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ENTRE OS MONGES DO TIBETE / Lobsang Rampa
ENTRE OS MONGES DO TIBETE / Lobsang Rampa

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ENTRE OS MONGES DO TIBETE

 

— Não fique sentido — disse o Sr. Editor.

“Pois muito bem”, pensava eu, “mas por que motivo haveria de ficar? Estou apenas procurando realizar o meu trabalho, escrever um livro conforme determinaram que o fizesse.”

— Nada contra a imprensa! — disse o Sr. Editor. — Nada!

“Ora, ora”, pensava eu. “Por quem ele me está tomando?”

E assim será: nada contra a imprensa. Afinal de contas, os jornalistas pensam estar cumprindo sua tarefa, e, se recebem dados incorretos de informação, nesse caso não lhes cabe toda a responsabilidade pelo que dizem. Ainda assim, o leitor quer conhecer minha opinião a respeito da imprensa? Ah, bem... Vamos ficar por aqui.

Este livro é o terceiro, vindo após A terceira visão e O médico de Lhasa. Logo de início vou-lhes dizer que isto é a verdade, não ficção. Tudo quanto escrevi nos dois livros anteriores é verdadeiro e registra minha própria vivência pessoal. O que vou contar, desta feita, diz respeito às ramificações da personalidade humana e ao ego humano, assunto este no qual nós, do Extremo Oriente, somos profundos.

Basta de prefácio, portanto. Este livro é a coisa em si, e o que tenho a narrar.

 

 

Os picos escarpados do Himalaia rasgavam com decisão o púrpura-vivo dos céus tibetanos, ao cair da tarde. O sol poente, encoberto por aquela cordilheira poderosa, atirava cores cintilantes e iridescentes sobre a capa branca de neve que desce permanentemente dos pontos mais altos. O ar se mostrava cristalinamente claro, revigorante, permitindo visibilidade quase ilimitada.

À primeira vista, a paisagem desolada e congelada parecia inteiramente destituída de vida. Nada se mexia, nada se agitava, senão o pendão comprido de neve que se balançava lá em cima.

Aparentemente nada podia viver naqueles ermos montanhosos e inóspitos, nenhuma vida pudera instalar-se ali, desde o início do próprio tempo. Apenas quem soubesse, apenas aqueles a quem fora repetidamente mostrado podiam perceber — com dificuldade — os leves traços a indicar que ali viviam seres humanos.

Somente o conhecimento anterior poderia guiar os passos de alguém, naquele lugar agreste e interdito. Nesse caso, a pessoa veria, encoberta por sombra, a entrada de uma caverna profunda e sombria, caverna essa que era apenas o vestíbulo de uma miríade de túneis e câmaras subterrâneas, estendidos no seio daquela austera cordilheira.

Muitos meses antes, os lamas merecedores de mais confiança, agindo como trabalhadores braçais, haviam penosamente percorrido centenas de quilômetros desde Lhasa, levando os segredos antigos para aquele lugar, onde estariam para sempre a salvo dos vândalos chineses e dos traidores tibetanos comunistas. Também para lá, com labuta e sofrimento infinitos, haviam sido levadas as figuras douradas das encarnações passadas, para serem instaladas e veneradas, no coração de uma montanha. Os objetos sagrados, as escrituras antiquíssimas e os sacerdotes mais veneráveis e eruditos ali se encontravam a salvo. Anos atrás, com pleno conhecimento da invasão chinesa que se avizinhava, os fiéis abades haviam se reunido periodicamente em solenes conclaves, a fim de submeterem a prova e selecionar aqueles que deveriam seguir para o distante novo lar. Um após outro, os sacerdotes tinham sido postos a prova, sem terem conhecimento disso, e tido seus assentamentos examinados, de modo que apenas os excelentes e os mais espiritualmente adiantados fossem escolhidos. Homens cujo preparo e fé possibilitassem, se surgisse a necessidade, suportar as maiores torturas que os chineses pudessem infligir, sem deixarem transpirar dados informativos de importância vital.

Assim é que, com o tempo, saindo de uma Lhasa dominada pelos comunistas, eles haviam chegado a seu novo lar. Nenhuma aeronave portadora de cargas bélicas atingiria aquela altitude. Nenhum soldado inimigo conseguiria sobreviver naquela região árida, destituída de solo, rochosa e traiçoeira, com enormes pedras instáveis e abismos tremendos. A terra era tão alta e tão pobre o oxigênio do ar que ali apenas um povo montanhês resistente conseguiria respirar. E ali, finalmente, no abrigo das montanhas, estava a paz. Paz para trabalhar a fim de resguardar o futuro, preservar o conhecimento antigo e aguardar, preparados, a ocasião em que o Tibete se levantaria outra vez, libertando-se do agressor.

Milhões de anos antes aquilo fora uma cordilheira de vulcões a vomitar fogo e derramar rochas eruptivas e lava sobre a face do planeta jovem que era a Terra. O mundo se mostrava semiplástico, então, e sofria as dores de parto de uma nova era. Por número incontável de anos, as chamas foram se acalmando e as rochas semiderretidas se haviam esfriado. A lava passara pela última vez e os jatos gasosos vindos do interior da terra tinham expulsado a matéria remanescente para o ar livre, deixando um número imenso de canais e túneis vazios. Alguns tinham sido soterrados por desabamentos de rochas, mas outros haviam permanecido intatos, duros como vidro e estriados com traços dos metais anteriormente em fusão. De algumas paredes internas desciam nascentes de montanha, puras e cristalinas, e qualquer raio de luz.

Por séculos consecutivos os túneis e cavernas permaneceram sem vida, abandonados, conhecidos apenas dos lamas em viagem astral, que podiam visitar qualquer lugar e ver tudo. Os viajantes astrais haviam varrido o país, procurando um refúgio assim, e agora, com o terror rondando a terra do Tibete, os corredores antigos se encontravam povoados pela elite de um povo espiritual, povo destinado a erguer-se novamente quando chegasse o momento.

Enquanto os primeiros monges cuidadosamente escolhidos seguiam rumo ao norte, a fim de preparar um lar dentro da rocha viva, outros, em Lhasa, acondicionavam os artigos mais preciosos e faziam os preparativos para sair sem serem percebidos. Dos mosteiros lamaicos e conventos vinha um número pequeno, composto por aqueles que haviam sido escolhidos. Em grupos pequenos, e na calada da noite, eles viajaram para um lago distante e ali montaram acampamento, aguardando os demais.

No novo lar, fora fundada uma nova ordem, a Escola de Conservação do Conhecimento, e o abade responsável por ela, velho e sábio monge com mais de cem anos de idade, havia com sofrimento indescritível viajado para as cavernas no interior das montanhas. Com ele tinham vindo os mais sábios da terra, os lamas telepatas, os clarividentes e os sábios de grande memória.

Devagar, no decurso de muitos meses, tinham ascendido cada vez mais às cordilheiras, o ar a tornar-se cada vez mais rarefeito à medida que subiam. Havia vezes em que menos de dois quilômetros era o máximo que seus corpos idosos podiam percorrer por dia, aos tropeços sobre rochedos e penhascos enormes, o vento eterno das altitudes a inflar-lhes os hábitos, ameaçando arrebatá-los.De outras, fendas profundas no terreno obrigavam a uma volta árdua e prolongada.

Durante quase uma semana o antigo abade foi obrigado a permanecer no interior de uma tenda hermética, feita com couro de iaque, enquanto ervas e poções estranhas exalavam oxigênio para aliviar-lhe os pulmões e o coração, torturados. E depois, com decisão sobre-humana, ele prosseguiu na jornada espantosa.

O grupo que finalmente chegou a seu destino era reduzido, pois muitos haviam caído pelo caminho. Gradualmente eles se habituaram à vida diferente, os escribas registraram com cuidado o relato da jornada, e os entalhadores prepararam lentamente os blocos para imprimir manualmente os livros. Os clarividentes olharam o futuro, predizendo o do Tibete e de outros países. Esses homens, de pureza absoluta, estavam em contato com o cosmo e com o Registro Akáshico, o registro que narra tudo com relação ao passado e presente imediato, em qualquer parte, e todas as probabilidades para o futuro. Também os telepatas se achavam ocupados, enviando mensagens a outros no Tibete, mantendo-se em contato com os membros de sua ordem por toda parte — mantendo-se em comunicação comigo! “Lobsang. Lobsang!” O pensamento repercutiu em minha cabeça, fazendo com que eu saísse do devaneio. As mensagens telepáticas nada tinham de estranho para mim, eu as achava mais comuns do que uma chamada telefônica, mas aquela se mostrava insistente. Por algum motivo, ela se mostrava um tanto diferente das demais. Eu logo afrouxei o corpo, sentando-me na posição de lótus, abrindo a mente e pondo o corpo à vontade. E então, receptivo às mensagens telepáticas, aguardei.

Por algum tempo não houve coisa alguma, apenas uma sondagem delicada, como se “alguém” estivesse espiando com meus olhos e vendo, vendo o quê? O enlameado rio Detroit, os grandes arranha-céus da cidade de Detroit. A data na folhinha à minha frente, 9 de abril de 1960. E de novo... nada. De repente, como se o “alguém” houvesse chegado a uma decisão, A voz veio novamente: “Lobsang. Você tem sofrido muito. Você tem andado tem, mas não há tempo para ufania. Você ainda tem uma tarefa a executar”.

Houve uma pausa, como se quem falasse fosse inesperadamente interrompido, e eu fiquei à espera, abatido e inteiramente apreensivo. Eu já tivera sofrimentos mais do que suficientes naqueles últimos anos. Mais do que o bastante em mudanças de local, em ser perseguido e caçado. Enquanto esperava, recebi pensamentos telepáticos fugazes de pessoas próximas, embora separadas de mim por paredes. A moça que batia impacientemente com a ponta do pé no chão, aguardando na parada de ônibus diante de minha janela, pensando: “Oh, esta linha de ônibus é a pior do mundo! Será que ele não vem?” Ou o homem entregando uma encomenda na casa ao lado: “Tenho de pedir aumento ao patrão. Millie vai ficar uma fera se eu não arranjar algum dinheiro para ela!” E quando eu dava tratos à bola, cogitando quem seria essa Millie, assim como uma pessoa pensa em qualquer coisa enquanto espera ao telefone, a voz interna e insistente voltou: “Lobsang! Tomamos uma decisão. Chegou a hora de você escrever novamente. O próximo livro será uma tarefa de importância máxima. Você deverá escrever frisando o tema de que uma pessoa pode apoderar-se do corpo de outra, tendo o inteiro consentimento da última”.

Movi-me em sobressalto, desanimado, e quase rompi o contato telepático. Eu escrever outra vez? E sobre isso? Já me tornara uma “figura controvertida” e detestava isso a cada instante. Eu sabia ser verdade tudo quanto afirmara antes, sabia que tudo quanto escrevera era a verdade absoluta, mas de que serviria causar alvoroço na imprensa, que estava mergulhada numa temporada de tolices? Não podia entender e fiquei confuso e muito desalentado, como um homem à espera da pena capital.

“Lobsang!” — e a voz telepática estava cheia de severidade, agora, com uma aspereza que pareceu aplicar um choque elétrico em meu cérebro estupidificado. “Lobsang! Nós estamos em posição melhor para julgar, pois você se acha imerso nas coisas do Ocidente. Nós podemos avaliar, estando de fora. Você tem apenas as notícias locais. Nós as temos de todo o mundo.” Permaneci em silêncio, humilde, aguardando a continuação da mensagem e concordando, em meu íntimo, que “eles” obviamente sabiam o que era mais certo. Após algum intervalo, a voz voltou: “Você sofreu muito, injustamente, mas foi por uma boa causa. Seu trabalho anterior levou grande bem a muitos, mas você está doente, e seu juízo se acha defeituoso e distorcido quanto à matéria do próximo livro”.

Enquanto ouvia, estendi a mão para meu cristal muito antigo e segurei-o diante de mim, sobre seu pano negro e opaco. Rapidamente o vidro se anuviou e tornou-se leitoso. Surgiu uma fresta e as nuvens brancas se apartaram, como cortinas, deixando entrar a luz da aurora. Eu vi e ouvi. Uma visão distante do Himalaia imponente, seus cumes cobertos de neve. Uma sensação acentuada de queda, tão forte que senti o estômago subir. A paisagem tornou-se maior e, então, surgiu a caverna, o novo lar do conhecimento. Vi um velho patriarca, figura muito antiga, sentado sobre um tapete dobrado e feito com lã de iaque. Embora fosse um alto abade, estava vestido com um simples hábito desbotado e esfarrapado, que parecia quase tão antigo quanto ele próprio. Sua cabeça alta e abobadada brilhava como pergaminho antigo, e a pele de suas mãos velhas e enrugadas mal encobria os ossos que as sustentavam. Era uma figura venerável, com uma forte aura de poder e a serenidade inefável que o conhecimento verdadeiro proporciona. Ao redor, formando um círculo do qual ele era o centro, estavam sentados sete lamas de alto grau, em atitude de meditação, tendo as palmas das mãos voltadas para cima e os dedos entrelaçados na imemorial posição simbólica. Suas cabeças, levemente inclinadas à frente, apontavam todas para mim. No cristal, era como se eu estivesse na mesma caverna vulcânica em que eles se achavam, como se estivesse à frente deles. Conversávamos como se estivéssemos em contato físico.

— Você envelheceu muito — disse um.

— Seus livros levaram alegria e luz a muitos. Não fique desanimado por causa dos poucos que têm inveja e disposição perversa — disse outro.

— O minério de ferro pode achar-se inutilmente torturado na fornalha, mas quando a lâmina temperada do mais fino aço recorda sua formação, ela sabe que valeu a pena — disse um terceiro.

— Estamos perdendo tempo e energia — disse o velho patriarca. — O coração dele está doente em seu peito e ele se acha à sombra do outro mundo. Não devemos sobrecarregar suas forças ou saúde, pois ele tem essa tarefa a cumprir.

Fez-se silêncio novamente, dessa vez um silêncio curativo, enquanto os lamas telepáticos despejavam energia vital em mim, energia essa que muitas vezes me faltava, desde que tivera o segundo ataque de trombose coronária. O quadro à minha frente, e do qual parecia fazer parte, tornou-se mais brilhante, quase mais brilhante do que a realidade. Foi quando o ancião olhou e falou:

— Meu irmão — principiou, o que certamente constituía uma honra, embora eu também fosse um abade. — Temos de levar ao conhecimento de muitos a verdade de que um ego pode abandonar voluntariamente seu corpo e permitir que outro ego se apodere do corpo abandonado e o reanime. É essa a sua tarefa, a de transmitir esse conhecimento.

Aquilo era certamente uma surpresa. Minha tarefa? Eu jamais desejara fazer publicidade sobre essas questões, preferindo continuar silente até mesmo quando auferisse vantagem material em dar informações. Acreditava que, no Ocidente esotericamente cego, a maioria das pessoas estaria melhor se não tivesse conhecimento dos mundos ocultos.

Tantos “ocultistas” que eu encontrara possuíam, na verdade, conhecimento tão pequeno! E o conhecimento insuficiente é uma coisa perigosa. Minha introspecção foi interrompida pelo abade.

— Como você bem sabe, estamos no limiar de uma nova era, uma era onde se pretende que o homem seja purificado e viva em paz com os demais e consigo próprio. As populações serão estáveis, sem aumentar ou diminuir, e isso sem necessidades bélicas, pois um país com população em crescimento tem de recorrer à guerra para obter mais espaço vital. Nós queremos que as pessoas saibam como um corpo pode ser abandonado, como um traje velho e inservível, e passado a outro, que necessita do corpo para algum fim especial.

Tive um sobressalto involuntário. Sim, eu sabia de tudo isso, mas não contara ter de escrever a respeito. O plano me assustava.

O velho abade sorriu por um instante, enquanto dizia:

— Vejo que a ideia, a tarefa, não encontra sua simpatia, meu irmão. Mas até mesmo no Ocidente, no que chamam crença cristã, existe o registro de numerosos exemplos de “possessão”. Que tantos casos sejam encarados como males, ou resultado de magia negra, é um fato deplorável e demonstra, apenas, a atitude dos que pouco sabem a respeito. Sua tarefa será a de escrever, de modo que quem tenha olhos possa ler, e os que estejam prontos fiquem sabendo.

“Suicidas”, pensei. “As pessoas correrão a suicidar-se, quer para fugirem às dívidas e problemas, quer para favorecerem outras, na obtenção de um corpo.”

— Não, não, meu irmão — disse o velho abade. — Você está enganado. Ninguém pode escapar à sua dívida pelo suicídio, e ninguém pode deixar um corpo por outro, ainda, a menos que prevaleçam as circunstâncias especiais que o permitam. Temos de aguardar o advento da nova era, e ninguém poderá abandonar o próprio corpo, senão quando transcorrido o tempo que lhe foi dado. Por enquanto, apenas quando forças maiores o permitirem é que isso poderá ser realizado.

Olhei para os homens à minha frente, observando a vibrante luz dourada ao redor de suas cabeças, o azul elétrico da sabedoria em suas auras e a emanação vinda de seus Cordões Prateados.

Era um quadro em cores vivas, formado por homens sábios e puros, homens austeros, ascetas, separados do mundo, controlados e confiantes.

“Fica muito bem para eles”, estava pensando. “Não têm de viver no arranca-rabo da vida ocidental.” Da outra margem do enlameado rio Detroit o rugido do tráfego vinha em ondas sonoras.

Um vapor navegando pelos Grandes Lagos passava diante de minha janela, quebrando a capa de gelo que encobria o rio à sua frente, com estalidos e estrondos. Vida ocidental? Barulho, ruído, estardalhaço. Rádios berrando e declarando os méritos alegados de uma agência de automóveis, e logo outra, e mais outra. No novo lar havia paz, paz para trabalhar, paz para pensar, sem ser preciso imaginar quem apunhalaria o outro, pelas costas, a fim de obter alguns dólares.

— Meu irmão — disse o ancião —, nós vivemos no “arranca-rabo” de um país invadido, onde a oposição ao opressor significa morrer após torturas lentas. Nosso alimento tem de ser trazido a pé por mais de cento e oitenta quilômetros de traiçoeiras trilhas montanhosas, onde um passo em falso, ou uma pedra solta, pode mandar o infortunado a um tombo imenso e à morte. Nós vivemos com uma tigela de tsampa, que nos alimenta por um dia. Para beber, temos as águas dos córregos da montanha. O chá é um luxo desnecessário, e aprendemos a viver sem ele, pois desfrutar prazeres que acarretam riscos para outros constitui um mal. Olhe mais atentamente para o cristal, meu irmão, e procuraremos mostrar-lhe a Lhasa de hoje.

Ergui-me do assento perto da janela e verifiquei se as três portas do meu quarto estavam bem fechadas a chave. Não havia meio de silenciar o rugido incessante do tráfego, tráfego esse à beira do rio, no Canadá, e o zumbido mais abafado de Detroit, cidade ruidosa e movimentada. Entre mim e o rio havia a estrada principal, a mais próxima, e as seis pistas da ferrovia. Barulho? Não terminava! Dando um último olhar ao cenário moderno e agitado, fechei as persianas e retomei o lugar, de costas para a janela.

À minha frente, o cristal pulsava com luz azul, que se modificou e rodopiou quando me voltei para ele. Quando o apanhei e o encostei de leve na testa para estabelecer novamente a “ligação”, ele pareceu quente em meus dedos, sinal certo de que muita energia estava sendo dirigida para ele, de uma fonte externa.

O rosto do velho abade estava voltado para mim com ar benevolente, e um sorriso leve perpassou-lhe a fisionomia. E logo pareceu ter ocorrido uma explosão. O quadro tornou-se desorientado, um pano remendado com miríades de cores sem relação umas com as outras e faixas que se agitavam. De repente, foi como se alguém houvesse aberto uma porta, uma porta no céu, e eu estivesse de pé àquela porta aberta.

Desapareceu toda sensação de estar “olhando em um cristal”. Eu estava lá! Abaixo de mim, brilhando suavemente à luz do sol poente, estava minha terra, minha Lhasa. Aninhada sob a proteção das cordilheiras imensas, tendo o rio Feliz correndo rapidamente pelo vale verde. Eu senti novamente as dores fortes da saudade de minha pátria. Todos os ódios e dificuldades da vida ocidental cresceram dentro de mim, e pareceu que meu coração ia estourar. As alegrias e tristezas e o preparo rigoroso que eu tivera ali, a visão de minha terra natal, tudo isso levou meus sentimentos a revoltar-se ante a cruel falta de compreensão dos ocidentais.

Mas eu não estava lá apenas para satisfazer-me! Devagar, pareceu-me que estava baixando pelo céu, baixando como se estivesse a bordo de um balão que descia com suavidade. A uns mil metros acima da superfície, tive uma exclamação de espanto horrorizado. Aeroporto? Havia aeroportos ao redor da cidade de Lhasa! Muita coisa parecia-me desconhecida, e olhando ao redor vi que havia duas estradas novas passando sobre as cordilheiras e tornando-se menores em direção da Índia. O tráfego, de veículos de rodas, seguia com rapidez por elas. Baixei mais, sob o controle daqueles que me haviam trazido ali. Mais baixo, vi escavações onde escravos preparavam alicerces, sob o controle de chineses armados.

Horror dos horrores! Bem ao pé da gloriosa Potala estendia-se um feio acampamento de choças, servido por uma rede de estradas de terra. Fios ligavam aquelas construções e conferiam um ar desmazelado ao lugar. Olhei para a Potala, e... pelo sagrado dente de Buda!... o palácio fora profanado pela escrita de lemas comunistas chineses! Com um soluço de desalento revoltado, voltei-me para olhar em outra direção.

Um caminhão vinha pela estrada; passou através de mim — pois eu era um corpo astral, fantástico e sem substância — e parou pouco adiante, com um solavanco. Gritando, soldados chineses mal uniformizados saltaram dele, arrastando cinco monges em sua companhia. Alto-falantes nas esquinas de todas as ruas começaram a funcionar, e, sob as ordens em tom enérgico, a praça onde eu me encontrava logo se encheu de gente. E encheu-se depressa, porque fiscais chineses com chicotes e baionetas açoitavam e empurravam quem não andasse depressa. A multidão, formada por tibetanos e colonos chineses, parecia abatida e mal nutrida. Seus componentes tinham gestos nervosos, e pequenas nuvens de poeira erguiam-se do chão sob seus pés, levadas pelo vento da tarde.

Os cinco monges, magros e ensanguentados, foram brutalmente atirados ao chão, de joelhos. Um deles tinha o globo ocular esquerdo fora da órbita, dependurado sobre a face, e eu o conhecia bem, pois fora um acólito em meu tempo de lama. A multidão taciturna tornou-se silenciosa e parada, enquanto um jipe de fabricação russa surgia em disparada pela estrada, vindo de um edifício com o nome de Departamento de Administração Tibetana. Tudo ficou silente e tenso, enquanto o veículo fazia uma volta ao redor da multidão e parava uns três metros atrás do caminhão.

Os guardas puseram-se em posição de sentido, e um chinês autocrático desembarcou do veículo, em atitude arrogante. Um soldado apressou-se a ir ter com ele, desenrolando um fio enquanto andava. Diante do chinês autocrático, ele fez continência e ergueu a mão com um microfone. O governador, ou administrador, ou que nome e título pudesse ter, olhou desdenhosamente ao redor, antes de falar no instrumento.

— Vocês foram trazidos aqui — disse, então — para testemunharem a execução desses cinco monges reacionários e subversivos. Ninguém poderá obstar a marcha do glorioso povo chinês, sob a competente direção do Camarada Mao.

Dito isso, voltou-se, e os alto-falantes em cima do caminhão foram desligados. O governador fez um gesto a um soldado que empunhava uma espada comprida e curva. Ele foi ter com o primeiro prisioneiro ajoelhado à frente, e por momentos manteve as pernas abertas, verificando com o polegar o gume da espada. Satisfeito com o exame, tomou posição e tocou de leve no pescoço do homem amarrado.

Erguendo a espada bem acima da cabeça e com o sol poente a rebrilhar na lâmina, ele a fez descer com violência. Houve um ruído abafado, seguido instantaneamente por um estalo forte, e a cabeça do homem saltou de seus ombros, seguida por um jorro de sangue que pulsou, pulsou outra vez e se transformou numa caudal menor. Enquanto o corpo se contorcia no chão empoeirado, o governador cuspiu nele e exclamou:

— Assim morrerão todos os inimigos da comuna! O monge com o olho fora da órbita ergueu a cabeça, altivamente, e gritou:

— Viva o Tibete! Pela glória de Buda, ele se erguerá novamente.

Um soldado estava a ponto de atravessá-lo com a baioneta, quando o governador interveio, apressadamente. O rosto contorcido de raiva, ele berrou:

— Insulta o glorioso povo chinês? Por isso morrerá lentamente! Voltou-se para os soldados, gritando ordens. Os homens corriam para todos os lados, e dois deles foram a um edifício próximo e voltaram de lá com cordas. Outros cortavam as amarras do monge manietado, fazendo cortes em seus braços e pernas ao mesmo tempo. O governador andava de um lado para outro, gritando que trouxessem mais tibetanos para assistir à cena. Os alto-falantes voltaram a berrar, e caminhões cheios de soldados vieram trazendo mais homens, mulheres e crianças para “assistir à justiça dos camaradas chineses”. Um soldado atingiu o monge no rosto com a coronha do fuzil, estourando o globo ocular já pendente e amassando-lhe o nariz. O governador, em pé e vendo aquilo, olhou os três outros monges ainda ajoelhados e manietados sobre a estrada.

— Matem-nos a tiro! — ordenou. — Atirem atrás da cabeça e deixem os corpos por aí.

Um soldado adiantou-se e sacou o revólver. Pondo-o bem atrás da orelha de um monge, acionou o gatilho. O homem caiu para a frente, morto, os miolos espalhados no chão. Sem dar atenção a isso, o soldado foi ao segundo monge e rapidamente o matou também. Seguia para o terceiro, quando um soldado jovem pediu:

— Deixe-me fazer isso, camarada, pois ainda não matei.

Anuindo, o executante ficou ao lado, para permitir que o jovem soldado, tremendo de avidez, tomasse seu lugar.

Sacando seu revólver, o outro apontou para o terceiro monge, mas fechou os olhos e puxou o gatilho. A bala atravessou as faces do homem e atingiu um espectador tibetano no pé.

— Tente outra vez — disse o primeiro executante —, e fique de olhos abertos.

A esta altura, no entanto, o voluntário tinha a mão tremendo tanto, com vergonha e medo, que errou por completo, ao ver que o governador o observava com desdém.

— Ponha o cano do revólver na orelha dele e atire! — disse o governador.

Mais uma vez o jovem soldado foi ter com o monge condenado, enfiou selvagemente o cano da arma na orelha dele e puxou o gatilho. O monge caiu para frente, morto, ao lado dos companheiros.

A multidão aumentara, e enquanto eu olhava por ali vi que o monge meu conhecido fora atado pelo braço esquerdo e perna esquerda ao jipe. O braço e a perna direitos estavam atados ao caminhão. Um sorridente soldado chinês embarcou no jipe e ligou o motor. Devagar, o mais vagarosamente possível, ele seguiu à frente. O braço do monge foi arrancado, rígido como uma barra de ferro, com um ruído indescritível. O jipe prosseguiu, e com um estalo alto o osso do quadril se partiu e a perna esquerda do homem foi-lhe arrancada do corpo. O jipe parou, e o governador embarcou. Logo depois, o veículo prosseguia na estrada pedregosa, fazendo saltar e sacudindo o corpo ensanguentado do monge moribundo. Os soldados embarcaram no caminhão e este partiu, arrastando atrás de si braço e perna ensanguentados.

Quando eu me voltava, nauseado, ouvi um grito de mulher, vindo de algum ponto atrás de um edifício, seguido por uma risada brutal. Uma praga em chinês, pois era evidente que a mulher mordera quem a assaltara, e logo um grito borbulhante quando era apunhalada.

Acima de mim, o azul-escuro do céu da noite, literalmente pontilhado de pequeninas luzes coloridas que eram outros mundos. Muitos deles, eu o sabia, eram habitados. Quantos, fiquei pensando, seriam tão selvagens quanto a Terra?

Ao redor havia cadáveres insepultos e conservados pelo ar frígido do Tibete, até que abutres e quaisquer animais selvagens os devorassem. Não havia cachorros para fazer isso, pois os chineses os haviam matado para comer. Não havia mais gatos guardando os templos de Lhasa, pois também tinham sido mortos. A morte? A vida tibetana não tinha mais valor, aos olhos dos comunistas invasores, do que uma folha de relva.

A Potala estendia-se à minha frente. E agora, sob a luz fraca das estrelas, os lemas boçais dos chineses combinavam-se com as sombras e não podiam ser vistos. Um farol, montado acima dos túmulos sagrados, percorria o vale de Lhasa como se fora um olho maligno. Chakpori, minha escola de medicina, parecia desolada e esquecida, e de seu ponto mais alto vinham os fragmentos sonoros de uma obscena canção chinesa. Por algum tempo permaneci em contemplação profunda. De repente, sem que a esperasse, uma voz disse:

— Meu irmão, deve afastar-se agora, pois esteve ausente muito tempo. Ao subir, olhe bem ao redor.

Devagar, ergui-me no ar, como uma semente volante tocada por uma brisa. A lua surgira, iluminando o vale e picos montanhosos com sua luz pura e prateada. Olhei, horrorizado, para os antigos mosteiros lamaicos bombardeados e desertos, tendo espalhados ao redor de si os destroços dos bens terrenos do homem. Os insepultos jaziam em montes grotescos, conservados pelo frio eterno, alguns agarrados a moinhos de oração, outros sem roupa e transformados em farrapos de carne sanguinolenta pela explosão de bombas e fragmentos de metal.

Vi uma figura sagrada, intata, que parecia fitar compadecidamente a loucura assassina da humanidade. Nas encostas escarpadas, onde os eremitérios se prendiam às beiras dos montes em abraços carinhosos, vi uns após outros os eremitérios despojados pelos invasores. Os eremitas, ali encerrados por anos seguidos em escuridão solitária, procurando o aperfeiçoamento espiritual, haviam ficado cegos no momento em que a luz do sol entrara em suas celas. Quase sem exceção, o eremita se encontrava morto, ao lado de seu lar arruinado, tendo perto de si o amigo e servidor de toda a vida, morto também.

Eu não podia olhar mais. Carnificina? Assassinato estúpido dos monges inocentes e indefesos? De que adiantava? Voltei-me e pedi aos que me guiavam para afastar-me daquele cemitério.

Minha tarefa na vida, eu o soubera desde o início, era relacionada com a aura humana, a radiação que cerca por completo o corpo do homem, e por cuja cor flutuante o adepto verifica se a criatura é honrada ou não. A pessoa doente poderia ter sua doença vista nas cores de sua aura. Todos devem ter notado a névoa em torno de uma lâmpada de rua, em noite de nevoeiro. Alguns talvez tenham percebido a bem conhecida “descarga de coroa” que os cabos de alta tensão emitem de vez em quando. A aura humana é um tanto semelhante a isso e demonstra a força vital do indivíduo. Os artistas de tempos idos pintavam um halo ou nimbo ao redor da cabeça dos santos. Por quê? Porque podiam ver a aura dessa gente. Desde que foram publicados meus dois primeiros livros, tenho recebido cartas de todo o mundo, e alguns dos missivistas são gente que também consegue ver a aura.

Há anos que um Dr. Kilner, efetuando pesquisas em certo hospital londrino, verificou que podia, em certas circunstâncias, ver a aura humana. Escreveu um livro a esse respeito, mas a ciência médica não se encontrava pronta para tal descoberta, e tudo quanto ele verificara e ficara sabendo foi encoberto. Eu também, a meu modo, estou fazendo pesquisas, e visualizo um instrumento que tornará possível a qualquer médico ou cientista ver a aura de outra pessoa e curar doenças “incuráveis” mediante vibrações ultrassônicas. Dinheiro, dinheiro, é esse o problema. A pesquisa sempre se mostrou cara! “E agora”, estava pensando, “eles querem que eu empreenda outra tarefa! A respeito da troca de corpos!” Lá fora houve um estrondo que fez a casa estremecer. “Oh”, pensei. “Os ferroviários estão manobrando outra vez. Não haverá mais silêncio por bastante tempo.” No rio, um cargueiro a vapor apitou lamentosamente — como uma vaca a chamar o bezerro — e da distância veio a resposta de outra embarcação.

— Meu irmão! A voz fez-se ouvir novamente, e voltei apressadamente ao cristal. Os velhos ainda estavam sentados em círculo, tendo o velho patriarca no centro. Pareciam cansados, esgotados, pois haviam transmitido muita força a fim de tornarem possível aquela viagem improvisada e sem preparativos.

— Meu irmão, você viu com clareza o estado em que se acha nosso país! Você viu o que faz a mão cruel do opressor. Sua tarefa, suas duas tarefas, estão claramente à sua frente, e você poderá ter êxito em ambas, para a glória de nossa ordem.

O ancião cansado tinha expressão aflita. Ele sabia — como eu — que eu poderia recusar-me, honrosamente. Eu fora muito mal compreendido devido aos relatos mentirosos disseminados por um grupo de má fé com relação a mim. No entanto, era clarividente em alto grau e muito telepático.

A viagem astral, para mim, era mais fácil do que andar. Escrever? Bem, sim, as pessoas poderiam ler o que eu escrevesse e, se não conseguissem acreditar em tudo, nesse caso aquelas que tivessem um grau suficiente de evolução acreditariam e saberiam a verdade.

— Meu irmão — disse o velho, suavemente —, embora os não-evoluídos, os não-esclarecidos finjam acreditar que você escreve ficção, uma parte suficiente da verdade chegará a seus subconscientes e... quem sabe?... a pequena semente da verdade poderá vicejar nesta vida ou na seguinte que tenham. Como o próprio Senhor Buda declarou na parábola das Três Carruagens, o fim justifica os meios.

A parábola das Três Carruagens! Que recordações vivas isso me trazia! Com que clareza eu recordei meu amado guia e amigo, o Lama Mingyar Dondup, instruindo-me em Chakpori.

Um velho monge médico estivera acabando com os receios de uma mulher muito doente, com algumas “mentiras brancas” inofensivas. Eu, jovem e inexperiente, exprimira surpresa, chocado, em cômoda fatuidade, pelo fato de que um monge dissesse uma inverdade, ainda que em tal emergência.

Meu guia aparecera, dizendo:

— Vamos a meu quarto, Lobsang. Temos a ganhar, consultando as Escrituras.

Sorrira para mim, com sua aura cálida e benevolente de contentamento, voltando-se e seguindo a meu lado para o quarto lá em cima, de onde podíamos ver a Potala.

— Chá e bolos, sim. Devemos ter alguns alimentos, Lobsang, pois com eles você também poderá digerir informações.

O monge servente, que nos vira entrar, apareceu sem ser chamado, trazendo as iguarias de que eu gostava e que somente conseguia mediante os bons ofícios de meu guia.

Por algum tempo estivemos sentados, conversando ociosamente, ou melhor, eu falei, enquanto comia. E depois, quando terminara, o ilustre lama disse:

— Há exceções em toda regra, Lobsang, e toda moeda ou símbolo tem dois lados. O Buda discorreu prolongadamente a seus amigos e discípulos, e grande parte do que ele disse foi escrito e conservado. Há uma narrativa muito adequada ao presente. Eu a apresentarei a você.

Armou-se melhor, pigarreou e prosseguiu:

— É o conto das Três Carruagens, assim chamado porque as carruagens despertavam grande interesse entre os meninos daqueles dias, assim como acontece com as brincadeiras de pula-pula e as guloseimas hoje em dia. O Buda falava com um de seus seguidores, chamado Sariputra. Estavam sentados à sombra de uma das grandes árvores indianas, debatendo a verdade e a inverdade, e como os méritos da primeira são, às vezes, superados pela bondade da última.

“O Buda disse: ‘Agora, Sariputra, vamos examinar o caso de um homem muito rico, tão rico que podia satisfazer todos os caprichos de sua família. Era idoso e tinha uma casa grande e muitos filhos. Desde que estes haviam nascido, ele tudo fizera para protegê-los do perigo. Eles não conheciam o perigo e não haviam sentido a dor. O homem deixou sua propriedade e foi a uma aldeia vizinha para tratar de negócios.

Ao regressar, viu rolos de fumaça erguendo-se ao céu, pelo que apressou a marcha e, ao aproximar-se da casa, verificou que ela estava ardendo. As quatro paredes estavam em fogo, e o telhado também. Dentro da casa, os filhos ainda brincavam, pois não compreendiam o perigo que corriam. Poderiam ter saído, mas não conheciam o significado da dor, por terem sido tão protegidos antes; e não percebiam o perigo do incêndio, porque o único fogo que tinham visto era o dos fogões nas cozinhas. O homem ficou muitíssimo preocupado, pois como podia, sozinho, entrar na casa e salvar os filhos? Se entrasse, talvez pudesse carregar apenas um dos filhos, e os demais continuariam a brincar, achando que se tratasse de alguma brincadeira. Alguns eram muito novos, e poderiam ter andado e entrado nas chamas que não haviam aprendido a recear. O pai foi ter à porta e chamou:

— Meninos, meninos! Venham para fora. Venham para cá, imediatamente!

Os meninos, no entanto, não quiseram obedecer ao pai, queriam continuar brincando, juntar-se no centro da casa, distantes do calor cada vez maior e que não compreendiam. O pai pensou: ‘Conheço bem meus filhos, as diferenças em seus caracteres, todas as sutilezas de temperamento; sei que apenas sairão se acharem que vão ganhar alguma coisa com isso, algum brinquedo novo que houvesse aqui fora’. Assim é que voltou à porta e chamou, em voz alta:

— Meninos, meninos! Venham cá imediatamente. Eu tenho brinquedos aqui para vocês, perto da porta. São carruagens de bois, de bodes, e uma carruagem tão ligeira quanto o vento, porque é puxada por um veado. Venham depressa, ou não as ganharão.

Os meninos, sem recearem o fogo e os perigos do telhado incendiado e paredes em chamas, mas receando apenas perderem os brinquedos prometidos, saíram às pressas. Foram correndo, cada um empurrando os outros para chegar em primeiro lugar ao local onde estariam os brinquedos, a fim de escolher o melhor deles. E, quando o último deles saía da casa, o telhado em chamas desabou em meio a um chuveiro de fagulhas e destroços. Os meninos não deram qualquer atenção aos perigos de que haviam escapado e fizeram uma grande algazarra:

— Papai, papai! Onde estão os brinquedos que o senhor prometeu? Onde estão as três carruagens? Nós viemos correndo, e elas não estão aqui. O senhor prometeu, papai!

Homem rico, para quem a perda da casa não era grande golpe, e vendo que os filhos estavam a salvo, o pai saiu rapidamente com eles a fim de comprar-lhes os brinquedos, as carruagens, sabendo que seu artifício salvara as vidas dos filhos.’” “O Buda voltou-se para Sariputra e perguntou: ‘E agora, Sariputra, o artifício não foi justificado? Aquele homem, usando meios inocentes, justificou o fim visado? Sem seu conhecimento, os filhos teriam perecido nas chamas’.”

“Sariputra voltou-se para o Buda e disse: ‘Sim, ó mestre, o fim justificou bem os meios e causou grande bem’.” O Lama Mingyar Dondup sorriu para mim, enquanto prosseguiu:

— Você foi deixado três dias fora de Chakpori, e pensou que sua entrada fora barrada, mas estávamos aplicando uma prova em você, um meio que se justificou no fim, pois você progride bem.

Também eu estou utilizando “um meio que se justificará no fim”. Estou escrevendo isto, minha verdadeira história (A terceira visão e O médico de Lhasa também são absolutamente verídicos), para que possa prosseguir com meu trabalho, relacionado com a aura humana. Tantas pessoas escreveram perguntando por que escrevo, que lhes vou dar a explicação: escrevo a verdade, para que a gente ocidental possa saber que a alma do homem é maior do que esses sputniks ou foguetes sibilantes. Com o tempo, o homem irá a outros planetas por viagem astral, como eu tenho feito! Mas o homem ocidental não o conseguirá fazer enquanto todos os seus pensamentos forem os de lucro individual, vantagem pessoal, sem qualquer consideração quanto aos direitos do próximo. Eu escrevo a verdade a fim de poder, mais tarde, aprofundar-me no estudo da causa da aura humana.

Pense o leitor no seguinte, que acontecerá: um paciente entra no consultório do médico, e este não se dá o trabalho de fazer qualquer indagação ou exame, mas simplesmente apanha uma máquina fotográfica especial e fotografa a aura do paciente. Em questão de minutos, mais ou menos, esse médico não-clarividente terá em suas mãos uma fotografia colorida da aura de seu paciente. Ele a examinará, com suas estrias e tonalidades de cor, assim como um psiquiatra examina as ondas cerebrais registradas no eletroencefalograma.

O clínico geral, tendo comparado essa fotografia em cores com mapas padronizados, receita uma série de tratamentos com ultrassons e espectros de cores, que corrigirá as deficiências na aura do paciente. Câncer? Será curado. Tuberculose? Também será curada. Parece ridículo? Bem, não há muito se considerava ridículo pensar em enviar ondas de rádio sobre o oceano Atlântico. Era ridículo pensar em voar a mais de duzentos quilômetros horários. O corpo humano se desintegraria, afirmavam então. Era ridículo pensar em ir ao espaço exterior. Pois macacos já foram, e quanto a essa minha ideia ridícula, eu já a vi em funcionamento! Os ruídos de fora entraram em meu quarto, trazendo-me de volta ao presente. Ruídos? Trens que passavam em desvios, um barulhento carro de bombeiros, gente falando alto, seguindo às pressas para um local de entretenimento. “Mais tarde”, pensei, “quando terminar esse clamor horrível, usarei o cristal e direi a eles que farei o que pedem.” Uma sensação cálida e interna diz-me, então, que “eles” já sabem, e que estão satisfeitos.

Por isso, como foi determinado, eis a verdade, a minha história.

 

No início do século, o Tibete se encontrava tomado por muitos problemas. A Grã-Bretanha fazia alarido, gritando para todo o mundo que o Tibete mantinha amizade excessiva com a Rússia, em detrimento do imperialismo britânico. O czar de Todas as Rússias vociferava em seu palácio de Moscou, queixando-se de que o Tibete se tornara demasiadamente amistoso para com a Grã-Bretanha. A corte real da China vibrava com as acusações que levantara contra o Tibete, de que este país passara a ser mais amigo da Grã-Bretanha e da Rússia, e certamente muito menos amigo da China.

Lhasa estava repleta de espiões de diversas nações, muito mal disfarçados como monges mendicantes ou peregrinos, ou missionários, ou sob qualquer capa que parecesse proporcionar um pretexto plausível para estarem no Tibete. Cavalheiros dos mais variados tipos e de diversas raças reuniam-se subrepticiamente sob a capa da noite a fim de ver como eles poderiam valer-se da perturbada situação internacional. O Grande Décimo Terceiro, a Décima Terceira Encarnação do Dalai-Lama e grande estadista, mantinha a calma e a paz que haviam permitido ao Tibete esquivar-se às dificuldades.

Mensagens polidas de amizade imorredoura e ofertas insinceras de “proteção” cruzavam os Himalaias sagrados, enviadas pelos chefes das principais nações do mundo.

Nessa atmosfera de dificuldades e inquietação é que eu nasci. Como a avó Rampa dissera com tanta verdade, eu nasci para dificuldades e tenho estado nelas desde então, e quase nenhuma de minha própria iniciativa! Os videntes e ledores de sorte tinham sido entusiásticos em seus louvores aos dons inatos de clarividência e telepatia de “o menino”. “Um ego elevado”, dissera um deles. “Destinado a deixar nome na história”, afirmava outro. “Uma grande luz para nossa causa”, proclamava o terceiro. E eu, com tão pouca idade, ainda recém-nascido, erguera a voz em protesto por ter sido tolo o bastante para nascer mais uma vez. Os parentes, assim que pude entender-lhes a fala, valeram-se de todas as oportunidades para dizer-me do barulho que fizera, e declararam com satisfação que eu fora a voz mais estridente e menos musical que já tinham tido o infortúnio de ouvir.

Meu pai foi um dos homens mais destacados do Tibete. Nobre de alto grau, exercia considerável influência nas questões de nosso país. Também minha mãe, por seu lado da família, exercia grande autoridade em questões de política. E agora, recordando os anos passados, eu me inclino a pensar que eles eram quase tão importantes quanto minha mãe achava, e isso não era pouco.

Meus primeiros dias foram passados em nosso feliz lar perto da Potala, no outro lado do rio Kaling, ou rio Feliz. “Feliz” porque dava vida a Lhasa, enquanto seguia gargalhando por muitos córregos e em rumo sinuoso, passando pela cidade em forma de regato. Nosso lar era bem construído e tinha vários empregados, e meus pais viviam em esplendor principesco. Eu... bem, eu me achava sujeito a grande disciplina e dureza. Meu pai ficara amargurado durante a ocupação chinesa no primeiro decênio do século e parecia ter adotado um irracional desagrado a meu respeito.

Minha mãe, como tantas mulheres de sociedade no mundo, não tinha tempo para os filhos, encarando-os como coisas das quais era preciso livrar-se o mais depressa possível, entregando-os a alguma pessoa contratada para isso. Meu irmão Paljor não ficou muito tempo conosco, e antes de seu sétimo aniversário partiu para “os campos celestes” e a paz. Eu tinha quatro anos de idade nessa época, e o desagrado de meu pai por mim pareceu aumentar desde então. Minha irmã Yasodhara tinha seis anos quando nosso irmão faleceu, e ambos deploramos, não a perda dele, mas a disciplina mais severa que foi imposta em seguida.

Hoje em dia, meus parentes estão todos mortos, assassinados pelos comunistas chineses. Minha irmã foi morta por resistir-lhes, meus pais por serem donos de terras. O lar de onde eu fitara, olhos arregalados, o belo parque à frente foi transformado em dormitórios para trabalhadores escravos. De um lado da casa encontram-se mulheres que trabalham, e do outro, homens. São todos casados, e se marido e mulher se comportarem e executarem sua cota de trabalho têm licença para ver-se uma vez por semana, por meia hora, e depois disso são submetidos a exame médico.

Nos dias mais distantes do passado, entretanto, quando eu era menino, tais coisas ainda estavam por suceder no futuro, eram coisas que nós sabíamos destinadas a acontecer mas que, como a morte ao final da vida, não incomodavam demasiadamente. Os astrólogos haviam realmente previsto tais acontecimentos, mas nós dávamos prosseguimento embevecidos à vida diária, despreocupados do futuro.

Pouco antes de completar sete anos, idade em que meu irmão deixou esta vida, houve uma grande festa cerimonial em que os astrólogos do Estado consultaram seus mapas e determinaram qual deveria ser meu futuro. Todos quantos tinham alguma importância na sociedade ali se achavam presentes, e muitos haviam surgido sem convite, subornando os empregados para que os deixassem entrar. O congestionamento de pessoas era tão grande que quase não havia espaço para andar, em nossos amplos aposentos.

O sacerdote atrapalhou-se e meteu os pés pelas mãos, como é próprio de seus colegas, e saiu-se com uma demonstração impressionante antes de anunciar os pontos mais destacados de minha carreira. A bem da verdade, devo dizer que eles estavam absolutamente certos em todas as coisas infortunadas que indicaram. Depois disso, informaram a meus pais que eu devia entrar para o Mosteiro Lamaico de Chakpori, para tornar-me monge médico.

Minha tristeza era intensa, pois tinha a sensação de que isso levaria a problemas e apuros. Ninguém me deu ouvidos, no entanto, e não tardou que eu tivesse de enfrentar a provação de ficar sentado três dias e três noites, diante do portão de entrada do mosteiro, só para que verificassem se eu tinha a resistência necessária para tornar-me monge médico. Passei pelo teste, o que constitui prova mais do medo que sentia de enfrentar meu pai, caso fracassasse, do que de minha resistência física. Entrar para Chakpori foi a etapa mais fácil de todas. Nossos dias eram compridos e era realmente duro iniciá-los à meia-noite. Éramos obrigados a frequentar os serviços religiosos a intervalos que ocorriam em toda a noite e o dia. Ensinaram-nos a matéria escolar comum, nossos deveres religiosos, questões do mundo metafísico e conhecimentos médicos, pois deveríamos tornar-nos monges médicos. Nossas curas orientais eram de tal molde que o pensamento médico ocidental ainda não as poderia compreender. Ainda assim, as firmas farmacêuticas ocidentais estão procurando com afinco o meio de sintetizar os poderosos ingredientes que se encontram nas plantas por nós estudadas. E, então, o remédio oriental antiquíssimo, produzido artificialmente em algum laboratório, receberá um nome altissonante e será proclamado como novo exemplo das realizações ocidentais. O progresso é assim.

Quando tinha oito anos de idade, fui submetido a uma operação que abriu minha “Terceira vista”, aquele órgão especial de clarividência que está agonizante na maioria das pessoas, porque as mesmas negam sua existência. Com essa “vista” enxergando, eu conseguia distinguir a aura humana e, desse modo, adivinhar a intenção dos que se encontrassem por perto. Era — e ainda é! — altamente divertido ouvir as palavras vazias dos que fingiam amizade para ganharem com isso, mas que na verdade traziam nos corações o desejo negro de matar. A aura pode indicar toda a história médica de uma pessoa, e, determinando-se o que falta nela e corrigindo-se tais deficiências por meio de radiações, as pessoas podem ser curadas de seus males.

Devido ao fato de possuir capacidade incomum de clarividência, era frequentemente chamado pelo Mais Precioso, a Grande Décima Terceira Encarnação do Dalai-Lama, a fim de examinar a aura dos que o visitavam “em amizade”. Meu amado guia, o Lama Mingyar Dondup, clarividente muito capaz, preparou-me bem. Ensinou-me, igualmente, os maiores segredos da viagem astral, que para mim é mais fácil do que andar. Praticamente qualquer pessoa, qualquer que seja o nome que dê ao que julga ser uma religião, acredita na existência de uma “alma” ou “outro corpo”. Na verdade, existem diversos “corpos” ou “lâminas”, mas o número exato não nos interessa aqui. Nós acreditamos — ou melhor, sabemos! — ser possível deixar de lado o corpo físico comum (o que sustenta as roupas) e viajar a qualquer parte, até mesmo além da Terra, na forma astral.

Todos fazem viagens astrais, mesmo os que julgam isso “tudo bobagem”! É coisa tão natural quanto respirar. A maior parte das pessoas faz isso enquanto dorme e por esse motivo, a menos que estejam preparadas, não sabem do fato. Quantas pessoas, acordando de manhã, exclamam: “Oh! Tive um sonho formidável ontem à noite, pareceu-me que estava com fulana. Fomos muito felizes juntos, e ela disse que vai escrever. Está claro que o sonho se tornou muito vago agora”. E depois, geralmente dias depois, chega realmente uma carta. A explicação é que uma das pessoas viajou astralmente e foi ter com a outra, e, por não estarem ambas preparadas ou treinadas, a coisa se tornou um “sonho”. Quase todos podem fazer viagens astrais. Quantos casos autenticados existem de pessoas que morrem e visitam um ser amado, em sonho, a fim de se despedirem? Trata-se, também, de viagem astral. A pessoa agonizante, tendo afrouxado os laços com este mundo, pode facilmente visitar um amigo, de passagem.

A pessoa preparada pode deitar-se e afrouxar o corpo, e depois os laços que prendem o ego, ou corpo companheiro, ou alma, qualquer que seja o nome dado, pois é tudo o mesmo. E então, quando a ligação única for o Cordão Prateado, o segundo corpo pode desligar-se, como um balão cativo ao final da linha. Você pode ir a qualquer lugar que imagine, inteiramente consciente e alerta, quando preparado e treinado para isso. O estado de sonho, ou onírico, é quando uma pessoa viaja astralmente sem saber disso, e traz de volta uma impressão confusa e embaralhada. A menos que a pessoa esteja treinada, há uma multidão de impressões constantemente recebidas pelo Cordão Prateado, que confunde o “sonhador” cada vez mais. No astral, podemos ir a qualquer lugar, até mesmo ultrapassar os confins da Terra, pois o corpo astral não respira, nem come. Todas as suas necessidades são supridas pelo Cordão Prateado, que, durante a vida da pessoa, faz sua ligação constante com o corpo físico.

O Cordão Prateado é mencionado na Bíblia cristã: “Para que o Cordão Prateado não seja rompido e a Tigela de Ouro estraçalhada”. A Tigela de Ouro é o halo, ou nimbo, em volta da cabeça de uma pessoa espiritualmente evoluída. As pessoas não-evoluídas têm um halo de cor muito diferente! Os artistas de antigamente pintavam um halo dourado ao redor das imagens de santos, porque realmente viam esse halo, pois de outra forma não o teriam pintado. O halo é apenas uma parte muito pequena da aura humana, sendo visto com mais facilidade porque se mostra, em geral, muito mais brilhante.

Se os cientistas quisessem investigar a viagem astral e as auras, ao invés de mexerem com foguetes ruidosos que tantas vezes deixam de entrar em órbita, encontrariam a chave completa para a viagem espacial. Mediante projeção astral, poderiam visitar outro mundo e assim determinar o tipo de espaçonave necessário para realizar a jornada no plano físico, pois a viagem astral tem um grande inconveniente: não se pode levar qualquer objeto material e, tampouco, regressar com ele. Pode-se, apenas, trazer conhecimento. Assim sendo, os cientistas necessitarão de uma espaçonave para trazerem espécimes vivos e fotografias, com o que poderão convencer um mundo incrédulo, pois as pessoas não conseguem acreditar na existência de alguma coisa, a menos que a possam partir em pedaços, a fim de provar que talvez ela seja possível, afinal de contas.

Eu me recordo, de modo especial, de uma jornada no espaço que fiz. O que vou narrar é absolutamente verdadeiro, e aqueles que tenham evoluído saberão disso. Quanto aos demais, não importa, pois ficarão sabendo quando alcançarem uma etapa mais elevada de madureza espiritual. Trata-se de peripécia ocorrida anos atrás, quando eu estava no Tibete, estudando no mosteiro de Chakpori. Embora tenha acontecido há bom número de anos, a recordação continua nítida, como se houvesse passado ontem.

Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e um lama companheiro, na verdade grande amigo meu, chamado Jigme, e eu, estávamos no telhado de Chakpori, sobre a Montanha de Ferro, em Lhasa, no Tibete. Era uma noite muito fria, com talvez quarenta graus abaixo de zero. Enquanto ali estávamos, expostos no telhado, o vento gemia e comprimia nossos hábitos contra os corpos tiritantes. No lado oposto àquele de onde vinha o vento, os hábitos esvoaçavam como bandeiras de oração, deixando-nos gelados até a medula dos ossos, ameaçando atirar-nos pela encosta íngreme do morro.

Olhando ao redor, fortemente inclinados contra o vento para mantermos o equilíbrio, em pé, vimos as luzes fracas da cidade de Lhasa, a distância, enquanto à direita as luzes da Potala aumentavam o ar místico da cena. Todas as janelas pareciam adornadas com lamparinas de manteiga, que, embora protegidas pelas paredes grossas, oscilavam e dançavam ao vento. À luz fraca das estrelas, o telhado dourado da Potala refletia e piscava, como se a própria Lua houvera descido e estivesse brincando entre os pináculos e túmulos na parte superior da gloriosa construção.

Nós, entretanto, tiritávamos no frio intenso, desejando estar no calor do ar carregado de incenso, no templo abaixo. Estávamos no telhado para um rito especial, como o Lama Mingyar Dondup dissera, em tom enigmático. E então ele se colocou entre nós, parecendo tão firme quanto a própria montanha, enquanto apontava para cima, para uma estrela distante — um mundo de aspecto vermelho —, e disse: — Meus irmãos, aquela é a estrela Zhoro, um planeta velho, muito velho, um dos mais antigos neste sistema. Está se aproximando do final de sua longa vida.

Voltou-se para nós, dando as costas ao vento mordaz, e acrescentou:

— Vocês já estudaram muito em matéria de viagem astral. Agora, juntos, vamos viajar no astral até aquele planeta. Deixaremos os corpos aqui, neste teto varrido pelo vento, e subiremos além da atmosfera, além do próprio tempo.

Assim dizendo, seguiu à frente no telhado, até onde encontramos ligeiro abrigo, oferecido por uma cúpula mais destacada. Deitou-se, acenando para que fizéssemos o mesmo. Envolvemos os hábitos nos corpos, e demo-nos as mãos. Acima de nós estava a abóbada profunda e purpúrea do céu, pontilhada pelos leves alfinetes de luz colorida, pois todos os planetas têm luzes diferentes, quando vistos no ar claro das noites do Tibete. Ao redor havia o vento ululante, mas nosso preparo sempre fora severo, e não dávamos qualquer importância a estarmos naquele telhado. Sabíamos que não se trataria de uma jornada comum pelo astral, pois não era frequente deixarmos os corpos expostos assim ao tempo inclemente. Quando o corpo fica em situação desconfortável, o ego pode viajar mais longe, mais depressa, e lembra-se com mais detalhes. Apenas em pequenas viagens pelo mundo é que a pessoa afrouxa o corpo e o torna confortável.

Estávamos deitados, e meu guia disse:

— Agora, seguremo-nos bem as mãos e projetemo-nos juntos além desta Terra. Fiquem comigo e viajaremos para longe, e veremos coisas incomuns esta noite.

Deitamo-nos de costas e respiramos na forma aceita para a libertação da viagem astral. Eu tinha consciência do vento gemendo nas cordas das bandeiras de oração, que tremulavam loucamente acima de nós. E então, de repente, houve um solavanco, e não senti mais os dedos mordazes do vento gelado. Vi-me flutuando, como em tempo diferente, por cima de meu corpo, e tudo era paz. O Lama Mingyar Dondup já se pusera ereto em sua forma astral e então, olhando para baixo, vi que meu amigo Jigme também deixava o corpo. Ele e eu nos pusemos em pé e formamos um elo para unir-nos ao nosso guia, o Lama Mingyar Dondup. O elo, chamado ectoplasma, é fabricado com base no corpo astral, pelo pensamento, sendo o material utilizado pelos médiuns para produzir manifestações espíritas.

Completado o elo, subimos vertiginosamente, pelo céu da noite, e eu, sempre indagador, olhei para baixo. Sob nós, esticando-se debaixo de nós, estavam nossos Cordões Prateados, aqueles liames sem fim que unem os corpos físico e astral durante a vida. Voamos mais e mais, subindo. A Terra se afastava, e podíamos ver a coroa solar surgindo pela orla terrestre, aquela que devia ser o mundo ocidental, pelo qual havíamos viajado tanto, no plano astral. Subimos mais, e dava para ver os limites de oceanos e continentes, e a parte do mundo iluminada pelo sol. De nossa distância, o mundo se assemelhava a uma lua em quarto crescente, mas com a aurora boreal, ou luzes setentrionais, brilhando sobre os pólos.

Prosseguimos na viagem, cada vez mais depressa, até havermos ultrapassado a velocidade da luz, pois éramos espíritos sem corpo, seguindo sempre, aproximando-nos à velocidade do pensamento.

Olhando à frente, vi um planeta, enorme, ameaçador e vermelho, bem à nossa frente. Caímos em sua direção, em velocidade impossível de calcular. Embora eu tivesse muita experiência de viagem astral, senti-me alarmado. A forma astral do Lama Mingyar Dondup deu uma risada telepática e disse:

— Oh, Lobsang, se fôssemos bater naquele planeta, não sentiríamos coisa alguma. Passaríamos através dele sem barreira.

Finalmente nos encontramos flutuando acima de um mundo vermelho e desolado; rochas vermelhas, areia vermelha e um mar vermelho e sem ondas. Enquanto descíamos à sua superfície, vimos criaturas estranhas, como enormes caranguejos, que se moviam letargicamente pela beira da água.

Ficamos sobre aquela praia de rochas vermelhas e olhamos para a água, sem ondas, morta, com espuma vermelha sobre ela, espuma de mau cheiro. Enquanto observávamos, a superfície líquida e turva teve ondulações relutantes, e uma estranha criatura surgiu, também vermelha, de carapaça grossa e juntas notáveis. Emitiu um gemido, como se cansada e desanimada, e chegando à areia vermelha caiu ao lado do mar sem ondas. Acima de nós um sol vermelho tinha brilho mortiço, formando sombras temerosas e sanguinolentas, fantasmagórico e tenebroso. Ao redor não havia movimento, nenhum outro sinal de vida, senão as estranhas criaturas de carapaça, que jaziam semimortas no chão. Embora eu estivesse no corpo astral, estremeci de apreensão, quando olhei em volta. Um mar vermelho com espuma vermelha, rochas, areia e criaturas vermelhas, e acima de tudo um sol rubro, como as brasas finais de uma fogueira, que logo se apagaria e passaria ao nada.

O Lama Mingyar Dondup disse:

— Este é um mundo que está morrendo. Já não há rotação aqui. Este mundo flutua, solto, no mar do espaço, satélite de um sol que agoniza e que logo deverá entrar em colapso, tornando-se estrela anã e sem vida, sem luz, uma estrela anã que mais tarde colidirá com outra, e das duas nascerá outro mundo. Eu os trouxe aqui porque existe neste mundo a vida em escala maior, uma vida que se acha presente para pesquisar e investigar os fenômenos deste tipo. Olhem para lá.

Voltou-se e apontou com a mão direita para a distância, onde vimos três enormes torres que se erguiam ao céu vermelho, e por cima delas havia três bolas de cristal brilhando e pulsando com luz amarelo-clara, como se estivessem vivas. Enquanto estávamos olhando e pensando, uma das luzes se modificou, uma das esferas tomou viva cor azul elétrica. O Lama Mingyar Dondup disse:

— Venham, estão-nos chamado. Vamos descer ao chão, pois eles vivem em câmaras sob a superfície.

Juntos, seguimos para a base daquela torre e então, quando nos encontrávamos sob a estrutura, vimos que havia uma entrada fortemente guarnecida com algum metal estranho, que brilhava e se apresentava como uma cicatriz naquela região vermelha e estéril. Passamos por ele, pois metal, rochas ou qualquer outra coisa, nada constitui barreira para quem está no astral. Atravessamos longos corredores de rocha morta, até chegarmos, finalmente, a um enorme salão, cercado de mapas e cartas, e máquinas e instrumentos estranhos. No centro do salão havia uma mesa comprida, à qual estavam sentados nove homens muito idosos, todos eles diferentes entre si. Um era alto e magro, com a cabeça em formato cônico. Outro era baixo e atarracado. Cada um deles diferia dos demais, sendo claro que vinham de planetas e raças diferentes. Raça humana? Bem, talvez “humanoides” fosse expressão melhor com que designá-los. Eram todos humanos, mas alguns mais do que outros.

Percebemos que todos os nove olhavam fixamente em nossa direção.

— Ah! — disse um deles, telepaticamente. — Temos visitantes vindos de longe. Vimos quando pousaram aqui, em nossa estação de pesquisa, e enviamos nossa mensagem de boas-vindas.

— Respeitáveis pais — disse o Lama Mingyar Dondup —, eu vos trouxe dois que acabaram de ingressar na lamância e que são estudiosos, ansiosos, à busca de conhecimento.

— São certamente bem-vindos — disse o homem alto, que parecia ser o dirigente do grupo. — Faremos qualquer coisa para ajudar, como fizemos anteriormente com os outros.

Isso era novidade absoluta para mim, pois não fazia ideia de que meu guia efetuasse viagens astrais tão extensas, nos lugares celestiais.

O homem mais baixo olhava para mim, e sorriu, dizendo na linguagem universal da telepatia:

— Vejo, meu rapaz, que está muito intrigado pelas diferenças em nossos aspectos.

— Respeitável pai — respondi, um tanto intimidado pela facilidade com que ele adivinhara meus pensamentos, que eu procurara esconder —, isto é verdade. Maravilho-me ante a disparidade de tamanho e forma entre vós, e ocorre-me que não podeis ser homens da Terra.

— Você percebeu corretamente — disse o homem de baixa estatura. — Todos nós somos humanos, mas devido aos ambientes em que vivemos alteramos um pouco nossas formas e nossa estatura. Mas você poderá encontrar o mesmo em seu próprio planeta, onde, na terra do Tibete, há monges que vocês utilizam como guardas, e que têm mais de dois metros de altura. Em outro país de seu mundo, no entanto, há gente com metade dessa estatura, a quem chamam pigmeus. Ambos são humanos e capazes de se reproduzir entre si, a despeito de qualquer diferença em estatura, pois todos somos humanos, nas moléculas de carbono. Aqui, neste universo, tudo depende das moléculas básicas de carbono e hidrogênio, que são os elementos formadores da estrutura do mesmo. Nós, que viajamos por outros universos, muito além deste ramo de nossa nebulosa, sabemos que os outros utilizam componentes diferentes. Alguns usam o silício, outros o gesso, mas eles se mostram diferentes dos habitantes deste universo, e verificamos com pesar que nossos pensamentos nem sempre têm afinidade com os deles. O Lama Mingyar Dondup disse:

— Eu trouxe estes dois jovens lamas para que eles possam ver as etapas de decadência e morte de um planeta que esgotou sua atmosfera e na qual o oxigênio se combinou aos metais para queimá-los e reduzir tudo a uma poeira impalpável.

— É bem assim — disse o homem alto. — Nós gostaríamos de indicar a esses jovens que tudo quanto nasce tem de morrer. Tudo vive pela duração permitida, e esse período é decerto um número de unidades de vida. Uma unidade de vida, em qualquer criatura, é uma batida de seu coração. A vida de um planeta é de dois bilhões e setecentos milhões de batidas, após o que o planeta morre, mas da morte de um nascem outros. Também o ser humano vive por dois bilhões e setecentos milhões de batidas cardíacas, e assim acontece com o inseto mais simples. Um inseto que vive por apenas vinte e quatro horas tem, durante esse tempo, dois bilhões e setecentos milhões de batidas cardíacas. Um planeta... eles variam, naturalmente... mas um planeta pode ter uma batida cardíaca a cada vinte e sete mil anos, e então ocorrerá uma convulsão em seu mundo, quando ele se agita e se prepara para a batida seguinte. Toda a vida, então — prosseguiu ele —, tem a mesma duração, mas algumas criaturas vivem em proporções diferentes de outras. As criaturas sobre a Terra, o elefante, a tartaruga, a formiga e o cachorro, todas elas vivem pelo mesmo número de batidas cardíacas, mas todas têm os corações batendo em ritmos diferentes, de modo que parecem viver mais tempo, ou menos tempo.

Jigme e eu achamos isso extremamente fascinante, e vinha explicar muita coisa que havíamos percebido em nossa terra natal, o Tibete. Havíamos ouvido falar, na Potala, a respeito da tartaruga, que vive tantos anos, e sobre insetos que viviam apenas pela duração de um entardecer de verão, e víamos agora que suas percepções deviam ser aceleradas, para acompanhar o ritmo de seus corações rapidíssimos.

O homem baixo, que parecia fitar-nos com grande aprovação, disse então:

— Sim, e não é só isso, pois muitos animais representam funções diferentes do corpo. A vaca, por exemplo, como qualquer um pode ver, é uma glândula mamária ambulante, a girafa um pescoço, um cachorro... bem, qualquer um sabe em que o cachorro está sempre pensando... cheirando o vento para saber das coisas, porque a vista é tão fraca... e um cachorro pode, portanto, ser encarado como um nariz. Outros animais apresentam afinidades com as diferentes partes da anatomia do corpo humano. O tamanduá da América do Sul pode ser encarado como uma língua.

Por algum tempo conversamos telepaticamente, aprendendo muitas coisas estranhas, e aprendendo com a velocidade do pensamento, como acontece no plano astral. E, então, o Lama Mingyar Dondup se ergueu e disse que era hora de partirmos.

Por baixo de nós, quando voltávamos, os telhados dourados da Potala reluziam na frígida luz solar. Nossos corpos estavam entorpecidos, pesados e difíceis de mover, com as juntas semicongeladas. “E assim”, pensamos, enquanto cambaleávamos para ficar em pé, “terminou outra experiência, outra jornada. O que virá agora?” Uma ciência em que os tibetanos se mostravam supremos era a cura por plantas, ou herborização. Até então o Tibete estivera fechado aos estrangeiros, e nossa fauna e flora jamais tinham sido exploradas por eles. Nos grandes planaltos crescem plantas estranhas. O curare e a mescalina, recentemente descoberta, eram conhecidos no Tibete há séculos. Poderíamos curar muitos dos males do mundo ocidental, mas antes disso seu povo teria de mostrar um pouco mais de fé. A maioria dos ocidentais são loucos, afinal de contas, de modo que o trabalho não valeria a pena.

Todos os anos alguns de nós, que se saíssem melhor nos estudos, partiam em expedições destinadas a colher plantas. Eram plantas e pólen, raízes e sementes, cuidadosamente colhidos, tratados e guardados em sacos feitos de couro de iaque. Eu adorava o trabalho, e estudava bastante. Agora, verifico que as plantas que conhecia tão bem não podem ser obtidas aqui.

Com o tempo, fui considerado capacitado para passar pela cerimônia da pequena morte, sobre o que escrevi em A terceira visão. Com ritos especiais, fui colocado em estado de morte cataléptica, muito abaixo da Potala, e viajei ao passado, seguindo pelo Registro Akáshico. Viajei, também, às paragens da Terra. Mas vou contar do modo como o percebi na ocasião.

O corredor na rocha viva, centenas de metros abaixo da terra congelada, era úmido, úmido e escuro como as trevas do próprio túmulo. Segui por ele, vagando como fumaça na escuridão, e com familiaridade crescente com essas trevas percebi de início, e de modo indistinto, a fosforescência esverdeada da vegetação bolorenta que se prendia às paredes rochosas. De vez em quando, onde a vegetação se mostrava mais prolífica e a luz mais forte, conseguia divisar um brilho amarelo do filão de ouro que percorria a extensão daquele túnel rochoso.

Vaguei à frente sem ruído e sem consciência do tempo, sem pensar em coisa alguma, a não ser em que devia prosseguir cada vez mais para o interior da terra, pois era um dia momentoso para mim, dia em que regressava de três outros, passados em viagem astral. O tempo corria e eu me internava cada vez mais na câmara subterrânea, em escuridão crescente, escuridão essa que parecia ter som, trevas que pareciam vibrar.

Em minha imaginação, visualizava o mundo acima de mim, mundo ao qual estava regressando agora. Antevia a cena conhecida, agora oculta por uma escuridão total. Esperei, pairando no ar como uma nuvem de incenso dentro de um templo.

Gradualmente, de modo tão gradual e lento que algum tempo transcorreu antes que o pudesse perceber, veio um som do corredor, o mais vago de todos os sons, mas que pouco a pouco aumentava de intensidade. Era um som de canto, um som de sinetas de prata, e o arrastar abafado de pés calçados em couro. Finalmente, depois de longa espera, uma luz oscilante e fantasmagórica surgiu, brilhando nas paredes do túnel. O som se tornava mais alto agora. Esperei, pairando sobre uma lapa na escuridão. Gradualmente... Oh, tão devagar, tão dolorosamente devagar, figuras surgiram cautelosamente pelo túnel, vindo em minha direção. Ao se aproximarem, vi que eram monges de hábito amarelo, trazendo archotes acesos, archotes preciosos, vindos do templo acima, com madeiras resinosas raras e bastões de incenso reunidos e exalando um perfume com que se afastavam os odores da morte e deterioração, luzes fortes com que se amortecia e tornava invisível o brilho mau da vegetação luxuriante.

Devagar, os sacerdotes entraram na câmara subterrânea. Dois deles foram ter a cada uma das paredes próximas à entrada e mexeram nas arestas da rocha. E depois, uma após outra, fracas lamparinas passaram a brilhar. Agora a câmara estava mais iluminada e eu podia olhar ao redor mais uma vez e ver, como não pudera fazer por três dias seguidos.

Os sacerdotes estavam em volta de mim e não me viam, de pé sobre um túmulo de pedra situado no centro da câmara. O canto aumentou e também o repicar das sinetas de prata.

Finalmente, um sinal foi dado pelo ancião, os seis monges silenciaram e, esforçando-se, ofegando, ergueram a lapa que cobria o túmulo. Lá dentro, ao que vi, estava meu próprio corpo, envolto no hábito de sacerdote da classe dos lamas. Os monges cantavam mais alto, agora, dizendo:

— Oh, espírito do lama visitante, examinando a face do mundo acima, retorna agora, porque este, o terceiro dia, é chegado e está por acabar. Um primeiro bastão de incenso é aceso para chamar o espírito do lama visitante.

Um monge adiantou-se e acendeu um bastão de incenso de odor suave, de cor vermelha, e tirou outro de uma caixa, enquanto os sacerdotes entoavam:

— Oh, espírito do lama visitante, regressando a nós aqui, apressa-te, pois chega a hora de teu despertar. Um segundo bastão de incenso é aceso para apressar tua volta.

Enquanto o monge solenemente retirava um bastão de incenso da caixa, o sacerdote recitou:

— Oh, espírito do lama visitante, aguardamos para reanimar e nutrir teu corpo terrestre. Apressa-te, pois é chegada a hora e com teu regresso para cá outro grau em tua educação terá sido adquirido. Um terceiro bastão de incenso é aceso à chamada de volta.

Enquanto a fumaça se erguia lentamente, engolfando minha forma astral, estremeci de medo. Era como se mãos invisíveis estivessem a puxar-me, como se houvesse mãos a puxar meu Cordão Prateado, arrastando-me para baixo, forçando-me a entrar naquele corpo frio e sem vida. Senti o frio da morte, senti o tiritar de meus membros, senti que minha vista astral ficava embaçada, e logo grandes arquejos agitaram meu corpo, que tremia desenfreadamente. Os sumos sacerdotes inclinaram-me sobre o túmulo de pedra, ergueram minha cabeça e ombros, forçando a passagem de alguma coisa amarga por minhas mandíbulas cerradas.

“Ah”, pensei. “De volta a meu corpo limitado, de volta a meu corpo limitado.” Pareceu que o fogo corria em minhas veias, que tinham estado adormecidas por três dias.

Gradualmente os sacerdotes me retiraram do túmulo, sustentando-me, erguendo-me, pondo-me em pé, andando em volta da câmara, ajoelhando-se diante de mim, prostrando-se a meus pés, recitando mantras, fazendo orações e acendendo bastões de incenso. Forçaram-me a aceitar alimento, lavaram-me e enxugaram-me, mudando meu hábito.

A consciência regressava ao corpo, e por algum motivo estranho os pensamentos voltaram atrás, a três dias antes, quando uma ocorrência semelhante tivera lugar. Naquela ocasião eu fora deitado naquele mesmo caixão de pedra. Um por um, os lamas haviam olhado para mim e, depois, posto a lapa sobre o caixão e apagado os bastões de incenso. De modo solene, haviam partido pelo corredor entre as rochas, levando consigo as luzes, enquanto eu permanecera bastante atemorizado naquele túmulo de pedra, atemorizado a despeito de todo o meu preparo e treinamento, atemorizado a despeito de saber o que ia acontecer. Eu estivera por bastante tempo nas trevas, no silêncio da morte. Silêncio? Não, pois minhas percepções haviam sido treinadas e estavam tão aguçadas que eu lhes ouvia a respiração, os sons vitais que diminuíam à medida que se afastavam. Ouvia o arrastar de seus pés, que se fazia cada vez mais distante, e depois vieram a escuridão, o silêncio, a imobilidade e o nada.

A própria morte não poderia ser pior do que aquilo, pensara então. O tempo se arrastava sem fim, enquanto eu permanecia lá e me tornava cada vez mais frio. De repente, o mundo explodiu como em chamas douradas, e eu deixei os limites de meu corpo, as trevas do túmulo de pedra e aquela câmara subterrânea. Abri caminho através da terra, a terra congelada, e saí para o ar frio e puro, subindo muito além dos imponentes picos do Himalaia, muito além da terra e oceanos, muito além dos confins do planeta, com a velocidade do pensamento. Vaguei sozinho, etéreo, fantasmagórico no astral, procurando os lugares e palácios da Terra, aprendendo mediante a observação, vendo os outros. Nem mesmo os cofres mais secretos estavam fechados para mim, pois podia vagar tão livre quanto o pensamento e entrar nas câmaras de conselho do mundo todo. Os dirigentes de todos os países passaram diante de mim, em desfile constante, seus pensamentos desnudados diante de meu olhar inquiridor.

“E agora”, pensava, enquanto cambaleava sobre os pés, apoiado pelos lamas, “tenho de relatar tudo que vi, tudo por que passei, e depois? Talvez haja outra viagem semelhante. Depois disso, terei de viajar para o mundo ocidental e arrostar as dificuldades preditas.” Dispondo de muito preparo e treino e tendo passado por muitas dificuldades e vicissitudes, parti do Tibete para receber mais treinamento e atravessar muito mais vicissitudes. Ao olhar para trás, antes de atravessar o Himalaia, vi os primeiros raios de sol sobre as montanhas, tocando os telhados dourados dos edifícios sagrados e transformando-os em visões de arrebatado deleite. O vale de Lhasa parecia dormir ainda, e até as bandeiras de oração ondulavam com sonolência em seus mastros. Perto do Pargo Kaling, pude notar uma caravana de iaques, formada por mercadores, que haviam acordado cedo como eu, partindo para a Índia enquanto eu seguia para Chungking.

Viajamos pelas terras, tomando as trilhas seguidas pelos mercadores que traziam chá ao Tibete, chá esse em formato de tabletes e vindo da China, chá que constituía, com o tsampa, um dos alimentos principais dos tibetanos. O ano de 1927 foi aquele em que saímos de Lhasa, seguindo para Chotang, pequena cidade às margens do Brahmaputra. Dali prosseguimos para Kanting, nas terras baixas, passando por florestas luxuriantes e vales úmidos de vegetação e sofrendo com a respiração, porque estávamos todos acostumados a respirar o ar apenas a três mil metros de altura, ou mais alto. As terras baixas, com sua atmosfera densa a comprimir os pulmões, deprimiam nosso ânimo, fazendo-nos sentir afogados em tanto ar. E seguimos dia após dia, até havermos percorrido uns dois mil quilômetros e chegado aos arrabaldes da cidade chinesa de Chungking.

Acampados para pernoitar, em nossa última noite juntos, pois no dia seguinte meus companheiros de jornada regressariam à nossa amada Lhasa, conversamos em tom lamentoso.

Fiquei altamente perturbado ao notar que meus camaradas, meus acompanhantes, já me tratavam como pessoa morta para o mundo, condenada a viver nas cidades das terras baixas. E assim é que no dia seguinte fui ter à Universidade de Chungking, na qual quase todos os mestres e funcionários trabalhavam com afinco para assegurar o êxito dos estudantes, ajudar de qualquer modo possível, e apenas uma minoria diminuta se mostrava difícil ou pouco colaboradora, ou sofria de xenofobia.

Em Chungking estudei para cirurgião e clínico geral e estudei também para ser piloto de avião, pois minha vida estava prevista em seus menores detalhes e eu sabia, como ficou depois demonstrado, que mais tarde faria muita coisa no ar e na medicina. Em Chungking, porém, estavam ainda apenas os resmungos de guerra, e a maioria de seus habitantes, nessa cidade ao mesmo tempo antiga e moderna, vivia cotidianamente a desfrutar sua vida comum, executando suas tarefas comuns.

Foi essa minha primeira visita, no plano físico, a uma das cidades de grandes dimensões, e na verdade minha primeira visita a qualquer cidade fora de Lhasa, embora na forma astral eu houvesse visitado a maioria das grandes cidades do mundo, como qualquer pessoa pode fazer, pois nada há de difícil nisso, nada de mágico no plano astral. A coisa é tão fácil quanto andar, mais fácil do que andar de bicicleta, porque nesta é preciso manter o equilíbrio, enquanto no plano astral basta utilizar as habilidades e faculdades a que temos direito, por nosso nascimento.

Enquanto estudava na Universidade de Chungking, fui chamado de volta a Lhasa porque o Décimo Terceiro Dalai-Lama estava perto de morrer. Cheguei à nossa capital e tomei parte nas cerimônias seguintes à sua morte e, depois de tratar de diversos negócios em Lhasa, regressei a Chungking. Num encontro posterior com um abade supremo, Tsai Shu, fui persuadido a aceitar uma missão na força aérea chinesa e seguir para Xangai, lugar que, embora eu soubesse ter de visitar, não me oferecia qualquer atrativo. Assim é que mais uma vez mudei de paradeiro e segui para outra residência. Ali, a 7 de julho de 1937, os japoneses criaram um incidente na Ponte Marco Pólo, incidente que foi o ponto inicial da guerra entre a China e o Japão e veio dificultar sobremodo as coisas para nós.

Tive de abandonar minha clínica muito proveitosa de Xangai e colocar-me novamente à disposição do Conselho Municipal de Xangai por algum tempo, mas depois disso dediquei-me completamente a voos de misericórdia para as forças chinesas.

Eu e outros voávamos a lugares onde havia necessidade de cirurgia urgente. Voávamos numa velha aeronave que já fora condenada para qualquer outra finalidade, mas que era considerada suficientemente boa para aqueles que não se achavam empenhados na luta, mas na tarefa de consertar corpos humanos maltratados por ela.

Fui capturado pelos japoneses, depois de nossa aeronave ser derrubada, e eles me trataram com grande brutalidade. Eu não parecia chinês, e eles não sabiam bem com quem eu me parecia. Mas, devido ao uniforme que envergava e à minha patente de oficial, eles se mostraram inteiramente inamistosos.

Consegui fugir e regressar às linhas chinesas, na esperança de retomar meu trabalho. Mandaram-me inicialmente a Chungking, a fim de desfrutar de uma mudança de cenário antes de voltar ao serviço ativo. Chungking era, então, lugar bem diferente da Chungking que eu conhecera antes. Os edifícios eram novos, ou melhor, alguns dos velhos edifícios apresentavam fachadas novas, pois a cidade fora bombardeada. O lugar estava absolutamente congestionado, e todos os tipos de negociantes, vindos das principais cidades chinesas, estavam ali congregados, na esperança de escaparem à devastação da guerra que rugia em outras partes.

Depois de me recuperar um pouco, fui mandado à zona costeira sob comando do General Yo. Nomearam-me oficial médico encarregado do hospital, mas esse “hospital” não era mais do que uma série de arrozais inteiramente inundados. Logo surgiram os japoneses, capturando-nos e matando todos os pacientes que não conseguissem andar. Fui mais uma vez levado e tratado muito mal, pois os japoneses me reconheceram como elemento que fugira antes, e eles não gostavam de gente que fugia.

Após algum tempo, fui mandado a um campo de prisioneiras, mulheres de todas as nacionalidades, para ser o oficial-médico encarregado das mesmas. Ali, devido ao preparo especializado que recebera em utilização de plantas, consegui fazer o melhor uso possível dos recursos naturais do campo, a fim de tratar pacientes às quais, de outra forma, teria sido negada qualquer medicação. Os japoneses acharam que eu estava fazendo demasiado pelas prisioneiras, não permitindo que morresse um número suficiente das mesmas, de modo que fui enviado a outro campo de prisioneiros no Japão, campo esse que eles disseram destinado a terroristas. Segui para lá, em companhia de outros, tangidos como uma manada humana, num navio cheio de vazamentos, no qual fomos tratados muito mal. Sofri grandes torturas em mãos dos japoneses e contraí pneumonia.

Eles não queriam que eu morresse, de modo que cuidaram de mim, à sua maneira, proporcionando-me tratamento. Um dia, quando eu estava melhor — e não queria que soubessem até que ponto eu estava melhor —, a terra tremeu. Julguei tratar-se de um terremoto, e quando espiei pela janela vi que os japoneses corriam apavorados e que todo o céu ficara vermelho, parecendo que o sol fora encoberto. Embora não o soubesse, tratava-se do bombardeio atômico de Hiroxima, a 6 de outubro de 1945.

Os japoneses não estavam mais em condições de se preocupar comigo, ocupadíssimos consigo próprios, de modo que consegui apanhar um uniforme, um quepe e um par de sandálias pesadas. Fui para o ar livre, passando pela porta estreita e sem guarda, e consegui chegar à praia, onde encontrei um pequeno barco de pesca. O dono, ao que parecia, fugira espavorido quando caiu a bomba, pois não se achava à vista. O barco balouçava nas amarras e tinha no interior alguns pedaços de peixe estragado, já que emitiam mau cheiro. Havia uma lata ao lado com água estagnada, que mal se podia beber. Consegui romper a corda que prendia o barco e parti. O vento enfunou a vela esfarrapada, quando a consegui içar horas depois, e o barco partiu para o desconhecido. O esforço fora demasiado para mim, e caí desmaiado.

Muito tempo depois, não sei quanto, pois só posso medi-lo pela decomposição do peixe, acordei na penumbra de um amanhecer. O barco navegava com boa velocidade, formando pequenas ondas na proa. Eu estava doente demais, com pneumonia, para poder baldear a água, de modo que tive de continuar com os ombros e a parte inferior do corpo na água salgada, em meio àquela sujeira. Mais tarde, o sol surgiu com claridade ofuscante, e senti como se tivesse os miolos fervendo e os olhos queimando. Pareceu-me que a língua atingira a grossura de um braço, seca e dolorida. Os lábios e as faces estavam rachados, a dor era demasiada para mim. Achei que os pulmões iam estourar outra vez e percebi que a pneumonia voltara a atacá-los.

A luz do dia desapareceu, e mergulhei na água do fundo do barco, inconsciente. O tempo perdera qualquer significação, era apenas uma série de manchas vermelhas, pontilhadas pela escuridão. A dor percorria meu corpo e eu pairava no limite entre a vida e a morte. De repente, houve um safanão violento, e um chiado de pedrinhas sob a quilha do barco. O mastro balançou como se fosse partir, e o farrapo de vela esbatia-se loucamente na brisa forte. Deslizei à frente, no fundo do barco, inconsciente em meio àquela água fedorenta e agitada.

— Puxa, Hank, tem um cara no fundo do barco, ou será que ele já tá morto? — A voz anasalada despertou em mim um lampejo de consciência, mas permaneci deitado, incapaz de mover-me e de demonstrar que ainda vivia.

— Que qui há? Tá com medo de um difunto? Nóis qué o barco, num qué? Ajuda aqui e vamo joga ele pra fora.

Passos pesados sacudiram o barco, ameaçando esmagar-me a cabeça.

— Puxa, seu! — disse a primeira voz. — O pobre cara sofreu o diabo no sol. Quem sabe ainda tá respirando, Hank? Que que você acha?

— Ora, deixa pra lá. Tá quase morto. Joga pra fora. Num temo tempo a perde.

Mãos fortes e brutas agarraram-me os pés e a cabeça, balançaram-me uma, duas vezes, e depois voei para o lado do barco, indo cair pesadamente na praia de areia e pedregulhos. Sem olhar para mim, os dois lutaram com o barco encalhado, resmungando e praguejando, afastando pedras do caminho, e finalmente conseguiram chegar à água, devagar e de costas.

Tomados de pânico, por algum motivo que eu desconhecia, eles embarcaram às pressas e partiram, fazendo uma série de manobras inábeis com a vela.

O sol brilhava, e pequenas criaturas da areia vieram morder-me; sofri as torturas dos condenados. Gradualmente o dia passou, até que o sol se pôs, vermelho sangue e ameaçador. A água veio bater em meus pés, subiu aos joelhos. Subiu mais, e com esforço estupendo arrastei-me um pouco, enfiando os cotovelos na areia, contorcendo-me, lutando, e desmaiei de novo.

Horas mais tarde, ou podem ter sido dias, despertei e vi a luz do sol mais uma vez. Trêmulo, voltei a cabeça e olhei ao redor. Estava em lugar inteiramente desconhecido, uma pequena cabana, tendo o mar a brilhar e fulgir a distância. Ao voltar a cabeça, vi um velho sacerdote budista a observar-me.

Sorriu e aproximou-se, sentando-se no chão a meu lado. Com bastante dificuldade e muitas pausas, nós conversamos. Nossas línguas eram semelhantes, mas não idênticas, e com muito esforço, substituindo e repetindo palavras, examinamos a situação.

— Durante muito tempo — disse ele — eu sabia que receberia um visitante de certa importância, que tinha uma grande tarefa a cumprir na vida. Embora eu seja velho, consegui continuar vivo, até que a minha tarefa estivesse cumprida.

A cabana era muito pobre, porém limpa, e o velho sacerdote se encontrava visivelmente à beira da morte por inanição. Magérrimo, suas mãos tremiam de fraqueza e velhice. Seu hábito desbotado e antigo tinha remendos bem-feitos, onde ele consertara os estragos causados pelo tempo e por acidentes.

— Vimos quando atiraram você do barco — disse ele. — Por muito tempo julgamos que estivesse morto, e não podíamos chegar à praia para verificar, por causa dos bandidos que há por aqui. De noite, dois homens da aldeia foram lá e trouxeram você. Mas isso foi há cinco dias. Você tem estado muito doente. Nós sabemos que viverá para viajar muito e que terá uma vida difícil.

Difícil! Por que todos me dizem, com tanta frequência, que a vida será difícil? Pensam, por acaso, que eu gosto disso? Por certo era difícil, sempre foi, e eu detestava a dificuldade, tanto quanto qualquer outra pessoa.

— Aqui é Najin — prosseguiu o sacerdote. — Estamos nos arrabaldes. Assim que você puder, terá de partir, pois minha morte está próxima.

Por dois dias eu me movi cautelosamente, procurando recuperar as forças e reconquistar os fios de vida. Estava fraco, faminto, e quase não me importava mais se viveria ou morreria. Alguns velhos amigos do sacerdote vieram ver-me e sugeriram o que eu devia fazer e como viajar. Na terceira manhã, ao despertar, vi o velho sacerdote deitado, hirto e frio a meu lado.

Durante a escuridão da noite ele abandonara a vida e partira. Com o auxílio de um velho amigo seu, cavamos uma sepultura e o enterramos. Envolvi em pedaços de pano os poucos alimentos restantes, e tendo um bastão rijo para ajudar na caminhada, parti também.

Percorrera pouco mais de quilômetro e meio e já estava esgotado. As pernas tremiam, a cabeça parecia girar, tornando confusa minha visão. Por algum tempo deitei-me ao lado da estrada costeira mantendo-me fora da visão dos transeuntes, pois fora avisado de que estava em lugar muito perigoso para forasteiros Ali, ao que me haviam informado, um homem podia perder a vida, se sua expressão fisionômica desagradasse aos bandidos armados que percorriam o lugar, à solta, aterrorizando a população. Passado algum tempo, retomei a caminhada e cheguei a Unggi. Meus informantes haviam dado instruções muito claras sobre como atravessar a fronteira e entrar em território russo. Meu estado de saúde era mau, tornavam-se necessários descansos repetidos, e numa ocasião dessas eu estava sentado ao lado da estrada, observando ociosamente o seu tráfego intenso.

Meu olhar vagava de um a outro grupo, até ser atraído por cinco soldados russos, fortemente armados, e com três enormes mastins em sua companhia. Por algum motivo, naquele mesmo instante um dos soldados relanceou o olhar em minha direção. Com uma palavra aos demais, soltou os três animais, que partiram em minha direção com um clarão azul de velocidade, as presas à mostra e babando de agitação. Os soldados partiram para mim, dedos nos gatilhos de suas submetralhadoras. Enquanto os animais vinham, emiti pensamentos amistosos para eles, pois os animais não tinham medo ou desagrado por mim. De repente, estavam a meu lado, caudas abanando, lambendo-me e babando-me e quase a matar-me de tanta amizade, pois eu me encontrava muito enfraquecido. Uma ordem áspera foi dada, e eles se deitaram aos pés dos soldados, que agora se achavam à minha frente.

— Ah! — disse o comandante do grupo, um cabo. — Você deve ser um bom russo e natural daqui, pois de outra forma os cachorros o teriam despedaçado. Estão treinados exatamente para isso. Observe só, para ver.

Afastaram-se um pouco, puxando os cães que relutavam e queriam ficar comigo. Minutos depois, eles se punham em pé e corriam para alguns arbustos ao lado da estrada. Houve gritos horríveis, repentinamente abafados por um gargarejo de sangue. Um ruído atrás de mim, e quando me voltei lá estava uma mão humana, ensanguentada, arrancada à altura do punho.

O cachorro deixou-a cair a meus pés e passou a abanar a cauda para mim! — Camarada — disse o cabo, aproximando-se —, você deve realmente ser leal, para que Serge faça uma coisa dessas. Nós vamos para nossa base em Kraskino. Você está viajando. Quer uma carona até lá, em companhia de cinco cadáveres?

— Sim, camarada cabo, eu ficaria muito agradecido — respondi.

Seguindo à frente, tendo os cachorros a meu lado sacudindo as caudas, levou-me a um caminhão semi-lagarta, que puxava um reboque. De um dos cantos do caminhão escorria um filete de sangue, formando uma poça no chão. Olhando de modo casual para os cadáveres ali empilhados, o soldado deu mais atenção às contorções débeis de um agonizante. Sacou o revólver, desferiu-lhe um tiro na cabeça e repôs a arma no coldre, seguindo para o caminhão sem olhar para trás.

Disseram-me que me sentasse num banco na parte traseira do veículo. Os soldados estavam bem-humorados, dizendo que nenhum estrangeiro jamais cruzava a fronteira quando eles estavam em serviço, e contando que seu pelotão fora agraciado com a Estrela Vermelha de Competência. Eu disse que ia para Vladivostok a fim de ver aquela grande cidade pela primeira vez, e esperava não ter grandes dificuldades com o idioma.

— Ora! — disse o cabo, prorrompendo em gargalhadas. — Nós temos um caminhão de abastecimento que vai amanhã para lá, levando estes cachorros para descansar, porque com sangue demais eles ficam selvagens e nem nós conseguimos dominá-los. Você sabe entender-se com eles. Tome conta deles e nós o levaremos amanhã a Vladi. Se você nos entende, entenderá como falam em qualquer lugar neste distrito... Isto aqui não é Moscou!

Assim é que eu, detestando o comunismo, passei aquela noite como convidado dos soldados da Patrulha Fronteiriça Russa. Ofereceram-me vinho, mulheres e canções, mas aleguei, como desculpa para recusar, a idade e o meu estado de saúde. Tendo feito uma boa refeição comum, a melhor em muito tempo, fui deitar-me no chão e dormi com consciência leve.

De manhã partimos para Vladivostok, o cabo, outro soldado, três cachorros e eu. E assim, mediante amizade com aqueles animais ferozes, cheguei a Vladivostok sem problemas, sem andar, e bem alimentado.

 

A estrada era esburacada e poeirenta. Seguindo por ela, passamos por turmas de mulheres encarregadas de encher os buracos mais fundos com pedras e tudo que encontrassem, sob a guarda de um fiscal armado. Ao passarmos, os soldados em minha companhia gritaram comentários obscenos e fizeram gestos significativos para elas.

Seguimos por um distrito bem povoado e, mais adiante, chegamos a uns edifícios de aspecto sombrio, que deviam ter sido alguma prisão. O caminhão semi-lagarta chegou a um pátio de paralelepípedos, mas não havia pessoa alguma por lá. Os soldados olharam ao redor, espantados, e quando o motorista desligou o motor percebemos, no mesmo instante, um clamor tremendo, e gritos de homens e latidos ferozes de cães. Apressamo-nos a ir ter ao lugar do alarido, eu em companhia dos soldados. Passando por um portão aberto, em meio a uma alta muralha de pedras, vimos um cercado forte que devia conter mais ou menos cinquenta mastins enormes.

Falando depressa, um homem à beira do grupo de soldados ali reunidos contou o que acontecera. Os cachorros, sedentos de sangue humano, haviam se revoltado e devorado dois de seus zeladores.

Formou-se uma agitação repentina, e enquanto aquela gente se movia e pulava vi um terceiro zelador, que subira bem alto na parte interna da cerca de arame, perder as forças e cair entre os animais. Houve um grito horrível, de gelar o sangue, e logo um amontoado de cães rosnando. O cabo voltou-se para mim.

— Ei, você! Você sabe controlar cachorros!

Dirigiu-se a outro soldado, ordenando:

— Peça ao camarada capitão para vir aqui, e diga que temos um homem que sabe controlar os cachorros.

Enquanto o soldado se afastava para cumprir a ordem, eu quase desmaiei. Eu? Por que era sempre eu que tinha de enfrentar as dificuldades e perigos? E depois, olhando para os animais, pensei: “E por que não? Esses cães não são tão ferozes quanto os mastins tibetanos, e esses soldados cheiram a medo, por isso os animais atacam”.

Um capitão de aspecto arrogante veio pela multidão, que abriu caminho respeitosamente à sua passagem. Parando a pouca distância de mim, olhou-me de alto a baixo e fez uma careta de desdém.

— Ora, cabo! — disse, com altivez. — O que temos aqui? Um ignorante sacerdote nativo?

— Camarada capitão — respondeu o cabo —, este homem não foi atacado por nossos cachorros. Serge arrancou a mão de um clandestino e levou-a para ele. Mande-o entrar no cercado, camarada capitão.

O oficial fechou a cara, arrastou os pés na poeira e começou a roer as unhas, pensando no caso. Finalmente, voltou a fitar-nos.

— Sim, vou mandar — disse. — Moscou disse que não devo matar mais cachorros, mas não disse o que fazer quando eles ficam com sede de sangue. Se este homem morrer... Bem, terá sido um acidente. Se viver, o que duvido, nós o recompensaremos.

Voltou-se e andou de um lado para outro, e depois ficou a fitar os cachorros, que mordiam e roíam os ossos dos três zeladores que haviam matado e devorado. Voltando-se para o cabo, ele disse:

— Trate disso, cabo, e se ele conseguir alguma coisa você será sargento.

Dito isso, afastou-se apressadamente e o cabo ficou de olhos arregalados.

— Eu, sargento? Ora, essa! Voltou-se para mim e foi explícito:

— Você doma os cachorros e todos os homens da patrulha fronteiriça serão seus amigos. Pode entrar!

— Camarada cabo — obtemperei —, gostaria que os três cachorros entrassem comigo, porque eles me conhecem e conhecem os outros animais.

— Pois seja — disse ele. — Venha comigo, vamos buscá-los.

Voltamo-nos e fomos ao reboque do caminhão, onde acariciei os três cães, deixando que me lambessem e passassem seu cheiro para mim. E depois, tendo-os a pular e correr a meu lado, fui para a entrada fechada do cercado. Guardas armados ali se apresentaram, para o caso de algum animal escapar, e rapidamente abriram o portão, empurrando-me para dentro.

Vieram cachorros de todas as direções, mas as mandíbulas abertas e ameaçadoras dos “meus” três fizeram a maioria desistir de aproximar-se demasiadamente de mim. Um deles, no entanto, animal feroz e obviamente o chefe da matilha, saltou à minha garganta com intuito assassino. Eu estava bem preparado para isso, e enquanto chegava para um lado apliquei-lhe uma compressão rápida na garganta, um golpe de judô (ou caratê, como algumas pessoas o chamam) que o matou antes mesmo de chegar ao chão. O corpo foi coberto por uma massa de cachorros rosnando e lutando, quase antes de me ser possível saltar e sair da frente. Os rosnados e o bater de mandíbulas mostravam-se repulsivos.

Esperei por alguns momentos, desarmado e indefeso, pensando apenas em termos amistosos com relação aos cachorros, dizendo-lhes que não tinha medo deles, que era senhor deles. Voltaram-se, e tive a repugnância momentânea de ver o esqueleto do que, momentos antes, fora seu chefe. Os cães voltaram-se em minha direção, e eu me sentei no chão e ordenei, por comando mental, que fizessem o mesmo. Vieram, deitando-se à minha frente em semicírculo, as patas estendidas, parecendo até sorrir, as línguas pendidas e as caudas abanando.

Pus-me em pé e chamei Serge a meu lado. Pondo a mão em sua cabeça, disse em voz alta:

— A partir de agora você, Serge, você será o chefe de todos, e me obedecerá e fará com que eles me obedeçam.

Do lado exterior do cercado veio um estrondo espontâneo de aplausos. Eu me esquecera dos soldados! Voltando-me, vi que estavam acenando, cheios de amizade. O capitão, o rosto vermelho de animação, aproximou-se mais do arame e gritou:

— Traga para fora os cadáveres, ou o que resta deles!

Penosamente, fui ter ao primeiro, reduzido a uma massa retalhada e sangrenta, os ossos do peito descarnados. Tomei-o pelo braço e puxei, mas o braço soltou-se à altura do ombro. Puxei o cadáver pela cabeça, suas entranhas arrastando-se atrás. Houve uma exclamação de horror, e vi que Serge vinha a meu lado, carregando o braço do homem. Com muito esforço, retirei os três cadáveres, ou o que restava deles, e depois fui ao portão, realmente esgotado pelo esforço, e deixaram que eu saísse. Lá estava o capitão, que declarou:

— Você fede! Vá limpar-se da imundície desses corpos. Ficará aqui um mês, tratando dos cachorros. Depois disso, eles voltarão às patrulhas e você poderá ir-se embora. Receberá o soldo de cabo.

Voltou-se para o cabo, e disse:

— Como prometi, a partir deste momento você é sargento.

Voltou-se e foi-se embora, claramente satisfeito com tudo quanto acontecera. O sargento, a essa altura, sorria gostosamente para mim.

— Você é um mágico! Nunca mais esquecerei como matou aquele cachorro. Nunca mais esquecerei como o capitão dava pulos, filmando a cena toda. Você fez muito por si, sabe? Na última vez que houve tumulto entre os cachorros, nós perdemos seis homens e quarenta animais. Moscou repreendeu o capitão e disse o que aconteceria se perdesse mais cachorros. Ele vai tratar você muito bem. De agora em diante, você comerá em nossa companhia. Nós não fazemos perguntas. Mas venha, você está fedendo, como disse o capitão! Lave-se bem. Eu sempre disse ao Andrei que ele comia demais e tinha mau cheiro, e agora que o vi por dentro noto que tinha razão.

Eu me achava tão cansado e esgotado que esse humor macabro não me causou espanto. Um grupo de homens, todos eles cabos, soltava gargalhadas no refeitório, e alguns falaram algo ao sargento. Este estrugiu em risadas e apressou-se a vir ter comigo.

— Ah, ah! Camarada sacerdote! — gritou, os olhos marejando de tanto rir. — Eles dizem que você está com tanta coisa interna do Andrei, em sua parte externa, que devia ficar com tudo quanto foi dele, agora que morreu. Ele não tinha parentes. Nós vamos chamar você de Camarada Cabo Andrei, por todo o tempo que estiver aqui. Tudo quanto foi dele é seu, agora. E você me fez ganhar muitos rublos, quando apostei em seu favor, dentro do cercado. Você é meu amigo! O Sargento Bóris era bom sujeito, no íntimo. Sem educação, de maneiras rudes e sem qualquer fingimento de bons modos, ainda assim demonstrou muita amizade por ter-lhe conseguido a promoção.

— Eu teria sido cabo a vida toda — afirmou.

Ganhara muito dinheiro por minha causa, pois numerosos companheiros seus tinham dito que eu não sobreviveria dentro do cercado dos mastins. Ouvindo isso, Bóris dissera:

— O homem é dos bons! Deviam ter visto, quando soltamos os cães sobre ele. Nem se mexeu! Ficou como uma estátua, sentado. Os cachorros acharam que ele era um dos seus. Ele vai dar um jeito nessa cachorrada, vocês vão ver!

— Quer apostar, Bóris? — gritara um dos soldados.

— Três meses de soldo! — aceitara ele. Como resultado, ganhara dos demais o equivalente a três anos e meio de soldo, e estava agradecido.

Aquela noite, após generoso jantar (pois os guardas da fronteira viviam bem), dormi em alojamento quente, ao lado do cercado dos cães. O colchão estava bem cheio de capim seco e os homens haviam conseguido cobertores novos para mim. Eu tinha todos os motivos para estar reconhecido pelo treinamento que me proporcionara tal compreensão da natureza dos animais.

À primeira luz do dia vesti-me e fui ver os cachorros. Haviam-me mostrado onde guardavam a comida para eles, e vi que eram muito bem alimentados. Juntaram-se ao redor de mim, balançando as caudas, e de vez em quando um deles punha as patas em meus ombros. Num desses momentos, olhei casualmente para o lado e vi o capitão, fora do cercado, examinando a cena.

— Ah! sacerdote, vim apenas ver por que os cachorros estavam tão quietos — disse ele. — A hora de comer sempre foi ocasião de lutas e loucura, com o zelador do lado de fora atirando comida para dentro e os animais a se morderem para apanhá-la. Não vou fazer perguntas, sacerdote. Dê-me sua palavra de que permanecerá aqui quatro ou cinco semanas, até que todos os cachorros saiam, e poderá estar em liberdade neste lugar e ir à cidade quando quiser.

— Camarada capitão, dou-lhe com prazer minha palavra de que ficarei até que todos os cachorros se tenham ido embora. Depois disso, prosseguirei minha viagem — respondi.

— Outra coisa, sacerdote — disse ele. — Na próxima ocasião de dar comida aos cães, eu trarei minha máquina de cinema para filmar, de modo que os meus superiores possam ver como mantemos os cachorros em ordem. Vá ao intendente e tire um uniforme de cabo, e se encontrar alguém que o possa ajudar no cercado mande limpar tudo. Se eles tiverem medo, trate você mesmo da limpeza.

— Eu mesmo o farei, camarada capitão — respondi —, porque os cachorros não ficarão agitados.

Ele assentiu e saiu, evidentemente feliz pelo fato de que poderia mostrar como ele controlava os cães sedentos de sangue! Por três dias eu não me afastei mais do que uns cinquenta metros do cercado dos cachorros. Aqueles homens gostavam de fazer disparos à toa, e achavam naturalíssimo atirar nos arbustos próximos, “só para ver se havia espiões escondidos por lá”.

Descansei por três dias, recuperando energias e convivendo com eles, passando a conhecê-los melhor e anotando seus hábitos. Andrei fora homem mais ou menos de meu tamanho, de modo que suas roupas me serviram razoavelmente bem. É verdade que foram então lavadas mais de uma vez, pois não fora criatura que se destacasse em matéria de limpeza. Muitas vezes o capitão me abordou, procurando iniciar conversa, mas, embora parecesse genuinamente interessado e bastante amistoso, eu tinha de me lembrar de meu papel de sacerdote simplório! Ele zombava da religião, dizendo não haver vida posterior, nem Deus, nada senão o Pai Stálin. Eu citava as Escrituras, jamais excedendo o conhecimento que um sacerdote de aldeia pobre poderia ter.

Em uma dessas discussões Bóris estava presente, apoiado no cercado de cachorros e mastigando ocasionalmente uma folha de grama.

— Sargento! — exclamou o capitão, exasperado. — O sacerdote nunca saiu desta pequena aldeia. Leve-o a dar umas voltas, e mostre-lhe a cidade. Leve-o em patrulha a Artem e Razdolnov. Mostre-lhe a vida! Ele só sabe a respeito da morte, pensa que isso é a vida.

Cuspiu no chão, acendeu um cigarro contrabandeado e afastou-se com passos furiosos.

— Sim, sacerdote, venha! Você passou tanto tempo com os cachorros que está começando a parecer-se com eles. Mas eu tenho de reconhecer que eles estão bem comportados, agora. E você ganhou um monte de dinheiro para mim. Estou cheio da nota, sacerdote, e preciso gastar antes de morrer.

Seguiu à frente para um automóvel, embarcou e fez sinal para que eu o imitasse. Ligou o motor e acionou a alavanca de mudança, engrenando. Nós partimos, sacolejando nas estradas esburacadas, disparando pelas ruas estreitas de Vladivostok. No porto havia muitos navios, em quantidade maior do que julgava existir em todo o mundo.

— Olhe, sacerdote! — disse Bóris. — Aqueles navios têm mercadorias que foram capturadas, mercadorias que iam em “empréstimo e arrendamento” dos americanos para algum outro país. Eles acham que os japoneses os capturaram, mas nós mandamos a carga pela ferrovia (a Estrada de Ferro Transiberiana) para Moscou, onde os chefes do Partido pensam que são os primeiros a escolher.

Mas quem escolhe primeiro somos nós, porque temos um acordo com o pessoal do porto. Nós fazemos vista grossa para o que lhes arrumam, e eles nos retribuem do mesmo modo. Você já teve um relógio, sacerdote?

— Não — respondi. — Em minha vida tenho possuído bem pouco. Conheço a hora pela posição do Sol e das sombras.

— Você precisa de um relógio, sacerdote! — disse Bóris, acelerando o carro, e logo paramos ao lado de um cargueiro amarrado no cais. O navio tinha faixas de ferrugem vermelha e rebrilhava com borrifos de água salgada. A viagem pelo Crescente de Ouro fora dura e difícil. Guindastes giravam os braços, descarregando os produtos de diversas partes do mundo. Homens gritavam, gesticulavam, manipulavam as redes de carga e puxavam as amarrações. Bóris desembarcou do carro e subiu rapidamente a prancha, arrastando-me atrás de si.

— Queremos relógios, capitão — berrou para o primeiro homem uniformizado que viu. — Relógios, para usar no pulso.

Um homem com uniforme mais ornamentado do que os demais surgiu e fez sinal para que fôssemos à sua cabina.

— Relógios, capitão — berrou Bóris. — Um para ele, dois para mim. Quer ir à terra, capitão? Há muitos divertimentos por lá. O que quiser. Meninas, bebida, nós não atrapalhamos. Queremos relógios.

O capitão sorriu e serviu bebida. Bóris sorveu a sua, ruidosamente, e eu lhe passei a que me fora oferecida.

— Ele não bebe, capitão. Ele é um sacerdote que virou guarda de cachorros, e muito bom guarda, também. É um bom sujeito — disse Bóris.

O capitão foi ter a um espaço embaixo de seu leito e puxou de lá uma caixa. Abrindo-a, exibiu mais ou menos uma dúzia de relógios de pulso. Quase mais depressa do que se podia ver, Bóris apanhou dois, de ouro, e, sem se preocupar em dar-lhes corda, colocou-os um em cada pulso.

— Tire um relógio, sacerdote — ordenou. Estendi a mão e apanhei um, cromado.

— Esse é melhor, sacerdote — observou o comandante do barco. — É de aço inoxidável, um Omega à prova de água, muito melhor do que os outros.

— Obrigado, comandante — respondi. — Se não se incomoda, ficarei com o que escolheu.

— Agora eu vejo que você é doido, sacerdote! — exclamou Bóris. — Um relógio de aço, quando pode ter um de ouro? Eu ri e respondi:

— O aço é bastante bom para mim. Você é sargento, mas eu não passo de cabo bastante temporário.

Do navio seguimos para os desvios da Estrada de Ferro Transiberiana, onde turmas de trabalhadores empenhavam-se em carregar os caminhões com as melhores mercadorias encontradas nos navios. Dali os caminhões partiriam para Moscou, a uns dez mil quilômetros de distância.

Enquanto observávamos, um dos trens partiu. Eram duas locomotivas puxando vasta quantidade de carros ferroviários, cada máquina com cinco rodas em ambos os lados. Eram maquinismos gigantescos, bem mantidos e encarados quase como criaturas vivas pelos tripulantes do comboio.

Bóris dirigia o carro ao lado do leito ferroviário. Havia guardas por toda a parte, e de buracos no chão homens armados examinavam as partes inferiores dos trens que passavam, procurando passageiros clandestinos.

— Vocês parecem ter muito medo de que alguém viaje ilegalmente nos trens — comentei. — Isso é uma coisa que eu não compreendo. Que mal pode haver em deixar as pessoas darem uma volta?

— Sacerdote — retrucou Bóris, com rispidez —, você não tem conhecimento da vida, exatamente como o capitão disse. Inimigos do Partido, sabotadores e espiões capitalistas querem entrar em nossas cidades. Nenhum russo honesto quereria viajar, a menos que recebesse ordem de seu comissário para isso.

— Mas há muitos querendo viajar clandestinamente? O que vocês fazem com eles, quando os encontram, Bóris?

— Fazemos com eles?! Ora, essa! Nós os matamos, é claro! Não há muitos clandestinos por aqui, mas amanhã irei a Artem e levarei você. Você vai ver como lidamos com esses elementos subversivos. O pessoal do trem, quando apanha um deles, amarra-lhe as mãos, passa-lhe uma corda no pescoço e o atira fora. Mas faz um estrago grande na linha férrea, e atrai os lobos.

Bóris inclinou-se no assento, os olhos a examinar os vagões ferroviários que seguiam. Como se fora eletrificado, sentou-se em posição ereta e apertou o acelerador. O automóvel deu um salto à frente e passou à frente do trem.

Freando com violência, Bóris saltou, apanhou a submetralhadora e escondeu-se ao lado do carro. Devagar o trem veio chegando, e vi de relance alguém que viajava entre dois carros no trem, e logo veio a voz gagá da submetralhadora. O corpo caiu entre os trilhos.

— Acertei — disse Bóris, triunfal, enquanto fazia outro entalhe na coronha da arma. — Com esse são cinquenta e três, sacerdote. Cinquenta e três inimigos do Estado com quem eu já acabei.

Voltei-me para outro lado, repugnado e com medo de demonstrá-lo, pois Bóris dispararia sobre mim com a mesma facilidade com que matara aquele homem, se soubesse que eu não era um sacerdote de aldeia.

O trem passou, e Bóris foi ter ao local onde se achava o corpo ensanguentado. Revirando-o com o pé, olhou-lhe o rosto e disse:

— Estou reconhecendo este. É um ferroviário. Não devia estar viajando daquele jeito. Talvez seja melhor eu acabar com a cara dele, para não haver dificuldades.

Assim dizendo, pôs o cano da arma perto do rosto do cadáver e puxou o gatilho. Deixando o corpo, agora, sem cabeça, voltou ao carro e saímos dali.

— Nunca estive em um trem, Bóris — disse eu.

— Bem, amanhã iremos a Artem, no trem de mercadorias — disse ele —, e você dará uma espiada. Tenho bons amigos por lá, e quero vê-los, agora que sou sargento.

Por muito tempo eu acalentara a ideia de embarcar como clandestino em algum navio e partir para a América. Mencionei o caso a Bóris.

— Bóris, você passa todo o tempo detendo pessoas na fronteira e verificando que não haja clandestinos nos trens — disse, então. — Mas, com todos aqueles navios, qualquer um pode embarcar e fugir.

Ele se encostou no assento e explodiu em gargalhadas.

— Sacerdote, você deve ser um pateta! — comentou. — Os guardas marítimos embarcam a dois quilômetros da costa e verificam todos os membros da tripulação. Depois disso, fecham todas as escotilhas e ventiladores e derramam gás de cianeto nos porões e outros espaços, sem esquecer os escaleres. Arranjam uma boa quantidade de defuntos, de reacionários que não sabiam disso.

Senti-me muito mal ao tomar conhecimento do modo impiedoso pelo qual aqueles homens encaravam a questão, tomando-a como esporte, e mudei de ideia a respeito de embarcar clandestinamente.

Lá estava eu em Vladivostok, mas tinha minha tarefa a cumprir na vida e, como dissera a profecia, tinha de ir primeiramente à América, depois à Inglaterra, e de volta ao continente norte-americano.

O problema estava em como sair daquela parte do mundo onde me encontrava. Resolvi ficar sabendo o mais que pudesse sobre a Estrada de Ferro Transiberiana, onde terminavam os exames e buscas, e sobre o que acontecia em seu terminal de Moscou.

No dia seguinte, exercitei e alimentei os cachorros bem cedo e, tendo-os acomodado, parti com Bóris e três outros guardas fronteiriços. Viajamos uns noventa quilômetros até um posto adiantado, onde os três guardas iam substituir três outros. Por todo o caminho os homens conversavam, contando quantos “fugitivos” haviam matado a tiros, e eu consegui recolher algumas informações úteis. Fiquei sabendo em que ponto não havia mais vistorias e exames, e que se tomasse cuidado alguém conseguiria viajar até os arrabaldes de Moscou sem ser apanhado.

Dinheiro seria o problema, pelo que pude compreender. Por isso ganhei dinheiro, fazendo serviço de outros, tratando-lhes os males e, por meio de alguns, tratando de membros ricos do Partido na própria cidade. Com outros, consegui visitar os navios, e recebi meu quinhão de despojos de novas cargas ferroviárias. Todas as minhas “gratificações” eram transformadas em rublos. Eu me preparava para atravessar a Rússia.

Umas cinco semanas depois, o capitão veio dizer-me que os cachorros iam voltar às estações de patrulha. Havia um novo comissário a caminho, e eu devia partir antes de sua chegada. Para onde ia? perguntou. Conhecendo-o bem, a essa altura, respondi:

— Vou ficar em Vladivostok, camarada capitão. Gostei daqui.

Seu rosto tornou-se apreensivo.

— Você deve partir, sair do distrito. Amanhã.

— Mas, camarada capitão, não tenho para onde ir, nem dinheiro — respondi.

— Você ganhará rublos, comida, roupas, e será levado para fora do distrito.

— Camarada capitão — reiterei —, não tenho para onde ir. Trabalhei muito aqui, e quero ficar em Vladivostok.

Ele foi inflexível:

— Amanhã mandaremos homens ao limite de nossa área, na fronteira de Voroshilov. Você será levado e deixado lá. Eu lhe darei uma carta dizendo que ajudou muito por aqui, e que seguiu com nossa permissão. Assim a polícia de Voroshilov não o prenderá.

Isso era muito melhor do que eu esperava. Eu queria chegar a Voroshilov, porque era lá que pretendia embarcar no trem. Sabia que se conseguisse chegar ao outro lado daquela cidade estaria mais ou menos a salvo.

No dia seguinte, com um grupo de guardas, embarquei em um transporte rápido de tropas e seguimos com velocidade pela estrada rumo a Voroshilov. Dessa feita, eu usava um bom terno e tinha uma mochila grande com pertences, bem como uma bolsa cheia de alimentos. Não tive o menor escrúpulo em pensar que estava usando as roupas tiradas de um clandestino morto a bordo.

— Não sei para onde vai, sacerdote — disse Bóris —, mas o capitão declarou que foi ele quem treinou aqueles cachorros, de modo que você tinha de partir. Pode dormir no posto esta noite, e seguir seu caminho de manhã.

Aquela noite senti-me inquieto. Estava farto de andar de um lugar para outro, farto de viver tendo a morte ao lado. Era de uma solidão espantosa viver com aquela gente tão diferente, tão absolutamente oposta a meu modo pacífico de vida.

De manhã, após boa refeição, despedi-me de Bóris e dos demais, arrumei a mochila nas costas e parti. Cobri quilômetro após quilômetro, evitando a estrada principal, procurando fazer a volta ao redor de Voroshilov. Ouvi o rugido de um carro atrás de mim, o uivo de freios apertados com violência, e logo estava diante do cano de uma metralhadora.

— Quem é você? Aonde vai? — perguntou um cabo de cara azeda, com uma voz que parecia um rosnar.

— Estou a caminho de Voroshilov — respondi. — Tenho uma carta, aqui, do Camarada Capitão Vassíli.

Arrebatando-me a carta, ele a abriu, fechando ainda mais a cara no esforço para ler. Depois disso, seu rosto exibiu um amplo sorriso.

— Acabamos de estar com o Sargento Bóris — disse.

— Entre, nós o levaremos a Voroshilov e o deixaremos onde quiser ficar.

Aquilo era um contratempo, pois eu queria evitar a cidade! Mesmo assim, embarquei no carro de patrulha e nele seguimos com rapidez para Voroshilov. Desembarquei perto do quartel de polícia e, enquanto o carro entrava na garagem, segui a passos rápidos, tentando percorrer a maior distância possível antes do anoitecer. Pretendia acampar perto da estrada de ferro e observar o que acontecia por toda uma noite e um dia, antes de embarcar.

Os trens de passageiros eram detidos e vistoriados em Voroshilov, mas os de carga paravam pouco antes da cidade, talvez para que a população local não visse quantos clandestinos eram encontrados mortos. Observei atentamente e decidi que minha única esperança estava em embarcar quando o trem se achasse de partida.

Na noite do segundo dia, um trem de aparência muito conveniente parou ali. Tratava-se de um comboio que minha experiência anterior dizia trazer muitas cargas de “empréstimo e arrendamento”. Não devia perdê-lo, disse a mim mesmo, e segui entre os trilhos, espiando por baixo, verificando as portas fechadas a chave, abrindo as que não estavam fechadas. De vez em quando soava um tiro, seguido pelo ruído de um corpo que tombava. Os cachorros não eram utilizados ali, pois tinham medo de que fossem mortos pelas rodas dos vagões. Eu rolei pelo chão, procurando tornar-me o mais sujo possível. Os guardas vieram olhando e examinando o trem, gritando uns para os outros, iluminando com lanternas fortes. Ninguém pensou em olhar atrás do trem, e apenas este merecia sua atenção.

Inclinado no chão por trás deles, eu estava pensando: “Meus cachorros seriam muito mais eficientes do que isso. Eles me teriam descoberto logo!” Satisfeitos com a busca, os homens se afastaram. Eu rolei de lado para a pista e corri entre as rodas de um vagão. Com rapidez, subi a um eixo e prendi uma corda, que tinha preparado, fixando-a em uma alça. Prendendo-a ao outro lado, alcei-me e amarrei-me ao fundo do chão do vagão — na única posição que escaparia ao exame. Planejara aquilo por todo um mês. O trem partiu, com um solavanco que quase me deslocou, e, como imaginara, um jipe de farol aceso veio correndo pelo lado, tendo guardas armados a vistoriar as barras dos eixos. Colei-me mais ao fundo do vagão, sentindo-me como um homem nu haveria de sentir-se em meio a uma convenção de freiras pudicas! O jipe prosseguiu em seu caminho, fez uma volta e regressou, desaparecendo finalmente de minha vista e de minha vida. O trem prosseguiu em sua marcha, e por uns oito a dez quilômetros eu me mantive seguro naquela posição dolorosa.

Convencido, então, de que o perigo passara, saí devagar da corda e consegui equilibrar-me sobre uma das cobertas dos eixos. Por algum tempo descansei do melhor jeito que pude, deixando que a sensibilidade retornasse a meus membros doloridos e entorpecidos. Depois, devagar e cautelosamente, fui-me arrastando pelo fundo do vagão e consegui segurar-me a uma barra de ferro. Por meia hora, talvez, sentei-me nos engates, e depois alcei-me àquela plataforma balouçante e subi às cegas para o teto. Estava bastante escuro agora, a não ser pela luz das estrelas. A lua ainda não despontara e eu sabia que tinha de agir depressa para entrar em um vagão, antes que algum ferroviário em ronda me visse, ao luar siberiano.

Chegando ao telhado, amarrei uma extremidade da corda ao redor do corpo, passei a outra pelo beiral e deslizei cuidadosamente pelo lado, soltando devagar a corda que segurava.

Batendo e raspando nas arestas, consegui logo abrir a porta com uma chave que obtivera em Vladivostok para esse fim — uma chave que servia para todas as fechaduras dos trens. Verifiquei ser fantasticamente difícil empurrar a porta, enquanto eu oscilava como um pêndulo, mas a visão dos primeiros raios de luar deu-me vigor maior, a porta se abriu e eu me arrastei para o interior, exausto. Soltando a ponta livre da corda, sacudia e puxei-a até que a tivesse toda nas mãos. Tremendo de esgotamento, fechei a porta e deixei-me cair no chão.

Dois ou três dias depois — a noção do tempo é perdida em tais condições — senti que o trem diminuía a marcha. Acorrendo à porta, abri uma fresta e olhei para fora. Nada havia a ver, senão neve, de modo que fui ter ao outro lado.

Guardas do trem estavam correndo atrás de um grupo de refugiados. Era óbvio que havia uma grande busca. Apanhando meus pertences, pulei para o lado sobre a neve. Esquivando-me e rolando entre as rodas, consegui embaralhar inteiramente os rastros.

Enquanto o fazia, o trem retomou sua marcha e eu me agarrei desesperadamente ao engate regelado mais próximo. Com muita sorte, consegui passar os braços por um deles e ali fiquei, pés suspensos no ar, até que um solavanco repentino me permitisse erguer também as pernas.

Em pé, verifiquei estar na extremidade de um vagão coberto por um encerado duro e congelado. Os nós que o amarravam estavam cobertos por gelo sólido, a lona grossa parecia uma lâmina de ferro. Fiquei sobre os engates que balançavam, cobertos de gelo, lutando com os nós das amarras.

Bafejei sobre eles, pensando que se tornariam mais macios, mas o hálito se congelou e tornou o gelo ainda mais grosso. Puxei a corda para a frente e para trás, esfregando-a contra o metal do lado do vagão.

A escuridão chegava, quando o último fio puído cedeu e eu pude, com esforço imenso, erguer uma beira da lona e entrar. Lá dentro, quando caí ao chão, um homem pulou sobre mim, armado com um pedaço agudo de aço, com que visava minha garganta. O instinto e o hábito vieram em meu auxílio e logo ele gemia, com um braço quebrado. Os dois outros vieram, um com uma barra de ferro e outro com uma garrafa quebrada. Para criaturas com meu preparo em luta, não constituíam grande problema, e logo estavam desarmados. Ali imperava a lei da selva, o mais forte era rei! Agora que eu os derrotara, tornavam-se meus servidores.

O vagão estava cheio de cereal, que comemos sem qualquer preparo, e para beber juntávamos neve ou chupávamos gelo tirado do encerado aos pedaços. Não conseguíamos qualquer aquecimento, pois nada havia para queimar e a tripulação do trem teria visto a fumaça. Eu conseguia arrostar o frio, mas o homem com o braço quebrado ficou enregelado certa noite, e tivemos de atirá-lo para fora.

A Sibéria não é apenas neve, pois tem partes montanhosas, como as montanhas Rochosas do Canadá, e outras tão verdejantes quanto a Irlanda. Nós, entretanto, estávamos às voltas com a neve, pois atravessávamos a pior estação do ano para viajar.

Verificamos que o cereal comido sem preparo trazia grandes problemas, fazendo-nos inchar e causando séria disenteria, enfraquecendo-nos a tal ponto que pouco nos interessava viver ou morrer.

Finalmente a disenteria diminuiu, e sofremos as dores fortes da fome. Eu me abaixei pelo lado do vagão, com a corda, e raspei a graxa das graxeiras, e comemos isso, com terríveis ânsias de vômito.

O trem prosseguiu sua marcha, por volta da extremidade do lago Baykal e para Omsk. Ali, como eu sabia, seria redistribuído e reorganizado, e eu teria de sair antes de chegarmos à cidade, pulando para outro comboio que estivesse reorganizado. De nada adianta relatar com minúcias todas as vicissitudes que corremos nessa mudança de trens, mas em companhia de um russo e um chinês consegui embarcar num rápido trem de carga destinado a Moscou.

Esse outro comboio estava bem organizado, e a chave que eu conservara com cuidado abriu a porta de um vagão, no qual embarcamos, ocultos pela escuridão de uma noite sem lua.

O vagão estava muito cheio, e tivemos de abrir caminho a força. Não havia o menor vestígio de luz e não fazíamos ideia de qual fosse sua carga. Ao amanhecer, tivemos uma surpresa agradável. Estávamos passando fome, e vi que um dos cantos do vagão exibia uma pilha de pacotes da Cruz Vermelha, que aparentemente não haviam chegado a seu destino, tendo sido “libertados” pelos russos. Diante disso, nossa vida melhorou. Chocolate, comida enlatada, leite condensado, tínhamos tudo! Encontramos até um pequeno fogareiro com suprimento de combustível sem fumaça, dentro de um dos pacotes. Investigando os fardos, verificamos que eles continham roupas e artigos que podiam ter sido saqueados das lojas de Chungking. Eram máquinas fotográficas, binóculos, relógios, e nós nos abastecemos com roupas boas, pois as nossas se encontravam em petição de miséria. Nossa falta maior era a água, e tínhamos que depender da neve que conseguíamos raspar onde se acumulava.

Quatro semanas e mais de dez mil quilômetros depois de ter deixado Vladivostok, o trem se aproximou de Noginsk, a uns oitenta quilômetros de Moscou. Nós três debatemos a questão e resolvemos que, como os tripulantes do comboio estavam ficando mais ativos — ouvíamos suas passadas no telhado do vagão —, seria melhor sair dali. Examinamo-nos cuidadosamente uns aos outros, para termos certeza de que não apresentávamos qualquer traço suspeito, e depois recolhemos boa quantidade de alimentos e “valores” com que pudéssemos barganhar. O chinês foi o primeiro a sair, e ao fecharmos a porta ouvi disparos de fuzil. Três ou quatro horas depois o russo saiu, e eu o acompanhei com um intervalo de meia hora.

Segui a pé na escuridão, bem certo do caminho, pois o russo nascera em Moscou, a que regressava após estar exilado na Sibéria, e dera informações muito precisas sobre aquela região. De manhã eu já cobrira uns trinta quilômetros, e minhas pernas, tão castigadas nos campos de prisioneiros, estavam causando grande problema. Chegando a um restaurante, mostrei os documentos de cabo da Guarda Fronteiriça Russa. Eram os papéis de Andrei, pois haviam dito que eu poderia ficar com todos os seus pertences e ninguém pensara em excluir os documentos oficiais e a carteira de identidade dele. A garçonete pareceu em dúvida e chamou um policial que estava na parte externa. Ele veio e houve muita discussão.

Expliquei que não tinha cartão de racionamento de comida, pois o deixara inadvertidamente em Vladivostok, onde não havia regulamentos para comer com relação aos guardas fronteiriços. O policial remexeu em meus documentos e disse:

— Vai ter de comer no mercado negro, até poder ir à repartição alimentar e obter outro cartão. E eles vão ter de comunicar-se com Vladivostok para verificar o caso. Tendo esclarecido a questão, retirou-se.

A garçonete deu de ombros, e avisou:

— Peça o que quiser, camarada, porque vai lhe custar cinco vezes mais do que o preço oficial.

Trouxe-me algum pão preto mofado e uma pasta de aspecto horrível e gosto pior. Não entendeu meus sinais pedindo o que beber, e trouxe uma substância que eu quis ingerir inadvertidamente e quase me fez desmaiar ali mesmo.

Bastou um pequeno gole, e pensei que tinha sido envenenado, mas a garçonete cobrou até a água, enquanto ela própria sorvia o caldo repugnante pelo qual eu pagara tanto dinheiro. Quando saí, o policial estava à espera, e acertou os passos pelos meus, seguindo a meu lado e dizendo:

— Tudo isso é muito irregular, camarada. Você andando com essa mochila nas costas, sem cartão de racionamento... Será que devo levá-lo à estação para ser interrogado? Você tem um relógio de sobra, camarada, para que eu esqueça o meu dever? Em silêncio, vasculhei o bolso e tirei de lá um dos relógios que apanhara no trem. O policial o recebeu, olhou e disse:

— Moscou bem à sua frente. Evite a estrada principal e chegará bem.

Voltou-se e foi-se embora. Eu segui pelas estradas laterais, bem alerta para não encontrar policiais que pudessem exigir relógios. Com base em minha experiência, parecia-me que os russos tinham um anseio fortíssimo por relógios. Muitos deles nem sequer sabiam ver as horas, mas a simples posse de um relógio os satisfazia, por algum motivo obscuro. À minha frente seguia um homem magérrimo, e de repente o mesmo fraquejou e caiu de cara na valeta ao lado da estrada. Os passantes nem sequer o olharam, seguindo seus caminhos. Fiz menção de ir ter com ele, quando atrás de mim um velho murmurou o aviso:

— Cuidado, camarada forasteiro. Se for lá a polícia vai pensar que quer roubá-lo. Deixe estar, que ele já morreu. Fome. Acontece às centenas, todos os dias.

Mostrando meu agradecimento pela advertência, prossegui a caminhada, pensando: “Que lugar terrível! Todos contra os outros. Deve ser porque não têm uma religião para guiá-los”.

Dormi, aquela noite, sob a parede arruinada de uma igreja abandonada. Dormi tendo uns trezentos outros por companhia. A mochila serviu de travesseiro, e durante a noite percebi que mãos furtivas procuravam desatar as correias. Um golpe rápido na garganta do candidato a ladrão mandou-o de costas, arquejante, e não me incomodou outra vez.

De manhã, comprei alimentos no mercado negro do governo, pois, na Rússia, é o governo quem o dirige, e prossegui na caminhada. O russo no trem dissera que eu devia procurar passar por turista, e ter uma máquina fotográfica (que eu apanhara no trem) a tiracolo. Estava sem filme, e naqueles dias eu nem sequer sabia distinguir sua parte dianteira da traseira, quanto mais manejá-la.

Logo cheguei à parte melhor de Moscou, aquela que o turista comum visita, pois o turista comum não vê “por trás dos bastidores”, não vê a miséria, a pobreza e a morte existentes nas ruas laterais, de cortiços. O rio Moscou estava à minha frente, e segui por suas margens algum tempo, antes de entrar na Praça Vermelha. O Kremlin e o Mausoléu de Lênin não me impressionaram de modo algum, acostumado que estava com a grandeza e beleza resplandecentes da Potala. Perto de uma entrada do Kremlin havia um pequeno grupo de pessoas à espera, em atitude apática e ar desmazelado, como se fora trazido ali como gado. Com um ruído forte, três automóveis pretos e enormes atravessaram a praça e desapareceram na escuridão das ruas. Quando vi pessoas olhando desanimadamente em minha direção, ergui um pouco a máquina fotográfica. De repente, senti uma dor terrível na cabeça. Por momentos, achei que algum edifício desabara sobre mim, e caí ao chão, enquanto a máquina era arrebatada de minhas mãos. Enormes guardas soviéticos estavam a meu lado, um deles metódica e desapaixonadamente a desferir pontapés em minhas costelas para que eu me levantasse. Semiaturdido, levantar era difícil, de modo que dois policiais se inclinaram e me puseram em pé, com brutalidade. Faziam uma série de perguntas, mas falavam com tal rapidez e “sotaque de Moscou” que não entendi uma só palavra. Finalmente, cansados de fazer perguntas a que não obtinham respostas, tocaram-me pela Praça Vermelha, um a cada lado e o terceiro por trás, a cutucar-me com enorme cano de revólver.

Paramos diante de um edifício com aspecto deplorável, e entramos por uma porta que dava para o porão. Fui empurrado com brutalidade, descendo degraus de pedras e chegando a uma saleta. Lá havia um oficial à mesa, com dois guardas armados em pé, encostados a uma parede. O policial mais graduado que me trouxera iniciou uma longa explicação ao oficial, e colocou minha mochila no chão, ao lado do mesmo. O oficial preencheu o que parecia ser um recibo, onde registrava ter-me recebido e a meus pertences, e o policial se retirou.

Fui brutalmente empurrado para outro aposento, bem maior, e deixado em pé diante de uma mesa enorme, tendo um guarda a cada lado. Algum tempo depois, três homens entraram e sentaram-se à mesa, examinando o conteúdo da mochila. Um deles tocou a campainha para chamar algum ajudante, e quando este chegou entregou-lhe a máquina fotográfica, dando-lhe instruções em tom brusco. O homem se voltou e saiu, levando cuidadosamente aquela máquina inofensiva, como se fosse uma bomba prestes a explodir.

Fizeram-me perguntas que eu não conseguia entender, e finalmente chamaram um intérprete, e depois outro, e mais outro, até encontrarem um que sabia conversar comigo. Fui despido e examinado por um médico, e todas as costuras de minha roupa vasculhadas, algumas delas rasgadas. Finalmente atiraram tudo sobre mim, menos os botões, correia e cordões dos sapatos. A uma ordem, os guardas me tocaram para fora da sala, carregando as roupas, e assim percorremos um corredor após outro. Eles não faziam qualquer ruído, pois tinham pantufas de feltro nos pés, e tampouco falaram, entre si ou comigo. Enquanto seguíamos em silêncio, um grito de gelar o sangue fez-se ouvir, e pareceu pairar no ar. Involuntariamente, eu diminuí a marcha, mas o guarda atrás pulou sobre meu ombro com tanta força que julguei ter-me quebrado o pescoço.

Paramos, finalmente, diante de uma porta vermelha. Um guarda abriu-lhe a fechadura e fui empurrado, para cair de cabeça, por três degraus de pedra. A cela era muito escura e úmida, uns dois metros por quatro, e tinha um colchão fedorento no chão. Por algum tempo fiquei naquela escuridão, a fome aumentando sempre, imaginando o motivo pelo qual a humanidade se mostrava tão selvagem.

Depois de prolongado intervalo, um guarda veio, abriu a porta e trouxe um pedaço de pão preto e uma pequena vasilha com água salobra, fazendo sinal para que a bebesse naquele momento. Tomei um gole, e ele arrebatou a vasilha de minha mão, derramando o restante no chão e retirando-se da cela. A porta foi fechada em silêncio, e não havia qualquer som, senão gritos ocasionais e horríveis, rápida e violentamente suprimidos. O tempo se arrastava, e eu mordiscava o pão preto mofado.

Estava com fome, e achara ser capaz de comer qualquer coisa, mas aquele pão era terrível, e tinha um cheiro tão ruim que parecia ter sido tirado de uma fossa. Muito tempo depois, quando eu receava ter ficado esquecido, guardas armados vieram silenciosamente à cela. Ninguém disse uma só palavra, e fizeram gestos para que os seguisse. Não tendo escolha, obedeci, e seguimos por corredores intermináveis, dando-me a impressão de que andávamos repetidas vezes pelo mesmo caminho, a fim de criar tensão nervosa em mim. Afinal, fui levado a uma sala comprida, onde havia uma parede pintada de branco brilhante.

Com brutalidade, os guardas amarraram meus braços por trás do corpo e puseram-me de frente para a parede branca. Por momentos nada aconteceu, e logo luzes muito fortes, ofuscantes, foram acesas de modo a refletir-se na parede branca. Pareceu-me que os globos oculares estavam sendo queimados, mesmo fechando os olhos. Os guardas usavam óculos escuros. A luz vinha em ondas, e a sensação era como se estivessem enfiando agulhas em meus olhos.

Abriu-se e fechou-se uma porta, com suavidade. Ouvi um arrastar de cadeiras e um ruído de papéis. Uma voz baixa iniciou uma conversa, que não compreendi. E, então, com uma coronhada de fuzil entre os meus ombros, teve início o interrogatório. Por que tinha uma máquina fotográfica sem filme? Por que estava com os documentos de um guarda fronteiriço, servindo em Vladivostok? Como? Por quê? Quando? Hora após hora eles fizeram as mesmas perguntas estúpidas. A luz rebrilhava, dando-me forte dor de cabeça. Uma coronhada, se eu me recusasse a responder. O único descanso ocorria a cada duas horas, por momentos, quando guardas e interrogadores eram substituídos por outros, pois também eles se cansavam com as luzes fortes.

Após o que me pareceram horas intermináveis, mas que na realidade não podiam ser mais de seis, fraquejei e caí ao chão. Os guardas serenamente começaram a espetar-me com as baionetas agudas, e foi difícil voltar a ficar em pé, tendo os braços amarrados nas costas, mas eu o consegui, caindo de novo e levantando-me de novo. Quando perdia os sentidos, jogavam baldes de água de latrina em mim. Hora após hora o interrogatório prosseguiu, minhas pernas começaram a inchar, os tornozelos tornaram-se mais grossos do que as coxas, quando os fluidos do corpo desciam e inundavam a carne.

Eram sempre as mesmas perguntas, sempre a mesma brutalidade. Sessenta horas em pé, setenta horas... O mundo se tornara um borrão vermelho, eu morria em pé. Nada de alimento, nem descanso, apenas um gole de alguma droga que impedia o sono, que me obrigavam a ingerir. Perguntas, perguntas, perguntas... Setenta e duas horas, e não ouvi mais coisa alguma, não vi mais nada. As perguntas, as luzes, a dor, tudo desapareceu e imperava a escuridão.

Decorreu um período que não posso calcular, e reconquistei alguma consciência cheia de dor, de costas no chão frio e úmido de uma cela fedorenta. Mover-me era penosíssimo, a carne parecia flácida e as costas como se a espinha fosse feita de vidro quebradiço. Não havia som algum para mostrar que existissem outras criaturas vivas, nenhum brilho de luz para distinguir a noite do dia. Nada, somente uma eternidade de dor, fome e sede.

Finalmente, percebi um lampejo de luz quando um guarda empurrou um prato de comida pelo chão, tendo ao lado uma lata com água. A porta foi fechada, e eu fiquei novamente sozinho com meus pensamentos naquela escuridão.

Muito mais tarde os guardas voltaram, e eu fui arrastado pois não podia andar — à sala de interrogatório. Ali tive de sentar-me e escrever a história de minha vida. Por cinco dias seguidos aconteceu a mesma coisa: era levado a um quarto, recebia um pedaço de lápis e papel, bem como a ordem para que escrevesse tudo a meu respeito. Durante três semanas permaneci em minha cela, recuperando-me devagar.

Fui mais uma vez levado a uma sala, à presença de três altos funcionários. Um deles olhou para os demais, depois para o papel que tinha nas mãos, e disse que certas pessoas influentes haviam deposto no sentido de que eu ajudara elementos em Vladivostok. Uma destas afirmava que eu ajudara sua filha a fugir de um campo de prisioneiros dos japoneses.

— Você será libertado — disse o funcionário — e levado a Stryj, na Polônia. Temos um destacamento de partida para lá, e você irá com eles.

Fui levado a uma cela — melhor, desta feita —, enquanto me recobrava o suficiente para a viagem. Finalmente, transpus o portão da prisão Lubianka, em Moscou, a caminho do Ocidente.

 

Fora da Lubianka, havia três soldados à minha espera. O guarda da prisão, que me empurrou porta afora, entregou um papel ao soldado mais graduado, um cabo.

— Assine aqui, camarada. É só para acusar o recebimento de um deportado.

O cabo coçou a cabeça, em dúvida, molhou na língua a ponta do lápis, limpou as palmas das mãos nas calças, antes de garatujar o nome, hesitando. O guarda da prisão voltou-se sem uma palavra, e a porta da Lubianka foi fechada — dessa feita, para minha felicidade, deixando-me na parte externa.

O cabo dedicou-me uma expressão azeda.

— Agora, por sua causa, tive de assinar um papel. Só Lênin sabe o que poderá acontecer por isso. Talvez eu mesmo acabe na Lubianka. Vamos, trate de andar! Tomou lugar à minha frente, e com um soldado de cada lado fui levado pelas ruas de Moscou até uma estação ferroviária. Eu não tinha coisa alguma a carregar, pois tudo que possuía, agora, estava em meu corpo, resumindo-se no que eu vestia. Os russos haviam ficado com a mochila, relógio, tudo, a não ser as roupas do corpo. E que roupas eram essas? Sapatos pesados, com solas de madeira, calças e uma jaqueta, só isso. Nenhuma roupa de baixo, ou dinheiro, ou alimento algum. Nada. Sim, havia uma coisa! Trazia no bolso um papel dizendo que estava sendo deportado da Rússia e que tinha a liberdade de seguir para a Alemanha ocupada pelos russos, onde deveria apresentar-me à primeira delegacia policial.

Na estação ferroviária de Moscou, ficamos sentados à espera, em meio a um frio intenso. Um após outro, os soldados saíam e voltavam, revezando-se para que pudessem afastar-se por algum tempo. Sentei-me na plataforma de pedra, tiritando. Estava com fome, sentia-me doente e fraco. Finalmente surgiram uns cem soldados, comandados por um sargento, que veio pela plataforma, olhando para mim.

— Você quer que ele morra? — berrou para o cabo. — Temos de entregar o homem vivo, em Lwow. Providencie para que ele coma, pois temos seis horas de espera até que o trem saia.

O cabo e um dos soldados agarraram-me pelos braços e me puseram em pé. O sargento fitou-me nos olhos e disse:

— Hum... Não é sujeito de tipo mau. Trate de não criar embaraços, e nós faremos o mesmo. Examinou meus documentos, que o cabo trazia.

— Meu irmão esteve na Lubianka — confidenciou, quando nenhum dos comandados estava a distância de onde pudesse ouvir. — Ele também não tinha feito coisa nenhuma. Foi mandado para a Sibéria. Agora, vou mandar que lhe deem de comer. Coma bem, porque depois de chegarmos a Lwow você estará por conta própria.

Voltou-se e chamou dois cabos.

— Tratem dele, e façam com que receba toda a comida e bebida que quiser. Temos de entregá-lo em boas condições, ou o comissário dirá que matamos os prisioneiros.

Segui, abatido, entre os dois cabos. Num pequeno restaurante fora da estação o cabo mais graduado pediu grandes tigelas com sopa de repolho e fatias de pão preto. A sopa tinha o mau cheiro característico de legumes deteriorados, mas consegui sorvê-la, pois era grande a fome, embora recordando a “sopa” que vira nos campos de prisioneiros dos japoneses, onde pedaços cuspidos e rejeitados por seus guardas, e demais restos de comida, eram transformados em “sopa” para os prisioneiros.

Tendo feito uma refeição, estávamos prontos para viajar. Um cabo pediu pão, bem como três exemplares do Pravda. Embrulhamos os pães nos jornais, verificando primeiramente se não estávamos profanando alguma fotografia de Stálin, e regressamos à estação ferroviária.

A espera foi terrível, seis horas no frio enregelante, sentados numa plataforma de pedra. Afinal, embarcamos em um trem velho e partimos para Kiev. Aquela noite dormi escorado em dois soldados russos que roncavam. Não havia espaço para deitar, e estávamos apinhados no vagão. Os bancos duros eram incômodos, e eu desejava poder sentar no chão. O trem seguia aos trancos e barrancos, parecendo parar em meio a guinchos cada vez que eu conseguia adormecer. Em hora bem adiantada da noite seguinte, após uma viagem penosa de uns novecentos quilômetros, chegamos a uma estação de segunda categoria, em Kiev. Havia muito movimento, gritaria, e saímos para o alojamento local, a fim de passar a noite.

Empurraram-me para uma cela, e depois de muitas horas fui acordado pela entrada de um comissário e seu ajudante. Fizeram perguntas intermináveis e após uma ou duas horas saíram novamente.

Por algum tempo rolei, procurando dormir, mas mãos fortes batiam em meu rosto, gritando:

— Acorde! Acorde! Já morreu? Aqui tem comida. Depressa! Tem apenas dez minutos, antes de partir.

Comida? Mais sopa de repolho. Mais pão preto e mofado, e água para beber. Engoli aquilo, receando ter de partir antes de terminar aquela refeição miserável. Engoli e esperei. Esperei horas.

Mais tarde entraram dois homens da Polícia Militar, interrogaram-me outra vez, tiraram de novo minhas impressões digitais e disseram:

— Estamos atrasados. Não há tempo para fazer uma refeição agora. Talvez arranje o que comer na estação.

Fora do acampamento, havia três caminhões de transporte de soldados à espera. Quarenta deles e eu fomos embarcados em um deles, não sei como, os demais embarcaram nos outros dois veículos, e partimos, sacolejando perigosamente pela estrada até a estação. Íamos tão apertados que mal se podia respirar. O motorista de nosso caminhão parecia estar doido, ultrapassando de muito os dois outros.

Dirigia como se todos os demônios do comunismo estivessem em seu encalço. Nós saltávamos e balançávamos na parte traseira do veículo, todos em pé porque não havia espaço para sentar. Voávamos pela estrada em velocidade frenética, e depois veio o gemido de freios aplicados com rapidez demasiada, e o veículo deslizou de lado. À frente abriu-se um chuveiro de fagulhas, quando batemos em uma grossa parede de pedras. Gritos, berros, imprecações, um verdadeiro banho de sangue, e verifiquei que fora atirado ao ar. Voava, e não podia ver o caminhão destroçado e tomado por violento incêndio. Houve uma sensação de queda, um estrondo, e a escuridão imperou.

— Lobsang! — disse uma voz bem-amada, a voz de meu guia, o Lama Mingyar Dondup. — Você está muito doente, Lobsang. Seu corpo ainda se encontra na Terra, mas nós o chamamos aqui, a um mundo além do astral. Estamos procurando ajudar você, porque sua tarefa na Terra ainda não terminou.

Mingyar Dondup? Ridículo! Ele fora morto pelos comunistas traiçoeiros, quando procurava chegar a um acordo pacífico no Tibete. Eu vira os ferimentos horríveis, feitos quando fora apunhalado pelas costas. Mas, naturalmente, eu o vira diversas vezes, desde que passara aos campos celestiais.

A luz parecia ferir meus olhos fechados. Pensei estar novamente naquela parede da Lubianka, e que os soldados voltariam a bater-me entre os ombros, com as coronhas dos fuzis. Mas a luz era diferente, não feria meus olhos. Devia ter sido uma associação de ideias, pensei, aturdido.

— Lobsang, abra os olhos e olhe para mim! — E a voz bondosa de meu guia aqueceu-me, fazendo uma sensação de prazer percorrer o meu ser.

Abri os olhos e examinei, ao redor. Inclinado sobre mim vi o lama. Estava melhor do que em qualquer ocasião em que o vira na Terra. O rosto parecia intato ao tempo, sua aura era de cores mais puras, sem qualquer traço das paixões dos homens terrestres. Seu hábito de um amarelo forte fora feito de material não encontrado na Terra e brilhava, como se fora dotado de vida própria. Ele sorriu para mim, e disse:

— Meu pobre Lobsang, a desumanidade do homem para com o homem realmente tem sido exemplificada em seu caso, porque você viveu e passou por mais tribulações do que muitos teriam suportado. Você veio descansar, Lobsang. Um descanso no que chamamos a Terra da Luz Dourada. Aqui, estamos além do estágio de reencarnação. Aqui, nós trabalhamos para ajudar os povos de muitos mundos, não apenas aquele a que chamam Terra. Sua alma está ferida, o corpo estraçalhado. Temos de consertá-lo, Lobsang, pois é preciso executar sua tarefa, e não há um substituto para você.

Olhei ao redor e verifiquei estar no que parecia um hospital. Do ponto onde me encontrava, podia ver um belo terreno gramado e ajardinado, e a distância havia animais pastando ou brincando. Pareciam-me veados, leões e todos aqueles animais que não podiam viver em paz na Terra, mas ali eram amigos a brincar como se fossem membros da mesma família.

Uma língua áspera lambeu minha mão direita, que pendia inerte à beira da cama. Olhei e vi Shalu, o imenso gato que guardara o Chakpori, um de meus primeiros amigos naquele mosteiro. Ele piscou o olho para mim, e senti um arrepio na pele do corpo, quando ele disse:

— Ah, meu amigo Lobsang! Fico satisfeito em vê-lo outra vez, ainda que por pouco tempo. Você terá de voltar à Terra, mas dentro de alguns anos regressará para estar eternamente em nossa companhia.

Um gato, falando? Fala telepática dos gatos eu conhecia bem, e entendia por completo, mas aquele gato estava realmente pronunciando palavras, não apenas mensagens telepáticas. Risadas altas fizeram com que eu fitasse meu guia, o Lama Mingyar Dondup, que realmente se divertia à minha custa, pensei eu. Meu couro cabeludo arrepiou-se outra vez.

Shalu ficara sobre as patas traseiras, ao lado da cama, apoiando os cotovelos em mim. Ele, e o lama olharam para mim, depois entreolharam-se, ambos riram. Ambos riram, juro!

— Lobsang — disse meu guia —, você sabe que não há morte, sabe que ao deixar a Terra no que se chama “morte” o ego vai ter àquele plano onde repousa por algum tempo, antes de se preparar para reencarnar em algum outro corpo que proporcione oportunidade de aprender outras lições e de progredir. Aqui estamos num plano para o qual não existe reencarnação. Aqui vivemos, como você vê, em harmonia, em paz, e com a faculdade de ir a qualquer lugar em qualquer momento, pelo que você chamaria superviagem astral. Aqui, animais e seres humanos, bem como outras formas de vida, podem comunicar-se falando ou por telepatia. Usamos a fala quando estamos próximos, a telepatia quando distantes.

À distância, eu ouvia música suave, música essa que até eu conseguia compreender. Meus professores em Chakpori haviam deplorado por muito tempo minha incapacidade de cantar ou fazer música. Seus corações teriam ficado mais satisfeitos, pensei, se pudessem ver como eu gostava daquela música. Pelo céu luminoso, as cores passavam e ondulavam, como em acompanhamento da música. Ali, naquela paisagem gloriosa, o verde era mais verde, a água mais azul. Ali não havia árvores distorcidas por doença, nenhuma folha com praga. Ali existia apenas a perfeição. Perfeição? Nesse caso, o que fazia eu por lá? Estava muito longe de perfeito, dolorosamente imperfeito, como bem sabia.

— Você combateu o bom combate, Lobsang, e está aqui para descansar e receber incentivo, por direito adquirido — explicou meu guia, sorrindo com benevolência enquanto falava. Recostei-me, e logo tive um sobressalto de susto.

— Meu corpo! Onde está meu corpo terrestre?

— Descanse, Lobsang, descanse — replicou o lama. — Descanse, e nós lhe mostraremos quando estiver com mais energias. Devagar a luz do aposento se desfez, passando do dourado a um nevoeiro purpúreo repousante. Senti uma mão fria e forte posta em minha testa, e uma pata macia e peluda na palma de minha mão direita, e não percebi mais nada.

Sonhei estar novamente na Terra, olhando para baixo, sem emoção, enquanto soldados russos examinavam o caminhão destroçado, retirando cadáveres, corpos queimados e fragmentos de corpos. Vi um homem olhar para cima e apontar. As cabeças foram viradas para a direção indicada, e eu olhei também. Lá estava meu corpo, equilibrado em cima de uma alta muralha. Da boca e narinas escorria sangue. Observei quando o retiravam de lá e o colocavam em uma ambulância.

Enquanto esta seguia para um hospital, pairei por cima e vi tudo. Meu Cordão Prateado estava intato, ao que observei, e brilhava como os nevoeiros matutinos azuis nos vales.

Auxiliares puxaram a maca, sem demonstrar maior cuidado, e aos solavancos carregaram-na para uma sala de operações, fazendo meu corpo rolar para uma das mesas. Enfermeiros cortaram minhas roupas ensanguentadas e as jogaram em um balde de lixo. Uma unidade de raios X tirou chapas, e vi que havia três costelas quebradas, tendo uma delas perfurado o pulmão esquerdo. O braço esquerdo encontrava-se partido em dois lugares, a perna esquerda partida novamente no tornozelo e joelho. A extremidade da baioneta de um soldado penetrara em meu ombro esquerdo, resvalando por uma artéria vital. As cirurgiãs suspiraram, imaginando por onde iniciar seu trabalho. Eu parecia flutuar sobre a mesa de operações, observando, imaginando se sua habilidade seria suficiente para consertar-me o corpo. Houve um puxão suave em meu Cordão Prateado, e encontrei-me flutuando pelo teto, vendo de passagem os pacientes em seus leitos nas enfermarias acima.

Vaguei, subindo e afastando-me, e fui ter ao espaço, entre as estrelas, além do astral, passando por um plano elétrico após outro, até chegar à Terra da Luz Dourada. Tive um sobressalto, procurando enxergar em meio ao nevoeiro purpúreo.

— Ele voltou — disse uma voz, e o nevoeiro cedeu, dando lugar novamente à gloriosa luz.

Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, estava a meu lado, olhando para mim. Shalu deitara na cama a meu lado, ronronando. Dois outros altos personagens encontravam-se no aposento. Quando os vi, estavam olhando pela janela, observando as pessoas que passavam muito abaixo.

Ao meu arquejo de espanto eles se voltaram, sorrindo.

— Você esteve muito mal — disse um deles. — Receamos que seu corpo não fosse resistir.

O outro, a quem eu conhecia bem a despeito da posição de grande destaque que tivera na Terra, tomou-me as mãos nas suas.

— Você tem sofrido muito, Lobsang. O mundo tem sido cruel com você. Nós debatemos a questão e achamos que talvez você queira retirar-se. Haveria ainda muito sofrimento, se continuasse. Você pode abandonar seu corpo agora, e ficar aqui para toda a eternidade. Prefere que seja assim?

Meu coração saltou. Paz, após todos os meus sofrimentos, sofrimentos esses que, não fora meu preparo especial, teriam posto um fim em minha vida, muitos anos antes. Preparo especial. Sim, para quê? Para poder ver a aura das pessoas, de modo que pudesse influenciar os pensamentos na direção das pesquisas sobre a aura. E se eu desistisse... quem daria prosseguimento à tarefa?

— O mundo tem sido cruel com você. Não haverá recriminação alguma se você desistir.

Eu precisava pensar com muito cuidado sobre isso. Nenhuma recriminação feita pelos outros... Mas, por toda a eternidade, teria de viver com minha consciência. Que era a vida? Apenas alguns poucos anos de padecimento. Alguns anos mais de durezas, sofrimento, incompreensão, portanto, desde que eu fizesse tudo quanto podia, e minha consciência estaria em paz. Por toda a eternidade.

— Honrado senhor — respondi —, foi-me dada a escolha. Eu servirei enquanto meu corpo aguentar. Está muito combalido, neste momento — aduzi.

Sorrisos felizes de aprovação irromperam entre os homens ali reunidos. Shalu ronronou alto e deu-me uma leve mordida, brincalhona e de amor.

— Seu corpo terreno, como você diz, está em condições deploráveis, por causa das dificuldades encontradas — disse o homem eminente. — Antes de você tomar uma decisão final, devemos dizer o seguinte: encontramos um corpo na Inglaterra, cujo dono tem o maior desejo de o abandonar. A aura dele apresenta harmonia fundamental com a sua. Mais tarde, se as condições o tornarem necessário, você poderá ficar com o corpo dele.

Quase caí do leito, horrorizado. Eu, tomar outro corpo? Meu guia riu.

— E então, Lobsang? Onde estão o preparo e o treinamento que recebeu? Será, apenas, como vestir o hábito de outro. E depois de sete anos o corpo será seu, molécula por molécula, com as mesmas marcas a que você se acha tão ligado. De início seria um pouco estranho, como aconteceu quando você vestiu roupas ocidentais pela primeira vez. Eu me lembro como foi, Lobsang.

O homem eminente interveio:

— Você tem sua escolha agora, meu Lobsang. Pode, com consciência, abandonar seu corpo agora, e ficar conosco. Mas, se regressar à Terra, a mudança de corpos não se efetuará logo. Antes que decida, vou-lhe dizer que se voltar à Terra voltará também à dureza, incompreensão, descrença e ódio por parte dos outros, pois há uma força do mal que procura evitar tudo quanto há de bom, em ligação com a evolução humana. Você terá de bater-se com forças do mal.

— Eu já decidi — respondi. — Foi-me dada a escolha, e já resolvi. Continuarei, até estar executada minha tarefa, e se tiver de tomar outro corpo... bem, assim será.

Fui invadido por forte sonolência, e meus olhos se fecharam contra minha vontade. A cena se apagou, e eu resvalei para a inconsciência. O mundo pareceu rodopiar, e havia um estrondo em meus ouvidos, uma confusão de vozes. De algum modo que não podia explicar, pareceu-me estar amarrado. Teria voltado à prisão? Os japoneses ter-me-iam capturado? Minha viagem pela Rússia fora um sonho, eu realmente estivera na Terra da Luz Dourada?

— Está voltando a si — disse uma voz brusca. — Ei! Acorde! — gritou alguém em meu ouvido.

A custo, abri os olhos doloridos. Havia uma mulher russa, de cara amarrada e olhando para mim. A seu lado, uma médica gorda examinava a enfermaria, com expressão impassível. Enfermaria? Eu estava em um hospital, em companhia de quarenta ou cinquenta outros pacientes. E veio a dor. Todo o meu corpo tornou-se vivo, com uma dor furiosa. Respirar era difícil, e eu não conseguia mover-me.

— Ah, esse escapa — disse a médica de expressão impassível, e afastou-se em companhia da enfermeira.

Fiquei ofegando, a respiração em arquejos curtos, devido à dor que sentia no lado esquerdo. Naquele hospital não havia qualquer droga para aliviar a dor. Ali, o paciente vivia ou morria por conta própria, sem contar com ajuda e sem recebê-la, ou com qualquer alívio quanto ao sofrimento.

Enfermeiras pesadonas passavam com ruído, fazendo o leito estremecer com seus passos. Todas as manhãs dedos brutos rasgavam as ataduras e as substituíam. Para satisfazer às necessidades, era preciso contar com a boa vontade dos pacientes que se encontravam em condições de andar e que se prestassem a isso.

Por duas semanas estive ali, quase esquecido por enfermeiras e médicos, recebendo o auxílio de pacientes que o podiam proporcionar e sofrendo dores quando eles não podiam, ou não queriam, atender às minhas necessidades. Ao final das duas semanas, a médica de expressão impassível veio, em companhia da enfermeira grandalhona. Com gestos brutos, tiraram o gesso de meu braço e perna esquerdos. Eu nunca vira um paciente ser tratado assim, e, quando dei sinais de que ia cair, a enfermeira segurou-me pelo braço esquerdo, que fora quebrado.

No correr daquela semana andei mancando por ali, ajudando os demais pacientes o melhor que podia. Tudo que tinha para vestir era um cobertor, e estava imaginando como conseguir alguma roupa. No vigésimo segundo dia de minha estada no hospital, dois policiais vieram à enfermaria.

Arrancaram-me o cobertor, indicaram um terno e gritaram:

— Depressa! Você vai ser deportado. Devia ter partido há três semanas.

— Mas como poderia partir, se estava desacordado, e não foi por culpa minha? — redargui.

Uma bofetada veio como resposta. O segundo policial abriu a capa do coldre onde guardava o revólver, num gesto significativo, e eles me empurraram escadas abaixo, indo ter ao gabinete do comissário político.

— Você não disse, quando entrou no hospital, que estava sendo deportado! — berrou ele, cheio de raiva. — Você recebeu tratamento sob falso argumento, e agora terá de pagar por ele.

— Camarada comissário — respondi —, eu fui trazido aqui sem sentidos, e meus ferimentos foram causados pela imperícia de um soldado russo. Eu sofri muita dor e tive muito prejuízo com isso.

O comissário coçou o queixo, meditando.

— Hum... — resmungou. — Como é que você sabe de tudo isso, se estava sem sentidos? Tenho de examinar bem o seu caso.

Voltou-se para o policial, e ordenou:

— Leve-o daqui e ponha-o numa cela de seu posto policial, até receber novas ordens.

Mais uma vez fui levado por ruas movimentadas, como prisioneiro. Na delegacia, tiraram mais uma vez minhas impressões digitais e me encaminharam para uma cela bem abaixo do nível da rua.

Por muito tempo nada ocorreu, e depois um guarda trouxe sopa de repolho, pão preto e algum sucedâneo de café. A luz do corredor era mantida acesa, e não havia meio de dizer se era dia ou noite lá fora, nem meio de marcar a passagem das horas. Finalmente, fui levado a uma sala onde um homem de aspecto severo folheou papéis e olhou-me por sobre os óculos.

— Você foi considerado culpado de permanecer na Rússia depois de sentenciado à deportação — informou. — É fato que esteve envolvido em acidente causado por outrem, mas no mesmo instante em que recobrou a consciência devia ter chamado a atenção do comissário do hospital para sua situação. Seu tratamento custou muito dinheiro à Rússia, mas a Rússia é clemente. Você vai trabalhar nas estradas da Polônia por doze meses, para ajudar a pagar o tratamento que recebeu.

— Mas vocês é que deviam pagar! — redargui, com veemência. — Por uma falta cometida por um soldado russo, fiquei muito ferido.

— O soldado não está aqui para se defender. Escapou ileso do acidente, de modo que nós o fuzilamos. Sua sentença permanece. Amanhã será levado à Polônia para trabalhar nas estradas.

Um guarda segurou-me pelo braço e fui levado de volta à cela. No dia seguinte, eu e dois outros fomos tirados das celas e levados à estação ferroviária. Por algum tempo, em companhia dos policiais, ficamos à espera, depois do que surgiu um pelotão de soldados e o policial encarregado da nossa guarda foi ter com o sargento em comando, apresentando um formulário para assinar. Mais uma vez estávamos sob a custódia do Exército russo! Houve outra longa espera, e finalmente fomos conduzidos a um trem que mais tarde nos levaria a Lwow, na Polônia.

Lwow era uma cidade sem atrativos, o campo pontilhado por torres de petróleo, as estradas em péssimo estado devido ao intenso tráfego de guerra. Homens e mulheres trabalhavam nelas, partindo pedras, tapando buracos e procurando manter corpo e alma reunidos, com uma alimentação menos do que insuficiente. Os dois homens com quem eu viera de Kiev mostravam-se muito diferentes entre si. Jakob era um sujeito de alma ruim, que corria a contar aos soldados qualquer coisa que pudesse inventar. Jozef mostrava-se inteiramente diferente, e podia-se contar com ele para “usar sua força”. Devido ao fato de minhas pernas estarem em péssimas condições, era difícil ficar em pé, de modo que me deram o encargo de ficar sentado ao lado da estrada, partindo pedras.

Aparentemente não achavam que meu braço esquerdo, costelas e pulmões prejudicados constituíssem grande obstáculo. Por um mês estive assim, trabalhando como escravo e ganhando apenas a comida. Até as mulheres que trabalhavam ali recebiam dois zlotys por jarda cúbica de pedra partida. Ao final do mês, desmaiei, tossindo sangue. Jozef veio ter comigo, ao lado da estrada, ignorando a ordem dos guardas. Um dos soldados ergueu o fuzil e atirou, trespassando-lhe o pescoço, mas felizmente sem atingir qualquer parte vital. Ficamos caídos lado a lado, até que um lavrador aparecesse em sua carroça puxada por um cavalo. Um guarda o deteve e fomos atirados sobre sua carga de linho. O guarda embarcou ao lado do homem e fomos levados ao hospital da prisão. Por semanas inteiras permaneci sobre as tábuas que serviam de leito, depois do que o médico resolveu que eu tinha de ser removido. Estava morrendo, disse ele, e haveria problemas se morresse mais alguém naquele mês, pois ele já esgotara sua cota! Houve uma conferência incomum em minha cela de hospital, com o diretor da prisão, o médico e um chefe de guardas.

— Você tem de ir para Stryj — disse o diretor. — As coisas por lá não são muito rigorosas e o clima é mais sadio.

— Mas, diretor, por que haveria de ir? — disse eu. — Não estou na prisão por crime algum, não fiz coisa alguma de errado. Por que haveria de calar? Vou falar com todos que encontrar, e contar o que aconteceu.

Houve muitos gritos, muita discussão e, finalmente, eu, o prisioneiro, apresentei uma sugestão:

— Diretor, o senhor quer que eu vá para que vocês se salvem — disse eu. — Eu não quero ser transferido para outra prisão, e se for não permanecerei calado. Se quer que eu cale a boca, deixe Jozef Kochino e eu seguirmos para Stryj, como homens livres. Dê-nos roupas para ficarmos com aspecto decente. Dê-nos algum dinheiro para comprarmos alimentos. Nós ficaremos calados e seguiremos logo para o outro lado dos Cárpatos.

O diretor resmungou e praguejou, e eles se retiraram da minha cela. No dia seguinte o diretor voltou e disse que examinara meus papéis e vira que eu era “um homem de honra”, que fora preso injustamente. Ia seguir minha sugestão. Por uma semana nada aconteceu, e nada mais foi dito sobre o assunto. Às três da madrugada do oitavo dia, um guarda veio à minha cela, despertou-me com safanões e disse que eu estava sendo chamado ao “gabinete”. Com rapidez, vesti-me e o acompanhei até lá. Ele abriu a porta e empurrou-me para o interior. Havia um guarda sentado ao lado de duas pilhas de roupas e duas mochilas do Exército russo. Sobre a mesa via-se comida. Ele fez sinal para que eu guardasse silêncio e me aproximasse.

— Vocês serão levados a Stryj — murmurou. — Quando chegarem lá, peça ao guarda, pois só haverá um, que siga mais adiante um pouco. Se conseguir chegar a uma estrada sossegada, domine o guarda, amarre-o e deixe-o ao lado da estrada. Vocês me ajudaram em minha doença, de modo que vou avisar que existe um plano de matar vocês como fugitivos.

A porta foi aberta e Jozef entrou.

— Agora, tratem de comer — disse o guarda —, e andem depressa. Aqui têm dinheiro para poderem viajar.

Era uma bela soma, e eu pude perceber o plano deles. O diretor da prisão ia dizer que o havíamos roubado e fugido. Tendo feito a refeição, fomos para um carro, parecido com um jipe, com tração nas quatro rodas. Um policial motorista, de fisionomia patibular, estava à direção, tendo um revólver no assento ao lado. Fazendo um gesto sumário para que embarcássemos, acionou a engrenagem e partimos pelo portão aberto. A uns sessenta quilômetros de caminho — e a uns oito para chegar a Stryj — achei chegado o momento de agir. Com rapidez, inclinei-me à frente e apliquei um pequeno golpe de judô sob o nariz do guarda, enquanto segurava o volante com a outra mão. O guarda caiu, com o pé apertando o acelerador. Desliguei o motor e guiei o veículo para a beira da estrada. Jozef observava aquilo, boquiaberto, e narrei-lhe rapidamente o que acontecia.

— Depressa, Jozef! — ordenei. — Tire a roupa e vista a dele. Você passará a ser o guarda.

— Mas, Lobsang! — gemeu ele. — Eu não sei dirigir, e você não tem cara de russo! Empurramos o guarda para o lado e eu tomei o lugar à direção, liguei o motor e saímos, até chegar a uma pista esburacada, pela qual seguimos por alguma distância, parando depois. O guarda começava a mexer-se, de modo que o ajudamos a sentar ereto, apontando-lhe a arma.

— Guarda — exclamei, procurando exibir a expressão mais feroz possível —, se dá valor à sua vida, vai fazer o que eu digo. Você dirigirá pelos arrabaldes de Stryj e tocará para Skol'ye. Quando chegarmos lá, nós o deixaremos ir-se embora.

— Farei o que vocês mandarem — choramingou ele —, mas se vão atravessar a fronteira deixem que eu atravesse também, ou eles me fuzilarão.

Jozef sentou-se no banco de trás, acariciando a arma e olhando com anseios evidentes para a nuca do guarda. Eu fiquei ao lado do homem, para evitar que aplicasse algum truque, como deixar a estrada ou jogar fora a chave de ignição.

Seguimos com velocidade, evitando as estradas principais. O terreno, ao lado da pista, tornava-se mais acidentado, enquanto seguíamos subindo as montanhas dos Cárpatos. As árvores faziam-se mais numerosas, proporcionando esconderijos melhores, e a um ponto adequado nós paramos para estender as pernas e comer alguma coisa, partilhando o que tínhamos com o guarda. Em Vel’keBerezni, quase sem gasolina, paramos e escondemos o jipe. Tendo o guarda entre nós, seguimos furtivamente. Estávamos em terreno fronteiriço e era preciso muito cuidado.

Observo, no entanto, que qualquer pessoa com motivos suficientes para fazê-lo pode atravessar a fronteira de qualquer país, bastando para isso um pouco de engenho e iniciativa. Jamais tive qualquer embaraço real para atravessar ilegalmente a fronteira de um país, e só encontrei problemas quando estava com passaporte inteiramente legítimo. Os passaportes servem, apenas, para causar inconvenientes ao viajante inocente, submetendo-o a medidas burocráticas absolutamente ridículas. A falta de um passaporte jamais embaraçou uma pessoa que tenha de atravessar as fronteiras. É de supor, no entanto, que os passaportes sejam necessários e devam existir, a fim de causar embaraços a viajantes inocentes e dar o que fazer a hordas de funcionários, muitas vezes gente inteiramente desagradável.

Isto não é um compêndio a ensinar como atravessar fronteiras ilegalmente, de modo que vou resumir e dizer que não encontramos dificuldades em entrar na Tchecoslováquia. O guarda tomou seu destino, e nós o nosso.

— Minha casa é em Levice e eu quero ir para lá — disse Jozef. — Você poderá ficar comigo o tempo que quiser.

Juntos, seguimos para Kosice, Zvolen e dali para Levice, andando, apanhando caronas, e de trem. Jozef conhecia bem aquela região, sabia onde encontrar batatas ou beterrabas, ou qualquer outra coisa para comer.

Finalmente, seguimos por uma rua de Levice, indo ter a uma casa de tamanho modesto. Jozef bateu à porta, e não houve resposta, bateu outra vez e com extremo cuidado alguém afastou a cortina apenas o suficiente para poder examinar-nos.

Quem o fez reconheceu Jozef, e a porta foi aberta e ele puxado para dentro, após o que voltaram a fechá-la bem na minha cara. Andei de um para outro lado, e mais tarde a porta voltou a abrir-se, e veio Jozef, com expressão mais preocupada do que eu julgara possível.

— Minha mãe não quer você lá dentro — explicou. — Ela diz que há espiões demais por aqui, e que se recebermos você seremos todos presos. Eu sinto muito.

Dito isso, voltou-se com ar envergonhado e entrou novamente. Por longos momentos fiquei aturdido. Eu fora responsável por tirar Jozef da prisão, eu o salvara de morrer. Meus esforços o haviam trazido de volta a casa, e agora ele ficava e me deixava, para que me safasse o melhor que pudesse. Triste, segui novamente pela rua e pela estrada comprida. Sem dinheiro, sem comida, sem entender o idioma falado naquele país, segui às cegas, entristecido pelo comportamento traiçoeiro de alguém a quem eu chamara amigo.

Hora após hora, segui ao lado da estrada. Os ocupantes dos carros que por ali transitavam não me lançavam um só olhar, pois havia gente demais “em marcha” para que eu atraísse atenção. Alguns quilômetros antes eu matara a fome um pouco, colhendo algumas batatas semideterioradas, que um lavrador atirara a seus porcos. A água não constituía problema, pois havia sempre os córregos. Muito tempo antes eu aprendera que os córregos e pequenos cursos de água eram próprios para beber, mas os rios estavam poluídos.

Bem à frente, na estrada, vi um vulto grande. Pareceu-me um caminhão da polícia, ou alguma barreira fechando a estrada. Por diversos minutos estive sentado à beira da estrada, observando. Não vi sinal de policiais ou soldados, de modo que retomei a caminhada, com muita cautela. Ao chegar mais perto, vi que um homem tentava fazer alguma coisa no motor do veículo. Ele notou minha aproximação, e disse algo, numa língua que não entendi. Repetiu, em outra língua, e logo em outra.

Finalmente pude entender mais ou menos o que dizia. O motor parará, e ele não sabia como fazê-lo funcionar. Perguntava se eu entendia de motores. Olhei e remexi, examinando os diversos pontos, experimentando o motor de arranque. Havia bastante gasolina, e olhando sob o painel de instrumentos vi que o isolante de alguns fios se gastara e cortara a ignição, quando o caminhão saltara em algum buraco da estrada, soltando duas pontas. Eu não tinha fita isolante ou ferramentas, mas em questão de momentos envolvi os fios em tiras de pano, amarrando-os com segurança. O motor pegou, e eu pensei: “Alguma coisa errada por aqui. Este motor funciona bem demais para um caminhão velho de lavrador!” O homem dava pulos de alegria.

— Bravo, bravo! — gritava. — Você me salvou! Olhei-o com certa perplexidade. Como o teria “salvo”, ligando o motor? Ele pareceu examinar-me com atenção.

— Já o vi antes — disse, então. — Estava com outro homem, e atravessavam a ponte do rio Hron, em Levice.

— Sim — confirmei. — Mas, agora, estou viajando sozinho.

Fez-me sinal para que embarcasse, e enquanto dirigia eu contei tudo quanto acontecera, pois em sua aura pudera ver que se tratava de uma criatura digna de confiança e de boas intenções.

— A guerra pôs fim à minha profissão — explicou ele — e tenho de viver e sustentar a família. Você entende bem de motores, e eu posso usar um motorista que não fique parado na estrada por causa de algum defeito. Nós levamos comida e alguns artigos de luxo de um país a outro. Tudo que você terá de fazer é dirigir e fazer a manutenção do caminhão.

Fiquei em grande dúvida. Contrabando? Jamais lidara com isso antes. Ele explicou:

— Não são entorpecentes, nem armas, nada de perigoso. Apenas comida, para manter vivas as pessoas, e alguns artigos de luxo, para manter as mulheres satisfeitas.

A mim pareceu estranho, pois a Tchecoslováquia não dava a impressão de país que estivesse em condições de exportar comida e artigos de luxo. Manifestei essas dúvidas, e ele replicou:

— Tem toda a razão. A coisa vem de outro país, e nós apenas a passamos adiante. Os russos roubam dos povos ocupados, tirando tudo que eles têm. Põem os artigos de valor em trens, e mandam cargas de volta para os altos dirigentes partidários. Nós apenas interceptamos esses trens que trazem os melhores alimentos, e que podemos mandar para outros países onde estão em falta. Todos os guardas fronteiriços participam da coisa. Você teria apenas de dirigir, em minha companhia.

— Bem, mostre-me este caminhão — sugeri. — Se aqui não houver drogas, nada de pernicioso, eu dirigirei para onde você quiser. Ele riu e disse:

— Vá ver lá atrás. Olhe tudo que quiser. Meu motorista de sempre está doente, e eu pensei que poderia dar conta deste caminhão. Mas não posso, porque não entendo patavina de mecânica. Eu era advogado bem conhecido em Viena, antes que a guerra me deixasse sem emprego.

Vasculhei a parte traseira do veículo e, como ele dissera, encontrei apenas comida e alguns artigos de seda, usados por mulheres.

— Estou satisfeito — declarei. — Dirigirei para você.

Fez-me sinal que tomasse a direção, e partimos numa jornada que me levou à Áustria, através de Bratislava, passando por Viena e Klagenfurt, e, mais tarde, à Itália, onde chegamos a Verona, nosso destino. Os guardas fronteiriços faziam-nos parar, criavam uma encenação na inspeção das mercadorias, e logo davam passagem quando um pequeno embrulho era posto em suas mãos. Certa feita, um carro da polícia passou à nossa frente, parou repentinamente e fez com que eu apertasse os freios. Dois policiais vieram ao nosso encontro, revólveres nas mãos, mas com a apresentação de certos documentos eles recuaram, parecendo muito embaraçados e murmurando desculpas. Meu novo empregador parecia muito satisfeito comigo.

— Vou apresentar você a um homem que manda caminhões para Lausanne, na Suíça — disse —, e se ele ficar tão satisfeito quanto eu estou, poderá passar você a alguém que o fará chegar a Ludwigshafen, na Alemanha.

Por uma semana ficamos à toa em Veneza, enquanto nossa carga era retirada e outras mercadorias embarcadas no caminhão. Além disso, precisávamos de um bom descanso, após aquela esgotante viagem. Veneza, para mim, era horrível, pois tinha dificuldade em respirar naquela cidade baixa, parecendo-me que aquilo tudo era apenas um sistema aberto de esgotos.

De Veneza, e em outro caminhão, seguimos para Pádua, Vicenza e Verona. Entre todos os funcionários públicos éramos tratados como benfeitores, e fiquei a imaginar qual a verdadeira posição de meu empregador. Por sua aura, e esta não mente, tornava-se claro que ele era, realmente, um homem bom. Não fiz indagações, pois não estava interessado, e tudo quanto desejava era continuar a jornada, dar prosseguimento à minha tarefa na vida. Como sabia, minha tarefa só poderia ter início quando eu me pudesse instalar em algum lugar, livre de toda aquela movimentação de um a outro país.

O homem que me empregava veio ter ao meu quarto de hotel em Verona, e anunciou:

— Conheço um homem que vou apresentar a você. Ele virá esta tarde. Ah, Lobsang, seria melhor você raspar essa barba. Os americanos parecem não gostar de barbas, e o homem de que falo é americano. Ele recondiciona automóveis e caminhões e os manda de um a outro país. Que me diz?

— Se os americanos não gostarem de minha barba, terão de continuar desgostando — respondi. — Meus maxilares foram quebrados por pontapés de japoneses, e eu uso a barba para esconder os ferimentos que sofri.

Meu empregador continuou conversando por algum tempo, e antes de nos despedirmos deu-me uma soma de dinheiro bastante satisfatória, dizendo que eu mantivera minha palavra em nosso trato, e ele manteria a sua.

O americano era um indivíduo espalhafatoso, com enorme charuto a dançar entre os lábios grossos. Seus dentes estavam literalmente ornamentados com obturações de ouro, e suas roupas pareciam ofuscar, tamanha a sua alacridade. A acompanhá-lo e fazer-lhe festas havia uma mulher muito artificialmente loura, cuja roupa mal escondia aquelas partes de sua anatomia que as convenções ocidentais querem escondidas.

— Mas olhe só! — disse ela num gritinho, quando olhou para mim. — Ele não é bonitinho? Não é um garotão?

— Ora, cale a boca, neguinha — retorquiu o homem que a sustentava. — Suma daqui, vá andar por aí. Temos de tratar de negócios.

Fazendo beicinho e dando uma risadinha que lhe sacudia perigosamente tudo no corpo, e forçando bastante o tecido frágil que o envolvia, a “neguinha” saiu ondulando do quarto, à procura de alguma bebida.

— Temos um Mercedes espetacular pra vender — disse o americano. — Não dá pra vender por aqui, mas vai dar boa grana noutro país. Pertenceu a um dos chefões do grupo do Mussolini. Nós liberamos o carro e o pintamos. Eu estou com uma beleza de contato em Karlsruhe, e se mandar o carro pra lá vou ganhar uma bolada.

— E por que não o dirige você mesmo? — perguntei.

— Eu não conheço a Suíça nem a Alemanha.

— Puxa, seu! Eu, dirigir? Já fiz isso demais, os guardas fronteiriços me conhecem, todos eles.

— Quer, então, que eu seja apanhado? — redarguiu.

— Já viajei muito, correndo perigo demais. Não, não quero esse trabalho.

— Ora, rapaz! Vai ser canja para você. Você tem cara de honesto e eu posso dar-lhe uns papéis dizendo que o carro é seu e que você é turista. Pode ter certeza, que eu tenho os papéis aqui! Vasculhou uma pasta de couro que trazia e tirou dela um maço de papéis e formulários, pondo-os à minha frente.

Examinei aquilo sem demonstrar maior interesse, e verifiquei que os documentos se referiam a um chefe de máquinas da Marinha mercante! E lá estava tudo, até o cartão sindical. Chefe de máquinas de navio! Se eu conseguisse aqueles documentos, poderia embarcar. Eu estudara máquinas, assim como medicina e cirurgia, em Chungking, e tinha um bacharelado em engenharia mecânica, era piloto muito competente... E meus pensamentos já se adiantavam bastante.

— Bem, a coisa não me agrada — comentei. — Arriscada demais. Esses documentos não têm fotografia minha. Como é que vou saber se o verdadeiro dono não aparecerá em algum momento?

— Ele está morto, seu! Morto e enterrado. Encheu a cara e saiu dirigindo um Fiat à toda. Acho que dormiu, mas o carro é que ficou esborrachado numa ponte de concreto. Nós fomos informados e apanhamos os papéis dele.

— E, se eu concordar, o que vai pagar? E posso ficar com os documentos? Eles servirão para atravessar o Atlântico?

— Claro, meu chapa, claro! Eu pago cinquenta e dois mangos, a despesa toda, e você pode ficar com os papéis. Nós vamos botar seu retrato neles todos, tirar o retrato do homem. Eu tenho bons contatos, sei arrumar a coisa direitinho!

— Muito bem — repliquei. — Levarei o automóvel a Karlsruhe para você.

— Leve a pequena com você. Ela lhe faz companhia e me deixa em paz. Já tenho outra pro lugar dela.

Por momentos, olhei-o espantado, e ele evidentemente não entendeu minha expressão.

— Ah, mas é claro! Ela topa tudo. Você vai se divertir à beça.

— Não! — exclamei. — Não levarei aquela mulher comigo, nem ficaria no mesmo carro com ela. Se não tem confiança em mim, vamos cancelar tudo, ou pode mandar um homem, ou dois homens, mas mulher, não.

Ele se encostou na cadeira e gargalhou, abrindo bem a boca, onde a exibição de ouro relembrou-me os objetos sagrados nos templos do Tibete. O charuto caiu ao chão e apagou-se com um chuveiro de fagulhas.

— Aquela dona! — disse ele, quando conseguiu voltar a falar. — Ela está me custando quinhentos mangos por semana! Eu lhe ofereço ficar com ela para a viagem, e você não quer. Ah, mas essa é muito boa!

Dois dias depois, os documentos estavam prontos, minha fotografia fora posta nos devidos lugares e funcionários amigos do americano haviam examinado cuidadosamente tudo e providenciado os carimbos necessários.

O grande automóvel Mercedes rebrilhava ao sol. Verifiquei, como sempre o fazia, o combustível, óleo e água, embarquei e liguei o motor. Enquanto partia e me afastava, o americano acenou em despedida.

Na fronteira com a Suíça, os funcionários examinaram cuidadosamente os documentos apresentados e em seguida passaram a vistoriar o veículo. Sondaram o tanque de gasolina para verificar se não havia compartimento falso, bateram ao longo da carroçaria à cata de qualquer coisa escondida sob o metal. Dois guardas espiaram por baixo, sob o painel de instrumentos, e até o motor foi examinado. Quando já me haviam liberado e eu partia, ouvi gritos. Freei logo, e um guarda apareceu, arquejando pela corrida e perguntando:

— Pode levar um homem a Martigny? Ele está com muita pressa e tem de ir por uma questão de urgência.

— Sim — acedi. — Eu o levarei, se já estiver pronto para partir.

O guarda fez um sinal, e do gabinete aduaneiro veio um homem a passos rápidos. Fazendo-me uma mesura, embarcou e sentou-se a meu lado. Por sua aura, vi que era um funcionário aduaneiro e que estava desconfiado de mim. Aparentemente imaginava o motivo pelo qual eu estava a sós, sem companhia feminina.

Era um grande conversador, mas conseguia tempo para fazer-me perguntas, perguntas essas a que eu podia responder.

— Não viaja com mulheres, senhor? — foi uma delas. — Isso é bastante incomum. Mas talvez tenha outros interesses.

Eu ri, e disse:

— Vocês são gente que só pensam em sexo, e acham que um homem viajando sozinho é alguma coisa estapafúrdia, alguém de quem desconfiam. Eu sou turista, estou só vendo as paisagens. Em qualquer lugar onde pare posso ver mulheres.

Fitou-me com certa compreensão, e eu aduzi, já que conversávamos:

— Vou-lhe contar uma coisa que sei ser verdade. Uma outra versão da narrativa sobre o jardim do paraíso.

Através de toda a história, em todas as grandes obras religiosas do mundo, tem havido narrativas em que alguns acreditaram, mas que outros, com percepção melhor das coisas, encararam como lendas, destinadas a ocultar certo conhecimento que não deveria ser levado a qualquer pessoa, porque se tratava de conhecimento que podia ser perigoso para quem não estivesse preparado para recebê-lo.

Uma dessas narrativas é aquela sobre Adão e Eva, no jardim do paraíso, onde Eva foi tentada pela serpente, e na qual eles comeram o fruto da árvore do conhecimento, e, tendo sido tentados pela serpente e comido o fruto, olharam um para o outro e viram estar nus. Tendo obtido aquele conhecimento proibido, os dois não mais tiveram permissão para continuar no jardim do paraíso.

Esse jardim do paraíso, naturalmente, é aquela terra bem-aventurada da ignorância, em que ninguém tem medo de nada, porque não entende nada, e na qual a criatura, para todos os fins e propósitos, não passa de um repolho. Mas há uma versão mais esotérica da história.

O homem e a mulher não são apenas um amontoado de protoplasma de carne a revestir um esqueleto. O homem é, ou pode ser, coisa muito maior do que apenas isso. Nesta Terra, somos apenas títeres de nosso eu maior, o eu maior que reside temporariamente no plano astral, e que obtém experiências por meio do corpo físico, que é o títere e instrumento do corpo astral.

Os fisiólogos e outros dissecaram o corpo humano, e reduziram tudo a um amontoado de carne e ossos. Sabem falar sobre este ou aquele osso, e sobre os diversos órgãos, mas tudo isso são coisas materiais. Não descobriram, nem tentaram descobrir, as coisas mais secretas, intangíveis, coisas que os indianos, chineses e tibetanos conheciam há muitos séculos antes do cristianismo.

A espinha é uma estrutura das mais importantes e aloja a medula espinhal, sem a qual a pessoa fica paralisada, sem a qual a pessoa nada vale, como ser humano. Mas a espinha é mais importante do que isso. Situada bem no centro do nervo espinhal, a medula espinhal é um tubo que se estende a uma outra dimensão. É um tubo pelo qual a força conhecida por kundalini pode viajar, quando despertada. Na base da espinha está o que os orientais chamam de ‘fogo da serpente’. Ele é a sede da própria vida.

No homem ocidental comum essa grande força se encontra adormecida, dormente, quase paralisada pela falta de uso. Na verdade, é como uma serpente enrodilhada na base da espinha, serpente essa com poder imenso, mas que, por diversos motivos, não pode escapar de seus confins por enquanto. Essa figura mítica de uma serpente é conhecida como o kundalini, e nos orientais despertos sua força pode subir pelo canal do nervo espinhal, elevar-se ao cérebro e além, até o plano astral. Quando sobe, sua potente energia aciona cada um dos chakras, ou centros de poder, como o do umbigo, garganta e diversas outras partes vitais. Quando esses centros são despertados, a pessoa se torna cheia de vida, poderosa e dominante.

Tendo controle completo sobre a força da serpente, pode-se conseguir quase qualquer coisa. Pode-se remover montanhas, ou andar sobre a água, ou levitar, ou deixar-se sepultar na terra, em câmara fechada, da qual é possível sair vivo a qualquer momento especificado.

Assim é que temos, na lenda, que Eva foi tentada por uma serpente. Em outras palavras, de algum modo Eva tomou conhecimento do kundalini, e conseguiu libertar a força serpente enrodilhada na base de sua espinha, e a mesma subiu pela coluna espinhal, despertando-lhe o cérebro e dando-lhe conhecimento. Por isso, podemos dizer, na história, que ela comeu da árvore do conhecimento, ou seu fruto. Teve esse conhecimento, e com ele podia ver a aura, a força ao redor do corpo humano. Podia ver a aura de Adão, e seus pensamentos e intenções, e também ele, sendo tentado por Eva, teve o seu kundalini despertado e passou a ver Eva como esta era.

A verdade é que cada qual olhou a aura do outro, vendo-lhe a forma astral nua, a forma que não se veste pelo corpo humano, e pôde perceber os pensamentos do outro, todos os seus desejos e conhecimentos, e isso não deveria ter ocorrido no estado de evolução em que se encontravam.

Os antigos sacerdotes sabiam que, sob certas condições, a aura podia ser vista, sabiam que o kundalini podia ser despertado pelo sexo. Por isso é que, no passado, os sacerdotes ensinavam que o sexo era pecaminoso, a raiz de todos os males, e por ter Eva tentado Adão o sexo se tornara a ruína do mundo. Ensinavam isso porque, às vezes, como disse, o sexo pode despertar o kundalini que se acha adormecido na maioria das pessoas, na base de sua espinha.

A força do kundalini está enrodilhada, como uma mola de relógio enrolada. Também como uma mola que se solte repentinamente, pode causar danos. Essa força tremenda acha-se localizada na base de nossa espinha, e parte dela, na verdade, encontra-se dentro dos órgãos de reprodução. A gente do Oriente reconhece isso, e alguns hindus utilizam o sexo em seus ornamentos religiosos.

Utilizam uma forma diferente de manifestação sexual e uma posição sexual diferente para obter determinados resultados, e esses resultados são atingidos. Os antigos, há muitos séculos atrás, adoravam o sexo e faziam a adoração fálica. Havia certas cerimônias, em templos, que elevavam o kundalini e proporcionavam clarividência, telepatia e muitas outras faculdades esotéricas.

Devidamente usado, e de certo modo, no amor, o sexo pode elevar as vibrações da pessoa. Pode levar o que os orientais chamam a Flor do Lótus a abrir-se, a abarcar o mundo do espírito. Pode levar o kundalini a surgir e despertar certos centros. Jamais, entretanto, alguém deveria abusar do sexo ou do kundalini. Um deve completar e suplementar o outro. As religiões que afirmam não dever haver sexo entre marido e mulher estão tragicamente erradas. Isso é muitas vezes pregado por muitos dos cultos mais duvidosos da cristandade. Os católicos romanos estão mais próximos da verdade, quando aconselham marido e mulher a manter relações de sexo, mas o fazem cegamente, sem saberem por quê, e acreditando que se trata apenas da procriação de filhos, que não é o fito principal do sexo, embora a maioria creia que seja.

Assim sendo, as religiões contrárias às atividades sexuais estão procurando abafar a evolução individual e a evolução da raça. A coisa funciona da seguinte maneira: no magnetismo, obtém-se um ímã poderoso arrumando-se as moléculas da substância de modo que se voltem para uma direção apenas.

Normalmente, um pedaço de ferro, por exemplo, tem todas as suas moléculas dispostas em qualquer direção, como uma multidão indisciplinada. Acham-se arrumadas de modo aleatório, mas quando certa força é aplicada (no caso do ferro, uma força magnetizadora) todas as moléculas se voltam em uma direção, e assim temos o grande poder do magnetismo, sem o qual não haveria rádio ou eletricidade, sem o qual não haveria transporte rodoviário ou ferroviário, ou qualquer viagem aérea.

No terreno humano, quando o kundalini é despertado, quando o fogo da serpente se torna vivo, as moléculas do corpo voltam-se todas em uma só direção, pois, ao despertar, a força kundalini dispõe as moléculas nessa direção. É quando o corpo humano se torna vibrante de vida e saúde, poderoso no conhecimento, e pode ver tudo.

Há diversos métodos para despertar o kundalini de modo completo, mas isso não deve ser feito senão naqueles que estejam adequadamente evoluídos, por causa do poderio imenso e domínio sobre os semelhantes que um despertar completo proporcionaria, e o poder se acha sujeito a uso e abuso para o mal. Mas o kundalini pode ser despertado em parte, e vivificar certos centros, pelo amor entre um casal. Com o verdadeiro êxtase da intimidade, as moléculas do corpo se tornam arrumadas de tal modo que muitas se voltam em uma direção, e as pessoas passam a possuir grande poder dinâmico.

Quando toda a falsa decência e todos os ensinamentos falsos a respeito do sexo forem afastados, novamente o homem se tornará um grande ser, e mais uma vez poderá tomar seu lugar como viajor para as estrelas.

 

O automóvel seguia, impelido por um motor capaz de vencer qualquer estrada íngreme nas montanhas. Meu passageiro guardava silêncio, agora, falando apenas de vez em quando, para indicar os pontos de beleza insuperável, vistos da estrada. Ao nos aproximarmos de Martigny, ele disse:

— Um homem astuto como você deve ter adivinhado que eu sou funcionário do governo. Quer dar-me o prazer de sua companhia para o jantar?

— Teria muito prazer — respondi. — Pretendia seguir até Aigle, antes de parar, mas, assim, ficarei nesta cidade.

Prosseguimos a marcha, ele indicando a direção a seguir, até chegarmos a um hotel excelente. Minha bagagem foi carregada, e eu levei o carro para a garagem, dando instruções para que cuidassem de sua limpeza.

O jantar foi uma refeição das mais agradáveis, e meu ex-passageiro, agora anfitrião, mostrou-se criatura interessante, agora que vencera a desconfiança inicial que sentira por mim.

De acordo com o velho princípio tibetano de que “quem ouve mais aprende mais”, deixei que ele se manifestasse. Falou de casos ocorridos na Alfândega, e mencionou um fato recente, onde um carro de alto preço possuía papéis falsos, por trás dos quais havia entorpecentes.

— Eu sou um turista comum — comentei —, e uma das coisas que mais detesto são os tóxicos. Quer mandar examinar meu carro, para ver se há alguma coisa escondida nele? O senhor acabou de falar de um caso em que esconderam coisas em um veículo sem que o dono soubesse.

Sob instância minha, o automóvel foi levado à delegacia local e deixado lá até o dia seguinte, para que o examinassem. De manhã, quando fui apanhá-lo, aconselharam-me como a velho e bom amigo. Haviam examinado rigorosamente o veículo, sem encontrarem coisa alguma. A polícia suíça, como pude ver, mostrava-se cortês e afável e pronta a ajudar um turista.

Prossegui a viagem, sozinho com meus pensamentos, imaginando o que o futuro estaria reservando para mim. Mais dificuldades e durezas, isso eu sabia, pois todos os videntes haviam insistido nessa tecla. Atrás de mim, no compartimento de carga, tinha a bagagem de um homem de cujos documentos eu me apossara. Não tinha parentes conhecidos, e, como eu, parecera estar sozinho no mundo. Em suas malas — minhas, agora — estavam alguns livros de engenharia marítima. Parei o carro e apanhei o manual da profissão, e enquanto dirigia recitava algumas regras que, como chefe de máquinas de navio, teria de conhecer. Planejei embarcar no navio de uma companhia diferente, e o livro de baixa mostraria quais as companhias de navegação marítima que eu devia evitar, para não ser reconhecido.

Os quilômetros rolavam, por baixo de mim. Aigle, Lausanne, e atravessei a fronteira com a Alemanha. Os guardas aduaneiros e fronteiriços alemães mostraram-se rigorosos, examinando tudo, até mesmo os números do motor e dos pneus. Mostravam-se, também, inteiramente destituídos de qualquer humor.

Prossegui na viagem, e em Karlsruhe fui ter ao endereço que me fora dado, sendo informado de que o homem que ali devia encontrar estava em Ludwigshafen. Assim é que prossegui para lá, e no melhor hotel dessa cidade encontrei novamente o americano.

— Ora, meu chapa! — disse ele. — Eu não podia levar aquele carro nas estradas da montanha. Estou com os nervos ruins. Bebida demais, eu acho.

Eu também achei. O quarto dele, no hotel, parecia um verdadeiro bar, muitíssimo bem equipado, incluindo a atendente, que tinha mais coisas a mostrar, e o fazia, do que aquela que ele deixara na Itália. Em sua cabeça havia apenas três coisas: marcos alemães, bebida e sexo, nessa ordem. O americano ficou tão satisfeito com o estado do carro, sem qualquer arranhão e inteiramente limpo, que exprimiu seu prazer mediante um presente substancial em dólares americanos.

Durante três meses trabalhei para ele, dirigindo caminhões enormes a diversas cidades e trazendo de volta veículos que tinham de ser recondicionados ou reformados. Eu não sabia do que se tratava, e continuo sem saber, mas era bem pago e tinha tempo para estudar meus livros de engenharia marítima. Nas diversas cidades que visitei, estive em museus e examinei cuidadosamente todos os tipos de navio e modelos de máquinas marítimas.

Três meses depois, o americano veio ao quarto pequeno e simples que eu alugara, e atirou-se em minha cama, o charuto fedorento quase a expulsar-me de lá.

— Puxa, meu chapa! — exclamou. — Já vi que você não gosta de luxo. Uma cela de prisão nos Estados Unidos tem mais conforto que isto aqui. Tenho um trabalho para você. Um trabalho grande. Você topa?

— Se me levar para mais perto do mar, ao Havre ou Cherbourg — respondi.

— Bem, o negócio leva você para Verdun, e é coisa muito séria. Estou com uma máquina que tem mais roda do que perna numa lagarta. É um troço doido para dirigir. Mas tem um bocado de dólares na jogada.

— Dê mais detalhes para eu saber do que se trata. Já lhe disse que sei dirigir qualquer coisa. Tem os documentos para entrar na França?

— Tenho. Esperei três meses para arrumá-los. Nós temos mantido você na conserva, só com dinheiro para as despesas. Eu não ia adivinhar que você morava numa droga destas.

Levantou-se e fez sinal para que o seguisse. À porta estava seu automóvel, completo, incluindo a namorada.

— Você dirige — disse ele, embarcando no assento traseiro com a mulher. — Eu vou dando a direção para chegar lá.

No que parecia ser um aeroporto abandonado, fora de Ludwigshafen, havia um barracão enorme, e nele encontramos a máquina mais esquisita que eu já vira até então. Parecia composta principalmente de vigas amarelas, apoiadas numa série de rodas enormes, com dois metros de altura.

Ridiculamente alta e separada do chão havia uma pequena cabina de vidro, e, fixas nas costas daquela engenhoca, uma série de armações de ferro e uma enorme caçamba de aço. Com cuidado, fui ter ao assento da direção.

— Ei! — gritou o americano. — Você não quer o manual? Estendeu a mão e entregou-me o manual, que descrevia aquele tipo de máquina.

— Eu tive um cara que estava entregando uma máquina de varrer rua, nova em folha — disse ele. — Ele não leu o livro e quando chegou ao destino viu que as escovas tinham estado ligadas o tempo todo e estava tudo gasto. Eu não quero você estragando a estrada daqui até Verdun.

Folheando o livro, logo liguei o motor. Fazia um ruído equivalente ao de um aeroplano decolando. Com cuidado, engrenei a alavanca de mudanças e a máquina enorme andou, devagar, saindo do barracão para o que fora uma pista de aviões. Andei de um lado para outro diversas vezes para me acostumar com ela, e quando voltava para regressar ao barracão chegou um carro da polícia alemã. Dele saltou um policial, um sujeito de aspecto selvagem, que dava a aparência de ter acabado de perder o emblema da Gestapo.

— Você está dirigindo isso sem ajudante — disse, numa voz que se assemelhava a um latido.

“Ajudante?”, pensei. “Será que ele pensa que preciso de quem tome conta de mim?” Segui dirigindo ao lado dele.

— Bem, o que há com você? — gritei de volta. — Isto aqui é propriedade particular. Dê o fora!

Para minha surpresa completa, ele obedeceu, e foi parar com seu carro à beira do campo. O americano dirigiu-se a ele.

— Que há contigo, rapaz? — perguntou.

— Vim dizer que essa máquina só pode ser dirigida nas estradas tendo um ajudante na parte traseira para vigiar os carros que queiram ultrapassar. E só pode ser dirigida à noite, a menos que haja um carro da polícia à frente e outro atrás.

Por momentos, pensei que ele ia dizer: “Heil Hitler!”, mas ele se voltou, entrou no carro e foi-se embora.

— Puxa! — disse o americano. — Que sujeitinho metido! Bem, mas eu conheço um alemão chamado Ludwig que...

— Para mim, não! — exclamei com veemência. — Para mim, eles são indigestos demais.

— Está bem, meu chapa, está bem. Não vai ser alemão, então, pronto! Eu conheço um francês que você vai gostar. Venha, vamos falar com ele.

Estacionei a máquina no barracão, examinei para ver se estava tudo desligado e saí, fechando a porta.

— Você nunca fica amolado? — perguntou o americano.

— Acho melhor você dirigir meu carro.

Mareei teve de ser retirado de um bar. À primeira vista, pensei que seu rosto fora pisado por algum cavalo. Com um segundo olhar, convenci-me de que teria sido melhor se realmente seu rosto houvesse levado um coice. Mareei era feio, dolorosamente feio, mas havia alguma coisa nele que despertou minha imediata simpatia. Por algum tempo ficamos sentados no carro, discutindo condições e debatendo o trabalho a ser feito, e depois regressei à máquina estrambótica para dirigi-la e acostumar-me a ela. Enquanto eu seguia devagar pela pista, vi um carro velho chegando.

Mareei saltou dele, acenando freneticamente. Diminuí a marcha do trambolho mecânico e o fiz parar.

— Arranjei! Arranjei! — gritou ele, animadíssimo. Com muita gesticulação, voltou-se para o carro em que viera — e quase estourou a cabeça no telhado baixo do veículo.

Esfregando-a e resmungando imprecações temíveis contra os fabricantes de carros pequenos, vasculhou o assento de trás e saiu de lá com um embrulho de porte razoável.

— Intercom! — gritou ele.

Ele sempre gritava, mesmo quando estava a poucos palmos de distância do interlocutor.

— Intercom! Nós falamos, oui? Nós falamos, sim? Você lá, eu ali, fio no meio, nós falamos todo o tempo. Bem?

Gritando com o máximo volume de voz, saltou para o seu lugar na grande caçamba, estendendo fios para todos os lados.

— Você quer fone de cabeça, não? Com fone ouve-se melhor. Eu fico com microfone.

Pelo barulho que ele estava fazendo, cheguei à conclusão de que nenhum fone era necessário, pois sua voz vinha bem mais alto, por cima do próprio rugir daquele poderoso motor.

Continuei dirigindo, dando voltas, praticando a direção daquela coisa monstruosa. Mareei pulava e falava, andando da parte dianteira à traseira da máquina, enrolando os fios nas vigas. Vindo à minha torre de direção, enfiou o braço pela janela aberta, em meu ombro, e berrou:

— O fone de cabeça! Você vai usá-lo? Você ouve melhor, não? Espere, eu volto! Saiu em meio àquela ferragem, bateu com a cabeça em uma das barras, e gritou ao microfone:

— Você escuta bem? Está ouvindo bem? Sim? Eu venho!

Em sua exuberância, esquecera que estava com o microfone ligado. Quase antes que me fosse possível recuperar o tino, após o estrondo sonoro em meus ouvidos, lá estava ele de volta, batendo na janela:

— Bom? Bom? Você escuta bem?

— Ei! — disse o americano. — Vocês partem hoje à noite. Os papéis todos já estão aqui. Mareei sabe como é que a gente vai pra Paris, e ganhando uns francos no caminho. Tive muito prazer em conhecer vocês, camaradas.

Foi-se embora, e saiu de minha vida. Talvez ele leia este livro e entre em contato comigo por intermédio dos editores. Eu fui para meu quarto solitário, e Mareei para algum lugar onde pudesse beber. Durante o resto do dia eu dormi. Ao entardecer, tomei um táxi e segui para o barracão, a bagagem agora reduzida ao mínimo necessário, que eu guardei no espaço atrás do assento. O motor ligado, as pressões satisfatórias, o tanque de combustível cheio, as luzes funcionando normalmente, segui com a máquina para o ar livre e dei algumas voltas pela pista, a fim de aquecê-la.

A lua se erguia cada vez mais sobre o horizonte e nenhum sinal de Mareei. Desligando o motor, saí e andei em volta. Finalmente um carro chegou e Mareei desembarcou.

— Festa! — gritou. — Festa de despedida. Vamos agora, sim? Aborrecido, liguei novamente o motor e os faróis poderosos, e saímos para a estrada. Mareei gritava tanto que eu pus os fones de ouvido em volta do pescoço e me esqueci dele. Bem mais adiante, um carro da polícia ultrapassou-me e parou à minha frente.

— O seu vigia está dormindo. Você está infringindo o código, dirigindo na estrada sem um homem de vigia lá atrás.

Mareei apareceu, com passos ruidosos.

— Eu? Dormindo? Você não vê direito, policial? Só porque me sentei confortavelmente você se torna intrometido!

O policial aproximou-se mais e cheirou meu hálito, cuidadosamente.

— Não, não — disse Mareei. — Esse homem é um santo. Ele não bebe. Nem mulheres — acrescentou, como complemento.

— Seus documentos — disse o policial.

Examinou-os cuidadosamente, procurando algum motivo pelo qual pudesse criar um problema. Depois, viu meus documentos americanos de maquinista.

— Ah, então você é americano? Bem, não queremos barulho com o seu cônsul. Pode seguir.

Devolvendo os papéis, como se estivessem contaminados por alguma peste, voltou a seu carro e afastou-se com rapidez.

Dizendo a Mareei o que pensava dele, mandei-o de volta a seu lugar e prosseguimos a viagem noite afora. A quarenta quilômetros por hora, velocidade em que tínhamos de viajar, os cento e vinte quilômetros até a fronteira francesa pareceram nunca chegar. Pouco antes de Saarbrucken, paramos, saímos da estrada para não atrapalhar o tráfego e nos preparamos para passar o dia. Após uma refeição, levei meus papéis a uma delegacia local a fim de obter permissão para atravessar a fronteira. Tendo um motociclista da polícia à frente e outro atrás, seguimos por estradas laterais, e assim chegamos ao posto alfandegário.

Mareei se encontrava em seu meio, conversando com os compatriotas franceses. Fiquei sabendo que ele e alguns dos homens da Resistência com quem se encontrara tinham, quase sozinhos, ganho a guerra! Com nossos documentos examinados, tivemos licença para entrar em território francês.

O amistoso funcionário da Alfândega levou Mareei para sua companhia por todo o dia e eu me deitei ao lado das vigas da máquina e dormi. Mais tarde, muito mais tarde na verdade, Mareei voltou sob os cuidados de dois policiais franceses. Piscando um olho para mim, eles o amarraram em seu assento da máquina, inteiramente desfalecido para o mundo, e me cumprimentaram alegres, e eu prossegui a viagem.

Segui estrondosamente pela escuridão, tendo debaixo de mim uma máquina poderosa e, atrás, um vigia inteiramente desacordado. Todo o tempo me mantive em alerta com relação a qualquer carro de polícia. Um deles apareceu ao lado, um policial olhou por sua janela, fez um gesto de zombaria na direção de Mareei, cumprimentou-me com um gesto de mão e prosseguiu em sua marcha.

Tendo Metz ficado bem para trás, e sem qualquer sinal de vida dado por Mareei, tomei o acostamento, saltei, e fui lá atrás para examiná-lo. Mareei ainda dormia. Não houve modo de acordá-lo, por mais safanões que lhe desse, de modo que voltei para a direção.

O dia raiava quando passei pelas ruas de Verdun e fui ter ao grande parque de estacionamento que era meu destino.

— Lobsang! — chamou uma voz sonolenta, vinda de trás da máquina. — Se você não sair, nós vamos chegar atrasados.

— Atrasados?! — disse eu. — Mareei, nós já estamos em Verdun! Houve um silêncio completo e depois a pergunta em tom explosivo:

— Verdun?!

— Olhe, Mareei disse eu. — Trouxeram você para a máquina, bêbado e inconsciente. Você foi amarrado em seu banco. Eu tive de fazer todo o trabalho, tive de descobrir o caminho. Agora você trate de se mexer e vá buscar qualquer coisa para comermos. Ande com isso! Um Mareei muito murcho saiu e pouco depois voltava trazendo nossa refeição.

Cinco horas depois, um homem baixo e moreno apareceu, num velho Renault. Sem nos dar uma palavra, andou ao redor da grande caçamba, examinando-a com cuidado, procurando arranhões, à cata de qualquer motivo para reclamar. Suas sobrancelhas espessas pareciam uma barra acima do nariz, nariz esse que fora quebrado algum tempo antes e muito mal consertado. Finalmente, veio ter conosco.

— Qual de vocês é o motorista? — perguntou.

— Sou eu — respondi.

— Você vai levar isso de volta para Metz — disse ele.

— Não — foi minha resposta. — Pagaram-me para trazer a coisa aqui. Todos os documentos foram feitos para cá. Eu já terminei meu trabalho.

O rosto vermelho de raiva, e para minha consternação, ele tirou do bolso uma faca de mola. Consegui facilmente desarmá-lo, a faca voou por cima de meu ombro, e num instante o homem moreno estava caído de costas. Olhando ao redor, vi, surpreso, que um bom número de trabalhadores chegara e olhava a cena.

— Ele derrubou o chefe — disse um.

— Deve ter sido de surpresa — resmungou outro. Com violência, o homem moreno levantou-se do chão, como uma bola de borracha a saltar. Correndo à oficina, apanhou lá uma barra de ferro com garra na extremidade, usada para abrir caixotes. Saiu de lá correndo, gritando palavrões, e quis me atingir com ela, na garganta. Caí de joelhos, agarrei os joelhos dele e puxei. Ele gritou horrivelmente e caiu ao chão com a perna esquerda quebrada. A barra de ferro saiu de sua mão e bateu no chão e, mais adiante, em alguma coisa de metal.

— Bem, “chefe” — disse eu, enquanto me levantava —, você não é mais meu chefe, hem? Agora, peça desculpas muito direitinho, ou eu lhe baterei mais um pouco. Você quis me matar.

— Chame um médico! Chame um médico! — gemeu ele. — Eu estou morrendo!

— Peça desculpas primeiro — disse eu, com expressão feroz —, ou você vai precisar é de um coveiro!

— O que está havendo aqui? Ei! O que é que há?

Dois policiais franceses vinham abrindo caminho em meio aos trabalhadores, olharam para o “chefe”, caído ao chão, e riram gostosamente.

— Ah, ah, ah! — gritou um deles. — Então, ele encontrou alguém mais forte, hem? Só isso valeu o trabalho todo que temos tido com ele!

Os policiais olharam para mim com respeito e em seguida pediram meus documentos. Satisfeitos quanto a isso, e tendo ouvido os relatos feitos pelos espectadores, foram-se embora. O ex-“chefe” pediu desculpas, com lágrimas de mortificação nos olhos. Ajoelhei-me a seu lado e ajustei sua perna quebrada com duas talas feitas com tábuas de madeira, tiradas de um caixote. Mareei desaparecera. Fugira ao perigo e desaparecera de minha vida. Minhas duas malas estavam pesadas. Tirando-as da grande caçamba, fui para a rua, iniciando outra etapa de minha viagem. Eu não tinha trabalho, e não sabia onde consegui-lo.

Mareei se mostrara indigno de confiança, com seu cérebro imerso em álcool. Verdun não me atraía de modo algum, naquele momento. Detive um transeunte após outro, pedindo informações sobre como chegar à estação ferroviária, de modo a poder guardar minhas malas. Todos pareciam achar que meu aspecto ficaria melhor em um campo de batalha do que na estação ferroviária, mas consegui as informações necessárias. Segui pela Rue Poincaré, descansando de vez em quando e imaginando o que podia jogar fora para aliviar o peso de minhas malas. Os livros? Não, eu tinha de ficar com eles e ter bastante cuidado. Os uniformes da Marinha mercante? Não, eles eram um artigo positivamente obrigatório. Com relutância, cheguei à conclusão de que tinha apenas as coisas essenciais comigo. Na Place Chevert, eu já me arrastava.

Voltando à direita, cheguei ao Quai de La Republique. Espiando o tráfego sobre o rio Meuse, e pensando a respeito de navios, resolvi sentar-me um pouco e descansar. Um Citroen grande surgiu silenciosamente, diminuiu a marcha e parou perto de mim. Um homem alto e de cabelos escuros olhou-me por alguns momentos e depois saiu.

Vindo em minha direção, ele perguntou:

— Você é o homem que merece nossa gratidão por ter dado uma surra no “chefe”?

— Sou eu — respondi. — Ele quer apanhar mais um pouco?

O homem riu e respondeu:

— Há muitos anos que ele vem aterrorizando este distrito, e até a polícia tinha medo dele. Fez grandes coisas na guerra, ao que ele próprio afirma. Pois bem. Você quer um emprego?

Examinei o homem cuidadosamente, antes de responder:

— Sim, quero, se for trabalho honesto.

— O trabalho que eu tenho a oferecer é muito honesto.

Ele fez uma pausa, sorrindo, e acrescentou depois:

— O caso é o seguinte: eu sei tudo a seu respeito. Mareei tinha instruções para trazer você a mim, mas ele fugiu. Eu sei de sua viagem pela Rússia, e das viagens que fez desde então. Mareei entregou-me uma carta do americano, a seu respeito, e depois saiu correndo de mim, assim como fugiu de você.

“Aí está uma turma organizada”, pensei. Ainda assim, consolei-me, porque os europeus fazem as coisas de modo diferente de nós, no Oriente. O homem fez-me sinal.

— Ponha suas valises no carro e eu o levarei a almoçar, para que nós possamos conversar.

Isso fazia sentido, sem a menor dúvida. Pelo menos, eu ficaria livre daquelas duas malas horrivelmente pesadas, não tendo de carregá-las por algum tempo. Com satisfação, eu as guardei no porta-malas e embarquei, no assento ao lado dele. Ele seguiu para o melhor hotel, o Hotel du Coq Hardi, onde verifiquei que o conheciam muito bem. Com muitas exclamações quanto a meus pedidos modestos em matéria de bebida, ele entrou no assunto:

— Há duas senhoras muito idosas, uma com oitenta e quatro e outra com setenta e nove anos — disse ele, olhando cuidadosamente ao redor. — Elas estão com muita pressa para irem ter com o filho de uma delas, que mora em Paris. Mas têm medo de bandidos. Gente velha tem dessas coisas, e elas passaram por duas guerras, de modo que querem um homem capaz, que saiba protegê-las.

Mulheres? E velhas? Bem, era melhor do que mulheres novas, mas a ideia não me agradava. Depois disso, pensei nas malas pesadas, pensei em como ia chegar a Paris.

— Elas são mulheres bem generosas — disse o homem. — Só existe um contratempo. Você não pode ultrapassar sessenta quilômetros por hora.

Cuidadosamente, olhei ao redor do salão. Duas mulheres velhas! Estavam sentadas a três mesas de distância.

“Pelo sagrado dente de Buda!”, disse a mim mesmo. “A que ponto cheguei!” A visão daquelas duas malas apareceu em minha mente. Eram malas pesadas, e eu não as podia tornar mais leves. Também o dinheiro... Quanto mais tivesse, tanto mais fácil seria viver na América, enquanto procurasse emprego. Suspirei e disse:

— Elas pagam bem? E que diz do carro? Eu não voltarei para cá.

— Sim, meu amigo, elas pagam muitíssimo bem. A condessa é uma mulher rica. O carro? Ela vai levar um Fiat novo para o filho, como presente. Venha, venha conhecê-las.

Pôs-se de pé e seguiu à frente, indo ter com as duas velhas damas. Fazendo uma mesura tão acentuada que eu me lembrei de um peregrino no caminho santo, em Lhasa, ele me apresentou. A condessa olhou-me com altivez através do pincenez.

— Então, você se considera capaz de levar-nos com segurança, meu rapaz?

Olhei para ela, com altivez idêntica, e respondi:

— Madame, eu não sou “seu rapaz”. Quanto à questão de segurança, minha vida tem tanto valor para mim quanto a sua, evidentemente, tem para a senhora. Pediram-me que tratasse dessa viagem com as senhoras, mas eu confesso ter minhas dúvidas.

Por longos momentos ela me fitou friamente. Depois a rigidez de seu queixo afrouxou e ela prorrompeu em uma risada bem alegre.

— Ah! — exclamou. — Eu gosto de algum espírito nas pessoas. É tão raro encontrar isso nos dias de hoje! Quando podemos partir?

— Nós ainda não discutimos as condições, e eu também não pude ver o seu carro. Quando querem ir, se eu concordar? E por que querem que eu dirija? Por certo há muitos franceses prontos a fazer isso para as senhoras.

As condições que ela ofereceu eram generosas e os motivos apresentados eram bons.

— Eu prefiro um homem decidido, um homem de espírito, que tenha viajado e que conheça a vida.

— Quando é que partimos?

— Quando? Assim que você estiver pronto.

Dei-lhes dois dias e depois iniciamos a viagem em um Fiat modelo de luxo.

Tomamos a estrada para Reims, a cerca de cento e quarenta quilômetros, e lá passamos a noite. Seguindo com uma velocidade entre cinquenta e sessenta quilômetros por hora, eu tinha oportunidade de ver a paisagem ao lado da estrada e coordenar meus pensamentos, que até então mal haviam conseguido emparelhar-se às minhas numerosas viagens. No dia seguinte, partimos ao meio-dia e chegamos a Paris a tempo de tomar o chá. Na casa do filho, situada num subúrbio, pus o carro na garagem e saí novamente com minhas duas malas.

Aquela noite, dormi em uma pensão barata, e no dia seguinte olhei ao redor, procurando alguma coisa que me levasse a Cherbourg ou ao Havre.

Os negociantes de carro foram quem eu primeiro procurei. Alguém queria entregar um carro em Cherbourg, ou no Havre? Andei muitos quilômetros, de um a outro vendedor. Não, ninguém queria meus serviços. Ao final do dia, voltei àquela pensão barata e lá encontrei uma cena incomum. Um homem estava sendo carregado por um policial e outro pensionista. Uma bicicleta estraçalhada estava no chão, com a roda dianteira inteiramente torcida. O homem, voltando para a pensão após o trabalho, olhara para trás e a roda dianteira da bicicleta que dirigia ficara presa em uma grande grade de esgoto no pavimento, e ela caíra sobre o guidom. Seu tornozelo direito estava muito machucado.

— Vou perder meu emprego, vou perder meu emprego! — gemia ele. — Tenho de ir a Caen, amanhã, entregar a mobília.

Caen? Esse nome era-me vagamente conhecido. Caen? Fui espiar no mapa. Era uma cidade a uns duzentos quilômetros de Paris, e a caminho de Cherbourg, ficando aproximadamente a cento e quarenta quilômetros dessa cidade. Pensei bem e fui ter com ele.

— Eu quero ir a Cherbourg ou ao Havre — disse, então. — Irei no caminhão de móveis e farei o seu trabalho, se houver alguém que traga o caminhão de volta. Você poderá ficar com o dinheiro. Eu ficarei satisfeito com a viagem.

Ele me brindou com uma expressão de alegria.

— Mas sim! Podemos ver isso. O meu companheiro dirige. Nós temos de carregar a mobília de uma casa grande aqui, levar a Caen, descarregar lá.

Mediante providências rápidas, a coisa ficou combinada. De manhã eu passaria a ser um ajudante de transportador de mobília, sem ordenado. Henri, o motorista, poderia facilmente ter obtido um atestado de incapacidade. Em um particular, apenas, ele era especialista: conhecia todos os recursos e manobras imagináveis para evitar o trabalho. Fora da vista da casa, ele parou e disse:

— Você dirige. Eu estou cansado.

Foi para a parte de trás do caminhão, acomodou-se no móvel mais confortável que encontrou, e começou a dormir. Eu dirigi. Em Caen, ele disse:

— Você começa a descarregar. Eu preciso mandar assinar estes papéis.

Todas as peças da mobília, exceto aquelas que tinham de ser carregadas por dois homens, já estavam na casa quando ele voltou. Amolecendo o corpo outra vez, foi buscar o jardineiro, que me ajudou a carregar as coisas para dentro da casa. Ele nos “dirigia”, de modo que as paredes não fossem arranhadas!

Tendo descarregado o caminhão, subi para o banco do motorista. Henri, sem pensar, embarcou a meu lado. Eu dirigi o caminhão para a estação ferroviária, que vira a alguma distância, na estrada. Lá estacionei o veículo, tirei minhas malas e disse a Henri:

— Agora, você dirige.

Voltei-lhe as costas e entrei na estação. Havia um trem partindo para Cherbourg em vinte minutos. Comprei minha passagem, comi alguma coisa, e depois o trem chegou. Nós viajamos quando já caía o crepúsculo. Na estação ferroviária de Cherbourg, deixei as malas no guarda-volumes e segui pelo Quai de l'Entrepôt, procurando acomodação para a noite. Finalmente encontrei a Pensão dos Marinheiros. Entrei, aluguei um quarto muito modesto, paguei adiantadamente e fui buscar a bagagem. Quando cheguei, estava cansado e fui dormir.

De manhã, conversei o mais possível com outros marinheiros ali hospedados, e que estavam esperando seus navios. Com grande sorte, consegui nos dias seguintes visitar as casas de máquinas de embarcações no porto. Durante aquela semana acossei os agentes marítimos, em busca de um lugar a bordo de um navio que me levasse para o outro lado do Atlântico. Os agentes examinavam meus documentos, meu livro de baixa, e perguntavam:

— Então, você ficou sem dinheiro nas férias, e quer arrumar uma viagem de ida? Muito bem... Nós nos lembraremos de você, e informaremos se aparecer alguma coisa assim.

Eu me misturava cada vez mais com os marinheiros, aprendendo-lhes a terminologia e tudo quando podia a respeito de suas personalidades. Acima de tudo, fiquei sabendo que quanto menos se falasse e mais se ouvisse tanto mais se tomava a reputação de inteligente.

Finalmente, depois de uns dez dias, fui chamado ao escritório de um agente marítimo. Um homem corpulento e atarracado estava sentado junto à mesa dele.

— Você pode partir esta noite, se for preciso? — perguntou o agente.

— Estou pronto para partir agora, senhor! — respondi.

O homem atarracado observava-me atentamente. Depois disso, saiu-se com uma série de perguntas, com um sotaque que me dificultava a compreensão.

— O chefe, aqui, é escocês. O terceiro-maquinista dele adoeceu e foi levado ao hospital. Ele quer que você vá com ele imediatamente para bordo — traduziu o agente.

Mediante grande concentração da atenção, consegui entender o resto da fala do escocês e responder satisfatoriamente às suas perguntas.

— Vá apanhar suas coisas — disse ele, finalmente. — E embarque.

De volta à pensão, paguei apressadamente minha conta, apanhei as malas e tomei um táxi até o porto. O navio era velho, enferrujado, precisando muito de pintura, e lamentavelmente pequeno para a travessia do Atlântico.

— Pois é... — disse um homem na doca. — Esse barco já deu o que tinha de dar. Com o mar encapelado, ele pula que parece que vai jogar as tripas pra fora.

Subi a prancha, deixei as malas na cozinha e desci a escada de ferro para a casa das máquinas, onde o chefe Mac estava à espera. Conversamos sobre os motores e ele ficou satisfeito com minhas respostas.

— Ok, rapaz — disse. — Vamos assinar o contrato. O camareiro vai-lhe mostrar sua cabina.

Voltamos apressadamente ao escritório do agente, onde assinamos os “contratos” e depois regressamos ao navio.

— Você começa agora mesmo, rapaz — disse o chefe Mac.

E assim, provavelmente pela primeira vez na história, um lama tibetano, passando por americano, tomou seu lugar a bordo, como maquinista. Trabalhei as primeiras oito horas com o navio ancorado, e isso foi uma bênção para mim, pois minha leitura vinha, agora, a ser suplementada por alguma experiência prática, e eu me sentia inteiramente confiante. Com o bater de sinos e o ruído chiante de vapor, os pistões brilhantes de aço erguiam-se e desciam, em movimentos que se repetiam, e as rodas giravam cada vez mais depressa, fazendo o navio vibrar. Imperava, ali, o cheiro de óleo aquecido e vapor. Para mim, aquilo era uma vida estranha, tão estranha quanto a vida em um mosteiro lamaico o seria para o chefe Mac, que agora se apresentava rígido, cachimbo entre os dentes, uma das mãos apoiada num volante de controle, feito de aço. O sino tocou outra vez, e o indicador de comandos mostrou meia força à ré.

Quase sem olhar, Mac virou a roda e acionou uma alavanca. A vibração do motor aumentou, e tudo aquilo passou a vibrar de leve. Parar, mandou o indicador de comando, logo acompanhado pela ordem meia força à frente. Antes que Mac pudesse acionar os controles, o sino tocou novamente e a agulha foi indicar toda à frente.

Devagar, o navio se pôs em marcha, e Mac veio ter comigo.

— Ah, rapazinho! — disse ele. — Você já terminou suas oito horas. Vá dando o fora. Diga ao camareiro que eu quero meu chocolate, quando o encontrar.

Chocolate! Alimento... Isso me fazia lembrar que havia doze horas que não comia. Subi rapidamente os degraus de aço, chegando ao convés e ao ar livre. A espuma vinha da proa e o navio mergulhava um pouco, enquanto seguíamos para alto-mar.

Atrás de nós, as luzes da costa francesa desmanchavam-se na escuridão. Uma voz áspera fez-me voltar ao presente:

— Quem é você, meu rapaz? Voltei-me e vi o primeiro piloto a meu lado.

— Sou o terceiro-maquinista, senhor — respondi.

— Nesse caso, por que não está de uniforme?

— Eu sou maquinista substituto, senhor. Embarquei em Cherbourg e entrei imediatamente em serviço.

— Hum — disse o piloto. — Vá vestir seu uniforme agora mesmo. Nós precisamos de disciplina a bordo.

Tendo dito isso, saiu como se fosse primeiro-piloto de um grande transatlântico e não de um cargueiro velho e enferrujado. Na porta da cozinha, transmiti as ordens do chefe Mac.

— Você é o terceiro-maquinista novo? — indagou uma voz atrás de mim.

Voltei-me e vi que o segundo-maquinista acabara de chegar.

— Sim, senhor — respondi. — Vou, agora, vestir meu uniforme, e depois quero comer alguma coisa.

Ele anuiu.

— Eu irei com você — disse. — O primeiro-piloto acaba de se queixar de que você não está de uniforme. Disse que pensou que você era um passageiro clandestino. Eu expliquei que você acabara de embarcar e fora diretamente para o trabalho.

Seguiu comigo e indicou minha cabina, que ficava bem diante da sua, perto da cozinha.

— Chame quando estiver pronto — disse ele —, e nós iremos jantar.

Eu tivera de mandar alterar os uniformes para poder vesti-los, e agora, apresentando-me como oficial de Marinha mercante, fiquei imaginando o que meu guia, o Lama Mingyar Dondup, haveria de dizer se me pudesse ver. Tive de rir para mim mesmo, pensando na sensação que causaria em Lhasa se aparecesse por lá vestido daquele modo. Chamando o segundo-maquinista, seguimos para o refeitório dos oficiais, a fim de jantar. O comandante, já à sua mesa, acolheu-nos com cara fechada.

— Ora!... — disse o segundo-maquinista, quando o primeiro prato foi posto à sua frente. — A mesma lavagem de porco! Nunca se tem uma coisa melhor por aqui?

— Moço! — e a voz do comandante quase nos fez saltar dos bancos. — Moço, você está sempre com queixas. O que deve fazer é mudar para outro navio, quando chegarmos a Nova York.

Alguém começou a rir, mas a risada se transformou numa tosse embaraçada quando o comandante dirigiu um olhar raivoso em sua direção. O resto da refeição foi feito em silêncio, até que o comandante, terminando antes de nós, se levantou e saiu.

— Navio do inferno! — disse um oficial. — Esse velho foi primeiro-piloto da Marinha inglesa, durante a guerra. Estava num navio de transporte, e não consegue tirar isso da cabeça.

— Ah, vocês são uns doidos! — disse uma voz. — Sempre se queixando!

— Não — murmurou o segundo-maquinista para mim — ele não é americano. Apenas um porto-riquenho que foi demais ao cinema.

Eu estava cansado e saí para o convés antes de me deitar. A boreste, os homens atiravam cinzas quentes ao mar, livrando-se do lixo acumulado a bordo durante a estadia no porto. O navio jogava um pouco, e eu segui para minha cabina. Lá as paredes estavam cobertas por fotografias de moças e eu as tirei e joguei na cesta de papéis. Enquanto me despia e ia para o leito, já sabia que conseguira desincumbir-me dos meus deveres a bordo.

— Tá na hora! — gritou uma voz, e alguém abriu a porta e acendeu a luz.

“Já?”, pensei. “Ora essa!” Parecia-me que mal começara a dormir. Levantei-me, consultei o relógio, lavei o rosto e me vesti, seguindo para o café da manhã. O refeitório encontrava-se deserto, agora, e eu comi depressa e sozinho. Com um olhar aos primeiros raios de luz do dia, apressei-me, descendo as escadas de ferro até a sala das máquinas.

— Você é pontual — disse o segundo-maquinista. — Eu gosto disso. Não há alterações, a não ser dois graxeiros no túnel. Está bem, eu mesmo vou — aduziu, bocejando bastante.

Os motores continuavam funcionando ritmados, monotonamente, mas cada volta deles levava-me para mais perto de Nova York. Fora da casa das caldeiras, a “turma preta” cuidava das fornalhas, raspando, cortando, mantendo a pressão do vapor pouco abaixo da linha vermelha. Do túnel, onde ficava alojado o eixo da hélice, dois homens bastante suados e sujos apareceram. A sorte estava comigo, todas as temperaturas se mostravam normais, e nada havia a declarar.

Empurraram papéis sujos em minha direção, com percentagens de gás carbônico e outros danos. Assinei, sentei-me e preenchi o Registro da sala das máquinas durante o meu turno.

— Como vai a coisa, moço? — perguntou o chefe Mac, que vinha descendo as escadas estrepitosamente.

— Bem. Tudo normal.

— Bom — disse Mac. — Eu bem queria fazer com que aquele comandante se tornasse normal. Ele diz que gastamos carvão demais na última viagem. O que é que eu devia fazer? Dizer a ele pra tocar o navio a remos? Suspirou, pôs os óculos com armação de aço, leu o registro e assinou.

O navio seguia pelo Atlântico encapelado. Um dia sucedia a outro, em monótona continuidade. Aquele não era um navio feliz, pois os oficiais de convés zombavam do pessoal das máquinas. O comandante era um homem triste, que pensava estar comandando um transatlântico, ao invés de um cargueiro velho e em mau estado. Até o tempo se mostrava ruim. Certa noite, eu não pude dormir, porque o navio jogava muito, e fui para o convés. O vento uivava pelos arames e cabos, numa melodia deprimente, fazendo-me lembrar de modo irresistível a ocasião em que estivera no telhado do Chakpori, com o Lama Mingyar Dondup e Jigme, e havíamos seguido para o astral. A boreste, em meio ao navio, uma figura solitária agarrava-se desesperadamente à amarradura, e tinha ânsias de vômito. Estava quase “pondo o coração pra fora”, como declarou mais tarde. Eu era inteiramente imune ao enjoo do mar, e diverti-me bastante, vendo marinheiros experimentados sendo afetados daquele modo. A luz da bitácula, na ponte de comando, mandava um raio de luz bem fraco para cima. Na cabina do comandante, tudo estava escuro. A espuma vinha da proa, caindo onde eu estava. O navio saltava e jogava como uma coisa enlouquecida, os mastros descrevendo arcos loucos no céu da noite. Bem a estibordo, um transatlântico vinha em nossa direção, com todas as luzes acesas, jogando de um modo que devia estar causando bastante desconforto a seus passageiros. Tendo o vento favorável, ele viajava bem, e sua imensa superestrutura agia como vela.

“Ele logo estará em Southampton Roads”, pensei, enquanto me voltava para descer. Quando a tempestade se encontrava no auge, uma das tomadas da bomba de vazamento entupiu-se com alguma coisa deslocada pela violência com que o navio jogava, e eu tive de descer e supervisionar o trabalho dos homens que procuravam desentupi-la.

O ruído era terrível, o eixo da hélice vibrava, enquanto esta, alternadamente, corria solta, quando a popa do navio estava no ar, ou estremecia, quando mergulhava na água, antes de atingir a crista da onda seguinte. Nos porões, os homens do convés trabalhavam febrilmente, prendendo um engradado pesado de maquinaria, que se partira e soltara. Pareceu-me estranho que houvesse tanto atrito naquele navio, pois estávamos todos executando nossas tarefas o melhor possível.

O que importava se um homem trabalhava nas máquinas, nas entranhas do navio, enquanto outros o faziam no convés, ou estavam na ponte de comando, observando a água que deslizava ao lado? Trabalho? Havia muito trabalho ali, bombas a serem consertadas, caixas a serem refeitas, gaxetas a serem inspecionadas e verificadas, e as linhas e cabos dos guindastes a examinar, nos preparativos para o desembarque e descarga em Nova York.

O próprio chefe Mac era bom trabalhador e homem justo. Adorava seus motores, assim como uma mãe adora seu primeiro filho. Certa tarde, eu estava sentado em um caixote, esperando entrar em serviço. Nuvens de tempestade cruzavam o céu, numa indicação da chuva pesada que se seguiria. Sentei-me, ao abrigo de um ventilador, lendo. De repente, uma mão pesada desceu sobre meu ombro e uma voz forte, com sotaque escocês, disse:

— Ah, rapazinho!... Eu bem queria saber o que você fazia em seu tempo de folga. O que é isso? Histórias do faroeste? Sexo? Sorrindo, passei-lhe o livro para que examinasse.

— Motores marítimos — respondi. — Muito melhor do que histórias do faroeste, ou sexo...

Ele resmungou com aprovação, enquanto examinava o livro, antes de devolvê-lo.

— Bom pra você. Boa leitura, rapaz — disse, então. — Você será primeiro-maquinista, e logo chefe de máquinas, se continuar estudando.

Pondo o velho cachimbo de volta na boca, assentiu amistosamente para mim e disse:

— Pode ir tomar conta agora, rapaz.

O navio estava tomado por grande movimentação.

— Inspeção pelo comandante, terceiro — preveniu-me o segundo-maquinista.

— Ele é um sujeito doido, pensa que está num transatlântico, quer inspecionar todo o navio, cabinas e tudo, e faz isso todas as viagens.

Mantive-me ao lado do leito quando o comandante entrou, acompanhado pelo primeiro-piloto e o tesoureiro.

— Hum — resmungou o grande homem, enquanto finava ao redor com expressão de desdém. — Não tem retratos de mulher? Eu pensei que todos os americanos eram doidos por esse artigo.

Relanceou o olhar pelos livros e um sorriso cínico veio a seus lábios.

— Há alguma novela dentro daquelas capas de livros técnicos? — perguntou.

Sem dizer uma palavra, adiantei-me e abri alguns livros, sem escolher. O comandante passou um dedo aqui e ali, no corrimão, sobre o leito e por cima da porta. Olhando, depois, para seus dedos ainda limpos, anuiu desapontado, e saiu com passos firmes. O segundo-maquinista sorriu para mim, com ar maroto.

— Você o apanhou desta vez... Ele é um intrometido que não tem tamanho.

Reinava uma atmosfera tensa de expectativa a bordo. Os homens estavam saindo, tirando seus apetrechos de desembarque, limpando-se, tentando resolver como passar com seus embrulhos pelas autoridades alfandegárias. Falavam de suas famílias, ou das namoradas. Todos falavam, sem qualquer restrição. Logo iriam para a costa visitar os amigos e seus entes queridos. Apenas eu não tinha para onde ir, ninguém com quem falar. Apenas eu desembarcaria em Nova York como uma criatura estranha, sem amigos ou conhecidos.

Na linha do horizonte apresentavam-se os arranha-céus de Manhattam, brilhando à luz do sol, depois de lavados pela chuva. Algumas janelas refletiam os raios do sol, depois de torná-los cor de ouro velho. A Estátua da Liberdade — e notei que ela estava de costas para a América — apresentava-se à nossa frente. Meia força à frente, mostrou o indicador de comando, com seu toque de sino. O navio reduziu a marcha e a pequena onda cortada pela proa desapareceu, quando diminuiu seu impulso. Parar, mostrou o indicador de comando, quando já estávamos bem próximos da doca. Cabos foram atirados e apanhados, e o navio mais uma vez estava amarrado à terra.

Desligar os motores, apontou o indicador de comando. O vapor cessou de passar na tubulação, com chiados que pareciam gemidos. Os gigantescos pistões paralisaram e o navio balançou suavemente em suas amarras, ainda que de leve, perturbado pela marola de outras embarcações que passavam.

Nós acionamos válvulas, pondo em funcionamento o equipamento auxiliar, como guinchos e guindastes. Sobre o convés, os homens corriam de um lado para outro, abrindo as amarras das escotilhas e as portas dos porões, puxando os encerados. Os agentes marítimos vieram a bordo, acompanhados pelos estivadores, e logo o navio se tornou um manicômio com vozes ruidosas a darem ordens em gritos. Os guindastes faziam estardalhaço e o barulho de pés pesados estrugia no convés. O suboficial médico portuário examinava os documentos da tripulação. Policiais vieram a bordo e retiraram um pobre clandestino do qual nós, na casa das máquinas, nem tínhamos ouvido falar. O infeliz foi levado em algemas, na companhia de dois policiais fortes e mal-encarados, indo ter a um carro da polícia, para o interior do qual foi empurrado. Nós fizemos fila, recebemos o dinheiro que nos era devido, assinamos os recibos e passamos a receber nossos livros de baixa. No meu, o chefe Mac escrevera: Grande dedicação ao trabalho. Eficiente em todos os serviços. Eu o receberei como companheiro de trabalho a qualquer momento.

E eu pensei: “Que pena ter de abandonar tudo isto, mas não posso continuar aqui”.

Regressei à minha cabina e a arrumei, dobrando os cobertores e pondo-os de lado. Tendo preparado meus livros, vesti roupa civil e guardei meus pertences nas duas malas. Um último olhar ao redor, e eu saí e fechei a porta.

— Não mudou de ideia? — perguntou o chefe Mac. — Você é um bom companheiro, e eu terei o maior prazer em fazer de você segundo-maquinista, quando terminar esta viagem.

— Não, chefe — respondi —, quero viajar mais um pouco, adquirir mais experiência.

— A experiência é uma coisa formidável. Boa sorte para você.

Desci a prancha, levando minhas malas. Ao lado dos navios ancorados, tinha outra vida à minha frente. Como eu detestava todas aquelas mudanças, a incerteza, não ter a quem chamar “amigos”!

— Onde nasceu? — perguntou o funcionário da Alfândega.

— Pasadena — respondi, lembrando-me dos documentos em meu poder.

— O que tem a declarar? — interpelou ele.

— Nada — respondi.

Ele olhou-me com um ar severo.

— Ok, pode abrir — ordenou, com uma voz que parecia um rosnado.

Pondo as malas diante dele, abrias. Ele examinou tudo, depois retirou o que se encontrava no interior delas e examinou os forros.

— Pode arrumar — disse, afastando-se e deixando-me livre.

Refiz as malas e saí pelos portões. Lá fora, no rugido louco do tráfego, parei para respirar um pouco, coordenar os pensamentos e procurar orientação.

— Que é que há contigo, moço? Vá andando! — disse uma voz bruta.

Voltando-me, vi um policial que me fitava.

— Há algum crime em parar na rua? — perguntei.

— Há, vá tocando, seu! — gritou ele.

Devagar, apanhei minhas malas e segui pela rua, maravilhando-me com as montanhas de metal, feitas pelo homem. Atrás de mim, o policial que sabia berrar tão bem fazia o mesmo com outro infeliz.

— Nós não fazemos isso em Nova York! Vá andando!

As pessoas pareciam preocupadas, forçadas. Veículos a motor passavam, em velocidades incríveis. Havia o gemido constante de pneus e o cheiro de borracha queimada.

Prossegui na caminhada e finalmente vi diante de mim o letreiro Hotel dos Marinheiros. Dirigi-me à portaria.

— Assine aqui — disse uma voz fria e impessoal. Com cuidado, preenchi o formulário que havia sido empurrado em minha direção, e o entreguei de volta com um “muito obrigado”.

— Não tem que agradecer — disse a voz fria. — Eu não lhe estou fazendo nenhum favor. É o meu trabalho.

Continuei ali, em pé, esperando.

— Bem, o que é que há? — perguntou a voz. — Quarto 303, é o que diz aí no formulário e na chave também.

Como era possível discutir com um autômato humano? Dirigi-me a um homem que estava sentado numa poltrona, lendo uma revista para homens.

— Nós damos muito aborrecimento à Jenny, não? — indagou, antes de dizer outra coisa. — Qual é o seu quarto?

— Quarto 303 — respondi, muito abatido. — É a primeira vez que venho aqui.

— Terceiro andar — disse ele. — É o terceiro quarto a estibordo.

Tendo agradecido, caminhei em direção a uma porta encimada pelo letreiro Elevador.

— Aperte o botão — disse o homem sentado na poltrona.

Fiz o que ele dizia, e momentos depois a porta foi aberta e um menino magro fez sinal para que eu entrasse.

— Andar? — perguntou.

— Terceiro — respondi.

Ele apertou um botão e aquela pequena cabina subiu com rapidez, fazendo uma parada repentina.

O menino magro abriu a porta e anunciou:

— Terceiro.

A porta do elevador fechou-se atrás de mim, e eu estava mais uma vez sozinho. Desajeitado, olhei a chave para verificar novamente o número, e fui procurar meu quarto. Sim, lá estava ele, o número 303, numa pequena placa acima da terceira porta à direita do elevador. Pus a chave na fechadura e a fiz girar. A porta abriu e eu entrei no quarto. Era um aposento pequeno, bem parecido com a cabina do navio. Assim que fechei a porta, vi uma lista impressa, contendo os regulamentos internos do hotel. Lendo-a cuidadosamente, verifiquei que poderia permanecer ali apenas vinte e quatro horas, a menos que estivesse por embarcar, caso em que o tempo máximo permitido era de quarenta e oito horas. Vinte e quatro horas!

Assim sendo, até mesmo ali não havia paz. Depositei as malas no chão, tirei a poeira da roupa e saí à procura de comida e jornais, de modo a ver nos anúncios se encontrava algum emprego.

 

Nova York parecia uma cidade muito inamistosa. As pessoas a quem eu tentava fazer parar, na rua, para indagar o caminho, dirigiam-me um olhar assustado e saíam, apressadas. Depois de dormir uma noite, tomei o café da manhã e apanhei um ônibus para o Bronx. Pelos jornais eu ficava com a ideia de que as pensões seriam mais baratas por lá. Perto do Bronx Park desembarquei e segui pela rua, procurando algum letreiro de quarto para alugar. Um carro em velocidade passou entre dois caminhões de entrega e pelo lado errado da rua, deslizando, e subiu a calçada, atingindo-me pelo lado esquerdo. Mais uma vez ouvi o ruído de ossos partindo-se.

Enquanto eu caía na calçada, e antes de um desmaio misericordioso se apoderar de mim, vi um homem apanhar minhas duas malas e afastar-se depressa. O ar estava cheio de música, e eu feliz, sentindo-me bem, depois de anos de dureza.

— Ah! — exclamou a voz do Lama Mingyar Dondup. — Você, então, voltou mais uma vez? Abri os olhos e o vi, sorrindo para mim, com a mais completa compaixão a brilhar em seus olhos. — A vida na Terra é dura e amarga, e você passou por muitas provações, poupadas felizmente à maioria das pessoas. Isso é apenas um interlúdio, Lobsang, apenas um interlúdio desagradável. Depois da longa noite, você vai despertar para um dia perfeito, quando não precisará mais voltar à Terra, ou a qualquer dos mundos mais baixos.

Eu suspirei. Estava bem agradável ali, e isso acentuava ainda mais a dureza, a desigualdade e a injustiça da vida terrena.

— Você, meu Lobsang — disse meu guia —, está vivendo sua última vida na Terra. Você está se livrando de todo o carma, e está também executando uma tarefa importante, uma tarefa que os espíritos maus procuram embaraçar.

O carma! Isso me fazia lembrar, com muita clareza, a lição que eu aprendera na amada e distante Lhasa... O tilintar das sinetas de prata terminara. As trombetas não mais ecoavam no vale de Lhasa em sons altos e claros naquele ar fino e revigorante. Ao redor, havia um silêncio incomum, um silêncio que não devia existir.

Despertei de meu devaneio, exatamente quando os monges, no templo, davam início à sua litania para os mortos. Mortos? Sim! Naturalmente! A litania para o velho monge que morrera recentemente. Falecera após uma vida prolongada e cheia de sofrimento, de serviços prestados aos outros, incompreendido e sem receber qualquer agradecimento.

“Que carma terrível deve ter tido ele!”, pensei comigo. “Como deve ter sido mau, em sua vida anterior, para merecer tal tratamento!”

— Lobsang!

A voz, atrás de mim, parecia o ribombar de um trovão distante. Os golpes que caíram sobre meu corpo... Bem... Esses não eram tão distantes, por azar.

— Lobsang! Você aqui, escondido, demonstrando desrespeito ao nosso irmão que faleceu! Tome esta! E tome mais esta!

De repente, os golpes terminaram, como por mágica.

Voltei a cabeça e espiei a figura gigantesca à minha frente, com seu cajado pesado ainda na mão erguida.

— Disciplinador — disse uma voz que eu conhecia e amava. — Isso, realmente, foi castigo demasiado para um menino pequeno. Que fez ele, para sofrer isso? Ele profanou o templo? Ele desrespeitou as figuras douradas? Fale e explique sua crueldade.

— Sr. Mingyar Dondup... — gemeu o alto disciplinador do templo. — O menino estava aqui, devaneando, quando devia encontrar-se na litania, com seus companheiros.

O Lama Mingyar Dondup, que também não era pequeno, olhou tristemente para o homenzarrão de Kham, que tinha à frente, e falou com firmeza:

— Pode ir, disciplinador. Eu tratarei pessoalmente deste caso.

Enquanto o disciplinador fazia uma respeitosa mesura e se retirava, meu guia voltou-se para mim.

— Agora, Lobsang, vamos para o meu quarto, para que você possa recontar a história de seus numerosos pecados, que foram tão bem castigados.

Dizendo isso, inclinou-se e me pôs em pé. Em minha curta vida, até então ninguém, a não ser meu guia, jamais demonstrara alguma bondade para comigo, e eu tive dificuldade em conter as lágrimas de gratidão e amor.

O lama voltou-se e seguiu devagar pelo corredor comprido e deserto. Eu o acompanhei humildemente, até ansiosamente, sabendo que nenhuma injustiça jamais poderia vir daquele grande homem. À entrada de seu quarto ele parou, voltou-se para mim e pôs a mão em meu ombro.

— Venha comigo, Lobsang. Você não cometeu crime algum. Entre, e conte-me o que houve.

Dizendo isso, empurrou-me à sua frente e me fez sentar.

— Comida, Lobsang! Comida! Também nela você está pensando! Precisamos de chá e comida enquanto conversamos.

Com gestos calmos, tocou uma sineta de prata e um servente entrou. Até que a comida e a bebida fossem postas diante de nós, permanecemos sentados em silêncio, eu pensando na certeza com que todos os meus erros eram descobertos e punidos, quase antes mesmo de serem cometidos.

Uma vez mais uma voz interrompeu meus pensamentos.

— Lobsang, você está devaneando! Comida, Lobsang, a comida está diante de você, e você, você, logo você não está vendo! A voz bondosa e brincalhona trouxe-me de volta à situação e quase automaticamente estendi a mão para aqueles bolos açucarados que tanto agradavam ao meu paladar, bolos que haviam sido trazidos da Índia distante para o Dalai-Lama mas que, graças à sua bondade, eram-me dados também.

Por alguns momentos permanecemos sentados e comemos, ou melhor, eu comi, e o lama sorria para mim com benevolência.

— Agora, Lobsang — disse, quando dei sinais de estar satisfeito —, conte o que aconteceu.

— Mestre — respondi —, eu estava refletindo sobre o carma terrível do monge que morreu. Ele deve ter sido um homem muito mau, nas vidas anteriores. Pensando assim, esqueci-me por completo dos serviços no templo, e o disciplinador veio e me apanhou, antes que eu pudesse escapar.

Ele prorrompeu em gargalhadas.

— Então, Lobsang, você teria tentado fugir ao seu carma, se pudesse?

Olhei para ele, sem achar graça alguma, sabendo que poucos conseguiam escapar aos disciplinadores atléticos, de pés tão ligeiros na corrida.

— Lobsang, essa questão do carma... Oh, como é mal compreendida, até mesmo por alguns, aqui no templo... Ponha-se à vontade, pois vou falar-lhe bastante sobre a questão.

Mexi-me um bocado, procurando dar a impressão de que me punha à vontade. Queria, isso sim, era estar lá fora com os outros, e não ali, ouvindo uma preleção, pois mesmo dada por um grande homem, como o Lama Mingyar Dondup, uma preleção era uma preleção e qualquer remédio, ainda que de gosto agradável, era um remédio.

— Você conhece tudo isso, Lobsang, ou deveria conhecer, se houvesse prestado alguma atenção aos seus professores (o que eu duvido!), mas eu vou relembrá-lo outra vez, porque receio que sua atenção esteja um pouco falha.

Dito isso, lançou-me um olhar penetrante e prosseguiu:

— Nós viemos a esta Terra assim como vamos a uma escola. Nós vimos aprender nossa lição. Em nossa primeira aula na escola, vamos para a turma mais atrasada, porque somos ignorantes e ainda não aprendemos coisa alguma. Ao final do ano, passamos nos exames ou somos reprovados. Se passarmos, vamos para uma turma mais adiantada, quando voltamos à escola, vindo das férias. Se não passarmos, voltamos à mesma turma da qual saímos. Se formos reprovados em, digamos, uma matéria apenas, dão-nos permissão para estar na turma mais adiantada, e lá estudar também a matéria em que falhamos antes.

Isso era falar comigo em uma língua que eu compreendia bem. Eu já sabia tudo a respeito dos exames e de ser reprovado em uma matéria e seguir para turma mais adiantada, competindo com meninos maiores e, ao mesmo tempo, estudando, naquilo que devia ser meu tempo de folga, estudando sob a vigilância inflexível de algum velho lama, bolorento, criatura já tão antiga que se esquecera por completo de ter sido criança, um dia.

Houve um estrondo, e eu dei um salto tão alto, assustado, que quase me ergui no ar.

— Ah, Lobsang! Então, sempre obtemos uma reação, afinal de contas! — disse meu guia, enquanto ria e repunha a sineta de prata que deixara cair atrás de mim. — Eu falei com você em uma série de ocasiões, mas você estava devaneando, em outro lugar.

— Sinto muito, honrado lama — respondi —, mas estava pensando... admirando a clareza de sua preleção.

O lama abafou um sorriso e prosseguiu:

— Nós vimos a esta Terra assim como as crianças vão à escola. Se, em nossa vida, andarmos bem e compreendermos aquilo que nos fez vir, nesse caso passamos mais adiante e a uma vida em estado muito mais elevado. Se não aprendermos nossas lições, voltamos para quase o mesmo tipo de corpo e condições. Em alguns casos, um homem, em vida anterior, terá demonstrado grande crueldade para com os outros. Ele terá de voltar a esta Terra e procurar penitenciar-se desses feitos. Tem de voltar e procurar demonstrar bondade para com os outros. Muitos dos reformadores, nesta vida, foram grandes transgressores, no passado. Assim, a roda da vida gira, trazendo primeiro riquezas a um, e depois pobreza a outro, e o mendigo de hoje pode ser o príncipe de amanhã, e assim a coisa continua, de uma vida para outra.

— Mas, honrado lama — intervim —, isso quer dizer que, se um homem for, hoje, um mendigo de uma só perna, é porque terá cortado a perna de outro, em outra vida?

— Não, Lobsang, não é assim. Quer dizer que o homem precisava ser pobre, e precisava sofrer a perda de uma perna, para poder aprender sua lição. Se você tem de estudar cifras, tome sua lousa e o ábaco. Se vai estudar entalhes, tome uma faca e um pedaço de madeira. Você usa as ferramentas adequadas à tarefa que vai empreender. Assim acontece com o tipo de corpo que temos. O corpo e as circunstâncias de vida que temos são os mais adequados para a tarefa que temos à frente.

Pensei no velho monge que morrera, e que estivera sempre a lamentar seu “mau carma”, imaginando o que fizera para merecer aquela vida tão difícil.

— Ah, sim, Lobsang — disse meu guia, lendo-me os pensamentos —, os não-esclarecidos sempre se queixam das obras do carma. Não compreendem que, às vezes, são as vítimas de atos maus de outros, e que, por meio deles, sofrem injustamente agora, mas em vida posterior terão plena recompensa. Volto a lhe dizer, Lobsang, que você não pode julgar a evolução de um homem pela sua posição atual na Terra, nem pode condená-lo como mau se ele parece estar em dificuldades. Tampouco deve condenar, pois enquanto não tiver todos os fatos, o que não é possível obter nesta vida, você não poderá formar um juízo completo.

As trombetas do templo ecoavam pelos salões e corredores e nos chamavam para que fôssemos ao serviço noturno. A voz... Eram as trombetas do templo? Ou era um gongo? Pareceu-me que o gongo vibrava dentro de minha cabeça, reverberando, sacudindo-me, trazendo-me de volta à vida na Terra. Abri devagar os olhos.

Havia cortinas ao redor da minha cama e um cilindro de oxigênio perto dela.

— Ele acordou, doutor — disse uma voz.

Ouvi pés arrastarem-se e o ruído de tecidos bem engomados. Um rosto avermelhado chegou ao alcance de minha visão.

— Ah! — disse o médico americano. — Você voltou à vida! Conseguiu sair-se bem machucado, sabia?

Eu o olhei, sem entender.

— As minhas malas? — perguntei. — Elas estão em lugar seguro?

— Não. Um sujeito fugiu com elas e a polícia não consegue achá-lo.

Mais tarde, naquele dia, policiais vieram ter comigo, procurando informações. Minhas malas tinham sido roubadas. O homem cujo carro me atingira na calçada e me ferira gravemente não tinha seguro. Era um negro desesperado. Mais uma vez eu tinha o braço esquerdo quebrado, quatro costelas quebradas e ambos os pés amassados.

— Você sairá daqui dentro de um mês — disse o médico, em tom alegre.

Depois disso, veio a pneumonia. Durante nove semanas eu fiquei no hospital, e, assim que pude levantar-me, pediram-me que pagasse a conta.

— Encontramos duzentos e sessenta dólares em sua carteira e teremos de ficar com duzentos e cinquenta para pagar sua estada aqui.

Olhei para o homem, sem querer acreditar no que ouvia.

— Mas eu não tenho emprego, não tenho nada! — protestei. — Como poderei viver com dez dólares? Ele deu de ombros.

— Ah, você vai ter de processar o negro. Você recebeu tratamento e temos de cobrar. O caso nada tem a ver conosco. Mova processo contra o homem que causou o acidente.

Andando sem firmeza, desci as escadas. Cheguei à rua quase cambaleando. Sem dinheiro, a não ser dez dólares, sem trabalho, sem lugar para morar, como podia viver? Era esse o problema. O porteiro do hospital fez um sinal, com o polegar.

— Suba a rua. Há uma agência de emprego. Vá falar com eles.

Assentindo, sem entusiasmo, eu me afastei, procurando minha única esperança. Numa rua lateral, num prédio de mau aspecto, vi um letreiro surrado, onde se lia: Empregos. Subir ao terceiro andar, pela escada, foi um sacrifício quase acima de minhas forças. Ofegando, segurei-me ao corrimão lá em cima, até sentir-me um pouco melhor.

— Você pode esfregar soalho, rapaz? — perguntou o homem de dentes amarelos a quem me dirigi, e que movia nos lábios grossos um charuto já bem trabalhado.

Olhou-me de alto a baixo e comentou:

— Você deve ter saído da penitenciária, ou do hospital.

Narrei-lhe tudo quanto me acontecera, como perdera os pertences e o dinheiro.

— Quer dizer que você está precisando de uns dólares bem depressa, não é? — disse ele, preenchendo alguns dados em um cartão.

Deu-me o cartão e disse que o levasse a um hotel, um dos mais conhecidos da cidade. Eu fui, gastando centavos preciosos em passagens de ônibus.

— Vinte dólares por semana e uma refeição por dia — decretou o gerente de pessoal.

E assim, por vinte dólares semanais e uma refeição diária, lavei montanhas de pratos sujos e esfreguei degraus de escadas sem fim, trabalhando dez horas por dia. Vinte dólares semanais — e uma refeição... Aquela que serviam aos empregados não era da mesma qualidade da que era servida aos hóspedes: era submetida a um exame rigoroso. O ordenado era tão pequeno que eu não podia alugar um quarto. Dormia nos parques e jardins, debaixo de arcos e pontes, e aprendi a escapulir de noite, antes que o guarda em ronda viesse com seu cassetete, cutucando a pessoa e dando ordem de “andar”, com sua voz pouco amistosa. Aprendi a forrar as roupas com folhas de jornal, para defender-me dos ventos cortantes que varriam as ruas desertas de Nova York, à noite.

Meu único terno estava gasto pelas viagens e manchado pelo trabalho e eu não tinha uma muda para a roupa de baixo. A fim de lavá-la, trancava-me no banheiro dos homens, retirava-a e punha novamente as calças, lavando-a num lavatório e secando-a nos canos de vapor, pois enquanto não pudesse vesti-la não podia sair. Meus sapatos tinham furos nas solas e eu os cobri com papelão, posto por dentro, enquanto vigiava as latas de lixo, procurando um par em melhores condições, que algum hóspede houvesse jogado fora. Mas havia muitos observadores atentos com o mesmo fim, e muitas mãos podiam examinar o “lixo dos hóspedes” antes que o mesmo chegasse às minhas mãos.

Eu vivia e trabalhava com uma refeição diária, e muita água. Pouco a pouco, consegui formar uma muda de roupa, obtive um terno de segunda mão, e um par de sapatos usados. Devagar, consegui juntar cem dólares.

Um dia, ouvi dois hóspedes conversando próximo à porta de serviço. Falavam sobre o insucesso do anúncio em conseguir a resposta do tipo de homem que procuravam. Pus-me a trabalhar cada vez mais devagar. “Conhecimento da Europa, boa voz, conhecimentos de rádio...” Alguma coisa aconteceu comigo, e eu saí apressado pela porta e exclamei:

— Eu posso apresentar tudo isso! Os homens me olharam, espantados, e depois prorromperam em gargalhadas homéricas. O chefe dos garçons e um de seus subordinados vieram ter comigo, os rostos contorcidos de fúria.

— Saia! — disse o chefe dos garçons, e segurou-me com violência pelo colarinho, rasgando-me a pobre jaqueta velha de alto a baixo.

Eu me voltei para eles e atirei as duas metades de minha jaqueta em seu rosto.

— Vinte dólares por semana não dão a vocês o direito de falar a um homem desse modo! — disse eu, com raiva.

Um dos dois homens olhou para mim, com aspecto de quem estava horrorizado.

— Vinte dólares por semana! Foi isso o que você disse?

— Sim, senhor. É o que me pagam aqui, e dão-me uma refeição por dia. Eu durmo nos parques, nos jardins, sempre perseguido pelos guardas. Eu vim ter a esta “terra da oportunidade”, e no dia seguinte ao de minha chegada um homem me atropelou com seu automóvel. Enquanto eu estava desacordado, um americano roubou tudo que eu tinha. Prova? Eu lhes darei provas, e depois os senhores poderão examinar e verificar o que estou dizendo.

O administrador do andar acorreu, torcendo as mãos e quase chorando. Fomos levados a seu gabinete, onde todos se sentaram, e eu permaneci em pé. O mais velho dos dois homens telefonou ao hospital, e depois de alguma demora minha narrativa foi confirmada em cada pormenor. O administrador empurrou uma nota de vinte dólares em minha mão.

— Compre uma jaqueta nova — disse ele. — E suma daqui! Eu empurrei o dinheiro de volta à sua mão flácida.

— Fique com ele — repliquei. — Você vai precisar mais do que eu.

Voltei-me para sair; quando cheguei à porta uma mão se ergueu e uma voz disse:

— Pare! O homem mais velho fitava-me diretamente nos olhos.

— Eu acho que você talvez sirva para nós. Vamos ver isso. Venha a Schenectady amanhã. Aqui está meu cartão.

Eu me voltei para ir-me embora.

— Espere! Aqui tem cinquenta dólares para chegar lá.

— Senhor — disse eu, recusando o dinheiro que me oferecia —, eu chegarei lá com meus próprios recursos. Não aceitarei dinheiro enquanto os senhores não tiverem certeza de que eu atendo a seus requisitos, pois eu não poderia pagar-lhes, se não me aceitassem.

Voltei-me e deixei o gabinete. Em meu armário, na sala dos criados, tirei meus pertences e saí para a rua. Não tinha para onde ir, a não ser o banco do jardim no parque. Não havia, por perto, ninguém de quem despedir-me.

Aquela noite, a chuva impiedosa caiu e me ensopou, até a pele. Por sorte, mantive meu terno “novo” seco, sentando-me sobre ele.

De manhã, tomei uma xícara de café, comi um sanduíche e verifiquei que o meio mais barato de viajar de Nova York a Schenectady era de ônibus. Comprei a passagem e tomei meu lugar. Algum passageiro deixara um exemplar do Morning Times no banco, de modo que eu pude ir lendo o jornal, para não pensar muito no futuro incerto. O ônibus prosseguia sua marcha, devorando quilômetros. De tarde, chegara à cidade de Schenectady. Fui a um banheiro público, tornei-me tão apresentável quanto possível, vesti minhas roupas limpas e saí.

No estúdio de rádio, os dois homens estavam à minha espera. Por horas seguidas eles me fizeram perguntas. Um homem após outro vinha e saía outra vez. Finalmente, eles conheciam toda a minha história.

— Você diz que seus documentos estão guardados com um amigo em Xangai? — perguntou o mais velho. — Nesse caso, vamos contratá-lo temporariamente e mandar um telegrama para lá, a fim de que ele os remeta para cá. Assim que você tiver seus documentos, ficará conosco em caráter permanente. Cento e dez dólares por semana, e nós trataremos novamente do salário quando houvermos visto seus documentos. Mande buscá-los à nossa custa. O outro homem disse:

— Tenho a certeza de que um adiantamento seria bom para ele.

— Dê-lhe um mês adiantado — disse o primeiro. — E que comece a trabalhar depois de amanhã.

Assim teve início um dos períodos felizes de minha vida. Eu gostava do trabalho e cumpria minhas obrigações de modo inteiramente satisfatório. Com o correr do tempo, meus documentos, meu cristal antiquíssimo e alguns outros pertences chegaram. Os dois homens examinaram tudo e me deram um aumento de quinze dólares semanais. A vida começava a sorrir para mim, pensei.

Depois de algum tempo, durante o qual poupei a maior parte do dinheiro que ganhava, tive a sensação de que não estava fazendo progresso algum, não estava dando prosseguimento à tarefa de que me havia incumbido na vida. O homem mais velho afeiçoara-se bastante a mim, agora, e fui ter com ele e falamos sobre o problema, tendo eu dito que deixaria o emprego quando ele encontrasse um substituto adequado. Por três meses mais eu continuei ali.

Os documentos haviam vindo de Xangai, entre eles um passaporte emitido pelas autoridades britânicas da Concessão Britânica. Naqueles dias distantes da guerra já terminada, os ingleses se haviam mostrado muito meus amigos, pois utilizavam meus serviços. Agora... bem, eles achavam que nada mais tinham comigo. Levei meu passaporte e demais documentos à Embaixada do Reino Unido em Nova York, e depois de muitas dificuldades e demora consegui primeiramente um visto, e depois uma permissão para trabalhar na Inglaterra.

Finalmente arranjaram um substituto para meu lugar e eu fiquei duas semanas a mais para ensinar-lhe o trabalho, e depois parti. A América talvez seja singular, no sentido de que uma pessoa, se souber como, pode viajar de graça quase a qualquer lugar. Procurei nos jornais, até encontrar, sob o título de “Transportes”, o seguinte: Califórnia, Seattle, Boston, Nova York. Gasolina paga, chame 000000 XXX auto-serviço de entrega.

As firmas, na América, querem entregar automóveis em todos os pontos do continente. Muitos motoristas desejam viajar, de modo que um meio bom e barato é o motorista entrar em entendimentos com a firma de entrega de carros. Depois de passar por um exame simples de direção, recebe vales de gasolina para reabastecimento em certos pontos no itinerário escolhido.

Eu chamei o serviço de entrega de automóveis e disse que queria levar um carro a Seattle.

— Não há problema nenhum! — disse um homem com sotaque irlandês. — Estou precisando de um homem que leve um Lincoln para lá. Tome a direção. Vamos ver como você dirige.

Enquanto eu o fazia, ele me contava diversas coisas úteis e pareceu ter gostado de mim, pois declarou:

— Eu conheci sua voz. Você já foi locutor de rádio. Eu o confirmei, e ele disse:

— Eu tenho um receptor de ondas curtas, com que costumava ouvir meu país, a Irlanda. Há algum defeito no aparelho, porque não recebe mais ondas curtas. Os homens daqui não entendem do serviço. Você sabe alguma coisa desse assunto? Eu garanti que iria dar uma espiada e ele me convidou para ir à sua casa aquela noite, e até mesmo emprestou um carro, no qual podia chegar lá. Sua esposa, irlandesa, mostrou-se sumamente agradável e eles deixaram, em mim, um amor pela Irlanda que se intensificou, quando fui morar lá.

O rádio era um modelo inglês muito famoso, um Eddystone de excepcional qualidade, que não encontra similar. A sorte sorria-me. O irlandês apanhou uma das bobinas, e eu notei como ele a segurava.

— Deixe-me ver essa bobina — pedi. — E tem uma lente de aumento?

Ele trouxe o que eu pedira, e um exame rápido mostrou-me que o modo incorreto pelo qual segurava a bobina fizera partir-se um fio em um de seus pinos. Mostrei isso a ele.

— Tem um ferro de soldar e alguma solda? — perguntei.

Não tinha, mas o vizinho dele possuía essas coisas. Ele saiu para buscá-las e voltou com o que eu pedia. Em questão de minutos, soldei novamente o fio e o receptor voltou a funcionar. Fiz alguns ajustes nos trimmers e o aparelho passou a funcionar melhor ainda. Logo estávamos ouvindo a BBC de Londres.

— Eu ia mandar esse rádio à Inglaterra para que o consertassem — disse o irlandês. — Agora, vou retribuir-lhe o favor que me prestou. O dono do Lincoln queria que um dos motoristas de nossa firma o levasse a ele, em Seattle. É um homem rico e eu vou pôr você em nossa folha de pagamento, de modo que você receberá pelo trabalho. Nós lhe daremos oitenta dólares e cobraremos a ele cento e vinte. Que tal?

Que tal? Para mim, era ótimo.

Na manhã da segunda-feira seguinte, eu parti. Pasadena era minha primeira parada. Eu queria ter certeza de que o maquinista marítimo de cujos documentos eu me apossara realmente não tinha parentes. Nova York, Pittsburgh, Colúmbia, Kansas City, os quilômetros desfilavam. Eu não me apressava, tendo dado a mim mesmo uma semana para aquela viagem. À noite, dormia no carro, que era grande, a fim de poupar as despesas de hotel, saindo da estrada nos pontos que me pareciam adequados para isso. Logo cheguei ao sopé das montanhas Rochosas americanas, desfrutando melhor o ar, e desfrutando-o ainda mais à medida que o carro subia. Por todo um dia fiquei naquela região montanhosa e depois parti para Pasadena. As indagações mais minuciosas que fiz não conseguiram revelar a existência de qualquer parente do maquinista. Ele parecia ter sido um homem difícil, que preferia sua própria companhia à de qualquer outra pessoa.

Passei pelo Parque Nacional de Yosemite, pelo Parque Nacional do Lago da Cratera, Portland, e finalmente cheguei a Seattle. Levei o carro para a garagem, onde foi cuidadosamente examinado, lubrificado e lavado. Depois disso, o gerente da garagem fez uma chamada telefônica.

— Venha comigo — disse, depois do telefonema. — Ele quer que levemos o carro até lá.

Dirigi o Lincoln, e o gerente seguiu em outro automóvel, de modo que tivéssemos transporte de volta. Pelo amplo caminho que dava acesso a um casarão vieram três homens para nos receber. O gerente que fora comigo mostrou-se muito deferente para com o homem de rosto impassível que adquirira o Lincoln. Os dois que se encontravam em sua companhia eram técnicos, que examinaram o veículo detidamente.

— Foi muito bem dirigido — disse um deles. — Pode aceitá-lo com absoluta confiança.

O homem de rosto impassível assentiu de modo condescendente para mim.

— Venha a meu estúdio — disse, então. — Vou dar-lhe uma gratificação de cem dólares, só para você, porque foi cuidadoso com o carro.

— Puxa vida! — exclamou o gerente, mais tarde.

— Foi um grande gesto dele. Você agradou ao homem em cheio!

— Estou procurando um trabalho que me leve ao Canadá — declarei. — Pode conseguir-me isso?

— Bem — replicou o gerente —, você quer ir para Vancouver e eu não tenho nada para lá. Mas há um camarada que quer comprar um De Soto novo. Ele mora em Oroville, que é na fronteira, mas não quer ele próprio dirigir o automóvel. Ficaria muito satisfeito se alguém entregasse o carro. Ele tem crédito, e eu vou chamá-lo.

— Puxa, Hank! — dizia, mais tarde, ao telefone, falando com o cliente. — Você quer parar com essas reclamações e dizer logo se quer ou não quer o De Soto?

Ouviu por algum tempo e depois interrompeu o outro, dizendo:

— Mas eu não lhe estou dizendo? Tenho um camarada aqui que vai para Oroville, em passagem para o Canadá. Ele trouxe um Lincoln de Nova York para cá. O que me diz, Hank?

A voz de Hank fazia ruídos que eu não conseguia entender, e o gerente suspirou, exasperado.

— Bom, você é um sujeito cabeçudo! — disse, então. —, Pode depositar o cheque no banco. Eu conheço você há uns vinte anos ou mais e não tenho medo de que vá fazer alguma sujeira comigo. Ouviu mais um pouco e disse: — Ok, vou fazer como você quer... Sim, sim, ponho na conta.

Desligou o telefone e assobiou, soltando a pressão que parecia ter no peito.

— E então, moço? — disse, dirigindo-se a mim. — Sabe alguma coisa a respeito de mulheres?

Mulheres? O que podia achar que eu soubesse sobre elas? E quem sabe alguma coisa sobre elas? Elas são enigmas até para si próprias! O gerente viu minha expressão de perplexidade e prosseguiu:

— O Hank é solteirão há quarenta anos, isso eu sei. E agora está pedindo que você leve para ele alguns artigos femininos... Roupas, coisas assim. Acho que o velho sem-vergonha está querendo entrar na farra. Vou perguntar à minha mulher para saber o que mandar.

Ainda naquela semana dirigi-me para Seattle, com um De Soto absolutamente novo, levando uma carga de roupas femininas. A mulher do gerente havia demonstrado bom senso telefonando a Hank para saber o que se passava! Fui de Seattle a Wenatchee e de Wenatchee a Oroville. Hank ficou satisfeito, de modo que perdi pouco tempo e continuei para o Canadá. Por alguns dias permaneci em Osoyoos. Por um golpe de sorte, consegui atravessar o Canadá, partindo de Trail e passando por Ottawa, Montreal e Quebec. De nada adianta examinar os acontecimentos de então aqui, porque foram tão incomuns que talvez venham a constituir assunto para outro livro.

Quebec é uma cidade bonita, apresentando a desvantagem de que em algumas partes as pessoas não são bem vistas, a menos que falem francês. Meu conhecimento desse idioma era apenas o suficiente para me fazer entender nas coisas essenciais! Eu frequentei o cais e, conseguindo um cartão sindical de marinheiro, embarquei como ajudante de convés. Não era um trabalho bem remunerado, mas permitia atravessar mais uma vez o Atlântico. O navio era um cargueiro sem itinerário. O comandante e os pilotos há muito haviam perdido qualquer entusiasmo pelo mar e por sua embarcação.

Era pouco o trabalho de limpeza, e eu não me fiz simpático, pois recusava-me a jogar ou falar sobre mulheres. Tinham receio de mim, devido ao fato de as tentativas feitas pelo valentão de bordo, no sentido de afirmar sua superioridade sobre mim, haverem terminado com seus gritos pedindo clemência. Dois de sua turma conseguiram resultado ainda pior e eu fui levado ao comandante e repreendido por ter posto fora de combate alguns membros de sua tripulação.

Ninguém reconheceu que eu estava apenas me defendendo! A não ser por esses incidentes de menor monta, a viagem transcorreu tranquilamente e logo o navio chegava ao canal da Mancha.

Eu estava de folga, no convés, quando passamos pelas Agulhas e entramos no Solent, aquela faixa de água limitada pela ilha de Wight e o continente. Devagar, passamos pelo Nettley Hospital, com suas dependências tão aprazíveis.

Passamos pelos ferryboats ocupados em Woolston e chegamos ao porto de Southampton. A âncora desceu e mergulhou com estrépito, sua corrente batendo no convés. O navio voltou-se de proa para a corrente marítima, o indicador de comandos na sala das máquinas ecoou e a pequena vibração do motor cessou.

Funcionários embarcaram, examinaram os documentos do navio, e também os alojamentos dos tripulantes. O oficial médico portuário liberou-nos e, devagar, o navio foi ter às suas amarras. Como membro da tripulação, fiquei a bordo até o navio ser descarregado, e depois, tendo recebido meu salário, apanhei meus pertences e desembarquei.

— Tem alguma coisa a declarar? — perguntou o oficial alfandegário.

— Nada — respondi, abrindo a mala como ele ordenara.

Ele examinou os poucos pertences que eu tinha, mandou-me fechar a mala e escreveu nela sua rubrica com giz.

— Por quanto tempo vai ficar? — perguntou.

— Eu vou morar aqui, senhor — respondi.

Ele examinou meu passaporte, visto e permissão de trabalho, com ar de aprovação.

— Ok — disse, e fez um gesto indicando que podia sair pelo portão.

Eu continuei andando, e voltei-me para dar uma última espiada ao navio do qual acabara de desembarcar. Um golpe forte quase me jogou ao chão e eu me voltei depressa. Um outro oficial aduaneiro viera correndo da rua, atrasado, esbarrara em mim e estava agora sentado no chão, um tanto aturdido. Permaneceu sentado por alguns momentos, e eu fui ajudá-lo a levantar-se.

Ele me repeliu com fúria, de modo que apanhei minha mala para prosseguir em meu caminho.

— Pare! — gritou ele.

— Está tudo bem, senhor — disse o oficial que examinara a mim e minha bagagem. — Ele nada tem, e os documentos estão em ordem.

— Eu mesmo o examinarei! — gritou o funcionário superior.

Os dois funcionários vieram ter comigo, as expressões demonstrando grande preocupação. Um deles quis protestar, mas teve como resposta uma ordem brusca para que se calasse. Fui levado a uma sala e logo o funcionário enfurecido apareceu. Examinou minha mala, atirou minhas coisas ao chão, examinou os forros e o fundo da velha mala. Contrariado por não haver encontrado coisa alguma errada, exigiu meu passaporte.

— Ah! — exclamou, então. — Você tem um visto e uma permissão de trabalho. O encarregado em Nova York não tem autoridade para emitir ambos. Está em nosso critério, aqui, resolver isso.

Com ar triunfal, e em gestos teatrais, rasgou o passaporte e o atirou ao depósito de papéis. Logo em seguida, apanhou os fragmentos e os guardou no bolso. Tocou uma campainha e dois homens vieram de outro gabinete.

—Este homem não tem documentos — disse ele. Terá de ser deportado. Levem-no para a cela de espera.

— Mas, senhor! — disse um dos funcionários. — Eu vi os documentos, e estavam em ordem!

— Você está pondo em dúvida o que eu digo? —, rugiu o superior. — Faça o que eu mandei!

O homem pegou-me pelo braço e disse com tristeza:

— Vamos.

Eu fui levado e trancafiado numa cela sem qualquer conforto.

— Mas, por Deus, meu velho! — disse o rapazinho inteligente do Ministério das Relações Exteriores, quando veio ter à minha cela muito, muito mais tarde. — Tudo isso é um contratempo e tanto, não acha? Coçou o queixo liso e suspirou ruidosamente. — Você compreende nossa posição, meu velho, tenho certeza disso. A coisa é realmente simples demais, simplesmente desesperada. Você deve ter tido documentos, ou os nossos colegas em Quebec não teriam permitido seu embarque. Mas, agora, já não os tem! Eles devem ter sido perdidos no mar, digamos... Não é isso mesmo, meu velho? O que quero dizer é que...

Arregalei os olhos para ele, com raiva, e redargui:

— Os meus documentos foram deliberadamente destruídos, aqui, e eu exijo que me soltem e me deixem desembarcar.

— Sim, sim! — respondeu o rapazinho inteligente. — Mas você pode provar que houve isso? Houve um passarinho que cantou em meu ouvido, dizendo exatamente o que aconteceu. Nós temos de dar mão firme ao nosso pessoal, ou então a imprensa cairia sobre nós. É uma questão de lealdade, de espírito de grupo, e essas coisas todas...

— Então, vocês sabem da verdade, que meus documentos foram destruídos, mas ainda assim, nessa declamada “terra dos livres”, ficam quietos e nada fazem para impedir tal perseguição?

— Meu caro amigo, você tinha apenas um passaporte de residente de Estado Anexado. Você não é um cidadão da Comunidade Britânica. Eu acho, pessoalmente, que você está bastante fora de sua órbita. Agora, meu velho, a menos que você concorde que seus documentos foram... digamos... perdidos no mar, nós teremos de mover processo contra você, por entrada ilegal no país. Isso poderia proporcionar-lhe dois anos de prisão. Se você quiser colaborar, será apenas devolvido a Nova York.

— Nova York? Por que Nova York?

— Se você regressasse a Quebec, podia causar-nos um problema. Nós estamos capacitados a provar que você veio de Nova York. Assim sendo, a coisa está para você decidir. Será Nova York, ou dois anos como hóspede involuntário de Sua Majestade.

Como complemento, aduziu depois:

— Está claro que você ainda assim seria deportado, depois de cumprir a pena, e as autoridades teriam muito prazer em confiscar o dinheiro em seu poder. A nossa sugestão permitirá que você fique com ele.

O rapazinho inteligente pôs-se em pé e tirou a poeira imaginária de sua jaqueta imaculada.

— Pense no caso, meu velho. Pense no caso! Nós estamos oferecendo um modo inteiramente mágico de sair da dificuldade. Dizendo isso, voltou-se e deixou-me sozinho na cela.

Trouxeram-me comida inglesa indigesta, e eu procurei esforçar-me por cortá-la com uma faca, a mais cega que já vira em minha vida. Talvez estivessem pensando que eu, desesperado, quisesse suicidar-me.

Pois bem, uma coisa era certa: ninguém conseguiria suicidar-se com aquela faca! O dia se arrastou e um guarda mais amistoso atirou alguns jornais ingleses no interior da cela. Depois de olhar um pouco, deixei-os de lado, pois o pouco que dera para ver tratava apenas de sexo e escândalos.

Com a chegada da noite, trouxeram-me um canecão de chocolate e uma fatia de pão com margarina. A noite estava fria, com uma umidade que me fez lembrar túmulos e corpos bolorentos.

O guarda da turma matutina saudou-me com um sorriso que ameaçava rachar seu rosto pétreo.

— Você vai sair amanhã — anunciou. — Um comandante de navio concordou em aceitar você a bordo, se trabalhar para pagar a passagem. Você será entregue à polícia de Nova York, quando chegar lá.

Horas depois, naquela mesma manhã, chegou um funcionário para me notificar oficialmente e informar que eu executaria o trabalho mais pesado a bordo, preparando o carvão nas fornalhas de um cargueiro de modelo antigo, que não dispunha de qualquer dispositivo de economia de trabalho.

Não haveria ordenado algum e eu teria de assinar um contrato declarando concordar com tais condições. De tarde fui levado ao agente marítimo, sob guarda, e lá, na presença do comandante, assinei os documentos indicados.

Vinte e quatro horas depois, ainda sob guarda, fui levado ao navio e trancado numa pequena cabina, sendo-me dito que teria de permanecer nela até que o navio se encontrasse além dos limites das águas territoriais. Logo as batidas do velho motor despertavam o navio, que parecia acordar com dificuldade, e pelo movimento de sobe-e-desce eu sabia que estávamos entrando em mar agitado. Somente quando Portland Bill se achava a estibordo e bem para trás é que me soltaram.

— Vamos andar, mocinho! — disse o foguista, entregando-me uma pá velha e um ancinho. — Vá limpar aqueles buracos e tirar a escória. Leve-a pro convés e jogue-a na água. Vamos, trate de agir, já!

— Ah, olha só! — disse o homem enorme no castelo de proa, mais tarde, quando passei por lá. — Nós temos um boneco, um china, um japonês. Ei, você! — disse, então, dando-me uma bofetada. — Lembra-se de Pearl Harbor?

— Deixe-o, Butch — disse outro homem. — Os policiais estão atrás dele.

— Ah, ah! — gargalhou Butch. — Vamos dar uma boa coça nele, só por causa de Pearl Harbor.

Atirou-se a mim, os punhos parecendo pistões. Começou a ficar cada vez mais furioso, porque nenhum dos golpes me atingia.

— Ah, você é ligeirinho, hein? — resmungou, estendendo a mão numa tentativa de agarrar-me a garganta num golpe de estrangulamento.

O velho Tzu e outros, no Tibete distante, haviam-me preparado para essas coisas. Eu me abaixei e o impulso do corpo de Butch fez com que ele caísse à frente, tropeçando em mim e batendo com a cara na beira da mesa do castelo de proa, quebrando o queixo e quase arrancando uma orelha numa caneca que se partira enquanto caía. Não tive mais problemas com a tripulação.

Pouco a pouco, o perfil de Nova York surgia à nossa frente. Nós prosseguíamos, deixando uma nuvem de fumaça negra no ar, por causa do carvão de má qualidade que usávamos. Um foguista indiano olhou temerosamente ao redor, aproximou-se de mim e falou baixinho:

— Os policiais vêm logo pra pegar você. Você é um homem bom. Eu ouvi o chefe dizendo o que o comandante disse pra ele. Eles têm de manter a fachada limpa. — Dizendo isso puxou uma bolsa de fumo. — Põe teu dinheiro nisso e pula na água antes que eles levem você pra terra.

Sussurrava em tom confidencial, dizendo-me para onde o barco da polícia seguiria e dizendo-me onde seria possível esconder-me, como ele fizera no passado. Ouvi com grande atenção, enquanto ele me dizia como escapar à caça que seria feita pela polícia, depois de eu ter pulado na água. Deu me nome e endereço de pessoas que me ajudariam e prometeu comunicar-se com elas, quando desembarcasse.

— Eu tive um apuro desse jeito, uns tempos trás. Eles me pegaram por causa da cor da pele.

— Ei, você! — gritou alguém na ponte de comando. — O comandante quer-lhe falar. Venha depressa!

Segui rapidamente para a ponte de comando. O piloto apontou a sala de mapas. Lá estava o comandante sentado à mesa, examinando alguns documentos.

— Ah! — disse, olhando-me. — Eu vou deixar você aos cuidados da polícia. Tem alguma coisa a me dizer antes?

— Senhor — respondi —, meus documentos estavam inteiramente em ordem, mas um funcionário da Alfândega os destruiu.

Ele olhou para mim e assentiu, consultou novamente seus papéis e pareceu tomar uma decisão.

— Eu conheço o sujeito de quem você fala. Eu mesmo tive problemas com ele, no passado. Mas as aparências têm de ser salvas, por mais que isso prejudique os outros. Eu sei que sua história é verdadeira, pois tenho um amigo na Alfândega que confirmou o que você diz.

Dizendo isso, fitou novamente os papéis e aduziu:

— Tenho aqui uma queixa, dizendo que você é clandestino.

— Mas, senhor! A Embaixada Britânica em Nova York pode informar quem eu sou. Os agentes marítimos em Quebec podem fazer o mesmo.

— Meu camarada — disse o comandante, com ar triste —, você não conhece as coisas do Ocidente. Nenhum inquérito será feito. Levarão você para terra, e será posto em uma cela, julgado e condenado. Depois disso, será esquecido. Quando estiver próximo a ser libertado, será deportado de volta para a China.

— Isso corresponderia à morte para mim, senhor — disse eu. Ele assentiu.

— Sim, mas o rumo dos deveres dos funcionários teria sido seguido. Neste navio nós tivemos um caso parecido, nos dias da Lei Seca. Fomos presos por suspeita e recebemos uma multa pesada, quando éramos inteiramente inocentes.

Abriu a gaveta da mesa e retirou dali um pequeno objeto.

— Eu vou dizer à polícia que você foi injustiçado e farei tudo que puder em seu favor. Eles vão algemar você, mas não o revistarão até que cheguem à costa. Aqui está uma chave que serve para abrir as algemas da polícia. Eu não vou dá-la a você, mas colocá-la nesta mesa, e voltar-me para outro lado.

Pôs a chave diante de mim, ergueu-se da mesa e voltou-se para o mapa que estava atrás. Eu apanhei a chave e a guardei no bolso.

— Obrigado, senhor — disse, então. — Sinto-me melhor, pela confiança que demonstrou em mim.

À distância, vi a lancha da polícia aproximar-se, em meio a uma cascata de espuma levantada na proa. Ela parou ao lado do navio, fez meia-volta e aproximou-se com manobra hábil. A escada foi baixada e dois policiais subiram e seguiram para a ponte de comando, em meio a olhares inamistosos de alguns tripulantes. O comandante os recebeu, oferecendo-lhes bebidas e charutos. Em seguida, apresentou os documentos que tinha sobre a mesa.

— Este homem trabalhou bem, e em minha opinião foi injustiçado por um funcionário da Alfândega. Se tiver tempo para ir à Embaixada Britânica, poderá provar sua inocência — disse ele.

O policial mais graduado adotou um ar cínico.

— Todos esses sujeitos são inocentes. As penitenciárias estão cheias de inocentes que foram injustiçados, se alguém der ouvidos a eles. Tudo que queremos é alojá-lo bem numa cela e depois entrar de folga. Vamos, cara! — disse, para mim.

Voltei-me para apanhar minha mala.

— Ah, você não vai precisar disso! — disse ele, empurrando-me à frente. Depois de pensar um pouco, pôs as algemas em meus punhos.

— Ora, você não deve fazer isso! — disse o comandante. — Ele não pode fugir, e como vai descer para a lancha?

— Se ele cair na água nós o tiraremos de lá — respondeu o policial, rindo com grosseria.

Descer as escadas não foi fácil, mas eu o consegui sem acidentes, o que causou evidente desapontamento nos policiais. A bordo da lancha eles não me deram atenção. Seguimos velozmente entre muitos navios e nos aproximamos logo da estação de polícia marítima.

“É agora”, pensei, e com um salto rápido caí pelo lado da lancha e me deixei mergulhar. Com grande dificuldade, enfiei a chave na fechadura e virei. As algemas saíram e afundaram.

Devagar, muito devagar, vim ter à superfície. A lancha da polícia estava bem distante, mas eles me viram e começaram a atirar. As balas batiam ao redor, enquanto eu mergulhava novamente. Nadando com força até achar que os pulmões iam estourar, voltei à superfície. A polícia estava bem distante, procurando ao redor do “lugar óbvio” onde eu deveria aparecer, chegando à terra. Eu me arrastei para a costa, no lugar menos óbvio, mas não o descreverei aqui, para não prejudicar algum outro infeliz que precise utilizá-lo também.

Por horas, fiquei em meio de detritos semi-submersos, tiritando, o corpo doendo, com a água espumante girando ao redor. Ouvi o ranger de remos na água. Um barco com três policiais surgiu à vista. Eu desci da viga onde estava e deixei-me afundar na água, de modo que apenas as narinas ficassem acima da superfície. Embora estivesse oculto pela viga, mantive-me pronto para fugir imediatamente. O barco foi de um lado para outro, e finalmente uma voz grosseira disse:

— A essa hora ele já morreu. O corpo aparecerá mais tarde. Vamos tomar um café.

O barco afastou-se, e depois de longo intervalo eu voltei à viga semi-submersa, tiritando quase incontrolavelmente. O dia terminou, e furtivamente eu segui pela viga até uma escada apodrecida. Galguei-a com cuidado e sem ver pessoa alguma corri até o abrigo de um telheiro. Despindo a roupa, torcia o mais possível. Na extremidade do cais apareceu um homem — era o foguista indiano. Quando estava perto de mim, assobiei baixo. Ele parou e encostou-se a um poste. — Você pode sair com cuidado — disse, então. — Os guardas vão aparecer do outro lado. Puxa! Você os deixou chateados! Levantou-se, espreguiçou-se e olhou ao redor.

— Venha atrás de mim — disse ele. — Mas eu não sei como vai fazer, se eles apanharem você. Há um moço de cor esperando, com um caminhão. Quando chegar lá, você sobe pela traseira e se cobre com o encerado.

Ele saiu e, dando-lhe certa distância, comecei a segui-lo, escondendo-me nas construções que havia pelo caminho. O bater da água nas estacas e a sirena distante de um carro de polícia eram os únicos sons que rompiam o silêncio. De repente, veio o ruído de um motor de caminhão, que era posto em movimento, e surgiram luzes traseiras, bem à minha frente. Um negro enorme fez sinal ao foguista indiano e piscou amistosamente para mim, enquanto fazia um gesto para a parte traseira de seu caminhão. Subi com esforço e puxei o velho encerado para me cobrir. O caminhão andou um pouco e parou. Os dois homens saltaram e um deles disse:

— Vamos carregar um pouco, agora. Vai pra frente um pouco.

Eu me arrastei em direção à cabina do motorista e ouvi o ruído de caixas que eram postas no caminhão. O veículo voltou a ser posto em movimento, sacolejando na estrada esburacada. Mais adiante parou, e uma voz gritou:

— Que é que vocês têm aí, gente?

— Só lixo, senhor — disse o negro.

Passadas pesadas vieram ter a meu lado. Alguma coisa cutucou o lixo na parte traseira.

— Ok — disse a voz. — Pode tocar.

Um portão abriu-se, com ruído metálico. O motorista negro engrenou e nós seguimos para a noite. Pareceu-me que viajamos diversas horas, e depois o caminhão fez uma volta acentuada, foi freado e parou. O encerado foi tirado, e lá estavam o foguista indiano e o negro, rindo para mim.

Eu me mexi, cansado, e apanhei meu dinheiro.

— Quero pagar vocês — disse, então.

— Vai pagar nada, não — contrapôs o negro.

— O Butch ia me matar antes de chegar a Nova York — explicou o foguista. — Você me salvou, e eu salvei você. Agora, nós vamos fazer frente à discriminação de raça contra nós. Venha, venha conosco.

Eu estava pensando que raça, crença e cor da pele não têm importância, pois todos os homens sangram em vermelho. Eles me levaram a uma sala quente, onde havia duas mulheres negras, e logo eu estava envolto em cobertores quentes, comendo alimentos também quentes. Em seguida, mostraram-me onde podia dormir, e eu mergulhei no sono.

 

Eu dormi por dois dias e duas noites seguidas, o corpo esgotado pairando entre dois mundos. A vida sempre fora dura comigo, sempre cheia de sofrimentos e incompreensões. Agora, porém, eu dormia.

Meu corpo ficou atrás de mim, deixado sobre a Terra. Enquanto eu subia, vi que uma das mulheres negras olhava para minha casca vazia, com grande compaixão em seu rosto. Depois disso, ela se voltou e foi sentar-se à janela, espiando a rua suja.

Livre das cadeias do corpo, eu podia ver com mais clareza ainda as cores do astral. Aquela gente de cor que me ajudava, enquanto as pessoas de raça branca só sabiam perseguir, era gente boa. O sofrimento e as vicissitudes haviam depurado seus egos, e sua atitude de indiferença servia apenas de coberta para seus sentimentos íntimos. O meu dinheiro, tudo que eu ganhara com dificuldade e padecimento, estava guardado sob meu travesseiro, tão seguro ali quanto no cofre do banco mais forte.

Continuei subindo, deixando os confins do tempo e do espaço em direção ao plano astral, passando por um após outro. Finalmente cheguei à Terra da Luz Dourada, onde o meu guia, o Lama Mingyar Dondup, esperava por mim.

— O seu sofrimento tem sido muito grande, Lobsang — disse ele. — Mas tudo por que você passou foi um bom objetivo. Nós estudamos o povo da Terra e as criaturas de cultos estranhos e equivocados de lá, que têm perseguido e ainda perseguirão você, porque a compreensão deles é pequena. Mas, agora, temos de falar sobre o seu futuro. O seu corpo atual está se aproximando do final de sua vida útil. Os planos que temos para superar esse ato têm de concretizar-se.

Andava a meu lado, à beira de um belo rio. A água trilhava de um modo tal que parecia dotada de vida. Em ambas as margens havia jardins tão maravilhosos que eu mal podia acreditar em meus sentidos. O próprio ar parecia vibrar com vida. À distância, um grupo de pessoas vestidas em hábitos tibetanos veio devagar ao nosso encontro. Meu guia sorriu para mim.

— Vamos ter um encontro importante — preveniu —, pois é preciso planejar seu futuro. Temos de ver como a pesquisa sobre a aura humana pode ser estimulada, porque observamos que quando a palavra “aura” é mencionada, na Terra, a maioria procura mudar de assunto.

O grupo aproximava-se mais. Reconheci aqueles em cuja presença eu ficara intimidado. Eles, agora, sorriam benevolamente para mim e me cumprimentavam como um igual.

— Vamos para algum lugar mais confortável — propôs um deles —, para podermos examinar as coisas com calma.

Seguimos pela trilha por onde eles tinham vindo até me, enveredando por uma curva, vimos diante de nós um salão de uma beleza tão inexcedível que eu, involuntariamente, parei e tive um arquejo de prazer. As paredes pareçam feitas do cristal mais puro, com delicados matizes de pastel em tal suavidade de cores que se modificava enquanto olhávamos. A trilha, sob os pés, era macia e meu guia não teve de insistir para que eu entrasse.

Entramos, e foi como se estivéssemos em um grande templo, um templo sem escuridão, limpo, e com uma atmosfera que fazia a pessoa sentir que aquilo era a vida. Seguimos pela maior parte daquele edifício, até chegarmos àquilo que, na Terra, eu teria chamado o quarto do abade. Ali havia simplicidade com conforto, com um único quadro representando a realidade maior sobre a parede.

Plantas vivas se estendiam pelas paredes, e pelas janelas amplas podíamos ver uma extensão soberba de terreno ajardinado. Sentamo-nos em almofadas postas no chão, como no Tibete. Eu me sentia como em casa, quase contente. Os pensamentos referentes a meu corpo, ainda na Terra, serviam para perturbar-me, pois, enquanto o Cordão Prateado estivesse intato, eu teria de voltar. O abade — eu o chamarei assim, embora fosse muito mais do que isso — olhou ao redor e, depois, falou:

— Daqui temos acompanhado tudo quanto aconteceu a você na Terra. Queremos, em primeiro lugar, lembrar-lhe que você não está sofrendo os efeitos do carma mas, ao invés disso, está agindo como nosso instrumento de estudo. Por todo o mal que você sofre agora, terá sua recompensa.

Sorriu para mim e aduziu:

— Embora isso não o ajude muito quando você está sofrendo na Terra! Entretanto, nós temos aprendido muito, mas há certos aspectos ainda por examinar. O seu corpo atual sofreu demais e não tardará a falhar. Nós estabelecemos um contato na Inglaterra. Esse homem quer deixar seu corpo. Nós o levamos para o plano astral e examinamos o assunto com ele. Ele tem a maior pressa em partir e fará tudo que quisermos. A nosso pedido, ele mudou de nome, passando a outro mais adequado a você. A vida dele não tem sido feliz, e ele, por seu próprio gosto, rompeu as ligações com os parentes. Nunca fez amigos, e está em grau harmônico com você. Por enquanto, não falaremos mais sobre ele, porque mais tarde, antes de você tomar o corpo dele, verá um pouco de sua vida, também. A sua tarefa atual é fazer com que seu corpo volte ao Tibete para ser conservado. Mediante seus esforços e sacrifícios, você juntou algum dinheiro, mas talvez necessite de um pouco mais para pagar a passagem. Isso advirá de seus esforços continuados, mas por ora basta. Por um dia, desfrutemos sua presença aqui, antes de você regressar a seu corpo.

Aquilo era realmente a bem-aventurança, estar com meu guia, o Lama Mingyar Dondup, não como criança, mas como adulto, sendo capaz de apreciar as capacidades e o caráter incomuns daquele grande homem. Ficamos sentados sozinhos, numa encosta de musgo, olhando uma baía de água muito azul. As árvores balouçavam fazendo uma brisa gentil e traziam-nos o odor do cedro e do pinheiro. Ficamos, assim, horas seguidas, falando, conversando sobre o passado. Minha vida era um livro aberto para ele, e agora contava-me a sua. Assim o dia transcorreu e, enquanto o crepúsculo purpúreo descia, eu sabia que era hora de partir, hora de voltar à Terra perturbada, com seu homem amargurado e línguas ferinas, línguas que causavam os males da Terra.

— Hank! Ei, Hank! Ele acordou!

Ouvi o ranger de uma cadeira que se movia e abri os olhos; vi o corpulento negro olhando para mim. Não estava sorrindo agora, e seu rosto demonstrava respeito, até mesmo temor. A mulher persignou-se e fez uma ligeira mesura, enquanto olhava em minha direção.

— O que é? O que aconteceu? — indaguei.

— Nós vimos um milagre, todos nós — e a voz do negro mostrava-se atemorizada, enquanto ele falava.

— Eu causei alguma dificuldade a vocês? — perguntei.

— Não, mestre, só trouxe alegria para nós — disse a mulher.

— Eu gostaria de dar-lhe um presente — disse eu, estendendo a mão para o dinheiro.

O negro falou com suavidade.

— Nós somos gente pobre, mas não vamos aceitar seu dinheiro. Esta casa é sua, até estar pronto para partir. Nós sabemos o que o senhor está fazendo.

— Mas eu gostaria de demonstrar-lhes minha gratidão — insisti. — Sem vocês, eu teria morrido.

— E teria ido para a glória maior! — disse a mulher, e aduziu logo: — Mestre, o senhor pode dar à gente uma coisa maior do que dinheiro. Ensine a gente a rezar!

Por momentos fiquei silencioso, apanhado de surpresa pelo pedido.

— Sim — disse, então. — Ensinarei vocês a rezar, como eu mesmo aprendi. Todas as religiões acreditam no poder da oração, mas são poucas as pessoas que compreendem o mecanismo do processo de orar, e poucas as que entendem o motivo pelo qual as orações funcionam, para algumas, e parecem não funcionar, para outras. A maioria dos ocidentais acredita que a gente do Oriente reza para uma imagem esculpida, ou não reza. Ambas as afirmações são inverídicas, e eu vou contar a vocês, e vou contar agora, como podem tirar a oração do reino do misticismo e superstição e utilizá-la para o bem dos outros, porque a oração é uma coisa muito real, na verdade.

É uma das maiores forças, nesta Terra, quando utilizada com o intuito para o qual foi destinada. A maioria das religiões acredita que cada pessoa tem um anjo da guarda, ou alguém, que toma conta de cada um. Também isso é verdade, mas o anjo da guarda é a própria pessoa, o outro eu, o outro eu que se encontra no outro lado da vida. Poucas, pouquíssimas pessoas, podem ver esse anjo, esse anjo da guarda que têm, enquanto se acham na Terra, mas as que o conseguem são capazes de descrevê-lo com detalhes.

Esse guardião (temos de dar-lhe um nome, de modo que pode ser ‘guardião’) não tem um corpo material como nós temos, na Terra. Parece um fantasma, e às vezes um clarividente o verá como uma figura azul-cintilante, maior do que a pessoa e ligado ao corpo carnal pelo que se conhece como o Cordão Prateado, aquele cordão que pulsa e vibra com vida, enquanto transmite mensagens de um plano a outro. Esse guardião não tem um corpo como o corpo da Terra, mais ainda é capaz de fazer coisas que esse corpo da Terra pode fazer, e muitas outras coisas que não estão ao alcance dele. Por exemplo, o guardião pode ir a qualquer parte do mundo em um instante. É o guardião que efetua as viagens astrais e traz de volta ao corpo comum, pelo Cordão Prateado, aquilo que se faz necessário.

Quando nós oramos, oramos para nós mesmos, para nosso outro eu, o nosso eu maior. Se soubermos orar corretamente, mandaremos essas orações pelo Cordão Prateado, porque a linha telefônica que utilizamos é um instrumento muito imperfeito, na verdade, e nós temos de repetir o que dizemos, para termos a certeza de que a mensagem chega a seu destino. Assim, quando oramos devemos fazê-lo do modo como falaríamos numa chamada interurbana, com absoluta clareza, e pensar realmente no que estamos dizendo. O defeito — devo esclarecer — está conosco, aqui, neste mundo, no corpo imperfeito que temos nele, e não em nosso guardião. Rezem em linguajem simples, fazendo com que os pedidos sejam sempre positivos e nunca negativos.

Tendo feito a oração de modo absolutamente positivo, e inteiramente isenta de qualquer possibilidade de incompreensão, repitam a mesma três vezes, mais ou menos.

Vou dar um exemplo: suponhamos que vocês tenham uma pessoa doente e sofrendo, e que desejem fazer alguma coisa por ela. Nesse caso, devem orar pelo alívio do sofrimento dessa pessoa, devem orar três vezes, dizendo exatamente a mesma coisa a cada vez. Devem visualizar aquela figura de sombra, insubstancial, indo realmente à casa dessa outra pessoa, seguindo o caminho que vocês próprios tomariam, entrando na casa e pondo as mãos naquela pessoa, e assim efetuando uma cura. Eu voltarei a falar nesse tema em questão de momentos, mas antes deixem-me dizer: repitam isso quantas vezes forem necessárias e se vocês realmente acreditarem haverá uma melhoria.

Essa questão de cura completa... Bem, se uma pessoa tem uma perna amputada, não há oração que a faça crescer novamente. Mas se uma pessoa estiver com câncer, ou qualquer outra doença grave, nesse caso a moléstia poderá ser detida. Está claro que quanto menor a intensidade do mal, tanto mais fácil será efetuar a cura. Todos conhecem os relatos de curas milagrosas em todas as épocas da história. A gruta de Lourdes e muitos outros lugares são famosos por suas curas, e essas se efetuam pelo outro eu, pelo guardião da pessoa interessada, em associação ou ligação com a fama da localidade. Lourdes, por exemplo, é conhecida em todo o mundo como lugar de curas milagrosas, de modo que as pessoas vão para lá inteiramente confiantes em que obterão a cura, e muitas vezes essa confiança é passada ao guardião, e assim a cura acontece, com grande facilidade.

Algumas pessoas gostam de crer que é uma relíquia antiga de um santo, ou mesmo um santo ou anjo o que realiza a cura, mas na realidade cada um cura a si mesmo, e, se um curador entra em contato com uma pessoa com intenção de curá-la, nesse caso a cura é efetuada apenas por meio do guardião dessa pessoa doente. A coisa toda se resume, como eu lhes disse antes, no eu verdadeiro que vocês são, quando deixam esta vida de sombras e entram na realidade maior. Enquanto estamos sobre a Terra, temos a tendência a pensar que é esta, apenas, o que conta, mas a Terra, este mundo... Não, este é o mundo da ilusão, o mundo da dureza, para o qual vimos a fim de aprender lições que não são aprendidas com facilidade no mundo mais bondoso e mais generoso ao qual regressamos.

Vocês podem ter alguma deficiência, podem estar doentes, ou pode faltar-lhes o desejado poder esotérico. Mas isso é passível de cura, pode ser sobrepujado, se vocês acreditarem e realmente o desejarem. Suponhamos que vocês tenham um grande desejo, um desejo ardente de ajudar os outros. Vocês podem querer ser curadores. Nesse caso, orem no isolamento de seu quarto, talvez em seu dormitório. Podem descansar na posição mais confortável que encontrarem, de preferência com os pés juntos e os dedos das mãos entrelaçados, não na atitude comum de oração, mas com os dedos entrelaçados. Desse modo, ampliam e conservam o circuito magnético do corpo e a aura se torna mais forte, e o Cordão Prateado consegue transmitir as mensagens com mais precisão. E, então, tendo ficado na posição correta e no estado de espírito correto, vocês devem orar.

Vocês podem rezar dizendo, por exemplo: ‘Dá-me o poder de cura, para que eu possa curar. Dá-me o poder de cura, para que eu possa curar. Dá-me o poder de cura, para que eu possa curar’.

Depois, parem por alguns momentos e continuem em sua posição confortável, e pensem em si mesmos envoltos pelo esboço difuso de seu próprio corpo. Como eu lhes disse antes, vocês devem visualizar o caminho que tomarão até à casa da pessoa doente e, então, fazer com que esse corpo astral de sua imaginação vá para o lado da pessoa que desejam curar. Imaginem-se, e ao seu eu maior, chegando à presença da pessoa que desejam ajudar. Imaginem-se estendendo o braço, a mão, e tocando aquela pessoa. Imaginem um fluxo de energia favorável à vida, que dá a vida, passando pelo seu braço, pelos seus dedos e chegando àquela pessoa como uma luz azul e viva. Imaginem que a pessoa está gradualmente ficando curada. Com fé, e um pouco de prática, isso pode ser feito, e está sendo feito, diariamente, no Oriente.

É útil colocar uma mão, na imaginação, sob a nuca da pessoa, e a outra por cima da parte de seu corpo afetada, encostando ou pairando pouco acima dessa parte doente. Será preciso rezar, para si mesmo, em grupos de três orações, uma porção de vezes todos os dias, até conseguir os resultados desejados. Também nesse caso, se vocês acreditarem, obterão resultados. Mas permitam que eu faça uma advertência séria, muito séria. Vocês não podem aumentar sua própria fortuna, desse modo. Há uma lei oculta, muito antiga, que proíbe aproveitar-se de orações para ganhos pessoais. Vocês não podem fazer isso para si mesmos, a menos que seja para ajudar os outros e a menos que acreditem sinceramente que será para ajudar os outros. Eu sei de um caso real, de um homem que tinha uma renda modesta e estava razoavelmente bem de vida, e que achava que, se ganhasse o Sweepstake da Irlanda, poderia ajudar os outros e tornar-se um grande benfeitor da humanidade.

Conhecendo alguma coisa, mas não o suficiente, das questões esotéricas, fez grandes planos para o que realizaria. Iniciou com um programa cuidadosamente preparado de orações. Ele rezou conforme o que eu lhes expliquei, por dois meses. Rezou que escolheria o vencedor do Sweepstake da Irlanda, e por dois meses o fez, em grupos de três orações três vezes por dia, nove orações durante o dia. Conforme esperava, ganhou o Sweepstake da Irlanda e um dos maiores prêmios. Passou algum tempo, estava ainda com o dinheiro, mas este subiu-lhe à cabeça. Esqueceu-se de todas as suas boas intenções e promessas. Esqueceu-se de tudo, a não ser de que possuía aquela vasta soma de dinheiro, e podia agora fazer exatamente o que quisesse. Usou o dinheiro apenas em seu próprio benefício. Por alguns meses, teve uma vida maravilhosa, durante a qual gastou muito dinheiro, e, depois, a lei inexorável entrou em cena, e ao invés de manter aquele dinheiro e ajudar os outros ele perdeu tudo que ganhara, bem como tudo que tivera antes. Ao final, morreu e foi sepultado como indigente.

Eu digo a vocês que, se usarem corretamente o poder da oração, sem pensar em ganhos egoístas, sem pensar em se engrandecer, nesse caso vocês terão encontrado uma das maiores forças sobre a Terra, força tão grande que, se apenas algumas pessoas genuínas e sinceras se reunirem e orarem pela paz, nesse caso haverá paz, e as guerras e os pensamentos de guerras não existirão mais.

Por algum tempo reinou silêncio, enquanto eles assimilavam o que lhe dissera, e depois a mulher disse:

— Oxalá o senhor ficasse aqui algum tempo e ensinasse a gente. Nós vimos um milagre, mas alguém veio e nos disse para não falar sobre ele.

Descansei por algumas horas e depois vesti-me e escrevi uma carta a meus amigos funcionários em Xangai, dizendo-lhes o que acontecera com meus documentos. Pelo correio aéreo eles me mandaram outro passaporte, o que certamente facilitou minha situação. Por via aérea chegou uma carta que fora enviada para lá por uma mulher muito rica.

Há algum tempo, dizia ela na carta, venho procurando seu endereço. Minha filha, que o senhor salvou dos japoneses, está agora comigo, viva e com saúde, inteiramente recuperada. O senhor a salvou do estupro e de coisa pior, e eu quero pagar, ao menos em parte, nossa dívida. Diga-me o que posso fazer.

Escrevi a ela, dizendo que queria voltar ao Tibete a fim de poder morrer lá. Eu tenho dinheiro bastante para a passagem até um porto da Índia, respondi em minha carta, mas não o suficiente para atravessar esse continente. Se a senhora realmente deseja ajudar-me, compre uma passagem de Bombaim a Kalimpong, na Índia.

Levei isto na brincadeira, porém duas semanas depois recebi uma carta e uma passagem de navio de primeira classe e uma de trem de primeira classe, por todo o percurso até Kalimpong. Escrevi imediatamente para ela, exprimindo minha gratidão e dizendo que pretendia dar o restante do dinheiro à família negra que se tornara tão minha amiga. Essa família estava triste porque eu ia partir, mas também alegre porque uma vez, ao menos, em minha vida, ia fazer uma viagem confortável. Foi difícil levá-los a aceitar o dinheiro, e finalmente tivemos de dividi-lo entre nós!

— Há uma coisa — disse a negra. — O senhor sabia que o dinheiro vinha, porque era para um bom propósito. O senhor mandou o que chama de “forma de pensamento” para conseguir isso?

— Não — respondi. — Essa coisa deve ter sido realizada por uma fonte muito distante deste mundo.

Ela pareceu intrigada.

— O senhor disse que ia falar sobre formas de pensamento, antes de sair. Será que dá tempo agora?

— Sim — respondi. — Sentem-se, que vou contar uma história.

Ela sentou-se e entrelaçou os dedos. O marido apagou a luz e sentou-se de volta na cadeira, enquanto eu começava a falar:

— Nas areias escaldantes, em meio aos edifícios de pedras cinzentas, com o sol ofuscando, um pequeno grupo de homens seguia seu caminho pelas ruas estreitas. Depois de alguns minutos eles pararam diante de uma porta em mau estado, bateram e entraram. Algumas poucas frases abafadas foram trocadas, após o que os homens receberam archotes que foram acesos e dos quais caíam gotas de resina. Devagar eles seguiram por corredores, descendo cada vez mais, em meio às areias do Egito. A atmosfera enjoativa, doentia, penetrava pelas narinas, nauseante no modo como se prendia à mucosa nasal.

Quase não havia luz alguma ali, a não ser aquela vinda dos portadores de archotes, que seguiam à frente da pequena procissão. Enquanto se internavam mais pelo túnel subterrâneo, o odor tornou-se mais forte, o odor de olíbano, de mirra, e das estranhas plantas exóticas vindas do Oriente. Havia, também, o cheiro de morte e de podridão, de vegetação que se deteriorava.

Sobre a parede distante, havia uma coleção de canopos, contendo as vísceras e o coração dos cadáveres que estavam sendo embalsamados. Esses vasos tinham rótulos, que descreviam minuciosamente o conteúdo exato e a data em que haviam sido fechados. O cortejo passou por eles, quase sem qualquer estremecimento, e prosseguiu, passando pelos tanques de nitro em que os corpos eram imersos por noventa dias. Ainda agora, naqueles tanques, e de vez em quando, um servente vinha e empurrava um corpo para baixo, com uma vara comprida, e o fazia virar-se.

Quase sem olhar os corpos flutuantes, a procissão prosseguiu para a câmara mais interior, e lá, apoiado em pranchas de madeira odorífera, estava o corpo do faraó morto, envolto em tiras de linho bem impregnadas de ervas olorosas e unguentos.

Os homens entraram e quatro carregadores tomaram o corpo e o colocaram num sarcófago de madeira leve, que estivera apoiado em uma parede, e depois, erguendo-o à altura do ombro, eles se voltaram e acompanharam os portadores de archotes, saindo da câmara subterrânea e passando novamente pelos tanques de nitro e pelas câmaras de embalsamadores do Egito. Próximo à superfície, o corpo foi levado a um outro aposento onde uma fraca luz do dia entrava por orifícios pequenos. Ali, foi tirado do sarcófago bruto de madeira e colocado em outro, que tinha a forma exata do corpo. Suas mãos foram postas sobre o peito e amarradas com um cordão e fortes ataduras, sendo um papiro atado a elas, contando a história do homem que morrera.

Alguns dias depois, diversos sacerdotes de Osíris, Isis e Hórus chegaram. Cantaram suas orações preliminares, conduzindo a alma do morto pelo mundo inferior. Também ali os mágicos, feiticeiros do velho Egito, prepararam suas formas de pensamento, formas de pensamento essas que guardariam o corpo do homem morto e impediriam que vândalos abrissem o túmulo e perturbassem sua paz. Por toda a terra do Egito foram feitas proclamações, anunciando as penalidades que seriam impostas a quem violasse o túmulo. As punições eram as seguintes: em primeiro lugar, a língua do violador seria arrancada e depois suas mãos cortadas à altura dos punhos. Alguns dias depois, ele seria estripado e enterrado até o pescoço nas areias quentes e ali passaria as últimas horas de sua vida.

O túmulo de Tutancâmon ficou conhecido na história devido à maldição que caía sobre os que o violavam. Todas as pessoas que entraram no túmulo de Tutancâmon morreram ou vieram a sofrer de doenças misteriosas e incuráveis. Os sacerdotes do Egito conheciam uma ciência, hoje perdida, a ciência de criar formas de pensamento para efetuarem tarefas que se acham além da capacidade do corpo humano. Mas essa ciência não precisava ser perdida, porque qualquer pessoa com um pouco de prática e perseverança pode criar uma forma de pensamento que agirá para o bem ou para o mal.

Qual o poeta que disse: ‘Eu sou o capitão de minha alma’? Esse homem proferiu uma grande verdade, talvez maior do que ele próprio o percebesse, porque realmente o homem é o capitão de sua alma. Os ocidentais têm observado as coisas materiais, as coisas mecânicas, tudo que tem a ver com a vida mundana. Eles têm procurado explorar o espaço exterior, mas não conseguiram explorar o mais profundo mistério de todos — o subconsciente do homem —, pois este, o homem, é nove décimos subconsciente e isso quer dizer que apenas um décimo dele é consciente. Apenas um décimo do potencial humano se encontra submetido às suas ordens volitivas. Se um homem conseguir ser um e meio décimo consciente, nesse caso torna-se um gênio, mas os gênios que existem sobre a Terra o são em uma direção, apenas. Muitas vezes, mostram-se deficientes em outras coisas.

Os egípcios, nos dias dos faraós, conheciam bem o poder do subconsciente. Eles sempre sepultavam os faraós em túmulos profundos, e com suas artes e conhecimento da humanidade criavam sortilégios, criavam as formas de pensamento que guardavam esses túmulos e impediam que os intrusos entrassem, sob pena de ficarem gravemente doentes. Mas nós podemos criar formas de pensamento que façam o bem. É preciso, no entanto, ter certeza de que sejam para o bem, porque uma forma de pensamento não sabe distinguir o bem do mal. Elas farão qualquer das duas coisas, mas a forma de pensamento má virá, ao fim, vingar-se de seu criador.

A história de Aladim é, na verdade, a história de uma forma de pensamento que foi conjurada, mas isso veio de uma antiga lenda chinesa, uma em meio a outras lendas que são literalmente verdadeiras. A imaginação é a maior força sobre a Terra. Infelizmente, ela tomou um nome impróprio. Se utilizamos a palavra ‘imaginação’ os outros automaticamente pensam em uma pessoa frustrada e com tendências neuróticas, mas nada podia estar mais longe da verdade. Todos os grandes artistas, pintores e escritores têm de ter uma imaginação brilhante e controlada, pois de outra forma não seria possível visualizarem a obra terminada, que estão procurando criar.

Se, na vida cotidiana, soubéssemos aproveitar a imaginação, nesse caso poderíamos alcançar o que agora achamos serem milagres. Podemos, por exemplo, ter algum ser querido que esteja sofrendo com uma doença, para a qual a ciência médica ainda não tenha encontrado cura. Essa pessoa poderá ser curada se criarmos uma forma de pensamento que entre em contato com o eu maior da pessoa doente, e o ajude a materializar-se para criar partes novas do corpo. Desse modo, uma pessoa que sofra de diabetes poderia, com a ajuda adequada, recriar as partes danificadas do pâncreas que causam a doença.

Como podemos criar uma forma de pensamento? Bem, é fácil. Vamos tratar disso agora. Em primeiro lugar, é preciso decidir o que se quer realizar, e ter a certeza de que será para o bem. Em seguida, devemos chamar à cena a imaginação, e visualizar com exatidão o resultado que visamos.

Suponhamos que uma pessoa esteja doente, com um órgão invadido pela doença. Se vamos criar uma forma de pensamento que traga auxílio ao caso, temos de visualizar exatamente a pessoa de pé à nossa frente. Devemos procurar visualizar o órgão afetado. Tendo esse órgão figuradamente diante de nós, devemos visualizá-lo como em cura gradual, e devemos fazer uma afirmação positiva nesse sentido. Assim, criamos essa forma de pensamento visualizando a pessoa, e imaginamos que ela esteja em pé ao lado da pessoa atingida, e com poderes supranormais estendendo-se ao interior do corpo dessa pessoa doente, com um contato curativo que faz a doença desaparecer.

Em todas as ocasiões devemos falar à forma de pensamento que tenhamos criado com voz firme e positiva. Não deve, em momento algum, haver qualquer dúvida ou suspeita de negativismo, e tampouco qualquer indecisão. Devemos falar na linguagem mais simples possível, e do modo mais direto possível. Devemos falar-lhe como o faríamos com uma criança bastante atrasada, pois essa forma de pensamento não dispõe de raciocínio, e pode aceitar somente uma ordem direta, ou uma afirmação simples.

Pode haver uma lesão em algum órgão, e devemos dizer a essa forma de pensamento: ‘Você vai agora curar tal ou qual órgão. O tecido está ficando bom’. Será preciso repetir isso diversas vezes por dia, e, se visualizarmos nossa forma de pensamento realmente em trabalho, nesse caso ela irá mesmo ao trabalho. Isso deu certo com os egípcios, e pode dar certo com as pessoas de nossos dias.

Existem muitos exemplos verificados de túmulos que foram assombrados por uma figura indefinida. Isso é porque os mortos, ou outros, pensaram com tanta intensidade que realmente criaram uma figura de ectoplasma. Os egípcios, nos dias dos faraós, sepultavam o corpo embalsamado de seu soberano, mas adotavam medidas extremas para que suas formas de pensamento estivessem vivas após milhares de anos.

Matavam escravos lentamente, dolorosamente, dizendo-lhes que teriam alívio para sua dor, no mundo do além, se ao morrerem proporcionassem a substância necessária com que pudesse ser criada uma forma de pensamento substancial. Os registros arqueológicos apresentam documentários circunstanciados comprovando as assombrações e maldições nos túmulos, e todas essas coisas são apenas o resultado de leis absolutamente naturais, absolutamente normais.

As formas de pensamento podem ser criadas por qualquer pessoa, bastando um pouco de prática, mas é preciso antes, em todas as ocasiões, concentrar-se no bem para que as criemos, pois quem desejar criar formas de pensamento más pode ter a certeza de que elas se voltarão contra quem as criou, e lhe causarão o maior mal, quer no plano físico, mental ou astral.

Os dias seguintes foram de grande movimentação, com vistos de trânsito para obter, preparativos finais a fazer e coisas a acondicionar e despachar de volta aos meus amigos em Xangai. Meu cristal foi cuidadosamente acondicionado e mandado de volta para lá, a fim de que o pudesse usar no futuro, bem como meus documentos chineses, documentos esses que, diga-se de passagem, bom número de pessoas de responsabilidade já pôde ver.

Meus objetos pessoais, eu os reduzi ao mínimo absoluto, e consistiam em um terno e a necessária muda de roupa de baixo. Não tendo mais qualquer confiança em funcionários, eu mandara tirar cópias fotográficas de tudo, passaporte, bilhetes de passagem, atestados médicos e tudo o mais.

— Vocês irão à minha despedida? — perguntei a meus amigos negros.

— Não — responderam. — Eles não deixam a gente chegar perto, por causa da cor.

Chegou o dia afinal, e eu segui de ônibus para o cais. Levando minha mala pequena, e apresentando a passagem, fui intimado a declarar onde se encontrava o restante da bagagem.

— Isto é tudo o que trago — respondi. — Não vou levar mais coisa alguma comigo.

O funcionário se tornou patentemente perplexo... e desconfiado.

— Espere aqui — resmungou, e saiu apressadamente para um gabinete interno.

Alguns minutos depois, voltava em companhia de um funcionário de graduação maior.

— É esta toda a sua bagagem, senhor? — perguntou o outro.

— É, sim — respondi.

Ele fechou a cara, examinou minhas passagens, verificou os detalhes em confronto com os lançamentos feitos em um livro, e depois saiu com passos enérgicos, levando minhas passagens e o tal livro. Dez minutos depois, regressava, com expressão muito preocupada. Entregando-me as passagens e outros documentos, disse:

— Isso é muito irregular, viajar até a Índia sem bagagem!

Sacudindo a cabeça, afastou-se. O primeiro funcionário, ao que parecia, resolvera lavar as mãos do caso, pois voltou-se para outro lado e não quis responder quando perguntei onde estava o navio. Finalmente, consultei os documentos novos que recebera e verifiquei que um deles era um cartão de embarque, com todos os pormenores necessários.

Foi uma longa caminhada até o navio, e quando cheguei vi policiais que pareciam à toa, mas que examinavam cuidadosamente os passageiros. Adiantei-me, mostrei a passagem e subi a prancha. Uma hora depois, mais ou menos, dois homens vieram à minha cabina e perguntaram por que eu não tinha bagagem.

— Mas, meus amigos — respondi —, eu pensei que esta fosse a terra dos homens livres! Por que motivo eu haveria de estar cheio de bagagem? O que eu levo é coisa que somente diz respeito a mim, não acham? Um deles começou a resmungar enquanto remexia nos documentos, e disse:

— Bem, temos de verificar para ver se está tudo certo. O funcionário achou que o senhor está procurando fugir à justiça, porque não tem bagagem. Ele estava apenas querendo esclarecer o caso.

Eu apontei para a mala.

— Tudo de que necessito está ali — expliquei. — Aquilo me basta para chegar à Índia, e lá poderei apanhar outras coisas.

Ele pareceu aliviado.

— Ah! Então o senhor tem mais bagagem, na Índia? Nesse caso, está tudo certo.

Tive de rir para mim mesmo, pensando: “A única vez em que encontro dificuldades para entrar ou sair de um país é quando o faço legalmente, quando satisfaço a todas as exigências burocráticas”.

A viagem foi desprovida de atrativos, os demais passageiros mostravam-se muito cônscios de sua classe, e a história de que eu trouxera “apenas uma mala” aparentemente me situava fora do alcance da sociedade humana. Por não me conformar com essa regra de esnobes, fiquei tão sozinho como teria acontecido se estivesse em uma cela de prisão, mas com a grande diferença de que podia movimentar-me.

Era divertido ver os demais passageiros clamar por um camareiro e pedir que arredasse um pouco suas espreguiçadeiras no convés, afastando-se um pouco de mim, quando eu lá estava.

Passamos do porto de Nova York ao estreito de Gibraltar, seguimos pelo Mediterrâneo, parando em Alexandria, e rumando em seguida a Port Said, percorrendo o canal de Suez e entrando no mar Vermelho. O calor me causava grande mal, e o mar Vermelho parecia estar fervendo, mas finalmente aquilo teve fim e atravessamos o mar da Arábia, e aportamos em Bombaim. Eu tinha alguns amigos naquela cidade, sacerdotes budistas e outros, e passei uma semana em sua companhia antes de retomar a viagem pela Índia, até Kalimpong.

Kalimpong encontrava-se repleta de jornalistas e espiões comunistas. Os recém-chegados verificavam que sua vida se tornava um inferno devido às perguntas sem fim e sem sentido, perguntas essas a que não respondi, prosseguindo no que estava fazendo. Essa inclinação dos ocidentais por intrometer-se na vida dos outros constitui um mistério completo para mim e realmente nunca a pude entender.

Fiquei satisfeito em deixar Kalimpong e entrar em meu próprio país, o Tibete. Eu era esperado e fui recebido por uma comitiva de altos lamas, disfarçados em monges mendicantes e comerciantes.

Minha saúde piorava rapidamente, tornando necessárias paradas frequentes para descansar. Finalmente, umas dez semanas depois, chegamos a um mosteiro lamaico bem alto, na cordilheira do Himalaia, de onde se divisava o vale de Lhasa, mosteiro esse tão pequeno e inacessível que os comunistas chineses não lhe davam importância.

Por alguns dias descansei, procurando recuperar alguma energia. Descansei e meditei. Estava em minha pátria, agora, e feliz pela primeira vez em muitos anos. Os enganos e tradições dos povos ocidentais pareciam não ser mais do que um pesadelo já passado. Diariamente, pequenos grupos de homens vinham ter comigo, para contar-me o que havia ocorrido no Tibete e ouvir o que eu narrava a respeito do mundo estranho e áspero além de nossas fronteiras. Eu frequentava todos os serviços, encontrando reconforto e consolo nos rituais que conhecia.

Ainda assim, era um homem à parte, um homem perto de morrer e viver outra vez. Era um homem a ponto de passar por uma das mais estranhas experiências que já haviam tocado a um ser. No entanto, era mesmo tão estranho assim? Muitos de nossos adeptos mais elevados tinham-no feito em vidas sucessivas. O próprio Dalai-Lama o fazia, tomando repetidamente o corpo de um recém-nascido.

Mas a diferença estava em que eu ia tomar o corpo de um adulto, e modelá-lo ao meu, trocando molécula por molécula o corpo inteiro, não apenas o ego. Embora não fosse cristão, meus estudos em Lhasa haviam-me levado a ler a Bíblia cristã e ouvir preleções feitas sobre ela. Eu sabia que na Bíblia estava a afirmação de que o corpo de Jesus, o filho de Maria e José, fora tomado pelo “Espírito do Filho de Deus” e se tornara Cristo. Sabia, também, que os sacerdotes cristãos haviam efetuado uma convenção, no ano 60 d.C, a fim de banir certos ensinamentos de Cristo. A partir de então a reencarnação fora banida, a tomada do corpo de outros fora banida, juntamente com muitas, muitas outras coisas ensinadas por Cristo.

Olhei por minha janela sem vidraças para a cidade de Lhasa, que ficava lá embaixo. Era difícil aceitar que os odiados comunistas estivessem no poder. Até então, eles procuravam conquistar os jovens tibetanos mediante promessas mirabolantes. Nós chamávamos a isso “mel na faca”, pois quanto mais se lambesse o “mel” tanto mais cedo a lâmina aguda ficava à mostra. Os soldados chineses estavam em guarda no Pargo Kaling, montavam guarda em todos os templos, como piquetes em uma greve ocidental, e zombavam de nossa religião antiga. Os monges eram insultados, e até espancados, e os camponeses e pastores analfabetos incentivados a fazer o mesmo.

Ali, estávamos a salvo dos comunistas, naquele precipício quase inescalável. Em redor, toda a região estava perfurada por cavernas, e havia apenas uma trilha perigosa, que serpenteava pela beira dos penhascos, com uma queda livre de mais de mil metros para quem escorregasse. Ali, quando nos aventurávamos ao ar livre, usávamos hábitos cinzentos que se confundiam com a cor da rocha. Eram hábitos cinzentos que nos escondiam de um exame casual feito pelos chineses que usassem binóculos. Ao longe, eu podia ver especialistas chineses com teodolitos e réguas de agrimensura. Andavam como formigas, pondo marcos no chão e fazendo assentamentos em seus livros.

Um monge passou diante de um soldado e o chinês espetou-lhe a perna com a baioneta. Pelo binóculo com poder de aumento de vinte vezes — meu único luxo — que eu trouxera, pude ver o sangue jorrar e o riso sádico na face do chinês. Aqueles binóculos eram bons e mostravam a orgulhosa Potala e o meu próprio Chakpori.

Alguma coisa, em minha mente, dava a impressão de que algo faltava. Focalizei novamente o binóculo e olhei mais uma vez. Sobre as águas do lago do templo da serpente não havia coisa alguma. Nas ruas de Lhasa não havia cachorros cheirando os montes de lixo. Não havia aves selvagens, nem cachorros!

Voltei-me para o monge ao meu lado.

— Os comunistas mataram todos, para comer — disse ele. — Os cães não trabalham, e por isso não devem comer, dizem eles. Mas prestarão serviço, sendo transformados em alimento. Hoje é crime ter um cachorro, gato ou qualquer outro animal doméstico.

Olhei, horrorizado, para o monge. Um crime, ter animal doméstico! Instintivamente, olhei de volta ao Chakpori.

— Que aconteceu com nossos gatos de lá? — perguntei.

— Mortos e comidos.

Suspirei e pensei: “Ah! Se eu pudesse contar às pessoas a verdade sobre o comunismo, como eles realmente tratam as pessoas, se ao menos os ocidentais não fossem tão melindrosos!” Pensei na comunidade de monjas de quem eu ouvira falar recentemente por um alto lama, que ao viajar passara por uma sobrevivente solitária e a ouvira narrar sua história, antes de morrer em seus braços. A sua comunidade de monjas fora invadida por um bando de selvagens soldados chineses.

Eles haviam profanado os objetos sagrados e roubado tudo que fosse de valor. A superiora tinha sido despida e fora besuntada de manteiga. Em seguida, haviam-na incendiado e rido, enquanto ela gritava. Finalmente, o pobre corpo enegrecido tombara ao chão e um soldado passara a baioneta em toda sua extensão, para ter a certeza de que ela estava morta.

Velhas monjas foram despidas e ferros em brasa tinham sido enfiados nelas, de modo que morreram em agonia de dor. As monjas mais jovens foram estupradas umas diante das outras, cada qual vinte ou trinta vezes por dia pelos soldados que ali permaneceram. Depois eles se cansaram desse “esporte”, ou ficaram esgotados, pois atacaram as mulheres num último impulso de selvageria. Algumas tiveram membros cortados, outras foram estripadas. Outras, ainda, foram expulsas ainda nuas para o frio intenso.

Um pequeno grupo de monges que viajava para Lhasa as encontrara e procurara ajudá-las, dando-lhes os próprios hábitos e tentando manter acesa a luz frágil de suas vidas. Os soldados chineses comunistas, também a caminho de Lhasa, haviam-nos encontrado e tratado os monges com tão selvagem brutalidade que a narrativa de seus feitos não pode ser feita aqui. Os monges, mutilados de forma irreparável, haviam sido soltos nus na neve e morreram por perda de sangue.

Apenas uma mulher sobrevivera, por ter ficado oculta em uma vala, coberta por bandeiras de oração que os chineses haviam arrancado de seus postes. Finalmente, o lama e seu acólito haviam chegado àquele cenário terrível e ouvido a história completa, narrada pela monja agonizante.

“Ah, se pudesse contar ao mundo ocidental os horrores do comunismo!”, pensei, mas como veria mais tarde, à minha custa, não se pode escrever ou falar a verdade no Ocidente. Todos os horrores têm de ser apagados, tudo tem de apresentar uma capa de “decência”. Os comunistas são “decentes” quando estupram, mutilam ou matam? Se o povo do Ocidente pudesse ouvir as narrativas verdadeiras, feitas por aqueles que sofreram, certamente poderiam escapar a tais horrores, pois o comunismo é insidioso, como o câncer. Embora as pessoas possam achar que esse culto horrível seja apenas uma política diferente, na verdade existe o perigo para todos os povos do mundo. Como um que já sofreu, eu diria: “Mostrem às pessoas, em palavras e fotografias, por mais horríveis que sejam, o que se passa por trás dessas Cortinas de Ferro”.

Enquanto eu pensava sobre essas coisas, examinava de vez em quando a paisagem diante de mim. Um homem idoso, curvado e andando com o auxílio de um bastão, entrou em meu quarto. Seu rosto demonstrava grande sofrimento, e os ossos apareciam na pele apergaminhada e enrugada. Vi que era cego, e ergui-me para tomá-lo pelo braço. Suas órbitas oculares pareciam buracos vermelhos e raivosos e seus movimentos eram incertos, como os daqueles que perderam a vista recentemente. Sentei-o a meu lado, segurei gentilmente sua mão, pensando que ali, naquele país invadido, nada tínhamos com que aliviar seu sofrimento e a dor daqueles ferimentos inflamados.

Ele sorriu, paciente, e disse:

— Você está pensando em meus olhos, irmão. Eu me achava apenas fazendo minhas prostrações no santuário. Quando me pus de pé, olhei para a Potala e por casualidade um dos oficiais chineses estava na minha linha de visão. Ele disse que eu o olhava com arrogância e de modo ofensivo. Fui amarrado por uma corda e arrastado por um automóvel até à praça. Eles reuniram espectadores e diante deles os meus olhos foram arrancados e jogados sobre mim. Meu corpo, como você vê, tem muitos ferimentos semi-curados. Fui trazido aqui por outros e agora estou satisfeito por ter encontrado você.

Tive um arrepio de horror quando ele abriu seu hábito. O seu corpo era uma massa vermelha e crua, por ter sido arrastado na estrada. Eu conhecia aquele homem, e sob sua direção, como acólito, estudara as coisas da mente. Eu o conhecera quando me tornara um lama, pois ele fora um de meus patrocinadores. Fora um dos lamas com quem eu viajara, muito abaixo da Potala, para viver a cerimônia da pequena morte. E agora ele estava sentado a meu lado, e eu sabia que a morte dele não se achava distante.

— Você viajou muito, viu e suportou muita coisa — disse ele. — Agora, minha última tarefa nesta encarnação é ajudar você a ter algumas percepções, por intermédio do Registro Akáshico, da vida de um certo inglês que está ansioso por deixar o corpo, de modo que você possa ficar com o mesmo. Você terá visões curtas, apenas, pois isso requer muita energia e nós dois estamos com pouca.

Fez uma pausa e depois, com leve sorriso nos lábios, prosseguiu:

— O esforço dará fim a esta vida que tenho agora, e eu estou feliz por ter esta oportunidade que me deram, de adquirir mérito mediante esta última tarefa a cumprir. Obrigado, meu irmão, por possibilitá-lo. Quando você voltar aqui, da jornada astral, eu estarei morto a seu lado.

O Registro Akáshico! Que fonte maravilhosa de conhecimento era ele! Que tragédia o fato de as pessoas não investigarem suas possibilidades, ao invés de estarem mexendo com bombas atômicas! Tudo que fazemos, tudo que acontece, fica impresso de modo indelével no Akasha, aquele meio sutil que interpenetra toda a matéria, todos os movimentos que ocorrem na Terra, desde seu aparecimento, e que estão à disposição daqueles que tenham o preparo necessário. Para aqueles que tenham os olhos abertos, a história do mundo está diante deles. Uma antiga predição diz que, após este século, os cientistas poderão investigar o Registro Akáshico para examinar a história, seria interessante saber o que Cleópatra realmente disse a Marco Antônio e quais foram as famosas observações feitas pelo Sr. Gladstone. Para mim, seria um motivo de deleite ver as expressões de meus críticos, quando percebessem que asnos foram, quando tiverem de admitir que escrevi a verdade. Mas, é triste dizer, nenhum de nós estará aqui, então.

Mas, e esse Registro Akáshico? É possível descrevê-lo com mais clareza? Tudo que acontece “grava-se” naquele meio que interpenetra até mesmo o ar. Uma vez emitido um som, ou iniciada uma ação, isso fica ali eternamente, com instrumentos adequados qualquer um poderia vê-lo, procuremos entender em termos de luz, ou da vibração a que chamamos luz e visão. A luz viaja a certa velocidade. Como todos os cientistas sabem, à noite podemos ver estrelas que talvez não existam mais.

Algumas delas acham-se tão distantes que a luz por nós percebida pode ter iniciado sua jornada antes que a Terra começasse a existir, não temos meio de saber se a estrela morreu há um milhão de anos atrás, porque sua luz continuaria a chegar-nos por, talvez, outro milhão de anos.

Poderia ser mais fácil se usássemos o exemplo do som. Nós vemos o clarão do relâmpago e ouvimos o som do trovão alguns momentos depois. É a vagareza do som que explica a demora em ouvi-lo, depois de termos visto a luz do relâmpago. É a vagareza da luz que pode possibilitar um instrumento para “ver” o passado.

Se pudéssemos transportar-nos instantaneamente a um planeta tão distante que a luz necessitasse de um ano para chegar lá, partindo do planeta que acabássemos de deixar, feríamos, então, uma luz que partira um ano antes de nós. Se tivéssemos algum telescópio super-poderoso e supersensível, ainda que imaginário, e com o qual pudéssemos focalizar qualquer ponto na face da Terra, veríamos acontecimentos que teriam ocorrido um ano atrás. Em vista da capacidade de transportar-nos, com nosso super-telescópio, a um planeta tão distante que a luz vinda da Terra levasse um milhão de anos para alcançá-lo, poderíamos então ver a Terra como ela foi há um milhão de anos atrás. Seguindo mais e mais adiante, com rapidez instantânea, chegaríamos a um ponto do qual poderíamos ver o nascimento da Terra, ou mesmo o nascimento do Sol.

O Registro Akáshico permite que façamos exatamente isso. Com algum preparo podemos viajar para o mundo astral, onde o tempo e o espaço não existem, e onde outras “dimensões” prevalecem.

Nesse caso, vemos tudo. Outro tempo, outro espaço? Bem, como exemplo simples suponhamos ter um quilômetro de fio de algodão, digamos, e que tivéssemos de percorrê-lo de uma extremidade a outra. Do modo como as coisas são, na Terra, não podemos mover-nos em meio a esse algodão, e tampouco ao redor de sua circunferência. É preciso viajar pela superfície, até a extremidade a um quilômetro de distância, e voltar pelo outro lado, por mais um quilômetro. A jornada é longa.

No astral, nós nos moveríamos pelo meio. Um exemplo muito simples, mas viajar pelo Registro Akáshico é igualmente simples, para quem sabe! O Registro Akáshico não pode ser usado para propósitos errados, não pode ser usado para adquirir informações que prejudicariam outra pessoa. Tampouco, sem licença especial, seria possível ver e depois comentar os assuntos particulares de uma pessoa.

Pode-se, naturalmente, ver e comentar as coisas que sejam a matéria pertencente à história. Eu, agora, ia ter relances da vida particular de uma pessoa e teria finalmente de resolver: ficaria com aquele outro corpo para substituir o meu? Este decaía com rapidez, e para executar a tarefa de que fora incumbido precisava de um corpo para “aguentar-me”, até que pudesse mudar suas moléculas pelas minhas. Acomodei-me e esperei que o lama cego falasse.

 

Vagarosamente o sol baixou sobre a cordilheira distante, delineando os altos picos com seu brilho crepuscular. A espuma leve descia daqueles cumes altíssimos, apanhava a luz enfraquecida e emitia uma miríade de tonalidades que se transformavam e flutuavam com os caprichos da leve brisa do anoitecer. Sombras purpúreas e profundas estendiam-se dos pontos onde estavam, como criaturas da noite entrando em cena. Gradualmente a treva aveludada galgou a base da Potala, subiu mais, até que apenas os telhados dourados refletissem o brilho, antes de serem também submersos na treva que se apoderava de tudo. Uma por uma, pequenas chamas apareceram, como joias, vivas, colocadas na treva para maior contraste.

A muralha montanhosa do vale apresentava-se austera, difícil, e a luz por trás dela diminuía em intensidade. Ali, em nosso abrigo rochoso, tivemos um último relance do sol poente, enquanto iluminava as passagens rochosas, e, depois disso, nós também mergulhamos na escuridão. Não havia luz para nós, pois não a devíamos acender, com receio de assim indicar a posição de nosso abrigo. Para nós, nada havia senão a escuridão de nossos pensamentos, enquanto olhávamos nosso país, que fora traiçoeiramente invadido.

— Irmão — disse o lama cego, de cuja presença eu quase me esquecera, imerso em pensamentos sombrios. — Irmão, vamos partir?

Juntos, sentamo-nos na posição de lótus e pensamos sobre aquilo que íamos fazer. O vento suave da noite gemia baixinho, em êxtase, enquanto brincava nos penhascos e pináculos de rocha e sussurrava em nossa janela. Com o solavanco tão desagradável que tantas vezes acontece em uma libertação, o lama cego — agora não mais cego — e eu deixamos nossos corpos terrenos para a liberdade de outro plano.

— É bom ver outra vez — disse ele. — Só damos valor à visão quando a perdemos.

Flutuamos juntos, seguindo a trilha conhecida até o lugar que chamávamos o Salão de Memórias. Entramos em silêncio e vimos que outros se achavam empenhados em pesquisas no Registro Akáshico, mas o que viam era invisível para nós, assim como as cenas por nós vistas o seriam para eles.

— Por onde vamos começar, irmão? — perguntou o velho lama.

— Nós não queremos intrometer-nos — respondi —, mas devíamos ver com que tipo de homem estamos lidando.

Por algum tempo houve silêncio entre nós, enquanto cenas vivas e claras se formavam para que víssemos.

— Epa! — exclamei, dando um salto de susto. — ele é casado! O que vou fazer? Eu sou um monge celibatário! Ah... Vou dar o fora... vou sair disto, agora mesmo.

Voltei-me, com grande alarma, e fui detido pela visão do ancião, que se sacudiu de tanto rir. Por algum tempo suas risadas foram de tal intensidade que ele não conseguia falar.

— Irmão Lobsang — conseguiu dizer finalmente. — Você veio alegrar muito meus últimos momentos. Eu pensei, de início, que toda a hierarquia dos demônios havia mordido você, quando deu um pulo, pois foi tão alto! Agora, irmão, acalme-se. Não há problema algum, mas deixe-me dizer uma coisa. Você falou sobre o Ocidente e as crenças estranhas que eles têm. Pois permita que eu cite isto, tirado da própria Bíblia deles: “O ato do matrimônio é honroso para todos” (Hebreus, capítulo 13, versículo 4).

Mais uma vez foi tomado por uma série de risadas. Eu o olhava com ar sombrio, e quanto mais sombrio meu aspecto mais ele ria. Finalmente parou, esgotado.

— Irmão — conseguiu dizer, com esforço. — Aqueles que nos guiam e ajudam já tinham visto esse pormenor. Você e essa mulher podem viver em um estado de comunhão, como companheiros, irmãos. Os próprios monges não convivem com monjas, às vezes, sob o mesmo teto? Não vejamos dificuldades onde elas não existem. Prossigamos com o registro.

Com um suspiro profundo, eu assenti, embaraçado, pois as palavras adequadas para o momento estavam fora de meu alcance. Quanto mais eu pensava no caso, tanto menos ele me agradava.

Pensei em meu guia, o Lama Mingyar Dondup, confortavelmente sentado em alguma parte, na Terra da Luz Dourada. A minha expressão fisionômica deve ter-se tornado cada vez mais preocupada, pois o velho lama recomeçou a rir.

Finalmente, ambos nos acalmamos e passamos a observar os quadros vivos do Registro Akáshico. Vi o homem cujo corpo esperavam que eu pudesse tomar. Com interesse crescente, observei que ele fazia curativos cirúrgicos. Com grande prazer, notei que ele certamente sabia o que estava fazendo, era competente, e assenti com aprovação involuntária enquanto o observava lidando com um caso após o outro.

O cenário modificou-se, e pudemos ver a cidade de Londres, na Inglaterra, assim como se estivéssemos em meio aos transeuntes da rua. Enormes ônibus vermelhos seguiam pelas ruas, entrando e saindo da corrente do tráfego, transportando grande número de passageiros. Gritos, correria, ruídos infernais prorromperam de repente e vi gente correndo para se abrigar em estranhos edifícios de pedra construídos nas ruas. Ouvia-se o estrondo incessante de granadas antiaéreas, e aviões de caça zumbiam no céu. Instintivamente nós nos abaixamos, enquanto bombas caíam à frente, sibilando. Por momentos, houve um silêncio abafado e, depois, BAAM!

Edifícios saltavam e caíam, transformados em poeira e destroços. Nos túneis subterrâneos do metrô, as pessoas viviam uma existência singular e troglodítica, indo para os abrigos à noite e saindo de lá como toupeiras saem da toca. Famílias inteiras aparentemente viviam ali, dormindo em leitos improvisados, procurando certo isolamento uns em relação os outros, pendurando cobertores em qualquer ponto que para isso servisse, nas paredes cobertas de ladrilhos.

Eu parecia estar em pé sobre uma plataforma de ferro, bem acima dos telhados de Londres, tendo visão para sobre o edifício que as pessoas chamavam o Palácio. Um avião solitário saiu das nuvens e três bombas caíram abre o lar do rei da Inglaterra. Olhei ao redor. Quando alguém está vendo pelo Registro Akáshico, vê a cena como se fosse o personagem principal, de modo que eu e o velho lama, ambos, nos sentíamos como se fôssemos a figura principal. Pareceu-me que estava diante de uma escada de incêndio que se estendia sobre os telhados de Londres. Eu vira aquelas coisas antes, mas tive de explicar utilidade daquilo a meu companheiro. E depois compreendi que ele — a figura que eu observava — estava em serviço, na vigilância antiaérea, a fim de dar o alarma os que se encontravam lá embaixo, caso surgissem aviões inimigos. As sirenes soaram outra vez, dando o sinal de perigo, e vi o homem descendo e tirando o capacete de aço de vigia antiaéreo. O velho lama voltou-se para mim com um sorriso.

— Isso é muitíssimo interessante. Eu não observei acontecimentos no Ocidente, pois meus interesses têm-se limitado a nosso país. Compreendo, agora, o que você quer dizer quando diz que “um quadro vale mil palavras”, devemos olhar outra vez.

Enquanto permanecíamos sentados e observávamos o registro Akáshico, vimos as ruas de Londres imersas nas trevas da noite, com os veículos dotados de cobertas especiais para seus faróis.

As pessoas não esbarravam em postes, mas nas outras. No interior dos trens subterrâneos, antes de chegarem à superfície, as luzes comuns eram desligadas acesas outras, fraquíssimas e de cor azulada. Os fachos dos holofotes varriam o céu da noite, iluminando às vezes os flancos cinzentos dos balões de barragem. O velho lama fitava aqueles balões, tomado de absoluto fascínio. A viagem astral era coisa que ele compreendia bem, mas aqueles monstros cinzentos, amarrados e pairando bem alto, movendo-se ao vento da noite, eram motivo de verdadeiro espanto, a seus olhos. Confesso que estava achando sua expressão fisionômica mais interessante do que o Registro Akáshico.

Observamos o homem, que saía do trem e seguia pela escuridão das ruas, até chegar a um grande quarteirão de apartamentos. Vimo-lo entrar, mas não entramos com ele e, ao invés disso, olhamos a cena movimentada na parte externa.

Casas tinham sido destruídas por bombas, e havia homens trabalhando na remoção de escombros a fim de retirar os vivos e mortos. O gemido das sirenes interrompeu as operações de salvamento, e lá no alto, como mariposas esvoaçando ao redor da luz, bombardeiros inimigos haviam sido apanhados por fachos cruzados de holofotes. Refletindo, a luz de um deles, algo atraiu nossa atenção, e vimos que as luzes eram as bombas já despejadas. Uma delas caiu com baque e estrondo ao lado do grande bloco de apartamentos. Houve um clarão forte e um chuveiro de destroços. Gente saiu correndo do edifício, vindo para a segurança duvidosa das ruas.

— Você viu coisa pior do que isso em Xangai, meu irmão? — indagou o velho lama.

— Muito pior — respondi. — Não tínhamos qualquer defesa e eram escassos os recursos. Como sabe, fiquei sepultado por algum tempo em um abrigo destruído, e só consegui escapar com grande dificuldade.

— Vamos adiantar-nos um pouco no tempo? — propôs ele. — Não precisamos observar indefinidamente, pois ambos estamos com a saúde debilitada.

Concordei, com alegria. Eu precisava, apenas, saber que tipo de pessoa era aquela de cujo corpo eu me apoderaria. Para mim, não havia qualquer interesse em examinar as questões de outra criatura. Nós nos adiantamos no registro, paramos experimentalmente, e prosseguimos outra vez. A luz da manhã estava manchada pela fumaça de muitos incêndios. As horas da noite tinham sido um inferno. Parecia que metade de Londres ardia. O homem seguia pela rua cheia de destroços, e que recebera um bombardeio pesado. Em uma barricada provisória, um policial da Reserva de Guerra o deteve.

— Não pode ir adiante, senhor. Os edifícios ali estão perigosos — disse.

Vimos o diretor chegar e falar com o homem cuja ida estávamos observando. Disse algo ao policial, passaram sob o cordão de isolamento e foram para o edifício atingido. A água espirrava por toda parte, vinda do encanamento destruído.

Encanamentos e fios de eletricidade estavam inteiramente entrelaçados, como um novelo de lã com que um gatinho tivesse brincado. Um cofre pendia em ângulo perigoso, à beira de um enorme buraco. Trapos esvoaçavam tristemente na brisa, e de edifícios adjacentes pedaços de papel queimado desciam como flocos de neve negra. Eu, que vira mais sobre a guerra e o sofrimento em geral do que a maioria, continuava a sentir-me nauseado por toda aquela destruição sem sentido. O Registro akáshico prosseguia...

O desespero, na Londres de durante a guerra! O homem procurou alistar-se como policial da Reserva de guerra. Foi uma tentativa em vão. Seus documentos médicos registravam-no como grau quatro, incapaz para o serviço, e agora, tendo perdido o emprego por causa do bombardeio, ele vagava pelas ruas, em busca de trabalho, ma firma após outra recusava empregá-lo.

Não parecia haver qualquer esperança, nada que aliviasse a dificuldade ar ele atravessada. Finalmente, por uma visita casual a uma escola por correspondência na qual estudara, e onde deixara boa impressão por sua vivacidade mental e diligência, oferecem-lhe um emprego nos escritórios fora de Londres.

— É um lugar bonito! — disse o homem que fazia oferta.

— Tome o ônibus da Linha Verde. Fale com o Pe. Ele deve estar por lá à uma da tarde, mas os outros tomarão conta de seu caso. Leve sua senhora para o passeio. Eu mesmo quis uma transferência para lá.

A aldeia, na verdade, era um buraco, e não um lugar bonito, como haviam dito. Fabricavam aviões lá, submetiam-nos aos testes e depois levavam-nos para outras partes do país. A vida em uma escola por correspondência era realmente tediosa. Até onde pudemos ver, observando o Registro Akáshico, ela consistia em ler formulários e cartas enviadas por pessoas e depois sugerir que cursos elas viam fazer. A minha opinião pessoal é de que o ensino por correspondência não passava de desperdício de dinheiro, a menos que a pessoa tivesse meios de executar trabalhos práticos, também.

Um ruído estranho, como o de um motor de motocicleta, chegou a nossos ouvidos. Enquanto observávamos, um aeroplano de aspecto singular surgiu. Era um aeroplano sem piloto, e parecia emitir uma tosse espasmódica. O motor desligou-se, o aparelho mergulhou e explodiu pouco acima do chão.

— Foi um avião-robô alemão — expliquei ao velho lama. — A V1 e a V2 parecem ter sido armas bem desagradáveis.

Outro avião-robô aproximou-se da casa em que o homem e sua esposa residiam. Fez explodir as janelas de um dos lados da casa, do outro lado também, e deixou uma parede rachada.

— Eles não parecem ter muitos amigos — disse o velho lama. — Acredito que tenham possibilidades mentais que passariam despercebidas a um observador superficial. Parece-me que eles vivem mais como irmão e irmã do que como marido e mulher. Isso deve ser motivo de reconforto para você, meu irmão — disse o ancião, com uma risada.

O Registro Akáshico prosseguia, exibindo a vida de um homem com a velocidade do pensamento. Mesmo assim, podíamos passar de uma parte a outra, pulando algumas e repetindo outras diversas vezes. O homem verificara que uma série de coincidências ocorria, levando seus pensamentos cada vez mais para o Oriente. “Sonhos” mostravam-lhe a vida no Tibete, sonhos esses que na realidade eram viagens no plano astral, sob o controle do velho lama.

— Uma de nossas dificuldades menores — disse-me o velho — é que ele queria empregar a palavra “mestre”, sempre que falava com um de nós.

— Ah! — exclamei. — É um dos enganos mais comuns dos ocidentais. Eles adoram utilizar qualquer palavra que denote poder sobre os demais. O que lhe disse? O velho lama sorriu e explicou:

— Eu fiz uma pequena preleção e procurei fazer com que ele apresentasse menos perguntas. Eu lhe direi o que foi esclarecido, porque será de utilidade para deduzir a natureza íntima dele. Eu disse: “Isto é um termo que me causa repugnância, e a todos os orientais. Mestre quer dizer uma pessoa que está procurando domínio sobre outras, buscando supremacia sobre aqueles que não têm o direito de utilizar essa palavra. Um mestre-escola procura inculcar o conhecimento a seus alunos.

Para nós, mestre quer dizer mestre do conhecimento, uma fonte de conhecimento, ou alguém que tenha dominado as tentações da carne. Nós, ao que eu disse, preferimos utilizar a palavra guru, ou adepto, pois nenhum mestre, como nós conhecemos a palavra, procuraria jamais influenciar um estudante ou impor suas próprias opiniões. No Ocidente, existem alguns grupos e cultos pequenos que julgam ser donos únicos da chave para os campos celestes. Certas religiões utilizavam torturas a fim de fazer prosélitos”. Eu o fiz recordar um dito encontrado em um de nossos mosteiros: “Mil monges, mil religiões”.

“Ele pareceu receber minha preleção muito bem”, prosseguiu o velho lama, de modo que eu falei mais um pouco, com a ideia de malhar enquanto o ferro estava quente. Eu disse: ‘Na Índia, na China, no Japão antigo, o candidato a estudante senta-se aos pés de seu guru procurando informações, e não fazendo perguntas, pois o estudante sábio jamais faz perguntas, para não ser mandado embora. Fazer perguntas é prova positiva, aos olhos do guru, de que o estudante não está ainda pronto para receber respostas às suas perguntas. Alguns estudantes esperaram até sete anos para receber respostas a uma pergunta que não haviam formulado. Durante esse tempo o estudante cuida das necessidades corporais de seu guru, trata de sua roupa, alimentação e das poucas outras necessidades que ele tem. Por todo o tempo, seus ouvidos mantêm-se alerta para receberem informação, porque, recebendo-a, talvez ouvindo aquilo que é dado a outras pessoas, o estudante sábio pode deduzir, sabe inferir, e, quando o guru percebe que ele está fazendo progresso, e na ocasião que quiser, interroga-o, e se verificar que parte dos conhecimentos por ele adquiridos contêm erro, ou se mostram incompletos, também quando achar conveniente consertará as emissões e corrigirá essas deficiências’.

No Ocidente, as pessoas dizem: ‘Agora, explique-me uma coisa. Madame Blavatsky disse que...’, ou: ‘O Bispo Ladbetter afirma que...’, ou: ‘Billy Granam declarou que.. .’, e indagam: ‘Qual é a sua opinião?... Ah, eu acho que você está errado!...’ Os ocidentais fazem perguntas apenas por perguntar e falar, fazem perguntas sem saber o que querem dizer, sem saber o que querem ouvir, mas, quando um guru bondoso responde, eles imediatamente argumentam e afirmam: ‘Ah, bem... Eu ouvi fulano de tal dizer isso assim-assim, ou assim assado, ou alguma outra coisa’.

Se o estudante faz uma pergunta ao guru, isso deve significar que o estudante não sabe a resposta, mas acredita que o guru saiba. E se o estudante imediatamente põe em dúvida a resposta dada pelo guru, isso mostra que ele é ignorante e tem ideias preconcebidas e inteiramente erradas quanto ao decoro e à decência comum. Eu digo a você que o único modo de obter respostas a essas perguntas é deixar que muitas fiquem sem serem feitas e colher informações, deduzir e inferir, e depois, chegada a ocasião devida, desde que você tenha o coração puro, deverá fazer viagens astrais e conhecer as formas mais esotéricas de meditação, sendo assim possível consultar o Registro Akáshico, que não pode mentir, não pode responder fora do contexto e não pode emitir opiniões ou informações coloridas por inclinações pessoais. A esponja humana sofre de indigestão mental e retarda de maneira deplorável sua evolução e desenvolvimento espiritual. Qual é o único modo de progredir? É esperar e ver. Não existe outro meio, nem há outro modo de forçar o seu desenvolvimento, a não ser mediante convite expresso feito por um guru que o conheça bem, e esse guru, conhecendo você bem, logo aceleraria o seu desenvolvimento, se achasse que você era digno.

A mim pareceu que a maioria dos ocidentais auferiria grande proveito, se aprendesse isso. Mas nós não estávamos ali para ensinar, e sim para observar o desenrolar de problemas importantes na vida de um homem, homem esse que não tardaria a deixar sua casa terrestre.

— Isso é interessante — disse o velho lama, chamando-me a atenção para uma cena do registro.

— Isto tornou necessários muitos preparativos, mas quando ele percebeu a conveniência não adiou mais.

Olhei a cena com alguma perplexidade e, depois, compreendi. Sim! Aquilo era o gabinete de um juiz. Aquele documento era uma declaração oficial de mudança de nome. Sim, isso estava certo, lembrei-me.

Ele mudara o nome porque o anteriormente utilizado apresentava vibrações erradas, conforme ficara indicado por nossa numerologia. Eu li o documento com interesse, e vi que ainda não estava inteiramente correto, embora bastante próximo.

De sofrimento, havia bastante. Uma visita ao dentista causou grandes danos, os quais tornaram necessário seu transporte para um hospital a fim de sofrer uma operação. Só por interesse profissional eu observei o que ali era feito, com grande atenção.

Ele — o homem cuja vida estávamos observando — achava que seu empregador não lhe dava atenção, ou lhe era indiferente. Nós, que observávamos, sentíamos o mesmo, e o velho lama e eu ficamos satisfeitos em ver que o homem pedia demissão do emprego na escola por correspondência.

Os móveis foram carregados num caminhão, algumas peças foram vendidas e o casal deixou aquela região, seguindo para outra inteiramente diferente. Por algum tempo, moraram na casa de uma velha estranha, que “lia a sorte” e fazia uma ideia notável de sua própria importância. O homem procurou insistentemente emprego, qualquer coisa que lhe permitisse ganhar dinheiro honestamente.

O velho lama dirigiu-me a palavra.

— Agora, estamo-nos aproximando da parte crucial. Como você verá, ele vocifera constantemente contra o destino. Não tem paciência alguma e receio que parta da vida por meio violento, a menos que nos apressemos.

— Que quer que eu faça? — perguntei.

— Você é mais graduado do que eu — disse o ancião. — Mas eu gostaria que vocês se encontrassem no astral e você formasse sua própria opinião.

— Está certo — concordei. — Iremos juntos.

Por momentos perdi-me em pensamentos e, depois, aduzi:

— Em Lhasa são duas da madrugada. Na Inglaterra, serão oito da noite, pois a hora deles é mais atrasada. Esperaremos e descansaremos por três horas, e depois o chamaremos e trá-lo-emos ao astral.

— Sim — disse o velho lama. — Ele dorme sozinho em um quarto, de modo que isso será possível. Por enquanto descansemos, pois estamos muito fatigados.

Regressamos a nossos corpos, sentados lado a lado e iluminados pela luz pálida das estrelas. Em Lhasa as luzes já se achavam extintas e vinham apenas brilhos das habitações dos monges e as luzes mais fortes dos postos de guarda dos comunistas chineses. O cantarolar do pequeno córrego, lá fora, parecia muito alto no silêncio da noite. Lá de cima veio o ruído de um pequeno desabamento de pedras deslocadas por um vento mais forte. Elas rolaram com estardalhaço, passando por perto de nós e soltando pedras maiores. Desceram a montanha e terminaram formando uma pilha ruidosa perto de um galpão dos chineses. Luzes foram acesas e fuzis disparados para o ar, enquanto soldados corriam de um lado para outro, receando um ataque desfechado pelos monges de Lhasa.

Logo a agitação terminou e a noite voltou à paz e tranquilidade.

O velho lama riu baixinho, e disse:

— Como é estranho que as pessoas fora de nossa terra não possam compreender a viagem astral! Como é estranho pensarem que tudo isso seja imaginação! Não haveria um meio de mostrar-lhes que mesmo mudar o corpo de um pelo corpo de outro é, apenas, como um motorista que passa de um automóvel a outro? Parece inconcebível que um povo com o progresso técnico que eles têm deva ser tão cego às coisas do espírito.

Eu, com muita experiência do Ocidente, respondi:

— Mas o povo ocidental, a não ser uma pequena minoria, muito pequena, não tem capacidade para as coisas espirituais. Tudo que eles querem é guerra, sexo, sadismo, e o direito de intrometer-se na vida alheia.

A longa noite arrastava-se. Nós descansamos e nos revigoramos um pouco com chá e tsampa.

Finalmente, os primeiros albores do amanhecer surgiram na cordilheira atrás de nós. Por enquanto o vale a nossos pés continuava imerso na escuridão. Em algum lugar um iaque começou a berrar, como a perceber que logo estaríamos em outro dia. Eram cinco da manhã, hora tibetana. Perto de onze da noite na Inglaterra, calculei. Com suavidade, despertei o velho lama, que dormitava.

— É hora de irmos ao astral — avisei.

— Será a última vez para mim — disse ele —, pois eu não voltarei mais a meu corpo.

Devagar, sem pressa alguma, entramos novamente no plano astral. Com calma, chegamos àquela casa na Inglaterra. Lá estava o homem dormindo, mexendo-se um pouco no leito, e em seu rosto havia uma expressão de extremo descontentamento. Sua forma astral envolvia o corpo físico, sem dar sinal ainda de separar-se.

— Você vem? — perguntei, no astral.

— Você vem? — repetiu o velho lama. Devagar, quase com relutância, a forma astral do homem ergueu-se acima de seu corpo físico, ergueu-se e flutuou sobre ele, virou e pôs-se de cabeça para o astral e com os pés no plano físico, como faz quem se levanta. O corpo astral ondulou e sacudiu-se.

O rugido repentino de um trem que passava por perto, em alta velocidade, quase o mandou de volta ao plano físico, e depois, como se houvesse tomado uma decisão repentina, sua forma astral oscilou e apresentou-se de pé à nossa frente.

Esfregando os olhos como quem desperta de um sono, ele nos fitou.

— Com que, então, você quer deixar o seu corpo? — perguntei.

— Quero, sim. Eu detesto isto aqui! — respondeu ele, em tom veemente.

Nós nos fitamos mutuamente. A mim, ele pareceu um homem muito incompreendido, homem que na Inglaterra não deixaria sua marca na vida, mas que, no Tibete, teria sua oportunidade. Ele riu com azedume.

— Então, você quer o meu corpo? Bem, vai ver que está cometendo um engano. Na Inglaterra, não adianta o que a pessoa sabe. O que conta são os conhecimentos que se tenha com outras pessoas. Eu não consigo emprego, nem mesmo pensão de desemprego. Veja se consegue mais do que eu!

— Calma meu amigo — disse o velho lama — Você não sabe com quem está falando. Talvez sua truculência tenha impedido que conseguisse emprego.

— Você terá que deixar crescer a barba — disse eu —, pois se eu tiver de ocupar seu corpo o meu logo será substituído, e preciso de uma barba para esconder os ferimentos em meu queixo. Você pode fazer isso?

— Sim, senhor — respondeu ele. — Eu a deixarei crescer.

— Muito bem — disse eu. — Regressarei em um mês, dando-lhe libertação, de modo que o meu próprio corpo possa, mais tarde, substituir o que eu tenha tomado. Diga-me — perguntei —, como foi o seu primeiro contato com minha gente?

— Por muito tempo, senhor — disse ele —, eu detestei a vida na Inglaterra, sua injustiça, o favoritismo que aqui prevalece. Toda a minha vida eu tive interesse pelo Tibete e pelos países do Extremo Oriente. Toda a vida tive “sonhos” em que via, ou parecia ver, o Tibete, a China e outros países que eu não conhecia. Algum tempo atrás tive o impulso forte de mudar o meu nome por recurso legal, e fiz isso.

— Sim — observei —, eu já sei tudo a esse respeito, mas como foi abordado recentemente e o que viu? Ele pensou um pouco, depois respondeu:

— Para contar isso, eu teria de fazê-lo a meu próprio modo, e algumas informações que tenho parecem estar incorretas, pelo que percebi mais tarde.

— Muito bem — foi minha resposta. — Conte-me a seu modo e depois poderemos corrigir qualquer engano. Eu preciso passar a conhecer você melhor, se vou ficar com seu corpo, e esse é um meio de consegui-lo.

— Talvez eu deva começar com o primeiro “contato” verdadeiro. Assim poderei encaminhar melhor meus pensamentos.

Da estação ferroviária veio o ruído de um trem sendo freado, o qual trazia pessoas retardatárias, vindas da cidade de Londres. Logo veio o ruído do trem pondo-se novamente em marcha e depois “o homem” iniciou sua história, enquanto o velho lama e eu ouvíamos cuidadosamente.

— Rose Croft, em Thames Ditton — principiou ele —, era um lugarzinho bom. Era uma casa afastada da estrada, que tinha um jardim na frente, pequeno, e outro bem maior na parte dos fundos. Na casa havia uma sacada na parte de trás, com vista muito boa para o campo. Eu costumava passar muito tempo no jardim, principalmente no jardim da frente, porque ele fora abandonado por algum tempo, e eu estava tentando endireitá-lo.

A grama crescera muito, de modo que estava alta, e limpar aquilo era um problema sério. Eu já cortara metade dela com uma velha faca Gurkha indiana. O trabalho era pesado, porque eu tinha de ficar de quatro, dando golpes na grama, e afiar a faca em uma pedra, após algumas vezes. Eu também estava interessado em fotografia, e por algum tempo procurava fotografar uma coruja que vivia num abeto próximo, bem escondido por uma trepadeira.

Certa ocasião, minha atenção foi distraída pela vista de alguma coisa que estava num galho, não muito longe de minha cabeça. Olhei para cima e com muita satisfação vi uma pequena coruja batendo as asas, agarrando-se ao galho, quase cega pela luz do sol. Devagar, larguei a faca que estava usando e segui para casa a fim de apanhar a máquina fotográfica.

Tendo-a nas mãos, e com o obturador preparado, fui para a árvore e, sem um ruído, tão silenciosamente quanto possível, subi no primeiro galho. Devagar, fui-me chegando. A ave, que não me podia ver, naquela luz forte, mas sentindo minha presença, afastou-se mais para a extremidade do galho. Eu, sem pensar no perigo, adiantava-me mais e mais, e a cada movimento meu a ave se afastava mais, também, até estar quase na ponta do galho, que já se dobrava bastante sob meu peso.

De repente, fiz um movimento mais precipitado, houve um estalo e senti o cheiro agradável de madeira em pó. O galho estava podre e cedeu ao meu peso. Caí de cabeça para baixo ao chão. Pareceu-me uma eternidade percorrer aquela distância pequena. Eu me lembro de que a grama nunca pareceu mais verde, e pareceu também maior do que o natural, Eu podia ver cada folha dela, com os pequenos insetos que tinha. Lembro-me também de uma joaninha, que saiu voando assustada, enquanto eu caía, e depois veio uma dor forte e um clarão que parecia um relâmpago colorido, e tudo escureceu. Não sei por quanto tempo permaneci inerte, sob os ramos do velho abeto, mas de repente percebi que me estava separando do corpo físico. Vi as coisas com uma percepção maior do que nunca. As cores pareciam novas e muito vivas.

Com cuidado, pus-me em pé e olhei ao redor, e para meu espanto verifiquei que meu corpo estava estendido no chão. Não havia sangue; o que havia, ao certo, era um inchaço bem acima da têmpora direita. Eu fiquei um tanto desconcertado, porque o corpo arquejava com dificuldade e dava sinais de muito sofrimento. ‘É a morte’, pensei. ‘Eu morri. Agora, nunca mais voltarei’. Vi um cordão fino e fumacento que subia do corpo, da cabeça do corpo, até onde eu estava. Não havia qualquer movimento nesse cordão, nenhuma pulsação, e eu senti um pânico nauseante. Fiquei sem saber o que devia fazer, parecia estar preso naquele lugar, pelo medo, ou talvez por algum outro motivo. E depois um movimento repentino, o único movimento que eu percebia naquela situação estranha, atraiu-me a atenção, e quase gritei, ou teria gritado, se tivesse voz. Caminhando em minha direção, vinha a figura de um lama tibetano, vestido no hábito de cor amarela da ordem superior. Os pés dele estavam a alguns centímetros do chão, mas ainda assim ele vinha com passos firmes. Olhei para ele, tomado de absoluta estupefação.

Ele veio em minha direção, estendeu a mão e sorriu, e disse: ‘Você nada tem a recear. Nada há, aqui, para causar-lhe preocupação’. Eu tive a impressão de que suas palavras eram pronunciadas num idioma diferente do meu, talvez tibetano, mas eu as compreendia, embora não houvesse som algum. Na verdade, não ouvia som algum, nem mesmo o canto dos pássaros, ou o murmúrio do vento nas árvores. ‘Sim’, disse ele, adivinhando meus pensamentos. ‘Nós não utilizamos as palavras, mas a telepatia. Estou-lhe falando por telepatia.’

Nós nos olhamos mutuamente e, depois, para o corpo estendido no chão entre nós. O tibetano voltou a fitar-me, sorriu e disse: ‘Você está surpreso com minha presença? Eu me acho aqui porque fui atraído a você. Deixei meu corpo neste momento, e fui atraído a você porque as suas vibrações vitais estão em harmonia fundamental com as de uma pessoa para a qual estou agindo. Assim é que eu vim, e vim porque quero o seu corpo para alguém que tem de continuar a viver no mundo ocidental, pois tem uma tarefa a executar, tarefa essa que não permite interrupção’.

Olhei para ele, estupefato. Ele devia estar doido, dizendo que queria meu corpo! Se o queria, eu queria também, e o corpo era meu. Não ia deixar que alguém se apossasse desse modo de minha propriedade. Eu fora tirado de meu veículo físico contra meu desejo, e ia regressar a ele. Mas o tibetano, por certo, lia novamente meus pensamentos, pois disse: ‘E o que tem pela frente? Desemprego, doença, infelicidade, uma vida medíocre num ambiente medíocre e depois, num futuro que não está muito distante, a morte e o recomeço de tudo. Você já conseguiu realizar alguma coisa na vida? Já fez alguma coisa da qual se pudesse orgulhar? Pense nisso’.

Eu pensei, mesmo. Pensei no passado, nas frustrações, nas incompreensões, nas infelicidades.

Ele interrompeu meus pensamentos. ‘Você gostaria de ter a satisfação de saber que o seu carma fora eliminado, apagado, e que você contribuíra para uma tarefa do maior benefício para a humanidade?’ Eu respondi: ‘Bem, não sei... Não cogito disso. A humanidade não tem sido muito boa comigo. Por que haveria de importar-me com ela?’ Ele disse: ‘Não, nesta Terra você está cego para a verdadeira realidade. Você não sabe o que diz, mas com a passagem do tempo, em uma esfera diferente, terá a percepção das oportunidades que perdeu. Eu quero o seu corpo para outra pessoa’.

‘Bem’, disse eu, ‘o que quer que eu faça? Não posso ficar por aí como um fantasma, todo o tempo, e nós dois não podemos ocupar o mesmo corpo’. Como está vendo, eu aceitei aquilo de modo absolutamente literal. Havia alguma coisa, naquele homem, alguma coisa inteiramente genuína e sincera. Eu não pus em dúvida, por um só instante, que ele pudesse tomar meu corpo e deixar-me ir para outra parte qualquer, mas queria mais informações, queria saber o que eu estava fazendo.

Ele sorriu para mim e disse, de modo reconfortante: ‘Você, meu amigo, terá sua recompensa. Você escapará ao seu carma. Você irá para uma esfera diferente de atividade e terá seus pecados apagados, devido ao que está fazendo. Mas o seu corpo não poderá ser tomado, a menos que você concorde’. A ideia, francamente, não me agradava de modo algum. Eu tinha meu corpo havia uns quarenta anos, e estava bem ligado a ele. Não me agradava a ideia de que outro se apoderasse dele e saísse por aí. Além disso, que diria minha esposa, vivendo com um homem que não conhecia e sem saber de coisa alguma do ocorrido? Ele olhou novamente para mim e disse: ‘Você não tem consideração alguma pela humanidade? Não está desejando fazer alguma coisa para redimir seus próprios enganos, dar alguma finalidade à sua própria vida medíocre? Você sairá ganhando com isso. Aquele de quem eu falo ficará com essa vida difícil que você tem levado’. Olhei ao redor, olhei o meu corpo entre nós, e pensei: ‘Bem, afinal... que diferença faz? A vida tem sido difícil, e eu... eu estou bem afastado dela’.

E assim é que respondi: ‘Pois bem, deixe-me ver para que tipo de lugar eu irei, e, se eu gostar, concordarei’. No mesmo momento, tive uma visão gloriosa, uma visão tão bela que palavra alguma poderia descrevê-la. Fiquei bastante satisfeito, e disse que concordaria, e com muito gosto, em ter minha libertação e ir para lá o mais breve possível. O velho lama que estava conosco riu e disse:

— Foi preciso explicar-lhe que a coisa não seria tão fácil e rápida assim, e que você teria de vir e resolver por si mesmo, antes de chegarmos a uma decisão final. Afinal de contas, aquilo tudo seria uma libertação feliz para ele, e mais dificuldades para você.

Olhei para ambos e declarei, finalmente:

— Eu voltarei em um mês. Se, então, você tiver uma barba, e a certeza absoluta de que quer passar por isso, eu o libertarei para que faça sua própria jornada.

Ele suspirou com satisfação e uma expressão beatífica veio ter a seu rosto, enquanto ele se retirava vagarosamente para seu corpo físico. O velho lama e eu nos levantamos e voltamos ao Tibete.

O sol estava brilhando num céu azul e sem nuvens. A meu lado, enquanto eu reingressava ao corpo físico, a casca vazia do velho lama jazia no chão. “Ele”, refletia eu, “foi para a paz, depois de uma vida prolongada e honrada. Eu — pelo sagrado dente de Buda! — em que me meti?” Mensageiros foram para as altas regiões montanhosas e para o novo lar, levando minha mensagem escrita de que faria o que me fora pedido. Mensageiros vieram ter comigo, trazendo-me, como gesto gracioso de amizade, alguns bolos açucarados indianos, que, por tantas vezes, tinham sido meu ponto fraco, quando estava no Chakpori. Para todos os fins, eu era um prisioneiro naquele esconderijo da montanha. Ao meu pedido de que me permitissem descer e fazer uma última visita ao meu amado Chakpori a resposta foi negativa.

— Você pode ser visto pelos invasores, meu irmão — disseram —, e eles se mostram muito dispostos a disparar quando têm alguma desconfiança.

— Você está doente, reverendo abade — disse outro. — Se descesse a montanha, talvez sua saúde não permitisse o regresso. E se o Cordão Prateado for rompido, nesse caso a tarefa não poderá ser levada a cabo.

A tarefa! A mim parecia surpreendente que houvesse uma “tarefa”, afinal de contas. Ver a aura humana era, para mim, tão simples quanto, para um homem de visão perfeita, seria ver alguém a pouca distância. Fiquei pensando sobre a diferença entre o Oriente e o Ocidente, pensando em como seria fácil convencer um ocidental a respeito da existência de um novo alimento enlatado e fácil de preparar, e como seria fácil convencer um oriental a respeito de alguma coisa nova no reino da mente.

O tempo decorria e eu descansei bastante, muito mais do que em qualquer outra ocasião de minha vida. E depois, pouco antes de terminar o mês, pouco antes de voltar à Inglaterra recebi um chamado urgente para visitar novamente a Terra da Luz Dourada.

Sentado diante de todas aquelas altas personagens, ocorreu-me o pensamento um tanto irreverente de que aquilo se assemelhava a uma conferência, como no tempo de guerra! Meu pensamento foi apanhado pelos demais, e um deles sorriu e disse:

— E é, mesmo, uma conferência! E quem pode ser o inimigo? O poder do mal, que gostaria de impedir ou deter a realização de nossa tarefa.

— Você encontrará muita oposição e muita calúnia — disse um outro.

— Os seus poderes metafísicos não serão alterados ou perdidos de modo algum, durante a mudança do corpo — asseverou outro.

— Esta é a sua última encarnação — disse o meu amado guia, o Lama Mingyar Dondup. — Quando você houver terminado esta vida, da qual vai-se apoderar, voltará então para a pátria... para nós...

Como era próprio de meu guia, pensei, terminar o que dizia com uma nota de felicidade... Eles prosseguiram para me dizer o que ia acontecer. Três lamas, em viagem astral, acompanhar-me-iam à Inglaterra, e efetuariam a operação de libertar um dos Cordões Prateados e ligar o outro — que era eu! A dificuldade estava em que meu corpo, ainda no Tibete, tinha de permanecer ligado, pois eu queria que as minhas próprias “moléculas de carne” fossem, mais tarde, transferidas. Assim, regressei ao mundo e, juntamente com três companheiros, viajei para a Inglaterra no plano astral. O homem estava esperando.

— Estou decidido a efetuar a coisa — disse ele. Um dos lamas em minha companhia voltou-se para o homem e disse:

— Você deve deixar-se cair com violência daquela árvore, como fez quando nós o visitamos pela primeira vez. Você precisa de um tombo sério, pois o seu cordão se acha preso com muita força.

O homem subiu, pondo-se a alguma distância do chão, e depois soltou-se, caindo à terra com um baque satisfatório. Por momentos, pareceu que o próprio tempo parara. Um carro que vinha em velocidade, pela estrada próxima, parou, um pássaro em pleno voo ficou imóvel em pleno ar — sem cair. Um cavalo que puxava uma carroça parou, com dois pés no ar, e também não caiu. E, depois, o movimento voltou à nossa percepção. O carro movimentava-se novamente, fazendo uns sessenta quilômetros horários. O cavalo começou a trotar e o pássaro, pairando no ar, seguiu em seu voo. As folhas se agitavam e retorciam, e a grama ondulava, ao efeito do vento.

Do outro lado, num hospital local, parou uma ambulância. Dois serventes desceram, deram a volta para a parte traseira e de lá tiraram uma maça, sobre a qual havia uma mulher idosa. Com movimentos calmos os homens a puseram em posição e levaram-na para o hospital.

— Ah! — exclamou o homem. — Ela vai para o hospital, e eu para a liberdade.

Espiou para um e outro lado da estrada, e disse, então:

— Minha esposa sabe tudo que está acontecendo. Eu expliquei a ela, e ela concorda.

Olhou para a casa e apontou:

— Aquele é o quarto dela, o seu é ali. Agora, eu estou mais do que pronto.

Um dos lamas segurou a forma astral do homem e passou a mão pelo Cordão Prateado. Ele parecia estar a amarrá-lo, assim como se faz com o cordão umbilical de um recém-nascido.

— Pronto! — disse um dos sacerdotes.

O homem, livre de seu cordão, flutuava em companhia do sacerdote que o ajudava. Eu senti uma dor escaldante e uma agonia completa, que jamais quero voltar a sentir, e, depois, o lama mais graduado disse:

— Lobsang, você pode entrar naquele corpo? Eu o ajudarei.

O mundo escureceu. Havia uma sensação inteiramente pegajosa, entre negra e vermelha. Uma sensação de sufocação. Eu achei que estava sendo comprimido, apertado em alguma coisa pequena demais para mim. Sondei o interior do corpo, sentindo-me como um piloto cego dentro de avião muito complexo, imaginando como fazer aquele corpo funcionar. “E se eu falhar agora?”, pensei, abatidíssimo. Com desespero, mexi para cá e para lá, e finalmente vi vislumbres de vermelho, depois algum verde. Mais confiante, intensifiquei os esforços e pareceu-me que uma cortina fora desvendada. Eu podia ver! Minha visão era exatamente a mesma de antes. Eu podia ver as auras das pessoas nas estradas, mas não me podia mover.

Os dois lamas mantinham-se a meu lado. A partir de então, como iria verificar depois, eu sempre conseguiria ver as figuras astrais tão bem quanto as físicas. Podia, também, manter-me em contato ainda maior com meus companheiros no Tibete. “É um prêmio de consolação”, disse muitas vezes a mim mesmo, “por ser obrigado a permanecer no Ocidente.” Os dois lamas pareciam muito preocupados com minha rigidez e incapacidade de movimento.

Com desespero, esforcei-me ainda mais, recriminando-me amargamente por não ter procurado descobrir e sobrepujar qualquer diferença entre um corpo oriental e outro, ocidental.

— Lobsang! Seus dedos estão-se movendo — disse um dos lamas.

Apressadamente, eu explorei e experimentei. Um movimento defeituoso trouxe cegueira temporária. Com auxílio dos lamas, saí novamente do corpo, examinei-o e voltei a entrar cuidadosamente. Desta feita, tive mais êxito. Podia ver, mover um braço e uma perna. Com esforço imenso, pus-me de joelhos, cambaleei e caí outra vez, de cara no chão. Como se estivesse suspendendo todo o peso do mundo, consegui depois pôr-me em pé, muito abalado.

Da casa veio uma mulher, correndo e dizendo:

— Oh, o que foi que fez agora? Devia entrar e deitar-se!

Ela olhou para mim, uma expressão de espanto surgindo em seu rosto, e por momentos pensei que ela ia gritar histericamente. Mas a mulher se controlou, passou um braço por meus ombros e ajudou-me a seguir pelo gramado. Por uma pequena trilha de saibro, subindo um degrau de pedra e passando por uma porta de madeira, chegamos a um pequeno saguão. Andar, a partir dali, foi muito difícil, pois havia degraus demais para subir e eu estava muito incerto e desajeitado em meus movimentos.

A casa, na verdade, consistia de dois andares e aquele que eu devia ocupar ficava por cima. Pareceu-me tão estranho, entrar em um lar inglês daquela maneira! Subindo as escadas um tanto íngremes, segurando-me ao corrimão para impedir que caísse de costas... Meus membros pareciam de borracha, como se eu não tivesse controle completo sobre eles — e era exatamente o que ocorria, pois para adquirir controle completo sobre aquele corpo estranho foram precisos alguns dias. Os dois lamas pairavam ao redor, demonstrando grande preocupação, mas, naturalmente, nada havia que pudessem fazer. Logo me deixavam, prometendo regressar às primeiras horas da noite.

Devagar, entrei no dormitório que era o meu, cambaleando como um sonâmbulo, sacudindo-me como um homem mecânico. Com enorme satisfação, caí sobre o leito. Finalmente, consolei-me pensando que não seria mais possível cair! As janelas davam para a frente e para a parte traseira da casa. Voltando a cabeça para a direita, eu podia ver pelo jardim dos fundos a estrada e o pequeno hospital do outro lado, visão essa que eu não achava reconfortante, na situação em que me encontrava.

No outro lado do quarto havia uma janela pela qual, voltando a cabeça para a esquerda, eu podia ver o jardim maior. Estava descuidado, e a grama crescia em montes, como em um prado. Arbustos separavam o jardim de uma casa do jardim da outra, ao lado. Na extremidade da faixa de grama havia uma fileira de árvores com troncos tortos e uma cerca de arame. Mais além, eu podia ver o contorno de construções de uma fazenda, e um rebanho de vacas pastando por perto.

Fora de minha janela, ouvia vozes, mas eram vozes tão inglesas que achei quase impossível entender o que diziam. O inglês que eu aprendera antes fora principalmente americano e canadense, e ouvir as sílabas com sotaque estranho, da velha escola britânica, causava-me perplexidade. Minha própria fala era difícil, como verifiquei. Quando quis falar, emiti apenas um coaxar ininteligível, e as cordas vocais pareciam grossas e estranhas.

Aprendi a falar devagar e a visualizar, antes, o que ia dizer depois. Eu me inclinava a dizer “tchá”, ao invés de “chá”, chamando “John” de “Tchon” e cometendo erros semelhantes. Às vezes eu próprio quase não entendia o que estava dizendo!

Aquela noite, os lamas em viagem astral voltaram e afastaram minha tristeza, dizendo que, agora, acharia as viagens astrais ainda mais fáceis do que antes. Disseram-me, também, a respeito de meu corpo tibetano solitário, que o mesmo estava guardado num caixão de pedra, a salvo e sob os cuidados incessantes de três monges. As pesquisas feitas na literatura antiga — disseram-me eles — haviam demonstrado que seria fácil, para mim, ter novamente meu próprio corpo, mas que a transferência completa levaria algum tempo.

Por três dias permaneci no quarto, descansando, praticando movimentos e acostumando-me à nova vida. Ao anoitecer do terceiro dia eu andei, sem grande firmeza, e fui para o jardim, sob a proteção da escuridão. Verifiquei, então, que começava a controlar o corpo, embora houvesse momentos inexplicáveis, quando um braço ou perna deixava de atender aos comandos. Na manhã seguinte, a mulher, que agora era conhecida por minha esposa, veio dizer:

— Você deve ir à bolsa de trabalho hoje, para ver se eles têm algum emprego para você.

Bolsa de trabalho? Por algum tempo essas palavras nada significaram para mim, até que ela utilizasse a expressão “Ministério do Trabalho”, quando pude compreender. Eu jamais estivera num lugar assim, e não fazia ideia de como me portar ou o que fazer por lá. Fiquei sabendo, por causa da conversa, que se encontrava em algum lugar perto de Hampton Court, mas o nome era Molesey.

Por algum motivo que não pude compreender, não tinha direito a solicitar qualquer pensão de desemprego. Mais tarde, verifiquei que se uma pessoa deixasse voluntariamente o emprego, por mais desagradável ou ilógico que ele fosse, não teria direito a tal pensão, nem mesmo se houvesse contribuído para ela durante vinte anos seguidos. Bolsa de trabalho! Eu pedi:

— Ajude-me a apanhar a bicicleta, e eu irei.

Juntos, descemos as escadas. Dirigi-me para a garagem, que estava cheia de móveis velhos, e lá estava a bicicleta, instrumento de tortura que eu só utilizara uma vez antes, em Chungking, quando descera o morro de qualquer maneira, antes de descobrir onde era o freio. Com muito cuidado, montei naquela engenhoca e saí oscilando pela estrada, em direção à ponte ferroviária, entrando à esquerda na encruzilhada. Um homem acenou alegremente e, querendo acenar-lhe de volta, eu quase caí.

— Você não está com bom aspecto — disse ele. — Vá com cuidado! Continuei pedalando, sentindo dores estranhas na perna. Prossegui e entrei à direita, como me fora ensinado, tomando a estrada mais larga para Hampton Court. Enquanto seguia, minhas pernas, de repente, deixaram de atender a meus comandos; eu consegui atravessar a estrada, e caí ao chão.

A bicicleta ficou por cima de mim, sobre uma faixa de relva ao lado da estrada. Por momentos permaneci lá, muito abalado. Logo depois uma mulher, que estivera fazendo alguma coisa com seus tapetes, em frente da porta principal de sua casa, veio pela trilha, afobada, gritando:

— Devia ter vergonha, bêbado já tão cedo! Eu vi você! Estou com vontade de chamar a polícia!

Fez-me uma careta, voltou-se e regressou a casa, apanhou os tapetes e bateu com a porta o mais forte que pôde, ao entrar. “Ela não sabe de nada”, pensei. “Não sabe de nada!”

Fiquei ali por talvez vinte minutos, recobrando as forças. Várias pessoas chegaram à porta das casas e olharam. Outras vieram à janela, ou mesmo por trás das cortinas, e também olharam. Duas mulheres foram encontrar-se na cerca que separava seus jardins, e falaram a meu respeito com vozes rancorosas. Em nenhuma dessas pessoas eu percebi o menor sinal de que alguém me julgasse doente ou precisando de socorro.

Finalmente, com um esforço enorme, consegui ficar em pé, montar na bicicleta e seguir para Hampton Court.

 

A bolsa de trabalho era um edifício de aspecto desolador, situado numa pequena rua secundária. Eu segui de bicicleta, desci e comecei a caminhar para a estrada.

— Quer que roubem sua bicicleta? — perguntou alguém atrás de mim.

Eu me voltei para quem falava e indaguei:

— Por certo os desempregados não roubam uns dos outros, não acha?

— Você deve ser novo aqui. Ponha uma corrente com cadeado em sua bicicleta, ou terá de voltar para casa a pé.

Dizendo isso, quem falara deu de ombros e entrou no edifício. Eu me voltei e examinei o estojo de ferramentas da bicicleta, e, sim, lá estavam uma corrente e o cadeado. Ia passar a corrente em volta da roda, como vira os outros fazer, quando um pensamento horrível me ocorreu. Onde estava a chave? Rebusquei aqueles bolsos que não conhecia, e de lá saiu um molho de chaves.

Experimentando uma após outra, finalmente cheguei à que servia. Segui e entrei no edifício. Letreiros em papelão, com setas em tinta negra, indicavam o caminho. Segui à direita e entrei num gabinete onde havia bom número de cadeiras duras bem próximas umas das outras.

— Olá, professor! — disse uma voz. — Venha sentar-se perto de mim, enquanto espera sua vez.

Eu me virei para quem falava e segui até uma cadeira a seu lado.

— Você está com aspecto diferente, hoje — prosseguiu ele. — O que tem feito? Eu deixei que ele falasse, colhendo de suas palavras alguns fragmentos de informação. O funcionário da bolsa chamou alguns nomes, e diversos homens se levantaram e foram sentar-se perto dele. Foi chamado, também, um nome que me pareceu vagamente conhecido. “Será alguém que eu conheço?”, pensei. Ninguém se moveu e o nome foi chamado outra vez.

— Vá! É você que ele está chamando! — disse meu novo amigo.

Eu me ergui e fui em direção à sua mesa, sentando-me como vira os outros fazendo.

— Que há com você hoje? — perguntou o encarregado. — Vi-o entrando, depois não o vi mais, e pensei que se tinha ido embora.

Olhou-me cuidadosamente e acrescentou:

— Você está um pouco diferente. Não pode ser o modo de pentear o cabelo, pois você é calvo.

Depois disso, empertigou o corpo e aduziu:

— Não, não há nada para você. Melhor sorte na próxima vez. O seguinte, por favor.

Eu saí, sentindo-me acabrunhado. Pedalei de volta para Hampton Court. Lá, comprei um jornal e prossegui para a margem do Tâmisa. Era um lugar bonito, onde os londrinos costumavam aparecer nos fins de semana. Sentei-me na grama, de costas para uma árvore, e li as colunas de empregos.

— Nessa bolsa você não arranja emprego nenhum! — disse uma voz, e um homem saiu da trilha, vindo sentar-se a meu lado.

Apanhando uma folha comprida de relva, passou a mastigá-la com ar pensativo, fazendo-a passar de um a outro lado da boca.

— Eles não pagam pensão nenhuma pra você, sabe? Por isso eles também não tratam do seu caso. Eles dão os empregos pra quem eles têm de pagar pensão. Assim, eles economizam a gaita. Se eles dessem o emprego pra você, ia ser preciso continuar sustentando outro cara na pensão e o governo criava um grande caso, entendeu?

Eu pensei sobre o que o homem dizia e achei que fazia sentido, embora seu palavreado causasse confusão em meu cérebro.

— Bem, o que você faria em meu caso? — perguntei.

— Eu?! Diabo! Eu não quero emprego nenhum! Eu já recebo a pensão, ela dá pro gasto e eu ainda ganho uns trocados por fora com uns bicos, sacou? Bem, se você está a fim de um emprego mesmo, vai falar com um dos birôs... Aqui... dá uma espiada.

Estendeu o braço e apanhou o jornal, deixando-me a imaginar o que poderia ser um “birô”. Quanta coisa havia a aprender, pensei. Como eu era ignorante em tudo que tinha a ver com o mundo ocidental! Molhando os dedos na língua, e resmungando as letras do alfabeto para si próprio, o homem percorreu as páginas.

— Aqui!... Está aqui! — exclamou em tom triunfal. — Birôs e emprego. Olha você mesmo. Com rapidez, examinei a coluna tão claramente indicada pela marca escura deixada por seu polegar sujo. Bureaux de empregos, Agências de empregos, Empregos.

— Mas isso é para mulheres! — comentei, desanimado.

— Ora! — disse ele. — Você não sabe ler. Aqui está dizendo homem e mulher. Ora, você vai lá e diz que quer emprego. Diz a eles que você quer trabalhar e que não gosta de conversa mole. Se você der moleza, eles te fazem de palhaço.

De tarde, saí apressadamente e fui ao centro de Londres. Subindo escadas em mau estado, num escritório de uma rua do Soho, fui ter com uma mulher muito pintada, de cabelos artificialmente louros e garras escarlates em lugar das unhas, sentada a uma mesa de metal, numa sala tão pequena que talvez tivesse servido antes de despensa.

— Eu quero um emprego — declarei.

Ela recostou-se à cadeira e me examinou friamente.Bocejando muito exibiu os dentes estragados e uma língua suja.

— Cume o nome? — disse, então. Fiquei olhando para ela, sem entender.

— Cume o nome? — repetiu ela.

— Eu sinto muito — declarei. — Mas não entendi sua pergunta.

— Qual — disse ela, suspirando, cansada. — Cê não fala inglês. Enche o negócio aí.

Dizendo isso, empurrou um questionário em minha direção, tirou a caneta, relógio, um livro e a bolsa da mesa e desapareceu, seguindo para alguma outra sala. Eu fiquei sentado, lutando com aquelas perguntas. Depois de muito tempo ela reapareceu e indicou, com o polegar, a direção de onde viera.

— Vai pra lá — ordenou.

Eu me ergui da cadeira e fui para uma sala um pouco maior. Lá estava um homem sentado a uma mesa inteiramente tomada de papéis. Ele mascava um charuto barato e fedorento, e tinha sobre a cabeça um chapéu manchado. Fez-me sinal para que tomasse a cadeira à sua frente.

— Está com seu dinheiro de registro? — perguntou. Meti a mão no bolso e tirei de lá a soma indicada no formulário. O homem a recebeu, contou-a duas vezes e a guardou em seu bolso.

— Onde estava servindo? — perguntou.

— Servindo? Eu estava na sala ali fora — respondi, inocentemente.

Para minha consternação, ele prorrompeu em gostosas gargalhadas.

— Ah, ah, ah! — rugia. — Eu pergunto “onde estava servindo”, ele diz “no gabinete ali fora”!...

Enxugando os olhos molhados de lágrimas de tanto rir, controlou-se com esforço e continuou:

— Olha, rapaz, você é engraçado pra burro, mas eu não tenho tempo a perder. Você sabe trabalhar de garçom ou não?

— Não — respondi. — Quero um emprego desses. — Dei-lhe uma lista escrita do que sabia fazer. — E agora — prossegui —, diga-me uma coisa: vocês podem ou não podem arranjar-me algo? Ele fechou a cara, enquanto examinava a lista.

— Bem, não sei — disse, em tom duvidoso. — Você fala como médico... Olha, a gente vai ver o que dá pra fazer. Volte daqui a uma semana.

Com isso, acendeu o charuto, que se apagara, pôs os pés sobre a mesa, apanhou um jornal de corridas de cavalos e começou a ler. Eu saí, decepcionado, passando pela mulher pintada, que me olhou com ar altivo e um fungado do nariz. Desci as escadas que rangiam e fui para a rua.

Não muito distante dali havia outra agência. Segui para lá. Meu coração confrangeu-se à vista da entrada. Uma porta lateral, escadas de madeira sem passadeira, paredes sujas das quais a tinta se soltava. Lá em cima, no segundo andar, abri uma porta onde havia um letreiro: Entre. No interior, a sala era grande, estendendo-se por toda a largura do edifício. Mesas em mau estado encontravam-se enfileiradas e em cada uma havia um homem ou uma mulher, com uma pilha de fichas diante de si.

— Sim? Em que posso ser útil? — disse uma voz a meu lado.

Voltando-me, vi uma mulher que podia ter uns setenta anos de idade, embora parecesse mais velha ainda. Sem esperar que eu dissesse, entregou-me um questionário, com o pedido de que o preenchesse e entregasse à moça em uma das mesas. Eu logo preenchi todos os itens, dando detalhes numerosos e muito pessoais, levando o papel depois à moça, como fora indicado. Sem mesmo olhar o papel ela disse:

— Pode pagar-me a taxa de registro agora.

Paguei, achando que eles tinham um meio fácil de ganhar dinheiro. Ela o contou com cuidado, passou-o por uma fresta a outra mulher, que também o conferiu. Depois, deram-me um recibo. A primeira moça levantou-se e indagou:

— Alguém está livre? Um homem, sentado a uma mesa mais distante, levantou letargicamente a mão. A moça voltou-se para mim e disse: — Aquele cavalheiro o receberá.

Fui ter com ele, passando entre as mesas. Por algum tempo ele não me deu atenção, continuando a escrever. Depois estendeu a mão. Eu a apertei, mas ele logo a retirou com um safanão, dizendo com irritação:

— Não, não! Eu quero ver o seu recibo! O recibo, entendeu?

Examinando-o bem, virou-o para o outro lado e examinou igualmente o reverso, onde nada fora escrito. Voltando a ler a parte dianteira, pareceu achar que se tratava de um recibo autêntico, afinal de contas, pois disse:

— Quer sentar-se?

Para meu espanto, apanhou um novo formulário, fez-me as perguntas e me pediu as respostas para tudo quanto eu escrevera antes. Jogando o formulário que eu preenchera na cesta de papéis, e pondo o dele na gaveta, disse então:

— Volte aqui dentro de uma semana, e nós veremos o que se pode fazer.

Dito isso, voltou a escrever, e pude notar que se tratava de uma carta pessoal que ele mandava a alguma mulher!

— Ei! — disse eu, em voz alta. — Eu quero que trate do caso agora!

— Ora, meu caro! — disse ele, protestando. — Nós não podemos fazer as coisas tão depressa. Nós temos um sistema, entendeu como é? Um sistema!

— Bem — retruquei —, eu quero um emprego agora, ou o meu dinheiro de volta.

— Ora, ora! — suspirou ele. — Que coisa horrível.

Com um olhar rápido à minha expressão decidida, suspirou novamente e começou a abrir gaveta após gaveta, como a procurar ganhar tempo, enquanto pensava no que ia fazer em seguida. Uma das gavetas ele puxou demais, e houve um estrondo, caindo ao chão todos os tipos de objetos pessoais. Uma caixa com seus mil clipes de papel esparramou-se no chão. Nós começamos a apanhar as coisas e fomos atirando-as sobre a mesa.

Finalmente, tudo estava apanhado e guardado na gaveta.

— Gaveta dos diabos! — disse ele, em tom resignado. — Sempre sai do lugar, desse jeito. Os outros caras já estão acostumados, eu não.

Por algum tempo, permaneceu sentado, examinando as fichas, e depois os maços de documentos, sacudindo a cabeça negativamente enquanto os jogava para um lado, apanhando outros.

— Ah! — disse, finalmente, e fez silêncio. Minutos depois, afirmou: — Sim, sim, eu tenho um emprego para você!

Percorreu os papéis com os olhos, mudou de óculos e estendeu a mão, sem atenção, para uma pilha de fichas. Apanhando a de cima, colocou-a à sua frente e começou, devagar, a escrever.

— Bem, onde é, mesmo? Ah! Clapham! Você conhece Clapham? Sem esperar que eu respondesse, prosseguiu: — É um laboratório fotográfico. Você vai trabalhar de noite. Os fotógrafos de rua, em West End, trazem os filmes de noite e apanham as revelações e cópias de manhã. Hum... Sim, sim, deixe ver.

Prosseguiu em seu exame dos papéis, dizendo:

— Às vezes vai ser preciso você mesmo trabalhar em West End, com a máquina fotográfica, para substituir outro. Agora, leve o cartão a esse endereço que está escrito aí, e fale com o homem — disse, apontando o cartão onde escrevera.

Clapham não é um dos bairros mais limpos de Londres, e o endereço a que fui, uma rua pequena e suja nos cortiços adjacentes aos desvios ferroviários, era um lugar muito mal-afamado, na verdade. Eu bati à porta de uma casa da qual a tinta se estava soltando, e também em uma janela, onde a vidraça fora “consertada” com papel gomado. A porta abriu-se um pouco e uma mulher de aspecto relaxado espiou, os cabelos caídos sobre o rosto.

— Quem é? Quer falar com quem? — indagou. Eu respondi e ela voltou-se, gritando então: — Harry! Querem falar com você! Retirando-se fechou a porta, deixando-me do lado de fora.

Mais tarde a porta se abriu e um homem de fisionomia truculenta apareceu. Estava barbado, sem colarinho, cigarro pendendo do lábio inferior. Os dedões dos pés surgiam em grandes buracos nos chinelos de feltro que usava.

— Pode falar-me sobre o emprego? — perguntei. Eu entreguei o cartão do Bureau de Empregos.

Ele o tomou, olhou por todos os lados, olhou para mim, voltou ao cartão e disse:

— Estranja, hem? Tem muitos em Clapham. Não são tão bobos como nós, ingleses.

— Pode falar-me sobre o emprego? — perguntei.

— Agora, não — disse ele. — Tenho de ver você primeiro. Entre. Eu estou no prão.

Dizendo isso, voltou-se e sumiu! Entrei na sala com enorme perplexidade. Como podia ele estar no “prão”, se estivera em minha frente? E, afinal, que “prão” era esse? O corredor da entrada da casa era escuro. Fiquei lá, sem saber para onde ir. De repente pulei assustado, quando uma voz se fez ouvir a meu lado, parecendo vir de meus pés:

— Ei, cara! Não vai descer? O ruído de pés era audível, e a cabeça do homem surgiu de uma porta de porão, que eu não observara. Eu o acompanhei, descendo escadas que rangiam e receando cair a qualquer momento.

— Está aqui o troço — disse o homem, em tom de orgulho.

Uma pequena lâmpada, fraca, âmbar, brilhava em meio ao ambiente tomado por fumaça de cigarro. A atmosfera era abafada. Encostado a uma parede havia um banco com uma pia. Várias bacias de colocar fotografias ali se encontravam enfileiradas. Sobre a mesa ao lado havia um ampliador surrado, enquanto sobre outra mesa, coberta por uma folha de chumbo, havia uma série de vidros grandes.

— Eu sou Harry — disse o homem. — Prepare suas soluções para eu ver se você entende do negócio. Como complemento, aduziu: — Nós sempre usamos o Contrasty Johnson, que fica muito bom.

Harry pôs-se a um lado, riscou um fósforo no traseiro das calças, para acender o cigarro. Com rapidez, preparei tudo: soluções, revelador, fixador, etc.

— Ok — disse ele. — Agora, apanhe aqueles filmes e tire umas cópias.

Eu ia fazer uma fita contínua de prova, mas ele interveio:

— Não, não. Não gaste papel. Espere cinco segundos.

Harry ficou satisfeito com o que eu fiz.

— Nós pagamos por mês, rapaz. Não faça fotos de nus. A gente não quer barulho com a polícia. Entregue os nus todos pra mim. Alguns rapazes da turma ficam com outras ideias às vezes e entregam uns nus especiais pra alguns fregueses especiais. Entregue tudo pra mim, viu? Bom, você começa hoje de noite às dez horas e sai às sete da manhã. Ok? Então, está fechado o negócio!

Aquela noite, pouco antes das dez horas, segui pela rua suja, procurando ver os números em meio àquela penumbra em que tudo se encontrava mergulhado. Cheguei à casa e subi os degraus imundos, até a porta em muito mau estado. Bati e recuei, esperando, mas não por muito tempo. A porta foi escancarada, com um ranger de dobradiças. Lá estava a mesma mulher que me atendera anteriormente. Era a mesma mulher, porém ao mesmo tempo diferente. Seu rosto estava empoado, os cabelos cuidadosamente penteados, o rosto pintado, e o vestido quase transparente, com a luz vinda de trás, mostrava suas formas rijas e com detalhes claros. Ela dirigiu um sorriso amplo e dentuço para mim, e disse:

— Pode entrar, querido. Meu nome é Marie. Quem mandou você? Sem esperar resposta, inclinou-se em minha direção, exibindo no vestido um decote perigoso, e prosseguiu:

— Trinta xelins por meia hora, ou três libras pela noite toda. Eu conheço truques, querido!

Enquanto eu me adiantava para entrar, a luz da sala iluminou meu rosto. Ela viu minha barba e me olhou com raiva.

— Ah, é você! — disse, em tom gelado, e o sorriso desapareceu de sua face, assim como o giz some do quadro-negro quando se passa um pano molhado. Ela resmungou: — Perdendo o meu tempo! Olhe aqui! Aqui, você! Vai ter de arranjar uma chave. Em geral estou ocupada, a esta hora da noite.

Eu me voltei, fechei a porta pela qual entrara e desci para o porão. Havia pilhas de filmes a revelar, e me pareceu que todos os fotógrafos de Londres haviam deixado ali seus filmes para esse fim.

Trabalhei naquela escuridão estígia, abrindo rolos de filme, prendendo-os em grampos e colocando-os no tanque. Tique-taque-tique-taque, era o ruído do medidor de tempo. De repente, uma campainha soou anunciando que os filmes estavam prontos para o banho de parada. O ruído inesperado fez-me dar um pulo, e bati com a cabeça em uma viga mais baixa. Tirei os filmes, coloquei-os no banho de parada por dois minutos e em seguida no fixador. Outro banho, desta vez no eliminador de hipossulfito, e os filmes estavam prontos para lavar. Enquanto isso era feito, acendi a luz âmbar e ampliei alguns negativos.

Duas horas mais tarde, os filmes estavam todos revelados, fixados, lavados e haviam sido secados com álcool metílico. Por horas seguidas, fiz progressos rápidos com o trabalho. Estava, também, ficando com fome. Olhei ao redor e não via meio pelo qual esquentar uma chaleira, nem mesmo uma chaleira com que ferver a água, por isso me sentei e abri o embrulho de sanduíches.

Também lavei cuidadosamente um copo, usado no trabalho de revelação, para beber água. Pensei na mulher lá em cima, imaginando que ela estivesse bebendo um belo chá quente e desejando que me trouxesse uma chávena.

A porta no patamar das escadas foi aberta com estrondo, deixando entrar luz. Apressadamente saltei, para cobrir um embrulho aberto de papel fotográfico, evitando que a luz o estragasse, enquanto uma voz berrava:

— Ei, você aí! Quer uma xícara? Os negócios estão maus, hoje. Eu fiz um bule para mim, antes de deitar. Não consegui deixar de pensar em você. Deve ter sido telepatia.

Ela riu da piada que fizera e desceu estrepitosamente as escadas. Depositando a bandeja a um canto, sentou-se em um banco de madeira, respirando com barulho.

— Puxa! — comentou. — Aqui está quente! Abriu a correia do camisolão, e depois abriu o camisolão. Para meu horror, não tinha peça alguma por baixo! Viu minha expressão e deu uma risada.

— Não estou querendo nada com você. Você tem outras revelações em suas mãos, hoje.

Pôs-se em pé, o camisolão caiu no chão, e estendeu a mão para a pilha de cópias que secavam.

— Puxa! — exclamou, examinando-as. — Que caras! Não sei por que esses bichos mandam tirar retratos.

Sentou-se novamente, abandonando o camisolão aparentemente sem qualquer constrangimento.

Fazia calor ali, mas estava ficando ainda mais quente!

— Você acredita em telepatia? — perguntou.

— Claro que sim! — respondi.

— Bem, eu vi um espetáculo no Palladium, e lá eles faziam telepatia. Eu disse que era tudo de verdade, mas o cara com quem eu fui disse que aquilo era tudo mistificação.

Há uma lenda oriental a respeito de um viajante no grande deserto de Gobi, cujo camelo morrera. O viajante se arrastava, quase morrendo de sede. À sua frente, viu o que parecia ser um odre de água, uma pele de bode cheia de água, carregada por viajantes. Apressando-se desesperadamente, aproximou-se da pele, inclinou-se para beber, e verificou que era apenas uma pele cheia de diamantes, que algum outro viajante sedento abandonara para aliviar a carga. Assim são as coisas no Ocidente — as pessoas procuram riquezas materiais, progresso técnico, foguetes com potencial maior, aeronaves sem piloto e efetuam investigações no espaço. Os valores verdadeiros, como a viagem astral, a clarividência e a telepatia, são por eles tratados com desconfiança, acreditando que se trate de mistificação ou coisas de teatro.

Quando os ingleses estiveram na Índia, ficou bem sabido que os indianos podiam enviar mensagens a longas distâncias, informando a respeito de rebeliões, chegadas próximas ou quaisquer notícias de interesse. Tais mensagens percorriam o país em questão de horas. O mesmo foi observado na África e era conhecido como “telégrafo da selva”. Com o treinamento, não seriam necessários os fios de telégrafo! Não seriam necessários os telefones para abalar-nos os nervos. As pessoas poderiam mandar as mensagens mediante suas próprias capacidades inatas. No Oriente têm decorrido séculos de estudo de tais questões; os países orientais estão “harmonizados” com a ideia, e não existe pensamento negativo que impeça o funcionamento dos dons da natureza.

— Marie — disse eu. — Vou mostrar-lhe um pequeno truque que demonstra a telepatia, ou o domínio do espírito sobre a matéria. Eu sou o espírito, você a matéria.

Ela olhou-me com desconfiança, até mesmo com raiva momentânea, depois respondeu:

— Legal. Estou sempre a fim de algum divertimento.

Concentrei meu pensamento em sua nuca, imaginando que uma mosca a mordia. Visualizei a mosca mordendo. Marie, de repente, desferiu um tapa na nuca, utilizando um palavrão para descrever o inseto que a atacava. Eu visualizei a mordida tornando-se mais forte e, então, ela olhou para mim e riu.

— Puxa! — comentou. — Se eu soubesse fazer isso, havia de me divertir com uns caras que me vêm visitar!

Noite após noite eu fui àquela casa tão mal cuidada, numa rua tão sem graça. Com frequência, quando Marie não se encontrava ocupada, ela descia com um bule de chá e ouvia o que eu tinha a dizer. Gradualmente, percebi que sob seu exterior duro, e a despeito da vida que levava, ela era uma mulher muito bondosa para quem estivesse em necessidade. Falou-me sobre o homem que me empregara e preveniu-me para estar na casa bem cedo, no dia do pagamento.

Noite após noite, revelei filmes e fiz cópias, deixando tudo pronto para ser apanhado de manhã. Durante todo um mês não vi outra pessoa senão Marie e, no dia 31, permaneci até mais tarde. Por volta das nove horas da manhã um indivíduo de aspecto esquivo desceu ruidosamente a escada sem passadeira. Parou quando chegou ao chão e olhou para mim com franca hostilidade.

— Está pensando que vai receber primeiro? — rosnou. — Você trabalha de noite. Vá dando o fora daqui.

— Irei quando estiver pronto, não antes — retruquei.

— Você, seu....! Vou-lhe ensinar a não se meter comigo!

Passou a mão em um vidro, quebrou o gargalo na parede e atirou-se a mim com a ponta cortante visando diretamente meu rosto. Eu estava cansado e bastante amolado. Aprendera a lutar com alguns dos maiores conhecedores da arte no Oriente. Desarmei o sujeitinho com facilidade e o pus sobre os joelhos, aplicando-lhe a maior surra de palmadas que ele já levara em sua vida. Marie, ouvindo os gritos, saiu correndo da cama e, vendo aquilo, sentou-se na escada, saboreando a cena! O homem já chorava de verdade, de modo que eu o enfiei de cabeça no tanque de lavar filmes, para lavar-lhe as lágrimas e impedir o fluxo de palavras obscenas que saía de sua boca.

Quando o deixei pôr-se em pé, adverti:

— Fique naquele canto, e, se se mexer antes de receber permissão, levará outra surra! Ele ali ficou, e não se mexeu.

— Puxa! Isso foi um espetáculo para os olhos! — disse Marie. — Esse sujeitinho é líder de uma quadrilha do Soho. Você o assustou, e ele pensava que era o maior lutador de todos os tempos!

Permaneci sentado, esperando. Meia hora depois, o homem que me empregara desceu as escadas e ao ver-nos, a mim e ao gangster, empalideceu.

— Quero meu dinheiro — disse eu.

— O mês foi fraco, e eu não tenho dinheiro. Tive de pagar proteção a ele — disse, apontando para o gangster.

Olhei para ele com expressão feroz.

— Você pensa que estou trabalhando neste buraco malcheiroso de graça? — indaguei.

— Dá um tempo. Eu vou ver o que posso arranjar. Ele — apontou o homem — leva todo o meu dinheiro, e se eu não pagar ele cria caso para os fotógrafos.

Sem dinheiro, e sem grandes esperanças de consegui-lo! Concordei em continuar mais duas semanas para dar ao “chefe” tempo suficiente para conseguir o dinheiro em alguma parte. Com tristeza, deixei a casa, pensando em minha sorte por seguir de bicicleta para Clapham, economizando as passagens. Quando ia tirar a corrente da bicicleta, o gangster apareceu furtivamente a meu lado.

— Escuta, rapaz! — murmurou. — Quer um bom emprego? Tomar conta de mim. Vinte libras por semana, sem desconto.

— Saia de perto, seu porcaria! — respondi, azedo.

— Vinte e cinco libras por semana!

Quando eu me voltei para ele, exasperado, afastou-se com agilidade, resmungando ainda:

— Pois que seja trinta. Trinta libras! É tudo que posso dar. Todas as mulheres que quiser, mais a bebida toda que puder beber. Que tal, cara?

Vendo minha expressão, pulou sobre o corrimão do porão e desapareceu, embarafustando no quarto de alguém. Eu me voltei, montei na bicicleta e saí. Por quase três meses, permaneci naquele emprego, revelando filmes e, de vez em quando, indo para a rua como fotógrafo, mas nem eu nem os demais fomos pagos. Finalmente, desesperados, largamos tudo. A essa altura, já nos havíamos mudado para uma daquelas praças duvidosas, no bairro de Bayswater, e eu visitava uma bolsa de trabalho após outra, na tentativa de obter emprego.

Finalmente, e talvez para se ver livre de mim, um funcionário disse:

— Por que não vai à Seção de Empregos de Alto Nível, em Tavistock Square? Eu lhe darei um cartão.

Com esperança, fui a Tavistock Square, e lá recebi promessas formidáveis. Eis algumas:

— Por Deus, sim! Podemos dar-lhe um lugar perfeito! Estamos precisando de um homem para uma nova estação de pesquisa atômica em Caithness, na Escócia. Quer ir lá para uma entrevista?

Dando a impressão de eficiência, o homem remexia nos papéis que tinha à sua frente.

— Eles pagam as despesas de viagem? — indaguei.

— Oh, não! — foi a resposta enfática. — Você terá de ir às suas custas.

Em outra ocasião viajei — às minhas custas — para Cardigan, no País de Gales. Precisavam de um homem com conhecimentos de engenharia civil. Pagando as despesas, atravessei a Inglaterra e cheguei ao País de Gales A estação ferroviária ficava a uma distância imensa do local da entrevista. Segui pelas ruas de Cardigan, a pé, e cheguei ao outro lado da cidade.

— Ah, moço! Ainda falta muito para chegar lá, pode acreditar! — disse a mulher de aspecto agradável, a quem fui pedir orientação.

Prossegui andando e finalmente cheguei à entrada de uma casa coberta por árvores. O caminho de acesso era bem cuidado, e bastante íngreme, subindo o morro. Cheguei à casa e o amável homem com quem falei examinou meus documentos (que me haviam sido enviados de Xangai). Examinou-os e assentiu com aprovação.

— Com documentos assim, não devia ter dificuldades em encontrar emprego — comentou. — Infelizmente, vejo que não tem experiência de contratos de engenharia civil na Inglaterra. Assim sendo, não lhe posso oferecer um lugar. Mas, diga-me uma coisa — prosseguiu. — Se é médico formado, por que estudou também engenharia civil? Vejo que tem o bacharelado de engenharia.

— Como médico, eu iria viajar para lugares distantes, e queria estar capacitado a construir meu próprio hospital — expliquei.

— Hum! — resmungou ele. — Queria poder ajudá-lo, mas não é possível.

Saí pelas ruas de Cardigan, voltando à desolada estação ferroviária. Houve uma espera de duas horas até a chegada do. trem, mas finalmente cheguei a casa para informar, mais uma vez, que nada conseguira. No dia seguinte, regressei à agência de empregos. Lá estava o homem à sua mesa. Fiquei imaginando se ele, afinal de contas, era capaz de algum movimento. Ouvi-o dizendo:

— Quer saber de uma coisa, meu velho? Não dá pra gente conversar aqui. Me convida pra almoçar, daí talvez eu possa dizer-lhe alguma coisa, tá?

Por mais de uma hora esperei na rua, espiando pela janela e desejando que meus pés parassem de doer. Um policial londrino me observava com ar azedo, do outro lado da rua, aparentemente sem conseguir resolver se eu era um indivíduo inofensivo ou um possível assaltante de bancos. Talvez os pés dele estivessem doendo também! Finalmente o homem separou-se de sua mesa e desceu com estardalhaço a escada de degraus inseguros.

— Um Setenta e Nove, meu velho! Vamos tomar um Setenta e Nove! Eu sei de um lugarzinho de preço bem moderado, pela comida que serve.

Subimos a rua, apanhamos um ônibus 79 e chegamos a nosso destino, um daqueles restaurantes numa pequena travessa logo depois de uma rua principal, e onde, quanto menor a instalação, tanto maior a conta. O homem-sem-a-sua-mesa e eu comemos. Eu, fazendo uma refeição bem frugal, ele uma bem ampla. E, depois, com um suspiro de satisfação, ele disse:

— Sabe, meu velho? Vocês querem conseguir bons empregos. Mas já pensou que, se os empregos fossem bons mesmo, nós seríamos os primeiros a ficar com eles? Os nossos próprios empregos não permitem que a gente viva em conforto, sabe?

— Bem — respondi —, deve haver um meio de obter emprego nesta cidade de ignorantes, ou fora dela.

— O seu problema é que você tem um aspecto diferente, você atrai atenção. Parece doente, também. Talvez fosse bom você raspar essa barba.

Dizendo isso, olhou para mim com ar pensativo, imaginando obviamente como fazer a despedida mais graciosa possível. De repente, consultou o relógio e pôs-se em pé, parecendo assustado.

— Puxa, rapaz! Eu preciso sair voando! O patrão vai estar de olho, sabe? Bateu em meu braço, e disse:

— Pois é, pois é. Não perca dinheiro falando com a gente. Nós não temos trabalho, a não ser para garçons, ou coisa parecida! Esclarecido isso, voltou-se e sumiu, deixando-me para pagar sua conta bem alta.

Saí e fui andando pela rua. Na falta de coisa melhor a fazer, examinei pequenos anúncios afixados em vitrinas. Viúva jovem, com filho, quer trabalhar... Homem capaz de fazer entalhes de primeira procura biscates... Mulher massagista faz tratamentos em casa... (Eu aposto que fazia, mesmo!) Enquanto me afastava, pensei no caso. Se as agências, os bureaux, as bolsas de trabalho e tudo o mais que lidava com os desempregados não me podiam ajudar, por que eu não punha um anúncio numa vitrina? “E por que não?”, pareciam indagar meus pobres pés cansados, enquanto seguiam pelo pavimento duro.

Aquela noite, em casa, vasculhei o cérebro, procurando calcular como ganhar dinheiro suficiente para levar em frente as pesquisas com a aura. Finalmente, datilografei seis cartões, dizendo: Médico, sem registro na Inglaterra, oferece-se para casos psicológicos. Indagar aqui. Preparei outros seis, dizendo: Profissional com muitas viagens, habilitação científica, oferece serviços para qualquer coisa incomum. Referências excelentes. Escrever para a caixa... No dia seguinte, com os anúncios exibidos em pontos estratégicos de vitrinas em lojas de Londres, sentei-me para aguardar o resultado. Eles vieram.

Consegui trabalho psicológico suficiente para sustentar as débeis chamas de nossas finanças. Como atividade suplementar, eu fazia publicidade avulsa, e uma das maiores firmas farmacêuticas da Inglaterra deu-me trabalho de meio expediente. Seu diretor, homem muito generoso e humano, e médico, com quem estive, ter-me-ia aceito como empregado, não fora o Plano de Seguro do Pessoal, que estava em vigor. Eu tinha idade demais, e estava muito doente. O esforço por apossar-me do corpo era terrível, e o esforço por trocar as moléculas do corpo “novo” por aquelas de meu próprio era quase mais do que eu conseguia aguentar, mas ainda assim, no interesse da ciência, eu prossegui.

Com mais frequência do que antes eu viajava no astral, agora, indo ao Tibete, o que fazia de noite ou nos fins de semana, quando não seria perturbado, pois perturbar o sono de alguém que esteja em viagem astral pode, com facilidade, tornar-se fatal. O meu consolo estava em desfrutar a companhia daqueles altos lamas, que podiam ver-me no astral, e minha recompensa se encontrava no modo pelo qual louvavam os meus atos.

Em uma dessas visitas, eu deplorava a morte de um animal muito estimado, um gato cuja inteligência faria envergonhar muitos seres humanos. Um velho lama, em minha companhia no astral, sorriu em solidariedade e disse:

— Meu irmão, você não se lembra da história da semente de mostarda?

A semente de mostarda. Sim! Como eu me lembrava bem, pois se era um dos ensinamentos de nossa fé! Uma pobre mulher, jovem, perdera seu primeiro filho e, quase enlouquecida de dor, percorria as ruas da cidade, suplicando que alguém ou alguma coisa trouxesse o filho de volta à vida. Algumas pessoas afastavam-se, sentindo piedade dela, outras zombavam e riam-se, chamando-a de louca por acreditar que o filho pudesse voltar à vida. Ela não se deixava consolar e ninguém conseguia achar palavras com que diminuir-lhe o sofrimento. Finalmente, um velho sacerdote, observando seu desespero completo, chamou-a e disse:

— “Existe apenas um único homem no mundo que poderá ajudá-la. É o Perfeito, o Buda, que mora no cimo daquela montanha. Vá falar com ele”.

A jovem mãe, inconsolável, o corpo doendo com o peso de sua dor, subiu lentamente a trilha da montanha, até chegar a uma volta, de onde viu o Buda, sentado em uma rocha.

Prostrando-se diante dele, ela gritou:

— “Oh, Buda! Traga meu filho de volta à vida”.

O Buda ergueu-se e tocou-a com suavidade, dizendo:

— “Desça à cidade. Vá de casa em casa, e traga-me uma semente de mostarda de uma casa onde ninguém tenha morrido”.

A mulher gritou, exultante, enquanto se punha em pé e apressava-se, descendo a montanha. Foi ter à primeira porta, e disse:

— “O Buda pede que eu leve uma semente de mostarda de uma casa que não tenha conhecido a morte”.

“Nesta casa”, foi a resposta que teve, “muitos já morreram.” Na casa seguinte, disseram: “É impossível contar quantos já morreram aqui, pois esta é uma casa antiga”.

Ela seguiu de porta em porta, por toda aquela rua, a rua seguinte, e mais outra. Quase sem parar para comer ou descansar, percorreu a cidade de casa em casa e não encontrou uma só que não tivera, em alguma época, sido visitada pela morte.

Devagar ela voltou, subindo a encosta da montanha. O Buda estava como antes, sentado, em meditação. “Você trouxe a semente de mostarda?”, indagou. “Não, e já não a procuro mais”, respondeu ela. “Meu pesar tornou-me cega, e eu pensei ser a única a sofrer e estar em dor.” “Nesse caso, por que voltou a ter comigo?”, perguntou o Buda. “Para pedir que me ensine a verdade”, disse ela.

E o Buda disse: “Em todo o mundo do homem, em todo o mundo dos deuses, somente esta é a lei: todas as coisas são impermanentes”.

Sim, eu conhecia todos os ensinamentos, mas a perda de um ser muito querido era, ainda assim, uma perda. O velho lama sorriu novamente e disse:

— Um pequeno ser, muito belo, irá ter com você para alegrar sua vida extraordinariamente difícil e dura. Espere!

Algum tempo depois, recebemos Lady Ku'ei em nossa casa. Era uma gatinha siamesa de grande beleza e inteligência formidável. Criada por nós como um ser humano, ela correspondeu, como um bom ser humano corresponderia, além de diminuir nossos pesares e aliviar a carga imposta pela traição humana.

O trabalho avulso, sem qualquer apoio legal, era realmente difícil e os clientes adotavam o ponto de vista de que “o Diabo ficou doente, o Diabo vira anjo; o Diabo ficou bom, volta a ser o Diabo!” As situações que os pacientes narravam para esquivar-se ao pagamento encheriam muitos livros e dariam trabalho demais aos críticos. Eu continuava em minha luta para encontrar emprego fixo.

— Oh! — disse um amigo. — Você pode escrever de modo avulso, para os outros! Já pensou nisso? Um amigo meu já escreveu uma porção de livros, que saem sob nome de outros, e eu vou apresentá-lo a ele.

Lá fui eu, a um dos grandes museus de Londres, ver esse amigo. Fui levado a seu gabinete, onde pensei estar no depósito do museu! Receava mexer-me, para não derrubar alguma coisa, de modo que permaneci sentado e cansei-me de esperar. Finalmente, o “amigo” apareceu.

— Livros? — perguntou. — Escrever em nome de outros? Eu vou pô-lo em contato com meu agente. Talvez ele o consiga para você.

Escreveu com diligência, depois entregou-me um pedaço de papel com um nome e um endereço. Quase antes que eu pudesse perceber o que aconteceu, já estava fora de seu gabinete.

“Bem”, pensei, “será mais uma tentativa inútil?” Olhei o papel que tinha à mão. Regent Street? Bem, em que parte da rua ficaria aquilo? Saí do trem em Oxford Circus e, com minha sorte habitual, verifiquei estar na extremidade errada! Regent Street mostrava-se cheia de gente que parecia movimentar-se ao redor da entrada das grandes lojas. Uma Brigada de Meninos, ou banda do Exército da Salvação — não sei qual — marchava ruidosamente pela Conduit Street. Eu prossegui, passei pela Goldsmith and Silversmith Company, pensando em como um pouco de suas mercadorias poderia capacitar-me a prosseguir as pesquisas. Onde a rua fazia uma curva para entrar em Piccadilly Circus eu a atravessei e procurei aquele número. Agência de viagens... Sapataria...

Nada de agência de autores. Aí, vi o número, apertado entre duas lojas. Entrei e vi-me num pequeno corredor, na extremidade do qual havia uma pequena porta de elevador, aberta. Lá estava a campainha, de modo que a toquei. Nada aconteceu. Esperei, talvez, cinco minutos, e voltei a apertar o botão.

Ouvi o ruído de passadas.

— Tirou-me do depósito! — disse uma voz. — Eu estava tomando uma chávena de chá. Qual é o andar?

— O Sr. B. — respondi. — Não sei qual é o andar em que fica.

— Ah! É o terceiro — disse o homem. — Ele está lá, sim. Eu o levei pra cima. É aqui — disse, abrindo a porta de ferro. — À direita, segunda porta.

Dito isso, desapareceu, voltando, naturalmente, ao seu chá. Empurrei a porta indicada e apareceu um pequeno balcão.

— O Sr. B.? — perguntei. — Tenho uma entrevista com ele.

A moça de cabelos escuros saiu, à procura do Sr. B. Olhei ao redor. No outro lado do balcão havia moças tomando chá. Um homem de idade recebia instruções sobre como despachar um embrulho. Havia, atrás de mim, uma mesa com algumas revistas — como em uma sala de espera de dentista, pensei. Sobre a parede, o anúncio de alguns editores. O espaço parecia tomado por embrulhos de livros, e folhas datilografadas achavam-se empilhadas, ao lado de uma parede distante.

— O Sr. B. receberá o senhor dentro de um minuto — disse a moça de cabelos escuros. Sorri e agradeci.

Nesse momento, abriu-se uma porta lateral e o Sr. B. Veio ter comigo. Olhei para ele com interesse, pois era o primeiro agente de escritores que vira até então, ou de que ouvira falar! Usava barba e eu pude visualizá-lo como um velho mandarim chinês. Embora fosse inglês, apresentava os modos dignos e corteses de um chinês idoso e educado, algo que não se encontra no Ocidente.

O Sr. B. veio, apertou minha mão, e fez-me entrar por uma porta lateral, através da qual chegamos num aposento bem pequeno, que me fez pensar em uma cela de prisão sem as barras de ferro na janela.

— O que posso fazer pelo senhor? — perguntou ele.

— Eu quero um emprego — respondi.

Ele fez perguntas a meu respeito, mas eu podia ver, por sua aura, que não tinha emprego algum, mostrando-se cortês por causa do homem que me apresentara. Mostrei-lhe meus documentos chineses e sua aura demonstrou interesse. Ele os apanhou, examinando com o máximo cuidado, e disse:

— O senhor devia escrever um livro. Eu acho que posso agenciar um livro para o senhor.

Isso, para mim, foi um choque, que me agitou bastante; eu, escrever um livro? Eu? A meu respeito? Olhei para sua aura, cuidadosamente, para ver se estava falando sério ou se era apenas um modo delicado de me despedir. A aura mostrara que ele falava a sério, mas que tinha dúvidas quanto à minha capacidade de escrever. Quando eu saía, suas últimas palavras foram:

— O senhor realmente devia escrever um livro.

— Ora! Não fique tão triste — disse o ascensorista. — O sol está brilhando, lá fora. Ele não quis o seu livro?

— O problema é exatamente esse — respondi, enquanto saía. — Ele queria o livro, sim.

Segui a pé pela Regent Street, achando que todos estavam doidos. Eu, escrever um livro? Ora, que coisa doida! Tudo quanto queria era algum dinheiro para nos sustentar e que desse para efetuar pesquisas sobre a aura, e todas as ofertas que tinham eram para escrever um livro tolo, acerca de mim mesmo! Algum tempo antes eu respondera a um anúncio, onde procuravam um redator técnico para livros de instrução ligados à aeronáutica. Pelo correio da tarde, recebi uma carta, pedindo-me que fosse a uma entrevista no dia seguinte. “Ah!”, pensei. “Talvez consiga esse emprego em Crawley, afinal de contas!”

Cedo, no dia seguinte, quando tomava o café da manhã, antes de seguir para Crawley, uma carta foi posta na nossa caixa de correio. Era enviada pelo Sr. B., e dizia: Deve escrever um livro. Pense bastante nisso e volte a me procurar. “Ora, bolas!”, pensei. “Seria detestável escrever um livro!” Segui para a estação de Clapham, a fim de apanhar um trem para Crawley.

O trem foi o mais lento de que me posso lembrar. Parecia arrastar-se em cada estação e seguir sobre os trilhos como se a locomotiva ou o maquinista estivessem em seu último alento. Cheguei, finalmente, a Crawley. Estava um dia moroso, quente demais, e eu acabara de perder um ônibus. O seguinte chegaria tarde demais. Segui pelas ruas, tendo recebido orientação errada de uma pessoa após outra, porque a firma que eu devia visitar ficava num lugar pouco conhecido. Finalmente, quase cansado demais para me importar, cheguei a uma alameda comprida e mal cuidada. Andando por ela, cheguei por fim a uma casa de muito mau aspecto, que parecera ter servido de quartel a um regimento de soldados pouco cuidadosos.

— O senhor escreveu uma carta excepcionalmente boa — disse o homem que me entrevistou. — Nós queríamos saber que tipo de homem podia escrever uma carta daquelas.

Eu fiquei atônito, ao ver que fora trazido por toda aquela distância apenas pela curiosidade alheia.

— Mas vocês puseram um anúncio procurando um redator técnico — retorqui. — E eu estou pronto a fazer qualquer prova.

— Ah, sim! — respondeu ele. — Mas surgiram muitos problemas desde que aquele anúncio foi publicado; estamos reorganizando a firma e não podemos admitir pessoa alguma pelo menos durante seis meses. Mas achamos que o senhor gostaria de vir ver a nossa firma.

— E eu acho que vocês deviam pagar minha passagem! — repliquei. — Trouxeram-me aqui só para perder tempo!

— Ah, pagar sua passagem não podemos — disse ele. — O senhor ofereceu-se para uma entrevista. Nós apenas aceitamos sua oferta.

Fiquei tão abatido que a longa caminhada de volta à estação pareceu muito mais longa do que realmente era. A espera inevitável pelo trem veio em seguida, e na longa viagem de volta a Clapham as rodas por baixo pareciam estar dizendo: “Deve escrever um livro, deve escrever um livro, deve escrever um livro”.

Em Paris, há um outro lama tibetano que veio para o Ocidente com um objetivo especial. Diversamente de mim, as circunstâncias determinaram que ele fuja a qualquer publicidade. Ele executa seu trabalho e poucos são os que têm conhecimento de que ele já foi um lama em um mosteiro tibetano, aos pés da Potala. Eu escrevera a ele, pedindo sua opinião e, para resumir, esta fora em sentido negativo, dizendo que não seria aconselhável escrever.

A estação de Clapham parecia ainda mais suja do que o comum, e meu estado de espírito nada favorável. Desci a rampa para a rua e fui para casa. Minha esposa olhou para meu rosto e não fez qualquer pergunta. Após uma refeição, embora eu não tivesse vontade de comer, ela disse:

— Telefonei ao Sr. B. hoje de manhã. Ele disse que você devia preparar um resumo e levá-lo para ele examinar.

Um resumo! O simples pensar nisso causa-me enjoo. Em seguida, li a correspondência que chegara. Duas cartas, dizendo a vaga foi ocupada, obrigado por apresentar-se, e a carta do lama meu amigo, da França.

Sentei-me diante da velha máquina de escrever que eu “herdara” de meu antecessor e comecei a escrever. Para mim é uma incumbência desagradável e árdua. Não havia qualquer “inspiração”, tampouco tenho qualquer dom, de modo que preciso simplesmente trabalhar com mais afinco do que a maior parte das pessoas, e quanto mais isso me desagrada tanto mais rapidamente eu trabalho, de modo a poder terminar mais cedo.

O dia chegou a seu fim, as sombras do crepúsculo encheram as ruas e foram dispersadas pelas lâmpadas dos postos, que lançavam um brilho mortiço sobre as pessoas e sobre as casas. Minha esposa acendeu a luz e fechou as cortinas. Eu continuei escrevendo a máquina. Finalmente, com dedos duros e doloridos, parei. À minha frente estava uma pilha de páginas, trinta ao todo, inteiramente escritas.

— Pronto! — exclamei. — Se isso não servir a ele, eu desistirei de escrever, e, francamente, espero que não sirva!

Na tarde seguinte, voltei a visitar o Sr. B. Ele examinou mais uma vez meus documentos, depois tomou o resumo e encostou-se na cadeira para ler. De vez em quando, assentia com aprovação.

Quando terminou, disse, com muita cautela:

— Eu acho que podemos colocar isto. Deixe comigo. Enquanto espera, escreva o primeiro capítulo.

Eu não sabia se devia ficar satisfeito ou entristecido enquanto descia a Regent Street na direção de Piccadilly Circus. A situação financeira atingira um ponto crítico, mas ainda assim eu detestava a ideia de escrever acerca de mim mesmo.

Dois dias depois, recebi uma carta do Sr. B., dizendo que o fosse ver, pois ele tinha boas notícias. Senti certo desânimo com essa informação, porque parecia que teria de escrever um livro, afinal de contas! O Sr. B. sorriu com benevolência para mim.

— Tenho um contrato — disse ele —, mas antes quero levá-lo ao editor.

Juntos, fomos a outra parte de Londres e seguimos por uma rua que já fora elegante zona residencial, com casas altas. Essas casas, agora, eram usadas como escritórios, e as pessoas que haviam morado nelas residiam em bairros distantes. Seguimos pela rua e paramos diante de uma casa sem qualquer aspecto que a distinguisse das demais.

— Chegamos — disse o Sr. B.

Passamos por um corredor escuro e subimos um lance curvo de escadas até o primeiro andar. Finalmente, fomos levados ao senhor editor, que pareceu um tanto descrente de início, e só de modo gradual mudou de atitude. A entrevista durou pouco, e logo voltávamos à rua.

— Venha ao meu escritório — disse o Sr. B. — Oh, céus! Onde estão os meus óculos? — Examinava febrilmente os bolsos, à procura dos óculos que parecera ter perdido. Respirou com alívio quando os encontrou, e concluiu:

— Venha ao meu escritório. Eu tenho um contrato pronto para assinar.

Finalmente, ali estava alguma coisa definida — um contrato para escrever um livro. Resolvi que faria minha parte e esperava que o editor fizesse a dele. Por certo a terceira visão permitiu ao editor suavizar a situação.

O livro prosseguia. Eu fazia um capítulo de cada vez e o levava ao Sr. B. Em uma série de ocasiões, visitei o Sr. B. e sua esposa em sua encantadora residência e gostaria, aqui, de prestar meus tributos especiais à Sra. B. Ela me acolheu, o que poucos ingleses fizeram. Incentivou-me, e foi a primeira mulher inglesa a fazê-lo. Em todas as ocasiões ela me recebeu bem, de modo que... Obrigado, Sra. B.!

Minha saúde piorava rapidamente no clima londrino. Eu lutei por aguentar-me, enquanto terminava o livro, usando todos os meus conhecimentos e preparo para afastar a doença por algum tempo. Tendo terminado o livro, sofri meu primeiro ataque de trombose coronária e quase morri.

Num hospital londrino muito famoso, o pessoal médico ficou realmente intrigado com muitas coisas a meu respeito, mas eu não os esclareci; talvez este livro o faça!

— O senhor precisa sair de Londres — disse o especialista. — Sua vida corre perigo aqui. Vá para outro clima.

“Deixar Londres?”, pensei. “Mas, para onde iremos?” Em casa, examinamos os estilos de vida e os recursos dos lugares onde poderíamos viver. Alguns dias depois, tive de voltar ao hospital para um exame final.

— Quando vai partir? — perguntou o especialista. — Seu estado de saúde não memorará se você ficar por aqui.

— Eu não sei — respondi. — Há tanta coisa a levar em conta...

— Há apenas uma coisa a levar em conta — disse ele, com impaciência. — Fique aqui, e morrerá. Mude-se, e talvez viva um pouco mais. O senhor não compreende que seu estado de saúde é grave?

Mais uma vez eu tinha um problema difícil a resolver. Ouvi o ruído de passos.

 

— Lobsang! Lobsang!

Eu me agitava no sono. A dor no peito era aguda, a dor daquele coágulo. Arquejando, voltei à consciência, para novamente ouvir o chamamento.

— Lobsang!

“Ah! Sinto-me muito mal!”, eu pensava.

— Lobsang! — a voz continuava chamando. — Escute! Deite-se de costas e escute.

Deitei-me de costas, cansado. O coração disparara, e opeito latejava. Gradualmente, dentro da escuridão de meu quarto solitário, uma figura se apresentou. De início, era um brilho azul, que se tornou amarelo e depois a forma materializada de um homem com a minha idade.

— Eu não posso fazer uma viagem astral esta noite — disse eu. — Com certeza meu coração deixaria de bater, e minhas tarefas ainda não estão terminadas.

— Irmão, nós conhecemos bem o seu estado, de modo que eu vim ter com você. Escute apenas, não precisará falar.

Encostei-me à cabeceira da cama, a respiração em arquejos. Era doloroso respirar de modo normal, mas ainda assim eu tinha de fazê-lo, para viver.

— Nós examinamos seu problema — disse o lama materializado. — Há uma ilha afastada da costa inglesa, ilha que já foi parte do continente perdido da Atlântida. Vá para lá o mais depressa que puder. Descanse um pouco naquela terra amiga, antes de viajar para a América do Norte. Não vá para as costas ocidentais, que são lavadas pelo oceano turbulento. Vá para a Cidade Verde e, depois, mais além.

A Irlanda? Sim! O lugar ideal. Eu sempre me dera bem com os irlandeses. A Cidade Verde? E, então, a resposta me chegou. Dublin, vista de grande altura, parecia verde devido ao Parque Phoenix e devido ao rio Liffey, que desce das montanhas para o mar.

O lama sorria, concordando.

— Você tem de recuperar parte de sua saúde, pois haverá mais um ataque desferido contra ela. Nós preferimos que você viva, para que sua tarefa possa ser mais adiantada, de modo que a ciência da aura se aproxime mais da frutificação. Eu irei agora, mas, quando você estiver um pouco melhor, nosso desejo é que você visite novamente a Terra da Luz Dourada.

A visão apagou-se e meu quarto tornou-se ainda mais escuro e mais solitário. Minhas tristezas tinham sido grandes, e os sofrimentos além da capacidade de qualquer pessoa, para suportar ou compreender. Eu me deitei, olhando pela janela, mas sem ver. O que haviam dito eles, em recente viagem astral que eu fizera a Lhasa? Oh, sim! “Você acha difícil obter emprego?”, haviam perguntado. “Está claro que sim, meu irmão, pois você não faz parte do mundo ocidental, você vive em tempo que lhe foi dado. O homem cujo lugar na vida você tomou já teria morrido antes. A sua necessidade, em caráter temporário quanto ao corpo dele, e em caráter permanente quanto ao tempo de vida dele, resultou em que ele pôde deixar a Terra com honra e com vantagem. Isso não é algo comum, meu irmão; é uma tarefa que você está cumprindo nesta que é sua última vida na Terra.” E uma vida bem dura, também, disse a mim mesmo.

De manhã, consegui causar alguma consternação, ou surpresa, ao anunciar:

— Nós vamos morar na Irlanda. Primeiramente em Dublin, e depois fora de Dublin.

Eu não pude ajudar muito na preparação e arrumação das coisas, pois estava muito doente e tinha medo de me mover, para não provocar um ataque cardíaco. As malas foram feitas, as passagens obtidas, e finalmente partimos. Foi bom estar novamente no ar, num avião, onde achei muito mais fácil respirar. A linha aérea, tendo um “doente do coração” a bordo, não quis arriscar-se, e na prateleira acima de minha cabeça ia um cilindro de oxigênio.

O avião desceu um pouco e fez círculos sobre uma terra de cor verde-vivo, orlada por espuma branca como leite. Desceu mais ainda, e veio o ruído do trem de aterragem que era baixado, logo acompanhado pelo gemido dos pneus que tocavam na pista de pouso.

Meus pensamentos voltaram-se para a ocasião em que entrara pela primeira vez na Inglaterra, e o tratamento que recebera do funcionário da Alfândega. “Como será desta vez?”, indaguei a mim mesmo, curioso. O avião rodou pela pista, chegou aos prédios do aeroporto, e fiquei mais do que mortificado ao verificar que havia uma cadeira de rodas à minha espera. No posto alfandegário os funcionários nos olharam com expressão dura e perguntaram:

— Por quanto tempo vão ficar?

— Nós viemos morar aqui — respondi.

Não houve dificuldade, e tampouco eles examinaram nossa bagagem. A gata Ku'ei os fascinou a todos, serena e senhora de si, mantendo guarda em nossa bagagem. Esses gatos siameses, quando devidamente treinados e tratados como seres, e não apenas como animais, possuem uma inteligência superlativa. Eu, por certo, prefiro a amizade e a lealdade de Lady Ku'ei à dos seres humanos. Ela fica sentada ao meu lado, durante a noite, e desperta minha esposa, se eu estiver doente!

Nossa bagagem foi posta em um táxi, e partimos para a cidade de Dublin. A atmosfera de amizade mostrava-se acentuada e nada parecia ser incômodo demais. Deitei-me em meu leito, num quarto que ficava acima das dependências do Trinity College. Na estrada abaixo de minha janela o tráfego seguia em velocidade moderada.

Necessitei de algum tempo para recuperar-me da viagem, mas quando já podia andar os amáveis funcionários do Trinity College deram-me um passe que permitia andar livremente por suas instalações e frequentar a magnífica biblioteca. Dublin era uma cidade-surpresa, e ali podíamos comprar quase qualquer coisa. Havia uma variedade bem maior de mercadorias do que em Windsor, no Canadá, ou em Detroit, nos Estados Unidos.

Depois de alguns meses, enquanto eu escrevi O médico de Lhasa, resolvemos mudar-nos para uma aldeia de pescadores, muito bonita, a uns vinte quilômetros de distância. Tivemos sorte, obtendo uma casa da qual se descortinava a baía de Balscadden, casa essa dotada de panorama verdadeiramente notável.

Foi preciso descansar muito, e achei impossível ver pela vidraça, com os binóculos, devido à distorção causada pela mesma. Um construtor local, chamado Brud Campbell, de quem me tornei muito amigo, sugeriu que usasse vidro laminado na janela. Com este tipo de vidro instalado, eu podia descansar na cama e observar os barcos de pesca na baía. Toda a extensão do porto se achava ao alcance de minha visão, tendo o Iate Clube, a Capitania dos Portos e o farol como pontos mais destacados. Em dias claros, eu podia ver as montanhas de Mourne a distância, na Irlanda ocupada pelos ingleses, enquanto, de Howth Head, dava para ver de modo difuso as montanhas do País de Gales, no outro lado do mar da Irlanda.

Compramos um carro de segunda mão, e muitas vezes fazíamos viagens às montanhas de Dublin, desfrutando o ar puro e o cenário magnífico. Em uma dessas viagens, ouvimos falar de uma velha gata siamesa, que estava morrendo devido a um enorme tumor interno. Após muita instância, conseguimos levá-la para nossa casa. O melhor cirurgião veterinário da Irlanda examinou-a, mas achou que tinha apenas algumas horas de vida. Eu o convenci a operar, para retirar o tumor causado por negligência dos donos e por ninhadas muito numerosas. Ela se recuperou e provou possuir a natureza mais doce, em gente ou animal, que vi até hoje. Agora, enquanto eu escrevo, ela está andando ao redor, com aspecto de gentil dama idosa, que realmente é. Inteiramente cega, seus belos olhos azuis irradiam inteligência e bondade. Lady Ku'ei passeia com ela, eu a dirijo telepaticamente de modo que não esbarre nas coisas, nem se machuque. Nós a chamamos Vovó Costeletas, pois ela se parece muito com uma avó idosa, andando pela casa, desfrutando o final da vida após ter criado muitas famílias.

Howth trouxe-me uma felicidade que eu não conhecera antes. O Sr. Loftus, o policial, ou “guarda”, como o chamam na Irlanda, parava frequentemente para conversar. Era sempre um visitante bem-vindo.

Homem corpulento, tão inteligente quanto um guarda do Palácio de Buckingham, firmara a reputação de justiça completa e absoluta falta de medo. Ele entrava, quando estava de folga, e falava sobre lugares distantes. A sua expressão:

“Meu Deus, doutor! O senhor tem olhos para dar e vender!” era um prazer para os ouvidos. Eu fora muito maltratado pela polícia de numerosos países, e o guarda Loftus, em Howth, na Irlanda, mostrou-me que havia bons policiais, assim como os maus, que eu conhecera antes.

Meu coração dava sinais de dificuldades novamente, e minha esposa quis que instalássemos um telefone na casa. Infelizmente todas as linhas da “Colina” estavam tomadas, de modo que não o conseguimos. Certa tarde, alguém bateu à nossa porta. Era uma vizinha, a Sra. O'Grady, que vinha dizer:

— Eu soube que vocês querem um telefone e não o conseguem. Pois usem o nosso, a qualquer momento que queiram... Aqui está uma chave da casa.

Os irlandeses trataram-nos bem. O Sr. e a Sra. O'Grady estavam sempre procurando fazer alguma coisa por nós, visando a tornar ainda mais agradável nossa estada na Irlanda. Foi um prazer e um privilégio trazer a Sra. O'Grady ao nosso lar, no Canadá, para uma visita que, para nós, foi curta demais. Sem esperar, e de modo chocante, fiquei violentamente doente. Os anos passados em campos de prisioneiros, as dificuldades imensas que tivera de atravessar e os acontecimentos incomuns em minha vida haviam-se combinado para tornar muito grave meu estado cardíaco.

Minha esposa correu à casa dos O'Grady a fim de telefonar e chamar um médico. Em tempo surpreendentemente curto o Dr. Chapman veio ter ao meu quarto, e, com a eficiência que advém apenas de longos anos de prática, preparou a seringa hipodérmica. O Dr. Chapman era um médico da “escola antiga”, o “médico de família”, que tinha mais conhecimento em seu dedo mínimo do que meia dúzia dos “espécimes produzidos em fábrica” dos Estados Unidos, tão em voga hoje em dia. Com o Dr. Chapman foi um caso de “amigos à primeira vista”! Lentamente, com seus cuidados, eu me recuperei o bastante para poder sair da cama.

Em seguida, houve uma série de visitas a especialistas em Dublin. Alguém, na Inglaterra, quisera advertir-me que jamais confiasse em um médico irlandês. Pois confiei neles, e recebi melhor tratamento médico do que em qualquer outro país do mundo. O toque pessoal e humano existia neles, e isso é melhor do que toda a coragem mecânica dos médicos jovens.

Brud Campbell construíra uma boa muralha de pedras ao redor de nosso terreno, substituindo uma que ruíra, porque éramos muito assediados por pessoas que vinham da Inglaterra. Elas costumavam vir em excursões, de Liverpool, e entrar nos jardins da gente de Howth e acampar ali! Houve uma criatura que causou certo divertimento. Uma das manhãs, bateram com força à porta de nossa casa. Minha esposa atendeu e encontrou uma alemã lá fora. Ela quis entrar à força, mas não conseguiu. Depois disso, anunciou que ia acampar diante de nossa porta, até que a deixassem “sentar-se aos pés de Lobsang Rampa”.

Como eu estava de cama, e certamente não queria ninguém sentado aos meus pés, pediram-lhe que se fosse embora. De tarde, ainda estava lá. O Sr. Loftus apareceu, com aspecto muito feroz e eficiente, e convenceu a mulher a descer o morro e embarcar num ônibus, que a levou a Dublin. Convenceu-a também a não voltar mais! Aqueles dias foram bastante movimentados e atarefados, nos quais eu procurava não sobrecarregar minha resistência. O médico de Lhasa já estava escrito, mas as cartas chegavam, vindas de todas as partes do mundo. Pat, o carteiro, chegava arquejando por causa da longa caminhada morro acima.

— Ah, bom dia para vocês! — dizia a quem o atendesse. — E como vai ele, hoje? Ah, essas cartas estão dando cabo da minha carcaça!

Certa noite, enquanto eu me achava de cama, observando as luzes fracas de Portmarnock e dos navios ao mar, percebi repentinamente um velho sentado e olhando para mim. Ele sorriu, quando me voltei em sua direção.

— Eu vim — disse ele — para ver como você está, pois queremos que vá novamente à Terra da Luz Dourada. Como se sente?

— Eu acho que consegui, com um pouco de esforço — respondi. — Você vem comigo?

— Não — respondeu ele —, pois seu corpo é mais valioso do que nunca, e eu devo ficar aqui e guardá-lo.

Nos meses anteriores eu sofrera muito. Uma das causas desse sofrimento era uma questão que faria um ocidental espantar-se de descrença; a completa transformação de meu corpo original fora efetuada. O corpo substituto fora teleportado para outra parte e transformado em pó. Para os que se achem sinceramente interessados, trata-se de antiga arte oriental, sobre a qual é possível ler em certos livros.

Permaneci deitado alguns momentos, reunindo energia. Lá fora, um barco de pesca atrasado passava, com o motor resfolegando. As estrelas mostravam-se brilhantes e o Olho da Irlanda estava banhado pelo luar. O velho sorriu e disse:

— Uma bela vista, você tem daqui.

Eu anuí, em silêncio, empertiguei a espinha, dobrei as pernas atrás de mim e saí vagando como um sopro de fumaça. Por algum tempo, pairei acima da Terra, olhando para o campo enluarado. Lá estava o Olho da Irlanda, a ilha a pouca distância da costa, e mais além a ilha de Lambay. Por trás, brilhavam as luzes de Dublin, cidade muito bem iluminada. Enquanto eu subia, mas devagar, via a curva magnífica da baía de Killenye, que tanto fazia lembrar Nápoles, e, mais além, Greystones e Wicklow. Eu prosseguia, vagando fora deste mundo, saindo do espaço e do tempo, passando a um plano de existência que não pode ser descrito em linguagem deste mundo de três dimensões.

Era como sair da treva para a luz do sol. O meu guia, o Lama Mingyar Dondup, estava à minha espera.

— Você andou muito bem, Lobsang, e sofreu tanto! — disse ele. — Dentro de pouco tempo, estará de volta aqui, para não partir mais. A luta tem sido boa, tem valido a pena.

Nós seguimos juntos pelo campo glorioso, caminhando para o Salão de Memórias, onde ainda havia muito a aprender. Por algum tempo, estivemos sentados, conversando, o meu guia, um grupo de augustas criaturas e eu.

— Não tardará — disse um deles — que você vá para a Terra dos Índios Vermelhos, e lá temos outra tarefa para você.

— Por algumas horas revigore-se aqui, pois suas últimas provações têm sobrecarregado demais suas energias — declarou outro.

— Sim — observou o terceiro —, e não se perturbe com aqueles que o critiquem, pois eles não sabem do que estão falando, cegos como se acham pela ignorância auto-imposta do Ocidente. Quando a morte lhes fechar os olhos e eles nascerem para a vida maior, por certo deplorarão as dificuldades que causaram tão desnecessariamente.

Enquanto eu voltava para a Irlanda, a Terra ainda estava na escuridão, tendo apenas alguns raios leves a surgir no céu da manhã. Ao longo da extensa faixa de areia de Clontarf, as ondas quebravam, com suspiros. O cabo Howth apresentava forma mais escura, na treva, antes do amanhecer. Quando eu descia, olhei para o telhado de nossa casa. “Ora essa! As gaivotas entortaram a antena”, observei para mim mesmo. “Terei de chamar Brud Campbell para consertá-la”.

O velho continuava sentado perto de minha cama. A Sra. Fifi Costeletas achava-se sentada na extremidade de meu leito, como em guarda. Enquanto eu voltava ao corpo e o reanimava, ela aproximou-se, esfregou-se em mim e ronronou. Emitiu um chamado em som baixo, e Lady Ku'ei veio, saltou sobre a cama e colocou-se em meu colo. O velho lama sorriu para elas, com afeição visível, e observou:

— São, realmente, entidades de uma ordem superior. Eu tenho de ir, meu irmão.

O correio da manhã trouxe uma avaliação descabida, feita pelo Departamento do Imposto de Renda da Irlanda. Os únicos irlandeses dos quais não gosto são aqueles ligados a essa repartição. A mim, pareceram tão imprestáveis, tão desnecessariamente intrometidos! Para os autores, na Irlanda, o imposto é inteiramente exorbitante, e isso constitui uma lástima, porque a Irlanda poderia beneficiar-se daqueles que gastam dinheiro. Com imposto ou sem imposto, eu preferiria viver na Irlanda a fazê-lo em qualquer outro lugar do mundo, com exceção do Tibete.

— Iremos para o Canadá — anunciei. Uma expressão sombria acolheu a afirmação.

— E como levaremos as gatas? — perguntaram-me.

— Pelo ar, naturalmente. Elas viajarão conosco — respondi.

As formalidades foram consideráveis e prolongadas as demoras. Os funcionários irlandeses mostravam-se inteiramente prestimosos e os canadenses exatamente o contrário. O Consulado dos Estados Unidos ofereceu muito mais facilidade do que o canadense. Tiraram nossas impressões, e depois fomos investigados e mandados aos exames médicos. Eu não passei.

— Cicatrizes demais — disse o médico. — Terá de tirar chapas de raios X.

O médico irlandês que tirou essas chapas olhou-me com ar compadecido.

— Sua vida deve ter sido terrível — observou ele. — Essas cicatrizes!... Eu terei de informar o que descobri no exame à Junta Canadense de Saúde. Tendo em vista sua idade, posso adiantar que eles só o admitirão no Canadá mediante certas condições.

Lady Ku'ei e a Sra. Fifi Costeletas foram examinadas por um veterinário e consideradas em bom estado. Enquanto aguardavam uma decisão acerca de meu caso, indagamos como levar as gatas no aeroplano, em nossa companhia. Apenas a linha aérea Swissair concordava em levá-las, de modo que reservamos passagens nela, em caráter provisório.

Dias mais tarde fui chamado à Embaixada do Canadá. Um homem olhou-me com cara de poucos amigos.

— O senhor está doente! — declarou. — Eu tenho de providenciar para que não se torne uma carga explosiva em nosso país.

Mexeu e remexeu em papéis e depois, como a fazer um esforço enorme, disse:

— Montreal autorizou sua entrada, desde que se apresente imediatamente a uma junta de saúde, quando chegar, e concorde em fazer o tratamento que eles determinarem. Se não concordar com essa condição, não poderá ir — disse, então, com ar de quem contava que eu não a aceitasse.

A mim parecia muito estranho que tantos funcionários de embaixada, em outros países, sejam desnecessariamente insultantes. Afinal de contas, eles não passam de empregados assalariados, e nem sempre é possível chamá-los de “servidores” civis! Nós mantínhamos nossas intenções em sigilo, e apenas os amigos mais íntimos sabiam que estávamos de partida, e para onde íamos. Como havíamos aprendido à nossa custa, bastava um de nós espirrar e um repórter bateria à nossa porta para saber o que se passava. Pela última vez seguimos de automóvel ao redor de Dublin e também pelos pontos mais belos de Howth. Era, por certo, muito triste pensar em partir, mas nenhum de nós está nesta Terra para desfrutar de prazeres.

Uma firma muito eficiente, de Dublin, concordara em levar-nos a Shannon, juntamente com as gatas e a bagagem. Alguns dias antes do Natal estávamos prontos para partir. Nosso velho amigo, o Sr. Loftus, veio dizer-nos adeus e assistir à nossa despedida. Ou eu muito me engano, ou havia lágrimas em seus olhos. Por certo eu achei que estava me separando de um velho e grande amigo. O Sr. e a Sra. O'Grady vieram vernos, tendo ele faltado ao trabalho aquele dia para fazê-lo. Mostrava-se abertamente perturbado, e Paddy procurava ocultar sua emoção com uma demonstração de jovialidade que não enganava ninguém. Fechei a porta com a chave e a entreguei ao Sr. O'Grady, a fim de que a mandasse pelo correio ao procurador, entrei no ônibus e saímos, afastando-nos do período mais feliz de minha vida, desde que eu partira do Tibete, afastando-nos do mais agradável grupo de pessoas que eu conhecera por muitos e muitos anos.

O ônibus seguiu pela estrada até Dublin, passando em meio a seu tráfego ordeiro. Tocou adiante e, no campo aberto, contornou as montanhas. A viagem prosseguiu por horas. O motorista amável e eficiente em sua tarefa indicava os pontos de interesse e se mostrava solícito quanto ao nosso bem-estar e conforto. Paramos a meio do caminho para tomar chá. Lady Ku'ei gosta de sentar-se bem alto e observar o tráfego, e incitar quem estiver dirigindo. A velha Sra. Fifi Costeletas prefere manter-se sentada, calma e pensando. Quando o ônibus parou para tomarmos chá, houve grande consternação, sob o ponto de vista dela. Por que havíamos parado? Estava tudo correndo bem? Nós prosseguimos depois, pois a estrada era comprida e Shannon ficava bem distante. O anoitecer chegou e nos retardou um pouco. Mais tarde, durante a noite, chegamos ao aeroporto de Shannon, deixamos nossa bagagem principal e fomos levados às acomodações que havíamos reservado para aquela noite e o dia seguinte. Devido à minha saúde e à presença das duas gatas, ficamos em Shannon uma noite e um dia, partindo na noite seguinte. Tínhamos quartos separados, e felizmente havia uma porta entre eles, pois as gatas não sabiam onde queriam estar. Por algum tempo elas andaram por aqueles aposentos, farejando tudo, como se fossem aspiradores de pó, “lendo” tudo a respeito das pessoas que haviam ocupado aqueles cômodos antes, depois silenciaram e foram dormir.

Eu descansei no dia seguinte, e observei um pouco ao redor do aeroporto. A loja “isenta de impostos” interessou-me, mas não consegui ver vantagem nela; se alguém comprasse ali alguma coisa teria de declará-lo mais adiante e pagar o imposto, de modo que não havia lucro algum.

Os funcionários da Swissair mostraram-se prestimosos e eficientes. Logo as formalidades se achavam resolvidas e passamos a esperar o avião. Deu meia-noite, depois uma da madrugada. À uma e meia fomos levados para um grande avião da Swissair, nós e nossas gatas. Todos que as viam ficavam impressionados com elas, por sua compostura e comedimento.

Nem mesmo o ruído dos motores dos aviões as perturbava. Logo corríamos pela pista, cada vez mais depressa. A terra ficou para baixo, o rio Shannon brilhou por instantes sob uma asa, depois sumiu. A nossa frente aparecia amplo o oceano Atlântico, com uma faixa de espuma branca na costa da Irlanda. A marcha dos motores modificou-se, chamas compridas surgiam dos canos de escapamento. O nariz do avião inclinou-se ligeiramente. As duas gatas olhavam silenciosamente para mim, parecendo imaginar se havia alguma coisa com que se preocupar. Aquela era minha sétima travessia do Atlântico, e eu sorri para elas de modo reconfortante. Logo elas se aninhavam e adormeciam.

A noite comprida prosseguia e nós viajávamos na escuridão, que para nós perduraria umas doze horas. A luz da cabina enfraqueceu-se, deixando um brilho azul e ligeira possibilidade de sono. O ruído dos motores não cessava, a mais de dez mil metros de altura e acima do mar cinzento e inquieto.

Vagarosamente, as configurações de estrelas se alteravam. Devagar, observamos um relâmpago no céu distante, à beira da curvatura terrestre. Houve certa movimentação no corredor, um ruído de pratos e logo, devagar, como uma planta crescendo, as luzes tornaram-se mais fortes. O afável comissário surgiu, sempre atento ao conforto dos passageiros. A eficiente tripulação surgia, com o desjejum. Não há nação igual à Suíça, no tocante à eficiência no ar e para atender aos desejos dos passageiros e proporcionar-lhes comida realmente excelente.

As gatas puseram-se sentadas, e prestavam a maior atenção ao pensamento de que iam comer novamente. Bem distante, à direita, surgia uma linha cinzenta e nublada, que se fazia rapidamente maior. Nova York! De modo inevitável pensei na primeira vez que chegara à América, trabalhando como maquinista de um navio. Naquela ocasião os arranha-céus de Manhattam tinham-se mostrado impressionantes por suas dimensões. Agora, onde estavam eles? Não eram aqueles pontinhos, por certo? O grande avião fez círculos e baixou uma asa. Os motores mudaram de velocidade e, devagar, baixamos mais e mais. Gradualmente, os edifícios no chão adquiriram forma, e o que parecera ser um deserto transformou-se no Aeroporto Internacional de Idlewild. O hábil piloto suíço fez o avião pousar com um simples toque das rodas na pista. Devagar, rolamos por ela, indo ter aos prédios do aeroporto.

— Fiquem em seus lugares, por favor! — disse o comissário de bordo.

Houve um baque suave quando a escada de desembarque foi encostada à fuselagem, um ruído metálico e a porta da cabina se abriu.

— Adeus! — disseram os tripulantes, enfileirados na saída. — Voltem a viajar conosco!

Devagar, descemos as escadas, dirigindo-nos ao prédio da administração do aeroporto.

Idlewild era como uma estação ferroviária cheia de doidos. As pessoas corriam por toda parte, empurrando quem estivesse em seu caminho. Apareceu um funcionário, que anunciou:

— Por aqui. Em primeiro lugar, a Alfândega.

Fizemos fila ao lado de plataformas que se moviam. Grandes montes de bagagens surgiam repentinamente, seguindo sobre aquelas plataformas e estendendo-se da entrada até o homem da Alfândega. Os funcionários seguiam, também, examinando algumas malas já abertas.

— De onde são, minha gente? — indagou um deles a nós.

— Dublin, Irlanda — respondi.

— Para onde vão? — Windsor, Canadá — respondi.

— Ok. Têm alguma fotografia pornográfica? — indagou ele, de repente.

Depois de dar-se por satisfeito, tivemos de mostrar passaportes e vistos e isso nos fez pensar nos frigoríficos de Chicago, pelo modo como as pessoas eram tratadas.

Antes de sairmos da Irlanda, havíamos reservado lugares em um avião americano que nos levasse a Detroit. Eles haviam concordado em levar as gatas a bordo, em nossa companhia. Agora, porém, os funcionários da linha aérea não aceitavam nossos bilhetes e se recusavam a transportar os dois animais que haviam atravessado o oceano Atlântico sem qualquer embaraço. Por algum tempo pareceu-nos que íamos ficar detidos em Nova York, empacados naquela cidade, e a tal linha aérea não se mostrava nada preocupada. Eu vira um anúncio onde se falava de “táxis aéreos para qualquer parte”, no Aeroporto de La Guardiã. Tomando uma limusine no  aeroporto, seguimos para um motel bem ao lado do La Guardia.

— Podemos levar nossas gatas? — perguntei ao homem que nos atendeu na mesa de recepção.

Ele olhou para nossas pequenas e encantadoras damas, e respondeu:

— Sim, sim! Claro que podem...

Lady Ku'ei e a Sra. Fifi Costeletas ficaram muito satisfeitas em poderem andar por ali e travarem conhecimento com dois outros quartos que não conheciam.

O esforço da viagem começava a pesar sobre mim. Eu fui para a cama e minha esposa atravessou a estrada para o La Guardiã, procurando informar-se de quanto custaria um táxi aéreo e quando o poderíamos tomar. Mais tarde, voltou, parecendo preocupada, e disse:

— Vai custar muito dinheiro.

— Bem, nós não podemos continuar aqui. Nós temos de viajar — respondi.

Ela apanhou o telefone, e logo ficou combinado que de manhã voaríamos por táxi aéreo para o Canadá. Dormimos bem aquela noite. As gatas se mostravam inteiramente despreocupadas e até parecia que estavam se divertindo. De manhã, após o desjejum, fomos levados de carro pela estrada até o aeroporto. La Guardiã é enorme e a cada minuto do dia há um avião pousando ou decolando.

Finalmente, encontramos o lugar de onde íamos partir, e todos — nós, as gatas e a bagagem — embarcamos num pequeno avião bimotor. O piloto, um homem pequenino e de cabeça inteiramente raspada, fez um gesto para nós e passamos a rodar em direção a uma pista. Assim foi por uns quatro quilômetros; depois paramos no ponto de onde partiríamos, esperando nossa vez de decolar. O piloto de um grande avião intercontinental fez-nos um sinal e falou apressadamente em um microfone. Nosso piloto pronunciou algumas palavras que não posso repetir e disse:

— Estamos com um pneu furado.

Veio o ruído estridente de uma sirene de polícia, e logo um carro surgia, em alta velocidade, pela estrada de serviço, parando a nosso lado com um cantar de pneus. “Polícia? O que fizemos desta vez?” Mais sirenes, e chegaram os bombeiros, que saltaram de seu veículo. Os policiais vieram e falaram com nosso piloto. Depois, foram para o carro de bombeiros e, finalmente, policiais e bombeiros se afastaram. Surgiu um carro de consertos, suspenderam o avião em que estávamos sentados, retiraram a roda defeituosa e partiram em disparada.

Por duas horas ficamos ali, sentados, esperando que devolvessem a roda. Finalmente ela foi recolocada, o piloto ligou novamente os motores e nós decolamos. No ar, sobrevoamos as montanhas Alleghany, tomando a direção de Pittsburgh. Bem sobre as montanhas o indicador de combustível — que estava à minha frente — caiu a zero e começou a bater no marcador de parada. O piloto parecia não tomar conhecimento disso. Eu apontei para o mostrador, e ele disse, num murmúrio:

— Ah, sim... Dá para descer em qualquer lugar. Minutos depois, chegávamos a um espaço nivelado nas montanhas, espaço esse onde havia uma série de aviões pequenos. O piloto deu uma volta e pousou, rodando na pista em direção à bomba de gasolina. Paramos apenas o tempo suficiente para reabastecer. Logo decolávamos pela pista coberta de neve e congelada. Dos lados da pista havia bastante neve amontoada.

Ventava muito nos vales. Houve um voo curto, e logo estávamos sobre Pittsburgh. Nós nos sentíamos fartos da viagem, enrijecidos, entorpecidos e cansados. Apenas Lady Ku'ei se mostrava alerta, mantendo-se sentada e espiando por uma janela, parecendo muito satisfeita com tudo.

Deixamos Cleveland para trás e vimos o lago Erie bem à nossa frente. Surgiram grandes massas de gelo, enquanto rachaduras enormes se apresentavam sobre a superfície congelada daquela massa líquida. O piloto, sem se arriscar, seguiu para a ilha Pelee, no meio do lago, e dali voou para Amherstburg, depois para o Aeroporto de Windsor. Este parecia estranhamente quieto, não se percebendo qualquer atividade nele. Nós desembarcamos do avião e fomos ao edifício da Alfândega. Havia apenas um funcionário da Alfândega, e ele estava precisamente encerrando seu expediente. Já passava de seis da noite. Com um ar de desagrado, olhou para nossa bagagem.

— Não há funcionário da Imigração aqui — disse ele. — Vocês terão de esperar até que chegue um deles.

Nós nos sentamos e esperamos. Os minutos pareciam arrastar-se. Passou-se meia hora, o próprio tempo pareceu parar. Não havíamos comido ou bebido coisa alguma desde as sete horas da manhã.

O relógio deu sete horas. Surgiu outro funcionário da Alfândega e não tomou providência alguma.

— Eu nada posso fazer, até que o funcionário da Imigração tenha liberado vocês — declarou.

O tempo parecia andar ainda mais devagar. Sete e meia. Entrou um homem alto, que se dirigiu ao gabinete da Imigração. Parecendo frustrado, e um tanto vermelho, saiu e dirigiu-se ao homem da Alfândega.

— Não consigo abrir a gaveta — explicou.

Por algum tempo eles ficaram resmungando, experimentando chaves, puxando e batendo, e finalmente, em desespero de causa, apanharam uma chave de parafusos e abriram a gaveta à força. Não era aquela a mesa, pois as gavetas se encontravam inteiramente vazias.

Afinal, os formulários foram encontrados e, cansados, nós os preenchemos, assinando aqui, assinando ali... O funcionário da Imigração carimbou nossos passaportes com duas palavras: Imigrante desembarcado.

— Agora, vão ao funcionário da Alfândega — disse ele.

Eram volumes e fechaduras a abrir, formulários a apresentar, pormenores com relação a nossos pertences, como “colonos”... mais carimbos e, finalmente, estávamos livres para entrar no Canadá, em Windsor, no Ontário. O funcionário da Alfândega pareceu animar-se bastante quando soube que vínhamos da Irlanda. Sendo ele próprio de descendência irlandesa, e tendo os pais ainda vivos, fez muitas perguntas e — maravilha das maravilhas! — ajudou a carregar nossa bagagem para o carro que esperava! Fora do aeroporto era intenso o frio e a neve se mostrava espessa sobre o chão. No outro lado do rio Detroit, os arranha-céus se apresentavam formando uma massa de luz, pois todos os escritórios e salas estavam iluminados, devido à proximidade do Natal.

Nós seguimos pela ampla Avenue Guellette, a rua principal de Windsor. O rio era invisível e tínhamos a impressão de que íamos seguir diretamente para a América. O camarada que dirigia o carro não se mostrava muito certo quanto ao caminho a tomar; ultrapassando uma rua em que devia virar, fez uma manobra notável, que deixou nossos cabelos em pé. Mais tarde, chegamos à casa que havíamos alugado, e tivemos a enorme satisfação de poder desembarcar.

Não tardei a receber a comunicação da junta de saúde, exigindo minha presença e ameaçando com coisas terríveis — inclusive a deportação — se não obedecesse. Infelizmente, as ameaças parecem ser o passatempo principal dos funcionários de Ontário; é por esse motivo que vamos mudar-nos outra vez, para uma província mais amável.

Na junta de saúde, fui radiografado, mais detalhes foram revelados, até que finalmente deixaram que eu voltasse para casa. Windsor tem um clima terrível e isso, mais a atitude dos funcionários, logo nos levou a planejar a mudança, assim que este livro estiver escrito.

Assim é que esta minha história termina. A verdade foi contada, como ocorreu nos dois livros anteriores. Eu poderia contar mais coisas ao mundo ocidental, pois na viagem astral eu apenas abordei de leve as coisas que são possíveis. Para que mandar aviões de espionagem, com todos os seus riscos, quando se pode viajar no astral e ver dentro de um governo? Pode-se ver, e pode-se lembrar. Em certas circunstâncias podemos teleportar alguns artigos, se o intuito for inteiramente bom. Mas o homem ocidental zomba das coisas que não compreende, e grita “impostor!” para aqueles que têm capacidade que ele próprio não possui, e se torna frenético de vituperações contra os que se atrevam a ser “diferentes” de qualquer modo. Por sorte, pude pôr de lado minha máquina de escrever e passar a entreter Lady Ku'ei e a Sra. Fifi Costeletas, que se mostraram tão pacientes na espera.

Aquela noite, telepaticamente, veio de novo a mensagem.

— Lobsang! Você ainda não terminou seu livro!

Meu coração confrangeu-se. Eu detestava escrever, sabendo que tão poucos tinham capacidade de perceber a verdade. Eu escrevo sobre as coisas que a mente humana pode realizar. Até as etapas elementares, descritas neste livro, não serão aceitas, mas se alguém dissesse que os russos mandaram alguém a Marte, isso seria aceito! O homem tem medo dos poderes da mente humana, e só sabe pensar nas coisas sem valor, como foguetes e satélites espaciais. Resultados melhores podem ser obtidos, mediante processos mentais.

— Lobsang! A verdade! Você se lembra do conto hebraico? Escreva, Lobsang! Escreva, também, sobre o que poderia acontecer no Tibete.

A um rabino erudito e de espírito elevado perguntaram, uma vez, o motivo pelo qual ele frequentemente exemplificava uma grande verdade, contando uma história simples.

— Isso — disse o rabino — pode ser melhor explicado por uma parábola! Uma parábola sobre a Parábola. Houve uma época em que a Verdade andava sem adornos, entre as pessoas, tão nua quanto a Verdade. Todos que viam a Verdade voltavam-se, com medo ou envergonhados, porque não a podiam olhar de frente. A Verdade seguia entre os povos da terra, sem acolhimento, rejeitada, sem que a quisessem. Um dia, sem amigos e sozinha, ela encontrou-se com a Parábola, que seguia com um ar alegre, com roupas boas e muito coloridas.

“— Verdade! Por que você está tão triste, tão abatida? — perguntou a Parábola, com um sorriso reconfortante.

— Porque eu sou tão velha e tão feia que as pessoas me evitam — disse a Verdade, com amargura.

— Bobagem! — respondeu a Parábola. — Não é esse o motivo pelo qual as pessoas evitam você. Tome emprestadas algumas das minhas roupas e vá ter com as pessoas!

Assim é que a Verdade vestiu algumas das encantadoras roupas da Parábola e então, por toda parte onde estava, viu-se acolhida.”

O velho rabino sorriu e explicou:

— Os homens não podem conhecer a Verdade nua, e eles a preferem disfarçada sob as roupagens da Parábola.

— Sim, sim, Lobsang, essa é uma boa tradução de nossos pensamentos. Agora, a narrativa.

As gatas foram deitar em suas camas e esperar que eu realmente terminasse. Voltei à máquina de escrever, pus o papel e prossegui...

De bem longe o vigia veio depressa, num brilho azul fantasmagórico, enquanto percorria continentes e oceanos, deixando o lado iluminado da Terra, rumo ao lado escuro. Em seu estado astral, podia ser visto não só por quem fosse clarividente, como também ele mesmo podia ver tudo e, mais tarde, voltando ao corpo, lembrar-se de tudo. Desceu, imune ao frio reinante, sem se perturbar com o ar rarefeito das alturas, indo ter ao abrigo de um alto pico, e esperou.

Os primeiros raios do sol brilharam por instantes sobre os pináculos mais altos da rocha, transformando-os em ouro, refletindo uma miríade de cores da neve oculta nas reentrâncias. Faixas vagas de luz atravessavam o céu que se clareava devagar, enquanto o sol vinha espiar no horizonte distante.

No fundo do vale, estavam ocorrendo coisas estranhas. Luzes cuidadosamente protegidas moviam-se, como de veículos a reboque. O fio prateado do rio Feliz brilhou de leve, refletindo alguns pontos. Havia grande atividade, estranha e oculta. Os habitantes de Lhasa escondiam-se em suas casas ou estavam sob vigilância nos acantonamentos de trabalhos forçados.

Devagar, o sol prosseguiu em sua marcha, e logo seus primeiros raios, iluminando o chão, rebrilharam sobre uma forma estranha que estava no outro lado do vale. À medida que a luz do sol se tornava mais clara, o vigia viu aquela forma imensa com mais clareza. Era muito grande, cilíndrica, e sua ponta aguda voltada para o céu continha olhos pintados e uma boca de presas afiadas. Por séculos idos os marinheiros chineses haviam pintado olhos, em seus navios, e agora, naquele monstro, os olhos irradiavam ódio.

O sol ergueu-se mais, e logo todo o vale estava banhado em luz. Estranhas estruturas metálicas estavam sendo afastadas ao lado do monstro, agora apenas parcialmente envolto em seu berço. O foguete imenso, apoiado sobre seus lemes de direção, parecia sinistro e mortífero. Em sua base os técnicos, com fones de cabeça, moviam-se como formigas agitadas. Soou uma sirene com estridência e os ecos reverberaram de rocha em rocha, de montanha em montanha, fundindo-se numa cacofonia horrenda, que se tornava cada vez mais alta. Os soldados, guardas e trabalhadores voltaram-se no mesmo instante e correram o mais depressa que puderam para o abrigo das rochas distantes.

Em meio à encosta a luz brilhou sobre um pequeno grupo de homens ao redor do equipamento de rádio. Um homem tomou o microfone e falou com os habitantes, de um grande abrigo de concreto e aço, a uns dois quilômetros do foguete.

Uma voz monótona contou os segundos e, depois, parou. Por alguns momentos, nada aconteceu e houve paz. Os braços preguiçosos de vapor desciam ao redor do foguete e eram as únicas coisas que se moviam. Houve um jato de vapor e um rugido que se fez cada vez mais alto, dando início a pequenos desabamentos de rochas. A própria terra pareceu vibrar e gemer. O som tornou-se cada vez mais alto, até parecer que os tímpanos iam estourar, tamanha sua intensidade. Um grande jato de vapor e fogo apareceu por baixo do foguete, obscurecendo tudo que estava ao redor. Devagar, como a fazer esforço imenso, o foguete se ergueu.

Por momentos, pareceu estar parado e apoiado em sua cauda de fogo, mas logo adquiriu velocidade e subiu para os céus que estremeciam, estrugindo seu desafio à humanidade. Subiu mais e mais, deixando um rastro comprido de vapor e fumaça. Seu grito estrondeou nos cimos das montanhas, muito depois de ele ter desaparecido. Um grupo de técnicos na encosta da montanha observava febrilmente seus aparelhos de radar, falava aos microfones ou esquadrinhava os céus com binóculos poderosos. Longe, e bem por cima, um brilho se mostrou, enquanto o poderoso foguete fazia uma volta e entrava em seu curso.

Rostos assustados apareceram por trás das rochas. Pequenos grupos de pessoas se formaram, desaparecendo temporariamente toda a distinção entre os guardas e os trabalhadores escravos. Os minutos decorreram. Os técnicos desligaram seus aparelhos de radar, pois o foguete ultrapassara o alcance dos mesmos. Os minutos decorriam.

De repente, os técnicos se puseram em pé, gesticulando loucamente, esquecendo de desligar os microfones, em sua agitação. O foguete, com sua ogiva atômica, caíra sobre um país distante e amante da paz. Lá, a terra estava em destroços, as cidades arrasadas, as pessoas transformadas em gás incandescente. Os comunistas chineses, tendo os alto-falantes ligados a plena potência, gritavam e berravam em plena alegria, esquecendo-se de toda reserva, no júbilo de sua realização medonha. Terminara a primeira etapa da guerra, e a segunda estava prestes a iniciar-se. Técnicos exultantes correram, para preparar o segundo foguete.

Fantasia? Poderia ser verdade! Quanto mais alto o local de lançamento de um foguete, tanto menos atmosfera encontra em sua marcha e, por isso, necessita de muito menos combustível. Um foguete lançado das terras planas do Tibete a mais de cinco mil metros acima do nível do mar seria muito mais eficiente do que os lançados de terras mais baixas. E, assim, os comunistas chineses teriam uma vantagem incalculável sobre o restante do mundo, por disporem dos lugares mais altos e eficientes dos quais poderiam lançar foguetes, quer ao espaço quer sobre outros países. A China atacou o Tibete — não o conquistou —, de modo que terá essa grande vantagem, com relação às potências ocidentais. A China atacou o Tibete de modo a ter acesso da Índia até a Europa.

Pode ser que China e Rússia se combinem para fazer uma avançada de pinças, com que esmaguem a vida livre de todos os países que encontrem em seu caminho. Isso é possível, a menos que seja impedido, e depressa. Polônia? Pearl Harbor? Tibete? Os “entendidos”, os “especialistas” teriam dito que tais enormidades não poderiam acontecer. E estavam errados!

Errarão de novo?

 

                                                                                            Lobsang Rampa  

 

                      

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