melhor modo, mesmo que não lhe agradem.

— Alguma vez agi de outra forma?

— Que eu saiba, não. Mas você parece constrangido por envolver lady Phillipa nesta missão.

— Uma coisa é ela escolher como amante um homem com as mesmas convicções intelectuais. Outra, bem dife­rente, é esperar que ela...

— Se a participação de lady Phillipa não fosse ex­tremamente importante para a nossa causa, eu jamais pensaria em pedir que ela colaborasse conosco, apesar de sua reputação. Afinal, ela é uma aristocrata, não uma vadia qualquer. O problema, Hugh, é que se ela se recusar a cooperar, não há ninguém que possa substituí-la. — Lorde Richard encheu os pulmões. — Foi uma falha você ter deixado de ameaçá-la ao mencionar que sabía­mos tudo sobre a correspondência mantida entre ela e o tio. Devia tê-la deixado pensar que nós mandaríamos matar e esquartejar o velho Lotulf caso ela se recusasse a participar da missão.

— Há limites para um homem se comportar como um bastardo.

Lorde Richard sorriu.

— É mesmo? Eu não tinha pensado nisso. — Depois acrescentou, muito sério: — Tudo o que lhe peço... ou me­lhor, exijo, é que durante a entrevista você não desencora­je lady Phillipa a nos ajudar. Obviamente teremos de con­vencê-la a aceitar a missão sem ferir sua sensibilidade.

Hugh virou-se e olhou novamente pela janela. Não havia em Phillipa nada convencional ou lógico e, certa­mente, nada previsível. Aquela criatura delicada, que vivia no seu casulo de seda, que se dizia livre e sem pre­conceitos, era um completo enigma.

— Lady Phillipa de Paris — anunciou o criado, en­trando no gabinete com Phillipa.

Lorde Richard aproximou-se dela e se apresentou com todo o encanto e perspicácia de consumado diplomata. Hugh fez apenas um aceno com a cabeça e continuou jun­to da janela.

Ordenando ao criado que trouxesse vinho, Richard conduziu Phillipa a um canto do gabinete mobiliado com cadeiras de espaldar alto e entalhes intricados, perto da lareira apagada. Phillipa piscou, surpresa, ao ver numa das paredes uma representação, pintada em tons vivos, de As Sete Idades do Homem, descritas por Shakespeare. Na outra, analisou a reprodução igualmente grandiosa de Os Doze Trabalhos dos Meses e, acima da lareira, um Mapa-Múndi circular. A parede do fundo, por conta das várias janelas, tinha sido pintada de verde, e continha centenas de estrelinhas douradas e luas no quarto crescente.

— Gosto muito de paredes decoradas — explicou lor­de Richard, oferecendo-lhe uma cadeira e sentando-se na frente dela. — É algo que realmente me dá prazer. O que achou das pinturas?

Phillipa não esperava pela pergunta e hesitou antes de responder. Hugh, que a observava, soube que ela pen­sava exatamente como ele, ou seja, não dava o menor va­lor àquelas obras.

— Para ser honesta, milorde...

Do outro lado da sala, Hugh a fitou nos olhos e moveu os lábios, aflito.

Phillipa entendeu a mensagem e conteve um sorriso.

— São pinturas extraordinárias, sir.

O magistrado ficou exultante. O criado chegou com uma bandeja com vinho e frutas, colocou-a sobre uma mesinha e saiu do gabinete. Lorde Richard recostou-se na cadeira e cruzou as pernas, com uma taça na mão. Após agradecer a Phillipa por ter vindo de Oxford a Westminster tão prontamente, fez um gesto chamando Hugh e indicou-lhe uma das cadeiras.

— Lady Phillipa — começou, de modo grave —, lem­bra-se de um cavalheiro chamado Aldous Ewing? Você o conheceu quando tinha dezesseis ou dezessete anos e morava em Paris. Aldous era três ou quatro anos mais velho do que você.

Phillipa franziu a testa.

— Conheci um inglês chamado Aldous de Tettenham.

— Esse mesmo. — O magistrado voltou-se para Hugh, que nada sabia a respeito do cavalheiro além do nome, e prosseguiu. — Filho de um barão de Middlesex, Aldous recebeu as ordens menores aos catorze anos e se mudou para Paris no ano seguinte para estudar as leis canônicas. Rapaz culto, encantador... E muito bonito, imagino.

— Ele parecia estar convencido de possuir esses atri­butos — disse Phillipa, os olhos fixos no ministro.

— Ele foi seu ardoroso pretendente, não foi?

— Bem, eu nunca o encorajei, tampouco lhe dei espe­ranças.

Lorde Richard levou a taça aos lábios, o olhar pene­trante fixo em Phillipa.

— Consta que ele era apaixonadíssimo por você. E que lhe pediu insistentemente para que se casasse com ele, apesar das circunstâncias do seu nascimento, e mesmo sabendo que sua carreira na Igreja seria prejudicada, pois, casando-se, ele não poderia receber as ordens maio­res. Sua recusa deixou-o arrasado. Pois bem. Ele agora é advogado e diácono da Igreja.

— Diácono? — Phillipa surpreendeu-se. — Então ele recebeu as ordens maiores.

— Parece que, ao perder seu grande amor, Aldous bus­cou poder e prestígio. Não sei como ele vivia antes, em Paris, mas tornou-se advogado brilhante e grande conhe­cedor do direito canônico. É astuto, interesseiro, desones­to e extremamente ambicioso. Como tantos outros dessa espécie, o fato de ter sido ordenado diácono não o impede de levar uma vida dissoluta. Sabe-se que ele teve e conti­nua tendo amantes, apesar do esforço que faz para man­ter em segredo seus romances clandestinos. Um diácono que exibe suas amantes jamais será nomeado arcediago, e esse é um cargo que ele deseja desesperadamente.

— Onde ele mora? Em Londres? — Hugh quis saber.

— Sim. Quando não está fora do país, fica na casa que mandou construir, do outro lado do rio, em Southwark.

— Southwark? — Phillipa admirou-se mais uma vez.

Hugh entendeu por que ela ficara surpresa. O subúr­bio londrino de Southwark tinha má fama por causa das hospedarias, tabernas e casas de banho que nada mais eram do que bordéis.

— Southwark mudou um pouco — comentou, irôni­co. — Muitos aristocratas estão construindo casas lá. O bairro pode ter má fama, mas está na moda e tornou-se elegante.

— E Aldous Ewing é extremamente elegante — com­pletou lorde Richard. — Dizem que importa as melhores lãs da Sicília e as mais finas sedas de Florença para con­feccionar suas vestes clericais.

— Ele era muito diferente quando o conheci, em Paris — volveu Phillipa, pesarosa. — Não que ele não tivesse defeitos. Na época ele já era egoísta, vaidoso e, a julgar pelos comentários, não era virtuoso. Mas a maioria dos estudantes, com ou sem tonsura, tinha comportamento semelhante. Eu sempre considerei Aldous inofensivo.

— Inofensivo... — lorde Richard sacudiu a cabeça, e ter­minou o vinho que tinha na taça. — Tivesse ele continuado inofensivo, eu não a teria chamado para vir até aqui.

— Em que ele está envolvido?

Extremamente sério e preocupado, o homem deixou a taça sobre a mesinha.

— É isso que espero que você consiga descobrir.

O olhar de Phillipa foi de lorde Richard para Hugh, depois voltou ao magistrado.

— Aldous Ewing está envolvido na rebelião da rainha?

— Se essa rebelião existe, acreditamos que ele esteja envolvido. Ele já criticava o rei Henrique por causa do desentendimento entre Sua Majestade e Thomas Becket, arcebispo de Canterbury. Como você sabe, Thomas Becket se opunha aos desmandos do rei e não aceitava sua inter­ferência nos assuntos eclesiásticos. Desde o assassinato do pobre Becket, Ewing passou a atacar o rei Henrique abertamente, chegando até a dizer que o rei tinha de res­ponder pelo assassinato do arcebispo.

— Muitos outros têm atacado o rei — Hugh assinalou. — Há provas de que Aldous Ewing seja um dos conspiradores?

— O que sabemos sobre Ewing é que ele é ostensiva­mente ligado à catedral de St. Paul, em Londres, porém, graças às doações do pai à Igreja, ele tem certos privi­légios e muita liberdade. Por isso, passa a maior parte do tempo no exterior. Viaja com freqüência a Paris, sen­do um dos favoritos da corte do rei Louis. Sabemos que ele esteve lá na Páscoa, estando os rebeldes em franca atividade. No mesmo dia em que ele deixou Paris e vol­tou para a Inglaterra, a irmã dele partiu de Poitiers... Um momento, estou me adiantando. Não mencionei que Aldous tem uma irmã mais velha.

— Sei disso. É Clare de Halthorpe. Eu a conheci quan­do esteve em Paris, visitando o irmão. Lembro-me de que eles brigavam muito. Lady Clare contou-me que era con­fidente da rainha Eleanor.

— Lady Clare é esposa do barão Bertram de Halthorpe, mas passa muito tempo com a rainha Eleanor.

— Quando a vi pela última vez, ela me contou que fazia mais de um ano que não via o marido nem ia à Inglaterra, e que não sentia falta de nenhum dos dois — completou Phillipa.

— Lady Clare não esconde que despreza a Inglaterra — observou lorde Richard. — Não gosta do clima, acha as pessoas retrógradas, preconceituosas, intolerantes e "lamentavelmente moralistas", como escreveu em uma carta endereçada à irmã.

Hugh notou que Phillipa comprimiu os lábios ao ouvir sobre interceptação de correspondência, mas continuou atenta ao que o magistrado dizia:

— Ela detesta especialmente o marido. Não gosta de ficar na Inglaterra com ele. Tanto que, nos dois últimos anos, o palácio da rainha em Poitiers tornou-se sua casa.

— Lembro-me de lady Clare. Tem a pele clara, cabelos negros e olhos azuis lindos, mas frios. Eu a conheci quan­do estive em Poitiers — Hugh comentou.

— Exatamente — Phillipa concordou. — Ela lembra uma estátua de mármore.

— Outra coisa de que me lembro é que ela estava sem­pre a um canto, conversando baixinho com um dos jovens cavaleiros — Hugh franziu a testa.

— Sim, a baronesa tem sido o centro de inúmeras in­trigas românticas — afirmou lorde Richard. — No Natal ela escreveu à irmã que Poitiers era "um refúgio de pai­xão, elegância e deliciosa licenciosidade", e que ela prefe­ria morrer a sair dali.

— Porém acabou deixando o lugar — Phillipa apontou.

— Sim, e sua partida foi repentina. Todavia, não acre­dito que tenha havido algum desentendimento entre lady Clare e a rainha. As duas eram inseparáveis. Lorde

Bertram e lady Clare tinham passado tanto tempo dis­tantes um do outro que ele quase não a reconheceu quan­do ela apareceu no castelo Halthorpe com seu cortejo. Lorde Bertram partiu imediatamente para o Continente com a amante e os criados, deixando para trás todos os seus soldados.

— Aldous Ewing deixou Paris na mesma ocasião? — Hugh perguntou.

— Sim, mas não partiu sozinho. Acompanharam-no doze homens armados, provavelmente soldados do rei Louis, e duas carroças com barris e baús. Mas não des­cobrimos o que havia dentro deles. Na semana seguinte, a carga misteriosa foi deixada no castelo Halthorpe aos cuidados de lady Clare. Aldous Ewing foi imediatamente para sua casa em Southwark, e os homens armados fica­ram em Halthorpe.

Hugh recostou-se na cadeira e cruzou as mãos sobre o estômago.

— Essa movimentação toda é muito suspeita.

— Sem dúvida — lorde Richard concordou. — Estou preocupado. Eu gostaria de descobrir o que havia naque­las carroças.

— Por que o senhor não manda um contingente ao castelo para dar uma busca? — Phillipa sugeriu.

— Não é aconselhável. Eles enfrentariam a resistên­cia dos homens do rei Louis e provavelmente dos solda­dos de lorde Bertram, que são numerosos. Isto sem con­tar que destruiriam ou mandariam para outro lugar tudo que pudesse incriminá-los antes mesmo de entrarmos no castelo. O mais importante é que o rei Henrique é contra irrompermos num castelo inglês sem provas de que ali há uma conspiração. Sua Majestade quer que seja feita uma investigação cuidadosa, discreta, e espera conseguir provas concretas e irrefutáveis de que a rainha Eleanor está, realmente, planejando uma rebelião. Para isso con­tamos com você, lady Phillipa.

— O senhor quer que Aldous e eu voltemos a nos ver?

— Um pouco mais do que isso. Além de se reaproximar dele, vá com ele a Southwark, ao castelo Halthorpe, insinue-se.

Phillipa encarou o magistrado, abismada.

— Como o senhor sugere que eu faça isso, milorde?

A expressão de lorde Richard traiu seu constrangi­mento e também sua irritação por se ver obrigado a ser mais claro.

— Tempos atrás, Aldous Ewing apaixonou-se por você e estava disposto a sacrificar sua carreira eclesiástica para ser seu marido. Se o destino colocá-la novamente no cami­nho dele, e se desta vez você encorajá-lo... Bem, ele ficará muito contente por ter agora o que não teve em Paris.

— Mas agora Aldous recebeu as ordens maiores e não pode se casar. — Os olhos de Phillipa dardejavam. — Se eu bem entendi, o senhor quer que eu me torne amante dele?

Lorde Richard não conseguiu encarar Phillipa, tam­pouco respondeu à pergunta que ela acabara de fazer.

— Eu jamais pediria a uma mulher para violar seus princípios.

— Princípios à parte, milorde, o que me causa perple­xidade é constatar que os homens acham que, se uma mulher quer uma coisa, só a consegue valendo-se de seus favores sexuais. Acha mesmo que eu seria incapaz de usar minha inteligência e a minha presença de espírito para obter as informações de que necessita?

Sagaz diplomata, lorde Richard respondeu:

— Só a senhorita pode dizer a extensão de seu rela­cionamento com o referido cavalheiro, mas, se vocês se tornarem íntimos, ele irá apreciar a sua companhia, pas­sará a maior parte do tempo com milady, o que lhe dará mais chances de descobrir o que nos interessa.

— Lorde Richard tem razão — disse Hugh. — A arma mais poderosa de uma mulher bonita não é o que está entre suas orelhas...

Phillipa fulminou-o com o olhar. Lorde Richard lançou a ele um rápido olhar de censura e, voltando-se para ela, ofereceu-lhe um cálice de vinho.

Quando Phillipa recusou, prosseguiu, incontinenti: — Nem é preciso dizer do quanto sua colaboração é impor­tante, e como o rei Henrique ficará agradecido. Ele a recom­pensará generosamente, lady Phillipa. Irá torná-la rica...

— Como se não bastasse me pedir para dormir com um homem para descobrir informações do seu interesse, milorde, agora me oferece pagamento como se eu fosse uma prostituta de esquina? Qual será o valor? Dois pence cada vez que eu me deitar e abrir as pernas para ele?

Hugh admirou a explosão e teve vontade de rir ao no­tar o espanto e evidente desconforto do ministro. Muito sério, lorde Richard replicou:

— Não tive a intenção de desrespeitá-la, milady, mas es­tou desesperado, assim como o rei. Nós dois nos lembramos muito bem do conflito entre o rei Stephen e a imperatriz Matilda, trinta anos atrás. Foi um período de anarquia, caos e devastação. Outra guerra civil poderá destruir a Inglaterra. Com a sua ajuda evitaremos que isso aconteça.

Ansioso, Hugh esperou pela resposta de Phillipa.

Não faça isso, pensou, para, em seguida, censurar-se. Por que não lhe era agradável a idéia de Phillipa fazer o papel de prostituta, se era pelo bem do Reino? Ela já havia feito a mesma coisa por motivos menos nobres.

Bem, na noite anterior, ela reagira aos avanços dele com veemência, demonstrando que, afinal, tinha seus princí­pios. E agora, também, ela parecia claramente inquieta.

— Você é a pessoa ideal para se infiltrar no círculo de Clare e Aldous e nos trazer provas de que eles estão, de fato, planejando uma revolta — o magistrado insistiu. — Estou certo de que, com a sua inteligência, sua racionali­dade e presença de espírito, você conseguirá que Aldous lhe confie seus segredos bem depressa. Aliás, Hugh me disse que sua capacidade analítica...

— Poupe seus elogios, milorde. Não sou suscetível a eles — Phillipa o interrompeu.

— E se eu implorar que nos ajude pois é a única pes­soa que...

— Milorde, eu sei que o senhor e o rei estão desespe­rados, mas não posso. — Phillipa sacudiu a cabeça. — Tente compreender.

— Eu compreendo. — Lorde Richard inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — Você pensa que não pode, simplesmente por não se sentir confiante.

— Eu não disse que não me sinto confiante.

Ah, cão ardiloso, Hugh pensou, percebendo que lorde Richard havia mudado de tática. O astuto magistrado ten­tava prender Phillipa em uma armadilha, lançando-lhe um desafio, precisamente como dissera que iria fazer.

— Verdade — concordou o homem. — No entanto, é natural que você esteja amedrontada, receosa de aceitar uma missão desse tipo. Teve uma vida segura, sempre esteve protegida e...

— Por que o fato de eu ter recebido boa educação sig­nifica que estive sempre protegida?

— Lady Phillipa, eu quis dizer que reconheço que a idéia de uma missão de espionagem seja realmente as­sustadora para uma pessoa que nunca se envolveu em atividade semelhante, tampouco correu riscos. Porém, alimentava a esperança de que você refletisse sobre o as­sunto e aceitasse a missão. — Lorde Richard encolheu os ombros. — É um desafio? Há riscos? Certamente. Mas é também uma oportunidade para que conheça o mundo além dos muros de Oxford.

Phillipa mordeu o lábio. Pela primeira vez, naquela manhã, dirigiu a Hugh um olhar tímido e perguntou:

— O que acha que eu devo fazer?

Muito surpreso, pois não esperava que ela quisesse ouvir sua opinião, ele ficou emudecido por um instante. Phillipa parecia tão confusa e dividida que ele sentiu-se inclinado a dizer-lhe para desistir daquela missão detestável.

No entanto, lorde Richard o fizera prometer justa­mente o contrário. Portanto, ele deveria convencê-la a colaborar com eles.

Além disso, por que razão ele deveria sentir pena de uma mulher que o menosprezava e que o considerava um ignorante?

Vendo que Phillipa aguardava a resposta, Hugh perguntou a si mesmo se ela levaria em conta a opinião dele, visto que era uma mulher de personalidade e difícil de ser influenciada. Lorde Richard também o fitava com expressão ansiosa. E era à Sua Excelência que ele devia fidelidade e obediência.

Hugh pegou a taça sobre a mesa e tomou o vinho de um só trago.

— Não será a primeira vez que terá um solidéu clerical pendurado na coluna de sua cama, milady. Agora, pelo menos será por uma boa causa — sentenciou.

Phillipa empalideceu.

— Pois muito bem... aceito a missão.

Só de imaginar Phillipa e o tal Aldous Ewing agar­rados numa cama, Hugh sentiu um mal-estar. Cerrou os maxilares e amaldiçoou a si próprio, Phillipa, lorde Richard, o rei, a rainha, os filhos dos dois e toda aquela maldita missão.

Lorde Richard relaxou e disse, satisfeito:

— Não se arrependerá, lady Phillipa.

— Será que não, milorde? — Hugh encheu sua taça novamente e sentou-se para saborear o vinho. — O se­nhor ainda não deu a lady Phillipa todas as informações sobre a missão que a espera.

Caminhando pela ponte de Londres de braço dado com Hugh, Phillipa perguntou a si mesma se teria acei­tado aquela incumbência se soubesse que teria de fazer o papel de esposa de Hugh de Wexford.

— Este é um bom lugar — disse Hugh quando chegaram à velha estrutura de madeira que ligava a cidade de Londres, propriamente dita, a Southwark e a toda a área do outro lado do rio Tâmisa. Hugh colocou a mão nas costas de Phillipa e a conduziu por entre a multidão de pedestres barulhentos até a extremidade oeste da ponte. Apoiaram os cotovelos no parapeito de carvalho e ficaram observando o grande rio banhado pelo sol, as embarcações que navegavam pelo Tâmisa na tarde ensolarada, e outras, bem maiores, que estavam ancoradas. Navios mercantes em sua maioria.

— Ali é Southwark? — Phillipa indagou, olhando na direção sul, para o grupo de casas simples com tetos co­bertos de palha ou telhas, perto da margem do rio. — Não parece um antro de pecado.

— O que você esperava? Mulheres despidas dançando nas ruas? — Hugh perguntou, rindo. — Você precisa, re­almente sair de Oxford com freqüência, milady.

— Estou aqui, não estou? E feliz, apesar das circuns­tâncias.

Havia em Londres, com aquela desordem, sons estri­dentes, um cheiro peculiar; algo que fazia seu sangue correr nas veias. Isto sem contar a excitação em que se encontrava por estar envolvida naquela missão secreta.

— Fique atenta, olhando para o Norte, na direção da cidade — Hugh sugeriu. — É bem provável que Aldous reconheça você quando passar por aqui.

Phillipa concordou em silêncio. Eles tinham vindo até ali para encontrarem "acidentalmente" com Aldous Ewing. Quando estava em Londres, Aldous cumpria seus deveres de diácono na Catedral St. Paul e voltava para sua casa ao anoitecer. Ele teria forçosamente de passar por aquela ponte para chegar a Southwark.

No dia anterior, Phillipa e Hugh tinham permaneci­do a manhã e a tarde fora da catedral, esperando ver Aldous, inutilmente. Ele não havia passado por eles, ou, se passara, não reconhecera Phillipa. Com um pouco de sorte, Aldous não apenas iria vê-los naquele começo de noite, como terminaria por convidá-los para se hospedar em sua casa. Se isso acontecesse, eles teriam até mes­mo a chance de visitar o castelo Halthorpe, que ficava ao Nordeste, a cerca de oito milhas de Londres.

Phillipa olhou para a outra margem do rio. Do lado oeste ficava o castelo Baynard e ao Leste, a Torre de Londres. A brisa suave que vinha do rio agitava o fino véu que ela usava sobre as trancas presas por uma fivela de prata trabalhada em filigrana.

— Ainda acho que não é boa idéia nos apresentarmos a Aldous como marido e mulher, uma vez que o nosso objetivo é que ele tente me conquistar — disse Phillipa. — Não acredito que ele queira flertar comigo se você es­tiver o tempo todo do meu lado.

— Engano seu. Da mesma forma que a irmã, Aldous está completamente envolvido por essa tolice que é o amor cortês. Para sujeitos como ele, o matrimônio não é impedimento para a sedução, especialmente se o marido da dama for desses que fecham os olhos para esse tipo de coisa. Pelo visto, milady, você entende de amor cortês intelectualmente, mas nada ou quase nada na prática. Esse é um defeito comum de quem passa muito tempo lendo sobre a vida em vez de vivê-la.

Não se importando com a ironia, Phillipa replicou:

— Para mim isto é tudo muito incomum. Quando lor­de Richard disse que Aldous tinha especial interesse por mulheres casadas, você assentiu como se já soubesse dis­so e não estranhasse esse tipo de comportamento. Por mais que eu tente, não consigo entender por que alguém pode aceitar uma situação que só irá tornar as coisas mais complicadas.

— Porque, ao contrário do que você pensa, as coisas se tornam mais simples para o homem que se envolve com uma mulher casada. Senhoras casadas esperam pouca coisa do amante além de um bom desempenho na cama. É muito conveniente e agradável não ter de fingir paixão só para se conseguir momentos de prazer.

— Fingir paixão?

— Em geral o que se busca é a satisfação dos sentidos.

— Você nunca sentiu amor por uma mulher?

Surpreso, Hugh não respondeu. Seus olhos, mais verdes e mais profundos do que a água que os cercava, fixaram-se em Phillipa, tão intensamente que pareciam desnudar-lhe a alma. Erguendo a mão, ele segurou o queixo dela.

Ele vai me beijar!, ela pensou com o coração palpi­tando loucamente ao sentir na pele o contato dos dedos quentes e ásperos. E desta vez vou corresponder ao beijo.

Mas Hugh não a beijou. Apenas virou o rosto dela para o outro lado e disse:

— Continue olhando para o Norte.

Recostando-se no parapeito, Hugh a abraçou pela cin­tura, como se eles fossem um casal devotado que estava passeando, e não dois agentes a serviço da Coroa que nada tinham em comum... exceto o desejo de independência.

Phillipa esfregou os braços, embora não estivesse frio. Soprava apenas uma brisa suave.

— Está nervosa? — Hugh começou a massagear-lhe os ombros e as costas.

Ela usava uma túnica de fina seda cor-de-rosa com fios prateados. Era um dos trajes luxuosos que lorde Richard mandara fazer depois da entrevista em Westminster. Ele encomendara trajes provocantes, de acordo com a moda em Paris, com decotes amplos, blusas justas enfeitadas com bordados casa-de-abelha, ponto smocking, pregas elaboradas e laços. Lorde Richard providenciara tam­bém acessórios: lindas cintas, sandálias, sapatos e jóias, colares, brincos, broches e, naturalmente, uma aliança. Apesar da resistência de Phillipa, insistira para que ela ficasse com tudo para si, além de lhe dar um porta-jóias com entalhes de marfim cheio de moedas de ouro espa­nholas como recompensa por seu trabalho para a Coroa.

— Precisa parecer rica e elegante — dissera o magis­trado e acrescentara: —Tanto você quanto seu "marido".

Hugh usava elegante túnica púrpura, calças pretas justas, e estava bem barbeado. Havia puxado os cabelos para trás, amarrando-os sobre a nuca. Continuava usan­do o brinco, e a adaga ainda pendia de seu cinto no lugar da espada de cavaleiro.

— Não estou nervosa — Phillipa respondeu por fim, tentando ignorar a excitação e o estremecimento provo­cados pela massagem de Hugh. Nos últimos dias havia experimentado emoções semelhantes, causadas pela simples proximidade dele, por suas carícias casuais e seu riso descuidado. Embora jamais tivesse sentido desejos tão intensos, reconheceu que a reação de seu corpo era puramente sexual. Hugh a atraía sexualmente e isso a deixava não apenas aborrecida, como intrigada. Por que tinha de sentir atração justamente por um homem peri­goso e arrogante como Hugh de Wexford? Por que não um homem mais digno, um pensador, um daqueles intelectu­ais por quem tinha a mais elevada estima?

Sabia a resposta. Porque Hugh era diferente, claro. Não era como aqueles estudantes, professores e clérigos disciplinados e gentis com quem ela convivera durante seus vinte e cinco anos. Todos eles eram inteligentes, atenciosos, civilizados. Ela os respeitava e admirava. Mas nunca sentira aquele tipo de atração nem mesmo por seus mais belos e ardorosos pretendentes. Por ne­nhum deles havia perdido horas de sono, imaginando como seria pertencer-lhe de corpo e alma.

Ciente de que não podia ser dominada por semelhan­tes emoções, disse a si mesma que seus anseios eram gerados pelo fato de Hugh de Wexford representar uma novidade em sua vida. Ele parecia exótico e desejável so­mente por ser o oposto dos homens que ela conhecia. Era viril, impulsivo, sensual, audacioso. Na companhia de soldados, seu comportamento seria igual ao dos colegas.

Portanto, não havia nada especial nele. Nada que des­pertasse nela algo além de desejo físico. E, a julgar pelo comportamento dele no pomar, apetite sexual era o que não lhe faltava. Tendo sido soldado, com toda certeza es­tava acostumado a encontrar sempre uma mulher dis­posta a lhe conceder seus favores.

Tais considerações levaram Phillipa a concluir que não podia se impressionar com as pequenas atenções de Hugh, nem com o número de vezes que ele tocava nela, tampouco com o fato de surpreendê-lo fitando-a de modo tão intenso. Tais gestos nada significavam para um ho­mem como ele.

Não será a primeira vez que terá um solidéu clerical pendurado na coluna de sua cama, milady...

As palavras insultuosas de Hugh, no gabinete de lorde Richard, vieram-lhe à mente e ela sentiu um aperto no peito.

Pensou em Aldous Ewing: culto, elegante, refinado, o oposto de Hugh. Mas deitar-se com ele estava fora de cogitação. Ela bem tentara explicar a lorde Richard e a Hugh, na semana anterior, que não era quem eles es­tavam pensando. Como nenhum dos dois lhe dera aten­ção, ela desistira. Não iria se tornar amante de Aldous. Conseguiria informações graças à sua inteligência, não ao seu corpo. Teria de provocá-lo, certamente. Iria flertar com ele, deixando-o convencido de que ela estava pronta para a sedução. Antes disso ela já teria, sutilmente, des­coberto o que pretendia.

— Lady Phillipa?!

A voz grave a tirou de seu devaneio. Phillipa olhou ao redor. Em meio à multidão um homem alto e muito atra­ente, de cabelos castanho-escuros e usando veste clerical preta, olhava para ela.

— Aldous — murmurou em pânico.

Hugh segurou com firmeza na mão dela, afastou-a do parapeito e sussurrou-lhe ao ouvido:

— Sorria... Você é capaz. Estou aqui para ajudá-la. Aldous se aproximou com os braços abertos e um am­plo sorriso.

— Phillipa! Meu Deus! — Segurou-a pelos ombros e bei­jou nas faces. — Olhe para você! — Ele a analisou da cabeça aos pés com evidente admiração. — Está mais encantadora do que nunca. Quando nos vimos pela última vez?

Controlando-se para não tremer, Phillipa respondeu:

— Em Paris, há sete anos, talvez oito.

— É claro. Paris... — O olhar de Aldous voltou-se para Hugh, e seu sorriso perdeu um pouco do brilho ao perce­bê-lo de mãos dadas com ela. Phillipa fez as apresentações.

— Aldous, este é meu marido, Hugh de Oxford. Hugh, este é um velho amigo, Aldous de Tettenham.

— Ah. — Os expressivos olhos castanhos de Aldous refletiram sua surpresa e desapontamento. — Então você se casou, afinal.

No passado, quando Aldous a cortejava e era tão apaixo­nado, Phillipa jurara que jamais se casaria, pois o casamen­to iria destruir seus sonhos. Na época ela acreditava nisso.

Será que havia mudado seu modo de pensar?

— Você é um homem de sorte, Hugh de Oxford. — Fixando no rosto um sorriso amável, Aldous curvou-se ligeiramente diante de Hugh.

— Eu sei — volveu Hugh, inclinando a cabeça. Em se­guida, ele a segurou pela cintura de maneira possessiva.

O gesto surpreendeu Phillipa, uma vez que Hugh de­veria representar o papel de marido indulgente. Como se tivesse pensado a mesma coisa, ele se separou dela e se afastou ligeiramente, deixando-a mais perto de Aldous.

— A propósito, meu nome é Aldous Ewing desde que fui ordenado diácono.

— Você é diácono?! — Phillipa fingiu surpresa. — Pensei que não tivesse interesse pelas ordens maiores.

— Parece que tomamos rumos opostos aos que pre­tendíamos seguir, não é mesmo? — Ele sorriu. — Mas assim é a vida. As coisas mudam. Você mudou muito, sem dúvida. — Mais uma vez, ele olhou para Phillipa de alto a baixo e com franco interesse, fixando a atenção nas cur­vas femininas evidenciadas pelo traje elegante e justo.

— E parece que desistiu de usar aquelas deselegantes túnicas de lã e aquela horrível pasta de documentos... O que fez com seus preciosos livros?

— Eu...

Hugh respondeu por Phillipa:

— Ela não os trocou por nada. Phillipa ainda ama seus livros. Consegui convencê-la a afastar-se um pouco deles, só isso.

— Que bom — Aldous murmurou, porém continuava olhando para Phillipa como se a despisse. — O que os trouxe a Londres? Ou vocês estão morando aqui?

— Moramos em Oxford e estamos em Londres de passagem... — Phillipa respondeu, olhando bem para Aldous, como se pedisse para que ele não a encarasse de modo tão indiscreto. — Estivemos no castelo de Wexford com lorde William, mas Hugh e o pai nunca se entende­ram muito bem, e a visita se tornou um tédio. Então de­cidimos nos hospedar em uma estalagem em Southwark. Pretendemos voltar para Oxford amanhã.

Aldous olhou para Hugh com certo interesse.

— É filho de William de Wexford?

— Sou.

— Mas não aquele que se tornou mercenário...

— Meu pai só tem um filho.

— Resposta astuta e vaga. — Aldous sorriu. Correu devagar os olhos pela figura de Hugh, reparou no brinco de ouro e na ajambiya presa no cinto. — Interessante. Seu pai e o meu costumavam caçar juntos.

Isso era novidade para Phillipa e também parecia ser para Hugh, que hesitou antes de perguntar:

— É mesmo? Eu não fazia idéia. Você também os acompanhava nessas caçadas?

— Fui com eles uma ou duas vezes. Esse tipo de ati­vidade nunca me atraiu. Minha irmã, sim, costumava acompanhá-los.

— Então ela devia se dar muito bem com meu pai.

— Sim, sem dúvida — Aldous concordou. Disse em ou­tro tom: — Confesso que estou curioso para saber como um homem com a sua formação acabou se casando com uma intelectual de Paris.

— Conheci Phillipa em Oxford — Hugh informou, frio.

— Deixei Paris logo depois de você — Phillipa explicou, tensa. — Eu queria continuar meus estudos em Oxford. No Natal do ano seguinte, conheci Hugh. Eu tinha ido ao castelo visitar a rainha Eleanor. Na ocasião, ela se encon­trava em profundo estado de melancolia. Foi um período difícil. O médico disse que ela estava com depressão.

— A doença de Sua Majestade era causada pela pre­sença da amante do marido no palácio de Woodstock — completou Hugh.

Ele se referia ao choque que a rainha sofrera algu­mas semanas antes, quando encontrara instalada em Woodstock, sua mais amada residência, a amante do rei, Rosamund Clifford.

— Ouvi falar sobre isso — Aldous murmurou. Não po­deria ignorar a história que era do conhecimento de toda a Inglaterra e a França.

— Passei bastante tempo no castelo de Oxford, ten­tando reanimar a rainha. Foi lá que conheci Hugh — Phillipa continuou. — Ele e outros cavaleiros de confian­ça tinham sido chamados pela rainha que...

— Minha querida — Hugh a interrompeu e franziu a testa, como se a censurasse por estar falando demais.

— Seu amigo não está interessado em detalhes. — Ele dirigiu-se a Aldous. — Em resumo, apaixonei-me por lady Phillipa assim que a vi.

— É verdade — ela se apressou em concordar. — Conhecemos o verdadeiro amor. Foi uma paixão fulmi­nante... Mas não quis me casar com Hugh enquanto ele não deixasse a vida de soldado mercenário.

— Então vocês dois eram confidentes da rainha — dis­se Aldous com uma nota de admiração na voz.

— Eu gostaria de dizer que sim — volveu Hugh com modéstia. — Estive com a rainha Eleanor naquela época e, recentemente, durante uma visita a Poitiers. Duvido que ela se lembre de mim dos tempos em que estive em Oxford, uma vez que estava muito perturbada na época.

— Nem de mim ela deve se lembrar — disse Phillipa. — Rezo por ela todos os dias. Especialmente agora, con­siderando o modo como o rei Henrique a humilhou e en­vergonhou.

— Phillipa... — Hugh a censurou baixinho.

— Por favor. — Aldous ergueu a mão. — Não preci­sam ser circunspetos por se acharem na minha presença. Asseguro-lhes que penso como vocês.

— Oh, eu sabia! — Phillipa deu um passo na direção de Aldous e segurou as mãos dele. — Você foi sempre tão perceptivo, criterioso... Sempre soube discernir o certo do errado e nunca teve medo de expressar sua opinião. Como eu admirava isso em você.

Na verdade, ela estava perplexa ao perceber que Aldous acreditara tão facilmente que ela e Hugh eram desleais ao rei. Lorde Richard lhes recomendara para ficarem atentos, pois duvidava que Aldous baixasse a guarda e revelasse logo de início que simpatizava com a causa da rainha Eleanor.

Entretanto, ele estava engolindo a isca e logo ela po­deria puxar a linha.

Phillipa engoliu em seco. Causava-lhe mal-estar fazer o que estava fazendo. Ter de olhar nos olhos de uma pes­soa e mentir já era ruim; brincar com seus sentimentos, então, era imperdoável. Se fosse mais piedosa, iria procu­rar um sacerdote para se confessar.

O que servia para lhe aliviar a consciência era se lembrar de que tudo o que estava fazendo era para o bem do Reino.

— Eu gostaria de não ter de voltar para Oxford amanhã, especialmente sabendo que você está aqui. — Acariciou as mãos de Aldous. — Senti sua falta durante esses anos. — Baixou a voz, como se não quisesse que Hugh a ouvisse. — Como me arrependi de ser tão incompreensiva... Tenho desejado tanto revê-lo e, agora, aqui estamos. Talvez possamos nos ver mais vezes.

— Sim... —A voz de Aldous tornou-se rouca. — Isto é, eu gostaria muito de passar mais tempo com você. — O olhar dele se fixou em seus seios, significativamente.

— Eu sei o que você quer dizer — ela murmurou, es­boçando um sorriso. — Também quero a mesma coisa.

— Querida, temos de ir — Hugh os interrompeu. Foi até ela e colocou as mãos em seus ombros.

Rapidamente, Phillipa soltou as mãos de Aldous, como se estivesse se sentindo culpada.

— Temos de encontrar uma estalagem, buscar os cava­los e a bagagem antes do anoitecer — prosseguiu Hugh.

— E você ainda precisa daquela massagem se quiser ter boa noite de sono para agüentar a viagem, amanhã...

— Têm mesmo de voltar para Oxford amanhã? — Aldous perguntou.

— Sim. Não creio que conseguirei dormir numa dessas estalagens horríveis por mais de uma noite — Phillipa respondeu, amuada.

— Tentamos nos hospedar no mosteiro Holy Trinity, porém não havia lugar — lamentou Hugh. — Deixamos lá a bagagem e os cavalos. Se pelo menos conhecêssemos alguém na cidade...

— Mas conhecem, ora essa. Não moro na cidade, pro­priamente, entretanto minha casa fica em Southwark e é bem grande. Se quiserem ficar lá, serão muito bem-vindos

— Oh, Aldous, não queremos aproveitar de sua bondade.

— Será um prazer recebê-los... — Ele sorriu de lado.

— Fiquem quanto tempo quiser. Semanas, meses...

— É muita generosidade sua — agradeceu Hugh. — O que acha disso, querida?

— Por favor, aceitem meu convite — Aldous insistiu.

— Ficarei muito feliz. Poderão ficar com o quarto de hós­pede maior, que é muito confortável: tem colchão de plumas e lareira.

— Interessante — Hugh comentou com uma ponta de malícia no olhar.

Phillipa engoliu em seco ao imaginar em quê, exata­mente, estava se envolvendo.

Assim que entrou no hall, Hugh ouviu o som abafado, íntimo, de risadas. Risadas de Phillipa... e de Aldous. Ele parou, inspirou fundo e expirou devagar. Olhou para a pequena pia de água benta que ficava ao lado da porta, uma das muitas afetações do bastardo santarrão. Normalmente Hugh passava por ali sem olhar para a pia, mas naquela noite sentiu-se inclinado a molhar os dedos e fazer o sinal-da-cruz, pensando: Senhor, ajude-me a suportar isto. Ajude-me a não me importar.

As risadas vinham do amplo cômodo, no primeiro an­dar, que reunia as funções de sala de jantar e sala de estar da enorme e ostentosa casa de pedra. Hugh subiu a escada lentamente, os passos silenciosos, embora es­tivesse usando pesadas botas de montaria com solado de madeira. Ele voltava da viagem que fizera naquela tarde a Westminster, onde tivera uma reunião com lorde Richard para relatar ao magistrado o progresso feito na primeira semana em que ficara hospedado com Phillipa na casa de Aldous Ewing.

— Vocês ouviram alguma coisa sobre o suposto movi­mento contra o rei? — o ministro perguntara, ansioso.

— Até agora, nada. Mas toda vez que fazemos qualquer alusão ao assunto, percebemos que Aldous se mostra reti­cente. Sinto que ele está escondendo alguma coisa.

— Sua intuição pode ser apurada, porém o rei quer fatos, provas.

— Temos revistado a casa durante o dia, enquanto Aldous está na Catedral. Só encontramos uma carta de lady Clare ao irmão, informando-o que uma pessoa muito importante virá para cá. Acredito que seja um estrangei­ro. Assim que esse homem chegar a Londres, Aldous deve levá-lo ao castelo Halthorpe. Aqui está a cópia da carta.

Phillipa a havia copiado. Nem mesmo o consultara, imaginando que ele mal sabia escrever.

— Ótimo trabalho — lorde Richard tinha aprovado. — O que me diz sobre lady Phillipa? Cabe a ela a tare­fa de extrair informações de Aldous. Ela já acrescentou mais um solidéu clerical à sua coleção?

Ele fora obrigado a fazer um enorme esforço para se conter.

— Ainda não, sire. Mas está tentando.

Hugh chegou ao patamar da escada e parou. Segundos depois, caminhou até a porta da sala, afastou um pouco a cortina de couro e viu Phillipa e Aldous. Estavam bem juntinhos, debruçados na grade da estreita sacada, olhan­do para o Tâmisa. Apenas algumas velas iluminavam a sala. Phillipa usava um vestido de damasco marfim com um decote exagerado, que deixava à mostra seus ombros e a curva superior dos seios. Os cabelos negros tinham sido puxados para trás e estavam presos na nuca, formando um coque envolto em um cordão de pérolas. Parecia tão etérea e linda contra o crepúsculo vespertino...

Pela primeira vez, Hugh viu Aldous usando camisa branca e pregueada sobre calças justas e pretas, em vez das vestes de diácono. Teria ele deixado a longa túnica preta e o solidéu porque sabia que iria ficar a tarde e aquele começo de noite a sós com Phillipa? Quando ele virou a cabeça, Hugh pôde ver a pequena tonsura bem raspada nos cabelos castanho-escuros e fartos do diáco­no. Ele era alto e, perto de Phillipa, tão pequena e deli­cada, parecia mais alto ainda. A despeito de sua vocação religiosa, Aldous demonstrava amar os bens e os praze­res materiais. E impressionava as mulheres, fossem elas criadas ou damas da alta aristocracia. Em sua presença, as tímidas enrubesciam e gaguejavam, as ousadas lhe dirigiam olhares sedutores.

Phillipa, contudo, não reagia desse modo. Mesmo fler­tando com ele, mantinha uma dignidade serena, incomum e fascinante.

Hugh suspirou. Em sua opinião, Phillipa seria a últi­ma mulher do mundo a perder a compostura por causa de um homem. Lembrando-se do modo como ela reagira a seu beijo no pomar, em Eastingham, e tendo prestado atenção aos olhares que ela lhe dirigia ou a pequenos gestos, tinha quase certeza: Phillipa se sentia atraída por ele. No entanto, fazia questão de demonstrar sua in­diferença ou, pior que isso: seu menosprezo.

Ainda assim, Hugh não podia deixar de admirá-la por não se entregar a ele tão facilmente.

— Quer outro? — Aldous perguntou a Phillipa.

— Por favor.

O diácono segurava uma vasilha de prata com moran­gos. Pegando um deles pelo talo, ergueu-o e colocou-o na boca de Phillipa. Ela mordeu a fruta madura, desprendendo-a do talo, sempre olhando para ele.

A cena deixou Hugh com o peito apertado e essa re­ação o irritou. Não entendia por que era tão difícil acei­tar aquele jogo de sedução, aquela troca de olhares en­tre Phillipa e Aldous. Admitia que a desejava, ansiava por seus favores, mas isso não deveria aborrecê-lo. Por que ficaria aborrecido se Phillipa fosse para a cama com Aldous? Ela aceitara a missão com esse propósito. Além do mais, sendo uma pessoa tão "discriminadora", Phillipa nunca concederia seus favores a um ex-soldado mercená­rio e rude. Ele não tinha direitos sobre ela, nem devia ficar exasperado diante da probabilidade de ela se deixar seduzir pelo diácono.

Contudo, ele se importava. Não queria nem pensar em Phillipa nos braços de Aldous Ewing.

— Quando seu marido volta da feira de cavalos? — Aldous indagou.

Phillipa ergueu os ombros com graciosa indiferença e estendeu a mão para pegar mais um morango.

— Hugh sai de casa quando bem entende e nunca diz quando vai voltar. É um homem difícil de ser controlado e eu nem tento fazer isso. — Colocou o morango na boca de Aldous, que segurou a mão dela ao morder a fruta e cortar o talo.

— Devo presumir que a tal "paixão fulminante" desa­pareceu com o tempo?

— Não é fácil manter a chama da paixão no casamen­to. E Hugh é um homem difícil de amar. É um tipo que prefere ficar só. Extremamente independente, detesta ter de responder a perguntas...

Do outro lado da cortina, Hugh balançou a cabeça, aprovando o que Phillipa tinha dito. Eles haviam combi­nado dizer a verdade e mencionar fatos reais sempre que possível. Além de ser mais fácil, era mais seguro.

— Até compreendo por que Hugh tornou-se um mer­cenário — Phillipa continuou. — É melhor lutar para so­beranos estrangeiros como soldado estipendiário. O sol­dado pago tem mais liberdade. Terminada a campanha, ele está livre. Ao passo que o soldado que serve a apenas um rei ou príncipe deve obediência a este pelo resto da vida. Talvez, por isso, meu marido se recuse a aceitar o tipo de obediência cega e irracional que o rei Henrique exige de seus súditos. Hugh oferece sua lealdade àqueles que a merecem, como a rainha Eleanor e seus filhos.

Você é mesmo esperta, Hugh pensou, percebendo que Phillipa levara a conversa para o campo da política. Mas, para seu desapontamento, Aldous perguntou:

— Os sentimentos de Hugh por você também dimi­nuíram?

Phillipa escondeu muito bem sua decepção pegando outro morango e girando-o pelo talo de modo descuidado.

— Está concluindo que Hugh me amou realmente.

— Ele nunca a amou? — Aldous perguntou, incrédulo. — Não consigo imaginar que um homem possa conviver com uma mulher como você e não se apaixonar perdidamente. Seu marido deve ter uma pedra no lugar do coração.

Phillipa balançou a cabeça, e sua expressão tornou-se tristonha.

— Não que ele seja incapaz de amar. Ele não quer amar. Acredito que Hugh tenha medo de entregar seu coração a uma mulher... Até mesmo a mim. Ele acha que, se fizer isso, ficará em poder dela e terá de viver segundo suas expectativas. Em resumo, ele tem medo de perder sua preciosa independência.

Hugh admirou-se por Phillipa analisar tão bem seu ca­ráter. Entretanto, não era agradável se ver exposto dian­te daquele bastardo. O fato de ela estar fazendo aquilo para que Aldous acreditasse em sua crise conjugal, o que abriria caminho para que o hipócrita a seduzisse, não ajudou a diminuir seu desconforto.

— Então, por que ele se casou com você?

— Ele me desejava. Queria me possuir. — Phillipa comeu o morango. — Depois do casamento perdeu o interesse.

Mais uma vez, Hugh teve de concordar que ela dis­corria sobre ele como se o conhecesse de longa data. Realmente, desde que tivera a primeira experiência se­xual, aos quinze anos, Hugh fixava sua atenção numa mulher e não descansava enquanto não a tivesse. Depois disso, o encanto se quebrava. Ele até voltava a procurá-la, especialmente se ela fosse desejável, mas não sentia mais aquela compulsão de possuí-la.

Quando estava obcecado por uma mulher, nenhuma outra o satisfazia. Era o que estava acontecendo no mo­mento. Ele desejava Phillipa. Na semana anterior até havia pensado em ir a um dos muitos bordéis que ha­via em Southwark, mas desistira. Não havia quem pu­desse substituí-la. Era uma tortura deitar-se junto dela na cama enorme, noite após noite, sentindo seu calor, aspirando seu perfume, vendo sob o tecido da camisola toda fechada que ela usava os seios subindo e descendo conforme ela respirava, e não poder tocá-la. Ele suava sob as cobertas, o membro retesado doía. Tentava não pensar nela, no entanto imagens eróticas teimavam em atormentá-lo: Phillipa despindo-se para ele, nua em seus braços, gemendo sob seu corpo...

Na maioria das noites, ele não conseguia dormir e, quando os sinos da igreja monástica de St. Mary Overie tocavam as matinas, levantava-se da cama em silêncio para não acordá-la, vestia-se, selava Odin e cavalgava pe­las ruas até cansar. Quando retornava, escovava o cavalo suado, e ia para a cama. Como estava exausto, adormecia.

Suspirou. Se pudesse ter Phillipa uma vez, apenas uma, ficaria livre daquele desejo insano. Sabia que ela só não se entregara a ele por não considerá-lo à sua altura...

Mas ele nada podia fazer quanto a isso. Ele era o que era: um homem com um coração de soldado. Uma criatu­ra que buscava os prazeres. Phillipa, por outro lado, era uma pessoa cerebral, inclinada a buscar aqueles pareci­dos com ela.

Pessoas como Aldous Ewing que, no momento, a acari­ciava no rosto com os olhos fixos nos dela.

— Se eu fosse seu marido, jamais me cansaria de você — ele declarou suavemente. — Você seria tudo para mim, tudo o que eu sempre quis.

Phillipa sustentou o olhar. Chegara o momento que ela considerava mais difícil daquela missão: deixar Aldous convencido de que ela estava ficando apaixonada por ele.

— Agora vejo que, se nos casássemos, você seria ótimo marido. Perdoe-me por rejeitá-lo como o rejeitei.

— E você quem deve me perdoar — Aldous murmu­rou. — Eu não devia tê-la deixado. Continuei enamorado de você por muito tempo... Não conseguia esquecê-la.

Segurando o rosto de Phillipa com ambas as mãos, ele curvou a cabeça para beijá-la. Embora nervosa, ela não afastou os olhos dos dele.

— Ah, vocês estão aí! — Hugh empurrou a cortina de couro e entrou na sala.

Aldous e Phillipa se separaram depressa, e ouviu-se o som de vidro se quebrando.

Phillipa olhou de Hugh para os cacos de cristal e para a própria túnica, agora manchada de vinho.

— Oh, Aldous, sua taça de cristal veneziano! Deve ter custado uma fortuna.

— A taça é o que menos importa. Seu lindo vestido ficou arruinado.

— Não se eu puser sobre a mancha um pouco de sal.

— Vou chamar alguém para ajudá-la — prontificou-se o diácono. Atravessou a sala sem ao menos olhar para Hugh, foi até um armário, pegou uma sineta de bronze e a fez soar.

Phillipa saiu da sacada para a sala e olhou para Hugh com evidente desconforto por ter sido apanhada no meio do seu exercício de sedução. Também havia irritação em seu olhar. Por que Hugh irrompera na sala daquele jeito e estava com aquela expressão, se a missão dela era se­duzir Aldous Ewing?

Três criadas jovens e atenciosas entraram na sala. Uma delas, Blythe, olhou para o vestido, penalizada, abanou a cabeça e levou Phillipa dali. Claennis foi até a sacada, juntou os cacos da taça e começou a limpar o chão. Elthia recolheu a taça de Aldous, a tigela de prata com os morangos e já ia deixando a sala quando Hugh a deteve. Desembainhou ajambiya, cortou com ela o talo de uma das frutas e a levou à boca.

— Nunca vi uma adaga como essa — Aldous comen­tou, a testa franzida. — De onde é?

— Tomei-a de um soldado turco que morreu, num lu­gar chamado Trípoli — Hugh respondeu, girando a ada­ga para admirar o aço prateado com inscrições em ouro. — Esta ajambiya é muito antiga. Pode ter vindo de qual­quer lugar do Império Bizantino.

Aldous assustou-se ao ver Hugh desembainhar ajam­biya num piscar de olhos.

— Veja isto — disse Hugh, brandindo a adaga no ar com tanta velocidade que se ouviu um zunido. — E esta a razão de eu ter escolhido esta arma. É a única que consigo manejar perfeitamente. — Hugh ergueu a faca e a movimentou para mostrar que, apesar da mão mutilada, conseguia segurar com apenas qua­tro dedos o estranho punho incrustado com marfim de presas de morsa. — Uma pessoa precisa dos cinco dedos para manejar uma arma branca, mas, com esta, posso rasgar o ventre de um homem ou abrir-lhe a garganta num piscar de olhos. — Hugh apontou a ajambiya para Aldous e avançou em sua direção, fazendo-o recuar até encostar-se à parede. Então sorriu. — Esta ajambiya já me foi muito útil em inúmeras ocasiões.

Aldous fechou uma carranca.

— Será que sobrou alguma coisa do jantar? — Hugh colocou a ajambiya na bainha com um gesto casual. — Estou há horas sem comer.

— Vá até a cozinha — respondeu o diácono, irritado. — Tenho certeza de que a cozinheira lhe arranjará um prato.

— Obrigado — Hugh agradeceu e deixou a sala.

Idiota! Estúpido!, censurou a si mesmo, a caminho da cozinha. Como se não bastasse ter entrado na sala justa­mente quando Aldous e Phillipa estavam tão envolvidos um com o outro, ainda resolvera fazer aquela ridícula de­monstração com a ajambiya, como se tivesse a intenção de ameaçar o diácono. O que lhe dera na cabeça?

A resposta para essa pergunta era simples. Reagira instintivamente, como um animal que enfrenta outro para defender um território que é seu. O comportamen­to seria compreensível se ele fosse realmente marido de Phillipa. Mas, além de ela não lhe pertencer, ele devia, de acordo com a missão que lhes fora atribuída, fazer o papel de esposo complacente, que fechava os olhos para a leviandade da mulher.

Soldado de coração, ele era por natureza um homem predisposto ao confronto direto. Estava sendo difícil re­presentar seu papel naquela missão. A espionagem, com suas sutilezas, subterfúgios e mentiras, era uma ativida­de completamente estranha para ele.

Phillipa, sim, com sua inteligência, esperteza, com­postura e talento para representar, estava perfeitamente habilitada para aquele tipo de trabalho.

Lorde Richard devia tê-la deixado sozinha naquela missão. Até o momento, Hugh pensou, contrafeito, não ti­nha feito outra coisa a não ser emperrar o progresso dela.

Era madrugada e os sinos da igreja tocavam as matinas. Phillipa continuou deitada, imóvel, fingindo estar adormecida. Ouviu o leve rangido do estrado de cordas trançadas e percebeu que Hugh acabara de se levantar. Ele afastou um pouco as cortinas de uma das janelas e voltou para a cama. Ela abriu os olhos. Pela claridade da lua, viu Hugh sentado na beirada do colchão, de cos­tas para ela, os cotovelos apoiados nos joelhos, a camisa molhada de suor. Sempre que acordava durante a noite, ele se movimentava em silêncio, sem perceber que ela também estava acordada.

Na primeira noite, ela atribuíra a insônia ao fato de não estar acostumada a dormir com alguém, muito menos com um homem. Após noites seguidas sem conseguir conciliar o sono, teve de admitir que era Hugh quem a mantinha acordada. A proximidade dele, seu calor, a lembrança do que havia acontecido no pomar eram extremamente perturbadores. Mais inquietante ainda era saber que bastaria tocá-lo para que ele a beijasse e a possuísse.

Hugh deu um longo suspiro, pegou as peças de roupa que havia tirado antes de deitar, calçou as meias, ergueu a camisa comprida, amarrou as ceroulas de linho e come­çou a vestir as calças marrons.

Phillipa suspirou discretamente. Fazia uma semana que ocupavam o mesmo quarto. Até então ela nunca ti­nha visto um homem usando só as roupas de baixo.

Na primeira noite, quando ele começara a despir-se, ela ficara apreensiva, imaginando se ele iria tirar todas as pe­ças, pois ouvira dizer que os homens, em geral, dormiam nus, especialmente no verão. Ao ver que ele se deitara usando camisa e ceroulas, sua apreensão desaparecera. Entretanto, bem lá no fundo, ficara um pouquinho desa­pontada, pois estava curiosa para ver Hugh sem roupa.

Já tinha visto estivadores ou carregadores de água usando apenas tanga ou calções, em dias muito quentes. A única imagem que guardava do corpo masculino intei­ramente nu era a de uma ilustração que ela e Ada tinham encontrado, quando crianças, em um livro do tio Lotulf, representando Adão e Eva antes do pecado original. A fi­gura do casal nu as deixara fascinadas e escandalizadas ao mesmo tempo. Sua atenção se fixara, naturalmente, no corpo de Adão. Ele não tinha seios como Eva e possuía entre as pernas um curioso apêndice, mais ou menos do tamanho do dedo mínimo de um homem.

Na ocasião, ela e a irmã ficaram intrigadas, especu­lando, tentando entender qual seria a função daquele prolongamento. Com o tempo, analisando as conversas maliciosas e as canções que ouviam, deduziram que o tal apêndice tinha a ver com o relacionamento licencioso de homens com mulheres de baixa moral. Mais tarde, quase adultas, lendo os escritos da professora de medicina Trotula de Salerno e de outras médicas italianas, descobriram que o órgão envolvia o coito e seu propósito era a procriação.

Nos escritos de Trotula e suas colegas havia técnicas para se evitar a concepção. Phillipa defendia a liberdade sexual, mas ela mesma não entendia por que uma mulher procurava se unir ao homem sexualmente, se a finalidade desse ato era a gravidez. Além disso, a idéia de permitir que um homem introduzisse aquele pequeno membro en­tre suas pernas e despejasse dentro dela suas sementes sempre lhe parecera não apenas indigna como repulsiva.

Até agora.

Pensando novamente no que acontecera no pomar, ela recordou que levara um choque ao sentir, pressionada contra o ventre, a parte vital de Hugh... a qual era muito maior do que ela poderia imaginar. Fazia idéia de que o órgão masculino teria de distender-se e tornar-se rijo para poder penetrar na vulva. Mas chegar àquelas proporções!

Não doeria terrivelmente ter o corpo invadido por algo tão grosso e rijo? Pelo que ouvira dizer, a mulher sentia dor quando perdia a virgindade. E depois?

Refletindo, Phillipa concluíra que as relações seguin­tes deviam proporcionar uma satisfação primitiva, que podia ser interpretada como agradável. Na opinião de Ada, as mulheres eram capazes de experimentar um prazer semelhante ao que os homens sentiam quando ejaculavam. Ela, Phillipa, tinha duvidado disso.

Mas naquelas noites, deitada junto de Hugh e com os pensamentos tumultuados, havia experimentado certa voluptuosidade. Diante da reação do próprio corpo, reco­nheceu que tinha de rever seus conceitos com urgência.

Voltou a atenção a Hugh, que já vestira as calças jus­tas e tinha calçado as botas de montaria. Por fim, ele colocou sobre a camisa comprida o cinto com a bolsa e aquela espada.

Receando que ele percebesse que ela estava acordada, Phillipa fechou os olhos. Assim que ele saiu do quarto silenciosamente, levantou-se e foi até a janela voltada para o pátio dos fundos. Viu Hugh entrando no estábulo, como fazia toda madrugada. Normalmente ele saía para o pátio montado em Odin, o enorme cavalo baio, e descia a galope a Tooley Street.

Ela costumava ficar olhando pela janela até vê-lo de­saparecer de vista. Voltava, então, para a cama e dormia um pouco.

Acordava horas depois, quando Hugh entrava sob as cobertas. Em poucos minutos, ouvia a respiração dele se tornar profunda e cadenciada.

Gostaria de saber o que ele fazia nessas saídas em hora tão insólita para voltar tão exausto. Iria beber e jogar dados em alguma cervejaria? Talvez não. Provavelmente gastava suas energias na cama de uma prostituta. Ou, quem sabe, teria uma amante ali perto. Um homem como Hugh de Wexford devia manter uma mulher para satisfazê-lo.

O pensamento perturbou Phillipa. Por mais que ten­tasse, não conseguia apagar da mente a imagem de Hugh entre as pernas dessa mulher sem face. Era incrivelmen­te angustiante imaginá-lo satisfazendo-se com alguém.

Phillipa comprimiu os lábios. Como podia ser tola para sentir ciúme, se ela mesma tinha deixado bem claro que não tolerava os avanços dele?

O que aconteceria se ela tivesse cedido quando Hugh propusera que se deitassem no pomar, naquele começo de noite? E se ela tivesse deixado seus temores e se en­tregasse a um breve e mágico interlúdio?

Não. Hugh apenas a usaria, como certamente já havia usado uma centena de mulheres. Para ele o sexo era como qualquer outra função fisiológica, só que mais divertida.

Phillipa considerou tudo isso, exasperada. Sendo obri­gada a dormir ao lado dele noite após noite, como seria possível sufocar seu desejo? Como livrar-se daquele tu­multo interior para poder refletir e voltar a ser a Phillipa de Paris racional e serena?

Ela sempre soubera que tinha de evitar a paixão a todo custo. Até pouco tempo, fugia dos prazeres da carne e isso não era nenhum sacrifício. Seu prazer era o estudo.

Mas agora tinha consciência de que havia perdido muito vivendo tão reclusa. Lagartas transformavam-se em borboletas, porém tinham de romper o casulo e sair de seu abrigo familiar e confortável. Deveriam deixar o santuário que sempre conheceram para se tornar parte de um mundo muito maior.

Estava na hora de mudar.

Resoluta, Phillipa tirou do cabide o manto novo, arre­matado com pele de zibelina, vestiu-o sobre a camisola e saiu do quarto, descalça. Desceu até o andar térreo pela escada, atravessou o pátio e foi para a estrebaria.

 

A entrada do estábulo, Phillipa hesitou. O prédio de madeira e ardósia era imenso, com capacidade de abrigar mais cavalos do que Aldous jamais poderia ter. Viu que a baia de Odin, no final da comprida ala central, estava iluminada com uma lanterna. Em seguida ouviu sons. Com certeza, Hugh selava o cavalo.

Phillipa ajeitou os cabelos que quase lhe alcançavam os quadris e os sons vindos da baia cessaram. Ela prendeu a respiração e caminhou pela ala, os pés descalços produ­zindo um leve ruído ao pisar na palha que forrava o chão.

Hugh saiu da baia puxando Odin pelas rédeas e sur­preendeu-se ao vê-la.

Phillipa umedeceu com a língua os lábios secos.

— Phillipa... — ele pronunciou seu nome suavemente. — O que faz aqui?

Ela respirou fundo para acalmar-se, sem resultado.

— Todas as noites, quando você sai para ir ao encon­tro de uma mulher, eu fico pensando. — Baixou os olhos, o coração batendo, descompassado. — Eu gostaria que você continuasse na cama, comigo.

Pronto. Eu disse o que tinha a dizer.

Silêncio.

Meu Deus, eu não devia ter feito isso!

— Esqueça Hugh... Foi um erro. Tenho de ir. — Ela se enrolou bem no manto e se virou para sair do estábulo.

— Phillipa! — Hugh soltou as rédeas de Odin e correu atrás dela.

Mas ela correu também, mortificada. Com poucos passos ele a alcançou, segurou-a pelos ombros e a obrigou a encará-lo.

— Por favor... — Phillipa pediu, debatendo-se, no en­tanto Hugh a encostou numa maciça viga de carvalho.

— Não é um erro. — A voz dele estava rouca, as mãos trêmulas. Com um gemido, ele a beijou com desespero, rudemente, nem notando que os pelos crescidos da barba lhe arranhavam o rosto.

Excitada, Phillipa correspondeu ao beijo. Abraçou-o, ma­ravilhada com as sensações que o contato dos lábios e o en­contro das línguas podiam provocar. Hugh mostrou-se cada vez mais afoito, faminto, e ela apreciou suas investidas.

Quero ser sua. Liberte-me de meus temores!

— Não há outra mulher — Hugh assegurou, fazendo uma pausa para respirar. — Só você ocupa meu pensa­mento. Desejo só você.

Abrindo o manto, ele cobriu os seios pequenos com as mãos e sufocou com um beijo a exclamação de espanto que saiu dos lábios dela. Phillipa sentiu as mãos grandes e grossas massageando-lhe os seios, beliscando-lhe os mamilos, e se viu soltando gemidos de licencioso prazer.

Hugh intensificou o beijo. Passou a lhe acariciar o pes­coço, os braços, a curva da cintura, dos quadris, as náde­gas, as coxas e continuou até...

Phillipa prendeu a respiração e enterrou as unhas nos ombros dele ao sentir a mão grande cobrindo-lhe a parte sensível e pulsante entre as pernas. Com determinação, Hugh movimentou os dedos sobre o tecido da camisola e ali se deteve em carícias ousadas e estonteantes.

— Eu estava ficando louco de tanto desejá-la! — con­fessou, ofegante.

Desafivelou o cinto e o atirou de lado. Arregaçou a camisola que ela usava enquanto a erguia nos braços, prendeu as pernas dela ao redor dos quadris e voltou a beijá-la, pressionando contra a parte quente e úmida o membro rijo que pulsava sob o tecido da camisa e das ceroulas.

Quando levantou a camisa e ia soltar a tira que pren­dia as ceroulas, Phillipa sentiu-se a própria meretriz ruiva que fornicava com seus clientes encostada ao muro daquele beco, perto da Kibald Street, em Oxford.

Virou a cabeça e interrompeu o beijo.

— Aqui, não! Não desse jeito.

Hugh a colocou de pé, mas não a levou para o quarto e sim para uma das baias. Deitou-a sobre um monte de pa­lha, ajeitando o manto para proporcionar-lhe mais con­forto. Phillipa tentou se levantar e protestar, porém ele já estava sobre ela e silenciou-a com um beijo ardente.

Erguendo a camisola, afastou as pernas dela, posicio­nou-se entre elas e começou a desamarrar as ceroulas.

O coração dela disparou. Tudo estava acontecendo de­pressa demais. Era como se tivesse sido apanhada por uma tempestade, sem ter lugar para abrigar-se.

Ficou sem ar quando sentiu o órgão quente e teso to­cando a parte macia e sensível entre suas coxas. Aquela coluna quente, lisa e grande demais, deixou-a nervosa.

Vai doer...

— Hugh, espere — pediu e agarrou a camisa dele.

— Não posso esperar. — Ele ergueu os quadris dela para se acomodar melhor.

— Precisamos conversar...

— Depois, Phillipa.

— Hugh, não vá tão depressa! Ele parou, aturdido,

— Por que não? O que há com você? — Estava trêmu­lo. Tinha as veias do pescoço saltadas e o rosto corado.

— É a minha primeira vez.

— O quê?

— É minha primeira vez! Se puder ir mais devagar, eu...

— Sua primeira vez? — Hugh a fitou como se ela ti­vesse perdido o juízo. — Não pode estar falando sério. Você quis dizer a nossa primeira vez?

— Sou virgem, Hugh.

Ele ficou perplexo. Fechou os olhos e praguejou.

— Eu ia lhe contar, mas tudo aconteceu tão...

— Eu devia saber disso. — Hugh saiu de cima dela, ficou de costas e ajeitou as ceroulas.

— Hugh? — Phillipa sentou-se sobre o monte de pa­lhas, puxou a camisola sobre as pernas e colocou a mão no ombro dele. —Eu não quis dizer que não queria... Tive receio. Se você fosse um pouco mais...

— Eu teria sido mais cuidadoso se soubesse que você era virgem. Por que, em nome de Deus, deixou que as pessoas pensassem que você... — Hugh abanou a cabeça.

— Porquê?

Phillipa dobrou os joelhos e passou os braços ao redor deles.

— Foi o melhor modo que encontrei para afastar meus pretendentes. Se uma moça perdeu a virgindade, não serve para esposa.

— Isso é verdade. Mas esse recurso que arranjou para manter sua liberdade não deixa de ser ridículo. E quanto aos homens que você tem recebido em casa, em Oxford? As pessoas que os vêem entrando e saindo do aparta­mento pensam o pior. E há homens que se vangloriam de ter dormido com você.

— Sou uma universitária e já convidei colegas para irem ao meu apartamento apenas para conversarmos so­bre assuntos do nosso interesse. Se alguns entenderam mal o meu convite... — Phillipa deu de ombros. — Sei que os homens costumam mentir sobre assuntos de sexo. Gostam de se gabar de suas proezas.

— E você aceita essas mentiras sem se importar de ser vista como uma intelectual libertina? Não faz senti­do. Se está tão determinada a ter essa imagem, por que não mancha a sua reputação de uma vez? Por que não se torna uma mulher leviana? Não é o que todos pensam?

— Na verdade, eu nunca desejei fazer essas coisas. Talvez, se eu tivesse amado um de meus pretendentes...

— Ah, o amor. — Hugh deu um sorriso irônico. — A razão de você não ter sido flechada pelo Cupido, milady, é que não havia seta nenhuma na aljava dele. Se está pensando em encontrar o verdadeiro amor, continuará virgem para sempre.

— Eu sei. Mas não quero ficar velha e morrer sem... — Phillipa mordeu o lábio. — Por isso eu... Ah, você en­tende.

— Santo Deus. Então é isso. Esperava que eu tirasse sua virgindade.

— Não exatamente. Não planejei nada... Eu apenas senti desejo.

— Bem, já é alguma coisa.

Phillipa mudou de posição para ficar de frente para Hugh.

— Eu queria você, Hugh. E tinha certeza de que você também me queria. Não havia outros sentimentos envol­vidos. Suponho que um homem tenha necessidades físi­cas... como os animais. Para mim isso é perfeito, porque não quero saber de envolvimento emocional. Só quero ter um pouco mais de experiência. Você mesmo não disse que devo sair do casulo e conhecer o mundo?

— Sim, mas você está propondo...

— Estou propondo um relacionamento puramente físico.

— Pensei que não tivesse planejado nada friamente.

— Se eu fosse tão fria como você pensa, teria perdido a inocência com alguém, anos atrás. Mas eu disse que desejo você e estou sendo sincera.

Phillipa engoliu em seco. Um homem como Hugh de Wexford, para quem a sedução era um simples passatem­po, certamente iria rir se soubesse que ela havia passado noite após noite, deitada, ardendo de desejo por ele.

— O fato é que eu não quero compromisso, nem você — continuou, decidida. — Portanto, as circunstâncias nos são favoráveis uma vez que, terminada esta missão, nunca mais nos veremos.

— Circunstâncias favoráveis — Hugh murmurou com um sorriso amargo. — Suponho que esta seja uma pro­posta bem melhor do que ficarmos recitando versos, fa­lando sobre cotovias, estorninhos e todas essas tolices.

— Então você concorda?

— Não. — Hugh levantou-se e esfregou as mãos nas calças para tirar os fiapos de palha.

— Mas...

— Tenho minhas necessidades animais, porém, imagi­no que não conseguiria satisfazê-las tirando a sua virgin­dade e arruinando a sua reputação.

— Oh, por favor... — Phillipa aceitou a mão que ele lhe oferecia e levantou-se. — Minha reputação já está arruina­da. Quanto à minha virtude... tornou-se um peso para mim.

— Agora você diz isso, mas como irá sentir-se amanhã?

— Aliviada.

— Talvez. Ou poderá descobrir, à luz do dia, que des­perdiçou algo precioso com alguém que não deu valor a isso. Nunca fui um sedutor, muito menos um depravado, Phillipa. Não quero ser o tipo de homem para quem uma mulher olha no dia seguinte e pensa: "Foi apenas sexo".

— Mas é apenas sexo. Não sou uma garota romântica, Hugh, e falei sério quando disse que não quero compro­misso. Se está com receio de que eu o persiga, exigindo sua atenção, fique descansado. Não tenho por você esse tipo de interesse. Você seria o último homem do mundo por quem eu me apaixonaria.

O rosto dele se tornou sombrio.

— Obrigado pelo esclarecimento, milady, mas não era necessário. Tenho consciência dos meus defeitos.

— Eu não quis dizer...

— Não se preocupe. Está tudo bem. — Hugh foi até onde havia deixado o cinto, pegou-o e colocou-o ao redor dos quadris. — Já que estamos sendo honestos um com o outro, devo dizer que não sou tão nobre como você talvez esteja pensando. Não aceitei fazer sexo com você porque acho desagradável iniciar uma virgem. Prefiro uma mu­lher experiente, que sabe o que está fazendo.

Com o rosto queimando de raiva e humilhação, Phillipa viu Hugh afastar-se, passando nervosamente a mão pelos cabelos. Ele parou antes de entrar na baia de Odin e se voltou para dizer:

— Há algo que não entendo. Se você é inexperiente, por que concordou com esta missão, sabendo que teria de dormir com Aldous Ewing?

— Desde o início eu disse a você e a lorde Richard que encontraria outros meios de obter dele o que desejamos — Phillipa respondeu, impaciente.

Hugh abaixou-se com um suspiro e pegou o freio do cavalo que tinha deixado sobre a palha.

— Você é muito ingênua, milady.

— Eu? Ingênua?

— Por certo, é capaz de resolver qualquer tipo de pro­blema com esse cérebro prodigioso. Só que, não é do seu cérebro que Aldous Ewing está enamorado. Ouvi sua conversa com ele esta noite. Bem que você tentou obter informações, no entanto, ele mudou de assunto. Dê-lhe o que ele deseja tão ardentemente e tenho certeza de que ele será muito mais maleável.

— Bobagem — Phillipa contrapôs. Por mais que ten­tasse extrair segredos de Aldous, nada conseguira. — Aldous não é tolo. Declarar que ele compreende a atitude da rainha é uma coisa. Admitir que está envolvido em uma conspiração contra o rei é traição. Tenho de ser es­perta para não ir para a cama com ele.

— Se dormir com ele, conseguirá que ele faça confi­dencias. Talvez não saiba, milady, mas os homens ficam idiotas, crédulos e ingênuos na cama. Um homem con­fiará muito mais na mulher que se tornar sua amante do que naquela que lhe oferece morangos. Lorde Richard sabe disso. E por essa razão que espera que você se tor­ne amante de Aldous Ewing, É muito inocente de sua parte achar que irá conseguir provocar um homem como Aldous sem acabar se entregando a ele. Mais cedo ou mais tarde ele se cansará de seus joguinhos e a mandará embora. E então, para onde iremos?

Os argumentos de Hugh eram perfeitamente lógicos, e Phillipa odiava ver-se apanhada na teia da lógica, seu domí­nio intelectual particular. O fato de ter sido Hugh de Wexford a realizar esse feito deixou-a ainda mais exasperada.

— Se eu tiver de ir para a cama com Aldous Ewing, irei — declarou, surpresa por pensar realmente em fazer isso caso fosse necessário.

Por que se recusaria a deitar-se com Aldous, se isso podia livrar a Inglaterra de outra devastadora guerra civil? Até instantes ela não estava disposta a entregar-se a Hugh, que parecia não sentir nada por ela além de desdém. Um homem assim não iria importar-se, caso ela fosse para a cama com Aldous Ewing. Afinal, desde o iní­cio, ele não a estava empurrando nessa direção?

— Você não está sendo sincera — disse Hugh, obser­vando bem Phillipa. — Não pretende se deixar seduzir por Aldous.

— Será apenas sexo — ela respondeu, tentando mostrar-se indiferente. — Não haverá envolvimento sentimental. Eu nunca pensei em me entregar a um homem por quem eu não sentisse amor. Mas esta noite compreendi que mudei meu modo de pensar. Não tenho mais esses escrúpulos.

— Você está blefando — Hugh a contradisse. — Como vai explicar a Aldous que é virgem, se, para todos os efei­tos, está casada comigo?

Lá estava ele tentando prendê-la em outra irritante teia de lógica. Phillipa sorriu e pensou rapidamente num argumento para escapar daquela nova armadilha.

— Eu nunca disse a Aldous que nosso casamento foi consumado.

— Por que o casamento não teria sido consumado? Phillipa deu de ombros.

— Posso dizer que você tem sífilis e que não quero pegar a doença.

— Sífilis!

— Também posso alegar que é incapaz de exercer sua função... — disse ela em tom provocativo.

— Você não se atreverá a dizer a ele que sou...

— Já sei! Vou dizer que você prefere homens.

— O quê?

— E que o nosso casamento é só para manter as apa­rências.

Virando-se, Phillipa caminhou para a porta.

— Phillipa!

— Não se preocupe. Posso arranjar cem modos de explicar a minha virgindade. — Antes de sair do estábulo, ela olhou para trás e acrescentou: — Meu cérebro brilhante encontrará um argumento perfeito.

 

— Sua vez, Phillipa.

Hugh recostou-se na cadeira e pegou a taça de vinho, enquanto ela analisava o tabuleiro de xadrez colocado sobre a mesinha de pedra, na sacada. Em geral, ela re­fletia por longo tempo antes de mover uma das peças, ao contrário dele, cujas decisões eram rápidas e espontâ­neas. Phillipa também tinha o hábito de morder o lábio inferior, o que lhe emprestava um ar de criança.

Conhecendo-a melhor, e sabendo que ela não era a mu­lher experiente que fingia ser, Hugh não mais a conside­rava um enigma. Mas continuava a achá-la fascinante.

E, Deus do Céu, tão sedutora... O traje de cetim ver­melho e o sol do fim de tarde que tingia o céu de tons purpúreos, conferiam ao rosto bonito uma linda cor rosa­da. Observando-a, Hugh pensava em uma fruta delicada e madura, pronta para ser colhida. Os cabelos tinham sido penteados em quatro longas trancas, unidas duas a duas com fitas douradas. No alto da cabeça, brilhava um diadema de ouro trabalhado. Ela se inclinou sobre o tabuleiro de xadrez, e os seios elevaram-se acima da faixa incrustada com pedras que arrematava o decote deliberadamente baixo, revelando tentadores babadinhos de uma combinação de fina seda branca.

Durante todo o jantar, ele observara Phillipa flertan­do com Aldous. Agora não conseguia deixar de imaginá-la usando apenas aquela combinação de seda, os cabelos soltos sobre os ombros, os braços abertos para ele...

Suspirou. Não devia alimentar tais fantasias. Não depois do desencorajador encontro no estábulo, na noite anterior. Ele havia esperado Phillipa entrar na casa, em seguida montara Odin e galopara pelas ruas como um demônio. De volta ao quarto, pouco antes de raiar o dia, deixara-se cair na cama, decidido a tirar da mente a mu­lher que o desprezava.

Entretanto, acordara dolorosamente excitado pela manhã. Havia sonhado com Phillipa e amaldiçoara-se por ter recusado o que ela lhe oferecera tão livremente. Pelo menos ele estaria curado daquela fome insaciável que tanto o atormentava.

O resultado de sua recusa era que agora estava mais louco por ela do que nunca. Vivia atormentado, pensando nela com concupiscência. Pior do que isso era ver-se do­minado por aquele intenso sentimento de posse, pela ne­cessidade de protegê-la. Era ansiar por sua companhia, era olhar para ela, achando que ali estava a mulher mais notável que eleja conhecera. Era rogar aos céus que ela sentisse alguma atração por ele.

Ah, não podia deixar de incluir na sua lista de exas­perações a fúria que o consumia só de acalentar o sim­ples pensamento de que Phillipa poderia entregar-se a Aldous Ewing.

Sucumbir a esse tipo de paixão era não apenas lou­cura, mas perigoso. Quando um homem se unia a uma mulher, nunca mais tinha completa autonomia sobre sua vida. Por esse motivo ele havia passado a maior parte dos seus trinta e cinco anos evitando envolver-se seria­mente com uma mulher. Aprendera a controlar seus sen­timentos sempre que satisfazia as necessidades do corpo. Embora tivesse ficado verdadeiramente afeiçoado a mui­tas mulheres com quem mantivera um romance, jamais se sentira em perigo de perder o coração.

Até agora.

Nesse instante, o som de cascos de cavalos se aproxi­mando e vozes de homens conversando numa língua es­tranha perturbaram o silêncio de Hugh e a concentração de Phillipa. Eles se entreolharam, em seguida afastaram-se da mesinha e se debruçaram no parapeito da sacada.

Viram, entrando no pátio, dois homens montados em mulas e puxando dois cavalos carregados de fardos e ma­las de couro. O cavaleiro da frente, muito magro, usava túnica longa, antiquada, e tinha na cabeça um gorro de feltro sob o qual apareciam cabelos pretos com mechas prateadas. Ele carregava a tiracolo mochila e pastas de documentos. O outro cavaleiro, modestamente trajado, era forte, tinha cabelos negros e a pele bem morena.

Os dois refrearam as mulas, desmontaram, e o homem mais velho disse alguma coisa ao mais novo como se lhe desse ordens. O idioma que falavam soou familiar a Hugh, porém ele entendeu apenas uma ou outra palavra.

— Conversam num dialeto italiano, mas não é ne­nhum dos que eu conheço — ele disse a Phillipa.

Ela o fitou de modo curioso, como se estivesse surpre­sa por ele falar outra língua. Se ela soubesse quantos idiomas ele falava por ter lutado em todos os cantos do mundo, ficaria perplexa.

Claennis, uma das bonitas criadas de Aldous, entrou apressada na sala.

— Senhor Aldous, ele chegou... O cavalheiro de... — Interrompeu a frase e olhou ao redor. — Desculpem, mas, vocês sabem onde está o senhor Aldous?

— Não o vimos desde o jantar — disse Hugh, saindo com Phillipa da sacada e indo para a sala.

— Oh. — Claennis torceu as mãos. — Há dois cava­lheiros lá embaixo, e um deles é Orlando Storzi, que meu mestre estava esperando.

— Orlando Storzi! — Phillipa exclamou.

— Sim. Ele veio de Roma e o mestre Aldous...

— Não se preocupe. Nós encontraremos mestre Aldous — Phillipa a tranqüilizou. — Pode descer para cumpri­mentar os hóspedes e peça ao cavalariço para cuidar das montarias.

— Sim, milady.

A criada afastou-se, e Hugh perguntou a Phillipa:

— Esse Orlando Storzi é...?

— Um renomado cientista e metafísico. Ele escreveu um famoso tratado sobre as duas forças da natureza: dis­solução e coagulação. Também é conhecido por suas pes­quisas sobre os avanços científicos do Oriente.

— Fascinante... Tem alguma idéia de onde Aldous possa estar?

— Lembra-se de que ele pediu a Elthia para levar-lhe remédio para dor de cabeça logo que o jantar terminou? Ele deve estar deitado.

Chegando à porta do quarto de Aldous, Hugh ergueu a mão para dar uma batida, mas parou ao ouvir do outro lado a voz do diácono soando baixa e ofegante.

Phillipa franziu a testa, confusa, e murmurou:

— Pensei que ele estivesse deitado.

— Imagino que esteja...

Movido por um impulso perverso, Hugh deu apenas um pancadinha na porta e girou a maçaneta.

— Aldous?

— Jesus! — Aldous estava sentado na beirada da cama, acima da qual havia um enorme crucifixo de madeira. Tinha as vestes arregaçadas e segurava os cabelos de Elthia, que se encontrava de joelhos entre suas pernas.

— Desculpe-me por perturbá-lo... — falou Hugh como se nada estivesse errado. — É que o signore Orlando aca­ba de chegar.

Hugh fechou a porta e se afastou com Phillipa, que o fitava, aturdida.

— Parece que o nosso anfitrião não estava deitado, afinal — ele comentou, cínico. — Vamos cumprimentar os hóspedes recém-chegados? Pelo visto, o bom diácono tem de cuidar de assuntos mais urgentes.

Chegando ao patamar da escada, Phillipa perguntou, hesitante:

— Hugh, o que eles estavam... Quero dizer... Elthia não podia estar... — Exalou o ar, tensa. Aquilo não podia ser o que parecia.

— O que você acha que aquilo parecia? — Hugh inda­gou com ar inocente.

Phillipa emitiu um murmúrio exasperado.

— Por favor, explique o que eles estavam fazendo.

— Por que não descobre por si mesma? Para isso você tem um cérebro privilegiado.

Phillipa comprimiu os lábios, zangada, e desceu com ele para o andar térreo. Encontraram Claennis entrando no hall com os dois italianos.

— Signore Orlando! — Aldous exclamou da escada com o rosto ainda afogueado, os cabelos revoltos e sem o solidéu. — Sou Aldous Ewing. Desculpe por não vir rece­bê-lo. Eu estava... cuidando de assuntos da Igreja.

— Estava exortando uma de suas criadas à prática da oração, não é mesmo? — Hugh comentou, irônico. E, em resposta ao olhar furioso do diácono, acrescentou: — Vi alguém de joelhos e deduzi...

— Signore Orlando — acudiu Phillipa. — É uma hon­ra conhecê-lo. Sou Phillipa de Oxford, e este é meu mari­do, Hugh. Li o seu trabalho, Chemicum Philosophorum, e o achei muito esclarecedor.

— Conhece meu trabalho? — Orlando indagou com forte sotaque francês, muito admirado, e apertou as mãos de Phillipa. — Uma linda mulher que lê sobre metafísi­ca... — Voltou-se para o companheiro. — Istagio! Eu não lhe disse que você iria gostar da Inglaterra?

— Si, signore — Istagio respondeu e olhou com admi­ração para Claennis. — E um lindo país.

— Signore Orlando, tenho certeza de que aceita algo refrescante depois da longa viagem — disse Aldous e olhou para a criada. — Claennis, sirva-nos vinho e bolo de amêndoas. Estaremos na sala. Ah, leve o criado do signore para a cozinha e...

— Istagio não é meu criado — Orlando corrigiu o diá­cono. — Ele faz... Como vocês falam... sinos?

Ele faz sinos? Hugh e Phillipa trocaram olhares sig­nificativos.

— Sim... —Aldous estendeu a mão para Istagio. — Por favor, signore Istagio, acompanhe-nos ao primeiro andar.

— Se puder, quero ver o meu laboratório — disse Orlando. — Em primeiro lugar ter de montar o equipamento.

— Seu laboratório?

— O lugar onde Istagio e eu trabalhar...

— Ah! — Aldous deu um sorriso nervoso. — Não, não, mestre Orlando, seu trabalho não será aqui. Minha irmã devia ter sido mais clara quando lhe escreveu. Amanhã, bem cedo, eu levarei o senhor e Istagio ao castelo Halthorpe, que fica a nordeste de Londres. Minha irmã reservou um lugar amplo, no porão, perto da adega, onde o senhor poderá... montar seu equipamento.

— Perdoe-me. A culpa ser minha. Não entender per­feitamente a carta de lady Clare. Estou desolado.

— Ora, não se aborreça com isso, mestre.

— O senhor deve achar muito difícil entender o francês anglicizado que falamos aqui na Inglaterra. — Phillipa observou. — Prefere conversar em latim, signore?

Embora o latim fosse a língua litúrgica da Igreja e meio de interação erudita tanto na ciência, como na literatura e no direito, também era falado por pessoas educadas.

— Grazie, mas eu ansioso para aprender bem o inglês. Preciso ampliar minha mente. E Istagio entender pouco latim.

— Como queira, mestre. — Aldous indicou a escada para Orlando e Istagio. — Por favor, subam. É a primei­ra porta à direita. Estarei com vocês num instante. — Aldous dirigiu-se a Hugh e Phillipa. — Vocês sabem que é um prazer tê-los nesta casa. Portanto, estejam à von­tade na minha ausência. Pretendo ficar em Halthorpe apenas uma noite.

O diácono parecia constrangido e com razão, depois do que Hugh e Phillipa haviam testemunhado.

Phillipa dirigiu a Hugh um olhar ansioso. Ele enten­deu imediatamente o motivo de sua aflição. Ela não que­ria ficar em Southwark, pois, ao que tudo indicava, era no castelo Halthorpe que encontrariam provas de que havia um movimento contra o rei Henrique.

— Aldous, será que Phillipa e eu não poderíamos ir com vocês, amanhã? — Hugh aventurou-se.

— A Halthorpe? — Aldous franziu a testa. — Por quê? Hugh encolheu os ombros.

— Gostaríamos de mudar de cenário. Ouvi dizer que o lugar é muito bonito.

Aldous deu uma risadinha desdenhosa.

— Bonito? Halthorpe é um imenso monte de pedras. E o castelo mais feio e mais sombrio da Inglaterra.

— Bem, estou ansioso para ver sua irmã novamen­te. Lembro-me dela tão bem e nunca mais a vi desde Poitiers.

— Clare está mudada. E você iria sentir-se mal em Halthorpe. Além disso, pretendo voltar logo.

Hugh praguejou mentalmente. Compreendeu que não adiantaria pressionar o diácono, que parecia inabalável.

— E então? Vamos subir? — Aldous deu um passo para o lado e fez um gesto, indicando a Hugh que subisse a escada à sua frente.

Assim que Hugh se moveu, Aldous segurou no braço de Phillipa e segredou-lhe:

— Voltarei do castelo o mais depressa que puder.

— Eu não estarei mais aqui, Aldous — Phillipa res­pondeu em tom frio. — Acho melhor Hugh e eu voltarmos para Oxford amanhã mesmo.

— Não, Phillipa... — Aldous murmurou, angustiado, mas Phillipa virou-se para subir a escada.

Hugh havia chegado ao patamar e deu uma olhada na sala. Orlando e Istagio estavam na sacada. Virou-se para trás e viu Aldous afastar a cortina de couro, que havia entre o corredor de acesso à copa e o hall de entrada, e desaparecer atrás dela com Phillipa.

Rapidamente e em silêncio, desceu a escada e ficou perto da cortina, ouvindo a conversa entre Aldous e Phillipa.

— Sinto muito, minha querida — o diácono dizia em tom contrito. — Só quero você... Você é a única mulher por quem sinto paixão. Procurei Elthia porque você tem me deixado louco de desejo.

— Ver você com ela daquele jeito foi como ter uma faca me atravessando o coração — Phillipa declarou.

— Imagine como me sinto por desejá-la tanto e saber que você pertence a outro, que dorme com ele todas as noites... — contrapôs Aldous com voz trêmula.

— Aldous...

— Vá ao meu quarto esta noite, depois que Hugh dor­mir — Aldous suplicou.

Hugh cerrou os punhos. Por Cristo, o bastardo liber­tino estava tão determinado a seduzir Phillipa que se arriscava a enfrentar a ira dele mesmo depois daquela pequena demonstração com ajarnbiya!

Em todo caso, reconheceu, não podia censurá-lo.

— Não, Aldous — Phillipa respondeu em tom firme.

— Eu não me deitei com Elthia. Por favor, Phillipa, preciso de você... E você também me quer.

— Sim, eu o desejo desesperadamente. Não penso em outra coisa.

— Então, por que não quer ir ao meu quarto? Seu ma­rido não a ama e não merece sua fidelidade.

— Eu sei, mas...

— Qual o problema, então?

— Não conseguirei trair meu marido sabendo que es­tamos dormindo sob o mesmo teto.

Aldous ficou em silêncio.

Você é realmente esperta, garota, Hugh pensou, sen­tindo um misto de orgulho e desgosto.

— Se estivéssemos em outro lugar, em qualquer ou­tro lugar, eu não hesitaria em ficar com você. Porém não aqui, com Hugh tão perto. — Phillipa suspirou. — O que eu não daria para ter a chance de reparar meu erro do passado, quando recusei seu amor, em Paris. Como an­seio por entregar-me a você de corpo e alma, de perder-me nos seus braços! Quando penso como poderia ter sido maravilhoso ficarmos juntos e apaixonados...

— Vá comigo a Halthorpe! — Aldous decidiu. — Só você.

Que ardilosa! Preparou a armadilha e Aldous caiu nela, Hugh considerou, em parte aborrecido com o cami­nho que as coisas estavam tomando.

— Só eu? Mas o que diremos a Hugh?

— Não sei. Pense em alguma coisa.

— Já sei. Hugh prometeu à irmã dele que iria pas­sar algum tempo com ela quando viesse a esta parte da Inglaterra — lembrou Phillipa em tom conspirador. — Temos adiado essa visita porque ela e eu não nos damos muito bem... No entanto, Hugh tem estado ansioso por vê-la. Posso dizer a ele que eu gostaria de acompanhá-lo ao castelo enquanto ele visita a irmã sozinho. Desse modo ele poderá ficar lá quanto tempo quiser, sem ouvir minhas queixas.

— Sim! Sim!

— Naturalmente você terá de prolongar sua visita a Halthorpe. Isto é, a nossa visita. Se passarmos apenas uma noite no castelo, este plano não funcionará. Mas se permanecermos lá durante algumas semanas...

— Oh, eu daria a minha alma para ter o privilégio de passar todo esse tempo com você.

— Eu também — disse Phillipa suavemente. — Não vejo a hora de estarmos juntos.

Hugh concluiu que Phillipa era excelente atriz. Ele devia estar contente porque a visita ao castelo adianta­ria a missão deles. Porém, quando pensava em Phillipa na cama de Aldous, os dois unidos... algo se consumia dentro dele.

Não era do tipo que ficava à mercê das emoções e sabia que, para representar bem seu papel, não podia demons­trar ciúme nem se mostrar possessivo. Pelo contrário, deveria estimular Phillipa a tornar-se amante de Aldous Ewing, não apenas pelo bem do Reino, mas também para garantir sua preciosa liberdade.

E mais: deveria estar ansioso para que Phillipa dor­misse com Aldous, pois o melhor meio de extinguir a pai­xão incontrolável que sentia por ela era saber que ela era amante de outro homem.

— A partir de amanhã à noite você dormirá na minha cama — resolveu Aldous. — Vou pedir para Clare nos acomodar em quartos que tenham entre eles uma porta de comunicação.

— Parece um sonho! — Phillipa murmurou.

Um pesadelo, isso sim!, Hugh completou consigo, sen­tindo as têmporas latejarem. De acordo com o ponto de vista de lorde Richard, o plano estava dando muito certo. Uma vez no castelo, Phillipa teria todas as chances de descobrir o que se passava lá dentro, porém estaria sozinha. Embora esperta, inteligente e com incrível talento para o palco, ela não contaria com sua proteção.

Mas não era por isso que ele estava relutante em dei­xá-la partir para Halthorpe.

— Quero que você saiba que, de agora em diante, só haverá você, ninguém mais. É uma promessa solene.

— Obrigada, Aldous. Isto significa muito para mim. Fez-se silêncio. Imaginando que os dois se beijavam,

Hugh segurou com força no punho da ajambiya e fechou os olhos, tentando dominar a raiva e o ciúme. Não pense nisso. Releve!

— Sir Hugh? Algum problema?

Ele abriu os olhos e viu Claennis ao pé da escada, segurando uma bandeja com bolo de amêndoas, copos e uma jarra de cerâmica, da qual exalava um aroma deli­cioso de vinho quente com especiarias exóticas.

— Não. Eu... — Hugh esfregou a nuca.

— Está com dor de cabeça? Posso trazer-lhe um...

— Estou bem. Não preciso de nada. — Hugh passou pela criada, apressado, e subiu a escada de dois em dois degraus.

 

Blythe fechou o grande baú que continha quase todas as roupas de Phillipa.

— Pronto, milady. Está tudo arrumado para a viagem de amanhã. Espero que a senhora aprecie a visita ao cas­telo. Ouvi dizer que Halthorpe é um dos mais antigos castelos da Inglaterra e que é enorme. Dizem que é muito fácil alguém se perder lá dentro.

— Tenho certeza de que vou gostar muito de minha estada em Halthorpe — volveu Phillipa, olhando o céu estrelado pela janela.

O que estou fazendo? Devo estar louca.

— Então vou prepará-la para dormir, milady. Blythe tirou o diadema da cabeça de Phillipa, os anéis, os brincos de granada e guardou as jóias no estojo de es­malte. Depois desfez as trancas longas.

Ouviu-se uma batida na porta e a voz de Hugh.

— Sou eu...

Ele costumava bater na porta antes de entrar no quarto, receando surpreender Phillipa no banho ou se vestindo. Nas noites anteriores, sempre a encontrara de camisola, debaixo das cobertas e com as lâmpadas de azeite apagadas. Mas naquela noite, por causa do tempo gasto com a arrumação da bagagem, Phillipa ainda não tinha ido para a cama.

— Devo dispensá-lo, milady? — Blythe indagou.

— Não, deixe-o entrar — Phillipa respondeu. Ainda não tivera a oportunidade de conversar a sós com Hugh desde a chegada de Orlando e Istagio.

A criada abriu a porta, e Hugh parou ao ver que Phillipa ainda estava completamente vestida.

— Desculpe. Pensei que você... Volto mais tarde.

— Fique, Hugh. — Phillipa voltou-se para a criada. — Pode ir, Blythe.

Blythe saiu, fechando a porta.

Por um momento, ambos ficaram apenas se olhando em silêncio. Ele estava com os cabelos puxados para trás, do modo que Phillipa mais gostava, e usava uma das túnicas novas, azul-marinho com debrum preto, a mais fina e mais elegante de todas as que ele possuía. Estava encantador, no entanto parecia distante e, talvez, triste. Ela desconhecia aquele lado grave e discreto do Hugh de agora. Preferia o Hugh insolente e convencido de antes.

— Você não pareceu surpreso quando Aldous disse a Orlando e a Istagio que eu iria com eles a Halthorpe, amanhã.

— Ouvi sua conversa com Aldous.

— Ouviu? — Phillipa quase chorou, envergonhada, ao lembrar-se das palavras apaixonadas que tinha dito.

— Você o beijou? — Hugh perguntou, ansioso.

— Não. Ele me beijou.

A dizer isso, ela se lembrou de sua repulsa ao sentir a boca de Aldous pressionando a dela. Quando ele tentara introduzir a língua entre seus lábios, ela se afastara com a desculpa de que alguém poderia aparecer ali. Naquele instante, compreendera que seria horrível perder a vir­gindade com um homem como ele.

Hugh olhou para o lado, os maxilares contraídos.

— Espero que saiba em que e com quem está se envol­vendo. Se você for a Halthorpe, não conseguirá livrar-se de ir para a cama com ele.

— Eu sei — ela murmurou, sentindo o estômago se contrair.

— Se alguma coisa der errado, eu não estarei lá para protegê-la.

— Saberei me defender com a minha intuição e a mi­nha sagacidade.

Ela esperou que Hugh fizesse alguma pilhéria, mas ele continuou sério.

— Tenha cuidado.

Phillipa sentiu um nó na garganta. Peça para eu ficar.

Implore para que eu não vá! Por favor, diga que não quer que eu fique com ele...

Virou-se para a janela, agoniada. Se Hugh se impor­tasse com ela, suplicaria para ela ficar em Southwark. Se ele se importasse...

— Tem certeza de que está preparada para levar esse plano adiante? — Hugh perguntou brandamente.

Não era o mesmo que pedir para ela desistir do plano. Continuando de costas para ele, Phillipa respondeu:

— Quer saber se posso dormir com um homem que eu mal suporto pelo bem da Coroa? Acho que sim. Eu só não... — Phillipa não conseguiu continuar. Respirou fundo e con­cluiu: — Eu só não queria que ele fosse o primeiro.

Fechou os olhos, lembrando-se das palavras de Hugh: Acho desagradável iniciar uma virgem. Prefiro uma mu­lher experiente, que sabe o que está fazendo.

Incapaz de ouvir alguma coisa, tal seu nervosismo, imaginou que Hugh tivesse deixado o quarto. Ou então ele devia estar zombando dela.

Prendeu a respiração quando ele se aproximou, abra­çou-a pela cintura e a puxou de encontro ao peito. Apesar das várias camadas de tecido das roupas que usavam, sentiram o coração um do outro batendo loucamente.

— Nem eu quero que ele seja o primeiro! — Hugh murmurou em seu ouvido.

Hugh virou Phillipa nos braços.

— Tem certeza de que é isso que você quer?

— Tenho — ela respondeu com firmeza. Nunca, em sua vida, estivera tão certa de uma coisa como naquele momento. Apoiou o rosto no peito dele, sentindo o calor de sua pele, a rijeza dos músculos, feliz com o aconchego e com a convicção de que escolhera o homem certo para ensinar-lhe os segredos do sexo.

Hugh a beijou no alto da cabeça e murmurou:

— Espero que, mais tarde, você não se arrependa.

— Não me arrependerei, mas... e você?

— Eu? Eu quero você desesperadamente. Eu a tenho desejado desde que a conheci.

— E quanto ao que você disse sobre achar desagradá­vel fazer sexo com uma virgem? Sobre preferir mulheres experientes?

Hugh emitiu um som gutural, uma mistura de riso e gemido.

— Nunca acredite no que um homem diz quando está zangado.

Ergueu o queixo dela e perguntou num sussurro:

— Está nervosa?

— Um pouco.

— Eu também.

A boca de Hugh, quente e macia, tocou a de Phillipa num beijo suave, doce, perfeito. Ela se admirou com a de­licadeza da carícia. Era a última coisa que ela esperava depois dos encontros no pomar e no estábulo, ocasiões em que ele se comportara com avidez e incontida paixão. No momento, Hugh parecia perfeitamente controlado e isso, além de tranquilizá-la, a comoveu.

O beijo tornou-se mais intenso. Quando terminou, Hugh pediu:

— Posso escovar seus cabelos?

O pedido a surpreendeu. Hugh pegou a escova e levou Phillipa até a cama enorme com macio colchão de plumas, afastou o cortinado, colocou-a sentada sobre a colcha bor­dada de cetim, e começou a escovar os longos cabelos sem pressa. Phillipa fechou os olhos, tranqüila, e entregou-se à deliciosa sensação. Parecia estar flutuando sobre um lago sereno, sem ter obrigações ou expectativas.

Hugh deu sua tarefa por encerrada quando viu os fios ainda mais brilhantes e macios como seda. Um instante depois, ela sentiu os lábios dele, cálidos e suaves, tocando-lhe a nuca. Hugh fez isso repetidas vezes, provocando nela uma espécie de embriaguez, um delicioso entorpeci­mento nunca antes experimentado. Um calor espalhou-se por seu corpo, acendendo uma chama, despertando um anseio até então adormecido, e que agora seria final­mente aplacado.

O coração de Phillipa bateu mais forte quando ele desa­marrou a tira dourada que fechava a parte de trás do vesti­do. Levantou-se e acabou de tirar a roupa, ficando só com a combinação de seda fina e transparente. Hugh fez menção de acabar de despi-la, mas ela segurou a mão dele.

— Posso ficar com a combinação? — perguntou timida­mente, com receio de que ele zombasse de seus melindres.

— Claro. Perdoe-me... estou muito ansioso. — Ele lhe deu outro beijo e indagou: — Quer que eu apague as lâm­padas de azeite?

Tal atenção sensibilizou Phillipa.

— Deixe apenas uma acesa.

Hugh apagou duas das três lâmpadas de azeite, dei­xando o quarto mergulhado em uma suave claridade. Tirou o cinto, a túnica e desamarrou a tira de couro que lhe prendia os cabelos. A parte de cima da camisa estava aberta, deixando à mostra o tórax musculoso e coberto de pelos. Sentando-se na beirada da cama, livrou-se dos sapatos e das calças justas. Phillipa retirou as sandálias douradas e removeu da cama a colcha de seda.

— Permita-me...

Hugh ajoelhou-se na frente dela, ergueu a combinação comprida, levou a mão à coxa direita de Phillipa, deixando-a sem ar, tirou a liga e desceu com cuidado a longa meia de seda. Em seguida fez o mesmo com a da perna esquerda. Sua agilidade e rapidez, Phillipa pensou, denotavam anos de prática... Mas afastou o pensamento. Não interessava saber se Hugh tivera ou não muitas amantes. Naquela noite ele estava com ela, e era isso que importava.

Hugh se levantou. Phillipa se recostou aos travesseiros e puxou as cobertas até a cintura, mantendo os longos ca­belos sobre os seios, uma vez que a combinação era muito transparente. Sabia que era tolice ficar envergonhada, considerando que em breve ela e Hugh teriam momentos de total intimidade. Porém, em toda a sua vida, ninguém a tinha visto sem roupas. Nem mesmo Ada.

Hugh sentou-se junto dela e ficou meio de lado, acariciando-lhe o rosto e fitando-a tão intensamente que era como se lhe desse grande prazer estar apenas ali, perto dela. Nunca havia ocorrido a Phillipa que sexo poderia envolver agrados e toques carinhosos, além dos essenciais para o ato em si. Por quanto tempo iriam ficar naquelas preliminares, até ele se deitar sobre ela e consumar a união? Será que também queria que ela o acariciasse? Iria doer muito quando ele a penetrasse? Imaginava que a ejaculação seria instantânea, mas, se não fosse, ela es­taria perdida, sem saber como proceder.

Ou melhor, estava completamente perdida desde agora.

— Eu gostaria de ser mais experiente. Seria melhor para você se eu soubesse o que fazer — admitiu num sussurro.

Ele sorriu para ela como se estivesse diante de uma criança desorientada.

— Nunca me senti tão bem com uma mulher como agora. E muito bom estar com você, assim.

— Eu não quero ficar grávida. — Phillipa mordeu o lábio, ansiosa. — Sei que há maneiras...

— Sim. Eu saio de dentro de você.

Phillipa fixou o olhar no tapete sarraceno pendura­do na parede à frente da cama, enquanto pensava nos métodos anticoncepcionais recomendados por Trotula e suas colegas médicas. Se Hugh pretendia tirar o membro antes de liberar suas sementes, com certeza o ato iria ser mais demorado do que ela imaginava.

Hugh esfregou um dedo entre as sobrancelhas dela.

— Esta ruga aqui é sinal de preocupação. Como resposta, ela deu um longo suspiro.

— O que sabe sobre o que fazem um homem e uma mulher na cama, Phillipa?

— Bem menos do que imaginei que eu soubesse. Hugh sorriu e pressionou a mão espalmada sobre o peito dela.

— Seu coração disparou. Está com medo?

— Um pouco.

— De sentir dor?

— Em parte. E também por causa da minha ignorân­cia. Não sei o que esperar. Receio fazer coisas erradas ou desapontá-lo.

— Seria impossível você me desapontar.

— Já o desapontei preferindo ficar de combinação. Uma mulher experiente não ficaria envergonhada de ir nua para a cama com um homem.

— Confesso que eu adoraria vê-la sem essa combi­nação. Quantas vezes a imaginei sem roupa nenhuma... Todas as noites sonho com você nua nos meus braços. Porém, as mulheres mais espertas sabem que, muitas vezes, um homem se interessa mais por aquilo que está escondido... — Enquanto falava, ele introduziu a mão sob cortina de cabelos, segurou um dos seios dela e acariciou-o sobre o tecido fino, deixando o mamilo endurecido. — Se você quer saber como agir, posso orientá-la. Quanto à dor, asseguro que será pequena comparada ao imenso prazer que irá sentir.

— Isso é possível?

Ele sorriu. Brincou com o mamilo, enviando sensa­ções extasiantes por todo o corpo dela, o que a fez arquejar de prazer.

— Não se preocupe. O gozo que eu lhe proporcionarei suplantará a dor — afirmou com segurança, e dispensou ao outro seio com o mesmo delicioso tratamento.

— Eu não sabia até pouco tempo que... — Phillipa he­sitou, sentindo um súbito calor ao tentar encontrar as palavras certas para expor seu pensamento. — Eu ima­ginava que a parte do homem que... — Sem poder evitar, olhou para as cobertas onde era visível a elevação logo abaixo da cintura de Hugh.

— Você se refere ao órgão masculino que penetra o corpo da mulher — Hugh completou, muito sério.

— Isso. Vi uma ilustração quando eu era pequena. Representava Adão e Eva no Jardim do Éden... Era tão pequeno. Não parecia algo que pudesse causar descon­forto a uma mulher.

— Ou prazer. Conheço essa ilustração e devo dizer que é enganosa. E natural que você esteja apreensiva, tendo tantas noções falsas sobre sexo. Porém há um re­médio para isso... — Com um gesto rápido, Hugh afastou as cobertas e ergueu a camisa para puxar a tira de couro e desamarrar as ceroulas.

— Por favor, ainda não! — Phillipa sentou-se na cama e cobriu com as mãos o rosto rubro de vergonha. Em se­guida se recompôs. — Meu Deus, você deve estar pensan­do que eu sou uma puritana, melindrosa e afetada!

— Nada disso. — Hugh a abraçou. — Eu é que estou sendo afoito. É claro que você precisa de tempo.

— Como você disse, é mesmo muito aborrecido iniciar uma virgem.

— Estar aqui com você, saber que nenhum outro ho­mem jamais a tocou, é a coisa mais maravilhosa, mais lin­da e emocionante que já me aconteceu na vida, Phillipa. Jamais duvide disso. Nem por um momento — Hugh de­clarou com sinceridade e imensa ternura. — Mas você iria se sentir muito melhor se não tivesse medo de mim.

— Eu não...

— Você tem medo da parte de meu corpo que está co­berta, por isso não quer me ver nu.

Ela engoliu em seco.

— Deite-se... Fique olhando para mim — Hugh pediu a Phillipa, e ela o obedeceu. — Agora me dê sua mão e não se acanhe... Não vou tirar as ceroulas se isso a faz sentir-se melhor. Quando estiver pronta, você mesma irá desamarrá-las. O que acha?

— Pode ser. — Ela sorriu. Chegava a ser engraçado ver Hugh esforçar-se tanto para deixá-la à vontade, enquanto ela continuava reticente para fazer o que ele pedia.

— O objeto em questão está, no momento, perfeita­mente tranqüilo — disse Hugh com um sorriso travesso. — Neste estágio ele não faz nenhuma dama desmaiar de terror...

Phillipa sentiu, sob o linho das ceroulas, o órgão quen­te e volumoso, muito mais comprido e grosso do que o minúsculo apêndice de Adão, e bem maleável ao toque. Baseando-se no que havia sentido nas duas vezes em que Hugh pressionara o corpo contra o dela, deduziu que, quando excitado, o membro se tornava rijo.

— Na ilustração, a anatomia de Adão estava incom­pleta — Hugh observou, guiando a mão dela um pouco mais para baixo.

— Eu sei — ela concordou, sem graça.

Hugh fez com que ela segurasse o pênis coberto pelo tecido das ceroulas.

— Notou alguma coisa?

— Parece que ele inchou um pouco... O que você sente quando isso acontece?

— A sensação é sempre muito boa, mas esta noite sin­to algo extraordinário porque é você quem está fazendo isso acontecer.

Um pouco mais à vontade, Phillipa prosseguiu com sua exploração. Passou a mão sobre o tecido de linho, acompanhando as curvas dos órgãos, massageou-os, se­gurou o pênis, sentindo-o pesado na mão. Hugh, que a observava em silêncio, sentiu a visão ir perdendo o foco à medida que ela o tocava. De repente, o membro ergueu-se, tornou-se rijo, e Phillipa afastou a mão depressa.

— Não pare! — Hugh implorou com voz rouca. Beijou-a, então, e, segurando a mão dela, colocou-a de volta ao lugar onde ela o tocara. Sua respiração tornou-se cada vez mais acelerada. Ele intensificou o beijo e introduziu a língua entre os lábios dela enquanto a acariciava por inteiro, apertava-lhe os seios, as costas, as nádegas, as mãos movendo-se pelo corpo de Phillipa numa dança len­ta e sensual, deixando-a trêmula e ardendo de desejo.

Com a outra mão Phillipa acariciou o peito e os om­bros de Hugh, sentindo os músculos tensos à medida que a excitação dele aumentava.

— Parece que você já está pronto... — murmurou, no­tando o tecido das ceroulas esticado sobre o órgão rijo.

— Você ainda não desamarrou as minhas ceroulas — ele reclamou com um sorriso maroto.

— Ah...

Phillipa segurou na ponta da estreita tira de couro, mas não conseguiu puxá-la.

— Vejo que está hesitando. Isto é sinal de que você não está pronta.

Ela se empertigou.

— Estou, sim.

Diante da resposta, Hugh ergueu a combinação dela até os quadris e começou a acariciá-la. Phillipa estava tensa que não conteve um pequeno grito quando sentiu a mão dele tocá-la intimamente, onde nem mesmo ela jamais havia tocado... Ele continuou a acariciá-la com delicadeza, examinando, entreabrindo, explorando...

Phillipa fechou os olhos diante da tempestade de sensações provocadas pelo contato dos dedos ásperos em sua parte mais sensível.

— Você ainda não está totalmente pronta — Hugh disse com um suspiro. — Será mais confortável se estiver mais úmida quando eu penetrá-la.

— Úmida?

— Eu quero que você sinta prazer, embora seja esta a sua primeira vez. A umidade natural tornará o ato mais agradável.

Senhor, então Ada estava certa? As mulheres também podiam...?

Hugh sorriu e massageou o ponto entre os olhos de Phillipa onde se formara uma ruga.

— Você não entendeu o que eu quis dizer, não é mesmo?

— Não entendi muito bem — ela admitiu, frustrada. — Eu gostaria de não ser tão ignorante no que diz respei­to aos assuntos da carne.

— Acho maravilhoso você ser assim. Isso quer dizer que estarei com você quando, pela primeira vez, alcançar o auge do prazer. — Ele a beijou suavemente. — Poderei olhar no seu rosto no momento em que experimentar o clímax. Talvez eu esteja até dentro de você... Agora, feche os olhos.

Phillipa o atendeu.

— Você é linda — Hugh disse baixinho, enquanto a acariciava.

Assim que ele tocou na barra da combinação, ela abriu os olhos.

— Relaxe! — Hugh pediu-lhe. Beijou-a novamente. Após um instante, prosseguiu. — Pense em um lugar onde você nunca esteve. Deixe-me levá-la até lá...

Cobriu o seio pequeno com a mão quente e áspera.

Ao sentir o toque sobre a pele delicada e sensível, Phillipa prendeu a respiração. Ele esfregou os mamilos com as pontas dos dedos, arrancando gemidos de prazer dos lá­bios dela. Quando, por fim, deslizou a mão para baixo, indo repousá-la entre suas coxas, ela estava trêmula.

— Separe um pouco as pernas — Hugh pediu num sussurro.

Incapaz de resistir ao primeiro leve roçar dos dedos em suas partes íntimas, Phillipa suspirou e atendeu ao pedido. Ele a beijou e foi intensificando as carícias, os dedos ágeis afagando-a e provocando-a até fazer com que ela arqueasse as costas e movesse os quadris, desinibida. Livre de pudores, Phillipa gemeu contra seus lábios.

— Você é maravilhosa! — ele murmurou, renovando as carícias, e sentindo que ela já estava pronta.

Havia algumas noites, Phillipa refletiu, sentira-se tão frustrada por estar na cama junto de Hugh imaginando como seria entregar-se a ele. Agora que experimentava sensações tão extraordinárias, sentia um desejo crescen­te, avassalador. A julgar pela respiração entrecortada e pelo corpo tenso como um arco retesado, Hugh devia es­tar sentindo o mesmo que ela.

Só havia um meio de aplacar esse desejo, esse vazio terrível. Estendendo a mão, Phillipa desamarrou as ceroulas dele, recebendo um beijo ardente, quase doloroso.

— Diga o que tenho de fazer — ela pediu. — Devo ficar deitada?

— Não. Vamos começar com você por cima... Ele a ergueu e a acomodou sobre ele.

— Hugh, eu... Eu não sei o que fazer.

— Sabe, sim. Apenas não tem consciência disso. Para você essa posição é melhor. Estou tão ansioso que receio machucá-la. Estando por cima, você controla o ritmo.

— Mas...

— Confie em mim, Phillipa.

Pacientemente, ele a segurou pelos quadris e arremeteu de leve.

— Oh, pare... — ela pediu, arfante.

— Pronto. Já parei... Estou imóvel. Agora é você. Phillipa não se mexeu. Parecia-lhe impossível, sendo virgem, unir-se a um homem tão grande.

— Abaixe um pouco — Hugh a orientou, compreen­dendo o motivo daquela hesitação. — Tente. Vá devagar.

Ela mordeu o lábio.

— Mas, e a dor?

— Será menos doloroso dessa forma.

Ela desceu um pouco o corpo e fez uma careta quando ele ergueu os quadris devagar.

— Muito bem. Continue assim... Se quiser parar, é só pedir.

— Não ficará frustrado se eu não quiser continuar?

— Um homem aprende a viver com frustrações desse tipo. A não ser que ele seja daqueles que forçam uma mu­lher a aceitá-lo contra a vontade. Como eu já lhe disse, nunca fui um sedutor nem depravado. E se você pretende pôr um ponto final nisto, prefiro que não espere até o último inst...

— Não quero nem vou parar. Saiba que tenho mais interesse do que você em concluir o que começamos.

— Duvido. — Ele sorriu.

Phillipa fechou os olhos e fez outras tentativas, sem grande progresso. Estimulada por Hugh, continuou a exercitar-se e, como ele havia previsto, constatou que, à medida que a excitação aumentava, o desconforto era superado pelo prazer. Sentindo que a penetração estava quase completa, viu-se possuída por uma maravilhosa tensão, especialmente no ponto onde seu corpo estava unido ao dele.

Phillipa notou que a respiração de Hugh se tornara irregular e sentiu que ele contraía os quadris ao penetrá-la bem devagar.

Quando, finalmente, ele rompeu a barreira, ela abriu os olhos. Hugh estava agarrado ao travesseiro sob sua cabeça, controlando-se para não tocar nela. Tinha o rosto afogueado e um brilho nos olhos, como se estivesse ébrio.

Não havia palavras para ela expressar o extraordiná­rio prazer de estar tão intimamente unida a ele. Sentir o membro pulsante dentro dela era inebriante. Impelida por um desejo incontrolável, Phillipa movimentou os quadris, tímida, e, sem querer, foi aumentando o ritmo. De repente ficou imóvel, com o coração em disparada, dividida entre um estonteante prazer e o medo do desconhecido.

— Eu não posso, eu...

— Pode. — ofegou Hugh, excitado, os olhos semicerrados, os cabelos deliciosamente desgrenhados. — Deixe acontecer. — Levou as mãos aos quadris dela e a ajudou a movimentá-los devagar, enquanto erguia o próprio cor­po ao encontro de suas arremetidas.

Os movimentos sinuosos provocaram em Phillipa a sensação de estar sendo acariciada profundamente, e onde estava mais excitada. Tomada por uma sensação inebriante, agarrou-se à camisa de Hugh e se contorceu numa espécie de delírio. Ouviu o próprio grito quando uma súbita onda de prazer a percorreu por inteiro, e seu corpo pareceu entrar em uma deliciosa convulsão.

De modo meio brusco Hugh, a segurou contra o peito, virou no colchão, ficando por cima dela, e a penetrou por completo. Phillipa mordeu o lábio e gemeu. Hugh con­tinuou a arremeter, arquejante, até que saiu de dentro dela com uma exclamação abafada e sacudido por um violento tremor.

Pouco depois, ele desabou, exausto, sobre seu corpo.

— Sinto muito... — desculpou-se com voz trêmula. — Eu a machuquei, não foi?

— Não... Estou bem — ela afirmou, comovida. — Foi maravilhoso.

— Você é maravilhosa. — Ele ergueu-se um pouco e a beijou na testa. — Você foi incrível... Estou muito pesado?

— Não saia daí. — Phillipa pôs as mãos por baixo da camisa dele e começou a acariciá-lo nas costas.

Parou, assustada, ao perceber que Hugh tinha várias cicatrizes. Ninguém precisava lhe dizer que eram mar­cas deixadas por chicote... Que tipo de crime ele teria cometido para ser tão severamente chicoteado? Seriam essas cicatrizes a razão de ele sempre usar uma camisa quando ia para a cama?

— Hugh...

Sabendo que ela iria lhe fazer perguntas, ele se adiantou.

— Prefiro não conversar sobre este assunto. — Puxou as cobertas, rolou para o lado e vestiu de novo as ceroulas.

— Hugh, sua camisa está rasgada — ela reparou, con­fusa. — Como isso aconteceu?

— Você a rasgou quando... — Ele sorriu. — No final.

— Eu? — Ela ficou boquiaberta. — Oh, sinto muito!

Hugh deu uma risada solta.

— Não tem importância. Só espero que não tenha sen­tido muita dor. Tentei diminuir seu desconforto.

Phillipa o fitou, comovida.

— Foi exatamente como eu queria. Obrigada.

— E eu lhe agradeço por ter pedido para ter sua primei­ra noite comigo — ele replicou, sério. — Mas eu queria...

— Sim?

Hugh deu um longo suspiro.

— Na segunda vez não vai doer muito.

A segunda vez... com Aldous!, Phillipa pensou. Deus, o que eu fiz?

Hugh parecia querer dizer alguma coisa, porém per­maneceu em silêncio. Após um momento, deu um beijo suave na testa dela.

— Durma bem.

Hugh olhava pela janela do gabinete de lorde Richard, para o pátio do palácio real. Voltou-se ao ouvir a pergun­ta do magistrado.

— Você tem idéia de quanto tempo Aldous Ewing pre­tende ficar com Phillipa em Halthorpe?

— Não sei. — Ele suspirou. — Não dá para prever.

— Consegue imaginar quanto tempo leva para um ho­mem cansar-se de uma mulher como Phillipa de Paris?

Toda uma vida. Ou duas delas.

Hugh esfregou o pescoço, tentando afastar da mente as imagens do que acontecera na noite anterior. Phillipa, intocada e inocente, usando aquele encantador vestido vermelho, fitando-o com os grandes olhos castanhos e di­zendo: "Não quero que ele seja o primeiro".

Mal conteve um sorriso ao lembrar-se do modo reca­tado como ela escondera o rosto nas mãos para não olhar nas partes íntimas dele.

Entretanto, essa mesma Phillipa, entregara-se em erótico abandono quando ambos se uniram por comple­to... E que visão lhe proporcionara aquele lindo corpo, coberto apenas pela combinação de seda, contorcendo-se em delirante prazer!

Céus, ela chegara a rasgar a camisa dele ao alcançar o clímax. Quem poderia imaginar que, sob aquele exterior tão altivo, havia tanta paixão?

E tinha sido ele, Hugh de Wexford, quem proporcio­nara tão grande prazer a Phillipa. Que despertara sua natureza sensual.

Tudo isso para entregá-la a Aldous Ewing, um sedu­tor que a abandonaria tão logo se satisfizesse.

Conseguiria Phillipa extrair do diácono segredos tão importantes, capazes de salvar a Inglaterra de uma guerra civil?

— Parabéns a você e lady Phillipa pelo sucesso. Ela demonstrou muito talento ao conseguir convencer Aldous Ewing a levá-la a Halthorpe — Hugh ouviu lorde Richard dizer.

Estava muito desatento. Quando acordara naquela amanhã, sentira-se como se tivessem arrancado uma parte dele ao constatar que Phillipa já havia partido com Aldous e os italianos. Se pudesse, ele iria a cavalo até o castelo para tirá-la das garras daquele canalha. Porém, ciente do seu dever, deixara Southwark e viera ao palácio real para dar a notícia a lorde Richard. Compreendia que Phillipa não se despedira dele naquela manhã para não acordá-lo. Conseguira vestir-se e tirar a bagagem do quarto sem perturbar-lhe o sono.

Ao despertar, não vendo Phillipa na cama, ele ficara desolado e enlouquecido só de pensar que ela dormi­ria com Aldous naquela noite, na noite seguinte e... por quantas semanas mais?

Saíra para cavalgar, dominado por sentimentos de an­gústia, raiva e espanto. No passado, sua fixação numa mulher desaparecia logo após tê-la levado para a cama. Havia imaginado que o mesmo iria acontecer com Phillipa e rezara para que seu desenfreado desejo se extinguisse, sendo substituído por frio desinteresse.

Entretanto, ao ver que Phillipa tinha ido embora levan­do tudo o que lhe pertencia, ele experimentara horrorosa sensação de perda. Phillipa havia levado até as roupas que tinha usado na noite anterior. A única lembrança que dela restara tinha sido seu delicado perfume nos travesseiros e a pequena mancha de sangue no lençol de baixo.

— O rei Henrique ficará muito satisfeito com o pro­gresso de vocês. Ele está ansioso para saber se...

Aldous não seria delicado com Phillipa quando a levasse para a cama, pois não fazia idéia de que seria apenas a segunda vez que ela se uniria a um homem. Provavelmente ela iria sentir dor, mas sofreria calada para não levantar suspeitas. Talvez chorasse mais tarde, quando estivesse sozinha, Hugh refletiu, completamente alheio ao que lorde Richard dizia.

Massageou a testa que latejava. Embora Halthorpe estivesse situado do outro lado da cidade, a distância até lá não era tão grande. Se lorde Richard não o pren­desse no palácio o dia todo, iria ao castelo e chegaria lá antes de anoitecer, visto que era verão e escurecia mui­to tarde. Poderia dizer que, para não ficar sozinho em Southwark, tinha decidido passar o dia na casa da irmã, em Eastingham, e as noites em Halthorpe com a esposa.

— Hugh? Está me ouvindo?

Virando-se, Hugh viu lorde Richard sentado na beira­da da mesa, carrancudo. Ele não era homem que tolerava ser ignorado.

Hugh encostou-se ao peitoril da janela.

— Desculpe-me...

— Eu acabei de dizer que vou mandá-lo para a Normandia.

— Normandia? — Hugh fechou os olhos e maldisse a sorte. Não poderia ir para a Normandia e Halthorpe ao mesmo tempo.

— O rei Henrique está em Rouen e deseja vê-lo. Como roce agora está disponível, decidi mandá-lo para lá.

— Por que eu devo ir? O senhor não poderia enviar um |de seus homens de confiança?

— O rei insiste em falar com você.

Hugh resmungou, exasperado.

— Lorde Richard... eu não estou disponível. Não con­seguimos informação nenhuma. E se lady Phillipa preci­sar de mim enquanto eu estiver em Rouen? E se ela tiver problemas?

— Há mais uma razão para o rei querer vê-lo, Hugh.

— Qual? — Hugh franziu o cenho. Os olhos azuis do magistrado se fixaram nele.

— Para todos os efeitos, eu não lhe disse nada. Mas o rei está pensando em nomeá-lo xerife de Londres.

Hugh achou que não tinha ouvido direito. O cargo de xerife era muito importante. Os dois xerifes encarregados de manter a segurança de Sua Majestade, a paz e a or­dem na grande cidade e no condado vizinho de Middlesex, tinham grande poder e influência no Reino. Antigamente os xerifes eram eleitos por um grupo de cidadãos, porém passaram a ser nomeados diretamente pelo rei e eram escolhidos entre nobres proprietários de terras.

— Mas Londres já tem dois xerifes — Hugh alegou, confuso.

— John Hilton deixará o cargo em setembro. Parece que piorou da gota. O outro é o velho Martin Fitz William. O rei quer um homem com experiência para investigar crimes, fazer cumprir as leis, e que seja jovem para cum­prir as exigências do cargo. É claro que você terá ajudan­tes para fazer grande parte do trabalho externo. Terá um gabinete na sua própria casa e presidirá...

— Mas eu não tenho casa. Quando estou na área de Londres, moro com Joanna e Graeham.

— Faz parte da remuneração de um xerife ter uma bela casa na cidade. Você estará subordinado ao magistrado de Londres e este, diretamente ao rei. O magistrado é um homem bom e justo. Vai se dar muito bem com ele.

— O senhor fala como se eu já tivesse sido nomeado.

— O rei tem grande consideração por você, Hugh. Ele quer vê-lo, principalmente para avaliá-lo e certificar-se de que você é o homem certo para exercer esse tipo de trabalho. Se ele decidir a seu favor, provavelmente irá lhe oferecer o cargo no mesmo momento. Portanto, se quiser impressionar Sua Majestade, eu o aconselho a se apresentar como um cavalheiro. Por Deus, não use essa horrível túnica de couro e seja respeitoso. Lembre-se de que ele é o rei.

Hugh quase deu uma risada.

— O senhor está achando que eu quero ser xerife de Londres.

Lorde Richard ficou muito surpreso.

— É claro que você quer ser xerife de Londres! É a chance de toda uma vida.

— Pode ser para um homem que não se importe de fi­car preso a um lugar e a um senhor, talvez para sempre.

— Mas você me disse inúmeras vezes que ama Londres. Quanto a não querer ficar preso a um "senhor"... Bem, não creio que isso será problema. Na realidade você terá certa autonomia. Ouça, Hugh, eu sei que você detesta ser subordinado a alguém; até a mim, mas...

— Não quero o cargo e o recusarei se o rei me oferecê-lo — Hugh cortou, resoluto. — Portanto, lorde Richard, eu lhe peço, respeitosamente, que me dispense dessa via­gem à Normandia.

— Você irá para Rouen — lorde Richard afirmou cal­mamente. — Se tiver coragem, diga diretamente ao rei o que acaba de me dizer.

Hugh esmurrou o peitoril da janela e murmurou uma praga.

— O que o preocupa, Hugh? — lorde Richard pergun­tou, amável, porém, como sempre, fixando nele aqueles olhos irritantemente astutos.

— Nada — Hugh respondeu depressa, e dirigiu o olhar para o mapa-múndi acima do ombro do magistrado.

— Francamente, Hugh de Wexford, você precisa aprender a mentir de modo verossímil... Ao desviar os olhos para a pintura da parede, você se entregou. E a moça, não é?

— Não, eu...

— Está preocupado com lady Phillipa. Hugh suspirou.

— Estou — admitiu a contragosto. Era verdade ou, pelo menos, parte da verdade.

— Pois não deveria. Ela é mais esperta do que nós dois juntos. Lady Phillipa tem expediente, é habilidosa, perspicaz, analítica. Nasceu para esse tipo de trabalho.

— Eu sei, mas...

— Ela se sairá bem. E o rei exige sua presença em Rouen.

— Lorde Richard...

— Trata-se de um chamado de Sua Majestade. Você não tem escolha.

Hugh sabia disso. Comprimiu os maxilares e respon­deu secamente:

— Está bem.

— Você deve partir imediatamente. — Lorde Richard sentou-se à sua mesa e começou a separar uns papéis. — Eu gostaria que você levasse alguns documentos a Sua Majestade, se não se importar.

— Claro que não.

Virando-se para a janela, Hugh fechou os olhos. Precisava organizar os pensamentos e fazer alguns cál­culos. Se não houvesse contratempos na estrada para Hastings, se o tempo estivesse bom durante a travessia do canal da Mancha, e se o trajeto a cavalo de Fécamp a Rouen ocorresse sem transtornos, ele faria a viagem de ida em quatro dias e gastaria outros quatro para voltar. Isso se não tivesse de esperar no palácio ducal antes da audiência com Sua Majestade. Também deveria conside­rar que, talvez, o rei não estivesse em Rouen. Henrique Plantagenet era conhecido por não permanecer muito tempo num lugar. Se fosse esse o caso, ele seria obrigado a procurar o rei por metade da França.

Quando voltasse para a Inglaterra e seguisse para o castelo Halthorpe, possivelmente duas semanas já se te­riam passado e Phillipa...

Abriu os olhos... Phillipa seria a amante de Aldous Ewing.

— Milady, tem certeza de que... — disse a jovem cria­da, hesitante, ao vestir em Phillipa a camisola branca de seda. — A senhora quer mesmo fazer isso?

Para Phillipa era um sofrimento ter de ir ao quarto de Aldous Ewing naquela noite, toda perfumada, usando apenas uma camisola de seda fina e transparente. Mas respondeu:

— Sim, Edmee, tenho certeza.

Edmee ajeitou o decote da camisola e franziu a testa, como se desaprovasse o modelo escandaloso. A camisola era aberta dos lados até os quadris e tinha delicado cordão unindo as duas partes do tecido, como era a última moda nas túnicas femininas. Só que nas túnicas, a abertura lateral mostrava apenas um pedacinho da combinação, enquanto a camisola de Phillipa deixava à mostra um corpo tentador. Um traje daqueles tinha o propósito de despertar a luxúria de um homem. E isso Edmee, obviamente, não aprovava.

Dentre as inúmeras criadas que lady Clare trouxe­ra de Poitiers para o castelo, Edmee era a mais simples. Camponesa piedosa, a julgar pela cruz de madeira que trazia pendurada ao pescoço, era alta e forte. Tinha seios grandes e cabelos loiros que, saindo para fora do toucado, emolduravam o rosto redondo e sardento. Era o oposto de Phillipa, tanto fisicamente como no temperamento. Todavia, ela e Orlando Storzi eram as únicas pessoas em Halthorpe com quem Phillipa sentia-se à vontade.

Clare tinha outros hóspedes: um grupo de poetas afe­tados, e nobres franceses decadentes que a haviam se­guido até o castelo no decorrer das semanas anteriores. Embora Phillipa fosse tolerante com idéias radicais, o descaso com a moralidade a deixava chocada.

Talvez isso acontecesse por influência de Edmee. Desde que Phillipa chegara ao castelo, a criada percebera que a visitante era diferente das outras damas. Fizera o possível para ser sua criada pessoal, embora já estivesse atendendo lady Clare e sua grande amiga e confidente, Marguerite du Roche. Edmee não podia ser mais solícita e a cada dia que passava, mais crescia sua admiração pela nova patroa.

No entanto, naquela noite a pobre moça não disfarça­va seu desapontamento. Durante toda a semana, Phillipa conseguira esquivar-se dos avanços amorosos de Aldous, alegando que aquele era um período inconveniente do mês. Agora não tinha escolha senão ter com Aldous o en­contro tão adiado.

— Erga o braço, milady — pediu Edmee, fechando com o cordão o lado esquerdo da camisola provocante.

— Perdoe-me por perguntar, mas seu marido... Hugh de Oxford... é esse o nome dele, não?

— É.

— Sir Hugh está a par do seu romance com mestre Aldous?

Phillipa respirou fundo.

— Sim.

— Nunca vou entender vocês da aristocracia. Os pa­dres dizem que o adultério é um pecado grave... Nenhum de vocês tem medo dos tormentos do inferno?

— É complicado — Phillipa murmurou, olhando para a parede de pedra que separava seu quarto daquele do diácono.

Aldous lhe prometera aposentos com comunicação, po­rém estes estavam todos ocupados, e Clare não se dispôs a desalojar ninguém para favorecer o irmão mais novo, o qual ela mal parecia tolerar. Isso deixara Aldous furio­so, e ele perguntara à irmã o que seria da sua cobiçada promoção para o cargo de arcediago se alguém o visse en­trando no quarto de Phillipa ou ela entrando no quarto dele. Na própria casa ele não precisava ser tão discreto. Mas entre aqueles estrangeiros, deveria estar vigilante, caso contrário, sua carreira iria virar cinzas.

Para acalmá-lo, Clare o deixara andar pelo castelo, que tinha o tamanho de uma pequena cidade, e ele encontra­ra na extremidade da ala mais velha de Halthorpe dois quartos pequenos. Mandara levar para lá velas de junco, camas e outras peças. Apesar do isolamento, Aldous nun­ca entrara no quarto de Phillipa com receio de Edmee vê-lo e comentar com os outros criados. Também não ficava sozinho com ela. Sua comunicação mais íntima era feita por meio de bilhetes levados pela irmã, que achava ridí­cula toda aquela maquinação e ria às costas dele.

Afinal, aqueles cuidados eram desnecessários. Era evidente que todos sabiam por que Aldous trouxera Phillipa com ele. Notavam as atenções dele para com ela e o modo como ele a fitava. Viam-no falando ao seu ouvi­do e tocando em sua mão. Aldous parecia um adolescente apaixonado, e Phillipa o encorajava, embora se sentisse desconfortável ao fazer isso.

O pior era que não conseguira informação nenhuma até o momento.

Nem mesmo nas conversas com Orlando ela obtivera uma palavra que fosse sobre suas atividades no porão. Ele trabalhava com Istagio o dia todo e, muitas vezes, à noite.

Quanto às perguntas discretas que fazia aos hóspe­des, também tinham sido infrutíferas. Aquela gente fútil não apenas ignorava o que acontecia fora da parte social do castelo, como não tinha o menor interesse em nada além de seus prazeres.

— Erga o outro braço, milady. Foi muito bom eu ter trabalhado no palácio de Poitiers, caso contrário eu não saberia o que pensar de Halthorpe! — Edmee estava di­zendo. — Minha pobre mãe cairia de joelhos se soubesse como lady Clare e Marguerite du Roche se comportam. Ah, se ela visse o que eu vejo e ouvisse o que eu ouço...

Lady Marguerite era uma mulher sensual. Tinha olhos de gata e cabelos vermelhos, que deixava sempre soltos. Diziam que ela era casada, mas nunca era vista com o marido.

— É verdade que existe uma lista? — Edmee perguntou. Ah, a lista de lady Marguerite, Phillipa se lembrou.

Assim que chegara a Halthorpe, lady Marguerite lhe mostrara uma lista com os nomes de vinte homens que ela pretendia levar para seu quarto até o final do verão. Os candidatos eram alguns hóspedes e, os mais bonitos, soldados da cavalaria do rei Louis que estavam acampa­dos em barracas no pátio externo do castelo. O interesse de lady Marguerite pelos homens do rei provava sua devassidão. Eles eram conhecidos por sua brutalidade, até mesmo por violentar mulheres.

— E verdade — Phillipa confirmou. — Ouvi dizer que em duas semanas ela já se deitou com todos, exceto três deles.

— Até com Nicolas Capellanus?

Edmee referia-se ao padre careca e taciturno que exercia a ingrata função de capelão de Halthorpe. Tendo anteriormente sido designado sacerdote da corte do pie­doso rei Louis, em Paris, ele não disfarçava seu desagra­do diante da atmosfera pecaminosa reinante no castelo.

— Padre Nicolas, Turstin de Ver e Raoul d'Argentan foram os três que recusaram lady Marguerite. Turstin, o trovador queridinho de Gare desprezou Marguerite, visto interessar-se por rapazes, e Raoul é louco pela esposa, a lin­da Isabelle. Jamais perderia seu tempo com outra mulher.

— Se é assim que lordes e damas se comportam, não quero saber desse tipo de vida — disse Edmee, começan­do a escovar os cabelos de Phillipa.

Nem eu, Phillipa pensou. Os romances depravados e cheios de intriga que testemunhava em Halthorpe es­tavam muito longe da visão idealística que ela fazia do amor cortês.

Será que Hugh estava certo? O tão enaltecido amor cortês não passava de uma tolice? Seria um relacionamento tolo, fugaz e egoísta? Mera satisfação dos sentidos?

Não. Ela sabia que não era assim tão simples. Após se entregar a Hugh, tendo experimentado a beleza da união en­tre um homem e uma mulher, compreendia que havia nesse relacionamento algo além do físico, algo que tocava a alma.

Naquela noite acontecera alguma coisa tão profun­da que beirava o sagrado. Ela deixara de ser apenas Phillipa, e Hugh não era mais Hugh simplesmente. Eles estavam ligados num nível mais alto, além dos limites do corpo. Compreender isso e sentir essa magnitude era a um tempo maravilhoso e assustador.

Nos dois primeiros dias em Halthorpe, ela mantivera a esperança de que Hugh arranjaria algum pretexto para aparecer ali e levá-la embora. Ou, quem sabe, lady Clare o convidaria para ficar hospedado no castelo.

Fazer amor com Hugh tinha sido transcendente, su­blime. Deitar-se com Aldous seria insuportável. Ela ha­via pensado que teria coragem de unir-se a ele, mas isso tinha sido antes de Hugh tê-la despertado com extraordi­nária ternura para os mistérios da paixão física.

Não. Não poderia macular o que havia experimenta­do com Hugh, deitando-se com Aldous para satisfazê-lo como uma reles prostituta.

Infelizmente, não podia mais protelar seu encontro com ele. Durante toda a semana havia rezado para Hugh vir livrá-la da tortura que seria tornar-se amante de Aldous... Porém ele não aparecera, tampouco a impedira de vir para Halthorpe. Pelo contrário, até a incentivara a fazer isso.

Um homem confia muito mais na mulher que se torna sua amante do que na mulher que lhe oferece morangos.

O desespero causava em Phillipa a sensação de ter uma brasa queimando-lhe o estômago.

Oh, Hugh, por que me deixou vir? Por que não veio me salvar?

Invadiu-a uma raiva repentina. Hugh não se impor­tava com ela. Ele jamais poderia tê-la abandonado da­quele jeito.

Fechando os olhos, pensou nele, deitado, olhando para ela com desejo, tão lindo à luz da lâmpada de azeite.

Venha, Hugh, venha, por favor...

O som de uma leve batida na porta a interrompeu. Ela ouviu uma voz doce de mulher.

— Phillipa? É Clare.

— Não é melhor eu dizer a ela que a senhora já se deitou? — Edmee sussurrou, sabendo que Phillipa não Simpatizava com a anfitriã, e essa antipatia era mútua.

Antes de ela aceitar a sugestão da criada, Clare acres­centou em tom conspiratório:

— Tenho uma coisa para você... O cavalheiro em ques­tão ficará muito zangado se eu não lhe entregar isto ime­diatamente.

Phillipa deu um gemido, desesperada. Outro bilhete de Aldous!

— Deixe lady Clare entrar.

Quando Edmee ia levar a mão à maçaneta, a porta se abriu, e lady Clare entrou no quarto ao som do tilintar das chaves penduradas na enorme corrente de ouro que trazia ao pescoço. Como sempre, a dona de Halthorpe estava vestida suntuosamente. Usava túnica de cetim azul-marinho, aberta dos lados para deixar entrever a combinação, trazia na cabeça uma peruca preta com penteado elaborado, e safiras brilhavam em todos os dedos da mão direita, até mesmo no polegar. Na mão esquerda, ela usava uma luva rústica de couro para protegê-la das garras de um falcão fêmea encapuzado. Clare estava treinando a ave ainda jovem para caçar, e a carregava consigo para deixá-la acostumar-se com a companhia dos humanos.

— Ah, você já está vestida para dormir... Com meu ir­mão, naturalmente. Já estava na hora, querida. O pobre homem deve estar com as bolas explodindo...

Phillipa encarou Clare, mas pelo canto do olho viu a cândida Edmee de queixo caído.

— Ele me mandou outro bilhete? — indagou, tensa.

— Sim. Ele está desesperado porque você não respon­deu ao que eu lhe entreguei esta manhã.

— Não imaginei que quisesse uma resposta.

— Meu irmão está ansioso para consumar sua grande paixão.

No bilhete daquela manhã Aldous havia escrito:

A quem eu mais desejo, a ela cuja voz é doce como a do rouxinol, cujos membros eu anseio por sentir me envolven­do como ramos da madressilva... Do seu pobre apaixonado Aldous, que está cativo de sua beleza, subjugado por seus encantos. Sonho com o conforto do seu abraço, querida lady. Venha até mim esta noite e deixe-me fazer amor com você. Você é o anjo da minha vida, alento da minha alma, minha delícia terrena e celestial inspiração...

Foram as linhas finais, entretanto, que deram a Phillipa uma idéia, a qual gradativamente foi tomando forma em seu cérebro.

Lembre-se de que estaremos sozinhos. Meu amor por você permanece puro, meu corpo casto, esperando pela hora feliz da nossa união. É com o coração palpitante que aguardo sua visita esta noite. Não bata na porta. Não diga nada. Junte-se a mim no meu leito e nos entre­guemos um ao outro.

— Aqui está o bilhete. — Clare tirou do vão dos seios uma pequena folha de pergaminho. — Eu disse a ele que não pretendo continuar fazendo papel de mensageira en­tre vocês — completou rudemente. Andando pelo quarto, olhou com expressão aborrecida para as cortinas velhas, a mobília malcuidada, a cama sem cortinado e com colchão de palha. A cama do quarto de Aldous era enorme e pri­morosamente entalhada com colunas torneadas. Tinha cortinas brancas e cor de damasco, presas com cordões e pingentes de cetim. O colchão era de plumas de ganso.

Phillipa leu o bilhete que acabara de receber:

Venha esta noite, por favor. Não terei paz enquanto não experimentar o prazer supremo nos seus braços...

— Você tem pouca coisa, não?

Olhando na direção de Clare, Phillipa viu que ela estava junto do lavatório, examinando os objetos e produ­tos de toucador.

— Com essa pele você pode até estragar a noite. — Clare abriu um frasco e o cheirou. — Há um boticário em Paris que prepara um creme maravilhoso com alvaiade de água de rosas. Você deveria experimentá-lo... Não quer ter para sempre essa aparência de filhinha brilhante e ilegítima de Guy de Beauvais, não é mesmo?

Phillipa estava pensando em dar uma resposta que não fosse ofensiva, quando um estrondo abafado reverberou pelo castelo. O falcão gritou e bateu as asas, assustado.

— Calma, Salomé, isso foi apenas um barril de vinho rolando de cima da pilha... — afirmou Clare, alisando as penas da ave.

Não era a primeira vez que Phillipa ouvia aquele barulho vindo do porão onde Orlando e Istagio realiza­vam seu misterioso trabalho, e a explicação de Clare era sempre a mesma. Phillipa, naturalmente, não se deixava enganar e ficava imaginando o que poderia causar seme­lhante estrondo.

— Esses barris devem ser muito pesados — observou, curiosa.

— Suponho que sim — Clare respondeu, passando a mão pelo molho de chaves: um hábito nervoso e a única indicação, Phillipa já havia notado, de que a anfitriã não estava serena.

Como Phillipa desejava pôr as mãos naquelas chaves! Já havia tentado entrar no porão, porém a porta de car­valho de acesso à escada que descia até lá era muito pe­sada e mantida trancada. Todas as manhãs Clare a abria para Orlando e Istagio e a trancava novamente.

— Amanhã eu lhe mandarei um pouco do meu creme. — Clare virou-se e se dirigiu para a porta. — Lembre-se de que Aldous está sozinho, esperando por você. Por fa­vor, deite-se com meu irmão e tenham relações sexuais à vontade. Estou cansada de ouvi-lo gemer de desejo.

Assim que a porta se fechou atrás de Clare, Edmee se benzeu.

— Jesus, tende piedade... Nunca pensei que fosse ou­vir uma dama dizendo essas coisas!

— Devia estar acostumada com os modos de lady Clare, uma vez que está com ela desde Poitiers.

— Fui trabalhar para ela pouco antes de sua mudan­ça para a Inglaterra. Sua criada pessoal ficou doente e tive de substituí-la. Achei que seria uma aventura deixar Poitiers, mas o moço de quem eu gostava se casou com outra e... — Edmee abanou a cabeça com tristeza. — Às vezes eu penso que devia ter ficado lá.

Phillipa bateu de leve no braço da criada.

— Estou contente por você ter vindo.

— E bondade sua dizer isso, milady — volveu Edmee, removendo da cama a colcha de peles.

Phillipa mordeu o lábio.

— Edmee, que estrondos são esses que ouvimos oca­sionalmente?

—A senhora duvida que sejam barris de vinho caindo?

— Não parece isso. O que você acha? Edmee encolheu os ombros.

— A senhora é amiga do signore Orlando. Por que não pergunta a ele?

— Já perguntei. Ele também diz que são barris de vinho.

— Talvez sejam mesmo. Phillipa andou de um lado para o outro.

— Você fez amizade com Istagio.

— Ele é que tem procurado fazer amizade comigo, mi-lady. Mas é um patife, gorducho e libertino.

Phillipa havia notado que Istagio flertava com outras mulheres. Porém era em Edmee que ele concentrava seus esforços, o que era de estranhar, uma vez que ela não era bonita. Talvez o assistente de Orlando estivesse fascina­do pelos prodigiosos seios da criada.

— Istagio está sempre procurando impressioná-la — Phillipa observou. — Ontem eu o ouvi conversando com você, contando com orgulho que sua família tem, há muitas gerações, uma fundição onde fazem sinos.

— Ele não devia me contar essas coisas. Não gosto de ouvi-lo se vangloriar, nem do modo como olha pra mim. Não quero saber de suas atenções — Edmee respondeu, aborre­cida. — O que devo fazer pra ele me deixar em paz?

— Não deve fazer nada. Pelo menos por enquanto. Edmee pestanejou, depois seus olhos brilharam.

— A senhora quer que eu pergunte a ele o que está acontecendo na adega?

— Talvez você consiga obter essa informação. Ceda um pouco. Deixe-o pensar que está interessada nele e faça algumas perguntas.

— Ah, se eu fizer isso, milady, ele nunca me deixará em paz!

— Pelo menos saberemos o que está realmente acon­tecendo na adega.

— Não vale a pena — disse Edmee, resoluta. Phillipa não pôde deixar de lhe dar razão. Se Edmee quisesse se livrar de Istagio, tinha de se mostrar indife­rente e não lhe fazer perguntas sobre seu trabalho.

— Você está certa — concordou, esforçando-se para soar casual. Sabia que a pobre moça não teria sossego se demonstrasse algum interesse em Istagio. Era o que ela mesma estava fazendo com Aldous. Deixava-o beijá-la, prometera dormir com ele... E, naquele exato momento, ele estava à sua espera.

Chegou a hora de continuar o jogo, pensou.

— Obrigada, Edmee. Não preciso de mais nada esta noite. Pode ir.

— Milady... — Edmee olhou penalizada para a camisola e depois para Phillipa. — Tem certeza de que deve...

— Edmee, por favor.

— Pense no seu marido! Pense em sir Hugh. Ah, se eu pudesse deixar de pensar nele.

— Vejo você amanhã, Edmee.

— Sim, milady — a criada respondeu, resignada, e saiu do quarto.

Phillipa encostou o ouvido na parede entre seu quarto o de Aldous, mas só ouviu o coaxar de rãs no fosso e o som abafado de risos vindo do salão onde os hóspedes de Clare bebiam e se divertiam até tarde da noite. Às vezes dançavam, cantavam, recitavam poemas.

Por três vezes, Clare organizara o tribunal do amor para resolver as disputas dos casais, sendo ela a juíza. Como Hugh tinha dito, esses tribunais eram ridículos.

O que a deixara chocada fora o "jogo" inventado por Clare e Marguerite. Nesse jogo, os casais eram escolhidos de acordo com os lances de um dado. Formados os pares, todas as suas roupas eram confiscadas, e eles eram tran­cados em um quarto onde ficavam até o amanhecer.

Phillipa afastou os pensamentos. Tinha de saber se Aldous estava mesmo sozinho para ir ao quarto dele.

Aldous Ewing saiu do banho e reclinou-se no leito de plumas de ganso. Usava apenas ceroulas e camisa macia de algodão egípcio. Ouvindo um ruído vindo da porta, a reação de seu corpo foi imediata. Ajeitou-se melhor na cama, já sentindo as ceroulas apertadas.

Finalmente. Durante anos desejara Phillipa com ardor e continuava a desejá-la ainda. Sonhava com ela e, mesmo acordado, ficava imaginando como seria tê-la nos braços...

A porta se abriu com um leve ruído das charneiras de couro e Aldous sentiu o membro totalmente ereto. Sorriu ao ver a figura parada à porta, coberta com um manto de cetim preto com capuz. Ele havia preparado o quarto para a ocasião, iluminando-o com uma dúzia de velas de junco trançadas com menta, e espalhara sobre a colcha púrpura raminhos de alecrim e de lavanda.

Seu sorriso desapareceu quando a mulher atravessou a soleira e se virou para fechar a porta. Abaixou o capuz e os cabelos vermelhos brilharam como fogo à luz das velas.

— Lady Marguerite?! Marguerite du Roche franziu a testa.

— Pensei que não podíamos dizer nada.

— Mas eu...

— Se há regras neste jogo, devem ser seguidas à risca, você não acha? — Marguerite desamarrou o manto e o deixou cair no chão.

Aldous perdeu a fala. Ela estava nua. Usava apenas sandálias de contas negras e douradas e meias pretas de seda, presas com liga, acima dos joelhos. Fora isso, esta­va voluptuosamente, estonteantemente nua. Seu corpo era alvo como o rosto, e os pelos pubianos brilhavam da mesma forma que os cabelos longos e encaracolados, caí­dos sobre os ombros. Os seios firmes eram redondos como maçãs e os mamilos... deviam ter sido pintados para ga­nharem aquela cor vermelha.

A descoberta deixou seu membro mais rijo.

— Devemos recordar as regras? — Marguerite segu­rava um pequeno chicote com um feixe de correias de couro na ponta, como os usados pelos eremitas camaldo-lenses para autoflagelação.

Olhando para o objeto de castigo, Aldous sentiu outro pequeno espasmo de prazer.

— Regras?

— As que foram estabelecidas por você.

Marguerite se aproximou da cama, ergueu uma per­na e a apoiou no colo dele, bem em cima do membro intumescido, sentindo-o pulsar de encontro à panturrilha. Calmamente pegou o pedaço de pergaminho que estava preso sob a liga e o desdobrou.

—Aqui diz: "Não bata na porta. Não diga nada. Junte-se a mim no meu leito e nos entreguemos um ao outro". Ela deu o bilhete para Aldous, que a fitava, perplexo.

— Onde você encontrou...

— Alguém o jogou debaixo da porta do meu quarto esta manhã. Deduzi que tinha sido você.

— Não, esse bilhete era para outra pessoa. Minha irmã devia tê-lo entregá-lo a...

Marguerite riu.

— Em vez de entregá-lo à pessoa certa, sua irmã colocou o bilhete sob a minha porta? Isso é bem próprio de Clare.

Era verdade, Aldous admitiu com um gemido. Clare se divertia organizando brincadeiras e joguinhos eróticos.

— Parece que caímos na armadilha dela — Marguerite observou com voz sensual, esfregando a perna sobre ele e fazendo-o gemer. — A questão é: o que vamos fazer?

Aldous tentou refletir e ignorar a enlouquecedora fricção em seu sexo. Clare não devia ter entregado os dois bilhetes que ele mandara para Phillipa, portanto esta não sabia que ele a esperava naquela noite. Sendo assim, não viria ao seu quarto. E Marguerite estava ali, provocante, sensual...

— E então? — Marguerite perguntou, os olhos verdes presos aos dele. Passou devagar as correias do chicote pelos seios. Abaixando o objeto, passou entre as pernas o cabo revestido de couro.

Aldous jogou fora o pedaço de pergaminho e estendeu a mão para tocá-la.

— Não tenha pressa. — Ela bateu o chicote na mão dele, e o diácono a afastou com um grito quase infantil. — Ainda não esclarecemos as regras.

Confuso, ele a viu desamarrar, um após o outro, os qua­tro grossos cordões de cetim que prendiam as cortinas da cama às colunas torneadas de madeira e ajeitá-las como se eles estivessem dentro de uma tenda branca. Com os cordões, Marguerite amarrou os pulsos e os pés dele, tal como um porco prestes a ser levado ao matadouro.

Sentiu o coração bater forte e uma excitação nunca experimentada quando a mulher passou as correias do chicote pelo corpo.

— Está bom, não está? — ela perguntou, notando sua pele arrepiada. — Você gosta de entregar as rédeas para sua parceira, não gosta? — Segurou o membro inchado e Aldous se contorceu de prazer.

Passos soaram do lado de fora do quarto.

— Pare! — ele ordenou, arfante, quando Marguerite ergueu o chicote.

— Aldous?

O cérebro dele registrou a voz feminina com pavor.

Phillipa!

Com os olhos arregalados, e, parecendo um anjo, ves­tida com uma camisola branca, ela parou sob o batente ainda com a mão na maçaneta. Entreabriu os lábios para dizer alguma coisa, mas não emitiu nenhum som.

— Quer me ajudar? — Marguerite estendeu o chicote para ela, sorrindo.

Phillipa recuou e saiu depressa do quarto, batendo a porta.

— Phillipa! — Aldous esperneou, tentando se soltar dos cordões que o prendiam. — Phillipa! Volte! Eu sinto muito... Isto não significa nada! Você é a única. A única!

 

Quase uma semana depois, na véspera do solstício de verão, Clare organizou uma festa ao ar livre e mandou armar no enorme pátio externo do castelo longas mesas sobre cavaletes. Próxima a Clare e Marguerite du Roche, Phillipa prestava atenção à conversa entre as duas.

— Veja... E um homem mesmo e está vindo para Halthorpe. Deve haver um engano. O que você acha? — Clare indicou alguma coisa a distância com um leve aceno de cabeça.

Marguerite protegeu os olhos com a mão e olhou na direção indicada.

— Talvez ele esteja perdido.

— Tenho certeza de que posso ajudá-lo a encontrar seu caminho — volveu Clare com voz suave e maliciosa.

Phillipa virou-se e seguiu o olhar das duas. Além da ponte sobre o fosso, viu um homem a cavalo aproximan­do-se dos portões do castelo. Era alto, de ombros largos, cabelos desalinhados.

O coração dela deu um salto. Hugh!

Ele tinha vindo, finalmente. Parecia o mesmo homem que ela vira pela primeira vez em Oxford. Tinha a barba crescida e aquele curioso brinco de ouro brilhando ao sol da tarde. Também usava a velha túnica de couro toda manchada, que ele preferia vestir quando tinha de fa­zer viagens longas. Não fosse pelo magnífico cavalo baio, montaria de um nobre, quem o visse poderia pensar que era um assaltante. Havia nele uma aura de masculinidade, especialmente em comparação aos homens hospeda­dos em Halthorpe, todos elegantemente trajados e com maneiras afetadas.

Com exceção, claro, dos doze homens do rei Louis e dos soldados de lorde Bertram. Estes ficavam nas barracas do lado de fora e não se aventuravam a entrar nem no pátio interno. Não era de admirar que Clare estivesse tão fasci­nada, olhando para o cavaleiro que se aproximava.

Mesmo àquela distância, Phillipa pôde ver a expres­são determinada de Hugh. Esboçou um sorriso tímido ao se lembrar da última vez que o tinha visto: adormecido, com os lábios ligeiramente entreabertos, uma mecha de cabelos caída sobre o rosto, parecendo um menino à luz do alvorecer. Tivera de reunir todas as suas forças para se separar dele.

— Eu o vi primeiro — disse Clare à amiga. — Pode usá-lo depois que eu estiver satisfeita.

— Não podemos nos revezar? — Marguerite indagou. — Ele parece viril o bastante para dar conta de nós duas.

— Eu bem que o convidaria para juntar-se ao meu grupo — interveio o trovador Turstin de Ver, sentado como de costume à direita de Clare. — Mas imagino que o rapaz seja do tipo que prefere garotas.

— Essa não... — murmurou Aldous ao se dar conta sobre quem os três estavam falando.

— Conhece aquele homem? — Clare perguntou.

— É o marido de Phillipa — ele resmungou disfarçadamente, para em seguida soltar um sonoro palavrão. Um contraste com as vestes pretas e o solidéu clericais.

Phillipa bufou, inconformada. Desde a noite em que o apanhara com Marguerite, Aldous andava aborrecido e de péssimo humor. A presença de Hugh acabaria de destruir suas esperanças de reconquistá-la, sem dúvida. Não manhã seguinte ao sórdido incidente, Aldous tinha vindo procurá-la e, contrito, pedira-lhe perdão, expli­cando que havia caído numa armadilha preparada por Clare. Mencionara que a irmã havia trocado os bilhetes, que, como homem, tinha dificuldade em controlar suas necessidades instintivas, que a adorava e lamentava pro­fundamente tê-la chocado.

Ela respirou fundo. Realmente, ficara boquiaberta com a cena e saíra do quarto indignada, sem entender aquele tipo de relação. Por outro lado, tinha sido tão grande seu alívio por se ver livre de dormir com ele que fora preciso se esforçar para manter seu ultraje. Depois de ouvir Aldous implorar por seu perdão, alegara que se sentia ferida e hu­milhada por sua infidelidade. Informara-o que ele teria de provar com ações, não com meras palavras, que a amava e que estava arrependido. Só então ela o perdoaria.

A partir daí, Aldous a cercara de amorosa atenção, mesmo na frente dos outros hóspedes. Seus cuidados com a discrição, evidentemente, pesavam menos do que o de­sejo de reconquistá-la e, quando ela recusava seus beijos, ele se mostrava resignado.

Não tendo rompido o relacionamento definitivamente, Phillipa pôde continuar hospedada em Halthorpe, fazen­do suas investigações, embora sem êxito até o momento. Se soubesse que ela não tinha a menor intenção de ir para a cama dele, Aldous a mandaria embora imediata­mente, sem dúvida.

E se ela ainda tinha algum escrúpulo por estar en­ganando Aldous, aquilo que descobrira na noite anterior a libertara de qualquer peso na consciência, concluiu Phillipa, pungida. Sem conseguir dormir por causa do calor, ela havia se levantado e ido até a janela, esperando refrescar-se com a brisa da noite. Para sua surpresa, ou­vira sons vindos do quarto do diácono. Tinha reconhecido a voz de Aldous e a de Marguerite, e bastara ouvir umas poucas palavras para saber que os dois repetiam a cena que ela havia presenciado algumas noites antes.

Voltando para a cama, decidira não revelar a Aldous que sabia da ligação dele com Marguerite. Qualquer mu­lher com um pouco de amor-próprio se afastaria de um homem que a tratasse com tanto desrespeito.

Porém, afastar-se de Aldous seria inconveniente para seus planos.

Era verdade que não tinha conseguido nenhuma in­formação relevante, mas, graças à sua esperteza e à credulidade do diácono, continuava no castelo sem ter dor­mido com ele uma única noite. Aldous nunca suspeitara que tinha sido ela quem colocara o falso bilhete debaixo da porta de Marguerite naquela manhã. Clare, natural­mente, negara que havia passado o bilhete para a amiga. Aldous não acreditara na irmã, claro, e a relação entre ambos se tornara ainda mais cáustica.

Pousando os olhos cobiçosos em Hugh, que acabava de desmontar, Marguerite perguntou a Clare:

— Esse deus está casado com aquela bastardazinha?

— Pois é. Admirável, não? E pensar que eu já estava começando a ficar entediada!

Edmee, que ajudava as outras criadas a servir uma enorme torta de carne de pombos moída, o sétimo prato dos vinte que os cozinheiros vindos de Poitiers tinham preparado, olhou de Hugh para Phillipa, pensando tristonha no triângulo amoroso: Aldous Ewing, lady Phillipa e sir Hugh.

Aldous inclinou-se para Clare:

— Mande-o embora.

Orlando Storzi levava aos lábios à taça de prata com vinho, mas a colocou sobre a mesa e perguntou em tom severo:

— Por que mandá-lo embora? Sir Hugh marido de lady Phillipa.

Como passava quase todo o tempo trancado na adega, o homem não estava a par das intrigas românticas de Halthorpe, nem fazia idéia do empenho de Aldous em seduzir Phillipa.

O diácono o ignorou e insistiu:

— Eu quero esse homem fora daqui! Faça o que tiver de fazer, Clare, mas livre-se dele.

Clare encarou o irmão, furiosa.

— Só pode estar maluco para imaginar que vou expul­sar da minha casa um homem como esse, só porque ele é casado com a mulher com quem você quer se deitar!

Orlando franziu a testa, confuso.

— Desculpe, não entender bem a sua língua. Istagio curvou-se e sussurrou ao ouvido do velho.

Orlando arregalou os olhos, depois dirigiu a Aldous um olhar de censura.

— Mas você... homem do clero, não? E ela, uma senho­ra casada. Que vergonha!

Phillipa suspirou. Ao menos uma pessoa em Halthorpe que parecia ter bom senso!

— Não é o que você está pensando, Orlando — comen­tou, aborrecida com o olhar de censura do italiano.

Aldous apertou a mão dela e contestou:

— Você não quer aqui, quer?

— Eu...

Todos à mesa a olharam, mas foi Clare quem encerrou o assunto dizendo com impaciência:

— A opinião de Phillipa não importa. Eu sou a dona de Halthorpe e quero que ele fique.

— Sshh. — Marguerite pôs um dedo sobre os lábios pintados. — Ele vem vindo.

Phillipa virou-se no banco e viu Hugh atravessando o gramado. Tentou puxar a mão que Aldous segurava, porém ele a apertou ainda mais.

Hugh parou diante dela. Seus olhos perderam o bri­lho, e seus maxilares tornaram-se rígidos quando ele no­tou os dois de mãos dadas. Sem dizer nada, virou-se na direção de Clare e fez uma reverência.

— Lady Clare, presumo. Phillipa fez as apresentações.

— Clare, este é meu marido Hugh de Oxford. Hugh, quero que conheça Clare de Halthorpe.

Clare examinou Hugh da cabeça aos pés.

— Agora que o estou vendo de perto, tenho a impres­são de que já o vi antes.

— Em Poitiers — ele lembrou. — Estive lá um ano e meio atrás.

— É mesmo? — Clare sorriu. — Nesse caso irá sentir-se muito bem aqui em Halthorpe.

— O cavalheiro à direita de Clare é Turstin de Ver, poeta e trovador — Phillipa continuou, tensa. — A se­nhora ao lado dele é Marguerite du Roche. Os signores Orlando e Istagio você já conhece, e ali está o padre Nicolas Capellanus.

— Hugh? — Raoul d'Argentan levantou-se e veio ao encontro do amigo, os braços abertos. — E mesmo você! Homem de Deus! Há quanto tempo!

— Raoul? E assim que se veste fora do campo de bata­lha? Está bonito de dar gosto!

Raoul e Hugh se abraçaram e trocaram vários tapas nas costas.

— E um prazer revê-lo. — Raoul d'Argentan era ro­busto, cordial, muito diferente da maioria dos homens em Halthorpe.

— Eu digo o mesmo. Mas que fim levou aquele homem barbado? Você parecia um urso e costumava feder como um javali.

As orelhas de Raoul ficaram vermelhas.

— O casamento o domesticou. O amor verdadeiro cos­tuma domar o homem mais selvagem — disse Turstin de Ver, rindo e provocando o riso dos outros hóspedes.

— Você se casou? — Hugh ficou sério.

— Ah. — Raoul apresentou o amigo à linda esposa de cabelos castanhos.

— Isabelle, já lhe falei sobre Hugh, o amigo que co­nheci em Milão quando lutávamos contra Frederick Barbarossa, antes de Strongbow nos contratar para a campanha irlandesa.

— Oh, o que perdeu o polegar na Irlanda — volveu a moça de pronto.

Fez-se silêncio e todos os olhares convergiram para a mão de Hugh.

— Como você perdeu esse dedo?—indagou Marguerite, a voz rouca e sensual.

— A Irlanda é muito grande e selvagem. Perde-se facil­mente as coisas por lá — Hugh respondeu em tom casual.

Entre as risadinhas provocadas pela resposta, Clare perguntou ao irmão:

— Aldous, por que você não cede o lugar para Hugh? Ele deve sentar-se junto da esposa.

E ao lado dela, Phillipa pensou, sentindo o aguilhão do ciúme.

E quanto a Hugh?, ela continuou com suas reflexões. Será que também sentia ciúme dela com Aldous? Estaria supondo que haviam se tornado amantes?

— Talvez Hugh prefira sentar-se perto do amigo — volveu Aldous, dirigindo à irmã um olhar que destilava veneno.

— Excelente idéia — Hugh aprovou, indo sentar-se no banco ao lado de Raoul. — Assim teremos a chance de recordar as velhas batalhas.

— Por falar em batalhas, por que não nos conta como perdeu o polegar? — Turstin insistiu. — Ou é uma his­tória impressionante demais para os delicados ouvidos das senhoras?

— É uma história sem graça. — Hugh aceitou o vinho que Edmee lhe oferecia.

— Sem graça? — Raoul riu. — Eu estava lá.

— Você estava lá? — Marguerite perguntou, os olhos brilhando.

— Conte-nos! — Clare pediu quase numa ordem.

— Hugh prefere não recordar essa passagem. — Phillipa puxou a mão que Aldous segurava e ele a soltou.

Hugh dirigiu-lhe um olhar agradecido e levou a taça de vinho aos lábios.

— Conte você, Raoul — Isabelle sugeriu, maliciosa.

Phillipa ia fazer nova objeção, mas Hugh meneou le­vemente a cabeça, e ela entendeu que não deveriam antagonizar Clare.

— Está bem. — Raoul deu um suspiro. — Vejamos... Foi há três anos. Era a sua primeira campanha como mercenário, não é mesmo, Hugh?

Ele aquiesceu e pediu a Edmee que enchesse a taça outra vez.

— Hugh estava na Irlanda com um grupo de sol­dados escoceses, lutando para um chefe de clã chama­do Donaghy Nels. Obviamente, Hugh ganhou a luta e Donaghy recuperou suas terras. Sabendo que um mer­cenário era livre, não devia lealdade a ninguém e lutava para quem lhe pagasse mais, Donaghy pagou Hugh re­giamente e o obrigou a jurar sobre a relíquia que havia no punho da sua espada, feno da manjedoura de Jesus, que nunca usaria armas contra ele pelo resto da vida. Depois disso, seguiram-se outras campanhas até que, cinco ou seis anos atrás, conheci Hugh lutando no nor­te da Itália. Quando terminamos a campanha, ficamos sabendo que Richard Strongbow estava recrutando mer­cenários para lutar na Irlanda em nome de Dermot Mac Murrough, rei de Leinster, que tinha sido exilado pelo alto-rei, Rory O'Connor, de Connacht. Strongbow ofere­ceu-nos uma quantia em ouro superior a todas as outras, então fomos para Dublin, onde, num combate, Hugh viu, com pesar, que Donaghy Nels chefiava um grupo de sol­dados de O'Connor. Imaginem a seriedade da situação. Ele havia jurado nunca erguer armas contra Donaghy!

— E o que ele fez? — Turstin de Ver perguntou.

— Fiz o que faria qualquer homem interessado numa bolsa de ouro — Hugh respondeu, amargo.

— Fez o que faria qualquer soldado valoroso e me­recedor do seu salário, Hugh: manteve-se firme e lutou — Raoul contrapôs com veemência. — Não foi nenhuma desonra lutar contra Donaghy Nels.

— Claro que foi — Hugh resmungou, tomando novo , gole do vinho. — Mas termine sua história, Raoul.

— Na batalha, em Dublin, Hugh, outros soldados e eu fomos levados como reféns. Quando Donaghy soube que Hugh era um dos inimigos capturados, foi com alguns homens até a torre para onde tínhamos sido levados. — Raoul olhou para Hugh, que parecia mais interessado no vinho.

— Continue — pediu Turstin, ansioso. — O que acon­teceu?

— Furioso, Donaghy quis castigar Hugh de um modo que o impossibilitasse de lutar com uma espada. Hugh disse que merecia ser castigado por não cumprir seu ju­ramento e que Donaghy estava no seu direito. Donaghy mandou trazer um cepo e um machado, Hugh colocou a mão no cepo e aguardou o golpe. Não emitiu um som... nem mesmo quando eles cauterizaram o ferimento com a lâmina em brasa de sua espada.

Ouviram-se alguns murmúrios e exclamações de hor­ror. Phillipa, que só tinha olhos para Hugh, teve de con­ter as lágrimas.

Raoul balançou a cabeça, pesaroso.

— Foi a pior coisa que presenciei em todos os meus anos de luta. Hugh costumava dizer que uma pessoa pode livrar-se de qualquer tipo de dor e se colocar acima dessa dor. Passei a acreditar que isso era possível quando vi a coragem e a serenidade com que perdeu aquele dedo.

— Que história comovente — Clare murmurou e olhou para Hugh de um modo tão intenso que Phillipa teve vontade de despejar uma jarra de vinho sobre a ca­beça dela.

— Nosso grupo tomou Dublin e fomos libertados. Depois disso, Hugh e eu nos separamos — prosseguiu Raoul, voltando-se para o amigo. — O que tem feito des­de então, Hugh?

Ele sorriu.

— Tenho mantido sob severa guarda as outras partes do meu corpo.

Risadas ecoaram de todos os cantos da mesa.

— Talvez algumas de nós possam ajudá-lo a fazer isso — observou Marguerite com malícia, provocando mais risadinhas abafadas e um calor em Phillipa.

— Vou pensar no assunto — Hugh volveu, cínico.

As criadas começaram a servir mexilhões, legumes cozidos e pão.

— E o que o traz a Halthorpe nesta linda tarde, sir Hugh? — quis saber Turstin.

— Eu estava na casa de minha irmã, mas depois de duas semanas sem minha esposa senti sua falta.

Marguerite sorriu e virou-se para Hugh com um bri­lho diabólico no olhar.

— Veio para cá porque estava preocupado com sua esposinha erudita? Receava que ela sucumbisse às tenta­ções da carne estando cercada de réprobos como nós?

— Não sou ciumento.

Phillipa sentiu o sangue abandonar o rosto.

— Se não é ciumento, então não deve se importar de saber que aqui em Halthorpe tendemos a compartilhar...

— Marguerite olhou na direção dela e de Aldous. — Na semana passada, por exemplo, enquanto o bom diácono e eu nos divertíamos no quarto dele, imagine quem entrou sem bater? Sua esposinha, vestida como uma cortesã de Veneza. Eu sabia, claro, qual era a intenção dela. Mas não podia simplesmente ir embora, deixando o pobre Aldous daquele jeito, com os pés e as mãos amarrados.

Gargalhadas estouraram. Aldous engasgou com o vinho, Phillipa olhou para Hugh, vermelha e perplexa. Padre Nicolas murmurou algo e fez o sinal-da-cruz, bem como o aturdido Orlando. Edmee, que continuava servin­do os hóspedes, olhou para Phillipa, horrorizada.

— Sua expressão sombria não engana ninguém, sir Hugh. Claro que é ciumento.

— Estou apenas cansado da viagem — ele rebateu, seco.

— Um preceito do amor cortês diz que não existe amor verdadeiro sem ciúme — insistiu o trovador. — O que acha dessa teoria?

Clare e Marguerite esperaram pela resposta com sorrisos mordazes, mas Hugh respondeu sem hesitar:

— Para ser honesto, não sou grande entusiasta do amor cortês. Para mim, essa idéia de amor como uma dimensão espiritual soa, quando muito, como uma ilusão. Para começar, o amor romântico não é platônico, pois não exclui o sexo. No fundo, ele nada mais é do que o desejo carnal que até o mais inferior dos animais sente.

A resposta não surpreendeu Phillipa. Hugh dissera a verdade e admitira que sentia por ela apenas desejo físico.

— Sir Hugh, o amor cortês não é uma simples fanta­sia criada pelas damas da corte de Poitiers — observou Turstin. — Ele foi inspirado nos escritos românticos de um homem chamado Ovídio, grande poeta romano do primeiro século antes do nascimento de Cr...

— Turstin, eu sei quem foi Públio Ovídio Naso — Hugh respondeu calmamente. — Está se referindo à obra Ars Amatoria ou a Remedia Amoris?

Tanto Phillipa quanto Turstin ficaram boquiabertos.

— Ars Amatoria — o trovador respondeu, olhando para Hugh com mais consideração.

— Ah, o tratado de Ovídio sobre a arte de amar. Você o leu?

— Claro — Turstin respondeu, irritado. Depois acres­centou, mais humilde: — Em parte.

— Uma leitura mais atenta e abrangente, revelaria que o tratado é uma brincadeira bem elaborada para ri­dicularizar os romances ilícitos, estabelecendo regras de sedução com seriedade. Mas essa seriedade é falsa, como falsas são as regras. Ovídio morreria de rir se soubesse que sua obra foi adaptada, servindo de base para uma nova filosofia de romance.

No silêncio que se fez após essa dissertação improvi­sada, Phillipa sentiu o rosto queimar. Bom Deus, duran­te todo esse tempo ela havia imaginado que Hugh mal sabia ler!

— Desculpe-me por ter ficado surpreso com sua eru­dição — disse Turstin. — Sempre achei que os cavaleiros eram treinados para a arte da guerra e pouca coisa mais.

— Isso é verdade para a maioria deles. Meu pai, no r entanto, acreditava que a mente de um perfeito cavaleiro deveria ser tão afiada quanto sua espada. Dos quatro anos de idade aos dezoito, quando fui nomeado cavaleiro, tive aulas à noite com os melhores clérigos de Paris e Oxford.

— A noite? — Raoul indagou.

— Sim. Até que o sino da capela tocasse as matinas. Raoul balançou a cabeça, pasmado.

— Seu pai começava os treinos ao amanhecer, então você mal tinha tempo de dormir!

Refeito da vergonha e do desconforto causados pelo re­lato grosseiro e obsceno de Marguerite, Aldous observou:

— Pelo que eu sei, William de Wexford, seu pai...

— William de Wexford? — Clare interrompeu o irmão e empertigou-se. — Você é filho de William de Wexford?

— Sou. A mulher sorriu, afável.

— Lorde William é um homem notável. Não poderia ter tido melhor modelo... Não é de admirar que você seja tão maravilhoso.

Uma nova pontada de ciúme rasgou o peito de Phillipa, porém ela nada disse.

—Também conheço a obra de Ovídio, Hugh, e discordo da sua interpretação de Ars Amatoria, mas isso não vem ao caso. — Marguerite se aventurou. — O que eu quero dizer é que, de acordo com a visão romântica de Ovídio, bem como a da maioria dos homens, é o homem quem pla­neja e seduz. A mulher apenas se entrega e se sujeita a ele. No universo do amor cortês, a mulher é mais do que um mero recipiente da luxúria de um homem. Também não é, como prega a Igreja, a "serva do diabo". — Ela olhou na direção do severo padre Nicolas, conhecido pelo despre­zo que tinha pelo sexo feminino. — Em Poitiers os homens abandonaram as caçadas e os bordéis e aprenderam a apreciar uma forma de sociedade mais refinada, elegante e feminina, na qual as mulheres são reverenciadas.

— E obedecidas, presumo — Hugh aparteou. Marguerite deu um sorriso enigmático.

— A obediência é uma conseqüência natural da reve­rência.

— Não pode haver um meio-termo entre as duas partes, pelo menos nos assuntos do coração? — Hugh sugeriu.

Turstin deu uma risadinha.

— Assuntos do coração, Hugh?

— Da carne, então — ele emendou depressa. — Certamente o homem e a mulher devem estar em igual­dade na cama.

— Alguém deve segurar o chicote — Marguerite apon­tou. — Por que não a mulher?

Nervoso, Aldous bateu na taça, derramando vinho na mesa.

— Desculpem — murmurou, enxugando a bebida com o guardanapo. Virou-se para Edmee: — O que está espe­rando? Limpe esta sujeira!

Mas a atenção de todos estava voltada para a conversa entre Hugh, Marguerite e Turstin de Ver.

— Não podemos negar que a obra de Ovídio tem gran­de valor — Turstin dizia. — O abade Bernard e Pedro Abelardo citavam Ars Amatoria nos seus ensinamentos.

— Abelardo foi brilhante, mas era homem — contra­pôs Hugh. — Ele admitiu, em sua Historia Calamitatum, que no início pretendia apenas seduzir Heloise, e que empregou artifícios e subterfúgios como os descritos por Ovídio. Isso me leva a crer que sua leitura de Ars Amatoria não teve a imparcialidade acadêmica exigida para uma verdadeira análise crítica. Quanto ao abade Bernard, de grande erudição...

Phillipa não prestou mais atenção à conversa. Fechou os olhos, lembrando-se do encontro com Hugh no pomar, em Eastingham, quando, tão cheia de si, discorrera sobre o ro­mance entre Heloise e Abelardo, tentando justificar seu inte­resse pelo amor cortês, certa de que Hugh era um ignorante. Ah, como ele devia tê-la considerado pueril e pretensiosa!

Aos poucos ela ia descobrindo que Hugh de Wexford era um homem de excelentes qualidades, o que explicava o fato de estar tão apaixonada por ele. Entretanto, seu amor não era correspondido. Hugh a entregara a outro homem como quem passa adiante um belo cavalo ou um cão de caça.

O fato de saber que isso fazia parte do trabalho de am­bos, não diminuía seu sentimento de rejeição. Se a amasse, Hugh podia tê-la impedido de vir com Aldous a Halthorpe, podia descobrir outra maneira de continuarem a missão sem atirá-la nos braços e na cama do diácono.

— Você está bem?

Ela abriu os olhos e viu Aldous fitando-a com expressão zelosa.

— Sim, estou.

Inclinando um pouco a cabeça, ele disse em voz baixa:

— Ele não podia aparecer aqui sem ser convidado, justamente agora, quando eu estava com esperanças de você me perdoar.

— Eu pretendia ir ao seu quarto esta noite — inven­tou Phillipa, esforçando-se para soar convincente.

— Pretendia? Jesus, estou ficando louco sem você! Então vá, minha amada.

— Não posso fazer isso dormindo na mesma cama com meu marido.

— Mas ele deixou bem claro que não se importa.

— Mesmo assim, não posso. Sinto muito.

— O que acha de pedir a ele que vá embora?

— Vou tentar — ela mentiu.

— Faça o possível, meu amor. Lembre-se de que você é a única para mim.

Aldous tornou a pegar a mão de Phillipa. Desta vez, ela não fez nenhuma objeção.

Ao final do banquete, lady Clare mandou erguer no pátio uma enorme fogueira, ao redor da qual todos os hóspedes se sentaram. Eles cantaram, bateram palmas e dançaram ao som de flautas de bambu e sininhos. Só Hugh permaneceu no seu lugar à mesa, bebendo uma taça de vinho após a outra, sem ter comido quase nada.

A certa altura, o ritmo da música tornou-se mais len­to, e Marguerite, usando uma túnica de seda sensual na cor ferrugem, começou a dançar como se em transe. Executava movimentos sinuosos, provocantes e extremamente eróticos. Retorcia o corpo, acariciava os seios, ba­lançava a cabeça agitando os cabelos vermelhos tal qual uma flâmula de fogo, pousando os olhos semicerrados nos homens, um a um. Lembrava uma succubus, demônio-fêmea saído do inferno, prestes a lhes roubar a alma.

Hugh assistiu à demonstração de Marguerite sem grande interesse. Cerrou o maxilar ao ver lady Clare, na penumbra, vindo na sua direção. Reconheceu que não devia ter bebido tanto, mas, estando sóbrio, representar seu papel de homem depravado e marido tolerante seria difícil demais.

— Marguerite também age dessa forma no quarto — Clare observou, sentando-se no banco ao lado dele e se recostando em seu corpo propositadamente.

Hugh não se preocupou em perguntar como ela sa­bia daquilo. Clare era dessas mulheres que chamavam a atenção pela beleza a certa distância, porém, chegando-se perto, notava-se sua artificialidade. A pele era sem viço e as pequenas rugas bem visíveis.

Tão diferente de Phillipa, cuja beleza era natural. A pele de Phillipa era translúcida como um pergaminho bem untado, pensou. Ele gostava de fazê-la enrubescer para observar a cor tingindo-lhe as faces.

Ela continuava de mãos dadas com Aldous, observou, incomodado. Estava linda usando aquela túnica marfim. Tinha os ombros nus, os cabelos presos formando um co­que entrelaçado com fios de pérolas. Era uma visão ange­lical em contraste com a demoníaca Marguerite.

— Meu pai, eu e lorde William costumávamos caçar com falcões — Clare o arrancou de seus devaneios.

— Aldous me contou — Hugh respondeu com voz pastosa. Droga, eu não devia ter bebido tanto.

— Eu sabia que lorde William tinha um filho dois ou três anos mais novo que eu, mas você não costumava acompanhar seu pai nas caçadas.

— Meu pai não permitia que eu deixasse o treinamen­to para exercer outras atividades.

O sorriso de lady Clare tornou-se mais amplo.

— Você e eu quase ficamos noivos, sabia?

Santo Deus. O simples pensamento de estar casado com uma mulher como aquela era grotesco demais para ser considerado.

— Foi meu pai quem tentou arranjar o casamento, mas lorde William foi contra — continuou Clare.

— Por que você era mais velha do que eu? — Hugh levou a taça de vinho aos lábios.

— Não. Provavelmente porque ele estava dormindo comigo.

Hugh quase engasgou com o vinho.

— Eu tinha treze anos quando ele tirou a minha virgindade — Clare revelou sem cerimônia. — Lorde William devia ter pouco mais do que a idade que você tem agora. Era o homem mais bonito e mais imponente que eu já tinha visto. E perspicaz... Notou que eu olha­va para ele com admiração. Certa manhã, arranjou uma desculpa e me levou para longe dos outros. Entramos no bosque, ele forrou o chão com a capa, dizendo que estava cansado e precisava se deitar um pouco. Perguntou se eu não queria me deitar também. Estava quente e ele tirou a túnica alegando que ficaria mais confortável...

Hugh engoliu em seco, sentindo uma ponta de simpa­tia por Clare. Imaginou como o pai devia ter explorado a paixão infantil da menina. E pensar que era o mesmo que costumava fazer ao filho incessantes preleções sobre cavalheirismo e honra.

— Nunca conheci um homem como lorde William — Clare comentou, nostálgica. — E você é quase como seu pai... — Tomou a taça da mão dele e a levou aos lábios. — Creio que me lembro de você em Poitiers. Se me lem­bro bem, tivemos um encontro erótico a três: eu, você e Roger de La Foret.

— Está enganada — volveu Hugh, desgostoso. — Não era eu, Clare. Se fosse, eu não poderia me esquecer des­se... interlúdio romântico.

— Tem razão. Acho que o estou confundindo com Guillaume, primo de Roger. Ele tem os cabelos muito parecidos com os seus.

— Fiquei o tempo todo sozinho quando estive em Poitiers.

— Ah, agora me lembro. Você me chamou a atenção por ser muito bonito e haver uma aura de mistério ao seu redor. Estava sempre atento, mas quase não participa­va das atividades. Também não demonstrava interesse pelas damas... Porém não agia assim com as moças da cozinha. — Clare sorriu. — Ouvi duas delas elogiando os seus dotes físicos.

Sem que Hugh esperasse, ela introduziu a mão sob a túnica de couro e o apalpou por cima das ceroulas.

— Hum, elas tinham razão — Clare declarou e con­tinuou a apertá-lo com determinação. — Se você puder escapar de sua esposinha afetada, por que não vai até meu quarto? Marguerite também estará lá.

— Talvez em outra ocasião. — Hugh retirou a mão dela. — Vocês duas são tentadoras, porém bebi mais vi­nho do que devia e receio não estar à altura do desafio. Não faltará oportunidade — acrescentou, refletindo que seria melhor não rejeitar a anfitriã logo de início. Se ela se ofendesse poderia mandá-lo embora de Halthorpe com Phillipa, e isso eles teriam de evitar a todo custo.

E claro que o excesso de vinho não impediria sua per­formance, pensou, desde que a parceira fosse inspiradora. Mas ele entendia de mulheres o suficiente para fugir de tipos como Clare e Marguerite, e do tipo de esporte que ambas praticavam na cama.

Além do mais, estava louco por Phillipa.

— Espero que não esteja me recusando por causa da sua esposinha — disse Clare, cáustica. — Basta olhar para ela e meu irmão para saber como tem sido o com­portamento deles...

— Nem ela nem eu estamos presos a essas noções arcaicas de ciúme e fidelidade — Hugh respondeu, sen­tindo o estômago revirar ao ver Aldous falando alguma coisa ao ouvido de Phillipa com malícia. Imediatamente, sua mão se contraiu em torno da ajambiya.

— Então, quem sabe eu consiga convencer você a ir caçar comigo? Tenho um falcão-gerifalte enorme e feroz, mas aposto que conseguirá dominá-lo. — Ela deu um sor­riso sensual. — Leve uma capa. Se ficarmos cansados, poderemos nos deitar.

— E uma idéia... tentadora. — Intolerável, isso sim, ele contrapôs em pensamento. — Infelizmente, o defeito na minha mão direita me impede de caçar com falcões.

— Que pena. — Clare fez beicinho. — Esportes ao ar livre são tão estimulantes... Mas não se preocupe. Mais cedo ou mais tarde porei minhas garras em você. — Ela ficou de pé e se afastou, arrastando a longa cauda do ves­tido de seda verde-esmeralda como se fosse um lagarto.

Hugh tomou o restante do vinho e olhou para Aldous e Phillipa, tentando não pensar nos dois juntos na cama.

Invadiu-o uma raiva súbita. Raiva de si mesmo por ter permitido que ela viesse ao castelo sem ele. Raiva dela por não ter feito coisa alguma que a impedisse de se deitar com o diácono. Afinal, Phillipa não se julgava tão inteligente e esperta?

Esfregou a mão no rosto tentando sobrepujar o ódio provocado pelo excesso de vinho e refletir de maneira ra­cional. Disse a si mesmo que não tinha direito nenhum sobre Phillipa. Não a amava e ela sentia por ele apenas atração física. Naquela noite, no estábulo, ela afirmara ser ele o último homem do mundo por quem se apaixona­ria. Se estavam fazendo o papel de marido e mulher era apenas por uma causa nobre... Ele não queria unir-se a ninguém por toda a eternidade. Desde que se libertara do domínio do pai, dezessete anos antes, havia prometido a si mesmo que viveria sozinho, livre de exigências, de um patrão, ou de uma esposa ou família. Iria para onde quisesse, lutaria por quem lhe pagasse mais, faria amor quando e com quem lhe agradasse, beberia seu vinho e jogaria dados quando tivesse vontade. Até o dia de sua morte, não haveria ninguém lhe colocando um cabresto, atormentando seu espírito ou subjugando sua alma.

O amor verdadeiro costuma domar o homem mais selvagem, dissera Turstin a Raoul. Antes dono de si e excelente soldado, seu amigo não passava agora de um cãozinho de estimação da esposa.

Por isso, queria continuar livre do amor, pensou Hugh. Dessa forma, não corria o risco de sofrer o mesmo destino.

Entretanto, ao ver Phillipa caminhando na sua dire­ção, tão linda à frente da fogueira flamejante, sua decisão deitou por terra.

— Olá, Hugh.

— Phillipa.

— Está tarde. Vou me deitar.

— Com ele? — Hugh meneou a cabeça na direção de Aldous.

— Não. Vou para o nosso quarto. Fica no fim da ala leste, no andar térreo... Eu o espero lá.

Ele sentiu o coração bater mais depressa.

— Vou pegar as minhas coisas, então. Não me demoro.

— Está bem.

Após pegar a mochila e as bolsas de couro que tinha deixado no estábulo, Hugh fez o caminho de volta, cambaleante. Droga, eu não devia ter bebido tanto, censurou-se mais uma vez.

Normalmente bebia de maneira controlada, porém, na­quelas duas semanas em que se ausentara da Inglaterra para seu encontro com o rei Henrique, seu consumo de álcool aumentara consideravelmente. O rei, de fato, lhe oferecera o cargo de xerife de Londres, mas ele recusara. Desapontado, Henrique lhe dera algum tempo para re­fletir sobre o assunto.

Mas ele não conseguira se concentrar. Vivia pensando em Phillipa como amante de Aldous. Sua infelicidade se tornara tão sufocante que ele havia buscado conforto na bebida e, como resultado, tornara-se ainda mais confuso.

Com esforço, Hugh conseguiu passar pelo labirinto de corredores do enorme castelo até chegar à velha ala, quase em ruínas. Seguiu pelo corredor úmido e abafado e parou ao fim do mesmo. Ia bater na porta, como costu­mava fazer em Southwark, mas movido pela frustração, entrou no quarto.

Phillipa estava sentada na cama, ainda usando a tú­nica marfim, e virou-se, sobressaltada.

— Hugh! Ele jogou a bagagem no piso de pedra do cômodo surpreenden-temente modesto, pequeno e quase sem mobília.

— Por que veio parar nesta parte do castelo? Phillipa hesitou. Começou a tirar as pérolas dos cabelos e respondeu sem olhar para ele:

— O quarto vizinho é o de Aldous. Claro, ele pensou, comprimindo os lábios.

— Não precisa ficar aqui por minha causa, então.

— Você está bêbado?

— Não tanto quanto gostaria de estar. Ela respirou fundo.

— Dadas as circunstâncias, não acha que deveria se manter sóbrio?

— Dadas as circunstâncias, creio que eu deveria be­ber até a inconsciência — ele rosnou, aproximando-se. — Só porque a situação é fácil para você, não quer dizer que seja para mim.

— Está enganado, Hugh. — Phillipa terminou de tirar as pérolas, e os cabelos caíram-lhe às costas como um sinuoso rio negro.

— Estou enganado? Pois tudo indica que você se ajustou muito bem ao papel de amante de Aldous Ewing.

Os olhos dela escureceram de raiva.

— Não era isso que você queria? Não foi para isso que me mandou para cá?

Hugh emudeceu. Não podia se descontrolar daquele jeito. Virou de costas para ela.

Phillipa suspirou e disse brandamente:

— Não sinto nada por Aldous, Hugh. Ele deu um sorriso amargo e virou-se.

— Até parece que precisa sentir alguma coisa por um homem para abrir as pernas para ele.

Ela sentiu o sangue abandonar o rosto.

— Talvez eu tenha passado a considerar o sexo da mesma forma que você — rebateu, fria.

— Se já está pensando como uma prostituta, então não se importará em me servir... — Hugh desafivelou o cinto e jogou-o de lado.

— Importo-me, sim. E muito! — Phillipa respondeu, indignada.

— Seja boazinha. — Ele tirou a túnica. — Passei duas semanas sem me aliviar. Serei rápido.

Phillipa recolheu as pérolas e os grampos que esta­vam sobre a colcha e levantou-se da cama.

— Vou dormir em outro lugar. Hugh a agarrou pelos ombros.

— Prefiro morrer a deixá-la dormir com ele! — con­fessou, transtornado, antes de obrigá-la a deitar-se, pu­xar o decote do vestido e começar a acariciar-lhe os seios. — Não quero saber com quem você irá dormir amanhã ou depois. Esta noite você é minha! Vai ficar nesta cama nem que eu tenha de amarrá-la... — Arregaçou as saias dela e tocou-lhe o sexo.

— Hugh, pare com isso, por favor!

Ele ignorou a súplica e continuou a excitá-la.

—Aldous também a toca assim? Sentiu prazer com ele?

— Não! Ele... Nós...

— Pode imaginar que tortura tem sido para mim pen­sar em vocês dois na cama, noite após noite?

— Hugh!

— Deus, não posso mais esperar!

Livrando-se das ceroulas, Hugh a penetrou. Possuiu-a com desespero, fazendo as cordas sob o colchão se curvarem a cada arremetida. Ele nunca se comportara daquela forma nem experimentara aquela tempestade de sensações.

Tampouco alcançara o prazer com tanta rapidez.

Passado o turbilhão, olhou para Phillipa e viu que ela estava de olhos fechados, segurando com firmeza as bei­radas da colcha de peles.

— Phillipa? Ela não respondeu. Jesus. Ele não devia ter feito aquilo! Não daquele jeito. Nem mesmo uma prostituta ele havia tratado daquela maneira.

— Céus, eu a machuquei?

— Você disse que a segunda vez não iria doer muito. Segunda vez? Sentindo-se repentinamente sóbrio, Hugh a encarou.

— Você e Aldous nunca...

— Não pude. Não depois que você e eu... — Phillipa desatou a chorar.

— Meu Deus, eu sinto muito. — Hugh a abraçou, mortificado. — Eu a machuquei.

Ela sacudiu a cabeça. Só estava abalada por Hugh tê-la tratado como uma ordinária.

— Estou bem.

— O que você fez para evitar Aldous?

— Menti, dei desculpas. A simples idéia de ser tocada por ele me causava repulsa. — Phillipa enxugou as lá­grimas e fitou os olhos escuros à sua frente com altivez.

— Eu lhe disse, certa vez, que não me apaixonaria nun­ca... Pois estava enganada. Amo você, Hugh.

Oh, meu Deus. Ele fechou os olhos e a apertou, lutando contra o forte anseio de revelar tudo o que mantinha no coração. Queria se desnudar, contar tudo o que sempre desejara ser: um homem só e independente, um homem livre. Havia passado dezessete anos desfazendo em si o estrago causado pelo pai, que tentara moldá-lo à própria imagem. Agora queria ser dono da própria vida, um ho­mem que escrevia suas próprias regras. Tudo isso se per­deria se ele se ligasse a quem quer que fosse. Pior ainda: se ele amasse alguém como ela.

— Eu não pretendia lhe contar o que sinto por você — confessou Phillipa. — Quis negar esse sentimento, ig­norá-lo, mas vi que é impossível. Eu sei que meu amor não é correspondido, pois você deixou sempre muito claro que é imune ao amor e que sentia por mim apenas desejo. Porém eu tinha esperanças.

— Você não deve esperar nem querer que eu a ame. Phillipa olhou para ele com o rosto banhado em lá­grimas.

— Está enganado. O que eu sinto...

— O amor a destruiria — Hugh completou. Sabia que entre os dois era ele quem deveria ser forte, ele quem de­veria ir além de seus turbulentos desejos e afastar-se de Phillipa antes que fosse tarde demais. Podia fazer isso. Tinha sido treinado desde a infância para anular os sen­timentos, especialmente a dor. Pelo bem de ambos, acres­centou em tom firme: — Também me destruiria se eu... Se eu desse vazão aos meus sentimentos, se eu também admi­tisse o quanto você significa para mim. — ...se eu sentisse a mesma coisa por você.

Phillipa fechou os olhos. Então assentiu com um mo­vimento de cabeça.

— Teria sido melhor se não tivéssemos... — Ele se de­teve, constrangido. — Isso tornou as coisas mais compli­cadas. Fez você imaginar que existe alguma coisa entre nós além de atração física.

— E mesmo apenas minha imaginação, Hugh?

— Receio que sim. E natural que uma mulher tenha suas fantasias com o primeiro homem com quem se rela­ciona. — Ele massageou o pescoço, odiando o que iria di­zer. — Acho melhor não continuarmos a dormir juntos.

— Mas só temos esta cama. Se pedirmos outra, não levantaremos suspeitas?

Ele comprimiu os lábios.

— Talvez deva dormir com Aldous de agora em diante. Este castelo parece um bordel. Ninguém achará estranho.

— Mas Aldous e eu nunca...

— E pelo sucesso da missão.

— Eu disse a ele que não iria ao quarto dele enquanto você estivesse aqui.

— Nesse caso, irei embora amanhã.

— Não! Não, Hugh, eu não suportarei dormir com ele. Está além das minhas forças! — Grossas lágrimas desli­zaram pelas faces de Phillipa.

— Nem pelo bem da missão?

— Justamente pelo bem da missão é que você deve permanecer aqui. Preciso de você para continuar investi­gando. Fiz pouco progresso até agora.

— Isso porque não se tornou amante de Aldous.

— Há outros meios, Hugh, por favor!

— Está bem. — Ele exalou o ar, tenso. — Mas vou dormir no chão.

— Tolice. Durma na cama, comigo. Está com medo de eu violentá-lo no meio da noite?

Ele sorriu ao imaginar a pequena Phillipa de Paris tornando-se sexualmente agressiva.

— Phillipa, perdoe-me. Fui um monstro.

— Não. Você só agiu impetuosamente, movido pelo instinto. Vou guardar na lembrança nossa primeira vez, em Southwark. Foi uma experiência que abriu para mim um mundo novo.

— Para mim também.

— Não quero perder a ligação que existe entre nós só porque não viveremos como amantes. Tive pouquíssi­mos amigos em toda a minha vida. Seria tão bom ter um amigo do coração... Alguém com quem eu pudesse contar, conversar e a quem eu pudesse mostrar como sou, sem precisar me manter com as defesas erguidas.

— Se você permitir que eu seja esse amigo leal, ficarei muito honrado e agradecido. Significaria muito mais do que você possa imaginar.

Phillipa sorriu e seus olhos úmidos de lágrimas ilu­minaram-se.

— Amigos, então?

Hugh a beijou na testa e a estreitou nos braços.

— Amigos.

 

Hugh sonhou com Phillipa e acordou ao sentir dedos frios tocando-lhe o rosto suavemente.

— Hugh...

— Hum? — Ele entreabriu os olhos e, meio adormeci­do, viu Phillipa despindo-se para ele, uma réstia de luar beijando-lhe o corpo nu. Aquilo devia ser a continuação do sonho, pensou.

Mas sua ereção era bem real. Era esse o resultado de dormir com ela todas as noites como "amigos".

— Hugh, acorde!

Ele despertou. Esperava ver o sol banhando o quar­to, porém constatou que ainda era noite e Phillipa não estava nua. Encontrava-se sentada na cama, de pernas cruzadas, usando a larga camisola de linho e segurando várias folhas de pergaminhos com os dedos manchados de tinta.

— Consegui — ela disse, arranjando as páginas sobre o colo.

— O quê? — Hugh perguntou, esfregando os olhos.

— Decifrar o código.

— Não é possível.

Ela deu um lindo sorriso.

— Você sabe como eu gosto de desafios.

Naqueles quatro dias, desde sua chegada a Halthorpe, haviam explorado o castelo juntos. Tinham feito pergun­tas aos que ali moravam com resultados desanimadores.

Até aquela tarde. Para dar a Hugh a oportunidade de re­vistar os aposentos principais, Phillipa havia pedido a Clare para incluir Aldous e ela no grupo que ia caçar com falcões.

Aldous estava ocupando um quarto enorme e luxuoso no primeiro andar, uma vez que não teria chances de dor­mir com Phillipa enquanto Hugh estivesse no castelo. Ali Hugh não encontrara nada do seu interesse, a não ser um livro com o título Preces para as Horas Canônicas, mas que continha uma coleção de versos e figuras obscenas.

Tivera mais sorte no quarto de Clare. Ao afastar da parede uma tapeçaria, descobrira um vão entre duas pedras. Nesse pequeno espaço havia um pergaminho dobrado, feito de pele de bezerro. Pegou-o e soube que estava escrito em hebraico, língua que ele lia razoavel­mente bem, assim como o latim, o grego e o francês. Mas quando tentou ler o documento, percebeu que se tratava de linguagem cifrada. O uso de códigos em comunicados sigilosos era cada vez mais freqüente.

A descoberta levou-o a revistar o aposento com mais rigor e atenção, esperando encontrar uma chave, grade ou tabela que o ajudasse. Sem sucesso, fez uma cópia do documento e colocou o original no esconderijo. Só à noite ele teve chance de mostrar a cópia a Phillipa. No entanto, ela não sabia hebraico e pediu-lhe ajuda. Ele escreveu as vinte e seis letras do alfabeto hebraico e a aconselhou a se deitar. Na manhã seguinte eles trabalhariam juntos na solução do enigma.

Agora, ao ouvi-la dizer que decifrara o código, só podia deduzir que ela permanecera acordada.

— Que horas são?

— Já passou das matinas. Veja! — Ela ergueu uma folha de pergaminho escrita.

— O que é isso?

— O documento decodificado.

— Como?

— Passei o texto para o latim. Não foi difícil, apenas demorado.

— Mas você não sabe hebraico.

— Eu tinha o alfabeto e, como sei francês e latim, por dedução e analogia fui montando uma "tabela de fre­qüência".

Hugh pegou a folha de pergaminho e olhou, perplexo, para o "círculo do alfabeto" que devia ser idêntica à cha­ve do enigma que Clare certamente mantinha escondida em algum lugar do castelo.

— Você é admirável — disse, deixando Phillipa rubo­rizada.

— Não quer saber o que diz a mensagem?

— Sem dúvida. — Ele colocou um braço sob a cabeça.

— É uma carta endereçada a Clare e escrita por Eleanor, condessa de Poitou, duquesa de Aquitaine e rai­nha da...

Hugh ergueu-se depressa.

— É da rainha? Dê-me isso! — Pegou o pergaminho. Phillipa deixou de lado as outras folhas, encostou-se a ele, e começaram a ler juntos a carta datada de um mês antes.

A rainha começava censurando Clare por ter escrito na carta anterior sobre certos arranjos, os quais iriam assegurar uma vitória rápida e decisiva.

É considerada traição o simples pensamento sobre tais assuntos. No entanto, você escreveu sobre eles em francês, sem usar o código, como se estivesse me contando sobre seu último romance. O código que lhe dei antes de você deixar Poitiers é para ser usado em nossa correspondência sempre. Seu descuido me leva a perder a confiança que deposito em você e no seu irmão.

Eleanor continuou no mesmo tom, repreendendo Clare e Aldous por não levarem a sério suas responsabilidades. Referiu-se a eles como "ratos da corte", interessados em seduzir e depois se vangloriarem de suas conquistas.

Tenham cuidado e guardem segredo sobre a missão que lhes atribuí. Se não conseguirem ser discretos e não refre­arem a língua, pagarão por isso. Não cometam o erro de considerar vã esta ameaça. Coloquei no castelo Halthorpe uma pessoa encarregada de salvaguardar meus interesses da incompetência e da imprudência tanto sua como de seu irmão. Se eu descobrir que a situação aí está ficando fora de controle, vocês dois deixarão este mundo.

— Há um espião no castelo! — exclamou Hugh. — Deve ser um dos hóspedes de Clare. Todos vieram de Poitiers, que é domínio de Eleanor, ou de Paris, domínio do rei Louis. Pode ser qualquer um.

— Qualquer um, não — Phillipa discordou. — Considerando as ameaças feitas pela rainha, deve ser alguém capaz de matar a sangue-frio.

— E quem melhor do que um assassino frio para fazer o papel de inocente? E impossível descobrir um matador levando-se em conta só a sua conduta. Repito: pode ser qualquer um.

Phillipa mordeu o lábio, pensativa.

— Turstin de Ver é íntimo da rainha, não?

— Turstin? O velho trovador pode ser o agente de

Eleanor, claro. Há o padre Nicolas Capellanus, que veio da corte do rei Louis. Além de Robert d’Ivri, Simon de Saint Helene...

— Raoul d'Argentan.

— Raoul? Não, nunca.

— Pense. Ele é dominado pela esposa. Ela não é confi­dente da filha de Eleanor, Marie de Champagne?

— Raoul é feroz no campo de batalha, mas muito gen­til fora dele. Não acredito que seja capaz de assassinar alguém.

— E Isabelle? Por que não pode ser uma mulher? Afinal, Eleanor criou em Poitiers um mundo que gira em torno de mulheres.

Não era de admirar que a rainha Eleanor tivesse cria­do sua corte em Poitiers depois que o rei Henrique dera as costas para o casamento. Eles haviam se unido por amor, não por um arranjo político... E Henrique acabara se juntando a outra mulher.

Hugh suspirou. Sua própria repulsa pela infidelidade masculina formara-se quando o pai, entediado com o casa­mento, deixara a esposa prestes a dar à luz ao segundo filho e fora para Londres ver a amante, uma garota chamada Eglantine, de apenas catorze anos. Quando voltara, uma semana depois, sua mulher estava morta e enterrada. Hugh apertou os lábios, lembrando-se da dor e da re-volta que sentira ao se ver só com a irmã recém-nascida, Por isso compreendia perfeitamente a raiva e a decepção da rainha Eleanor diante da traição do marido. Contudo, estava impressionado com a magnitude de sua vingança. Se os rumores mereciam crédito, a rainha pretendia tirar Henrique do trono e colocar nele o filho.

Mas traição era traição, ordens eram ordens. Se ele pu­desse frustrar o plano da rainha, faria isso sem peso na consciência.

— O que você acha de Marguerite? — Phillipa per­guntou. — Não podemos excluí-la da lista de suspeitos só porque é grande amiga de Clare.

— Ela está muito ocupada com seu jogo de sedução para se interessar por intrigas políticas. — Hugh repri­miu um bocejo. — Estou muito cansado para continuar com isto. Por que não dormimos um pouco?

— Também estou com sono. — Phillipa guardou os pergaminhos no compartimento secreto do grande baú que lorde Richard lhe dera, apagou a vela e deitou-se ao lado dele.

Para Hugh continuava uma tortura dormir encostado a Phillipa, sentindo seu calor e aspirando seu perfume. Sonhava com ela e acordava excitado, o membro em riste, sem poder satisfazer seu desejo.

O que ele não esperava era achar gratificante parti­lhar com Phillipa suas idéias, suas observações e seus sentimentos. Eles conversavam até tarde e adormeciam apenas quando vencidos pelo sono.

Haviam se tornado amigos de fato.

— Como aprendeu a decifrar esses códigos? — Hugh perguntou.

— Tio Lotulf tinha especial interesse por algoritmos. Para ele era um passatempo e um exercício mental. Ele explicou as regras básicas para minha irmã e para mim. A partir daí nós duas criamos uma linguagem secreta para nos comunicarmos. Começamos a fazer isso aos seis anos de idade. No início usávamos símbolos, invertíamos letras, fazíamos substituições no alfabeto. Depois passa­mos a inserir números, expressões matemáticas, cifras. Mas isso para nós sempre foi uma brincadeira, da mes­ma forma que era um passatempo para tio Lotulf. Ele nunca usou seus conhecimentos na prática.

Hugh ouviu Phillipa com interesse e admiração. Ela não cessava de surpreendê-lo. Era a mulher mais extra­ordinária que eleja conhecera.

Sentada na cadeira de espaldar alto colocada sobre um tablado, na parte norte do castelo Halthorpe, Clare declarou:

— Acho que estou preparada para proceder ao julga­mento das questões que me foram apresentadas esta noi­te de modo tão eloqüente.

À luz das tochas, o rosto de Clare parecia uma máscara branca em contraste com o vestido vermelho-escuro. No braço esquerdo, protegido pela grossa luva, ela trazia seu falcão fêmea predileto, Salomé, usando capuz de couro enfeitado com rubis e vistoso tufo de penas vermelhas.

De pé, nos fundos do salão, Hugh observava o ami­go Raoul d'Argentan sentado com a esposa entre os que participavam daquela interminável sessão do tribunal do amor. Aquela era a quarta organizada por Clare nos últimos oito dias e tinha como tema algum entrevero acontecido entre o casal.

Hugh bufou, exasperado. Não tinha paciência para aquelas tolices. Por isso tinha deixado o enorme salão e agora andava pela margem do rio, bebericando o vinho do odre que não deixava de levar consigo. Desde sua última bebedeira quando praticamente violentara Phillipa, não tomava mais do que um pouco da bebida por dia.

Vaias, risadas e aplausos encheram o ar. Raoul levan­tou-se do banco, vermelho e humilhado, empurrou Isabelle, que tentava segurá-lo pela túnica, e dirigiu-se para a por­ta a passos largos, ignorando as risadas e as chacotas.

Hugh ia segui-lo, porém parou ao ver a porta à esquer­da da escada se abrindo e Istagio saindo do porão, suado e vermelho, como sempre. Orlando já estava na cozinha jantando. Hugh conhecia a rotina dos dois italianos e sa­bia que Istagio iria avisar Clare para trancar a porta.

De fato, Istagio olhou para o tablado onde estava Clare, mas ao ver Edmee servindo doces para os hóspe­des, ajeitou depressa os cabelos molhados de suor, apro­ximou-se da criada e puxou a saia dela.

— Edmee, você e eu dar uma volta, sim?

Hugh correu os olhos ao redor. Raoul estava saindo do salão, Clare tentava manter a ordem, Istagio olhava, fascinado, para os seios de Edmee... e a porta de acesso ao porão estava apenas encostada.

Não hesitou. Foi discretamente até a porta, fechou-a assim que se viu do outro lado, em um pequeno patamar iluminado por uma tocha, e desceu a estreita escada de pedra que terminava em uma segunda porta. Esta não tinha fechadura. Hugh girou a maçaneta.

— Hugh?

Era a voz de Clare. Ele praguejou, mas abriu a porta. Era a única chance que tinha de ver o laboratório onde Istagio e Orlando trabalhavam durante horas a fio. Tinha de descobrir o que causava aqueles estrondos.

O cômodo estava escuro e a pouca claridade vinha das brasas de uma espécie de fornalha na parede. Estava mui­to quente, abafado e o ar fedia a ovo podre. A luz fraca da tocha permitiu-lhe ver uma mesa onde havia frascos, ferramentas e um objeto de ferro. Seria um capacete? Não, era muito grande. Um sino? Istagio fabricava sinos... Também não. Era muito redondo.

— Ah, eu vi alguém descendo a escada... Era você. — Clare passou por Hugh e fechou a porta. — Decidiu explorar o castelo?

Ela estava bem perto e o cheiro enjoativo de seu perfu­me misturado ao da fumaça da tocha o deixou com ânsia.

— Imaginei que fosse dizer isso, mas eu só eu estava curioso para saber o que havia aqui.

Clare mexeu nas chaves que trazia no pescoço, e Hugh lembrou-se de Phillipa ter-lhe contado que se tratava de . um tique nervoso.

— Se quer saber o que provoca aqueles barulhos, são barris de vinho que...

— Sim, eu sei. Como eu disse, estava só curioso. Sou muito inquieto. Não tenho grande entusiasmo por esses tribunais do amor.

— Você é inquieto? — O tom de Clare tornou-se sedu­tor. — Posso fazer alguma coisa para acalmá-lo.

— Tenho certeza — Hugh sorriu.

— Então, por que não me deixa tentar? Já faz mais de uma semana que você chegou a Halthorpe. — Clare deu um passo na direção dele e Hugh se encostou na parede.

— Tanto tempo assim? — indagou, olhando para o rosto branco de Clare.

— Por que você ainda não se deitou comigo? Ah, o romantismo e o esplendor do amor cortês...

— Ainda não surgiu uma chance.

— Eu vivo me oferecendo e você sempre arranja uma desculpa. Por quê? Não me acha atraente?

A situação era delicada. Ele não podia rejeitar Clare se quisesse continuar no castelo com Phillipa.

— Acho você muito atraente — Hugh declarou com firmeza, embora ela lhe lembrasse um cadáver.

— Então, por que não me leva para a cama?

— Eu...

— Nem precisa ser uma cama. — Ela deu um sorriso cheio de lascívia. — Pode ser aqui mesmo. — Começou a erguer a túnica dele.

Nesse instante o falcão crocitou e bateu as asas.

— Isso não perturbará Salomé?

— Ela está acostumada.

— Clare...

— Faz vinte anos que não tenho prazer com um ho­mem de verdade. A última vez foi com seu pai, na noite do meu casamento. Eu estava no quarto, ele entrou, fe­chou a porta e...

— Eu tenho sífilis — disse Hugh de repente. — Não quero infectá-la.

— Não se preocupe. — Ela sorriu em tom segredoso. — Eu também tenho.

Ele empalideceu.

— Então vou lhe dizer a verdade, Clare. Eu sou... im­potente.

— Adoro um desafio. Você precisa apenas de um pouco mais de inspiração e isso eu posso providenciar.

— Mas...

Clare pressionou um dedo nos lábios dele.

— No meu quarto, esta noite. Não bata. Não fale. Entre, deite-se na minha cama e nos entregaremos um ao outro.

Hugh lembrou-se das palavras de Phillipa: Vou dizer que você prefere homens...

Abriu a boca, porém as palavras morreram na gar­ganta.

Clare e Aldous estavam no fundo do grande salão, meio ocultos pelas sombras, observando Hugh e Phillipa entre os outros pares, dançando com desenvoltura o vigo­roso galliard de passos intricados e ritualistas. Turstin cantava e tangia a mandola apoiada em seu colo.

— Hugh me disse que não funciona na cama — Clare sussurrou.

— É mesmo? — Aldous arregalou os olhos.

— Ele prometeu ir ao meu quarto ontem à noite, mas não apareceu. Eu o surpreendi bisbilhotando na escada de acesso ao porão. Não chegou a entrar no laboratório de Orlando. Ele disse que só estava curioso. Naquele mo­mento acreditei nele, mas agora...

Aldous mal prestou atenção à irmã.

— Se ele não consegue... ela, provavelmente, está ardendo de desejo. Nesse caso será uma verdadeira loba na cama.

— Eu sei que é difícil para você, Aldous, porém tente se concentrar em outra coisa que não seja sexo pelo me­nos por um minuto.

— Se você mandasse Hugh de Wexford embora e eu pudesse ficar à vontade com a esposinha dele...

— Imaginei que Marguerite estivesse suprindo sua carência enquanto você espera por sua queridinha.

— Não é a mesma coisa.

— Céus, você é patético! Mas está bem. Como você é incapaz de resolver seu problema, farei isso por você. Estou achando o comportamento de Hugh muito suspei­to. Essas desculpas que ele tem dado para não se deitar comigo não me convenceram.

— Você duvida que ele seja impotente?

— Tenho motivos para duvidar. Se ele perdeu a virilidade é coisa recente. Segundo as criadas da cozinha em Poitiers, ele podia atravessar a noite e as fazia gritar de prazer. Ah, e era muito bem-dotado.

O entusiasmo de Aldous arrefeceu-se.

— Ontem à noite, quando percebi que ele não viria mais ao meu quarto, comecei a pensar sobre o modo fur­tivo como ele atravessou o salão e chegou àquela porta. Depois, quando estávamos no alto da escada e me adian­tei para fechar a porta, ele olhou para a chave como se fosse o santo graal.

— Não entendi.

— Nem poderia entender, pois você não passa de um estúpido apesar dessa camada de refinamento. É possí­vel que Hugh esteja aqui para nos espionar Aldous.

— Você acha que é ele o agente da rainha?

— Não. O agente da rainha está aqui simplesmente para nos vigiar. Para certificar-se de que não estamos fa­zendo ou dizendo nada que possa pôr em risco a rebelião. Isso não seria necessário se você não tivesse a reputação de imprudente e pobre de espírito.

— Eu? Foi você quem escreveu aquela carta sem estar codificada.

Clare fechou os olhos para manter a paciência e não arranhar o rosto do irmão.

— Enfim, essa pessoa está de olho em nós dois. Não podemos cometer indiscrições nem perder o controle da situação. Não queremos que isso aconteça, não é mesmo?

— E claro que não. Não estou com pressa de ser des­pachado para o Criador.

— Vou descobrir quem é esse espião — disse Clare com confiança. — Tenho feito perguntas aos hóspedes e já organizei uma lista dos que tem estreita ligação com Eleanor. Agora, voltando ao caso de Hugh... Agente da rainha ele não pode ser porque esse suposto agente foi plantado aqui sabendo muito bem que tipo de trabalho Orlando e Istagio estão realizando. Hugh deve estar que­rendo obter informações para outra pessoa. Por que não para o rei Henrique?

— Acha que ele é um espião de Sua Majestade?

— Não sei, mas vou descobrir.

— Como?

— Quanto menos você souber sobre isso, melhor. Lamento que já esteja tão envolvido.

Clare olhou para Hugh e Phillipa. A dança tinha ter­minado e Marguerite falava com Hugh, conforme ela ha­via pedido. A desculpa era que Raoul precisava lhe falar sobre assunto de máxima urgência.

Ao ver Hugh tocar no braço de Phillipa e se afastar, indo na direção indicada por Marguerite, Clare sorriu.

— Excelente. Agora vou descobrir por que ele está tão ansioso para ir até o porão — ela murmurou, ajeitando o decote da túnica cor de vinho e alisando a peruca.

— O que vai fazer? — Aldous perguntou.

— Vou cuidar de manter a situação sob controle e ga­rantir que o agente de Eleanor não corte nossa garganta durante a noite.

Clare abriu a porta da despensa e viu Hugh olhando para as pipas de vinho e para os barris de cerveja ali es­tocados. Estava encantador usando túnica preta com debrum prateado, com os cabelos puxados para trás e com aquela adaga estranha presa no cinto.

— Clare? Estou esperando alguém e... — começou Hugh, cauteloso.

— Esse alguém sou eu. Pedi a Marguerite para lhe dizer que o encontro seria com Raoul com receio de você não aparecer se soubesse que era comigo.

— Se quer saber por que não fui ao seu quarto ontem à noite...

— Eu sei por que você não foi. Já entendi que não o excito.

— Não é verdade — Hugh mentiu.

— Então por quê?

— Bebi demais e dormi.

— Já deu essa desculpa antes.

— Tenho bebido muito.

— Engraçado, só vi você bebendo em excesso quando chegou a Halthorpe.

— Costumo beber tarde da noite, depois que todos se recolhem.

— Agora, por exemplo, não está bêbado... — Clare passou as mãos nos seios enquanto lhe dirigia um olhar sedutor.

O olhar dele se prendeu no molho de chaves que pen­dia da corrente de ouro.

— Hugh, cansei-me de suas evasivas. Ontem à noite, quando você não apareceu, decidi que não há outro modo de salvaguardar meu orgulho senão lhe pedir para dei­xar Halthorpe com sua esposa.

Os olhos dele se arregalaram de leve, alarmados.

— Depois, pensando melhor, achei que, talvez, você merecesse uma segunda chance. Por isso lhe pedi para vir até aqui.

A túnica de Clare era fechada na frente, com cor­dões de cetim trançados. Ela desamarrou o laço, sempre olhando para Hugh.

— Clare, sinceramente, acho que não posso fazer isso. Você é linda, porém não consigo ficar excitado com uma mulher.

— Isso porque as mulheres que tentaram excitá-lo não foram criativas como eu sou. — Ela tirou os braceletes que usava e os colocou sobre um dos barris. — Uma mulher experiente tem recursos, pequenos truques ca­pazes de deixar um homem bem vivo... Coisas que sua esposinha pedante nem imagina.

— Eu realmente...

— Há óleo de amêndoas na copa. Você não tem idéia do que um pouco de óleo e imaginação podem fazer. — Clare tirou do pescoço a corrente de ouro com as chaves e a colocou ao lado dos braceletes, não deixando de notar o interesse de Hugh nas chaves. — Posso ir buscar o óleo enquanto você tira as roupas?

Após um instante de hesitação, ele respondeu:

— Creio que não fará mal nenhum tentar.

Clare saiu da despensa, fechou a porta e ficou do outro lado, tentando ouvir o barulho dele mexendo nas chaves. Não ouviu nada. Pegou o vidro de óleo na copa e voltou para a despensa. Encontrou Hugh pronto para sair dali.

— Aonde você vai?

— Acabo de me lembrar de que prometi dançar o tour-doin com Phillipa. Se eu me demorar, ela virá à minha procura.

— Talvez ela queira se juntar a nós.

— Não. Ela nunca...

— Não mesmo. Pobrezinha, tão puritana. Acho que vou levar isto para o quarto. — Clare ergueu o vidro de óleo de amêndoas. — Se você decidir me fazer uma visitinha quando não estiver bêbado, poderei lhe mostrar meus truques.

Ele sorriu, tenso. Então curvou-se e saiu da despensa, fechando a porta. Clare recolheu os braceletes e, quando pegou a corrente, deu pela falta da grande chave orna­mentada da porta de acesso ao porão.

Exatamente como esperava.

Phillipa ergueu a lanterna e prendeu a respiração quando Hugh introduziu a chave na fechadura da pesa­da porta de acesso ao porão. Ele girou a chave, levou a mão à maçaneta, abaixou-a devagar e abriu apenas uma fresta.

Phillipa respirou, aliviada. Erguendo a barra da camisola e do robe para não tropeçar, começou a descer atrás dele a estreita escada de pedra. Chegaram à segunda porta sem fechadura e Hugh a abriu.

— Este cheiro é de enxofre — afirmou Phillipa. Ergueu a lanterna e correu os olhos pelo cômodo estreito e comprido onde Orlando tinha montado seu laboratório. Ali havia uma mesa longa com frascos, garrafões, tubos, almofarizes, ferramentas variadas, uma bigorna, uma pi­lha de livros, uns vidros estranhos com bico, e diversas vasilhas de barro cobertas.

— Ontem eu vi nesta mesa um objeto redondo, de fer­ro — disse Hugh. — Mas ele não está mais aqui.

Além da mesa, projetando-se da parede, havia uma fornalha de pedra com coifa. Dentro dela, sobre uma cha­pa, estavam dispostos um caldeirão de ferro e diversos cadinhos de cerâmica e metal. Do lado dessa fornalha estavam pendurados atiçadores e tenazes. Encostado na parede, um fole para avivar as chamas. Em prateleiras ao longo das paredes havia mais vasilhas de barro, dú­zias delas; e no chão, perto dessa fornalha estavam em­pilhados sacos cheios de carvão, turfa e estéreo seco para alimentar o fogo.

— O que é aquilo? — Phillipa perguntou, iluminando um conjunto formado por um braseiro de metal, sobre o qual estava uma grande vasilha de barro ligada a outra vasilha por um tubo de cobre.

— Não faço idéia. O que poderia... — Ele interrom­peu o que estava dizendo, apontou para o chão e pediu a Phillipa: — Ilumine aquilo ali.

À luz fraca da vela da lanterna, viram no chão de ter­ra batida o traçado de um grande círculo com oito raios, na extremidade de cada raio havia o desenho de um sím­bolo misterioso e uma vela. No centro do círculo estava um almofariz alto, cheio de um pó escuro.

Hugh e Phillipa trocaram olhares indagativos. Então ela olhou para o alto e deu um grito, quase derrubando a lanterna. Das vigas do teto pendiam dezenas de serpentes.

— Estão mortas e secas — disse Hugh, abraçando-a para confortá-la.

— Para que elas servem?— ela perguntou com o cora­ção ainda acelerado.

— A pergunta deve ser: para que serve tudo isto?

Os dois se aproximaram da longa mesa, e Hugh pegou o livro no alto da pilha.

— Turba Philosophorum. Aqui diz que foi traduzido do árabe.

— Não conheço esse livro.

— O que me diz deste: De Compositione Alchemiae. Autor: Robert de Chester.

— Nunca ouvi falar nem de um nem do outro — Phillipa respondeu distraidamente, destampando as vasilhas de barro de uma das prateleiras para saber o que continham.

— Argh! Urina velha. — Ela torceu o nariz e destampou outra vasilha, a maior delas. — Hugh, o que é isto?

Ele se virou e olhou para o interior da vasilha.

— Acho que é salitre. Os gentios chamam esse pó de neve chinesa. — Ele tirou a tampa de outra vasilha. — Isto é mercúrio. Vi mercúrio pela primeira vez na Itália.

— Por que Orlando e Istagio foram trazidos para cá, e por que há tanto segredo sobre suas atividades?

— Phillipa indagou. — Parece que isto aqui nada tem a ver com a rainha Eleanor nem com uma revolta contra o rei Henrique.

— Talvez eles estejam preparando um novo tipo de veneno — Hugh opinou.

Eles continuaram explorando o laboratório. Chamou-lhes a atenção uma grande gaiola de metal, toda trabalha­da, dentro de um nicho fechado com uma grade na parede.

— Parece nova e está vazia — Phillipa observou. — Deve estar reservada para guardar algo valioso, senão não estaria trancada atrás da grade de ferro. Seja o que for que Orlando e Istagio estejam fabricando, eles espe­ram que o resultado seja compensador.

— Vamos ver o que há lá atrás — propôs Hugh, indo além das enormes colunas de pedra de sustentação do castelo.

Phillipa o seguiu e se surpreendeu ao chegar a um poço. Debruçou-se na borda de pedra, ergueu a lanterna e espiou o fundo.

— Um poço? Aqui no porão?

— Muitos castelos tem um poço como este para não lhes faltar água fresca em caso de ataque ou cerco.

— Ai! — Phillipa gritou e afastou-se do poço pulando num pé só.

— O que foi, amor? Amor?

— Pisei em alguma coisa redonda e pequena.

— Venha cá.

Hugh massageou a sola do pé de Phillipa, depois er­gueu alguma coisa do chão.

— Aqui está. — Ele colocou uma bolinha de ferro na mão dela.

— O que é isso?

— Já vi crianças brincando com bolinhas parecidas com esta, mas de pedra ou de barro.

— O que esta faz neste lugar?

— Não sei. Quanto mais eu vejo o que há por aqui, mais perplexo eu fico. — Ele guardou a bolinha na man­ga da camisa enrolada, como tinha feito com a chave. — Venha. Há uma porta naquele canto.

Aberta a porta, eles entraram em um pequeno cômodo.

— Aqui eram guardados instrumentos de castigo — Hugh explicou e apontou para o teto. — Erga a lanterna e observe aquela viga.

Phillipa notou que havia uma roldana presa à madeira.

— Vamos embora, Hugh... Isto aqui está quente como o inferno. — De repente ela parou, sentindo um calafrio na espinha. — Meu Deus, o que é aquilo?

A lanterna iluminava uma cadeira de ferro com cor­reias, coberta com grossa camada de pó.

— Vi cadeiras iguais a essa em porões dos castelos que tomamos, na região do Reno. Frederick Barbarossa era terrível. Até mesmo simples ladrões eram amarrados numa cadeira como esta para confessar seu crime. Veja, no chão, a parte enegrecida debaixo da cadeira. Ali era colocado fogo.

— Que horror! Que pessoas são capazes de tamanha crueldade? Não existe nelas nenhuma centelha de com­paixão?

— Você não imagina como pessoas comuns podem fa­zer mal a outras. — Hugh apontou para um instrumento de tortura na parede, perto da cadeira. — Olhe ali. Não se vêem muitos desses. Têm o nome de sachentage.

Phillipa viu uma pequena estrutura de ferro, da qual saía uma viga. Dessa viga, sustentadas por correntes, pendiam duas metades de um círculo de ferro com pon­tas perfurantes na parte interna.

—Veja como funciona: as duas metades do círculo, que são unidas por dobradiça, são colocadas ao redor do pes­coço do prisioneiro e trancadas com uma chave — Hugh explicou. — Tendo aquele aro com pregos ao redor do pescoço, o infeliz é obrigado a ficar de pé, sem dormir e praticamente sem se mexer.

Phillipa estremeceu, imaginando a agonia experimen­tada pela vítima.

— Eu confessaria imediatamente o que eles quises­sem saber. Nunca fui capaz de suportar nenhum tipo de sofrimento.

— Você ficaria surpresa se soubesse o que uma pes­soa pode suportar se tiver recebido treinamento correto — disse Hugh, pensativo. — A dor pode ser superada. O segredo é colocar-se acima dela, como se você flutuasse no ar e aquilo estivesse acontecendo com outra pessoa.

Phillipa lembrou-se do que Raoul havia contado sobre a atitude de Hugh quando Donaghy lhe cortara o polegar. . Pensou também nas cicatrizes que ele tinha nas costas e perguntou suavemente:

— Hugh, que cicatrizes são essas que você tem nas costas?

Os olhos dele tornaram-se opacos.

— Não me lembro.

— Hugh...

— Já vimos tudo por aqui. Vamos dormir.

Phillipa e Hugh estavam deitados juntinhos, ela de costas para ele. Ainda acordada, ela sussurrou:

— Hugh, eu sei que não devia pressioná-lo, mas me sinto cada vez mais ligada a você, e é natural que eu queira saber mais a seu respeito. Vou lhe fazer a pergun­ta e você não precisa responder se não quiser. Por que você foi chicoteado?

Seguiu-se um silêncio profundo, e Phillipa chegou a pensar que Hugh tivesse adormecido. Fechou os olhos e suspirou, esperando dormir também.

— Eu estava com sete anos e chorava por minha mãe que tinha morrido logo depois do nascimento de Joanna — Hugh começou com uma voz estranha. — Minha mãe era tudo para mim. Meu pai não tolerava meu choro. Dizia que eu era fraco, que precisava aprender a dominar as minhas emoções se quisesse me tornar um homem de valor e o maior cavaleiro da cristandade. Quando ele me disse que não tinha derramado uma lágrima pela morte da esposa, como se isso fosse motivo de orgulho, respondi que eu o desprezava e que sabia que ele estava com sua prostituta enquanto minha mãe agonizava. Acrescentei que eu jamais queria ser como ele. Queria ser educado num mosteiro para tornar-me sacerdote, e pedi-lhe para despedir Regnaud, o mestre de armas que estava me treinando nas artes da guerra.

Hugh fez uma pausa. Embora surpresa por ele ter falado tanto sobre a infância sofrida, Phillipa não fez nenhum co­mentário, receando desencorajá-lo a continuar a narrativa.

— Meu pai ficou transtornado. Creio que ninguém jamais o desafiara como eu o desafiei. Regnaud já ha­via me castigado algumas vezes. Ele não usava chicote e sim uma correia com ponta de aço que, em vez de dei­xar vergões, abria a carne. Pois bem, meu pai achou que os castigos de Regnaud não eram severos o bastante e o autorizou a me amarrar a uma coluna e a me dar meia dúzia de golpes com aquela correia. Disse que me amava, que o castigo era para meu próprio bem, e que um dia eu iria lhe agradecer.

— Oh, meu Deus! — Phillipa quis virar-se e abraçar Hugh. Ele a apertou contra o peito como se não quisesse olhar para ela ao recordar aquele período melancólico de sua vida.

— Chorei, naturalmente. Eu tinha apenas sete anos. Por causa do choro, meu pai ordenou a Regnaud que do­brasse o castigo. Disse que eu não deveria nem piscar. Foi então que aprendi a suplantar a dor. Cerrei os punhos e tive a sensação de estar no alto, presenciando o castigo, sentindo os golpes como se estivesse em outra dimensão. É difícil explicar.

— Você está sendo claro. O que o manteve em Wexford até os dezoito anos? Você não teve vontade de fugir?

— Tive, mas pensei em Joanna. Ela era uma garotinha voluntariosa e nosso pai estava sempre zangado com ela.

— Ele também a castigava?

— Apenas batia nela de vez em quando. Eu dizia que iria matá-lo se a machucasse. Então ele me trancava no porão sempre que a castigava. Aos onze anos Joanna foi para Londres como dama de companhia da baronesa de Montfichet. Em seguida fui armado cavaleiro e jurei nunca mais ser oprimido por ninguém. Desde então sou dono de mim mesmo.

— Compreendo — disse Phillipa em tom grave. — Eu teria feito a mesma coisa.

Na tarde seguinte, devido ao forte calor de julho, Clare organizou outra festa ao ar livre. Após o banquete, ela anunciou:

— Partirei amanhã, ao alvorecer, para visitar uma ve­lha e querida amiga...

Todos se mostraram surpresos com a notícia, Aldous inclusive. Houve murmúrios de protestos.

— Não, não pensem que vou abandoná-los — volveu Clare, sorrindo. — Minha amiga mora ao sul de Londres e me ausentarei apenas por alguns dias.

A atenção de Phillipa voltou-se para Istagio, que es­tava perto da ponte levadiça. Ao ver Edmee saindo da cozinha carregando duas jarras de vinho, ele foi depressa ao encontro dela. A criada parou com expressão resig­nada. Quando Istagio disse alguma coisa e apontou na direção da guarita, Phillipa imaginou que ele estivesse convidando a criada para um passeio ao longo do rio. Ela fez um movimento negativo com a cabeça. Istagio sus­surrou-lhe algo ao ouvido, olhou ao redor e abriu a bolsa de couro que trazia a tiracolo, mostrando alguma coisa. Edmee entregou as jarras para uma criada que ia pas­sando, deu a mão para Istagio e os dois caminharam na direção da torre.

Sentado na frente de Phillipa estava Orlando que, vendo seu assistente com a empregada, balançou a cabe­ça, zangado. Fez menção de levantar-se, mas Clare ainda estava falando e ele se manteve sentado, embora carrancudo. Phillipa achou isso curioso, uma vez que Orlando parecia sempre imperturbável.

— Espero que todos continuem a apreciar a estada em Halthorpe na minha ausência — Clare dizia. — Deixo com meu irmão as chaves do castelo e a responsabilidade de proporcionar-lhes conforto e alegria. Se precisarem de alguma coisa, peçam a Aldous.

Assim que Clare sentou-se, Orlando levantou-se do banco e foi depressa na direção da guarita, quase tro­peçando na barra da longa túnica. Hugh olhou para Phillipa, arqueou as sobrancelhas e fez-lhe um discreto sinal com a cabeça.

Phillipa entendeu a mensagem. Aquele era o melhor momento para conversarem a sós com Orlando sobre o que tinham visto no porão, na noite anterior. Os dois se le­vantaram ao mesmo tempo para consternação de Aldous, que sentado junto de Phillipa, segurou-a pela manga da túnica e perguntou-lhe o que ia fazer com Hugh.

— Vou andar um pouco pela margem do rio — ela res­pondeu. — Não me demoro. Quando eu voltar, poderemos jogar gamão em um canto sossegado.

Ele suspirou e levou a taça de vinho aos lábios.

Quando Phillipa e Hugh chegaram à guarita e atra­vessaram a ponte levadiça sobre o fosso, Orlando estava bem à frente deles, correndo pelo gramado com a túnica arregaçada.

— Signore Orlando! Espere! — Phillipa gritou. Orlando parou e olhou para trás.

— Podemos conversar, Orlando? — Hugh perguntou ao aproximar-se do metafísico com Phillipa.

— Eu...

— E só por um instante — ela implorou.

— Talvez mais tarde.

— Tem a ver com o porão — Hugh adiantou. — Estivemos lá ontem à noite. Queremos fazer algumas perguntas sobre suas experiências.

Orlando sentou-se num tronco de árvore caída.

— Si... imaginei que vocês iriam lá.

Hugh e Phillipa se entreolharam. Como? Ele não esta­va surpreso? Teria descoberto ao entrar no laboratório?

— Vimos algumas coisas que nos deixaram perplexos. Sempre tive curiosidade em saber o que você e Istagio faziam no porão. Mas eu lhe fazia perguntas e você mu­dava de assunto. Agora você deve nos contar a verdade — declarou Phillipa.

— E só esperimento com dissoluzione e coagulazione.

— Dissolução e coagulação, as duas forças essenciais da natureza.

— Si. Eu aqueço o mercúrio e o zolfo, que vocês dar nome de enxofre, e os destilo. É um belo trabalho.

— E as cobras? — Hugh quis saber.

— Ah. Preciso de material orgânico. É complicado.

— E o desenho que vimos no chão? E um talismã?

— Ah, o circolo, o mágico cerchio.

— Explique-nos o que vem a ser isso — exigiu Hugh.

— Difícil explicar. Muitas pessoas não entendem. Uns chamar essa alchemia de magia, bruxaria. Mas é ciência. Ciência muito antiga do Cosmos. Já ouviram falar de pe­dra filosofal?

— Pedra filosofal! — Phillipa exclamou. — Você é um desses "filhos de Hermes" que tentam transformar chum­bo em ouro?

Orlando ficou muito sério.

— Esses são pequena parte, muito pequena. Nós em busca do Elixir da Vida e do Alkahest, solvente de todas as substâncias.

Orlando entusiasmou-se e passou a discorrer sobre a Filosofia Hermética, seus princípios e a tentativa de se redescobrir os segredos esquecidos da natureza, realizan­do experiências baseadas em textos orientais antigos.

Essa preleção deixou Phillipa mais intrigada do que nunca. Se a pesquisa de Orlando era sobre uma pseudociência oriental mística, que tipo de ameaça poderia repre­sentar? O que isso tinha a ver com a rainha Eleanor ou com uma rebelião? E por que Orlando, que sempre tivera os lábios selados quando Phillipa lhe fazia alguma per­gunta sobre seu trabalho no laboratório, agora se mostra­va tão entusiasmado para falar sobre suas experiências?

— O princípio ativo é o sol e o passivo é a lua — Orlando continuou. — Pensem no sol como o homem e na lua como a mulher. Os dois separados, distintos. Mas se juntar os dois, do caos da natureza pode surgir algo novo e maravilhoso. É mágico, não?

Phillipa mal prestara atenção no que Orlando tinha dito. Hugh, parecendo frustrado, passou a mão nos cabe­los e observou:

— Sim, é fascinante, Orlando, porém há coisas que não entendo. Você veio da Itália para a Inglaterra somen­te para realizar essas experiências? Por quê? Certamente seria muito mais fácil ter permanecido em Roma, onde deve ter seu laboratório e todo o equipamento.

— Meu laboratório pegou fogo — contou Orlando, de­solado.

— O que causou o incêndio foi uma de suas experiên­cias? — Phillipa indagou.

— Si. Meu assistente morreu. — Orlando fez o sinal-da-cruz. — Muito triste para mim. Muito desprezo. Eles falar que meu trabalho é perigoso, é tolice. Depois do in­cêndio não tenho lugar de trabalho nem materiale. Isto muito caro. Mercúrio muito caro. Lady Clare tem muito dinheiro e grande coração. Aqui posso terminar meu tra­balho. Ninguém rir de Orlando nem chamar de feiticeiro. Lady Clare compra tudo que preciso. Sem ela eu não po­deria fazer trabalho do meu coração.

Phillipa ia perguntar se lady Clare esperava algum re­torno por tanta generosidade quando se ouviu um estouro e um clarão iluminou a noite. Deu um pulo, assustada.

Orlando levantou-se do tronco onde estava sentado e saiu correndo. Hugh deu a mão a Phillipa e os dois cor­reram atrás do italiano, que havia entrado no bosque margeando o rio. Alcançaram-no em uma trilha, a qual levava a uma pequena clareira entre as árvores. Nessa clareira, viram Istagio curvado sobre uma grande pedra, e Edmee observando-o a certa distância com as mãos nos ouvidos. Com uma pedra-de-fogo e um pedaço de ferro, Istagio obteve faíscas, ateou fogo a alguma coisa e afas­tou-se depressa.

— Istagio! — Orlando gritou.

Tarde demais. Ouviu-se outro estouro acompanhado de um clarão, e fragmentos de alguma coisa se espalha­ram em todas as direções.

Orlando aproximou-se de Istagio e o repreendeu seve­ramente. Os dois falavam em italiano e movimentavam as mãos, agitados. Orlando puxou a bolsa de Istagio e o con­teúdo, pequenos objetos cilíndricos, espalhou-se na relva.

Ainda recriminando o assistente, Orlando ajoelhou-se e começou a procurar os pequenos cilindros. Hugh agachou-se e ajudou-o na tarefa. Havia pouca claridade por­que o sol quase desaparecera no poente, no entanto os cilindros foram todos recolhidos.

Edmee foi a primeira a afastar-se dali. Orlando e Istagio também seguiram pela trilha, discutindo. Hugh que, propositadamente, ficara para trás, tocou no braço de Phillipa e mostrou-lhe um dos cilindros que tinha guardado na bolsa de couro que trazia à cintura.

— Você pegou um! — ela exclamou.

— Eu não podia perder esta oportunidade. — Hugh colocou o objeto na mão dela. Era um pedaço de pergaminho enrolado como um tubo, amarrado nas duas extremi­dades, deixando sair um pedaço de cordão.

Com ajambiya, Hugh fez um corte no pergaminho e viu que continha um pó negro.

— O que é isto? — Phillipa indagou. Nunca tinha vis­to nada semelhante.

— Acho que sei o que é. Uma vez, encontrei no Oriente, um frade agostiniano, missionário, que levava o cristia­nismo para regiões remotas da China. Ele me contou que tinha visto um brinquedo que estourava quando em con­tato com o fogo. Talvez...

Hugh interrompeu o que estava dizendo ao ouvir Orlando gritando com o assistente. Istagio agitou os braços e desapareceu numa curva da trilha, entre as árvores.

Hugh segurou a mão de Phillipa e os dois apertaram o passo. Alcançaram Orlando e Hugh o puxou pela manga da túnica.

— Por favor, Orlando, um momento.

— Eu disse tantas vezes que era segreto. Istagio não podia fazer isso — resmungava o homem.

Hugh abriu a mão e mostrou a Orlando o pequeno em­brulho aberto, revelando o pó preto.

— Vocês estavam fazendo isto quando o seu laborató­rio, em Roma, pegou fogo, não?

Orlando olhou para Hugh, preocupado, então suspirou.

— Lady Clare ficar muito zangada quando saber que vocês viram estas coisas.

— Imagino que as suas experiências como alquimista o levaram a produzir isto. Foi por causa disto que você foi trazido para Halthorpe — Phillipa inferiu.

— Lady Clare lhe prometeu um laboratório completo, desde que você concordasse em fabricar mais deste pó chinês. Foi isso? — Hugh questionou.

— Você e Istagio estão fabricando algum tipo de arma? Vocês fazem isso para retribuir a generosidade de lady Clare? — Phillipa inquiriu.

— Prego, eu imploro! Eu fiz voto di segretezza. Muito mal para mim se ela descobrir que eu contei sobre... — Orlando apontou para o pequeno embrulho na mão de Hugh.

— Você não quebrou seu voto de segredo, pois não nos contou nada — disse Hugh.

— Si, vocês já sabem.

— Sabemos, mas não por você. Phillipa e eu não va­mos contar a Clare sobre isto. Ela não saberá de nada, a não ser que você lhe conte o que aconteceu.

Orlando ficou em silêncio. Pouco depois balançou a cabeça.

— Compreendo. Cada um guardar segreto. Si, concordo. Phillipa tocou no braço de Orlando.

— Orlando, você sabe que não deveria fazer esse trabalho, não sabe?

— Como pode dizer isto? — Orlando protestou. — É um bom trabalho. Grande desafio para minha mente!

— Pense no perigo que isso pode representar se for usado como arma.

Orlando sacudiu a cabeça vigorosamente.

— Todo conhecimento é bom. Aprender vale a pena.

— Sempre pensei assim — Phillipa murmurou. — Agora não tenho tanta certeza.

Phillipa acordou no meio da noite, molhada de suor. O ar pesava, a camisola de linho estava grudada ao corpo.

O que a teria acordado? Logo percebeu que, embora adormecido, Hugh estava excitado e pressionava o mem­bro enrijecido contra as nádegas dela. Surpresa, pois ele não havia tentado nenhuma intimidade depois da sua pri­meira noite em Halthorpe, Phillipa o chamou baixinho.

— Hugh? Ele estremeceu, ficou imóvel por um momento e abriu os olhos.

— Desculpe... Eu estava sonhando — disse, procurando afastar-se dela, o que era difícil sendo a cama tão estreita.

Phillipa levantou-se. À luz prateada da lua, olhou para Hugh, que continuou deitado de costas, agora com um joe­lho dobrado. Mesmo naquela posição, ela podia ver o quanto ele estava excitado. Parecia tão bonito e tão forte... Pensem no sol como o homem e na lua como a mulher. Os dois separados, distintos. Mas se juntar os dois, do caos da natureza pode surgir algo novo e maravilhoso. E mágico, não?

As palavras de Orlando ecoaram em sua mente. Tinha sido mágico fazer amor com Hugh naquela primeira vez.

Quantas vezes eu a imaginei sem roupa nenhuma... Todas as noites sonho com você nua nos meus braços, ele tinha dito.

Ocorreu a Phillipa que ele certamente havia sonhado com ela fazia pouco. Com isso em mente, tirou a camisola e a pendurou no cabide da parede. Esperava sentir-se nervosa por estar exposta demais, pois esta era a primei­ra vez que ficava nua perto de um homem. Mas, ao con­trário, viu-se invadida pela deliciosa sensação de estar fazendo o que deveria ser feito.

Hugh permaneceu na mesma posição e a observou, estático. Phillipa voltou para a cama e acariciou-lhe o rosto. Ele fechou os olhos com um suspiro.

— Não é prudente, amor.

Ela encostou os lábios nos dele.

— Não é para ser.

Amanhecera e o sol entrava pelas janelas estreitas quando Hugh e Phillipa se separaram, molhados de suor e saciados, depois de se unirem pela terceira vez naquela noite. O corpo de cada um vibrava como as cordas de um alaúde que tivesse sido tocado durante horas, produzin­do a mais sublime e mais melodiosa música imaginável.

Hugh beijou a mão de Phillipa.

— Meu Deus, Phillipa, foi maravilhoso.

Nessa primeira vez a união deles tinha sido furiosa, arrebatada. Pareciam dois seres famintos, os corpos se movendo freneticamente em busca do prazer. A segunda vez fora mais lenta, sonhadora. Eles se acariciaram, se beijaram e se amaram ritmadamente. Depois disso, adormeceram abraçados.

Phillipa acordou ao alvorecer sentindo Hugh acari­ciar-lhe o pescoço, os seios e o resto do corpo. Amaram-se pela terceira vez em delirante plenitude. No momento, olhando para as vigas do teto e deitada junto dele sobre os lençóis úmidos e amarrotados, ela teve absoluta certe­za de que pertencia a Hugh de Wexford de corpo e alma.

— Amo você, Hugh — declarou serenamente.

Ele apertou a mão dela e a colocou sobre o peito cober­to de pelos. Phillipa sentiu o coração dele batendo acele­radamente.

— Não devíamos ter feito isto. Phillipa virou-se para encará-lo.

— Assusta-o tanto ser amado?

— Você pensa que me ama.

— Eu sei o que eu sinto. E acho que você também sen­te amor por mim.

O rosto de Hugh tornou-se sombrio.

— Isto foi um erro. Eu soube disso desde o começo.

— Lembro-me de você ter dito que não queria ser um homem para quem uma mulher olhasse no dia seguinte e pensasse: "Foi apenas sexo".

— Sim, eu disse isso. — Ele soltou a mão dela e afas­tou do rosto uma mecha de cabelos.

— Hugh, estou olhando para você e digo que não foi apenas sexo. Foi mais do que um ato prazeroso para nós.

— "Nós" não existe. Não pode existir. Cristo, um de nós deve ser forte, Phillipa. Você não vê isso?

O que ela estava vendo eram as cicatrizes nas costas dele: sinais de uma década de angústia que ele consegui­ra suportar anulando seus sentimentos. Sentou-se e colocou a mão no ombro dele.

— Eu sei que você consegue ser forte. E muito bom nisso. Sabe pairar acima da dor, acima de tudo... até de seus sentimentos por mim. Mas isso não é necessário, Hugh.

— Tais sentimentos, se é que eu os tenha, serão a mi­nha ruína. E a sua.

— Talvez sejam a nossa salvação. Por que devemos ser fortes sozinhos, se podemos ser duplamente fortes juntos?

— Não é assim que funciona, Phillipa. Seremos fortes pela metade se nos unirmos. Um dependeria do outro, um ficaria sujeito às exigências e caprichos do outro, por­tanto, seríamos mais fracos e mais vulneráveis. Você é tão jovem, tão desprotegida, ainda não foi afetada pelas misérias do mundo.

— Concordo com você e gostaria que você também fos­se assim.

Passos apressados no corredor, seguidos de fortes ba­tidas na porta, interromperam a conversa entre os dois.

— Milady! Sir Hugh! Estão acordados?

— Edmee? O que foi? — Phillipa perguntou, alarmada.

— Istagio, milady... — Edmee soluçou. — Istagio está morto!

 

Hugh e Phillipa seguiram a criada que os guiou até o segundo andar da ala norte, onde ficava o quarto de Istagio. No primeiro andar, o cheiro de morte já era desagradável.

— Espere, amor — disse Hugh.

Droga. Por que não paro de chamar Phillipa de amor?

— A cena deve ser impressionante — completou, ta­citurno.

— Já vi cadáveres antes, Hugh.

— Sim, mas o calor e o modo como ele deve estar...

— Não se preocupe comigo.

— Então venha, vamos acabar logo com isto — ele resolveu e começou a subir a escada.

No corredor do segundo andar estava um grupo de hóspedes. Orlando, usando longa camisa de dormir e gorro, andava de um lado para o outro, lamuriando-se. De acordo com Edmee, tinha sido Orlando quem descobrira o corpo do assistente quando viera acordá-lo ao amanhecer.

— Deus me perdoe por ter me zangado com ele — fa­lava o italiano, agoniado. — Ofendi Isagio e agora ele partiu e nunca mais ter ele de volta!

Phillipa o abraçou.

— Orlando, sinto muito, mas você não deve se culpar.

— Ela tem razão. — Hugh bateu afetuosamente nas costas do homem. — Istagio o provocou e você é humano.

Phillipa disse mais umas palavras de conforto ao pobre homem, depois perguntou qual era o quarto de Istagio, pois ela e Hugh queriam ir até lá fazer uma oração.

Edmee indicou uma porta aberta no fim do corredor.

Turstin de Ver tirou do rosto o lenço perfumado e informou:

— O padre Nicolas Capellanus está no quarto minis­trando a Extrema-Unção.

— Agora é tarde. Ele está morto. Nunca vai descan­sar em paz — Orlando lamentou.

— Até aqueles que morrem impenitentes se bene­ficiam da Extrema-Unção — Hugh discordou. Tinha visto homens bons morrerem no campo de batalha e receberem os últimos sacramentos, horas, até dias, de­pois de mortos.

Phillipa tocou no braço de Hugh.

— Vamos entrar?

— Leve isto. Você vai precisar. — Turstin entregou a Phillipa o lenço perfumado.

Assim que ela e Hugh se aproximaram da porta, sentiram que o cheiro era muito forte. No quarto estava padre Nicolas, de sobrepeliz branca e estola, com um lenço amarrado sobre o nariz e a boca. Terminara as orações e agora puxava para cima o lençol, cobrindo a cabeça de Istagio. Ele tampou um pequeno frasco e guardou-o numa bolsa que estava no chão.

Phillipa ergueu o lençol que ele acabara de puxar sobre o defunto, e o religioso se voltou para Hugh:

— Ela não devia fazer isso.

— Por que não? — Phillipa questionou.

— Não é uma imagem agradável — respondeu Nicolas, ainda olhando para Hugh. Desprezava as mulheres e não se dirigia a elas nem mesmo para censurá-las.

— Eu sei que não! — Phillipa afastou um pouco o lençol. Istagio já era obeso e, com o calor, o corpo torna­ra-se grotesco. O pobre homem tinha os olhos arrega­lados, voltados para o teto, e a boca aberta. Phillipa e Hugh fizeram o sinal-da-cruz.

— Eu gostaria que Ada estivesse aqui — disse Phillipa. Manteve o lenço no nariz e, com a outra mão, ergueu com cuidado a cabeça do defunto para examinar o pescoço. — Ela saberia o que procurar.

— Foi assim que o senhor o encontrou? — Hugh per­guntou ao padre.

— Sim.

— Os braços dele estavam assim, cruzados sobre o peito? — Phillipa inquiriu.

O padre ignorou a pergunta. Desamarrou o lenço que tinha sobre o nariz e a boca e o entregou a Hugh.

— Fique com isto. Tem óleo aromático. Hugh pegou o lenço e insistiu:

— O senhor cruzou os braços dele, padre?

— Ele está do jeito como eu o encontrei. — Nicolas viu Phillipa erguendo mais o lençol que cobria o corpo nu de Istagio e zangou-se. — Ela não tem vergonha?

— Estamos tentando saber o que causou sua morte — Hugh respondeu.

— Ele morreu porque o Senhor decidiu levá-lo. Isso é tudo que qualquer um de nós precisa saber.

Padre Nicolas virou-se e saiu. Só Hugh e Phillipa ficaram no quarto.

— Há quanto tempo acha que ele está morto? — ela perguntou.

— A noite toda.

— Parece ter certeza disso.

— Já vi cadáveres em todo tipo de clima e em condi­ções que você nem imagina. Sei em quanto tempo eles se tornam putrefatos sob um calor úmido como este.

— Então ele foi morto ontem à noite?

— Ele morreu ontem à noite. Antes das matinas. Pode ter sido morte natural, uma vez que não tem feri­mentos e não vejo sinal de estrangulamento.

— Veja isto — Phillipa apontou para a mão de Istagio. — Está inchada. Há marcas nos dois pulsos. — Ela olhou os pés de Istagio. — Nos tornozelos também!

— Mãe de Deus!

Hugh e Phillipa viraram-se. Aldous estava à porta com a mão na boca, os cabelos despenteados. Usava uma camisa longa sobre as ceroulas e, sob a camisa, notava-se o volume do molho de chaves que ele trazia ao pescoço.

— Aldous, Clare ainda está no castelo? — Hugh per­guntou.

— Não. Ela... — O diácono fechou os olhos; o rosto suado estava branco como cera. — Ela partiu antes do alvorecer.

Acabando de falar, virou-se para o corredor, o corpo curvado, e vomitou.

Hugh esfregou o queixo.

— Clare teria ficado furiosa se descobrisse que Istagio tinha feito ontem à noite aquela pequena de­monstração para Edmee, depois de todo o cuidado que ela estava tendo para manter em segredo as atividades dele e de Orlando — falou baixinho.

— Acha que ela poderia matar alguém friamente?

— Não.

— E Aldous?

— Ele não tem estômago para isso. Veja a reação dele... Está pondo as tripas para fora.

— O assassino deve ser o agente da rainha. Ele cui­dou de silenciar Istagio antes que ele causasse mais estrago. — Phillipa voltou a atenção para o cadáver. — Hugh, ajude-me a virá-lo.

Eles examinaram o corpo, mas não viram sinais de violência.

— O que você acha? — Hugh indagou.

— Vamos conversar com Orlando.

Encontraram o metafísico no quarto dele, no andar de baixo. Estava completamente vestido, sentado na cama e com os olhos vermelhos.

— Precisamos saber como você encontrou Istagio esta manhã — disse Phillipa.

— Encontrei morto. — Orlando fez o sinal-da-cruz.

— Morreu durante o sono.

— Você tocou nele? — Hugh perguntou.

— Não. Deixei do jeito como encontrei.

Phillipa sentou-se do lado de Orlando e segurou a mão dele.

— Está tentando proteger seu amigo, não está? Está preocupado com a reputação dele e com o que as pesso­as irão pensar se souberem como você o encontrou.

Os olhos de Orlando estavam úmidos de lágrimas.

— Conheço Istagio desde menino. Sua famiglia é de boa gente. Eles não querer que ele deixar Roma, mas eu disse... eu cuido dele.

— Você cuidou dele. Fez o melhor que pode. Como iria saber que havia um assassino entre nós?

— Não! Istagio morreu durante o sono.

— Está tentando proteger a memória de seu amigo

— Phillipa insistiu —, mas deveria nos ajudar dizendo a verdade, Orlando. Você encontrou Istagio amarrado e o desamarrou, não foi assim?

Orlando cobriu o rosto com as mãos e murmurou al­gumas palavras em seu idioma. Phillipa passou o braço ao redor dos ombros dele,

— Si... Era indigno. Meu amigo sentir vergonha se pessoas ver ele daquele jeito.

— As mãos dele e os pés estavam amarrados nas colunas da cama?

— Si. Com estas. — Orlando abaixou-se e pegou vá­rias meias pretas de seda debaixo da cama. — E o cuscino... como chamar?

— Travesseiro — Hugh traduziu.

— Estava no rosto dele. — Orlando olhou debaixo da cama novamente.

— O que está procurando? — Hugh perguntou.

— Isto. — Orlando mostrou um chicote conhecido como "gato", pois deixava arranhões na pele. — Estava do lado da cama.

Phillipa não se surpreendeu ao ver o chicote.

O quarto de Marguerite du Roche ficava no alto da torre norte do castelo Halthorpe. Supondo que a mu­lher teria cometido o cruel assassinato na noite an­terior, Hugh decidiu ir vê-la sozinho e recomendou a Orlando e Phillipa que o esperassem embaixo, no hall da escada.

Embora preocupada, Phillipa não fez nenhuma obje­ção. Hugh era um soldado experiente e bem treinado.

Ele abriu a porta e subiu apenas três degraus da escada de pedra, em caracol. Parou, a testa franzida.

— O que foi? — ela indagou.

— Não estão sentindo o cheiro?

Phillipa e Orlando chegaram perto da escada e res­piraram.

— Oh, meu Deus, — Phillipa murmurou, sentindo o mesmo cheiro de morte que havia sentido ao se aproxi­mar do quarto de Istagio.

Hugh continuou a subir e não protestou quando Orlando e Phillipa o seguiram. Chegando ao patamar no alto da torre, o odor era muito mais forte. Ele abriu a porta devagar.

O quarto estava escuro, as janelas fechadas. Uma cama enorme com cortinado ocupava quase todo o apo­sento. A um canto havia uma mesa e uma cadeira conju­gadas, como as encontradas em mosteiros. Marguerite, usando robe vermelho, estava de bruços sobre a mesa, os cabelos caídos como uma cascata.

Hugh contornou a mesa, ergueu os cabelos de Marguerite, viu o rosto dela e fez o sinal-da-cruz. Phillipa e Orlando se aproximaram, solenes.

— Não acredito que ela esteja morta há tanto tempo quanto Istagio — disse Hugh. — Há um pedaço de pergaminho em sua mão.

Sobre a mesa, havia um tinteiro e uma taça de prata para vinho vazia. A pena de corvo, usada para escrever, ainda estava entre os dedos de Marguerite.

Hugh abriu a janela, pegou o pedaço de pergaminho e leu o que estava escrito nas três linhas:

— Hebraico. E linguagem cifrada.

Phillipa olhou para Hugh e, pela expressão dele, entendeu que ele chegara à mesma conclusão que ela: Marguerite devia ser a agente da rainha Eleanor, se­não, como estaria a par do código usado pela rainha?

Ela olhou ao redor. O aposento era pequeno, porém luxuosamente decorado. As cortinas das paredes e da cama eram de brocado. Doze ou mais vestidos de fina seda estavam pendurados nos cabides da parede. Sobre o lavatório havia inúmeros potes pequenos e frascos de cremes e perfumes, e o espelho da parede, com moldura folheada a ouro, era o maior que Phillipa já tinha visto. Sobre a mesa-de-cabeceira estava uma jarra com vinho, cheia pela metade. Ela se aproximou e viu cravos e pedaços de canela em rama boiando sobre o líquido cor de rubi, porém o cheiro de morte sobrepujava o aroma das especiarias.

—Você me disse que assassinato era para Marguerite uma outra forma de ela se excitar.

— Por que ela fez isso com Istagio? Ele nunca ma­chucar ninguém — disse Orlando.

— Também não entendemos. Há muita coisa para ser esclarecida — Phillipa respondeu e, ao mesmo tem­po, destampou o vidrinho azul perto da jarra de vinho.

— Tudo isso é complicado. Estamos supondo que Marguerite matou Istagio, mas quem a matou? Como? E por quê?

— Veja isto. — Phillipa despejou na palma da mão um pouco do pó branco, cristalino.

Orlando e Hugh se aproximaram e examinaram o pó. Orlando o cheirou.

— Não dá para saber se isto tem odor porque aqui cheiro ruim muito forte.

Ele encostou um dedo no pó e levou-o à ponta da língua. Hugh fez o mesmo.

— Arsênico.

— Arsênico?! — Hugh cuspiu depressa no tapete.

— Si. Arsênico branco. Porém não se preocupe, pou­quinho não faz mal. O mineral extraído da terra é dou­rado e tem gosto forte. O grande alquimista sarraceno, Jábir ibn Hâyyan, torrou o mineral pensando ser o segre­do da pedra filosofal. Mas fez arsênico branco, o veneno mais poderoso. Se mistura ele com líquido quente, mais poderoso ainda. Mata depressa — Orlando explicou.

— O vinho com especiarias é servido quente — Phillipa lembrou.

Hugh entregou-lhe o pergaminho.

— Veja e dê sua opinião. Há palavras repetidas. Seria um tipo de verso?

Phillipa já havia estudado a carta da rainha Eleanor e logo decifrou a mensagem de Marguerite.

— Aqui está escrito: "Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa".

— Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa. — Hugh repetiu o familiar trecho do Ato de Confissão.

— Isso quer dizer que ela se matou por estar arrepen­dida?

— Não sei. Parece que Marguerite du Roche, afinal, não achou que assassinar alguém fosse excitante.

Naquela tarde, perto da hora nona, Hugh entrou no quarto e encontrou Phillipa dentro da grande banheira de madeira jogando sobre a cabeça um balde de água perfumada com lavanda.

— Desculpe. — Ele se virou para sair.

— Não seja tolo — disse Phillipa. — Por que não pode ficar?

Realmente, que mal havia em ver Phillipa no banho, depois da ardente noite de amor? Mas a verdade era que ele não se sentia à vontade ao vê-la nua. Quantas vezes havia sonhado em estar com ela como naquele momento, linda, nua e sorrindo para ele com a intimi­dade de uma amante?

No fundo ele sabia que era justamente a intimidade que o perturbava.

— Pode me dar aquela toalha? — Phillipa pediu, ficando de pé na banheira.

Hugh pegou a macia toalha de linho sobre o espaldar de uma cadeira e a entregou a Phillipa. Ao passar por uma das estreitas janelas, viu Raoul e Isabelle no pátio, discutindo. Ele parou e ficou observando o casal, intrigado. Raoul nunca descontentava a amada espo­sa. Hugh não tardou a perceber que era Isabelle quem repreendia o marido. Raoul parecia um cãozinho que aceitava o castigo, conformado. Várias pessoas obser­vavam os dois.

Passados três dias daquela sessão do tribunal do amor, onde Raoul deixara o salão intempestivamen­te, Hugh conversara com ele e lhe perguntara por que ele se sujeitava aos caprichos de Isabelle. Perguntara também se ele já havia pensado em se separar dela ou em anular o casamento. Raoul respondera que amava a esposa e que ela também o amava, mas que todo rela­cionamento era complicado.

Lembrando-se disso, Hugh considerou que o amor era complicado. Por isso tinha medo de amar.

— Já providenciaram o enterro dos dois? — Phillipa perguntou.

Hugh virou-se para ela, que ainda se enxugava.

— Sim. Orlando falou com padre Nicolas, e ele con­cordou em sepultar Istagio no cemitério da capela, porém não permitiu que Marguerite fosse enterrada lá. Disse que o suicídio é um pecado muito grave, e a pessoa que o comete não merece repousar em solo con­sagrado. O corpo de Marguerite vai ser levado para o bosque. Como se não bastasse, Orlando concordou com o padre e declarou que Marguerite tinha assassinado Istagio, portanto, não deveria mesmo ser enterrada com pessoas decentes.

— Oh, não — Phillipa murmurou. — Nós pedimos tanto para Orlando não comentar nada sobre Istagio ter sido assassinado.

— Orlando estava descontrolado e falou sem pensar. Depois ele me pediu desculpas.

— Muitas pessoas ouviram o que ele disse?

— Quase todos os hóspedes estavam presentes. Você precisava ver como Aldous empalideceu. Pensei que ele fosse desmaiar.

— Certamente ele se lembrou das vezes em que Marguerite o amarrou e cobriu o rosto dele com um tra­vesseiro. Na certa imaginou que ele poderia ser a vítima.

Olhando novamente pela janela, Hugh viu que Isabelle puxava Raoul para a entrada do castelo. Hugh sabia que o amigo estava ansioso para deixar Halthorpe, mas a esposa se recusava a ir embora. Para ela, bem como para a maioria dos hóspedes de Clare, o assassinato e o suicídio abalaram o castelo, acabando com a mesmice.

— Pode amarrar a minha túnica?

Hugh virou-se para Phillipa, que se aproximara dele já vestida, após enrolar os cabelos no formato de um coque.

— Edmee normalmente faz isso para mim, mas a esta hora ela está ocupada na cozinha.

Hugh olhou para a túnica aberta às costas e começou a passar o cordão pelos furos, sentindo-se estranhamente encabulado. Naqueles anos todos ele devia ter amarrado uma centena de vestidos, entretanto, aquela era a primeira vez que realizava a tarefa como um marido atendendo ao pedido da esposa.

— Você teve a chance de perguntar a Orlando o que, realmente, ele faz no porão? — Phillipa quis saber.

— Sim, mas depois do assassinato de Istagio, ele se recusa a falar sobre o assunto. Acredito que não imagi­na em que se envolveu.

— Se a pessoa que assassinou Istagio está morta, Orlando não iria se sentir mais seguro confiando seu segredo a um de nós?

— Teoricamente, sim, porém ele não quer se arriscar. Além disso, Orlando ficou tão perturbado com a perda do assistente que não está refletindo com lógica. Por enquanto é melhor não insistirmos.

— Talvez eu tenha mais sorte.

— Duvido. Ele me disse que gostaria de nunca ter ouvido falar naquele pó negro.

— Fiquei impressionada com o que esse pó é capaz de fazer. Orlando é um homem brilhante e, se ele está determinado a inventar um tipo de arma para a rainha Eleanor, fará isso. E será uma arma com poder devas­tador, pode apostar.

— Se a rainha equipar seus soldados com armas que explodem como aqueles brinquedos chineses, ela derro­tará o exército do rei facilmente — Hugh considerou, terminando de fechar a túnica com os cordões.

Phillipa soltou os cabelos, sentou-se na cama e pediu para que ele os penteasse.

— Não sei — prosseguiu, pensativa. — O rei Henrique tem um exército com milhares de arqueiros experien­tes. Isso sem mencionar os espadachins, as máquinas de cerco...

— Tudo isso será pouco se a rainha tiver em mãos armas explosivas. Armas que não exigem luta corpo a corpo e que, atiradas a distância, destroem muros, cas­telos e pontes.

— Meu Deus, tende clemência...

— Deus nem sempre é clemente. Já vi o resultado quando Ele é vingativo. As conseqüências de uma ba­talha são terríveis. Se um dos lados empregar armas mais brutais do que as que já existem, será o inferno.

— Temos de impedir que isso aconteça.

— É esta a nossa missão.

— Não estou pensando em frustrar apenas a rebe­lião da rainha. Acho que exército nenhum deve ter em seu poder armas tão destrutivas.

Hugh suspirou.

— Você deve saber que nenhum conhecimento pode ser detido, nem mesmo o conhecimento destrutivo. A Igreja tentou proibir o uso de bestas contra os cristãos sem sucesso. Pode ter certeza de que esse pó negro em breve será fabricado em toda a Europa, e armas terrí­veis serão usadas pelos países. A partir daí, a arte da guerra não será mais a mesma. Nada podemos fazer para impedir que isso aconteça. No momento, temos de evitar que esse tipo de arma caia nas mãos de Eleanor de Aquitaine. Se conseguirmos isso, estaremos assegu­rando que o rei da Inglaterra permaneça no trono, o qual é seu por direito.

— Não acha que nosso trabalho aqui já está termi­nado? O que descobrimos não basta para o rei Henrique prender a rainha?

— Infelizmente, não. O rei exige que apresentemos provas irrefutáveis da traição da rainha Eleanor. Nós não podemos chegar até ele e dizer que temos certeza de que está sendo fabricada uma nova arma no castelo Halthorpe.

— E quanto à carta que a rainha escreveu a Clare? Ela insinuou que eles estão preparando uma revolta. Isso não basta para prendê-la por traição?

— Não. Ela pode alegar que a carta é falsa. O rei precisa de uma prova contundente. Algo que ele possa mostrar para os súditos e seus aliados.

— E o pequeno embrulho com o pó negro que você guardou?

— Não é uma arma. É um brinquedo, uma curio­sidade de uma terra distante. Temos de pôr as mãos na verdadeira arma que Orlando está fabricando. Só r assim provaremos o que a rainha pretende.

— Estive pensando em Marguerite. Se ela era a agente da rainha, como estamos supondo, as coisas tor­nam-se mais simples. Temos de ficar atentos a Aldous e Clare.

— Eles são inofensivos. Não tem estômago para matar.

— Nem mesmo se a vida deles estiver ameaçada? Traição é um crime passível de ser punido com a morte na fogueira, não é?

— Depende da hierarquia do traidor e da natureza a perfídia. Freqüentemente os traidores são enforcados. Mas podem ser decapitados, asfixiados, estripados, esquartejados...

Phillipa estremeceu e fez o sinal-da-cruz.

— Se o rei, por alguma razão, decidir ser clemente, os traidores poderão simplesmente ser confinados sob a vigilância de guardas. Certamente esse será o destino da rainha se houver provas de que ela conspirou contra o marido. Ele não ousará executá-la, não depois do cla­mor provocado com a morte de Becket, e especialmen­te por sua ligação amorosa e pública com Rosamund Clifford.

— Hugh, se precisamos de uma prova contra a rai­nha, temos de voltar ao porão. Lá deve haver armas escondidas.

— Claro. As chaves estão com Aldous. Posso entrar no quarto dele enquanto ele estiver dormindo.

— Não vai funcionar. Ele dorme com as chaves pen­duradas no pescoço. Você não notou o volume do molho sob a camisa dele, esta manhã?

— Tem razão. — Hugh passou a mão pelos cabelos. — Então pense em alguma coisa. Você é esperta.

— Lamento desapontá-lo, mas desta vez nenhuma ideia me ocorre. Só há um meio de eu conseguir aquela chave... Você sabe a que me refiro.

— Não concordo com a ideia de você dormir com ele! Phillipa ergueu as sobrancelhas.

— Você costumava dizer que esse era o único meio.

— E você argumentava que havia outros meios de se obter algo de um homem sem ter de se entregar a ele.

— Eu estava errada, pois até agora nada consegui. Portanto, esta noite irei ao quarto de Aldous e permiti­rei que ele me seduza. Assim que ele me abraçar, direi que as chaves estão atrapalhando. Mais tarde, quando ele estiver dormindo, pegarei a chave do porão.

— Não gosto disso.

— Eu menos ainda. Mas, esta manhã, você disse que o que houve entre nós foi apenas sexo. Disse também que quaisquer sentimentos que houvesse entre nós se­ria a nossa ruína... Por que não devo dormir com Aldous Ewing pelo bem do Reino?

Por mais que lhe custasse, Hugh disse secamente:

— Está bem. Voltarei ainda hoje para Eastingham.

— O quê?

Ele fechou os olhos, tenso, desejando dizer a Phillipa que a amava, querendo pedir que ela não fosse ao quar­to de Aldous. Entretanto, viu-se dizendo:

— Aldous acredita que você ainda não dormiu com ele porque estou aqui. Sendo assim, eu devo deixar Halthorpe para você realizar o seu plano.

Houve um momento de silêncio.

— Talvez exista outra saída. Vamos pensar em con­seguir essa chave sem...

— Não, Phillipa. Parece que não há outra saída. Irei para Eastingham.

— Hugh, por favor, fique. Eu me sentirei mais segura com você aqui, principalmente depois dessas duas mortes.

— Não precisa ter medo. Marguerite, sendo a agen­te da rainha, representava uma ameaça. Mas ela está morta.

— Mesmo assim. Há Aldous e Clare.

— Não lhe farão mal nenhum. E, se você se vir em dificuldade, procure Raoul. Ele é muito bom com a es­pada e inteiramente confiável.

Phillipa segurou a manga da túnica de Hugh.

— Hugh, por favor, não vá.

— A minha permanência aqui só irá atrapalhar nos­sos planos — disse ele, erguendo a mochila do chão e tirando o odre do cabide da parede.

— Hugh... eu o amo! — Phillipa declarou, a voz su­mida. — O que eu disse antes, não importa. Não conse­guirei dormir com Aldous. Fique, por favor.

Hugh fechou os olhos. Seja forte. Você não pode ceder.

— Você deve dormir com ele, Phillipa. Quem sabe, depois de se deitar com ele, você descobrirá os misté­rios do sexo. Isso a ajudará a parar com esse sentimen-talismo, essa tolice de pensar que me ama.

Com o coração apertado, ele viu Phillipa fitá-lo com lá­grimas nos olhos. Antes que ela pudesse dizer alguma coi­sa, caminhou até a porta, escancarou-a e saiu do quarto.

Na tarde seguinte, Aldous vestia-se para o jantar quando bateram à porta do quarto.

— Entre.

Era Edmee, a criada pessoal de lady Clare. A moça forte, de cabelos loiros, disse com seu sotaque de camponesa:

— Lady Clare pede que o senhor vá ao quarto dela, senhor Aldous.

Aldous olhou-se no espelho de prata polida, colocou o solidéu de cetim e ajeitou com cuidado os fartos cabe­los escuros.

— Ela já voltou?

— Sim, amo. Lady Clare desmontou, foi diretamen­te para o quarto, depois pediu vinho e aquela ave... E mandou chamá-lo.

Sim, amo... Duas palavras que Aldous gostava de ouvir, sobretudo quando pronunciadas por uma criada jeitosa.

Prestou atenção em Edmee com aqueles fartos seios, e perguntou a si mesmo por que ainda não havia se deitado com a moça. Após satisfazer-se, Marguerite o desamarrava e ia embora, deixando-o ardendo de dese­jo. Nessas ocasiões ele procurava uma das criadas para aliviar-se.

Suspirou. Clare tinha partido na véspera, bem cedo, dizendo que iria visitar uma amiga e que voltaria den­tro de poucos dias. Dois soldados do rei Louis a haviam acompanhado. Por que retornara tão depressa?

Aldous ficou imaginando se a irmã já estaria a par dos extraordinários acontecimentos da véspera e estre­meceu ao pensar em Marguerite e no que ela poderia ter feito com ele. Com esforço, afastou da mente a ima­gem do cadáver de Istagio, inchado e fétido, e voltou a atenção para a criada.

— Como é mesmo seu nome?

— Edmee, sire.

— Edmee.

A moça tinha mãos grandes, capazes. Ele gostava disso. Porém não lhe agradavam os ombros largos, o queixo reto, os olhos estreitos. Em compensação, aque­les seios...

Sentiu-se inclinado a pedir a Edmee que levantasse a saia, mas se lembrou de Phillipa e sorriu. Phillipa, tão adorável, tão desesperadamente inalcançável. Ele a desejara como louco durante sete anos. Mas naquela noite, finalmente, ela lhe pertenceria.

Na tarde anterior, assim que vira Hugh partir a ca­valo, ele fora ao quarto dela perguntar por que ela não tinha ido ao salão jantar com os outros hóspedes e a encontrara sentada na cama, com os olhos vermelhos e inchados. Phillipa havia dito que tivera uma discussão muito séria com Hugh e que ele tinha partido para não mais voltar.

Aldous tornou a sorrir consigo. Não conseguira dis­farçar sua alegria. Abraçara Phillipa, dissera algumas palavras de conforto, mas em sua mente sucediam-se imagens dela nua, oferecendo-se a ele em completa submissão.

O que eu não daria para ter a chance de reparar meu erro do passado, quando recusei seu amor, em Paris, ela havia dito em Southwark.

Aldous respirou fundo. Sua ligação com Marguerite despertara nele o gosto por castigos eróticos, o que o levara a imaginar Phillipa amarrada, completamente vulnerável e à mercê dele. Muito excitado, ele a convi­dara para ir ao seu quarto naquela noite. Ela havia dito que não tinha condições de se deitar com ele. O tão es­perado encontro de ambos ficaria para a noite seguinte. Muito a contragosto, ele respondera que, se havia espe­rado tanto tempo, poderia esperar mais um pouco.

E isso queria dizer que Phillipa seria sua naquela noite!

Aldous olhou para Edmee e, notando a boca pequena, de lábios cheios e rosados, sentiu uma tentação quase irresistível de pedir a ela que se ajoelhasse. Não iria demorar muito, considerando o estado em que se encontrava. Clare não iria esperar por ele mais que dois minutos.

Não. Seria melhor não aplacar sua luxúria antes de seu encontro com Phillipa. Quanto mais excitado ele estivesse, melhor seria seu desempenho. Haveria mui­tas oportunidades para ele fazer uma tentativa com Edmee.

— Se puder me dispensar, sire, tenho de ajudar...

— Vá — Aldous abanou a mão e foi para o quarto de Clare.

Encontrou a porta aberta e a irmã ainda vestida com o traje de montaria empoeirado que usara na viagem. No braço, levava o maldito falcão.

— Feche a porta — ela ordenou, adiantando-se para fechar as janelas.

— Ele é o espião.

— Ele?...

— Hugh de Wexford ou de Oxford, ou qualquer que seja o nome que esteja usando. Hugh é o maldito espião do rei Henrique.

— Não pode estar falan...

— Eu sabia disso. Desde o instante em que o vi indo sorrateiramente para o porão, desconfiei de que alguma coisa não estava certa com aquele bastardo. Por isso fui até o castelo de Wexford.

— Foi conversar com William de Wexford? Ah, Hugh e Phillipa me disseram que tinham visitado lorde William antes de ir a Southwark.

— Mentira! Lorde William me disse que não vê o filho há anos. Eles não se dão desde que Hugh se armou cavaleiro, ocasião em que deixou o castelo e tornou-se mercenário. William não sabia nem mesmo que Hugh estava casado.

— Então eles mentiram?

— Sim, Aldous — Clare respondeu, impaciente. — Eles mentiram simplesmente porque queriam que você os convidasse para se hospedar em sua casa. Foi um ar­dil! E você, que não pode ver um par de seios sem ficar bobo, acreditou na história deles! Eles mentiram sobre serem simpáticos à causa da rainha.

— Tem certeza?

— Ele mentiu. — Salomé estava muito agitada, e Clare a transferiu para um dos poleiros que havia no quarto. — Aldous, preste atenção. O próprio Richard Strongbow contou a lorde William que ficou tão impres­sionado com o desempenho de Hugh na campanha da Irlanda que o recomendou a Richard de Luci. É para ele que Hugh presta serviços.

— O magistrado do Reino? Ministro e regente de Sua Majestade?

— Ele mesmo.

— Que tipo de serviços?

— Lorde William acredita que ele seja um tipo de atendente de armas, no entanto estou certa de que ele foi mandado para cá com a finalidade de obter informações sobre a rebelião que a rainha Eleanor está preparando.

— E Phillipa?

— O que tem Phillipa?

— Ela também é uma espiã? Clare torceu o nariz com desdém.

— Aquela garota ridícula, ultra educada e pedante? Francamente, Aldous.

— Mas ela me disse que eles visitaram lorde William em Wexford.

— As esposas costumam confirmar o que os maridos dizem. Aposto que ela não está a par do trabalho que ele faz para Richard de Luci. Essas missões exigem se­gredo absoluto. Não duvido que ele a tenha deixado em casa quando esteve em Poitiers, também como espião. Desta vez ele a trouxe para usá-la como isca. Bastou ele colocá-la na sua frente para seu membro enrijecer... E aqui estamos nós.

— Lorde William não quis que você ficasse com ele?

Clare afastou as cortinas da cama enorme e sentou-se nela pesadamente, recostando-se nas almofadas ver­melhas — Não. Tive a impressão de que ele ficou feliz ao me ver partir.

Aldous franziu a testa.

— Pensei que vocês fossem...

— Isso foi há vinte anos. O tempo não pesa tanto para os homens como pesa para as mulheres. Aos ses­senta anos William de Wexford ainda é o homem mais bonito que já conheci. Ele se parece muito com o filho. Alto e com aquele olhar penetrante, ele sempre faz meu coração disparar.

— Nesse caso presumo que você e ele...

— Não que eu não tentasse, porém ele se casou no mês passado com Branchefleur, uma garota de doze anos. A mãe dela olhou para mim e fixou no genro seus olhos de águia. Mesmo assim, se ele quisesse, poderia escapar à noite, mas ele não quis.

Era a primeira vez que Aldous via a irmã tão melan­cólica. Quase teve pena dela.

Subitamente Clare se empertigou e rugiu:

— Tudo por sua culpa, seu tolo! Sua e desse leitãozinho faminto que você tem entre as pernas.

— Leitãozinho faminto?!

— Sim! Foi isso que nos meteu nesta situação! Se você não estivesse tão cego de desejo por aquela bri­lhante bastardazinha a ponto de acolhê-la juntamente com o safado com quem ela se casou...

— Não me venha com essa agora, maninha. Vi mui­to bem seu interesse pelo "safado". Você se recusou a mandá-lo embora do castelo quando lhe pedi para fazer isso.

— Este não é o momento de discutirmos. Temos de resolver um grave problema. Se o agente da rainha souber que recebemos aqui em Halthorpe um espião do rei Henrique e permitimos que ele andasse à vontade por todo o castelo...

— Clare — Aldous interrompeu a irmã, percebendo que ela ainda não sabia sobre Marguerite. — Clare, eu...

Ela se levantou e passou a andar pelo quarto.

— Eu devia ter deixado Hugh aos cuidados dos ho­mens do rei Louis assim que suspeitei dele. Mas não, preferi esconder as armas que Orlando já havia fabri­cado e deixei Hugh, propositadamente, pegar a chave do porão. Cometi um erro, mas ainda está em tempo.

— Clare, ouça...

— E claro que a rainha Eleanor saberá de tudo por seu agente, porém, depois que o espião estiver morto, será mais fácil para nós nos defendermos.

— Clare, não existe mais agente da rainha Eleanor. Ela parou para fitá-lo interrogativamente.

— Não?

— A agente era Marguerite. Ela está morta.

— Marguerite?! Morta? Impossível.

— Ontem, pela manhã, nós a encontramos morta.

Ela tomou veneno depois de matar Istagio. Deduzimos que ela nunca havia matado ninguém e, não suportando viver com o sentimento de culpa, acabou se suicidando.

— Eu... não compreendo! Eu tinha quase certeza de que o agente era... — Clare encostou-se à parede, os olhos parados. — A agente era Marguerite? E por que ela matou Istagio?

— Ele deve ter feito algum comentário, pondo em risco o segredo sobre as armas. Você sabe como ele é.

— Aldous fez o sinal-da-cruz ao lembrar-se do cadáver.

— Como ele era.

— Bom Deus. — Clare abanou a cabeça. — Não faz sentido. Marguerite nunca se interessou por política nem gostava de Eleanor. Além disso, ela era a minha melhor amiga. Não posso acreditar que ela estivesse me espionando. Não pode ser verdade.

— Foi exatamente o que pensei, mas a que outra con­clusão podemos chegar? Pelo menos sabemos que nin­guém irá nos asfixiar enquanto estivermos dormindo.

— Corremos o risco de atrair sobre nós a ira de Eleanor se não lidarmos o quanto antes com Hugh de Wexford. Não apenas isso: podemos ser acusados de traição. Você sabe como o rei Henrique castiga os traidores, Aldous? O melhor que podemos esperar será ficarmos presos pelo resto da vida. Porém há outras pe­nalidades, como a fogueira...

— Jesus! O que vamos fazer?

— Temos de eliminar Hugh de Wexford o mais de­pressa possível. Só Deus sabe o que ele descobriu, es­pecialmente se Istagio foi tão indiscreto. Sabe se Hugh passou alguma informação aos seus superiores? Sabe se ele escreveu alguma carta?

Aldous lembrou-se de ter visto Hugh a cavalo, atra­vessando a ponte e deixando o castelo.

— Clare...

Ela voltou a andar, sempre falando e gesticulando.

— Vamos fazer com que Hugh confesse tudo o que viu e o que sabe. Para isso podemos contar com aquele bando de soldados sanguinolentos. Temos a cadeira de ferro, no porão.

— Clare, Hugh foi embora ontem.

Clare parou imediatamente e olhou para o irmão de um modo que o fez lembrar-se da ave que ela sempre carregava no braço.

— E só agora você me diz isso?!

— Ele e Phillipa tiveram uma briga. Ela afirma que ele foi embora para sempre.

— Você sabe para onde ele foi?

— Não.

Clare fechou os olhos e ficou absolutamente imóvel por um tempo tão longo que Aldous se perguntou se uma pessoa poderia estar morta e continuar de pé.

— Clare, eu sinto muito por não ter dito antes.

— Cale-se, seu imbecil! — ela ordenou, sem abrir os olhos. Ficou assim por mais um instante, mas disse depois em tom firme: — Ouça o que vamos fazer...

— O que você acha que está acontecendo no porão? — Aldous perguntou baixinho a Phillipa, ao final do jantar.

Phillipa parou de comer o pudim de rosas e olhou para o diácono que não se separava dela desde a parti­da de Hugh, ansioso para ter o tão esperado encontro.

— O que você quer dizer com isso?

— Você sabe. Aqueles estrondos. — Aldous tomou um gole de vinho e olhou ao redor, como se receasse ser ouvido pelas pessoas sentadas à mesa. — Hoje, particu­larmente, houve muitos deles.

— Sua irmã me disse que são barris de vinho da adega que rolam do alto da pilha.

Aldous dirigiu a ela um olhar cético.

— Se isso acontecesse uma ou duas vezes, eu até poderia acreditar nisso, mas esses estrondos não me parecem barris caindo.

Phillipa continuou comendo o pudim, pensativa.

— Você deve saber o que se passa no porão. Afinal, foi você quem trouxe Orlando e Istagio para cá.

Aldous deu de ombros.

— Clare me atribui várias tarefas, mas não me con­ta nada sobre elas. Eu já lhe pedi para me deixar ir até lá, porém ela me proibiu de descer. Disse que eu não entenderia. Ela me trata como se eu fosse criança... Mas na ausência dela eu tenho as chaves do castelo, in­clusive a do porão, — Ele bateu no molho sob a túnica, e passou o braço ao redor da cintura de Phillipa. — Você não quer explorar o lugar comigo?

Querendo ganhar tempo, Phillipa comeu mais um pouco do enjoativo pudim com gosto floral.

— Edmee me disse que Clare voltou não faz muito tempo.

— Oh! — Aldous fingiu surpresa e tirou a mão da cintura de Phillipa. — É mesmo? Ela já chegou? E por que não desceu para jantar?

— Deve estar cansada da viagem.

— Sim, deve ser isso. — Ele tomou o restante do vinho. — Nesse caso, ela vai pedir as chaves de volta. Se quisermos descer ao porão, temos de ir agora.

O interesse de Aldous em mostrar-lhe o porão pa­receu a Phillipa muito oportuno. Imaginando que ele estava apenas querendo agradá-la, viu-se tentada a aceitar o convite, que lhe pareceu casual.

Aliás, casual demais para ela ignorar o mau pres­sentimento que a estava deixando inquieta. Era estra­nho ele fazer o convite, sendo que durante semanas es­quivara-se até de perguntas sutis sobre uma possível conspiração contra o rei Henrique.

— Orlando está no porão, claro, mas isso não im­porta — Aldous continuou. — Sei lidar com um velho italiano.

Phillipa lembrou-se de que Orlando estava no po­rão desde manhãzinha para compensar o dia anterior em que não havia trabalhado por causa da morte de Istagio. Estando o italiano no porão, ela considerou, não seria tão arriscado descer até lá com Aldous, pois ambos não ficariam sozinhos naquele lugar isolado e sem janelas. Outro fato a considerar era que se ela não aproveitasse a oportunidade presente de descer ao po­rão com Aldous, só lhe restaria a alternativa de ir ao quarto dele e roubar a chave da porta quando ele esti­vesse dormindo.

— Vamos descer? — o diácono insistiu.

— Vamos. — Phillipa aceitou a mão que ele lhe ofereceu.

À porta de acesso ao porão, Aldous ergueu a túnica, pegou o molho de chaves e tirou dele a chave grande, de bronze. Girou-a na fechadura. Então desceu a escada na frente de Phillipa e abriu a porta do laboratório. Ela o seguiu e admirou-se de não sentir o mau cheiro que havia sentido quando estivera ali com Hugh. Entrando no laboratório, viu que a fornalha estava apagada.

Orlando estava curvado sobre a mesa de trabalho e surpreendeu-se ao vê-los.

— Senhor Aldous... Lady Phillipa.

— Queremos dar uma olhada no seu laboratório, se você não se importar — explicou Aldous.

— Mas se lady Clare descobrir...

— Minha irmã autorizou-me a vir até aqui para ver em que você está trabalhando.

— Verdade? — Orlando perguntou a Phillipa.

— Sim — ela confirmou, cruzando os dedos atrás das costas.

Doía-lhe mentir para o amigo. Mas precisava ter provas contra a rainha.

— Buono. E um prazer mostrar meu trabalho.

Sobre a grande mesa havia inúmeros objetos de fer­ro fundido na forma de tubo, cada um com um cabo. Na outra extremidade estava uma vasilha cheia de boli­nhas de ferro, como a que Hugh havia encontrado perto do poço.

— O que são esses objetos? — Aldous perguntou.

— São armas de mão. E aquelas são bombas. — Orlando apontou para a gaiola de metal, agora cheia de objetos de vários tamanhos, a maioria redondos, saindo de dentro deles um cordão comprido.

— Como funcionam? — Phillipa quis saber.

—É simples. Quanto mais duro o recipiente que contém o pó, mais violenta a explosão. Na China eles usam tubo de bambu, às vezes globos de ferro. Istagio — Orlando persignou-se —, fez na sua fundição de sinos muitas formas de recipientes, e eu ver qual funciona melhor. Eu encher cada bomba com mistura de salitre, enxofre e carvão de lenha. Istagio fechar elas muito bem.

— E aqueles cordões compridos, para que servem?

— Si, eu molhar os cordões com álcool, o fluido da destilação, e um pouco de salitre. O cordão queima de­vagar até o fogo encontrar com o pó. Daí... — Ele abriu as mãos com os dedos bem abertos. — Estrondo alto.

— Ah, os estrondos que temos ouvido são provocados por essas bombas?

Antes de responder, Orlando viu Aldous mexendo nas armas da mesa de trabalho e bateu na mão dele.

— Não tocar, por favor! Muito perigoso. Eu carregar todas para teste. Meu assistente, em Roma, testar uma, ela partir e matar ele, a palha pegou fogo e... não mais laboratório.

— Ah. — Aldous afastou-se da mesa. Orlando voltou-se para Phillipa.

— Os estouros são dos testes com armas de mão. As bombas eu não poder testar aqui. Só lá fora, quando eu terminar. Estouro muito violento.

Phillipa olhou para a gaiola de ferro fechada com corrente e um cadeado e refletiu que seria muito di­fícil roubar uma das bombas. As armas de mão esta­vam mais acessíveis. Quem sabe poderia esconder uma delas numa das pregas da túnica. Aproximando-se de Orlando, perguntou:

— Essas armas de mão também estão cheias com o pó preto?

— Como você sabe que o pó é preto? — Aldous indagou.

— Eu...

Orlando adiantou-se e tirou a tampa de uma vasilha que continha a mistura de enxofre, salitre e carvão.

— Ela viu este pó.

— Mas estava coberto.

— Não estava coberto quando ela veio aqui primeira vez.

— Eu não...

— Para funcionar, a arma precisa ter um pouco des­te pó — Orlando a interrompeu e pegou uma das ar­mas. — Muito pó e bum! Todas as armas de mão estão com a carga de pó preto e também com bolinha de ferro, para teste. No orifício, aqui em cima, encosto um destes arames em brasa.

Ele virou-se para o braseiro de metal onde estavam diversos pedacinhos de arame incandescentes, pegou um deles com uma tenaz e colocou perto da arma, po­rém sem encostar nela.

— Quando o arame toca no pó, bum! A bolinha de ferro sai voando tão rápido que nem dá pra ver ela, e faz um buraco no porco ou na cabra. Mata muito de­pressa.

Phillipa arregalou os olhos.

— Você faz testes em animais vivos?

— Só uma vez. Lady Clare pediu. Queria ver o que acontecia quando a bolinha entrava no animal. Mas agora só testar armas no poço.

— Ah, são estes sons que todos nós ouvimos.

— Si. Arma perigosa, faz muito mal. Tem um grande problema: um tiro só e tem de carregar tudo de novo. Mais fácil atirar com bestas e flechas que tem recar­ga muito mais rápida. Mas eu trabalho para encontrar solução.

— Fascinante, não?

Ao ouvir a voz feminina, Phillipa virou-se depres­sa e viu Clare à porta, usando uma túnica marrom, de montaria.

Aldous nem piscou, tampouco pareceu surpreso com o aparecimento da irmã. Com toda certeza já esperava por ela.

Um calafrio percorreu o corpo de Phillipa. Mantenha-se alerta. Conserve a calma e a presença de espírito.

— Você não quer testar uma das armas, Phillipa? — Clare indagou, entrando no laboratório. Tirou de Orlando a arma que ele segurava e a ergueu.

— Já vim aqui algumas vezes para fazer testes. Acho estimulante.

— Eu não...

— Eu gostaria de tentar! — disse Aldous. Clare dirigiu ao irmão um olhar de desprezo.

— Talvez mais tarde, Aldous. Quero que Phillipa sin­ta o extraordinário poder e o potencial destas armas.

Ela estendeu a arma para Phillipa, mas Orlando a segurou pelo braço.

— Esta não, milady. Esta é do tipo que faz esplosione. Para testar ela eu preciso acender com o rastilho lento e ficar bem longe, senão pode estourar.

— Ah, não queremos que nada aconteça à nossa querida Phillipa, não é mesmo? Que arma é segura para ela usar?

Orlando pegou outra arma e a mostrou a Phillipa.

— Quer tentar? — perguntou, sem ter percebido o clima pesado que se fizera com a chegada de Clare.

Phillipa aceitou a arma. Segurou com a mão trêmula o cabo em forma de bigorna, bem parecido com o punho da adaga turca de Hugh.

— O que eu faço?

— Pegue isto — Orlando entregou-lhe a tenaz, já com o pedacinho de arame incandescente, e levou Phillipa até o poço.

Clare e Aldous seguiram os dois.

— Segure arma para baixo e encoste o arame em brasa neste orifício — Orlando a orientou.

— Fique bem firme — Clare advertiu Phillipa. — Quando essa coisa explode dá um coice que parece de mula.

— Eu abraço você — Aldous ofereceu-se e ficou atrás de Phillipa, segurando-a pela cintura.

— Segure firme para arma não cair no poço — pediu Orlando.

— Farei o possível.

Phillipa introduziu o pedacinho de arame no orifício. Clare e Orlando taparam os ouvidos. A arma disparou com um rápido clarão e retrocedeu, jogando Phillipa contra o peito de Aldous. O estrondo ressoou pelas pa­redes do porão e uma fumaça acre pairou no ar.

Orlando sorriu ao pegar a arma e a tenaz que Phillipa segurava.

Meio surda por causa da explosão, Phillipa virou-se para Clare que estava dizendo:

— Valeu a pena todo este trabalho só para ouvirmos a daminha gritar como uma criança...

Ela havia gritado?, perguntou-se Phillipa, aturdida.

Aos poucos sua audição voltou ao normal. Clare afastara-se com Orlando e, quando chegaram à porta do laboratório, ela disse ao italiano:

— Por hoje chega, Orlando. Você trabalhou até ago­ra. Suba para jantar. Na verdade, você passou quase o tempo todo neste porão desde que veio para Halthorpe. Talvez queira ter uns dias de descanso para se refazer do que aconteceu ao pobre Istagio.

— Grazie, milady, mas tristeza diminui quando tra­balho.

— Há outras maneiras de combater a tristeza, Orlando. Você tem trabalhado demais. Uns dias de fol­ga lhe farão bem.

— Mas...

— Você precisa de descanso. — Clare levou Orlando para fora do laboratório. — De fato, insisto para que interrompa o trabalho por algum tempo. Buona notte.

— Vou subir com ele — resolveu Phillipa, fazendo menção de sair dali também.

Aldous a segurou por trás e a manteve junto dele.

— Ainda não — ele sussurrou-lhe ao ouvido.

Com o coração batendo forte, ela tentou se separar do diácono, porém seus esforços foram inúteis. Estava completamente imobilizada, sem poder alcançar a pe­quena adaga.

Se você se encontrar em dificuldade, procure Raoul. Ele é muito bom com a espada e inteiramente confiável.

Phillipa ia gritar para chamar Orlando e pedir-lhe para chamar Raoul, mas Aldous cobriu-lhe a boca com a mão.

Clare fechou a porta e voltou-se para Phillipa.

— Por que está tão ansiosa para ir embora? Temos mais algumas demonstrações reservadas para você. — Ela se dirigiu ao irmão e apontou as armas. — Todas estão carregadas?

— Foi o que Orlando disse. Ele as preparou para serem testadas.

— Muito conveniente — Clare passou a mão cheia de anéis pelas armas de uma das fileiras. — Vejamos esta. Creio que a usei uma vez. Estou certa de que não explodirá no meu rosto.

Com a arma na mão direita e a tenaz na esquerda, ela pegou um dos arames incandescentes.

— Pode tirar a mão, Aldous.

Assim que pôde abrir a boca, Phillipa encheu os pul­mões de ar e gritou:

— Socorro! Alguém me ajude! Raoul, estou no porão!

— Ninguém pode ouvi-la. Eles só ouvirão uma oca­sional explosão. Um estrondo a mais não causará a menor surpresa. — Aproximando-se de Phillipa, Clare encostou a ponta da arma na cabeça dela e ordenou ao irmão: — Pode amarrá-la, Aldous. Eu sei que você esta­va ansioso para fazer isso.

Obviamente, ele viera preparado, pois apareceu diante de Phillipa com um cordão trançado, de cetim, desses usados para prender cortinas, e amarrou as mãos dela às costas.

— Ouvi Orlando contar sobre o porco e a cabra

— Clare continuou. — Ele me deixou disparar a arma. Foi uma experiência excitante segurar isto apontado para uma criatura viva e introduzir o arame incandes­cente neste pequeno orifício.

Aldous, que estava atrás de Phillipa, tornou a abra­çá-la pela cintura. Ela sentiu sobre a cabeça a respi­ração dele, quente e acelerada, nas costas o volume do molho de chaves que ele ainda trazia pendurado ao pescoço, e mais abaixo uma pressão diferente, assus­tadora, que a deixou gelada, visto encontrar-se inteira­mente à mercê dele.

— O efeito de atirar numa dessas criaturas vivas é realmente notável. Pode-se sentir a carne se abrindo e ouvir os ossos explodindo acima do berro do animal. Ele cai instantaneamente, claro, tem convulsões, depois fica imóvel. Os miolos do porco foram parar no muro. Já a cabra ficou sem a cabeça.

Phillipa fechou os olhos e respirou fundo. Mantenha o autocontrole. O pânico é o seu pior inimigo.

— Ainda não testei esta arma em um ser humano. Falta de oportunidade.

Phillipa lembrou-se do que Hugh tinha dito sobre Aldous e Clare: Eles não têm estômago para matar. Os dois seriam mesmo tão inofensivos ou seriam capazes de cometer um assassinato se a vida deles estivesse ameaçada?

— Vá à frente.

Phillipa abriu os olhos e viu Clare apontando a arma para o fundo do porão, onde ficavam a cadeira de ferro e a sachentage.

— Não... — Phillipa protestou e contorceu-se, encostando-se mais a Aldous.

— Ande logo com isso, Aldous! — Clare ordenou, mantendo a arma apontada para a cabeça de Phillipa.

Ele agarrou Phillipa pelo pescoço, quase sufocando-a, e a arrastou até os terríveis instrumentos de tortura. Enchendo-se de coragem, ela perguntou:

— Por que estão fazendo isto? Nunca lhes fiz mal!

A expressão dela era de pura inocência. Afinal não fazia idéia do que aqueles dois sabiam a respeito dela e de Hugh.

— Sim, é verdade que você não merece um mau tra­tamento. Sabemos que você não nos fez mal nenhum. Entretanto, não podemos dizer o mesmo do seu marido. — Clare ergueu a arma novamente. — Aldous, coloque-a na posição.

Ele arrastou Phillipa até a sachentage.

Meu Deus, não!, ela pensou, aterrorizada.

Aldous a colocou sob a viga, pegou o círculo de ferro cheio de pregos na parte interna, abriu-o e prendeu-o ao redor do pescoço de Phillipa.

Por sorte, as pontas perfurantes mal a arranhavam, porque o pescoço dela era fino e o instrumento certa­mente tinha sido projetado para pessoas maiores.

— Passe a chave na fechadura do aro — Clare orde­nou. — E a chave menor, de ferro, com a parte de cima quadrada.

Não entre em pânico. Não entre em pânico!, Phillipa ficou repetindo mentalmente, o coração aos saltos, o suor escorrendo sob a combinação e a túnica.

— Pense no que você está fazendo, Aldous — ela murmurou.

— Estou pensando. — Ele deu um sorriso e baixou a cabeça para beijar Phillipa. — Nunca a vi tão linda.

Ela desviou para o lado e gritou de dor, sentindo as pontas de ferro lhe ferirem o pescoço.

— Coisinha tola. Você se machucou e está sangrando — disse Aldous, aborrecido, e tocou de leve o ferimen­to. — Tenha cuidado. Nós não pretendemos machucá-la, minha querida. Queremos apenas a sua cooperação num assunto de extrema importância e graves conse­qüências.

— Que tipo de cooperação?

Clare abaixou a arma, uma vez que Phillipa estava imobilizada, e disse:

— Seu marido deixou Halthorpe, ontem, e não sabe­mos para onde ele foi. Imaginamos que você saiba do seu paradeiro. Queremos que você escreva para ele e o convença a voltar.

— Por quê?

— Vamos dizer que temos inimigos e descobrimos recentemente que seu marido está trabalhando para eles.

Eles sabem!

— Sabemos que você não faz idéia de que ele tem espionado...

— Chega Aldous! — Clare gritou. — Se você falar demais, seremos obrigados a matá-la com o marido, e eu sei que você tem planos para ela.

— M-matar... nós dois?

— Você, não — Clare a tranqüilizou. —Apenas o seu marido.

— Vocês não fariam isso! Não são assassinos!

— Talvez, não. Aqueles franceses brutos, que ficam nas barracas e andam por aí, são capazes não apenas de mandar Hugh de Wexford para o Criador como tam­bém conseguirão arrancar dele informações preciosas de maneira nada gentil. — Clare lançou um olhar ma­lévolo para a cadeira de ferro com o suporte para fogo.

Desesperada, Phillipa esquadrinhou a memória, buscando um meio de salvar Hugh.

— Que tipo de informação? — ela perguntou, pen­sando em arranjar uma resposta plausível para sa­tisfazer aqueles dois, sem comprometer a missão ou prejudicar o rei. — Talvez eu possa dizer o que vocês querem saber.

Clare abanou a cabeça.

— Você não sabe nada sobre esses assuntos.

— E se eu souber? E se eu for a espiã? Vocês não consideraram essa possibilidade só porque eu sou mulher...

Clare a interrompeu com uma sonora risada.

— Você não anda por aí sorrateiramente, procuran­do descobrir nossos segredos. Não foi enviada a Poitiers um ano e meio atrás para espionar a rainha. Devo di­zer que admiro a sua inclinação para se autossacrificar, mas a verdade é que acho a sua atitude patética.

— Especialmente porque Hugh tem usado e menos­prezado você — Aldous completou. Não sei por que vo­cês brigaram, porém eu vi que ele a deixou em prantos. Você mesma me disse que ele nunca a amou. Durante todo esse tempo, ele tem mentido para você. Ele nunca lhe disse qual era seu verdadeiro trabalho e explorou você para ter acesso à minha casa.

Com delicadeza tão grande que fez Phillipa estreme­cer, Aldous afastou do rosto dela as mechas de cabelo molhadas de suor.

— Seu marido a usou, Phillipa, tratou-a com despre­zo. Mas ele irá embora e você será minha. Eu a tratarei como uma princesa. Montarei para você uma casa sun­tuosa em Southwark para ficarmos perto um do outro. Você terá criados, jóias, os trajes mais finos que houver. Nada lhe faltará. — Encostando os lábios nos dela ele sussurrou: — Você é e será a única. A única, Phillipa!

Ele a beijou. Toda arrepiada, Phillipa comprimiu os lábios para evitar que ele introduzisse entre eles a lín­gua repulsiva que, para ela, lembrava uma lesma.

— Escreva para seu marido e me diga para onde devo mandar a carta — ordenou Clare. — Assim que ele voltar a Halthorpe e ficar aos nossos cuidados, eu a libertarei. Você permanecerá com Aldous e nenhum mal lhe acontecerá, desde que nunca diga uma só pala­vra a ninguém sobre o que se passa aqui. Quando lhe perguntarem sobre seu marido, você dirá que ele mor­reu afogado no Tâmisa e o corpo nunca apareceu.

— Não! Não farei isso — Phillipa protestou.

— E assim que você reage depois de tudo que ele fez para você? — Aldous perguntou, atônito. — Podemos ficar juntos, Phillipa, só você e eu. Pense nisso!

Era uma proposta revoltante demais para ser con­siderada.

— Podem fazer comigo o que quiserem, mas não vou chamar Hugh de volta para ser torturado e morto.

— Nesse caso a deixaremos aqui, trancada, com o pescoço preso nessa argola dia e noite — disse Clare em tom gélido. — Suponho que terei de vir aqui de vez em quando para deixar você se aliviar e, se preciso, trocar de roupa. Afinal, devemos considerar a parte estética. A não ser isso, você não terá descanso e acredito que ficar aí de pé, será muito doloroso. Ah, você não terá comida nem água até concordar em escrever a carta que vou lhe ditar.

— Não escreverei carta nenhuma! Podem me matar agora, se quiserem.

— Você mesma disse que não somos assassinos, lembra-se? É claro que se eu quiser vê-la morta, será muito fácil encarregar um dos soldados franceses desse propósito. Eles fazem trabalho desse tipo com surpre­endente entusiasmo. Se eu lhes der liberdade de ação, eles se divertirão com você antes de...

— Não, Clare! — Aldous segurou o braço da irmã. — Você disse que eu poderia ficar com ela. Você prometeu!

— Tire essa mão de cima de mim, seu idiota! — Clare zangou-se. — Estamos apenas conversando. Se eu qui­sesse matá-la, ela já estaria morta. Prefiro deixá-la aí até ela decidir cooperar conosco. Ou então deixá-la morrer em lenta agonia. Ela escolhe. Duvido que você suporte ficar uma semana sem beber água, sua bastardazinha.

— Pelo amor de Deus, Phillipa, escreva a carta! — Aldous implorou. — Não suporto pensar em você se destruindo desse jeito, especialmente por um tipo como ele. Ah, Phillipa você está encantadora usando essa túnica cor-de-rosa. Quando eu a vi em Londres, naquela ponte, você usava essa mesma roupa. Eu sei que aquele encontro não foi acidental. Hugh a levou até lá esperando que eu a visse porque ele sabia que se eu a reencontrasse, faria tudo para reconquistá-la. — Abaixando a voz ele acrescentou: — Posso tirá-la daqui. Talvez esta noite, quando todos estiverem dormindo.

— Esta noite, não, Aldous. — Clare, que tinha ouvi­do as palavras arrebatadas do irmão, foi até ele e tirou por cima de sua cabeça a longa corrente de ouro com as chaves, passando-a pelo próprio pescoço. — Será mais prudente deixar tal visita para mais tarde. Quem sabe daqui um ou dois dias. Se lady Phillipa teimar em não escrever a carta, eu lhe darei a chave do porão, mas não da sachentage. Não quero que ela fuja. Se você a deseja, terá de possuí-l de pé.

Deus do Céu, ela não é humana!, Phillipa pensou.

— Diga-lhe adeus, Aldous. Não suporto ficar aqui nem mais um instante. Voltarei ao toque das matinas para que ela faça as suas necessidades.

Aldous ficou mais um instante agradando Phillipa e lhe dizendo o que pretendia fazer quando estivessem juntos. Clare deixou a arma sobre a mesa, apagou as lan­ternas e saiu do laboratório. Aldous deu em Phillipa um beijo de boa-noite e apressou-se para alcançar a irmã.

A dor pode ser superada. O segredo é colocar-se aci­ma dela, como se você flutuasse no ar, observando aqui­lo como se estivesse acontecendo com outra pessoa.

As palavras de Hugh ficaram ressoando na mente de Phillipa como uma ladainha interminável para confor­tá-la e dar-lhe forças. Quantas horas ou dias fazia que estava ali, presa, com aquele diabólico instrumento de tortura ao redor do pescoço? Na semiescuridão, sem ver o sol nascer e se por, sem acompanhar o ritmo da vida ao seu redor, era impossível avaliar a passagem do tempo. A dor nas pernas, nas costas, no pescoço, era terrível, a fome e a sede a estavam deixando enlouquecida.

No começo, ela havia tentado contar as visitas de Clare ao porão, para levá-la ao pequeno cômodo onde ficava a privada. Porém essas visitas, que inicialmen­te eram regulares, foram se tornando mais espaçadas. Com certeza a intenção de Clare era deixá-la confusa e perder a noção de tempo. Toda vez que ela pergunta­va se era dia ou noite, a resposta de Clare era que ela poderia descobrir por si mesma se escrevesse a carta a Hugh.

A necessidade de dormir era desesperadora. Ao mesmo tempo, ela era obrigada a lutar contra o sono. Quando cochilava, as pontas de ferro entravam em seu pescoço, e ela acordava com os próprios gritos.

Certa vez, chegou a dormir por um período mais lon­go. Sonhou com um demônio chifrado com um colar do qual pendiam várias chaves. O demônio tinha dentes afiados e a mordia no pescoço, tentando arrancar-lhe a cabeça para devorá-la...

Não era de admirar que sua imaginação criara um demônio para atormentá-la, pois, o que era aquele su­plício, senão o inferno na Terra? Para aumentar-lhe o tormento, Clare havia deixado uma jarra de água no chão. Mesmo não podendo ver a jarra porque estava escuro, ela sabia que ali havia água, mas era-lhe im­possível pegá-la para beber. A água era apenas uma amostra da maldade de Clare e do prazer que ela sen­tia em torturar sua vítima.

Phillipa cerrou os olhos com força. No passado, não fora uma pessoa muito piedosa. Agora descobrira que o sofrimento, como tio Lotulf sempre dizia, aproximava as pessoas de Deus.

Assim, ela agradecia a Deus de todo coração sempre que via Clare, e não Aldous, se aproximando da sachentage.

Quem sabe daqui um ou dois dias, Se você a deseja, terá de possuí-la de pé.

Apesar de toda a sua confusão mental, Phillipa sa­bia que estava ali fazia mais de dois dias. De Aldous, felizmente, não havia nem sinal. Só de pensar nele, um ser desprezível que estava ajudando a irmã a torturá-la, sentia nojo.

Já as lembranças de Hugh ajudavam-na a suportar aquele tormento. Se fechasse os olhos e pensasse nele com firmeza, sentia sua presença. Ele a abraçava e nes­se abraço via-se transportada, pairando acima de sua angústia, além daqueles limites físicos, observando a mulher ali aprisionada como se não fosse ela e, sim, outra pessoa.

A porta rangeu.

Phillipa abriu os olhos e percebeu que estava com a cabeça tombada para o lado. Endireitou-a e estremeceu de dor. Olhou na direção da porta aberta e, vendo a si­lhueta de uma pessoa mais alta e mais corpulenta do que Clare, sentiu o estômago revolto.

— Meu Deus, não! — ela murmurou. — Por favor, ele não...

— Milady?

A voz era de mulher, e Phillipa reconheceu o forte sotaque do francês de Poitiers.

— Edmee?! — perguntou, aliviada.

— Milady, onde está a senhora?

— Aqui no fundo! Traga a lanterna.

A criada andou devagar pelo laboratório atulhado, viu o desenho traçado no chão de terra batida e arre­galou os olhos ao ver Phillipa amarrada e com aquela argola de ferro ao pescoço.

— Meu Deus! O que é isto?! Milady, por piedade! Foi lady Clare quem fez isso com a senhora?

— Sim.

— Por quê? Misericórdia!

— Ela descobriu alguma coisa sobre meu marido. — A voz de Phillipa estava rouca e sumida. — Agora ela quer matá-lo. Por favor, pegue a jarra que está no chão. Preciso beber água. Edmee, há quanto tempo es­tou aqui?

— Deixe-me pensar. — Edmee colocou a lanterna no chão, pegou a jarra e levou-a aos lábios ressecados de Phillipa.

Ela bebeu com sofreguidão, molhando o queixo e a roupa.

— Faz quatro noites que eu fui ao seu quarto e a se­nhora não estava lá. Lady Clare me disse que a senho­ra tinha deixado Halthorpe. Achei estranho porque a senhora não se despediu de mim. Mais estranho ainda foi encontrar todas as suas roupas no quarto.

— Quatro noites... E que parte do dia é agora?

— E muito cedo. O sino da capela ainda não tocou a primeira hora. Então faz três dias completos e quatro noites que a senhora está aqui.

— Por que desconfiou que eu estava no porão?

— Perguntei ao senhor Orlando por que ele não es­tava trabalhando, e ele me disse que lady Clare tinha dado ordens para ele não voltar ao laboratório por uns dias. Aí eu me lembrei que a senhora sempre fazia per­guntas sobre os estrondos que vinham do porão e nun­ca acreditou nessa história de barris de vinho caindo.

— Muito obrigada! Você pode desamarrar as minhas mãos?

— Naturalmente. Oh, pobrezinha!

Enquanto desamarrava os pulsos de Phillipa, Edmee continuou a falar.

— Consegui a chave do porão ainda há pouco. Eu disse a lady Clare que ia lhe preparar um delicioso ba­nho. Assim que ela tirou a corrente do pescoço, as rou­pas, e entrou na banheira, peguei as chaves.

— Você conseguiu as chaves?! — Pela primeira vez Phillipa notou a corrente de ouro ao redor do pescoço de Edmee. — Oh, Edmee, foi Deus quem a enviou para me salvar!

— Lady Clare só tira a corrente do pescoço quando toma banho. Eu a deixei na banheira, dei uma desculpa e vim correndo para cá. Mas tenho de voltar logo.

— Por favor, me tire daqui antes de ir embora!

— Qual é a chave?

— E uma bem pequena, de ferro, com a parte de cima quadrada.

Edmee ajoelhou-se perto da lanterna que tinha co­locado no chão e procurou no molho. Abanou a cabeça, agoniada.

— Lamento, milady, não está aqui!

Phillipa gemeu. Clare devia ter tirado a pequena chave, porque pretendia entregar a corrente a Aldous e não queria correr o risco de ele deixá-la fugir. Bem, qualquer que fosse o motivo, a chave não estava ali. Ela continuaria presa, e certamente Aldous viria fazer sua visita.

— Edmee, por favor, procure Raoul d'Argentan e conte-lhe o que aconteceu. Só ele poderá fazer alguma coisa por mim.

— Ele não está mais no castelo, milady.

— Não?!

— Foi embora ontem e deixou para trás a esposa, aquela megerazinha.

— Oh, não... Edmee, só posso confiar em você.

— O que a senhora quer que eu faça?

— Você reparou naqueles objetos sobre a mesa e na­queles que estão na gaiola de ferro?

— Sim... O que são?

— Armas novas e terríveis que explodem. Você viu aquela pequena demonstração feita por Istagio. Mas estas armas são muito mais violentas. Orlando cha­ma aquelas da gaiola de bombas. Elas podem destruir muitas pessoas ao mesmo tempo. Os objetos que estão sobre a mesa são armas de mão e atiram bolas de ferro com incrível velocidade. Matam na hora.

— Meu Deus!

— Pois bem, quero que você pegue uma das armas de mão e leve ao quarto de lady Clare. Aponte a arma para ela e exija a chave da sachentage. Vou explicar como a arma funciona.

— Não posso fazer isso, milady. Peça qualquer outra coisa!

— Edmee, eu lhe imploro. Você não terá de atirar. Será apenas uma ameaça.

— Não posso. Deus me livre! — Edmee torceu ner­vosamente as grandes mãos. — Se sir Hugh estivesse aqui...

— Agradeço a Deus por ele não estar aqui. Se ele voltar ao castelo, lady Clare pretende torturá-lo e de­pois matá-lo.

— Deve haver outra saída.

— Você sabe montar, Edmee?

— Já montei em mula.

— Ótimo. Fritzi é uma égua mansinha. Você a encon­trará na penúltima baia do estábulo, à direita. Diga ao cavalariço que a dona da égua pediu-lhe para encilhá-la...

 

— Sir Hugh?

Hugh virou-se. A velha cozinheira de Joanna estava à porta da sala de estar.

— Sim, Ethelwyne?

— Uma mulher acaba de chegar e deseja vê-lo. Disse que veio de Halthorpe.

Hugh beijou os cabelos sedosos da sobrinha que es­tava em seu colo e a entregou para a mãe.

— Vou ver quem é — disse com um suspiro, pedindo licença.

Hugh encontrou a corpulenta criada pessoal de Clare sentada num banco de pedra no jardim dos fun­dos da casa.

— Edmee! O que faz aqui? — perguntou, surpreso. A criada levantou-se.

— Lady Phillipa me mandou aqui. A primeira men­sagem é para o senhor ir a Westminster pedir a... lorde Robert?

— Lorde Richard.

— Isso! É para o senhor pedir a lorde Richard mandar muitos homens armados ao castelo Halthorpe imediata­mente. Ela viu as armas terríveis que o senhor Orlando está fazendo. Eu também vi. Isso precisa parar.

— Mas se Clare e Aldous virem um destacamento se aproximando, com certeza esconderão as armas ou as...

— Não. Eles não podem entrar no porão, pois eu es­tou com a chave. — Edmee puxou a corrente de ouro com o molho de chaves que estava sob a túnica.

— Por Cristo! Como Phillipa conseguiu essa corrente?

— Eu as peguei — Edmee disse com orgulho.

—Muito bem! Dê-me as chaves. Irei para Westminster assim que selar meu cavalo.

— Não, sir. — Edmee fechou a mão ao redor das cha­ves. — Há outra mensagem. Lady Phillipa disse que o senhor não pode nem se aproximar do castelo. Aqueles soldados franceses vão torturar o senhor naquela ca­deira de ferro e depois vão matá-lo.

Hugh observou Edmee, que mordia o lábio e torcia as mãos.

— Por que lady Phillipa a mandou até aqui? Por que ela não veio pessoalmente?

— Ela vai ficar furiosa quando souber que eu lhe contei isso, mas diante das circunstâncias...

— Diga logo!

— Lady Phillipa está presa no porão com aquela coi­sa no pescoço. Aquela com pontas de ferro.

— A. sachentage?!

Edmee confirmou balançando a cabeça.

— Faz três dias e quatro...

— Jesus! — Hugh passou as mãos entre os cabelos. — Por que não veio me avisar há mais tempo?

— Só fiquei sabendo disso nesta manhã. Lady Clare e mestre Aldous prenderam lady Phillipa naquela coi­sa um dia depois que o senhor deixou o castelo. Eles querem que ela escreva para o senhor voltar, mas lady Phillipa disse que não vai fazer isso porque sabe que eles querem torturar e matar o senhor.

Hugh cobriu o rosto com as mãos. Phillipa...

— Eles estão dando água para ela?

— Não. Eu lhe dei um pouco esta manhã. Mas ela não está bem. Imagino que não resistirá mais dois dias.

Hugh praguejou. Rápido de raciocínio, calculou que levaria cerca de dois dias para lorde Richard organizar um forte ataque ao castelo Halthorpe. Até lá, Phillipa estaria morta. Era esse o objetivo dela. Decidira morrer em lenta agonia para salvá-lo, apesar de tudo o que ele lhe havia dito.

Poderia haver maior declaração de amor?

E ele a abandonara, dissera que Aldous e Clare eram inofensivos. Tudo porque não sabia lidar com os senti­mentos que ela despertava nele. Fugira covardemente, deixando Phillipa desamparada.

Meu Deus, o que eu fiz?

— Hugh?

Ele sentiu alguém lhe tocar o ombro. Era Graeham.

— O que houve para você dar aquele grito?

— É Phillipa. Ela está com problemas. — Hugh di­rigiu-se à criada. — Edmee, vou a Halthorpe com você de qualquer maneira. Seria possível eu entrar no porão sem ser visto?

— Talvez. Mas o senhor deve vestir-se como um cam­ponês e não pode montar aquele seu belo cavalo.

— Isso não é problema.

— E eu, o que posso fazer? — Graeham prontificou-se.

— Reúna todos os homens que puder e me sigam até o castelo. Bons homens, Graeham, e fortemente armados.

— Considere a tarefa realizada.

— Espero entrar no castelo discretamente e chegar até Phillipa sozinho. Mas se eu conseguir tirá-la de lá, vou precisar de bons músculos garantindo a retaguar­da. Desta vez não a deixarei. Não irei a lugar nenhum sem ela.

 

A porta rangeu.

Phillipa gemeu, assustada e abriu os olhos. A dor no pescoço era muito forte. Que lugar era aquele?

Deus do Céu, o porão. A sachentage.

Alguém estava entrando. Clare? Não podia ser. Ela não tinha a chave e devia estar furiosa com o desapare­cimento da corrente e da criada.

Phillipa segurou no suporte de ferro da parede e ergueu um pouco o corpo. Graças a Deus estava com as mãos livres. Quem teria entrado no porão? A vela da lanterna que Edmee tinha deixado no chão estava quase no fim.

A figura era alta, muito mais alta do que Edmee e tinha ombros largos.

Meu Deus, eu imploro que não seja Aldous!

Não podia ser ele, claro. Ele estava sem a chave da porta.

— Phillipa?

Parecia a voz de Hugh. Não, ela devia estar imagi­nando coisas. Outra pessoa também entrou no porão e fechou a porta. O homem aproximou-se. Não era Hugh. Usava calças grosseiras e um manto remendado com capuz. Roupas de camponês.

— Quem está aí?

O homem descobriu a cabeça, mostrando o rosto. Sua expressão era de horror. — Oh, meu Deus! Phillipa...

— Hugh? Não! O que está fazendo aqui?! Edmee não lhe disse?

— Eu não poderia deixá-la aqui.

— Vá, Hugh, por favor, os soldados de rei Louis irão matá-lo!

— Eles não farão isso — afirmou Edmee, que estava atrás de Hugh.

Ele se virou e viu que a criada estava com o braço estendido, apontando alguma coisa para ele.

— Não! — Phillipa gritou.

Um rápido clarão saiu da arma que Edmee segurava, seguido de um estouro e uma nuvem de fumaça. Hugh caiu para trás com um gemido, a testa ensangüentada, e ficou imóvel.

Phillipa gritou o nome dele diversas vezes e come­çou a soluçar. Lágrimas lhe escorriam pelo rosto e pelo pescoço.

Edmee aproximou-se de Phillipa e comentou, olhan­do admirada para a arma que segurava:

— Incrível.

— Meu Deus! Edmee, por que você fez isso? — Phillipa perguntou.

— Você ainda não adivinhou? Não é você que todos consideram tão inteligente? — A voz de Edmee esta­va completamente mudada. Ela perdera o sotaque de camponesa e falava o mais perfeito e refinado francês normando. — Suponho que este castigo tenha afetado sua capacidade mental. Não, não foi isso. Antes de fi­car presa, você demonstrou que não era tão esperta. Por exemplo: Você acreditou que Marguerite du Roche tinha assassinado Istagio, o idiota, porque viu aquelas meias pretas de seda e o chicote.

— Foi você! — Phillipa exclamou, soluçando. Edmee, ou qualquer que fosse o nome dela, era a agente da rainha Eleanor!

— A criada pessoal de lady Clare não pôde acompa­nhá-la de Poitiers para a Inglaterra porque passei a lhe dar doses pequenas e freqüentes de acônito, e ela come­çou a ter febre, calafrios e a enfraquecer. Isso a afastou do emprego e ocupei o lugar dela. Que posição poderia ser melhor para vigiar lady Clare e observar suas ativi­dades do que trabalhar como sua criada pessoal?

Fatos e cenas vieram à mente de Phillipa como se ela relembrasse um pesadelo. Edmee agindo nas sombras, durante semanas, tudo vendo, tudo ouvindo. Fazendo-se passar por piedosa, porém estimulando o desejo de Istagio, levando-o a cometer o erro de impressioná-la com aquela demonstração com o pó preto. Naquela mesma noite, ela fora ao quarto dele e o assassinara usando o chicote e as meias pretas de Marguerite. Logo depois envenenara Marguerite e escrevera aquele bi­lhete de arrependimento, usando o código da rainha.

Eu devia ter entendido que Marguerite não era a agente da rainha e que também tinha sido assassinada, Phillipa pensou. Em voz alta, disse:

— Você queria que nós pensássemos que Marguerite era a agente da rainha. Estando ela morta, nós baixa­mos a guarda.

— A minha intenção era deixar Clare pensando que a agente da rainha estava morta — Edmee a cor­rigiu. — Ultimamente, Clare andava muito inquisitiva, muito curiosa para saber quem seria o agente. Ela começara a suspeitar até de mim, e a rainha me havia orientado para manter meu disfarce a todo cus­to. Quanto ao seu marido, só esta manhã descobri que ele é um espião do rei Henrique. Imagino que você também seja. Devo admitir que os dois são realmente bons. — Edmee olhou para o corpo inerte de Hugh.

— Mas não o bastante.

— Que você queime no inferno! — disse Phillipa, chorando.

Edmee sorriu. A lanterna que estava no chão ilumi­nou seu rosto produzindo sombras angulosas e dando a ela uma aparência demoníaca.

— Há infernos sem fogo. Você deve saber disso es­tando nessa coisa há quatro dias. — Edmee colocou a arma e a tenaz sob o cinto e procurou entre as cha­ves penduradas ao pescoço a que abria a sachentage.

— Veja o que eu encontrei! A pequena chave de ferro com a parte de cima quadrada.

— Você... Você estava com ela o tempo todo!

— Sim. O que faço com ela? — Edmee a jogou para o alto e a pegou com sua mão enorme. — Já sei. Vou jogá-la no poço. — Edmee foi até o poço e deu um assobio. — Como é fundo!

Phillipa fechou os olhos. Nunca mais iria sair dali. Morreria na sachentage. Talvez fosse melhor assim. A vida sem Hugh seria vazia.

— Agora você compreende por que eu não poderia deixar vocês viverem — Edmee continuou, indo até o braseiro com uma vela comprida. — Seria muito ar­riscado. Afinal, a rainha empregou todos os recursos para conseguir a fabricação dessas novas armas, to­mou providências para manter tudo em segredo. Seria imprudência deixar vivas todas as pessoas que têm co­nhecimento destas armas. Isso inclui não apenas você e seu marido, mas também Orlando.

— Orlando, não! Ele é um velho gentil...

— E, naturalmente, Clare e Aldous — Edmee conti­nuou, implacável. — Eles sabem demais para pessoas que não conseguem manter a boca fechada.

— Você deve saber que não poderá assassinar tantas pessoas impunemente — Phillipa argumentou.

— Sim, matar um grande número de pessoas pode ser complicado. — Edmee olhou para a gaiola com as bombas. — Você sabe como funcionam aquelas armas?

— Não faço idéia — Phillipa mentiu.

— Há uma pessoa que sabe. Fique na companhia do seu marido morto. Voltarei logo.

Indiferente à praga que Phillipa lhe rogou, Edmee saiu do porão e voltou pouco depois com Orlando.

— Lady Phillipa! Dio mio! — Orlando exclamou ao ver Phillipa. — O que aconteceu?

— Que falta de sorte a dela — volveu Edmee.

Indo até a mesa, ela escolheu uma arma, pegou a tenaz que trazia no cinto e foi até o braseiro.

— Fuja, Orlando! Corra! — Phillipa gritou.

— Você não tem para onde fugir. Siga em frente — Edmee ordenou, apontando a arma para a cabeça de Orlando.

Ele deu uns passos e viu Hugh caído.

— Sir Hugh está morto?!

— Se não está morto, em breve estará. — Edmee apontou para a cadeira de ferro. — Sente-se. Não se preocupe. Não pretendo assá-lo. A não ser que você não queira cooperar.

Orlando a obedeceu. Edmee prendeu os antebraços dele com as correias e afivelou-as.

— Ouça, signore Orlando. Vou lhe fazer algumas perguntas e você deve dar respostas objetivas, caso contrário, atiro em lady Phillipa. Entendeu?

— Si.

— Não diga nada, Orlando! Ela vai nos matar de qualquer jeito!

— Aquelas coisas na gaiola, o que são?

— Bombas. Do latim bombus. Quer dizer: "barulho muito alto".

— Muito apropriado. É verdade que elas podem des­truir prédios?

— Depende do tamanho do prédio e da bomba.

— Aquelas bombas podem destruir este castelo?

Orlando hesitou.

— Vou perguntar de novo. Se eu puser fogo em todas aquelas bombas, o que acontecerá?

— O castelo ir pelos ares com grande incêndio — Orlando respondeu, relutante.

— Incêndio? Excelente. Se o castelo for destruído e todos morrerem, quem poderá dizer como o fogo come­çou, se deste velho castelo restarem apenas cinzas e escombros?

— Todos? Para tirar quatro vidas você pretende des­truir o castelo e matar pessoas inocentes? — Phillipa questionou.

— Inocentes? Realmente, você não prestou atenção em ninguém. — Edmee zombou e voltou a fazer per­guntas sobre as bombas. — Como faço para por fogo nas bombas e ter tempo de fugir do castelo antes da explosão?

— Ter de usar cordão muito comprido. Você estar bem longe antes do bum.

— Mais uma coisa. Onde está aquele pó escuro?

— Na mesa, no pote verde.

Edmee deixou a arma e a tenaz sobre a mesa, tirou uma bolsinha que trazia pendurada no cinto e a en­cheu com o pó do pote verde. Foi até a gaiola, procurou entre as chaves da corrente as que serviam na grade de ferro e a do cadeado da gaiola. Abrindo ambos, pu­xou todos os compridos cordões das bombas, acendeu a vela no braseiro e ateou fogo na extremidade de cada cordão. Eles começaram a queimar muito lentamente. Era óbvio que Edmee teria tempo de sair do castelo antes da explosão.

Em seguida, ela trancou a grade, jogou a chave no poço e voltou-se para Orlando.

— As suas invenções não morrerão com você. As bombas são fáceis de ser reproduzidas e vou levar esta arma comigo como protótipo. Assim muitas outras poderão ser feitas.

— No! Essa arma não boa para copiar outras. E do tipo que faz esplosione quando arame de fogo encosta nela.

Imediatamente Edmee largou a arma.

— Quais são as seguras para atirar?

— Pegue uma na ponta da mesa. A que tem o cabo curvo. Mas você precisa saber preparar o pó escuro. As armas e as bombas são inúteis sem o pó.

— Tenho a amostra. — Edmee bateu na bolsinha cheia de pó.

— Não adianta. Eu levar muitos anos para ter fór­mula certa.

Edmee olhou para os cordões compridos e viu que continuavam queimando bem devagar.

— Como é a fórmula? — perguntou.

— Eu dizer que você precisa saber preparar o pó. Eu não dizer que lhe contar a fórmula.

Edmee olhou novamente para o cordão. Nervosa e zan­gada, pegou a tenaz, o arame incandescente, uma arma de mão e apontou a arma para a cabeça de Phillipa.

— Diga logo, senão atiro!

— Ela vai morrer mesmo. — Orlando olhou para Phillipa. — Sinto muito, mas é verdade.

— Está certo. Não diga nada — Phillipa concordou. Vermelha de raiva, Edmee apontou a arma para as pernas de Orlando.

— Como você irá se sentir quando sua perna estourar?

— Eu não importo. — Orlando sacudiu os ombros.

— Quanto mais você demora, mais perto da esplosione.

Em pânico, Edmee gritou:

— Fale, senão atiro na sua perna! Aposto que você deixará de ser tão arrogante.

— Atire, quero ver. — Ele virou-se para Phillipa.

— Você achar eu arrogante?

Edmee arreganhou os dentes e rosnou.

— Velho bastardo!

No momento seguinte, colocou o arame na arma. Ouviu-se um estrondo, seguido de outro, mais forte, e uma densa fumaça negra e cáustica encheu o ar.

Quando a fumaça dissipou-se, Orlando e Phillipa vi­ram que Edmee tinha sido atirada contra a parede, e o corpo estava encostado numa das colunas de pedra como se ela fosse uma boneca de trapos. Havia em seu estômago um buraco horrível. Da arma, restavam esti­lhaços espalhados pelo chão.

— Você a enganou, levando-a a largar a arma boa e pegar a defeituosa! — disse Phillipa, impressionada.

Ela ouviu um gemido. Edmee ainda estaria viva? Logo percebeu que o som viera do outro lado. Deus do Céu!

— Hugh! — Phillipa tentava vê-lo, desesperada.

— A explosão deve tê-lo acordado! Orlando, Hugh está vivo!

Hugh mexeu-se, porém continuou deitado.

— Hugh! Abra os olhos! — Orlando gritou e conti­nuou a chamá-lo.

Se ele acordasse, poderia libertá-los e os três sairiam do porão a tempo de salvar as outras pessoas que estavam no castelo.

Orlando praguejou em italiano e puxou os braços para libertar-se, inutilmente. Phillipa tentou alcançar uma das correias para abrir a fivela, sem sucesso.

— Minha faca! — Ela tirou da bainha a adaga pe­quena e a estendeu para Orlando. — Pegue, corte as correias!

Ele tocou na ponta do cabo de marfim com pedras preciosas, quase o deixou escapar, mas conseguiu segu­rá-lo. Firmou a lâmina da adaga debaixo da correia e moveu o braço, esfregando-a na lâmina afiada.

— Depressa, Orlando!

— Fatto! — ele exclamou. Com a mão livre, abriu a fivela da outra correia e saiu correndo.

— Aonde você vai?

— Quero achar uma coisa. Ah... isto.

Ele pegou um frasco azul, foi depressa até Hugh, ajo­elhou-se e pôs o frasco encostado no nariz dele. Hugh resmungou e virou para o lado. Orlando aproveitou para examiná-lo.

— O ferimento na cabeça não é grave. Só raspou o osso.

Orlando encostou novamente o frasco no nariz de Hugh e ele abriu os olhos.

— Por Cristo! Que cheiro... — Hugh tocou o lado da cabeça, assustou-se. Olhou para o lado, onde estava o corpo de Edmee. — Jesus! — Assim que viu Phillipa, levantou-se, cambaleante e foi até ela.

— Você e Orlando têm de sair daqui, Hugh — disse Phillipa quando ele se aproximou.

— O quê? Não saio daqui sem você. Não desta vez!

— Não há tempo. Olhe para trás. A gaiola com as bombas...

Hugh segurou na argola ao redor do pescoço de Phillipa.

— Tenho de tirar você disto aqui.

— Edmee jogou a chave no poço. Jogou também a chave da grade onde está a gaiola. Não podemos apagar os cordões que estão do outro lado... Saiam os dois e tirem todos do castelo.

— Vá você, Orlando, e faça o que Phillipa disse.

— Por favor, Hugh, vá. Quero que você viva.

— Não posso viver sem você. Eu te amo, Phillipa — ele declarou afagando os cabelos dela com a mão trêmula. — Perdoe-me. A minha obstinação me impe­diu de lhe dizer isto antes. Foi uma loucura ter atirado você nos braços de Aldous e tê-la abandonado. Você está aqui por minha culpa.

— Hugh, também amo você, e é por isso que insisto para você sair daqui. O cordão está bem perto daquelas bolas cheias de pó negro. Imagine como será a explosão. Saia, por fav...

— E isso! — Hugh a interrompeu.

— O quê?

— Se muito desse pó negro tem poder de explodir o castelo, um pouquinho só pode destruir uma fechadu­ra... Mas pode machucar você.

— Tente antes que seja tarde demais.

Hugh correu até a mesa, colocou um pouco do pó ne­gro num funil, acendeu a vela e, no instante seguinte, estava de volta.

— Segure a vela — disse a Phillipa. Deixou cair uns grânulos do pó no buraquinho da fechadura e pegou a vela acesa. — Vire bem o rosto. Vou protegê-lo com a minha mão. Feche os olhos.

Hugh também virou o rosto e encostou a vela na fe­chadura do aro de ferro.

O barulho foi ensurdecedor. Completamente tonta, Phillipa mal sentiu as pontas dos ferros furando-lhe o lado do pescoço. Tudo ao redor parecia girar.

De repente, ela viu-se no ar, sendo carregada por Hugh.

— Ponha-me no chão... Eu consigo correr. Sem o meu peso você pode correr mais depressa. A bomba vai ex­plodir.

Ele a colocou no chão, enlaçou-a pela cintura e subi­ram a escada. O salão estava vazio.

Graças a Deus, todos saíram a tempo.

Eles saltaram para o pátio de mãos dadas, correram pelo gramado e alcançaram o portão do pátio externo. Phillipa sentia os pulmões queimando e as pernas en­torpecidas.

A terra tremeu sob seus pés e ela foi jogada para longe. Ouviu a explosão, seguida de outra e mais outra. Os estrondos eram ensurdecedores, pedras voavam em todas as direções.

De repente, os estrondos e tremores cataclísmicos cessaram. Phillipa teve consciência de que estava viva. Tinha o lado do rosto enterrado na grama e sentia o peso de Hugh sobre ela. Escutou a voz dele, suave e sincera:

— ...para sempre. Sempre estarei com você, meu amor. Nunca mais a deixarei.

Então não viu nem ouviu mais nada.

 

Junho, 1173, Londres

Uma borboleta entrou na biblioteca pela janela. Phillipa desviou os olhos do comunicado que esta­va codificando para observar a graciosa criatura bran­ca, que parecia ter descido do céu em um raio do sol da manhã. Ela pousou no tinteiro, como se estivesse fazendo uma saudação, depois alçou voo e deu uma vol­ta pela biblioteca, que ocupava toda a parte superior do prédio da Thames Street, gabinete do xerife de Londres, e morada de Phillipa e Hugh havia dez meses.

A borboleta voou, descuidada, em frente da estan­te que ocupava uma das paredes, do piso ao teto, indo pousar no volume A vida de St. Catherine, escrito pela irmã Clemence, que Phillipa acabara de ler e deixara sobre uma mesinha.

Com suas delicadas asas, o inseto adejou sobre a mesa de canto onde estavam mais livros, a pilha de correspondência presa pela adaga com a bainha incrustada de pedras preciosas, a velha pasta de couro com documentos e uma bandeja de prata com as sobras do café da manhã de Phillipa.

Da mesa, a borboleta flutuou para o armário que de­veria estar fechado, mas que Phillipa deixara aberto, onde eram guardados manuscritos com códigos e cifras, tabelas de freqüência para diversas línguas, selos, cera, tinta invisível, lupas, facas afiadas, navalhas, canivetes e muitos outros materiais e objetos que ela usava como secretária da correspondência secreta de Henrique Plantagenet, rei da Inglaterra.

Tendo sido debelada a revolta contra ele, o rei Henrique, muito liberal, mantinha a esposa confinada em Salisbury e apenas repreendera os filhos. Quanto a Aldous Ewing e Clare de Halthorpe, colaboradores da rainha Eleanor na infeliz conspiração, foram aprisio­nados por Graeham Fox e seus homens quando fugiam do castelo. Depois, após serem julgados por Richard de Luci como traidores, foram presos em celas vizinhas, na Torre de Londres.

Observando a borboleta que terminava seu circuito e voava para a janela, Phillipa levou a mão ao ventre arredondado e teve a sensação de que havia ali mais borboletas batendo as asinhas.

— Hugh! — ela chamou na direção da porta. Passos pesados e apressados soaram, vindos da es­cada.

— Você está bem? — ele perguntou, ansioso, olhando para o ventre da esposa.

— Estou — Phillipa respondeu, sorrindo. — Quero que você sinta isto. Dê-me a sua mão.

Hugh ajoelhou-se na frente dela e estendeu-lhe a mão esquerda, a perfeita. A mão direita, além de não ter o polegar, ficara queimada no verão anterior, quan­do ele explodira a fechadura do aro de ferro que prendia o pescoço de Phillipa. Antes ficar com a mão disforme do que arruinar a beleza do rosto de minha amada, ele sempre dizia quando a esposa se lembrava do sacrifício que ele fizera por ela.

Mas a queimadura na mão não tinha sido a única lembrança daquela missão. A bolinha de chumbo que raspara a cabeça de Hugh, deixara uma cicatriz compri­da e estreita do lado da testa. Naturalmente, ele havia encarado esses defeitos como uma bênção. O xerife de Londres não pode ser muito bonito, gostava de dizer.

Phillipa tinha colocado a mão do marido sobre o ventre, e agora ele estava sentindo, com expressão de espanto e felicidade, os leves movimentos do bebê. Veio à lembrança dela aquele fim de tarde no pomar, em Eastingham, quando observara Graeham tocando o ventre de Joanna, como Hugh fazia no momento.

Naquela ocasião, como não sabia nada sobre o mun­do, refletira que algumas mulheres nasciam para o casamento e para ter filhos, enquanto outras nasciam para coisas diferentes. Se lhe dissessem que, menos de um ano depois, ela estaria casada com um homem como Hugh de Wexford e esperando o primeiro filho de am­bos, não teria acreditado que isso fosse possível.

No entanto, ali estava ela, com o filho de Hugh se agitando no ventre, abraçada ao marido, feliz, realiza­da, e sentindo uma paz infinita.

Como Orlando tinha dito depois da missa do casa­mento deles, que acontecera em agosto do ano anterior, ela e Hugh eram a confirmação viva do princípio alquí-mico de que dois opostos podem se atrair e criar algo novo, extraordinário e mágico.

 

 

                                                                  Patricia Ryan

 

 

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