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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENVENENADO EM CARDINGTON CRESCENT / Anne Perry
ENVENENADO EM CARDINGTON CRESCENT / Anne Perry

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Na Londres vitoriana, o inspetor Pitt e sua perspicaz esposa Charlotte enfrentam um sórdido caso em sua própria família. O cunhado de Charlotte morre em estranhas circunstâncias depois de manter uma relação extramatrimonial; pouco depois também morre sua amante. O escândanlo está servido...

Desta vez, Charlotte é chamada para fazer companhia à sua irmã Emily cujo marido foi envenenado. Pitt é encarregado do caso e assim conta com a colaboração de sua mulher. Pouco depois de Charlotte estar com sua irmã, a amante de seu cunhado é morta. As suspeitas caem sobre Emily  e um nobre convidado a passar alguns dias com a familia dos March e com quem Emily  teve um inocente flerte.

Charlotte e Emily descobrem paixões e ódios  secretos assim como orgulho, hipocrisia e hostilidade declarada.

Por outro lado, Pitt é encarregado tambem de descobrir quem  é a jovem esquartejada e quem a matou. Os dois casos se entrelaçam. Finalmente, depois de algumas aventuras os dois casos se esclarecem.

 

 

 

 

A senhora Peabody estava acalorada, ofegante. Não só era verão, mas também o espartilho a aprisionava inexoravelmente, e o vestido, com suas elegantes anquinhas, pesava muito para correr calçada abaixo em busca de um cão pertinaz que desaparecia agora pela porta de ferro forjado do cemitério.

— Clarence! - gritou a senhora Peabody. — Clarence! Volta agora mesmo!

Mas Clarence, que não era nada idiota, penetrou pela brecha e saiu disparado para a erva alta e as matas de louro que havia do outro lado da grade. A mulher, muito zangada e segurando com uma mão o amplo chapéu garbosamente caído agora sobre os olhos, tentou com a outra forçar a porta para deslizar por ela sua silhueta extraordinariamente grossa.

O finado senhor Peabody sempre tinha gostado das mulheres de proporções generosas, e assim o dizia freqüentemente. A mulher devia ser um reflexo da posição social do marido: digna e substanciosa.

Mas era preciso mais aprumo do que ela possuía para não perder a dignidade depois de ficar presa por um seio na porta de um cemitério, com o chapéu caído e um cão uivando como um possesso a uma dúzia de metros.

— Clarence! - gritou outra vez.

Depois, inspirando fundo, deu um fortíssimo empurrão. Soltou um grito de desespero e no final conseguiu passar, com as anquinhas alarmantemente perto já de seu quadril esquerdo.

Clarence ladrava como um histérico e escavava entre os louros. Depois de uma semana sem chover, o chão estava seco e o cão levantava nuvenzinhas de pó. Mas conseguiu o prêmio, um pacote grande e úmido, envolvido em papel marrom e bem amarrado com corda. Os impetuosos esforços de Clarence o tinham quebrado por vários lugares, e o pacote estava se abrindo.

— Deixa isso! – ordenou-lhe ela. Clarence não fez caso. — Deixa-o! - repetiu, enrugando o nariz. Era realmente repugnante; pareciam sobras de comida, carne danificada. — Basta, Clarence!

O cão arrancou com os dentes um pedaço do pacote, úmido de sangue, e então a senhora Peabody viu: era pele. Pele humana, pálida e branca. Soltou um grito, e enquanto Clarence deixava descoberto o conteúdo do pacote ela gritou outra vez, e outra e outra mais, até que o mundo começou a dar voltas em meio a uma bruma avermelhada. Quando caiu ao chão, Clarence continuava dando puxões no pacote e um transeunte alarmado conseguia transpassar a porta do cemitério.

O inspetor Thomas Pitt ergueu a vista de sua mesa coberta de papéis, alegrando-se pela interrupção.

— O que há?

O agente Stripe ficou na soleira, pestanejando e com o rosto um pouco ruborizado.

— Sinto muito, senhor, mas nos informam de um tumulto no cemitério da igreja do St. Mary, no Bloomsbury. Uma velha senhora está histérica. Muito respeitável, conhecida no bairro... e não toca na bebida para nada. O marido foi da liga antialcoólica, antes de morrer. A mulher nunca causou problemas.

— Estará doente - sugeriu Pitt. — Com um guarda é suficiente, não acha? E possivelmente um médico.

— Veja, senhor - Stripe parecia inquieto-, parece que o cão lhe escapou e achou um pacote entre as matas, e ela diz que é parte de um corpo humano. Daí toda a histeria.

— Parte de um corpo humano? - repetiu Pitt. Gostava do jovem Wilberforce Stripe; normalmente era de se confiar. Histórias vagas como esta não eram próprias dele. — O que há nesse pacote?

— Esse é o problema, senhor. O guarda que fazia a ronda diz que procurou não tocar nada, mas que lhe parece justamente isso: parte de um corpo de mulher. Ahn...- não queria ser grosseiro, mas ao mesmo tempo era consciente de que um policial tinha que ser preciso. Pondo uma mão na cintura e outra no pescoço, acrescentou: — A metade de cima, senhor.

Pitt se levantou de um pulo, fazendo cair ao chão os papéis que tinha sobre o regaço. Apesar dos dezessete anos que levava em Londres, o suntuoso e elegante coração do Império que pulava a um tiro de pedra dos bairros pobres onde a miséria era tão intensa que as casas se apoiavam umas contra outras para não cair, onde em um cômodo morriam e viviam até quinze pessoas, Pitt não deixava de surpreender-se ante a selvageria do crime. Não conseguia entendê-lo em seu conjunto. Mas a dor dos indivíduos ainda tinha a capacidade de comovê-lo.

— Então será melhor se formos ver - disse, ignorando a desordem que o rodeava e deixando o chapéu onde o tinha jogado pela manhã ao chegar.

— Sim, senhor.

Stripe seguiu a enfraquecida figura do inspetor corredor e escada abaixo para a rua ensolarada e luminosa. Um cabriolé vazio passou diante deles, pensando que Pitt, com as abas pendendo e o chapéu enviesado, não tinha aspecto de cliente em potencial. Stripe, de uniforme, não era digno sequer dessa conjetura.

Pitt agitou o braço e correu um pouco.

— Cocheiro! - gritou, dirigindo sua ira nem tanto a quem lhe desprezava mas ao crime em geral, e a este que se dispunha a investigar agora.

O cocheiro puxou as rédeas e olhou-o com cenho franzido.

— Sim, senhor?

— Ao cemitério do St. Mary, no Bloomsbury. - Pitt montou na carruagem e segurou a porta para que Stripe subisse.

— É este lado ou o oeste, senhor? - inquiriu o cocheiro.

— Pela porta posterior, junto à avenida - disse Stripe, solícito.

— Obrigado - disse Pitt -, e dirigindo-se ao cocheiro: — Apresse-se, homem!

O cocheiro fez estalar o chicote e o cavalo pôs-se a andar, acomodando-se rapidamente a um trote curto. Pitt e Stripe guardaram silêncio, absortos em suas respectivas especulações a respeito do que iriam ver.

— É aqui onde queria, senhor? – inclinou-se o cocheiro para perguntar.

— Sim. - Pitt já tinha visto o pequeno grupo de pessoas que rodeava o guarda. Era um cemitério suburbano, comum e mal cuidado: erva seca pelo calor sem chuvas, lápides irregulares e carregadas, anjos de mármore, e em todo a ala direita, antes de chegar aos ciprestes, matas de louro escuro.

Pitt desceu, pagou ao condutor, cruzou a rua e falou com o guarda, que se alegrou muito ao vê-lo ali.

— O que aconteceu? – Pitt perguntou em tom baixo.

O guarda indicou com o cotovelo para a grade alta e provida de pontas mas não virou a cabeça. Estava pálido e

suava copiosamente.

— A metade superior de um corpo de mulher, senhor. - Engoliu com dificuldade. — Um horror. Estava ao pé dessas matas.

— Quem o achou, e quando?

— Uma tal senhora Ernestine Peabody, que tinha ido passear com Clarence, seu pequinês. - Consultou sua caderneta. Pitt a leu pelo reverso: “15 de junho, 1887, 15:25 horas. Mulher gritando no cemitério da igreja do St. Mary.”

— Onde está a mulher? - perguntou Pitt.

— Sentada no átrio da igreja, senhor. Está muito afetada, disse-lhe que assim que falasse com ela poderia ir para casa. É só uma opinião, senhor, mas não acredito que possa nos ajudar muito.

— É provável. E onde está o... pacote?

— Onde eu o encontrei. Só o toquei para me assegurar de que a mulher não estava vendo alucinações... Já sabe, a bebida e isso.

Pitt foi para a grade de ferro forjado, agora trancada, levemente entreaberta e encaixada nos sulcos do barro seco. Passou com muita dificuldade e seguiu paralelo à grade até chegar às matas de louro. Sabia que Stripe lhe pisava nos calcanhares.

O pacote estava onde Clarence o deixara, com o papel rasgado deixando ver a carne e um pouco de pele branca ligeiramente manchada de sangue.

As moscas começavam a ajuntar-se. Pitt não precisou tocá-lo para ver que o que aparecia era um peito de mulher. Endireitou-se, tão enjoado que temeu desmaiar ali mesmo. Respirou fundo várias vezes, enquanto ouvia Stripe afastar-se para vomitar atrás de uma lápide com querubins de pedra.

Depois de contemplar uns instantes as poeirentas lajes, a erva pisoteada e as pequenas manchas amarelas como alfinetes nas folhas de louro, obrigou-se a olhar de novo o pacote. Havia detalhes que anotar: classe e cor do papel, a corda que o segurava, como eram os nós. A pessoa costumava deixar sua marca: atar com mais ou menos força, ao longo ou ao largo primeiro, nós corrediços ou não, atando em cada intercessão ou fazendo somente um laço. E havia uma dúzia de maneiras de arrematar.

Ajoelhou-se para examinar o pacote, virando-o com cuidado quando examinou a parte superior. O papel era grosso e um pouco acetinado por dentro, duas capas. Tinha-o visto ser usado para empacotar roupa. Era papel grosso, mas estava úmido de sangue e não fazia ruído algum. Dentro do papel marrom havia mais papel desta vez de cozinha, engordurado e em duas capas também, como o que às vezes usam os açougueiros. Quem tivesse envolvido aquela coisa devia saber que assim não sairia o sangue.

A corda era estranha: grosseira e peluda, mais amarela que branca, posto ao longo e ao largo duas vezes e atado em cada canto, e finalmente amarradao com um laço e duas pontas soltas, de uns quatro centímetros de comprimento.

Pitt tirou sua caderneta e anotou tudo, embora eram coisas que teria gostado de apagar de sua memória. Tomara.

Stripe se aproximou, envergonhado de ter perdido a serenidade. Não sabia o que dizer.

Pitt o disse por ele:

— Tem que haver mais. Teremos que organizar a busca.

Stripe pigarreou.

— Mais...? Sim, senhor. Mas por onde começamos? Pode estar em qualquer parte!

— Não será muito longe. - Pitt se levantou -. Ninguém carrega uma coisa assim durante muito tempo. Ao menos, se a gente vai andando. Nem um louco se meteria em um cabriolé ou um ônibus com um pacote assim sob o braço. Tem que estar em um raio de um par de quilômetros, no máximo.

Stripe arqueou as sobrancelhas.

— Você acha que andou tanto, senhor? Eu não o teria feito. Talvez quinhentos metros, no máximo.

— Quinhentos em cada direção - disse Pitt, assinalando ao redor.

— Em cada... - Stripe parecia confuso.

Pitt expressou sua hipótese:

— Tem que estar o corpo inteiro. Isso significa uns seis pacotes mais ou menos do mesmo tamanho. Não pôde carregá-los todos de uma vez, a menos que usasse um carrinho de mão. E não acredito que se arriscasse tanto. Não é provável que pedisse emprestado um, e quem tem carrinho de mão além dos vendedores ambulantes? De qualquer modo, averiguaremos se alguém viu um carrinho de mão ontem ou esta manhã.

— Sim, senhor. - Stripe pareceu muito aliviado de ter algo que fazer. Qualquer coisa era melhor que ficar ali enquanto as moscas zumbiam em torno do horripilante pacote.

— Avise a delegacia de polícia que necessitamos meia dúzia de guardas. E uma carruagem mortuária. E o médico.

— Sim, senhor. - Stripe fez um esforço para olhar outra vez, possivelmente porque lhe parecia pouco sensível não considerar a enormidade do assunto, ir-se dali sem dispor-se disso. Era o mesmo instinto que faz uma pesoa tirar o chapéu quando vê passar pela rua uma carruagem fúnebre, mesmo quando não se sabe quem é o falecido.

Pitt passeou entre as lápides, encurvadas e feias pelas ervas daninhas, até chegar à igreja. A porta estava aberta e dentro era fresco. Seus olhos demoraram um momento a habituar-se à penumbra e às brumosas manchas de cor que produziam sobre as pedras as vidraças. Uma mulher corpulenta jazia meio prostrada sobre um banco de madeira, com o chapéu no chão e a gola do vestido desabotoada. A esposa do sacristão, com um copo de água em uma mão e um frasco de sais na outra, sussurrava palavras de consolo. Ambas se voltaram ao ouvir os passos do Pitt. Um cão pequinês cor de mel dormia ao sol no portal, alheio à presença de Pitt.

— Senhora Peabody?

Olhou-o com suspeita. Não era de todo desagradável ser o epicentro daquele drama, desde que, é claro, todos compreendessem que ela não tinha nada a ver com o assunto, salvo o que o azar dispunha.

— Sou eu - disse.

Pitt tinha conhecido muitas senhoras Peabody, e sabia o que ela sentia agora e também os pesadelos que apareceriam mais adiante. Sentou-se a certa distância dela, no mesmo banco.

— Está muito angustiada - se apressou a dizer enquanto ela tomava ar para lhe dizer até que ponto estava-, assim a incomodarei o menos possível. Quando foi a última vez que passou pelo cemitério com seu cão?

Ela arqueou as sobrancelhas.

— Acho que se confunde, jovem! Eu não tenho por costume achar essas... - Não pôde achar palavras para o horror que a possuia.

— Por certo - disse Pitt inexorável. Suponho que se o pacote tivesse estado aí a última vez, seu cão o teria encontrado.

A senhora Peabody, apesar da comoção, não carecia de bom senso.

Ela assentiu.

— Passei por aqui ontem pela tarde, e Clarence não... - Preferiu não completar tão desnecessária observação.

— Sei. Obrigado. Sabe se Clarence tirou o pacote de entre as matas ou se já estava fora?

Ela negou com a cabeça.

Não importava, salvo que se tivesse estado à céu aberto certamente o teriam encontrado antes. Quem o tivesse posto ali teria tomado o cuidado de escondê-lo.

Não havia nada mais que perguntar, além do nome e a endereço.

Deixou-as ali e voltou para fora pensando em como organizar a busca. Eram quatro e meia.

Às sete os tinham encontrado todos. Foi um assunto tenebroso: descer escadas até zonas em desuso, mexer nas latas de lixo, sob as matas e detrás das grades.

Um a um, os pacotes foram recuperados. O pior deles estava em um fétido beco a um quilômetro do cemitério, nos deteriorados pisos do St. Giles. Poderia dar a primeira pista para a identidade da morta, mas como em outros dois casos, uns gatos o tinham encontrado antes. Agora não se distinguia outra coisa que o cabelo loiro e uma ferida no crânio.

Até as dez da noite não parou. Pitt foi de porta em porta perguntando, rogando, inclusive intimidando a algum ou outro criado acusando-o de um delito doméstico de pouca envergadura (possivelmente uma paquera ilícita que o teria demorado mais da conta na porta de trás), mas ninguém disse ter visto nada que fosse de importância.

Pitt chegou à delegacia de polícia enquanto o sol ficava vermelho como uma cereja sobre os telhados e as luzes de gás se acendiam nas ruas como outras tantas luas errantes. Dentro, a delegacia de polícia cheirava a porta fechada, a calor, a tinta e ao flamejante linóleo do chão. O médico da polícia o estava esperando, as mangas ainda erguidas, manchadas, mal abotoado o colete. Parecia cansado e tinha uma mancha de sangue no nariz.

— E então? - perguntou Pitt.

—Uma moça. - O homem se sentou -. Cabelo loiro, pele branca. Pelo que se aprecia, bastante bonita. Certamente não era uma indigente. Tinha as mãos limpas, as unhas inteiras, embora certamente fazia algum trabalho doméstico. Eu acredito que era criada, mas só é uma conjetura. –Suspirou-. E tinha tido um filho, mas não nos últimos meses.

Pitt se sentou a sua mesa e se acotovelou nela.

— Idade?

— Como quer que saiba - respondeu o doutor, descarregando seu desgosto e sua absoluta impotência sobre a única vítima que tinha à mão-. Entrega um cadáver em meia dúzia de partes, como se fossem entranhas saídas do maldito açougue, e quer que lhe diga até como se chama! Pois não sei! - ficou em pé-. Era jovem, provavelmente trabalhava no serviço doméstico; algum demente a assassinou golpeando-a na nuca e depois, a saber por que, esquartejou-a e a espalhou pelo St. Giles e Bloomsbury. Terá você muita sorte se conseguir averiguar quem era, não digamos já quem a matou. Às vezes me pergunto por que se tomam tantos cuidados. Das mil maneiras distintas de matar alguém, um golpe na cabeça é bem menos cruel que outros métodos. Esteve nos pisos e casas de hóspedes do St. Giles, Wapping ou Mele End? O último cadáver que examinei era uma garota de doze anos. Morreu dando a luz... -A voz lhe falhou-. Olhou com

ferocidade ao Pitt e saiu do escritório fechando com uma batida.

Pitt se levantou e também saiu. Normalmente teria ido a casa caminhando; estava a só três quilômetros. Mas eram quase onze, estava cansado, tinha fome, e os pés lhe doíam mais do que o costume. Tomou um cabriolé sem culpar-se pelo gasto.

A fachada da casa estava às escuras e Pitt entrou com sua chave. Gracie, a criada, já devia estar na cama, mas viu luz na cozinha e deduziu que Charlotte estava esperando-o. Tirou as botas com alívio e percorreu o corredor, notando a frescura do linóleo através das meias.

Charlotte estava na soleira, a luz de gás lhe iluminava o cabelo e a cálida curva de sua face. Sem dizer nada, estreitou-o com força. Por um momento Pitt temeu que se passasse algo, que um dos meninos estivesse doente; então compreendeu que Charlotte devia ter visto algum jornal vespertino, e teria deduzido por sua demora que ele tinha algo a ver, embora seu nome não tivesse aparecido impresso.

Pitt não tinha intenção de lhe contar nada. Apesar dos numerosos casos em que ela se havia visto envolvida por iniciativa própria, ele em parte achava que devia lhe evitar aquele horror. A maioria dos homens considerava seu lar um retiro contra a dureza e a fealdade do mundo exterior, um lugar onde repor o corpo e a alma antes de retornar ao combate. As mulheres formavam parte desse universo sossegado e feliz.

Mas Charlotte quase nunca fazia o esperado, nem sequer antes de surpreender a sua rica família casando-se com um policial, uma decisão tão radical que teve sorte de que não a deserdassem.

Ela se afastou e o olhou com preocupação.

— Você está no caso, não é verdade, Thomas? O dessa pobre mulher que acharam no St Mary´s.

— Sim. -Pitt a beijou com ternura, confiando em não ter que falar disso. Estava muito cansado, e não havia nada que dizer.

Com os anos, Charlotte ia aprendendo a ser mais reservada, mas esta não era uma dessas ocasiões. Tinha lido a edição especial do jornal com horror e compaixão, tinha preparado dois jantares para Pitt e a ambos tinha abandonado, e agora esperava que ele compartilhasse com ela os pensamentos e as sensações que lhe haviam possuído durante a jornada.

— Poderá averiguar quem era a vítima? - perguntou ela, pondo-se a andar para a cozinha-. Comeu?

— Não, claro que não - disse ele, seguindo-a. — Mas não se incomode em cozinhar.

Ela levantou as sobrancelhas, mas se absteve de mencionar o que ia dizer.

Sobre o enegrecido fogão, a chaleira jogava nuvens de fumaça.

— Quer um pouco de cordeiro frio, molho e pão recente? – perguntou ela. —Um pouco de chá?

Pitt sorriu a seu pesar. Seria mais fácil, e à longo prazo mais prazeroso, render-se.

— Sim. - Tomou assento e deixou a jaqueta sobre o espaldar da cadeira.

Ela titubeou e em seguida decidiu que era melhor preparar o chá antes de dizer algo.

Cinco minutos depois Pitt tinha em frente três fatias de pão, um pouco de chutney caseiro - Charlotte se dava muito bem no preparo de chutney e geléias-, várias fatias de carne e uma xícara de chá quente.

Charlotte já se contivera bastante.

— Poderá averiguar quem era?

— Duvido-o - disse ele, enquanto comia.

Olhou com solenidade.

— Não informará ninguém de seu desaparecimento? Bloomsbury é um bairro bastante respeitável. As pessoas que tem criadas em casa notam quando partem.

Apesar de seus seis anos de matrimônio e todos os casos em que se havia visto envolvida de um modo ou de outro, ela ainda conservava restos da inocência em que tinha sido educada, sempre protegida das coisas desagradáveis, alheia à crueldade do mundo, como toda senhorita da boa sociedade. A princípio, as origens de Charlotte tinham atemorizado Pitt e, em seus momentos mais cegos, provocado nele a cólera. Mas em geral isso se diluira no conjunto das coisas importantes que compartilhavam: a risada ante o absurdo da vida, a ternura, a paixão e a ira ante as injustiças.

—Thomas?

— Querida, essa mulher não tem por que ter saído de Bloomsbury. E embora assim fosse, quantas criadas acredita que foram despedidas por diversas razões, da falta de honestidade até ter sido pilhadas nos braços do senhor da casa? Outras terão sido raptadas para casar-se ou escaparam de noite com o faqueiro de prata.

— As criadas não são assim! -protestou ela. — Nem sequer pensa procurá-la?

— Já o fizemos - replicou ele com um tom cansado na voz. Ela não se dava conta da futilidade do empenho, e de que ele já teria feito todo o possível? Não o conhecia bem, depois de tanto tempo?

Ela baixou a cabeça e contemplou a toalha.

— Perdão. Suponho que é impossível averiguá-lo.

— Certamente -concedeu ele levantando a taça de chá. — Essa carta que há sobre a lareira é de Emily?

—Sim. - Emily era a irmã mais nova de Charlotte, casada tão acima de sua classe social como Charlotte abaixo. — Está com tia avó Vespasia, no Cardington Crescent.

— Achei que Vespasia vivia no Gadstone Park.

— Assim é. Agora estão as duas em casa do tio Eustace March.

Pitt grunhiu baixo. Não havia nada que objetar. Admirava a elegante e velha lady Vespasia Cumming-Gould, mas nunca tinha ouvido falar do Eustace March, nem queria.

— Acredito que Emily não é feliz - acrescentou Charlotte.

— Sinto muito. - Pitt não a olhou, limitando-se a agarrar outra parte de pão e o prato do chutney. — Não podemos fazer nada, me parece que está aborrecida.

Desta vez levantou a vista.

— E não lhe ocorra se aproximar do Bloomsbury nem para visitar alguma amiga, seja sua ou de Emily. Está claro, Charlotte?

— Sim, Thomas. De qualquer modo, acredito que não conheço ninguém nesse bairro.

 

Emily era, com efeito, muito desventurada, apesar de agora estar majestosa em seu reluzente vestido verde de corte ousado e elegante e de se achar no camarote privado que os March tinham no Savoy. Em cena se representava com todo seu encanto lírico a ópera Iolanthe, dos senhores Gilbert e Sullivan, uma de suas preferidas. A noção mesma de uma jovem meio humana e meio fada costumava despertar a idéia do absurdo. Mas esta noite não era assim.

O motivo de sua inquietação era que desde há dias seu marido George não tinha tido o menor escrúpulo em exibir sua clara preferência pela companhia de Sybilla March. Era perfeitamente educado, de um modo quase involuntário, muito pior que a pura grosseria. Se se tivesse mostrado grosseiro com Emily, esta ao menos teria sabido que se percebia claramente de sua presença, e não como se ela fosse algo impreciso entrevisto pela extremidade do olho. O que animava seu rosto era a presença de Sybilla, as palavras desta que solicitavam sua atenção, suas palavras que o faziam rir.

George estava sentado atrás da Sybilla, que em opinião do Emily parecia uma flor murcha com seu deslumbrante vestido aguamarinha, seu rosto branco, seus olhos cor de água suja e aquele opulento cabelo. Apesar de ser uma tolice, Emily não deixava de olhar subrepticiamente ao George com a certeza de que ele não estava pendente do cenário. Os apuros do herói o tinham sem cuidado, como também as paqueras da heroína, rainha fada ou a própria Iolanthe. Embora sorrisse e levasse o ritmo com os dedos ao soar The Peen Song, que por acaso fazia vibrar todo mundo, e sua atenção foi captada um momento pelo delicioso trio de dança, com o lorde chanceler lançando as pernas ao ar em absoluto frenesi.

O pânico começava a fazer uma brecha em Emily. Ao redor tudo era alegria, colorido e música; todo mundo estava sorrindo: George a Sybilla, o tio Eustace March a si mesmo, o marido de Sybilla – William - ao que acontecia em cena. A irmã menor de William, Tassie, de dezenove anos e magra como tinha sido sua mãe e com um cabelo como o sol brilhando sobre damascos, sorria ao tenor principal. A velha senhora March, avó de Tassie, sorria a seu pesar, pois não gostava de divertir-se. A tia avó Vespasia, avó materna de Tassie, em troca, estava encantada. Tinha um marcado sentido do ridículo e fazia muito tempo que na lhe importava o que pensassem os outros.

Sobrava somente Jack Radley, o único convidado não pertencente à família mas que também passava uns dias no Cardington Crescent. Era um jovem arrebatadoramente bonito, muito bem relacionado mas, por desgraça, sem recursos dignos desse nome e uma duvidosa reputação para com as mulheres. Era deslocado demais, e por isso só podia ter gostado de Emily, à margem de seu porte e seu humor. Estava claro que o tinham convidado para arrumar o matrimônio de Tassie, a única das dez filhas March ainda solteira. O objeto daquele enlace não estava claro, já que Tassie não parecia afeiçoada com ele e suas expectativas eram mais importantes que as de Jack; embora a família deste fosse aparentada com gente de poder, ele não tinha futuro. William havia dito cruelmente que Eustace morria de vontade de pôr um título de nobreza, o motivo definitivo para que sua família alcançasse a respeitabilidade. Claro que essa era uma observação mais maliciosa que sincera. Entre pai e filho havia tensão, uma brutalidade que aparecia de vez em quando como uma súbita lasca de cristal, pequena mas assombrosamente dolorosa.

Agora, William estava atrás da poltrona de Emily, e era o único a quem ela não podia ver.

No intervalo foi ele quem lhe levou vinho e um bombom de chocolate, não George; este estava em um canto rindo de algo que havia dito Sybilla. Emily se esforçou por conversar um pouco, consciente de seu fracasso enquanto suas palavras caíam em um silêncio detestável, e no momento desejou não haver dito nada. Foi um alívio quando o pano de fundo voltou a subir.

— Não sei de onde tira Gilbert esses ridículos argumentos! - disse impaciente a velha March enquanto se extinguiam os últimos aplausos. — Não têm o menor sentido!

— Nem se pretende que o tenham, avó -respondeu Sybilla com um sorriso encantador.

A senhora March a olhou por cima de seus binóculos, cuja fita de veludo negro lhe caía face abaixo.

— Dos que fazem tolices porque a natureza os fez assim, compadeço-me. O que não compreendo é que alguém possa fazer tolices intencionalmente.

— Isso sim acredito - murmurou Jack Radley ao ouvido do Emily. — E tenho certeza de que Gilbert tampouco a compreenderia, só que lhe não lhe importa.

— Minha querida Lavinia, não vejo que isto seja mais idiota que algumas novelitas do Madam Ouida; vi-a lê-las dissimuladas com capas de papel marrom.

A senhora March ficou de pedra, mas em suas faces apareceram manchas rosadas onde uma mulher mais jovem teria levado ruge. Ela deplorava essa vulgaridade de pintar o rosto; as mulheres que o faziam "pertenciam a certa classe".

— Equivoca-se, Vespasia - replicou. — É uma pena que sua vaidade a impeça de levar uns bons óculos. Um dia destes cairá pela escada ou acabará dando um espetáculo. William! Seria melhor que oferecesse o braço a sua avó. Não quero que todo mundo nos olhe quando sairmos - ficou em pé e foi para a porta. — E menos por isso!

— Calma - replicou Vespasia. — Ninguém a olhará enquanto Sybilla continuar empenhada em ir vestida de escarlate.

— Assenta-lhe maravilhosamente - disse Emily antes de morder a língua. Tinha querido que não a ouvisse, mas nesse instante todo mundo deixou de falar.

George se ruborizou ligeiramente, e ela afastou a vista, zangada consigo mesma por haver-se descoberto de maneira tão tola.

— Me alegro de que você goste deste - respondeu Sybilla com calma, levantando- se também. Seu aprumo parecia ilimitado. — Todas temos cores que nos assentam bem e cores que não. Duvido que me ficasse bem esse azul que veste você.

Assim, em vez de replicar, se mostrou encantadora. E George seguia sorrindo-lhe.

Como empurrados por uma corrente invisível, foram arrastados do camarote para a maré de pessoas que se apertava a caminho do vestíbulo. George ia ao lado de Sybilla, e lhe ofereceu o braço como se outra coisa tivesse sido de má educação.

Acalorada e cambaleando, Emily se viu empurrada para frente com o braço do Jack Radley em torno dela e a formosa cabeça prateada da Vespasia diante.

Ao chegar ao vestíbulo foi inevitável encontrar-se com gente conhecida e trocar opiniões e perguntas sobre a saúde respectiva e demais bate-papo próprio da ocasião. Emily se limitou a saudar com a cabeça, sorrir a todos e assentir a tudo o que ouvia. Alguém lhe perguntou por seu filho Edward, e ela respondeu que estava bem. Então George lhe deu uma cotovelada, lhe recordando que devia perguntar pela família do interlocutor. As frases voaram ao redor:

— Uma atuação deliciosa!

— Viu Pinafore?

— Como consegue essas melodias?

— Você irá ao Henley? Eu adoro as regatas. É estupendo para um dia quente, não acha?

— Eu prefiro Goodwood. As corridas têm algo especial...

— Mas querida, o que me diz do Ascott?

— Eu gosto de Wimbledon.

— Não tenho nada que pôr! Devo ir ver minha costureira em seguida; preciso renovar meu guarda-roupa.

— Este ano a Royal Academy foi horrível!

— Eu que o diga! Grande aborrecimento!

Emily conseguiu sobreviver a meia hora de saudações e comentários corriqueiros antes de subir à carruagem com George, que estava rígido e mais distante que um desconhecido.

— Que diabos lhe passa, Emily? - disse ele depois de dez minutos de guardar ambos o silêncio. Finalmente, o caminho ficou livre para dirigir-se para o Strand.

O que fazer? - perguntava-se Emily. Evitar a briga? George era tolerante, generoso e de caráter tranqüilo, mas só gostava das emoções se ele as desejava, agora não, por acaso, quando ainda ressoavam os ecos de tão civilizada diversão.

Ela queria em parte enfrentar George, deixar que explodisse tudo o que levava dentro, lhe exigir uma explicação a sua conduta no teatro. Mas quando já abria a boca para responder, seu temor se impôs. Assim que falasse seria muito tarde para voltar atrás; teria ficado sem possibilidade de retirada.

Normalmente sabia dominar-se, reagir com mesura e frieza. Era uma das coisas que mais tinha gostado nela a princípio. Emily optou pela mentira fácil, desprezando-se a si mesma e detestando a seu marido por não lhe deixar outra

saída que não essa.

— Não me encontro muito bem - disse. — Acho que no teatro fazia muito calor.

— Não o notei. - George ainda estava aborrecido. — Nem eu nem ninguém mais.

Emily esteve a ponto de protestar, mas uma vez mais evitou o conflito.

— Então pode ser que tenha febre.

— Fica na cama amanhã. - Sua sugestão não foi carinhosa.

Só quer que não o estorve, pensou ela, que não me converta em um estorvo. As lágrimas lhe ardiam a ponto de brotar de seus olhos e teve que engolir saliva, dolorosamente agradecida de estar na carruagem, às escuras. Não disse nada com medo de que sua voz a entregasse, e George não insistiu. Seguiram adiante na noite estival, o caminho iluminado pelas luas amarelas dos lampiões de gás, sem ouvir outra coisa que não o rítmico ruído dos cascos e o rumor das rodas.

Ao chegar ao Cardington Crescent o lacaio abriu as portas. Emily desceu, subiu os degraus do pórtico e entrou pela porta principal sem incomodar-se em ver se George a seguia. Era costume assistir a uma festa antes da ópera e a um jantar depois da mesma, mas a velha March não achava estar o bastante bem para ambas as coisas - embora de fato não lhe acontecia nada salvo a idade -, de modo que tinham dispensado o jantar. Serviram-lhes uma comida fria no gabinete, mas Emily não estava de humor para risadas, brilhantes candelabros e olhares inquisitivos.

— Se me desculparem... - disse a ninguém em particular-, foi uma noite encantadora, mas estou um pouco cansada e prefiro me retirar. Boa noite a todos.

Sem esperar resposta, continuou andando até o pé da escada, antes que alguém pudesse protestar. Não ouviu a voz de George, que teria desejado ouvir, mas só Jack Radley, um passo atrás dela.

— Encontra-se bem, lady Ashworth? Vejo-a um pouco pálida. Quer que lhe subam algo ao quarto?

— Não, muito obrigada. Com certeza estarei bem assim que tenha descansado. - Não devia mostra-se grosseira, era muito infantil.

Obrigou-se a virar-se e olhar ao Jack Radley. Ele sorria. Tinha uns olhos extraordinários; arquitetava para dar uma impressão de intimidade embora mal o conhecia, e entretanto não era suficiente para lhe fazer parecer um intrometido. Emily compreendeu de que forma ganhou sua reputação com as mulheres.

George o teria merecido se ela se apaixonasse por Radley como ele por Sybilla!

— Tem certeza? —repetiu ele.

— Completamente - disse ela sem expressão. — Obrigada.

E subiu a escada o mais rápido que pôde sem parecer que corria. Quando chegou ao patamar ouviu que a conversa se reatava e soavam outra vez as risadas e a alegre harmonia de quem ainda estão sob o feitiço de uma despreocupada diversão.

Ao despertar achou- se a sós e com o sol entrando em torrentes por uma fresta nas cortinas. George não estava, nem tinha estado ali. Seu lado da ampla cama estava imaculado; os lençóis, perfeitos. Emily tinha pensado fazer subir o café da manhã no quarto, mas sua própria companhia lhe era agora pior que a de qualquer um e decidiu chamar à criada, recusando o chá matutino e enviando-a a preparar o banho e a roupa que ia vestir depois.

Pôs um roupão e bateu com aspereza à porta do quarto de vesitr. Na hora abriu George, com rosto de sono, cabelo revolto e olhos nublados.

— Ah - disse, pestanejando. — Como não se achava bem pensei que era melhor não incomodá-la, assim fiz que me preparassem a cama aqui dentro. – Não lhe perguntou se estava melhor, limitou-se a olhá-la, a olhar sua pele leitosa com sua suave vermelhidão e seu cabelo cor de mel. Tirou suas próprias conclusões e se retirou para vestir-se.

O café da manhã foi horrível. Como de costume, Eustace tinha aberto todas as janelas da sala de refeições. Acreditava firmemente em um "cristianismo musculoso" e a agressiva boa saúde que isso entranhava. Comia pombinhos em gelatina com ostentosa fruição, montões de torradas com manteiga e geléia, e se entricheirava atrás do Time, ao qual Eustace não gostava de compartilhar com ninguém. Claro que nenhum homem oferecia seu jornal às mulheres, mas Eustace ignorava também William, George e Jack Radley.

Vespasia, com a perpétua desaprovação do Eustace, tinha seu próprio exemplar.

— Houve um assassinato no Bloomsbury - observou ela comendo framboesas.

— O que tem que ver conosco? - Eustace não levantou a vista; o comentário pretendia ser crítico. Se as mulheres não deviam ler jornais, muito menos tinham que comentá-los no café da manhã.

—Tudo mesmo que vem aqui - replicou Vespasia. —Tem que ver com a gente e com as tragédias.

—Bobagens! - replicou a velha March. — Será algum delinqüente que levou seu castigo. Eustace, quer me passar o Court Circular? Quero saber se aconteceu algo importante. - Fulminou Vespasia com o olhar. — Confio que ninguém tenha esquecido que temos uma festa em casa dos Withington, e que à tarde jogaremos criquete em casa de lady Lucy Armstrong - prosseguiu, olhando Sybilla com cenho franzido. — Como é lógico, lady Lucy não parará de falar da partida de criquete entre o Eton e Harrow, e teremos que escutar como se vangloria de seus filhos. E nós não teremos nada que dizer...

Sybilla se ruborizou. Olhou a sua avó por afinidade com uma expressão que significava muitas coisas.

— Terá que ver se é menino ou menina antes de pensar a que escola o levamos - disse.

William ficou com o garfo na metade do caminho da boca, sem dar crédito a seus ouvidos. George inspirou com um assobio de surpresa. Eustace desceu o diário pela primeira vez desde que se sentou e olhou primeiro à Sybilla com estupefação e depois com júbilo.

— Querida Sybilla! Significa isso que está...?

— Sim! - disse ela com audácia. — Não queria lhes dizer isso tão cedo, mas estou farta de que a avó faça esses comentários.

— A culpa não é minha! – defendeu-se na hora a senhora March. — Leva doze anos nisso. Não é estranho que me desespere para a continuidade do sobrenome March. Deus sabe que o pobre William teve que ser muito paciente esperando que lhe desse um herdeiro.

William voltou a cabeça para olhar acusadoramente a sua avó; ardiam-lhe as faces e seu olhar era tórrido.

—Isso não é seu assunto! - disse bruscamente. — E julgo que seus comentários são muito vulgares. - Jogou sua cadeira para trás, levantou-se e saiu de casa.

— Vá, vá. - Eustace dobrou o jornal e serviu-se de mais café. — Parabéns, querida.

— Antes tarde que nunca - disse a senhora March. — Embora a estas alturas não acredito que tenha muitos mais.

Sybilla seguia ruborizada, e além disso totalmente incômoda. Pela primeira vez desde sua chegada, Emily sentiu pena dela.

Mas aquela sensação durou muito pouco. Os dias seguintes transcorreram na forma costumeira para a boa sociedade durante a temporada. Pela manhã passeavam a cavalo pelo parque, coisa em que Emily era muito direita. Mas lhe faltava o instinto de Sybilla, e como George era um cavaleiro inato parecia quase inevitável que acabassem os dois juntos, a certa distância de Emily e dos outros.

William não lhes acompanhava nunca, pois preferia trabalhar na pintura, que era sua vocação além de sua profissão. Seu talento era admirado pelos acadêmicos e cobiçado pelos colecionadores. Só Eustace afetava achar desagradável que seu único filho preferisse estar no estúdio adaptado na estufa, em vez de desfilar a cavalo para que o mundo elegante pudesse admirá-lo.

Quando não montavam a cavalo passeavam de carruagem, iam às compras, visitavam seus amigos ou iam a galerias de arte e exposições.

O almoço se servia por volta das duas, freqüentemente em casa de alguém e em forma de pequena festa. À tarde iam a concertos ou de carruagem até o Richmond ou Hurlingham, quando não visitavam formalmente a damas que conheciam pouco, matando o tempo como podiam, rígida as costas e falando idiotices sobre as pessoas, a moda e o tempo. Os homens fugiam desta última atividade e se retiravam ao clube de um ou de outro.

Às quatro se servia o chá da tarde, às vezes em casa, às vezes em uma festa ao ar livre. Em uma ocasião houve uma partida de criquete onde George fez par com Sybilla e perdeu estrepitosamente entre risadas e uma sensação de prazer que superou o de Emily, que ganhou a partida. O sabor da vitória se tornou cinza em sua boca. Nem sequer Eustace, que fazia par com ela, pareceu notar sua presença. Todos os olhos estiveram pousados em Sybilla, com seu vestido rosa, suas faces coloridas, seus olhos radiantes, e rindo de sua própria inépcia de forma tal que todos desejavam rir com ela.

Emily voltou uma vez mais em silencio a casa antes de subir pesadamente a escada para trocar-se e descer para jantar e logo ir ao teatro.

Chegado o domingo, já não agüentou mais. Tinham ido todos à igreja pela manhã; Eustace tinha insistido nisso. Era o patriarca de uma família devota, e queria que os outros soubessem. Como estavam convidados em sua casa, todos assistiram ao serviço, incluído Jack Radley, para quem aquilo estava muito longe de ser uma inclinação natural. Ele teria preferido passar a manhã do domingo galopando pelo parque, com o sol brilhando entre as árvores e o vento no rosto, afugentando pássaros, cães e olheiros por igual... como também teria preferido George. Mas hoje parecia que George estava mais que feliz de ir sentado na dura boléia junto a Emily, sempre dependente de Sybilla.

O almoço transcorreu em comentários sobre o sermão, que tinha sido sério e tedioso, sondando seu "significado profundo". Quando chegaram à sobremesa Eustace tinha declarado que o verdadeiro assunto do sermão era a virtude da fortaleza, o suportar qualquer aflição sem intimidar-se. Somente William esteve interessado a ponto de contradizê-lo e afirmar que, pelo contrário, tratava-se da compaixão.

— Bobagens! - exclamou Eustace. — Sempre foi muito brando. Sempre procurou a saída fácil! Muitas irmãs, esse é seu problema. Deveria ter sido garota. Coragem! - Esmurrou a mesa com punho. — Isso é o que faz falta para ser homem... e cristão.

O resto da comida transcorreu em silêncio. Passaram a tarde lendo e escrevendo cartas.

Mas a noite foi ainda pior. Sentaram-se, esforçando-se em conversar de algo adequado, até que alguém insistiu com Sybilla para tocar piano, coisa que ela fez bastante bem e com evidente bom gosto. Todos exceto Emily se somaram a cantar baladas e, de vez em quando, algum solo de música mais séria. Sybilla tinha uma voz bem timbrada e ligeiramente rouca.

Uma vez em cima, e com a garganta dolorida dos esforços para não chorar, Emily despediu sua criada e começou a despir-se sozinha. George entrou fechando a porta com mais ruído do que o necessário.

— Não podia ter feito um pequeno esforço, Emily? - disse friamente. — Seu mau humor raiava à má educação.

Aquilo foi muito. A injustiça de suas palavras era intolerável.

— Má educação! - ofegou ela. — Como se atreve você a me acusar de má educação! Passou quinze dias seduzindo à nora de seu anfitrião diante de todos, inclusive da criadagem. E como não quero lhe fazer o jogo, acusa-me de ser mal educada!

George se acendeu, mas permaneceu imóvel.

— É uma histérica – disse. — Possivelmente será melhor que esteja sozinha até que serene um pouco. Dormirei no quarto de vestir; a cama ainda está lá. Direi a todos que não se encontra bem e que não desejo incomodá-la. - Inspirou ligeiramente e uma fugaz irritação cruzou seu rosto. — Não acredito que lhes custe acreditar. Boa noite. - E partiu.

Emily permaneceu boquiaberta. Era tão injusto que demorou alguns minutos para assimilar. Depois se lançou sobre a cama, esmurrou o travesseiro e rompeu a chorar.

Chorou até que lhe arderam os olhos e lhe arderam os pulmões, mas mesmo assim não se sentiu melhor até o dia seguinte.

 

Emily despertou muito cedo, antes inclusive de que se levantassem as criadas, e meditou novamente sobre a situação. A crise da véspera tinha apagado seu paralisante dilema. Tomou uma decisão: brigaria! Sybilla não ia ganhar porque Emily carecesse do engenho e força para dar batalha, por mais longe que tivesse ido a coisa. E se viu obrigada a admitir que provavelmente tinha ido não só longe mas também até o final (em vista da prontidão com que George tinha procurado uma desculpa para dormir no quarto de vestir). Contudo, estava decidida a fazer quanto fosse possível para recuperar seu marido. Ao fim e ao cabo, já o tinha ganho uma vez, e contra muitas esperanças.

Se continuasse deixando-se ver tão mal como se sentia, acabaria incomodando ao resto da casa e sendo objeto de uma compaixão que não poderia esquecer facilmente, inclusive quando tudo acabasse e ela fosse vencedora. Mas, acima de tudo, ao George não ia fazer nenhuma graça; como muitos homens, gostava das mulheres alegres e atraentes com suficiente bom senso para guardar os problemas para si. Um excesso de sentimentalismo, sobre tudo em público, poria-o em uma situação de extremo desconforto. E em lugar de afastá-lo de Sybilla, isso não faria senão arrojá-lo mais ainda em seus braços. Portanto, ia representar o papel de sua vida. Seria tão absolutamente encantadora e fascinante que Sybilla pareceria ao George uma cópia insípida, uma sombra do modelo verdadeiro: Emily.

Durante três dias conseguiu manter a pantomima sem falhas notáveis. Se em algum momento esteve a ponto de chorar, pareceu-lhe que ninguém o percebia, exceto possivelmente Vespasia, que sempre notava tudo. Mas isso não lhe importava. Atrás de sua inefável elegância e seu humor radical, a anciã era a única pessoa que a queria.

Entretanto, às vezes tinha sido tão duro que se sentiu aflita pela futilidade do empenho. Tinha que falhar antes ou depois. Sabia que sua voz soava apagada, que seu sorriso devia ser doentio. Mas como não podia fazer outra coisa, depois de um momento de solidão - possivelmente indo de um aposento a outro-, tinha renovado seus esforços tratando com todo seu empenho de ser divertida, considerada e cortês. Inclusive fez o possível por ser educada com a senhora March, embora não pôde resistir a usar sua acuidade quando ela não estava presente, para grande regozijo de Jack Radley.

No terceiro dia, no transcurso do jantar, a coisa ficou muito difícil. Estavam todos vestidos com formalidade, Emily de verde claro, Sybilla de anil, em torno da monstruosa mesa de mogno. As cortinas de veludo vermelho escuro, sobrecarregadas de festões, e o excesso de quadros nas paredes sufocavam Emily. Era quase insuportável forçar-se a sorrir, tirar da imaginação algum comentário frívolo e agudo. Mal tocou a comida do prato, e só se limitou a beber e beber vinho.

Não podia fazer algo tão claro como paquerar com o William; todo mundo, até o George com todo seu desinteresse, teria considerado uma desforra. Os afiados olhos da velha March não perdiam detalhe. Era viúva desde há quarenta anos e presidia seu reino doméstico com vontade de ferro e insaciável curiosidade.

Emily devia ser tão divertida e encantadora como todos - incluída Sybilla-, tal como correspondia a uma mulher de sua posição, por mais que lhe custasse.

Procurou não contar histórias melhores que as de outros, e rir quando a olhavam, para parecer sincera.

Procurou o elogio mais idôneo e mais facilmente acreditável, e escutou com atenção as intermináveis e aborrecidas anedotas do Eustace sobre suas proezas atléticas de jovem. Era um fervoroso partidário do "mente sã em corpo são", e não confiava nos estetas. Sua desilusão estava implícita em cada frase, e ao ver o rosto tenso de William, Emily teve cada vez mais dificuldade de agüentar-se e seguir pondo expressão de educado interesse.

Depois dos doces, e sem que ficasse outra coisa sobre a mesa que sorvete de baunilha, água de framboesa e um pouco de fruta, Tassie mencionou uma soirée a que tinha assistido e o muit o que se aborrecera ali, com o que ganhou um olhar de aversão por parte de sua avó. Isso trouxe algo à memória de Emily. Olhou para JackRadley com um leve sorriso.

— Podem ser muito más - disse. — Mas também podem ser estupendas.

Tassie, que estava no mesmo lado da mesa e não podia ver o rosto do Emily, era alheia a seu estado de ânimo.

— Havia uma soprano muito gorda que cantava bastante mal - explicou Tassie. — E era tudo muito sério.

—Também o era a melhor função que eu nunca vi. - Emily sentiu que a cena se fazia mais clara em sua memória. — Charlotte e eu levamos um dia a mamãe. Foi maravilhoso...

— Seriamente? - disse friamente a senhora March. — Não sabia que gostassem de música.

Emily manteve sua expressão doce, fazendo caso omisso da indireta, e olhou fixamente Jack Radley. Com crescente prazer, soube que tinha a atenção dele como teria gostado de ter George, e exatamente com a mesma classe de excitação.

— Continue! – urgiu-lhe ele. — O que tem de maravilhoso em uma soprano obesa que canta muito sério e bastante mal?

William estremeceu. Assim como Tassie, era magro, suscetível e ruivo, embora seu cabelo fosse mais escuro e seus traços mais afiados por uma dor interior que ainda não tinha feito brecha em sua irmã.

Emily o relatou tal como tinha passado.

— Era uma mulher grande, ardente, de cútis rosada. Levava pérolas e franjas por todo o vestido, de modo que ao mover-se ondulava. A senhorita Arbuthnot a acompanhava ao piano. Era muito magra e vestia-se de negro. Estiveram falando um momento sobre as partituras e logo a soprano se adiantou para anunciar que cantaria Home Sweet Home, que como sabem é difícil e muito sentimental. Depois, para nos animar um pouco, interpretaria-nos Three Little Maids, a deliciosa canção do Yum-Yum no Mikado.

—Isso é melhor -concedeu Tassie. —Muito melhor. De qualquer modo, afasta-se bastante da idéia que eu tenho do Yum-Yum. - Cantarolou alegremente alguns compassos.

— Dizer "maravilhoso" é exagerar muito - disse Eustace em tom crítico. — Uma boa canção se deteriora a perder.

Emily não fez conta.

A soprano olhou a todos – continuou-, compôs um gesto de profunda emoção e começou lenta e solenemente com grande sentimento... só que o piano tocou os gorjeios e gorjeios de um ritmo brincalhão!

A princípio só Jack Radley entendeu o ocorrido.

—"Eu, que sempre fui tão banal..." - parodiou Emily, a um tempo amalucada e lastimosa.

— Dá-dava-dava-dum-dum, dá dá dii-ii - cantou Jack alegre.

— Não posso acreditar nisso! - Os olhos de Tassie se iluminaram, e pôs-se a rir.

Sybilla a imitou, e até o Eustace sorriu um pouco a seu pesar.

—Deixaram de cantar e tocar, tintas como tomates - explicou Emily entusiasmada. — A soprano balbuciou uma desculpa, deu meia volta e investiu para o piano, onde a Arbuthnot rebuscava entre as partituras, que foram caindo ao chão. Recolheram-nas entre as duas, murmurando de fúria e esgrimindo-se dedos mutuamente, enquanto todos aguardávamos como se não tivéssemos notado nada. Ninguém dizia uma palavra, e Charlotte e eu não nos atrevíamos a nos olhar se por acaso uma das duas explodisse em risadas. Chegaram finalmente a um acordo: a pianista preparou uma partitura e a soprano se aproximou da frente do cenário. Então aspirou muito ar, rompendo quase o colar que rodeava sua garganta, e com tremendo aprumo começou uma fogosa interpretação: "Três criadas somos, saídas da escola, transbordantes estamos de animada alegria"... – Emily titubeou , olhando nos olhos azuis escuros de Jack Radley. — Mas por desgraça a Arbuthnot estava esmurrando os majestosos acordes do Home Sweet Home com expressão de intensa saudade.

Desta vez, até a anciã March deixou escapar um sorriso. Tassie não podia agüentar de risada e o júbilo foi geral.

— Seguiram adiante durante três minutos - disse Emily depois, — cada vez a mais volume para ver quem fazia calar à outra, até que os candelabros começaram a tilintar. Charlotte e eu não pudemos agüentar mais. Levantamo-nos no mesmo instante e saímos empurrando cadeiras a toda velocidade, pisando às pessoas, até que alcançamos o vestíbulo e quase nos caímos de bruços, agarradas a uma à outra. Depois rimos até que não pudemos mais. Mamãe não teve coragem para zangar-se conosco.

— Ah! Que lembranças me traz tudo isso - disse Vespasia com um sorriso enquanto secava as lágrimas. — Eu assisti a muitos saraus espantosos. Agora não poderei escutar a uma soprano séria sem me lembrar disto! Há muitas cantoras horríveis a quem eu gostaria que lhes acontecesse algo parecido, seria um consolo para o público em geral.

— O mesmo digo - disse Tassie. — Começando pelo Beamish e suas canções de imaculada feminilidade. Digo eu que com um pouco de previsão possivelmente se poderia arrumar - acrescentou esperançada.

— Anastasia! - exclamou a senhora March com voz gélida. — Não fará nada disso. Seria de muito mal gosto e pouco sério. Proíbo que pense nisso sequer.

Mas Tassie não sufocou seu radiante sorriso.

— Quem é esse Beamish? - perguntou Jack Radley curioso.

— O vigário - disse Eustace, glacial. — Ouviu seu sermão no domingo.

Tia avó Vespasia conteve uma gargalhada e ficou a tirar sementes de suas uvas com faca e garfo de prata, deixando-os um a um com elegância na borda do prato.

A senhora March esperou impaciente. Por último, ficou em pé com muito frufrú de saias e puxando a toalha para fazer soar o faqueiro, e George teve que apanhar um copo que estava a ponto de cair.

— É hora de que as senhoras se retirem - anunciou alto, olhando com dureza primeiro à Vespasia e depois a Sybilla. Sabia que Tassie e Emily não se atreveriam a desobedecer.

Vespasia ficou em pé com a graça que não tinha perdido; esse ar de mover-se sempre a seu próprio ritmo, e que outros decidissem se queriam segui-lo ou não. As outras a imitaram a contra gosto: Tassie com acanhamento; Sybilla esbelta, sorrindo aos homens; Emily com a deprimente sensação de ter ganho uma vitória de Pirro e não ter podido saboreá-la.

—Tenho certeza de que se poderia inventar algo - disse Vespasia em voz baixa à Tassie. — Com um poquinho de imaginação.

— De que fala, avó?

— Do senhor Beamish, de quem senão! Faz anos que anseio apagar esse sorrisinho de seu rosto.

Passaram junto à Emily cochichando e foram para o gabinete. Espaçoso e fresco com seus tons verde claro, era um dos poucos aposentos da casa cuja antiquada decoração Olivia March tinha podido trocar; o gosto da velha March vinha ditado por uma época em que o valor e a sobriedade de uma pessoa eram dados pelo peso do mobiliário. A moda tinha mudado e o critério atual era o status e a novidade. Mas o gosto de Olivia provinha do período oriental, em torno da Exposição Internacional de 1862, e o gabinete era acolhedor, cheio de cores suaves e com os móveis exatos para sentir-se confortável ali, muito longe do toucador da velha March.

O outro salão do andar térreo era uma paisagem rosa forte salpicada de jardineiras, fotografias e toalhas e com tapeçarias sobre a lareira e piano.

Emily seguiu-as e sentou-se depois de oferecer uma ajuda simbólica à senhora March. Devia seguir representando seu papel até que estivesse a sós em seu quarto. As mulheres notavam tudo: observariam o menor tom em sua voz, e o interpretariam depois com minuciosidade.

— Obrigado - lhe disse a senhora March, arrumando as saias e aparando o cabelo. Era espesso e de um cinza pardo, cuidadosamente penteado na moda de uns trinta anos atrás, quando da guerra da Crimea.

Emily pensou por um momento o que teria demorado a criada em penteá-la assim. Não havia uma só mecha fora de lugar, nem o tinha havido no café da manhã ou no almoço. Seria uma peruca? Teria encantado-a averiguá-lo.

— Muito amável -acrescentou a senhora March. — Muitas jovens perderam a devida consideração. - Não olhou a ninguém em particular, mas sua boca escura delatava uma irritação que não era absolutamente impessoal.

Emily sabia que Tassie ia receber um breve sermão sobre os deveres de uma boa filha assim que estivessem a sós, entre os quais destacavam a obediência e a atenção para com os mais velhos, e fazer o possível por ajudar à família a lhe conseguir um bom matrimônio. Uma pessoa não devia dificultar o mínimo esses esforços. Também Sybilla seria objeto de algum corretivo.

Emily lhe sorriu, apesar de estar dissimulando um sentimento muito diferente da solidariedade.

— Bom, eu diria que estão preocupadas e nada mais - sentenciou.

— Não mais do que o estávamos nós! - replicou a senhora March com um olhar irascível. — Também tivemos que abrir caminho, sabe. Estar grávida é uma desculpa para desmaiar e chorar, mas não para ser desconsiderado. Eu tive sete filhos, sei do que estou falando. E não é que não esteja contente. Deus sabe que já começávamos a nos desesperar! Para uma mulher é uma tragédia ser estéril. – Olhou a estreita cintura de Emily com tácita censura. — Sybilla causou ao pobre Eustace muitos desgostos; ele desejava que William lhe desse um herdeiro. A família, sabe, a família é tudo quando já está tudo dito. - Inspirou.

Emily guardou silêncio; não havia nada que dizer, e voltou a sentir essa piedade curiosa que não gostava nada. Não queria recordar que também Sybilla tinha sido uma intrusa para esta família, e um fracasso naquilo que mais lhes importava.

A senhora March se acomodou em sua poltrona.

— Antes tarde que nunca - repetiu. — Agora terá que ficar em casa e cumprir com seu dever, em vez dessa ridicularia de querer estar sempre na moda. Que perda de tempo. Terá que fazer feliz ao William e criar um lar como ele se merece.

Emily não a escutava. É claro, se Sybilla estava grávida isso explicava parte de seu comportamento. Emily recordava a mescla de medo e excitação quando estava grávida do Edward. Foi uma mudança radical em sua vida, algo que acontecia com ela e que era irreversível. Agora já não estava sozinha; de certo modo se convertera em duas pessoas. Mas apesar de George, isso tinha estabelecido entre eles uma distância. E em meio a tudo isso estava seu temor a tornar-se vulnerável e não ser atraente para ele.

Que Sybilla, com seus trinta e poucos anos, expôs-se a este conflito emocional – e possivelmente também o medo a dar à luz - podia explicar muito bem aquele egoísmo seu, a compulsão por atrair a todos os homens enquanto pudesse fazê-lo, antes de que sua condição de mãe acabasse por reduzi-la ao isolamento.

Mas isso não desculpava George! A fúria afogou ao Emily como se tivesse um peso no pescoço. Ocorreram-lhe muitas medidas a tomar. Podia ir acima e esperá-lo para acusá-lo abertamente de comportar-se como um estúpido, de envergonhá-la e insultá-la e de ofender não só ao William mas também ao tio Eustace, porque estavam em sua casa, e havia outros convidados. Podia lhe dizer que limitasse suas atenções para com Sybilla à cortesia habitual, do contrário ela iria para casa e não quereria saber nada dele até que se desculpasse como era devido... e prometesse emendar-se!

Mas logo a ira se extinguiu. Com uma briga não ia sentir se feliz. Ou George se acovardaria, coisa que lhe assentaria muito mal e faria sua vitória amarga e sem satisfação; ou ele sentiria ainda mais vontade de perseguir Sybilla, para demonstrar à Emily que ela não podia lhe dar ordens. A segunda possibilidade era a mais provável. Malditos homens! Rilhou os dentes e engoliu em seco. Maldita sua estupidez, sua contumaz perversidade... e sobre tudo sua vaidade!

Gostava de muitas coisas em George: era gentil, tolerante, generoso... e podia ser muito divertido! Mas por que tinha que ser tão tolo?

Fechou e abriu os olhos com esforço. Tia Vespasia a estava olhando.

— Bom, Emily – disse, — ainda estou esperando que me conte como foi sua visita ao Winchester. Não me disse nada.

Não havia escapatória; tinham-na pilhado para conversar. Sabia que tia Vespasia o fazia de propósito, e não queria desiludi-la sendo derrotista. A anciã nunca se teria ido a um canto a chorar sua rendição.

— É verdade - disse com fingida impaciência. E embarcou em uma história em sua maioria inventada. Estava ainda metida em suas ramificações quando os cavalheiros se reuniram com elas um pouco antes do habitual.

Durante toda a noite procurou estar à altura de sua comédia, e quando chegou a hora de retirar-se soube que ao menos tinha vencido em uma coisa: cumprir a tarefa que se impôs. Viu um brilho de aprovação nos olhos cinzas da Vespasia, e algo no rosto do Tassie que podia ser admiração. Mas George só a tinha olhado uma vez, e seu sorriso artificial lhe doeu mais que uma careta, porque foi como se a tivesse olhado sem vê-la.

Ao final se havia sentido apoiada por quem no fundo esperava, sem por isso desejá-lo necessariamente. Foi Jack Radley quem fez coro suas risadas, quem lhe captou as coisas com seu humor sutil, e quem ao final da noite a acompanhou acima tomando-a pelo cotovelo.

Emily se deteve no patamar, quase alheia ao Radley, esperando ouvir os passos de George, mas a suas costas não ouviu a não ser um frufrú de seda contra a balaustrada.

Sabia que era Sybilla e, entretanto, um raio de esperança lhe impediu de voltar -se até que estiveram ao alcance de sua vista, se por acaso não fosse ela. George sorria. A luz de gás da parede brilhou sobre seu cabelo escuro e sobre os brancos ombros da Sybilla.

George se afastou dela ao ver o Emily, extinguindo-se de sua rosto a espontaneidade para dar passagem a um ligeiro problema.

— Boa noite, Sybilla, e obrigado por esta encantadora noite -disse torpemente, mudando da fácil intimidade de um momento antes e a quase ridícula formalidade com que agora terminava.

Sybilla estava eufórica, e totalmente metida no que pudessem ter estado falando... ou fazendo. Para ela Emily não existia, e Jack Radley era pouco mais que uma sombra, parte da decoração do fim de semana. Sobravam as palavras: seu sorriso dizia tudo.

Emily sentiu asco. Tanto esforço para nada. Tinha sido uma atriz em um teatro vazio, uma atriz que representava para si mesma; quanto ao George, nem sequer tinha reconhecido sua presença. O que ela pudesse fazer lhe trazia sem cuidado.

— Boa noite, senhor Radley - balbuciou. Depois abriu a porta de seu dormitório e a fechou depois de entrar. Ao menos poderia esquecer-se de todos até manhã. Desfrutaria de nove horas de solidão. Se quisesse chorar, ninguém se inteiraria, e quando se desembaraçasse de parte da dor que a consumia, sempre teria o refúgio do sono antes de tomar a difícil decisão.

A criada bateu na porta. Emily engoliu em seco.

— Não a necessito, Millicen. - Sua voz soou forçada. — Pode deitar-se.

— Bem, senhora. Boa noite.

Emily se despiu devagar, deixando o vestido sobre o espaldar da cadeira, e depois tirou as forquilhas. Foi um alívio livrar-se daquele peso.

Por que, Senhor, por que? Tinha que ver com a beleza da Sybilla, com seu engenho, com seu encanto? Ou com algum defeito dela mesma? Tinha mudado, tinha perdido alguma qualidade antes muito querida pelo George? Emily tratou de recordar quanto havia dito e feito recentemente. No que era diferente de como tinha sido sempre? Em que sentido era menos do que George queria ou necessitava? Nunca tinha sido fria nem maliciosa, não era nada extravagante, jamais tinha sido grosseira com os amigos, e não porque lhe faltasse vontade! Alguns eram tão superficiais, tão bobos, e lhe falavam como se ela fosse uma menina.

O esforço não serviu de nada, e ao final se meteu na cama e decidiu enfurecer-se. Era melhor que chorar. A gente furiosa briga, e quem briga pode ganhar!

Despertou com dor de cabeça e a embaralhado lembrança de seu fracasso. Olhou o sol refletido no teto de estuque e o achou descolorido e duro. Desejou ter tido uns momentos mais de solidão noturna. A idéia de descer para tomar o café da manhã e encontrar-se com todos os rostos sorridentes -sorrisos curiosos, confiantes, misericordiosos - e ter que fingir que não acontecia nada... O que os outros pudessem ver em George e Sybilla não tinha importância; ela sabia algo que os outros ignoravam, algo que explicava tudo.

Se enrolou ainda mais, encolhendo os joelhos, e cobriu a cabeça com o lençol.

Mas quanto mais demorava em levantar-se, mais coisas lhe vinham à mente. A imaginação prestava realidade a cada ameaça, a cada desgraça em potência, até que se sentiu profundamente desventurada. Pulsava-lhe a cabeça, ardiam-lhe os olhos, e se fazia tarde. Millicent já tinha batido duas vezes à porta; o chá teria esfriado. A terceira vez teve que deixá-la entrar.

Emily teve mais trabalho do que habitualmente para arrumar-se. Odiava por maquiagem, mas isso era melhor que aparecer totalmente pálida.

Não foi a última em descer. Sybilla não estava e a senhora March tinha optado por tomar o café da manhã na cama, igual à tia avó Vespasia.

— Tem bom aspecto, querida Emily - disse Eustace. Naturalmente, era consciente do caso de George e Sybilla, mas por mais que ela o deplorasse, uma mulher de boa família levava estas coisas com discrição e fingia não dar-se conta. Eustace não aprovava Emily, mas lhe concederia o benefício da dúvida a menos que ela fizesse impossível esse ato de caridade.

— Obrigada. – Forçou-se a mostrar-se animada. —Espero que também tenha dormido bem.

— Maravilhosamente. - Eustace se serviu generosamente dos diversos pratos que havia sobre o aparador de carvalho maciço, deixou seu prato em seu lugar e foi abrir as janelas, deixando entrar uma rajada de ar frio. Respirou fundo. — Excelente - disse, fazendo caso omisso da tremedeira dos outros enquanto ocupava seu lugar na mesa. — Eu sempre digo que a boa saúde é vital em uma mulher, não lhe parece?

Não ocorreu à Emily nenhuma razão para que o fosse, mas a frase parecia ser puramente retórica e ele respondeu a si mesmo. — Nenhum homem, e mais se for de bom berço, gosta de mulheres doentias.

— Os pobres gostam ainda menos - disse Tassie. — Estar doente custa muito dinheiro.

Mas as convicções do Eustace não iriam ser interrompidas por algo tão irrelevante como a pobreza.

— É claro, querida, mas se os pobres não têm filhos importa muito pouco, não é verdade? Não se trata da sucessão a um título, por exemplo. A gente comum não necessita de filhos da mesma maneira que nós. - Olhou significativamente para William. — E melhor se forem mais de um, se a gente quer ver perpetuado seu sobrenome.

George limpou a garganta, levantou as sobrancelhas, e seus olhos olharam Sybilla, depois a William e depois ao prato que tinha diante. William torceu o gesto.

— Ser doentias não lhes impede de ter filhos - argumentou Tassie. — Eu não acredito que estar são seja uma virtude. É mais uma sorte que a gente abastada costuma desfrutar.

Eustace inspirou fundo e soltou o ar com expressão de nervosismo.

— Querida, é muito jovem para saber do que está falando. É um tema que dificilmente pode compreender, nem é preciso. É indecoroso para uma garota de sua posição, ou para qualquer mulher bem educada. Sua mãe nunca o teria exposto. Mas tenho certeza de que o senhor Radley o entende. - Sorriu ao Jack, o qual lhe dedicou um olhar de absoluta incompreensão.

Tassie aproximou um pouco mais a cabeça a seu prato. Estava morta de vergona; por um lado lhe incomodava ser tratada com condescendência, e por outro sentia vergonha pois a alusão de seu pai era imensamente mais indecorosa que o que ela tinha querido dizer antes.

Mas Eustace foi inexorável; não deixou de aludir ao tema durante todo o café da manhã. À comida e a saúde se somaram o aprimoramento da educação, a discrição, a obediência, um humor temperado e a graça para conversar e saber levar uma casa. O único atributo não mencionado foi a riqueza, pois isso teria sido uma vulgaridade. De fato, a mãe do Eustace procedia de uma família rica que tinha esbanjado seus recursos, obrigando-a a moderar seu estilo de vida ou a casar-se com algum membro de uma família que tivesse feito fortuna durante a Revolução Industrial nas minas e fábricas do norte. Ela tinha escolhido o segundo, não sem aversão. O primeiro teria sido impensável.

Eustace assentiu com a cabeça enquanto falava.

— Quando penso em como fui feliz com minha amada esposa, que em glória esteja, dou-me conta de que todas estas coisas contribuíram para isso. Que admirável mulher! Conservo sua lembrança como ouro em pano. O dia em que ela deixou este vale de lágrimas foi o mais triste de minha vida.

Emily olhou ao William, que tinha a cabeça encurvada para ocultar o rosto, e casualmente captou o olhar de Jack Radley, que parecia divertido. Radley sorriu ao ver Emily revirando os olhos. Foi um olhar perturbador, brilhante, e ela soube que se seus anteriores esforços para com o George tinham sido um fracasso monumental, justamente o contrário tinha ocorrido com Jack. Foi uma amarga satisfação e não lhe servia de nada... a menos que sem querer acabasse provocando o ciúmes de George.

Emily sorriu por sua vez, não calidamente mas sim com um tom de conspiração.

Curiosamente, George ouvia Eustace. Este lhe falava como quem fala com um amigo, solicitando sua opinião, expressando admiração por ele, coisa que Emily achava singularmente inoportuna. Agora mesmo George era a última pessoa na casa que deveria consultar-se sobre a felicidade conjugal. Mas Eustace tinha um interesse pessoal em juntar Jack Radley com Tassie e não tinha em conta os possíveis sentimentos de outros.

Emily passou a manhã escrevendo cartas a sua mãe, a uma prima a que devia resposta e à Charlotte. Contava a esta tudo sobre George, a solidão que via abrir-se ante ela como uma extensa planície cinza. Depois rasgou a carta e a jogou no cesto.

O almoço foi ainda pior. Estavam de novo na carregada sala de jantar vermelha com todo mundo presente salvo a tia avó Vespasia, que tinha decidido visitar um conhecido seu no Mayfair.

— Bom! - Eustace esfregou as mãos e olhou a todos. — Que planos há para esta tarde? Tassie? Senhor Radley?

— Tassie tem que me fazer uns recados! - disse a senhora March. — Temos nossas obrigações, Eustace. Não podemos estar toda a vida jogando e nos divertindo. Minha família tem uma posição, sempre a teve. - Se o comentário era pura vaidade pessoal ou uma piscada ao Jack Radley para confirmar que estavam à altura de seu nível social, não ficou claro.

— E sempre tem que ser Tassie quem a deve mantê-la, - disse George com inusitada irritabilidade.

A senhora March ficou boquiaberta.

— E por que não? Tassie não tem outra coisa que fazer. É sua função, seu dever na vida, George. Uma mulher necessita de uma ocupação. Não me negará isso...

— É claro que não! - George estava zangado, e Emily não pôde evitar sentir certo orgulho por ele. — Mas me ocorrem coisas mais divertidas para ela que reforçar o bom nome da família March.

— Sem dúvida! - A voz da anciã teria podido partir lápides, a julgar pela expressão de seu rosto. — Mas não acredito que fossem coisas próprias de uma jovem. Agradecerei-lhe que não a ofenda falando dela. Só conseguiria lhe colocar idéias desatinadas na cabeça. E as idéias não são boas para os jovens.

— Certamente - atravessou Eustace. — Esquentam o sangue e geram pesadelos.

—Tomou uma parte de peito de frango e o deixou em seu prato. — E dores de cabeça.

George se debatia entre sua inata urbanidade e seu sentido da afronta; o conflito se apreciava em seu rosto. Olhou para Tassie.

Esta estendeu a mão e lhe tocou suavemente o braço.

— Não me importa ir ver o vigário, George. É um presunçoso e tem os dentes para fora, mas em realidade é um ser inofensivo...

— Anastasia! - Eustace se incorporou de repente. — Essa não é maneira de falar do senhor Beamish. É um homem muito digno, e uma moça de sua idade deveria ter mais respeito do que você demonstra.

Tassie sorriu.

— Papai, eu sempre sou amável como o senhor Beamish. - Mas na hora teve um arranque de sinceridade: — Bom, quase sempre.

— Esta tarde vá a sua casa - disse impassível a senhora March, - e procura ajudar em algo. Com certeza há algum desventurado que necessita que vão vê-lo.

— Sim, avó - disse Tassie docilmente. George suspirou e no momento decidiu render-se.

Emily passou a tarde fazendo boas obras com Tassie. Se a pessoa não pode divertir-se, pelo menos beneficia o próximo. No final foi bastante agradável, pois gostava de Tassie cada vez mais , e sua visita conjunta à esposa do vigário foi realmente breve. Bastante tempo mais teriam que passar em companhia do ajudante, um jovem gordo e afável de nome Mungo Farei, que tinha decidido abandonar sua vila natal ao oeste do Inverness para buscar vida em Londres. Farei transbordava entusiasmo e tinha opiniões sinceras, como demonstravam seus atos mais que suas palavras. De retorno ao Cardington Crescent, depois de dar verdadeiro consolo a solitários e afligidos, Emily teve a sensação de ter feito algo positivo. A isso se somou o inteirar-se de que Sybilla tinha estado fazendo visitas com sua avó por afinidade, e certamente se aborrecera muito.

Mas Emily não viu George a sua volta, e tampouco quando se trocou para descer para jantar. Do quarto de vestir não saía ruído algum, salvo o do assistente que entrava e saía, e Emily voltou a sentir-se desolada.

Uma vez na mesa, a coisa piorou. Sybilla estava sublime naquele tom de magenta que ninguém mais se teria atrevido a levar. Sua pele era perfeita, com apenas um toque de rosa nas maçãs do rosto, e ainda estava magra como um

salgueiro apesar de seu estado. Tinha os olhos como avelãs; às vezes pareciam castanhos, outras dourados, igual ao brandy visto através da luz. Seu cabelo era sedoso, negro, e denso.

Emily se sentiu aflita por sua beleza, era a traça ao lado da mariposa. Seu cabelo era loiro mel, mas bem brando e delicado, e seus olhos eram de um azul comum; levava um vestido de corte muito moderno, mas em comparação com o de Sybilla parecia pálido. Necessitou de toda sua coragem para sorrir um pouco, para comer algo que lhe teve sabor de papa embora fosse linguado, cordeiro assado e sorvete de fruta.

Todos outros pareciam alegres à exceção da velha March, que nunca se permitia uma coisa tão corriqueira. Sybilla estava radiante; George não lhe tirava olho de cima. Tassie parecia inusitadamente feliz, e Eustace perorou com seu acostumado tom enjoativo. Emily nem sequer o ouviu.

Pouco a pouco, a decisão foi tomando corpo em sua mente. A passividade não sortia efeito: era hora de passar à ação, e a ela só lhe ocorria uma maneira de fazê-lo.

Pouca coisa podia fazer até que os cavalheiros se reunissem novamente com elas uma vez terminada a comida. A estufa se estendia a todo o longo da ala sul da casa e do gabinete se viam portas de vidro com cortinas de verde pálido que davam para palmeiras, trepadeiras e um passeio entre flores exóticas.

Emily tinha esgotado a paciência. Foi sentar se junto a Jack Radley para entabular conversa, coisa que não foi nada difícil; ele estava encantado. Em outras circunstâncias, Emily teria desfrutado falando com ele, pois gostava de Jack, embora não quisesse admiti-lo. Era atraente, e ele sabia muito bem, mas além disso era agudo e capaz de ver o absurdo das coisas. Emily se tinha dado conta pelo brilho de seus extraordinários olhos nos últimos dias. E além disso, pensava ela, era um jovem isento de hipocrisia, o que por si só congraçava com ela depois de três semanas no Cardington Crescent.

— A senhora March parecia muito zangada com você - disse ele com curiosidade. — Quando você mencionou a palavra "investigar", pensei que ia ter um ataque. - Seu comentário tinha um tom divertido, e Emily se deu conta de que Radley não gostava da anciã. De repente se abriu ante ela todo um panorama de infelicidade. Podia ser que a família e as circunstâncias estivessem empurrando a Jack Radley a um matrimônio por dinheiro. Talvez ele desejava essa união tão pouco como as jovens a quem suas mães dirigiam sem misericórdia para conseguir uma boa posição, para que não ficassem na mais patética das criaturas sociais, a mulher que permanece solteira além de sua juventude, sem recursos para manter-se nem vocação em que ocupar sua vida.

— Não é minha habilidade o que lhe dá medo - disse Emily com seu primeiro sorriso genuíno em todo o dia. —mas a forma em que a adquiri.

— O que quer dizer? - perguntou ele boquiaberto. — Foi horripilante?

— Pior.

—Vergonhoso? - insistiu ele.

— Muitíssimo!

— Mas o que? - Radley estava a ponto de explodir em gargalhadas.

Ela se inclinou com uma mão à altura da boca. Ele se aproximou para escutar.

— Minha irmã buscou um marido de classe média - sussurrou Emily muito perto de seu ouvido. — Um inspetor de polícia!

Radley se endireitou e a olhou com expressão perplexa e divertida.

— Um detetive autêntico? Da Scotland Yard e tudo isso?

— Pois sim. Tudo isso e mais.

— Não acredito! - Jack estava desfrutando seriamente, e a história tinha um toque de realidade que fazia ainda melhor o jogo.

— É verdade! - protestou Emily. — Não viu a cara que punha a senhora March? Dá-lhe pânico que eu o mencione. É uma desgraça para a família.

— Imagino! - riu ele. — Pobre Eustace, acredito que nunca se recuperará. Lady Cumming-Gould sabe?

— Tia Vespasia? Sim, certamente. E se dúvida de mim, pergunte a ela. Conhece bastante bem Thomas, e gosta dele apesar de usar roupa que lhe assenta mal, por exemplo umas luvas horrorosas de cores inverossímeis, e sempre

leva os bolsos cheios de notas e fósforos e pedaços de corda e seja o que mais. E em toda sua vida não conheceu um barbeiro decente...

— Você também gosta dele - lhe interrompeu contente Jack Radley. — Certamente que gosta.

— Oh, sim! Muito! Mas continua sendo um policial e sempre está metido em espantosos assassinatos. - Recordar isso serenou-a uns instantes; ele o notou em seu rosto, e ficou a sua altura.

— Você sabe algo disso? - Radley estava realmente intrigado. Emily tinha captado toda sua atenção, e achava muito divertido.

— É claro que sim! Charlotte e eu somos muito íntimas. Às vezes até ajudei um pouco.

Ele a olhou com ceticismo.

— É verdade! - protestou Emily. Sentia-se extremamente orgulhosa disso, pois tinha que ver com a vida que transcorria fora dos asfixiantes salões. — Se pode dizer que resolvi alguns casos, bom, Charlotte e eu juntas.

Ele não sabia se acreditava nela ou não, mas sua expressão não era de censura; estava realmente assombrado. Se fosse uns anos mais jovem, ela se teria deixado seduzir por seu olhar. Ficou em pé sacudindo um pouco a saia.

— Se não me acredita...

Ele reagiu imediatamente.

— Você investigando crimes? - Seu tom era descrente, como se a convidasse a convencê-lo.

Emily aceitou e pôs-se a andar para a estufa. Dentro cheirava a terra, fazia muito calor e a penumbra recordava uma noite no trópico.

— Em uma ocasião o cadáver apareceu no assento do condutor de um carruagem de aluguel - disse de propósito. Era absolutamente verdade. — Depois de uma representação do Mikado.

— Está zombando de mim - protestou ele.

— Claro que não! - Emily olhou-o com expressão de absoluta inocência. — A viúva o identificou. Era lorde Augustus Fitzroy Hammond. Enterraram-no com todo o cerimonial. - Procurou olhá-lo diretamente nos olhos, com aquelas incríveis pestanas. — Apareceu no banco que a família tinha na igreja.

— Emily, isto é ridículo! - Jack estava muito perto dela e, nesse momento, George deixou de ser o mais importante. Soube que estava começando a sorrir, pois estava dizendo a verdade.

— Voltamos a enterrá-lo - disse abafando uma risada. — Foi bastante difícil, e desagradável também.

— É absurdo. Não acredito!

— Juro! Foi tudo muito estranho. Não se espera que a alta sociedade vá duas vezes ao funeral da mesma pessoa em outras tantas semanas. Não é decente.

— Está mentindo.

— Não! Juro-o! Saíram quatro cadáveres antes de que acabasse tudo; ao menos acredito que foram quatro.

— E todos desse lorde Augustus? - Jack tratava de reprimir a risada.

— Claro que não, não seja ridículo! - protestou ela. Estava tão perto dele que pôde cheirar a calidez de sua pele e um tênue aroma de sabão.

— Emily! – inclinou-se e lhe deu um beijo íntimo, como se tivessem tido todo o tempo do mundo. Emily se deixou ir, lhe rodeando o pescoço com os braços e respondendo ao beijo.

— Não deveria fazer isto - reconheceu ela depois de uns momentos. Mas não era uma recriminação.

— Suponho que não - concedeu ele, lhe acariciando o cabelo e as faces. — Diga-me a verdade, Emily.

— O que? - sussurrou ela.

— Encontrou realmente esses cadáveres? – Beijou-a outra vez.

— Quatro ou cinco - murmurou ela. — E também apanhamos ao assassino. Pergunte à tia Vespasia... se se atrever. Ela estava lá.

— Pode ser que o faça.

Emily se afastou com certa relutância - tinha sido melhor do que esperava – e começou a retroceder para o gabinete.

A senhora March estava em plena dissertação sobre o cavalheirismo dos pintores pré-rafaelistas, sua meticulosidade no detalhe e o aprimoramento da cor, e William a escutava com o rosto contraído. Não era que não estivesse de acordo, mas sim a seu julgamento ela tinha interpretado mal a idéia. A senhora March esquecia a paixão em prol do sentimentalismo.

Tassie e Sybilla estavam situadas de tal maneira que ou escutavam ou podiam parecer grosseiras, e o costume excluía este último. Pelo contrário, Eustace era o senhor da casa e não estava obrigado a essa cortesia. Sentado de costas ao grupo, soltou um discurso sobre as obrigações morais dos bem situados, enquanto George compunha um estudado gesto de interesse mas em realidade não estava prestando atenção; olhava para a porta da estufa. Devia ter visto Emily com Jack Radley.

Emily teve uma repentina e alarmante sensação de excitação; por fim tinha provocado uma crise!

Pôs-se a andar uns passos diante do Jack mas consciente de que ele a seguia, de seu calor e a suavidade de seu toque, sentou-se junto a tia avó Vespasia e fingiu escutar ao Eustace.

O resto da noite transcorreu de maneira similar, e Emily não reparou na hora até vinte e cinco minutos antes da meia-noite. Retornava ao gabinete depois de ter ido ao banheiro no primeiro piso quando ouviu vozes na saleta. Alguém falava em voz baixa mas acaloradamente.

—... é um covarde - Era Sybilla, falando com tom irado e desdenhoso - Não me diga...

— Pode acreditar no que quiser! - A resposta a fez calar.

Emily se deteve, enquanto o medo e a esperança lutavam entre si e a faziam tremer. Era George, e estava furioso. Ela conhecia esse tom; George tinha tido o mesmo arrebatamento quando seu jóquei foi batido no hipódromo. Naquela ocasião a culpa tinha sido em parte dele, e George sabia. Agora estava atacando Sybilla, e a voz dela soava rouca de fúria.

Abriu-se a porta do toucador e Eustace apareceu no vão. Em um momento daria a volta e veria Emily. Ela reagiu rapidamente, estirando o pescoço a fim de discernir as últimas palavras que saíam da saleta. Mas as vozes eram muito

estridentes para distinguir o que diziam.

— Ah, Emily. - Eustace virou-se. — Acredito que é hora de deitar-se. Estará cansada. - Era uma afirmação, não uma pergunta. Eustace considerava uma de suas prerrogativas decidir quando tinha que deitar-se todo mundo, como tinha feito sempre com sua família quando todos viviam na casa. Tinha decidido virtualmente tudo, acreditando que era seu privilégio e sua obrigação. Em vida, Olivia March lhe tinha obedecido sempre com doçura... para logo fazer a sua vontade com tanta discrição que ele nunca chegou a dar-se conta. As melhores ideias do Eustace tinham sido em realidade da Olivia, mas ele tinha acabado assimilando-as como coisa própria e as defendendo, por conseguinte, a capa e espada.

Esta noite Emily não tinha desejo de discutir. Voltou para o gabinete, deu boa noite a todos e subiu a seu quarto. Despiu-se, depois de dar instruções à criada para a manhã seguinte, e se dispunha a deitar-se quando alguém bateu na porta.

Ficou petrificada. Só podia ser George. Em parte queria guardar silêncio, fingir que já estava adormecida. Contemplou a maçaneta como se a porta pudesse abrir-se por si só.

— Entre.

Lentamente, a porta se abriu e George apareceu na soleira, com rosto de cansaço. Estava ruborizado, e Emily adivinhou imediatamente a razão. Sybilla lhe tinha feito uma cena, e George odiava as cenas. Na hora soube o que tinha que fazer. Enfrentar a George seria desastroso. Quão último ele queria agora era outra mulher emotiva.

— Olá - disse Emily com um leve sorriso, fingindo que a ocasião não era importante, uma entrevista que podia variar o rumo de sua vida e de tudo que lhe importava.

Ele entrou indeciso seguido do spaniel da senhora March, o qual, para irritação dela, tinha tomado tal afeto pelo George que inclusive abandonava a sua proprietária. Não sabia o que dizer, tinha medo de que ela estivesse esperando a

oportunidade de lhe lançar uma acusação contra a que ele não podia defender-se.

Emily afastou a vista para lhe facilitar as coisas, como se tudo estivesse em perfeita ordem. Esforçou-se por achar palavras alheias ao conflito que havia entre eles dois.

— Esta tarde passei muito bem com Tassie - começou com tal coisa. — O vigário é muito chato, e sua esposa outro tanto. Agora entendo por que Eustace gosta deles. Têm muito em comum, opinam igual sobre a simplicidade da virtude - fez uma careta- e a virtude da simplicidade. Sobre tudo aplicado a mulheres e crianças, que para eles deve ser a mesma coisa. Mas seu ajudante foi encantador.

George se sentou frente à mesinha do penteadeira, e lhe observou com ligeiro prazer. Seu gesto significava que ia ficar ao menos uns minutos.

— Me alegro - disse ele com um sorriso desconfortável, procurando algo para seguir a conversa. Era ridículo; um mês atrás falavam como dois velhos amigos, teriam rido juntos do vigário. Agora lhe olhou com olhos escrutinadores por um momento. Depois desviou a vista sem atrever-se a forçar as coisas, temendo um rechaço. — Sempre gostei de Tassie. Tem muito mais da parte Cumming-Gould que da parte March. E suponho que William igualmente.

— Melhor para os dois - disse Emily.

— Teria gostado de tia Olivia. Tinha só trinta e oito anos quando morreu. Tio Eustace ficou destroçado.

— Imagino que ela também, depois de dar à luz a onze filhos em quinze anos – disse secamente Emily.— Mas suponho que tio Eustace não pensou nisso.

— Imagino que não.

Olhou-o sorrindo, contente de que ele nunca tivesse esperado dela algo parecido, sequer implicitamente. Por um momento as coisas foram como antes, de um modo incerto mas patente; mas antes de dar nada por certo e arriscar-se a

uma decepção, Emily voltou a desviar o olhar.

— Eu sempre pensava que visitar os pobres era mais ofensivo para estes que deixá-los sós - prosseguiu. — Em troca, acredito que Tassie fez muito bem. É muito honesta.

— É sim. - George mordeu o lábio. — Embora, graças a Deus, ainda não pode comparar-se a Charlotte. Claro que isso é só questão de tempo; ainda não formou tantas opiniões. - Ficou em pé, pensando que era melhor partir antes de pôr

em perigo esse precioso fragmento recuperado entre os dois. Duvidou, e a indecisão apareceu em seu rosto. Atreveria-se a beijá-la, ou era muito cedo? Sim, sim... tudo era muito frágil, Sybilla muito recente. Estendeu a mão, tocou-lhe um ombro e logo a retirou. — Boa noite, Emily.

Olhou-lhe solene. Queria impor suas condições, pois do contrário ele podia voltar para as andadas e ela não seria capaz de suportá-lo outra vez.

— Boa noite, George... - disse suavemente. — Que durma bem.

George saiu com o cão lhe pisando os calcanhares, e a porta se fechou. Emily se enrolou na cama abraçada a seus joelhos, notando que as lágrimas lhe ardiam nos olhos e corriam por suas faces. Não tinha terminado tudo, mas aquela terrível impotência sim. Agora sabia o que fazer. Sorveu pelo nariz, alcançou um lenço e se assoou com força. Foi um som áspero e pouco feminino, claramente triunfal.

 

Emily dormiu bem pela primeira vez em várias semanas, e quando despertou o sol iluminava todo o quarto e Millicent estava esmurrando a porta.

— Entre - disse sonolenta. George continuava no quarto de vestir; não era preciso pensar na intimidade. — Entra, Millie.

Millicent entrou com uma bandeja em uma mão enquanto com a outra fechava a porta. Logo deixou a bandeja em cima do penteadeira.

— Grande confusão há nessa despensa, senhora - disse, servindo o chá com esmero. — Nunca vi nada igual. Primeiro está toda cheia de gente, e depois a chaleira joga fumaça por toda parte sem que ninguém a tire do fogo. E tudo porque o senhor gosta mais do café que do chá; claro que eu não entendo como pode beber-se essa beberagem. Enfim, Albert o levou a seu quarto há um quarto de hora e diz que ali estava também o cachorrinho da senhora March. Parece que pegou muito carinho ao senhor. E isso tira de gonzo à velha senhora – aproximou-se e lhe estendeu a xícara.

Emily se endireitou , pegou-a e começou a beber. Estava quente. O dia começava bem.

— O que quer vestir esta manhã, senhora? - Millicent abriu as cortinas com brio. O de musselina cor damasco, possivelmente? É um vestido lindo.

E nem todo mundo brilha com um tom assim. Algumas pareciam pálidas.

Emily sorriu. Pelo visto, Millicent já tinha decidido.

— Boa idéia - disse. — Faz calor fora?

— Fará, senhora. E se esta tarde vai de visita, o que lhe parece o de cor lavanda? -Millicent transbordava de idéias. — O branco com cós de veludo negro para a noite. Está muito na moda e tem um vôo muito bonito ao andar.

Emily assentiu, terminou o chá e empreendeu seu toilette matinal. Hoje tudo parecia ter um ar de vitória.

Uma vez a sós e pronta, foi ao quarto de vestir e bateu na porta. Ninguém respondeu.

Duvidou um pouco, mas de repente voltou atrás. O que lhe ia dizer além de bom dia? Não podia conduzir-se como uma noiva impaciente! Assim só incomodaria George. Era preferível mostrar-se natural. De qualquer modo, ele não tinha respondido; sem dúvida teria descido já.

Mas não havia sinais do George na sala do café da manhã. Eustace estava, bochechudo e radiante de saúde, para variar. Tinha aberto as janelas como era seu costume, sem ter em conta que o quarto estava orientado ao oeste e fazia um frio considerável. Tinha ante ele um prato repleto de salsichas, ovos, rins picantes e batatas. Ajustou o guardanapo no colete, e na mesa tinha torradas recém feitas, um prato de manteiga, as cangalhas de prata e o leite, o açúcar e a cafeteira de prata estilo rainha Ana.

A velha March ia tomar o café da manhã na cama, como de costume. Além disso, todos estavam presentes salvo George... e Sybilla.

Emily se sentiu morrer e toda sua felicidade se extinguiu como quem apaga uma vela com os dedos. E quando se dispôs a cortar a parte superior do ovo passado por água pareceu muito torpe e teve que manter o equilíbrio. Não o tinha sonhado.

George e Sybilla haviam brigado na véspera. O pesadelo tinha chegado a seu fim. É claro, as coisas não iriam se arrumar em um instante. Levaria um pouco de tempo, talvez duas ou três semanas. Mas isso podia suportar.

— Bom dia, querida - disse Eustace com o tom que usava cada manhã. — Espero que esteja bem. —Mais que uma pergunta era uma forma de dar-se por informado de sua presença. Não gostava de ouvir falar de indisposições de mulheres; eram pouco interessantes e indecorosas; sobre tudo pela manhã, quando a pessoa tinha vontade de comer.

— Muito - disse agressivamente Emily. — Espero que você também. - Aqui a frase era totalmente desnecessária, visto a prodigalidade com que Eustace se serviu.

— É claro que sim. - Seus olhos aumentaram sob as sobrancelhas curtas e arredondadas. Suspirou pelo nariz com um ruído suave e percorreu com o olhar o resto da mesa: Vespasia comia um ovo passado por água em delicado silêncio; Tassie parecia tão pálida quanto permitiam seu cabelo e suas sardas, estava com olheiras; Jack Radley olhava Emily com cenho franzido e as faces ligeiramente rosadas; e William, com o corpo muito tenso e o rosto franzida, pegava o garfo como se fora um salva-vidas. — Tenho uma saúde excelente - reiterou Eustace com um tom acusatório.

— Me alegro muito. -Emily estava decidida a dizer a última palavra. Não podia lutar contra Sybilla e não queria brigar com George. Bastava encarar Eustace.

— O que pensa fazer hoje, querida? - perguntou Eustace a Tassie, e antes que ela pudesse abrir a boca, continuou: — A compaixão é uma coisa muito desejável nas mulheres. Sua querida mãe, que Deus a tenha em sua glória, sempre estava metida nessas coisas. - Alcançou uma torrada e passou manteiga nela. — Mas você tem outras obrigações, começando por seus convidados. Faça que se sintam bem aqui. É claro, sua casa é acima de tudo uma ilha de paz e moralidade onde não penetram as trevas do mundo. Mas também deveria ser um lugar de agradável entretenimento, de alegria e edificante conversa. - Fez caso omisso de Tassie como se não percebesse seu desconforto, e provavelmente assim era.

Emily lhe odiou por sua absoluta cegueira.

— Acho que deveria levar o senhor Radley para passear de carruagem - prosseguiu Eustace, como se lhe acabasse de ocorrer a idéia. — Faz um tempo excelente. Tenho certeza de que sua avó Vespasia estará encantada de acompanhá-los.

— Nem pensar, Eustace! – replicou-lhe Vespasia. — Esta tarde tenho visitas a fazer. Tassie pode vir comigo, se quiser, mas eu não penso ir com ela. Não duvido que o senhor Carlisle lhe pareceria interessante, e ao senhor Radley também, se se decidir vir.

Eustace franziu o sobrecenho.

— O senhor Carlisle? Esse indivíduo tão pouco recomendável metido a agitador político?

Tassie levantou rapidamente a cabeça.

— Caramba.

Eustace a fulminou com o olhar.

Vespasia não pestanejou ante a descrição do Eustace, mas seus olhos cinzas de pomba olharam fugazmente ao Emily, rememorando momentos excitantes, lembranças de pobreza e assassinato, e Emily notou que se ruborizava ao lhe vir à cabeça a noite na estufa. Tinha conhecido ao Somerset Carlisle precisamente como resultado desse assunto que tinha começado a contar a Jack Radley.

— Um indivíduo extravagante, sim senhor - disse zangado Eustace. — Há melhores sistemas para ajudar aos desventurados que exibir-se tratando de escavar o governo e alterar os fundamentos da sociedade. Esse homem é um irresponsável, e seria melhor que não tivesse nada que ver com ele, Vespasia.

— Fascinante. - Jack Radley olhou a Vespasia. — No que trabalha agora o senhor Carlisle, lady Cumming-Gould?

— No sufrágio feminino - respondeu a anciã.

— Ridículo! - grunhiu Eustace. — Uma perigosa perda de tempo. Se votassem as mulheres sabe Deus que tipo de Parlamento íamos ter. Não estranharia que se enchesse de fanáticos e revolucionários... ou de incompetentes. Esse Carlisle é uma ameaça para tudo o que a Inglaterra tem de bom, tudo o que tem feito possível o Império. Se a Inglaterra tiver grandes homens é justamente porque nossas mulheres mantêm a santidade do lar e a família.

— Bobagens - respondeu secamente Vespasia. — Se as mulheres forem tão decentes como você acredita, então votarão a quem saiba conservar esses valores que tanto estima.

Eustace estava visivelmente zangado. Fez um esforço por dominar-se.

— Minha querida sogra - disse entre dentes -, não é sua decência a que está em questão, mas seu bom senso. -Inspirou fundo. — O sexo fraco foi criado Por Deus para realizar funções de esposa e mãe; para consolar, alimentar e edificar. É uma tarefa nobre e elevada. Mas a mulher carece da inteligência ou o temperamento necessários para governar, e supor o contrário é ir contra a natureza.

— Eustace, quando se casaram eu disse a Olivia que era um idiota – replicou Vespasia. — E com os anos me foi dando cada vez menos motivos para mudar de opinião. - Limpou os lábios com o guardanapo e se levantou. — Se lhe parece que não sou boa acompanhante para Tassie, por que não diz a Sybilla que a acompanhe? Caso se levante a tempo da cama. - E sem sequer olhar atrás saiu da estadia.

Eustace corou. Tinham-lhe insultado em sua própria casa, o único lugar do mundo onde ele era a autoridade absoluta e inexpugnável.

— Anastasia! Acompanhará-a sua cunhada ou a avó March, está claro? Você, Emily, não. Não é muito melhor que sua tia avó. Sua conduta anterior pode ter sido deplorável, mas isso é assunto do George. Não quero que aconselhe mal a Tassie.

— Nada mais longe de minha intenção - replicou Emily com um sorriso arrebatador. — Certamente Sybilla é muito melhor exemplo que eu para Tassie quanto a como deve comportar-se uma mulher decente.

Tassie agüentou a risada com o lenço; Jack Radley tratou de achar alguma coisa que olhar com atenção, sem conseguir. William, pálido, levantou-se torpemente deixando cair o guardanapo e fazendo tilintar sua xícara sobre o pires.

— Vou trabalhar - disse bruscamente- , agora que há boa luz. E sem mais saiu da sala.

Emily lamentou haver—se deixado levar pelo mau humor, porque desse modo tinha ferido também a William. Ele devia sentir-se mais ou menos como ela: confuso, rechaçado, terrivelmente só e, acima de tudo, humilhado. Mas ir procurá-lo para pedir desculpas só teria piorado as coisas. A única coisa que podia fazer era fingir não ter percebido. Obrigou-se a engolir parte do café da manhã para aparentar que estava bem. Depois se desculpou e foi diretamente para cima procurar George para lhe exigir que ao menos fosse discreto, já que não podia ou não queria ser decoroso.

Bateu na porta do quarto de vestir e aguardou. Bateu de novo e ao ver que não havia resposta, entrou.

As cortinas estavam abertas e a habitação cheia de luz. George continuava deitado na cama, com os lençóis revoltos e a bandeja com o café ainda sobre a mesa, obviamente utilizada. De fato, havia um pires vazio no chão, aos pés da cama, onde ele devia ter compartilhado o café com o spaniel da senhora March.

— George! - disse Emily zangada. Nem sequer quis pensar no que podia ter estado fazendo toda a noite para continuar deitado às dez da manhã. — George? – aproximou-se da cama e olhou-o. Estava muito branco e tinha os olhos

afundados como se tivesse dormido mau, se é que tinha dormido. Na realidade parecia doente.

— George? - Agora estava assustada. Tocou-o.

Ele não se moveu. Suas pálpebras nem sequer se agitaram.

— George! - exclamou, o que era ridículo. Ele tinha que ouvi-la.

Sacudiu-o de forma que qualquer um teria despertado. Mas George continuava imóvel. Seu peito não parecia sequer subir e descer.

Aflita , especulando já sobre o impossível e aterrada por isso, Emily correu à porta pensando em avisar a alguém, mas a quem?

Tia Vespasia! Claro. Ela era a única em quem podia confiar, a única que lhe tinha apreço. Correu escada abaixo, cruzou o vestíbulo, quase derrubando uma sobressaltada criada, e abriu a porta da saleta. Vespasia estava escrevendo cartas.

— Tia Vespasia! – Tremia-lhe a voz, e falou mais alto do que era sua intenção. — Tia Vespasia, George está doente! Não consigo que desperte! Acredito que... - Inspirou desesperadamente. Não podia pronunciar as palavras.

Vespasia levantou a vista da escrivaninha de palisandro.

— Será melhor irmos dar uma olhada - disse muito séria, deixando a pena e ficando de pé. — Vamos, querida.

Com o coração acelerado por medo ao que podia achar em cima, Emily a seguiu pela escada até o patamar, com suas cortinas estampadas de peônias e as jardineiras de bambu cheias de samambaias. Vespasia bateu na porta do quarto de vestir e, sem esperar resposta, abriu-a e se aproximou da cama.

George estava tal como Emily o tinha deixado, salvo que agora percebeu com mais clareza a branca rigidez da rosto, perguntando-se como podia ter chegado a pensar que ainda estava vivo.

Vespasia lhe tocou suavemente o pescoço com o dorso dos dedos. Depois de uns instantes se voltou para o Emily com a rosto tenso e os olhos desolados.

— Não há nada a fazer, querida. Pelo pouco que sei, pensaria que foi o coração. Atreveria-me a dizer que não sentiu nada. É melhor que vá a meu quarto, enviarei a minha criada enquanto Millicent vai te buscar um brandy. Eu tenho que ir comunicar isso aos donos da casa.

Emily guardou silêncio. Sabia que George estava morto e entretanto não podia assimilar a idéia; era inconcebível. Não era a primeira vez que experimentava a morte de perto; sua irmã tinha sido assassinada pelo verdugo do Cater Street. Ocorria constantemente: a varíola, o tifo, o cólera, a escarlatina, a tuberculose, estavam na ordem do dia, e eram coisas que com muita freqüência provocavam a morte, como a provocava o parto. Mas nesta ocasião não tinha havido o menor aviso; George parecia tão vivo!

—Venha - Vespasia a rodeou com o braço e sem que Emily se desse conta voltou a passar pelo patamar das samambaias para entrar no quarto da Vespasia, onde sua criada estava fazendo a cama.

— Lorde Ashworth morreu - anunciou a anciã. — Ao que parece sofreu um ataque cardíaco. Fique aqui com lady Ashworth, Digby. Mandarei a alguém com um brandy e irei comunicá-lo aos senhores.

A criada era uma mulher mais velha do norte do país, longa de quadris e de rosto brilhante. Tinha assistido a muitos acontecimentos de luto além de sofrer os seus próprios. Respondeu lacônica e logo pegou suavemente a Emily pelo braço, fê-la sentar-se no sofá com os pés elevados e lhe bateu na mão de um modo que em outro momento lhe teria sido muito desagradável. Agora era um contato humano que a tranqüilizava absurdamente, mais reconfortante e real que o sol que enchia o quarto, que o complicado biombo japonês de seda com seus casulos de cerejeira, que a mesa de laca.

Vespasia se dirigiu devagar ao andar térreo. Estava muito penalizada, sobre tudo por Emily, a quem queria muito, mas também por si mesma. Conhecia George desde que tinha nascido. Tinha-o visto menino e adolescente, e conhecia tanto suas virtudes como seus defeitos. Não esquecia o que ele tinha feito, mas era generoso e tolerante, sempre disposto a elogiar a outros e, dentro de seus próprios parâmetros, era honesto. Sua obsessão por Sybilla era aberrante, uma amostra de estupidez e desenfreio que não lhe perdoava. Mas nada disso alterava o fato de que o tivesse querido, e Vespasia sentiu uma grande pena ao pensar que tinha morrido tão jovem, quando mal tinha a metade de seus anos.

Abriu a porta da sala do café da manhã. Eustace continuava sentado à mesa com Jack Radley.

— Eustace, devo falar com você imediatamente.

— É claro. - Ainda estava zangado e não fez o menor gesto de levantar-se.

Vespasia olhou cruamente a Jack Radley, e este viu que algo andava mau. Levantou-se e depois de desculpar-se, saiu fechando a porta.

— Agradeceria-lhe que fosse mais amável com o senhor Radley - disse Eustace com voz glacial. — É muito possível que se case com a Anastasia...

— Acho improvável. Mas isso importa pouco agora. Devo dizer que George morreu.

Eustace virou a cabeça, boquiaberto.

— Como diz?

—George morreu - repetiu ela. — Parece que teve um ataque. Deixei Emily em meu quarto com minha criada. Acho que deveria chamar um médico.

Eustace começou a dizer algo, mas lhe pareceu inadequado. Sua cor normalmente corada tinha desaparecido de seu rosto.

Vespasia fez soar a campainha e tão logo apareceu o mordomo se dirigiu a ele:

— Lorde Ashworth teve um ataque cardíaco esta noite, e morreu. Lady Ashworth está em meu quarto. Mande alguém acima com um brandy, por favor. E chame o doutor, mas seja discreto. Não é preciso armar alvoroço. Eu mesma

informarei à família.

— Sim, milady - disse o mordomo. Me permita lhe dizer quanto o sinto, tenho certeza de que o resto da criadagem compartilhará meus sentimentos.

— Obrigada, Martin.

O mordomo fez uma reverência e partiu.

Eustace se levantou torpemente, como se de repente tivesse reumatismo.

— Contarei a mamãe. Será um golpe terrível para ela. Suponho que não se pode fazer nada pela pobre Emily...

— Acho que farei chamar Charlotte - respondeu Vespasia. — Eu também me sinto muito aflita.

— Compreendo-o. - Ele se abrandou um pouco. Depois de tudo, Vespasia tinha mais de setenta anos. Mas havia outra coisa em sua mente. — Mas me parece que não deveríamos chamar a sua irmã. É uma infeliz cuja presença não nos ajudará em nada. Por que não mandamos chamar a mãe? Melhor ainda, levemos ao Emily a casa de sua mãe, assim que se veja com forças para ir. Seria o mais adequado, acredito eu.

— Possivelmente sim - disse secamente Vespasia. — Mas Caroline está no continente, assim, de momento, farei chamar Charlotte. – Olhou-o de tal forma que Eustace congelou o protesto nos lábios. — Esta tarde mandarei minha carruagem buscá-la.

Vespasia saiu da estadia e foi acima. Havia outra missão a cumprir, e não ia ser fácil. Apesar do comportamento da jovem nas últimas semanas, tinha apreço por Sybilla, queria dizer-lhe ela mesma em lugar de deixar que o fizessem os

criados ou, pior ainda, Eustace.

Bateu na porta do quarto e o abriu sem esperar resposta. A bandeja do café da manhã estava sobre a mesinha de noite. Sybilla estava acotovelada na enorme cama, coberta com um xale debruado de renda, a camisola de cetim amarelo um pouco caída de um pálido ombro, e o cabelo negro caindo sobre o peito. Inclusive em um momento como esse, Vespasia ficou aniquilada ante sua beleza. Era quase entristecedora.

— Sybilla - disse em voz baixa, indo sentar se na beira da cama. — Sinto muito, querida, mas tenho que lhe dar uma triste noticia.

Os olhos da Sybilla se abriram com medo enquanto se endireitava .

— William...

— Não. George.

— O que...? - Sybilla estava surpreendida e confusa. Tinha pensado primeiro em William, sem dar-se conta da ameaça que tinha cruzado por sua cabeça. — O que aconteceu?

Vespasia acariciou a mão que estava mais próxima a ela, apertando-a com força.

— George morreu, querida. Temo que sofreu um ataque cardíaco esta madrugada. Não há nada que possa fazer, salvo se mostrar tão discreta como não foi até agora, por Emily e por William, ao menos, se não por você mesma.

— Morto? - sussurrou Sybilla, como se não compreendesse a palavra. — Não pode ser! Se estava tão... tão são! Não é George...

— Receio que não há nenhuma dúvida. - Vespasia meneou a cabeça. — Sugiro que diga a sua criada que lhe prepare um banho, que a vista e permaneça aqui até que serene para enfrentar à família. Depois desça e oferece sua ajuda no que seja possível. Asseguro-lhe que é a melhor maneira de agüentar sua própria dor.

Sybilla sorriu fracamente.

— É isso o que você está fazendo, tia Vespasia?

— Suponho. - Vespasia desviou o olhar para não delatar a dor que sentia. — Acredito que é o mais recomendável para você.

Sybilla se levantou e fez soar a campainha. Soaria no quarto dos criados e no de sua criada, e a garota acudiria rapidamente.

— Devo ir contar ao William - disse Vespasia, tratando de pensar que mais teria que fazer. — E sem dúvida terá que organizar coisas, escrever cartas e tudo isso.

Sybilla balbuciou algo, certamente sobre Emily, mas lhe faltou coragem para anunciar, e Vespasia não insistiu a fazê-lo.

O doutor chegou ao meio-dia. Eustace foi recebê lo e o conduziu ao quarto de vestir, onde George continuava tal como o tinham encontrado Emily e Vespasia. Deixaram-no a sós, excetuando um lacaio para que atendesse suas necessidades, como água quente ou toalhas. Eustace não tinha o menor desejo de estar presente na ocasião e esperou com Vespasia na sala para escutar o veredito do doutor. Emily e Sybilla continuavam em seus respectivos quartos; Tassie havia voltado da cabelereira e estava chorando muito no gabinete. A velha March estava no toucador rosa, que era seu território preferido, consolada por Jack Radley, cujas ateções havia ela requerido especialmente. William se achava na estufa, no espaço que tinha habilitado como estúdio. Tinha voltado para seu trabalho, assinalando que não servia de nada que estivesse na casa retorcendo as mãos ociosamente, e achou mais alivio para seus sentimentos estando só e esforçando-se com pincéis e cores em plasmar parte de suas emoções. Tinha dois quadros em marcha; um era uma paisagem que lhe tinha encomendado um mecenas, o outro um retrato de Sybilla iniciado para seu próprio gosto. Hoje trabalhava na paisagem; árvores cheias de sol primaveril e um súbito e penetrante frio. O ambiente evocava a fragilidade da sorte e a perpétua iminência da dor.

O médico apareceu ao abrir a porta da saleta. Tinha profundas rugas no rosto, mas eram sinais agradáveis, de variabilidade e bom caráter. Agora parecia abatido.

Fechou a porta ao entrar e olhou ao Eustace e a Vespasia, decidindo-se finalmente por ela.

— Foi o coração, como você imaginava - disse. — O único consolo que posso lhes oferecer é que deve ter sido tudo muito rápido, apenas uns segundos.

— Com efeito, é um consolo - reconheceu Eustace. — Estou-lhe muito agradecido. Direi a lady Ashworth. Obrigado, Treves.

Mas o doutor não se moveu.

— Lorde Ashworth tinha um cão, um spaniel pequeno?

— Deus santo, o que importa isso agora?

— Sim ou não? - repetiu o doutor.

— Não. Era de minha mãe. Por que?

— Receio que o cão também esteja morto, senhor March.

— Ah, mas isso não tem muita importância, não é? - Eustace estava zangado. — Farei com que um dos lacaios se ocupe disso. - Fazendo um esforço, recordou sua posição e, com ela, suas boas maneiras. — Agradeço. E agora se quer fazer o que é necessário, nos encarregaremos do funeral.

— Não será possível, senhor March.

— Como que não será possível? - inquiriu Eustace, começando a ruborizar-se de ira. — Claro que é possível! Mova-se, homem!

Vespasia olhou o rosto fúnebre do doutor.

— Do que se trata, doutor Treves? - disse. — Por que mencionou o cão? E como soube isso? Os criados não o levaram para ver um cão morto.

— Não, milady. - O doutor suspirou, e sua inquietação se viu refletida nas rugas do rosto. — O cão estava debaixo da cama. Também morreu de um ataque, eu diria que na mesma hora que lorde Ashworth, mais ou menos. Parece que lhe deu para provar um pouco do café que havia na bandeja do café da manhã. Em ambos os casos, foi muito pouco antes de morrer.

Eustace notou que o sangue lhe ia aos pés. Cambaleou um pouco.

— Mas o que está dizendo, homem!

Vespasia se afundou lentamente em uma cadeira. Sabia o que o doutor ia dizer, e sua mente já tinha registrado todo seu horror.

— Digo, senhor, que lorde Ashworth morreu envenenado.

—Tolices! - respondeu Eustace. — Nada mais que tolices! Mas que idéia tão ridícula! O pobre George teve um ataque de coração, e o cão deve ter ficado louco, a morte e tudo isso, e morreu também. Mera coincidência! Uma... desgraçada coincidência.

— Não, senhor.

— Claro que sim! - bradou Eustace. — Por que diabos ia lorde Ashworth a envenenar-se, se se pode saber? Você não o conhecia, do contrário não teria sugerido uma coisa semelhante. E por certo não teria dado primeiro ao cão para provar! George amava aos animais. Esse vira-latas o adorava. Minha mãe o achava fatal. O cão é seu, mas preferia ao George. A ele jamais teria ocorrido lhe fazer dano. Como diz uma tolice assim. E asseguro-lhe que não tinha o menor motivo para tirar a vida. Era um homem... - Engoliu em seco olhando o Treves - ... absolutamente feliz. Tinha dinheiro, posição, uma boa esposa e um filho.

Treves abriu a boca para replicar, mas Vespasia o interrompeu.

— Acredito, Eustace, que o doutor não está sugerindo que George tomasse sabendo.

— Não diga idiotices! – replicou-lhe ele, perdendo o controle. — Ninguém se suicida acidentalmente! E nesta casa ninguém tem veneno guardado!

— Era digital - atravessou Treves com prudência. — Um medicamento bastante comum para doenças cardíacas. A criada me disse que a própria senhora March tem um pouco, mas é possível destilá-lo a partir da dedaleira.

Eustace se serenou um pouco e suas sobrancelhas esboçaram um gesto de soberbo sarcasmo.

— E lorde Ashworth saiu às seis da manhã, pegou umas dedaleiras do jardim em destilou um pouco dessa substância? - inquiriu grosseiramente. — Fez isso na cozinha com as criadas ou na despensa de cima com as criadas e os lacaios? Se lhe entendi corretamente, voltou depois para seu quarto, esperou que chegasse o café, envenenou fortuitamente ao cão e logo se envenenou ele... Você está completamente louco, Treves! É um burro e um incompetente! Redija um certificado de falecimento e saia daqui!

Vespasia sentiu uma grande pena de Eustace. Não ia poder suportá-lo. Nunca tinha sido tão forte como ele pensava, possivelmente por isso era tão insuportavelmente pretensioso.

— Eustace - disse em voz baixa-, o doutor Treves não está dizendo que George tomasse por acidente. Como você dise, isso é absurdo. A conclusão inevitável é que alguém o pôs no café antes de levá-lo ao quarto; não é difícil pois todo mundo toma chá.

Eustace virou-se e a olhou, subitamente horrorizado. Sua voz lhe soou rouca e alta.

— Mas isso é... um assassinato!

— Sim, senhor - concedeu Treves com suavidade. — Receio que assim é. Não resta mais remedio que notificá-lo à polícia.

Eustace engoliu em seco e suspirou com expressão desesperada.

— É claro - disse Vespasia. — Possivelmente será você amável de avisar ao inspetor Thomas Pitt. Tem experiência e é muito discreto.

— Como queira, milady - concedeu Treves. — Sinto muito.

— Obrigada. O mordomo lhe dirá onde está o telefone. Eu devo dispor as coisas para que venha a irmã de lady Ashworth.

— Bem - disse Treves. — Será o melhor, se se tratar de uma mulher equilibrada. Uma cena de histeria não ajudaria nada. Como está lady Ashworth? Se quiser que vá vê-la...

— Ainda não, talvez amanhã. Sua irmã é muito equilibrada. Eu acredito que nunca ficou histérica em sua vida, e não porque não tenha tido motivos.

— Bem. Então voltarei amanhã. Obrigado, lady Cumming-Gould.

Primeiro Vespasia iria ver a velha senhora March. Esta se escandalizaria. E isso era virtualmente o único e fragilíssimo fio de perversa satisfação em tudo o que tinha passado: a senhora March teria outra coisa que fazer além de pôr em apuros Tassie.

A senhora March estava em seu toucador. A sala de estar do andar térreo estava reservada para as senhoras (ao menos o tinha estado quando ela governava a casa, assim como a suas filhas, duas sobrinhas e uma prima vinda a menos e portanto dependente dela). Obstinava-se a seu domínio nesta sala octogonal estrategicamente situada, renovando a sufocante decoração rosa, conservando as tapeçarias na cornija da lareira e o piano forte, as fileiras de fotografias de grupo em todas as combinações familiares, e enchendo as numerosas superfícies de adornos de flor seca, frutas de cera, um mocho dissecado e multidão de bordados, toalhinhas, toalhas de mesa e na jardineira havia inclusive uma flores.

A senhora March estava sentada em seu divã com os pés no alto; se tivesse ficado em seu quarto teria estado muito longe do centro da casa e poderia ter perdido algo. Vespasia fechou a porta ao entrar e se sentou no duro sofá de frente.

— Quer que faça trazer outro serviço de chá? - perguntou a senhora March, observando-a com olhar crítico. Estava muito abatida, pareecendo ter dez anos acima.

— Não terei tempo de tomá-lo. Tenho que lhe dar uma notícia.

— Isso não impede que possa tomar o chá. Pode-se beber e falar ao mesmo tempo, você sempre o faz. Tem o rosto muito mal. Sempre tinha gostado de George, à margem de sua conduta. Isto terá sido muito duro para você.

— Assim é - disse Vespasia, lacônica. Não queria falar de sua angústia, e muito menos com Lavinia March, a quem detestava em maior ou menor grau desde há quarenta anos. — Não obstante quando houver contado a você terei que dizer a outras pessoas, para prepará-las para o que sobrevirá.

— Santo Deus, deixa de falar em círculos! É ridiculamente presunçosa, Vespasia. Esta é a casa do Eustace e ele é perfeitamente capaz de fazer o que for necessário. Quanto a Emily, é claro, o que quiser fazer é seu assunto, mas eu opino que quanto antes a mande a casa de sua mãe, melhor.

— Nada disso. Esta tarde mandarei chamar a sua irmã. Mas desconfio que antes veremos chegar seu cunhado, o inspetor.

As sobrancelhas da senhora March se arquearam; eram um pouco grossas, como as do Eustace, só que ela tinha os olhos negros.

— É pena que engoliu os miolos, Vespasia? Não deixarei que um vulgar polícial entre em minha casa. Que seja parente de Emily é uma desgraça, mas não uma carga que estejamos obrigados a suportar.

— Será a menor de todas. Assassinaram ao George.

A senhora March ficou olhando-a boquiaberta. Depois alcançou a campainha de porcelana com adornos florais e a acionou.

— Farei com que sua criada se ocupe de você. Tem que se deitar, tomar uma infusão e alguém trazer sais. Perdeu o juizo. Esperemos que seja passageiro. Deveria ter um companheiro. Sempre disse que passa muito tempo sozinha; é uma presa fácil para influências perniciosas. Isto é muito desagradável. Se o doutor ainda estiver aqui, mandarei-o a seu quarto. -Voltou a tocar a campainha. — Onde demônios se colocou essa estúpida? Não pode vir ninguém quando os chama?

— Pelo amor de Deus, deixa isso em paz! Treves diz que George foi envenenado com digitalina.

— Tolices! E se for verdade, é que tirou a vida em um ataque de desespero. Está bem claro que amava Sybilla.

— Estava engraçado dela – corrigiu- Vespasia. — Era evidente, e não lhe parecia que agora tivesse já alguma importância. — Que não é o mesmo. Os homens como George não se matam por uma mulher, isso deveria saber. Poderia ter se deitado com Sybilla se tivesse querido, e certamente assim foi.

— Não seja vulgar, Vespasia! A vulgaridade está totalmente deslocada!

—Também mataram ao cão - acrescentou Vespasia.

— Do que está falando? Que cão? Quem matou a um cão?

— Quem matou George.

— Mas que cão? E a propósito do que?

— Receio que o seu. O pequeno spaniel. Sinto muito, Lavinia.

—Vê como está escorregando. George jamais teria matado a meu cão. Tinha-lhe muita apreço, se virtualmente me roubou ele!

— É o que queria lhe dizer, Lavinia; alguém os matou aos dois. Martin avisou à polícia.

Antes que a senhora March encontrasse a forma de replicar, a porta se abriu e apareceu um lacaio.

— Sim, senhora?

Vespasia ficou de pé.

—Eu não necessito nada, obrigada. Possivelmente poderia trazer para a senhora March outro serviço de chá. - E dito isto se dirigiu ao vestíbulo caminho da escada.

Emily despertou de um sono tão profundo que ao princípio não pôde recordar como se chamava. O quarto era de puro estilo oriental, tudo em branco e verde, empapelado com motivos de bambu e com umas cortinas de brocado com

crisântemos. O sol não dava nas janelas, mas o quarto estava cheio de luz.

Depois recordou que era de tarde, que estava no Cardington Crescent, que ela e George passavam uns dias com tio Eustace... A realidade a abandonou em uma gélida onda: George tinha morrido. Ficou deitada olhando o teto sem ver, fixos os olhos nas volutas de estuque; poderiam ter sido ondas do mar ou folhas de um ramo.

— Emily.

Não respondeu. Para que falar com alguém?

— Emily?

Levantou-se. Talvez se disssesse algo se distrairia, poderia fugir de seus pensamentos. E esquecer.

Tia Vespasia estava de pé frente a ela, com sua criada atrás. Devia ter estado ali todo o tempo, Emily recordava ter visto seu vestido negro e a touca e o avental brancos antes de fechar os olhos. Tinha-lhe levado uma bebida muito amarga, certamente continha láudano. Por isso tinha conseguido dormir.

— Emily!

— Sim, tia?

Vespasia se sentou na beira da cama e pôs uma mão sobre a de Emily. A mão parecia velha, magra e frágil, manchada pelos anos. De fato, ela mesma parecia velha; seus olhos mostravam anéis escuros e a cútis que durante tanto tempo tinha sido imaculada parecia escurecida.

— Mandei chamar Charlotte para que esteja com você - estava dizendo Vespasia. Emily se esforçou em escutar, em compreender .— Enviei-lhe minha carruagem; suponho que chegará ao anoitecer.

— Obrigada - murmurou Emily automaticamente. Supunha que estava bem que viesse Charlotte. Não importava muito. Ninguém podia mudar nada e ela não queria que a obrigassem a fazer nada, a tomar decisões, a sentir.

Vespasia lhe apertou a mão com mais força. Fazia dano.

— Mas antes virá Thomas, querida - acrescentou.

—Thomas? - repetiu Emily com cenho franzido. — Não deveria lhe ter feito vir! Não o deixarão entrar. Por que demônios avisou Thomas? - teria se transtornado tia Vespasia até o ponto de perder o juizo? Thomas era um policial, e a olhos dos March isso era tão desonroso como ser lojista ou outras indesejáveis mas necessárias profissões como desratizador e desatascador de deságües. De repente sentiu muita pena de que Vespasia, a quem tanto admirava, tornara-se louca, e nada menos que em casa dos March. Apertou-lhe a mão com força. — Tia...

— Querida. - A voz da Vespasia soou débil, como se lhe custasse falar, e seus olhos, com suas esplêndidas pálpebras semicerradas, lutavam para reter as lágrimas. — George foi assassinado, querida. Ele não deve ter percebido nem sentido dor, mas não há dúvida disso. Fiz avisar ao Thomas em sua condição de detetive. Reza para que seja ele quem venha.

Assassinado! Emily vocalizou a palavra, mas a voz a traiu. George? Pobre George! Mas por que ia alguém querer... As respostas lhe foram chegando uma atrás de outra com horror: Sybilla, porque ele a tinha rechaçado nessa briga que Emily tinha conseguido escutar na véspera; ou William, por ciúmes... isso teria sido muito compreensível. Ou, o pior, Jack Radley. Se ele se formou alguma idéia depois da ridícula cena no estufa, que Emily procurava outra coisa que paquerar estupidamente, que ela talvez... pensar nisso pareceu obsceno, espantoso. Ela seria responsável por ter alimentado suas esperanças, de animá-lo a matar ao George!

Fechou os olhos, como se a escuridão pudesse apagar seus pensamentos. Mas ali estavam ainda, e as lágrimas que inundavam suas faces não serviram de nada, inclusive quando apoiou a cabeça no ombro da Vespasia e ela a rodeou com seus braços e por fim deu rédea solta ao pranto que durante horas tinha contido.

 

Pitt retornou pela quente rua poeirenta entre estalo continuado de cascos, assobio de rodas e gritos de uma dúzia de vendedores ambulantes que ofereciam desde flores e fósforos até cordões de bota ou objetos de trapero. Moços de nove ou dez anos gritavam ali onde tinham aberto um caminho entre os excrementos para que os cavalheiros pudessem passar de uma calçada a outra sem sujar as botas e as damas conservar limpa a prisão fortificada de seus vestidos.

O agente Stripe o esperava à entrada da delegacia de polícia.

— Senhor Pitt, estivemos procurando-o por toda parte! Eu lhes disse que tinha ido em busca desse vigarista.

Pitt viu que estava alarmado.

— O que acontece? Descobriu algo sobre o caso Bloomsbury?

Stripe estava muito pálido.

— Não, senhor. É muito pior, de certo modo. Sinto muito, senhor. Seriamente que o sinto.

Pitt se viu assaltado por um frio terrível e repentino: Charlotte!

— O que? - gritou, agarrando ao Stripe com tal força que o outro saltou. Mas não afastava a vista nem mostrava o menor indício de cólera, coisa que assustou ainda mais ao Pitt, até o ponto de que a garganta lhe secar e foi incapaz de articular som algum.

— Houve um assassinato no Cardington Crescent, senhor - disse Stripe. — Certo lorde Ashworth morreu. Lady Vê... lady Cumming-Gould insistiu em pedir que acudisse você em pessoa. E disse que já tinha enviado sua carruagem para recolher à senhora Pitt, senhor. Sinto muito, senhor.

A maré de alívio inundou Pitt, deixando-o à beira do desfalecimento; logo sentiu vergonha por seu egoísmo e uma entristecedora compaixão por sua cunhada Emily. Olhou o rosto sério de Stripe e a achou extraordinariamente agradável.

Afrouxou sua presa.

— Obrigado, Stripe. Foi muito amável em me dizer isso pessoalmente. Lorde Ashworth é... era meu cunhado. -Soava absurdo. Lorde Ashworth cunhado dele!

Stripe tinha urbanidade suficiente para agüentar a risada.

— A esposa de minha irmã se casou...

— Sim, senhor - se apressou a dizer Stripe. — Insistiram em que fosse você. Já há um cabriolé esperando.

— Então, vamos.

Seguiu Stripe por uma dúzia de metros depois da delegacia de polícia, onde uma carruagem de boléia elevada aguardava junto ao meio-fio, cabisbaixo o cavalo, as rédeas frouxas. Stripe lhe abriu a porta e Pitt montou seguido do Stripe, que tinha dado instruções ao cocheiro.

O trajeto não era longo e Pitt mal teve tempo de pensar. Sua mente era um torvelinho, afogada a lógica na aflição que sentia por Emily e a surpreendente sensação de ter perdido algo ele mesmo. Gostava de George; era franco, generoso

e aberto, gostava de viver, quem diabos teria querido sua morte? Um ataque em plena rua teria acreditado, inclusive uma briga em algum clube de cavalheiros ou em algum esporte violento. Mas tinha ocorrido em uma casa, com a família plena!

Por que ia tão devagar a carruagem? Não chegavam nunca; mas quando o fizeram ele não estava preparado ainda.

— Senhor Pitt? - disse Stripe.

—Sim. - Pitt desceu e contemplou a magnífica fachada do Cardington Crescent; as janelas georgianas de perfeitas proporções, três vitrais de través, quatro de cima abaixo, a selaria de pedra, as simples colunas e a formosa porta. Parecia um lugar inexpugnável e acolhedor. Isso o fez franzir o sobrecenho: agora nada era já inviolável.

Stripe pagou ao cocheiro e Pitt se dirigiu à porta principal, para sobressalto de Stripe. A polícia sempre ia pela porta de serviço. Mas isso era algo que Pitt se negava a fazer, embora Stripe não soubesse. Ele só o tinha visto com o mundo criminoso dos bairros pobres, labirintos infestados de ratos como St. Giles, ou com a pequena burguesia, empregados, lojistas e artesãos em busca da respeitabilidade mas em qualquer caso com uma só entrada.

Pitt apertou a campainha e logo apareceu um mordomo na soleira, com semblante sério e sereno. É claro. Vespasia lhe haveria dito que Pitt nunca ia pela entrada posterior. O homem examinou ao Pitt, seu cabelo alvoroçado, os bolsos transbordantes.

— Inspetor Pitt? Entre. Se quer esperar na saleta, a senhora March lhe receberá em seguida, senhor.

— Obrigado. Se não se importar, enviarei ao agente Stripe ao quarto dos criados para que comece ali as pesquisas.

O mordomo titubeou um momento, mas compreendeu que isso era inevitável.

— Acompanharei-o - disse recalcando as palavras, de forma que ambos compreendessem que a criadagem era responsabilidade sua e que sua intenção era exonerá-la em todo o possível.

— Certamente - concedeu Pitt assentindo com a cabeça.

— Então venha por aqui.

O mordomo cruzou com o Pitt o farto recarregado saguão até uma sala repleta de móveis; poltronas muito masculinas, estofados de couro junto a uma escrivaninha de palisandro, mesas de laca japonesa em ousados tons vermelhos e negros, e um sortimento de armas procedentes da Índia, relíquias de algum antigo servidor do Império, dispostas ao acaso nas paredes opostas ao biombo chinês de seda.

Uma vez ali, o mordomo titubeou, ao não saber de que maneira tinha que apresentar a um policial ante seus senhores. Finalmente optou por deixá-lo ali sem dizer nada. Tinha que tirar o Stripe da entrada e conduzi-lo ao quarto dos criados, certificar-se de que não assustasse às garotas mais jovens, que mal tinham quatorze anos, e que o pessoal se desempenhasse dignamente e ninguém falasse quando não lhe tocasse falar.

Pitt permaneceu de pé. A sala era como outras muitas que tinha visto já, típica de sua classe e sua época, salvo que nesta havia um insólito choque de estilos, testemunho de pelo menos três personalidades distintas cujas vontades teriam coincidido na hora de decidir: a simples vista, um homem de fortes opiniões, uma mulher de certo atrevimento cultural e um amante da tradição e herança familiar.

Abriu-se a porta e entrou Eustace March. Era um homem forte e sangüíneo, entre quarenta e cinqüenta anos, enfrentando agora a um conflito de sentimentos que o obrigava a fazer um papel desacostumado.

— Boa tarde...

— Pitt.

—Boa tarde, Pitt. Que tragédia. O doutor é tolo. Não deveria tê-lo feito vir. Trata-se de um assunto puramente doméstico. Meu sobrinho, bom, de fato uma espécie de primo por matrimônio, sobrinho neto de minha sogra... - Viu que Pitt o olhava e se ruborizou. — Suponho que isso já sabe. Enfim, o pobre morreu. - Inspirou e logo continuou: — Me sabe mal dizê-lo, mas seu matrimônio tinha chegado a uma situação insustentável, parece que teve uma depressão e se tirou a vida. Tudo muito horrível. Sua família é um pouco excêntrica. Claro que você não tem que conhecer os outros...

— Conhecia o George - disse Pitt. — E sempre me pareceu um homem muito sensato. E lady Cumming-Gould é a mulher mais sábia que conheci em minha vida.

As faces do Eustace se coloriram ainda mais.

— Não o duvido! Mas você e eu, senhor Pitt, movemo-nos em círculos muito diferentes. O que para você é sensatez pode não sê-lo tanto para mim.

Pitt começou a sentir uma cólera alheia a sua profissão, algo que jurara evitar. Estava habituado à grosseria; isso não tinha que lhe importar. Mas seus sentimentos estavam a flor da pele, porque era George quem tinha morrido. Por isso era tão importante não dar ao Eustace March a menor desculpa para que o afastasse do caso ou, pior ainda, permitir que suas próprias opiniões turvassem seu julgamento. Uma investigação desentupia sempre muito mais que o crime principal; havia multidão de pecados menores, segredos dolorosos, coisas insignificantes e vergonhosas cuja revelação indispunha o que antes era amor, corroendo uma confiança que de outro modo teria suportado todo tipo de feridas.

Eustace o estava olhando, esperando uma reação, vermelho de impaciência.

Pitt suspirou.

— Poderia me dizer o que pode ter causado a lorde Ashworth tanto desespero ou inquietação para tirar a vida? A propósito, como o fez?

— Santo Deus, não o contou esse imbecil do Treves?

— Ainda não o vi, senhor.

— Ah, evidentemente. Com digitalina, um medicamento para o coração que utiliza minha mãe. E disse não sei que tolice sobre as dedaleiras do jardim. Nem sequer sei se agora têm flor. E imagino que ele tampouco. Esse homem é um incompetente!

— A substância se extrai das folhas - indicou Pitt. — Costuma prescrever-se para falhas cardíacas e pulso irregular.

— Ah! Oh! - Eustace se deixou cair em uma das poltronas forradas de couro. — Por Deus, homem, sente-se de uma vez! - disse zangado. — Um assunto muito penoso. Espero pelo bem das senhoras que você seja tão discreto quanto possa.

Minha mãe e lady Cumming-Gould são ambas de idade avançada e, portanto, fracas. Além disso, lady Ashworth está um pouco perturbada. Todos queríamos muito ao George.

Pitt olhou nos olhos, sem saber como romper aquela barricada de pretextos.

Tinha tido que fazê-lo muitas vezes - em geral, a pessoa era forçada a admitir a realidade do assassinato - mas agora era diferente, tratando-se de pessoas muito próximas a ele. Em algum lugar da mansão Emily estava sofrendo.

— O que atormentava tanto a lorde Ashworth para impulsioná-lo a tirar a vida? -repetiu, olhando ao Eustace.

Eustace March permaneceu em silêncio; sua expressão denotava que estava lutando interiormente.

Pitt aguardou. Fosse verdade ou mentira, seria tão mais revelador quanto mais o deixasse amadurecer, embora isso só deixasse ao descoberto algum dos medos do próprio Eustace.

— Lamento ter que dizê-lo - começou por fim -, mas temo que foi a conduta de Emily e... e o fato de que George se apaixonou locamente, e até diria que desesperadamente, de outra mulher. - Meneou a cabeça dando a entender seu menosprezo por aquela loucura. — A conduta de Emily foi... desafortunada, para dizer pouco. Mas não falemos mal dela neste momento terrível - acrescentou, dando-se conta de que sua caridade deveria haver-se feito extensiva também a ela.

Pitt não imaginava George suicidando-se por uma mulher. Seu caráter não encaixava com uma reação tão intensa a um conflito emocional. Pitt recordou quando cortejava Emily; tudo tinha sido bonito e romântico. Sem angústia, sem brigas, sem ciúmes obsessivos ou imaginários.

— Aconteceu algo ontem à noite que precipitasse tanto desespero? - insistiu, tratando de que não se notasse sua repulsa e sua incredulidade.

Eustace estava preparado para isto. Sacudiu a cabeça e franziu os lábios.

—Temi que me forçaria a falar disso. Prefiro não fazer comentários. Basta dizer que ela mostrou seus favores da maneira mais flagrante, onde toda a casa pudesse fixar-se, e a um jovem convidado que está aqui em interesse de minha filha menor.

Pitt arqueou as sobrancelhas.

— Se Emily o fez diante de todos, dificilmente podia ser algo sério.

Eustace esticou os lábios ao falar. Custava-lhe conservar a paciência.

— Foram minha mãe e o próprio George quem o presenciou. Terá você que aceitar minha palavra, senhor... senhor Pitt, de que na boa sociedade as mulheres casadas não se escondem na estufa com cavalheiros de duvidosa reputação e depois voltam arrumando a roupa e com um sorriso embevecido no rosto.

Por um momento, Pitt pensou que isso era precisamente o que faziam. Mas ao pensar no Emily descartou toda trivialidade.

— Senhor March, se os cavalheiros tivessem que matar-se cada vez que uma esposa paquera um pouco com um homem simpático, Londres estaria cheio de cadáveres e toda a aristocracia teria morrido faz séculos. De fato, duvido que tivessem sobrevivido às Cruzadas.

— Tenho certeza de que dada sua posição social, e mais em seu ofício, não pode evitar pensamentos vulgares - disse friamente Eustace. — Mas faça o favor de não expressá-los em minha casa, especialmente em um momento como este. Não tem nada que fazer aqui, inspetor, além de contentar-se com que ninguém agrediu ao pobre George, o que até o mais idiota pode ver! Tomou uma dose do remédio de minha mãe no café da manhã. Possivelmente só pretendia ficar inconsciente e nos dar a todos um bom susto, para que Emily recuperasse o juizo... - Calou, consciente do ceticismo do Pitt e tratou de achar outra saída. Antes havia dito que Jack Radley estava na casa por Tassie, contradizendo-se ao lhe endossar uma má reputação. Ou talvez era correto fazer que uma garota se casasse com um homem assim, só para que este não pudesse estar perto de sua própria esposa.

Pitt ainda não entendia todas as curvas da moral da boa sociedade. Em outro momento teria chegado a sentir pena de Eustace. Suas acrobacias mentais eram ridículas, embora tampouco lhe fossem uma novidade. Mas desta vez sua paciência estava no limite. ficou em pé.

— Obrigado, senhor March. irei ver o doutor e depois subirei pra ver o pobre George. Quando terminar, queria me entrevistar com o resto dos residentes, se for possível.

— Nem pensar! - disse rapidamente Eustace, levantando-se com estupidez. Isso é desnecessário. Emily acaba de enviuvar, meu senhor. Minha mãe é velha e sofreu uma grande comoção; minha filha só tem dezenove anos e é uma moça muito sensível e delicada, como deve ser. E lady Cumming-Gould tem mais anos dos que ela mesma recorda.

Pitt dissimulou um amargo sorriso. Constava-lhe que Vespasia sabia perfeitamente a idade que tinha, e sem dúvida era mais valente que Eustace.

— Emily é minha cunhada - disse quedamente. — Teria vindo vê-la à margem do ocorrido. Mas primeiro quero ver o doutor, se não se importar.

Eustace partiu sem dizer uma palavra. Lamentava a situação em que se havia visto envolvido; sua casa estava invadida e ele tinha perdido o controle dos acontecimentos. Era um fato único e aterrador: estava aceitando ordens de um

policial, em sua própria casa! Maldita Emily! Ela, com seu vulgar ciúmes, tinha sido a causadora de tudo.

Treves entrou tão depressa que certamente teria estado esperando perto dali.

Parecia cansado. Pitt não o conhecia, mas logo gostou dele; as rugas de seu rosto refletiam humor e piedade ao mesmo tempo.

— Inspetor Pitt? - disse arqueando uma sobrancelha. — Sou Treves. - Estendeu-lhe a mão. Pitt a estreitou brevemente.

— Acredita que pode ser suicídio?

— Nem pensar - replicou Treves com aspereza. — Os homens como George Ashworth não roubam veneno e o jogam no café às sete de uma manhã radiante em uma casa alheia, e menos ainda por uma mulher. Se tivesse chegado a fazê-lo, coisa que duvido, teria sido em um ataque de desespero por alguma dívida que não podia pagar, e teria disparado na cabeça com uma pistola. Muito próprio de cavalheiros. E tampouco teria envenenado de passagem um bonito spaniel.

— Como? O senhor March não me disse nada sobre um spaniel.

— É lógico. Ainda trata de convencer-se a si mesmo de que se trata de um suicídio.

Pitt suspirou.

— Será melhor que subamos para ver o cadáver. O médico da polícia o examinará mais tarde, mas suponho que você pode me dizer tudo o que necessito.

— Uma dose mortal de digitalina - respondeu Treves indo para a porta. — O café o dissimulou. Imagino que o policial que está na cozinha já o terá averiguado. O pobre deve ter morrido muito rápido. Suponho que se a gente quer matar a alguém, além de um tiro na cabeça este é o método mais compassivo e eficaz. Apostaria que o estoque da velha senhora está esgotado.

—Tinha muito? - perguntou Pitt, seguindo-o pelo vestíbulo e escada acima até o patamar e o quarto de vestir. Lamentou perceber que George parecia ter adormecido em um quarto diferente do do Emily. Sabia muito bem que era costume entre gente abastada que marido e mulher tivessem seu próprio quarto, mas não teria gostado. Despertar de noite e saber que Charlotte estava sempre a seu lado era uma das coisas boas que mais tinham enraizado em sua vida, um refúgio permanente, uma calidez que lhe dava forças para suportar a frieza de um dia qualquer, inclusive o mais violento e trágico.

Mas não havia tempo agora para fazer comparações nem refletir sobre o muito ou o pouco que significavam as diferenças entre um modo de vida e outro. Treves estava junto à cama e o corpo coberto com um lençol. Descobriu o cadáver e Pitt contemplou o rosto branco como a cera. Eram os traços de George - o nariz reto, fronte larga - mas os olhos estavam fechados e em torno das órbitas havia um tom azulado. Estava tal como o recordava Pitt, mas não parecia que fosse George. A morte era muito real. Olhando-o, não se podia pensar que a alma estivesse presente.

— Sem feridas - disse em voz baixa. George não estava realmente ali, isso era um carapaça, mas lhe parecia uma grosseria falar em tom normal em sua presença.

— Nenhuma - disse Treves. — Não houve briga. Simplesmente alguém toma um café com suficiente digitalina para sofrer um ataque de coração, e um cachorrinho desventurado o prova e morre também.

— Quer dizer, não foi um suicídio - suspirou Pitt. — George jamais teria matado ao cão. Nem sequer era dele. Stripe perguntará os detalhes à criadagem, para saber onde estava o café e quem pôde acessa-lo. Suponho que George era o único que tomava café a essa hora. Quase todo mundo toma chá. Terei que ver os familiares.

— Mau - disse Treves compadecendo. — O assassinato em família é uma das grandes tragédias da condição humana. Sabe Deus o que nos fazemos uns aos outros no que se supõe que é o santuário do lar, e que tão freqüentemente é um purgatório. - Abriu a porta que dava ao patamar. — A velha senhora é uma insolente e uma tirana; não vá acreditar quando lhe disser que é delicada. Não lhe acontece nada salvo os anos que arrasta.

— Para que era a digitalina, então? - Treves encolheu os ombros.

— Não o receitei eu. É das que finge palpitações e sufocos quando a família a envenena; certamente é a única arma que tem para dominar a jovem Tassie. Sem obediência não há domínio, assim convenceu a outro médico para que o receitasse. Nunca perde ocasião de me dizer que lhe salvou a vida, dando a entender que eu a teria deixado morrer. -Treves sorriu sombrio.

Pitt tinha conhecido outras viúvas que dominavam a suas famílias sob a ameaça de um iminente colapso. A avó do Charlotte era uma dama temível, capaz de escurecer qualquer ato familiar com um catálogo da ingratidão de que era objeto por parte da família.

— Acredito que irei vê-la primeiro - observou, oferecendo a mão ao Treves. — Obrigado.

O doutor a estreitou com firmeza.

— Boa sorte - disse, expressando todo seu ceticismo com o rosto.

Pitt fez enviar uma nota ao Stripe sobre a droga e se dispôs a continuar seu trabalho. Pediu ao lacaio que o levasse até a senhora March.

Não se tinha movido do toucador rosa. Apesar de fazer uma tarde muito agradável, a luz estava acesa, o que tornava irrespirável a sala, a diferença do resto da casa, com suas janelas totalmente abertas.

Estava deitada no divã com uma bandeja de chá sobre a mesinha de palisandro, assim como uma complicada garrafa de cristal que continha sais.

Sustentava um lenço sob os olhos como se estivesse a ponto de romper a chorar. A sala estava repleta de móveis e cortinados; Pitt sentiu que lhe faltava o ar. Mas os olhos da anciã olhando por sobre a mão gordinha e brilhante de anéis eram frios como pedras.

— Imagino que é você o policial - disse com repulsão.

— Sim, senhora. - Não o convidava a sentar-se e ele não queria desprezá-la fazendo-o sem que o pedisse.

— Suponho que colocará o nariz nos assuntos alheios e que fará um montão de perguntas impertinentes -prosseguiu a anciã, notando-se em seu cabelo revolto e seus transbordantes bolsos.

Pitt antipatizou com ela, e o semblante inerte de George estava muito próximo para conseguir dominar-se como era habitual nele.

— Espero fazer também algumas pergunta pertinentes - respondeu. — Minha intenção é descobrir quem assassinou o George. - Utilizou a palavra assassinar de propósito, com toda sua crueldade.

Ela esgotou os olhos.

— Pois se não o consegue é que é tolo! Embora me parece que o é.

Pitt a olhou sem pestanejar.

— Imagino que ontem à noite não entrou nenhum intruso na casa, não é, senhora?

— Claro que não! - grunhiu ela, e as comissuras de sua boca apontaram desdenhosamente ao chão. — Mas, que eu saiba, um ladrão de casas não costuma usar veneno...

— Não, senhora. Só cabe deduzir que o fez alguém que estava aqui, e é extremamente improvável que fosse um criado. Assim, fica a família, ou os convidados. Seria amável de me dizer algo sobre os que estão agora mesmo na casa?

— Não é preciso repassar a todos. - A senhora March torceu o gesto. O quarto era um forno, entre o fogo e o sol que esquentava as janelas, mas ela não parecia notá-lo. — Só estão os mais próximos: lorde Ashworth, que era meu primo; lady Ashworth, quem conforme me disseram está mais ou menos aparentada com você. - Deixou cair aquele comentário incrivelmente inteligente e guardou silêncio por uns segundos. Depois, ao ver que Pitt não reagia, finalizou lacônica: — E depois o senhor Jack Radley, um jovem decepcionante... bom, ao menos para meu filho. Embora eu já soubesse, claro.

Pitt mordeu o anzol:

— Saber o que, senhora? - Os olhos dela brilharam.

Pitt notou que o suor lhe escorregava pela pele, mas não teria estado bem tirar a jaqueta no toucador da velha senhora.

— Imoral - disse maldosamente ela. — Não tem um centavo e é muito bonito. O senhor March pensou que seria bom par para a Anastasia. Ora! Ela não precisa casar-se com alguém de bom sangue, lhe sobra. Claro que você não tem nem idéia disto. – Olhou-lhe tendo que forçar o pescoço, mas resolvida a não deixá-lo sentar. Ele era um inferior, e devia recordar-lhe que os policiais e gentinha similar não se sentavam em móveis bons na parte dianteira da casa. Por aí tinha começado a total erosão de valores que agora padecia o país. Se tinha vontade de sentar-se, que o fizesse com a criadagem. — Enfim - prosseguiu -, um homem como Radley nunca escolheria a uma garota simples como Anastasia. Esse cabelo cor de laranja e essa pele cheia de sardas não sai da parte de nossa família! E plana como uma tábua de lavar. Não parece uma mulher. Os homens como Jack Radley se casam por dinheiro, para mostrar esposa em público. E ter uma mulher bonita na cama. Vá! Vejo que o choca!

Pitt não moveu um músculo ao dizer:

— Absolutamente, senhora. Certamente tem razão. Há muitos homens assim, e mulheres que lhes parecem. Salvo, claro está, que além disso gostam de ter um título, se houver essa possibilidade.

A anciã o fulminou com o olhar desejando cortar sua insolência, mas Pitt acabava de dizer o que lhe convinha, e nesse momento mandava a necessidade.

— Ah! Bom, o senhor Radley e Emily Ashworth formam um excelente casal. Atraíam-se como dois ímãs, e o pobre George foi a vítima. Já vê, facilitei-lhe o trabalho. Agora parta. Estou cansada e doente. Hoje sofri uma grande comoção. Se tivesse você a menor noção de urbanidade...

Pitt inclinou a cabeça.

— Passe muito bem, senhora.

Olhou-o com dureza, certa de que o dizia com ironia mas incapaz de precisar até que ponto. O rosto dele era de uma inocência quase insultante. Maldito polícial.

— Sim - disse rancorosa. — Pode ir-se.

Ele sorriu pela primeira vez.

— Obrigado, senhora. Foi muito gentil.

No vestíbulo achou a um lacaio que o estava esperando.

— Lady Cumming-Gould está na sala do café da manhã, senhor. Deseja vê-lo - disse nervoso o lacaio. — Por aqui, senhor.

Assentindo ligeiramente, Pitt o seguiu até a porta, bateu com os dedos e entrou. A sala estava cheia de móveis; o sol dava brilho ao maciço aparador e a enorme mesa. As janelas estavam abertas e do jardim chegava um trilar de pássaros.

Vespasia estava sentada à mesa no lugar que tinha ocupado Olivia em vida.

Parecia fatigada. Tinha os ombros encurvados como Pitt não lhe tinha visto nunca, nem sequer nos tempos em que ela tinha lutado para que o Parlamento aprovasse a lei de meninos pobres. Seus olhos mostraram tanto alívio ao vê-lo, que ele lamentou profundamente não poder ajudá-la. Nam realidade, temia piorar mais a situação.

Vespasia se endireitou com esforço.

—Boa tarde, Thomas. Agrada-me que finalmente seja você quem se encarregue deste... caso.

Pitt ficou sem resposta. A dor era muito intensa e, ao mesmo tempo, falar só como polícial teria sido abominável.

— Mas sente-se de uma vez - lhe ordenou ela. — Não estou de humor para torcer o pescoço tendo que olhá-lo. Suponho que já teria visto o Eustace March e a sua mãe.

— Assim é. – Sentou-se a muito encerada mesa.

— O que lhe disseram? - perguntou ela de sopetão. Não havia tempo para rodeios só porque a verdade era desagradável.

— O senhor March trata de me convencer de que foi um suicídio porque George se apaixonou por outra mulher...

— Bobagens! George se havia engraçado por Sybilla. Comportava-se como um idiota, mas acredito que ontem à noite já se dera conta. Emily o levou a perfeição. Teve todo o bom senso que eu podia ter esperado dela.

Pitt baixou a vista.

— A senhora March diz que Emily e um convidado, Jack Radley, tinham um flerte - disse, levantando de novo os olhos.

— Aquela bruxa! - exclamou Vespasia indignada. — O marido de Emily estava se fazendo de idiota com outra, e sem a menor discrição além disso, um drama que Lavinia teve que suportar também e nunca pôde resolver. Pois claro que Emily fingia estar interessada por outro homem. Que mulher com garra não o teria feito?

Pitt economizou comentários sobre Lavinia March; ambos conheciam o dilema. Um homem podia divorciar-se de sua mulher por adultério; uma mulher não gozava desse privilégio. Tinha que aprender a viver com isso o melhor que pudesse. Esta morte tinha alimentado os medos engendrados pela suspeita, falseado os pensamentos, aumentado até o último traço desagradável.

— Quem é Sybilla?

— A nora do Eustace - respondeu Vespasia cansada. — William March é o único filho varão do Eustace, e meu neto. Disse-o como se isso lhe surpreendesse. — Olivia teve dez filhas, sete das quais viveram. Todas estão casadas salvo Tassie. Eustace quer casá-la com o Jack Radley. Por isso está aqui, para fazer exame, como diríamos.

— Devo supor que ele não merece sua aprovação?

Vespasia levantou suas sobrancelhas finamente arqueadas e seus olhos faiscaram brevemente.

— Para Tassie, não. Não o quer, e ele a ela tampouco. Mas Jack Radley é muito agradável, desde que a gente seja judicioso e não espere muito dele. Há uma coisa que o redime, entretanto: acredito que nunca será um chato, e isso já é mais do que pode dizer-se de muitos jovens socialmente aceitáveis.

— Quem mais está na casa? - Pitt imaginou a resposta, porque se tivesse havido algum outro visitante a senhora March o teria dito. Embora Emily não gostasse, ela nunca a teria escolhido como causa de um suicídio por ter tido outra resposta à mão. Coisas assim tinham desagradáveis conseqüências para a família.

— Ninguém - disse Vespasia. — Lavinia, Eustace e Tassie vivem aqui; William e Sybilla estão de visita durante a temporada. George e Emily tinham que passar aqui um mês, e Jack Radley e eu estamos para três semanas.

Pitt não soube o que dizer. O assassino do George tinha que ser um dos oito citados. Não podia acreditar que fosse a própria Vespasia; e tomara não fosse Emily!

— Será melhor que vá vê-los. Como se encontra Emily?

Pela primeira vez, Vespasia não pôde olhá-lo; inclinou a cabeça e levou as mãos ao rosto. Pitt soube que estava chorando e quis consolá-la. Tinham compartilhado no passado muitos sentimentos: ira, piedade, esperança, derrota. E agora pena. Mas ele não deixava de ser um policial cujo pai tinha sido guarda-florestal, e ela era a filha de um duque. Não se atrevia a tocá-la, e quanto mais se preocupasse com ela mais podia lhe doer se transpusesse os limites e dava a ela

motivos para repreendê-lo. Ficou segurando as mãos, vendo a velha dama transida de pena e à beira do pranto. O que podia lhe dizer? Que procuraria mascarar as coisas, ocultar a verdade se esta fosse muito dolorosa? Não o teria acreditado, nem teria querido que o fizesse. Nunca se teria traído a si mesma, e esperava outro tanto dele.

O instinto pôde com a razão e Pitt lhe tocou suavemente no ombro. Estava extraordinariamente magra, apesar de de pé parecer muito alta; tinha os ossos delicados. Flutuou no ar um aroma de lavanda.

Depois Pitt saiu da habitação.

No vestíbulo havia uma garota de uns vinte anos com o rosto muito pálido e salpicado de sardas. Não tinha nada da formosura com que Vespasia tinha deslumbrado a uma geração, mas era igualmente magra e podia intuir-se certa reminiscência nas maçãs do rosto altas e as pálpebras cheias. Olhou Pitt entre horrorizada e curiosa.

— Senhorita March? - inquiriu.

— Sim, sou Tassie March... Anastasia. Você deve ser o policial de Emily. – Era uma afirmação, e assim era surpreendentemente lacerante.

— Posso falar com você?

Ela estremeceu um pouco; sua repulsa não estava dirigida a Pitt mas motivada pela situação. Tinha havido um assassinato e o dever de um policial era lhe perguntar.

— É claro.

Tassie se dirigiu para o gabinete, uma sala fresca em tons verdes e prata, muito diferente do sufocante toucador rosa. Se em um transparecia o gosto particular da velha senhora March, no outro devia ser o da Olivia, que, por alguma razão, Eustace tinha permitido deixar tal qual.

Tassie lhe ofereceu assento enquanto se sentava por sua vez em um dos sofás verdes, juntando os pés e as mãos como lhe tinham ensinado a fazer.

— Suponho que tenho que ser franca - comentou, olhando o vestido de musselina. — O que quer saber?

Agora que tinha chegado o momento, havia muito pouco que lhe perguntar, mas se Tassie era como a maioria das jovens de boa família, passaria grande parte do tempo em casa sem nada que fazer, de modo que podia ser muito observadora. Pitt não sabia se a tratava com delicadeza, com rodeios ou com simplicidade. Então lhe olhou os olhos e se disse que certamente tinha mais da parte de sua mãe que da de seu pai.

— Você acha que George estava apaixonado por sua cunhada? —disse sem preâmbulos.

Ela arqueou as sobrancelhas, mas conservando a compostura com o aprumo de uma mulher experimentada.

— Não. Mas ele sim achava que estava - respondeu. — George teria superado. Entendo que essas coisas passam de vez em quando... Eu diria que Emily suportou muito bem. Acredito que eu não teria agido com tanta serenidade se tivesse estado apaixonada. Mas Emily é muito sensível, mais que muitas mulheres e imensamente mais que muitos homens. E quanto ao George... - Os olhos se encheram de lágrimas. — George era tão simpático. Me perdoe. - Fungou.

Pitt procurou e extraiu o único lenço limpo que tinha e o entregou. Ela o pegou e assoou ruidosamente.

— Obrigada.

— Sei como era George - disse ele, rompendo o silêncio antes que se convertesse em um obstáculo. — O que me diz do senhor Radley?

Tassie ergueu os olhos com um sorriso aquoso.

— É bastante aceitável. De fato, desde que eu não tenha que me casar com ele, até poderia gostar muito dele. Faz-me rir muito... ou o fazia. - Ficou séria.

— Mas você não deseja casar-se com ele.

— Absolutamente.

— E ele?

— Eu diria que tampouco. Jack não me quer, se é que se refere a isso. Mas eu herdarei um dinheiro, e acredito que ele não tem um centavo.

— É você muito candida. - Era quase pior que Charlotte, e Pitt sentiu vontade de protegê-la de toda a angústia que sem dúvida teria que padecer.

— Não se deve mentir à polícia em assuntos importantes - disse com sinceridade. — Tinha muito apreço por George, e gosto muito de Emily.

— Alguém que estava aqui o assassinou.

— Sim. Disse-me isso Martin, o mordomo. Parece impossível. Conheço-os todos há anos, bom, menos ao senhor Radley, e por que demônios ia ele matar ao George?

—Talvez imaginou que Emily se casaria com ele se George morresse.

Tassie o olhou.

— Para isso teria que estar louco! - Depois pensou melhor e compreendeu que havia outras alternativas. —Mas suponho que seja possível. Há certas pessoas que não deixam transparecer o que sentem, embora se observe como fazem as coisas cotidianas, a forma de comer, falar de trivialidades, rir um pouco, jogar a algo, escrever cartas. Há um modo de fazer todas estas coisas, e se aprende de pequeno, como os passos de um baile. Não tem por que significar nada. Debaixo disso se pode ser qualquer pessoa. É uma espécie de uniforme.

— É você muito perspicaz. Como sua avó.

—A avó Vespasia? - perguntou ela na defensiva.

— É claro.

— Obrigada. - Suspirou de alívio. — Não me pareço em nada aos March. Descobriu algo?

— De momento não.

— Já terminamos? Queria ir ver como está Emily.

— Faça-o. Vou ver se encontro seu irmão.

— Estará na estufa. Tem ali seu estúdio. - Ficou em pé e Pitt a imitou por cortesia.

— De pintor?

— William é artista. É muito bom. Têm exposto alguns de seus quadros na Royal Academy - disse com orgulho.

— Obrigado. Irei procurá-lo.

Tão logo Tassie se foi, Pitt foi para a porta envidraçada, para as trepadeiras e lírios. O ar da estufa estava impregnado de umidade e de uma forte fragrância de flores exuberantes. O sol da tarde castigava as janelas convertendo-o em uma selva equatorial. No inverno um gigantesco forno mantinha uniforme a temperatura, e um lago a umidade requerida.

William March estava onde Tassie lhe havia dito, de pé ante seu cavalete, pincel em mãos e com o sol tirando reflexos avermelhados de seu cabelo. Tinha o rosto em tensão, totalmente absorto na imagem da tela: uma cena rural cheia de sol e de árvores frágeis, quase etéreos, como se não só a primavera mas também o próprio jardim pudesse desvanecer-se. Pitt não necessitou de sua experiência em recuperar quadros roubados para saber que era bom.

William não o ouviu até que ficou a um passo.

— Boa tarde, senhor March. Perdoe que o interrompa, mas devo lhe fazer algumas perguntas sobre a morte de lorde Ashworth.

William se sobressaltou porque sua concentração era absoluta; depois deixou o pincel e olhou tristemente ao Pitt.

— O que quer saber?

Muitas coisas passavam pela cabeça do Pitt, mas ao olhar aquele rosto inteligente e vulnerável, a delicada boca, os olhos de azougue, desprezou-as por torpes e inclusive brutais. Que outra coisa ficava por dizer?

— Acredito que já saberá que lorde Ashworth foi assassinado - começou.

— Suponho que assim é -concedeu William com relutância. — Não me ocorre de que forma possa ser um acidente.

— Não pensou que pudesse tratar-se de um suicídio? - disse Pitt, recordando os impetuosos esforços de Eustace.

— George não se teria tirado a vida. - Contemplou a tela do cavalete. — Não era desse tipo de homens... - Calou e seu rosto pareceu emagrecer ainda mais, consumido pela pena.

Era nem mais nem menos o que Pitt tinha imaginado. William era imensamente menos hipócrita e menos presunçoso que seu pai. Na hora gostou dele.

— Sim, é o que eu pensava - concedeu.

William guardou silêncio uns instantes e então recordou algo.

— Claro... Tinha esquecido. Você é cunhado de Emily, não é? Sinto muito. É tudo muito... - procurou expressar o que sentia, mas não pôde - muito complicado.

— Receio que a coisa não vai melhorar - disse honestamente Pitt. — Devo pensar que alguém desta casa é o assassino.

— É lógico. Mas não posso lhe dizer quem nem por que. - Voltou a pegar seu pincel e ficou a trabalhar, dando um toque de Siena às sombras de uma árvore.

Mas Pitt ainda não queria partir.

— O que sabe você do senhor Radley?

— Muito pouco. Meu pai quer casá-lo com Tassie porque pensa que a família do Jack poderia lhe dar um título. Temos muito dinheiro, já sabe, a indústria. Meu pai quer ser respeitável.

— É claro. - Pitt se surpreendeu com sua franqueza. Não havia o menor esforço de proteger à família. — E isso seria possível?

— Eu acredito que sim. Tassie é um bom partido. Jack Radley dificilmente acharia algo melhor; as herdeiras da aristocracia podem permitir um título, e os americanos não se conformam com menos. Ou, para ser exato, suas mães. - Continuou trabalhando nas sombras, olhando o marrom Vandyck, descartando-o e optando por um ocre escuro.

— E Emily? - perguntou Pitt. — Não tem mais dinheiro que a senhorita March?

William ficou imóvel.

— Agora que George morreu, sim. - Deu um pulo. — Mas Jack tem muita experiência com mulheres, se for verdade a metade de sua fama, para acreditar que Emily queira casar-se com ele por um par de noites de flertes, sobre tudo se George se comportava como um idiota. Pode ser que você não saiba, mas na boa sociedade uma mulher casada tem pouco que fazer além de fofocar, vestir-se à última moda e flertar com outros homens. É sua única fonte de entretenimento. Nem sequer um idiota toma isso a sério. Minha esposa é muito bela e flerta desde que a conheço.

Pitt o olhou mas não viu que estivesse doído, não havia cólera nem consciência de medo enquanto o dizia.

— Entendo.

— Não, você não entende - disse William. — Acredito que você não se aborreceu nunca.

— É certo - reconheceu Pitt. Nunca tinha tido tempo para isso; a pobreza e a ambição não o permitiam.

—Tem você sorte, ao menos nesse aspecto.

Pitt voltou a olhar a tela.

—Você tampouco se aborrece - disse.

William se permitiu um sorriso, um brilho fugaz.

— Obrigado, senhor March. – Afastou-se uns passos. — Não vou incomodá lo mais, de momento.

William não disse nada. Tinha voltado para seu trabalho.

Para Stripe as coisas tampouco estavam sendo fáceis; não tinha sido recebido pela criadagem melhor que Pitt no gabinete. A cozinheira o olhou com hostilidade. Tinha passado a hora do almoço, deveria ter desfrutado de um pouco de tempo livre antes de ficar a pensar no jantar, e gostava de sentar-se com os pés no alto e fofocar com a governanta e com as criadas das convidadas. Sempre havia escândalos que trocar, e especialmente hoje sentia a urgente necessidade de expressar suas emoções. Era uma mulher roliça e competente, orgulhosa de seu trabalho, mas passar o dia de pé era mais do que alguém podia pedir a uma pessoa.

— As veias me doem horrores! - confiou à governanta, uma mulher bojuda da mesma idade. — Mas não penso dizer a essas criadas petulantes! Não sei o que acreditam que são. Já não há a disciplina de quando eu era jovem. Eu sim sei como levar uma casa.

— Tudo vai de mal a pior - concedeu a governanta. — E ainda por cima temos à polícia em casa. Aonde iremos parar?

— À demissão, a isso. - A cozinheira meneou a cabeça. — A metade do pessoal despedido, note no que lhe digo, senhora Tobías.

— Você tem razão, senhora Mardle, toda a razão - disse sabiamente a governanta.

Encontravam- se na sala de estar desta última. Stripe estava ainda no quarto da criadagem, onde comiam e se reuniam para conversar quando suas obrigações o permitiam. Sentia-se desconfortável, porque era um mundo que desconhecia e ali era um perfeito intruso. O aposento estava impecável; o chão era esfregado toda manhã antes das seis, pela criada de treze anos. A porcelana abarrotava cômodas e despensas, e cada serviço valia um ano inteiro de seu salário. Havia potes de conservas e geléias, recipientes de farinha, açúcar, aveia e outras provisões, e na despensa Stripe viu hortaliças amontoadas. Havia um descomunal fogão econômico de chumbo negro com sua fileira de fornos e, ao lado, os baldes para o carvão. É claro, os caldeirões, pias, pranchas de lavar e rolos de pau de macarrão estariam no tanque, e os varaus de arejar subidos até o teto mediante polias e cheios de roupa limpa.

Na cálida e cheirosa cozinha, Stripe se achava agora frente a uma série de criadas e lacaios; todos rígidos e atentos, imaculados; eles de libré, elas com vestido negro de pano e touca e avental branquíssimos, os das criadas debruados nas pontas dos pés que muitas damas de classe média teriam possuído com agrado.

Stripe pensava que a mais bonita era a criada da senhora da casa, Lettie Taylor, mas esta parecia olhá-lo com mais desdém que as outras. As damas convidadas tinham vindo, lógicamente, com sua própria criadagem. Todas estavam ali salvo Digby, a criada de lady Cumming-Gould, que tinha sido escolhida para acompanhar à nova viúva, talvez porque fosse a mais velha e a consideravam a mais judiciosa.

Um tanto desconforável sob o olhar hostil dos criados, Stripe lambeu seu lápis, fez as perguntas obrigatórias e anotou as respostas em seu caderno. Não tirou nada em claro salvo que as bandejas tinham sido preparadas e deixadas a noite anterior na despensa do piso de cima, onde diariamente se preparava o chá - café, no caso de lorde Ashworth. Aquela manhã tinha havido uma inusitada confusão e a despensa se enchera de vapor, sem que ninguém atendesse os hervidores, durante uns minutos. Ao menos em teoria, qualquer um podia ter entrado às escondidas e envenenado o café.

Stripe pediu um quarto privado e lhe mostraram a despensa do mordomo, que na realidade era uma sala de estar para seu uso pessoal. Ali interrogou a todos os membros do serviço. Pediu - com elogiável sutileza, pensava ele - toda a informação que pudessem ter sobre relações no seio familiar, entradas e saídas; e não tirou nada que suas próprias conjeturas não lhe tivessem feito deduzir. Começou a perguntar-se se se identificavam com seus senhores até o extremo de defender sua própria honra, seu status social na pequena comunidade que formavam dentro da casa.

Finalmente, ao receber a nota de Pitt referente à droga, pediu ao Lettie Taylor que o acompanhasse ao quarto da senhora March para lhe mostrar o armarinho dos medicamentos, e qualquer outro estojo de primeiro socorros que houvesse na casa.

Ela penteou um pouco o cabelo e alisou o avental sobre os finos quadris.

Para o Stripe, que se ruborizou um pouco ao pensar nisso , Lettie era a garota mais bonita e agradável que jamais tinha visto. Desejou que a investigação se prolongasse eternamente ou, pelo menos, várias semanas.

Seguiu-a submisso pela escada de serviço, notando o gesto de sua cabeça, e o sussurro da saia, e ao chegar à despensa se deu conta de que estava fantasiando. A garota teve que falar duas vezes para que ele decidisse por fim dar uma olhada às mesas onde descansavam as bandejas.

— Onde estava a de lorde Ashworth com o café? - perguntou, pigarreando dolorosamente.

— Não me escuta? - disse ela meneando a cabeça. — Aí, já o disse. – E indicou ao extremo da mesa mais próxima à porta.

— Era o normal? Quero dizer... - Os olhos do Lettie eram como o céu sobre o rio em um dia do verão. Stripe tossiu e tentou outra vez. — Quero dizer, punha-as você sempre no mesmo lugar, senhorita?

— Essa em particular sim - respondeu ela, aparentemente alheia a seus olhares. — Porque levava café, e todas as demais chá.

— Me conte outra vez o que acontece toda manhã. - Ela já o havia dito, mas Stripe queria ouvi-la outra vez e não lhe ocorriam mais perguntas importantes.

Lettie repetiu a história e ele anotou tudo de novo.

— Obrigado, senhorita - disse educadamente, fechando a caderneta e metendo-a no bolso. — Agora, se for amável, me mostre o estojo de primeiro socorros da senhora March.

Ela empalideceu um pouco; a súbita lembrança da morte a tinha feito esquecer o ressentimento provocado pela presença da polícia na casa.

— Como não. - Lettie o fez cruzar a porta de pano verde até o patamar principal e depois ao quarto da velha March. Bateu, e vendo que ninguém respondia a abriu e entraram os dois.

Stripe jamais teria podido imaginar um aposento igual. Era tão rosa e branco como uma flor de macieira. Em qualquer lugar que olhasse havia adornos extravagantes: rendas, toalhas de mesa, fitas, fotografias com molduras, um sufocante mar de almofadas, e cortinas de veludo rosa com festões de forma que se visse o gancho dos babados.

Stripe ficou sem fala; o ar parecia pesado e quente, se entupia nos pulmões.

Torpemente, temeroso de deixar um grande rastro, passou nas pontas dos pés pelo tapete rosa seguindo ao Lettie para o matizado aparador pintado de rosa e branco.

Ela abriu um caixote pequeno e olhou em seu interior com expressão séria.

Stripe ficou atrás, cheirando o ligeiro aroma floral de seu cabelo, e olhou o pequeno espaço repleto de frascos, cilindros de papel e pastilhas em cartão.

— Está aí a digitalina? - perguntou rompendo o silêncio.

— Não, senhor Stripe - disse ela quedamente, trêmula a mão sobre a gaveta. — Sei o que há em cada frasco; a digitalina não está aqui.

Ao ver que estava assustada, Stripe quis tranqüilizá-la, lhe prometer que cuidaria dela, que se ocuparia pessoalmente de que ninguém lhe fizesse mal. Mas isso a teria ofendido tanto que a idéia lhe foi até dolorosa. Sua temeridade teria escandalizado à garota. Sem dúvida devia ter admiradores (também esse pensamento lhe foi muito desagradável).

— Tem certeza? - perguntou com tom formal. — Não estará em outra gaveta, ou na mesinha de noite? - Olhou em redor. Entre aquele mar de dobras e adornos podia se ocultar uma farmácia inteira.

— Não - disse Lettie. — Limpei este quarto esta mesma manhã. A digitalina desapareceu, senhor Stripe. Eu... - estremeceu.

— Sim? - disse ele esperançado.

— Nada.

— Obrigado, senhorita. - Foi para a porta, sempre com cuidado de não danificar nada. — Então acredito que isso é tudo, no momento. Será melhor que envie uma mensagem ao senhor Pitt.

Ela tomou ar.

— Senhor Stripe...

— Sim, senhorita? - Ele deu a volta, consciente de que o sangue lhe ardia nas faces.

Ela tratava de esconder seu medo, mas seus olhos a delataram.

— Senhor Stripe, é verdade que lorde Ashworth foi assassinado?

— É o que pensamos, senhorita. Mas não se apure, cuidaremos de você. E acharemos ao culpado, dê como feito. - Já o havia dito. Agora esperou a reação dela.

Era evidente que ela sentia um grande alívio; mas logo se lembrou de quem era, de sua posição, da lealdade devida. Levantou o queixo.

— É claro - disse com dignidade. — Obrigada, senhor Stripe. Bem, se não houver nada mais, continuarei com meu trabalho.

— Sim, senhorita - disse ele, e a contra gosto teve que deixar que lhe levasse de novo abaixo para reatar também ele seus afazeres no quarto do mordomo.

Pitt viu Sybilla March, e tão logo ela entrou na habitação compreendeu por que George se conduziu de maneira tão amalucada. Sybilla era formosa, vivaz e sensual.

Seu rosto tinha uma calidez especial, seus movimentos uma graça diferente da fria elegância que estava na moda. Mas, apesar de todas as curvas de seu corpo, a fragilidade do esbelto pescoço e o reduzido de suas pulsos a faziam parecer vulnerável e evitaram que ele sentisse a cólera que queria sentir.

Sybilla se sentou no sofá verde onde Tassie o tinha feito uma hora antes.

— Eu não sei nada, senhor Pitt - disse antes de que ele pudesse perguntar. Tinha os olhos nublados, como se tivesse estado chorando, e dava a impressão de estar tensa de medo. Mas tinha havido um assassinato, e quem o tivesse cometido continuava estando na casa. Só um néscio não teria tido medo.

—Talvez não valorize suficiente o que sabe, senhora March - disse ele enquanto tomava assento. — Suponho que qualquer um teve oportunidade para pôr digitalina no café de lorde Ashworth. Terá que enfocar isso a partir de quem pode desejar fazê-lo.

Sybilla não disse nada. Os dedos de suas brancas mãos brilhavam pelo esforço de tê-las apertadas.

Pitt achou extraordinariamente difícil seguir adiante. Não queria ser brutal, mas ir dando rodeios a temas dolorosos não serviria de nada, como não fora para prolongar a naufraga.

— Lorde Ashworth estava apaixonado por você? - disse de sopetão.

Olhou-o como se a pergunta a tivesse sobressaltado, apesar de que devia saber que era inevitável. Houve um longo silencio antes de que respondesse, tão longo que ele quase repetiu a pergunta.

— Não sei - disse ela com voz rouca. — O que pretende um homem quando diz "a quero"? Possivelmente haja tantas respostas como homens no mundo.

Era uma resposta que ele não tinha previsto. Pitt esperava uma confissão morta de calor, ou possivelmente desafiadora, ou inclusive uma negativa. Mas aquela resposta filosófica que era uma pergunta em si mesma lhe deixou perplexo.

— Amava-o você? - perguntou com mais descaramento do que pretendia expressar.

Sybilla esboçou um sorriso fugaz, e ele suspeitou que significava muitas coisas que ele nunca poderia compreender.

— Não. Mas eu gostava muito dele.

— Conhecia seu marido a verdadeira natureza de seu interesse por lorde Ashworth?

— Sim - admitiu ela. — Mas William não é ciumento, se é que está pensando nisso. Na boa sociedade nos relacionamos muito. George não era o primeiro homem que me achava atraente.

Pitt acreditava. Mas que William fosse ou não ciumento já era outra questão. Até que ponto estava William à corrente das coisas? Ignorava aquela aventura, ou era de verdade um marido complacente? Acaso não havia motivo algum de preocupação? Isso não podia perguntar a Sybilla.

— Obrigado, senhora March - disse educadamente.

Agora não podia demorar mais. Tinha que ir ver Emily e compartilhar sua angústia. Levantou-se pedindo desculpas e deixou a Sybilla a sós no gabinete verde.

No vestíbulo procurou um lacaio e pediu que o levasse para ver Emily. O homem se mostrou resistente, como se tivesse mais respeito pela dor alheia que pelas necessidades da investigação. Mas ao final, com bom senso, o lacaio o levou escada acima até o patamar, com suas jardineiras de samambaias, e bateu na porta do quarto de Vespasia.

Abriu-lhe uma criada de meia idade e rosto simples e inteligente, agora crispado pela compaixão. Olhou ao Pitt sombriamente, disposta a fazer valer sua posição. Protegeria Emily a toda custa, como ele deduziu pela postura de seus ombros e pés bem plantados em terra.

— Sou Thomas Pitt - disse, bastante alto para que lhe ouvisse Emily. — Minha esposa é irmã de lady Ashworth. Ela não demorará, mas antes devo falar em pessoa com lady Ashworth.

A mulher duvidou, olhou-o de cima abaixo e por último tomou uma decisão.

— Muito bem. Suponho que será melhor que entre.

Emily estava endireitada na cama, vestida de azul escuro. O cabelo lhe caía pelas costas e estava quase tão pálida como os travesseiros em que repousava. Tinha os olhos muito afundados.

Pitt se sentou na cama e tomou uma mão entre as suas. Pareceu-lhe inerme e miúda como a de uma menina. Era inútil dizer que sentia muito. Ela já devia sabê-lo, notá-lo em seu olhar e no contato de suas mãos.

— Onde está Charlotte? - murmurou ela com voz trêmula.

— A caminho. Tia Vespasia lhe enviou sua carruagem; não demorará. Mas tenho que lhe perguntar umas coisas. Tomara não tivesse que fazê-lo.

— Sei - Emily não pôde conter mais tempo as lágrimas. — Santo céu, acha que não sei!

Pitt notou a presença da criada atrás dele, alerta e na defensiva, disposta a expulsá-lo.

—Alguém que está nesta casa matou deliberadamente ao George. Tenho que averiguar quem o fez, Emily.

Olhou-o. Possivelmente já tinha pensado nisso ou podia ter descartado qualquer outra possibilidade, mas não tinha confrontado o fato em toda sua crueldade.

— Isso significa alguém da família, ou Jack Radley!

— Sei. É claro poderíamos descobrir algum motivo entre a criadagem, mas eu não acredito.

— Não seja absurdo, Thomas! Por que quereria algum dos criados do tio Eustace matar ao George? Há um mês nem sequer o conheciam. Além disso, que razão teriam para matar a alguém? Seria uma estupidez.

— Então tem que ser um de vocês oito - disse ele, observando sua reação.

Emily expulsou o ar lentamente.

— Oito? Eu não, Thomas! Não pensará que...! - Parecia a ponto de desmaiar, inclusive recostada nos travesseiros como estava agora.

Pitt lhe apertou a mão.

— Claro que não. Tampouco acredito que fosse tia Vespasia. Mas tenho que averiguar quem o fez, e isso implica averiguar a verdade de muitas outras coisas.

Ela não respondeu. Pitt notou que a criada retorcia as mãos no avental.

Abençoou em silencio à mulher por sua insônia, e a Vespasia por lhe haver encarregado a missão.

— Emily, acha que Jack Radley podia ter abrigado a esperança de que se casasse com ele, se fosse livre?

— Não... – Falhou-lhe a voz e seus olhos deixaram de olhá-lo. — Ao menos eu não lhe dava pé. Só flertei com ele um pouquinho. Isso é tudo.

Pitt pensou que não era toda a verdade, mas agora não tinha importância.

—Há algo mais? - insistiu.

—Não! - Então se deu conta de que ele não estava pensando em Jack mas nos outros. — Não sei. Ninguém tinha motivos para matar ao George, que eu saiba. — Não pôde ser um acidente, Thomas?

— Não.

Emily olhou a mão, ainda na dele.

— Poderia ser que o veneno fosse pensado para outro, e não para o George?

—Mas quem? Alguém mais toma café em jejum?

—Não - sussurrou.

Não era preciso expor a conclusão; ela a compreendia tão bem como ele.

— O que me diz de William March? Pôde sentir-se tão ciumento para matar ao George por suas atenções por Sybilla?

— Não acredito - disse ela. — Dava a impressão de que nem sequer o tinha notado. Eu acredito que só lhe importam seus quadros. Claro que... - Seus dedos se fecharam em torno dos de Pitt. Thomas, ontem à noite ouvi o George e a Sybilla discutindo, e quando George subiu antes de ir deitar se, entrou para ver-me e... - Lutou por dominar-se. —...me comunicou que o caso com Sybilla tinha terminado. Bom, não diretamente, claro. Isso teria sido como admitir que havia algo. Mas nos entendemos mutuamente.

— Diz que discutiu com a Sybilla?

— Sim.

Não tinha sentido lhe perguntar se a discussão tinha sido o bastante violenta para fomentar o assassinato: ela não podia responder e, no caso de fazê-lo, sua resposta não teria significado nada.

Pitt se levantou e lhe soltou a mão suavemente.

— Se lhe ocorre alguma coisa, faça que me avisem. Não posso deixar nenhum fio solto.

— Sei. Direi-lhe isso.

Ele lhe sorriu ligeiramente para suavizar o que havia dito e tentar jogar um magro cabo para salvar a distância entre o policial e o homem.

Ela engoliu em seco, e as comissuras de sua boca formaram um esvaído sorriso a modo de resposta.

Foi uma hora mais tarde que a porta do dormitório se abriu outra vez para que entrasse Charlotte. Não disse nada, só se aproximou da cama, sentou-se, estendeu a mão e abraçou Emily deixando que chorasse quanto fosse preciso, balançando-a ao mesmo tempo que murmurava velhas palavras de consolo, coisas de quando eram meninas.

 

Quando Emily se recostou por fim no travesseiro seus olhos estavam inchados e com olheiras, e seu formoso cabelo todo desgrenhado. Vê-la assim fez com que Charlotte voltasse para a realidade da morte e o medo de um modo mais violento que todas as palavras ou lágrimas imagináveis.

Começou pela ajuda prática que sabia era o único modo de avançar para uma cura real. Fez soar a campainha.

— Não necessito de nada - disse Emily.

— Equivoca-se - respondeu Charlotte com firmeza. — Necessita de uma xícara de chá, e eu também.

— Eu não. Se tomo algo vomitarei.

— Nada disso. Mas o fará se segue chorando assim. Já basta por agora, Emily. Temos coisas que fazer.

Emily ficou furiosa; toda sua angústia e seu medo explodiram em forma de ressentimento contra Charlotte, porque ela estava a salvo, agasalhada por seu matrimônio, e para ela isto era uma aventura mais. Viu-a sentada na cama com gesto de complacência, e a odiou por isso. Fazia só uma hora que levaram o cadáver do George, e Charlotte tinha coisas que fazer! Deveria ter estado destroçada, como estava Emily.

— Assassinaram a meu marido esta manhã - disse com dureza. — Se a única coisa que sabe fazer é exercer sua curiosidade e sua vaidade, então prefiro que volte para sua casa e continue com seus trabalhos domésticos ou o que seja que faça quando não tem outra vida onde se intrometer.

Charlotte teve a sensação de ter sido esbofeteada. O sangue avermelhou seu rosto e os olhos lhe arderam. Se sufocou uma réplica foi só porque não achou palavras. Depois inspirou fundo e pensou na dor do Emily. Sua irmã era mais jovem que ela; os sentimentos de amparo voltaram para sua mente em um amontoado de imagens; Emily sempre era a pequena, a última em alcançar os passos para a maturidade. Emily a tinha invejado e admirado, tratando sempre de imitá-la; também Charlotte tinha ido um passo por trás de Sarah.

— Quem matou ao George? - perguntou.

— Não sei! - exclamou Emily.

— E não acha que seria melhor averiguá-lo o mais rápido possível, antes que quem o tenha feito consiga que as suspeitas recaiam ainda mais sobre você?

Emily abriu a boca e empalideceu ainda mais.

Nesse instante se abriu a porta e apareceu Digby. Ao ver o Charlotte sua expressão se endureceu. Mas Charlotte não tinha esquecido seus anos na casa paterna, quando estava acostumada a ter criada, e o hábito reapareceu imediatamente.

— Seria amável de nos trazer uma bandeja de chá? - disse a Digby. — E uns doces para acompanhar.

— Eu não quero nada - resmungou Emily.

—Pois eu sim. - Charlotte se forçou a sorrir e se despediu do Digby com um gesto. A criada se retirou obediente, mas era claro que adiava sua opinião sobre Charlotte.

Charlotte se sentou de frente à Emily.

— É preciso que lhe repita o muito que o sinto por ti, quão horrorizada estou?

— Não, obrigada, isso não serviria de nada - replicou Emily.

— Então deixa que saiba como estão as coisas, o suficiente ao menos para evitar outra tragédia. Porque se pensar que quem assassinou ao George não pretende que culpem a ti, é uma iludida.

— Eu não o fiz - sussurrou Emily.

Charlotte se dominou com dificuldade.

— Sei - disse com voz trêmula, e tossiu para tratar de dissimular. — Tem idéia de quem pôde fazê-lo? O que me diz dessa Sybilla? Tiveram alguma briga? Ou seu marido... Não me disse seu nome. Ou tinha outro amante?

Emily deixou atrás a ira para concentrar-se na questão, mas logo se abandonou novamente à angústia e as lágrimas contidas. Charlotte esperou, agüentando a vontade de estreitá-la entre seus braços. Emily não necessitava compaixão, mas ajuda prática.

—Sim - disse Emily ao cabo. — Ontem à noite discutiram, justo antes de ir deitarmos. – Assoou-se com fúria, colocou o lenço sob o travesseiro e procurou outro.

Charlotte lhe entregou o seu.

Digby abriu a porta e entrou levando uma bandeja com um bule de porcelana floreada, um prato de pães-doces rangentes, manteiga e geléia de morango.

— Quer que sirva, senhora? - perguntou.

Charlotte aceitou.

— Sim, por favor. E olhe se pode trazer alguns lenços.

— Sim, senhora. - O rosto de Digby se relaxou. Possivelmente Charlotte não era tão má, depois de tudo.

Charlotte estendeu à Emily uma xícara fumegante e passou num pão-doce manteiga e geléia.

— Come - lhe aconselhou. — Devagar. E mastiga bem. As duas necessitaremos de forças.

Emily obedeceu.

— Chama-se William - disse, respondendo à pergunta anterior, uma vez que Digby saiu do quarto. — E imagino que sim pôde matar George, mas não parece que se importasse com Sybilla. Nem sequer sei se observou até onde tinha chegado a coisa. Pode ser que Sybilla se comporte sempre assim.

— Sabe você? - Charlotte odiava perguntá-lo, mas aquilo podia estar espreitando seus pensamentos até que tivesse uma resposta.

Emily só duvidou um instante.

—Imagino. Mas tudo tinha acabado! George veio a meu quarto antes de ir deitar se, e estivemos falando. -Inspirou timidamente, mas desta vez não perdeu o controle. — Tudo teria ido bem se... se não o tivessem matado.

— Então pode ser Sybilla. - Charlotte o disse mais como afirmação que como dúvida. — Você acha que ela é assim vaidosa? Que tem tanto ódio?

— Não sei - disse Emily abrindo os olhos.

— Não seja tola! Queria afastar George de você. Sabe dela tudo o que precisa saber! Vamos, pensa, Emily.

Transcorreram vários minutos de silêncio enquanto Emily tomava seu chá e comia dois pães-doces, surpreendida de fazê-lo.

— Não sei - repetiu. — Seriamente. Não estou certa se o amava, ou se só o achava divertido e desfrutava com suas atenções. É possível que se não fosse George teria sido qualquer outro.

Charlotte pensou que isso não ajudava em nada, mas Emily não tinha outra coisa que oferecer.

— Quem mais pode haver?

— Ninguém - disse em voz baixa Emily. — A coisa não tem nenhum sentido. - Ergueu os olhos, afundados e grandes; a dor era muito intensa para deixá-la pensar.

Charlotte a tocou suavemente.

       — Está bem. Julgarei por mim mesma. - Agarrou outro pão-doce e comeu distraídamente.

Emily se endireitou rigidamente e se cobriu com o lençol. Foi como se esperasse receber um golpe e se pôs em guarda para esquivá-lo.

—Realmente não sei o que sentia George por Sybilla - Contemplou a prega bordada do lençol que segurava.— E já que estamos nisso, já não tenho certeza como antes do que sentia por mim, inclusive antes de vir a esta casa. Possivelmente não o conhecia tão bem. É curioso, quando penso no Cater Street e nas coisas que aconteceram para o final... Eu achava que nunca ia cometer todos aqueles enganos, como Sarah, como mamãe. Dar as coisas por certas, supor que conhece bem aos homens só porque os vê cada dia indo e vindo pela casa, inclusive dormir com eles na mesma cama, inclusive tocá-los... - Fez uma pausa, procurando dominar-se. — Acreditar que compreende às pessoas. Mas parece que isso me passou. Eu dava por certas muitas coisas de George, e pode ser que me equivocasse. - Aguardou sem levantar a vista.

Charlotte sabia que Emily devia estar esperando que a contradissesse, mas, não teria acreditado se ela tivesse cedido a esse impulso.

— Nunca acabamos de entender a outros - disse. — Nem deveríamos fazê-lo; seria uma intrusão. E tenho certeza de que em certos momentos poderia ser destrutivo. E até aborrecido. Quanto tempo seguiria apaixonada por alguém de quem sabe absolutamente tudo? Alguém tem que ter um pouco de mistério onde explorar, se não, para que continuar? -Tomou suavemente a mão de Emily. — Eu não gostaria que Thomas soubesse tudo o que eu faço ou penso, coisas próprias da debilidade e egoísmo. Prefiro enfrentar sozinha a elas e depois me esquecer. Mas não poderia fazê-lo se ele soubesse; sempre estaria me perguntando. Não lhe seria fácil me perdoar se soubesse algumas coisas que me passam pela cabeça. E há coisas da gente que é melhor não saber, porque se as soubesse já não poderia esquecê-las.

Emily a olhou com expressão de aborrecimento.

—Você pensa que flertei com Jack Radley, que lhe fiz abrigar esperanças!

— Eu não tinha ouvido falar dele até agora mesmo. - Charlotte a olhou com franqueza. — Acusa a si mesma, seja porque Thomas disse algo ou porque acredita que o fará, ou porque no fundo há algo de certo nisso.

— Enfoca-o de um ponto de vista muito beato! - Emily voltou a ficar de mau humor e afastou rudamente a mão. — Fala como se você não tivesse paquerado em sua vida! E o general Ballantyne? Mentiu-lhe só para brincar de policial, e ele a adorava! Valeu-se disso! Eu nunca tratei a ninguém dessa maneira!

A lembrança inflamou ao Charlotte, mas agora não tinha tempo para culpas nem explicações. Claro que a acusação era certa; não havia justificação possível. Doeu-lhe a ira de Emily, mas tentou compreendê-la apesar de sentir vontade de lhe dizer que era injusta e que isso não tinha nada que ver com o problema presente. Mas acima de tudo estava a profunda dor que sua irmã lhe inspirava, a consciência de uma perda mais importante que as que ela jamais tinha sofrido. Às vezes, quando Pitt seguia algum ladrão até sua guarida em uma ruela do submundo , Charlotte temia por sua vida até sentir-se doente. Mas nunca tinha sido algo real, algo que não terminasse finalmente na calidez entristecedora de seus braços e na certeza de que, até a próxima vez, tudo era uma miragem, um pesadelo que se desvanecia ao extinguir a noite. A Emily não teria sol que despertasse.

— Há pessoas incrivelmente vãs - disse. — Acha que o senhor Radley imaginou que podia lhe oferecer algo mais que amizade?

— Teria que ser um perfeito imbecil - disse Emily, mais calma. Pareceu que ia acrescentar algo, mas logo perdeu o fio.

— Então ficam William e Sybilla, ou outro membro da família com algum motivo que nem sequer imaginamos.

Emily suspirou.

— Não há por onde agarrá-lo, verdade? Tem que haver algo muito importante, e muito feio, que eu desconheço. Algo que nem sequer me passou pela cabeça. Pergunto-me até que ponto a segurança e a felicidade de minha vida foram uma grande mentira.

Charlotte não tinha visto ninguém a sua chegada salvo Vespasia, com quem só tinha falado um momento. Sabia que lhe dariam o quarto de vesitr onde George tinha adormecido, em parte porque estava ao lado do Emily mas também porque ninguém mais queria lhe ceder seu quarto. O cadáver do George, amortalhado de branco, estava no antigo quarto de uma das babás, na ala da criadagem. Charlotte tinha receio de dormir na mesma cama onde George tinha morrido fazia só umas horas, mas não tinha alternativa. A única forma de suportá-lo ia ser excluir de sua mente todo pensamento relacionado com isso.

Seus poucos objetos escuros apropriados para um duelo estival tinham sido já desempacotados. Ruborizou-se ao recordar quão velhas estavam, o simples da roupa interior que inclusive mostrava remendos, e os vestidos do ano anterior adaptados para não parecer tão passados de moda. Tinha só um par de botas de cano longo, mas nenhuma realmente nova. Em outra época lhe teria incomodado a confusão que isso supunha e teria preferido manter-se afastada para que Emily não sentisse vergonha dela. Agora não havia tempo para tanto olhar. Devia trocar-se de roupa, lavar o rosto e arrumar o cabelo, e apresentar-se a um jantar que se anunciava tremendamente tétrico, pra não dizer hostil. Mas na casa havia um assassino.

Descendo para jantar, tinha chegado ao último degrau, passados os painéis escuros e as fileiras de opacos óleos da antiga família March, quando topou quase de frente com uma mulher velha de rigoroso negro e com umas contas de azeviche reluzindo no pescoço e sobre o peito. Seu cabelo entre branco e cinza estava penteado para trás com uma moda que tinha passado de moda fazia mais de vinte anos. Seus frios olhos de mármore azul se cravaram no Charlotte com muito desagrado.

—Você deve ser a irmã de Emily - disse, olhando-a de cima abaixo. — Vespasia disse que a faria vir, embora eu acredito que deveria nos haver informado e pedido nossa opinião antes de tomar o assunto em suas mãos. Mas possivelmente não será mal que esteja aqui. Pode ser que nos sirva de algo; asseguro-lhe que não sei o que fazer por Emily. Nunca nos tinha passado uma coisa assim na família.

Olhou o vestido de Charlotte e as ponteiras de suas botas. Não eram da qualidade que ela estava acostumada a ver. Até as criadas estreavam um par cada temporada, necessitassem-nas ou não, só por cobrir as aparências. As de Charlotte tinham visto várias temporadas.

— Como se chama? -inquiriu. — Com certeza me disseram, mas esqueci.

— Charlotte Pitt. - Respondeu ela com secura, as sobrancelhas em atitude inquisitiva como se quisesse saber quem o perguntava.

A anciã a olhou irritada.

— Sou a senhora March. Imagino que... - Deu uma nova olhada aos pés de Charlotte - jantará conosco.

Charlotte reprimiu a resposta que tinha a flor de lábios (não era momento para deleitar-se em grosserias) e procurou adotar uma expressão muito mais normal. Aceitou como se a houvesse convidado.

— Obrigada.

— Pois chega cedo! – replicou-lhe a anciã. — Não tem relógio?

Charlotte notou que lhe ardiam as faces; compreendia por que tantas garotas se casavam com o primeiro que passava, só por ir-se de casa e afastar para sempre o espectro de viver submetidas à vontade de uma mãe dominante. A de

matrimônios sem amor que teriam chegado a pactuar-se por esse único motivo. Tomara não fosse para acabar em mãos de uma sogra parecida!

— Pensava que antes poderia conhecer a família - disse quedamente. — Para mim são desconhecidos.

— Certamente! - concedeu significativamente a anciã. —Vou a meu toucador. Suponho que achará alguém no gabinete.

E dito isto se afastou deixando que Charlotte se arrumasse sozinha para cruzar a sala de jantar com as mesas postas mas ainda vazias - e passar ao fresco gabinete verde do outro lado da porta.

Ali, de pé no meio do tapete, havia uma garota de uns dezenove anos, muito magra, com um vestido de musselina, a cabeleira ruiva recolhida e gesto sério em sua boca grande e delicada. Sorriu ao ver o Charlotte.

— Você tem que ser a irmã de Emily - disse de pronto. — Me alegro de que tenha vindo. - Desceu os olhos e os subiu outra vez, tristemente. — É que não sei o que fazer, nem o que dizer...

Eu tampouco, pensou Charlotte, tudo soa banal e falso. Mas isso não era desculpa; algo podia ajudar mais que abandonar a pena e fugir como se se tratasse de uma enfermidade contagiosa.

— Sou Anastasia March - prosseguiu a moça. — Mas me chame Tassie.

— Eu sou Charlotte Pitt.

— Já sei. A avó disse que ia vir. -Fez uma careta. Charlotte já conhecia a opinião da avó a respeito.

Não puderam falar mais porque a porta se abriu para deixar passagem a William e Sybilla March; ela em frente, vestida de rutilante negro, sua branca garganta rodeada de renda; ele um passo mais atrás. Charlotte viu por que George tinha ficado fascinado. Sybilla, inclusive em repouso, tinha uma vitalidade que Emily carecia, um ar de mistério que podia intrigar a qualquer homem. Não precisava fazer nada, tudo estava em seu rosto, nos olhos grandes e escuros, na curva de sua boca, no luxo de sua figura. A Charlotte não custou imaginar quão denodadamente teria lutado Emily para recuperar a atenção do George. Não era de estranhar que Jack Radley se fixara nela! Mas que descuidada tinha sido ao pensar unicamente em George. Teria se posto em evidencia mais do que queria, muito ocupada para notar que ele tomou muito a sério seus avanços?

E William March, o marido ligeiramente complacente? Seu rosto não era a de alguém pouco compassivo. Tinha traços sensíveis e ascéticos; nariz magro, boca bem traçada. Mas nele havia também certa paixão, até no caso de que esta fosse mais complexa que a simples adoração ou o fogo no sangue. William podia desdenhar ambas as coisas, mas ao mesmo tempo ser vítima delas.

Charlotte se viu interrompida por Eustace March em pessoa, o qual apareceu imaculadamente vestido e olhando de um lado a outro com seus olhos muito redondos para ver quem faltava, certificando-se de que tudo estava como ele queria.

Seu olhar se deteve em Charlotte. Parecia ter decidido já como ia tratá—la, e seu sorriso foi untuoso e confiado.

— Sou Eustace March. É uma sorte que tenha podido vir, minha querida senhora Pitt. A pobre Emily necessita a alguém que a conheça, e ninguém melhor que você. Nós faremos o que esteja em nossa mão, é claro, mas não podemos ser igual a um familiar. É estupendo que esteja aqui. - Seus olhos foram para a Sybilla e logo sorriu satisfeito. —Estupendo.

Abriu-se a porta e entrou o único convidado alheio à família, e o que mais preocupava a Charlotte: Jack Radley. Assim que o viu emoldurado pelo dintel da porta, tão elegante, compreendeu mais coisas do que tinha entendido até então e sentiu um crescente frio interior. Não era que fosse muito bonito - embora seus olhos fossem assombrosos- mas tinha uma graça e uma vitalidade que nenhuma mulher podia evitar. Sem dúvida ele era consciente disso; sua fascinação era seu principal atributo, e parecia bastante inteligente para lhe tirar partido. Ao captar seu olhar do outro lado do pequeno tapete verde, Charlotte compreendeu que Emily lhe tivesse utilizado como contraste a fim de recuperar o favor do George. Paquerar com aquele homem tinha que ser muito divertido, e absolutamente acreditável. Mas talvez tivesse criado mais emoções do que Emily tinha previsto. Não devia ser fácil terminar uma coisa assim. Depois da excitação de um romance proibido e a euforia de um jogo muito bem jogado, George, tão familiar e previsível, pode ser um prêmio menos importante de alcançar. Acaso Emily, sem saber, tinha desejado continuar sua aventura? E não haveria Jack Radley entrevisto a possibilidade de conseguir uma esposa mais bonita e mais rica que Anastasia March?

Era uma idéia desagradável, mas agora não podia erradicá-la sem outra que a refutasse além de toda dúvida.

Olhou Eustace, com seus pés um pouco separados, robusto e satisfeito, as mãos unidas às costas. Se estava nervoso por algo certamente se dominava. Achava que controlava outra vez a situação. Ele era o patriarca da família e quem tinha que superar a crise; todos estariam pendentes do senhor da casa, e ele estaria à altura das circunstâncias. As mulheres confiariam nele, apoiariam-se em sua fortaleza; os homens o admirariam com inveja. Além de tudo, a morte faz parte da vida. Deveria confrontá-la com valentia e decoro; e Eustace não tinha excessivo apreço a George.

Depois olhou para Tassie, tão diferente de seu pai. Era extremamente magra enquanto que seu pai era robusto e de constituição grande; vivaz e ativa enquanto que ele era pesado e seguro. Desejava Eustace realmente casar Tassie com Jack Radley a fim de conseguir para si a definitiva respeitabilidade de um título graças aos contatos da família Radley, como Emily havia dito em suas cartas? Olhando-o agora lhe parecia provável. Embora, uma vez mais, qualquer bom pai teria procurado, para que sua filha escapasse da prisão do lar, buscar um homem que lhe proporcionasse uma renda própria quando ele já não pudesse fazê-lo, o status social de esposa e essa meta de toda mulher, uma família.

Era o que Tassie queria?

Charlotte recordou a época em que a tinham levado com outras jovens de sua idade a festas, bailes e soirées com a esperança de pescar um marido adequado. Se uma moça pertencia a uma linhagem que lhe permitia ser apresentada em sociedade, era um desastre terminar a temporada sem estar comprometida, o estigma do fracasso social. Nenhuma garota se casava a menos que mediasse um pacto adequado, quer dizer, que o pretendente fosse aceitável para a família. Raramente se chegava a conhecer a pessoa em questão salvo do modo mais superficial; era impossível estar a sós com ele ou falar de algo que não fossem trivialidades. E uma vez anunciado, raramente se rompia um compromisso, e só com grandes dificuldades e a possibilidade do escândalo subseqüente. Mas talvez qualquer coisa era melhor que viver perpetuamente atada, primeiro à velha March e depois ao Eustace. Ele parecia bastante robusto para viver trinta anos mais.

Passaram as apresentações sem que Charlotte prestasse muita atenção. Eustace estava perorando agora sobre suas emoções, enquanto se balançava ligeiramente com as mãos enlaçadas, enormes e perfeitamente cuidadas.

— Acompanhamo-la no sentimento, querida senhora Pitt. Dói-me que não possamos fazer nada para consolá-la em sua dor. - Estava fazendo uma declaração de fatos, distanciando do assunto. Não queria que ele ou sua família tivessem nada que ver na tragédia, e queria assegurar-se de que Charlotte o entendia.

Mas Charlotte tinha ido investigar e não tinha o menor remorso. Tampouco descartava chegar a sentir uma grande compaixão inclusa pelo Eustace, mas agora não podia permitir-se tanta ternura, sabendo que Emily estava em uma situação muito perigosa. A uma mulher podiam enforcar por assassinato igual à um homem, e esse pensamento sobressaía sobre todos outros.

Sorriu docemente ao Eustace.

— Acredito que se subestima, senhor March. Pelas cartas de Emily me consta que é um homem capaz de assumir uma liderança natural frente a uma crise. A classe de homem a que acode qualquer mulher ante uma situação que a supera. - Viu que se ruborizava levemente. Estava descrevendo-o tal como ele desejava ser visto... em qualquer momento menos este!. — E há que se dizer que sua lealdade para com a família está fora de toda dúvida - concluiu.

Eustace inspirou estremecendo e suspirou com brusquidão.

Tassie ficou boquiaberta sem captar a ironia, enquanto Sybilla espirrava várias vezes em seu lenço.

— Boa noite, Charlotte - disse Vespasia da entrada, recuperado o fogo de seu olhar. — Não sabia que Emily tivesse escrito tão bem sobre o Eustace. É maravilhoso.

Charlotte sentiu o impulso de voltar-se, e pôde captar um vislumbre de ódio feroz no rosto de William, mas desapareceu tão rápido que o considerou um efeito de luz, um reflexo do lampião em seus olhos. Tassie se aproximou para lhe tocar o braço, mas no final mudou de opinião.

— A lealdade à família é algo maravilhoso - observou Sybilla com uma expressão que podia ter significado algo salvo o que dizia. — Espero que uma tragédia como esta deixe bem claro quais são realmente nossos verdadeiros amigos.

— Estou certa - disse Charlotte, sem olhar a ninguém - de que descobriremos coisas que não tínhamos imaginado.

Eustace se engasgou, Jack Radley aumentou os olhos até parecer transposto, e a velha senhora March abriu a porta com tal violência que esta se chocou com a parede danificando o papel pintado.

O jantar foi triste e calado, sobre tudo porque a senhora March decidiu abortar qualquer conversa fulminando com o olhar a todo que tentava falar. Depois declarou que, vistos os acontecimentos da jornada, era melhor que todo mundo se

retirasse cedo. Olhou áspera a Eustace e Jack Radley para que não lhes coubesse nenhuma dúvida, e logo ordenou às damas que a seguissem. Elas obedeceram e depois de passar uma hora tediosa no toucador rosa se desculparam e foram deitar-se.

Emily tinha voltado para seu quarto, porque lógicamente Vespasia necessitava do seu. Deitada e acalorada no quarto de vestir, na cama que tinha sido de George, Charlotte se perguntava se devia levantar-se e ir ver Emily, ou se era um desses momentos em que ela precisava estar sozinha e queimar as etapas de sua angústia.

Despertou um pouco tarde e viu que o ar úmido e carregado do quarto estava cheio de uma luz branca. Na soleira havia uma criada com uma bandeja nas mãos. De repente, Charlotte recordou onde estava, que George tinha morrido, e que tinha sido envenenado. Por momentos, a idéia de estar naquela mesma cama tomando chá se tornou insuportável. Abriu a boca para protestar raivosamente, mas ao ver de quem se tratava, calou.

— Bom dia, senhora. - Digby deixou a bandeja e abriu as cortinas. — Lhe prepararei um banho, far-lhe-á bem. - Seu tom excluía qualquer objeção. Era uma ordem, e possivelmente procedia da Vespasia.

Charlotte se endireitou pestanejando. Tinha os olhos arenosos, doía-lhe a cabeça e ansiava dar-se ao luxo de um chá quente e reparador.

— Viu lady Ashworth esta manhã? - perguntou.

— Não, senhora. A senhora lhe deu um pouco de láudano ontem à noite e me disse que a deixasse dormir ao menos até as dez e que depois lhe levasse o café da manhã. Suponho que descerá para tomar o café da manhã com a família. - Tampouco era uma pergunta. De fato, Charlotte não tinha o menor desejo de fazê-lo, mas o dever a obrigava. E além disso, não fazia nenhum favor a Emily ficando na cama.

O café da manhã transcorreu uma vez mais quase em silêncio e com os comensais transidos de frio, pois Eustace se tinha adiantado para abrir as janelas e ninguém se atrevia à fechá-las enquanto ele estava ali, atacando papa, toucinho, queijo, madalenas, torradas e geléia com voraz apetite.

Depois, Charlotte se desculpou e foi escrever umas cartas em nome de Emily, informando do lutuoso feito a outros membros da família. Ao menos dessa forma economizava trabalho a ela.

Por volta das onze tinha terminado sua tarefa, e ao ver que Emily não tinha descido ainda, decidiu começar sua investigação com firmeza.

Sua intenção era falar com William e ver se podia formar uma clara impressão dele para confirmar o que escondia aquela extraordinária expressão vislumbrada na noite anterior. Soube pela criada que certamente estaria em seu estúdio da estufa, que a polícia estava de novo na casa - não o inspetor do dia anterior mas o agente- e que toda a cozinha estava muito aborrecida pela maneira como tinha perguntado coisas que não eram absolutamente de sua incumbência. A cozinheira estava fora de si, a criada não parava de chorar; os olhos do engraxate se saíam como registros de órgão, a governanta jamais se havia sentido tão insultada em sua vida.

Entretanto, Charlotte não conseguiu chegar até o estúdio, porque ao entrar na estufa se encontrou com Sybilla, imóvel olhando umas camélias. Charlotte optou por aproveitar a oportunidade que se apresentava.

— Aqui se sente uma pessoa totalmente fora da Inglaterra - observou.

Sybilla saiu de seu sonho e teve que esforçar-se por achar uma resposta educada a tão banal observação.

— Sim, é claro.

Uns lírios em flor recordaram à Charlotte um rosto sem sangue. Não sabia quanto momento iriam estar sozinhas ali. Tinha que aproveitar o tempo, e lhe pareceu que Sybilla era muito inteligente para zombar com indiretas. Mas possivelmente com a surpresa.

— George estava apaixonado por você? - perguntou inocentemente.

Sybilla ficou paralisada. O fato de que Sybilla não o tivesse negado de plano era importante. Estava calibrando interiormente qual era a verdade ou só procurava uma resposta sem riscos? A estas alturas provavelmente todos sabiam que tinha sido um assassinato, e podiam esperar essa pergunta.

— Não sei - disse ao fim. — Ia responder lhe, senhora Pitt, que se trata de um assunto privado que não lhe incumbe absolutamente. Mas suponho que, como Emily é sua irmã, é inevitável que se preocupe com isso. – Olhou-a com um sorriso vulnerável e ao mesmo tempo curiosamente amargo. — Não posso responder por ele, e suponho que não esperará que lhe repita tudo que ele me dizia. É indubitável que Emily estava ciumenta. Embora o levasse estupendamente.

Charlotte compreendeu que era uma mulher de grandes emoções, de uma grande capacidade para a paixão e dor. Não podia deixar de ser-lhe simpática, como tinha pensado em primeira instância.

— Peço-lhe desculpas. Foi uma estupidez.

— Sim - disse secamente Sybilla, mas não tem por que me dar explicações. - Seu rosto não traduzia cólera, só tensão e a consciência do irônico da situação.

Charlotte estava confusa e furiosa consigo mesma; aquela mulher tinha arrebatado o marido de Emily - intencionalmente ou não, diante de todo mundo - e talvez tivesse causado sua morte. Queria odiá-la com uma violência sem travas. Entretanto, não lhe custava imaginar a si mesma com parecidos sentimentos, e era incapaz de mostrar cólera por alguém assim que compreendia a capacidade de sentir dor. Isso estragava seu discernimento e lhe atava a língua.

— Obrigada, - A palavra surgiu torpemente; Charlotte não tinha previsto que a entrevista terminasse assim. Mas precisava tirar algo em claro. — Conhece bem ao senhor Radley?

—Não muito - respondeu ela com um débil sorriso. — Meu sogro deseja casá-lo com a pobre Tassie, e ele está aqui para ver se chegam discretamente a um acordo. Embora Jack não tem muito de discreto nem o terá nunca.

—Tassie está apaixonada por ele? - Sentiu vergonha por Emily. Se o estava, e se deixava levar a um matrimônio enquanto Jack Radley a humilhava abertamente demonstrando a atração que sentia pelo Emily, quanto teria sofrido a pobre garota. Se tivesse havido a possibilidade de um engano, Charlotte teria suposto que o veneno ia dirigido a Emily.

Sybilla sorria ligeiramente. Tocou as pétalas de uma camélia.

— Suponho que se tornam marrons - comentou. — Acontece isso se os toca. Não, Tassie não está apaixonada. E não acredito que queria casar-se com ele. Ela é do tipo romântico.

Nessa só frase Sybilla tinha juntado um montão de coisas: um monumental desdém pela inocência infantil, um afeto quase irônico por Tassie, e a consciência de que Charlotte tinha que ser de um nível social inferior ao seu para ter feito aquela pergunta. As pessoas como os March se casavam por motivos familiares - para acumular mais riqueza, para consolidar impérios comerciais ou aliar-se com competidores, sobre tudo para criar filhos fortes que perpetuassem o sobrenome -, nunca por um capricho do coração como apaixonar-se por alguém. Isso passava muito rápido. Além disso, o que era apaixonar-se? A linha de uma face, o arco de uma sobrancelha, um gesto, uma lisonja, um momento compartilhado. Mas era difícil comprometer-se a tão íntimo e permanente vínculo sem uma parte dessa magia, mesmo que freqüentemente não fosse senão uma ilusão. Nem sempre! Por regra geral Charlotte fazia pouco caso de Thomas, como se fossem só grandes amigos, mas havia momentos em que o coração lhe pulsava na garganta e ainda podia distingui-lo em metade de uma rua lotada pelo modo de estar de pé, ou reconhecer seus passos com excitação.

— E suponho que o senhor Radley é realista...- disse.

— Oh, eu acredito que sim - concedeu Sybilla, olhando outra vez para Charlotte e mordendo o lábio. — Me parece que as circunstâncias não lhe deram outra opção.

Charlotte sentiu vontade de perguntar se ele poderia ter se obcecado igualmente por Emily, mas compreendeu que a pergunta não tinha nenhuma utilidade. Tassie March herdaria uma agradável soma de seus avós, sim, mas nada que ver com a fortuna Ashworth que agora iria para Emily. Para que procurar um móvel do amor, no grau que fosse, quando o do dinheiro era tão válido?

Estavam à entrada da estufa e não havia mais que dizer. Charlotte se desculpou e se meteu dentro. Não tinha assimilado nada que não tivesse suposto previamente, salvo que sentia uma empatia instintiva por Sybilla March que jogava por terra suas primeiras teorias.

O almoço não deu nenhum fruto. Depois, Charlotte passou uma hora com Emily sempre a um tris de pressioná-la com perguntas e, ao ver seu pálido semblante, mudar de parecer. Decidiu ir em busca do William March, que continuava pintando na estufa. Sabia perfeitamente que lhe estava interrompendo e que não gostava nada, mas não havia tempo para ter em conta essas coisas.

Encontrou-o no estúdio que lhe tinham habilitado detrás dos lírios e trepadeiras. Tinha a elegância angulosa de alguém que emprega seu corpo e não é consciente de estar sendo observado. Não havia nele nada de pose, mas seu equilíbrio era perfeito. A janela superior estava aberta e se ouvia sussurrar o vento entre as folhas como a água entre calhaus de praia. William não a ouviu aproximar-se, e Charlotte lhe falou quando esteve quase a seu lado. Normalmente teria custado esforço falar com ele, mas depois de havê-lo feito com a Sybilla era cada vez mais consciente do perigo em que se achava Emily. Para um observador imparcial a principal suspeita era ela. Só havia sua palavra de que George e Sybilla tinham discutido, enquanto todos tinham presenciado os requerimentos do George... e os do Emily para captar a atenção do Jack Radley. Se alguém mais da casa tinha outro motivo, ela não o tinha averiguado ainda.

— Boa tarde, senhor March - disse com forçada jovialidade. Sentiu-se tola e prosaica.

William teve um sobressalto e o pincel deu uma sacudida em sua mão, mas ela tinha escolhido um momento em que ainda estava longe da tela. Ele a olhou com frieza. Seus olhos eram de um cinza escuro surpreendente, muito fundos sob sobrancelhas ruivas.

—Boa tarde, senhora Pitt. Perdeu-se? - Foi uma observação quase grosseira. Não gostava que o incomodassem e menos ainda ver-se na obrigação de manter uma conversa insípida com uma mulher desconhecida.

Ela perdeu toda esperança de enganá-lo.

— Não; vim porque desejava falar um momento com você. Percebo que o interrompo.

Ele se surpreendeu; tinha esperado uma desculpa tola. Ainda segurava o pincel no alto e seu rosto expressava uma grande concentração.

— Seriamente?

Charlotte contemplou o quadro. Era muito melhor do que tinha previsto: as folhas tinham movimento (uma impressão mais que um perfil), e atrás do brilho do sol havia como um vento que cortava, uma sensação de isolamento e dor. Podia ser tanto o fim do inverno como o anúncio da primavera, e pôde perceber tanto interior como visualmente.

— Gosto muito - disse. Pensava que era muito bom para alguém que só quereria ver representadas suas posses e não possuiria a chama do artista. — Deveria expô-lo antes de dá-lo a alguém. Contém toda a crueldade da natureza, e também seu encanto.

William deu um pulo.

— Isso mesmo diz Emily. - Era mais uma reflexão pessoal que uma observação dedicada a ela. — Pobre Emily.

— Conhecia bem ao George? - Charlotte observou os olhos e a boca do William, mas não viu outra coisa que tristeza, nenhum sintoma de evasão.

— Não - disse ele quedamente. — Era meu primo e o via de vez em quando, mas não posso dizer que o conhecesse. - Sorriu depois. —Tínhamos poucas coisas em comum, mas isso não quer dizer que não gostasse dele. Ao contrário, achava—o muito simpático. Pareciame boa pessoa, inclusive bonachão.

— Emily pensa que estava apaixonado pela senhora March. - Foi mais franca do que ditava a prudência, mas ele parecia muito inteligente para deixar-se enganar ou interpretá—la mal.

—Apaixonado? - repetiu, olhando o quadro e refletindo. — Suponho que é uma maneira de dizer, cobre quase todas as possibilidades. Para ele foi uma aventura, um pouco atrevida. Sybilla é fascinante e misteriosa, ninguém se aborrece com ela. - Começou a limpar o pincel. —Mas George a teria esquecido ao ir-se daqui. Emily é uma mulher inteligente, sabia esperar. George fez uma criancice, isso é tudo.

Charlotte conhecia o George de sete anos atrás, e o que William March acabava de dizer era a verdade, nem mais nem menos.

— Mas alguém o matou - insistiu.

— Sei. Mas não acredito que fosse Emily, e certamente tampouco foi Sybilla. - Vacilou, sem deixar de olhar as cerdas do pincel. — Eu de você pensaria no Jack Radley. Emily se converteu em uma jovem viúva muito atraente, com título e uma fortuna considerável. Demonstrou-lhe já certo apreço, e ele poderia ser bastante vaidoso para pensar que é só o princípio.

—Isso seria infame!

William a olhou com olhos brilhantes.

— Sim, mas a infâmia existe. Ao que parece ninguém pensa nada tão horrível que outra pessoa, em alguma parte, não tenha pensado também. Pensado e feito. - Dominou uma repentina crispação da boca. — Sinto muito, senhora Pitt. Rogo- lhe que me perdoe. Não era minha intenção ofendê-la.

— Não estou ofendida, senhor March. Como suponho que recorda, meu marido é polícial.

William virou- se completamente, e enquanto o pincel lhe caía ao chão a olhou como se quisesse rir da piada sobre a boa sociedade.

— Você deve ser muito valente. O que disse sua família? Horrorizaram-se?

Charlotte estava tão apaixonada que mal podia prestar atenção aos sentimentos alheios, mas teria sido inapropriado dizer isso a um homem cuja mulher tinha respondido de maneira tão plena e notória ao George. Decidiu mentir da forma mais simples.

— Estavam tão contentes com o enlace de Emily e lorde Ashworth, que o meu o levaram bastante bem.- Mencionar a ambos não fez senão pôr em relevo a tragédia de Emily.

— Sinto muito - disse ele, e seguiu com sua azeda e delicada paisagem.

Desta vez Charlotte aceitou o desprezo, e retornou para a casa por entre a exuberante selva da estufa.

À tarde tiveram a visita do rosado ajudante do vigário. O homem desculpou de forma bastante abrupta ao vigário, o qual aparentemente não podia ir em pessoa devido a uma urgência cuja natureza não ficou clara.

—Ah! - disse Vespasia. — Que má sorte.

O padre era um robusto jovem oriundo do West Highland. Com a franqueza característica da juventude e um pouco de iniciativa própria, privou-se de adornar a desculpa do vigário. Charlotte o achou simpático e não se surpreendeu de ver que à Tassie parecia também.

— Quando se espera que passe esta crise? - indagou secamente a senhora March.

— Quando tivermos redimido nossa reputação e já não sejamos fonte de escândalo - disse na hora Tassie, e se ruborizou.

O ajudante inspirou fundo, mordeu o lábio e se ruborizou também.

— Anastasia! - A voz da senhora March foi como o estalar de um chicote. — Irá para seu quarto se não puder economizar sua falta de benevolência, para não dizer seu descaramento. Sem dúvida o senhor Beamish terá suas razões para não vir pessoalmente a nos dar o pêsames.

— De qualquer modo, acredito que o senhor Farei o fará muito melhor - murmurou Vespasia. — O vigário me é tedioso.

—Isso é uma sandice! – replicou-lhe a senhora March. — Não é função do vigário divertir a seus paroquianos. Sempre tive a sensação de que não entendia a religião, Vespasia. Nunca soube se comportar na igreja. Desde que a conheço sei que é muito propenso a rir em lugares onde não deveria.

— Isso é porque tenho sentido do ridículo e você não. – Voltou-se para o Mungo Farei, que estava apoiado na borda de uma das cadeiras do gabinete tratando de compor um gesto de piedade mesclada com solicitude. — Senhor Farei, diga ao senhor Beamish que compreendemos perfeitamente suas razões, e que estamos muito contentes de que tenha vindo você em seu lugar.

Tassie espirrou, ou isso pareceu aos outros. A senhora March estalou a língua, aborrecida por Vespasia ter engenhado para insultar ao vigário com mais eficácia que ela. Como se atrevia o muito covarde, o muito infeliz, a enviar ao ajudante em seu lugar? Charlotte evocou com intensidade o motivo pelo qual sua tia Vespasia tivesse sempre sido querida por ela.

Mungo Farei se desafogou das condolências e o fôlego espiritual que o vigário lhe tinha encomendado comunicar; Tassie o acompanhou acima para que o repetisse à Emily, que tinha decidido passar a tarde a sós.

Charlotte queria subir depois para ver se conseguia que Emily recordasse algum comentário que pudesse desvelar alguma traição, alguma mentira, algo que lhe proporcionasse uma pista. Mas enquanto cruzava o vestíbulo Eustace saiu da saleta de estar ajustando a jaqueta e tossindo, de forma que lhe fosse impossível simular que não o tinha visto.

— Ah, senhora Pitt - disse com fingida surpresa, aumentando seus olhinhos. — Queria falar com você. Parece-lhe bem no toucador? A senhora March foi trocar-se para o jantar e sei que agora não há ninguém. - Estava atrás dela, como se quisesse conduzi-la fisicamente na direção que desejava tomar.

Para não mostrar-se inexplicavelmente grosseira, ela não se negou.

A sala lhe pareceu uma das mais feias que jamais tinha visto. Era um exemplo do pior gosto dos últimos cinqüenta anos, e se sentiu asfixiada tanto pelo que simbolizava quanto pela mera presença dos móveis, a cor gritane e o excesso de cortinados e adornos. Parecia a expressão de uma dissimulação que era vulgar em sua própria consciência das coisas que pretendia encobrir; uma opulência que carecia do menor indício de riqueza genuína. Custou-lhe muito não mostrar seu desagrado.

Por uma vez, Eustace não abriu as janelas como era seu costume, quando ela o teria desejado fervorosamente. Eustace parecia ocupado em dar forma a seus pensamentos.

— Senhora Pitt, espero que se encontre confortável aqui, apesar das trágicas circunstâncias que atravessamos.

— Certamente, obrigada, senhor March. - Estava confusa. Certamente não lhe tinha feito entrar ali só para lhe perguntar essa tolice.

— Bem, bem. - Eustace esfregou as mãos e continuou olhando-a. — Você não nos conhece bem, é lógico. E pode ser que tampouco a ninguém de nossa posição. Pareceremo-lhe muito estranhos. Queria explicar-lhe para que à dor que sente por sua irmã não se acrescente maior confusão. Se posso ajudá- la no que seja, minha querida...

Charlotte tentou dizer que ela não estava mais confusa que outros, mas ele continuou falando e impediu-a de protestar.

— Perdoe as excentricidades de lady Cumming-Gould. Em seus tempos era muito bonita, sabe, e lhe permitia ter uma conduta escandalosa, e receio muito que continue comportando-se como se os anos não tivessem passado. Eu diria que inclusive foi mais; consta-me que minha querida mãe a ache insuportável às vezes. - Esfregou as mãos e sorriu com expectativa, para ver como reagia Charlotte. — Todos temos que ter paciência! -prosseguiu rapidamente ao pressentir que ela não estava de acordo. — É muito importante em toda família. A pedra angular deste país. Lealdade e continuidade, uma geração atrás da outra; disso se trata ao fim e ao cabo a civilização. É o que nos distingue dos selvagens, não acha?

Charlotte quis objetar que, em sua opinião, os selvagens tinham um excelente sentido da família e eram conservadores, razão pela qual seguiam sendo selvagens em vez de explorar ou inventar coisas novas. Mas de novo Eustace lhe impediu de participar.

—E entendo que de seu ponto de vista Sybilla possa parecer cruel e mal educada, porque lógicamente você fica do lado de Emily. Mas você sabe que houve mais coisas em jogo. Oh, pois claro. Receio que foi George quem a perseguia, sabe. E nossa querida Sybilla está tão acostumada a que a admirem que não conseguiu dissuadi-lo oportunamente. A falha foi dela, é claro. E assim penso dizer-lhe na cara. E George deveria ter sido mais discreto...

— Não devia tentá-lo sequer! - interrompeu-lhe acaloradamente Charlotte.

— Ai, querida minha! - Seu rosto se iluminou com paternal resignação. Sacudiu um pouco a cabeça. — Terá que ser realista. Espera-se que garotas como Tassie tenham ilusões românticas, e eu não queria ferir sua suscetibilidade a uma idade tão tenra como a sua, a ponto de prometer-se. Mas uma mulher casada da idade de Emily tem que saber amoldar-se ao caráter dos homens. Uma mulher realmente feminina sabe perdoar nossas fobias e debilidades, como os homens sabem perdoar as debilidades da mulher. – Sorriu-lhe e por um momento sua mão ficou suspensa sobre a do Charlotte.

Ela estava furiosa. Havia algo no Eustace March que lhe trazia à memória todas as atitudes condescendentes que tinha tido que suportar em sua vida. Precisava arrancar aquela complacência de seu saudável rosto.

— Insinua que se Emily se deitou com o senhor Radley, por exemplo, George a teria perdoado? - perguntou com sarcasmo, retirando a mão no caso.

Tinha tido êxito. Eustace estava perplexo. Charlotte tinha mencionado algo que ele não se teria atrevido a expressar com palavras. Eustace ficou lívido e logo recuperou a cor súbitamente.

—Ah! - balbuciou. — Entendo que tenha sofrido uma grande comoção, e que talvez você tema por Emily, é lógico. Mas minha querida senhora Pitt, não há necessidade de ser vulgar! Farei o favor de afastar de minha mente que é você capaz de ultrapassar-se até o ponto de fazer tão infame insinuação. Não voltaremos a nos referir a isso. Ataca você todo o bom e decente. Se as mulheres tivessem que conduzir-se dessa maneira, céu santo! Nenhum homem saberia se seu filho é realmente dele! O lar desapareceria, a base mesma da sociedade se iria rachando. Não quero nem pensar nisso!

Charlotte se ruborizou, tanto de ira como de vergonha. Possivelmente tinha feito o ridículo e o gesto da mão do Eustace não tinha sido mal-intencionado.

— Eu não insinuava isso, senhor March! - protestou, erguendo o queixo e lhe olhando para rosto. — Só queria dizer que talvez Emily esperava do George um comportamento igual ao que ela estava disposta a mostrar.

—Vejo que falta a você experiência, senhora Pitt, e que é um pouco romântica. - Eustace meneou a cabeça, mas sua expressão voltou a desembocar em um sorriso. — As mulheres são muito distintas dos homens, querida, muito. Nós temos as virtudes do intelecto, a dignidade e o arrojo. - Inconscientemente flexionou os músculos do braço. — O cérebro de um homem é muito mais potente que o de uma mulher. - Seus olhos passearam pelo pescoço e peito dela agradando-se. — Pense no que temos feito pela humanidade. Mas se a uma mulher falta modéstia, paciência e castidade, um caráter doce, o que é então? O que é, enfim, o mundo sem o influxo de nossas esposas e mães? Muita barbárie, senhora Pitt, isso é o que é. – Ficou olhando e ela sustentou inflexível seu olhar.

— Era isso o que queria me dizer, senhor March?

— Oh, bom, não... - Eustace piscou confuso; perdeu-se por completo e não se achava. — Só desejava me certificar de que estivesse cômoda em casa - optou por dizer. — Devemos mostrar ao mundo uma casa unida. Você faz parte de nós através da pobre Emily. Temos que fazer o que for melhor para a família; não é momento para egoísmos. Estou certo de que o compreende.

— Certamente, senhor March - concedeu ela com expressão solene. — Pode ter certeza de que não deixarei de ser leal a minha família. Ele sorriu com certo alívio, esquecendo ao parecer que Thomas Pitt era o parente mais próximo de Charlotte.

— Excelente. Estou certo disso. Agora a deixarei para que se troque e se por acaso queira ir ver Emily. Não me cabe dúvida de que lhe será de grande ajuda, a pobre.

Depois do jantar as damas saíram da sala de jantar e mantiveram uma conversa afetada, porque Emily estava com elas pela primeira vez desde o assassinato e ninguém sabia o que dizer. Falar da morte do George parecia uma crueldade desnecessária, mas conversar como se nada tivesse ocorrido dava a todos os outros temas uma artificialidade vizinha ao grotesco. Assim, Charlotte se levantou pouco depois das nove e se desculpou dizendo que queria deitar-se cedo. Emily saiu com ela, para alívio das demais. Charlotte imaginou que ouvia os suspiros quando fecharam a porta, e que todas se acomodavam em suas poltronas.

Despertou em plena noite acreditando ter ouvido Emily no quarto contigüo, e lhe preocupou que sua irmã não pudesse dormir. Pensou que o melhor era ir vê-la.

Levantou-se e se dispunha a alcançar um xale quando reparou em que o ruído procedia de outro lugar, na direção da escada. Para que quereria descer Emily a aquela hora?

Desceu da cama e, sem procurar as sapatilhas, foi para a porta, abriu-a e saiu às escondidas para o patamar. Acabava de chegar ao canto quando viu o que havia ao pé da escada à luz do abajur de gás; ficou petrificada como se a tivessem deixado sem ar.

Tassie March subia a escada com rosto imperturbável e fatigado, mas com uma serenidade extraordinária. A inquietação tinha desaparecido, a tensão também.

Levava as mãos estendidas à frente, as mangas amassadas, sinais de sangue nos punhos e uma mancha escura perto do suporte de sua saia.

Quando Tassie chegou acima, Charlotte compreendeu sua própria situação e se retirou para as sombras. Tassie passou nas pontas dos pés a menos de um metro dela, com o mesmo sorriso calmo, deixando a sua passagem um repugnante, forte e inequívoco aroma. Ninguém que tivesse cheirado sangue fresco podia esquecer esse aroma.

Charlotte retornou a seu quarto, e vomitou.

 

Emily despertou cedo. Era o dia do funeral do George. Imediatamente sentiu frio, a luz branca no teto carecia de calor e cor. Sentiu-se invadida de uma desdita com traços de cólera e de intolerável solidão. Isto ia ser o final. Não, claro que não era o final de nada. George estava morto, não havia já possibilidade de recuperar os momentos de calidez, salvo na memória. Mas um funeral, um enterro, punha as coisas em seu lugar, extraía delas a imediatez e relegava o homem ao passado.

Embrulhou-se no abrigo das mantas mas não achou consolo. Era muito cedo para levantar-se, e além disso não queria ver ninguém. Todos estariam muito ocupados em suas coisas, fazendo dramalhões, pensando no que tinham que usar, em como teriam que comportar-se. E por cima de tudo a estariam observando com suspeita.

A maioria pensava que ela tinha matado ao George, que tinha entrado no quarto da ancivelha March, que tinha roubado o veneno e envenenado o café.

Salvo uma pessoa. Uma pessoa saberia que Emily não o tinha feito... porque o tinha feito ele, ou ela. E essa pessoa estava esperando que acusassem Emily, inclusive que a julgassem e... Não interrompeu seus pensamentos, apesar de ser uma estupidez infligir-se esse castigo. Seguiu adiante, imaginando o tribunal, a ela mesma vestida de presidiaria, o cabelo estirado para trás, o rosto branco e com olheiras, o jurado que não ousava olhá-la, algumas mulheres que mostravam piedade talvez por ter sofrido ou acreditado sofrer o mesmo tipo de rechaço.

Depois a sentença, e o juiz levantando-se com semblante impertérrito. Deteve-se aí. O que vinha a seguir era muito angustiante. Podia imaginar o aroma de corda e a escuridão úmida. Não se tratava só de um pensamento mórbido; podia ser muito real, sem um despertar reparador em um leito morno.

Desembrulhou-se e alcançou a corda da campainha. Passaram cinco longos minutos até que Digby bateu na porta e entrou, com o cabelo apressadamente recolhido e o avental mal apertado. Parecia nervosa mas resoluta.

— Bom dia, senhora. Quer uma xícara de chá ou lhe preparo antes um banho?

— Prepare o banho. - Não era preciso falar da roupa; só podia ser o de fio de lã negro com chapéu e véu negros que se havia feito trazer. Não um véu na moda que contribuísse um pouco de mistério, mas o objeto típico de luto para ocultar o rosto e dissimular os estragos da angústia.

Digby voltou poucos minutos depois com as mangas subidas e um sorriso indeciso nos lábios.

— Faz bom dia, senhora. Ao menos não terá que agüentar a chuva.

Emily não se importava, mas talvez fosse uma sorte. Estar junto a uma sepultura com a água gotejando pescoço abaixo, lhe molhando os pés e acumulando peso e umidade em sua saia só acrescentaria uma dimensão física à desolação que a consumia por dentro. Embora possivelmente teria sido melhor; era mais fácil pensar em pés gelados que no George branco e mortalmente rígido dentro do féretro, para não vê-lo jamais. Ele tinha feito parte muito importante de sua vida, tinha ocupado seus pensamentos durante muitos anos. Inclusive quando não estavam juntos, a certeza de que não demoraria para chegar lhe tinha dado uma segurança que nunca temeu perder.

As lágrimas brotaram de repente, surpreendendo-a; fungar e engolir não lhe servia para contê-las. Sentou-se outra vez e cobriu o rosto com as mãos.

Inesperadamente notou que Digby a rodeava com seus braços, e apoiou a cabeça em seus ombros. Digby não disse nada, limitou-se a balançá-la suavemente, lhe acariciando o cabelo como a uma menina. Tudo foi tão natural que Emily não sentiu embaraço algum, e quando a dor amainou e lhe sobreveio o alívio da fadiga, soltou-se e foi ao banho sem necessidade de explicar ou reafirmar que ela era a senhora e Digby a criada. Não havia perguntas nem respostas. Digby sabia exatamente o que era preciso, e seu silêncio foi compreensivo.

Emily tomou o café da manhã a sós com Charlotte. Não desejava ver ninguém mais, salvo talvez tia Vespasia, mas ela não se apresentou.

— Não me disse - comentou Charlotte enquanto pegavam torradas, passavam manteiga e se serviam depois com xícaras de chá - mas acredito que está ocupada preparando-se para a defesa.

Emily não perguntou o que queria dizer com isso; ambas sabiam que as filas se fechavam contra a polícia, contra a intrusão e escândalo... e contra Emily também. Se ela fosse culpada a coisa podia terminar em questão de dias. A família poderia guardar luto o tempo que ditava a decência e logo reatar sua vida.

Charlotte sorriu tristemente.

— Acredito que nem sequer a senhora March dará rédea solta a sua língua estando presente tia Vespasia. Tenho a impressão de que não se apreciam muito.

— Tomara pudesse pensar que a senhora March matou George – disse pensativa Emily. — Estive tratando de procurar algum motivo.

— Ocorreu-lhe algo?

— Não.

— A mim tampouco. Mas asseguro que há muitas coisas que ignoramos. - Charlotte estava tensa, dava a impressão de ter medo. — Emily, esta noite despertei pensando que a tinha ouvido andar por seu quarto.

— Sinto muito...

— Mas não era você. O ruído vinha da escada, assim me levantei e me aproximei. Tratava-se de Tassie. Estava subindo a escada à caminho de seu quarto. Vi-a com clareza. Tinha as mangas manchadas de sangue, e também a parte dianteira da saia e da prega. E estava sorrindo! Tinha uma expressão extranhamente aprazível. Brilhavam-lhe os olhos e os deixava muito abertos, mas não me viu. Ocultei-me no passadiço do quarto de vestir e ela passou tão perto que poderia havê-la tocado. - Sentiu uma vertigem ao recordar o aroma adocicado e nauseabundo.

Emily estava sobressaltada, aquilo era incrível. Deu a única explicação que lhe ocorria.

— Teve um pesadelo.

— Não, Emily - insistiu Charlotte. — Aconteceu de verdade. - Seu rosto estava crispado mas não vacilou. Pensei que estava sonhando por culpa de todo o ocorrido, de modo que desci ao tanque esta manhã e encontrei o vestido mergulhado dentro de um dos caldeirões.

— E estava coberto de sangue?

Charlotte meneou a cabeça.

— Não; estava limpo. Mas era lógico; não o teria deixado manchado de sangue para que o encontrassem as criadas.

— Mas isso não tem sentido - continuou protestando Emily. — De quem era o sangue? Não assassinaram a ninguém dessa forma - engoliu em seco, — ao menos que saibamos.

Outra lembrança espantosa removeu a memória do Charlotte: embrulhos em um cemitério, mas impediu que chegasse a tomar forma.

— Você acha que pode estar louca? - disse com malícia. Parecia a única explicação possível, e deveria achar uma pelo bem de Emily.

— Suponho que sim - disse esta a contra gosto. — Mas George não sabia, bom, a menos que acabasse de descobri-lo. Esse seria um possível motivo para que a senhora March o matasse.

— Você acha? - Charlotte franziu os lábios. — George o teria contado a alguém?

— Claro! Se Tassie era perigosa, como parece que é, e se o sangue é humano. - Charlotte calou, sentindo-se cada vez mais desventurada.

Emily sabia por que: também gostava de Tassie. Tinha algo que era imediatamente grato: sinceridade, humor e generosidade. Mas ela a tinha visto subir a escada com as mangas e a saia manchadas de sangue fresco. Estremeceu. Tomara não fosse Tassie.

— Não tem por que ser ela - disse Charlotte desanimada. Imagino que pode haver outra explicação. Um animal, ou um acidente na rua. Não sabemos nada. Simplesmente me parece inconcebível que Tassie seja... Enfim, se a família soubesse a encerrariam em um manicômio.

— Possivelmente não sabiam quão mau estava da cabeça - apontou Emily. — Pode ser que tenha piorado de repente.

— Mas ainda há Jack Radley. Não se esqueça dele. Ou da Sybilla. E William poderia ser o culpado. Inclusive Eustace. Não sei como, mas poderia ser que George tivesse descoberto algo relacionado com ele. Esta é sua casa, no fim de contas. Possivelmente esteja fazendo algo horrível, ou guarda um segredo do passado que não podia permitir que ninguém soubesse.

Emily ergueu a vista.

— Como o que?

— Não sei. Um filho ilegítimo, ou uma aventura com uma mulher pouco apropriada...

Emily arqueou as sobrancelhas:

— Eustace? Uma aventura? Não me cabe na cabeça! Você imagina ao Eustace apaixonado?

— Não - reconheceu Charlotte. — Mas estava pensando mais em luxúria que em amor. Até o mais pomposo e farisaico dos homens, como Eustace, pode chegar a sentir luxúria. Além disso, não tem por que ser algo recente. Poderia tratar-se de algo acontecido há anos, inclusive em vida da mãe de Tassie. E há outras possibilidades. A gente tem obsessões estranhas, sabe. Talvez ela o averiguou.

— Quer dizer algo repugnante de verdade? - perguntou Emily devagar. — Um menino? outro homem? Acha que Olivia pôde descobri-lo e que ele a matou?

— Bom... - Charlotte suspirou. — Na realidade não pensava em nada parecido. Mas bem em uma criada ou uma camponesa. ouvi dizer que homens muito respeitáveis só gostam das mulheres grosseiras e corpulentas.

— Besteiras! - balbuciou Emily, agarrando outra torrada e mordendo sem entusiasmo.

— Absolutamente, e ninguém quereria que se soubesse.

— É que não acreditaria ninguém. Não até o extremo de que valesse a pena matar para silenciar a alguém.

— É possível. Certamente, se Eustace matou a Olivia seria porque valia a pena.

— Mas se não matou a Olivia, e não acredito que o fizesse, George não o teria dito a ninguém. Ele tampouco teria querido que se soubesse. Depois de tudo, Eustace é da família. - Engoliu a torrada com um nó na garganta. — E nestas coisas George era muito convencional.

— Certo - disse Charlotte com mais suavidade. — Mas possivelmente não confiou que George não o contasse aos amigos, em plano de brincadeira. George era um pouco atordoado quando falava. Ou pode ser que o pressionasse.

— George teria sido incapaz!

—Pode ser, mas talvez Eustace não estava muito seguro. - Sacudiu a cabeça. — A única coisa que digo é que não sabemos. Poderia ser um montão de coisas.

Emily ficou quieta.

—Pois será melhor que lhe busquemos alguma pista com agente Stripe, e quanto antes.

—Sei. - Charlotte mordeu o lábio. — Isso tento.

O serviço ia celebrar se na igreja local, que deste modo tinha sido o lugar de descanso final para a família Ashworth desde que adquiriram sua primeira residência urbana naquela paróquia, fazia quase dois séculos.

Lógicamente, Emily tinha avisado a sua própria família. Essa tinha sido a carta mais difícil de escrever, e a única em que Charlotte não pôde ajudá-la. Como se diz a um menino de cinco anos que assassinaram a seu pai? Ele ainda não podia ler uma carta; seria sua babá, a gorda e maternal senhora Stevenson, quem trataria de explicar-lhe, quem o ajudaria a compreender a morte e fazer que captasse seu significado pouco a pouco em meio de uma terrível confusão de emoções. Emily sabia também que a boa mulher trataria de consolá-lo, para que não se sentisse traído por um pai que o abandonava muito cedo nem abrigasse sentimento algum de culpa ante esse fato.

A carta de Emily seria para mais adiante, quando fosse um pouco maior, uma carta para reler em momentos de maior quietude. Quando chegasse a jovem já saberia de cor. Agora o menino era lorde Ashworth: tinha que sentar-se erguido na igreja, comportar-se adequadamente, seguir o féretro de seu pai até a tumba e levar luto como era de rigor.

Edward viria acompanhado da senhora Stevenson e depois retornaria com ela a casa. Charlotte e Emily voltariam para o Cardington Crescent, pois assim o requeriam as peculiares circunstâncias do assassinato. Viajaram com o Eustace e a tia Vespasia na carruagem da família, engalanada de negro para a ocasião e puxada por cavalos também negros. A carruagem fúnebre, como é lógico, era proporcionada o enterrador e levava todos os aditamentos de costume.

No segundo coche foram a senhora March e sua neta Tassie. Charlotte e Emily a observavam, mas esta levava um véu que fazia invisível a expressão de seu rosto.

Poderia ter sido de pena e pavor como todos presumiam, ou poderiam ter ficado restos da estranha serenidade que Charlotte lhe tinha visto na escada... ou o mais absoluto esquecimento do episódio horripilante que o tivesse precedido. Era impossível averiguá-lo.

Discutiu-se sobre se Jack Radley devia ir ou não ao funeral; ao final, com grande desinteresse, a senhora March se fez encarregada dele, e William e Sybilla foram em seu próprio veículo, desceram à entrada do cemitério e percorreram a pé o estreito atalho de terra e cascalho em direção à velha igreja com sua torre de pedra. As lápides mostravam o esverdeado dos anos, suas inscrições se foram alisando e para as distinguir tinha que se forçar a vista. Perto dos ciprestes e da erva alta havia lápides brancas reluzentes; aqui e lá um buquê de flores.

Charlotte avançou junto a Emily tomando-a pelo braço. Notou que estava tremendo, e lhe parecia mais magra e miúda. Em nenhum momento esqueceu que era a irmã mais velha. A situação lhe recordava extranhamente o funeral de Sarah – só ficavam elas duas - mas então Emily era muito menos vulnerável. Naquela ocasião experimentou certo otimismo latente, uma segurança em si mesma subjacente sob a pena e o medo em forma de sólida convicção.

Agora era diferente. Emily tinha perdido não só ao George, o primeiro homem a quem tinha amado, mas também a confiança em seu próprio discernimento. Inclusive a coragem tinha que ganhar à força; partindo as unhas, aferrando-se

desesperadamente.

Charlotte apertou os dedos e Emily procurou sua mão. O senhor Beamish, o vigário, esperava junto à porta com um sorriso direto. Tinha as faces coradas e o branco cabelo aparado como se tivesse passado as mãos apressadamente. Ao reconhecer Emily deu um passo à frente, estirou o braço, mas logo titubeou e o deixou cair de novo. Murmurou algo ininteligível. A Charlotte pareceu um salmo mal cantado. A irmã solteira do vigário meneou a cabeça e fungou um pouco. Depois levou delicadamente o lenço à face. Estavam desconfortáveis. Rumores e hipóteses tinham chegado até eles. Não sabiam se tratavam Emily como a uma aristocrata a qual tinham o dever social e religioso de fazer extensiva sua piedade, ou como uma assassina, uma letra escarlate, uma criatura de quem fugir, antes que eles mesmos, bons cristãos, fossem poluídos por sua dupla queda.

Charlotte lhes devolveu o olhar sem sorrir. Em parte sentia certa empatia por seu apuro, mas em conjunto os desdenhava; e se deu conta de que devia notar-se o no rosto. Assim lhe passava sempre.

A senhora Stevenson, sombria e galharda, estava já na igreja com o Edward pela mão. Ele estava muito pálido, e dava apuro ver o muito que se parecia com Emily. O menino soltou a mão da Stevenson e foi para ela com estupidez, consciente da situação; mas logo, ao abraçar a sua mãe se relaxou e fungou antes de recompor-se e caminhar ao lado dela.

Mungo Farei estava na nave lateral junto ao banco que a família March tinha na primeira fila. Era um homem robusto de rosto franco. Não baixou a cabeça e olhou Emily nos olhos.

— Encontra-se bem, lady Ashworth? - disse em voz baixa. — Deixei um copo de água no suporte, se por acaso o necessita. O serviço não será longo.

   — Obrigada, senhor Farei. Muito amável de sua parte. – Deslizou-se para o banco com Edward, seguidos do Charlotte, tia Vespasia e por último Eustace. Ouviu a senhora March fazendo um ruído insuportável no banco de trás. Estava aborrecida por não ocupar a primeira fila e queria que todo mundo soubesse.

Tassie estava ao lado dela, cabisbaixa, as mãos sobre o regaço. Era incrível recordá-la como na véspera: serena, manchada de sangue, nas pontas dos pés pelo patamar. O ajudante passou por seu lado e se dirigiu à anciã.

— Bom dia, senhora March. Se posso lhe servir em algo, ou lhe oferecer algum consolo...

— Duvido-o, jovem - disse ela secamente, — como não seja procurar que minha neta esteja muito ocupada fazendo boas obras para que não escape e se case com quem não deve, ou a acabem assassinando por seu dinheiro!

— Seria uma estupidez - murmurou Tassie. — Você não me deixaria nada se fizesse isso.

— Se alguém assassiná-la será por não refrear sua língua! – replicou-lhe a anciã. — Faça o favor de recordar que está na igreja; um pouco mais de seriedade.

— Bom dia, senhorita March - disse o religioso inclinando a cabeça.

— Bom dia, senhor Farei - respondeu Tassie com dissimulada coqueteria. — Obrigada por seu desvelo. Suponho que a avó lhe agradeceu que fosse visitá-la.

— Eu teria preferido o senhor Beamish - interrompeu a anciã. — Está muito mais perto que você da morte. Sabe compreender a aflição, a perda de um ser querido, ver como alguém de seu sangue é objeto de paixões ímpias, cai vítima de seus estragos e acaba pagando o preço.

O ajudante dissimulou seu assombro com um espirro.

— Seriamente? - disse Vespasia da fila de frente sem voltar a cabeça. — Se for assim, então sabe muitas coisas do Beamish que eu ignoro.

Tassie estava fazendo um curioso gorgolejo com o lenço na boca, e o padre ficou a falar com o William e Sybilla. Charlotte não se atreveu a voltar-se para olhar.

A cerimônia foi lânguida e cantada no curioso cantar repetitivo do luto formalizado. Em alguns momentos, porém, houve algo de reconfortante, talvez a mera expressão de sentimentos mais lúgubres até então reprimidos. Aqui se reconhecia algo que dentro da casa dos March era inominável, a morte e a corrupção física eram chamadas por seu nome em vez de ficar atrás da palavra falada. Inclusive as notas do órgão tinham uma qualidade eterna, e pareciam proceder de toda a igreja para extinguir-se de novo em seu interior. A selaria e os tubos do órgão formavam uma unidade acústica.

Emily estava erguida e calada, seu rosto oculto pelo véu. Charlotte só podia especular sobre seus sentimentos. Entre as duas, Edward permanecia muito rígido mas grudado a sua mãe, e sua mão estava fortemente fechada.

As últimas notas do órgão se perderam nas altas arcadas de pedra, e todos se prepararam para o pior. Seis homens de negro, totalmente inexpressivos, levantaram o ataúde e puseram-se a andar para o sol do exterior. Os presentes desfilaram de dois em dois, encabeçados por Emily e Edward.

A tumba era uma cova aberta na terra úmida. Os Ashworth nunca tinham sido partidários de criptas ou mausoléus familiares, prefirindo gastar o dinheiro nos vivos, mas lógicamente haveria uma lápide de mármore, que talvez teria dourados com o tempo. Isso parecia agora irrelevante, inclusive vulgar.

Beamish, ainda rosado e com seu branco cabelo levantado pelo vento, começava a recitar as palavras de sempre. Contentava-se com isto porque não lhe tinham dado opção de inventar outra coisa, mas continou evitando Emily. Olhou uma vez a tia Vespasia e tentou sorrir, mas ela parecia tão frágil e abatida que o sorriso empalideceu em seus lábios.

Charlotte olhou em redor. Uma daquelas pessoas tinha matado ao George. A paixão do momento teria dado passagem ao terror ou o remorso? Acaso o autor do crime se sentia liberado de algum perigo? Ou o assassino esperava avidamente algum tipo de recompensa?

O suspeito mais claro era Jack Radley. Pôde ter imaginado que Emily chegaria a... casar-se com ele? Provavelmente essa era a única resposta. Se era capaz de pensá-lo, então o mero fato de ser seu amante não teria justificado o matar ao George. Se Emily enviuvasse, entretanto, seria com certeza uma viúva rica, e com seus trinta anos e com um filho, uma viúva muito vulnerável.

Charlotte tinha posto também um véu, em parte por decoro e em parte para ter a oportunidade de observar discretamente. Agora olhou ao Jack Radley, que estavado outro lado da cova. De pé com as mãos unidas, parecia muito sóbrio e adequadamente compungido. Mas seu traje era de última moda, sua gravata elegante, e Charlotte imaginou que via a sombra de suas pestanas sobre a faces quando ele baixava a vista. Era tão monstruosamente vaidoso para pensar que podia matar ao George e ocupar seu posto? Acaso a inveja tinha dado passagem à tentação e logo a um plano que a oportunidade tinha convertido ao final em ato?

Não viu nada em seu rosto; Jack poderia ter sido um menino de coro. Mas se era culpado de um plano criminoso isso significava que carecia de consciência, de modo que não podia esperar-se que a culpa aparecesse em seu rosto.

O semblante do Eustace traduzia uma devota retidão sem mostrar outra coisa que sua consciência do ato ao que estava assistindo e seu próprio lugar nele. Se havia algo mais, não era culpa, e certamente tampouco medo. Se tinha cometido um assassinato era sem remorso algum. O que podia ter justificado algo assim em uma mente como a sua?

Só ficavam os últimos e mais claros suspeitos: William e Sybilla. Estavam o um ao lado do outro e entretanto só podia dizer-se tal coisa em um sentido puramente literal. William olhava à frente, além do Eustace e do Beamish, aos perpétuos guardiães da morte, os ciprestes que ladeavam o cemitério protegendo a escuridão com suas folhas como agulhas e sua densa e grosa madeira. Nada crescia a seus pés e seu fruto era venenoso.

Essa idéia podia ter estado passando atrás dos olhos cinzas do William enquanto escutava. Sua boca mostrava dor, e suas faces estavam franzidas.

Charlotte se sentiu mal ao olhá-lo, como se aquela pele branca fosse mais fina que a das outras pessoas e as feridas da natureza chegassem mais facilmente aos nervos. Talvez por isso precisava pintar as sombras e a luz do céu. Nem toda a técnica do mundo servia para plasmar o que antes não tinha se sentido. Teria roubado aquela delicada mão criativa a droga mortal e envenenado com ela o café do George para matá-lo? Por que? A resposta era evidente: porque George tinha conquistado Sybilla.

Charlotte olhou automaticamente à própria Sybilla. Era uma mulher muito formosa, e vestida de rigoroso negro estava melhor que qualquer das presentes. A branca pele de seu pescoço era perfeita, quase luminosa como uma pérola. A parte superior do rosto ficava oculta por um véu. Charlotte a observava tratando de tirar alguma conclusão quando reparou nas lágrimas sobre sua face, as tênues rugas de dor, a tensa garganta. Continuou observando. Tinha as mãos apertadas enluvadas de negro, e ao lenço tinha rasgado a borda. Enquanto estava olhando os dedos se abriram um pouco, agarraram os fragmentos rasgados de cambraia e os deixaram cair como pequenos flocos de renda quebrado. Aflição? Culpabilidade? Por ter seduzido ao marido de outra, ou por lhe teer assassinado quando ele se cansou dela?

Charlotte notou que uma mão gelada lhe apertava o estômago. Acreditaria Sybilla que tinha impulsionado Emily a matar? Até que ponto a tinha amado George? A presumida reconciliação de George e Emily se sustentava nas palavras desta. O que tinha passado aquela noite em seu dormitório ao entrar George? Recordava Emily a verdade dos fatos ou só o que o orgulho e o medo lhe diziam que recordasse? Não! Isso era uma tolice... uma debilidade... Livre-se dessa idéia! Negue-se a tê-la. Mas como se recusar a pensar algo? Quanto mais se tenta rechaçá-lo, mais forte é a presa e mais consome sua mente.

Tia Vespasia!

Mas o coração da anciã estava absorto em um amplo leque de lembranças, dias de juventude, velhas confidências e pequenos prazeres compartilhados, vãs esperanças, sonhos sem travas, tudo isso apertado em uma caixa fria e dura, e tão próxima que poderia ter estendido uma mão e tocá-la.

O féretro foi baixado à cova e Beamish pulverizou algo sobre a tampa, que tinha ficado um pouco torcida no fundo do buraco. O que importava? Para George dava no mesmo. Seu eu real tinha ido a um lugar quente e luminoso, deixando atrás os medos terrestres.

Emily se inclinou para pegar umas pedrinhas e as lançou à cova. Começou a dizer algo, mas a voz lhe falhou.

Charlotte a puxou pelo braço e se dispuseram a partir com Edward.

Retornaram a casa em silêncio. Emily se tinha despedido do Edward deixando-o aos cuidados da senhora Stevenson para que voltasse para casa, a seu quarto seguro e familiar. Emily, mentalmente, já estava sozinha. Ela não tinha matado ao George. Alguém tinha entrado às escondidas na despensa para envenenar o café. Mas por que? Era o ato final de uma longa série de incidentes e emoções. Talvez tivessem contribuído muitas pessoas, cada qual com uma palavra, um gesto; mas era ela quem tinha posto a maior parte? Seria bonito descobrir que George conhecia algum segredo que justificasse terem o matado; isso poria fim aos escuros pensamentos que a invadiam. Havia três suspeitos claros: William, Sybilla e Jack Radley. Os três com o mesmo motivo: o desejo de George por Sybilla.

Emily tinha algo a ver. Se tivesse sido bastante afetuosa, interessante, generosa, discreta, alegre e engenhosa, George não teria sentido pela Sybilla mais que uma atração passageira. Nada importante, nada que tivesse ferido ao Emily ou a William, nem que Sybilla tivesse desesperado perder.

Tanto tinha estado apaixonada pelo George? Tia Vespasia havia dito que Sybilla tinha muitos admiradores e que William nunca se mostrara ciumento por isso. Sybilla era discreta, e o que tivesse podido fazer era segredo seu. E inclusive George não tinha feito nada que outros não tivessem visto em público. Ela tinha aceito, fomentado inclusive, sua admiração. Mas tinha chegado a levá-lo à cama? A idéia lhe doeu profundamente; era uma traição a seus momentos mais íntimos e apreciados, mas tratar de evitá-lo era uma idiotice. Emily não sabia a resposta, e não havia nenhuma razão para pensar que William soubesse. Não, o mais provável era que para Sybilla tivesse sido só um jogo, um elogio a sua vaidade, e talvez a presença do perigo o tinha feito mais divertido.

Se William se havia sentido repentinamente ciumento, a única coisa a defender era sua própria vaidade. Durante todos estes anos tinha sido tolerante. Não ia organizar agora um espetáculo, converter-se no bobo de todos atacando ao George. Podia haver compaixão pelo marido cornudo mas também havia risada, uma compaixão marcada pela cicatriz da crueldade, pelo alívio de que isso acontecesse com outro. Havia piadas obscenas, calunia contra a dignidade... e esse era o insulto definitivo, tão insuportável que usurpava a essência da vida mas negava a paz da morte. A vítima ainda sentia em carne viva a consciência de ter perdido. Ele jamais teria chamado a atenção sobre si mesmo desse modo, seja por um arrebatamento de mau gênio seja por vingança.

Não. Ela não achava que William tivesse matado ao George. Isso só o teria conduzido ao que todo homem achava intolerável. E Sybilla? George era encantador, divertido, generoso, mas só se ela se tornara completamente histérica se tivesse apaixonado por um homem casado ao extremo de que uma briga pudesse conduzi-la ao assassinato. Sybilla tinha tido outras aventuras, que teriam concluído de uma maneira ou de outra. Com certeza sabia como terminar algo assim com elegância, com certeza notava os sintomas de uma ruptura e era a primeira a mostrar-se fria. Não tinha dezoito anos, e além disso lhe sobrava experiência. Acaso sua aventura com o George tinha sido diferente? Por que razão? À Emily não lhe ocorria nenhuma.

Restava Jack Radley, e a resposta a isso era o desagradável pensamento que tinha tentado evitar todo o dia. Tinha lhe dado pé, e tinha passado bem. Apesar de se sentir infeliz, da dor pela perda do George, tinha gostado de Jack, tinha gostado de flertar com ele, sentindo que estava de certo modo justificado.

Justificado! Possivelmente sim, pelo que fazia George. O que era bom para um era bom para o outro. Mas e Jack? Para começar, ela nem sequer se incomodara em considerá-lo uma pessoa, mas só uma oportunidade. Jack era atraente, afetuoso e viril. Constava-lhe que não tinha um penny, mas não lhe importava; isso não mudava as coisas.

Era assim? Se se tivesse incomodado em olhar atentamente teria visto um homem de uns trinta e cinco anos, de bom berço mas sem dinheiro nem perspectivas, além do que ele pudesse conseguir-se mediante o engenho? Teria visto possivelmente um homem fraco, acostumado já a um estilo de vida muito elegante, invejoso dos ricos e seduzido de repente por uma mulher bonita; uma mulher cujo marido a desdenhava publicamente, vulnerável porque entendia as convenções com a mente e não com o coração? Até que ponto o tinha animado ela? Tinha lhe dado motivo para pensar que se casaria com ele se ficasse livre? Ele devia ver que por parte dela tinha sido um ardil para recuperar George. Menos ainda: uma seqüela de que se mostrasse encantada em vez de fazer uma cena que só a teria afastado mais do George. Possivelmente não. Possivelmente Jack Radley estava mais longe ainda que ela de famílias como os Ashworth e os March; podia ser que as restrições econômicas e a ambição tivessem dado ao traste qualquer outro sentimento. Tinha tomado-o por um homem muito frívolo, apegado a seus prazeres e muito consciente de seus próprios interesses para apaixonar-se. A atração física era outro cantar, mas isso não devia se tomar muito a sério, não deixar que pusesse em perigo as coisas duradouras, como o dinheiro e a posição social. E isso era algo que compreendia até a classe média. Ninguém punha tudo a rodar por um desejo. Certamente, um homem que tinha sobrevivido até os trinta e cinco graças a seu atrativo e seu engenho não era tão idiota para render-se ao romantismo ou à concupiscência.

Ou sim? Ao fim e ao cabo, a pessoa se apaixonava. Tão encantadora se mostrou ela para que ele arrojasse tudo pela amurada... e em um arrebatamento de paixão assassinasse ao George?

Não. Tudo era calculado. E ele tinha escolhido impetuosamente o momento porque de algum modo também tinha ouvido a rixa entre George e Sybilla, sabendo que lhe escapava a oportunidade. Um dia mais e teria perdido Emily.

A carruagem passava agora por uma avenida de abedules e o vento que agitava suas folhas soava como o frufrú de saias, a seda negra sobre a vereda do cemitério, o repicar de azeviches em torno de pescoços rechonchudos. Emily estremeceu. Dentro fazia frio; o lenço de seda branca que tinha na mão recordou os lírios, e a morte.

Era ela, no fundo, a responsável? A culpa moral continuaria viva à margem do que a polícia pudesse descobrir. E também o estigma social. Todos esqueceriam fato de que ela só tinha sido obsequiosa, atenta. Recordariam- na como a mulher cujo amante tinha assassinado ao marido.

E o dinheiro?

Tinha recebido já uma nota de seu advogado, um pêsames direto, mas sabia que havia uma fortuna esperando-a. Parte da mesma estava em nome do Edward, mas mesmo assim lhe ficaria uma soma muito cuantiosa, suficiente para que Jack Radley continuasse levando um excelente tipo de vida. E é claro, as casas seriam para ela. Pensar nisso a assustou; uma fria e pegajosa vertigem atendeu seu estômago. Se Jack tinha matado ao George, ela devia compartilhar a responsabilidade. Se o descobriam, no melhor dos casos ela ficaria marginalizada da sociedade... no pior a pendurariam com ele.

E se não o descobriam, a suspeita flutuaria sempre sobre sua cabeça. Passaria- se o resto da vida vendo os outros murmurarem. E talvez seria a única pessoa que saberia que ela era inocente... e ele culpado.

Podia Jack permitir-se deixá-la viver com o risco de que algum dia pudesse demonstrar que ele era o assassino? Teria que tentá-lo, por sua honra.

Possivelmente ela também teria um "acidente" ou inclusive se "suicidaria—se". O ar que entrava pela janela da carruagem arrepiou-a.

O almoço, como toda finalização de funeral, foi frio e formal. Emily agüentou com toda a dignidade que pôde, mas depois se desculpou e em lugar de dirigir-se a seu quarto, onde Charlotte ou Vespasia podiam encontrá-la, passou ao longe. Queria pensar sem que a interrompessem, sem que ninguém a coagisse com perguntas.

No corpo principal da casa existia o risco de tropeçar com alguém, o que lhe forçava a dar uma desculpa ou a entabular conversa, sabendo o que pensavam dela e tendo que fazer a pantomima da urbanidade.

Uma vez em cima, tomou o segundo e mais estreito lance de escada até o que, uma geração atrás, tinha sido o quarto das crianças, a fim de que seus jogos e seus gritos não incomodassem ao resto da casa. Deixou atrás os dormitórios – agora fechados -, o quarto da babá, o quarto dos meninos - onde só ficavam dois berços cobertos por lençóis e uma cômoda branca e rosa - e ao fundo do corredor chegou finalmente ao quarto principal.

Era como um mundo apanhado em âmbar desde há dez anos, quando Tassie, a última descendente, tinha-o abandonado. As cortinas estavam abertas e o sol punha brilhos dourados nas paredes, mostrando os tetos descoloridos e o gelado pó na parte superior das fotografias: meninas com avental engomado e um moço em traje de marinheiro. Devia ser William, seu rosto então mais brando, os ossos ainda por formar, a boca indecisa em um meio sorriso. No virado sépia e sem o vermelho de seu cabelo, parecia extranhamente diferente. Seu rosto de moço tinha algo que recordava muito à foto que tinha visto da Olivia.

As meninas eram diferentes, mas todas salvo uma tinham o rosto redondo do Eustace, as sobrancelhas curvadas, o olhar confiante. A exceção era Tassie, mais fraca, mais candida, mais como William, à exceção da boca e o laço no cabelo.

Junto à janela havia um cavalo de balanço, pintalgado, com a brida quebrada e a sela gasta. Uma turca rosa com rendas aparecia coberta de bonecas, todas bem sentadas e obviamente arrumadas pela mão indiferente de uma criada. Uma caixa de soldados de chumbo descansava junto a uns cubos de cores, uma casa de bonecas com a fachada arrancada, duas caixinhas de música e um caleidoscópio.

Emily se sentou na poltrona grande e se fixou em sua saia negra sobre o rosa.

Odiava o negro. À luz do dia parecia velha e poeirenta, como se tivesse posto algo morto. As normas ditavam um luto de um ano pelo menos. Que ridículo. George não o teria querido assim. Gostava das cores alegres e suaves, sobre tudo o verde claro. Sempre adorava ver a de verde claro, como um rio à sombra ou as folhas tenras da primavera.

Basta! Era uma dor desnecessária continuar pensando em George, continuar lhe dando voltas e mais voltas. Era muito cedo. Possivelmente dentro de um ano seria capaz de recordar unicamente as coisas boas. Então se teria acostumado a estar sozinha e a ferida teria começado a cicatrizar, pouco a pouco.

O aposento era cálido e luminoso, e a poltrona muito cômoda. Fechou os olhos e se apoiou no espaldar, de rosto ao sol. O silêncio era absoluto ali acima, como se o resto da casa não existisse. As disputas e sussurros dos outros, seus medos e sua malícia, ficavam longe, muito longe, em outra cidade. Cheirava a pó e brinquedo velho, ao algodão dos vestidos de boneca, a madeira do cavalo, o pungente aroma do chumbo dos soldaditos e o estanho das caixas. Tudo era vagamente prazenteiro, possivelmente porque era diferente e porque lhe recordava um pouco essa época mais segura e mais simples de sua própria vida.

Estava quase adormecida quando ouviu a voz, muito frouxa mas sobressaltando-a.

— Não agüentavámos mais, não é? Não a culpo. Ninguém sabe o que dizer, mas continuam falando igual. E a velha parece saída de uma tragédia grega. Subi para ver se estava porque temia que não se encontrasse bem.

Emily abriu os olhos e levantou a vista, piscando ao sol que entrava pela janela.

Jack Radley estava ali de pé, um pouco inclinado contra a ombreira da porta. Já não estava de negro mas sim de um bonito marrom claro. Não lhe ocorreu o que responder. Sua mente se negava a pensar.

Ele avançou e foi sentar se a seus pés em um pequeno tamborete. O sol formava um halo em torno de seu cabelo e fazia com que suas pestanas dessem sombra a suas faces. Emily se lembrou do dia na estufa, e o estômago lhe removeu. Aquele dia George ainda estava vivo...

Por fim achou uma resposta.

— Não estou de humor para conversar. Não quero ver-me forçada a ser cortês, enquanto os outros tratam (muito torpemente, tudo deve-se dizer) de não falar do assassinato mas deixando bem claro que pensam que fui eu.

— Então evitarei o tema - respondeu ele sem alterar-se, olhando-a com essa mesma candura afetuosa que lhe tinha visto a noite em que a tinha beijado tão intimamente. Isso lhe trouxe a lembrança de como sabiam seus lábios, o aroma de sua pele, e a suave e forte textura de seu cabelo. A sensação de culpa foi entristecedora.

— Não seja ridículo! – replicou-lhe com fúria desmedida. Já não tinha a destreza necessária para falar indefinidamente de trivialidades. Em realidade, não queria falar de nada com Jack Radley. Não podia tirar da cabeça os pensamentos que temia pudesse albergar ele respeito a ela, a idéia de que ela se houvesse sentido tão atraída por ele que com o George morto estivesse disposta a pensar em casar-se outra vez, não digamos com um homem que talvez o tinha assassinado!

— Sinto muito - disse ele em voz baixa. — Sei que é impossível não pensar. Suponho que não pode tirar isso da cabeça nem durante meia hora.

Olhou- o com inapetência. Jack estava sorrindo, e parecia tão inocente e agradável no meio daquele quarto de crianças que ela achou extravagante pensar em mortos. Entretanto, não podia evitar. Era verdade! Alguém tinha assassinado ao George. Não o tinha feito ela; Era para ela difícil acreditar que fosse Sybilla - ela não tinha nada que ganhar e sim muito que perder - e impossível que o tivesse feito William. Tomara pudesse pensar que tinha sido a senhora March, mas não achava uma razão de peso. E depois havia a imagem abominável de Tassie subindo pela escada em plena noite, serena e cheirando a sangue. Podia ter matado ao George em um ataque de loucura? Mas até a loucura tinha suas razões! E inclusive forçando as coisas, podia ser Eustace, para ocultar a pena do Tassie? Talvez ela tivesse feito alguma coisa horrenda anteriormente. Seria para ocultar isso? Não tinha sentido. Se Eustace sabia que Tassie estava louca não teria tentado casá-la com ninguém; a teria feito prendê-la, pelo bem de todos.

Tinha que ter sido Jack Radley, sentado agora a um passo dela, com o sol brilhando em seu cabelo e a camisa de um branco deslumbrante. Podia cheirar o algodão assim como cheirava o pó e o calor do sol na cadeira e nos soldaditos de chumbo.

Evitou seu olhar, temerosa de que ele notasse o medo em seus olhos. Se ele compreendia seus pensamentos, como devia sentir-se? Doído, porque lhe importava o que ela pensasse dele, porque era injusto e ele esperava outra coisa, ou porque lhe estavam falhando seus planos? Zangado possivelmente até o ponto de agredi-la? Ou, pior ainda, temeroso de que o delatasse e se convertesse em um perigo para sua segurança?

Agora não se atrevia a olhá-lo. E se ele notava todo isso em seus olhos? Se tinha matado ao George, agora teria que matá-la também. Mas o descobririam!

Não se simulava um suicídio. Os March se alegrariam de aceitá-lo, esquecer do assunto e expulsar à polícia de casa, e Thomas teria que partir e aceitar a evidência. A família não faria perguntas nem complicaria a vida, nada disso! Aceitariam-no agradecidos.

Charlotte nunca acreditaria, é claro. Mas quem lhe ia fazer conta? Ela não poderia fazer nada. E inclusive se pudesse, dificilmente conseguiria ajudar ao Emily.

Estava no quarto das crianças. O sol brilhava tanto que a deslumbrava. Sentia-se um pouco enjoada, e a poltrona lhe pareceu de repente muito dura. Era como se se movesse. Que absurdo, agora não podia desmaiar! Estava a sós com ele, fora do alcance do ouvido dos outros. Se ele a matasse aqui podiam passar dias até que alguém a encontrasse, semanas, possivelmente! Até que uma criada viesse de novo tirar o pó rotineiramente. Pensariam que escapara, que tinha admitido sua culpa.

—Emily, encontra-se bem? - Sua voz soou ansiosa. Ela notou que lhe tocava o braço.

Quis escapar com violência. Um suor de pânico molhou sua pele. Se se afastava, ele saberia que tinha medo, e saberia por que. Ela não poderia levantar-se e pôr-se a correr antes de que a alcançasse. Cabia a possibilidade de que pudesse ganhar a porta e correr pelo corredor até a alta escada. Seria tão fácil empurrá-la, cairia de cabeça. Já imaginava seu corpo estendido no chão, ouvir a voz dele dando explicações. Tudo tão simples, tão lamentável.

Só havia uma saída: fingir inocência, convencê-lo de que não suspeitava de nada, de que não lhe tinha medo.

Engoliu com força e apertou os dentes. Forçou-se a olhá-lo, sustentou seu olhar sem pestanejar, falou sem morder a língua nem balbuciar.

— Sim... obrigada. Só estava um pouco enjoada. Aqui dentro faz muito calor.

— Abrirei a janela. – Levantou-se e abriu o pesado batente corrediço.

Exato! Uma queda janela abaixo! Estavam em um terceiro andar, e esse seria o fim. Quem a ouviria se gritasse? Ninguém. Por isso precisamente era o quarto das crianças, para que seus gritos não incomodassem a ninguém. Mas se permanecia sentada lhe custaria fazê-la levantar, era um peso inerte. Era muito pouco, mas não restava mais saída que avançar um passo cada vez e calcular o seguinte.

— Sim, pode ser que isso me alivie - concedeu.

Ele a olhou emoldurado pelo sol. Aproximou-se dela e se inclinou para lhe agarrar a mão. Estava quente, e ela não pôde evitar um estremecimento ao notar sua força.

Agora não podia levantar-se da cadeira. Tinha-a virtualmente aprisionada.

— Emily... – Olhou-a no rosto fixamente. — Emily, tem medo?

Ela estava tão assustada que lhe doía o corpo e o suor lhe corria costas abaixo e entre os seios.

— Medo? - Fingiu não compreender.

— Não finja comigo. - Continuava lhe segurando a mão. — Eustace e essa velha temível estão empenhados em que a acusem de assassinato. Mas o fazem só para sossegar o assunto e tirar a polícia de sua casa. Pitt o terá imaginado. Ele é cunhado seu, não é verdade? E penso que sua irmã não permitirá que a acusem de nada sem fazer o possível por despedaçá-los, e que as partes caiam onde seja.

Sabia ele o que ela estava pensando? Podia perceber seu medo? Com certeza sabia que era imediato e físico, não motivado por algo tão remoto como as suspeitas dos March. Havia um passo evidente e obrigado daí até o conhecimento de que ela pensava que ele tinha matado ao George.

— É muito irritante - disse engolindo sem saliva, o rosto corado. — Como é lógico, não é agradável que alguém, embora seja a senhora March, imagine coisas assim de alguém. Mas me consta que é porque teme por si mesma.

— Por si mesma? - Parecia surpreso, mas ela não quis olhá-lo.

— Acredito que será melhor que não fale disso - disse Emily em voz baixa. — Mas há certas coisas... na família...

— Quem? Tassie? - Agora parecia desconfiada.

— Na verdade, senhor Radley, eu preferiria não continuar com isto. Não acredito que tenha nada que ver com ela, mas a senhora March pode ficar muito nervosa. – Moveu-se por fim, rezando para que ele se voltasse atrás e a deixasse ficar de pé.

Tremeram-lhe as pernas de alívio quando ele o fez.

— Você acredita que foi Tassie? - insistiu.

Mas ela se negou a olhá-lo. Cautelosamente, meio asfixiada pelos nervos, dirigiu-se para a porta.

— Não... provavelmente porque não quero pensar nisso. Não quero pensar isso de ninguém, mas é algo que não posso evitar. - Tinha chegado ao outro quarto dos meninos e ele estava atrás dela. — William tinha uma boa razão para fazê-lo. – Era malvado dizê-lo, mas só pensava em escapar, chegar à escada e descer até o patamar do primeiro piso, onde haveria alguém.

— É claro. - Radley seguia atrás, muito perto, preparado para agarrá-la se parecesse a ponto de desmaiar. — Se é que lhe importava. Eu não vi que desse demonstração disso. E certamente George não era o primeiro homem a quem seduzia Sybilla, sabe.

— Imagino, mas isso não significa que William não se importasse! – Emily avançou depressa, muito depressa. A idéia de que a uns metros estaria segura era muito doce; o alívio antecipado a impedia de respirar bem. Tinha que adiantar-se para descer a escada, de forma que ele não pudesse empurrá-la ou fazê-la tropeçar. Queria correr, assegurar a fuga. Então, com horror quase insuportável, notou que a mão dele se fechava sobre seu cotovelo. Desejou escapar, gritar. Mas ali não havia ninguém, nem sequer abaixo. E se gritasse se teria delatado e estaria sozinha frente a ele. Ficou petrificada.

— Emily - disse ele. —Tome cuidado!

Era uma ameaça? Olhou-o quase involuntariamente. Precisava sabê-lo.

— Cuidado com o William! - disse ele com seriedade. — Se foi ele e se dá conta de que você sabe, poderia lhe fazer dano, embora só fosse tratando de culpá-la de algum jeito.

— Fique tranquilo. Minha intenção é não falar disso, se é que me deixam.

Ele riu sem deleite.

— Digo-o a sério, Emily.

— Obrigada. - Quase se engasgou ao dizê-lo. Estavam no alto da escada. Não podia permanecer ali; ele saberia que temia que a empurrasse, e o saber o não faria senão propiciar esse ato. Ele tinha que matá-la, e não lhe apresentaria uma ocasião melhor. Um simples tropeção e ela cairia escada abaixo, fraturaria as costas ou o pescoço. Estava já no segundo degrau. Obrigou-se, tremendo de medo e com os joelhos frouxos, a seguir descendo. Quarto degrau. Ele estava atrás; não podia ficar ao lado, era muito estreito. Sétimo degrau, oitavo; tratou de não apressar-se.

Cada segundo estava mais perto. E por fim chegou abaixo. Estava a salvo! De momento.

Aspirou uma baforada de ar, afastou-se com a estupidez própria do desafogo e cruzou a toda pressa o patamar em direção à escada principal.

 

Pitt assistiu ao funeral, mas a tão discreta distância que ninguém da família o viu. Depois os seguiu de volta ao Cardington Crescent e desta vez entrou pela cozinha, levando Stripe com ele. Tinham examinado uma e outra vez as mais frágeis prova e considerado os escassos retalhos de conversa que tinham conseguido ouvir, na esperança de descobrir alguma revelação, mas nada tinha destacado de um modo especial, nada o ajudava a percorrer aquele labirinto.

Deixou ao Stripe interrogando uma vez mais aos criados, se por acaso ao repetir as coisas recordavam algum fragmento, algo que de repente saltasse à superfície de sua memória.

Queria ver Charlotte. Nem toda a concentração em torno deste ou outro caso podia apagar a solidão de quando retornava a casa de noite e só havia luz no vestíbulo, a cozinha vazia e em ordem, tudo recolhido exceto o jantar que Gracie lhe tinha preparado com esmero e deixado sobre a mesa.

Toda noite comia em silencio junto aos rescaldos do fogo no fogão; depois tirava as botas e subia nas pontas dos pés a escada olhando as formas miúdas e adormecidas de Jemima e de Daniel antes de ir a seu quarto. Estava tão cansado que dormia em poucos minutos, mas pela manhã despertava com uma sensação de fadiga, e às vezes inclusive chegava a ter frio.

Pela manhã Gracie lhe informava dos acontecimentos do dia anterior que ela julgava importantes, mas de um modo tímido e desgracioso, muito longe dos detalhes, opiniões e mistério com que o enfeitava Charlotte. Ele estava acostumado a considerar uma intrusão aquele falatório incessante durante o café da manhã, um castigo que todo homem casado tinha que aceitar. Mas sem isso lhe era impossível concentrar-se no jornal e desfrutar de sua leitura.

Perguntou ao lacaio dos March onde estava Charlotte. O homem o levou a um abarrotado toucador, fechado como um invernáculo, e lhe pediu que esperasse.

Passaram cinco minutos até que ela entrou e, fechando a porta a suas costas, lançou-lhe os braços e o estreitou. Pitt notou que, embora em silêncio, ela estava soluçando.

Beijou-a no cabelo, na fronte, na face - e depois lhe passou seu único lenço decente, esperando enquanto ela se assoava duas vezes.

— Como estão os meninos? - perguntou Charlotte, olhando-o nos olhos.

— Teve Daniel esse dente? Pareceu-me que tinha um pouco de febre...

— Encontra-se perfeitamente. Só esteve fora alguns dias.

Mas ela não se dava por satisfeita.

— E os dentes? Tem certeza de que não tem febre?

— Completamente. Gracie diz que está bem e que come com apetite.

— Mas couve, não. E ela sabe disso.

— Devolve-me o lenço? É o único que tenho.

— Conseguirei-te um de... do George. Por que não tem lenços? Gracie não lhe lava a roupa?

— Claro que sim. É que me esqueci.

— Deveria ter lhe posto isso no bolso. Encontra-se bem, Thomas?

— Sim. Obrigado.

— Me alegro. - Mas parecia cética. Fungou e logo trocou de opinião e voltou a assoar. — Suponho que ainda não averiguou nada. Eu tampouco. À medida que passam os dias entendo cada vez menos.

Pôs-lhe uma mão no ombro com suavidade.

— Conseguiremo-lo - disse com mais convicção do que a justificada. Ainda é muito cedo. Como está Emily?

— Mal e assustada. Eu... eu acho que lhe foi muito duro deixar que Edward voltasse para casa com a senhora Stevenson. É tão pequeno; o menino não entende. Mas não demorará para saber que...

— Resolvamos primeiro o que temos à mão - lhe interrompeu ele. — Já ajudaremos ao Edward mais adiante.

— Sim, certamente. - Charlotte engoliu em seco e esfregou as mãos na saia.

— Precisamos saber mais coisas dos March. Foi um deles, ou... Jack Radley.

— Por que duvidou antes de mencionar a ele?

Ela baixou a vista, evitando seu olhar.

— Imagino que...

— Receia que Emily lhe desse motivo? - perguntou Pitt, odiando-se por fazê-lo.

Mas se não o fizesse a dúvida permaneceria entre eles, e se conheciam muito bem para mentir, mesmo se fosse com silêncios.

— Não! - Mas Charlotte sabia que ele não acreditava. Era uma resposta leal, não convencida. — Não sei -acrescentou, procurando algo mais próximo à verdade. — Duvido que ela tivesse essa intenção. - Inspirou profundamente. — Como vai com o caso Bloomsbury? Estará ocupado também com isso...

— Pois não. – Sentiu-se mal ao dizê-lo. Não tinha a menor esperança de resolver o caso, e nenhuma solução ao que revelaria outra coisa senão outra tragédia cuja repetição era difícil prevenir. Só o grotesco do cadáver permanecia na retina do público.

Estava olhando-o; a perplexidade deu passagem à compreensão.

— Não sabe nada? Não pode averiguar quem era essa mulher?

— De momento não. Estamos tentando. Poderia ter saído de qualquer parte. Se era uma criada despedida por má conduta, ou inclusive porque o senhor da casa andava atrás dela e a senhora o tinha descoberto, então é possível que tivesse feito a rua para sobreviver, e que um cliente, um alcoviteiro ou um ladrão a tivesse matado.

— Pobrezinha - disse Charlotte. — Não há nada a fazer.

— Provavelmente não. Mas investigaremos um pouco mais.

Olhou- o de cima abaixo.

— Aqui sim há muito que fazer! Quem matou ao George se encontra nesta casa, é um de nós. Ou Jack Radley ou um dos March. - Franziu a frente lutando consigo mesma até chegar a uma decisão. — Thomas, tenho algo muito... muito desagradável que lhe dizer. - E sem deter-se ver que expressão punha ele, passou a lhe relatar exatamente o que tinha visto no pé da escada em plena noite.

Pitt ficou confuso. Teria sonhado Charlotte? Certamente, motivos não lhe tinham faltado nestes dias para ter pesadelos. Inclusive se estava acordada e tinha ido até o patamar, não podia ser que o brusco despertar, a piscada do abajur de gás tivessem enganado a sua vista, fazendo-a ver sangue onde não havia mais que sombras?

Olhava-o, à espera, procurando em seu rosto uma resposta horrorizada. Pitt tratou de dissimular suas dúvidas.

— Que eu saiba, não apunhalaram a ninguém - disse.

— Já sei! - Agora estava zangada porque tinha medo e sabia que ele não acreditava de tudo. — Por que ia alguém subir a escada furtivamente cheirando a sangue? Por que ninguém comentou nada? Tassie estava perfeitamente normal esta manhã. E tão tranqüila, Thomas! Juro-lhe que parecia feliz!

— Não diga nada - lhe advertiu ele. — É melhor que não ponhamos de sobreaviso o assassino. Se estiver certa, então esta casa, esta família, encerra algo muito malvado. Rogo-lhe, tome cuidado. – Agarrou-a pelos ombros. Possivelmente seria melhor que Emily voltasse para sua casa, e você com ela.

— Não! - Charlotte se soltou, erguendo ao mesmo tempo a cabeça. — Se não descobrir quem é, e o demonstramos, poderiam enforcar Emily ou quando menos manchá-la com essa suspeita para toda a vida, e as pessoas cochichariam que ela poderia ter matado a seu marido. E mesmo que Emily pudesse suportar tudo isso, Edward não!

— Averiguarei-o sem você - começou ele, mas a olhava com olhos ardentes e o rosto tenso.

— Possivelmente. Mas eu posso ver e escutar de um modo que você jamais poderá nesta casa. Emily é minha irmã, e penso ficar. Seria um engano escapar e isso não me vai discutir. Você não escaparia.

Pitt refletiu. O que aconteceria se lhe ordenasse que voltasse para casa? Charlotte não se iria; nesse momento sua lealdade por Emily era maior, e com razão. Desejava lhe exigir que fugisse do perigo, mas era por covardia, medo egoista de que a ela pudesse acontecer algo. Mas se ele não resolvia este crime, se Emily era condenada ao patíbulo, teria perdido tudo o que dava fogo e trascendencia a sua relação com Charlotte.

— Está bem - disse por fim. — Mas pelo amor de Deus, tome cuidado! Nesta casa há um assassino, ou possivelmente mais de um.

— Sei - murmurou ela. — Sei, Thomas.

Naquela mesma tarde, Eustace fez chamar Pitt para que fosse vê-lo na saleta. Ele estava de pé, as mãos metidas nos bolsos, frente à luz apagada e com a mesma roupa que tinha levado no funeral.

— Bom, senhor Pitt - começou quando a porta ficou fechada. — Como vai essa investigação? Soube algo interessante?

Pitt não estava preparado para comprometer-se, e menos ainda para comentar o que Charlotte lhe tinha contado de Tassie.

— Muitas coisas - respondeu sem alterar-se. — Mas ainda não estou certo de sua importância.

— Nenhuma detenção? - insistiu Eustace, com expressão animada e ombros relaxados, fazendo que a jaqueta de bom corte encaixasse mais uniformemente, sem tensões no tecido. — Não me surpreende. Uma tragédia doméstica. Já o disse no primeiro dia. Estou certo de que acharemos algum asilo. Não repararemos em gastos, e a garota poderá estar tão confortável que seja necessário. É o melhor para todos. Não há maneira de provar nada. Ninguém lhe pode jogar a culpa, meu querido amigo. A situação é bastante injusta para você.

De modo que Eustace já queria dar o caso por fechado e evitar que a investigação seguisse adiante. Para os March era muito fácil proteger seu bom nome culpando Emily. Mal tinham esperado que o cadáver estivesse na cova antes de iniciar, com alguma mentira sobre a marcha, uma discreta conspiração. Pelo bem de todos. Podiam inclusive chegar a convencer-se - todos exceto um - de que realmente Emily tinha assassinado ao George em um ataque de ciúmes. E esse um seria o mais interessado de todos eles em fazer que prendessem Emily e que a culpa ficasse atribuída para sempre, o caso fechado. Pior que isso era a suspeita de que não era impossível que tivesse sido Emily. A Charlotte não o diria, e isso lhe fez sentir uma pontada de culpa. Mas ninguém mais tinha mencionado a presunta reconciliação e sem isso Emily tinha um dos melhores e mais antigos móveis da condição humana: o da mulher ridicularizada e enganada depois. E talvez essa idéia rondasse a ela pela cabeça mais do que Charlotte e ele mesmo pensava.

— Má sorte - repetiu Eustace com crescente satisfação. — Não cabe dúvida de que tem feito tudo o que pôde.

Sua pomposidade, sua predisposição a conformar- se, eram insultantes.

— Acabo de começar - respondeu secamente Pitt. — Descobrirei muitas coisas; de fato, não vou descansar até reunir provas de quem assassinou ao George.

— Santo céu, mas por que? - protestou Eustace, arregalando os olhos ante tão insensata conduta. — Com isso só obterá uma tortura desnecessária, inclusive a sua própria esposa. Tenha um pouco de compaixão, homem, um pouco de sensibilidade!

— Eu não sei se foi Emily! - Pitt olhou-o irritado, furioso e impotente, desejando arrancar de seu rosto aquela horrível certeza. Estava ali plantado frente à lareira, com todas suas posses ao redor, dispondo da vida do Emily como se fosse um animal de companhia que se tornou problemático. — Não há nenhuma prova!

— Acaso espera achar alguma? - Eustace era eminentemente razoável. — Não se culpe a si mesmo. Consta-me que é você muito competente, mas não pode fazer milagres. Levemos isto sem escândalos, por Emily e pelo menino.

— Chama-se Edward! - Pitt estava fora de si e notava que estava perdendo esse controle imprescindível em qualquer busca inteligente da verdade, mas sua voz não deixava de aumentar de volume. — Por que acredita que o fez Emily? Tem alguma prova que não me tenha comunicado?

— Meu senhor! - Eustace se balançou adiante e atrás, as mãos ainda nos bolsos. — George tinha uma confusão com a Sybilla! Emily estava à corrente, e não pôde dominar seu ciúmes. Suponho que isso entende.

— É um excelente motivo, sem dúvida - disse Pitt baixando a voz com esforço. — Para Emily e também para William March. Eu não vejo diferença, a menos que a versão do Emily de que ela e George se reconciliaram seja certa, em cujo caso o senhor March seria o primeiro candidato.

Eustace sorriu abertamente, sem mal mudar sua compostura.

— Absolutamente, meu amigo. Em primeiro lugar, eu não acredito nessa história de uma reconciliação. É uma miragem, ou um temor muito lógico. Mas inclusive assim, a situação para Emily é muito distinta da do William. Emily queria ao George... bom, necessitava-o. - Assentiu com a cabeça. — Se um marido tiver uma aventura a mulher não tem outra opção que aceitá-lo o melhor que possa. Uma mulher inteligente fingirá que não sabe nada; desse modo não precisa fazer nada absolutamente. Seu lar e sua família não correm perigo por uma tolice assim. Sem seu marido não é nada. Aonde iria, o que poderia fazer? - deu de ombros -. Ficaria marginalizada da sociedade e sem um céntimo com que alimentar e vestir-se a si mesma e seus filhos.vPelo contrário, para um homem é muito diferente. Bem é verdade que Sybilla se comportou com indiscrição em outras ocasiões, e o pobre William decidiu não agüentar mais. A isso terá que acrescentar que não lhe tinha dado filhos, o qual, embora eu diria que é algo que a pobre não pode evitar, não deixa de ser um problema. William queria divorciar-se e tomar uma esposa mais adequada, que cumprisse com seu papel de mãe para fundar uma família. Alegrou-se muito de que por fim Sybilla lhe tivesse proporcionado a justificação que necessitava para não parecer injusto a olhos de outros nem para repudiá-la por estéril.

Pitt estava perplexo. Era algo que nem sequer lhe tinha passado pela cabeça.

— William queria divorciar-se de Sybilla? - repetiu bobamente. — Ninguém me havia dito isso.

— Oh, não. - O sorriso de Eustace se fez mais confiante. Tirou as mãos dos bolsos e as apoiou no espaldar da cadeira. — Eu acredito que daí vinha a discussão que Emily acreditou escutar. Agora que Sybilla vai ter por fim um filho, isso muda as coisas. Pelo bem do menino, William a perdoou e decidiu aceitá-la de novo. E é claro, ela está muito arrependida. Imagino que seu comportamento será no futuro como todos desejamos. - Seu rosto brilhou de satisfação.

Pitt ficou sem fala. Não tinha a menor ideia de se lhe estava dizendo a verdade, mas por seu superficial conhecimento das leis de divórcio sabia que o que dizia Eustace era correto: um homem podia divorciar-se de sua mulher e deixá-la na rua como adúltera, mas uma mulher não podia fazer nada semelhante com a lei na mão.

O adultério não vinha ao caso sempre e quando fora ele, e não ela, quem o cometesse.

—Vejo que o compreendeu - dizia Eustace, sem que Pitt aparentasse escutar. — Quanto menos se fale disto, melhor. Fiz-lhe uma confidência. Consta-me que não a divulgará. Confio em sua discrição. Estes assuntos são coisa de marido e mulher. - Abriu as mãos com as palmas para cima em um gesto de confiança de um homem razoável a outro- . Contei isso só para que o compreendesse. O pobre William teve que agüentar muito, mas agora poderia estar às portas da felicidade. É uma tragédia que a pobre Emily não conseguisse dominar-se, uns quantos dias e tudo teria voltado para seu leito. Uma tragédia. - Aspirou forte. — Mas pode estar tranqüilo de que nos ocuparemos dela; estará muito bem cuidada.

— Não penso ir - disse Pitt, sentindo-se como um idiota. Devia parecer ridículo em meio daquela estadia cheia de relíquias familiares, e com o próprio Eustace tão firme como a madeira das cadeiras. Pitt tinha o cabelo revolto, levava a gravata torcida e a jaqueta outro tanto, e dois lenços de George no bolso. Para Eustace lustrava as botas cada dia um engraxate; as do Pitt tinham remendos e as limpava Gracie, quando se lembrava de fazê-lo e tinha tempo. — Ainda não terminei - insistiu.

— Como quiser. - Eustace pareceu decepcionado mas não preocupado. — Faça tudo o que julgue necessário, mas com a máxima prudência. Não quero que fique sem emprego. Na cozinha lhe darão de jantar, se quiser. E a seu companheiro Stripe, é claro.

Stripe se alegrou muito de jantar na cozinha, não porque tivesse a menor esperança de descobrir algo relativo ao caso, mas sim porque Lettie Taylor também estava ali, limpa e bonita como um jardim e, na opinião de Stripe, igualmente agradável.

Esteve todo o tempo olhando ao prato, morrendo de vontade de levantar a vista mas muito coibido para fazê-lo. Não estava acostumado a comer rodeado de tão formal e até hierárquica companhia. O mordomo ocupava a cabeceira da mesa como o pai de uma grande família, e a governanta no extremo oposto, como faria uma mãe. O mordomo presidia como se se tratasse de uma importante função e, em conseqüência, o ritual era estrito. Os lacaios e criadas mais jovens não abriam a boca a menos que assim lhes pedisse. As criadas, tanto as residentes como as das convidadas, formavam claramente uma classe à parte. Os lacaios de mais idade, as cozinheiras e as copeiras se sentavam no centro e levavam o peso da conversa.

As maneiras eram quase tão refinadas como na sala de jantar principal e o bate-papo virtualmente igualmente afetado, mas o ambiente era bastante mais caseiro. As maneiras dos mais jovens eram corrigidas com paternal familiaridade. Havia risinhos, rubores, más rostos, tal como Stripe recordava havê-los visto em sua própria casa quando ele era pequeno. Os critérios, não obstante, eram estranhos e severos: os cotovelos aos flancos, se não se comia a verdura não havia pudim, nada de cortar as ervilhas com faca; falar com a boca cheia significava bronca imediata, o mesmo que dar uma opinião não solicitada. Falar de falecidos teria sido de incrível mau gosto; falar de assassinato, impensável.

Stripe dirigiu um olhar furtivo ao Lettie, muito rígida com sua renda branca sobre o vestido negro, e descobriu que também o olhava. Seus olhos eram igualmente azuis sob a luz artificial. Stripe afastou rapidamente a vista, mas lhe dava vergonha comer por medo de que lhe pudesse escapar alguma ervilha do prato e fosse parar na reluzente toalha.

— Não gosta da comida, senhor... Stripe? - perguntou lacônica a governanta.

— Oh, é excelente, senhora, obrigado - respondeu ele. Como viu que todos continuavam olhando-o, pareceu-lhe que faltava algo e acrescentou: — Eu... acredito que tinha a cabeça em outra parte.

— Espero que não lhe ocorra falar disso aqui! - A cozinheira soprou com aversão. Não é preciso mais! Rosie nos há posto histérica, Marigold foi despedida e sabe Deus onde andará. Não sei aonde iremos parar, de verdade que não sei!

— Em nenhuma das casas onde trabalhei teve que entrar nunca a polícia – disse arrogante a criada de Sybilla-. Jamais. Se ainda estou aqui é só por meu sentido da lealdade.

—E aqui igualmente! - replicou Lettie tão depressa que não teve tempo de pensar o que dizia. — O que quer? Que nos deixemos assassinar em nossa própria cama sem ninguém que nos proteja? Eu me alegro muito de que a polícia esteja aqui.

— Ah! Você certamente - disse com rudeza a ama de chaves.

Lettie se ruborizou.

— Pois não sei por que o diz - Abaixou a cabeça, e uma das criadas sufocou uma risada em seu guardanapo ao ver que o mordomo a olhava com má cara.

Stripe sentiu um incomparável desejo de defender Lettie. Como se atreviam a insultá-la, a fazê-la passar vergonha!

— Sua atitude é muito galharda, senhorita - disse olhando-a. — Terá que entender a adversidade e abordá-la com integridade. Em momentos assim a melhor cura é o bom senso. Evitariam-se muitos problemas se houvesse mais gente sensata.

— Obrigada, senhor Stripe - disse recatadamente Lettie. Mas o rubor continuou subindo por suas faces, e Stripe se atreveu a pensar que era de gosto.

Passaram a falar de trivialidades até o final do jantar, mas quando Stripe já não sabia que mais perguntar e Pitt tinha terminado sua tarefa na outra parte da casa, chegou o momento de ir-se. Fez isso compungido, embora logo se sentiu ridiculamente alegre quando Lettie voltou para a cozinha com um pretexto vago, captou seu olhar e disse boa noite para depois, com um elegante vôo de sua saia, desaparecer escada acima em direção ao saguão.

Stripe abriu a boca para responder à saudação, mas muito tarde. Deu a volta e ao ver Pitt sorrindo soube que sua admiração - ainda o chamava assim - por Lettie notava-se muito no rosto.

— Muito bonita - disse Pitt em sinal de aprovação. — E sensata.

— Oh, sim, senhor.

— Mas suspeita, Stripe - acrescentou Pitt, divertido - , muito suspeita. Acredito que deveria lhe perguntar muito mais coisas, para ver o que sabe.

— Mas senhor! Se ela for... Ah. - Reparou no olhar do Pitt -. Sim, senhor, como não, senhor. Amanhã a primeira hora, senhor.

— Bem. Que tenha sorte, Stripe.

Mas Stripe estava muito emocionado para agradecer.

Na sala de jantar familiar, o jantar ia muito pior do que Charlotte tinha imaginado. Todos estavam pressentes, incluída Emily, com o rosto lívido de pena. As mulheres estavam de negro ou de cinza salvo tia Vespasia, que nunca transigia. Ela vestia-se de cor lavanda. O primeiro prato foi servido em meio de um silêncio quase absoluto. Quando tinham deixado esfriar a sopa e afastado o peixe branco com um molho que parecia cauda de grudar, a sensação de opressão era insustentável.

— Que rabugice! - explodiu de repente a senhora March.

Todos ficaram de pedra, perguntando-se horrorizados a quem se estaria dirigindo.

— Como diz? - Jack Radley a olhou arqueando as sobrancelhas.

— O policial... esse Spot ou como diabos se chame - prosseguiu ela. — Se dedicou a fazer perguntas à servidão sobre coisas que não são de sua incumbência.

— Stripe - disse em voz muito baixa Charlotte. Não importava, mas se alegrou de ter uma desculpa para replicar.

A senhora March lhe lançou um olhar assassino.

— Como diz?

—Stripe - repetiu Charlotte. — O policial se chama Stripe, não Spot.

— Bom, pois Stripe, dá na mesma. Eu pensava que você tinha coisas mais importantes na cabeça que o sobrenome de um policial. - A senhora March a olhou fixamente, com frieza. — O que vai fazer com sua irmã? Não esperará que nós carreguemos com essa responsabilidade. Sabe Deus que mais pode chegar a fazer!

— Isso é demais - disse Jack Radley, furioso. Produziu-se um fugaz e glacial silêncio, mas ele não se arredou.    — Emily já tem bastante sem que nos dediquemos a especular cruelmente e sem dados fidedignos.

A senhora March levantou o queixo e pigarreou.

— Pode ser que os seus não o sejam, senhor Radley, embora me atreveria a duvidar. Meus certamente o são. Você possivelmente conheça o Emily mais intimamente que eu, mas não a conhece há tanto tempo.

— Pelo amor de Deus, Lavinia! - atravessou Vespasia de mau humor. — Esqueceu as boas maneiras? Emily acaba de enterrar a seu marido, e temos convidados à mesa.

As faces da senhora March coraram.

— Não permito que me censurem em minha própria casa! - disse exasperada, quase gritando.

— Como não sai quase nunca, eu diria que é o único lugar onde é possível fazê-lo - replicou Vespasia.

— Não podia esperar menos de você! – voltou-se para fulminar a Vespasia e derrubou um copo de água.

O copo rodou pela toalha e gotejou sobre o regaço de Jack Radley, mas a cena o tinha muito paralisado para mover-se.

— Você está muito acostumada a ter em casa gente muito vulgar – continuou a senhora March,— vagabundeando, bisbilhotando e falando de obscenidades.

Sybilla bocejou. Jack Radley olhou fascinado para Vespasia.

— Que tolice! - Tassie saiu rapidamente em defesa de sua avó preferida. — Ninguém é vulgar diante da avó; ela não o permitiria! E o agente Stripe só está cumprindo com sua obrigação.

— E se ninguém tivesse assassinado ao George, ele não teria nada que fazer no Cardington Crescent - indicou Eustace exasperado. — E não seja impertinente com sua avó, Anastasia, ou terei que lhe pedir que termine de jantar em seu quarto.

Tassie se acendeu, mas recusou replicar. Não seria a primeira vez que seu pai a expulsava, e sabia que não lhe ia custar fazê-lo agora.

— Tia Vespasia não tem a culpa de que George tenha morrido - disse Charlotte por ela. — Ou está insinuando que o assassinou?

—Absolutamente. - A senhora March voltou a aspirar com força, entre irritada e desdenhosa. — Que Vespasia seja uma excêntrica, ou que inclusive esteja um pouco senil, não deixa de ser da família. Jamais faria uma coisa tão horrenda. E além disso não é tia sua.

— Empapou o pobre senhor Radley, Lavinia - disse bruscamente Vespasia. — Tenha um pouco de cuidado, por favor.

A reprimenda era tão corriqueira e tola que conseguiu silenciar à senhora March, e o seguinte prato pôde ser servido em um ambiente de paz transitivo.

Eustace inspirou fundo e estufou o peito.

— Esperam-nos momentos muito desagradáveis - disse olhando-os a todos um a um. — Por mais debilidades que possamos ter como indivíduos, nenhum de nós quer um escândalo. - Deixou flutuar a palavra. Vespasia fechou os olhos e suspirou.

Sybilla permaneceu muda, alheia a todos, ensimesmada. William olhou a Emily, e então seu rosto registrou um brilho de profunda e quase hiriente piedade.

— Não sei como podemos evitá-lo, papai - disse Tassie, — se realmente foi um assassinato. Eu mais acredito que foi algum tipo de acidente, apesar do que diz Pitt. Por que ia alguém querer matar George?

— É muito jovem, pequena - disse a senhora March franzindo ligeiramente os lábios. — E muito ignorante. Há multidão de coisas que desconhece, e é provável que não as aprenda nunca a menos que engorde um pouco e consiga dissimular essas sardas. Para outros está perfeitamente claro, por muito desagradável que seja.

Deixou que seus olhos azuis de peixe voltassem a pousar-se em Emily.

Tassie ia replicar mas se conteve. Charlotte não pôde evitar um acesso de ira; nada a mortificava tanto como ser tratada com condescendência.

— Tampouco eu vejo nenhuma razão para que alguém matasse ao George - disse.

— Claro, você não podia dizer outra coisa. - A senhora March a olhou malévolamente. — Eu sempre achei que George não se casou com quem devia.

Acenderam as faces de Charlotte e o sangue começou a lhe pulsar nas têmporas. O olhar acusador da anciã era muito claro para interpretá-lo erroneamente.

Ela pensava que Emily tinha assassinado ao George e pretendia que a castigasse por isso.

Engoliu em seco e depois soluçou ruidosamente. Todos a estavam olhando, e seus rostos eram como um mar pálido onde se refletiam olhos horrorizados, compassivos, acusadores. Soluçou de novo.

William se inclinou, serviu-lhe água no copo e o estendeu. Ela o pegou em silêncio, soluçando uma vez mais, e depois bebeu um gole e tratou de agüentar a respiração, com o guardanapo nos lábios.

— Mas ao menos se casou com quem queria - interveio Vespasia com voz mais fria que o gelo. — George teve que agüentar com sua própria família, que não respeitava seus desejos, e acredito que em mais de uma ocasião considerou isso uma verdadeira carga.

— Você não sabe o que é a lealdade! - exclamou Eustace com uma nota de advertência na voz.

— Certamente - concedeu Vespasia. — Sempre considerei um valor espúrio o de defender o que está mal só porque a pessoa esteja aparentada com quem o perpetra.

— Sim... - Eustace evitou os olhos de Charlotte e olhou a Emily. — Se descobrirmos que o culpado é alguém da família, isso não nos impedirá de cumprir com nosso dever, por mais doloroso que seja, e fazer que o prendam. Mas com discrição. Não queremos que os inocentes sofram também; terá que manter o bom nome da família. - Dedicou um sorriso a Sybilla. — Há pessoas ignorantes que podem ser muito cruéis. São capazes de nos melar a todos com a mesma pincelada. E agora que por fim Sybilla vai dar um filho - seu tom foi de repente jubiloso; olhou a William com ar conspirador -, e confiamos que seja só o primeiro, temos que olhar pelo futuro.

Emily experimentou uma sensação de sufoco. Olhou à senhora March, que afastou a vista e secou estupidamente a água que tinha derramado pela toalha, mas a água já tinha impregnado. Jack Radley lhe sorriu pela metade.

William tinha comido pouco e agora afastou seu prato. Tinha o rosto tão pálido como o molho do peixe. Emily o conhecia o suficiente para saber que era um homem extremamente reservado, uma discussão tão aberta sobre um tema de índole tão pessoal lhe era angustiante. Dirigiu a vista para Sybilla. Mas ela já não olhava para William mas para Eustace, com uma expressão cheia de ódio que dificilmente pôde este passar por cima. Tassie levantou sua taça de vinho, que lhe escorreu entre os dedos, rompendo- se sobre a mesa e derramando o vinho. Emily não teve dúvida de que o tinha feito de propósito. Tinha os olhos muito abertos, como fossas em seu rosto.

Sybilla foi a primeira a recuperar-se. Obrigou-se a sorrir com doloroso esforço.

— Não tem importância - disse com voz rouca. — É vinho branco; com certeza se poderá lavar bem. Quer um pouco mais?

Tassie abriu a boca sem emitir som algum e a fechou outra vez.

Emily olhou a William, que lhe devolveu o olhar, lívido e com uma confusão de emoções que ela não pôde decifrar. Poderia ter sido algo, certamente compaixão por ela; possivelmente ele também achava que tinha matado ao George em um arrebatamento de ciúmes e por isso compadecia-se dela. Inclusive podia ser que a compreendesse. Era Eustace, com sua complacência, sua infinita energia, sua virilidade que tinha acabado com a Olivia, quem tinha escurecido durante tanto tempo o matrimônio do William? Temia este que Sybilla pudesse morrer de excessivos partos como tinha passado a sua mãe? Ou no fundo alguma vez tinha querido de todo a Sybilla? Talvez quisesse a outra. A boa sociedade estava cheia de matrimônios vazios; como o matrimônio era o único estado socialmente aceitável para uma mulher, a pessoa não podia permitir-se ser suscetível.

Olhou ao Eustace, mas este tinha voltado para sua comida. Tinha muitas coisas em que pensar: salvar a sua família do transtorno, evitar um escândalo e preservar a reputação dos March, especialmente a do William e Sybilla, agora que o tão desejado herdeiro estava a caminho. Emily era um estorvo que ameaçava rapidamente, se devia acreditar na anciã, convertendo-se em algo muito pior. Cortou uma fatia de pão fazendo chiar a faca em seu prato, e continuou absorta em seus pensamentos.

Emily olhou a Jack Radley, do outro lado da mesa. Seus olhos eram surpreendentemente suaves. Ele a tinha estado observando. Emily caiu na conta de que lhe havia visto muito freqüentemente essa mesma expressão nos últimos dias. Sentia-se atraído por ela, e muito, era algo que ia além de uma paquera corriqueira.

Santo Deus! Teria matado ao George para consegui-la? Pensava realmente que agora se casaria com ele? A sala balançou e notou um zumbido nos ouvidos como se estivesse sob a água. As paredes se apagaram e de repente não pôde respirar. Tinha muito calor... asfixiava-se...

—Emily! Emily! - A voz soava em um eco confuso, mas ao mesmo tempo muito próxima. Emily estava meio recostada em uma das cadeiras, em uma posição precária e incômoda. Tinha a impressão de que podia escorregar a qualquer momento. A voz era de Charlotte. — Não se assuste – murmurou. — Desmaiou. Agüentou muito. O senhor Radley a levará para cima e eu a ajudarei a colocar-se na cama.

— Direi a Digby que te suba uma infusão - acrescentou tia Vespasia.

— Não necessito que me levem nas costas! - protestou Emily. — Seria ridículo. E por que não pode me trazer Millicent a infusão; além disso, não quero tomar nada.

— Millicent está transtornada - respondeu Vespasia. — Põe-se a chorar por nada e não lhe convém isso. Deixei-a na cozinha até que consiga dominar-se. Você fará o que lhe digo e não causará mais problemas desmaiando por aí.

— Mas tia Vespasia... - antes que a queixa tomasse forma Jack Radley a rodeou com os braços e a levantou no ar. — Isto é ridículo! - exclamou Emily. — Sou perfeitamente capaz de caminhar!

Não lhe fez caso e, enquanto Charlotte ia diante abrindo portas, subiu-a até seu quarto. Depositou-a na cama sem dizer nada, mas antes de partir tocou suavemente seu braço.

— Suponho que agora não importa - disse Charlotte enquanto lhe desabotoava o vestido -, mas seu excesso de encanto por recuperar ao George pode ter atraído também a outros. Não deveria estar surpreendida.

Emily contemplou o desenho da colcha. Deixou que Charlotte seguisse com os botões; não queria que partisse.

— Estou assustada - disse. — A senhora March pensa que matei ao George porque fazia amor com a Sybilla. Virtualmente disse isso.

Como Charlotte não respondesse, Emily voltou a cabeça e a olhou. Estava séria, e seus olhos pareciam tristes e nublados.

—Por isso temos que descobrir o que passou exatamente, por mais doloroso que seja. Amanhã tenho que falar com o Thomas e ver o que averiguou.

Emily não respondeu. O medo ia crescendo em seu interior, rugia no abismo da solidão; a dor era aguda como o gelo. O perigo se abatia sobre ela. Se não averiguasse a verdade logo, talvez nunca conseguisse escapar.

Charlotte despertou de noite com a pele arrepiada de medo, o corpo rígido e os punhos apertados. Algo horrível a tinha tirado do quente casulo do sono.

Ouviu- o outra vez; um grito penetrante rompendo o silêncio da casa.

Endireitou- se embrulhada nos lençóis como se tivesse frio, embora estivessem no verão. Não ouviu nada mais.

Levantou-se devagar, e um calafrio a percorreu quando seus pés se apoiaram no tapete. Tropeçou em uma cadeira. Demorou mais do que o habitual para acostumar a vista à densa escuridão do quarto. O que acharia no patamar? Tassie? Sua mente fervia de imagens de sangue e facas cintilando ao pé da escada. Deteve-se no meio do quarto, contendo a respiração.

Ouviu outro som, uns passos, e uma porta que se abria e se fechava. Depois mais passos e ruídos surdos de gente adormecida.

Recolheu o robe da cadeira e cobriu os ombros antes de abrir rapidamente a porta. Ao fundo do pequeno corredor o patamar estava iluminado. Alguém tinha acendido as luzes. Quando chegou à escada viu tia Vespasia de pé junto à jardineira das samambaias. Parecia velha e muito magra. Ela não recordava tê-la visto nunca com o cabelo solto. Eram como volutas prateadas e a luz refletida o fazia parecer vaporoso.

— O que aconteceu? - disse Charlotte com a garganta tão seca que mal lhe saíam as palavras. — Quem gritou?

Ouviram-se passos outra vez e Tassie apareceu na escada que ia ao piso superior. Ficou olhando-as, pálida e assustada.

— Não sei - respondeu Vespasia. — Eu ouvi dois gritos. Charlotte, foi ver Emily?

— Não. - Nem sequer tinha pensado nela. Além disso, tinha acreditado que o ruído vinha da direção oposta, e de mais longe. — Não acredito que...

Mas nesse momento a porta do dormitório da Sybilla se abriu e Jack Radley saiu vestido com uma camisola de seda.

Charlotte sentiu uma pontada de desprezo, e na hora pensou como evitar que Emily se inteirasse daquilo. Sentiria-se enganada pela segunda vez. Embora não lhe importasse muito Jack Radley, ele sim tinha fingido que lhe importava ela.

— Não há de que preocupar-se - disse ele com um sorriso de circunstâncias enquanto penteava o cabelo. — Sybilla teve um pesadelo.

— Não me diga. - Vespasia ergueu as sobrancelhas com incredulidade.

Charlotte sossegou.

— Sobre o que? - perguntou com sarcasmo e sem ocultar seu desprezo.

Nesse momento William saiu de seu quarto e se aproximou do patamar com expressão de problema e confusão. Tinha cara de sono e piscava como se o tivessem tirado a força de um esquecimento muito agradável.

— Sybilla está bem? - perguntou a Jack Radley.

— Acredito que sim - respondeu este. — Chamou a sua criada.

Sem olhar a nenhum dos dois, Vespasia entrou no quarto da Sybilla, abrindo a porta de todo. Charlotte a seguiu, em parte pela vaga idéia de que podia ajudar ali mas também por curiosidade. Se Sybilla decidisse alguma vez contar a verdade do que tinha passado, nunca melhor que agora, quando ainda não teria tido tempo para arranjar uma mentira.

Ao entrar no quarto ficou de pedra. Todas suas idéias começaram a virar como um torvelinho ao ver Eustace, decentemente vestido com um roupão azul de cachemira e sentado na beira da cama, falando com Sybilla.

— Está bem, querida - dizia. — Pede a sua criada que lhe traga algo quente e um pouquinho de láudano. Deve tirar essas coisas da cabeça ou acabará adoecendo. Só são fantasias. O que precisa é descansar. Acabaram-se os pesadelos!

Sybilla estava recostada sobre os travesseiros, mas a cama mostrava uma considerável desordem, os lençóis feitos uma confusão e as mantas torcidas, como se tivesse estado dando voltas em sonhos. Sua cabeleira solta parecia um rio de cetim negro e seu rosto tinha empalidecido, arregalados os olhos. Olhava ao Eustace com ar ausente, como se com muita dificuldade compreendesse o que lhe dizia.

— Vá dormir - repetiu Eustace. Depois se voltou e olhou para Charlotte e para Vespasia como pedindo desculpas. — As mulheres sonham com uma intensidade especial, mas com uma infusão e um pouco de láudano pela manhã terá esquecido tudo. Dorme, querida - disse de novo a Sybilla. — Faz que lhe subam o café da manhã.

Sorria, mas sua boca mostrava certa tensão nas comissuras e a cor de suas faces era forte. Parecia muito agitado, e Charlotte não podia culpá-lo. O grito tinha sido horripilante e a conduta aparente do Jack Radley não tinha desculpa. Possivelmente Eustace fazia bem em tentar convencê-la de que tinha sido um pesadelo, apesar dela não poder esconder sua absoluta incredulidade, como provavam seus olhos acesos.

—Tire isso da cabeça - insistiu Eustace. — Agora mesmo.

Charlotte olhou para a porta. William tinha cruzado a soleira e olhava a Sybilla com expressão de ansiedade. Sorriu-lhe e seu rosto pareceu distender-se completamente.

— Encontra-se bem? - disse William. Eram palavras simples, banais inclusive, mas denotavam uma franqueza muito distinta do tom tranqüilizador do Eustace. Este falava em seu próprio interesse; William se interessava por ela.

Sybilla lhe sorriu.

— Sim, obrigada. Não acredito que volte a acontecer.

— Esperemos que não - disse fríamente Vespasia, olhando para o patamar, onde Charlotte podia ver ainda Jack Radley.

— É claro! - disse este com mais veemência do que necessário. Encontrou o olhar de Sybilla e acrescentou: — Mas se tiver medo ou outro pesadelo - recalcou a palavra, — grite outra vez. Acudiremos, prometo. - E se afastou com sua camisola de seda e as pernas nuas, a caminho de seu quarto.

— Santo Deus! - murmurou Vespasia.

—Bom - começou torpemente Eustace, esfregando-as mãos, — todos nos assustamos um pouco. - Pigarreou.— Quanto menos se fale disto, antes se arrumará. Não voltaremos a comentá-lo. Todo mundo à cama, para ver se dormirmos um pouco. Obrigado por acudir, senhora Pitt, foi muito amável, mas agora não pode fazer nada mais. Se necessitar de umas ervas ou um copo de leite, chame uma das criadas. Menos mal que mamãe não despertou. A pobre já tem bastante que suportar... – interrompeu-se, sem olhar a ninguém. — Bem. boa noite.

Charlotte foi até Vespasia e, sem parar para considerar o gesto, rodeou-lhe a cintura com um braço, notando com um sobressalto como estava magra e rígida.

—Vamos - disse suavemente. — Sybilla estará bem, mas você deveria tomar algo quente. Prepararei-lhe uma infusão.

Vespasia não escapou do abraço; sentia-se quase agradecida. Sua filha estava morta, e agora George também. Tassie era muito jovem e estava muito assustada.

— Avisarei a Digby - disse. — Ela me trará um pouco de leite.

— Não é preciso. - Charlotte a acompanhou ao patamar. — Eu também sei esquentar leite. Em minha casa o faço todo dia, e além disso não me importa.

Vespasia esboçou um sorriso.

— Obrigada, querida. Foi uma noite inquietante, e não me consolam nada as otimistas previsões do Eustace. Acredito que não sabe por onde pisa. Começo a pensar que nós tampouco.

Charlotte se levantou tarde e com uma enxaqueca espantosa. O chá quente que lhe levou Lettie não lhe serviu de muito.

A criada abriu as cortinas e lhe perguntou se tinha que preparar alguma roupa especial, e se tomaria um banho.

— Não, obrigada. - Charlotte recusou porque não queria perder tempo. Tinha que ver como estavam Vespasia e Emily e, se fosse possível, Sybilla. O ocorrido de ontem à noite tinha sido muito mais que um mau sonho; o olhar da Sybilla denotava um ódio manifesto, sua voz uma firmeza além dos efeitos de um pesadelo.

Mas Lettie ficou no meio do tapete iluminado pelo sol.

— Imagino que o inspetor deve saber muito mais coisas que nós, senhora - disse em voz baixa.

Charlotte pensou que Lettie estava assustada. Não era surpreendente, dadas as circunstâncias.

—Tenho certeza disso - disse com tom tranqüilizador, embora ela não estivesse absolutamente tranqüila.

Mas Lettie não se moveu.

— Deve ser muito interessante... - Titubeou. — Estar casada com um policial, quero dizer.

— Sim, é. - Charlotte alcançou a jarra de água e Lettie encheu o lavatório.

— É um ofício muito perigoso? - prosseguiu Lettie. — Alguma vez o ... feriram?

— Às vezes é perigoso, sim. Mas nunca o feriram com gravidade. Normalmente só é um trabalho duro. - Charlotte estendeu o braço e Lettie lhe passou a toalha.

— Gostaria que tivesse outro emprego, senhora?

Era uma pergunta impertinente, e pela primeira vez Charlotte se deu conta de que Lettie perguntava em seu próprio interesse. Deixou a toalha e olhou seus olhos azuis com curiosidade.

— Perdão, senhora. - A garota se ruborizou.

— A resposta é não - disse Charlotte. — A princípio foi difícil me acostumar, mas agora não quereria que fizesse outra coisa. É seu trabalho, e o faz muito bem. Quando uma pessoa quer a alguém, quer que faça o que gosta. Do contrário não seria feliz. Por que o pergunta?

O rubor de Lettie subiu de intensidade.

— Oh, por nada, senhora. Só... só era uma tolice. – Voltou-se e ficou a alisar o vestido que ia colocar Charlotte, ajustando desnecesariamente a anágua e tirando invisíveis bolinhas de pó.

Charlotte soube por Digby que Emily continuava dormindo. Tinha tomado láudano e não tinha despertado em toda a noite. Nem os gritos da Sybilla nem as idas e vindas no patamar tinham perturbado seu sonho.

Esperava que tia Vespasia fizera subir o café da manhã mas de fato a encontrou no alto da escada, lívida e com olheiras, agarrando-se ao corrimão, a cabeça erguida e as costas rígidas.

— Bom dia, querida - disse quedamente.

— Bom dia, tia Vespasia. - Charlotte queria ir ao quarto da Sybilla, inclusive despertá-la se fosse necessário e lhe perguntar sobre a véspera. Não lhe haveria custado aduzir que estava preocupada com ela. Mas Vespasia parecia tão frágil que lhe ofereceu o braço, algo que nem lhe teria ocorrido fazer uma semana atrás. A anciã o aceitou com um sorriso lânguido.

— Não tem sentido falar com a Sybilla - disse secamente Vespasia enquanto desciam. — Se tivesse vontade de dizer algo o teria feito ontem à noite. Há muitas coisas de Sybilla que não consigo entender.

Charlotte deixou que seu primeiro pensamento encontrasse as palavras adequadas.

—Tomara pudéssemos evitar que Emily se inteire. Não me custaria nada estrangular Jack Radley com minhas próprias mãos. É tão absolutamente... grosseiro!

— Reconheço que me decepcionou – concedeu Vespasia meneando tristemente a cabeça. — Quase gostei dele. Isto, como você bem diz, é muito vulgar.

O café da manhã destacou pela incomum ausência do Eustace. Não só estavam ainda todas as janelas fechadas e a baixela sem tocar no aparador, mas tinha pedido que lhe subissem uma bandeja. Tampouco se achava ali Jack Radley; daria-lhe muito apuro enfrentar-se a todos, disse-se Charlotte, que tinha pensado lhe deixar bem claro o desprezo que lhe merecia.

Passavam das onze quando foi a saleta em busca de papel de notas. Eustace estava sentado na escrivaninha, com o tinteiro de prata aberto e uma pena na mão, mas a folha que tinha diante de si continuava totalmente branca. Ele a olhou ao ouvir seus passos e Charlotte viu com incredulidade que tinha o olho direito inchado e arroxeado e um arranhão em uma face. Ficou tão perplexa que não soube o que dizer.

— Oh, ah... bom dia, senhora Pitt. Eu... tive um pequeno acidente. Caí.

— Santo céu! - disse ela. — Espero que não se machucou muito. Avisou ao doutor?

— Não é preciso! Estou perfeitamente. - Fechou o tinteiro e ficou de pé, dando um pulo quando carregou o peso sobre a perna esquerda. Soprou.

—Tem certeza? - disse ela com mais interesse do que sentia. O que mais a apressava era a curiosidade. Quando tinha tido lugar tão estranho acidente? Para ter se feito tudo aquilo tinha que ter caído pelas escadas, pelo menos.   — Sinto muito - acrescentou apressadamente.

—Muito amável de sua parte - respondeu ele, olhando-a brevemente. Mas logo, como se acabasse de recordar um assunto urgente, saiu coxeando ao vestíbulo.

Durante o almoço, um fato insólito surpreendeu ao Charlotte e a obrigou a melhorar sua opinião sobre o Eustace: Jack Radley tinha a mão direita inflamada e o lábio partido e inchado. Entretanto, não deu nenhuma explicação nem ninguém a pediu.

Charlotte teve que concluir que Eustace o tinha visto na primeira hora da manhã e que lhe tinha surrado pelo desagradável lance no quarto de Sybilla. E, pela primeira vez, Charlotte o admirou por isso.

A própria Sybilla se dirigiu ao Jack Radley com tom perfeitamente educado, amável inclusive, embora parecia muito tensa. Mantinha as costas rígidas, e as escassas observações que fazia transpareciam que tinha a mente em outra parte. Talvez se sentisse um pouco culpada. Acaso, sem querer o, tinha dado a entender que lhe agradava a presença dele?

Charlotte tentou comportar-se com a máxima normalidade, sobretudo para evitar que Emily intuisse o acontecido, ao menos de momento. Teria tempo de sobra para essa classe de desengano quando estivesse em casa e não pudesse ver de novo ao Jack Radley. Era preferível que acreditasse em pequenos acidentes, domésticos, por agora.

Emily ignorava por completo o acontecido durante a véspera, e o primeiro que notou foi, já de tarde, quando desceu para sentar-se no gabinete a contemplar o sol sobre a estufa. Viu brevemente William passar a caminho de seu estúdio. Olhou-a com uma expressão dolorida que ela tomou por compaixão.

Tassie tinha ido fazer boas obras com o ajudante, a visitar doentes ou algo semelhante. A avó dizia que não era preciso, que dadas as circunstâncias podia haver-se desculpado. Mas Tassie insistiu. Havia certas tarefas que não pensava passar por cima; ao que parecia tinha feito uma promessa e não quis discutir mais. Eustace não tinha estado presente e a anciã, por uma vez, tinha perdido a batalha, retirando-se a seu toucador mau-humorada.

Charlotte estava com tia Vespasia, deixando que Emily passasse a tarde a sós. Não parecia ter vontade de empreender alguma tarefa feminina: pintar, bordar, tocar música. Tinha escrito já todas as cartas necessárias, e ir visita nas atuais circunstâncias não era de bom tom.

Assim, Emily estava sentada quando Eustace entrou coxeando aparatosamente. Mas até que ele se voltou não lhe viu o olho arroxeado, apenas entreaberto.

— Oh! - Conteve o fôlego. — O que lhe aconteceu? Encontra-se bem? - Emily ficou em pé sem pensar, como se Eustace necessitasse de sua ajuda.

Ele sorriu torpemente.

— Ah, é que tropecei - disse sem atrever-se a olhá-la. — Ontem de noite. Não se preocupe. Suponho que William está em seu estúdio - apontou para a estufa- , brincando outra vez com suas malditas pinturas. Não é capaz de deixá-las nem cinco minutos. A gente pensaria que nestes momentos de angústia familiar, William poderia ser de alguma ajuda. Mas não, ele sempre fugiu que tudo. - Girou de tudo, estremeceu de dor ao apoiar a perna ferida e se dirigiu para a porta da estufa, deixando Emily com a palavra na boca.

Ela se sentou de novo, sentindo ainda mais sua dolorosa solidão. Passaram vários minutos até que percebeu umas vozes, desconexas pela distância, trepadeiras, folhagem e grossos cortinados da porta. Mas não havia duvida sobre seu tom irado e o fio cortante de um depurado ódio.

— Se... como Deus manda, teria-o sabido! - Era Eustace.

A resposta do William foi um balbuciar inaudível.

—... que já se teria acostumado a isso! – gritou-lhe Eustace.

—Todos conhecemos suas grandes ideias! — Desta vez a resposta do William foi clara e cheia de repugnância.

—... a imaginação... não era preciso... a sua mãe. - A litania do Eustace chegou incongruente atrás do matagal de plantas.

—... mãe... pelo amor de Deus! - gritou William encolerizado.

Emily se levantou, incapaz de continuar sendo ouvinte involuntária do que parecia um assunto muito privado. Titubeou entre sair pela sala de refeições e dirigir-se a outra parte da casa, ou ter a coragem de interromper e pôr fim à rixa, ao menos provisoriamente.

Virou para a estufa, dpois para a sala de refeições, e teve um sobressalto ao ver a Sybilla na soleira. Pela primeira vez desde que estava no Cardington Crescent a expressão de angústia da Sybilla pôde com todo o ódio de Emily e provocou um sentimento de piedade que um dia antes não poderia conceber.

—... atreve-se! Eu não vou a... - A voz do William soou outra vez com força, prenhe de emoção.

Sybilla quase correu para a estufa, tropeçando com uma cadeira, derrubando flores e pisando com pressa a úmida plantas de ambos os lados do caminho.

Momentos depois cessaram as vozes e se produziu um silêncio absoluto.

Emily respirou fundo, obrigou-se a relaxar as mãos e se encaminhou à sala de refeições. Não desejava ficar ali para que a vissem os outros. Fingiria não ter ouvido nada; era a única saída.

No saguão principal se encontrou com Jack Radley. Tinha o lábio inchado e segurava a mão direita com dificuldade. Ele sorriu e teve que sufocar um grito de dor ao abrir-se a a ferida do lábio.

— Suponho que você também tropeçou... - disse ela friamente, mas na hora desejou ter prosseguido seu caminho sem mais.

Radley lambeu o lábio e o apalpou cautamente, mas seu olhar continuava expressando gentileza.

— Isso lhe disse ele? - murmurou. — Briguei com o Eustace e lhe bati... e ele a mim também.

— É evidente - respondeu ela sem o desprezo com que tinha tentado dizê-lo. — Me surpreende vê-lo ainda aqui. -Tentou dirigir-se para a escada, mas ele ficou diante para lhe impedir o passo.

— Se espera que lhe dê uma explicação, perde o tempo - disse ele com certa reticência. — Sou fiel às confidências. Mas tenho que admitir que esperava que ao menos você não tirasse conclusões precipitadas.

Emily sentiu uma pontada de embaraço.

— Sinto muito - murmurou. — Eu mesma desejei esbofetear Eustace mais de uma vez. Parece que você levou a melhor parte.

Ele sorriu, alheio ao fio de sangue que agora tingia seu queixo.

—Valeu a pena - concedeu. — Emily...

— Sim? - E como ele não disse nada, ela acrescentou: — Tem sangue no rosto. Seria melhor que fosse lavar-se. E busque algum ungüento, ou o lábio lhe voltará a sangrar.

—Sei. - Apoiou suavemente a mão no braço dela. — Não se desanime, Emily. Descobriremos quem matou ao George, prometo.

De repente, ela notou um nó na garganta e compreendeu até que ponto estava assustada, quase à beira do pranto. Nem sequer Thomas parecia capaz de ajudá-la.

— É claro - disse, afastando o braço. Aquilo era ridículo. Não queria que ele visse sua debilidade, mas sobre tudo não queria que soubesse quão agradável o achava, apesar de desconfiar dele. — Obrigada. Estou certa de que o diz sinceramente.

Subiu apressadamente pela escada enquanto Jack a contemplava de baixo. Depois torceu para seu quarto sem olhar atrás.

 

Emily dormiu mal. A noite esteve povoada de sonhos espantosos, roupas manchadas de sangue, estalo continuado de pedras sobre o ataúde do George, o rosto rosado do vigário que boqueaba como um peixe. E a imagem do Jack Radley, olhando-a sentado no tamborete do quarto das crianças, com o sol refletido no cabelo e em seu olhar a consciência de que ela sabia que ele era culpado.

Despertava sobressaltada com um suor frio, contemplando o escuro teto. Quando voltava a dormir os sonhos eram ainda piores, ocultando uns com outros, inchando-se e explodidno para logo encolher-se até um nada. Sempre saíam rostos: o tio Eustace presunçoso e risonho, olhando-a com aqueles olhos redondos que viam tudo e não entendiam nada, sem se importar se era ela quem tinha assassinado ao George mas sim que a culpassem, única forma de proteger o sobrenome March; e Tassie, muito louca para saber algo. Os olhos da velha March, como bolinhas de gude de vidro, cegos de malícia, sempre entreabertos; William com um pincel na mão, e Jack Radley com o halo que o sol formava em torno de sua cabeça, sorrindo porque Emily tinha matado a seu mando por amor a ele, por aquele beijo na estufa.

Despertou de repente e permaneceu deitada vendo como a luz se arrastava preguiçosa pelo teto. Quanto tempo restava até que Thomas não tivesse outra alternativa que prendê-la? Cada segundo que passava lhe consumia a vida; o resto deslizava para a eternidade e ela continuava ali, só e impotente.

O que tanto tinha horrorizado Sybilla, o que tinha rasgado sua máscara habitual para exteriorizar tanto ódio; em duas ocasiões, uma dois dias atrás durante o jantar e a outra no gabinete ao escutar casualmente a briga na estufa?

Emily não pôde agüentar mais e se levantou. Já era de dia e poderia ver claramente o caminho. Colocou um xale sobre a camisola e cruzou o quarto nas pontas dos pés. Perguntaria a ela! Iria ao quarto da Sybilla, agora que estava sozinha e não poderia procurar uma evasiva cortês ou aduzir um assunto urgente, e assim tampouco lhes interromperia alguém.

Abriu a porta com precaução. Fora não se ouvia nada. Olhou acima e abaixo do corredor. A luz da alvorada penetrava fria e cinza pelas janelas e caía sobre o papel com seus desenhos de bambu. O vaso reluzia amarelo. Não havia ninguém.

Saiu e foi rapidamente para o quarto de Sybilla. Não tinha nenhuma dúvida sobre o que lhe ia dizer. Contaria-lhe que observara sua expressão de ódio, e que fosse qual fosse a lealdade que Sybilla acreditasse ter, se não dizia a Emily que fato do passado tinha provocado um ódio tão profundo, iria ao Thomas Pitt e deixaria que ele o averiguasse a base de interrogatórios, procedimento que seria muito mais duro. A julgar pela cólera com que tinha abandonado o aposento na noite anterior, ela estava disposta a proferir qualquer ameaça. Era muito tarde para pensar em delicadezas ou suscetibilidades.

Tremeu-lhe a mão quando foi pegar a maçaneta da porta para girá-la devagar. Talvez estivesse fechada e se veria obrigada a esperar a que a abrissem. Podia adiar as inevitáveis respostas umas horas mais. Mas a maçanetta virou com suavidade.

Naturalmente. por que alguém ia fechar por dentro em uma casa como aquela? Teria que levantar para que entrasse a criada. E quem queria fazer isso? Precisamente um dos motivos principais para ter criada era não ter que levantar-se e abrir as cortinas ou abrir o grifo a gente mesmo. Ter que levantar-se por vontade alheia, recém despertado, não tinha nenhuma graça.

Emily entrou. Havia bastante luz. As cortinas estavam amarelas, pois a janela dava ao sol. Sybilla já tinha despertado e estava recostada contra um poste da cama, de frente para à janela e com o cabelo negro em grosas tranças atadas diante e detrás da cabeça. Emily pensou que era um modo muito estranho de levá-las.

— Sybilla, lamento a intromissão mas não podia dormir. Preciso falar com você. Acredito que você sabe quem assassinou ao George e... - Tinha chegado ao pé da cama e agora podia vê-la com mais clareza. Estava sentada de um modo muito estranho, as costas rígidas contra o poste e a cabeça um pouco inclinada, como se se tivesse ficado adormecida.

Emily rodeou a cama e se inclinou para ela.

Então viu seu rosto e o horror a embargou, impedindo-a de respirar. Sybilla tinha olhar de cega, os olhos saídos de suas órbitas, a boca aberta, a língua saída; seu cabelo negro tinha sido amarrado em torno do pescoço e depois para trás ao redor do poste da cama, rematando-o com um nó.

Emily quis gritar mas sua boca não emitiu som algum. Levou-se as mãos aos lábios e os dedos lhe sangravam ali onde os tinha mordido. Não podia desmaiar agora! Tinha que procurar ajuda! E tinha que sair dali, não deviam encontrá-la sozinha.

Tremia tanto que suas pernas não lhe obedeciam.

Tropeçou com o canto da cama e se machucou, e ao querer alcançar a cadeira para não cair quase a derrubou ao chão. Não era momento para enjôos; alguém podia entrar e encontrá-la. Já a culpavam da morte do George; com certeza também a acusariam desta.

Por duas vezes lhe escorregou a maçaneta na mão suarenta antes de poder abrir e cair quase de bruços no corredor. Por fortuna não havia ninguém ali, nenhuma criada preparando a sala de refeições ou limpando a lareira. Dirigiu-se a toda pressa para o quarto de vestir, onde estava Charlotte, e sem bater abriu a porta.

— Charlotte! Acorde! Acorde e atende. Sybilla está morta! – mal distinguia a forma de sua irmã; seu cabelo era uma nuvem escura sobre o travesseiro branco. — Charlotte! - exclamou à beira da histeria. — Charlotte!

Esta se endireitou sobressaltada.

— O que acontece, Emily? Encontra-se mal?

— Não... não é isso... - Engoliu em seco. — Sybilla está morta! Acredito que a assassinaram. Acabo de vê-la em... em seu dormitório... estrangulada com suas próprias tranças!

Charlotte olhou o relógio da mesinha.

— Emily, são cinco e vinte. Não será que teve um pesadelo?

— Não! Meu Deus! Culparão-me disto também! - E Emily rompeu a chorar derrubando-se feito um novelo aos pés da cama.

Charlotte se levantou e, rodeando-a com seus braços, balançou-a como a uma menina.

— O que ocorreu? - disse, procurando conservar a calma. — O que fazia você no quarto da Sybilla a estas horas?

Emily compreendeu que Charlotte não se atrevia a deixar-se levar pelo medo. A única ajuda estava em pensar com lógica e disciplina. Tratou de sossegar-se e explicar os fatos.

— Anteontem à noite observei seu rosto durante o jantar. Por um momento, pareceu-me ver nela um ódio terrível quando olhava ao Eustace. Eu queria saber por que. O que sabia ela dele, temia acaso que Eustace fizesse algo? Charlotte, estão convencidos de que eu matei ao George, e procurarão que Thomas se veja obrigado a me prender. Tenho que averiguar quem o fez... para me salvar.

Charlotte guardou silêncio um momento e depois se levantou pouco a pouco.

— Será melhor que vá ver, e se estiver certa irei despertar a tia Vespasia. Terá que chamar outra vez à polícia. - Colocou um xale e se embrulhou. — Pobre William - disse quase em um sussurro.

Quando se foi, Emily se sentou aos pés da cama e esperou. Queria pensar, entender, mas era muito cedo. Estava tremendo, não de frio, mas sim de uma escura inquietação interior. O assassino do George tinha matado também a Sybilla, porque ela conhecia sua identidade.

Tinha algo que ver com o Eustace e sua filha Tassie? Ou só com o Eustace? Ou se tratava de Jack Radley, depois de tudo?

Charlotte retornou com o semblante tenso. Tremiam-lhe as mãos.

— Sim, está morta - disse engolindo em seco. —Fique aqui e feche a porta com chave. Vou dizer à tia Vespasia.

—Um momento! - Emily se levantou e perdeu o equilíbrio; os joelhos lhe falhavam. — Vou com você. Prefiro-o; além disso, é melhor que não vá sozinha.

Experimentou outra vez, e agora suas pernas a obedeceram.

Sem dizer uma palavra ambas cruzaram às escondidas o patamar, descalças sobre o tapete. A jardineira com suas exuberantes samambaias parecia quase uma árvore, arrojando um polvo de sombras sobre a parede.

Bateram na porta da Vespasia e esperaram. Ninguém acudiu. Charlotte bateu outra vez e depois experimentou a maçaneta. Não estava fechada com chave. Entraram e fecharam com um leve ruído.

— Tia Vespasia - chamou Charlotte.

O quarto estava mais escura que a do Emily, as cortinas eram mais grosas, e na penumbra distinguiram a grande cama e a cabeça da anciã sobre o travesseiro, com o cabelo de prata sobre um ombro. Parecia muito frágil e velha.

—Tia Vespasia - repetiu Charlotte.

A anciã abriu os olhos.

Charlotte avançou para a penumbra.

—Charlotte? - Vespasia se endireitou um pouco. — O que há? É você, Emily? - Uma nota de alarme crispou sua voz. — O que aconteceu?

— Emily recordou algo que viu o outro dia, um gesto da Sybilla – explicou Charlotte -, e pensou que talvez podia ser uma chave para explicar tudo isto. E foi perguntar à Sybilla.

— De madrugada? - Vespasia se ergueu de tudo. — E... tirou algo em claro? O que disse Sybilla?

Charlotte fechou os olhos e os punhos ao mesmo tempo.

— Nada. Está morta. Estrangulada com seu próprio cabelo atado ao poste da cama. Não sei se pôde fazê-lo ela mesma. Teremos que avisar ao Thomas.

Vespasia ficou imóvel e em silencio durante um longo tempo, e Charlotte teve medo, mas por fim estendeu a mão e apertou a campainha.

— Me dê o xale, por favor - pediu. Charlotte o fez e Vespasia se levantou com dificuldade, apoiando-se em seu braço. — Será melhor que fechemos a porta com chave. Não interessa que entre ninguém. E imagino que terá que dizer a Eustace. - Inspirou longamente. — E ao William. Suponho que a estas horas Thomas estará em casa. Bem, então lhe escreva uma nota e envia a um lacaio para buscá-lo.

Alguém bateu com rudeza na porta, sobressaltando-as. Antes que alguém respondesse entrou Digby, despenteada e com rosto de susto. Ao ver que Vespasia estava bem, o susto se permutou em preocupação. Afastou uma mecha do rosto e se preparou.

— Sim, senhora? - disse com cautela. — Necessita algo?

— Chá, Digby, por favor - respondeu Vespasia. — Traga suficiente para as três, e para você também. Convém-lhe tomá-lo. Assim que tenha posto a água a ferver, desperte a um lacaio e faça que se levante.

Digby a olhou com os olhos arregalados.

— A jovem senhora March morreu - explicou Vespasia. — Possivelmente será melhor que desperte a dois lacaios, e o outro que vá em busca do doutor.

— Ao doutor podemos telefonar, senhora - propôs Digby.

— Ah, sim, tinha-o esquecido. Ainda não sei quem dispõe desses aparelhos e quem não. Suponho que Treves terá um.

— Sim, senhora.

— Então diga a um lacaio que vá procurar ao senhor Pitt. Tenho certeza de que ele não tem telefone. E traga o chá.

As horas seguintes foram como um sonho febril, uma mescla de coisas grotescas e ofensivos lugares comuns. Como podia estar igual a sala do café da manhã, o aparador repleto de comida, as janelas totalmente abertas? Pitt tinha subido acima com o Treves para examinar o corpo da Sybilla, tratando de determinar se se tinha matado ela com seu próprio cabelo ou se alguém tinha entrado subrepticiamente em seu quarto para assassiná-la. Charlotte não podia deixar de perguntar-se se Jack Radley teria entrado no quarto na noite anterior, com esse propósito e não por algum intuito amoroso (só que ela tinha despertado a tempo e posto-se a gritar).

Charlotte sabia que a Vespasia também lhe teria ocorrido o mesmo.

Era tarde, dez da manhã passadas, quando todos se sentaram para tomar o café da manhã. Inclusive William, pálido como um cadáver, macilento e com olheiras, parecia preferir a companhia à solidão de seu quarto, contigüo a da Sybilla.

Emily estava muito rígida, com o estômago tão crispado que mal suportava a visão da comida. Tomou um gole de chá quente que lhe queimou a língua e deslizou dolorosamente garganta abaixo. Os sons da louça e do bate-papo ora a incomodavam ora a assustavam; para ela podia ter sido o ruído das rodas de uma carruagem sobre o cascalho ou de uns gansos no pátio.

Charlotte comia porque era consciente de que precisava repor forças, mas os ovos e as torradas tiveram sabor de papa fria. O sol brilhava na cristaleira e o entrechocar de talheres ia subindo de volume à medida que Eustace trabalhava em excesso com seu peixe e suas batatas, mas inclusive ele parecia não desfrutar da comida. A toalha era tão branca que recordou ao Charlotte um campo nevado, resplandecente e frio com a terra morta debaixo.

Isso era absurdo. O medo a estava paralisando. Devia esforçar-se por escutar, por pensar, por compreender. Todos estavam ali, só precisava afastar essa névoa de sua mente e ver com clareza. Já deveria estar familiarizada; não era a primeira vez que via um assassinato e certamente, conhecia a dor e o medo que conduzem à violência extrema. Como podia estar tão perto e não saber o que tinha acontecido? Foi olhando de um em um. A velha March tinha os lábios apertados e a mão em um punho junto a seu prato. Possivelmente a cólera contra as injustiças do destino era a única forma de não ver-se enrolada pela tragédia que estava dizimando a família a que tinha dedicado toda sua vida. Vespasia guardava silêncio. Encolheu-se; parecia mais miúda, seus pulsos mais ossudos, sua pele mais parecida a pergaminho. Tassie e Jack Radley falavam sobre temas corriqueiros, e Charlotte soube que o faziam para ajudar, para que o silêncio não acabasse asfixiando-os a todos. Do que falassem não importava; do tempo, de algo. Cada qual, aprisionado em sua própria ilhota de horror, tratava de recuperar algo dos dias anteriores, quando o mundo lhes parecia tão normal e seguro.

Charlotte tinha estado brevemente com o Pitt, quem a tinha feito ir ao quarto da Sybilla. A princípio ela não tinha querido, mas lhe havia dito que o corpo tinha sido movido, o cabelo desatado, e que haviam coberto o desencaixado rosto com um lençol.

— Por favor - lhe tinha rogado Pitt. — Necessito que venha.

Tremendo de medo, ela tinha obedecido, e ele quase tinha tido que obrigá-la a cruzar a porta.

— Sente-se na cama - lhe tinha ordenado. — Não... aí, onde estava Sybilla.

Charlotte ficou grudada no chão.

— Por que? - Aquilo era grotesco, irracional. — Por que, Thomas?

— Necessito que o faça - insistiu ele. — Por favor, Charlotte. Quero saber se pôde estrangular-se ela sozinha.

— É claro que pôde! - Não se tinha movido do lugar, e assim permaneceram os dois, encetados em um puxa e afrouxa no meio do quarto.

Pitt começava a zangar-se porque não sabia o que fazer.

— É claro que sim! - Charlotte se pôs-se a tremer. — Primeiro o passou ao redor do pescoço e depois do poste. É como atar um cachecol à nuca, ou abotoar as costas de um vestido. Empregou o poste para estrangular-se; as molduras do pilar o esticaram de novo quando ela escorregou um pouco para baixo. Essa devia ser sua intenção, ou não teria ficado ali. Teria se movido enquanto ainda ficavam forças. Suponho que não morre de repente. Me solte, Thomas! Não penso me sentar aí!

— Não seja tola! - Pitt começava a perder a paciência. — O que quer, que o obrigue uma criada fazer? Não o pedi a Emily!

Olhou-o horrorizada mas, vendo que ele estava ansioso, cedeu finalmente e avançou para a cama evitando olhar o lugar exato onde tinha visto a Sybilla.

— Prova no outro. - Pitt indicou o poste do lado oposto da cama. Sente-se e passa as mãos para trás, ao redor do poste.

Charlotte o fez com movimentos lentos e rígidos: estirar os braços para a nuca, agarrar o poste, aparentar que atava algo.

— Baixe as mãos - pediu ele. — Agora puxe. Tente apertar. - Pitt lhe pegou as mãos e puxou para baixo e para fora.

— Não posso! – Doíam-lhe os braços pelo esforço. É muito abaixo. Não posso puxar até aí. Faz-me mal, Thomas!

Ele a soltou.

— É o que eu pensava. Nenhuma mulher poderia ter feito força tão para baixo, atrás da nuca.

Pitt se ajoelhou na cama, abraçou ao Charlotte e afundou a rosto em seu cabelo, beijando-a lentamente, estreitando-a com força. As palavras não tinham sido necessárias. Assim permaneceram na silenciosa certeza de que Sybilla tinha sido assassinada.

A mente de Charlotte retornou ao presente, à mesa do café da manhã e a pantomima de normalidade que ali se representava. Queria ser amável, mas não havia tempo. Bebeu seu chá e os olhou a todos.

—Temos bom senso e não nos falta inteligência - disse. — Um de nós assassinou o George, e agora a Sybilla. Acredito que será melhor averiguar quem foi antes que se descubra uma nova vítima.

A senhora March fechou os olhos e pegou o braço do Tassie, com dedos duros.

— Acho que vou desmaiar!

— Apóie a cabeça entre os joelhos - disse cansativamente Vespasia.

A anciã abriu os olhos de repente.

—Não seja ridícula! - replicou. — Você seria capaz de estar à mesa com as pernas à altura das orelhas, muito próprio de ti. Mas eu não!

—É pouco prático. - Emily ergueu a vista pela primeira vez. — Não acredito que pudesse fazê-lo.

Vespasia nem se incomodou em levantar os olhos do prato.

—Tenho sais, se preferir.

Eustace prescindiu dos comentários e olhou ao Charlotte.

—Parece-lhe bem, senhora Pitt? -disse sem pestanejar. — A verdade poderia ser muito perturbadora, especialmente para você.

Charlotte sabia o que estava insinuando, quanto à natureza de sua verdade e à forma em que queria apresentar a à polícia.

— Certamente que sim. – Tremeu-lhe a voz, coisa que lhe enfureceu mas não soube evitar. — Prefiro me arriscar a isso antes que permitir que alguém possa cometer outro assassinato.

William ficou de pedra. Vespasia levou uma mão à fronte e se inclinou sobre a mesa.

—Sangue mau - disse a senhora March com brusca intensidade, agarrando sua colherinha com tal força que derramou um pouco de açúcar sobre a toalha. — Ao final sempre se sabe. Por mais formoso que seja o rosto ou mais esmerados as maneiras, o sangue é o que conta. George era um imbecil! Um irresponsável e um infiel. Os matrimônios à ligeira são a causa de grande parte dos males.

— O medo - a contradisse Charlotte. — Eu diria que a causa é o medo; medo à dor, ao ridículo, a não estar à altura. E acima de tudo, medo à solidão, pânico de que ninguém a queira.

—Isso o dirá por você, moça! – replicou-lhe a senhora March ao voltar-se com olhos cintilantes e o semblante pálido. — Os March não têm nada que temer!

— Não seja idiota, Lavinia. - Vespasia se ergueu na cadeira e afastou o cabelo do rosto. — Os únicos que não conhecem o medo são os Santos, cuja visão do reino de Deus é mais forte que a carne, e esses simplórios que carecem de suficiente imaginação para conceber a dor. Os aqui pressente estamos todos aterrorizados.

—Talvez a senhora March seja uma Santa... - indicou Jack Radley com sarcasmo.

— Cuidado com o que diz! - exclamou a aludida. — Quanto antes o leve esse polIcial incompetente, melhor. Se você não matou ao George, está claro que influiu para que Emily o fizesse. Em qualquer dos dois casos, é culpado e merece a forca!

Radley empalideceu, mas sem afastar a vista. Houve um tenso silêncio. No vestíbulo soaram passos de um lacaio. Inclusive Eustace estava imóvel. Vespasia se levantou com muita dificuldade, como se lhe doesse muito as costas.

Com olhos frágeis, William a imitou e lhe retirou a cadeira.

— Imagino que o senhor Beamish voltará a nos enviar a seu ajudante - murmurou um ligeiro estremecimento, - o que me parece bem; certamente o senhor Farei nos será mais útil. Se vier estarei em minha habitação. Eu gostaria de falar com ele.

— Quer que façamos vir ao doutor, avó?- perguntou William. Parecia estar em um pesadelo contra o qual tivesse lutado toda a noite, para logo despertar e seguir com ele, mesclado com a inalterável e eterna realidade.

— Não, obrigada, querido. - Vespasia lhe bateu na mão e depois saiu devagar da estadia, conservando precariamente o equilíbrio.

— Me desculpem. - Charlotte deixou o guardanapo junto ao prato e seguiu à anciã, alcançando-a no saguão e tomando-a pelo cotovelo para subir a longa escada. Vespasia não resistiu.

— Quer que fique com você? – perguntou-lhe ao chegar a seu dormitório.

Vespasia a olhou fixamente com expressão de medo e cansaço.

— Sabe algo, Charlotte?

— Não - disse esta com sinceridade. — Mas se Emily estiver certa, Sybilla odiava ao Eustace, embora não sei se por ela, pelo William ou por Tassie.

Vespasia apertou os lábios e seu olhar foi ainda mais desventurado.

— Eu diria que pelo William - sussurrou. — Eustace nunca soube refrear a língua. Não é uma pessoa sensível.

Charlotte hesitou em perguntar se havia algo mais, mas decidiu abster-se.

Esboçou um sorriso e a deixou a sós.

A idéia ia tomando corpo e tão logo teve a certeza de que não havia ninguém no patamar, foi ao quarto da Sybilla. Os criados tinham que saber já o acontecido, e nenhuma criada se teria aventurado a entrar. A porta não estava fechada com chave. Possivelmente não era preciso; quem ia entrar ali? Tanto Pitt como Treves deviam ter examinado tudo, e certamente teriam ido ao quarto da criadagem para fazer suas pesquisas.

Deu uma última olhada ao patamar e entrou. Como dava para o sul, agora estava inundado de luz. Sobre a cama havia algo coberto com um lençol. Charlotte afastou os olhos, embora soubesse exatamente o que veria se retirasse o lençol. Devia dominar sua imaginação e a intensa sensação de piedade que lhe apressava. Sybilla tinha causado a Emily uma dor terrível e entretanto não podia odiá-la como desejava, como não tinha podido fazê-lo quando estava viva. Sabia que também Sybilla tinha sofrido muito por alguma razão, algo que tinha crescido em seu interior até fazer-se insuportável. Assim que Charlotte tinha visto a ferida e a dor, sua cólera se esfumara como a areia na peneira. O mesmo lhe tinha passado com a Sybilla, e agora tratava de achar algum indício que lhe desse uma pista sobre a causa.

Olhou em torno. Por onde começar? Onde guardava seus pertences privados, essas coisas que podiam revelar a outra mulher seus pontos fracos? No armário não; aí só haveria roupa, e ninguém deixava coisas privadas em um bolso qualquer. A mesinha de noite tinha uma pequena gaveta, mas as criadas podiam ter farejado nele, não tinha fechadura. De qualquer modo o abriu, mas achou só uns lenços, uma bolsa de lavanda ressecada, um sobre que tinha contido pós para a dor de cabeça e um frasco com sais aromáticos. Nada.

Depois experimentou na mesinha do penteadeira e achou o esperado: escovas e pentes, lenços para abrilhantar o cabelo, forquilhas, perfume e cosméticos.

Teria gostado de saber como utilizar tudo aquilo com a perícia que Sybilla tinha mostrado.

Pensar na beleza da morta era especialmente doloroso, vendo todo aquele demonstração de artifícios, agora inúteis. Era absurdo identificar-se tanto com a Sybilla, mas não conseguia superar.

Havia roupa interior, como era de prever, imensamente mais bonita e mais nova que a dela (muito mais parecida com as de Emily). Mas não viu ali nada que ocultasse um significado mais profundo, nenhum papel escondido sob os objetos. Olhou no joalheiro, e por momentos sentiu inveja ao contemplar a réstia de pérolas e o broche de esmeraldas. Mas também esses objetos não lhe diziam nada, não lhe davam nenhuma pista sobre se eram mais que meros adornos que qualquer mulher rica e querida podia possuir. Ficou no meio do quarto, observando os retratos, as cortinas, a enorme cama de quatro pilares. Tinha que haver algo em alguma parte.

Debaixo da cama! Ajoelhou-se rapidamente e levantou o longo cobertor. Com efeito, havia um baú de roupa e ao lado, meio escondido, uma pequena nécessaire.

Charlotte a pegou e sem levantar-se provou a tampa: estava fechada com chave.

Maldição! - pensou. Ficou pensando, olhando a fechadura. Era de um tipo muito comum, pequena e ligeira. Uma lingüeta metálica segurava o fecho. Onde estará a chave? Sybilla devia ter uma... Onde guardava ela as chaves? No joalheiro, é claro, no espaço que ficava sob a bandeja dos brincos. Ali guardava as chaves das malas, claro que não é que viajasse muito ultimamente. Ficou de pé pisando as saias, e se jogou quase sobre o banquinho da penteadeira. Ali estava, uma pequena chave de latão de uns dois centímetros, junto às correntes de ouro.

A chave abriu a nécessaire, e com dedos torpes de excitação levantou a tampa e viu várias cartas e dois livrinhos brancos encadernados em pelica. Em um se lia "endereços". Charlotte examinou primeiro a correspondência. Eram cartas de amor escritas pelo William, e depois de ler a primeira se limitou a olhar unicamente os nomes. Eram ternas e apaixonadas, de um estilo delicado que a fez pensar no quadro que William estava pintando em seu estúdio da estufa, e que expressava muito mais do que aparentemente mostrava. Nele havia toda a sutileza das estações, a consciência da mudança. Detestou-se por fazê-lo. Eram todas do William; não havia mais, nada do George, claro que este não era dos que escreviam cartas de amor, e qualquer outro homem teria parecido torpe ao lado destas cartas.

Agarrou o livro que não tinha título. Era um diário começado anos atrás em um caderno comum, sem datas nem cabeçalhos além dos que Sybilla tinha escrito de seu punho e letra. Charlotte o abriu ao acaso e viu a anotação Véspera de natal, 1886. Fazia uns meses. Logo leu com horror:

“ William leva todo o dia pintando. O quadro é estupendo, mas eu desejaria que não empregasse nele tanto tempo, me deixando a mim só com a família. A velha continua me perguntando quando penso me converter em uma "mulher de verdade" e dar um herdeiro à família March. Às vezes a odeio tanto que eu gostaria de matá-la.

Possivelmente o lamentaria depois, mas isso não seria pior que suportar isto. E Eustace não deixa de repetir que William é um frustrado: pinta a vida em vez de vivê-la. E me olha com esses olhos concupiscentes que parecem me atravessar a roupa. É tão viril! Como pude estar tão louca para deixar que me fizesse amor? Daria algo por lhe haver rechaçado; mas isso não tem sentido, os dois estamos metidos nisto e eu não me atrevo a contar a ninguém. Tassie ficaria de pedra, não por seu pai - às vezes penso que não lhe quer nada - mas sim por William, a quem quer muito. Mais que muitas irmãs, acredito eu. Santo Deus! Sou tão desventurada que não sei o que fazer. Mas a covardia não serve de nada. Sempre soube conquistar aos homens. Encontrarei uma solução.”

Charlotte estava tremendo, e apesar do calor que fazia o suor lhe estava gelando no corpo. Era isso, então, o que tinha havido com o George? Nada de grandes paixões, nem sequer vaidade feminina, a não ser só um modo de proteger-se do Eustace? Sentiu náuseas ao pensar nisso.

Folheou o livrinho um momento mais até que chegou ao final. Leu a última entrada:

“É incrível! Nada parece turvar seu apetite nem lhe dar medo! Quase estou por acreditar que tudo foi um pesadelo. Tenho que olhar ao Jack para me certificar do contrário. Pobre Jack. A avó Vespasia o olha com tanto desagrado; eu acredito que realmente gostava dele. E Charlotte! Está muito desgostosa, e isso se nota no rosto. Imagino que é por Emily. Tomara tivesse eu uma irmã que se preocupasse tanto por mim. Nunca tinha experimentado a necessidade de alguém em quem confiar, de alguém que me defendesse. Mas agora sim. Possivelmente bastará meus gritos. Tomara. Eustace parecia realmente horrorizado, mas foi só um momento, antes de que pensasse o que ia dizer quando todos acudissem correndo a meu quarto. Certamente ele não pensou que eu ia fazer isso, até que abri a boca. Que Deus me ajude, porque se voltar gritarei como na outra noite; não me importa o que pensem as pessoas. Disse-lhe que o faria. Agora Eustace tem um olho arroxeado e Jack um lábio partido. Jack deve ter ido a seu quarto para lhe nater. O bom Jack. E o que vou fazer quando ele se for?

Meu Deus, me ajude.”

Ali terminava. Sybilla não tinha tido outra manhã para poder escrever. Mas por que não o havia dito ao William?

Porque William já não queria a seu pai, e ela tinha medo de que a ira podia impulsioná-lo a provocar uma tragédia. Ou talvez porque em uma briga entre o William e Eustace, ela temia que este ganhasse. Era lógico que o odiasse.

Ouviu algo do outro lado da porta, não o andar ligeiro de uma criada mas pisadas fortes. De homem.

Não havia escapatória; os passos se detiveram e alguém experimentou a maçaneta da porta. Aterrorizada, Charlotte deslizou a nécessaire sob a cama e se meteu ali debaixo, chocando- se com algo duro, e depois de recolher as saias puxou o cobertor para baixo no momento em que se abria a porta e, segundos depois, voltava-se a fechar. Quem quer que fosse, havia alguém mais no quarto.

Charlotte estava acocorada contra o baú e a nécessaire lhe cravava nas costas, mas não se atrevia a mover-se. Pensou em Sybilla, estendida já cadáver sobre a cama; entre elas havia somente as molas e o colchão.

Quem podia ser? Estava abrindo gavetas, rebuscando. Ouviu chiar a porta do armário, como tinha feito ela, e logo um frufrú de tafetán, um ranger de seda.

Santo céu! Estava procurando o livro que ela tinha na mão? Os pés se moviam para a cama. Teria dado algo por saber quem era, mas não se atrevia a levantar o cobertor para olhar. Quem quer que fosse devia estar olhando para ali, certo que a veria. E depois o que? Tiraria-a e a acusaria, como mínimo, de roubar a uma morta...

A nécessaire lhe estava cravando, seus cantos lhe machucavam as costas. Os pés continuavam sem mover-se. Ouviu-se um ruído débil - um trocar o peso de perna, um ranger de roupa -, o que podia ser?

A resposta não se fez esperar. Alguém retirou o cobertor e de repente Charlotte viu o rosto corado e os olhos redondos do Eustace.

Durante um longo e terrível segundo ele ficou tão transposto como ela.

Quando falou, sua voz soou a paródia de si mesmo.

—Senhora Pitt! Quer-me dizer que desculpa tem para estar aí?

Sabia ele o que Sybilla tinha escrito no diário? Charlotte o apertou com tal força que seus dedos empalideceram. Tratou de falar mas a garganta estava seca, e tinha tanto medo que não podia mover-se. Tampouco podia ir para trás, devido ao baú. Se ele decidisse agredi-la e recuperar o maldito caderno - que era com segurança o que tinha vindo procurar - a única saída era permanecer quieta onde ele não podia alcançá-la. O corpanzil do Eustace dificilmente poderia penetrar ali debaixo.

Que ridicularia. Não podia ficar debaixo da cama até que viesse alguém em sua ajuda.

— Senhora Pitt!

O rosto do Eustace se endureceu, agora seu olhar era perigoso. Sim, tinha visto o diário que ela conservava como um prezado tesouro. Lhe olhou como um coelho assustado.

— Senhora Pitt, quanto tempo pensa ficar aí colocada? Convidei-a a esta casa para que consolasse a sua irmã em sua angústia, mas me faz pensar que está tão perturbada como ela. – Estendeu-lhe uma mão grande e quadrada; Charlotte reparou em quão arrumada estava, na manicura perfeita. — E me dê isso - acrescentou com um ligeiro balbucio. — Fingirei que não sei que o pegou. Será o melhor, embora julgue que deveria voltar quanto antes para sua casa. É evidente que não é você uma convidada grata.

Charlotte não se moveu. Se lhe entregava o diário, ele o destruiria e não ficaria disso mais que sua palavra, que, por outra parte, até agora ninguém tinha valorizado acima da do Eustace.

— Vamos! Deixe de fazer tolices! Saia daí!

Ela subiu uma mão para o pescoço e desabotoou os três botões superiores de seu vestido.

Ele a olhou com fascinado horror e, a seu pesar, seus olhos foram para os seios dela, um dos atrativos mais destacados de Charlotte.

— Senhora Pitt! - grasnou.

Com cuidado, Charlotte deslizou o diário pelo peitilho do vestido e o abotou outra vez. Sentia-se incômoda, e sem dúvida ridícula, mas ele teria que lhe rasgar a blusa para arrebatar-lhe coisa que lhe seria muito difícil de justificar.

Sem deixar de olhar ao Eustace, cujos olhos pareciam cheios de furor – talvez tinha tanto medo como ela-, Charlotte saiu torpemente de debaixo da cama e ficou em pé, rígida e machucada, tremendo dos pés a cabeça.

— Esse livro não é seu, senhora Pitt - disse ele. — Me dê isso em seguida!

— Seu tampouco - replicou ela com toda a coragem que pôde reunir. Eustace era corpulento e forte, e se achava entre a cama e a porta. — O entregarei à polícia.

— Nada disso. – Agarrou-a pelo braço. Seus dedos se fecharam como uma garra.

Charlotte quase se engasgou ao falar.

— Vai rasgar me o vestido para agarrá-lo, senhor March? - tentou ironizar, sem conseguir. — Será difícil justificar isto, e além disso penso gritar... e não cria que poderá convencer a ninguém de que tive um pesadelo!

— E como vai explicar sua presença no quarto da Sybilla? - respondeu ele. Mas tinha medo, e ela pôde notá-lo em seu gesto e na pressão de seus dedos.

— O mesmo lhe digo.

Eustace esboçou um sorriso repugnante.

— Direi que ouvi um ruído e que ao entrar a encontrei mexendo no joalheiro da Sybilla; a razão não poderá ser mais evidente.

— Então eu direi o mesmo! Só que não era pelo joalheiro, mas sim pela nécessaire que havia debaixo da cama. E direi que você achou o diário, e todo mundo o lerá!

A pressão minguou. O medo o vencia e o suor começava a perlarle o lábio superior e as sobrancelhas.

— Me solte, senhor March, ou me ponho a gritar. Com certeza há alguma criada por aqui, e tia Vespasia está em seu quarto, do outro lado do patamar.

Eustace a soltou muito lentamente, e ela esperou a que estivesse a uma distância prudente antes de dirigir-se, trêmula, para a porta. Sentia-se enjoada de alívio. Era preciso achar ao Thomas imediatamente.

 

Charlotte achou Pitt no quarto do mordomo e abriu a porta de repente, surpreendendo ao agente Stripe.

— Thomas! Descobri a resposta, ou uma delas - você perdoe, agente- , no diário da Sybilla; algo que jamais teria imaginado. - Calou em seco. Agora que os dois a olhavam se sentia vulnerável pelo segredo que acabava de revelar. Mas não pelo Eustace. Teria se encantado em vê-lo humilhado diante de todos, mas sim pela Sybilla. Era como sentir-se inexplicavelmente nua.

— O que encontrou? - perguntou Pitt ansioso, e mais pendente do medo que adivinhava em seu rosto que de suas palavras. Ela não falava em são de vitória. Charlotte olhou ao Stripe apenas um instante, mas ele o notou e ela se arrependeu de tê-lo feito. Deu-lhe as costas, desabotoou-se o vestido para extrair o diário e o entregou a Pitt.

—Véspera de natal - murmurou. — Lê a entrada de Véspera de natal do ano passado, e logo a que está ao final.

Pitt passou páginas até chegar a dezembro, depois foi passando de uma em uma. Deteve-se no final, e ela observou em seu rosto uma mescla de ira e repugnância que paulatinamente se ia permutando em piedade.

— Assim ele matou George por ela - disse Pitt ao concluir a leitura. Olhou para Charlotte e entregou o livrinho ao Stripe sem dizer uma palavra. — Suponho que a pobre Sybilla sabia, ou imaginava.

— Pergunto-me por que não foi procurar o livro quando a matou - disse ela com tristeza.

— Talvez ouviu algo. Alguém que se despertou, ou Emily que ia para ali. Não se atreveu a esperar. - Charlotte estremeceu. — Prenderá-o?

Pitt sopesou a pergunta, olhando para Stripe, cujo rosto estava desconsolado.

— Não - respondeu sem mais. — Ainda não. Isto não é uma prova. Ele poderia negar tudo, dizer que eram imaginações da Sybilla. Dar a conhecer isto só feriria o William, e quem sabe se não causaria mais tragédias. - Esboçou um tênue sorriso.

— Deixemos que Eustace se preocupe um pouco e vejamos qual é seu próximo passo. - Olhou Charlotte. — Diz que havia outro livro com endereços?

— Sim.

— Então será melhor ir buscá-lo. Pode ser que não nos sirva de nada, mas os comprovaremos todos.

Charlotte foi para a porta. Pitt hesitou um pouco, olhando ao Stripe com meio sorriso.

— Sinto muito Stripe, mas vou necessitá-lo, e pode ser que isto nos ocupe um bom tempo.

Em principio Stripe não compreendeu a razão de suas desculpas, mas logo se ruborizou.

— Sim, senhor. Isto... - Levantou a cabeça. — Acredita que haverá tempo, senhor...?

— É claro. Mas não esbanje palavras. Quero- o aqui dentro de quinze minutos.

— Sim, senhor!

Stripe só esperou que Charlotte e Pitt dobrassem a esquina do corredor para sair disparado, deter a primeira criada com quem topou e lhe perguntar pela senhorita Taylor. Parecia tão preocupado e tão bonito com seu uniforme que ela respondeu imediatamente:

— Na despensa, senhor.

— Obrigado!

Stripe virou-se e se dirigiu para ali a toda pressa. A despensa em questão tinha sido pensada para preparar cordiais e perfumes, mas agora servia basicamente para armazenar chá, café e doces.

Lettie estava preenchendo um molde grande com um bolo de frutas. Voltou-se ao ouvir os passos do Stripe. Estava mais bonita ainda que a última vez que ele a tinha visto. Não tinha reparado antes em como lhe caía o cabelo sobre a testa nem na delicadeza de suas orelhas.

— Bom dia, senhor Stripe - disse ela aspirando um pouco. — Se deve inspecionar este café, adiante, é claro, mas não vale a pena. É tudo novo...

Stripe voltou a si.

— Pois não - disse com mais firmeza do que teria acreditado. — Temos uma nova prova.

Ela se interessou a seu pesar, e se assustou também. Gostava de acreditar-se independente, mas em realidade tinha um forte apego à família March, especialmente a Tassie, e teria sido capaz de chegar a certos extremos para evitar que nenhum membro saísse prejudicado, sobre tudo por causa de um estranho. Ficou   olhando ao Stripe enquanto calculava o que ele podia dizer e o que haveria ela de responder.

— Seriamente? - disse.

Stripe desejava consolá-la, tranqüilizá-la, mas não se atreveu.

— Terei que ir para investigar.

— Ah! - Lettie passou da surpresa à decepção. Depois, ao ver seu rosto de satisfação percebeu que se delatara, e ficou rígida e com o queixo exageradamente elevado. — Como não, suponho que esse é seu dever, senhor Stripe... - Não se decidiu a seguir. Era ridículo zangar-se, nada menos que por um policial!

— Pode ser que tarde bastante. Até é possível que dê com a solução... e já não volte mais.

— Espero que assim seja. Nós não gostamos que passem coisas tão temíveis e que não detenham ninguém. - Fez gesto de voltar para seu molde e suas massas de chá, mas mudou de parecer. Estava confusa, não sabia se estava zangada com ele.

A advertência do Pitt ressou nos ouvidos do Stripe. Lhe acabava o tempo. Agora ou nunca. Encheu-se de coragem e se lançou de cabeça, olhando o desenho do vaso chinês que ela tinha atrás.

— Eu vinha lhe dizer que eu gostaria muito se me permitisse visitá-la a título pessoal.

Ela aspirou rapidamente, surpreendida.

—Talvez quereria dar um passeio comigo pelo parque, quando tocar a orquestinha. Isso seria... - vacilou e por fim a olhou nos olhos - muito agradável , - concluiu com as faces acesas.

— Obrigada, senhor Stripe - disse rapidamente ela. Acaso estava louca? Sair com um policial! O que diria seu pai? Mas também sentia um comichão de prazer; era o que mais tinha desejado no mundo durante quase três dias. Engoliu em seco. — Isso estaria muito bem.

Ele a olhou radiante e, recuperando a compostura, recordou sua dignidade e ficou firme.

— Obrigado, senhorita Taylor. Se o dever me chamar longe daqui lhe escreverei uma carta e... virei procurá-la no domingo às três da tarde! - E partiu antes de que a ela lhe ocorresse pôr reparos.

Lettie só esperou até que seus passos se perderam. Logo meteu em um mesmo pote todo o chá que estava selecionando e correu acima para contar à Tassie, cujos segredos ela também conhecia.

Charlotte estava sentada na cama lutando contra a vontade de não descer para jantar. Pitt tinha saído com o livrinho de endereços em busca de algum indício e ela sentia medo. Ver o Eustace na mesa seria horroroso. Sabia que ela tinha mostrado o diário ao Pitt, e que este devia estar sopesando-o.

E William? Seu próprio pai, que tão às claras desprezava, com a esposa a qual tinha escrito aquelas cartas de amor! Seria insuportável. Foi isso o que fortaleceu a decisão já meio tirada de não dizer nada à Emily. Melhor deixar as coisas como estavam. Não era definitivamente certo que Eustace tivesse assassinado a George em um arranque de ciúmes; depois de tudo, ele não podia adotar- se nenhum direito sobre a Sybilla. Se o ciúmes o tinham impulsionado a fazê-lo, só podia ser porque o tivesse rechaçado em favor do George.

Um frio mais forte e seguro se apoderou dela. Pois claro. Sybilla não se atrevia a procurar amparo no William, primeiro porque não queria que ele chegasse a inteirar-se de sua primeira fraqueza - loucura, tinha-o chamado Sybilla-, e segundo porque temia por ele se chegasse a brigar com o Eustace. Podia ser que Eustace, por malícia, fizesse saber a todos que tinha convertido em cornudo a seu próprio filho. Charlotte imaginava o rosto da anciã ao ouvir a notícia... e a Tassie, que amava ao William com tanto sentimento.

Não. Sybilla tinha sido muito sagaz procurando amparo no George, quem às vezes podia ser muito considerado quando compreendia as coisas. George era leal; a teria ajudado e guardado silêncio. Só que George fazia algo imprevisto ao ficar prendado, também ele, da Sybilla. Ali tinha começado a arranjar-se todo o plano.

E depois Jack; este tinha compreendido e ajudado também a Sybilla. Mas compreendido até que ponto?

Não diria nada a Emily. De momento. Mas, ai, não queria suportar a pantomima do jantar. Como podia desculpar-se?

Pretextaria uma dor de cabeça, achar-se mau. Não seria necessário dar mais explicações; as mulheres sempre têm dor de cabeça, e ela tinha passado a sua para justificar uma.

Tia Vespasia se preocuparia e mandaria Digby com medicamentos e algum conselho. Emily sentiria falta dela na mesa. Que desculpa podia satisfazê-los, a ela e ao Thomas? Ele não aceitaria uma dor de cabeça. Teria esperado que descesse à sala de jantar, que observasse e escutasse. Essa era a razão que lhe tinha dado para permanecer na casa. As senhoras com criada podiam meter-se na cama por um sufoco; as trabalhadoras tinham que seguir adiante, por mais febre que tivessem. Thomas tomaria como um exemplo de covardia, que ao fim e ao cabo era do que se tratava. Em conjunto, enfrentar a Eustace era um mal menor.

Ao menos, isso pensou ao sentar-se à mesa, resolvida a não olhá-lo, mas tão pendente de sua presença que acabou por fazê-lo justo quando ele tinha os olhos pousados nela. Charlotte desviou rapidamente a vista, mas muito tarde. O frango que estava comendo adquiriu um sabor a pó molhado, teve tremores, e esteve a ponto de soltar o garfo. Certamente todos outros a estariam olhando e perguntando-se que diabos lhe passava. Se não perguntavam era por pura educação. Ficou olhando a branca toalha, evitando as deslumbrantes facetas dos candelabros e a luz do cristal esculpido das vinagreras, mas sua mente não via outra coisa que o rosto do Eustace.

— Acredito que vai mudar o tempo - disse sem alegria a velha March. — Detesto os verões chuvosos; ao menos no inverno uma pessoa pode sentar-se junto a um bom fogo sem sentir-se ridícula.

— Você tem o fogo aceso todo o ano - atravessou Vespasia. — Nesse toucador seu se asfixiaria até um gato!

— Eu não tenho gato - replicou a senhora March. — Eu não gosto. São criaturas insolentes, só pensam em si mesmos, e o mundo já é o bastante egoísta para que se acrescentem os gatos. Mas sim tive um cão - lançou um olhar de ódio para Emily, — até que alguém o matou.

—Se o cão não tivesse preferido ao George isso não teria acontecido. – Vespasia afastou o prato. — Pobre animal.

— E se George não tivesse preferido a Sybilla em vez da o Emily, não teria acontecido isso nem outras coisas. - A senhora March não tolerava ser posta em evidência, e menos em sua própria casa, diante de estranhos a quem desprezava e nada menos que por Vespasia, a quem tinha mania desde há quarenta anos.

— A outra noite disse que era porque Emily preferiu ao senhor Radley - interrompeu Charlotte, olhando à anciã com as sobrancelhas levantadas. — Soube algo que a fez mudar de opinião?

— Eu acredito, jovem, que quanto menos fale melhor! – Fulminou-a com o olhar e continuou comendo.

— Pensava que talvez tivesse averiguado algo - murmurou Charlotte. Depois , obedecendo a um forte impulso, olhou de esguelha ao Eustace.

A expressão de seu rosto era extraordinária: não exatamente de medo, mas algo parecido à curiosidade. Era um hipócrita consumado, um ser presunçoso e insensível, sempre obcecado por sua família, à margem pisoteava emoções sutis. Mas não lhe faltava coragem. Eustace estava começando a olhá-la de um modo muito diferente da desinteressada condescendência que até agora lhe havia possuído. Charlotte deduziu desse único olhar que se convertera não só em uma adversária, mas também em uma mulher. Aquela passagem do diário voltou à sua memória como se o lesse na toalha. "É tão viril!", e as faces lhe acenderam. A idéia era tão repelente que as mãos começaram a lhe tremer e seu garfo caiu ruidosamente no prato. Talvez Sybilla fizesse outras referências (oblíquas ou inclusive detalhadas). Ardia-lhe o rosto; era como se o vestido lhe tivesse desabotoado diante de todos, especialmente do Eustace. Ele podia inclusive saber o que ela tinha lido, e mais. Talvez estaria repetindo-se mentalmente as palavras e, compartilhando-as com ela, imaginando sua reação. Charlotte estremeceu. Logo, por urbanidade, levantou a vista... e se achou com o Jack Radley, ao lado de Emily, olhando-a com expressão preocupada.

— E você descobriu algo? - perguntou Tassie com perspicácia.

— Não! - exclamou Charlotte muito rápido. — Não sei quem pôde fazê-lo. Nem a menor ideia!

— Então é idiota - disse com sanha a senhora March. — Ou mentirosa. Se não ambas as coisas.

— Então todos somos tolos ou mentirosos. - William deixou seu guardanapo junto ao prato intacto. A diferença dos outros, nem sequer tinha fingido tomar dois ou três bocados.

— Aqui nem todos somos tolos. - Eustace não olhou ao Charlotte, mas ela soube que a frase ia dedicada. — Sem dúvida um de nós sabe quem matou ao George e Sybilla, mas o resto dos presentes é o bastante sábio para não especular em voz alta sobre a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Com isso só se causaria uma dor desnecessária. Terá que ter em conta a caridade cristã e a justa indignação.

— De que diabo está falando? - inquiriu Vespasia com súbita irritação. — Caridade cristã com respeito a quem? E por que? Em sua vida nunca teve um ápice de caridade cristã. A que vem essa mudança? É que por uma vez está...?

Ele pareceu receber uma bofetada. Tratou de procurar uma resposta, mas não achou nada que lhe defendesse ante a lúcida suspicacia dela.

Para defender ao William da humilhação - e sobre tudo do próprio Eustace -, Charlotte interrompeu com o primeiro que lhe passou pela cabeça.

—Todos temos coisas que ocultar - disse. — Presenciei suficientes investigações para sabê-lo. E pode ser que o senhor March só esteja começando a dar-se conta. Consta-me que só procura proteger a sua família. Talvez ache que  Emily não vai reagir frente ao que possa dizer-se dela, mas duvido que me julgue da mesma maneira.

Vespasia guardou silêncio. Se tinha alguma coisa que acrescentar preferiu não fazê-lo nesse momento.

William a olhou com a sombra de um sorriso, doloroso de tão tênue. Jack Radley apoiou uma mão no braço de Emily.

—Seriamente? - A senhora March ficou olhando ao Charlotte com o lábio franzido. — E o que poderia você dizer que a meu filho possa lhe importar o mínimo?

Charlotte se obrigou a sorrir.

— Está-me convidando ao que faz um momento acordamos que seria muito desagradável: causar uma desnecessária inquietação mediante a especulação. Não é assim, senhor March? - Olhou ao Eustace nos olhos.

Ele ficou surpreso, e sua mente registrou com tal viveza uma série de sensações que ela pôde segui-los como se fossem fotografias: alarme, segurança provisória, florescente ironia - uma percepção nova para ele - e uma desinteressada admiração.

Charlotte teve a horrível sensação de que nesse preciso instante, se tivesse querido, poderia ter ocupado o lugar deixado pela Sybilla, mas desta vez foi ela quem o desafiou com o olhar e ele quem desceu a vista.

Contudo, dormiu mau. Não tinha explicado nada a tia Vespasia sobre seu enfrentamento com o Eustace, e se sentia culpada por isso. Emily seguia muito absorta em sua própria aflição e o medo para haver-se dado conta.

Passava da meia-noite quando Charlotte ouviu um ruído muito ligeiro, como de pedrinhas que caíam. Logo o ouviu outra vez. Levantou-se, foi à janela cuidando de mover a cortina o mínimo possível, e olhou fora. Não viu mais que o jardim à vaporosa luz da lua.

O ruído voltou a ouvir-se; um fraco e pequeno clinc. Uma pedra caiu de cima, roçou o batente e ricocheteou para o vazio. Não a ouviu aterrissar. Mas continuava sem ver ninguém. Deviam estar à sombra de um dos arbustos ornamentais.

Uma entrevista de alguma das criadas? Impossível! Se uma moça era pilhada em uma coisa assim não só ficava sem emprego e sem teto, mas também sem a possibilidade de uma colocação no futuro. Veria-se reduzida a escolher entre uma fábrica e a rua, onde teria que viver do roubo e da prostituição. Nem sequer a paixão de um namorico podia inspirar tão perigoso abandono. Havia melhores sistemas.

Quem ocupava o quarto de cima? Todos tinham quartos no mesmo piso... exceto Tassie! Esta tinha conservado seu quarto de menina na ala superior, de modo que houvesse suficientes quartos para os convidados.

Charlotte tomou uma decisão; se se parasse a refletir lhe falharia a têmpera.

Agarrou seu vestido escuro mais simples, o pôs e se calçou as botas de cano longo às escuras. Não se atreveu a acender nenhuma luz. Inclusive com as cortinas fechadas, quem estivesse fora podia vê-la. Não empregou mais tempo em se pentear que para fazer um coque. Depois, agarrando seu casaco, esperou atrás da porta e aguçou o ouvido até que ouviu uns passos muito leves no patamar.

Esperou um pouco mais e depois saiu em silêncio. Da escada teve o tempo de ver uma sombra que dava a volta e desaparecia, não para a parte dianteira mas em direção à cozinha. É claro; a porta principal tinha fechaduras que não se podiam abrir do exterior. Alguém da criadagem carregaria com a culpa.

Desceu tão rápido como foi possível recolhendo-a saia. Devia esmerar-se em não fazer nenhum ruído nem delatar-se ante Tassie.

Seria sonambula? Teria um arrebatamento de loucura intermitente? Ou era perfeitamente sensata mas algum assunto horripilante a fazia retornar salpicada de sangue?

Charlotte hesitou um instante. Não podia enganar-se: tinha que ser algo grotesco, ela tinha sabor de ciência certa que ocorriam coisas horríveis. Antes de morrer George, Pitt tinha tido que investigar um espantoso caso de assassinato que o tinha feito retornar a casa branco e com náuseas; uma mulher esquartejada cujos restos tinham sido espalhados pelo Bloomsbury e St. Giles.

Estava rígida, a sós no saguão. Frente a ela a porta de pano verde tinha deixado quase de bater. Tassie devia ter chegado a dispensa. Não havia tempo para decidir nada: ou a seguia e conhecia a verdade, ou voltava para a cama.

A porta tinha ficado imóvel. Se não se apressasse perderia Tassie. Sem permitir um pensamento mais avançou os últimos passos e cruzou a porta entrando na ala da criadagem. As cozinhas estavam desertas e o aroma de limpo se mesclava com os de madeira esfregada, farinha e também cisco. Viu os baldes para o carvão iluminados pela luz do lampião que penetrava pela janela. A dispensa estava repleta de hortaliças, baldes e panos de chão. A saia seenganchou na asa de um balde e Charlotte se deteve justo antes de derrubá-lo com estrépito sobre o piso de pedra.

A porta exterior que tinha diante estava fechada; Tassie já tinha saído. Charlotte provou o trinco, que virou com facilidade.

A noite estava só um pouco mais fresca que a casa. As altas paredes do pátio impediam a passagem da brisa. O céu aparecia decorado com farrapos de nuvens, mas a lua jogava uma luz leitosa que lhe permitiu ver as janelas de trás, o conduto que baixava até o porão do carvão, vários baldes para o lixo e, ao fundo, a grade que dava ao pátio de entrada e à rua, e o globo amarelado de um lampião sobre a parede.

Tassie devia estar na rua.

Levantando cuidadosamente o fecho com as duas mãos e segurando-o para que não caísse, Charlotte abriu a grade e olhou. A sua esquerda não havia outra coisa que a calçada; à direita, a esbelta figura do Tassie caminhando a passo vivo pelo Crescent.

Fechou a grade e se dispôs a segui-la, mas momentos depois Tassie desapareceu depois da esquina para a avenida. Agora já podia correr sem medo a chamar a atenção. Não se via ninguém mais, e se se atrasasse podia perder a Tassie. E então não averiguaria que fazia sair de sua casa de madrugada a uma herdeira de dezenove anos para retornar ao momento cheirando a sangue fresca.

Mas quando chegou à esquina não viu ninguém em toda a amplitude da via de três sulcos. Charlotte se sentiu frustrada, mas de repente viu sair Tassie da sombra de um sicómoro uns cinqüenta metros mais à frente, andando a passo vivo.

Não tinha imaginado que Tassie pudesse dar-se tanta pressa e agora, se não quisesse perdê-la de vista, teria que correr com a máxima presteza e amparando-se nas sombras enquanto o fosse possível. Se Tassie chegava a perceber que a seguiam, toda possibilidade de descobrir seu segredo se viria abaixo e, no pior dos casos, isso podia traduzir-se em uma briga noturna em plena rua contra uma louca. Aquele sangue era de alguém!

Se Pitt soubesse ia ficar furioso, possivelmente não o perdoaria jamais. Só pensar nas palavras que ele podia lhe espetar a fez encolher-se de medo. Mas não era a irmã dele que enfrentava a uma possível condenação à forca. Até a pessoa mais razoável conviria em que Emily tinha um motivo muito claro para assassinar a seu marido.

Tassie continuava andando depressa pela avenida e Charlotte estava a uns quinze metros dela. Torceu bruscamente por uma rua e Charlotte a seguiu. Nesta rua as casas eram mais humildes, mais próximas umas às outras; a necessidade se impôs a qualquer outro critério.

Tinham chegado ao fundo da rua e Tassie continuava andando a passo vivo como se soubesse muito bem aonde ia. Achavam-se em uma espécie de beco estreito e lúgubre, com casas empenadas que se recostavam umas contra outras, escuros e ameaçadores passadiços e sombras como charcos. Não se via ninguém excetuando a um malandro provido de uma boina que caminhava na mesma direção que Tassie uns metros adiante desta. Charlotte tiritou, apesar da corrida tê-la esquentado e a noite era temperada. Não se atreveu a pensar no medo que tinha, porque teria dado meia volta para retornar com toda a velocidade que seus pés lhe permitissem à longa, familiar e limpa avenida.

Mas Tassie não parecia ter medo, caminhava com passo rápido e ligeiro, a cabeça alta. Sabia aonde se dirigia e desejava chegar ali quanto antes. Não havia ninguém na rua além do malandro, Tassie e a própria Charlotte, mas saber o quepodia espreitar nos portais. Aonde diabo podia estar indo Tassie naquele lúgubre labirinto de moradias e comércios? Ali não conheceria ninguém... ou sim?

Deu-lhe um tombo o coração e sentiu um calafrio. Acaso George se levantara também uma noite ou, voltando possivelmente do quarto da Sybilla, tinha visto Tassie e a tinha seguido? Estava fazendo agora o mesmo que tinha feito ele? Teria descoberto George o abominável segredo do Tassie... só para achar a morte?

Não obstante, seus pés não se detiveram; alguma parte de seu cérebro os fazia avançar quase automaticamente pela úmida rua. Percebeu várias figuras apostadas nos portais, de movimentos nos escuros becos entre pilhas de lixo. Ratos ou pessoas? Tinha sido em lugares como este onde os homens do Pitt tinham descoberto parte da garota esquartejada fazia apenas um mês.

Charlotte sentiu uma vertigem, mas a imagem não saia da cabeça: Tassie subindo a escada nas pontas dos pés, o sangue, aquela terrível serenidade...

A que distância estavam já do Cardington Crescent? Quantas vezes tinham virado? Tassie seguia uns quinze metros diante dela; Charlotte não queria distanciar-se mais por medo de que se desviasse de repente e se perdesse de vista. A essa distância a via tão pequena e magra como o malandro que a precedia e as outras sombras que se amontoavam nos limites de seu campo visual. Muito tarde para voltar atrás. Em qualquer lugar se dirigisse, Charlotte teria que esperá-la porque só não conseguiria sair daquele atoleiro.

Uma figura corpulenta tomou forma destacando-se das paredes irregulares. Era um homem de costas largas. Mas longe de assustar-se, Tassie foi para ele com um murmúrio de prazer e levantou os braços, aceitando o abraço dele com naturalidade. O beijo foi íntimo e doce como o de duas pessoas que se querem, mas também foi breve, e um momento depois ela desapareceu pelo estreito portal, e o homem também, deixando ao Charlotte a sós na escura e escorregadia calçada. O malandro se esfumara.

Agora sim estava assustada. Pôde notar como a envolvia a escuridão, umas silhuetas que avançavam arrastando os pés, algo que se deslizava no beco, um gotejar de água que se filtrava de ocultos deságües. Se a roubassem ou a matassem ali, nem sequer Pitt poderia encontrá-la.

Que lugar era aquele? Parecia uma casa comum e humilde. O que havia ali que fazia acudir ao Tassie só e a meia-noite? Teria que esperar até que ela saísse e depois voltar a segui-la até...

Notou uma mão no ombro e o coração lhe deu um tombo tão violento que o grito ficou em um estridente ganido que se apagou em um terror inarticulado.

— O que lhe traz por aqui, rapariga? – grunhiu-lhe uma voz ao ouvido. Um fôlego quente e pestilento. Charlotte quis falar, mas sua garganta era um poço ressecado.

As mãos que lhe tamparam a boca eram grosseiras e a pele tinha o aroma acre da terra. — Bom, que rapariga bisbilhoteira. - A voz estava tão próxima que lhe movia o cabelo com o fôlego. — Que busca? Veio espiar, né? Veio colocar o nariz, né? Para voltar correndo com papai e contar-lhe tudo, não? Pois vou dar algo que contar! - E puxou-a brutalmente, lhe dobrando as costas e lhe fazendo perder o equilíbrio.

Charlotte continuava tremendo de medo, mas a raiva tinha surgido, e não vacilou em dar uma cotovelada ao mesmo tempo que lhe pisava em um pé com toda a força de seu peso. O pisão alcançou ao homem no baixo ventre, fazendo-o bramar de dor.

   A situação estava a ponto de tomar uma aparência muito mais perigosa quando uma voz feminina os interrompeu raivosamente.

— Basta! Senhor Hodgekiss, deixe-a em paz agora mesmo! – Uma lanterna brilhou fazendo que Charlotte piscasse os olhos . O homem a soltou balbuciando algo. — Senhora Pitt! - Era Tassie, e a surpresa lhe dava um tom agudo. — Mas o que está fazendo aqui? Encontra-se bem? Fez-lhe mal? Está muito pálida...

Não havia outra explicação que a verdade. O rosto de Tassie quando baixou a lanterna parecia tão inocente como uma tigela de leite, seus olhos arregalados e tintos de preocupação.

— Segui-a - admitiu Charlotte. Agora lhe parecia uma perigosa tolice. Mas Tassie não mostrou aborrecimento.

— Então será melhor que entre. - Sem esperar resposta, deixou a porta aberta e entrou na casa.

Charlotte ficou na calçada presa da indecisão. Queria escapar daquelas ruas úmidas e ameaçadoras, da casa que se abria ante ela, do sangue e a loucura que pudesse haver dentro, mas sabia que não era possível: ignorava onde se achava, e igualmente podia entrar no submundo. Assim, não foi tanto a decisão de entrar quanto a falta de coragem para sair correndo. Entrou atrás de Tassie, entrou num corredor tão estreito que podia tocar suas paredes estendendo os cotovelos, e a seguiu por uma rangente escada alta. O caminho estava iluminado pela flutuante luz de uma vela que alguém levava diante. Não quis imaginar para onde iriam.

O dormitório era desesperadamente ordinário; cortinas finas nas janelas, lona a modo de tapete, uma mesa de madeira lisa com uma bacia e uma jarra em cima, e uma ampla cama de casal recém feita. Deitada nela havia uma garota de quatorze ou quinze anos no máximo, o rosto pálido e contraído pelo medo, o cabelo escovado para trás e caindo sobre os ombros em um matagal úmido. Estava de parto e era evidente que sofria muito.

Em um extremo da cama havia uma moça um ou dois anos maior e com uma semelhança tão notável que não podiam ser senão irmãs. Junto a ela, com as mangas subidas e disposto a assistir quando chegasse o momento mas por agora agarrando a mão da parturiente, estava Mungo Farei, o ajudante da paróquia.

Charlotte compreendeu de repente. Era tudo tão claro que não haveria pergunta que fazer. De algum jeito Tassie se havia envolvido para ajudar a dar à luz a garotas pobres ou abandonadas. Certamente tinha sido Mungo Farei quem a tinha levado a isso. A idéia de que o pio e rosado senhor Beamish pudesse organizar semelhante coisa era absurda.

E aquele beijo rápido e entusiasta se explicava por si mesmo, e explicava também a obediência do Tassie ante a ordem de sua avó de que se ocupasse em fazer boas obras. Charlotte se sentiu invadida de sorte. Sentiu vontades de rir a gargalhadas.

Mas Tassie não tinha tempo para essas coisas. A garota deitada na cama começava a ter contrações e sua dor era tão atroz como seu medo. Tassie estava dando ordens a um moço de tez branca com boina de pano, presumivelmente o maroto que tinha ido avisar a lançando pedras a sua janela, lhe mandando por água e todos os panos limpos que pudesse achar, possivelmente para lhe fazer sair do quarto. Se não fosse pelo medo da moça e a possibilidade da morte, também teria feito sair ao Mungo Farei. Os partos eram coisa de mulheres.

Charlotte se lembrava bem de seus dois partos, sobre tudo do primeiro. O temor e o orgulho da gravidez tinham dado passagem a um medo primitivo e arrepiante ao começar as dores e esse ciclo corporal que só podia terminar dando a luz um ser vivo... ou morto. E isso porque ela era adulta, amava a seu marido e queria ter o filho, e contou com sua mãe e sua irmã para que a ajudassem uma vez que o médico completou sua tarefa profissional. Mas esta garota era apenas uma menina (a essa idade Charlotte ainda ia à escola) e só contava com a ajuda do Tassie e de um jovem padre escocês.

Avançou um passo, sentou-se na beira da cama e pegou a outra mão da moça.

— Agarre-se - disse com um sorriso. — E grita se tiver vontade, está em seu direito e aqui ninguém vai pôr má cara por isso. Valerá a pena, prometo-lhe. - Era uma imprudência dizê-lo, e o lamentou assim que pronunciou essas palavras. Muitas crianças nasciam mortas, e inclusive se saísse bem, como ia essa garota cuidar do bebê?

— É você muito boa, senhorita - disse a garota entre ofegos. — Não sei por que tem tanto trabalho.

— Eu tive dois - respondeu Charlotte, lhe apertando um pouco mais a mão e notando que sofria um novo espasmo. — Sei como se sente. Mas espera a abraçar a seu filho, verá como se esquece disto. – Amaldiçoou-se uma vez mais por sua temeridade. E se a garota não pudesse ficar com o bebê, e se acabasse sendo adotado, ou em algum orfanato anônimo ou criando-se em um asilo esfomeado de comida e de amor?

— Eu e minha irmã o criaremos - respondeu a garota à pergunta não formulada. — Annie tem um bom emprego fazendo tarefas e isso. O buscou o senhor Farei. - A garota olhou ao Mungo Farei com intensa confiança.

As contrações interromperam toda conversa, e agora foi Tassie quem ficou a trabalhar com palavras de fôlego, um montão de toalhas e água. Charlotte a ajudou. E às três e meia o milagre de uma nova vida voltou a repetir-se naquele chiqueiro. A garota, com uma camisola limpa, exausta e com o cabelo molhado, mas radiante de alegria, segurou ao menino em seus braços e perguntou timidamente a Charlotte se lhe importaria que lhe pusesse o nome Charlie. Ela disse que o consideraria uma grande honra.

Às quatro e quinze, enquanto o amanhecer estival pintava de cor pérola o céu sobre o matagal de telhados cinzas de fuligem, Charlotte e Tassie deixaram a casa e, precedidas pelo garoto que ia dançando e saltando, chegaram à avenida por onde retornariam ao Cardington Crescent. Mungo Farei não foi com elas; despediu-se de Tassie em uma esquina do beco. Tinha coisas que fazer antes de apresentar-se no vicariato para o serviço da manhã.

Também Charlotte sentiu vontade de dançar, só que suas pernas não a teriam obedecido depois da dura prova a que as tinha submetido aquela noite. Mas ficou a cantar uma alegre toada musical, e Tassie lhe fez coro. Juntas percorreram a avenida ao amanhecer, manchadas de sangue e o cabelo alvoroçado, enquanto os pássaros tomavam ao novo dia dos sicómoros.

Chegadas a Cardington Crescent acharam a porta da dispensa ainda aberta. Entraram às escondidas, passaram por diante dos montões de hortaliças e frigideiras alinhadas na parede e chegaram à cozinha. Meia hora mais e as primeiras criadas começariam a limpar os fogões e pôr os fornos a ponto para o café da manhã. Pouco depois as demais criadas se levantariam também para preparar a sala de refeições e iniciar a rotina diária.

— Alguma vez tropeçou com alguém? - sussurrou Charlotte.

— Não, mas tive que me esconder um par de vezes na despensa. – Olhou-a nervosa. — Não contará a ninguém do Mungo, verdade? Oh, por favor.

— É claro que não. - Charlotte se horrorizou de que lhe tivesse ocorrido semelhante ideia. — Por quem me toma, que precisa perguntá-lo? Pensa se casar com ele?

Tassie ergueu o queixo:

—Sim! Papai ficará furioso, mas se não me dá permissão me casarei sem ele. Quero ao Mungo mais que a ninguém no mundo, bom, além de tia avó Vespasia e William. Mas isso é diferente.

— Bem! - Charlotte lhe apertou o braço em um gesto de camaradagem. — Se posso ajudá-la, farei-o.

— Obrigada - disse de coração, mas agora não podiam continuar falando. Demoraram-se bastante mais do que o necessário, corriam perigo. Charlotte a seguiu nas pontas dos pés pelo corredor deixando atrás o quarto da governanta e o do mordomo até o saguão principal.

Estavam quase ao pé da grande escada quando ouviram fechar a porta da saleta e a voz do Eustace a suas costas.

— Senhora Pitt, sua conduta é injustificável. Recolha suas coisas e abandone minha casa esta mesma manhã.

Ambas ficaram paralisadas e tremendo de horror. Depois, lentamente, voltaram-se.

Ele estava a três ou quatro metros, junto à porta da saleta, com uma vela na mão que gotejava cera quente em seu suporte. Levava um roupão sobre a camisa de noite, e um gorro de dormir. Fora luzia o sol, mas dentro as cortinas de veludo ainda estavam corridas e foi necessária a chama da vela para distinguir os rostos delas e as salpicaduras de sangue em suas saias. Apesar do terrível da situação, Charlotte não pôde sufocar a infinita alegria que sentia por dentro, o exultante lucro de uma vida, nova e sem mancha.

Eustace empalideceu e seus olhos se abriram ainda mais.

— Santo céu! - exclamou pasmado. — O que tem feito?

— Assisti a um parto - disse Tassie com o mesmo sorriso que Charlotte lhe tinha visto aquela noite na escada.

— Fez o que?

— Assistir a um parto.

— Não diga tolices! Um parto de quem? Quem é a mãe? Você perdeu o juizo!

— Seu nome não importa - respondeu Tassie.

— Importa, e muito! - A voz do Eustace estava subindo. — Ela não tinha porque fazê-la sair a estas horas! E mais, nem a estas nem a outras; não sabe o que é o decoro? Uma garota solteira não deve... não tem por que saber nada destas coisas. É uma indecência! Como quer que lhe busque um marido, agora que há... Quem é, Anastasia? Exijo saber o nome da mãe! Penso censurá-la com dureza e ter umas quantas palavras com o marido. Não entendo como se pode ser tão irresponsável... Mas não ouvi sair uma carruagem.

— É lógico - respondeu Tassie. — Fomos a pé. E não existe tal marido. E se servir de algo, ela se chama Poppy Brown.

—Não a conheço de nada... O que quer dizer com que foram andando? No Cardington Crescent não há nenhum Brown!

— Ah, não? - disse Tassie com descaramento. Já não valia a pena recorrer ao tato; estava muito eufórica, e muito cansada de que a humilhassem, para discutir.

— Não - repetiu ele cada vez mais furioso. — Conheço todo mundo, ao menos de nome. Tenho que sabê-lo. Como se chama essa mulher, Anastasia? E procura me dizer a verdade, ou me verei obrigado a discipliná-la.

— Que eu saiba, chama-se Poppy Brown. E não disse que vivesse no Cardington Crescent. Vive a alguns quilômetros daqui, onde começam os bairros pobres. Seu irmão veio me avisar e eu não poderia voltar ali só embora quisesse.

Eustace guardou silêncio. À luz da vela, pareciam figuras de um baile de máscaras. Em algum ponto do piso de cima se ouviu ruído, uma das criadas jovens tinha deixado que uma porta se fechasse sozinha. Pelo resto, o silêncio era tão grande que o ruído ressou em toda a casa.

— Quanto antes se case com Jack Radley, melhor - disse Eustace ao fim. — Se ele a aceitar, que suponho que o fará; necessita seu dinheiro. Já a arrumará ele. Dar-lhe-á filhos próprios dos que te ocupar!

O rosto de Tassie se retesou e sua mão pegou com força o corrimão.

— Não me faça isso, papai. Jack pode ter matado George. Não quererá ter um assassino na família, não é? Imagina o escândalo.

As faces do Eustace se escureceram e a vela tremeu em sua mão.

— Bobagens! - disse. — Ao George matou Emily. Qualquer imbecil pode ver que essa família tem uma veia de loucura. - Lançou um olhar de ódio ao Charlotte e depois voltou a olhar a sua filha. — Casará com Jack Radley tão logo seja possível. E agora sobe a seu quarto!

— Se o fizer, as pessoas dirão que tive que me casar porque estava grávida – replicou ela. — Não é decente casar-se com pressa, sobre tudo com um homem da reputação do Jack.

— Merece perder sua posição! Perderia-a ainda mais se as pessoas soubessem onde esteve esta noite!

Ela não cedeu.

— Mas sou sua filha. Minha reputação afetará à sua. Além disso, se Emily matou George, Jack deve estar comprometido; ao menos isso dirão as pessoas .

— Que pessoas? - Ele tinha parte de razão, e sabia. — Ninguém está à corrente desse galanteio salvo os da família, e ninguém vai contando-o por aí. Vamos, faz o que lhe digo e sobe a seu quarto.

Mas Tassie ficou imóvel, salvo pelo ligeiro tremor da mão agarrada ao balaústre.

— Pode ser que ele não queira casar-se comigo. Emily tem muito mais dinheiro, e já dispõe dele. Eu só terei o meu quando morrerem minhas avós.

— Ocuparei-me de que tenha os recursos adequados - replicou ele. — E o marido. Emily não conta; terá que ingressá-la discretamente em alguma parte, um manicômio particular, onde não possa matar a ninguém mais.

Tassie levantou a cabeça com o rosto tenso e assustado.

— Pois eu me casarei com o Mungo Farei, diga o que disser!

Eustace ficou sem fala, mas na hora explodiu:

— Você se casará com quem eu disser! E o que digo é que vai se casar com Jack Radley. E se acontecer que ele não vale ou não está disposto a casar-se, já lhe buscarei alguém mais. Mas tenha como certo que não vai casar se com esse mendigo que nem sequer tem família. Mas se pode saber onde tem a cabeça, moça? Nenhuma filha minha se casará com um padre! Se ao menos fora arquidiácono, passe, mas de padre nada! E ainda por cima um que não tem futuro. Proíbo você que volte a vê-lo ou a lhe dirigir a palavra! Falarei com o Beamish para que Farei não volte a apresentar-se mais nesta casa nem você tenha ocasião de falar com ele na igreja. Se não me der sua palavra, direi ao Beamish que Farei te esteve acossando; verá como perde a batina. Entendeste-me, Anastasia?

Tassie parecia a ponto de desmaiar.

— E agora vá a seu quarto e fique ali até que eu llhe diga! – acrescentou Eustace, voltando-se para Charlotte. — E você, senhora Pitt, faça o favor de partir assim que tenha recolhido seus pertences.

— Antes eu gostaria de falar com você, senhor March. - Charlotte tinha uma carta para jogar, e não hesitou. Olhou-o fixamente. — Temos um assunto pendente.

— Eu... - Ele não se decidia a desafiá-la; sua boca era uma linha fina, emoldurada por caminhos de bochecha azul-violáceo. Mas lhe falhou a coragem. — Vete a seu quarto, Anastasia! - bradou furioso.

Charlotte lhe dirigiu um breve sorriso.

— Subirei para vê-las dentro de um momento - lhe disse. — Não se preocupe.

Tassie esperou uns segundos, mas ao notar algo na expressão do Charlotte, virou lentamente e subiu pela escada desaparecendo no patamar.

— E então? - disse Eustace, mas sua voz tremia um pouco e a beligerância de seu rosto era forçado.

Charlotte vacilou em ir diretamente ao ponto ou utilizar a sutileza. Conhecia suas próprias limitações, e se decidiu pelo primeiro.

— Acredito que deveria permitir a Tassie que continue seu trabalho de ajuda aos necessitados - disse com toda a calma possível - , e que se case com o senhor Farei assim que possa arrumar-se sem que isso pareça apressado nem propicie comentários ingratos.

— Isso é impossível. - Meneou a cabeça. — Absolutamente impossível. Farei não tem dinheiro, família nem futuro.

Charlotte não se incomodou em mencionar as virtudes do padre; não teria servido de nada. Decidiu golpear onde mais dano podia fazer.

— Se não fizer o que digo - começou pronunciando com lentidão, olhando-o nos olhos, — ocuparei-me de que sua aventura com a esposa de seu filho William seja do domínio público. Até agora só sabe a polícia, e embora se trata de algo repugnante não constitui um delito. Mas se a boa sociedade chega a inteirar-se, sua situação seria insustentável. Quase todo mundo faz ouvidos surdos a um pouco de borboleteio discreto, mas seduzir à esposa do filho na sua própria casa... e no Natal!

— Cale-se! - gritou. — Basta já!

— A rainha não o aprovaria - prosseguiu ela. — É uma anciã um pouco escrupulosa, obcecada pela virtude, especialmente a virtude conjugal e a vida familiar. Se ela se inteirasse, ficaria você sem título de nobreza. É mais, seu nome desapareceria de qualquer lista de convidados em Londres.

— Está bem! - A rendição soou engasgada, o olhar era suplicante. — Está bem! Que se case com o maldito padre! Não diga a ninguém sobre Sybilla, Por Deus! Eu não a matei, e tampouco ao George. Juro-o!

— É possível. - Charlotte não pensava ceder. — A polícia tem o diário, e não há razão para que eles tenham que dar publicidade ao assunto. Pedirei a meu marido que o destrua... uma vez resolva o assassinato. Faço-o por William, não por você.

Eustace engoliu com força e disse como se odiasse cada palavra que pronunciava:

— Dá-me você sua palavra?

—Isso fiz. E agora, se me desculpa queria ir deitar me; foi uma noite longa e difícil, e queria dar a boa notícia a Tassie. Ficará muito contente. Acredito que quer muito ao senhor Farei. Escolheu muito bem. Não vou vê-lo no café da

manhã, acredito que tomarei na cama, se for amável de dizer que me subam isso. Mas nos veremos no almoço, e no jantar também.

Ele murmurou uma espécie de assentimento.

— Boa noite, senhor March.

Eustace respondeu com um grunhido.

 

Enquanto Charlotte desfrutava na cama o café da manhã e contava ao Emily os acontecimentos da véspera, Pitt estava examinando uma vez mais o livrinho de endereços encontrado na nécessaire da Sybilla. No meio da amanhã ele e Stripe tinham revisado todas as entradas exceto uma. Eram endereços que qualquer um teria esperado achar em uma agenda de uma mulher da alta sociedade: parentes, a maioria maiores de idade; alguns primos; amizades, algumas das quais se casaram e mudaram para viver em outras zonas do país, sobre tudo no inverno, e outras meros conhecidos com os quais era conveniente manter certa relação; e depois dois modistas, um herbanário, uma chapeleira, uma fabricante de espartilhos , uma florista, um perfumista e outras profissões similares.

O único nome que Pitt não podia localizar era uma tal Clarabelle Mapes, no número 3 do Tortoise Lane. Só conhecia uma rua desse nome, e era uma ruela imunda do bairro do St. Giles, uma zona aonde Sybilla March dificilmente teria ido de visita. Devia tratar-se de algum centro de beneficência ao qual ela tinha dado suporte econômico, talvez um orfanato. Foi por mera diligência e até sabendo de que seria complicado e possivelmente uma perda de tempo - seu superior assim achava e o havia dito mordazmente - que Pitt decidiu ir a Tortoise Lane. Havia a possibilidade de que Clarabelle Mapes soubesse alguma coisa que pudesse somar-se à imagem ainda confusa que tinha dos March.

Boa parte do St. Giles era muito estreita para percorrê- la em carruagem, de modo que deixou seu cabriolé a uns quinhentos metros do Tortoise Lane e seguiu a pé. Os edifícios eram humildes e cinzas e havia fedor de águas residuais. Empregados gordos com cartola e calças brilhantes passavam a toda pressa com papéis na mão. Um estagiário com óculos de aros de arame se afastou para deixar passagem a Pitt. O sol brilhava firme em um céu uniforme e sem vento, e no ar se apalpava a fumaça.

Um coxo apregoava fósforos apoiado em sua muleta, um jovem segurava uma bandeja com cordões de sapato, uma moça oferecia roupa de crianca feita à mão. Pitt lhe comprou algo. Era muito pequeno para seus filhos, mas não pôde suportar passar ao largo, embora soubesse que muitos outros o fariam - se não hoje, amanhã - e que ninguém podia remediar.

Um mascate empurrava um carrinho de mão de hortaliças pelo meio-fio, e as rodas chiavam sobre a pavimentação. A garota foi até ele e gastou as poucas moedas que Pitt lhe tinha dado, desaparecendo com a compra em seu avental.

Tinha Eustace March assassinado George para manter em segredo sua aventura com sua nora e depois a tinha assassinado quando Sybilla compreendeu o que tinha feito ele? Teria gostado de acreditar nisso. Eustace não lhe era simpático; sua vaidade, sua cegueira ante as necessidades ou penúrias de outros, suas maneiras altivas e enjoativas, sua virilidade e seu orgulho dinástico. Embora talvez não se diferenciasse em muito de outros patriarcas ambiciosos armados de vigor e dinheiro. Sempre absorto em si mesmo, era insensível mais que malicioso. Quase sempre estava convencido de ter a razão a respeito das coisas importantes, e de muitas que não o eram. Pitt não achava que a violência ou o medo pudessem levá-lo a cometer um duplo assassinato, menos ainda em sua própria casa.

Depois havia a pitoresca história do Tassie subindo às escondidas a escada salpicada de sangue. E apesar dos protestos do Charlotte, ele não estava de todo certo de que não tivesse tido um pesadelo, a idéia em si era totalmente absurda.

Talvez a débil luz de gás e sua própria imaginação lhe tinham feito ver sangue onde não havia mais que manchas de água ou vinho. Mais ainda, não se sabia de ninguém que tivesse sido apunhalado. Salvo, é claro, no horrível caso do Bloomsbury, mas não havia motivo para acreditar que tivesse conexão com o do Cardington Crescent.

Outra possibilidade, que lhe ocorreu enquanto caminhava por ruas misérrimas a caminho do Tortoise Lane, era que a tal Clarabelle Mapes fosse uma abortista, e que Sybilla lhe tivesse conseguido o endereço à Tassie, que fosse depois de uma apressada e incompetente operação que Charlotte tivesse visto Tassie retornar de noite. E que o que ela tinha tomado por uma expressão de júbilo tivesse sido uma careta de dor, mesclada com o alívio de ver-se de novo a salvo, em casa e livre de uma desgraça intolerável.

A idéia era muito desagradável, e Pitt desejou que não fosse verdade. Mas conhecia de sobra a fragilidade humana para aceitar que não era impossível. A outra resposta partia da relação entre o George e Sybilla; William como o marido ultrajado, apesar de Eustace jurar que quis divorciar-se da Sybilla até saber que estava grávida. Mas Pitt não achava que William March tivesse assassinado a seu filho nonato, por mais rabia que lhe desse a infidelidade de sua mulher. E isso que Pitt ignorava até onde tinham chegado as coisas. Podia ter sido mera vaidade, e uma estúpida exibição de força.

Ou o filho era de Eustace e não do William? Não. Se tivesse sido assim e William o teria sabido, teria matado ao Eustace, não ao George, acreditando inclusive justificada sua ação. E certamente haveria muitos que, à margem de suas afirmações públicas, teriam estado de acordo com ele. Além disso, a gravidez era anterior à chegada do George ao Cardington Crescent, com o que ninguém podia culpá-lo disso.

Assim, ficavam Emily e Jack Radley. Podiam ter atuado juntos ou por separado, motivados pelo amor ou a cobiça, se não por ambas as coisas. Não queria pensar nada mau de Emily até que não ficasse mais remédio; e se esse momento chegasse, tomara Charlotte soubesse por si mesma e não tivesse que ser ele quem o dissesse.

Dobrou na última esquina e chegou ao Tortoise Lane. Era uma ruela tão desarrumada e esquálida como as outras, indistinguível salvo para quem sabia mover-se naquele labirinto e podiam farejar no denso ar sua própria fileira familiar de talheres empenadas. Havia um par de rapazes de quatro ou cinco anos jogando com pedras frente ao número 3. Pitt se deteve e os observou. Tinham desenhado quadrados em uma dezena de ladrilhos, e estavam lançando a pedra a uma em concreto; depois praticavam uma espécie de dança entrando e saindo dos ladrilhos, e inclinando-se com garbo sobre uma perna para recolher a pedra quando terminavam.

— Conhecem a senhora que vive aí? - indicou a porta do número 3.

Os meninos se olharam confusos.

— Que senhora? - perguntou o maior.

— Há muitas?

—Sim.

— Conhece uma tal senhora Mapes?

— A senhora Mapes? - disse o menino seriamente. — Pois claro!

— Vivem nessa casa? - Pitt estava estranhando. Tinha acreditado que Mapes era abortista, e os meninos não encaixavam nessa hipótese.

— Sim - respondeu o maior; o menor lhe puxava a manga, assustado.

Pitt não queria lhes causar problemas pelas migalhas de informação que pudessem lhe proporcionar.

— Obrigado. - Sorriu, acariciou-lhe o cabelo alvoroçado e foi para a porta.

Bateu suavemente, temeroso de que se o fizesse de um modo peremptório podia não obter resposta, quando não pôr às mulheres em guarda.

Uma moça miúda e frágil que podia ter entre doze e vinte anos abriu a porta pouco depois. Tinha posto um vestido de pano marrom, adaptado de várias talhas mais, uma touca que não lhe recolhia mais que a metade do cabelo e um avental muito grande. Tinha as mãos molhadas e empunhava uma faca de cozinha. Pitt devia tê-la interrompido em seus afazeres domésticos.

— O que quer? - disse com certa surpresa, o olhar lento de uma cor azul porcelana.

— Está a senhora Mapes?

—Sim. - A garota engoliu saliva, guardou a faca em seu bolso e limpou as mãos no avental. — Será melhor que entre. - Deu meia volta e conduziu-o por um corredor escuro atapetado com esteiras, passando junto a uma escada estreita em que estava sentada uma menina de uns sete anos com um bebê nos braços, agarrando pela mão uma criatura bastante maior para sustentar-se por si só. As famílias numerosas eram freqüentes, mas não que sobrevivessem muitas crianças de idade similar. A mortalidade infantil era muito alta.

A garota bateu na última porta, ao fundo do corredor antes de que este virasse para as cozinhas que Pitt conseguiu ver a uma dúzia de metros.

— Entre! - disse uma voz rouca de dentro.

— Obrigado. - Pitt despediu-se da garota. Entrou em uma sala de estar que era quase uma paródia do toucador da senhora March. Duplamente surpreendente, devido a seu contraste com o pobre exterior e as outras habitações que Pitt tinha vislumbrado ao passar, assim como por sua familiaridade de piada.

As janelas davam às paredes cegas de um beco e não ao bonito jardim da senhora March, mas as cortinas tinham a mesma cor rosa raivoso, que inclusive a luz pobre e filtrada pela imundície conseguia ofuscar. As cortinas deviam estar penduradas há alguns anos. O manto da lareira também exibia cortinados, embora em casas mais elegantes a moda tinha resgatado a madeira boa de tão recarregada e destrutiva tolice. Um piano aparecia coberto da mesma forma, e todas as mesas transbordavam de fotografias. As telas tinham franjas e legendas junto: "Lar, doce lar", "Deus nos vê", "Mamãe, quero-te".

Sentada na poltrona rosa maior havia uma mulher de quadris prodigiosos e volumosos seios engravatados, com um vestido que em uma mulher de metade de corpulenta teria sido bastante bonito. Tinha as mãos gordas e miúdas, de fortes dedos, que ao ver o Pitt subiram até seu rosto em um gesto de surpresa. Seu cabelo castanho era espesso, seus olhos negros grandes e brilhantes, sua boca e seu nariz agressivos.

— Senhora Mapes? - perguntou Pitt.

Indicou-lhe o sofá rosa que tinha em frente e cujos assentos pareciam gastos pelo uso.

— A mesma - disse. — E você quem é, cavalheiro?

— Thomas Pitt, senhora. - Ainda não queria lhe dizer seu ofício. A polícia não era bem vista em lugares como St. Giles, e se a mulher tinha alguma ocupação ilegal faria algo para ocultá-la, certamente com êxito. Pitt estava em território hostil e sabia disso.

A mulher o olhou com olhos experientes e compreendeu na hora que Pitt tinha pouco dinheiro; sua camisa era comum e nada nova, suas botas tinham remendos. Mas sua jaqueta, apesar dos cotovelos e punhos gastos, tinha sido de bom corte, e além disso se expressava com grande correção. Pitt tinha tomado lições com o filho do dono da propriedade onde seu pai trabalhava e não tinha perdido o timbre nem a boa dicção. Tomou por um cavalheiro em época de vacas fracas, embora bastante mais folgado de dinheiro que ela, e possivelmente com futuro.

— Bom, senhor Pitt, no que posso ajudá-lo? Você não vive no bairro. O que o traz por aqui?

— Consegui seu endereço graças à senhora Sybilla March.

A mulher arregalou os olhos.

— Não me diga. Bom, senhor Pitt, meu trabalho é, como lhe diria, confidencial. Estou certa de que o entende.

— Contava com isso, senhora Mapes. - Confiava inteirar-se de algum detalhe que lhe desse material a investigar. Inclusive uma pista sobre a profissão da senhora Mapes podia contribuir algo novo sobre a Sybilla. Ao menos não tinha negado conhecê-la.

— Naturalmente! - concedeu ela com entusiasmo. Do contrário não estaria você aqui, né? - riu com um forte gorgeio e olhou-o maliciosamente.

Pitt não recordava haver-se sentido nunca tão enojado. Esboçou um sorriso torcido.

— Quer uma xícara de chá com umas gotitas de algo? - disse ela, fazendo soar uma imunda campainha. — Não me viria mau...

Pitt não tinha tido tempo de declinar o convite quando se abriu a porta e outra moça apareceu a ela com olhos abertos e rosto chupado. Teria uns quinze anos.

— Sim, senhora Mapes?

— Me traga uma xícara de chá, Doura - ordenou. — E vigia que Florrie esteja preparando as batatas para o jantar.

— Sim, senhora Mapes.

— E traz o bule bom! – gritou-lhe a mulher quando saía, sorrindo ao Pitt a seguir. — Já o que se dedica você, senhor Pitt? Sou de toda confiança. O cúmulo da discrição. - Levou um indicador aos lábios. — Clarabelle Mapes ouve tudo mas não conta nada.

Pitt sabia que se tivesse esperado burlá-la ou intimidá-la teria fracassado. Aquela mulher era uma sobrevivente; uma aventureira, não uma vítima. Atrás de toda a carne, cachos e sorrisos, era tão precavida e tão suspicaz como um cão em território desconhecido. Decidiu apelar a sua cobiça ao mesmo tempo que valorizava o efeito que podia ter a surpresa. Tinha certeza de que a sensação de medo, já que não de culpa, podia ter algum significado para ela.

— Lamento lhe comunicar que a senhora March morreu - disse observando-a com atenção.

Mas ela não mudou de expressão.

— Que pena - disse imperturbável, olhando-o fixamente com seus olhos negros. — Espero que ao menos não tenha sofrido, pobrezinha.

— Não foi fácil morrer - respondeu Pitt.

Mas ela não moveu nem um cabelo.

— É o que costuma acontecer. - Meneou a cabeça ondeando seus cachos. — Foi muito amável ao me dizer isso senhor Pitt.

Ele insistiu.

— Haverá uma autópsia.

— Seriamente? E isso o que é?

— Os médicos examinarão seu corpo para determinar a causa da morte. Abrirão-na em canal, se for preciso.   - Com o olhar tratou de ler seus pensamentos. Não o conseguiu.

— Que asco - disse ela sem pestanejar. Seu nariz curvo e afiado se enrugou um pouco mas a repugnância era fictícia; tinha visto coisas bastante piores, como qualquer um que tivesse vivido no St. Giles. — Não lhe parece que os médicos têm melhores coisas que fazer que estripar a alguém uma vez morto? Já não podem ajudar a pobre. É melhor curar às pessoas quando estão vivas, embora freqüentemente tampouco serve de algo.

Pitt viu que lhe escapava das mãos.

— Eles fazem seu trabalho - prosseguiu. — Parece que a morte foi um mistério. - Era certo, embora não assim o que isso implicava.

— Costuma acontecer. - Ela assentiu de novo e nesse momento bateram na porta. Outra garota, de uns dez anos, entrou com o chá sobre uma bandeja de laca pintada com os bordos gastos. No lugar de honra havia um bule de prata que, a julgar pela experiência do Pitt em produtos roubados, pareceu-lhe de genuíno estilo georgiano. A menina cambaleava sob seu peso e os braços lhe tremiam. Inclusive ao sair, seus olhos não deixaram de olhar desesperançados os pães-doces de passas sobre o prato de porcelana.

— Quer um traguinho para refrescar-se? - ofereceu a senhora Mapes quando a porta se fechou, e procurou em um armário que tinha ao lado movendo sua mola até fazer chiar a poltrona. Extraiu uma garrafa verde de cristal, sem etiqueta, da qual serviu algo que pelo aroma não podia ser mais que genebra.

Pitt recusou.

— Não, obrigado. É muito cedo. Tomarei só chá.

— A morte costuma ser misteriosa - disse ela, concluindo sua idéia prévia. — Bem, senhor Pitt. - E se serviu de uma generosa porção de licor antes de acrescentar chá, leite e açúcar. Entregou ao Pitt uma taça de boa porcelana e o convidou a servir-se. — Mas os médicos só abrem aos ricos uma vez que morreram. Que estupidez! Como se rachar cadáveres pudesse lhes ajudar a descobrir os segredos da vida e da morte!

Pitt renunciou ao chamariz da autópsia. Era evidente que isso não a assustava, e começava a pensar que ela não tinha tido mão em nenhum aborto que de algum jeito pudesse relacionar-se com a família March. Contudo, Sybilla tinha seus gestos, e não existia a menor possibilidade de que tivessem sido amigas. Que fazia aquela espantosa mulher para ganhar a vida?

Deu uma olhada ao redor. Para o normal no St. Giles a sala raiava o luxuoso, e não havia dúvida que a senhora Mapes estava bem alimentada. Mas os meninos que tinha visto pareciam meio raquíticos e estavam vestidos com roupa feita à mão, mal ajustada e pior conservada.

— Sabe você cuidar-se, senhora Mapes - disse com prudência. — O senhor Mapes é um homem afortunado.

— Faz dez anos que não existe nenhum senhor Mapes. – Olhou-o com olhos brilhantes. Então reparou no remendo que levava nas mangas da jaqueta e franziu o nariz. Isso era obra de uma esposa, não cabia dúvida. — Morreu de uma hemorragia, sabe você. Mas tinha boa opinião de mim quando estava vivo.

— Perdoe meu engano - se desculpou Pitt. — Pensava que com todos esses meninos...

Olhou-o com dureza e sua mão se esticou ligeiramente sobre a saia.

— Sou uma mulher sensível, senhor Pitt - disse com um sorriso defensivo.— Acolho a meninos de todas classes e cuido deles se não tiverem ninguém. Faço favores a vizinhos e parentes. Sempre cuidei que alguém. Qualquer um que viva nesta rua poderá dizer-lhe por pouco sincero que seja.

— Um trabalho muito elogiável - disse Pitt sem poder evitar um tom de sarcasmo na voz; estava longe de ter terminado com a senhora Mapes. Em sua mente começava a formar uma idéia horrível. — O senhor Mapes lhe deixaria recursos suficientes, para que você tenha podido dedicar-se a ser tão caridosa.

Ela ergueu o queixo, seu sorriso se alargou mostrando uns dentes fortes e amarelados.

— Com efeito, senhor Pitt - concedeu. — O senhor Mapes tinha um alto conceito de mim.

Pitt deixou a xícara e guardou silêncio uns instantes, incapaz de pensar em uma nova linha de ataque. Ela já não tinha medo, ele podia vê-lo nas curvas de seu corpo robusto e volumoso. Cheirava-se no ar da sala.

— Foi muito amável fazendo todo o caminho para me comunicar a morte da senhora March. – Dispunha-se a despedi-lo.

Restava pouco tempo; Pitt carecia de desculpa para revistar a casa, e o que ia procurar embora voltasse com vários agentes e uma ordem de revista?

Então lhe ocorreu uma mentira plausível. Devia concentrar-se no traço primitivo de seu caráter: a cobiça.

— Não faço mais que cumprir com minha obrigação, senhora Mapes - respondeu. Tomara a polícia londrina corresse com a dívida que estava a ponto de contrair. — A senhora March a teve em conta em seu testamento, pelos... serviços prestados. Você deve ser Clarabelle Mapes, não é assim?

O rosto da mulher ficou grotescamente cômico ao expressar o conflito entre cautela e avareza, e Pitt esperou em silêncio enquanto ela procurava uma saída de compromisso. Clarabelle Mapes soltou um longo e sonoro suspiro. Seus olhos cintilavam.

— Que gentileza de sua parte, pobrezinha.

— É você a pessoa em questão? - insistiu . — Fez-lhe algum tipo de serviço?

Mas ela não se deixava dirigir tão facilmente: já tinha visto a armadilha.

— De índole privada - afirmou lhe olhando com ousadia. — Coisas de mulheres, tenho certeza de que o compreende. Afundar nisso não seria delicado.

Pitt permitiu que uma expressão de dúvida aparecesse em seu rosto.

— Tenho certa responsabilidade...

—Você tem meu endereço, do contrário não estaria aqui - apontou ela. — Por aqui não vive nenhuma outra Clarabelle Mapes. É evidente que se trata de mim. E posso demonstrar quem sou, não tema. O que fizesse por ela não é assunto seu. Talvez não foi mais que uma palavra amável quando ela a necessitou.

— Aqui, no Tortoise Lane? – Devolveu-lhe o sorriso.

— Nem sempre estou no Tortoise Lane - disse ela, lamentando-o imediatamente. Sabia que tinha cometido um engano, e isso se notou na súbita flacidez de seu rosto. — Eu também saio de vez em quando! - disse, tratando de emendar-se.

— Mas não a Cardington Crescent, isso com certeza. - Pitt estava cada vez mais confiante, embora seguisse sem ter uma idéia clara. — E faz tempo que vive nesta casa - acrescentou, olhando a seu redor. — Ao menos desde que lhe escreveu. Como você mesma assinala, a senhora March tinha anotado seu nome em seu livro de endereços.

Desta vez empalideceu de verdade, e o branco do rosto não fez senão ressaltar o ruge das faces (a mancha da esquerda um pouco mais alta que a da direita). Ficou calada.

Pitt ficou em pé.

— Irei ver o resto da casa - anunciou, e foi para a porta antes que ela pudesse detê-lo.

Pitt se dirigiu para o cotovelo do corredor, caminhando a passo vivo para a cozinha. Uma das garotas que tinha visto antes estava de joelhos no chão com um balde e uma escova. Afastou-se para deixá-lo passar.

A cozinha propriamente dita era enorme para o tamanho da casa, dois cômodos convertidos em um, fosse deliberadamente, fosse porque tivessem derrubado uma parede. O piso era de madeira e estava tão gasto que os pregos

formavam pequenas ilhotas. Dois grandes fogões apareciam cobertos por um sortido de caçarolas, e uma chaleira estava fumegando, certamente para repor o chá da senhora Mapes. Junto aos fogões havia baldes de cisco e lixo de coque, bastante perto um do outro para que as garotas de braços grossos pudessem levantá-los e enchê-los de novo. Junto à parede do fundo havia sacos de grão e batatas e um molho de couves de mau aspecto. Do outro lado havia um grande aparador repleto de pratos e tachos e tigelas, as gavetas encaixavam mau e delas apareciam papéis. Uma bola de corda, parcialmente enfraquecida, jazia no chão. Havia um pacote meio aberto sobre a mesa da cozinha, e tesouras.

Perto do teto havia uma barra de secar roupa com toda classe de trapos e lençóis que recolhiam os aromas da cozinha.

Havia três garotas mais ocupadas em distintas tarefas; uma na pia cortando batatas, outra removendo papa de uma panela, a terceira de gatinhas e provida de um recolhedor. Nenhuma podia ter mais de quatorze anos; a mais jovem aparentava dez ou onze. Evidentemente aquele estabelecimento era pensado para alimentar diariamente a um número considerável de pessoas.

— Quantas garotas mais há? - perguntou antes que a senhora Mapes pudesse alcançá-lo. Ouvia suas saias ranger atrás dele.

— Não sei - sussurrou uma garota de rosto pálido. — Há muitas crianças pequenas, bebês. Vêm e vão, ou seja que não sei.

— Cale-se! –advertiu-lhe a maior na hora, com olhar de temor.

Pitt fez todo o possível para que não lhe delatasse sua expressão. Agora sabia o que era este lugar, mas nada podia fazer para mudá-lo. E se deixasse entrever sua fúria, sua piedade ou seu desgosto, só pioraria as coisas.

A natureza propiciava a necessidade, e a pobreza exigia uma resposta.

— Que busca na cozinha, senhor Pitt? - inquiriu a suas costas a senhora Mapes, em voz alta. — Aqui você não pinta nada!

— Certamente que não - concedeu ele lúgubremente. Não tinha por onde começar, nem tinha conseguido uma pista. Por outro lado, não queria partir.

— Me diga quanto - perguntou ela.

— O que? - Pitt não sabia do que estava falando. Passeou o olhar pelas caçarolas: papa, comida barata para as crianças, batatas para encher um cozido sem carne.

— Quanto dinheiro me deixou a senhora March? - Esclareceu ela impaciente. — Você disse que se lembrou de mim!

Pitt olhou o chão e a longa mesa de madeira. Estavam insolitamente limpos, isso tinha que reconhecer.

— Não sei. Suponho que já o enviarão.

— Não o traz consigo?

Ele não respondeu. Se o fizesse não restaria desculpa para ficar, e havia algo que o retinha ali, a sensação de que podia compreender alguma coisa, caso que a descobrisse.

O que tinha podido querer Sybilla March daquela mulher? Alguma criança de uma criada com problemas? Parecia a única resposta razoável. Valia a pena seguir afundando, ver se alguma criada da casa da Sybilla se ausentara inexplicavelmente, talvez devido a um parto? Importava isso? A vida estava cheia de tragédias domésticas, de garotas que tinham que ganhar a vida e não podiam permitir-se ter um filho fora do matrimônio. E os criados raramente se casavam, por essa mesma razão; viviam em casa de seus senhores, onde não havia espaço para ter família.

A voz da senhora Mapes ressou detrás dele.

— Então meta-se em seus assuntos e me deixe a mim com meus!

Pitt se voltou devagar, lançando uma última olhada à estadia. Então compreendeu o que o retinha: o pacote; o pacote meio aberto sobre a mesa da cozinha, junto às tesouras. Tinha visto antes esse papel marrom, essa curiosa corda amarela amarrada duas vezes ao longo e na largura, extenso em cada extremo, um laço e dois cabos soltos. De repente sentiu um calafrio, como se tivesse entrado em um ossário. Lembrou-se do sangue e das moscas, da mulher gorda com anquinhas retorcidas e seu cão de olhos saltados. Era muita coincidência. O papel era comum, mas a corda era estranha, os nós uma excentricidade, muito característicos, a combinação provavelmente única.

Estavam a dois quilômetros do Bloomsbury. E se aquele pequeno pacote continha as partes que faltavam? Onde estava o primeiro pacote, o grande? Não o via na cozinha.

— Vou embora - disse em voz alta, surpreso de sua própria voz. — Sim, senhora Mapes. Eu mesmo lhe trarei o dinheiro, agora que sei que lhe pertence.

— Quando? - Ela sorriu novamente, alheia ao pacote da mesa. — Quero me assegurar de que estarei em casa quando vier - acrescentou a modo de explicação, como se pudesse ocultar sua ânsia.

— Amanhã. Mais cedo, se voltar para meu escritório a tempo. - Tinha que perguntar a uma das meninas pelos pacotes; aonde foram parar, cada um, e quem os entregava. Mas tinha que ser fora da casa, onde ela não pudesse escutar às escondidas, ou a vida da menina correria perigo. — Tem alguém de confiança que pudesse me levar uma mensagem, alguém em quem você confie? - perguntou.

Ela sopesou os prós e os contra.

— Tenho a Nellie, ela o fará - disse. — Do que se trata?

— É confidencial. Direi a ela quando sair. Voltarei tão logo me seja possível. Disso pode estar certa, senhora Mapes.

— Nellie! - chiou ela a pleno pulmão e o bramido fez vibrar a porcelana do aparador. Produziu- se um momento de silêncio, e depois o chiado de um menino que dormia no piso de cima, uns passos e Nellie que aparecia na soleira, o cabelo revolto, o avental inclinado, o olhar assustado.

— Sim, senhora Mapes?

— Vá com este cavalheiro e faça o recado que mandar - ordenou-lhe. — Depois volte e continue com seu trabalho. Nesta vida quem não trabalha não come.

— O que disser, senhora Mapes. - Nellie fez uma espécie de reverência e se voltou para o Pitt. Devia ter uns quinze anos, embora estivesse tão fraca e pouco desenvolvida que era difícil assegurá-lo.

— Obrigada, senhora Mapes - disse Pitt, odiando-a como a poucas pessoas em sua vida, consciente de que possivelmente era só uma forma de desafogar- se contra a pobreza. A senhora Mapes era uma criatura de seu tempo. Devia odiá- la por ter sobrevivido? Quem morria era por não ter a força requerida. Contudo, continuava odiando-a.

Foi para o corredor e percorreu sua úmida estreiteza sobre o piso de esteiras, deixou atrás os meninos sentados ainda na escada e saiu ao Tortoise Lane, com Nellie lhe pisando os calcanhares. Caminhou até dobrar a esquina e ficar fora da vista do número 3.

— Que recado tenho que fazer, senhor? - perguntou Nellie quando se detiveram.

— Costuma fazer recados para a senhora Mapes?

— Sim, senhor. Pode confiar em mim. Conheço muito bem o bairro.

— Estupendo. Manda-lhe levar pacotes de vez em quando?

— Sim, e nunca perdi nenhum. Pode confiar-se em mim, senhor.

— Confio, Nellie - disse ele com suavidade, desejando fazer algo por ela apesar de não poder. Porque se fizesse algo podia interpretar-se mau, se é que não conseguisse assustá-la. — Levou você o pacote grande que havia na mesa da cozinha?

— A senhora Mapes me disse que o fizesse, juro!

— Não me cabe dúvida - disse ele rapidamente. — Fez você levar alguns pacotes faz umas três semanas?

— Eu não fiz nada de mau, senhor. Só os levei aonde ela me disse! – Agora começava a assustar-se; as perguntas do Pitt não tinham sentido para ela.

— Já sei, Nellie. Aonde? Aqui e no Bloomsbury?

Os olhos de Nellie se arregalaram.

— Não, senhor. Os levei a senhor Wigge, como sempre.

Pitt suspirou muito devagar.

— Pois me leve até o senhor Wigge. Agora mesmo, Nellie.

 

Nellie o conduziu por um labirinto de ruas e escadarias estreitas até que chegaram a um pequeno e esquálido pátio exterior com mobiliário antigo - a maioria comido pela traça e pelo mofo-, cacharros de cerâmica velha e partes de tecido que nem os comerciantes de brechó se teriam incomodado em levar. Ao fundo, além dos mal equilibrados montões, havia a entrada de um amplo porão.

— Aqui é onde trago os pacotes - disse Nellie, olhando nervosa ao Pitt. — Juro, senhor.

— A quem os deu? - perguntou ele, vendo que não havia ninguém.

— Ao senhor Wigge. - Nellie indicou os degraus que desciam ao escuro porão.

— Mostre-me onde, por favor.

Nellie pôs-se a andar por entre os escombros até a beria da escada. Ao chegar abaixo deu a volta e bateu na porta de madeira que permanecia aberta sobre suas dobradiças oxidadas. Suas mãos mal produziram ruído.

— Senhor Wigge? Senhor?

Um velho descarnado apareceu quase na hora. Trazia uma jaqueta sarnenta com os bolsos rasgados pelo peso dos cacarecos metidos neles ao longo dos anos, e umas calças manchadas de imundície. Levava luvas sem dedos apesar do calor que fazia, e sobre o cabelo, espaçado e mau talhado, tinha uma reluzente cartola negra absolutamente impoluta. Devia ter saído da chapelaria fazia uma hora.

Seu rosto chupado se abriu em um sorriso impudico, e depois olhou ao Pitt entortando os olhos.

— Senhor Wigge? - perguntou este.

O velho inclinou torpemente a cabeça; gostava de aparentar maneiras cavalheirescas.

— Septimus Wigge, para lhe servir, senhor. No que posso ajudá-lo? Tenho um lindo cantil de latão. Uma bailarina de porcelana autêntica.

— Darei uma olhada. - Intuiu que aquilo ia ser um fracasso. Se Clarabelle Mapes se limitou a liquidar equipamento domésticos, deles ou de outros, para reunir um pouco de dinheiro, não valia a pena continuar. Entretanto aqueles nós eram peculiares, idênticos aos daquele terrível pacote encontrado no cemitério da igreja.

O que fazer com Nellie? Se a fizesse voltar para o Tortoise Lane contaria à senhora Mapes o que lhe tinha pedido, aonde o tinha levado? Não tinha muitas esperanças de que pudesse suportar o interrogatório da senhora Mapes. Nellie vivia em um mundo de fome e medo.

Mas se a obrigava a ficar, o que podia fazer com ela? Tortoise Lane era seu lar, seu mundo. Ele já a tinha comprometido. Nellie sabia sobre os pacotes, e se Clarabelle tinha feito aqueles pacotes horrendos além de outros, a vida da menina corria perigo se voltasse e lhe ocorria contar que tinha levado Pitt até Septimus Wigge. Não podia deixá-la partir.

— Nellie, entre e me ajude a procurar.

— Não posso, senhor. - Meneou a cabeça. — Tenho trabalho. Meterei-me em uma confusão se não chegar a tempo a casa. A senhora Mapes se zangará muito comigo.

— Se voltar com o dinheiro da senhora March, não - replicou ele. — Ela o necessita urgentemente.

Nellie vacilou. Receava mais o imediato que o problemático; sua imaginação não dava para tanto.

Pitt não dispunha de tempo para discutir. E ela estava acostumada a obedecer.

— É uma ordem, Nellie - disse com aspereza. — Você fica aqui. A senhora Mapes se zangará se não lhe chegar logo o dinheiro. - E acrescentou ao homem que esperava: — Bom, senhor Wigge. Vejamos esses cantis de latão.

— Certamente, senhor, certamente. - Wigge deu meia volta e entrou na adega.

Era maior do que Pitt esperava, de teto muito alto que se perdia nos ocos do edifício. Em um dos lados havia um forno grande com uma porta metálica aberta que enviava calor aos espaços de pedra, e apesar de fazer bom dia, o ambiente quente era agradável clandestinamente, aonde não chegava o sol.

O velho lhe mostrou vários cantis de qualidade, umas peças de porcelana bastante boa e várias coisas mais. Pitt fingiu interesse sem deixar de farejar aqui e lá mas sem achar nada que parecesse roubado. Enquanto regateava por um pequeno vaso verde que finalmente comprou pensando no Charlotte, fez uma detida observação do próprio Septimus Wigge. Quando saiu do porão, seguido sempre por Nellie, pôde tê-lo descrito com tanto detalhe que um artista poderia tê-lo desenhado desde as solas de suas surpreendentes botas até a copa de seu imaculado chapéu, incluídos todos os traços de seu rosto risonho.

Despediu-se, com o vaso na mão, e levou Nellie com ele. Não podia fazer outra coisa. Devia esquecer-se da Sybilla, cuja conexão com o Clarabelle Mapes não entendia e nada tinha que ver com seu assassinato. Devia retornar ao Bloomsbury, pois agora sabia a quem estava procurando, e interrogar aos residentes e habituais para ver se algum deles recordava ter visto o Septimus Wigge fazia três semanas.

Primeiro devia achar um lugar seguro para o Nellie, onde a senhora Mapes não pudesse descobri-la. Passavam das duas, e não tinham comido.

— Tem fome, Nellie? - perguntou por mera cortesia; os olhos afundados e a flácida qualidade da carne da moça indicavam às claras que sempre tinha fome.

— Sim, senhor. - Não pareceu surpreender-se de que ele tivesse que perguntar; sem dúvida achava-o um personagem excêntrico.

— Eu também. Vamos comer algo.

— Não tenho dinheiro. – Olhou-o com ansiedade.

— Foi-me de grande ajuda, Nellie, acho que ganhou o almoço. –Tinha quinze anos, o bastante para saber o que era a condescendência, e a garota não a merecia. Era bastante digna, e Pitt estava decidido a não ferir seus sentimentos. Tampouco queria interrogá-la ainda sobre a casa do Tortoise Lane. Sabia o que havia ali; não era preciso obrigá-la a trair-se. — Conheço uma boa taverna onde nos darão pão recém feito, carne fria, encurtidos e pudim.

Ela não acreditava ainda.

— Obrigada, senhor - disse sem alterar sua expressão.

O local que Pitt tinha em mente ficava a uns quinhentos metros e foram andando em silêncio. Tão logo entraram, o dono reconheceu ao Pitt. Era um cidadão mais ou menos observante da lei, e a parte de seu negócio que era um tanto duvidosa Pitt a deixava estar. Tinha que ver com peças de caça compradas a furtivos, o esquecimento ocasional dos impostos sobre tabaco e mercadorias similares, e uma boa dose de prudentes ouvidos surdos. Pitt se preocupava com um assassinato.

— Boa tarde, senhor Tibbs - disse alegremente.

— Boa tarde, senhor Pitt. -Tibbs se apressou para ele ao mesmo tempo que limpava as mãos na calça, ansioso por estar do lado bom da lei. — Vai comer, senhor Pitt? Tenho um bom cordeiro, ou um bom cheshire, se quiser... E os melhores encurtidos, especialidade de minha senhora; preparou-os o verão passado e estão em seu ponto. O que vai ser?

— Cordeiro, senhor Tibbs. Para mim e para a senhorita. E uma jarra de cerveja e um refresco. De sobremesa, pudim. Ah, Tibbs, certas pessoas muito desagradáveis poderiam vir em busca da senhorita com más intenções. Quero que dela cuide uns dias. Trabalha muito bem apesar de sua curta idade, sempre que houver comido. Lhe busque um lugar na cozinha onde não esteja muito à vista. Pode dormir ali. Não será por muito tempo, a menos que você resolva lhe dar trabalho fixo.

Tibbs olhou a magra Nellie.

— O que fez? - perguntou, olhando com receio ao Pitt.

— Ver algo que não devia.

— Muito bem - aceitou Tibbs a contra gosto-. — Mas você responde do que possa roubar, senhor Pitt.

—Você lhe dê de comer como é devido e não lhe bata - disse Pitt, — que eu respondo de sua honradez. E se não a vejo aqui quando voltar por ela, você responderá com algo mais que com dinheiro. Compreendeu-me?

— É um favor que lhe faço, senhor Pitt. - Tibbs queria sentar as bases de uma futura compensação.

— Assim é. Eu não esqueço facilmente, senhor Tibbs; nem o bom nem o mau.

— Vou buscar o cordeiro. - Tibbs se afastou satisfeito.

Pitt e Nellie ocuparam uma das mesas pequenas, ele com alívio, ela com precaução, ainda confusa.

— Para que falava você de mim com esse homem? - perguntou com um rastro de temor no olhar.

— Porque vou deixá-la aqui para que trabalhe em sua cozinha. Não estará segura no Tortoise Lane até que eu saiba o que preciso saber.

— A senhora Mapes me porá na rua! - exclamou, repentinamente temerosa. — Não saberei aonde ir!

— Pode ficar aqui. Você sabe algo que não deveria saber. Sou polícial, sim, um poli. Sabe o que acontece com a gente que sabe segredos que não lhe incumbem?

Ela assentiu. Sabia: desapareciam. Estava há quinze anos vivendo no St. Giles; conhecia bem as leis da sobrevivência.

— A sério é um poli? Não leva capa nem capacete, nenhuma coisa dessas.

— Antes sim. Agora só me ocupo de crimes importantes, e faço que os polis de capacete e capa trabalhem para mim.

Tibbs serviu a comida: pão fresco, grosas fatias de cordeiro frio com curtidos escuros, duas jarras de cerveja e duas rações de pudim cheio de passas de Corinto. Nellie ficou sem fala quando lhe puseram diante a metade de todo aquilo. Pitt esperou que não vomitasse pela falta de costume. Deveria pensar em dar a seu encolhido estômago uma porção menor, mas não havia tempo e ele também estava faminto.

— Come quanto queira - disse. — Mas não se sinta obrigada a terminar isso. Esta noite haverá mais, e também amanhã.

Nellie ficou olhando-o estupefata.

Conseguiu um agente que estava de ronda na zona e lhe encarregou ir de novo porta por porta. Trabalharam de tarde em um raio de quinhentos metros de onde tinham sido achados os macabros pacotes, primeiro nas cercanias do cemitério do Bloomsbury e logo mais para o exterior do St. Giles, onde tinham feito os últimos achados. Pitt tinha dado ao agente uma detalhada descrição do Septimus Wigge, tanto de sua pessoa como da roupa que levava em seu armazém subterrâneo.

Eram seis da tarde quando se acharam de novo à entrada do cemitério.

— E então? - perguntou Pitt, embora pouco importasse a resposta; já tinha o que era preciso.

Tinha encontrado um lacaio que ao voltar cedo de uma entrevista tinha visto um velho de rosto chupado com cartola a uns cem metros do cemitério, empurrando a toda pressa um carrinho de mão em que levava um pacote grande. Não o tinha mencionado ao descobrir o torso da mulher para não confessar que tinha saído; isso teria suposto sua demissão, e ele tinha tomado ao velho por um camelô que transportava algum objeto roubado. Era muito cedo inclusive para os vendedores ambulantes que vinham dos bairros periféricos com hortaliças, ou do cais ou do rio com enguias, caracóis ou outros manjares.

Mas Pitt o tinha feito acreditar que ocultar esse dado podia convertê-lo em cúmplice de um assassinato, e isso era muito pior que perder sua posição por ter uma confusão com alguma criada de outro bairro.

E também tinha encontrado a uma prostituta mais para o St. Giles, onde um dos pacotes, uma perna desta vez, tinha aparecido. Agora que podia descrever ao Wigge sabia o que perguntar, e depois de experimentar com várias garotas topou com uma que lhe tinha visto com o carrinho de mão. A garota recordava a luxuosa cartola, e como brilhava ao clarão da lua. Ela se tinha fixado nele, mas não nos três pacotes que levava no carrinho de mão.

E tinha havido mais; homens a quem não teria chamado para declarar, mas que lhe confirmavam o que dava já por certo: um receptador vesgo que procurava clientes, um alcoviteiro encetado em uma briga a faca por uma de suas pupilas, e um ladrão que estava observando uma janela para entrar em uma casa.

—Dois - respondeu o guarda. Conhecia bem seu trabalho, mas não tinha a cólera do Pitt e tinha sido mais circunspeto em suas ameaças. Parecia decepcionado, vendo que tinha defraudado a seu superior. — Não serviriam de muito em um tribunal. Um vigarista que voltava para casa depois de jogar cartas e um alcoviteiro de doze anos, fraco como um arame, que ia penetrar pela janela traseira de uma casa para deixar entrar seu amo. Sei onde localizá-los se for preciso.

— O que viram? - Pitt não estava desconcertado; nenhum cidadão podia estar fazendo algo decente a essas horas da noite no St. Giles, salvo possivelmente um sacerdote ou uma parteira, embora pouca gente pudesse permiti-la ali. Muitos bebês morriam ao nascer devido à sujeira ou a ignorância, e suas mães com eles.

—Um velho magro e piolhento com uma cartola reluzente, empurrando um carrinho de mão com pressa. O alcoviteiro o viu sair do beco onde foi encontrada a cabeça do cadáver.

— Bem. Iremos prender ao Septimus Wigge - disse Pitt.

— Mas não podemos levá-los como testemunhas! - protestou o agente. — Nenhum tribunal de Londres aceitaria sua palavra.

— Não será necessário. Eu não acredito que Wigge matasse à mulher, ele só se ocupou dos pacotes. Se o prendermos e o intimidamos nos dirá quem o fez, embora tenha certeza de que sei. Mas quero que ele o jure.

O agente não compreendeu grande coisa do que Pitt lhe dizia, mas decidiu dar-se também por satisfeito. Apressaram-se pelas estreitas ruas povoadas de lixo, deixando atrás fábricas e moradias e casas em estado ruinoso. Os mendigos aguardavam sentados nos portais, os meninos trabalhavam em intermináveis e monótonos empregos -recolhendo trapos velhos, fazendo recados, roubando de bolsos ou carrinhos de mão -, as mulheres pediam, trabalhavam em excesso e levantavam o cotovelo.

Pitt se equivocou só uma vez até dar com o porão do Septimus Wigge, seus montões de cacarecos e seu forno. Disse ao agente que esperasse fora enquanto ele se assegurava de que o velho estivesse embaixo e que não houvesse uma saída traseira.

Cruzou o pátio e desceu os degraus procurando fazer pouco ruído. O velho estava revolvendo uma caixa de colheres com a cabeça inclinada e um largo sorriso em seu rosto chupado.

— Menos mal que o encontro, senhor Wigge - disse Pitt quando esteve a menos de um metro dele.

Wigge se sobressaltou e fez expressão de surpresa até que viu que era um cliente. Suavizou sua expressão, sorrindo com seus escassos dentes marrons e irregulares.

— Bom, cavalheiro, o que posso fazer por você desta vez? Tenho umas colheres de prata preciosas.

— Não o duvido, mas não é o que estou procurando. – Situou-se entre Wigge e a traseria da loja; o agente estaria no alto da escada e evitaria uma fuga por aí.

— Então o que quer? Tenho montões de coisas.

— Não terá algum pacote de papel marrom com partes de mulher dentro?

Wigge ficou boquiaberto e empalideceu de pânico. Experimentou falar mas sua garganta não lhe obedeceu. Pitt viu como lhe subia e descia o pomo de adão. Engasgou-se, engoliu em seco várias vezes. O aroma de suor era repulsivo.

— Não tem graça! - grasnou, tratando desesperadamente de dominar o pânico. — Nenhuma absolutamente!

— Sei. Eu mesmo encontrei um dos pacotes. A parte superior do torso, para ser exato. Você tem mãe, senhor Wigge?

Wigge quis tomar-lhe a mau, mas não teve forças para expressá-lo.

— Claro que sim! - disse. — Não é preciso que... - Cedeu ao fim, olhando ao Pitt como hipnotizado de horror.

—Tinha um filho, sabe - respondeu Pitt, lhe agarrando por ombro. — Essa mulher cujo corpo cortou você a navalhadas e logo jogou na rua.

— Eu não o fiz! – retorceu-se sob a mão do Pitt e sua voz se voltou um guincho e estridente. — Juro Por Deus que eu não fui! Tem que me acreditar, eu não a matei!

— Não acredito em você - mentiu Pitt. — Se não a tivesse matado não a teria esquartejado e espalhado suas partes por meia Londres.

— Eu não a matei! Ela já estava morta, juro-o! - Wigge tinha tanto medo que Pitt temeu que pudesse lhe dar um ataque e morrer ali mesmo. Fingiu um crescente interesse.

— Vamos, Wigge. Se ela estava morta e você não a matou, para que ia cortar a pedaços e colocá-la em pacotes, e logo atirá-los por aí em plena noite? E não trate de me negar isso; temos ao menos sete pessoas que o viram e podem dar fé disso. Demoramos um pouco, mas agora as temos. Poderia prendê-lo agora mesmo e levá-lo ao Newgate ou ao Coldbath Fields.

— Não! - O homenzinho se revolveu, olhando ao Pitt com uma mescla de fúria e impotência. — Sou velho! Nesses lugares morreria! A comida é lixo, e seguro que o tifo acabaria comigo.

— É possível - disse Pitt sem alterar-se. — Mas o mais provável é que o carreguem antes disso. O tifo não costuma contagiar so entrar no cárcere, só umas semanas antes de que enforquem a uma pessoa.

— Santo céu! Eu não a matei!

— Então por que a esquartejou e se desfez dos pedaços?

— Não fui eu! Eu não a esquartejei! Encontrei-a por acaso, juro-o por Deus.

— Por que repartiu pacotes no Bloomsbury e St. Giles? - Pitt olhou de esguelha ao forno. — Por que não a queimou? Devia imaginar que a acharíamos. Em um cemitério! Caramba, Wigge, não foi muito esperto, vamos dizer.

— Claro que sabia que a achariam, imbecil! - Uma sombra de desprezo desapareceu rapidamente ante o terror que lhe atendia a garganta. — Os ossos de adulto não se consomem, nem sequer em um incêndio em uma casa velha, e não digamos em um forno como o meu.

Pitt sentiu asco.

— Mas os ossos de menino, sim, claro - disse em voz muito baixa. Agarrou o ombro do Wigge com tal força que pôde notar como se enrugava a carne sob suas mãos e chiavam os duros ossos velhos, mas Wigge estava muito aterrorizado para gritar.

— Jamais aceitei um menino vivo! Juro Por Deus! - exclamou. — Só me desfazia deles à medida que morriam, pobrezinhos.

— De asfixia. Ou talvez de fome. – Olhou-o como se olham os germes de uma enfermidade.

— Não sei. Fiz-o como um favor. Sou inocente!

— Essa palavra é uma blasfêmia vindo de você. – Sacudiu-lhe até levantá-lo do chão. — Você sabia que essa não era uma menina! Abriu os pacotes para olhar?

—Não! E não me faça mal! Está-me partindo os ossos! Havia dois pacotes transbordantes de sangue quando fui coloca-los no fogo. O susto que levei! Por pouco morro de um ataque! Foi então soube que tinha que me desfazer dos pacotes. Não suporto essas coisas, e não quero ter nada que ver com elas, nem guardar nada em meu forno para que o encontre a bofia. Eu aqui dentro tenho coisas de muito valor, sabe! - Era um momento grotesco para esse esbanjamento de orgulho perverso. — Até ouro e prata autênticos!

— De maneira que não queria guardar os ossos no forno - disse Pitt com crueldade. — Muito esperto. Os polis gostam muito pouco deste tipo de assuntos... requerem muitas explicações. De fato, tanto como arrojar partes de cadáver pelas ruas do Bloomsbury. - Atendeu de tal maneira ao Wigge que este quase se ergueu só do chão com suas contorções para escapar. — De onde saíam?

— Eu... pois...

— Vou pendurar a alguém por isso - resmungou Pitt. — Se não for ao que lhe enviou esses pacotes, então será você.

— Eu não a matei! Foi Clarabelle Mapes! Juro Por Deus! Vive no 3 do Tortoise Lane. Dedica-se a cuidar de crianças ilegítimas. Diz que os cria como se fossem seus, se é que lhe pagam bem. Só que às vezes morrem. As crianças, já sabe, são muito fracos. Eu só me encarrego de fazer desaparecer os cadáveres. Ela não pode pagar os enterros. Aqui no St. Giles somos pobres, você sabe!

— Declarará isso ante um juiz? Que Clarabelle Mapes lhe enviou esses pacotes?

— Sim! Farei-o. Juro por minha mãe!

—Bem. Acredito em você. De qualquer modo, não quero que desapareça quando necessitá-lo. E pense que é um delito desfazer-se de um corpo humano, embora seja morto. Assim vou prendê-lo igualmente. Agente!

O policial desceu a escada, esfregando o suor das mãos na calça.

— Sim, senhor?

— Leve o senhor Septimus Wigge a delegacia de polícia e notifique por desfazer-se ilegalmente de um cadáver. E não o perca de vista. É testemunha de um caso de assassinato... provavelmente o assassino de muitas crianças, embora isso nunca poderemos demonstrar. Tome cuidado, agente, é um pássaro de conta. Será melhor que o algeme.

—Farei-o, senhor. Fique tranquilo. - O policial extraiu suas algemas e pô-las nos ossudos pulsos do Wigge. —Venha comigo. Se me causar problemas terei que ser duro com você, e isso nós não gostaríamos, não é, senhor Wigge?

Wigge lançou um grito de alarme, e o agente o levou escada acima com evidente falta de delicadeza, deixando ao Pitt no porão. De repente o ar pareceu mais pesado e acre com o aroma dos incontáveis corpinhos que tinham ardido naquele forno cinza. Sentiu-se afligido e teve náuseas.

Recolheu a outros dois agentes na delegacia de polícia mais próxima, se por acaso a senhora Mapes não estivesse sozinha e pusesse algum tipo de resistência. Era uma mulher forte e, na opinião de Pitt, bastante briguenta. Teria sido uma loucura ir só ao Tortoise Lane para revistar aquela casa tão grande, onde bem podia haver empregados varões além da meia dúzia de garotas que ele tinha visto, sem contar um número não especificado de crianças.

Eram mais das sete quando chegou à pesada porta do número 3. Um dos agentes estava escondido em um beco a uns quatro metros, outro na rua mais ou menos paralela, onde Pitt pensava que estava a entrada posterior.

Bateu uma vez e depois outra. Passaram uns minutos antes de que a porta se abrisse, a princípio só uns centímetros. Mas quando a garota viu quem era e reconheceu-o, abriu de tudo. Era a que ele tinha visto na escada cuidando de dois meninos.

— Posso ver a senhora Mapes? - Entrou na casa e então se deteve pensando que não devia mostrar-se ansioso para não delatar-se. — Por favor.

— Sim, senhor. Venha por aqui. - A garota foi para o corredor, com os pés descalços e sujos. — Estávamos esperando-o. - Não olhou para trás nem se percebeu que um agente tinha seguido ao Pitt, fechando a porta. Ao fundo do

corredor a garota se aproximou da saleta repleta de móveis onde Pitt tinha estado pela manhã e bateu na porta.

— Entre! O que acontece?

— O cavalheiro do dinheiro veio vê-la, senhora.

— Faça-o entrar! - A voz se suavizou. — Vamos, faça-o entrar!

— Obrigado.

Pitt entrou na saleta, fechando a porta para que a senhora Mapes não pudesse ver como o agente ia para a cozinha e para a porta detrás a fim de abrir a seu companheiro. Tinham ordens de revistar a casa.

A senhora Mapes usava um vestido castanho avermelhado muito apertado sobre seus seios protuberantes. As volumosas saias ocupavam toda a cadeira de tafetá, que rangiam cada vez que ela respirava. Que ela engravatasse sua carne de um modo tão implacavelmente feminino era um monumento a sua vaidade, mas também a sua resistência a um desconforto permanente. Seus dedos gordinhos reluziam de anéis e suas orelhas tilintavam de oro sob os cachos negros.

Seu rosto brilhou de júbilo ao ver o Pitt. Ele reparou em uma bandeja que havia sobre a cômoda, uma jarra de vinho - madeira a julgar pela cor - e dois copos, o valor dos quais, se eram tão bons como pareciam, poderia ter dado de comer a todo o pessoal da casa durante quinze dias a base de algo melhor que as papa que recebiam.

— Bem, senhor Pitt, você se apressou - disse sem dissimular sua alegria. — Se diria que estava ansioso por voltar. Traz o dinheiro, não é?

Era tão previsível, tão sinceramente ambiciosa, que Pitt teve que obrigar-se a recordar os pacotes ensangüentados, o fato de que ela envolvesse regularmente em papel os cadáveres de meninos a ela confiados, e que os enviasse ao Septimus Wigge para que os incinerasse em seu forno. Quantos deles tinham morrido de causa natural, quantos de inanição e enfermidade motivada pela negligência? A quantos tinha assassinado ela? Nunca saberia, nem tampouco poderia provar. Mas aquela mulher era abominável.

— Fui ver seu amigo - respondeu, pausando a pergunta. — Ou possivelmente deveria dizer um sócio. De negócios.

— Eu não tenho sócios de nenhuma classe - respondeu ela com súbito alarme. — Embora alguns gostariam de sê-lo.

— É um que lhe faz favores de vez em quando... Sem dúvida você o recompensa por isso.

— Eu faço as coisas pagando - admitiu ela com cautela. — Não sobra tempo para perder em outros tipos de recados.

— Chama-se Septimus Wigge.

Por um instante ela ficou petrificada. Depois recuperou o fôlego e continuou como se nada a tivesse afetado.

— Bom, se lhe comprei algo roubado, não foi sabendo. Ignorava que esse inseto fosse um delinqüente.

— Eu não pensava tanto em objetos, senhora Mapes, como em serviços – disse Pitt.

— Esse não faz serviços a ninguém! - Sua boca esboçou uma careta de asco.

— A você sim, e muito importantes - a corrigiu Pitt, situando-se estrategicamente entre ela e a porta. — Só lhe falhou uma vez.

A mulher tinha as rechonchudas mãos apertadas contra a saia monstruosa, mas seus olhos o olhavam desafiadores.

—Wigge não incinerou o corpo de uma mulher que você lhe tinha mandado pelo procedimento habitual, em uns pacotes que ele acreditou seriam de bebês que tinham morrido a seu cuidado. Quando foi colocar os pacotes no forno, o sangue começava a gotejar, de modo que abriu um e viu o que em realidade continha. Os ossos de pessoa adulta não ardem bem, senhora Mapes, ao menos não como os de criança pequena. Necessita-se muita temperatura para destruir um fêmur ou um crânio. Wigge sabia e não queria que ficassem dentro do forno, de modo que levou os pacotes o mais longe que pôde transportando-os em uma mesma noite. Pensou que estava a salvo, e quase o conseguiu.

Ela empalideceu sob o ruge, mas ainda não compreendia até que ponto Pitt conhecia os fatos. Estava tensa, dura sob o apertado tafetá, e suas mãos tremeram um pouco, o suficiente para que ele o notasse.

— Que ele tenha matado a uma mulher não tem nada que ver comigo, e se disser que sim, é um mentiroso. É você poli? Não tem aspecto de poli, eu os cheiro a distância. Wigge não matou ninguém por aqui, assim meta-se em seus assuntos e vá embora com o vento fresco, a menos que tenha o dinheiro da senhora. Suponho que não o traz consigo, não é verdade?

— Não há nenhum dinheiro.

— Maldito embusteiro! - exclamou, saltando da cadeira e colocando- se diante dele, com faíscas nos olhos. — Mentiroso bastardo! Porco asqueroso! - Levantou as mãos para golpeá-lo, mas se conteve. Era uma mulher corpulenta, enormemente pesada, mas miúda. Pitt era muito mais alto que ela, e forte. Era melhor não arriscar.— Mentiu! - repetiu sem confiança.

— Exato. A princípio só pretendia averiguar o que sabia da senhora March. Logo vi esse pacote na cozinha e reconheci o papel e os nós. Você, e não Septimus Wigge, fez os pacotes onde foram achados as partes da mulher. Ele afirma que você os deu, e nós acreditamos nele. Clarabelle Mapes, está presa pelo assassinato da mulher cujo corpo foi encontrado no cemitério do St. Mary´s, no Bloomsbury. E não lhe ocorra opor resistência. Tenho dois policiais na casa.

Olhou-o com medo, horror, incredulidade e, por último, determinação. Ainda não a tinha vencido.

—Tem razão – reconheceu -, essa mulher morreu aqui. Mas não foi um assassinato. Fiz isso em defesa própria, e disso não pode me acusar! Uma mulher tem direito a defender-se. - Sua voz ganhava confiança. — Esquecerei suas acusações contra mim e meu trabalho cuidando de uns meninos cujas mães não podem criar porque não estão casadas ou têm mais do que podem alimentar. É uma acusação perniciosa, tendo em conta o que faço por elas. - Viu a expressão do Pitt e decidiu continuar adiante. — Mas não tive outro remédio, ou teria sido eu que teria morrido. Essa mulher me atacou como uma possessa! – Olhou-o de novo, primeiro de esguelha e depois com mais ousadia.

Pitt aguardou.

— Queria um dos bebês. Há mulheres que são assim. Perdem um e vêm aqui a procura de outro, como se fosse um vestido novo ou o que sei eu. Como é natural, eu não podia lhe dar nenhum.

— Por que não? Você deveria ter se alegrado de achar um bom lar para um órfão. Economizou ter que ocupar-se dele!

Ela ignorou o sarcasmo; não podia permitir uma desforra, mas a cólera apareceu em seus olhos, negros e ferozes.

— As crianças estão a meu cuidado, senhor Pitt! E ela não queria um qualquer. Ah, não. Queria um em particular, um cuja mãe ficou sem recursos econômicos temporariamente, por assim dizer, e me tinha deixado a sua menina até que pudesse situar-se melhor. E quando a mulher perdeu a presilha e insistiu em ficar com essa criatura e não outra qualquer, eu tive que negar. Jogou-se em cima de mim! Eu tive que me defender, entende, se não me teria talhado o pescoço!

— Não me diga. Com o que?

—Com uma faca, naturalmente! Estávamos na cozinha, e ela pegou uma faca de cortar carne que havia sobre a mesa e se jogou sobre mim. Eu tinha que salvar a vida, e isso foi o que fiz! Que ela morresse na briga foi só um acidente, eu tinha que salvar a pele, como teria feito qualquer um em meu lugar!

— Ou seja esquartejou-a e a meteu em vários pacotes, que logo levou ao Septimus Wigge para que os queimasse - disse Pitt mordaz. Por que o fez? Não lhe parece que era ter muito trabalho?

— É você muito cruel, senhor Pitt - disse ela mais confiante. — E muito mal pensado. Pois porque não podia correr o risco de que os malditos polis não me acreditassem, como você agora. Isso demonstra que não ia desencaminhada, não é verdade?

— Certamente, senhora Mapes. Eu não acredito numa palavra, salvo o detalhe de que você lhe cravou essa faca e a matou. E que depois continuou trabalhando com ela e pode ser que também com uma cuchilla de açougueiro.

—Você não me acreditará, senhor Pitt. - Ficou com as mãos nacintura. — Mas não há nada que possa demonstrar. É minha palavra contra a sua, e nenhum tribunal de Londres penduraria a uma mulher porque um poli não acredita nela, e isso não me pode discutir.

Ela tinha razão, e a verdade era amarga de aceitar.

—De qualquer modo a acuso de desfazer-se do cadáver - disse Pitt sem alterar. — E por isso lhe pode cair uma boa temporada entre grades.

Ela soltou uma imprecação.

— Os pobres não costumam informar a poli de todas as mortes que se produzem, ao menos aqui no St. Giles. Morre gente a todo momento.

— Então, por que não a fez enterrar, como todos esses outros dos que fala?

— Porque foi esfaqueada, mentecapto! Que padre quereria enterrar a uma mulher que foi esfaqueada?

E ela não era do bairro. Aqui era uma estranha. Teria havido perguntas. Mas a lei é a mesma; se você me acusar disso terá que acusar a todos outros. Imagino que quando o juiz saiba como me atacou e o mal que me soube que ela, acidentalmente, caísse sobre a faca durante a briga, o homem compreenderá por que perdi a cabeça e me desembaracei do cadáver.

— Fique tranquila, senhora Mapes, já o comprovaremos - disse ele acidamente. Porque vai ter ocasião de dizer-lhe. Elevou a voz. — Agente.

A porta se abriu e o mais robusto dos dois policiais entrou.

— Fique com a senhora Mapes e procure que não vá a nenhuma parte. É muito manhosa com a faca; sofre acidentes nos quais a pessoa que a ameaça acaba cortada em pedacinhos e metida em pacotes que aparecem por toda Londres. Assim tome cuidado.

— Sim, senhor. - O agente endureceu a expressão. Conhecia o bairro e não o surpreendia muito. — Eu me ocupo dela, senhor. Quando retornar a achará aqui mesmo.

— Bem.

Pitt saiu ao corredor e se dirigiu à cozinha. Havia cinco garotas formando roda de pessoas em torno do outro agente. O homem se levantou o entrar Pitt e o mesmo fizeram as garotas, por um costume nascido do medo, não do respeito aos adultos.

Pitt se sentou informalmente na borda da grande mesa central de madeira, e uma a uma as garotas voltaram a ocupar seus assentos.

— A senhora Mapes me há dito que faz umas três semanas veio uma jovem que queria uma menina pequena, e que se zangou muito por não poder levar uma em concreto. Alguma de vocês o recorda?

Todas o olharam com olhos muito abertos.

— Era uma mulher bonita - prosseguiu ele, procurando não delatar sua ira, seu desespero.

Não pretendia condenar a ninguém mais que ao Clarabelle Mapes, e lhe escaparia das mãos se não demonstrasse o assassinato. Estava quase seguro de que a história da defesa própria era inventada, mas não impossível. Um jurado podia dá-la por boa. Seus superiores sabiam tão bem como Clarabelle. Podia ser que nem sequer lhe caíssem encargos. Essa idéia lhe corroeu. Raramente tinha cedido em seu trabalho ao ódio pessoal, mas desta vez não podia esquivá-lo. Para ser sincero, já não tentava se separar de si aquele ódio.

—Pensem um pouco - lhes pediu. — Era jovem e bastante alta, com o cabelo loiro e a pele delicada. Não procedia deste bairro.

Uma das moças deu uma cotovelada a que tinha ao lado e evitou olhar ao Pitt.

—Fanny...! - sussurrou.

Aludida-a olhou ao chão.

Pitt sabia o que a preocupava. Se ele tivesse estado aos cuidados da senhora Mapes, não se teria arriscado a enfrentar sua ira.

— A senhora Mapes diz que a mulher veio aqui - disse Pitt. — Eu acredito. Mas necessitaria que alguém mais pudesse recordá-lo. - Aguardou um pouco.

Fanny se retorceu os dedos e inspirou com força. Alguém tossiu.

— Eu lembro dela, senhor - disse por fim. — Fui quem lhe abriu a porta da cozinha. - Meneou a cabeça. — Não era de daqui; era muito bonita e elegante. Mas se zangou muitíssimo porque não podia levar a menina. Dizia que a menina era dela, mas a senhora Mapes nos disse que a pobre se tornara louca.

— Que menina era? Sabe qual?

—Sim, senhor. Recordo-o porque era muito bonita, toda loira e com aquele sorriso. Chamavam-na Faith.

Pitt conteve a respiração.

— O que aconteceu com a menina? - disse tão frouxo que teve que repeti-lo.

— Adotaram-na, senhor. Levou-a uma senhora sem filhos.

— Ah. E essa jovem que devia buscar Faith partiu também muito zangada?

— Não sei, senhor. Não a vimos partir.

Pitt procurou dar tom fortuito a suas palavras, como para não assustá-la, mas a fúria não o abandonava.

— Disse-lhe como se chamava, Fanny?

A expressão da garota continuou vítrea e distante.

Pitt olhou ao chão esperando uma resposta, enquanto fechava os punhos dentro de seus bolsos.

— Prudence - disse Fanny. — Disse que se chamava Prudence Wilson. Fiz ela entrar e disse à senhora Mapes que estava aqui. A senhora Mapes me enviou para que lhe perguntasse o que queria.

— E o que lhe respondeu a jovem? - Pitt se sentiu animado por uma espécie de remota esperança, mas ao mesmo tempo o dar um nome ao espantoso cadáver despedaçado convertia sua morte em um ultraje mil vezes maior.

Fanny negou com a cabeça.

— Não sei, senhor, ela disse que só falaria com a senhora Mapes.

— E a senhora Mapes lhe contou isso depois?

—Não.

Pitt se levantou.

— Está bem. Obrigado, Fanny. Fique aqui e cuida das pequenas. O agente lhes fará companhia.

— Quem é você, senhor, e o que está acontecendo? - perguntou a maior delas com uma careta. Dava-lhes medo qualquer mudança, pois normalmente significava perder algo e começar uma nova luta.

Pitt queria pensar que desta vez seria diferente, mas tampouco queria enganar-se.

As garotas eram muito pequenas para ganhar a vida com uma ocupação legal; tampouco havia muitas para mulheres salvo o serviço doméstico, para o qual não tinham referências: as fábricas mal davam para sobreviver. E sem Clarabelle Mapes para que tirasse o dinheiro todo mês de mulheres desesperadas sob o pretexto de cuidar de seus filhos, não havia maneira de manter esse grupo de crianças no Tortoise Lane. Para a maioria deles significaria o asilo.

Pitt não sabia se lhes mentia para não assustá-las, ou se isso seria uma nova forma de paternalismo, de lhes roubar a dignidade. Ao final se impôs a verdade.

—Sou policial, e até que não tenha terminado as pesquisas não sei exatamente o que acontece. Preciso averiguar mais coisas sobre Prudence Wilson. Disse de onde era, Fanny?

Fanny negou com a cabeça.

— Não importa, averiguarei-o.

Pitt foi para a porta e deu instruções ao policial para que aguardasse ali até sua volta ou até que lhe enviasse um substituto.

Pôs-se a andar para o Bloomsbury, o lugar claro para começar. Era razoável supor que Prudence Wilson tinha ido a quem lhe estava mais à mão, e que vivia de seu próprio emprego como criada ou criada, tal como tinha sugerido o médico da policia.

Assim, Pitt se encaminhou à delegacia de polícia do Bloomsbury, e às oito e dez se achava frente a um sargento que levava todo o dia levantado e ansiava tanto uma pinta de cerveja que notava na boca o sabor do pó.

— Inspetor Pitt, polícia metropolitana - se apresentou com tom formal para dar tempo ao sargento a corrigir sua atitude.

— Não é aqui, senhor. Não pertence a esta delegacia de polícia. Ouvi falar dele, ocupa-se de homicídios e essas coisas. Experimente em Bow Street, senhor. Se não estiver ali, com certeza sabem onde localizá-lo.

Pitt sorriu.

— Eu sou o inspetor Pitt, sargento - esclareceu. — E estou aqui por um assassinato. Agradeceria-lhe que me prestasse atenção.

O sargento se ruborizou e se endireitou imediatamente, sem pestanejar sequer quando a ponteira de sua bota se chocou no pé da cadeira, batendo em um calo.

Olhou ao Pitt não sabendo como desculpar-se.

— Procuro antecedentes de uma tal senhorita Prudence Wilson, provavelmente do serviço doméstico e talvez nesta zona. Imagino que alguém terá denunciado seu desaparecimento, fará três ou quatro semanas. Reconhece esse nome, sargento?

— As pessoas não costumam denunciar o desaparecimento de uma criada, senhor Pitt. - Meneou a cabeça. — São terrivelmente suspicazes e normalmente com razão. Pensam que foi embora com um homem, e claro está, isso... - Deixou em suspense sua opinião; era ser muito indiscreto. — Pessoalmente lhes desejava sorte.

Ele mesmo tinha sido afortunado em seu matrimônio, e nunca teria desejado a ninguém que dedicasse a vida a servir em casa de outro podendo fazê-lo na própria. Mas poderia ser.

Expressou seu assentimento indo pelo livro maior onde ficavam anotadas aquelas coisas. Retrocedeu quatro semanas e começou a ler. Ao cabo de seis páginas deteve o dedo indicador em uma entrada e olhou ao Pitt, com olhos tristes e surpreendidos.

— Sim, senhor, aqui está. Um jovem de nome Harry Croft veio dizendo que era sua noiva e que tinha ido em busca de sua filha pequena, que estava aos cuidados de outra pessoa ou algo assim, e que não voltara mais. O homem estava transtornado, acreditando que algo tinha passado a sua noiva, posto que estavam a ponto de casar-se e ela estava muito iludida. Mas naturalmente não pudemos fazer nada. A uma jovem não pode procurar um homem com quem não está casada, de quem não é filha e que não seja seu empregador. E nós não tínhamos a certeza de que ela não foi embora com a menina.

— Ah - concedeu Pitt. Era justo, e embora o tivessem sabido, então já era muito tarde. — É claro.

O sargento engoliu saliva.

— Está morta, senhor?

— Sim.

O sargento não afastou a vista.

— Era dela... era ela o corpo que acharam nos pacotes, senhor?

— Sim, sargento.

O homem voltou a engolir.

— Detiveram ao homem que o fez, senhor Pitt?

— Foi uma mulher, e com efeito a detivemos. Dispunha-me a levá-la a delegacia de polícia.

— Dentro de um momento saio de serviço, senhor. Agradeceria-lhe muito que me deixasse acompanhá-lo, senhor. Rogo.

— Muito bem. Pode ser que necessite de um homem mais; trata-se de uma mulher corpulenta, e terá que levar a alguma parte um montão de crianças; ao asilo, suponho.

— Sim, senhor.

Quando chegaram ao Tortoise Lane eram as nove menos quarto. Estavam no apogeu do verão, e ainda ficava outra hora de luz de dia e uns vinte minutos de crepúsculo, enquanto a cor se extinguia lentamente e as sombras se iam juntando até formar uma massa sólida só alterada pelas luzes de gás das ruas principais e por alguma ou outra vela no St. Giles.

Detiveram-se frente ao número 3 e Pitt entrou sem bater. Não tinha nenhuma sensação de triunfo, mas unicamente de vingança, coisa absolutamente incomum nele. Percorreu a grandes passos o corredor até a saleta de estar e abriu a porta. O agente continuava de pé, tão incômodo como quando Pitt tinha partido, e a senhora Mapes estava sentada em sua poltrona com seus reluzentes cachos, a saia de tafetá desdobrada ao redor, e um sorriso na boca.

— Bom, senhor Pitt - disse ousadamente. — E agora o que, né? Pensa ficar aqui parado toda a noite?

— Não, ninguém vai ficar aqui toda a noite. E mais, duvido que voltemos alguma vez. Clarabelle Mapes, está presa por assassinar Prudence Wilson quando esta veio recolher sua filha, a qual você havia vendido previamente.

Ela parecia disposta a defender-se com desfaçatez.

— Mas por que ia eu a querer matá-la? Não tem nenhum sentido!

— Porque ela a ameaçou denunciando seu negócio! – replicou-lhe Pitt. — Você, mais que alimentar aos meninos que lhe encomendavam, matava-os de fome. Se isso se soube teria significado o fim de seu negócio.

Desta vez sortiu efeito: a mulher começou a suar e empalideceu.

— Agente - ordenou Pitt. —Traga-a. - Deu meia volta e saiu outra vez em direção à cozinha. — Agente Wyman! Enviarei-lhe uma substituição; procure alguém que se ocupe dos meninos por esta noite. Terá que informar às autoridades competentes.

— Leva ela,   senhor?

— Sim, por assassinato. Já não voltará...

De repente se ouviu um grito na parte dianteira da casa, o golpe surdo de um corpo que caía ao chão e depois uns gritos irados. Pitt virou sobre seus calcanhares e pôs-se a correr.

No passadiço, o agente estava ficando de pé, com o capacete em uma mão, e pela porta se perdiam já as abas do uniforme do sargento.

— Escapa! - gritou furioso o agente. — A mulher me bateu! – Pôs-se a correr seguido do Pitt, que o ultrapassou em seguida.

Vinte metros rua abaixo Clarabelle Mapes corria com assombrosa agilidade para alguém de sua corpulência. Pitt ignorou ao sargento e acelerou quanto pôde, afugentando em sua corrida uma mulher velha carregada de trapos e a um vendedor que voltava por seu jantar. Se a perdesse agora, talvez não voltasse a vê-la mais; o labirinto dos bairros pobres londrinos podia esconder a um fugitivo durante anos, se fosse bastante ardiloso e tinha muito que perder em caso de ser apanhado. Era inútil ficar a gritar, com isso só se teria cansado mais. Ninguém detinha um ladrão no St. Giles. Ela seguia correndo com a velocidade que lhe dava o medo, e em pouco tempo Pitt a viu entrar em um portal aberto depois de dobrar uma esquina. Se estivesse dez metros mais longe não teria visto qual era. Lançou-se em sua busca tropeçando com um velho que caiu no chão lhe lançando impropérios, mas Pitt já não tinha olhos mais que para a obesa figura de Clarabelle Mapes, com seus cachos ao vento e suas saias de tafetá qual velas inchadas. Seguiu-a através de uma sala onde havia muitas pessoas inclinadas sobre uma mesa em penumbra, percorreu à corrida uma passagem escura onde ressoavam seus passos e saiu a um boteco que cheirava a cerveja e estava semeado de serragem.

Ela virou-se, olhou-o com olhos envenenados e afastou uma garota que servia, lançando-a ao chão salpicado da cerveja que levava. Pitt teve que esquivar-se dela fazendo uma confusão com as pernas. Em seguida tropeçou com um tamborete e quase mediu o chão, agarrando-se à ombreira da porta a um tris de perder o equilíbrio. Ouviu umas gargalhadas a suas costas, e um novo estrondo quando apareceu o sargento, todo desabotoado e com o capacete ao viés.

Ao sair pela porta, onde havia um grupo de gente ociosa, Pitt a viu correndo ainda para uma ruela. Eestava entrando no labirinto de fábricas, cantinas e moradias, e se não a alcançasse logo acharia a um exército de aliados naturais e ele teria sorte se conseguisse sair dali, para não falar de capturá-la.

Ao fundo do trilho havia uns degraus que desciam a um quarto amplo e mau iluminado onde várias mulheres costuravam junto a uns lampiões de azeite.

Clarabelle não parou para ver quem atirava ao chão, a quem pisava na saia, e Pitt tampouco pôde permitir-se esse luxo. Gritos irados ressoaram em seus ouvidos.

Ao chegar ao outro lado, a porta lhe deu no peito e lhe fez deter um momento, deixando-o sem respiração. Mas estava muito imerso na perseguição para preocupar-se com a dor; possuía-lhe o frenesi de capturá-la, de sentir a fisicamente a seus pés e obrigá-la a caminhar diante com as mãos postas nas costas. Estava ensimesmado com a idéia de que ela estava percorrendo o último lance da viagem inexorável para a forca.

No pátio havia três mulheres velhas compartilhando uma garrafa de genebra e um menino brincava com duas pedras.

— Auxílio! - gritou Clarabelle Mapes. — Detenham-no! Vem por mim!

Mas as velhas estavam muito bêbadas para entender algo, e Pitt passou ao largo sem trava alguma. Estava ganhando terreno, uns metros mais e alcançaria ao Clarabelle Mapes. Tinha as pernas mais longas, e não levava saias que lhe atrapalhassem.

Mas ela estava agora em seu elemento, e conhecia o caminho. A seguinte porta se fechou no nariz do Pitt e não houve maneira de abri-la. Viu-se obrigado a carregar contra ela com toda sua força, machucando o ombro. Não se pôde abrir a porta até que o sargento lhe alcançou e o tentaram juntos.

A porta dava a um aposento em penumbra repleto de gente de todas as idades e ambos os sexos; o aroma de suor, comida rançosa e sujeira animal lhe entupiu na garganta.

Cruzaram o aposento a toda pressa, pisoteando corpos sem querer, e saíram pela porta do fundo a uma rua arruinada e tão estreita que os pisos superiores quase chegavam a tocar-se. O desaguadero que a partia em dois estava encravado de águas residuais seca. Uma vintena de portais baixos: Clarabelle Mapes podia haver se metido em qualquer deles. Todas as portas estavam fechadas. Havia rodas de pessoas de gente meio adormecida ou meio bêbada. Ninguém se fixou nele nem no sargento, exceto um velho que, fazendo-se encarregado da situação, animou ao Pitt tomar pelo fugitivo. Depois jogou no sargento uma garrafa vazia, mas a garrafa se estrelou.

— Por onde se foi? - gritou furioso Pitt. — Seis pennies a quem me ajude a encontrá-la.

Dois ou três se moveram, mas ninguém disse nada.

Pitt estava tão zangado, tão furioso de frustração que os teria esbofeteado se soubesse que com isso podia tirar algo.

Então lhe ocorreu outra coisa. Apenas um par de metros lhe tinham separado do Clarabelle Mapes quando esta tinha entrado naquele dormitório. Inclusive contando os escassos segundos que lhes havia custado transpor a porta, ele deveria ver bater a porta do fundo e um vislumbre da saia castanha na rua fedorenta.

Virou-se e se precipitou de novo no amplo aposento, agarrando ao primeiro que teve à mão e sacudindo-o pelas lapelas com ar ameaçador.

— Aonde foi? - disse entre dentes. — Se estiver aqui dentro os acusarei a todos por cumplicidade em um assassinato, entenderam-me?

— Não está aqui! - grasnou o homem. — Me solte já, poli de merda! Esfumou—se! Burlou-se de você, porco!

Pitt o soltou e foi cambaleando para a porta quebrada, com o sargento lhe pisando os calcanhares. Já no beco não viu rastro da fugitiva, e a possibilidade de que lhe tivesse escapado produziu um suor de fúria e inépcia. Agora compreendia por que os meninos choravam sua impotência.

Era preciso pensar com clareza; a ira não resolveria nada. Clarabelle Mapes tinha um próspero negócio e muitas posses no Tortoise Lane; o que teria feito ele em seu lugar? Atacar! Livrar-se da única pessoa que conhecia seus crimes. Teria pensado isso Clarabelle, ou se teria limitado a fugir sem mais? Era seu pânico maior que sua astúcia?

Lembrou-se daqueles olhos negros e brilhantes e pensou que não. Se Pitt se mostrasse vulnerável, se lhe oferecesse como isca, ela voltaria para rematá-lo; seu instinto a ameaçava a atacar.

— Espere! - disse bruscamente ao sargento.

— Mas se não está aqui! – respondeu-lhe este. — Não pode ter ido longe, senhor! Se a perdêssemos me sentiria mal! Que mulher tão malvada.

— Eu também, sargento, eu também. - Pitt levantou a vista para as janelas imundas de cima.

Fora começava a escurecer. Não tinha muito tempo. E então viu fugazmente o pálido fulgor de um rosto atrás da janela.

— Espere aqui! - disse. — Se por acaso me engano.

Deu meia volta e entrou no primeiro portal, subiu por uma escada desconjuntada e continuou por uma passagem a meia luz. Ouviu mover-se algo, um rangido de tecido; era um corpo obeso penetrando por uma abertura. Sabia que era ela. Estava esperando-o uns metros mais à frente. Com o que? Tinha matado ao Prudence Wilson com uma faca e depois a havia despedaçado como se tivesse sido uma cabeça de gado.

Avançou devagar, sem fazer ruído; contudo, as pranchas estavam podres e o delataram. Ouviu-a mais adiante. Estaria escondida detrás de uma porta semioculta, à espera, com todo o peso de seu corpo disposto a lhe cravar a faca no coração?

Sem perceber, Pitt se tinha detido. O medo o estremecia dos pés a cabeça, secava-lhe a garganta. Não podia ficar onde estava. Ouviu que alguém se afastava diante dele, que continuava subindo.

Resistente, com o pulso a cem, avançou lentamente apalpando com uma mão a parede. Chegou a outro lance de escada, mais estreito inclusive que o anterior, e soube que a tinha muito perto. Notava sua presença como um comichão na pele; acreditou inclusive ouvir sua respira'ção no meio da escuridão, mais acima.

E de repente houve um golpe surdo e um grito furioso, e os passos dela no alto da escada de mão. Pitt começou a subir e entreviu à mulher inclinada sobre o quadrado de luz amarelo, ali onde o desvão se alongava. Estava meio em sombras, mas podia lhe ver os olhinhos brilhantes, os cachos soltos como molas de estrado, o suor que brilhava em sua pele. Quase a tinha. Pitt estava prevenido e esperava uma navalhada. Ela retrocedeu, aparentemente temerosa de vê-lo tão perto.

Pitt podia subir os quatro últimos degraus com grande rapidez, e alcançá-la antes que tivesse tempo de atacar. Se se fizesse a um lado quando atravessasse o quadrado de luz...

Então, com um pé a ponto de pisar no seguinte degrau, Pitt recordou o segredo daquelas velhas espeluncas soltou-se do corrimão e caiu para trás para aterrissar no chão, machucando-se dolorosamente, enquanto as afiadas folhas embutidas na armadilha mortal caíam rasgando o ar ali onde ele tinha estado um segundo antes.

Então ouviu a arrepiante gargalhada dela.

Pitt se levantou com muita dificuldade, sangrando, e subiu rapidamente a escada colocando a mão por entre as folhas para abrir a armadilha com um empurrão. Emergiu do buraco e caiu sobre o chão do desvão, um metro além de onde ela estava escondida. Sem lhe dar tempo a assombrar-se sequer Pitt a golpeou com toda a força de seu punho - da ira e a dor acumuladas - e ela caiu para trás sem sentido.

Pitt não se importou em como difícil seria fazê-la descer, nem que seus superiores pudessem acusá-lo de lhe partir a mandíbula. Tinha a Clarabelle Mapes.

 

Era perto do meio-dia quando Pitt retornou ao Cardington Crescent. A euforia de ter apanhado Clarabelle Mapes se esfumara, e a cálida luz do dia recordou que tinha ido ao Tortoise Lane para averiguar o que tinha levado ali a Sybilla March. E não sabia nada. Por mais pergunta que lhe fizesse, Clarabelle não soltava nada mais, e as crianças da casa não tinham visto nunca uma dama como Sybilla.

O mordomo o fez entrar e Pitt lhe pediu que fosse procurar Charlotte.

Permitiu-lhe esperar na saleta. Era um aposento asfixiante, com suas cortinas meio fechadas e suas braçadeiras de luto negros ondulando em qualquer parte como teias de aranha manchadas de fuligem.

Charlotte entrou vestida de uma elegante cor lavanda; Pitt recordou vagamente que a roupa era de tia Vespasia, um pouco modificada no peito para que lhe ajustasse. Vespasia nunca vestia-se de negro, nem sequer em um enterro.

Charlotte estava pálida e tinha olheiras de cansaço. Mas seu rosto se iluminou ao vê-lo, e isso alegrou a Pitt. Em qualquer lugar que ela estivesse, ele se sentiria como em casa.

—Thomas, me alegro tanto de tê-lo aqui - disse ela. — Tudo se complicou. Olhamo-nos os uns aos outros pensando coisas horríveis que não nos atrevemos a dizer. - Foi fechar a porta e ficou apoiada contra ela, olhando ao Pitt, mordendo os lábios, as mãos apertadas. — Não foi Tassie. Descobri o que faz nas noites, aonde vai e por que volta com salpicos de sangue.

Uma cólera cega atacou de repente ao Pitt, por causa do medo, não só por ela mas também por si mesmo, medo a perder o mais prezado, aquela segurança profunda e cálida que segurava todos seus sonhos, toda sua valentia.

— O que...? - exclamou.

Ela fechou os olhos:

— Não grite, Thomas.

Pitt a pegou pelo braço, afastando a da porta e pondo-a frente a ele no meio da saleta. Estava machucando e sabia.

— Que tem feito o que? - repetiu com ferocidade. O fato mesmo de que Charlotte ficara contra a porta em vez de ir para ele e lhe dar um beijo, de que ela não tivesse reagido com justa raiva, significava que era consciente de sua culpa. — Seguiu-a! – acusou-a Pitt com absoluta certeza.

Charlotte abriu muito os olhos; não lhe estava pedindo desculpas.

— Tinha que averiguar aonde ia - explicou. — Tassie se dedica a ajudar a parturientes! Há muitas mulheres pobres ou solteiras, moças apenas, que não podem pagar uma parteira. Por isso morrem tantas, Thomas. O que faz é maravilhoso, e as pessoas apreciam-na seriamente.

O aborrecimento do Pitt era tão grande que lhe impediu de sentir- se satisfeito pela inocente conduta de Tassie, e isso porque ele tinha imaginado coisas horrorosas. Sem dar-se conta estava sacudindo a Charlotte.

— Seguiu-a a casa de uma mulher, você sozinha, de noite? – continuava gritando. — Insensata! Tassie podia te haver levado a qualquer parte! E se ela tivesse assassinado à mulher cujo corpo apareceu no Bloomsbury nesses malditos pacotes? Poderia ter sido a seguinte vítima! - Estava tão furioso que teria acabado esbofeteando-a, como se faz ao filho que acaba de escapar das rodas de uma carruagem.

Entre a onda de alívio imagina-se o perigo logo que evitado. A lembrança de Clarabelle Mapes e o labirinto de que tinha saído fazia tão pouco eram mais fortes que a realidade daquela casa acolhedora e civilizada. — É uma idiota, uma irresponsável! Terei que prendê-la em casa para poder sair com a segurança de que se comportará como uma pessoa adulta?

O que tinha começado no Charlotte como culpa foi superado agora por uma sensação de ofensa. Pitt estava sendo injusto e ela se zangou.

— Está me machucando - disse com frieza.

— Merece que a açoitem! - replicou ele.

Ela reagiu dando-lhe um pontapé na tíbia. A surpresa fez que Pitt a soltasse, e Charlotte retrocedeu rapidamente.

— Nem te ocorra me tratar como a uma menina, Thomas Pitt! - disse furiosa. — Não sou uma de suas senhoritas melindrosas, que não dão golpe em todo o dia e pode mandá-las a seu quarto quando não gosta do que dizem. Emily é minha irmã, e não a pendurarão por matar ao George enquanto possa fazer algo para evitá-lo.

Tassie está apaixonada pelo Mungo Farei, o ajudante do Beamish, e pensa casar-se com ele. Mungo a ajuda nos partos.

Pitt se aferrou ao único exemplo de lógica e domínio masculino que lhe ocorreu.

— Seu pai não o permitirá. Jamais.

— Equivoca-se! Prometi ao Eustace que você não mencionará sua aventura com a Sybilla se ele aceitar, em caso contrário já me ocuparei eu de que se inteire toda a boa sociedade. Tassie conseguirá sua bênção, isso lhe asseguro.

— Ah, sim? - Pitt estava encolerizado. — Dá muitas coisas por certas! E se eu dito não cumprir essa promessa que tão graciosamente lhe fez em meu nome?

Charlotte pareceu indecisa. Depois olhou-o nos olhos.

— Então Tassie não poderá casar-se com o Mungo, porque não é um homem socialmente aceitável e não tem dinheiro - disse de modo terminante. — Continuará solteira e vivendo nesta casa, cativa dessa anciã egoísta, fazendo-lhe companhia até que morra, e depois o mesmo com seu pai. Ou isso ou casar-se sem estar apaixonada.

Não precisava acrescentar que era o que podia ter acontecido com ela mesma se seu pai não tivesse sido mais tolerante que Eustace e sua mãe não tivesse apoiado sua causa com firmeza. Pitt sabia e isso lhe privou da justificação que necessitava.

Charlotte tinha feito exatamente o que ele teria desejado; era o fato de que lhe tivesse adiantado o que o enfurecia, não a coisa em si. Mas manifestá-lo assim teria sido absurdo; de fato, o absurdo era a queixa. Optou por mudar de assunto e jogar sua melhor carta:

— Resolvi o assassinato do cadáver que apareceu no cemitério do Bloomsbury. E detive à assassina depois de uma perseguição. Tenho provas suficientes para que a pendurem.

Charlotte ficou impressionada, e seu assombro e sua admiração se refletiram em seu rosto.

— Pensava que seria impossível - disse com sinceridade. — Como o conseguiu?

Pitt se sentou no braço de uma poltrona de couro. Doía- lhe todo o corpo depois dos golpes recebidos na perseguição do Clarabelle Mapes.

— A assassina tinha uma granja de meninos. Ela franziu o sobrecenho.

— O que?

Uma granja de bebês. - Não lhe agradou ter que lhe dar detalhes, mas ela queria saber mais. — Uma mulher põe anúncios discretos dizendo que adora os meninos e que se oferece para cuidar de qualquer bebê cuja mãe, por circunstâncias de má saúde ou o que for, não possa fazê-lo. Diz-se também que os meninos doentes são bem-vindos e que serão criados como filhos próprios. Solicita-se, é claro, uma pequena soma de dinheiro para cobrir a manutenção.

Charlotte estava pasmada.

— Muitas mulheres queriam valer-se de um serviço assim. Soa a beneficência. Por que o diz com repulsão? Muitas mulheres têm que trabalhar e não podem criar a seus filhos, sobre tudo se forem criadas e o filho é ilegítimo... por que, Thomas?

— Porque a maioria delas, como Clarabelle Mapes, aceitam o dinheiro das mãe e depois deixam que os mais fracos morram de fome (quando não os matam por sua própria mão) em vez de empregar o dinheiro em cuidados. Aos fortes e bonitos os vendem. - Percebeu a expressão de Charlotte. — Sinto muito. Você me perguntou.

— O que aconteceu em Bloomsbury? - disse ela depois de um momento de silêncio. — A vítima era mãe de algum menino assassinado e descobriu a verdade?

— De uma menina que foi vendida.

— Ah. - Charlotte ficou sem mover-se e ele não a tocou. Afinal lhe estendeu uma mão. — Como é que foi ali?- perguntou ela ao fim.

— O endereço estava no livrinho da Sybilla.

— Da granja de bebês? Isso é ridículo. Por que?

— Ignoro-o. Não pude averiguar. Suponho que Sybilla a conseguiu para alguma criada dela ou de alguma amiga. Não acredito que alguém de seu círculo necessitasse um serviço semelhante. Embora tivessem um filho ilegítimo, procurariam outra classe de solução; um parente no campo, um criado velho que se retirara a casa de sua filha.

— Seria uma criada - corrigiu Charlotte. — Ou conhecia a mulher por alguma outra razão. Pobre pobrezinha.

— Tampouco isso me serve para averiguar quem a matou nem por que.

— Com certeza o perguntou à mulher, não?

Pitt soltou um risinho gutural.

— Não viu a Clarabelle Mapes, do contrário não o perguntaria.

— Tem idéia de quem matou George? – Olhou-lhe com ansiedade e olhos de temor.

Ele reparou de novo em seu aspecto de cansaço e preocupação. Acariciou-lhe a face.

— Não, meu amor. Só ficam William, Eustace, Jack Radley e Emily; a menos que o fizesse a anciã, coisa que não me atrevo a pensar. Me acredite que o tentei, mas não me ocorre quem pôde fazê-lo.

— Incluiu Emily!

Pitt fechou e abriu os olhos com desconsolo, lentamente.

— Não resta outro remédio - disse.

Ela sabia que era certo, não valia a pena discutir. Uns golpes na porta lhe economizaram a necessidade de replicar.

Era Stripe, com expressão de desculpa e uma nota na mão.

— Sinto muito, senhor. O médico da polícia lhe manda isto. Não tem sentido.

— Me dê. - Pitt pegou a nota e a leu.

— O que é? - inquiriu Charlotte. — O que diz?

— Com efeito, foi estrangulada - respondeu Pitt. — Com seu próprio cabelo. Um método eficaz. - Charlotte estremeceu e Stripe mordeu o lábio. — Mas Sybilla não estava grávida.

Charlotte ficou de pedra.

— Tem certeza?

— Pois claro! - disse ele. — Não seja idiota. Isto foi escrito pelo médico que fez a autópsia. Nessas coisas não se engana um médico!

Charlotte fez uma careta como se tivesse recebido um murro e levou as mãos ao rosto.

— Pobre Sybilla. Certamente o perdeu e não se atrevia a contar a ninguém. Como devia odiar ao Eustace, todo o dia falando de quão maravilhoso era que finalmente desse ao William um herdeiro. Não estranho que o olhasse com tanto ódio. E essa velha espantosa lançando arengas sobre a família! Meu Deus, quanto dano podemos fazer às pessoas!

Pitt olhou para Stripe, o qual estava desconfortável ante um tema tão íntimo, e se deu conta de que aquilo era muita dor que ele mal compreendia.

— Obrigado - assentiu Pitt. — Acredito que isso não nos ajuda e não vejo razão para dizer à família. Só causaria perturbações desnecessárias. Guardemo-lo em segredo.

— Sim, senhor. - Stripe se retirou com ao alívio em seu rosto.

Charlotte sorriu. Não precisava elogiá-lo; ele sabia sem necessidade que ela dissesse algo.

O almoço foi tão triste como o café da manhã. Emily decidiu descer à sala de refeições mais como um desafio que porque o julgasse preferível a comer sozinha em seu quarto. Por outro lado tinha a crescente convicção de que o cerco se fechava em torno dela, e que se não o solucionasse por sua conta a acusariam de assassinato.

Charlotte lhe tinha contado a perseguição a Tassie e o segredo de suas excursões noturnas. Um parto difícil podia parecer muitas vezes, à luz de um lanterna, o cenário de um açougue. Não era de estranhar que Tassie, além das manchas de sangue, tivesse tido aquela expressão de sereno prazer! Tinha presenciado o início de uma vida nova, o último ato na criação de um ser humano. O que podia estar mais longe da loucura que tinham suspeitado nela?

Thomas tinha ido pela manhã, e depois de falar com Charlotte partiu sem dar explicações nem, aparentemente, prosseguir com a investigação. Embora para ser justa com ele, Emily não via que outra coisa podia ter perguntado.

Olhou-os a todos com os olhos baixos, para que ninguém o notasse, enquanto brincava com uma parte de frango cozido. Tassie estava mais calma, mas havia nela um fulgor de felicidade que a consciência das penas alheias não conseguia extinguir. Emily sentiu que se alegrava por ela, embora também experimentasse uma pontada de inveja. Depois teve uma clara sensação de alívio ao pensar que não havia razão alguma para suspeitar de Tassie, nem na morte do George nem na da Sybilla. Emily nunca tinha querido pensar que Tassie fosse culpada; viu-se forçada a isso depois do extraordinário relato de Charlotte sobre o episódio da escada. Agora isto ficava explicado do melhor modo imaginável.

Em um extremo da mesa, com sua nívea toalha e o fino faqueiro georgiano mas sem flores apesar do o jardim ser uma explosão de cor, a velha March estava sentada com o semblante severo, de negro e olhando à frente com seus olhos

azuis de peixe. Certamente desconhecia ainda a intenção do Tassie de casar-se com o ajudante e a subseqüente capitulação do Eustace, e mais ainda seus motivos para fazê-lo. E sem dúvida ignorava as excursões noturnas de Tassie. Do contrário, teria havido em seu ânimo muito mais que um frio desgosto e, atrás daquela glacial expressão, talvez um medo sufocado. Além de tudo, um dos presentes tinha cometido dois assassinatos. Nem Lavinia March podia fingir que uma força estranha tivesse invadido a casa; era algo que fazia parte deles. Mas parecia estar sozinha em seu próprio sofrimento; isso não a tinha impulsionado a abrandar-se, a tratar de compreender os medos de outros. Emily era consciente de que essa era possivelmente a maior tragédia, além da necessidade de aceitar piedade ou compaixão: a incapacidade de senti-la. E entretanto não conseguia sentir compaixão por aqueles que não a davam nunca. Teria se encantado em poder acreditar que a anciã era culpada de assassinato, mas não concebia por que razão poderia havê-lo feito, nem havia prova alguma que assim o sugerisse. A senhora March era a única pessoa da casa cuja culpa não lhe teria causado desdita. Emily espremia os miolos procurando algo que apoiasse essa hipótese, mas sem obtê-lo.

Como se tivesse lido seus pensamentos, a anciã levantou a vista de seu prato e a olhou fríamente.

— Suponho que depois do funeral de amanhã retornará a sua casa, Emily – disse com as sobrancelhas levantadas. Presumivelmente a polícia não terá dificuldade para achá- la ali, embora qualquer outra coisa pareça fora de seu alcance!

— Sim, certamente - respondeu secamente Emily. — É em benefício da polícia que fiquei aqui tantos dias, e para dar demonstração de solidariedade familiar. Não é preciso que o resto da boa sociedade saiba o pouco simpáticos que nos saímos mutuamente ou quão incapazes somos de consolar a outros. - Bebeu um gole de vinho. — Embora não sei por que diz que a polícia não sabe resolver assassinatos. - Utilizou a horrível palavra de propósito e lhe agradou ver que a anciã dava um pulo. — Não há dúvida de que sabem muitas coisas que por alguma razão preferiram não lhe contar. É difícil que confiem em nós. Ao fim e ao cabo, se prenderem a alguém será a um dos presentes.

— Ah! - interveio Eustace colérico. — Recorda quem é, Emily. Esses comentários sobram.

— Não seja tolo! – replicou-lhe a anciã. — Tem que ser por força um de nós. – Tremia-lhe tanto a mão que o vinho transbordou de seu copo e manchou a toalha. — Foi Emily, e se você não sabe, Eustace, então é o único que não se inteirou!

— Está dizendo tolices, avó. - William falou pela primeira vez desde que tinham entrado na sala de jantar. De fato, que Emily ou Charlotte recordassem, tampouco havia dito nada no café da manhã. Tinha um aspecto fantasmal, como se a morte da Sybilla lhe tivesse arrebatado toda a vitalidade. Charlotte havia dito que temia que pudesse desmaiar no funeral, tão abatido lhe parecia.

A anciã encarou William, mas ao ver sua expressão se conteve.

— Eu não sei se foi Emily - prosseguiu William. — O motivo do ciúmes que lhe adjudica também poderia valer para mim, embora em realidade não seja assim. A aventura do George com a Sybilla tinha sido meramente corriqueira e além disso chegava a seu fim, coisa que Emily e eu sabíamos. Você talvez não, claro que tampouco era teu assunto.   - Tomou um gole de água; tinha a voz rouca, como se lhe doesse a garganta. — E o outro motivo que apontava, que ela se houvesse engraçado por Jack, bom, embora seja bastante acreditável, Emily não teria sido muito menos a primeira conquista do Jack...

— William! - gritou Eustace, descarregando a mão sobre a mesa com a intenção de fazer muito ruído. — Esta conversa é de muito mau gosto. Todos estamos dispostos a deixar que te desafogue um pouco, mas isto é insuportável!

William olhou por sua vez com absoluto desprezo, brilhantes os olhos, a boca apertada com uma violenta emoção longo tempo contida.

— O gosto é uma coisa muito pessoal, pai. Muitas de suas conversas me parecem de tão mau gosto como algo que eu jamais teria podido dizer. Freqüentemente sua hipocrisia me é quase tão obscena como esses postais vulgares de mulheres nuas. Elas ao menos são sinceras.

Eustace bocejou, mas não conseguiu conter a ira. Era consciente de que Charlotte o observava, porque ela tinha adiantado um pé por debaixo da mesa para lhe dar no tornozelo. A ridícula cena no quarto de Sybilla não saia da memória. Eustace apertou os dentes e guardou silêncio.

— Mas eu não vejo motivo suficiente para um assassinato – prosseguiu William. — Ela teria podido conseguir ao Jack se o tivesse querido, e não há provas de que assim fosse. Enquanto que, em troca, se ele a tivesse querido a ela ou, para ser mais exato, tivesse querido o dinheiro do George, que ela vai herdar, então ele tinha uma excelente razão para assassiná-lo.

Emily estava rígida, e muito consciente de que tinha Jack Radley a seu lado, de que se havia posto rígido em sua cadeira. Mas do que? De medo, de culpa, de vergonha? Às vezes penduravam a gente inocente. Ela mesma tinha medo disso; por que não ia ter ele?

Mas William não tinha terminado.

— Eu me inclino por papai - continuou. — Ele tinha excelentes motivos, dos quais, se por acaso fosse inocente, não penso falar.

Produziu-se um silêncio absoluto. Vespasia deixou seus talheres sobre a mesa, levou delicadamente o guardanapo aos lábios e depois o deixou a um lado. Olhou ao William e depois à toalha, mas não disse nada.

Eustace estava muito pálido e Charlotte pôde ver que tinha os punhos apertados sobre o regaço. As veias de seu pescoço pulsavam, mas tampouco ele disse nada.

Tassie cobriu o rosto. A senhora March estava mais que avermelhada, mas por alguma razão temia romper o silêncio. Talvez não tivesse palavras para expressar o que sentia.

Jack Radley parecia abatido e desconcertado; era a primeira vez que Charlotte via seu semblante totalmente descomposto. Embora se dava conta de que Jack podia ser o culpado - não só de dois assassinatos mas também de ter abusado dos sentimentos de uma mulher e de pretender seguir abusando deles no futuro, simpatizava muito com ele para vê-lo como uma vítima. Agora, sob seu sorriso encantador e seus olhos bonitos, havia algo real.

Emily se limitou a olhar à frente.

Finalmente foi o lacaio quem rompeu o silêncio ao trazer o seguinte prato, e o jantar prosseguiu com um prato de cordeiro que ninguém provou e uma conversa corriqueira que ninguém pôde recordar terminada o jantar.

Depois das sobremesas Emily se desculpou e foi sentar se no banco rústico do jardim, não porque o dia fosse agradável – na realidade estava nublado e as nuvens prometiam chuva - mas sim porque lhe pareceu a melhor maneira de estar sozinha, e nesse momento não desejava a companhia de ninguém.

O funeral era no dia seguinte; Emily ficava porque queria estar presente. Com a Sybilla morta, todo o ódio de Emily por ela se desvaneceu. A absurda aventura com o George tinha ficado relegada a um assunto de menor importância. Ele se tinha arrependido. E como lhe tinham privado da oportunidade de emendá-lo, ela mesma se ocuparia de apagar isso da memória em favor das muitas coisas boas que tinham compartilhado juntos. Se permitisse que Sybilla lhe privasse de tudo aquilo, então era tola e merecia perdê-lo.

Não tinha visto Charlotte a sós desde a chegada do Pitt pela manhã, excetuando o momento em que tinham se encontrado a caminho da sala de jantar. Mas tinha sido suficiente para saber que ele seguia a duas velas sobre o assassino do George ou o possível motivo. Presumivelmente era a mesma pessoa que depois tinha matado a Sybilla. Ela devia saber algo que o assassino não podia permitir que chegasse a revelar.

Isso não excluía a ninguém. Sybilla era uma mulher inteligente e observadora.

Podia ter compreendido alguma coisa, uma frase talvez, que outros tinham passado por cima, ou possivelmente George lhe tinha explicado algo.

O que podia saber George? Emily permaneceu encurvada ante o vento úmido que começava a aumentar, agasalhando-se em seu xale e repassando todas as possibilidades, da mais absurda a mais horripilante. No final lhe continuava ficando somente Jack Radley e sua própria cumplicidade, ou a tentativa do William de acusar ao Eustace (e Emily se via forçada a admitir que isso era mais produto do ódio que do bom senso).

Não ouviu aproximar-se Jack Radley, e só notou sua presença quando já o tinha justo ao lado. Era a última pessoa com quem teria querido conversar ou compartilhar a solidão. Embrulhou-se ainda mais em seu xale e tiritou.

— Estava pensando em voltar para dentro - disse apressadamente. — Aqui não se está muito bem. Acho que não demorará para chover.

— Ainda não. - Jack se sentou a seu lado negando-se a aceitar seu rechaço. — Mas está fresco – despojou-se da jaqueta e a pôs suavemente sobre os ombros dela; ainda conservava o calor de seu corpo. Lhe pareceu que sua mão se atrasava um segundo mais do que o necessário. Ia protestar mas se absteve, consciente de que podia ficar em evidência. Ao fim e ao cabo, estavam à vista da casa e ela não tinha vontade de voltar a entrar.

   O almoço tinha sido horroroso, ninguém acreditaria que ela desejava continuar a conversa. E ele a tinha deixado sem a desculpa do frio. Jack interrompeu seus pensamentos.

— Emily, a polícia sabe algo sobre o assassino do George? Ou só estava desafiando à velha?

Por que o perguntava? Emily não queria sentir-se à vontade com ele; sentia-se ditosa em sua companhia mas tinha medo de que a sensação fosse enganosa.

— Não sei - disse ela. — Não vi Thomas esta manhã e com o Charlotte só falei um momento quando íamos almoçar. Não tenho nem idéia. – Forçou-se a olhá-lo.

Jack parecia muito preocupado. Era por ela ou por ele?

— O que queria dizer Eustace? - perguntou com obrigação. — Pense um pouco, Emily! Eu sei que não fui eu, e me nego a pensar que foi você. Tem que ser um deles! Me deixe ajudá-la, por favor. Trate de pensar. Me diga o que quis dizer William.

Emily estava paralisada. Jack parecia falar a sério, mas tinha vivido de seus encantos durante anos; era um soberbo ator quando lhe convinha. E agora podia tratar-se de um caso de sobrevivência. Podiam pendurá-lo, se ele fosse o assassino.

Que lhe fosse simpático não importava. Havia gente extremamente virtuosa que também podia ser muito aborrecida, e por mais admiração que despertassem procurava-se evitar sua companhia. E a pessoa mais cruel podia ser também muito divertida... até que saía ao exterior sua alma horrível.

Jack seguia falando e olhando-a nos olhos. Ela podia imitá-lo para equilibrar a balança? Sempre tinha tido bom senso, muito mais que Charlotte. E era melhor atriz, mais mão direita na arte de dissimular seus sentimentos.

Olhou fixamente Jack Radley.

— Não sei. Eu acredito que odeia ao Eustace e que gostaria que tivesse sido ele.

— Então só fica a anciã March - disse Jack em voz baixa. — A menos que pense que Tassie o fez, ou tia Vespasia. E já sei que não.

Emily sabia o que estava pensando agora; bastava dar um passo mais em seu raciocínio. Ou era Jack ou era a própria Emily. Ela sabia que não tinha matado ao George nem a Sybilla, mas cada vez tinha mais medo de que o tivesse feito ele. Pior ainda, dava-lhe medo que ele tivesse intenção de seguir cortejando-a.

Jack lhe pegou as mãos. Não era rude, mas sim mais forte que ela, e estava claro que não as queria soltar. —Pelo amor de Deus, Emily, pense! Há algo na família March que não sabemos, algo o bastante comprometido ou vergonhoso para provocar um assassinato, e se não averiguarmos o que é, pode ser que a você ou eu nos mandem à forca!

Ela queria gritar que se calasse, mas sabia que tinha razão. Ceder à histeria teria sido uma estupidez, inclusive fatal. Charlotte não tinha conseguido nada salvo desvelar o segredo de Tassie, que afinal tinha resultado irrelevante. Emily teria que salvar-se sozinha. Se Jack Radley era inocente, juntos podiam descobrir algo. Se era culpado e lhe seguia o jogo, talvez poderia fazer que se traísse de algum jeito. E isso podia significar a salvação.

— Tem toda a razão - disse muito séria. — Temos que pensar. Contarei-lhe tudo o que sei e logo você a mim. Pode que entre os dois possamos deduzir onde está a verdade.

Ele sorriu levemente, sem conseguir acreditar. Emily fez um esforço por dissimular o medo que sentia, não só a ominosa conscientiza do perigo ante a justiça e as críticas da boa sociedade, mas à solidão interior e ao ardor que lhe oferecia, e que tão fácil teria sido aceitar. Tomara tivesse podido esmagar a venenosa suspeita que a angustiava. Teve que recordar-se a si mesma que ele continuava sendo o primeiro suspeito. A idéia lhe doeu mais do que esperava.

—Tassie sai de noite sozinha, assiste a partos nos bairros pobres — disse bruscamente.

Se esperava surpreender ao Jack o conseguiu claramente. Ele ficou olhando-a com uma mescla de incredulidade, temor, admiração e, por último, puro júbilo.

— É estupendo! Mas como diabos se inteirou?

— Charlotte a seguiu.

Jack suspirou e fechou os olhos.

— Já sei - disse Emily em voz baixa. — Suponho que Thomas ficou furioso.

— Furioso, diz! Não lhe parece um eufemismo?

Ela ficou na defensiva.

— Pois se Charlotte não a tivesse seguido, continuaríamos pensando que foi Tassie! Uma noite a viu subir a escada com manchas de sangue nas mãos e no vestido! O que ia fazer, aceitá-lo como um mistério? Ela sabe que eu não matei a ninguém...

— Emily! - Jack tomou as mãos.

— ... e se não averiguarmos quem é o culpado, poderiam me prender, me colocar no cárcere...

— Basta, Emily!

—... e me julgar, e me enforcar! - concluiu ela. Estava tremendo apesar do contato de suas mãos. — Não seria a primeira vez que penduram a um inocente. - As lembranças se amontoavam em sua memória. — Charlotte sabe, e eu também!

Foi um consolo verbalizar aquele horror, tirar o da escuridão de sua mente e compartilhá-lo com Jack.

— Sei - disse ele. — Mas a você não acontecerá. Charlotte não o permitiria, e eu tampouco. Tem que ser alguém desta casa. Vespasia é bastante valente para fazer uma coisa assim, se acreditasse necessário. Mas jamais teria matado ao George, e não acredito que tivesse tido a força suficiente para matar a Sybilla, ao menos tal como ocorreu. Sybilla era uma moça e sadia... - Titubeou ao recordá-la.

— Sei - disse ela sem retirar as mãos. — E tia Vespasia já não é jovem nem forte...

Ele sorriu sem entusiasmo.

— Tomara houvesse alguma razão para pensar que pôde fazê-lo a anciã March - disse. — Pesa o dobro que Vespasia. Ela sim teria podido.

Emily olhou as mãos de ambos.

— Mas com que objetivo? - disse desesperançada, lutando contra sua raiva e sua frustração. Tem que haver um motivo.

— Não sei - reconheceu ele. — A menos que George soubesse algo dela.

— Como o que?

Jack meneou a cabeça.

— Algo sobre os March? A anciã está muito orgulhosa de sua família. Que me costurem se souber por que. Têm dinheiro, sim, mas nenhuma cultura. Tudo lhes vem do comércio. - Riu de si mesmo. — E não nego que eu gostaria de ter um beliscão! Minha mãe era uma do Bohun, sua família se remonta à época do Guilherme o Conquistador. Mas com isso não se come, e muito menos se administra uma casa.

A mente do Emily começou a registrar pensamentos inesperados. Tinha matado ele George esperando casar-se com ela pela fortuna dos Ashworth? Mas e Tassie? Qualquer homem com bom senso teria escolhido esse matrimônio; era muito mais seguro, e ele era o candidato oficial da família. Jack não sabia sobre Mungo Farei. Ou sim? Surpreendia-lhe a notícia das excursões noturnas de Tassie tanto como aparentava? Se Charlotte a tinha seguido, também podia havê-lo feito ele; o suficiente para perceber que Tassie não se casaria com ninguém que não fosse o padre escocês. E se a própria Tassie o havia dito? Era sincera até esse ponto. Podia ter preferido não enganá-lo com falsas esperanças não já de amor mas sim de dinheiro.

Emily estremeceu. Tinha vontade de olhá-lo; certamente ele conservava certa capacidade de julgamento. Mas ao mesmo tempo lhe dava pânico o que ia ver, e o que ela mesma podia delatar. Mas não seria capaz de pensar em outra coisa enquanto não solucionassem aquilo. Era como uma vertigem, estar ao bordo de um balcão alto e ter o desejo compulsivo de olhar abaixo, sentir a atração do vazio.

Emily levantou a cabeça e viu que ele a olhava preocupado; não viu em seus olhos nenhum indício de engano. Isso não solucionava nada. Se tivesse visto algo horrível em seu olhar teria podido acreditar o pior dele e matar assim a esperança de... do que? Negou-se a traduzi-lo em palavras. Era muito cedo. Mas a idéia seguia apressando-a, era algo que a impulsionava a seguir adiante, como a esperança de um aposento cálido ao termo de uma viagem no inverno.

— Emily?

Ela voltou a si. Estavam falando da senhora March.

— Talvez fez algo escandaloso em sua juventude - sugeriu. — Ou pode ser que a seu mando. Possivelmente deveríamos nos informar de como conseguiram os March todo seu dinheiro, poderia haver algo que terminasse de um colchão com suas aspirações à nobreza. Possivelmente George estava à corrente. depois de tudo... - tragou saliva — o veneno era a medicina da senhora March.

De repente a lembrança da morte se fez aguda e fria, fisicamente dolorosa, e seus olhos se encheram de lágrimas. Apertou com força a mão do Jack, mas ele não a retirou. Rodeou-a com um braço e lhe roçou o cabelo com os lábios, sussurrando palavras ininteligíveis mas cuja suavidade ela notou com um alívio que fez que o pranto fosse mais uma liberação, um desfazer os nós de dor e de medo que a atendiam.

Deu-se conta de que desejava a resolução do crime quase tanto por ela como por ele. Ansiava saber que ele não estava comprometido.

Também Charlotte se alegrou de estar sozinha, e passou um momento no quarto de vestir que lhe servia de dormitório repetindo-se mentalmente tudo o que tinha averiguado desde a morte de George até a partida do Pitt aquela mesma manhã.

Eram três e meia quando se dirigiu abaixo com a faísca de uma idéia em que não queria acreditar. Era triste e horrível, mas dava resposta a todas as contradições.

— Como se atreve a dizer estas coisas diante de todos! - Era Eustace, muito zangado. Estava de costas à porta, e mais à frente viu o William. — Posso lhe perdoar muitas coisas tendo em conta a situação que atravessa - prosseguiu Eustace. — Mas essa insinuação é intolerável. foi como dizer que eu era o culpado!

— Parecia-lhe muito bem que Emily ou Jack carregassem com a culpa – indicou William.

— Isso é muito diferente. Eles não são da família.

— Por Deus, e isso o que tem que ver? - inquiriu William furioso.

— Absolutamente tudo! - Eustace estava muito zangado e sua voz tinha um tom horrível, como se seus escuros pensamentos estivessem muito perto da frágil superfície da boa educação que os cobria. — Traiu à família diante de desconhecidos! Sugeriu que havia algo vergonhoso e secreto que outros ignoravam. Não sabe que a mulher desse polícial é uma intrometida? Essa mal pensada não descansará até que descubra ou invente algo que concorde com seus loucos desvarios! Sabe Deus o escândalo que pode armar!

William retrocedeu um passo; seu rosto estava contorcido de pena e desprezo.

—Sim, terá que ser muito mal pensada para chegar às curvas de sua alma, se é que essa palavra não lhe é longa. Não seria mais adequado chamá-lo tripa?

— Não há nada mau em ter estômago - respondeu Eustace com mordacidade. — Às vezes penso que se você tivesse mais estômago e menos romantismo, seria um pouco mais homem. Passa o dia sujando pincéis e sonhando em postas de sol como uma moça apaixonada. Onde está sua coragem, me diga? Onde está seu coração, sua dignidade?

William não respondeu. Charlotte, que estava atrás do Eustace, pôde ver a quase mortal expressão do William e notar seu sofrimento.

— Meu Deus! - gritou Eustace com asco. — Não estranho que Sybilla flertasse com o George Ashworth! Ao menos ele tinha algo debaixo da calça, além de suas pernas!

William fez uma careta de repulsão, e por um momento Charlotte pensou que Eustace lhe tinha batido. Sentia-se tão mal por ele que teve náuseas; as mãos lhe doíam de tanto apertá-las. Mas permaneceu escondida, à escuta, prevendo algo terrível.

A resposta tardia do William foi calma e prenhe de ironia.

— E você me pede que seja discreto diante da senhora Pitt? Pai, não tem senso do ridículo, e menos do grotesco.

— É grotesco esperar de você um pouco de responsabilidade? De lealdade familiar? Nos deve isso, William.

— Eu não te devo nada salvo minha existência! - resmungou William. — E isso porque queria um filho varão para satisfazer sua vaidade, nada mais. Pretende perpetuar o sobrenome March até a eternidade, produzir uma série de pequenos Eustace March, essa é sua idéia da imortalidade. Para você se reduziria à carne, não seria uma criação, mas uma incessante reprodução de corpos!

— Ah! - exclamou Eustace com impetuoso escárnio. — Vejo que com você perdi minha oportunidade. Em doze anos de casado não foi capaz de gerar um filho. Muito tarde! Se tivesse jogado menos com as pinturas e mais no quarto, talvez se teria comportado mais como homem, e toda esta maldita tragédia não teria acontecido. George e Sybilla estariam vivos e nós não teríamos à polícia em casa.

Na estufa reinava o silêncio.

Charlotte compreendeu a trágica verdade. A explicação era tão clara como a crua luz de primeira hora da manhã, essa luz que mostra todas as fraquezas, todos os defeitos. Sem dar tempo de pensar ou calcular as conseqüências, pegou um vaso de porcelana da mesinha mais próxima e o jogou no chão de madeira, fazendo-o em pedacinhos. Correu para o gabinete, cruzou a sala de janar e saiu ao saguão onde estava instalado o aparelho telefônico.

Levantou-o e esmurrou a alavanca. Não estava habituada a usá-lo e ignorava seu exato funcionamento. Seus ouvidos estavam pendentes de que chegasse Eustace.

Uma voz feminina soou ao outro lado do aparelho.

—Sim! - disse Charlotte com obrigação. Me ponha com a polícia. Quero falar com o inspetor Pitt. Por favor!

— Refere-se à delegacia de polícia local, senhora?

— Sim! Sim, por favor!

— Não pendure.

Pareceu-lhe que transcorria um século de ruídos e interferências, e enquanto ela seguia pendente da porta da sala de jantar e do menor som que indicasse uma porta abrindo-se ou o som de um sapato sobre o tapete. Ao final ouviu uma voz de homem ao extremo do fio telefônico.

— Sim, senhora. Sinto muito. O inspetor Pitt não está. Quer que lhe dê alguma mensagem quando voltar? Posso ajudá-la em algo?

Não lhe tinha ocorrido que Pitt não estivesse na delegacia de polícia. Sentiu-se indefesa.

— Continua aí?

— Onde está o inspetor? - Começava a sentir pânico. Era uma estupidez, mas lhe parecia que ela sozinha não podia fazer nada.

— Não posso dizer-lhe com exatidão, senhora, mas partiu faz uns dez minutos. Posso ajudá-la em algo?

— Não. - Tinha estado tão segura de lhe achar que a idéia de ter que arrumar-se só lhe foi horrível. Não, obrigada. - E com mão trêmula, devolveu o aparelho à forquilha.

Charlotte não tinha nenhuma prova, unicamente a certeza. Mas agora que sabia, tentaria conseguir alguma. O médico da polícia... Por isso tinha ido Sybilla a Clarabelle Mapes: não para desfazer-se de um bebê mas para comprar o que William não poderia lhe dar nunca, para sossegar os cruéis falatórios da família, seu paternalismo, a insaciável e desconsiderada vaidade dinástica. Charlotte sentiu uma pena imensa por ela, por sua solidão, sua privação, sua sensação de rechaço. Não era de estranhar que Sybilla tivesse paquerado com outros, que tivesse acudido ao George. Era por isso que George tinha perdido a vida? Não porque lhe tivesse feito o amor ou conquistado seu afeto, mas sim porque na estupidez de um momento, pela necessidade de justificar-se a si mesmo, tinha revelado ao generoso e indiscreto George aquele segredo muito angustiante inclusive para pensar, e menos ainda para expressar em voz alta e que outros soubessem, tivessem piedade dela, fizessem brincadeiras obscenas e humilhantes a custa dela. Sempre havia cotoveladas e brincadeiras, a descarada dignidade exibida com risinhos dissimulados. Para homens como Eustace a virilidade era mais que um fato físico, era uma demonstração de existência, de poderio e de valia na vida.

E William a tinha querido - isso sabia Charlotte por algo mais que as cartas da nécessaire - com um amor imensamente mais valioso que o que a mente estreita do Eustace nunca poderia conceber. Mas Sybilla tinha posto em perigo a confiança que William tinha em si mesmo, o respeito que todo homem deve ter para sobreviver, não interiormente (ele tinha aprendido a suportar isso) a não ser em sociedade e, o pior de tudo, entre a família March. Eustace estava já muito perto da verdade, raivoso e insistente, sempre cravando ao William. O que faria se chegasse a saber? Continuar insistindo até que não ficasse indício de dignidade, nada que não violassem os constantes comentários, olhares luxuriosos, a certeza de sua superioridade.

E por isso Sybilla tinha morrido estrangulada com seu próprio cabelo antes que pudesse enganá-lo outra vez, possivelmente com Jack.

William poderia ter chegado a aceitar um filho comprado, talvez inclusive melhor que um concebido por outro homem. Mas o que não podia aceitar era a vergonha.

Charlotte estava ainda no saguão pensando o que podia fazer. Eustace e William deviam tê-la visto; ela tinha quebrado o vaso justamente para que soubessem que estava ali e deixassem de açular-se daquele modo. Sabiam o que que ela tinha ouvido? Ou estavam tão absortos em ferir-se mutuamente que sua momentânea interrupção foi algo que esqueceram tão logo ela se afastou? Sem saber o que pretendia salvo possivelmente parar os pés ao Eustace, Charlotte retrocedeu para a sala de jantar deixando atrás a mesa iluminada pelo sol, e depois de cruzar o gabinete - todo verdor e cetim pálido refletindo a luz - chegou até a entrada da estufa. Agora reinava o silêncio e não havia sinais do Eustace nem do William. As cristaleiras estavam mais abertas que antes, e o aroma de terra úmida chegava até o gabinete.

Foi para o caminho que se abria entre as trepadeiras. Não tinha por que ter vindo; não se podia fazer outra coisa que esperar para falar com Pitt, quando o localizasse.

Se não fosse pelo medo que podia pender sobre Emily para sempre, teria preferido não dizer nada a ninguém. Estava muito longe de sentir-se um instrumento da justiça.

A camélia estava repleta de imaculados casulos como perfeitos roserais. Não gostava das camélias. Preferia os lírios da Índia; irregulares e assimétricos. A condensação gotejava sobre o lago. Deveriam ter aberto as janelas, apesar do dia ser cinza.

Chegou ao espaço habilitado ao fundo onde William tinha seu estúdio e se deteve. Sentiu vontade de chorar, mas estava cansada e fria por dentro.

Havia dois cavaletes montados. Em um estava o quadro já terminado do jardim primaveril cheio de encantos sutis e insuspeitada crueldade. O outro era um retrato da Sybilla, realista, sem floreios, mas dotado de uma ternura que conseguia desvelar nela uma beleza que poucos tinham percebido em vida. Diante dos cavaletes, e enrolado de um modo estranho sobre o chão de pedra, jazia William. A espátula lhe tinha escorrido da mão, e a folha da mesma estava tinta de sangue a uns centímetros da ferida que tinha na garganta. Graças aos conhecimentos que como artista possuía da anatomia, tinha cerceado a veia de um único e limpo movimento. Tinha compreendido perfeitamente a ruptura do vaso e tinha economizado ao Charlotte um último e horrível enfrentamento.

Ela ficou olhando-o. Quis aproximar-se para endireitá-lo - como se isso tivesse alguma importância agora-, mas sabia que não devia tocar em nada. Permaneceu ali em silêncio, ouvindo gotejar a água sobre as folhas e o ruído de uma flor ao cair, murchas suas pétalas.

Na hora deu meia volta e caminhou devagar sob as trepadeiras, cruzou as cristaleiras e viu Eustace que vinha da sala de jantar. Com uma violência que a surpreendeu, o longo atalho para a tragédia surgiu claramente em sua cabeça; os anos de exigências, de expectativas, o despotismo sutil. Sua fúria explodiu de repente.

— William está morto - disse com aspereza. — Sinto muito. Sinto seriamente. Apreciava-o, provavelmente muito mais que a você. - Contemplou o rosto boquiaberto do Eustace. — Se suicidou. Não tinha outro futuro que não o cárcere e o cadafalso. - A voz se engasgava, mas não se importou que Eustace presenciasse a tumultuosa expressão de seus sentimentos.

— Não entendo o que me diz! - exclamou ele desesperado. — Morto? Por que? O que aconteceu? - Avançou para ela, cambaleando um pouco. — Não fique aí parada, faça algo! Ajude-o! Não pode estar morto!

Impediu-lhe o passo.

—Está - repetiu. — É tão estúpido que ainda não o entende? - O nó da garganta aumentava. Queria que Eustace soubesse o dano que tinha causado, que o assimilasse.

Ele a olhou como se tivesse recebido um bofetão.

— Suicidou-se? - repetiu. — Você é uma histérica; isso é impossível!

— Equivoca—se. Não imagina por que? - Charlotte estava tremendo.

— Eu? Como vou saber? - Estava exangue, a dor da primeira aceitação começava a delatar-se em seu olhar.

— Porque foi você quem o impulsionou a fazê-lo. - Agora falava mais devagar, como uma menina obstinada.— Tratando de convertê-lo no que não era, ou não podia ser, e ignorando sua verdadeira personalidade. Você, com sua obsessão pela família, com seu orgulho, sua vulgaridade, seu... - Calou.

Eustace estava perplexo.

— Não entendo...

Ela fechou os olhos, enfastiada.

— Suponho que não. Mas algum dia entenderá.

Eustace se sentou na cadeira mais próxima, encolhido como se as pernas lhe tivessem falhado de repente.

— William? - repetiu em voz muito baixa. — William matou ao George? ... matou também Sybilla?

Charlotte não pôde conter as lágrimas. Viu Vespasia à entrada da sala de jantar, e mais à frente, amável e desalinhada, a figura de Pitt.

Charlotte se decidiu.

— Achava que eram amantes - disse para todos os presentes, notando que a mentira lhe travava na língua. — Se equivocou, mas já era muito tarde.

Eustace estava olhando-os e começava a compreender o que Charlotte estava fazendo, inclusive o porquê. Era um mundo que ele não tinha imaginado, e assustou-o sua própria estupidez.

Na soleira Pitt rodeou com o braço a Vespasia para sustentá-la, mas ao mesmo tempo olhou ao Charlotte. Sorriu-lhe com o rosto embaciado de piedade.

— Bem - disse. — Nós já não podemos fazer nada mais.

— Obrigada - sussurrou Charlotte. — Obrigada, Thomas. 

 

                                                                                                    Anne Perry

 

 

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