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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENTRE OS SONHOS E O DESPERTAR / Emilly Amite
ENTRE OS SONHOS E O DESPERTAR / Emilly Amite

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Nikella esticou as costas e suspirou pesadamente, recolocando o pingente da foice no colar ao redor de seu pescoço. Ela se manteve silenciosa, observando as ondas de neve varridas pelo vento contra a superfície pálida do lago congelado. Os olhos cor de vinho ainda carregavam um pouco daquela tristeza que só agora começava a se dissipar, assim como a minha, deixando apenas uma saudade que chegava de mansinho as vezes, e doía quando nos lembrávamos do custo de estarmos ali.
Nikella lançou um olhar torto para o machado preso em meu pulso, mas estava acostumando-se a me ver usá-lo. Eram os nossos símbolos, o sinal de que resistimos, e agora, controlávamos tudo e todos... mesmo que não passasse de uma forma que encontramos de não perder mais ninguém.
- Quer voltar? - questionei, ela olhou para a silhueta luminosa do palácio de gelo através do véu prateado de seus cabelos banhados pela luz do luar e meneou a cabeça negativamente. Ela parecia ainda mais cansada que eu, mesmo que quando atravessasse o lago e pisasse diante das portas azuis, nada daquilo estaria aparente. Nikella ergueria o queixo e sorriria com sua típica arrogância cultivada.
E eu seria seu oposto. Um espelho indecifrável de calmaria.
Mas às vezes, só precisávamos fugir um pouco das máscaras que vestíamos. E aquele era um daqueles raros momentos. Não queria apressá-lo também.

 


 


Cinco anos.

Haviam se passado cinco anos desde o fim da guerra.

Estávamos suportando mais do que qualquer um de nós imaginou ser possível. Às vezes, pensava em lhe falar sobre Kiara, lhe dizer o que suspeitava quando entrava naquela sala de Aristes e observava os monitores que mostravam os lentos batimentos da princesinha adormecida no gelo. Eu sabia que ela mantinha-se atenta a tudo. Sua mente se desenvolvia, embora seu corpo não. O que aquilo faria com ela? O quanto de sua inocência permaneceria quando fosse acordada, se aquilo levasse muito mais tempo? Tinha receio do que o Mago podia estar fazendo com ela, testes talvez, pois tinha a impressão de que algumas vezes, os aparelhos pareciam terem sido movidos, ou até mesmo a câmara fria aberta.

Um arrepio subiu por minha espinha. Queria tê-la deixado com Áries.

Tinha que ir até lá outra vez. Podia contar com Hasan indo contar histórias a ela, o hábito parecia ter um efeito benéfico em sua tristeza também, pois ela era alguém com quem ele falava sobre quase tudo de bom que havia nos mundos e isso o distanciava de sua dor. Todos perdemos alguém.

Um movimento ao meu lado me fez ser arrancado daqueles pensamentos. Nikella chegou um pouco mais perto e se inclinou para mim, apoiando a cabeça em meu ombro.

Eu tentei, e falhei em não estremecer com o contato, o suspiro frio que percorreu meu pescoço. Tão difícil quanto amar alguém tendo o próprio coração partido, era amar outra pessoa cujo coração também encontrava-se em pedaços. Devagar, envolvi sua cintura com o braço e a aproximei de mim, e diferente do que esperava, ela não se afastou.

- Faz tempo que não olho para ela e vejo toda essa luz - Nike sussurrou, seus olhos agora encaravam a face da lua cheia sobre nós, clareando aquele mundo envolto em gelo eterno com seu brilho etéreo.

- Eu vejo uma luz tão forte quanto todos os dias... sempre que olho para você.

Nikella se virou, encarando-me com os olhos marejados.

- Eu acho que você estaria melhor se tivesse escolhido ficar em Amantia - Ela murmurou, virando-se completamente para mim, fazendo com que minha mão escorregasse de sua cintura.

- Eu não... - Ela meneou a cabeça negativamente, silenciando-me. Nike se pôs de joelhos ao meu lado e apertou minhas mãos. Podia ouvir as batidas aceleradas de seu coração congelado.

- Não seria um vilão para todos, eles não falariam mal de você pelas costas. Eu fiz mal para você, aceitando que ficasse comigo aqui, sei o que falam sobre nós, e sobre Annie e ele... - Meu coração falhou uma batida.

Fazia muito que ela era ciente de meus sentimentos, e talvez... talvez imaginasse que eles haviam mudado pelo que passamos. Porém só haviam aumentado, pois não conseguia deixar de admirar aquela força, e amar tudo nela.

Estava prestes a retrucar, quando ela ergueu minhas mãos e as beijou suavemente.

- Me sinto culpada por ela, por ter sido um instrumento que a tirou de nós. Mas eu não sinto nenhum remorso por você estar aqui - Ela ergueu os olhos para encarar os meus - não sinto nenhuma culpa quanto a ter você aqui, mesmo sabendo que deveria, por Annie! Mas eu não conseguiria me levantar todos os dias e enfrentar todos os mundos e todas as sombras em meu coração, se você não me puxasse para fora desses tormentos todos os dias.

Não haviam lágrimas em seu rosto, só um medo genuíno naquele olhar.

Um que me atingiu com força ao perceber que seu medo não era de estar sozinha. Ela nunca teve medo de estar sozinha. Nikella estava prestes a fechar a passagem dos mundos e me deixar para fora, a salvo dela, a salvo de sua ira.

Seu temor talvez fosse por pensar que eu não a amava mais. Que havia desistido de meus sentimentos pelo que ela se tornou.

- Eu não me sinto culpada por ter você aqui... mas pelo que sinto por você - Sua voz saiu baixa, porém firme. Não havia mentiras ali. E por mais que estivesse disposto a acreditar que ela estivesse dizendo aquelas coisas por se sentir sozinha... aquela ligação gritava a veracidade de suas palavras.

Fechei os olhos, queria apenas ouvi-la dessa vez.

Ela respirou fundo, suas mãos ao redor das minhas estavam quentes, trêmulas.

- Eu tentei sufocar isso desde o dia que percebi a verdade, desde o calabouço no castelo sobre o penhasco - Ela fez uma pausa que só fez aumentar minha ansiedade, a qual eu sempre conseguia manter sob rédeas curtas, mas nunca quando se tratava dela - queria fugir do que sentia, pois pertencíamos a outras pessoas.

- Você nunca pertenceu a ninguém, Nike - a interrompi só naquele instante - sempre foi livre, e sempre será assim.

Ela meneou a cabeça negativamente.

- Você tem uma parte de meu coração nas mãos a muito tempo, Su. Eu só não sabia... não sei como pôr isso em palavras, nem sei se deveria - Ela baixou os olhos - Não sei se tenho direito de te amar, não depois de ser a culpada por tudo de ruim que você tem vivido.

O silêncio dentro de mim não tinha nada a ver com hesitação. Porém, tinha a impressão que meu coração havia parado de bater.

Segurei seu rosto entre as mãos e o ergui para poder olhar em seus olhos.

- Pare de se culpar por coisas que sempre estiveram fora de seu controle, Nikella - sussurrei, afastando uma lágrima solitária que escorreu por seu rosto - Você está com o peso dos mundos sobre seus ombros dia após dia, não tem que colocar mais neles!

- Mas...

- Eu te ofereci algo uma vez, lembra? - Ela suspirou e assentiu lentamente.

- Uma família de verdade.

- Eu seria o que você precisasse. Seu irmão, se quisesse. Um amigo. Mas as coisas mudaram e a oferta continua, de maneira diferente agora se você quiser - Nikella estremeceu e passou os braços ao redor de mim, apertando-me, enterrando o rosto em meu pescoço.

- Tinha medo de dizer isso e você ir embora - Ela inspirou e soltou o ar devagar, mas não se afastou de mim.

- Eu jamais faria isso - a apertei de volta, afagando suas costas gentilmente.

- Mesmo que você não goste de malvarmos?

- Eu gosto de uma - duas, na verdade.

Pude sentir um sorriso pequeno se formar em seu rosto, espelhando o meu próprio. Ela se afastou apenas um pouco para que pudesse seguir a linha de seu olhar, mesmo ao longe podia enxergar Zion em seu uniforme azul de guarda dando voltas sobre as muralhas de gelo do castelo, certamente procurando por nós.

- Su...

- Hmm?

- Lembra de algumas semanas atrás... quando eu sumi um dia inteiro? - Ah, se me lembrava! Se não fosse por aquela ligação, teria imaginado que Nike pudesse ter surtado.

- Não tem como esquecer, Docinho ficou louca atrás de você - Nike mordeu os lábios e desviou o olhar, seu rosto ganhou um tom azulado suave e ela se ergueu quase num pulo, puxando-me com ela.

- Eu quero te mostrar uma coisa - Ela esperou apenas por um aceno meu, então agarrou meu braço e nos levou com o teleporte até um telhado de uma construção tão grande que foi difícil entender a princípio do que se tratava.

Havia gelo por todos os lados, paredes de gelo e pedras Alphos. Longas janelas com vidraças pálidas ou azuladas e bem no meio de quatro muralhas cheias de guaritas apagadas, ainda mais largas que as do castelo, havia uma árvore branca recebendo toda a luz da lua e cintilando como se a absorvesse para si.

Uma árvore semelhante à do pátio central da ACV de Ciartes. Porém, ao redor dessa, um círculo do qual uma barreira se projetava, lançando sua teia de magia ao redor daquela construção, tinha uma frase que era impossível não reconhecer.

“Accessus in alterum orben noctu adarati plenilunium portan aperuerit, sed tantum licet puris intrare”

- É o feitiço de portal que trouxe minha mãe da Terra - Nike assentiu.

- Só que esse foi feito para ser uma barreira - Ela manteve seu aperto ao meu redor, e parecia animada - Tem mais!

Ela sorriu. Havia um brilho animado em seus olhos, um que eu não esperava ver tão cedo, mas sorri também ao vê-lo iluminar suas feições.

Enquanto caminhava com ela até uma entrada no terraço, continuei a reparar na estrutura do lugar. Opostas ao pátio central, três torres sobre um salão octogonal se ligavam a outro prédio por um corredor em “L” e mais dois menores ocupavam lados opostos próximos às muralhas.

Não demorei a perceber o que era aquele lugar.

Uma réplica levemente modificada da ACV de Ciartes.

Descemos pelas escadas estreitas em espiral até um corredor que seguia por vários metros, passamos por uma escadaria central que levava ao que parecia ser um salão e seguimos em frente até uma porta escura e larga no fim dele. Nikella abriu a porta, olhando-me com expectativa e me deixou passar.

A sala era um misto de Vegahn e Amantia, decorada em tons de marrom, azul, prata e dourado. Dois abajures em réplicas de árvores estavam apagados em ambos os lados da mesa de vidro azul, riscada pelo mapa de Blizzion. No lado oposto, estantes com livros e arquivos ainda vazios, mas perfeitamente organizados aguardavam suas primeiras fichas e registros. Atrás da mesa, uma cadeira grande de veludo marrom tinha suas bordas bordadas em folhas douradas que brilhavam suavemente com a claridade que vinha das janelas em arco e exibiam uma vista dos portões dianteiros e do pátio central.

- Você fez... tudo isso aquele dia? - questionei.

Nike contornou a mesa e sentou-se no parapeito acolchoado da janela.

- Pensei... pensei que talvez pudéssemos não ser só os monstros.

- Quer abrir uma ACV em Vegahn - não foi uma pergunta, mas ela assentiu mesmo assim.

- O mundo de gelo tem monstros piores que os de Ciartes. Cacei coisas realmente ruins por aqui quando saí de lá - Ela manteve os olhos nos meus conforme me aproximei e sentei-me em sua frente.

Mesmo depois de tudo aquilo, ela ainda tinha esperança de que pudessem ver algo diferente em nós.

- Tem certeza? - questionei. Ela hesitou por um momento.

- Eu não me formei... mas muitos dos mestres ficaram do nosso lado. Seria bom dar alguma coisa além das passagens a eles. Não podemos controlar tudo.

Assenti brevemente, sentindo meu coração disparar por aquele olhar cheio de esperança pela primeira vez depois de todo aquele tempo.

- Podemos chamar Siorin, já que Demétrius está nas Tormentas, Hasan talvez devesse sair um pouco de Vintro e ela... ela vai precisar de algum lugar além do castelo quando acordar. Vai precisar ser forte, por tudo que representa - Sabia que estava falando de Kiara.

Era tanto progresso para um dia, que por um instante pensei estar sonhando.

- Hasan é ótimo quando quer ensinar. Talvez ter um bando de venox bombardeando meu tio com perguntas o ajude a se distrair. - Nike assentiu.

Ela se aproximou devagar, como se tivesse receio de me tocar e ergueu as mãos, mas ela as deixou cair e uma sombra tomou conta de seu olhar. Não precisava perguntar o motivo de ter as retraído, mas não queria deixar que lembranças ruins tomassem conta de seus pensamentos, não quando tinha conseguido um sorriso dela.

Peguei suas mãos com cuidado, erguendo-as até meus lábios. Nikella estremeceu e fechou os olhos, mas não afastou meu toque.

- Sabe que nunca julguei suas escolhas - sussurrei - muito menos julgaria as consequências delas, pois tudo que você fez, foi tentando proteger a quem amava, Nike. - Não era mentira. Se precisasse fazer uma escolha rápida para salvar alguém, eu faria também, mesmo que minha alma fosse destruída pelas consequências. Tinha dias que eu chegava a pensar que se o fio do destino não me ligasse a ela, Nikella teria se desfeito, teria realmente se transformado em alguém que todos temeriam.

Nike se inclinou, soltando as mãos de meu aperto e passou os braços ao meu redor, abraçando-me de uma forma que não havia feito desde o dia que fechamos o círculo. Desde que acordamos na sala das esferas e a ficha caiu de que nada daquilo era um pesadelo. A apertei de volta e ouvi o tremor de sua respiração enquanto tentava conter a vontade de chorar.

Para todos, ela havia se fechado completamente desde aquele dia, mas as vezes eu tinha vislumbres dos sentimentos que tentava ocultar com toda sua força. E depois do nascimento de Laena e Kiara... ela ainda não conseguia dizer o nome dela, mas algo mais havia se partido ali. A outra menina fora enterrada ao lado de Caalin e apenas uma pedra branca com flocos de neve talhados marcavam seus locais de descanso.

- Me desculpe, Susano! - Ela soluçou e se afastou com os olhos marejados para me encarar - Eu nunca me desculpei como devia, por tirar ela de você.

Meu coração se apertou ao ver as lágrimas rolarem por seu rosto e pingarem em minhas mãos apertadas nas suas.

Ela ainda não havia se perdoado, mesmo que não tivesse culpa. Fechei os olhos, lembrando-me daquele rosto sempre sorridente que esteve ao meu lado, que não teve medo de enfrentar o mal para proteger a amiga.

Annie.

Queria que ela ainda estivesse ali conosco, queria ter tido mais tempo.

Mas ela sempre conheceu meus sentimentos, tanto o meu amor por ela, quanto por Nike, nunca os escondi, ela os entendia mesmo que temesse que eu a deixasse, o que eu jamais teria feito. E naqueles últimos momentos, me pediu para viver, para perdoar. Ela se despediu levando um pedaço de meu coração consigo, mas deixou aquelas palavras como um bálsamo, uma esperança que eu não me deixasse consumir também.

Ainda doía. A ausência dela, de meus pais. Mas se eu afundasse também, quem salvaria a garota em minha frente?

- Porque ainda tenta se desculpar por algo que não tem culpa? - questionei. Nike abriu a boca e meneou a cabeça rapidamente, como se tentasse puxar de volta aquela culpa para si, negando que eu não aceitava o fato de não lhe dever nenhum perdão.

- Eu ainda tenho pesadelos com isso - Ela fechou os olhos - ainda me vejo atirando aquela adaga.

- Se soubesse que era ela, teria atirado mesmo assim? - questionei.

- Nunca! É claro que não! Eu jamais a machucaria! - Nike engasgou com as palavras, seus dedos tremiam.

- Você atacou um mago que estava prestes a atacar Docinho. - disse pausadamente, fazendo-a me encarar. - Você não a matou, Nike.

Ela fechou os olhos, mas segurei seu queixo até que ela os abrisse novamente.

- Você não a matou. Não foi sua culpa. Nós demos um jeito em todos eles. Ayrana, Ayran e Lenios. Eles os tiraram de nós - Não me referia apenas a Annie e Caalin. Mais pessoas não estavam ali por culpa deles. Nike por fim, depois de longos instantes me encarando com aqueles olhos vinho cheios de culpa, pareceu aceitar.

- Eu queria ter percebido - Ela sussurrou.

Nike desviou o olhar para a parede oposta, onde numa moldura, a coroa de gelo de Caalin fora colocada. Um lembrete de tudo, de como ela chegou ao mundo de gelo, de tudo que lutou, ganhou e perdeu... do amor que foi forçada a se despedir e não conseguia aceitar. Seu coração sempre seria dividido, assim como o meu. Aquilo não me incomodou, pois sabia o quanto ela também o amava, e o quanto ela fingia não sentir nada por ele não ter confiado nela. Ela também se culpava por sua morte, talvez mais do que de Annie.

- Por mais... raiva que ainda tenha, Su, eu não consigo deixar de pensar que tirei o pai dela também, que ele não teve a chance de vê-la nenhuma vez. De saber que ela ficou bem - Nike me encarou.

Escorreguei o polegar por sua bochecha, apenas um toque suave, acalmando-a. Nike inclinou o rosto contra minha mão e suspirou, mas não desviou o olhar do meu.

- Não é errado sentir falta dele, Nike, errado seria se você não sentisse nada por tê-lo perdido - Ela fechou os olhos e meneou a cabeça negativamente, sua garganta se moveu, engolindo aquela dor novamente.

- Precisamos voltar - disse por fim, tentando esconder a voz trêmula.

- Eu sei - deixei que minha mão caísse e peguei as suas, pronto para nos levar de volta ao castelo, mas antes que as luzes do teleporte nos envolvessem, Nike disse baixinho:

- Obrigada... por não desistir, Su.

A envolvi com os braços e devagar, como se ainda esperasse que Nikella voltasse atrás, beijei o topo de sua cabeça.

- Herdei a teimosia de minha mãe - murmurei. Ela soltou um risinho.

- E todo o resto do pai.

Não consegui evitar rir também.

Apenas lancei um pedido na noite ao sermos iluminados pelas luzes do teleporte:

“Que as coisas encontrem um novo normal dentro de toda aquela bagunça”


?????


Ao sair do elevador de vidro em Torre das Nuvens, pude sentir a presença dele antes de ouvir sua voz calma contando mais uma história a ela.

Eu só podia agradecer por aquilo! Por ter mais alguém para me ajudar a ficar de olho nela. Entrei na sala um instante depois e observei Hasan com uma das mãos apoiada no cilindro de vitrino, seus olhos variavam entre o livro que lia e o pequeno monitor que exibia as lentas batidas do coração da princesinha em hibernação.

Não tão lentos, percebi.

Havia uma variação, como se acelerasse pelo que ouvia.

- ... Lábios costurados e dedinhos colados. Espero que se comporte até em minha estante estar - Ele completou aquele versinho horrível que fez um arrepio subir por minha coluna. Me adiantei até ele e puxei o livro de seus dedos ao perceber que o monitor registrava um aumento dos batimentos.

- O que está lendo para ela? - rosnei ao virar a capa e perceber que se tratava de um livro de contos de terror - Hasan!

- São apenas histórias, Susano. Ela vai ter coisas muito piores para enfrentar quando sair daí - Ele juntou as sobrancelhas e bufou - Áries lia isso para Neruo, para que ele não fosse uma criança... - Hasan engoliu em seco e desviou o olhar - ...medrosa como a mãe.

Ele encarou as mãos por alguns instantes, então voltou os olhos para o monitor, os batimentos voltando à lentidão de antes.

- Não era para estar acontecendo isso - Ele sussurrou, franzindo o cenho para o aparelho - malvarmos em hibernação não tem noção do mundo de fora assim.

- Talvez seja porque está num ambiente com muita informação, Hasan. Malvarmos costumam se esconder em geleiras para hibernar, não em laboratórios onde podem ser monitorados - comentei, mesmo que aquilo... que aquilo me assustasse também. O quanto sua mente desperta absorveria do mundo, o quanto ela saberia quando despertasse novamente. Sua mente não seria mais de uma criança de levássemos mais tempo?

Hasan apenas suspirou, ainda encarando a capa do livro fechado em minhas mãos.

Precisava tirá-lo de suas lembranças também.

- Neruo ia gostar de brincar com ela - sussurrei.

- Nyumun costuma levar Scath até Vintro para que eles possam brincar. - Hasan comentou baixo, desanimado outra vez. Ele tirou o livro de minhas mãos e o folheou.

- Deveria ir até o castelo de gelo mais tarde, acho que Nike tem algo a te dizer - Vi a recusa em seus olhos e antes que ela viesse, emendei: - Acredito que seja mais um favor, o que ela tem a pedir.

Hasan encolheu os ombros, mas assentiu brevemente. Ele se levantou, lançou um último olhar à princesa adormecida e desapareceu numa coluna de luz.

Torcia para que ele fosse até lá.

Nike e Hasan eram os que tinham mais dificuldade para enfrentar o que passávamos. Em breve, muito em breve teríamos a abertura dos portais e a visita de meus pais nos animaria um pouco. Podia ouví-los em meus sonhos as vezes, mesmo que doesse acordar e não os ter lá.

 


Hasan avaliou em silêncio cada canto que foi lhe mostrado da ACV. Por fim, encarou Nike sentada atrás da cadeira com um olhar cheio de expectativa para ele, mas eu conhecia aquela expressão séria e avaliativa no rosto do solaris, e esperava que sua resposta não a atirasse de volta em um buraco.

Ele a encarou por um breve momento antes de desviar o olhar e alcançar a xícara com chá em sua frente.

- Abrir uma ACV aqui é realmente uma ótima ideia - Ele começou, fazendo os olhos de Nike brilharem - Mas não agora. Não quando é tudo tão recente, vocês ainda não deram provas o suficiente a todos que podem controlá-los, se fizerem isso agora, abrirem a ACV, demonstrarão que não tem controle de tudo, pelo contrário, darão brechas para que pensem que vocês não estão dando conta deles. Deveriam esperar mais - Nike abriu a boca para discutir, e Hasan apenas a encarou com os olhos dourados irredutíveis - Você precisa treinar, controlar sua magia com ainda mais precisão. Ainda há problemas nos mundos, especialmente em Vastrus, antes de dar essa prova de benevolência, precisa mostrar a eles o que os aguarda quando esquecerem de quem você é. Ainda não é tempo para isso, Nikella.

Ela piscou e recostou-se na cadeira, pesando as palavras dele.

- Pode... treinar comigo? Me ensinar? - Ela pediu, suspirei aliviado, pelo menos Nike não se encolheu de volta em sua casca.

Hasan me encarou por um instante, seus olhos agora eram negros, mergulhados naquela fera herdada de Áries, ele os voltou para Nike e assentiu.

- Não podemos ficar parados esperando de tudo se conserte sozinho, de qualquer forma. - Ele deu de ombros e se ergueu - Mas... esconda tudo isso. Não deixe que vejam agora que ainda há bondade em seu coração, Nikella, você ainda tem um ponto onde pode ser atingida, e vão atacá-lo se perceberem que vão te quebrar com isso.

Ela se encolheu, mas sua expressão se fechou e Nike assentiu. Meu coração se espremeu no peito outra vez, lá ia-se a chance de despertar a princesa agora. Hasan pareceu ler isso em meu olhar ao se erguer e virar-se para mim, ele apertou meu ombro e murmurou:

- Não é uma boa hora, a não ser que a levem para Amantia o que sei que não vai acontecer - Ele olhou de relance para Nike, que havia apertado os lábios numa linha fina e não o encarava de volta - vou ficar de olho em Aristes, não se preocupe.

Assenti, percebendo que não adiantaria discutir com eles sobre o assunto. Ambos estavam certos, era um risco grande abrir a ACV agora, e um maior ainda despertar Kiara só pelo temor do que o mago branco poderia estar fazendo.

Bom, Aristes não era mau. Ele não faria nada que a prejudicasse. Tinha que acreditar naquilo.

Hasan desapareceu em um portal no instante seguinte e Nike permaneceu olhando pela janela, encarando o pátio congelado, a neve que caía suavemente lá fora. Me aproximei e a envolvi lentamente com os braços, Nike soltou um suspiro contido e fechou os olhos.

- Ele está certo. Não podemos demonstrar tanto cuidado agora. - Assenti brevemente.

- O que vai fazer, então? - questionei, uma barreira ilusória ao redor do lugar não o protegeria tanto. Nike apenas apontou com o queixo para uma entrada na sala e foi até lá.

Uma escada escondida que levava até o terraço.

Nike passou os olhos pelo lugar uma última vez e me fez um sinal com a mão, no mesmo instante saltei, abrindo as asas, deixando-a sobre o terraço. Nikella me lançou um meio sorriso antes de voltar a atenção para sua obra, então abriu os braços.

Um tremor fez neve ao redor da ACV se levantar em ondas, Nike brilhou, erguendo-se sobre uma coluna de gelo e então a terra se abriu. As ondas de gelo e neve fecharam-se sobre a fortaleza como a boca de uma besta colossal, engolindo-a. Com um dedo sobre os lábios, Nikella fez a neve assentar, arrastando a construção para o fundo como se nada daquilo estivesse ali um momento antes.

Apenas uma planície congelada entre duas florestas distantes permanecera.

E nada de seu calor foi consumido por aquele uso de magia.

Nem queria imaginar o que um treinamento com Hasan faria com seu poder, o quanto ele se tornaria letal. Mas era necessário.

Me aproximei dela e a peguei nos braços, lançando-nos de volta ao céu. Nike passou os braços ao redor de meu pescoço e suspirou.

- Não é um adeus, Nike. Só...

- Eu sei - Ela me deu um breve sorriso - devemos isso a eles, Su. Mas podemos esperar.


Despertar


Nikella:

 

Eu queria, com todas as forças, que Susano parasse de andar em círculos pelo quarto. Seus movimentos repetitivos só aumentavam minha própria angústia. Sentada sob a janela, pressionei os lábios com força ao sentir uma pontada dolorosa nas costas, nada como as próximas pelas quais eu já esperava. Eram apenas as contrações iniciais, não seriam tão ruins quanto as que viriam nas próximas horas.

Ele ia e voltava sobre o tapete felpudo em frente à lareira, a pilha de livros que havia recolhido para que eu me distraísse continuava intocada na mesinha ao lado do sofá central da biblioteca. Uma chuva torrencial caía lá fora e... ainda nada de Aristes, Arcádius e Eirien.

- Susano - mal disse seu nome, mas ele veio direto até mim, segurou meu rosto entre as mãos e espalhou sua magia de cura por mim, fazendo-me soltar um risinho quase histérico.

- O quê? - Ele piscou aqueles olhos verdes como o interior de uma floresta viva para mim. Afastei uma mecha negra de seus cabelos que havia soltado de seu coque e o encarei:

- Não vai ser uma chuva que vai impedir dois magos de chegarem aqui, e ainda temos tempo! - expliquei calmamente. Susano assentiu, ele aproximou a testa da minha e suspirou.

- Desculpe, estou nervoso!

- Não diga! Ninguém percebeu isso! - Docinho zombou, mostrando a língua bifurcada a ele. - Não condiz com a aparência de um tirano, majestade, melhor arrumar sua postura!

- Tem mais alguém aqui para ver meu momento de apreensão? - Ele rebateu, sentando-se ao meu lado e aproveitando a proximidade para escorregar as mãos por minha barriga. Em resposta ao carinho, outra contração chegou, um pouco mais forte que a anterior.

Soltei um longo suspiro, tentando controlar a vontade de mandar docinho parar de resmungar e deixá-lo em paz. Susano não estava só nervoso pela chegada de nosso filho. Não... era ansiedade que o consumia por enfim poder despertá-la. Era o que ele ansiava fazer, desde o minuto que a colocou para dormir.

Não podia negar que também esperava por aquele momento, embora tivesse medo dele.

Não havia uma noite em que eu fechasse meus olhos para dormir que eu não o visse. Às vezes, me encontrava no Vale do Sol, e mesmo que tivesse enfim aceitado que não foi minha culpa... não deixava de sentir aquela perda de novo e de novo. Fechei os olhos por um momento, mas não permiti que aquela dor renascesse naquele momento. Era para ser um dia feliz, não queria ficar triste outra vez.

Nós... havíamos conseguido.

Haviam se passado vinte e nove anos do fim da guerra.

Eu permiti que ela fosse mantida dormindo por todo aquele tempo... e mesmo com os alertas de Hasan e Susano, suas desconfianças de que Aristes podia estar estudando-a, eu ainda não sabia se conseguiria encará-la.

Susano escorregou os nós dos dedos por minhas costelas, estive perdida em meus pensamentos e não o percebi me encarando com o cenho franzido, procurando por algo errado.

- Está com dúvida sobre...

- Não vou voltar atrás, Su, não se preocupe - o cortei, eu não desistiria dela. Não poderia. Precisava encarar aquilo de um jeito ou de outro, seria cruel não o fazer e com outro bebê... talvez fosse mais simples, ela teria companhia, não seria apenas uma criança escondida do mundo. Teria um irmão ou irmã para esconder-se com ela também. Torcia para que fosse um menino.

Docinho havia escapado da biblioteca e eu nem a vi sair.

Susano então sentou-se ao meu lado sobre as almofadas do sofá embutido na janela, de forma que eu pudesse deitar a cabeça em seu ombro. Ao inclinar-me contra ele, Susano me beijou, fazendo-me rir, porém outra contração me fez soltar o ar e inspirar profundamente.

- Está diminuindo o tempo. - Ele constatou, assenti brevemente e observei suas mãos ao redor de minha barriga, o carinho gentil, ao mesmo tempo ansioso.

Não podia negar que também me sentia daquela forma.

Dessa vez... essa era uma chegada esperada. Era o nosso bebê, e mesmo com todos os riscos, precisávamos nos dar aquela chance de sermos felizes um pouco. Sete Meses, dessa vez o tempo parecia a favor do sangue humano e elfo, pois se a criança fosse malvarmo pura, teria nos presenteado com sua chegada quase dois meses e meio antes.

- Eu quero escolher o nome dessa vez - murmurei, incomodada pelo silêncio em que o castelo se mantinha desde a noite anterior.

- Nada mais justo - Ele me deu um beijo de leve sob a orelha.

Feroz esticou-se sobre meus pés, fazendo-me lembrar de sua presença ali, o tigre encolhido bocejou e deitou a cabecinha novamente entre as patas como um tapete velho dorminhoco. Não via Ira desde o começo da manhã, mas o glácio também parecia incomodado com a falta de movimentação do castelo.

Zion dispensou a maior parte dos criados, quem quer que talvez não soubesse segurar a língua sobre a chegada da menina, e apenas alguns criados permaneceram, assim como a curandeira, Glyph e seu filho, o menino malvarmo que fugia toda vez que me via por perto. Eu mal vira seu rosto duas vezes, ele sempre fugia e mantinha-se longe quando sentia minhas sombras espreitando.

A capitã da guarda era a única que conhecia o pai do menino, um malvarmo de sangue azulado do continente norte que foi chutado pela curandeira assim que ela descobriu a gravidez. Acabei rindo ao lembrar de suas palavras: “Eu quero um filho, não um macho pendurado em mim! Deuses me livrem!”

Fui arrancada de meus devaneios por duas coisas ao mesmo tempo: a dor que foi e voltou por minhas costas e a presença que senti em minhas barreiras ao redor das muralhas.

Lórien, Eirien, Arcádius, Aristes, Hasan e...

- Eles chegaram - avisei à Susano num baixo rosnado, que ergueu-se de um pulo, pude sentir seu coração acelerar, mas meu tom de voz devia-se a última presença - Não a deixe entrar, ou juro por tudo que é mais sagrado, eu vou trancá-la numa caverna no Deserto de Sal por um dia inteiro! - grunhi.

- Não se estresse, por favor - Susano pediu, inclinando-se para me dar um beijo, Zion sabia que não deveria permitir que Áries se aproximasse do quarto, mas eu estava no cômodo errado e a biblioteca era quase como usa sala de visitas.

- Se ela a pedir novamente...

- Ela não vai fazer isso, Áries não é...

- Ah, ela é, e vai pedir, aposta? - ralhei, levantando-me para caminhar pelo quarto. Só a chegada da malvarmo havia me irritada o suficiente para que fosse minha vez de andar em círculos.

- Os nomes, Nike? - Susano tentou, ele queria me distrair, mas as teias de magia que mantinha nos corredores denunciaram suas presenças, podia sentir cinco delas vindo até mim e três afastando-se em direção à sala de cura.

Não tive tempo de dizer o primeiro nome antes que a porta fosse aberta por Zion, que me olhou curiosa antes de anunciar os chegados, não que fosse preciso:

- Majestades - Ela mostrou a língua para mim e deu um sorriso, sempre tentando manter os climas descontraídos, não importando a situação - Visitas ansiosas e com apostas sobre o bebê!

- Pelos deuses, Zion, segure a língua! - Eirien a fuzilou com os olhos ao passar à frente, trazendo o que parecia um pacote de presente nas mãos.

Porém Lórien passou por ela aos pulos e jogou-se em cima de mim, com delicadeza, claro! Ela apertou minhas bochechas soltando gritinhos histéricos.

- Eu apostei que vai ser uma menina! - Lórien tomou um beliscão de Eirien, que pigarreou e entregou o pacote à Susano, em seguida me avaliou com excessiva atenção.

- Eu ganhei, vai ser menino - disse, fazendo Susano soltar um suspiro.

- Vovó! Até a senhora? - A elfa riu e jogou o manto de cabelos castanhos para trás antes de envolver os ombros de Susano num abraço e sussurrar:

- Eu adoro uma aposta, especialmente quando sei que vou ganhar! - Ela riu. Arcádius, que mantinha-se perto da porta, olhava de vez em quando para o corredor e nos ofereceu apenas um sorriso travesso antes de deixar a biblioteca.

- Ainda está em tempo de participar? - questionei, Lórien gargalhou da expressão incrédula de Susano, mas assentiu mesmo assim - Menino, tenho certeza.

- Veremos! - Lórien riu.

- Os outros foram...? - Susano me lançou um breve olhar avaliativo antes de voltar sua atenção à Lórien, que por sua vez lhe deu um sorriso bonito em resposta e disse:

- Aristes, Áries e Hasan foram até Glyph para que ela fosse avaliada. A estão preparando para despertar, pelo que entendi de Aristes, foi um tempo longo, Hasan os está auxiliando a aquecê-la.

- E Áries precisava vir junto? - rosnei. Lórien riu baixo, mas de uma maneira que me irritou mais.

- Ela certamente vai pegar a menina e sair correndo assim que Kiara abrir os olhos.

- Ela que tente! - soltei outro rosnado, ao mesmo tempo que levei as mãos as costas, tentando ignorar outra dor que irradiou por mim, fazendo-me bufar.

- Não piore a situação, Lórien! - Susano ralhou - E você não devia estar se estressando assim, Nike.

- Tá, tá! Tudo bem! Vou me acalmar!

Mentira. A presença da guardiã me irritava. Não conseguia ficar no mesmo cômodo que Áries sem me lembrar da noite de meu casamento com Caalin. Áries era uma versão feminina de Lenios, tão parecidos, até mesmo na postura arrogante e esquentadinha que me irritava estar perto dela.

A irritação só piorou as contrações, que tornaram-se mais intensas e logo senti que a hora chegava.

- Deveria ir para seu quarto, Nikella - Eirien avisou, aproximando-se para passar um braço ao redor do meu, Susano num instante apareceu ao meu lado também, murmurando que tudo ficaria bem.

Queria rir de seu nervosismo, de como me varreu com os olhos e envolveu-me com os braços para me guiar de volta ao quarto. Porém sabia o motivo daquele receio em seu olhar e não tinha apenas a ver com a chegada do bebê.

Talvez Susano tivesse receio... que acontecesse outra vez.

Mas eu estava pronta para enfrentar tudo, precisava deixar os medos e as dores para trás. Vinte e nove anos! Como não estaria?

Ao sairmos da biblioteca com Eirien empolgada e Lórien tagarelando sobre sua lista imensa de nomes para bebês e oferecendo uma mudança na aposta, para o caso dela acertar, ela escolher o nome da menina, o qual eu recusei imediatamente.

Porém enquanto caminhávamos, tive o desprazer de ouvi-la chegando no corredor paralelo ao que estávamos.

“Deuses” ouvi Susano inspirar profundamente antes que a figura de Áries entrasse em nosso caminho. Dessa vez ela não usava sua aparência habitual, aquela diminuta que costumava vestir sempre, mas exibia sua real forma, a da guardiã do círculo que costumava fazer todos tremerem como varas ao vento.

Cabelos longos loiros, três palmos maior do que costumava ser e... aqueles malditos olhos azuis.

Iguais aos dele, do assassino de Annie.

Como Susano conseguia simplesmente não notar?

Ela me observou de cima a baixo com uma expressão indecifrável e soltou um longo suspiro.

- Áries - Eirien cumprimentou. Ela, Susano e Lórien fizeram breves reverências.

Mesmo que eu estivesse em condições, eu não me curvaria.

Ela retesou os lábios e chiou.

- Vim dar meu último aviso, garota...

- Aviso? - A interrompi - Imaginei que sua presença não solicitada se devesse ao fato de insistir em algo que já neguei outras vezes, Áries. Minha resposta ainda é não.

Susano envolveu meus ombros, tensão brilhava em seus olhos conforme avaliava a postura irritada da guardiã. Áries olhou para minha barriga, para minhas mãos sobre ela, talvez para minha postura suprimindo outra pontada de dor.

- Sabe onde me encontrar caso decida que não vai conseguir. - Ela não disse mais nada, apenas estalou os dedos e um portal branco de luz a engoliu no instante seguinte, lançando uma brisa fria com cheio de anis, chuva e neve que fez minha garganta se apertar.

Fechei os olhos e respirei fundo por um momento, ignorando o que aquele toque frio de magia me fez sentir, ainda mais por... ela estar ali, prestes a despertar.

Seu pai não estaria ali.

- Nike? - Susano segurou meu rosto com delicadeza, deslizando os polegares por minhas bochechas.

Deixei que seu cheiro tomasse conta de meus sentidos, que sua presença calmante e a mansidão que sempre me ofereceu assentassem em minha alma. O toque quente e gentil de seus dedos em minha pele lembravam-me do presente que recebi, de que era incondicionalmente amada, independente de meus defeitos, de meus erros, de tudo de ruim que fui capaz de fazer. De tudo que fiz por amor também.

Susano me envolveu num abraço suave e beijou minha testa.

- Está tudo bem, Nike. - Ele sussurrou.

O apertei de volta.

Sempre seria meu melhor amigo.

O amor de minha vida.

Eu sabia disso a muito tempo.

E aquele sentimento só me fazia sentir mais culpada por tudo, por ainda sentir falta... dele também.

- Me desculpe - sussurrei, sem querer encará-lo.

- Não tem porquê se desculpar, sabe disso - Ele ergueu meu rosto e depositou um beijo suave nos cantos de meus lábios, fazendo-me sorrir.

- Dá pra pararem com esse grude todo? O bebê vai acabar caindo no meio do corredor de tanta enrolação! - Lórien debochou, me virei para trás para beliscá-la, mas o movimento fez aquela dor voltar, acompanhada de algo mais - Eu avisei, Nike!

Deuses!

Estava na hora!

- Chame a curandeira, por favor - Susano pediu, me pegou nos braços e voou escadas acima para o quarto.

 


Três horas depois de toda aquela dor, de fazer força escutando os incentivos de Eirien e Glyph, e de Susano permanecer ao meu lado sem soltar minha mão em momento algum e ouvir Lórien comentando com Arcádius a cada cinco minutos sobre a aposta, a curandeira deu um aceno positivo e sorriu.

Um choro alto a plenos pulmões me fez começar a chorar também.

- Um menino, majestades. - Ela avisou, embrulhando-o no manto que Eirien trouxera de presente. Susano sorriu e o pegou, trazendo-o para mais perto de meus braços entendidos.

Ele me encarou com aqueles olhos verdes brilhando de felicidade e o peso em meus braços fez minha garganta se apertar.

O bebê gorducho em meu colo tinha aqueles mesmos olhos e ralos cabelos castanhos colados em sua cabecinha.

- Oi, Fares - sussurrei, beijando-o com cuidado, com medo de ferí-lo.

- Um nome lindo, querida - Eirien sorriu, tocando-o de leve com as pontas dos dedos.

Lórien com um estalo dos dedos desapareceu com o sangue e a sujeira dos lençóis e se aproximou, sentando-se ao meu lado para olhar o bebê.

- Te devo um favor, pelo visto - Ela ralhou, mas sorriu para o “sobrinho” em meus braços. - Ele se parece com Leona!

Uma batida suave na porta me fez desviar os olhos daquele rostinho e encarar os recém-chegados.

Meu coração vacilou uma batida ao ver Hasan e Aristes entrarem no quarto. O solaris trazia um embrulho nos braços, que me mexia inquieto e resmungava baixinho, mas os olhos dele não estavam nela, e sim em mim. Susano me encarou por um momento, esperando, aguardando qualquer sinal de mim.

Eu assenti.

Era tudo o que ele precisava.

Um sorriso surgiu em seu rosto e Susano levantou-se, tirando a criança dos braços de Hasan.

- Está tudo em perfeita ordem, majestades - Aristes comentou, olhando-nos com aquele sorriso um tanto perturbador no rosto. - O desenvolvimento dela não será afetado, está saudável e forte, Hasan conseguiu despertá-la completamente do congelamento sem que fosse preciso qualquer intervenção minha!

Hasan assentiu brevemente, sem tirar os olhos de mim.

Eu podia sentir aquele olhar... como se ele tivesse prometido a ela, a sua mãe, que a levaria, que tiraria Kiara dali se eu não demonstrasse uma reação certa à sua chegada.

Mas nada - NADA - me preparou para aquilo.

- Bem-vinda, Kiara. - Susano sussurrou, beijando sua cabeça antes de colocá-la em meu braço livre, ao lado de Fares. Olhá-la, fez alguma coisa que eu nem sabia estar se remendando dentro de meu peito, partir-se novamente. Ela tinha a mesma pele nevada, sardas quase brilhantes como pontinhos de luz emolduravam as maçãs de seu rosto. Um tufo de cabelos brancos espalhava-se sobre sua cabeça em cachos mínimos e por fim, quando ela abriu os olhos e encarei aquelas bolinhas de turquesa, meu coração se partiu.

Não consegui evitar chorar. Não consegui não me lembrar daquele mesmo olhar em outro rosto.

Ela era perfeita.

Era uma luz, ao mesmo tempo que trazia toda a escuridão de minha alma à tona.

- Está tudo bem, Nike - Susano sussurrou, beijando de leve meu rosto, inclinando-se para tocar os lábios suavemente nas crianças em meus braços. Ele ficou ao meu lado, olhando-os, esperando que o meu choro finalmente cedesse.

Hasan se aproximou de Lórien e sussurrou algo a ela que a fez franzir o cenho, eu não queria lhes dar atenção.

- Eu vou cuidar deles, prometo - deslizei os dedos pela bochecha dela e me inclinei para beijá-la também.

O cheiro, mesmo que mais suave de anis, âmbar e neve me fizeram estremecer.

Ela era igualzinha a ele.

Soprei o rosto de Kiara, enviando uma suave brisa de magia que a fez começar a chorar, seus olhos mudaram de cor, assumindo um tom vinho. Susano ergueu as sobrancelhas numa pergunta silenciosa e os outros olhavam confusos também.

- Ela precisa se passar por mestiça. Não tem como fazer isso se não tiver os olhos vermelhos - expliquei brevemente, lembrando-me da explicação de Glyph sobre as cores de olhos dos malvarmos puros.

As crianças em meu colo choramingavam, eu puxei mais os braços, juntando-as até que eles se tocassem.

- Tem razão, majestade. Será mais fácil passá-la por mestiça, por gêmea de Fares caso tenha olhos vermelhos. Bem percebido - Aristes sorriu e pigarreou - Gostaria de lembrar-lhes que caso precisem, basta me procurarem!

Ele estava prestes a deixar a sala quando Kiara ainda chorosa estendeu a mão, alcançando o punho fechado de Fares...

E a noite se espalhou ao nosso redor.

Marcas verdes de Arbarus brilharam no bracinho esquerdo de Kiara, assim como a pequena orquídea verde acesa em sua testa. Em Fares, víamos as gavinhas pretas e brancas em seu braço direito.

Ao se tocarem, suas magias se misturaram, mergulhando o quarto numa escuridão salpicada de estrelas, em pontos do quarto via os vasos de flores brotando, água surgindo e ventos suaves balançando os quadros nas paredes.

- Mãe das águas - Lórien sussurrou, estendendo os braços para suprimir aquela onda de magia.

- Que magias espetaculares eles possuem! - Aristes riu, batendo as palmas das mãos.

Eirien observava as crianças em meus braços chocada e Hasan, com o cenho franzido, avaliava os últimos vestígios daquela escuridão desaparecendo.

- Precisamos abrir a ACV o quanto antes - Sussurrei. Nós precisaríamos mantê-los seguros.

Pelo que representavam.

Já não podíamos mais ser apenas os monstros, não mais, ou tudo que representávamos recairia sobre eles também. Nada fica escondido para sempre.

Susano apertou os braços ao meu redor e assentiu.

Hasan, mesmo a contragosto, assentiu também.

Eu precisaria deles, de todos eles.

Estava na hora de mudar o jogo.


Príncipe de luz e sombra


Nikella:


- Continua errado, Kiara - ralhei, observando através das sombras as palavras quase perfeitamente escritas nas folhas em sua frente. Kiara ergueu os olhos vermelhos para mim e assentiu, ela afastou o papel e pegou outro.

- O que está errado? - quis saber. Em seus cinco anos, já conseguia ler e escrever textos e fazer contas quase tão bem quanto um adulto, e isso me deixava apreensiva. Seu desenvolvimento era muito maior do que o de Fares, que mal conseguia copiar palavras curtas e lê-las com certa dificuldade, mesmo que Susano os ensinasse igualmente.

- Trocou a ordem das palavras - avisei, ela baixou os olhos e releu a frase três vezes até encontrar o erro e refazê-la.

Passei os olhos novamente pelas provas escritas de sobrevivência que corrigia rigorosamente, havíamos finalmente inaugurado a ACV após um ano do nascimento de Fares e Kiara, dávamos nossos máximos para conseguir ótimos resultados quatro anos depois da abertura da academia.

Estávamos alcançando rapidamente os níveis das ACV’s de Ciartes e Pollo e tínhamos tantos venairens quanto.

Assim que Kiara e Fares tivessem idade suficiente, os colocaria lá.

Estariam protegidos no meio deles. Estariam seguros caso fossem realmente treinados, tanto em combate quanto em magia, não podíamos nos dar ao luxo de acreditar que seria sempre tudo calmo daquela maneira.

Um suspiro irritado tirou-me de meus pensamentos, Kiara encarava o papel com o cenho franzido numa expressão que me lembrou tanto seu pai que meu coração se apertou.

Ao notar meu olhar sobre ela, Kiara suavizou sua expressão e me mostrou as presinhas num sorriso gentil, que fez outro daqueles nós reaparecerem em minha garganta.

Eu havia tirado aquilo dele.

Aqueles sorrisos, aquele carinho.

Eu não os merecia, Caalin a queria com todas as forças, queria aquele filho que não sabia ainda se seria menino ou menina.

Mas ele o desejava para poder dar todo o carinho que negligenciou aos outros, que os fizeram se tornar aquilo que matei sem um pingo de remorso.

E quem tinha agora o carinho dela... era Susano. Eu não a merecia, não merecia ter aqueles momentos, ver aqueles olhos brilhando para mim.

Entrei na frente de Marglan... eu quase a perdi por minha escolha.

- Já chega por hoje, vá brincar em seu quarto - ordenei, seu sorriso vacilou, mas Kiara afastou-se, murmurando um "sim senhora" antes de sair da mesa, seguir até a porta e deixar a biblioteca com a cabeça baixa.

Susano apareceu no instante seguinte e a acompanhou pelo corredor com os olhos até que ela desaparecesse pelas escadas, só então os voltou para mim.

- Ela errou os deveres e você brigou com ela? - Ele questionou, aproximando-se para ver as páginas e arqueou as sobrancelhas ao ver o que ela havia feito.

- Estão perfeitos, como sempre - murmurei, ajeitando a pilha de provas em minha frente, Misty havia voltado à Ciartes para ver a família e eu fiquei de corrigir suas provas. Minhas aulas eram as de combate. Graças a quase vinte anos de treinamento com Hasan, Siorin e Arcádius, havia me tornado apta a lecionar.

Por sorte, Siorin e seu filho Scath mudaram-se para Vegahn na última abertura de portais, assim contava com o auxílio deles com as aulas. Scath, mesmo com seus vinte e dois anos, era incrivelmente forte e habilidoso em luta, e havia assumido o posto de artes marciais.

Siorin lecionava esgrima para as turmas menos avançadas devido a sua maior paciência e eu havia ficado com combate das turmas avançadas.

No próximo semestre, Hasan substituiria Susano nas aulas de línguas, para que ele pudesse lecionar combate mágico.

- Não devia ser tão... fria com ela, Nike. Kiara não entende, ela fica magoada com você. - Susano sussurrou, aproximando-se de mim. Ele escorregou os dedos por meu pescoço, afastando meus cabelos para depositar um beijo suave na curva de meu ombro.

Esqueci até mesmo como ler o que corrigia.

- Está me distraindo! - ralhei, mas minha voz trêmula me denunciou.

- Essa é a intenção, diretora. Não aja como uma tirana com sua filha - outro toque dos lábios, mais perto de minha orelha e meu coração congelado descompassou - Kiara não é ele, Nike, você não pode ser assim com ela.

Virei o rosto para encará-lo, mas fui surpreendida por um beijo, um leve roçar de sua língua sobre meus lábios antes de capturá-los num beijo voraz.

- Reforço positivo? - arfei. Ele riu baixo e assentiu devagar - Você já é o grudento, o carinhoso, ela precisa de alguém com pulso firme também.

- Ela precisa saber que a mãe a ama, por baixo dessa geleira toda. - Ele insistiu, encarando-me sério dessa vez.

- Eu tento... mas não consigo mostrar isso. Ainda não.

- Sabe que eu não te pressionaria a nada, Nikella, mas foram vinte e nove anos. Ela precisa de você também. - Ele suspirou e se levantou, não antes de me dar outro beijo.

- Vou me esforçar mais - murmurei. Ele assentiu e deixou a sala e eu voltei a atenção ao trabalho, porém não por muito tempo. Uma presença sombria se espalhou pelo castelo, fazendo-me sorrir.

Visitas.

- Ora, ora! Trabalhando, como sempre! - A voz melodiosa de Honén me fez erguer os olhos para observá-la. A tenebris chegou por uma fenda no escuro, trazendo consigo Luyen e, como eu gostava de chamar o “clone de Hamza”.

- Majestade - Lohan, o príncipe cuja magia sombria ironicamente era mais forte que sua tormenta, curvou-se um pouco, deixando os cabelos negros escorridos cobrirem seu rosto. Ele piscou aqueles olhos azuis rajados de prata para mim e sorriu um pouco. Nove anos, e já tinha tanto charme quanto o pai.

- Bem-vindos! Não esperava visitas! - sorri, levantando-me para guiá-los até a sala de estar do outro lado da biblioteca.

- É claro que não, criaturas que se escondem em tocas, geralmente não esperam que outras se enfiem em seus buracos! - Luyen, sutil como sempre me fez rir e abraçá-la, o que era no mínimo irritante, a tormentadora de cabelos longos cor de chumbo era mais de dois palmos mais alta que eu.

- Você continua crescendo? - reclamei, ela apertou-me mais e meneou a cabeça negativamente.

- É você quem está encolhendo!

- Preciso ir até o Oitavo novamente, Prisla queria minha ajuda em um projeto - Honén nos ofereceu um sorriso e desapareceu em seguida. Luyen e eu seguimos até a sala ao lado, Lohan porém, lançou um olhar pidão a mãe e essa o respondeu com um revirar de olhos e um aceno positivo.

- O que é? - questionei.

- Ele pediu para ir brincar, Kiara ainda não o conhece, disse a ele quando saímos de casa que ele teria alguém para brincar aqui.

- Espero que se deem bem, Kiara não tem amigos, os filhos das serviçais não se aproximam muito dela, o único que se arrisca as vezes é Eileen, mas é filho da curandeira e ela tem uma avó idosa, Glyph sempre precisa dele para cuidar da senhora.

- O que a faz não ter amigos? - Luyen ergueu as sobrancelhas. A pergunta não me surpreendeu, porém. Ela não media palavras com ninguém, era o que eu mais gostava em nossa amizade. Zion apareceu naquele instante, trazendo chá para nós e alguns doces, cujas coberturas açucaradas fizeram os olhos da tormentadora brilharem.

- Ela é... inteligente demais. Geralmente não gosta das brincadeiras das outras crianças da idade dela, e suas conversas nem sempre são compreendidas por elas também, Kiara costuma ficar mais perto de Fares, ele é o único que a entende melhor.

Aquilo me incomodava.

Era culpa minha também, pois diversas vezes Susano tentou me alertar sobre sua mente estar alerta na hibernação, ela se desenvolveu muito mais rápido do que esperávamos. Por um lado era bom, pois pelo que Arcádius e Sirius diziam quando vinham avaliá-la, ela seria excelente em qualquer atividade que lhe fosse apresentada.

- Acho que vai se dar bem com Lohan, então - Luyen soltou um risinho - Ele estuda com Awen, o filho de Owyn, Lohan está no mesmo nível que o primo mais velho e também só tem Nibben e Awen como amigos.

Mesmo que não quisesse demonstrar, suspirei aliviada.

Sem que Luyen percebesse, lancei uma sombra ao encontro do garoto, o vi caminhando pelos corredores do terceiro piso, então a fiz materializar-se diante dele como um gato de sombras e o guiei até onde senti a presença de Kiara, sentada sozinha no jardim de Oriel.

Meu alívio, no entanto, não durou muito.

Senti mais uma aproximação e soltei um suspiro irritado.

- Nikella - Áries apareceu nas portas duplas da sala, vinha com seu semblante sério de sempre e com aquela postura altiva que me tirava do sério. Ela podia ser a guardiã mais famosa, respeitada, temida, mas tudo que eu queria era enfiar os dentes em sua garganta para ver se ela me deixava em paz!

- Áries, que visita... como posso dizer sem assustar minha amiga? - brinquei, mostrando-lhe os dentes por cima da xícara de chá.

Luyen piscou confusa, olhando a malvarmo em sua forma completa de cima abaixo.

- Ah, que falta de educação a minha! Áries, essa é Luyen Asterath, princesa do Oitavo Céu - a apresentei - Luy, essa é Áries Orieser, a guardiã solar do Círculo dos Doze, e a dor de cabeça que torna minha vida infernal às vezes!

Luyen engasgou com o chá.

A malvarmo soltou um rosnado e me fuzilou com os olhos.

- Andei conversando com seus criados. Descobri coisas interessantes sobre sua negligência ao treinamento de Kiara. - Ela comentou, aproximando-se dos sofás, fechando as garras longas azuladas no encosto bem perto de minha cabeça.

Ah, alguns criados iam perder as línguas!

- Minha filha é treinada, inteligente...

- A está educando como se ela fosse humana! - Áries rosnou - Ela é malvarmo! Não à está ensinando adequadamente, você foi transformada, não se interessa por conhecer mais de si além da necessidade de se alimentar! Aquela menina precisa saber tudo o que é! Precisa saber tudo o que pode sobre a própria raça e você não está dando isso a ela!

As palavras de Áries me lançaram numa fúria gélida, porém contida.

- Ela aprenderá com o tempo.

- Está a colocando em risco, Nikella! - Áries rosnou, suas garras enterraram-se no forro macio do sofá - Você quase morreu por não saber que precisava de calor! Negligenciou o que se tornou e agora está fazendo o mesmo com ela!

- Kiara sabe se alimentar - soltei entre os dentes - sabe o motivo de fazê-lo...

- E só isso? Te ensinam a correr, mas se não disserem o que vem atrás de você caso não corra, como vai saber do que precisa fugir? - Ela me fez encará-la novamente, os olhos azuis frios não se desviaram dos meus - Me deixe levá-la! Ela terá um treinamento melhor.

- Não vai levar minha filha - disse num tom duro o bastante para aquela raiva brilhante nos olhos da guardiã vacilar.

- Será melhor...

- Pelos deuses lunares! Vai fazer um filho, mulher, deixa a dela em paz! - Luyen ralhou por fim, levantando-se e aproximando-se de Áries. - Sabe como é? Você monta no seu macho até fazer um bebê, essa parte do processo é bem divertida, aliás, então faça isso e deixa a cria dos outros em paz! Nikella sabe cuidar da filha dela, você não tem que se meter!

Pisquei incrédula.

Teria beijado Luyen se pudesse.

Ela encarava Áries de cima - literalmente - uma vez que nem mesmo na forma completa, a malvarmo era maior que a tormentadora.

- Sabe com quem está falando? - Áries rosnou, dando um passo para perto de Luyen, estava prestes a me levantar e me colocar entre elas para evitar que a tormentadora levasse uma mordida, porém Luyen respondeu à altura outra vez:

- Ah, imagino que saiba, e ser quem é não lhe dá o direito de querer montar uma casa de caridade catando o filho dos outros por achar que será uma mãe melhor! O máximo que pode fazer se está achando que ela não está sendo treinada adequadamente, é dar suporte e ensinar aos pais! - Os cabelos de Luyen escureceram para um tom chumbo e seus olhos brilharam em prateado.

- Mãe - Hasan apareceu no instante seguinte, graças aos deuses! Não sabia se conseguiria separá-las, uma vez que estava a ponto de segurar a malvarmo para que Luyen a acertasse com uns tapas.

- Devia ter mais amor por ela - Áries declarou por fim, encarando-me ao ter os ombros envolvidos por Hasan - Ela é tudo dele que lhe restou. Ela pode ser muito mais, mas nunca será se você a manter sempre um degrau mais baixo para que ela não se afaste tanto do nível de Fares só porque não quer magoá-lo. Pense nisso.

Hasan pressionou os lábios e desviou o olhar quando o encarei. Ele também concordava com aquilo, com a verdade que ela atirou em minha cara, fazendo meu coração vacilar.

Quando enfim eles deixaram o cômodo, Luyen desabou no sofá, enfiou um bolinho coberto de cacau em pó na boca e suspirou pesadamente.

- Achei que vocês iam brigar - comentei, alcançando um bolinho também, quem sabe enfiá-lo goela abaixo com chá, empurrasse o caroço de volta ao meu peito também.

- E eu contava com você para se enfiar no meio de nós, caso acontecesse! Eu certamente apanharia!

Engasguei com o bolinho de tanto rir.


Kiara:


Eu só queria entender porque toda vez que sorria, ela ficava irritada. Caminhei pelo castelo sem vontade de ir para meu quarto, uma vez que não tinha nada lá com o que eu quisesse brincar. Fares não estava em parte alguma também, certamente havia ido à algum lugar com papai, e eu não tinha nada para fazer agora que mamãe havia me dispensado das tarefas.

De longe, avistei Hasan e Áries chegado, mas a malvarmo me assustava, e por mais que eu quisesse me aproximar e descobrir o motivo da visita, preferi ficar longe dela, pois mamãe sempre ficava ainda mais brava quando Áries aparecia.

Sem ideia do que fazer, acabei indo parar no jardim.

Sentei-me no banco em frente aos canteiros de cíclames de Oriel e fiquei observando as flores recebendo a luz fraca que passava pelas pesadas nuvens de tempestade. Sentia o cheiro de algo ao longe que era trazido pelo vento, um aroma quente que fazia minha boca salivar.

Balancei a cabeça e estiquei-me sobre o banco, tentando abafar a vontade de correr para fora das barreiras e descobrir o que era. Mamãe também não gostava quando eu precisava morder as pessoas mais de uma vez na mesma semana.

Soltei o ar, sentindo falta da nuvem de vapor que teria saído caso tivesse me alimentado recentemente. O café da manhã com papai e Fares só tinha gosto bom, mas ainda me deixava com algo faltando na barriga. Pensei em ir procurar Oriel, se falasse com ela ou com Glyph... elas me deixariam mordê-las.

Talvez não contassem para mamãe.

Desci do banco e estava prestes a voltar pela trilha quando ouvi risos se aproximando e permaneci no lugar, os observando chegarem com seus brinquedos nos braços. Alguns filhos dos criados costumavam brincar nos jardins, mesmo sabendo que Oriel não os queria ali, pois quebravam os talos das flores, pendurando soldadinhos de madeira sobre elas.

Eles não me viram de pé entre os arbustos semicongelados, apenas seguiram para o canto leste, onde ficavam os canteiros de cravos e gardênias, as favoritas de Ori.

Os segui.

- Ei! - chamei ao me aproximar e vê-los pisoteando algumas das mudinhas para abrirem espaço para a brincadeira. Aquilo me irritou - Sabem que não deveriam estar aí! Não é permitido!

Um deles, Gien me olhou de cima a baixo e fez uma careta, franzindo as sobrancelhas cinzentas para mim.

- E só porque você é princesa pode brincar? Se não é permitido, o que está fazendo aí? - Ele rebateu, os outros três que estavam com eles, menores que ele, concordaram.

- E por acaso estou pisoteando as flores como ogros desastrados? - ralhei em resposta - Estou passeando!

- Vá passear no corredor, alteza! Aqui fora não é lugar para princesas mimadas sabichonas! - Verin zombou, esmagando outra flor propositalmente.

- Se não saírem...

- Vai fazer o quê? Correr pro papai e chorar? - Eles riram e me deram as costas, voltaram a amassar o caminho para os brinquedos.

Papai havia me dito que de maneira alguma usar magia contra qualquer pessoa que vivesse no castelo, que eu precisava resolver conflitos de forma civilizada e que não devia machucar ninguém... mas eu queria bater neles.

- Tem vários lugares para brincar além do jardim. Vão brincar na estátua do dragão! Dá pra escorregar os bonecos pelas patas dele - tentei, eles apenas fingiram não me escutar - Já disse para saírem! - avisei novamente, um deles então amassou um bocado de gelo com terra e o atirou em mim, acertando meu vestido azul claro.

Logo todos eles começaram a rir e zombar.

Eu queria mordê-los. Tirar aquelas expressões de seus rostos! Mas... sabia que seria castigada se o fizesse.

Virei-me para sair, o que os fez rir e debochar mais, dizendo que eu estava escondendo o choro. Não era mentira. Minha irritação, no entanto, era por não poder fazer nada.

Porém os deboches e risos mudaram para gritos desesperados um instante depois. Uma massa negra surgiu ao meu redor, deformando-se, movendo longos fiapos escuros de fumaça em direção aos garotos, os dois malvarmos de sangue amarelado gritaram e correram para dentro, o menino elfo se mijou e o malvarmo que fez a bola de gelo e terra vomitou antes de sair correndo também.

Ergui os olhos para a fumaça, não parecia ter nada de assustador nela. Pelo contrário, o cheiro de bétula queimando era tão reconfortante que sorri.

No instante seguinte um garoto surgiu, puxando aquela fumaça para suas mãos estendidas, precisei levantar a cabeça para olhá-lo. Ele tinha uma pele marrom escura e brilhante, olhos negros rajados de prata e longos cabelos pretos escorridos sobre os ombros. No momento que a fumaça desapareceu, o preto de seus olhos virou azul.

- Bom dia, princesa! - Ele sorriu, mostrando caninos levemente alongados num sorriso divertido.

- Como me conhece? - perguntei.

- Sou curioso. Gosto de ouvir conversas que não são de minha conta! - disse, piscando para mim e me fazendo rir. Ele estendeu a mão e com um movimento dos dedos, aquela fumaça se espalhou por meu vestido, desaparecendo com a mancha de neve e terra.

- Ah, obrigada por me ajudar - sorri e estendi a mão para apertar a sua - me chamo Kiara.

- Lohan - Ele apertou a minha de volta, percebi que seus dedos tinham pequenas garras escuras bem aparadas, o que fez ele me observar como se esperasse que eu tirasse a mão de seu aperto.

- Um nome bonito, Lohan - sorri, mostrando os dentes alongados - Ele arqueou as sobrancelhas e não se assustou quando mordi seu braço.

- Ei! - ele murmurou, olhando-me surpreso. Assoprei seu braço para sumir com a marca.

- Desculpe! - o soltei, um pouco sem jeito. Mas aquele buraco em minha barriga tinha sumido.

- É a primeira vez que alguém me morde como um sinal de amizade! - Ele tombou a cabeça para o lado, observando-me com curiosidade. - Faz isso sempre?

- Não, só com... pessoas da família - baixei o rosto ainda envergonhada. Pensei em me afastar, mas Lohan riu.

- Eu espanto os valentões e você me morde como se eu fosse da família - Ele esfregou o pulso o qual eu havia mordido, não parecia estar falando aquilo só para que eu não me sentisse mal.

- Bom, acha que dá pra considerar isso como um pedido de amizade? - questionei.

- Se você me oferecer alguma coisa gostosa para comer, vou considerar como nova melhor amiga! - Ele sussurrou, pegando meu braço e piscou novamente aqueles olhos riscados para mim.

Meu coração acelerou.

- Eu sei onde as cozinheiras escondem os doces da mamãe - sussurrei para ele - só precisamos chegar de mansinho na cozinha! - avisei.

Lohan sorriu em resposta:

- Essa é minha especialidade, que coincidência!

Sem demora, puxei seu braço para irmos até a cozinha.

Eu tinha um melhor amigo!


Muralhas de gelo


Hasan:


Uma promessa e uma dívida de vida.

Era a única coisa que me fazia adentrar aquele portal aparecer diante daquelas muralhas de gelo sólidas. O vento úmido do verão de Vegahn era o que diferenciava a estação mais “quente” do resto do ano, pois as outras eram marcadas por ventos gélidos e cortantes, que não carregavam aquela suave umidade que molhava meus cabelos conforme me aproximava dos grandes portões de aço bremar.

Avistei Scath conversando com Neruo próximos às guaritas. Nikella o havia chamado também, mas não o fez como pedido de nenhuma dívida. Ela simplesmente ofereceu a ele um cargo de mestre de encantamentos para as turmas mais baixas e ele aceitou feliz, pois queria ser útil, fazer algo bom.

Se Serena estivesse ali, ela temeria por sua segurança ou confiaria nele? Imaginá-la ali... talvez até mesmo dando aulas também fez meu coração doer. Era doloroso ainda me lembrar, especialmente... por não ter tido tempo de tentar fazer as coisas melhorarem entre nós, de ter corrigido as falhas que nos dividiam as vezes.

Soltei um suspiro cansado e segui para o interior assim que as portas foram abertas. Os guardas deixaram-me passar sem hesitar ao ver o símbolo da foice bordado em minha túnica, pude ver aqueles olhares admirados direcionados a mim e ouvir seus sussurros quando passei.

Ainda não os havia visto, já que nas outras vezes, teleportei direto para dentro da ACV, e Nike queria que eu chegasse vez ou outra pelas portas principais para que os guardas tomassem ciência de minha presença, uma vez que se eu só fosse visto pelos alunos já que, como ela mesma dissera “preferia me enfurnar em minha sala” poderia ter problemas com os guardas que não me identificariam como um mestre, caso chegasse fora do toque de recolher.

Ao passar próximo à árvore branca, ergui os olhos para as janelas grandes da sala da direção e brevemente os vi lá, juntos, Nikella com um meio sorriso no rosto e Susano rindo de algo que havia dito a ela.

Às vezes, os invejava. Eles encontraram abrigo um no outro. Encontraram em sua amizade, algo mais para se apegarem, para seguirem em frente depois de quem perderam, mas não foi sem custo. Ainda ajudava Nikella as vezes com seus repentinos afundamentos em tristeza e culpa. A acompanhava em treinamentos de combate até que ela não aguentasse mais ficar de pé, até que a exaustão tomasse lugar da dor em sua mente. Isso me ajudava também.

Nike não havia se perdoado pela morte de Caalin, e não conseguia olhar para Kiara sem lembrar dele. A menina acabava por receber toda aquela carga sem entender o porquê sua mãe sofria quando olhava para ela. É claro, a menina desconhecia seu pai verdadeiro e Susano mataria quem lhe tirasse o direito de ser o único pai dela.

Caminhei pelo pátio reparando nos poucos venairens que seguiam atrasados por ali a caminho de suas aulas, os rostos voltavam-se para mim, ainda surpresos, admirados. Queria dar-lhes qualquer sinal de que me interessava em estar ali, então lhes dei um aceno breve e continuei meu caminho para o corredor principal até alcançar as escadarias brancas que levavam aos andares superiores.

Estava sendo difícil me acostumar a isso, mas em duas semanas lecionando línguas ali, me sentia menos... vazio. Eu podia contribuir de alguma maneira para tornar as missões deles mais seguras, então o faria de bom grado.

Ao chegar na sala da direção bati uma vez na porta e entrei, mas para minha surpresa a encontrei vazia. Apenas uma passagem para uma sala oculta no interior encontrava-se aberta. Eles deviam ter ido até lá. Com apenas um fiapo de magia, descobri que não faziam nada de mais, graças aos bons deuses! Não queria ser a pessoa que estragava a diversão dos outros.

Desci as escadas em espiral ignorando os feitiços de repulsão ali, até passar por um vulto de sombras encostado a parede. Estaquei em minha descida e virei-me para trás. O vulto ficou parado, mas não o bastante para que eu pensasse que era parte da magia do lugar. Dei um passo em sua direção e estalei os dedos, fazendo uma corrente suave de magia espalhar seu fraco feitiço de invisibilidade.

- O que faz andando invisível por aqui? - questionei, observando o rosto da pequena malvarmo se encher de cor. Kiara apertou as mãos na barra de sua blusa e baixou os olhos vermelhos, escondendo-os de mim.

- Desculpe...hum, mestre - Ela murmurou, parecendo ainda mais envergonhada que antes - estávamos brincando, me perdi de Fares.

- E acidentalmente veio parar aqui embaixo? - estreitei os olhos, sabendo que ela certamente ficaria com medo da expressão e diria logo a verdade. Como esperava, ela encolheu os ombros e olhou assustada para a porta no fim das escadas que podíamos ver parcialmente dali.

- O senhor vai contar? - Ela sussurrou - Mamãe... vai brigar comigo, nós os seguimos dentro do portal - disse tão baixo que mal pude ouvir seu sussurro.

A única coisa que impedia Nike de ter descoberto a menina ali, era o fato de que o feitiço de proteção da sala a impedia de sentir a presença de alguém que estivesse nas escadas, algo que teria que ser imediatamente revisto e corrigido, uma falha perigosa na magia.

Kiara ainda me olhava com expectativa, o medo genuíno em seu olhar me fez sentir pena dela.

Nike devia tê-la entregado à Áries, a criança não devia ter medo de sua mãe daquela forma.

- O que estão fazendo aí? - A voz levemente exaltada de Nike, que havia surgido alguns degraus depois da porta lá embaixo, fez a menina se encolher e olhar assustada para os pés.

Peguei a mão da criança e forcei um sorriso para Nikella:

- Trouxe Kiara e Fares comigo, supus que ainda não o tivesse feito, já que vai colocá-los no V1 ano que vem, imaginei que familiarizá-los com o ambiente os deixaria menos assustados com tanta gente. - Menti - Eles não estão acostumados com todo esse movimento, certo?

Nike ergueu as sobrancelhas e assentiu.

- Eu... obrigada, Hasan - Ela deu um breve sorriso - Só não a deixe vir até aqui. Já subo para conversar com você.

A malvarmo nos deu as costas, voltando para o breu da sala subterrânea.

Subi as escadas novamente levando a menina junto.

- Obrigada por não contar - Ela suspirou, soltando-se de minha mão e correndo para a porta ao sairmos novamente dentro da sala da direção.

- Não devia tê-los seguido usando magia para não ser vista dentro de um portal! Se ele fechasse antes do tempo, você e seu irmão ficariam presos entre os mundos - alertei para que não tentassem uma travessura daquelas outra vez - se sabia que ela ficaria brava, porque os seguiu até aqui? - questionei.

Kiara, que tinha desistido de sua saída às pressas para ouvir o sermão, fez um bico e me encarou com aqueles olhos vermelhos brilhantes.

Antes que ela dissesse o motivo de ter vindo, Fares apareceu, entrando correndo na sala como um gato assustado. Ele pulou sobre a irmã e quase a derrubou, abraçando-a com os olhos marejados.

- Pensei que tivesse ido pra fora - Kiara meneou a cabeça negativamente, só então o príncipe me viu ali e empalideceu. - Mestre!

- Vamos, vou levar os dois para casa antes que Zion perceba que desapareceram e soem o alarme - avisei. Não devia ter mentido para ajudá-los, mas também não queria que Nikella brigasse ainda mais com Kiara, não depois de ter visto a criança chorando encolhida em um canto ao tentar mostrar a mãe que a reagis de Caalin mudava de cor quando ela a tocava e Nike reagir mal e envolvê-la com as sombras.

Segurei as mãos dos dois e teleportei direto para o pátio traseiro do castelo.

Mal aparecemos ali e Fares soltou-se de minha mão, correndo para a trilha que seguia para o jardim. Kiara no entanto não fugiu, ela ergueu os olhos brilhantes e cheios de gratidão e sorriu.

- Obrigada, mestre - Ela sussurrou, curvando-se apenas um pouco antes de soltar minha mão e se afastar em passos curtos na direção da saída.

- Não faça isso outra vez, na próxima talvez não tenha ninguém para ajudá-la - avisei. Kiara assentiu rapidamente e entrou correndo. Ao longe pude ouvir Zion gritando por eles e esperei até ouvir o que diriam para ela.

“Tio Hasan nos levou para passear” mentiu Fares, ele havia fingido chegar correndo àquela hora na sala, o menino esteve o tempo todo escondido atrás da porta e certamente ouviu o que eu disse para sua mãe nas escadas.

Kiara apenas confirmou a história e logo em seguida suas vozes soaram mais distantes, pude ouvir Zion reclamar da falta de aviso e depois se afastar também.

Precisava voltar para a ACV, teria uma aula em poucos minutos e Nikella ainda queria falar comigo. Na certa sobre os preparativos para a entrada dos filhos na academia. Ela temia por eles, tinha medo do que os outros pensariam... quando a rainha dos mundos aparecesse com duas crianças suas na ACV.

Não tinha como esconder completamente suas magias e muito menos suas aparências, então precisava ser um plano bastante cuidadoso. A ACV ainda não tinha mudado muito a opinião dos outros sobre eles, uma vez que os portais eram mantidos fechados e controlados por Nikella e Susano.

Suspirei pesadamente sem pensar numa solução para aquilo. Esperava que Lórien quando viesse para auxiliá-la na criação das provas pudesse ter uma solução simples.

Antes de teleportar de volta, senti como se alguém me observasse, e pelos cantos dos olhos vi a menina escondida sob o parapeito da janela, apenas com a parte superior da cabeça e os olhos à vista. Ao perceber que a vi, ela se escondeu novamente, assustada, talvez.

Áries esteve certa aquele tempo todo. Nike não conseguia sequer disfarçar o quanto era afetada pela presença dela. Se contasse a cena da reagis a minha mãe...

Não era de minha conta.

Nike podia se virar com isso, já que era o que ela queria. Provar a todos que não continuava destruída por dentro.

Sem olhar para trás novamente, voltei à ACV.


Sol e Escuridão

 

Aquele era um dos dias que eu preferia não ter saído de casa, porém, não tinha como dizer não à Lohan. Meu amigo queria reforçar meu treinamento a qualquer custo e arrastar-me para o Quinto Céu para me pôr contra Cari e Awen era a maneira que ele tinha de me fazer treinar até meus braços caírem.

Desconfiava que sua vontade de estar lá se devia principalmente à uma certa concubina que sempre monitorava nossos treinos, a mãe de Awen, Nedyle, não tirava os olhos do tenebris e ele também não conseguia disfarçar os olhares. Não era para menos, a tenebris era linda! Sua pele avelã tinha o brilho do sol poente e os olhos negros rajados de dourado chamavam a atenção de qualquer um...

Qualquer um que não tivesse medo de Owyn.

O rei tenebris fazia qualquer um tremer e querer passar com os olhos longe de seus maridos e suas concubinas.

Lohan, ao que parecia, não tinha medo.

Embora eu preferisse ir até os campos do Vento Negro com Hawana e Lohan, ele havia insistido para que fôssemos até o Palácio da Noite.

Porém, ao chegarmos lá na arena de treinos, encontramos Owyn, Cari, Awen e Calisto treinando, Nedyle, assim que nos vira chegar, desapareceu com Luaya em direção ao harém e Lohan ao notar o olhar avaliativo do rei tenebris sobre ele, disse algo sobre ir ver Nibben e desapareceu também.

- Kiara, minha querida, como é bom vê-la por aqui tão cedo! - Owyn tensionou os músculos dos braços fortes, chamando-me para perto deles - vamos, quero ver como anda seu treinamento!

- Anudiijn, altezas - fiz uma breve reverência a eles, Calisto passou os dedos entre os cabelos curtos presos por aqueles adornos dourados e lançou um olhar à Owyn antes de guardar sua lança e sentar-se para observar o treino.

Cari deixou a sala no momento seguinte também, lançando-me um olhar avaliativo antes de desaparecer numa lufada de fumaça com cheiro de fumaça de carvalho. Meu coração disparou conforme me aproximei do centro da arena, tentando ignorar as sombras espreitando entre os bancos colados aos paredões obsidiana.

Owyn não pegaria leve.

Só queria que Lohan não tivesse me largado ali com eles. Owyn e Awen me esfolariam viva!

Os sorrisos dos tenebris me confirmaram aquilo.

 


- De novo - Awen ordenou, erguendo a lança feita de sombras e fumaça outra vez. Meu corpo já estava à beira de um colapso, o tenebris simplesmente parecia não cansar!

Owyn havia me deixado aos cuidados de Awen, e saiu da sala horas antes, dizendo que “ meu treinamento era aceitável, mas precisava melhorar”.

O teria mandado pastar se não soubesse que ele poderia me prender num pesadelo durante uma semana. Pelo riso rouco e cruel que deixou escapar enquanto desaparecia numa lufada de fumaça com cheiro de almíscar e cravo, não duvidava que ele estivesse a par daqueles meus pensamentos.

Voltei minha atenção à Awen.

Bufando e irritada por estar perdendo, girei a lança em punho e soltei um silvo ao atacá-lo novamente apenas para que o tenebris se transformasse em fumaça e desaparecesse, fazendo-me parar bruscamente e me virar, erguendo a lâmina para evitar um golpe que imaginei estar por vir de trás de mim.

Me enganei.

Awen não mudou de lugar, ele solidificou seu corpo novamente e puxou a espada contra meu pescoço, imobilizando-me, puxando meus braços e me fazendo soltar a arma.

Soltei um rosnado de frustração ouvindo o tilintar da lâmina no chão. O riso satisfeito do tenebris, no entanto, não teve o efeito irritante das vezes anteriores. Ele estava muito perto, impedindo que eu me movesse. A espada que ele ainda não havia soltado continuava em minha garganta quando o tenebris desceu os lábios para perto de minha orelha e sussurrou:

- Você nem está tentando de verdade, princesa! Distraída ou seu treinamento realmente não anda surtindo efeito? - sua voz, o calor de sua respiração em meu pescoço fizeram meu coração vacilar uma batida.

- Awen! Você está usando magia para me distrair. Isso é injusto! - rosnei, agarrando a espada com minha mão metálica e a empurrei para longe de mim.

- Inimigos não querem justiça, princesa, querem vitória, seja ela o quão suja for - Awen disse baixo e grave, a expressão séria em seu rosto não se alterou. Ele estava certo, como sempre.

Soltei um suspiro irritado e assenti, deixando a sala de treinos imediatamente por uma fenda na escuridão e parando direto em meu quarto ali. Owyn tivera o cuidado de deixar tudo o mais aconchegante o possível para mim, com a decoração toda feita em cristais azuis que me lembravam minha casa, mas com o toque escuro do Quinto Céu, para que eu nunca me esquecesse onde estava.

Logo seria hora do jantar, mas eu precisava mesmo era me alimentar de verdade.

Incomodada com o treino e cansada, chateada por Lohan não ter voltado, fui direto para a banheira cheia de água morna, pois sabia que a sensação dolorosa em meu umbigo congelando melhoraria.

Lohan sempre permanecia ali quando eu vinha para treinar, então porque ele tinha desaparecido dessa vez? Será que realmente tinha algo a ver com Nedyle?

Deixei o questionamento desaparecer enquanto me afundava na água perfumada com anis e fiquei ali de molho por alguns momentos, deixando as marcas doloridas do treino desaparecerem.

Não demorei tanto quanto gostaria, a sensação de ardência no fundo de minha garganta aumentou e fui obrigada a deixar a água. Precisava encontrar Hawana, a tenebris sempre me alimentava quando ficava por muito tempo no palácio, então sabia que não seria um inconveniente ir até o quarto dela.

Saí da água, me sequei apressada e deixei o banheiro enrolada na toalha escura, porém estaquei ao ver Awen apenas de calças folgadas de dormir sentado com as pernas cruzadas em minha cama. Ele piscou ao me ver e seus olhos negros pincelados de dourado desceram e subiram num movimento lento que fez meu rosto esquentar.

Minha deusa!

Eu não devia estar reparando tanto.

Não deveria olhar para o peito nu de Awen que mudou o ritmo de sua respiração. A pele marrom escura tinha um suave brilho dourado e ele se mexeu inquieto, pegando um dos travesseiros e o apoiando sobre as pernas cruzadas em posição de lótus. Tentei e falhei miseravelmente em não imaginar o que ele queria esconder.

- Não devia estar no salão de jantar? - questionei, minha voz trêmula também falhou em esconder meu constrangimento e meus dedos metálicos apertaram mais a toalha ao meu redor. Awen tombou a cabeça com as sobrancelhas se erguendo levemente, suas tranças enroladas com pedras estalaram com o movimento.

- Percebi que haviam cristais - Ele murmurou apontando com o queixo para minha barriga - Hawana está no Oitavo, imaginei que poderia ajudar.

Mãe das águas!

Meu coração disparou.

- Awen... - pigarreei, não queria ofendê-lo, mas nunca havia me alimentado dele. E tinha sérias dúvidas se só conseguiria fazer isso sem que meu corpo começasse a responder aos outros instintos que gritavam ao vê-lo em minha cama, movendo os músculos dos braços ao apertar o travesseiro com um olhar cheio de expectativas.

- Não vou te morder, princesa! - Awen sorriu. A escuridão nos cantos do quarto se moveu e fios de sombras me alcançaram, puxando-me para frente devagar, como se esperasse uma resistência minha para se desfazerem. Via isso nos olhos do príncipe tenebris também.

- Eu quem vou, pelo visto - deixei escapar ao ficar ao alcance de suas mãos.

Awen sorriu e as ergueu sem desviar os olhos dos meus. Ainda relutante, apoiou as mãos em meu quadril e me puxou mais para perto.

Que mal faria?

Eu... poderia ser encontrada a qualquer momento pelo demônio de fogo. Sem falar que havia perdido qualquer pudor na cama de Scath meses antes. Céus! Se tia Nyu descobrisse... eu recém havia completado dezesseis quando aconteceu de estarmos altos por vinho de fadas e a sós em casa.

A sensação fora... fora maravilhosa! Porque não me permitir ter aquilo de novo? Quem eu queria provavelmente nunca me daria uma chance mesmo!

Soltei a toalha, arrancando um arquejo surpreso do tenebris. Ele jogou o travesseiro para trás, abrindo espaço para mim, então subi em seu colo, passando as pernas ao redor de seu tronco, sentindo a pressão de sua ereção contra mim.

Oh, deuses!

Eu estava tão ferrada!

Suas mãos quentes percorreram minha cintura e ele fechou os olhos ao sentir meus dedos afastando seus cabelos de seu pescoço.

- Tem certeza que eu posso? - perguntei, a resposta foi suas mãos deslizando para minhas costas, puxando-me mais para frente, pressionando ainda mais meu corpo no seu. Ao tocar os lábios em seu pescoço, escorregando a língua por sua pele com gosto de fumaça e canela, Awen estremeceu e ergueu o queixo, dando-me mais acesso a veia pulsante ali.

O mordi devagar, sabendo a sensação que causaria por ele ter se oferecido.

Ao perfurar seu pescoço com as presas, o tenebris soltou um gemido e seus dedos transformaram-se em garras, apertando minha cintura, marcando minha pele. As sombras ficaram mais densas e se moveram em minha direção, percorrendo meu corpo em carícias sobrenaturais que fizeram o calor entre minhas coxas aumentar.

Assim que terminei de me alimentar e percorri a ferida com a língua, cobrindo-a, o tenebris estremeceu. Awen suspirou pesadamente e antes que pudesse lhe agradecer, ele enfiou a língua em minha boca, arrancando um gemido de mim. Seus lábios eram macios e gentis, diferente de suas mãos e as sombras que o rodeavam, escorregando aqueles fiapos de escuridão por cada parte minha, brincando com as sensações que me arrancavam a sanidade.

- Awen - sussurrei, o tenebris fez um som entre um rosnado e um riso, descendo a boca por meu queixo, lambendo meu pescoço, descendo os dedos por entre minhas pernas numa carícia lasciva e provocativa.

- Eu acho que sei porque Hana sempre quer que você a morda - Ele soltou junto com uma risada baixa, então agarrou meus pulsos e me derrubou na cama - permita-me, princesa, mostrar o que senti.

O tenebris segurou minhas mãos acima de minha cabeça, prendendo-as com magia, e começou uma lenta descida, marcando cada toque de sua boca por meu corpo, beliscando os bicos de meus seios com os dentes longos e escorregando a língua aveludada em seguida, amenizando a sensação dolorosa com uma onda de prazer arrebatador.

Arfei, tentando me controlar ao perceber que sombras substituíram sua boca mas ainda mantinham a mesma sensação. Awen riu e ergueu minhas coxas, colocando-as sobre seus ombros, mordendo de leve o interior de minhas pernas antes de se aproximar cada vez mais do ponto que queria sentir sua boca. Ele sorriu e me encarou ao levar a língua para dentro de mim, pressionando-a e me invadindo com aqueles dedos feitos de escuridão.

Minha deusa! Eu gritei, sem conseguir controlar o prazer que varreu meu corpo como uma onda contra a praia. Agarrei seus pulsos com força, o derrubando ao meu lado e então o montei, aproveitando cada pedaço que me penetrou, muito maior do que esperava. Maior do que cabia também.

Awen riu e mordeu os lábios ao perceber que tinha deixado um espaço que não cabia mais. Porém ao começar a me mover sobre ele, seus olhos se apertaram e os dedos em garras fechados ao redor de minha cintura ficaram mais firmes. Cada movimento, cada ondulação de meu corpo o fez estremecer e gemer até que aquele espaço tivesse desaparecido e que sentia os ossos de sua bacia pressionando a parte interna de minhas coxas.

O tenebris se ergueu, movendo-se com mais intensidade, envolvendo minha cintura com o braço enquanto abafava os gemidos em minha boca, enrolando sua língua na minha.

Ele finalmente tremeu num espasmo, rosnando contra meu pescoço e desabando em seguida de braços abertos sobre meus travesseiros. Deitei em seu peito e sorri divertidamente ao perceber seu coração disparado e a respiração alterada dele.

- Pelo menos aqui eu consigo te derrubar - murmurei, passando a língua suavemente em sua garganta. Awen riu.

- Kiara, se fizer isso de novo, vou me sentir na obrigação de casar com você! - Ele murmurou, enlaçando os braços ao meu redor.

Sorri para aquelas palavras. Não seria... não seria difícil dizer um sim a ele.

Não se meu coração já não estivesse nas mãos de oura pessoa.


Âmbar, anis e neve:

 

Observei o grupo de venairens entrando pelos portões principais, arrastando o bando de Rograr com eles. Por algum motivo, só conseguia imaginar o quanto Nikella teria sorrido para o soco que sua filha enterrou na boca do pirata quando esse começou a xingá-la. Talvez a essa altura, ela teria se acostumado à garota, teria deixado de se ferir com a presença dela.

Ou talvez não, uma vez que Kiara havia se tornado uma cópia feminina de Caalin, mas com uma personalidade completamente diferente. Fiquei observando até que Nelin brigou com eles pela irresponsabilidade de não ter chamado um mestre ou pedido por reforços, e quando eles deixaram o pátio, voltei a atenção para meu livro sem realmente conseguir me prender às palavras ali.

Quatorze anos... e aquela ACV não conseguira recuperar a força que a tornava única. Sentia falta de Nikella e Susano por ali. O mais forte motivo que me mantinha em minha rotina de voltar a academia era aquela promessa. Não podia deixar Lórien e os outros sozinhos com a responsabilidade de cuidar deles dois. Não quando olhava para a filha de Nikella e via o quanto ela se esforçava para ser a melhor e poder cuidar do irmão depois do que aconteceu no castelo.

Fares aceitou ser escondido em Retiro das Folhas e manter-se seguro, já a irmã... assim que conseguiu se adaptar ao braço novo de vitrino, fez os testes para entrar no V3. Ela tinha herdado aquela garra da mãe, sem dúvidas.

E como se convocada por meus pensamentos a seu respeito, a garota entrou na sala:

- Mestre - Ela curvou-se numa breve mesura, e por algum motivo, pude ouvir seu coração descompassar. Talvez achasse que eu também a repreenderia por ter ido atrás dos piratas sem um reforço. Para aliviar sua aparente tensão, lhe dei um meio sorriso e apontei com o queixo em direção à janela.

- Foi um belo soco - comentei, avaliando sua reação.

Kiara piscou surpresa e mordeu os lábios.

- Foi merecido - Ela deu de ombros, parecia um pouco mais à vontade que no instante anterior. Não acreditei nem por um instante que ela não tinha noção do grau de dificuldade da tarefa que completaram ao capturá-los, porém Kiara não parecia realmente animada pelo feito. Não era difícil tampouco imaginar o motivo do desânimo, Lórien não contaria aquilo para a prova deles. Meneei a cabeça e soltei o romance de Lori sobre a mesa, aproximando-me um pouco mais, não sabia o porquê, mas queria que ela não se sentisse mal por não ter conquistado a prova.

- Ele era procurado por seus crimes a algumas décadas. O trabalho de vocês em encontrá-lo e capturá-lo junto com seus piratas... isso não vai passar em branco, deverão receber uma boa recompensa - expliquei, talvez a animasse com aquilo. Porém o que aconteceu foi que seu coração acelerou outra vez e suas bochechas se encheram de cor. Ergui as sobrancelhas numa pergunta silenciosa, sem entender a reação.

Não conseguia estender o fio para fora de sua mente e ver o que se passava lá, ela tinha uma das barreiras mentais mais poderosas que tinha conhecimento, sequer podia lhe sentir as emoções mesmo com minha magia solar.

- A recompensa que eu gostaria de receber não virá fácil - Ela murmurou com a voz trêmula, enrolando os dedos metálicos na borda do uniforme.

- O quê? - questionei, tentando não sorrir ao imaginar que ela certamente usaria a captura dos piratas como moeda para convencer Lórien a lhes conceder o Locan. Queria rir por saber que Lórien cantaria vários “nãos” até não poder mais, ela não tiraria a garota de sua proteção, talvez piorasse agora, com o risco que correram perto dos piratas.

Porém... ela havia se virado muito bem. Havia sangue seco em sua roupa, mas nenhum ferimento aparente.

- Não deviam estar procurando por eles com muito afinco, então - Kiara soltou depois de um breve instante olhando com atenção demais para a pilha de livros sobre a mesa da direção. Kiara ergueu os dedos e afastou o cabelo do rosto - Não foi difícil achá-los, muito menos capturá-los - seu tom de voz altivo me fez recordar imediatamente da Nikella que jurou poder me vencer para ganhar uma aposta de Ericko.

Acabei não conseguindo conter o riso.

- Você é igual a sua mãe em algumas coisas, Kiara, pelo menos um pouco da arrogância puxou dela - brinquei.

Porém o olhar da malvarmo se tornou ainda mais brilhante... quase fascinado. Ela me encarou como se tivesse visto algo novo e mágico. Como uma criança vendo uma fada pela primeira vez.

- Você devia sorrir mais, fica lindo quando faz isso - Kiara soltou, sua voz soou pouco mais alta que um sussurro, e seu pulso acelerado me fez perceber que ela havia dito mesmo aquilo, o elogio.

- Eu... - Não sabia como lhe responder, não depois de perceber seu olhar carregado de emoção ao me encarar.

- Eu gosto de você. - Kiara soltou, e dessa vez foi o meu pulso que vacilou.

- Tento ser um bom mestre - falei, tentando soar o mais indiferente que conseguia. Não queria nem pensar o quanto aquele repentino interesse fez algo se retorcer no fundo de minha mente. Ela era uma menina! Deuses! A pouco tempo ela não passava de uma criança!

- Não foi isso que eu quis dizer, Hasan. - Kiara insistiu, aproximando-se um passo. Seu coração parecia prestes a sair pela garganta.

Aquilo só podia ser um engano! Ela não queria dizer aquilo de verdade!

- Acho que você está ansiosa pela conversa com Lórien, está confundindo seus sentimentos, menina - Franzi o cenho, fechando ainda mais minha expressão. Talvez aquilo a fizesse recuperar a sensatez.

Porém estava enganado.

- Eu sei o que sinto - Ela reafirmou - não é de agora que... sinto isso por você. Faz tempo que queria dizer isso - Ela se aproximou um pouco mais. O choque no entanto me fez permanecer enraizado no chão. Não sabia ao certo se por ela revelar aqueles sentimentos com tamanha facilidade, ou se por dizer que fazia tempo que os tinha.

Respirei fundo, tentando não ser cruel com minhas próximas palavras, mas ela precisava ouvi-las, se existia algum sentimento real ali, eu tinha que acabar com eles naquele momento. Ela sabia, percebi. Kiara segurou o fôlego, e o movimento foi como se para preparar-se ao que viria a seguir:

- Gostar de alguém é como um grão de areia perto de um real sentimento, como amar. E se é isso que está dizendo... é melhor esquecer. Eu já amei alguém, e ela se foi, e antes que você se machuque alimentando algo que só existe em você, sugiro que leve seus sentimentos até alguém que possa retribuí-los.

A forma como a garota encolheu os ombros instintivamente, me fez sentir um monstro. Fez com que eu visse de novo aquela criança encolhida nas sombras do quarto de sua mãe recebendo toda aquela magia obscura para se afastar... Mas dessa vez era necessário.

Porém Kiara não me deu as costas e saiu da sala como pensei que faria.

- Então, a sua ideia é passar o resto da vida sozinho? - Ela questionou, tão baixo que pareceu um sussurro. Os olhos vermelhos tentaram e falharam em não mostrar o quanto as palavras a feriram.

- Não vejo como isso pode ser da sua conta - retruquei, dando-lhe as costas. Por mais que precisasse que ela entendesse e aceitasse que não havia nenhum sentimento semelhante de minha parte, se é que houvesse algum real da parte dela, não conseguia olhar a tristeza naqueles olhos sem que me sentisse cruel por causá-la.

- Talvez não seja da minha conta - Ela continuou - mas você acha que ela gostaria que você ficasse sozinho para sempre? Se remoendo de tristeza e tratando a todos como se não fossem nada? - Kiara tentou novamente, sua voz falhou um pouco naquelas palavras. Minha garganta se apertou.

Serena... Ela não se importaria.

Ficaria feliz desde que eu só pertencesse a ela, em vida ou em morte. Aquele pensamento fez com que me irritasse, me sentisse ainda pior. Por mais que fosse verdade... nós não tivemos a chance de mudar aquilo. De sermos melhores um para o outro.

- Sabe qual é a sensação de ter seu mundo arrancado de você? - questionei num baixo rosnado ao me virar para encarar a malvarmo.

Kiara mordeu os lábios como se segurasse uma resposta ainda pior do que a que veio à tona:

- Cada dia ele desmorona mais um pedacinho. Estou em treinamento aqui tentando fazer o possível para que não se desfaça por completo - replicou - não respondeu minha pergunta.

Eu sabia. Sabia daquilo, o quanto se esforçava para manter nos trilhos o que restara de sua vida. Mas ainda assim... não era de sua conta.

Percebi que Kiara ainda esperava uma resposta.

- Ela não está aqui para me dizer se gostaria ou não. - falei.

- E se fosse o contrário? Ia querer que ela passasse uma vida infeliz e solitária? - A pergunta fez meu coração se apertar outra vez, deixei um suspiro cansado escapar.

- É claro que não. - E era verdade. E mesmo se fosse anos atrás, quando Serena ainda vivia entre nós... se ela tivesse escolhido outro, eu a teria deixado ir se aquilo a fizesse feliz, por mais que me machucasse.

- Se ela te amava tanto quanto você a ama... - suas palavras doeram em mim - Serena ia querer você feliz também - Kiara sussurrou, ainda olhando-me com atenção - mesmo que não fosse mais ao lado dela.

Fechei os olhos, não conseguindo suportar mais aquela conversa. Reviver aquela tristeza e cada pensamento do que poderia ter feito de diferente para que tivéssemos sido mais felizes juntos. Serena havia partido, e arrancado meu coração ao me deixar.

O silêncio tomou conta por um longo instante, ainda podia escutar as rápidas batidas de seu coração e sentir sua atenção em mim, até perceber que ela estava se afastando. Porém... Lórien.

Pude ouvir seus gritos ecoando em sua mente. Surpresa, descrença e pena. Ela tinha escutado cada palavra de Kiara. Deuses! Eu queria me enfiar em minha sala e não sair pelo restante da semana!

“Ah menina! Olha onde você quer amarrar seu burrinho!” Lórien sequer tentou disfarçar a olhada que me deu ao entrar, mas suavizou a expressão ao encarar a garota, que parecia querer sumir pela porta sem olhar para trás.

- Estou sinceramente surpresa, Kiara, pelo feito de sua equipe! - Lóri sorriu - Não acreditei quando Nelin me avisou que vocês pegaram Rograr e o bando horrível deles! Saiba que Pollo está com uma enorme recompensa sobre eles! Já entrei em contato com Ederon, ele virá aqui com sua guarda buscá-los e recompensar a sua equipe! - Ela explicou contente. Kiara assentiu brevemente, sem desviar o olhar em minha direção outra vez.

Queria sair, deixar que conversassem, mas se o fizesse, Lórien talvez colocasse mais lenha na fogueira, incentivando a garota como fez com Leona. Preferia ficar de olho nela, evitar aquilo e se saísse, poderia dar a entender que as palavras de Kiara mexeram comigo.

- Fico feliz em termos feito um bom trabalho - A malvarmo sussurrou.

- Felizmente foram atrás deles, deixando a missão para trás - Lórien ponderou, baixando os olhos para observar a garota - sinto muito por não terem conseguido completar a missão.

Kiara mordeu os lábios outra vez e suspirou. Ela ergueu os dedos pálidos e afastou o manto negro pesado que lhe cobria os ombros, revelando a frente do corpete e o decote do mesmo, queria desviar o olhar, mas surpresa me tomou ao vê-la puxar uma fina corrente de ouro dali, presa ao medalhão Ascardian de Susano. Ela estendeu o objeto sobre a mesa.

- Consegui encontrar o medalhão, só não o trouxe no prazo pois se o tivesse feito, perderia o rastro de Rograr. - Lórien arregalou os olhos e pegou o colar com os dedos trêmulos. Eu por outro lado, passei a observar a garota, não sentia nenhuma alteração que sugerisse uma mentira em suas palavras, e não tinha como ela ter feito o objeto com magia. Não tinha nenhum traço mágico nele além do feitiço básico de conservação.

A elfa encarava perplexa a joia entre seus dedos.

- Não... entendo - Ela sussurrou.

“Isso... esteve perdido por décadas! Não tinha como eles recuperarem!” Estava certo sobre Lórien ter dado um objetivo impossível a eles para que não conseguissem passar.

- Depois de desistir de procurar o medalhão nas ruínas sob as águas... fui para a praia, pensando no que fazer e encontrei uma sereiana desesperada procurando pela filha. Ela disse que a garota havia sido levada por homens quando saiu do mar naquele dia mais cedo - Kiara explicou - Ela me implorou para encontrar a menina, disse que só tinha esse colar para me dar como pagamento. Eu o peguei quando faltavam três horas para finalizar a prova - Ela deu de ombros, mas não quis me encarar, podia ser um sinal de mentira... ou simplesmente constrangimento pelo que disse antes.

Talvez arrependida de ter dito aquilo. De qualquer forma, não podia ser um sentimento real. Tinha que ser curiosidade, a mesma coisa que muitos alunos tinham as vezes. A vontade de fazer algo diferente, quebrar as regras. O que era ainda pior... já que a conhecia desde criança.

- Podia ter vindo entregá-lo, mas isso... - o sussurro incrédulo de Lórien fez com que eu voltasse a atenção para a conversa.

- Talvez tivesse perdido a filha dela - Kiara completou, encostando-se na poltrona.

Não tinha como duvidar daquilo. Ela escolheu prender o irmão ao dragão para evitar que ele caísse. Ela tinha aquele senso de proteção em comum com Nikella também.

- Abriu mão da prova... para encontrar a filha dela? - Lórien questionou, os olhos bicoloridos brilhavam com lágrimas não derramadas.

- Era a coisa certa a fazer - a garota murmurou - prova nenhuma vale perder a vida de alguém que significa tudo para outra pessoa.

Lórien então pulou de sua cadeira e a abraçou, assustando tanto a garota como a mim. Ela chorava como se tivesse acabado de encontrar um bichinho ferido para proteger. Depois de alguns segundos de choradeira e novamente para minha surpresa, Lórien pegou três broches de vitrino em uma gaveta de sua mesa e sorriu.

- Um locam coloca a vida das pessoas acima de qualquer tesouro, ou qualquer recompensa material. - Ela abriu um sorriso e estendeu os broches para Kiara, que os pegou com as mãos trêmulas. A garota parecia segurar lágrimas também, porém não sabia dizer se por conquistar o prêmio ou...

Pressionei os lábios. Queria esquecer aquela conversa.

- Obrigada, Lóri - Kiara sussurrou, levantando-se para sair da sala.

- Assim que Ederon aparecer, mandarei te chamar! - Lórien piscou e sorriu. A malvarmo lhe deu um sorriso fraco em resposta, voltou a atenção para os broches em sua mão e levou os dedos aos cintos vazios de suas adagas, aquele sorriso vacilou um pouco.

As adagas. Adagas que Scath confiscara e me entregara para que eu as guardasse em “segurança”. Deuses! Talvez ela tivesse dito a ele sobre aqueles sentimentos também, se não o tivesse feito, qual motivo ele teria para deixar suas armas comigo para evitar que ela se ferisse usando apenas elas como armas principais?

- Vou falar com os outros, com licença, Lóri, mestre. - Kiara lançou um breve olhar à Lórien antes de deixar o escritório.

A garota mal saiu e Lórien se virou para mim, olhando-me de boca aberta. Lancei um olhar irritado a ela, preparando-me para o que sabia que viria a seguir.

- Nem pense... - comecei.

- Você com certeza quer que eu finja que não escutei aquela declaração - Ela sorriu maliciosamente - Mas Hasan...

- Preciso fazer algo - avisei, levantando-me antes que ela não parasse mais de falar. Conjurei o pacote com as lâminas da garota e segui para fora da sala, ignorando os protestos de Lórien ao fazê-lo.

Porém ao sair da sala, encontrei Kiara ali, apoiada entre duas janelas do largo corredor de pedra. Ela encarava os broches na mão com um olhar triste, o manto de cabelos brancos lhe escondia parte do rosto, mas a luz que entrava pelas janelas os iluminou e fez uma trilha silenciosa de lágrimas brilhar em seu rosto.

Inferno!

Queria dar a volta, mas talvez lhe entregar as armas amenizasse aquilo. Ela as carregava desde o dia que o castelo deixou de existir.

- Kiara - Ela ergueu os olhos para mim e pareceu tão desconcertada quanto eu deveria estar.

- Sim, mestre? - Ela questionou com a voz embargada. Sem demora, entreguei-lhe o embrulho de veludo. Ela o aceitou relutante e ao pegá-lo, minha pele roçou em sua palma. Seu rosto encheu-se de cor, o que me deixou ainda mais tenso. Ela abriu o tecido e pareceu surpresa ao encontrar suas adagas ali.

- O que...

- Scath as entregou para que eu as guardasse, imagino que agora saiba o motivo pelo qual ele as entregou diretamente a mim - lancei-lhe um olhar repreensivo - Ele... sabe, do que me... disse? - questionei, encarando-a ainda mais sério.

Queria que Kiara entendesse sem margem para erros que não a via da mesma forma.

- Se ele sabe como me sinto em relação a você? - Ela ergueu as sobrancelhas - Sabe. Mas duvido que seja por isso que as entregou a você. Talvez ele tenha chegado à conclusão de que eu nunca as procuraria com o senhor. - Ela bufou irritada, colocando as adagas de volta nos cintos.

- Ele tem razão, deveria guardá-las como lembrança - comentei depois de um curto momento de silêncio constrangedor.

- Sei... vou fazer isso. Com licença. - Ela virou-se para a saída do corredor novamente, mas precisava reafirmar o que lhe disse na sala. A virei para mim e o olhar carregado de esperança que vi em seu rosto, desestabilizou algo em mim, lá no fundo.

- Esqueça isso, entendeu? - avisei baixo - escolha alguém que possa te dar o que você quer - alertei. Ela era jovem!

E por mais que não quisesse admitir, era linda, muitos rapazes se interessavam e podia ouvir vez ou outra comentários sobre a beleza dela, sobre sua personalidade radiante...

Então porque eu?

Kiara porém fechou sua expressão e soltou-se de minha mão.

- Eu não quero nada de ninguém, não me falta nada que eu precise tirar de alguém, Hasan! - suas palavras não passaram de um sussurro - O que outro buscaria em mim, já te pertence a muito tempo. Seria cruel me aproximar de alguém se meu coração está nas suas mãos. Não tenho espaço nele para mais ninguém.

Fiquei chocado ao ouvir aquilo. Não parecia ser mentira também. Apertei as mãos em punho, ainda sentindo a sensação fria e suave daquela pele delicada. Kiara sumiu pelo corredor me deixando com aquelas palavras, mas ao virar no fim dele, me olhou por cima do ombro com os olhos cheios de expectativa, cheios de... esperança.

Aquela criança que Áries queria ter a todo custo havia desaparecido, não consegui mais vê-la daquela maneira depois disso.


Rito da Lua de Sangue


Kiara:


Ele havia me beijado!

Aquilo realmente havia acontecido ou estava apenas sonhando? Um delírio causado pelo vinho dos bruxos?

Por um lado, queria ir até Senrys e brigar com ele por ter avisado a tia Nyu de meu sumiço. Por outro, queria correr até a cabana e falar com Hestia, contar a ela o que havia acontecido. Minha deusa! Não conseguia disfarçar o sorriso, toquei os dedos levemente sobre meus lábios, ainda sentindo seu gosto quente, almiscarado e suave.

Entrei na cabana aos pulinhos e segui até o quarto, encontrando a bruxa debruçada na janela observando a festa que ainda acontecia lá fora, menos agitada agora... mas não menos movimentada.

Hestia ergueu os olhos escuros para mim, e antes que pudesse dizer qualquer coisa, eu comecei a rir. Rir como uma louca apaixonada que havia acabado de ganhar uma dose de esperança, tão grande que fazia meu peito se apertar com a alegria que não conseguia conter.

- Ele me beijou - falei. Hestia arregalou os olhos, sua boca se abriu num “O” enquanto a bruxa levantava-se lentamente e se aproximava de mim. - Hestia, Hasan me beijou, de verdade.

A bruxa sorriu e se aproximou, ela inspirou profundamente ao se aproximar um pouco mais e estreitou os olhos com malícia.

- E quase não ficou só nisso, certo? - Ela questionou e segurando minhas mãos, puxou-me para a cama, sentando-se ao meu lado.

Nem sequer quis disfarçar a careta de insatisfação.

- Tia Nyu apareceu quando estava muito perto de ter algo mais! - reclamei - Aquele dragão fofoqueiro avisou de meu sumiço!

Hestia riu ainda mais, traçando as garras levemente em meu braço, subindo para minha clavícula, lançando um arrepio por minha coluna.

- Que pena... - Ela fez um biquinho. Franzi o cenho para ela, a bruxa não escondeu o sorriso ainda maior - O lado bom é que você voltou para cá com muito mais fogo que saiu! - Ela sussurrou, mordendo os lábios, puxando meu pulso e passando a língua suavemente em seu interior.

Minha deusa!

Meu coração descompassou.

- Você não parece nada chateada.

- E não estou! Desculpe, princesa! - Ela sorriu, mordendo de leve o lugar em que sua língua havia estado no momento anterior - Mas... é lua de sangue, e eu não consigo me segurar. Sabe como é, instintos...

A bruxa havia desaparecido com sua coroa de flores, as mechas ruivas caiam alvoroçadas ao redor de seu rosto e penderam para frente conforme ela se inclinou para mim e arrastou a fina alça de meu vestido por meu ombro, arrastando as garras por minha pele ao fazê-lo.

Os olhos vermelhos da sorcys encaravam os meus, cheios de malícia e desejo.

Eu não... tinha ideia do que fazer.

A bruxa se inclinou para frente, apoiando uma das mãos em minhas costas para me puxar para si, sua língua deslizou por meu ombro, subindo por meu pescoço e queixo até contornar meus lábios e mordê-los de leve.

Eu estava ofegante e trêmula.

- Hestia... eu... - Não conseguia admitir que não sabia o que fazer. A bruxa soltou um risinho e mordeu os lábios.

- Eu vou brincar com você. Estou te ensinando, então, não precisa ter medo de não saber o que está fazendo, princesa. Eu vou te guiar - Ela sussurrou, suas mãos escorregaram meu vestido para baixo, sentir suas unhas longas roçarem meus seios me fez estremecer outra vez e meu gemido foi abafado por seu beijo.

- Mavis e Bianca não vão gostar se... - sussurrei contra seus lábios.

- Elas devem estar montaras em seus dragões nos topos dessas montanhas, Kiara, não tente fugir de mim! - Ela brincou, olhando-me após se livrar de meu vestido - Ah, minha deusa! Como eu queria fazer isso!

Acabei rindo, mas o riso foi substituído por outro gemido quando a bruxa envolveu meus pulsos com um fio quente de fogo e derrubou-me sobre a cama, a chama não queimou, porém não podia dizer o mesmo da forma que envolveu meu seio com a boca quente e o chupou.

Hestia fechou os dentes com leveza, apertando o bico com as presas afiadas, fazendo-me ter um espasmo. Deuses! Eu não conseguia nem pensar direito! Seus dedos traçaram linhas de minha cintura ao redor de minhas coxas, enquanto sua língua brincava em meus mamilos. Porém quando a bruxa, com um sorriso quase cruel deslizou os dedos entre minhas pernas e os escorregou para dentro de mim, a corrente que me mantinha ainda presa em seu domínio se desfez.

Abri mais as pernas e soltei o gemido que tentava conter. A bruxa, mordendo os lábios observava-me com os olhos brilhantes antes de se inclinar outra vez para me beijar.

Porque não a tinha deixado fazer aquilo no quarto meses antes quando ofereceu pela primeira vez?

Ah! Estupidez, só podia ser essa a resposta.

Enrolei com cuidado meus dedos metálicos em seus cabelos e enfiei a língua em sua boca, apreciando o sabor quente de canela de seu hálito ofegante, desci minha mão por seu corpo, tocando-a, experimentando a sensação nova de seus gemidos contra meus lábios. Ela moveu os dedos dentro de mim de uma forma que me fez estremecer e me render ao ápice, o sorriso da sorcys em minha boca me fez responder a ela como sabia que ela queria.

- Eu te prometi algo... mas você tem que pedir - avisei, sentando-me e a puxando para meu colo. A bruxa apertou as mãos na cabeceira da cama e ergueu o rosto, soltando um gemido ao me sentir introduzir mais um dedo dentro dela.

- Me morda, princesa - Ela sussurrou, seus olhos vermelhos iluminados pelas velas não eram totalmente daquele mundo.

Me inclinei para frente, enrolando o punho em suas mechas ruivas e escorreguei suavemente a língua pela curva de seu pescoço, ouvindo-a arfar, provando o salgado de sua pele. Ao fechar as presas e perfurá-la, Hestia gritou e gemeu, senti seu corpo pulsar e estremecer. Ela desabou em meus braços instantes depois, mas inclinou o rosto para me beijar.

- Sabe que não vou te deixar em paz depois disso, não é?

- Eu sou de açúcar - brinquei, caindo ao lado dela na cama.

- Ainda está escuro - Ela mordeu os lábios - o rito não acabou.

Nem tentei esconder o riso.

Bruxas da luz uma ova!


Coração reforjado.

 

- É sério? - ralhei, ouvindo Eileen gargalhar até não poder mais.

Não conseguia acreditar que havia caído na armadilha de Lórien. Tinha acabado de voltar de uma missão de busca em Fernic, quando vi Eileen acenando de sua janela, chamando-me até o quarto. Nunca havia entrado no dormitório masculino, mas a urgência em seus movimentos e vê-lo pronunciar o nome de Ira, me fez ir correndo até lá ao invés de ir até a sala da direção, onde Lórien agora retirava seus pertences para devolver o lugar à minha mãe.

O glácio apenas dormia todo aberto sobre a cama de Eileen, e o malvarmo não parava de rir, já eu, de braços cruzados encarava minha forma masculina no espelho de seu quarto. Minha deusa! A aparência, tirando os olhos mais claros, e meu braço de vitrino que também mudara de forma, ganhando mais tamanho sabe-se deuses como, era exatamente a mesma que vi de Caalin em pinturas no templo de Vilehas.

- Lórien não podia sair sem deixar uma última travessura! Como ela mesma disse “é o troco, por todos esses anos aturando vocês, pestes” - Eileen riu mais quando o olhei feio.

- E agora? O que eu faço? - murmurei, deixando o quarto com ele me seguindo pelas escadarias. Ao deixarmos o dormitório e passarmos pelas barreiras de entrada, não houve nada, eu simplesmente não voltei a minha forma feminina.

Eileen cobriu a boca, abafando a risada.

- Vai reclamar com ela! A pegadinha não foi minha!

- Você quem me chamou! - rosnei, estendendo uma mão grande demais para lhe puxar o cabelo, ele se esquivou e fez uma careta. Lórien queria pegar os espertinhos que se aproveitavam do último dia de aulas para fazer visitinhas aos outros dormitórios.

- Vamos até a direção, vou adorar ver a cara de sua mãe - revirei os olhos, mas tinha uma leve suspeita de que não seria uma reação divertida. Torcia para ela não desmaiar, seu estado sentimental parecia ter mudado um bocado depois do summon estabilizar e tornar-se um corpo totalmente orgânico.

Porém não tinha o que fazer, eu não conseguia mudar de volta mesmo usando magia. Como Fares fazia aquilo antes de mudar definitivamente para Leonne?

Segui relutante pelos corredores, recebendo olhares em choque dos poucos serviçais que ainda andavam por ali. Ao alcançar a sala da direção, ouvi brevemente o que parecia ser uma conversa animada lá dentro e, rezando para que minha mãe não tivesse um ataque, entrei.

Lórien, sentada no tampo da mesa foi a primeira a me ver e chocada, cobriu a boca, abafando uma risada. Susano e Hasan, sentados no sofá com xícaras nas mãos, engasgaram com suas bebidas e minha mãe atrás da mesa, antes com um sorriso familiar de quem logo voltaria a fazer o que gostava, perdeu completamente a cor.

- Logo você, Kiara! - Lórien riu.

- Que ideia genial para uma pegadinha, Lóri - rosnei, o som fez minha mãe fazer uma careta, que não passou despercebida por Susano, nem por Eileen.

- Em defesa dela, não esperava que você caísse! - Hasan mordeu os lábios e riu.

- Achando graça? Espera eu tentar te dar um beijo assim - debochei, Eileen gargalhou até não poder mais das caretas de Hasan e Susano, mas saiu correndo da sala quando um gato de fogo saltou das mãos do solaris e começou a prossegui-lo.

- Eu não quero ver isso, de nenhuma forma, por favor! - papai reclamou, e Lórien para seu crédito, pegou minha mão e deixou que sua magia desaparecesse. Devia ter pensado antes em ver como havia ficado da cintura para baixo. Pela forma com que Hasan fez uma careta e cobriu a boca, meneando a cabeça negativamente, ele não queria saber o que teria ali.

“Não disse que ia usar, só queria ver!” sussurrei, sabendo que ele certamente escutaria.

“Nem pensar!” Hasan rebateu.

Lhe lancei um sorriso malicioso, mas meu pai pigarreou e revirou os olhos e reclamou.

- Ah - puxei o papel com a assinatura da comerciante que enviou o contrato para encontrar sua carga perdida na estrada - tudo certo.

Nike, mais aliviada em olhar para mim naquela forma, recebeu o papel no lugar de Lórien, que suspirou feliz em se livrar daquele fardo. Não por tanto tempo, uma vez que uma ACV seria aberta em Amantia agora.

- Não esperava menos de você - Ela me deu um meio sorriso ao ler a carta. Ainda não sabia ao certo como reagir a ela, no fundo, era difícil aceitar que a pessoa que ela fora na minha infância tentava ser alguém melhor para mim. Por fim, sentei-me entre Hasan e papai e ambos se encararam por um instante, antes de Susano passar o braço ao meu redor e me puxar para ele.

Lórien bufou outra risada e deu um pulinho de repente, batendo as mãos.

- Bom, Leona me pediu para avisar a todos que estará fazendo uma festa de natal no Castelo de Cristal e quer todos juntos lá!

- Natal? - arqueei as sobrancelhas.

- É uma comemoração religiosa da Terra, existem algumas variações em crenças diversas, mas em geral, celebram com toda a família reunida, trocam presentes, fazem uma ceia - Hasan explicou - Como o Yule é para nós.

- E porque vovó quer fazer isso? - quis saber, não pela reunião, mas adaptar a comemoração.

- Porque fomos criados no mundo humano, e Lupine sempre enfeitava a casa para o Natal - Ele deixou um meio sorriso surgir em seus lábios - E Leona adorava ajudar a enfeitar tudo e dar presentes.

- Ela sempre comemorou, desde que veio da Terra para cá - papai comentou, apertando-me mais em seu abraço ao ver a mão de Hasan em minha perna.

- Me lembro da vez que você foi até o hotel de Gih e praticamente me ameaçou, dizendo que se eu não fosse até lá, sua mãe e Lórien iriam me buscar - Nike soltou um risinho e Lórien mordeu os lábios, abafando uma risada.

- Eu já estava pronta para ir! Só queria uma desculpa para te arrastar pelos cabelos até lá! - Lórien apertou as bochechas dela, minha mãe lhe mostrou a língua em resposta.

- Você me fez usar um vestido rosa, Lóri! - Nike esbravejou - Rosa, cheio de babadinhos!

- Veja o lado bom, você combinou com o bolo da sobremesa! - Lórien gargalhou, escapando do beliscão que minha mãe queria lhe dar.

- Estaremos lá, Lóri - Hasan sorriu para ela, puxando-me dos braços apertados de Susano, que soltou um rosnado irritado ao perder o “cabo de guerra” - já a entregou para mim no casamento, não tem porque fazer esse drama todo.

O solaris debochou, colocando-me em seu colo e dando-me um beijo sob a orelha. Controlei com todas as foças a vontade de suspirar e deixar um sorriso enorme tomar conta de meu rosto ao olhar novamente aquela marca de um sol dourado circulando meu pulso e envolvendo meu anelar.

- Não importa. Ainda é minha filha, e continuo sem querer ver isso - Susano bufou, levantando-se para ir junto com Lórien e minha mãe pelo portal vermelho aberto.

- Não demorem e não façam nada que não devem em minha sala! - minha mãe soltou, abafando uma risada assim como Lórien ao ver a careta de meu pai.

- Até mais! - Hasan se despediu, cobrindo minha boca antes que eu dissesse o que queria. Somente quando o portal desapareceu por completo, Hasan afastou sua mão de minha boca para cobri-la com os lábios.

- Não pode falar essas coisas na frente dele, Eish-amir, Susano vai acabar tendo um troço - O solaris sussurrou contra meus lábios.

- Ele tem que deixar de ser tão ciumento - reclamei, escorregando os dedos por aquela cascata de cabelos de fogo. Ainda não conseguia acreditar que havia conseguido - Nem mesmo Eileen implica tanto!

- Eu não criei Eileen, mas Susano sim. - Hasan sussurrou, descendo os dedos por meus ombros, fazendo com que minha respiração falhasse. - Ele tem um problema com isso.

- Mas eu não tenho! - inclinei-me, capturando seus lábios com os meus, sentindo meu corpo esquentar apenas com o simples toque em sua pele. Hasan contornou meus lábios com a língua e envolveu meu quadril com os braços, erguendo-me no colo.

- Vamos sair daqui antes que eu mostre que também não me importo e sua mãe fique irritada por bagunçarmos sua mesa. - Num piscar de olhos, um portal dourado nos envolveu.

 


Neruo continuava fazendo um ótimo trabalho, transformando a fortaleza de Vintro numa ACV. Do terraço, observava os construtores sob as ordens dele, modificando partes da estrutura externa, aumentando o pátio de treinos, mesmo que o lugar outrora tenha abrigado o exército silfo de Lótus Vale durante a organização e divisão do continente.

Era tudo muito espaçoso, mas Neruo tinha a ambição de tornar aquela a maior das quatro Academias Venox.

Um sorriso se formou em meu rosto, especialmente por ele estar planejando chamar Asahi para fazer parte dos mestres, uma vez que queria tirá-la da tristeza por ter perdido sua filha.

Sentada sobre o parapeito, observava os últimos raios de sol descendo pelo horizonte, tingindo o céu com as cores do poente. O vento com aroma de maresia me fez soltar um suspiro resignado. Fazia tempos que esperávamos por aquele tipo de paz, sabendo que não haviam mais demônios, mais monstros espreitando na escuridão.

Bom... não no mesmo nível daquele, se não, não haveria necessidade de outra ACV. Tentava também não pensar no que a ausência do livro causaria, ou o que poderia acontecer por eu tê-lo absorvido. Tinha receio de me corromper mesmo que não o usasse.

Saí de meus pensamentos ao ouvir a porta do terraço abrindo e passos se aproximarem de mim. Abri um sorriso e ergui o rosto, aproveitando o calor dos braços que envolveram minha cintura.

Era difícil acreditar que ele estava ali... por mim.

Hasan inclinou-se e me deu um beijo de leve, ele já se encontrava vestido para a festividade da noite, com uma túnica azul marinho bordada em prata e calças pretas, os cabelos trançados caíam por cima de seu ombro e roçavam em mim.

- Já está pronto para ir? - questionei, virando-me para envolver seu pescoço com os braços.

- É um pouco cedo, ainda - Ele sussurrou, estreitando os olhos dourados ao entender a malícia em meu olhar - Mas suponho que você vá querer ir primeiro a outro lugar.

Arqueei as sobrancelhas e escorreguei as mãos por seu peito, inspirando profundamente seu perfume. Hasan não tentou esconder o sorriso ou a cor que preencheu seu rosto.

- Onde eu gostaria de ir primeiro? - quis saber.

Hasan ergueu meu queixo e me beijou outra vez, mais profundamente, arrancando um suspiro de mim.

- Sua mãe esteve aqui, um pouco mais cedo, enquanto você cochilava - Ele murmurou contra meus lábios - Ela me fez algumas perguntas sobre você... ao que parecia, queria te entender mais, saber mais sobre a filha.

Pisquei confusa.

- Não sei se entendi...

- Ela queria te dar um presente, mas não sabia o que você gostaria de ter. - Hasan explicou, traçando linhas em meu pescoço com as pontas dos dedos. Meu coração descompassou.

- Não está me ajudando a entender o que quer, me tocando assim - arfei quando ele me puxou para os braços, enrolando-os em minha cintura.

- A vi pegar algo com Ericko quando esteve no castelo de cristal, e andou fazendo visitas à Connal também. Acho que ela está na solaris. Imagino que você gostaria de ir até ela, sabe? Ir ver se ela chegará a tempo na festa.

A compreensão caiu em mim como uma pedra no fundo de um lago, então o soltei, dando-lhe um beijo de despedida e abri um portal para Ciartes.

- Estejam de volta antes das dez! - Ele avisou ao me ver entrar no portal - Ou Lórien vai buscá-las.

Minha careta foi o suficiente para escutar sua risada enquanto eu caminhava por aquele túnel de luz e sombra.

 


O outro lado era como um soco no estômago toda vez que pisava lá. O calor de Ciartes não amenizava enquanto houvessem sóis no céu, e ali, eles mal haviam começado sua descida pelo horizonte. O summon de minha mãe havia estabilizado e se tornado orgânico, um corpo real a pouco tempo, então ela não deveria estar muito à vontade ali.

Acenei para os guardas da cidade central ao atravessar os arcos de entrada, guardas diferentes daqueles que meses antes me pegaram “invadindo” a loja de forja e tentaram me ferir usando fogo. Não tinha como esquecer do sol se apagando, sendo consumido por um certo solaris.


“Eu me tornaria o vilão, se tirassem você de mim”


Afastei os pensamentos, não queria me lembrar daquelas palavras, elas faziam meu interior se derreter.

Ao me aproximar da solaris, percebi as luzes acesas lá dentro e segui direto para a porta frontal. Um sininho tocou assim que a abri e entrei, porém certamente não foi ouvido por minha mãe, uma vez que atrás das portas que levavam aos fundos, batidas metálicas soavam altas o bastante para impedi-la de ouvir o som musical de um visitante entrando.

Antes de ir até lá, me peguei admirando as armas ali dentro.

Espadas de aço bremar polidas brilhavam contra as luzes espalhadas pelo teto, machados tão bem trabalhados que mais pareciam peças de uma exposição. Lanças, arcos e adagas, sabres e facas de arremesso... tantas armas e tão bonitas! Podia sentir o capricho, o carinho em cada peça ali. Eram tão perfeitas que faziam as armas de Rijan parecerem rústicas.

Segui até os fundos, passando sem fazer barulho pelas portas vai e vem e ainda longe da grande fornalha acesa, meu coração acelerou com o calor, com o desconforto que se espalhou por meu corpo.

Minha deusa!

E ela estava logo lá, a poucos passos da fornalha, descendo uma marreta grande contra uma espécie de metal incandescente.

Nikella amava o que fazia.

Ouvi tantas histórias de como ela se manteve na ACV durante anos trabalhando com forja e como foi difícil para ela depois que foi transformada... mas ali estava ela, dobrando metal, avaliando cada dobra com os olhos vermelhos cintilando tanto quanto ele.

Os cabelos brancos enrolados num coque afrouxando-se a cada golpe, deixavam espalhar alguns fios que balançavam perigosamente perto do metal, mas ela parecia alheia a aquilo. O calor ali era infernal, mesmo assim havia um meio sorriso em seu rosto brilhando com o suor.

Me aproximei, embora quisesse sair dali e deitar na neve para me refrescar, fiz surgir uma luva de tecido em minha mão metálica e puxei seus cabelos para trás, enrolando-os de volta e prendendo-os num palito.

Ela ergueu os olhos para mim, e ofegante com o esforço, não, com o calor que devia estar fazendo-a querer sair dali, me avaliou com surpresa antes de puxar a lâmina e a colocar de volta no fogo.

- Não devia estar se preparando para a festa? - Ela questionou, tocando o palito que prendi em seus cabelos.

- Hasan me avisou que você tinha vindo até aqui, ele me lembrou que Lórien viria te buscar, então preferi te livrar do surto dela, e de outro vestido que combinasse com a cobertura do bolo. - comentei. O sorriso que surgiu em seu rosto me fez estremecer.

Raros.

Eu quase nunca via sorrisos como aquele, pelo menos não direcionados a mim.

- Obrigada - Ela baixou os olhos para o metal e voltou a pegá-lo - Mas quero terminar isso primeiro.

Ela puxou o metal luminoso outra vez e o acertou algumas vezes, avaliando-o antes de enfiá-lo numa espécie de tina com um líquido escuro.

O vapor me fez pular para longe, o que a fez rir.

- Porque... ainda faz isso? - questionei.

- Foi a primeira coisa que aprendi a fazer, o que me manteve viva por muitos anos, o que pagou meus estudos, e principalmente, foi o que meu pai me ensinou a fazer - Engoli o caroço em minha garganta ao entender que ela não estava falando de seu pai biológico, mas sim do ferreiro que a ensinou sua profissão. - Dói, mas vale a pena continuar. Pelo menos, quando quero fazer algo especial.

- Hasan me contou que você fez as dele quando ele aceitou ir para a ACV lecionar - comentei, ela assentiu. Eu sabia daquilo, que ela só fazia armas para as pessoas que estimava, e agora entendia o porquê. Estar ali a menos de dez minutos fazia meu coração querer parar e minha pele ardia.

- Não fazia ideia que solaris podiam derreter vitrino. Tive que conseguir aço têmpral com Luyen para fazer uma nova - Ela apontou com o queixo para um pacote embrulhado sobre o balcão e bufou uma risada - quase impossível de derreter, e dobrar então? Se ela não tivesse o derretido para mim, nem teria conseguido fazê-las.

- Mas ele cuida bem das que você deu - falei, surpresa por conseguirmos manter uma conversa inteira sem mais ninguém por perto. Era fácil para ela falar sobre algo que gostava de fazer - porque lhe dar novas?

Ela, que agora fazia algo com uma lixa fina, parou o trabalho para me encarar.

- Hasan cuidou de você. Entrou naquela árvore antes que ele... - Ela fechou os olhos apertados e meneou a cabeça negativamente - Kuran quase a tirou de nós, se não fosse ele, você não estaria aqui. Eu não teria chance de me desculpar.

Encolhi os ombros. Ela ergueu os olhos novamente, como se pudesse ler o que passou em minha mente.

- Não pense que foi fraca, Kiara, ele tinha fogo negro, mesmo depois de ter perdido Farahdox, conseguiu obter fogo negro de uma forma sombria. Nem mesmo eu e seu pai com todas as almas conseguimos ir diretamente contra ele.

- E Hasan o fez engolir as próprias chamas como se fosse um menino aprendendo a usar magia - sussurrei, ela assentiu e fez uma careta.

- Perdi meu medo de sereianos, agora solaris passaram para o topo da minha listinha - não consegui evitar rir.

- Eu tenho mais medo de vampiros velhos e sádicos que queriam me transformar em escrava e criar uma raça nova de vampiros resistentes a sol - lancei um olhar de esgueira a ela, minha mãe estremeceu.

- Desculpe.

- Tudo bem - dei de ombros e me sentei no balcão, estava curiosa para abrir o pacote com a arma de Hasan, mas esperaria até a hora da festa.

- Não vai demorar agora - Ela murmurou, enfiando novamente a lâmina curta demais para ser uma espada num barril com uma espécie de óleo, mas dessa vez, quando a tirou de lá... pude ver o brilho azulado daquele metal, ele tinha a aparência de escamas. Escamas azuladas como as de Senrys.

Nikella olhou diretamente para mim ao desenrolar o tecido protetor do cabo da adaga. E lá, envolto em vitrino azulado e trabalhado com os protetores curvando-se para a lâmina como presas, estava o chifre de Senrys. A única parte de meu amigo que restou.

Um nó se formou em minha garganta e mesmo fazendo força para engolir a emoção, comecei a chorar.

Ela veio até mim com a adaga feita de escamas de dragão e aquele chifre e a colocou em minhas mãos.

- Para que você nunca esqueça que ele está sempre ao seu lado - Ela sussurrou.

Não consegui dizer nada, mas ela se aproximou mais e passou os braços ao meu redor, apertando-me num abraço. Chorei mais, queria que ele estivesse ali, não queria tê-lo tirado de Docinho e Lua. Sobrinho de Connal... e eu não pude fazer nada para impedir sua morte.

- Alguns de nós ganham chances a mais para fazer o que deixamos de lado na primeira oportunidade. Outros nos deixam para nos lembrarem que tudo tem fim, e que precisamos aproveitar cada minuto que temos - Ela afagou minhas costas e suspirou - Obrigada por me dar chance de tentar de novo.

- Não precisa agradecer - me afastei, limpando os olhos - Se não fosse você cobrar a dívida com Hasan...

Ela deu um meio sorriso malicioso.

- Ah, eu fiquei muito feliz por você, e mais ainda por ele, Hasan mal conseguia esconder a tristeza. E quando o vi naquela sala com você, nem mesmo quando o conheci no Palácio do Sol, o vi com tamanho brilho no olhar. - Ela suspirou - Mesmo que não tenha sido uma mãe boa para você, outros foram pais ótimos e lhe ensinaram o que não consegui. Áries estava certa em querer te levar.

- Graças aos deuses você não permitiu! Ela teria me transformado num cão assassino! - brinquei, tirando aquele olhar melancólico de seu rosto - Fora que Luyen sempre quis cuidar de uma menina, mas não tinha coragem de fazer uma!

Nike fez uma careta e virou-se, pegando a bainha de couro branca para a adaga.

- Colocar uma criança soltando raios no mundo deve ser... caótico.

- Uma que vira uma bolinha de chamas deve ser ainda pior! - sussurrei, lembrando-me de Alfia e de Áries, porém Nike arregalou os olhos.

- Você não...

- Não! - Me adiantei, sentindo meu rosto queimar.

- Nem pense nisso! Não quero ser avó de novo tão cedo e Susano mataria Hasan! - Ela resmungou e seu rosto perdeu a cor, certamente lembrando-se de que em breve teríamos um bebê meio bruxo para mimar.

Ela entregou-me a adaga na bainha.

- Seu... pai teria dito que não é um presente ideal para uma princesa.

- Mas foram as adagas que me deu quando eu era criança que possibilitaram trazer vocês de volta - falei - É o melhor presente que podia me dar, mãe. Obrigada.

Seu olhar suavizou, encarei o punho de chifre da adaga e aquela parte que doía quando me lembrava de meu dragãozinho pareceu pesar menos.

Nike apagou a fornalha, organizou tudo em seus lugares, pegou a espada de Hasan e outra que estava ao lado do balcão, só então segurou meu braço para sairmos dali. Ela trancou a loja e ao encarar o castelo, seus olhos se encheram d’água. A vi sussurrar um nome antes de me conduzir ao hotel de Gih.

- Preciso tomar um banho antes de irmos - Ela avisou, então a acompanhei até lá.

Enquanto ela se arrumava no banheiro, prendi minha nova adaga no cinto em minha coxa e usei magia para trocar de roupa, usando um vestido na altura dos joelhos azul marinho com alças rendadas e uma fita na cintura.

Permaneci sentada na cama e observei com atenção o embrulho da segunda arma. Não era uma espada comum, um pouco menor do que a que havia feito para Hasan, o punho da arma embrulhada parecia ser de pedra da lua com detalhes em vitrino.

- Estive com Rijan, Hamza me levou até ela para que eu pudesse aprender a moldar o aço têmpral, aproveitei e pedi a ela para me ensinar como mesclar vitrino e pedra como havia feito com as suas - Nike comentou ao me flagrar avaliando a arma, ela saiu do banheiro secando os cabelos escorridos, me deu um meio sorriso - pode olhar se quiser.

A curiosidade me venceu. Levantei-me de um pulo e peguei a arma com cuidado, tirando-a da bainha de escamas negras, me surpreendi ao ver a lâmina transparente azulada com cabo de pedra negra e uma inscrição em vegahniano dentro da lâmina em tinta negra: “Meu maior presente veio de sua alma”

- Ela é para...? - tinha uma pequena noção de para quem era aquela, mas queria ouvir mesmo assim.

Nike terminou de puxar as fitas de seu vestido longo negro, ela não me encarou, mas vi seu rosto se encher de cor.

- Para Eileen. Lórien o convidou e eu queria... - Ela baixou os olhos - Não vou devolver o machado a ele, Susano já o pegou de volta, então queria compensá-lo.

Escondi meu sorriso. Quando ela já estava pronta, peguei as armas e as embrulhei em tecidos de veludo e a acompanhei para dentro do portal que abriu.

 


Nunca havia visto tanta gente louca se divertindo em um único lugar!

Lórien, Karin, Melanie e Palloma cantavam no centro do salão, desafiando-se a beberem cada vez que alguém errava a letra, o que acontecia com frequência, já que todas tomaram vinho dos bruxos que Hestia trouxera. Leona também cantava e errava, mas ao invés de beber o vinho, ela tomava um suco de flores, pois esperava seu quarto bebê e nem ousava chegar perto de álcool, assim como Hestia mantinha-se longe do vinho.

Neruo, Minha mãe, Ericko e Ederon conversavam animados num canto do salão cheio de guirlandas de folhas verdes e douradas, certamente fazendo planos sobre a nova ACV de Vintro.

Lupinus e Nelin haviam desaparecido alguns momentos atrás, não queria nem imaginar o motivo. Datani estava perto de sua mãe, mas não parecia prestar atenção à conversa de Yurin, com Misa adormecida nos braços e Áries, cuja barriga já podia ser claramente vista arredondada. Eirien e Farah conversavam com Hestia e Leonne, tentando descobrir qual nome elas escolheram para o bebê.

Até mesmo Ira e Feroz, como os tapetinhos velhos que eram, encontravam-se jogados perto da enorme lareira, aproveitando da companhia de um gato esquisito que Áries trouxera com ela.

Do outro lado do salão, Hasan, Ewren e Demétrius riam, conversando sobre algo que deixava o rosto de Hasan luminoso, mas os sorrisos maliciosos de vovô e Demétrius diziam o suficiente.

Hasan me lançou um olhar breve, sorriu e piscou para mim.

Bastou aquilo para meu rosto esquentar e Eileen, junto com Susano bufarem irritados ao meu lado. Ambos conversavam sobre tempos anteriores, quando Eileen ainda era Caalin e não pareciam nada satisfeitos, lembrando-se de como a pouco tempo eu era apenas uma criança.

Estava disposta a jogar na cara de alguém que fui mantida congelada por quase trinta anos, se algum deles começasse a implicar novamente com a idade de Hasan.

Porém, Caelle apareceu com tia Gwen e Halles, e Susano foi os recepcionar e ajudá-los a colocar a pilha de pacotinhos que haviam trazido sob a árvore gigante que Leona enfeitara. Não queria nem olhar na direção da pilha de presentes, não estava preparada para aquilo e sentia-me culpada por não ter pensado em presentes de última hora para levar.

Eileen ao meu lado parecia ter o mesmo pensamento ao encarar os pacotes e suspirar. Ele havia chegado com apenas dois embrulhinhos, mas não quis dizer para quem eram, embora eu tivesse ideia.

Em dois meses, chegaria o dia de ir até a Floresta Morta encontrar sua noiva, e ele havia me convidado para ir junto. Não sabia ao certo se era por receio do que encontraria lá, ou se apenas para reforçar os motivos do que o fizeram aceitar o acordo.

Enrolei seu braço com o meu, sua atenção que estivera nas brilhantes esferas coloridas jogando espectros de luz pelas paredes de cristal, voltou-se para mim e o malvarmo deu um breve sorriso. Encarar aqueles olhos azuis topázio me fez saber o que poderia lhe dar de presente naquele momento.

- Vem comigo - o chamei, erguendo-me do sofá e fazendo um breve sinal de “volto logo” para Hasan.

Eileen ergueu as sobrancelhas numa pergunta silenciosa, mas não hesitou em se levantar e me seguir para fora do salão, seguindo o corredor aberto com altas colunas cristalinas até o escritório de Eirien. O atravessei rapidamente e saí pela porta que levava ao jardim.

Lá fora, a neve caía pesadamente sobre a barreira brilhante que a impedia de alcançar aquele pequeno pedacinho de paraíso decorado por flores da cerejeira, mantido no vigor da primavera por magia. A trama azulada fazia com que o jardim brilhasse, criando teias de luz por todos os lados, deixando-o tão claro quanto durante o dia.

Eileen aproximou-se dos galhos mais baixos e puxou uma pequena flor, então virou-se e a colocou na trança lateral de meu cabelo.

- Queria ter tido a chance de te trazer aqui quando era criança - Ele suspirou - Estamos aqui agora, não é o mesmo, mas fico feliz do mesmo jeito.

Lhe dei um meio sorriso, pegando suas mãos. As virei para cima e observei os calos ali, as poucas marcas que conseguíamos manter. Eileen ainda me olhava curioso, sem entender o motivo de o ter arrastado até ali enquanto estava quase na hora da ceia.

- Queria te dar um presente especial - comentei, pressionando os polegares em suas palmas.

- Já é um presente que esteja me permitindo fazer parte de sua vida - Ele se inclinou e beijou minha testa.

- Ah, mas creio que vá ser útil para conseguir acompanhar nosso ritmo - brinquei, então segurei seu rosto e toquei minha testa com a sua, espalhando sobre ele um véu de poder, enviando a ele uma gota daquela luz, a mesma que herdei de sua vida anterior.

Eileen arquejou e tensionou o corpo, porém logo que a luz o invadiu, sendo absorvida por sua pele, ele arfou e afastou-se um passo, olhando suas mãos abertas com os olhos cheios de lágrimas.

Magia de luz não tinha um limite, assim como a sombria, podia lhe passar apenas uma gota e mesmo assim ele teria tanto quanto eu. Eileen tensionou os dedos, deixando pequenos raios se formarem ali. A alegria em seus olhos era tanta que me fez o abraçar novamente.

- Obrigado, Kiara - Ele me apertou até que minhas costelas doessem, só então me deixou sair daquele ninho esmagador cheio de carinho e sorriu para mim.

- Só não vá se aproveitar disso para encrencar com Hasan - Eileen sorriu e estreitou os olhos.

- Não tinha passado por minha cabeça, mas agradeço a ideia! - revirei os olhos - vamos, já deve estar na hora de comer!


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Depois da ceia, a entrega dos presentes foi um espetáculo a parte. Lórien, com um vestido longo vermelho e um gorro na cabeça, entregava os presentes, chamando cada um por apelidos “carinhosos” que ela mesma inventara. Nenhum deles, no entanto, causou tantos risos quanto os de Eileen e de Hasan.

“Picolé centenário” foi como ela chamou Eileen para lhe entregar o embrulho que minha mãe trouxera da solaris para ele. Os olhos do malvarmo brilharam ao observar a espada de vitrino e pedra da lua que minha mãe fizera para ele.

Eileen agradeceu timidamente, mas não soltou a arma nem por um segundo depois de recebê-la.

Hasan, ou como Lórien chamou “Rum com gelo” ficou maravilhado com a espada de aço têmpral. Nunca havíamos visto arma semelhante, o metal possuía um brilho branco e era espelhado ao mesmo tempo que translúcido, e desde o chappe até a ponta, havia um trabalho ramificado como a queda de um raio, como se a lâmina da arma houvesse guardado eternamente em seu interior um relâmpago em seu momento de queda.

Foram os presentes mais comentados, todos queriam receber uma arma também.

Por fim, descobri o que haviam nas caixinhas de Eileen. Eram pulseiras de ouro branco com pingentes floquinhos de neve em madrepérola. A que deu para Nikella, possuía pequenos rubis em formato de gotas entre os flocos, e a minha, minúsculos corações em safira.

Ele havia mandado fazer antes da coroação de minha mãe à rainha de Vegahn, mas nunca pode ir buscar para entregá-las. Quando foi questionado sobre a minha, Eileen ficou com as bochechas completamente azuladas ao explicar que sabia que teria duas meninas, uma vez que minha mãe nasceu durante o período da maldição de Arbarus.

No entanto, o presente que me fez ficar com um nó emotivo na garganta e que deixou a todos surpresos, foi uma presilha em formato de sol que Áries me dera. A joia em ouro, citrino e topázio imperial. A princípio, não entendi completamente a comoção sobre a joia, mas agradeci e a guardei com cuidado até voltar para casa.


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No fim da festa, ao nos despedirmos de todos e depois de Hasan ter que insistir para Leona que precisávamos ir para casa, esperava voltarmos para Vintro quando Hasan abriu um portal para nós.

No entanto, me deparei com neve, chalés de madeira e uma brilhante barreira sob uma gigante lua azul. Não havia quase ninguém do lado de fora, as lamparinas das casas encontravam-se apagadas e os únicos que via caminhando por ali eram os bruxos de guarda, que nos deram breves acenos.

- Porque viemos para o Vale da Lua? - quis saber. Hasan tinha um sorriso misterioso no rosto ao me pegar nos braços e caminhar para perto da cachoeira, próxima a ponte de pedra sobre o rio que levava à casa de Ceiran e Ellyn.

Porém Hasan continuou, aproximando-se do véu das águas.

- É seu presente, Eish-amir - Ele sussurrou, deslizando o nariz em minha orelha.

Confusa, mas curiosa, observei as águas geladas desabando até nos aproximarmos o suficiente para perceber um brilho amarelado sob elas.

O véu se abriu num instante, revelando uma casa protegida por uma barreira sob as águas.

Meu coração acelerou.

Era uma réplica da cabana do Vale do Sol, dentro do Vale da Lua.

- Hasan... é perfeito! - sorri, apertando mais os braços ao redor de seu pescoço. Ele sorriu, encarando-me com seus olhos dourados acesos na escuridão da noite, então me levou até lá.

- A única diferença é que a varanda dos fundos foi removida do projeto - Ele explicou, mostrando-me a casa por dentro. Tudo era exatamente igual, as cores, os cheiros, até mesmo a decoração.

- Obrigada - sussurrei, acompanhando-o até o sofá da sala, onde sentei-me sobre seu colo e o beijei, como quis fazer a noite toda.

- Eu queria que tivesse algo de Vegahn quando estivéssemos aqui. Achei que se sentiria à vontade em uma casa já conhecida - Ele explicou.

- Tão atencioso, meu marido - brinquei. Outro sorriso ainda maior apareceu em seus lábios, ele estendeu as mãos, pegou o presente de Áries em minha bolsa, soltou meus cabelos e os prendeu para trás com a presilha.

- Faria qualquer coisa para te ver feliz - Ele escorregou os dedos por meus ombros, puxando as alças do vestido para baixo, beijando a pele por onde suas mãos deixaram rastros quentes.

- Eu já sou feliz apenas por ter você ao meu lado, Hasan. - disse com a voz trêmula, tentando e falhando em mantê-la firme. - O que foi aquela comoção pela presilha? - questionei antes que meu raciocínio fosse afetado pelos toques gentis de seus lábios.

Hasan voltou a me encarar, dessa vez com os olhos negros como carvão, famintos, opostos à calmaria de suas carícias lascivas.

- É chamada de a gema de Hellenon, a única relíquia do Primeiro Céu que veio com meu pai, estava presa no manto em que ele foi embrulhado - Ele explicou calmamente, envolvendo o punho em meu cabelo e arqueando meu pescoço - Não é só uma joia, tem um selo solaris nele. Se você o usar... se torna imune a fogo solar. - sussurrou em meu pescoço, fechando os dentes cuidadosamente ali.

Só então percebi que havia fogo em suas mãos, devorando o tecido de meu vestido. Meu coração acelerou.

- Mas ela não pode precisar ainda? Para o bebê? - quis saber. Hasan meneou a cabeça negativamente.

- Seu amigo, Lohan nos contou que celestes podem conferir selos de proteção aos seus companheiros e apenas a eles, para que as tormentas de outros celestes da mesma raça não os afetem. Ele ensinou Sírius como fazê-lo para proteger minha mãe do poder do bebê - pisquei surpresa - porém apenas celestes puros podem fazer essa magia. Não tinha como eu criar um para você, então ela lhe deu a presilha. Foi o que ela usou para conseguir me carregar também. - Hasan explicou, marcando minha pele com outra trilha de beijos.

- E ela me deu isso... - duvidava que fosse por receio de Hasan me ferir sem querer. Ele era controlado demais para errar.

- Além de significar que ela te considera da família... acho que foi um pedido por netos - Ele riu, pressionando mais as presas em meu pescoço.

- Ela pode esperar um pouco mais - murmurei, apertando o quadril sobre o dele, sentindo-o contra mim. Hasan assentiu com um sorriso crescente no rosto, pegando-me nos braços outra vez.

- Vou te mostrar o resto da casa - Ele brincou - quero que me diga se a cama está de seu agrado.

Comecei a rir.

Seria um novo e maravilhoso começo.


A Dama da Floresta Morta


Kiara:


Eu nunca sequer havia pensado em pisar ali. Por mais que as coisas tivessem ficado difíceis durante aqueles anos após a queda do castelo de gelo e do reinado de meus pais, nunca, jamais cogitei a possibilidade de pedir qualquer coisa à feiticeira da floresta morta.

Porém, Eileen seguia sem hesitação pela trilha escura entre árvores escuras petrificadas, com seus longos galhos enegrecidos retorcidos para baixo, quase como se quisessem alcançar quem quer que se aventurasse sob eles. Vez ou outra, via pequenos embrulhos de couro desgastados, pendendo em fitas vermelhas de alguns galhos.

Oferendas. Eram oferendas à feiticeira que vivia ali.

Urenai.

Feiticeira, necromante, a vidente do vazio e porta-voz dos espíritos.

Minha pele se arrepiou só de pensar naquilo. No custo exigido por feitiços antigos capazes de trazer mortos à vida. Ela podia fazer qualquer coisa, diziam. Não tinha poder como um mago, mas sua magia invocada irrestritamente do mundo espiritual lhe conferia poder para fazer o que desejasse.

- Está tremendo - Eileen sussurrou, empurrando um galho com pingentes de gelo para fora do caminho. Ali as árvores eram tão próximas umas as outras que suas copas desfolhadas enroscavam-se umas nas outras, formando barreiras naturais, impedindo que fermans ou outras criaturas aladas adentrassem aquele canto inexplorado do mundo de gelo.

- Estou quase balindo também - tentei rir, mas o som saiu quase como um choramingo de uma ovelha ao perceber que entrou numa toca de lobo.

Eileen sorriu.

- Ela não é tão assustadora quanto dizem, só...

- Nem termine essa frase - ralhei - sua sogra pode estar ouvindo! - murmurei, observando atentamente um corvo de quatro olhos feito de fumaça nos encarando de um canto escuro entre uma espessa galhada.

- Não ia dizer nada de ruim - Eileen deu de ombros, era o retrato da calmaria, embora se eu estivesse em seu lugar, provavelmente entraria ali chorando. Conforme nos aprofundávamos mais na Floresta Morta, mais escuro o lugar ficava, como se a luz minguada do sol não tivesse coragem o bastante para entrar ali.

Eileen estendeu uma mão e deixou uma pequena esfera de luz ao nosso redor, girando, espalhando luminosidade branca. Embora sua intenção fosse clarear o caminho por eu estar com medo, a luz só fez com que as sombras ali se tornassem mais nítidas.

Eu as ouvia com frequência agora. Desde...desde que absorvi Adraph, ouvia suas vozes quase como se fossem pessoas sussurrando em meus ouvidos. Tentava também ignorar a qualquer custo o fato de que meus impulsos ferais tornaram-se ainda mais difíceis de controlar e minha magia negra também ficara, de certa forma, mais forte.

Será que tinha me confundido com a mensagem de Aristes? E se tivesse feito a escolha errada ao absorver o livro? Afastei os pensamentos e o receio que tinha toda vez que sentia como se garras negras e sangrentas arranhassem o mais profundo de minha mente.

- Quase lá. - Eileen bufou uma lufada de ar morno, mostrando que tinha se alimentado recentemente.

Por alguns instantes, tudo que ouvíamos era o som de nossos passos esmagando a neve endurecida da trilha demarcada por pedras altas e mais daquelas oferendas nas árvores. As que encontrávamos ao chegar mais profundamente na floresta eram maiores... e mais assustadoras também.

Chifres de rena colados a seus couros, presas de lobos de áries, quelíceras de remorhazes, e até mesmo um olho parcialmente bicado de um nukelavee.

Queria dizer algo sobre aquilo, porém não consegui falar nada ao olhar para frente novamente e dar de cara com um portão feito com ossos de yetis.

- Ela tem um gosto peculiar para decoração - brinquei, mas minha voz tremeu, o que fez Eileen começar a rir.

- É provável que tenha que vir me visitar aqui, a partir de agora.

Não consegui conter uma careta.

- Olha o lado bom, não tem vizinhos fofoqueiros! - o sorriso de Eileen aumentou. Ele afastou os cabelos cinzentos dos ombros e abriu os portões.

Ao passar por eles, pisquei incrédula com o que encontrei.

Uma floresta de carvalhos exibia suas folhagens marrom douradas no fim do outono, tons de vermelho, ferrugem e amarelo davam uma vida completamente diferente ao lugar e lembrava muito a floresta do Vale do Sol.

Eileen olhava chocado tudo aquilo, o que me fez crer que não estivera assim quando ele decidiu fazer seu pedido à Urenai.

E pensar na feiticeira, fez com que eu percebesse outra coisa que ainda não havia visto, escondida sob os galhos pesados, carregados de folhas.

Um chalé construído em pedras de cor ocre, era recoberto por cipós ressequidos, protegendo uma longa varanda que se estendia até um rio estreito que corria ao lado da casa, movendo uma roda de moinho.

O som das engrenagens fazia minha pele se arrepiar. Porém o que me deixou curiosa foi não ver ninguém ali. A porta da casa encontrava-se aberta, revelando um interior escuro, onde apenas uma luz esvanecida de provavelmente uma lareira, clareava um pouco o lugar.

Virei-me para Eileen afim de questioná-lo sobre a data do retorno, se ele não havia errado. No entanto, me peguei soltando um gritinho e saltando para trás como um gato assustado ao ver a senhora de pé atrás de nós.

Eileen apenas virou-se para ela e se curvou um pouco.

- Urenai - Ele se inclinou, pegando as mãos enrugadas da senhora - Está tudo muito diferente de quando vim antes.

A senhora idosa com um olho fundo tampado por pele o observava com o olho restante. Ela tinha a pele pálida, manchada e enrugada. Sobre seus ombros um manto marrom escuro feito de pele de lobo, era cheio de pequenas contas vermelhas bordadas e tinha um enjoativo cheiro de incenso.

Ela inclinou-se tão pouco que o movimento foi quase imperceptível, mesmo assim, os longos cabelos cinzentos se moveram sob a tiara de um metal escuro sobre sua cabeça. Não deixei de reparar também nos traços negros desenhados em seu rosto, queixo e nariz.

- Pontual e puro, como exigi - Ela lhe sorriu, mostrando presas longas e claras, revelando um pouco do que ela tentava esconder por baixo daquela falsa aparência.

Alguns sussurravam que cada um que ia ali, a enxergava de um modo, mas que os dentes eram os mesmos para todos: presas. O porquê ninguém sabia.

Eileen baixou os olhos com o rosto ganhando um tom mais azulado. Quis rir, mas a feiticeira virou-se para mim.

- Urenai - fiz uma reverência, temendo não ser educada caso não o fizesse.

A senhora me olhou de cima a baixo:

- Princesa Arbarus Ascardian - disse baixo, me avaliando com aquele olho castanho profundo, como se pudesse enxergar minha alma. - Eu queria muito tê-la conhecido antes, mas meu pedido foi atendido, afinal! Ele a trouxe para que pudesse lhe ver.

Eileen piscou, fingindo que não era com ele quando o olhei feio. Ele não disse que a feiticeira queria me ver. Disse apenas que queria companhia. Mas não entendi o motivo de Urenai usar o nome que eu teria caso não fosse o nome novo criado por Nikella e Susano.

- É um prazer conhecê-la. Mas é só Kiara Orieser agora - tentei sorrir, o que só fez com que seus dentes ficassem mais aparentes.

- Você é o motivo de eu ter como manter protegido o que me é mais precioso, meu melhor contrato e único que foi feito por amor - Ela sussurrou. Eileen a olhava curioso, talvez tentando decifrar o motivo por ela querer minha presença.

- Gostaria de agradecer por manter as memórias de meu pai, também - comentei um pouco sem graça.

Urenai me estudou por um ínfimo instante.

- Eu não gosto de agradecimentos, gosto de ter dívidas a cobrar... mas lhe devo duas vezes. Então vou pagar uma agora em meus últimos instantes.

- Me deve? - arqueei as sobrancelhas confusa, Eileen também não parecia entender.

No entanto, quando pensei em questionar sobre, percebi aquele único olho em seu rosto enrugado brilhando num verde pálido espectral que provocou um arrepio em meu corpo.

- Herdeira de luz e sombra, eu sei o que você carrega - sua voz não era exatamente sua, era como centenas de vozes unidas num único tom - sua escuridão não passa de uma prisão e uma maldição.

Uma previsão.

Tentei afastar-me um passo, mas ela ergueu as mãos com agilidade e segurou meu rosto, aproximando tanto o seu que pude sentir o hálito morno em cada sussurro - Você só se libertará quando o preço por ela for pago, quando o fim se transformar em começo, quando dois fios forem amarrados em um. Enquanto a sombra vagar em passos humanos, você jamais terá paz.

Ela me soltou.

Cambaleei para trás e fui amparada por Eileen, ele me olhava lívido, havia um medo real naqueles olhos topázio.

- Isso foi...

- Um aviso, apenas - Ela suspirou profundamente - Queria ter-lhe dado um aviso diferente antes que o tivesse tirado desse plano - pelo olhar da feiticeira, entendi que falava do livro - Bom, agora já foi! Meu tempo está chegando ao fim, então... Ren, pode sair.

Urenai chamou.

E de dentro da casa, uma figura envolta num manto emergiu. Sob o capuz só podia ver cabelos dourados caindo em ondas sobre o veludo negro, mãos cruzadas na frente do corpo esguio, visível pela abertura do manto. Ela desceu as escadas em passos rápidos e suaves, movimentos como se o vento a acompanhasse.

Eileen a avaliava apreensivo, talvez com receio do que poderia ter por baixo daquele capuz.

Podia sentir o cheiro de suas lágrimas, essas se fizeram visíveis em suas bochechas assim que a garota se aproximou e atirou os braços ao redor da feiticeira.

- Não quero que se vá! - Ela choramingou. A feiticeira apenas esfregou as costas de Ren ternamente.

- Os fins são o que fazem os inícios e meios terem sentido, meu bem. Nada é eterno e magia nenhuma muda isso - Urenai a afastou delicadamente para secar as lágrimas em seu rosto - E não vou te deixar sozinha, sabe disso.

Só então Ren virou-se em nossa direção, afastando o tecido que cobria seu rosto. Eileen a encarava de boca aberta. E eu, mesmo apreensiva pelas palavras anteriores da feiticeira dirigidas a mim, também a olhava com a mesma expressão.

A filha da feiticeira da Floresta Morta era uma híbrida. Humana, como a mãe, e silfa.

Delicadas orelhas alongadas eram enfeitadas por diversas argolinhas de aço-luz, os olhos de um cor de mel intenso tinham sua cor intensificada pelo avermelhado de seu choro.

A garota era bonita, muito, na verdade. Lábios cheios, nariz levemente aquilino e sardas espalhadas pelas bochechas, costas das mãos e pescoço.

Ela também avaliava Eileen com um certo receio, reparando no corpo esguio demais e na baixa estatura de Ren, maior que eu por um ou dois dedos.

- Que idade...

- Dezessete. - Urenai adiantou a pergunta de Eileen e puxou sua mão, colocando-a sob a que Ren, com certo receio, estendeu. A feiticeira o fulminou com um aviso no olhar, então recitou palavras que eu sequer escutei antes.

Por um instante, não houve nada, mas em seguida, as marcas brancas de raios nos braços de Eileen tornaram-se visíveis. A feiticeira murmurou algo em aprovação, olhando-me de lado. Logo após isso, a magia circulou os pulsos dos dois, estendendo a marca dele para Ren.

Ela o encarou por um instante, então baixou as vistas outra vez.

- Foi o casamento mais rápido que presenciei na vida - Não consegui conter as palavras, e ganhei uma careta de alerta de Eileen.

- Não se atreva a falhar com sua palavra, não falhe com ela - Urenai o avisou.

A feiticeira olhou uma última vez para a garota, que tentava conter as lágrimas:

- Estarei sempre de olho em você - Ela sussurrou, então nos deu as costas e lentamente seguiu na direção dos portões de ossos.

Ela partiria? Não entendi para onde Urenai seguia, até que com um vento forte soprando as folhas das árvores, a feiticeira começou a desmanchar-se em milhares de mariposas negras.

Dei um pulo para trás no instante que os bichos sobrevoaram nossas cabeças, deixando um rastro de uma luz verde que desceu sobre Ren.

A garota inspirou profundamente, e de olhos fechados, abriu os braços e recebeu aquela luz. No mesmo momento, marcas negras ficaram visíveis em sua testa, ao redor dos olhos, assim como um risco de seu lábio inferior até o queixo. Grossas linhas negras como anéis ficaram visíveis ao redor de seus dedos, pulsos e provavelmente em mais partes do corpo.

A magia das feiticeiras era aumentada quando suas mães morriam e Ren acabara de receber o manto de feiticeira da mãe, tendo-o marcado sobre a pele com aquelas tatuagens.

Ela fechou os braços ao redor do corpo e recomeçou a chorar.

Eileen não sabia se deveria ou não a abraçar. Eles não tinham trocado uma palavra sequer, então eu fui até ela e a envolvi num abraço.

Não disse nada, apenas deixei que chorasse até que se acalmasse. Por fim, Eileen acabou entrando na casa, fazendo um chá para ela e começou a conversar com a garota. Descobrimos que Ren vivera escondida na casa da floresta por todos aqueles anos, e que cada contrato que a mãe fizera, foi para mantê-la segura quando morresse, pois eram as últimas de uma linhagem de feiticeiras refugiadas de Saldazaris.

Cada dom pedido em contratos que Urenai ofertou, Ren recebera. Ela tinha um conjunto único de magia, além de um livro de capa grossa de couro com seu nome escrito em vermelho nela. Um grimório.

Os deixei ali, com a promessa que voltaria depois para ajudá-los no que precisassem. Eileen parecia tão apavorado como não estivera quando chegamos, mas ele não hesitou em dizer a ela que ficaria.

Ao caminhar sozinha para fora da floresta, os sussurros que ouvia, lembravam-me das palavras da feiticeira para mim.

Uma prisão e maldição.

Eu não sabia o que pensar, além do que martelava em minha mente: não acabou no livro absorvido.

 

 

                                                   Emilly Amite         

 

 

 

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