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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENVIADA PELO CÉU / Izabella Mancini
ENVIADA PELO CÉU / Izabella Mancini

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Pedro Pelegrini é um compositor de trinta e um anos que teve a vida destruída por uma tragédia que tirou a vida de seus filhos. Culpando-se pela morte dos garotos, afundou-se em álcool, drogas e perdeu para a depressão. Após ser detido por desacato a autoridade e desordem, sua condição para se livrar da prisão seria se internar durante alguns meses em um hospital religioso que tratava a mudança de caráter e superação de traumas. São nessas condições em que Pedro conhece Vivianne, uma jovem noviça que mudará completamente sua visão de mundo e lhe apresentará o verdadeiro significado do amor.
Vivianne Grace é uma noviça que trabalha no Hospital da Graça e segue a vida religiosa por imposição dos pais. Formada em psicologia e uma das melhores profissionais que atende na ala de auxílio para depressivos e viciados, a moça é desafiada pelo destino ao se deparar com o caso de Pedro Pelegrini, um homem no qual ninguém mais depositava fé. Decidida a ajudá-lo, Vivianne lutará contra seus próprios sentimentos para não deixar que aquele enigmático e ferido homem roube seu coração.
Duas vidas distintas. Um amor proibido . Uma história emocionante e regada a tentações. Vivianne e Pedro descobrirão juntos que o amor floresce do improvável.

 


 


— Estou prestes a desistir de você, Senhor Pelegrini.

A madre superiora falou de maneira cansada e com os olhos escuros fixos no belo rosto do rapaz forte a sua frente. Por trás das lentes grossas de seus óculos era possível enxergar um semblante repleto de pena e constrangimento. Geralmente eram essas as impressões transmitidas por Pedro aos que o cercavam e nada mais podia surpreendê-lo.

— Pois então a senhora demorou algum tempo, madre. Todo mundo ao meu redor já o fez, inclusive eu — Respondeu melhor se acomodando na desconfortável cadeira a frente da enorme mesa de madeira.

Ainda era assustador para Pedro saber que logo ele, um homem que já foi tão cheio de si e seguro da vida, se encontrava aos cuidados de um hospital psiquiátrico e religioso.

— Dificilmente alguém sai deste hospital sem ser curado e não pretendo que você seja um dos poucos. Não faz parte de meu objetivo perder pacientes, principalmente se tratando de um rapaz tão jovem, bonito e com um futuro pela frente — Soava segura em suas palavras e não se amedrontou com o olhar fulminante que o rapaz lhe lançou através do espaço.

— Futuro? — Ironizou enquanto ela o observava como se o desafiasse — Realmente a senhora vê algum tipo de futuro para mim? Só pode ser brincadeira...

Cobriu o rosto com uma das mãos para evitar discutir e seguiu sentado.

— O senhor é jovem, tem apenas trinta e um anos. A vida está a sua disposição, basta que se reencontre com seu verdadeiro eu e coloque a cabeça no lugar — Docemente explicava, mas Pedro se recusava a encará-la — Se todos ao seu redor lhe abandonaram, saiba que eu não. Acredito em sua inocência, senhor Pelegrini, por isso tratei de aceitar seu caso quando a justiça me propôs a sua ficha. Não acredito que nada do que houve realmente tenha sido sua culpa.

Em uma atitude descontrolada o rapaz bateu a mão sobre a mesa e a madre se calou. Era possível ver sua respiração aumentando pela maneira como seu peito se movia debaixo da batina religiosa padrão para todas as freiras do local. O crucifixo preso em seu peito se movimentava com o mesmo ritmo acelerado.

— Não pense que lhe agradeço pela gentileza, madre. A senhora pode pensar que salvou minha vida de um destino cruel me livrando de alguns meses na cadeia, mas o que fez foi me afundar ainda mais no poço que cavei. Para mim é uma tortura ficar preso neste lugar enquanto médicas e freiras entram em meu quarto toda manhã repetindo coisas sobre o dia em que matei meus filhos! — Esbravejou as palavras, mas a madre não demonstrou sentir medo.

Pedro demonstrava toda sua dor enquanto deixava escapar palavras nervosas e há muito tempo escondidas em seu coração. O pesar de sua alma podia sufocar a madre e quem quer que as ouvisse, por isso a mulher o encarava de volta com ainda mais pena e desolamento.

— O senhor não matou seus filhos, senhor Pelegrini! É isso que precisa compreender de uma vez por todas! Tudo não passou de um...

— Acidente? — Sorriu sem humor e ela suspirou — É o que todos me dizem o tempo todo, mas ninguém é capaz de compreender verdadeiramente o que se passa aqui — Apontou para sua própria cabeça — Muito menos aqui! — Pousou a mão fechada em punho sobre o coração.

— O senhor acha que bebendo, usando entorpecentes e causando transtornos em locais públicos irá conseguir fazer alguém compreendê-lo? — Travou o maxilar quando ela relembrou o motivo da pena que cumpria ali dentro. Os motivos pelos quais ele se encontrava interditado em uma clínica para reabilitação de pessoas traumatizadas eram vergonhosos e traumáticos para Pedro, mas não o suficiente para fazê-lo esquecer dos problemas reais de sua vida — O senhor poderia estar em uma prisão agora se seu advogado não fosse bom o suficiente para te livrar das denúncias de desacato à autoridade, perturbação da paz e tantas outras besteiras que o senhor cometeu após o acidente.

— Não pedi para que ele fizesse isso — Abaixou o olhar para lhe lançar a resposta.

Sua vontade, de fato, sempre foi morrer.

Desde o acidente com as crianças nada mais importava para Pedro além de tirar aquela dor que consumia sua alma dia após dia. Nada era capaz de o fazer feliz, mesmo que ninguém o tentasse.

— Não pediu, mas está feito. Caiu em minhas mãos e nas mãos do hospital o seu tratamento e temos aqui muitas freiras dispostas a ajudá-lo.

— Todas até agora não fizeram nada que não fosse falar de Deus — Deu de ombros — Não sei por que perde seu tempo. Sabe muito bem qual minha idéia sobre isso.

— Já entendi que isso realmente não está funcionando. Todas minhas irmãs de caridade e os médicos do hospital que lhe tratam lavaram as mãos para o Senhor. Ninguém quer aceitar seu caso — Sorriu de lado e suspirou — É admirável sua vontade de lutar contra nós.

— É admirável que ainda estejamos tendo essa conversa... — Se colocou de pé — É ótimo que ninguém queira meu caso, pois tão pouco desejo ser ajudado por ninguém. A única coisa que desejo é voltar para minha casa e ficar lá trancado até meus últimos dias.

Ameaçou caminhar até a porta, mas a madre seguiu falando em alto e bom som na sala.

— Lamento frustrá-lo, mas o senhor não irá a lugar nenhum! — De costas para ela, Pedro tocou o curativo acima de sua sobrancelha. A cabeça doía por tanto esforço sob efeito dos calmantes que consumiu e tudo parecia girar ao redor — O senhor está sob a tutela do hospital pelos problemas psicológicos e sob a tutela do convento para sua mudança moral. Isso significa que enquanto eu e o diretor do hospital não autorizamos o senhor continuará aqui, caso contrário sua pena com a justiça pelas arruaças recentes serão reabertas.

Virou-se novamente em direção a ela e caminhou de volta até a mesa. Apoiou os braços na beira da mesma e a encarou profundamente. Seus olhos verdes fervilhavam em raiva.

— Todos já abriram mão de meu caso alegando que não posso me curar. O que mais a senhora quer para me dar alta deste lugar? — Falou entredentes e ela seguiu encarando sem qualquer nervosismo.

— Como eu disse, não estou disposta a desistir tão fácil e muito menos a soltar alguém tão desequilibrado emocionalmente em meio à sociedade. Ainda existe esperança para você — Pontuou calmamente.

— Esperança? — Sorriu novamente sem humor e acenou. A única coisa pior que o hospital seria uma cadeia, algo que realmente pesaria demasiadamente para ele naquele momento — Posso saber, afinal, qual é a grande solução?

— Tenho uma noviça recém-formada em psicologia e com muitos cursos extracurriculares voltados para traumas familiares — O rapaz rodou os olhos no rosto e se afundou ainda mais na cadeira — Trata-se de uma ótima profissional da área que já teve incríveis resultados com pacientes com históricos semelhantes aos seus. Demorei a convencê-la, mas por sorte a irmã Vivianne é uma pessoa de coração grande e muito caridosa. Ela está disposta a te ajudar.

— Irmã Vivianne... Certo. É mais uma daquelas que me obriga a rezar dez vezes o pai nosso? — Gargalhou baixinho e a madre se manteve séria — Prefiro os médicos. Eles ao menos receitam calmantes e com isso posso dormir.

— O doutor Lucas abandonou seu caso e agora o doutor José Luiz assumirá as medicações. Vivianne será encarregada das sessões psicológicas porque foi à única que se habilitou para isso — Explicou e ele franziu o cenho.

— A freira vai me ouvir? Isso não é papel do médico?

— Repito... Vivianne é uma psicóloga e irá se ocupar de seu caso. Nada impede uma freira de estudar e Vivianne é demasiadamente capaz. Apesar de incentivarmos os estudos após a realização dos votos, Vivianne conseguiu uma ótima nota no vestibular de uma das melhores faculdades do país e seu caso se tornou especial para mim, fazendo-me permitir que estudasse antes de se tornar freira. Formou-se com louvor em sua turma na faculdade religiosa para moças e agora serve ao nosso convento em parceria com o hospital. Certamente o senhor estará em ótimas mãos.

— Certo... E se ela também desistir? — Ergueu a sobrancelha e a madre suspirou em desaprovação.

— Se Vivianne desistir eu também desisto e o senhor volta para custódia da justiça. Eles decidirão o que fazer — Garantiu com o semblante triste — Pode ir agora, senhor Pelegrini. A partir de amanhã Vivianne irá começar com as visitas e espero que seja ao menos cordial.

— Nunca tratei mal as freiras, madre.

— De fato, mas nunca as tratou bem também — Colocou-se de pé e começou a caminhar em direção a porta — Seja gentil, senhor Pelegrini.

Irmã Vivianne. Uma freira psicóloga.

Ao que parece, tal nome significava para ele sua última esperança.

 

 

P edro dirigia em meio à chuva seguindo pela estrada nebulosa que os levava em direção a sua casa de campo no interior de São Paulo.

A estrada a frente era embaçada pela neblina e circundada por árvores e barrancos, certamente um cenário assustador, mas que já havia encarado diversas vezes quando Pietro e Stefano – seus filhos de seis anos – insistiam na ideia de viajar para o interior. A casa de campo era o local favorito deles, uma vez que era onde Pedro havia construído a incrível casa na árvore e também lar de Angel, uma cadelinha vira-lata que havia acabado de dar cria a dois lindos filhotes. A mesma vivia na casa aos cuidados da caseira Nina, uma simpática senhora que servia a Pedro desde que o mesmo era apenas um rapaz solteiro e aventureiro.

Os garotos estavam em polvorosa querendo conhecer os dois filhos de Angel e venceram o pai pelo cansaço para que pudessem viajar. Pedro não queria, mas Fernanda, sua esposa, insistiu para que fossem. O casamento de ambos já não era mais o mesmo e as coisas já haviam desandado, por isso Pedro estava ficando no estúdio da banda enquanto decidiam se dariam mesmo início ao divórcio. Tinha esperança de que Nanda considerasse reatar pelos garotos e esse era um motivo a mais para ir com ambos até a casa de campo. Talvez ficando sozinha ela pensasse melhor sobre a família e decidisse continuar.

Seu maior medo era ficar longe dos meninos. Não conseguia aceitar a ideia de ter seus filhos criados em outra casa sem o pai e muito menos pensar que Fernanda poderia arranjar outro cara para colocar em seu lugar.

De fato um dia foi apaixonado por ela, mas não escondiam de ninguém que apenas se casaram porque a moça – que era sua fã na época – ficara grávida em poucos meses de namoro. Foi um baque receber a notícia que seria pai aos vinte e cinco anos e no auge da carreira com a banda, principalmente ao descobrirem que seriam gêmeos idênticos. Por outro lado, seus pais haviam morrido quando era apenas um garoto e era a oportunidade que tinha de finalmente ter sua própria família. Sua única parente viva era a irmã mais nova, que levava uma vida ocupada como a dele.

Pediu Fernanda em casamento no mesmo dia em que receberam a notícia que teriam dois meninos. Com apenas vinte anos a moça já se tornava noiva e não demorou até os bebês nascerem e trazerem consigo muita confusão, mas certamente muita doçura.

— Será que os filhotes já estão andando papai? — Pietro questionou sentado ao banco de trás e preso em sua cadeira.

— Talvez sim querido... Eles já têm três semanas e cachorrinhos não costumam demorar a caminhar — Estreitava os olhos para enxergar melhor além do vidro embaçado.

— Nina disse que são dois machos. Um meu e o outro do Pietro — Stefano, sentado ao lado do irmão, jogava em seu tablet, mas ainda estava atento aos detalhes da conversa.

Os garotos seguiam conversando e Pedro intercalava olhares entre o movimento do para-brisa e os belos olhos esverdeados dos gêmeos, que seguiam falando sobre o par de filhotes.

— Você vai ficar morando muito tempo no estúdio papai? — Pietro questionou após um longo momento e Pedro rodou o rosto para encará-lo rapidamente.

— Claro que não, campeão. Papai voltará para casa em breve.

— Mamãe disse que vocês vão se separar... — Stefano completou em tom de voz tristonho — Porque isso? Vocês não se gostam mais?

— Ela disse isso? — Pego de surpresa pela colocação, Pedro apertou as mãos no volante em sinal de raiva.

Mesmo que quisesse se separar, Fernanda não tinha que colocar tais pensamentos em frente aos meninos.

— Sim... Disse que você vai embora. Não quero que você vá, papai — Stefano seguia falando enquanto Pietro apenas os observava.

— Não irei a lugar algum, garotos. Mesmo que a mãe de vocês não queira mais seguir ao meu lado o papai sempre estará com vocês. Sempre.

Garantiu observando-os pelo retrovisor. Os garotos se entreolharam e sorriram com certo alívio.

— Nós te amamos, papai — Stefano, sempre o porta-voz da dupla, completou com entusiasmo — Você é o melhor pai do mundo.

— Papai também ama vocês.

Tudo aconteceu em um segundo.

Stefano e Pietro levaram as pequenas mãos ao ombro do pai - sentado no banco do motorista - em sinal de carinho e Pedro se virou rapidamente para lhes lançar um sorriso. Em poucos instantes, assim que retornou a olhar para a estrada, deu de cara com as fortes luzes de um caminhão que vinha na contramão e acabara de invadir a faixa. Sua faixa. Sua frente.

Pedro rapidamente girou o volante em meio à tempestade visando jogar o carro para o outro lado quando outro veículo atrapalhado pelo caminhão colidiu violentamente contra a traseira de seu carro.

Uma colisão forte e fatal que lhe custou muito mais do que uma perna quebrada e uma concussão séria.

Uma colisão que lhe tomou da vida dos dois filhos.


Viviane olhou-se no grande espelho à sua frente de maneira ansiosa.

O dia amanheceu ensolarado, porém as nuvens no céu indicavam a eminente proximidade de uma tempestade ao final daquela tarde.

Como em toda manhã de estreia em seu trabalho, estava nervosa para iniciar o tratamento e, consequentemente, uma relação de amizade com seu novo paciente. Não era tão fácil como parecia começar a interação, principalmente tratando-se de um caso tão singular e especial para toda equipe do hospital onde trabalhava recentemente.

Ajeitou levemente o cabelo castanho alourado que descia por suas costas e passou a mão correndo por seu vestido acinzentado. O crucifixo preso a seu colar lhe recordava do novo posto de noviça e tudo começava a fazer sentido aos poucos. Ainda não se acostumara com o vestuário que a posição de noviça exigia que usasse.

Apesar de ter passado seus quase vinte e dois anos em colégios de freiras nunca havia sido obrigada a usar trajes tão formais e antiquados.

Tudo ainda era muito recente e a ideia de que em breve se tornaria de fato uma freira lhe assombrava os pensamentos. Sabia que uma hora se tornaria real e dali por diante seus sonhos de verdade viriam a baixo para dar lugar ao sonho de seus pais de vê-la casada com Deus.

Foi exatamente isso que Irma e Joseph Grace prometeram a Deus quando a mulher engravidou pela quinta vez... Se desta vez nascesse uma menina saudável iriam tratar de torná-la freira e comprometida com a vida religiosa. Esse era o singelo sonho de um casal de fazendeiros que já havia colocado quatro filhos no mundo, dois meninos e duas meninas. Os garotos tornaram-se homens de bem e as meninas... Foram mortas em um trágico acontecimento.

O nascimento de Vivianne – ou Anne para os mais íntimos – representava para eles um presente da parte de Deus e por isso decidiram o destino da garota por ela mesma.

— Está pronta irmã Vivianne? — Uma das freiras abriu a porta de seu alojamento no convento da Graça, onde morava desde se formar, e sorriu cordialmente — A madre superiora está te esperando no hospital. Ela acabou de ligar perguntando se você não estava prestes a desistir.

Vivianne sorriu e apanhou seu material de trabalho que descansava sobre a mesa. Caminhou até a porta e seguiu a irmã deixando para trás sua imagem no espelho. Não precisava de mais nenhum momento contemplando a ansiedade em seus olhos azuis.

— Certamente jamais deixaria a madre na mão, irmã. Seguirei o combinado até o fim — Garantiu enquanto desciam em direção à saída do convento, localizado no mesmo complexo que o Hospital da Graça, local onde trabalhava como psicóloga.

— Sabe do que se trata, não é mesmo? — Adentraram ao hospital movimentado pela porta da frente e seguiram até o elevador — Pedro Pelegrini é um caso perdido. Tudo o que ele mais deseja é se livrar de nós e voltar a beber e se drogar por aí.

— Acredita mesmo que é tudo o que ele realmente quer? — Questionou observando a irmã de canto de olho.

— É o que ele diz, afinal. Um homem que perdeu tudo não pode ter motivos para continuar a não ser que tenha Deus no coração... E já sabemos o que ele acha sobre Deus — Deu de ombros e falou com certo desdém — Todos desistiram dele, Vivianne.

— Todos não — Sem concordar com a postura da freira, Vivianne respirou profundamente ao parar em frente à sala onde a madre a aguardava com o novo paciente — A madre superiora ainda acredita nele e eu também.

— Neste caso te desejo sorte.

Foi tudo o que a irmã disse antes de abrir a porta vagarosamente para que a noviça adentrasse ao local.

Formou-se psicóloga a pouco mais de um ano e já havia pegado inúmeros casos no hospital, porém jamais algo tão desafiador. A madre avisou sobre os riscos que correria ao aceitar tratar o paciente problema da vez e Vivianne não teve medo de encarar o iminente desastre. Por tudo que ouviu sobre o tal homem, a única coisa que a sustentaria naquele caso era a fidelidade a Jane – a madre superiora – que a acolheu de braços abertos mesmo após saber de sua verdade... Nunca foi a vontade de Vivianne ser freira. Sua história se formou antes mesmo de seu nascimento, algo pequeno comparado a uma sina.

— Ora, veja! — Jane se colocou de pé com um sorriso aliviado quando Vivianne fechou a porta com cuidado e ainda equilibrando nos braços seus livros e pastas — Aqui está nossa salvadora...

Vivianne largou a maçaneta com um sorriso no rosto e se aproximou da mesa da madre em passos curtos. Seu vestido escuro lhe cobria desde o pescoço até as canelas e apenas o cabelo longo podia ser visto descendo por sua cintura. Observou que o paciente ali estava e comprimiu os lábios em uma careta ansiosa para a madre.

O homem se encontrava de costas para ela sentado na cadeira de madeira. Seus braços fortes podiam ser vistos parados ao lado do corpo e Vivianne logo reparou que algumas tatuagens eram desenhadas ali.

— Bom dia madre! — Cumprimentou quando a pequenina senhora caminhou até ela e lhe tomou a mão livre com alegria — É um prazer estar aqui.

— Você não sabe como me faz bem te ver, querida... — Tocou o rosto da moça com carinho — Sua presença ilumina a tudo e a todos como um raio de sol. Mesmo em meio há esse tempo tenebroso é como se o sol inundasse toda essa sala.

— Modéstia sua... — Sussurrou com o rosto corado por vergonha — Estou pronta para o trabalho.

Lançou um olhar ansioso para o homem ainda sentado de costas e sem fazer a mínima questão de cumprimentá-la. A madre suspirou e se aproximou dela ainda mais para sussurrar algumas palavras.

— Por favor, tenha paciência. É tudo que te peço! — Vivianne assentiu positivamente e lhe deu uma piscadela amigável. Jane se endireitou e pigarreou — Pedro, por favor. Quero lhe apresentar sua nova amiga, cuidadora e...

— Terapeuta — O homem disse com a voz ríspida e se colocou de pé, virando-se para as duas em uma atitude desdenhosa. Os olhos verdes de Pedro se cruzaram com os de Vivianne no instante em que as palavras voaram pelo recinto — A moça das sessões sobre psicologia social, uma coisa que há muito tempo não faz parte de meus interesses.

— Pedro, por favor! — Jane disse entredentes antes de suspirar — Pedro, esta é Vivianne Grace, uma excelente profissional da psicologia que trabalhará com você a partir de agora. Vivianne, este é Pedro, o paciente que te comentei...

— Paciente problema — Pedro pontuou observando Vivianne um tanto estática e desconcertada enquanto o encarava — É sério mesmo que se trata de uma freira? Essa moça me parece muito jovem para jogar a vida fora de tal maneira.

Vivianne não sabia ao certo como se comportar diante do novo paciente. Deveras tomou um grande susto ao se deparar com um homem jovem, tão jovem que deveria ter uma idade próxima a sua. Quando a madre comentou sobre a perda de dois filhos de sete anos certamente esperou encontrar alguém de meia idade e com alguns quilos a mais ou a menos devidos aos transtornos causados pelo álcool, mas definitivamente o senhor Pelegrini não se encaixava nos padrões que sua inocente mente estabeleceu.

Os olhos verdes do rapaz a observavam com certa curiosidade e muito deboche por trás de toda sua pose segura. O rosto jovem — mesmo tomado por olheiras, alguns arranhões de brigas e curativos — era incrivelmente vistoso. Pedro parecia ter acabado de sair de uma briga de valentões devido a seus músculos, ferimentos e tatuagens espalhadas pelos braços, algumas delas escapavam das extremidades da camisa, dando a entender que seu tórax também era desenhado por elas.

— Muito prazer senhor Pelegrini — Ignorando o comentário do rapaz, esticou a mão para cumprimentá-lo cordialmente — Espero que façamos um bom trabalho juntos.

Pedro hesitou em cumprimentá-la, mas esticou a mão a contragosto e apertou a dela. Vivianne sorriu amigavelmente e não pôde evitar a vermelhidão que se espalhou ainda mais em suas maçãs.

— Temos aqui um avanço! — A madre comemorou — Senhor Pelegrini não costuma cumprimentar muitas pessoas, irmã.

Vivianne sorriu e retirou a mão da de Pedro.

— Talvez porque as outras pessoas me tratem como um animal em cativeiro, certo? — Cruzou os braços em frente ao peito forte e continuou observando Vivianne.

E porque as outras pessoas não tinham um par de olhos azuis como aqueles.

— Seja educado com Vivianne — Jane tocou no braço de Pedro e ele se retesou — Eu já te disse que ela é...

— Minha única esperança, eu sei — Concluiu a frase olhando para o chão — Me disse também que se ela desistir eu saio desse lugar o mais breve possível.

— Se ela desistir sua conta será acertada com a justiça e não caberá mais a mim buscar sua reintegração social — Enfática, Jane o encarou — Acho melhor aceitar a ajuda de Vivianne ao invés de voltar para a cadeia.

— Não se preocupe senhor Pelegrini — O rapaz a encarou com certa desconfiança. Os olhos azuis da bela noviça se mantiveram firmes em contato com os dele — Não faz parte de minha natureza desistir.

— Isso é o que nós vamos ver — Piscou para a moça, trazendo um sorriso pequeno nos lábios.

Naquele momento, em frente a madre e após os cumprimentos, os olhos verdes de Pedro travavam uma batalha silenciosa contra si mesmo e os incríveis olhos azuis da mais bela noviça que já havia visto em toda sua vida.

Irmã Vivianne.

Sua única esperança, pela primeira vez, adquiria um rosto e um resquício de luz.

 


V ivianne desceu primeiro em direção à sala onde suas consultas com o senhor Pelegrini aconteceriam e jogou os materiais que carregava sobre a mesa com certa impaciência.

Não sabia o motivo, mas o olhar daquele homem a desconcertava de maneira desastrosa e incondicional. Nunca na vida se sentiu tão desassossegada na presença de alguém como havia acontecido ao estar frente a frente com Pedro Pelegrini.

Coçou os braços para ver se a sensação arrepiante saia de sua pele, mas era como se a simples lembrança do par de olhos verdes a assombrasse! Jamais sentiu algo assim e certamente se assustava com a constatação de que a presença de um homem a fazia perder o foco.

Definitivamente você não nasceu para ser freira!

A voz de Frida — sua paciente adolescente da ala de abuso sexual — ecoava em sua memória vagamente. A menina de cabelos cor de fogo sempre brincava com Vivianne ressaltando que sua vocação não era para a vida religiosa. O jeito desbocado da garota em nada combinava com sua história trágica de vida, mas certamente mostrava a Vivianne que ela, mais do que ninguém, estava cada vez mais segura de que se tornar freira talvez fosse o maior e mais trágico erro de sua vida.

No entanto, apesar de qualquer resquício de arrependimento que ameaçasse surgir em sua alma, não era possível desviar o caminho. Nada no mundo convenceria sua família de que outro caminho seria possível para ela, que foi prometida a vida religiosa muito antes do próprio nascimento.

Teria de superar os arrepios causados pelo olhar do senhor Pelegrini de uma vez por todas e seguir seu objetivo de conquistar ainda mais a confiança da madre superiora. Não podia arriscar. Não podia hesitar. Não podia, em hipótese alguma, desapontar aqueles que eram os mais importantes em sua vida... Seus pais.

— Toc-toc — Pedro entrou na sala sem avisar, apenas imitando o barulho e Vivianne virou-se repentinamente pela invasão daquele de dominava sua mente naquele momento. Derrubou o copo de água que acabara de pegar no bebedouro e suspirou profundamente quando se deparou com o par de olhos esverdeados em frente a ela. Pousou uma mão sobre o peito e apoiou-se na mesa ao lado — Nossa, acalme-se! Certamente não estou querendo te matar, apenas demonstrar minha imensa insatisfação em estar aqui.

Vivianne o encarou com o coração pulsando no peito e buscou palavras para começar a relação com sua paciente de maneira pacífica.

— Está tudo bem, você não vai me matar — Sorriu de canto e abaixou-se para apanhar o copo jogado a seus pés. Pedro seguiu parado em frente a ela sem demonstrar qualquer interesse em ser cordial, principalmente depois da frase dita em resposta.

— Você não vai me matar — O rapaz ironizou fuzilando-a com o olhar profundo — Certamente não são boas palavras para se dizer a alguém que tirou a vida dos próprios filhos.

O coração de Vivianne congelou ao ouvir tais palavras e mordeu os lábios pelo vacilo quando o rapaz lhe deu as costas para caminhar em direção ao divã que havia do outro lado da pequena sala.

— Mas você não matou seus filhos, Pelegrini — O acompanhou e sentou-se na cadeira ao lado do divã com uma prancheta em mãos.

— Pensei que a irmã houvesse estudado sobre minha história antes de aceitar essa babaquice toda — Deitou-se no divã e pousou as mãos sobre o peito em uma postura de descanso.

— Foi um acidente — Vivianne colocou seus óculos de grau em frente ao rosto.

— Não, não foi. Foi uma imprudência e quem deveria estar morto sou eu — Comentou com naturalidade e fechou os olhos — Agora, se me permite, vou tirar o cochilo merecido que a hora de terapia me contempla.

Vivianne o encarou no mesmo momento com certo nervosismo. Não podia acreditar que seu paciente estava se portando de tal maneira, principalmente depois do sucesso que havia pensado ter conseguido com sua ida voluntária até o divã. O rapaz parecia mesmo disposto a dormir naquele momento.

— Senhor Pelegrini, por favor. Apenas estou cumprimento meu trabalho!

— É o que todos dizem... — Suspirou bocejando — Eu não preciso de ajuda. Preciso sair daqui.

— Senhor Pelegrini, por favor. Não vamos nos comportar como dois imaturos ou duas crianças... Nós podemos resolver isso com paciência e entrosamento. Eu lhe garanto que posso te ajudar! — Insistiu com a voz calma.

Pedro não respondeu e nada fez para mudar sua postura. Seguia deitado lá como se dormisse e ignorando-a durante todo o momento.

Vivianne jamais se sentiu tão constrangida. Certamente sabia que seria difícil, mas encarar um paciente que se recusava a falar qualquer coisa, por mais simplória que fosse, era inusitado para ela. De certo se preparou para tal situação na faculdade e por isso suspirou profundamente.

— Já que o senhor se recusa a estabelecer um diálogo eu irei iniciar um monólogo sobre a conclusão que tirei de sua história em síntese, que tal? — Lançou as palavras como um desafio a ele — Sei que repudia conceitos pré—formados e talvez não goste dos que estabeleci sobre sua conduta.

Pedro nada disse.

Vivianne suspirou e voltou-se para a prancheta. De alguma forma esperava por aquilo e havia sido alertada, por isso levava algumas cartas em sua manga.

— Porque não me fala um pouco sobre qualquer outra coisa que não tenha a ver com o acidente? — Questionou tentando soar descontraída — Seria interessante conversar sobre algo diferente, não acha?

Os lábios de Pedro se contorceram de um sorriso como se a chamasse de patética e Vivianne enrubesceu de raiva. Sentia-se tola por estar diante de tal situação.

Não se deu por vencida, apesar de tudo, e falou sozinha por algum tempo buscando colocar em prática tudo aquilo que havia aprendido na faculdade durante anos.

Nada.

Absolutamente nada que dizia a Pedro parecia surtir qualquer efeito e nenhumas de suas perguntas eram respondidas, tão pouco as argumentações consideradas.

— Até breve irmã Vivianne — Foi tudo o que Pedro disse quando o sinal do despertador indicou o final da sessão.

Os olhos claros da moça o encararam de maneira nervosa, mas a noviça foi firme em sua resposta.

— Até breve senhor Pelegrini — Ele estava perto demais quando a moça abriu a porta e por alguns segundos espiou os olhos dela bem de perto — Está tudo bem?

As palavras dela quebraram o silêncio ensurdecedor que pairava no ambiente. O rapaz concordou ainda com os olhos presos ao rosto dela e sorriu de canto.

— Não sei se já te disseram isso, mas você tem o céu no olhar — Vivianne engoliu em seco diante de tais palavras.

— Não, nunca me disseram nada do tipo.

Pelegrini sorriu e coçou o machucado bem acima de seu olho esquerdo.

— Claro que não... Estou falando com uma freira — Usando de ironia, relembrou a si mesmo — Como pude me esquecer.

— Noviça — Ela pontuou ainda parada com as mãos na porta, do lado de dentro da sala.

— Existe diferença? — Questionou encarando-a um tanto confuso — Ah, claro. Você ainda não usa o negócio que esconde o cabelo e o vestido esquisito.

— Senhor Pelegrini, por favor — Repreendeu um tanto envergonhada.

Realmente o homem não tinha papas na língua e era atrevido como todos o citavam. Sua aparência cansada refletia-se também em seu filtro social. Não parecia muito adepto da ponderação com as palavras.

— Tudo bem, noviça Vivianne — Ergueu as mãos em sinal de desculpa — Me perdoe. É hora do meu remédio.

— Nos vemos amanhã. Espero que pense sobre as nossas sessões.

— É claro... — Ele começava a caminhar em direção ao refeitório — Espero que pense, também, em quanto tempo vai levar para finalmente me dar alta disso aqui.

— Já disse que não desisto tão facilmente — Resistiu de maneira firme.

— Então somos dois — A piscadela de canto de olho oferecida a ela fez as pernas de Vivianne estremecerem enquanto o assistia se afastando pelo largo corredor.

Fechou a porta com força e suspirou pesadamente atrás dela.

Pedro Pelegrini era pior do que considerou, certamente, mas não sabia explicar para si mesma como tudo era diferente em relação a ele.

Seguiu para o almoço e em seguida para a sessão com a paciente da ala de abusos sexuais.

— Oi Anne... Você parece nervosa — A garota de cabelos tingidos em vermelho comentou assim que viu a noviça adentrar a sala e jogar os livros de materiais sobre a mesa.

Aquele comportamento ansioso não era típico de Vivianne e todos ali sabiam disso.

— Deve imaginar porque — Suspirou buscando centrar-se novamente.

— Por causa do Pelegrini, certo? Hoje era o primeiro dia com ele, não era? — Frida sorriu e ajeitou-se ainda mais no divã — Essa sim é uma história interessante.

— Confesso que não acreditei quando todos me alertaram sobre ele, mas o que encontrei foi muito pior — Torceu os lábios em protesto — Pedro é muito... Atrevido!

— Ele mexeu com você? — Frida arregalou os olhos e se aproximou de Vivianne, que seguia calada e um tanto nervosa — Não acredito!

— Frida, por favor! — Repreendeu olhando ao redor — Obviamente não me faltou com respeito, mas não é nenhum pouco parecido com o que eu esperava.

As bochechas de Vivianne enrubesceram e, para despistar Frida, a noviça apanhou a prancheta e começou a fingir buscar algo nela.

— Ah, isso com certeza! Ele pode ser perturbado, mas o cara é um tremendo gato! — Vivianne pensou que fosse explodir, tamanha sua vergonha — Aqueles olhos verdes... Meu Deus! E quando ele faz atividades físicas no pátio com os instrutores? Você já viu aqueles braços tatuados? Realmente acho que encarava qualquer trauma para passar cinco minutos sendo envolta por eles!

— Pelo que vejo nosso tratamento vem evoluindo, hein? Você parece bem mais desenvolta em relação ao sexo oposto — O comentário de Vivianne era uma maneira de desconversar sua inquietude.

Sim, ela reparou nos olhos verdes de tirar o fôlego.

Sim, também reparou nas tatuagens riscadas sobre a bonita pele desenhada por músculos.

Sim... Pelegrini era capaz de tirar a paz de qualquer mulher em idade reprodutiva, mesmo sendo ela um inocente e recatada noviça interna em um convento desde a infância.

— Você é uma ótima psicóloga, Anne — Frida sorriu para ela — Mas é um fato que ninguém conseguiu controlar o Pelegrini — Seguiu discursando enquanto a noviça a ouvia fingindo estar distraída — Não creio que você conseguirá alguma coisa ali além de ficar encantada com a beleza dele.

— Eu não fico encantada com a beleza dele, Frida — Pontuou com a voz trêmula — Apenas esperava um senhor de meia idade e encontrei um ator de cinema dormindo no divã!

— Você está muito nervosa, Anne. O Pelegrini conseguiu o improvável... Achei que ninguém era capaz de tirar sua paciência. Ele fez alguma coisa para te deixar assim?

Vivianne mordeu os lábios e suspirou. Precisava falar algo e sabia que Frida era do tipo calada e não diria uma palavra para ninguém. Engoliu em seco.

— Disse algo sobre eu ter o céu nos olhos... Não entendi muito bem — Mentiu. Claro que entendeu. Claro que sabia que se tratava de um flerte.

— Ele disse isso? — Frida gargalhou baixinho.

— Está querendo me desestabilizar para que eu desista do tratamento.

— Ou achou realmente seus olhos bonitos! — A menina completou animadamente — Realmente você tem um olhar incrível.

— Mas sou uma freira... Ele não pode me dizer esse tipo de coisa! — Suas palmas soavam e seu coração disparava.

Foi à primeira vez em que um homem chegou tão perto e a elogiou. Foi a primeira vez que se sentiu um pouco mulher de verdade.

— Você é uma noviça... E não está morta! Todo mundo pode ver que seus olhos azuis são lindos — Frida a encarou — Isso te desestabilizou, não foi?

— Não Frida, claro que não! Apenas me deixou nervosa por saber que ele está jogando baixo nesse ponto para me tirar de cena — Engoliu em seco.

Desestabilizada não era a palavra correta, mas sim apavorada.

Viveu seus vinte e poucos anos encarcerada no convento criado em sua própria mente, certa de que se aproximar de um homem seria algo inviável em sua vida. Durante todo esse tempo imaginou que estaria segura de si mesma presa pelas paredes do convento e afastada do mundo real, mas o perigo estava a rondado ali dentro.

O novo paciente fazia com seus pensamentos o que sempre temeu acontecer... O povoava com sensações típicas de uma mulher normal que estava apta a se apaixonar, coisa que não pertencia a Vivianne desde que chegou ao mundo.

— Devo admitir que Pelegrini seja bem capaz disso para sair daqui logo, mas você também deve compreender que é uma moça bonita, Anne. Os homens admiram garotas bonitas — Vivianne fechou um livro em seu colo de maneira rápida.

— Vamos começar a sessão? Afinal, a psicóloga aqui sou eu, mocinha! — As duas gargalharam — Vou conseguir vencer o Pelegrini, você verá!

— Aposto que quem desiste primeiro é você.

— Vamos ver...


Havia engolido o terceiro comprimido da noite quando finalmente pôde fechar a porta de seu aposento e ficar em paz por algumas horas durante a madrugada. Agradecia mentalmente por ser tão problemático a ponto de conseguir o privilégio de ter um quarto sozinho em sua ala, além, é claro, de poder pagar por ele com os direitos autorais que ainda recebia pelas músicas que compôs e vendeu a grandes cantores durante a vida.

Retirou do pescoço o colar de ouro com um pingente de cruz e o colocou ao lado da cama como fazia sempre antes de dormir e deitou-se ali olhando para a jóia fixamente.

Sozinho com seus pensamentos, pela primeira ver durante anos pegou-se a pensar em algo que não fosse o acidente que custou a morte de seus filhos. Olhando aquele colar com pingente de cruz lembrou-se fortemente de Vivianne Grace, a aprendiz de freira que estava lhe atendendo naquilo que ela gostava de chamar de terapia.

— Vivianne Grace... — Sussurro para si mesmo e tomou o colar entre as mãos — Aprendiz de freira.

Obviamente a lembrança dela era marcante devido aos grandes olhos azuis e temperamento duvidoso. A garota era demasiadamente altiva e bonita para uma freira, algo que Pedro não estava acostumado a encontrar em quase todas elas.

Por onde havia se escondido durante tanto tempo ali dentro?

A moça usava um colar igual ao dele — uma pequena cruz de prata no peito — e o fato o intrigava. Jamais aconteceu de encontrar alguém usando a mesma peça e a coincidência era enorme. De fato tratava-se de um convento e a cruz certamente era utilizada por muitas pessoas, mas o colar de ambos era exatamente igual. Pedro se pegava pensando se a moça havia notado tal fato também.

Ao conhecer a face daquela que significava ser sua última esperança, Pedro teve de mudar o esquema para tirá-la do sério. Não poderia seguir com o plano de injuriar e tirar a paciência como fazia com os mais velhos, mas não era tolo e sabia exatamente por onde poderia ir para conseguir logo tirá-la de cena e finalmente receber sua alta.

A moça era jovem e ficava desconcertada com a proximidade, algo que um homem como ele podia notar a quilômetros. Por se tratar de uma noviça, não era difícil deixar a situação desagradável para ela e lançar alguns flertes baratos e frases de efeito poderia ser o suficiente para fazê-la desistir.

Todas as freiras se casariam com Deus e não se interessavam por homens, devendo, pelas regras da igreja católica, cumprirem o celibato.

— Nesse caso é uma judiação sem tamanho — Comentou consigo mesmo ainda admirando o colar.

A face de sua última esperança tinha sim os olhos mais lindos que Pedro já vira em toda sua vida e não merecia ser escondida.

A face de sua última esperança se corou de vermelho ao ouvir Pedro elogiar seus olhos, algo que demonstrou exatamente para onde ele deveria ir.

Em mais algumas sessões estaria completamente livre da irmã com os olhos da cor do céu de verão.

 

 

 

 

 

— Vivianne, querida! — A madre chamou em alto e bom som quando avistou a moça caminhando pelo corredor — Venha!

A moça corou e sorriu educadamente.

Já vinha fugindo do encontro com a madre durante a última semana, evitando assim ter que dar a ela o relatório completo sobre as sessões com Pelegrini. Certamente seria interrogada naquele instante e vasculhou a mente atrás de alguma mentira para ser contada.

“Perdoa-me por cometer o pecado da mentira, Senhor”.

Sussurrava em mente enquanto cumprimentava a sorridente e baixinha senhora.

— Como vai minha querida? Você anda tão ocupada e tão elogiada por esse lugar... — Acariciava o longo cabelo negro de Vivianne com carinho — É difícil conseguir falar com você.

— Me desculpe madre. Ando realmente atarefada com os projetos e sessões com os pacientes — Sempre doce, a moça sorria.

— Sei disso, mas te chamo apenas para saber sobre alguém em especial... Pelegrini — Sussurrou chegando mais perto da moça — Como estão as coisas com ele? Já faz quase duas semanas que vocês estão trabalhando e não recebi qualquer retorno ainda. Não me diga que está indo tudo bem?

Vivianne engoliu em seco e sorriu um tanto desanimada.

— Aos poucos estamos progredindo, madre.

— Aos poucos?

— Bem aos poucos... — Admitiu abaixando o olhar.

— Mas você vê algum progresso?

— Claro! — Mentiu, mas não foi capaz de realmente contar como as coisas iam — Pedro está começando a confiar em mim e em breve teremos bons resultados.

Não, ele não estava.

Pedro nunca disse qualquer palavra diante de seus questionamentos e muito menos respondia a qualquer proposta lançada por ela. Vivianne se frustrava a cada vez que se encontravam e o rapaz apenas se mantinha calado deitado no divã. Era quase uma tortura passar uma hora e meia por dia vendo-o dormir na espreguiçadeira.

Mais tortura ainda era saber em seu íntimo que já quase podia ilustrar em sua mente as tatuagens espalhadas pelo belo corpo masculino. Já sabia também que ele tinha covinhas no sorriso e as mãos eram grandes e fortes.

“Perdoe-me, Senhor, pelo pecado da luxúria”.

Era a oração que repetia em mente todas as vezes que ele entrava e saia de sua sala.

— Teremos uma reunião com o advogado dele e o representante do Estado para decidirmos sobre o destino de Pedro em breve. Você será peça chave em tudo isso, Vivianne. O seu parecer irá nortear a minha opinião para com eles.

As palavras da madre a pressionaram grandemente. Dependia dela o futuro de Pelegrini, o homem debochado e sem expectativas que a desafiava todos os dias. Se dissesse que ele estava apto, Pelegrini voltaria para sua casa e cumpriria pena leve. Se contrário o fosse, seu destino seria decidido pelo Estado e provavelmente iria pegar algum tempo atrás das grades ou seguiria internado em alguma instituição para drogados e viciados.

— Você tem ideia de quanto tempo pode levar madre? — Questionou engolindo em seco.

— Talvez seis ou oito semanas.

— Acredito que não seja tanto tempo assim para que eu consiga um resultado tão satisfatório, mas irei me esforçar — Sorriu docemente e a madre tocou sua bochecha rosada.

— Você é um anjo, Vivianne. Todos seus pacientes saem daqui com uma evolução incrível, mesmo sendo você praticamente recém-formada — A moça deu de ombros — Sempre digo que seu talento para ajudar a mente das pessoas vem de Deus, é algo divino.

— Obrigado madre... Mas é um pouco difícil ajudar quem não está querendo ser ajudado.

— Está falando de mim, irmã? — Pedro apareceu de repente por trás de Vivianne com sua postura cansada e a camiseta branca e regata de sempre.

A primeira coisa a ser reparada por Vivianne foi o novo hematoma que havia surgido acima de seu olho esquerdo, algo que parecia grande e ainda mostrava vestígios de sangue.

— Pedro, meu filho — A madre interveio com certa pena — O que houve com seu olho? Oh... — Pousou uma mão sobre o peito em sinal de que havia se lembrado de algo — Ontem foi uma noite difícil, não é? A tempestade foi terrível.

A velha senhora encarou Vivianne como se a moça soubesse o que estava sendo tratado, mas a pobre não tinha ideia do que tempestade tinha a ver com o hematoma horrível de Pedro. Corou em busca do olhar do rapaz, que tão pouco parecia à vontade com a situação.

— Não é algo que me incomode mais — O rapaz não conseguia encarar Vivianne, apenas o chão. Os olhos verdes brilhavam com certa vergonha e humilhação que partiu o coração da moça pela primeira vez.

— Certamente Vivianne vai te ajudar a superar esse trauma — Pousou a mão no ombro da moça, que seguia encarando Pedro em busca de alguma resposta — Ela me disse que as sessões estão tendo um bom progresso.

— Ela disse, é? — Os olhos azuis de Vivianne imploraram para que ele apenas concordasse. Pensou por alguns segundos se deveria fazê-lo, mas decidiu seguir o jogo da noviça.

— O que mais quero é te ver curado deste trauma e saber que poderá refazer sua vida em sociedade com a cabeça no lugar — O carinho nas palavras da senhora era tocante aos ouvidos de Vivianne, mas não pareciam surtir qualquer efeito ao olhar profundo e insosso de Pedro — Preciso ir agora. Deixo você em boas mãos, meu rapaz. Com licença.

Vivianne permaneceu alguns segundos parada em frente ao homem alto, musculoso e machucado a sua frente, porém não recebeu nenhuma palavra como resposta ou agradecimento. Pedro apenas a encarava com os braços cruzados e o olhar confuso. Encheu os pulmões de ar e deu-lhe as costas, chicoteando-o com as pontas de seu grosso cabelo escuro.

— Porque você mentiu para ela? Pensei que as freiras não pudessem mentir — O rapaz a seguiu de perto pelo corredor largo que levava ao grande jardim do hospital.

— Não sou freira ainda, sou uma noviça — Especificou com a voz enfática e nervosa, seguindo seu caminho sem alterar sequer um passo.

— Mesmo assim, você mentiu! Não vai me responder?

— Muito me admira que agora queira falar comigo, senhor Pelegrini — Parou em frente ao armário onde guardava seus materiais de trabalho e começou a organizar suas coisas de maneira natural. Pedro se escorou ao lado em busca de sua resposta — Até onde me lembro, hoje nos vimos na terapia e o senhor voltou a dormir no divã como fez nos últimos quinze dias.

— Posso te responder isso se me responder uma pergunta depois, o que acha? — Agarrou um livro grande contra o peito ao fechar o armário novamente. Pedro pensou por alguns segundos.

— Feito — Esticou a mão para ela e Vivianne encarou a grande palma antes de tocá-la com a sua.

O simples contato foi suficiente para estremecer suas pernas. A mão dele era quase o dobro da sua e quente como o sol. Também era macia como imaginou durante as sessões e não pôde deixar de reparar alguns poucos cortes espalhados por ela.

— A madre te contou sobre a reunião com o advogado e o representante do Estado? — Pedro assentiu firmemente quando voltaram a caminhar — Será em menos de dois meses.

— O que? — Pedro deteve-se tamanho o susto, mas voltou a caminhar — Não ia demorar um pouco mais?

— A madre já esgotou o arsenal, Pedro. Já faz quase um ano que você está aqui — Explicou rapidamente, parando sob uma árvore de flores lilás no jardim — O meu parecer será a decisão da madre e se ele for negativo o seu destino não será muito feliz — O rapaz abaixou o rosto e suspirou. Algo muito grande aparentava pesar em suas largas costas musculosas — Por isso eu menti. Ainda acredito que você possa ter um jeito.

— Pois não precisa mentir, irmã. Não me importo com o destino que receberei, apenas quero ir embora deste lugar — Deu de ombros.

— Tem certeza disso? Tem certeza que quer correr o risco de voltar para cadeia? — Estreitou o olhar. O sol forte refletia lindamente seus olhos azuis, algo que certamente fazia Pedro repensar o modo como vinha tratando a bela noviça.

— Você não ouviu, Vivianne? Não me importo! — Enfatizou com desdém — Não precisa mais mentir por mim. As coisas são como são e você tem razão... Não quero ser ajudado!

O rapaz já ia lhe dando as costas, mas Vivianne o puxou pela camiseta com certa impaciência.

— Você me deve uma resposta. Será que não é um homem que cumpre sua palavra? — Pedro se travou no lugar e engoliu em seco. Voltou-se para Vivianne com um pouco de raiva refletida no olhar e travou o maxilar.

— Pois bem. Diga — Ponderou.

— O que esse machucado em seu olho tem a ver com a tempestade?

A pergunta foi certeira e ele teve de sorrir. A moça era tendenciosa e muito observadora, inteligente como nenhum outro analista até agora havia sido. Coçou o queixo enquanto formulava a resposta e, diante de um rosto tão angelical e da boa ação que ela havia feito com a madre, resolveu ser sincero. Suspirou.

— O barulho da chuva me trás lembranças e essas lembranças me fazem fazer isso — Apontou para os machucados no rosto — Comigo mesmo.

Ele feria a si mesmo quando ouvia a tempestade, concluiu Vivianne. A da noite anterior havia feito um estrago nas árvores e certamente deveria ter sido terrível para alguém com um trauma, por isso se deu o terrível machucado.

— Oh — Os lábios dela se afastaram em surpresa, mas buscou se manter seria — Lembranças como...

— Já está querendo avançar o sinal, irmã — A moça corou.

— Me desculpe, mas me deixou curiosa para saber o motivo do trauma — Pedro viu os olhos azuis comprimidos pela dor refletida nos olhos dele e pela primeira vez em muito tempo teve vontade de vocalizar sua angustia — Sou uma psicóloga, Pedro. Estou preparada para ouvir qualquer coisa.

— Meus filhos morreram durante uma tempestade, irmã — Falou subitamente, sem conseguir controlar o impulso — Será que agora é capaz de compreender? —Vivianne não conseguiu responder a tempo.

O rapaz saiu mais rápido do que sua ação, caminhando rapidamente para longe dela como se fugisse de algo que lhe fizesse mal.

Finalmente as coisas faziam sentido para ela, algo que lhe trouxe uma imensa sensação de dor ao coração. Quão terrível deveriam ser as lembranças para levarem Pelegrini a ferir a si mesmo? A dor chegava a ser física, Vivianne estava certa, uma vez que apenas a automutilação o faria esquecê-la.

Os filhos morreram na tempestade.

Tudo aquilo significava que nada sabia ela sobre Pedro Pelegrini. O homem tão sedutor e que lhe tirava o fôlego às escondidas era muito mais do que um debochado arruaceiro... Existia toda uma história por trás do comportamento desordeiro que Vivianne desconhecia. Pela primeira vez desejou realmente poder ajudar Pelegrini, não somente para satisfazer a madre pela qual tinha tanto carinho, mas pelo próprio homem. Por seus olhos verdes repletos de dor. Por seu coração que sangrava como o machucado na testa.

Vivianne abaixou o olhar e suspirou pesadamente. Se um dia duvidou de Pelegrini, pela primeira vez tinha a certeza de que aquele homem era muito mais ferido do que sua vã filosofia havia suposto durante todo esse tempo.

Por trás da aparência bela e braços fortes existia realmente um homem desesperadamente machucado gritando por socorro e sendo rechaçado por ele mesmo.

Ela, que se ordenaria freira sem nunca ter tido um chamado, pela primeira vez sentia algo sobrenatural lhe chamando.

Precisava ajudar Pedro Pelegrini a se reerguer.

Essa era sua missão aqui e agora.


— Pelegrini? — Pedro se deteve quando ouviu seu nome ser dito bem ao lado e encarou a bela menina de cabelos vermelhos cor de fogo que caminhava em sua direção — Quero falar com você.

— O que foi agora, Frida? Já disse que não penso em mulher há muito tempo e nunca fiquei com menina menor de idade — Debochou enquanto ela se aproximava.

Buscou esconder para si as lágrimas que anteriormente escapavam de seus olhos e engolir a dor que a conversa com Vivianne havia reacendido em seu peito com tamanha intensidade.

— Já sei disso, seu grande babaca — Parou em frente a ele — Quero falar sobre a Anne.

— Quem? — Franziu o cenho — Desculpe, mas não conheço nenhuma Anne. Não sei de quem está falando!

— Não se faça de bobo, estou falando da Vivianne, a noviça da terapia — Explicou e o sorriso morreu nos lábios dele.

Vivianne.

Sua última esperança.

Tudo relacionado à freira dos olhos mais lindo que já havia visto sobre a terra era capaz de lhe tirar o ar dos pulmões. Vivianne era um assunto extremamente sério para ele naquela altura do campeonato, principalmente depois de saber sobre a reunião importante que se aproximava.

— O que tem ela?

— Então sabe de quem estou falando? — Nada disse, apenas encarou a garota baixinha ainda sustentando a seriedade — Pelo que vejo é um assunto bem sério para você.

— Obviamente, uma vez que Anne, como você se refere a ela, tem o meu destino em suas mãos — Cruzou os braços diante do peito forte — O que quer falar comigo sobre ela?

— Quero te alertar para não jogar baixo com ela, cara, caso contrário você vai se ver comigo! — Pelegrini deu uma risadinha de canto e revirou os olhos — Pode não dar nada por mim, mas fora daqui tenho contatos e não vou deixar um debochado como você constranger uma menina tão legal quanto ela.

— O que foi? Ela está reclamando de mim para você?

— Anne é minha melhor amiga e me tirou de um grande buraco desde que cheguei aqui. Ela é boa, coisa que pessoas que conhecem a escuridão como eu e você nunca seremos! — Alertou-o e o sorriso de Pedro novamente desapareceu.

— Não estou entendendo aonde quer chegar com isso.

— Você pode não ter conhecido pessoas como ela, mas a Anne é realmente uma alma pura e bondosa. Ela não conhece nada sobre a vida fora das paredes deste convento apesar de toda a inteligência que tem e sei que você — Apoiou o dedo no peito dele — Está tirando com a cara dela.

— Isso não é um problema seu, baixinha — Retirou o dedo dela — Apenas quero mantê-la longe para conseguir sair fora daqui rapidamente.

— Pode ficar bem feio para você se as freiras souberem que está usando de cantadas baratas para cima de uma noviça inocente, não acha? — Franziu o cenho e ele suspirou.

— Isso você terá de provar — Piscou para ela amigavelmente e lhe tocou o queixo com carinho — Passar bem.

Pedro caminhou para longe dali ainda ouvindo a voz de Frida ecoando atrás de si em alta intensidade. A garota era mesmo petulante em acreditar que podia ameaçá-lo tendo apenas um metro e meio e um pouco de boa vontade. Era amiga de Vivianne e, como muitos ali, uma verdadeira fã da noviça tão encantadora.

Algo incrível parecia cercar Vivianne, uma vez que por onde tocava a moça deixava rastros de amor e doçura. Pedro não compreendia porque justamente ele – um homem tão ferido e problemático – havia sido escolhido como paciente por ela em meio a todos os problemas que rondavam a ala psiquiátrica do hospital.

Todos os outros eram mais um nome na lista, mas ele, justamente ele, não. Vivianne não parecia disposta a abrir mão de seu caso como faria com qualquer outro que se indispusesse com ela. Seu nome era de ouro, um caso raro que ninguém conseguira antes solucionar, portanto, a chance que a moça tinha de provar que era sim uma boa profissional, algo que ia além de sua personalidade dócil e cativante.

A garota cativava por onde passava, por isso curava almas.

— Cantadas baratas... — Pedro murmurou a si mesmo ao sentar-se em uma mesa um tanto distante dos demais pacientes — Queria saber de onde foi que aquela menina tirou isso — Lembrou-se perfeitamente do momento em que elogiou os olhos de Vivianne em voz alta. Mordeu uma maça para tentar aliviar a tensão que tomou conta de sua alma — Sou mesmo um idiota.

Murmurou a si mesmo.

Aquilo significava, no entanto, que Vivianne vinha falando dele com outras pessoas. Havia comentado sobre o elogio com uma amiga. Uma vez mais fazendo algo que não era nada típico para uma noviça. Quando deu por si, Pedro segurava entre os dedos o colar que ambos tinham igual e encarava a cruz com um olhar fixo e confuso.

Uma coisa era certa em meio ao turbilhão que vinha lhe rodando... Mesmo sem ter a oportunidade de dizer uma palavra Vivianne Grace conseguira tomar conta de seus pensamentos há muito tempo perturbados e embaralhados por uma névoa de dor e sofrimento.

Aquela singela cruz e um par de olhos azuis remetiam a ele um novo significado.

 

 

A pequena Vivianne era uma menina sonhadora e alegre, que cresceu na fazenda dos pais debruçada sobre a janela vendo os dois irmãos mais velhos brincando no pasto sem sequer cogitar a ideia de juntar-se a eles.

— Me entristece muito te ver ai, menina — Sussurrava Amélia, uma doce senhora que lhe penteava os fios do longo cabelo negro — Sei que sua vontade era estar com Victor e Valentim lá fora correndo por aí.

— Não é não, Amélia — Mentiu a pequena, ainda com o rosto apoiado nos braços que descansavam na janela. Os olhos azuis encaravam os irmãos mais velhos brincando e as lágrimas insistiam em se formar no cantinho dos mesmos — Mamãe diz que nasci com um propósito. Deus me mandou porque ela prometeu que eu seria freira um dia.

— Isso é bobagem — Sussurrou a senhora ao ouvido dela como se fosse um segredo — Sua mãe não pode escolher por você como será a sua vida.

— Mas Deus me enviou depois de levar minhas irmãs — Virou-se para encarar os olhos da empregada de seus pais que era responsável por seu dia-a-dia — Mamãe diz que fui um milagre.

— Um milagre muito belo, diga-se de passagem — Tocou o rosto da bela menina — Quando Valentina e Vitória se foram nunca mais imaginamos que teríamos novamente uma princesa passeando pela casa.

Irma e Joseph Grace casaram-se por um trato entre famílias e juntos construíram um império. O homem era um engenheiro agrônomo muito famoso e herdeiro de duas famílias tradicionais no ramo de criação de gado. A mulher, além de também herdeira de sua família, era uma perfeita dona de casa e mãe dedicada à vida religiosa.

Irma casou-se ainda menina, aos dezessete anos, como corriqueiramente acontecia nas famílias tradicionais no interior do Brasil antigamente, e teve o primeiro filho apenas com vinte e poucos. Com quase nenhuma experiência na vida, a moça passou a se dedicar ao marido como se dedicou a vida toda aos assuntos da igreja, parindo dois belos meninos primogênitos e um par de gêmeas encantadoras.

Os quatro filhos eram sua vida, principalmente as pequenas Valentina e Vitória, suas fiéis seguidoras. Era admirada por toda a pequena cidade onde morava devido à fortuna da família e beleza das crianças, além do sucesso que tinha como matriarca. Os meninos, Vitor e Valentim, eram treinados pelo pai para serem os sucessores na criação de gado e movimentação da fazenda.

As meninas, que não demonstravam qualquer interesse pela fazenda, estudavam para se graduarem na faculdade e seguirem as profissões desejadas. Sempre juntas da mãe, Valentina e Vitória eram a paixão do pai e representavam a proteção dos irmãos mais velhos.

A família Grace, sempre em perfeita harmonia, jamais poderia imaginar o que o destino lhes reservava.

Em um passeio de família, enquanto voltavam pela estrada turbulenta, o carro da família foi atingido em cheio e as duas garotas – então com onze anos – perderam a vida no mesmo momento. Joseph e Irma, que estavam em outro veículo atrás do das crianças que era guiado pelo motorista, assistiram a tudo de camarote e foram marcados por uma tragédia avassaladora!

A família perdeu as meninas e Irma embarcou em uma profunda depressão que parecia não ter fim.

Os meninos já não tinham mãe e Joseph tão pouco à esposa, que decidiu se entregar a dor de uma só vez. A perda irreparável criou um desejo obsessivo em Irma de engravidar novamente, mesmo já estando ela em uma idade onde gerar uma vida era praticamente impossível! Tomada pelo fanatismo religioso, Irma fez uma promessa... Se novamente conseguisse gerar uma criança, uma menina, consagraria a mesma à vida religiosa. Fosse como fosse, seu desejo era ter novamente nos braços uma menina para protegê-la como deveria ter feito com as gêmeas, que sequer tiveram a chance de chegar à vida adulta.

Mesmo em meio às descrenças, Joseph e Irma conseguiram novamente trazer uma criança ao mundo. Irma engravidou quando os meninos já estavam na adolescência e seu sonho se tornou uma realidade.

Vivianne, sua esperada e amada menina consagrada a Deus, veio ao mundo em meio a sua esperança.

Era isso que ela era e sempre seria... Um lindo raio de esperança.

Apesar da bela história milagrosa de seu nascimento, a infância da inocente Vivianne não foi feliz e tão pouco alegre. Assim como toda sua história, tudo girava em torno de uma promessa feita por sua mãe quando sua alma sequer no mundo havia chegado.

— Vivianne? — Irma adentrou ao quarto da menina já tarde da noite e a encontrou sentada sobre a cama com uma boneca em seus braços — O que está fazendo querida? Já terminou suas orações?

O rosto da pequena corou e sua vontade foi se esconder atrás dos belos cabelos negros que lhe caíam ao redor da face.

— Eu esqueci as orações, mamãe. Estava brincando de mamãe e filhinho — Respondeu inocentemente. Mesmo que desejasse mentir, a prática era pecado e ela sabia muito bem que ninguém podia pecar. Mentir era ir contra Deus.

— Brincando de mamãe e filhinho e esqueceu as orações? — Irma se aproximou da cama em passos lentos. A menina apenas abaixou o rosto e apertou a boneca ainda mais em suas mãos — Você prefere uma boneca a orar?

— Eu gosto da boneca. Ela é minha filhinha — Irma sorriu de canto e sentou-se em frente à filha sobre a cama.

Colocou o cabelo de Vivianne atrás da orelha de modo a enxergar melhor o pequeno e lindo rosto. Dentre todos os filhos que pariu, Vivianne certamente era a mais bela. Os olhos azuis como os do pai reluziam e encantavam a qualquer um, assim como os traços marcantes do rosto e o delicado cabelo longo. Joseph dizia que seria uma mulher muito formosa e atrairia fácil um bom rapaz, mas Irma estava disposta a doutrinar a filha para a vida religiosa. Não havia outro caminho.

— Você sabe que seu destino é outro, não sabe? — Retirou a boneca das mãos da menina, que acompanhou o movimento com os olhos atentos — Ser mãe não faz parte dele.

— Mas eu gosto de bebês... Gosto de brincar com a minha boneca e...

— Você sabe que isso não faz parte da sua vida, querida. Seu caminho é...

— Servir a Deus, eu sei — Suspirou.

— Você não ama a Deus?

— Amo sim... Amo muito. Mas você também ama e tem filhos. Porque eu não posso ter um dia?

— Não vamos discutir isso novamente, Vivianne. Ajoelhe-se e reze antes de dormir e isso — Mostrou a boneca — Vai para o quarto comigo por hoje. Tenha uma boa noite.

Mais uma vez a pequena adormeceu chorando.

Mais uma vez se questionava se a mãe era realmente uma pessoa que apenas queria o seu bem.

Se tinha sonhos, porque, afinal, não podia realizá-los?

Apesar de tudo, a pequena Vivianne não tinha e nunca teve como lutar contra os pais. Apesar de tudo, mesmo tendo percorrido a vida de convento em convento, Vivianne ainda guardava nas profundezas do coração um antigo sonho...

Se casar.

Ter filhos.

Um dia ser quem ela realmente desejar ser.

Querida Vivianne,

Seu pai e eu estamos com o coração partido de saudade, mas sabemos que está em um lugar repleto de paz e segurança. Não há melhor lugar no mundo para nossa menina consagrada do que nos braços da igreja.

Esperamos ansiosamente o dia de sua ordenação para que possamos, enfim, visitá-la. Em seu templo de alegria, não fosse pela debilitada saúde de seu pai, já teríamos ido até São Paulo várias vezes. No entanto, o caso requer cuidados e avaliações contínuas. Em breve será feito o testamento de seu pai e devido a isso peço que veja a possibilidade de sua ordenação acontecer o mais breve possível, querida.

Seria terrível para seu pai partir sem vê-la se tornando freira.

Não esqueça que te amamos muito e sempre queremos seu bem.

Sua mãe que te ama,

Irma Grace.

Vivianne engoliu em seco ao terminar de ler a carta que acabara de chegar endereçada a ela. Irma e Joseph, morando no sertão do país e já com certa idade, não tinham qualquer costume de utilizar tecnologias e redes sociais. A comunicação ainda era por cartas e Vivianne agradecia imensamente por isso.

“Templo de alegria”, “melhor lugar do mundo” e “local repleto de paz e segurança”.

Suspirou ao reler as palavras que sua mãe utilizava para se referir ao convento. Não, definitivamente não era assim que acontecia. Não para ela, que todas as manhãs quando despertava desejava pular os muros altos do local e desbravar mundo a fora com a cara e a coragem.

Não para ela, que jamais em vida sonhou com o destino que sua família lhe traçara.

A saúde de seu pai ia de mal a pior e seu corpo era consumido por um câncer raro e com poucas chances de cura. Sua vontade era voar até a fazenda naquele instante, mas suas obrigações com o convento e a insistência de sua família para que ficasse lá eram os motivos pelos quais não o fazia.

Não havia alegria maior para seus pais do que vê-la se preparando para ser freira e isso era o suficiente para saber que estariam felizes.

“Você se sacrifica para que seus pais sejam felizes... Acha isso certo consigo mesma?”

Ela, uma psicóloga graduada em exímias faculdades, questionava-se a mesma coisa durante todos os dias de sua vida. Ela, considerada grande conselheira e amiga de todos ao redor, sustentava diante de todos uma máscara de felicidade que nunca existira. Não era feliz no convento e talvez nunca fosse... O único motivo para suportar tudo isso de cabeça erguida era a profissão que conseguia exercer ali dentro e pela qual trazia muito amor e dedicação.

Se não fosse sua amada psicologia não saberia como lidar com todo o caos que verdadeiramente era sua existência.

Caminhando apressadamente, Vivianne sequer percebeu que uma bela moça de cabelos negros e olhos esverdeados lhe surgiu pelo caminho. Ambas se esbarraram fazendo com que a noviça derrubasse ao chão os pesados livros que carregava nos braços.

— Oh, me desculpe! — Levou as mãos aos lábios quando viu a morena já abaixada de modo a recolher seus materiais — Juro que não te vi pelo caminho, me perdoe... Ando tão avoada!

— Está tudo bem, irmã. Também é minha culpa — A garota, que usava botas e jaqueta de couro, lhe estendeu os livros com um largo sorriso — Estou procurando meu irmão pelos corredores e não olhei por onde andava. Desculpe-me também.

Vivianne parou de respirar por alguns segundos.

Era dia de visitas e o par de olhos verdes que a garota trazia lhe pareciam demasiadamente familiares. Apertou os livros contra o peito e deslizou o olhar pelas roupas da moça. Certamente gostava de rock e deveria trabalhar no meio. O cabelo negro era pintado de rosa nas pontas e os broches de cantores lendários espalhados pela jaqueta de couro não deixavam dúvidas.

— Está tudo bem — Vivianne sorriu animadamente — Talvez eu possa ajudá-la. Como se chama seu irmão?

— Pedro. Pedro P...

— Pelegrini — Completou a fala da moça sem esconder a familiaridade — É claro.

— Você o conhece?

— Certamente. Estou trabalhando no caso dele neste momento — Confessou um pouco mais baixo do que deveria — Sou a noviça Vivianne — Estendeu a mão para cumprimenta-la e sua palma foi rapidamente agarrada pela da garota.

— Paola Giovanna Pelegrini — Apressou-se em dizer enquanto encarava Vivianne com admiração e surpresa — É muita coincidência nos encontrarmos assim. A madre do convento justamente queria promover um encontro entre nós duas devido à proximidade da audiência de Pedro.

— Realmente, é uma grata surpresa. Nós tentamos contato com os familiares de Pedro por um bom tempo, mas ninguém retornou.

— Oh irmã... Nossos pais são falecidos e Pedro e eu temos apenas um ao outro — As duas começaram a caminhar pelos corredores — Eu estava em turnê com minha banda pelo nordeste e não consegui chegar antes. Sou empresária e compositora, assim como meu irmão.

— Sinto muito pelos seus pais, Paola. E, por favor, não me chame de irmã. Sou apenas uma noviça — Enfatizou — Apenas Vivianne.

— Desculpe-me Vivianne. Nunca vi uma freira ao vivo... Ou uma quase freira — Corrigiu com um sorriso amigável — Quer conversar primeiro ou prefere que eu veja Pedro antes?

— Apenas desejo lhe fazer algumas perguntas para entender melhor o caso de seu irmão — Vivianne não pode evitar a curiosidade que a figura da moça lhe despertava. Paola era de fato uma mulher atraente e estilosa como ela jamais seria. Os olhos esverdeados e cheios de vida brilhavam como os de Pedro e Vivianne não podia controlar uma pontinha de inveja. A garota era jovem, bonita e, ao que parecia, dona de sua própria vida — Pedro é um tanto fechado e está relutante em ser ajudado.

— É a cara dele não aceitar ajuda — Suspirou e levou a mão ao rosto — No que posso ser útil?

— Em tudo — Confessou buscando manter a compostura — Seu irmão se opõe a me contar qualquer coisa sobre sua vida e o acidente que o trouxe até aqui. Tudo o que sei sobre os fatos foi pela boca de terceiros e se assim continuarmos não terei um final feliz para ele, Paola.

Por dentro, Vivianne gritava em prantos.

O encontro casual com a irmã mais nova de Pelegrini era a única coisa que podia ajudá-la a desvendar seu misterioso passado. Deparar-se com Paola Pelegrini no corredor foi como enxergar uma luz no fim do túnel.

Sua última esperança.

— Pedro sempre foi turrão e muito tinhoso, mas definitivamente está muito pior depois de tudo — Suspirou e cruzou os braços em frente ao corpo — A perda de meus sobrinhos devastou a vida dele, Vivianne. Espero que tenha ao menos um pouco de compaixão ao julgá-lo.

Alcançaram um banco sob uma árvore no pátio da área comum entre o hospital e o convento. Vivianne apontou para que sentassem e Paola prontamente o fez. As palavras de Vivianne impactaram fortemente em seu semblante antes tão alegre e agora tomado pela evidente preocupação.

— Não estou aqui para julgar seu irmão, Paola. Quero ajudá-lo a se reencontrar porque sinto que por detrás daquela muralha que ele criou pode existir vida — Explicou dando espaço a seu coração. Paola concordou — Pedro é muito convicto de que sua vida terminou e não existe mais esperança, porém discordo totalmente! Todos os profissionais do hospital largaram de mão de seu caso e sou a última que topou seguir com seu tratamento — Abaixou o olhar — Todos me chamam de maluca pelas costas, mas acredito que Deus possa restaurar a vida dele através dos tratamentos que oferecemos aqui. Tenho certeza que posso ajudá-lo!

— Vivianne... Você é uma pessoa incrível — Paola tocou a mão dela com carinho — Mas não posso te enganar... Pedro não acredita em Deus e muito menos vai ser fácil convencê-lo de que sua vida pode seguir em frente.

— A madre superiora acredita nele — Pontuou com segurança — E eu também. A fé move montanhas e fica ainda melhor temperada com um bom trabalho.

Vivianne sentia-se uma menina boba diante do olhar caído de Paola, - que deveria ter uma idade igual à dela – mas não pôde deixar se insistir.

— Está bem, noviça Vivianne — Ajeitou-se de maneira mais confortável sobre o banco de pedra — Vou te contar tudo o que me perguntar sobre seu paciente. Espero que ele não me mate por isso.

— Ele não precisa saber — Vivianne não se conteve e se apressou a retirar a caderneta e o lápis do meio dos livros e rapidamente colocou-se a postos para anotar cada detalhe dito por Paola.

Mesmo sendo algo um tanto antiético não havia outro jeito de chegar ao coração de Pedro se não com a ajuda de sua irmã. Aquele homem precisava de uma nova esperança e o coração da noviça sussurrava que ela era o caminho.

 

 

V ivianne ouviu atentamente cada palavra narrada por Paola sem sequer piscar os olhos.

Pedro Pelegrini nasceu em uma família tradicional onde o pai era vocalista de uma banda de punk-rock e trabalhava na noite paulistana. Sua mãe, um pouco mais reservada, era tatuadora profissional e esteticista. Paola nasceu três anos depois dele e ambos foram criados com uma vida tranquila, mas regada de muito rock pesado e influências voltadas para a música.

— Meu pai era exatamente como Pedro... Briguento, turrão e orgulhoso. Em uma noite em que estava cantando em um bar se envolveu em uma briga porque um rapaz mexeu com a minha mãe e acabou baleado no final da história — Os olhos de Paola se encheram de lágrimas — Ele morreu dois dias depois e após isso minha mãe entrou em depressão profunda. Não demorou nem um ano para que a doença a consumisse e ela falecesse após consumir muitos remédios. Pedro tinha quinze anos.

— Sinto muito, Paola — Vivianne sussurrou.

— Fomos morar com nossa única tia viva e Pedro saiu de lá assim que pôde. Ele sempre foi muito esperto e era talentoso desde muito pequeno. Papai o ensinou muito sobre música e as composições dele começaram a bombar logo que começou a comercializar e buscar contatos. O sucesso dele foi rápido e estrondoso. Tudo qual é artista queria adquirir uma de suas canções e ele não escondia o orgulho de ninguém. Sempre me mandava dinheiro na casa de nossa tia e me comprou um apartamento quando ela morreu. Pedro era o típico garoto festeiro, alegre e rodeado de mulheres. Dinheiro é até hoje algo que não lhe falta devido aos direitos autorais das canções e meu irmão curtia a vida como se não houvesse amanhã.

— Não posso crer que estejamos falando da mesma pessoa — Vivianne sentia vontade de chorar ao ouvir as palavras de Paola.

Mesmo que fosse uma história de sucesso, Pelegrini carregava muitas dores desde a infância. A alegria perdida, no entanto, era o que mais falava ao coração de Vivianne. Algo lhe dizia que Pedro não havia sido totalmente feliz como a irmã narrava.

— Pois é... A vida dele era regada de bebidas, música e festa até conhecer Fernanda, a presidente de seu fã clube. Na época ele estava à frente de uma banda, você sabe qual é... — Vivianne concordou. Não ouvia muito o estilo dele, mas conhecia algumas de suas composições — E aquela sem noção facilmente conseguiu se meter na cama dele. Era uma oferecida, diga-se de passagem. Não podia ver um homem que já ia levantando a saia e fez de tudo para fisgá-lo. Ela disse que era virgem — Usou tom irônico — E o tapado do meu irmão logo se sentiu na responsabilidade de ficar com ela. Para mim tudo não passou de uma desculpa deslavada para pegar o otário e... — Paola tapou a boca com as mãos. Vivianne corou, mas seguiu encarando-a — Me perdoe! Esqueci que estava falando com uma freira... Quer dizer, noviça!

— Tudo bem — Respondeu com um sorriso tímido — Continue.

— Então... Fernanda e Pedro começaram a ter um namoro, o primeiro da vida dele. Não demorou sequer um ano para ela aparecer de barriga dizendo que os gêmeos eram dele. Pedro sempre prezou muito pela família e não deixou por menos... Casou-se com ela rapidamente e Fernanda conseguiu ser a senhora Pelegrini, mas nunca de fato controlou meu irmão. Ele não saia mais com as garotas, mas não deixava de farrear com os amigos e fazer o que bem entendesse.

— E sobre os meninos? — Paola sorriu, mas Vivianne pôde ver lágrimas se formando em seus olhos — Me desculpe por perguntar, é que...

— Stefano e Pietro eram os grandes amores da vida de Pedro. Eram dois garotos lindos, inteligentes e muito apaixonados pelo pai — Narrava com a voz embaçada — Fernanda podia não ser a mulher que ele amava, mas os meninos eram seu grande trunfo e ela não hesitava em usá-los para manipular Pedro. Ele jamais deixou de dar uma vida luxuosa para todos e cuidar das crianças, mas confesso que nunca foi um exemplo de marido. Os dois brigavam em demasia.

— E como foi que... — Paola prosseguiu antes que ela terminasse.

— Fernanda queria se divorciar de Pedro quando os garotos fizeram seis anos. Naquela época já era evidente que os dois não se amavam e o único motivo de ficarem juntos eram os meninos. Pedro, mesmo querendo de separar da esposa, temia se afastar dos garotos quando a mãe deles tomasse posse de sua pensão e pudesse viver longe. Fernanda queria morar na Europa com os meninos e, ao que parece, já estava enrabichada com esse tal português de quem ela é noiva hoje — Explicou sem esconder o desdém para com a ex-cunhada — Pedro insistia muito para que não se divorciassem na época e também não se separava dos garotos.

— Ele é um ótimo pai — Paola assentiu as palavras da noviça.

— Você não tem ideia de como Pedro sofreu, Vivianne — Uma lágrima rolou no rosto de Paola e ela secou rapidamente — Ele estava levando os garotos para passear na casa de campo da família quando o carro dele se chocou contra um caminhão desgovernado que vinha na contramão da estrada chuvosa.

— Céus... — Vivianne levou a mão aos lábios e sentiu o coração doendo. Já ouviu antes algo sobre, mas nunca com tantos detalhes.

— Os meninos queriam ver os filhotinhos da cadela Angel, que mora na casa de campo, por isso Pedro os levou — A voz dela era embaçada pelo choro — Fernanda insistiu para que fossem e ele cedeu. O motorista do caminhão estava embriagado e dormiu no volante e perdeu o controle do veículo quando acordou. Ele faleceu no local e... — Suspirou e limpou o rosto — Pietro também.

— Eu sinto muito...

— Stefano e Pedro foram resgatados com vida, ambos em estado grave. Pedro ficou desacordado por dois dias e, ao despertar, fez um alvoroço no hospital para poder ver Stefano. Ele estava em coma, mas uma lágrima caiu de seu olho quando Pedro começou a falar com ele e pedir desculpas.

Vivianne teve de disfarçar a vontade de chorar, mas não pôde controlar os olhos marejados. Tudo aquilo era muito pesado para ouvir de coração fechado.

— Stefano faleceu naquela noite, logo após Pedro sair de seu quarto. Era como se estivesse esperando pelo pai para poder ir em paz. Jamais vou esquecer os gritos desesperados de Pedro no velório de Stefano. Ele não pôde ir ao de Pietro porque estava desacordado, mas usou o de Stefano para extravasar. Ainda posso vê-lo beijando o rosto gelado do filho dentro do caixão e ajoelhado pedindo desculpas. Tiveram de tirá-lo do cemitério quando foram descer o corpo porque Pedro queria descer junto da cova. Foi à coisa mais dolorosa que já presenciei em toda minha vida.

Um longo silêncio tomou conta das duas e Vivianne se viu sem saber o que dizer. Pela primeira vez em anos não conseguia encontrar palavras consoladoras em seu arsenal.

— Eu... — A noviça limpou uma lágrima em seu próprio rosto.

— Tudo bem — Paola tocou a mão dela ao sentir que Vivianne não sabia o que fazer. Paola se recompôs após um largo suspiro — Depois do enterro tudo mudou. Pedro desapareceu de nossa vista e apenas chegaram notícias e mais notícias das loucuras que andava fazendo. Voltou a ser um arruaceiro como era na adolescência, mas desta vez usou drogas e bebeu demais, coisas que não faziam parte de sua vida. Tudo o que ele dizia é que queria morrer, mas não tinha coragem de se matar. Envolveu-se em brigas a perder de vista e foi preso várias vezes por desacato a autoridade, dirigir embriagado e perturbação. Por esse motivo está aqui agora e tenho certeza que se sair irá voltar a aprontar.

— Ele está bem melhor, Paola. Ao menos aqui não tem acesso a bebidas.

— Certamente.

— Ele ainda tem surtos quando chove e pela abstinência de álcool, mas seu comportamento está mais regrado. Acredito que ele ainda terá um bom tempo por aqui.

— De qualquer modo, sugiro que não o tire daqui por enquanto, Vivianne. Se você conseguir livrá-lo da cadeia já será uma vitória tremenda para nós.

— Paola?

A voz grave e familiar ecoou a frente das duas moças surpreendendo-as de imediato. Pedro estava parado um tanto confuso e estreitando o olhar sob o sol para encará-las firmemente.

— Pedro... Meu irmão! — A morena se levantou rapidamente e correu em direção ao irmão com um enorme sorriso estampado nos lábios.

Os braços fortes e tatuados do rapaz se abriram para recebê-la em um abraço caloroso. Vivianne não pôde deixar de reparar na maneira como Pedro apertava a irmã contra o peito e engoliu em seco ao pegar-se sentindo inveja da moça. Suspirou e pediu perdão em mente enquanto apertava os livros contra o peito.

Não podia sentir inveja.

Não podia desejar ser abraçada contra aquele peito largo com braços fortes.

Não podia!

— Me disseram que você estava por aqui, mas jamais pensei que estaria com a noviça Vivianne — Enfatizou a palavra noviça para que ela se lembrasse de que ele havia aprendido que ainda não era uma freira — Conversavam sobre mim, é claro. Coisa feia, hein, noviça. Levantando a ficha do paciente pelas costas... Isso não é antiético?

— Também é bom te ver, meu irmão — Paola pontuou tentando apaziguar a acusação de Pedro. Ela tocava o rosto do irmão com carinho e saudade.

— Sua irmã é uma moça muito educada e cordial. Você deveria aprender um pouco com ela — Pedro sorriu para a cutucada de Vivianne e suspirou — Obrigado pela boa conversa, Paola. Espero que nos vejamos em breve.

— Foi um prazer Vivianne. Você é um doce — As duas trocaram um largo abraço e Pedro não pôde deixar de acompanhar os movimentos da noviça enquanto o faziam.

Seus olhos se encontraram através do espaço e a vontade dele era estreitá-la contra a primeira parede para questionar porque queria tanto se meter em sua vida. A garota sumiu de sua vista antes que pudesse voltar a raciocinar.

— Essa menina me tira do sério! — Esfregou o cabelo ao ficar a sós com a irmã — Já veio correndo perguntar sobre mim, não é mesmo?

— Hei, fique calmo! Vivianne é um amor de pessoa e apenas quer te ajudar... Está realmente empenhada em te livrar da pena na cadeia — Explicou com calma.

— Empenhada... Tudo o que ela quer é ficar bem com a madre e virar notícia por pegar o caso mais difícil do lugar, isso sim — Esbravejou ainda inconformado.

— Não senhor! Essa tal noviça Vivianne realmente acredita em você e, ao que parece desde que cheguei, é a única em toda sua vida! — Pedro estalou os lábios e abaixou o olhar — Se você não quer se ferrar, sugiro que escute o que essa menina tem a dizer e baixe sua bola!

— Você veio me dar sermão sobre a freirinha depois de tanto tempo sem me ver, Paola Giovanna? — Brincou ainda nervoso.

— Não! Vim ver com meus próprios olhos a sua decadência, mas a tal freirinha conseguiu me convencer em poucas palavras de que meu irmãozinho quebrado ainda tem concerto — Pedro sorriu sem humor e negou prontamente — Ela tem um dom com as palavras, sabia? Sabe mesmo convencer alguém quando quer...

— Também... — Deu de ombros — Se eu fosse uma mulher com aqueles olhos azuis também convenceria qualquer um a fazer o que eu digo.

Paola estreitou o olhar em direção a ele e cruzou os braços de maneira acusadora.

— Você por acaso estava reparando nos olhos da freira? É isso mesmo? — Pedro deu uma piscadela e suspirou — Por um minuto achei que você tinha jeito, mas realmente...

— Ela ainda não é freira... É noviça! — Pontuou com a voz irônica, mas rapidamente voltou a falar sério — E sim... Tem como não reparar naqueles olhos? Ela pode ser santa, mas ainda é mulher e é bonita.

— Pedro... Ai meu Deus... Olha como você fala da freira! — Sussurrou entre risadas — Vamos, vamos. Quero falar de você agora.


Reencontrar a irmã foi um passo muito grande para Pedro.

Paola era a primeira pessoa que fazia parte de seu doloroso passado que via após ser internado no Hospital da Graça e, como era esperado, lhe trouxe notícias lá de fora.

— Fernanda se casou com o tal Jean Paul e está vivendo na antiga mansão de vocês dois em São Paulo — Pedro teve de rir ao ouvir as palavras da irmã e não escondeu o embrulho em seu estômago — Espero que realmente tenha esquecido aquela mulher, irmão. Ela não merece um minuto do seu tempo!

Não conseguia acreditar que sua ex-mulher havia tido o descaradamente de levar o amante com o qual o traiu para dentro da casa onde ambos viviam com os filhos. Tudo o que ela sempre quis dele foi o dinheiro e hoje tudo era muito claro em sua mente.

— Pedro? — Vivianne apareceu na sala carregando seus pesados livros.

— Demorou hein... Estava fazendo o que? — Provocou sem encará-la, apenas sentado no divã sem muita empolgação. Usava uma camiseta escura naquela manhã ensolarada e um jeans desbotado com botas. Seu aparência, no entanto, era muito cansada e enfadonha.

— Me desculpe pelo atraso! — Apressou-se a dizer enquanto caminhava em direção a ele e depositava os livros em uma mesinha. Retirou rapidamente a caderneta destinada ao caso dele do embolado de materiais e sentou-se em sua banqueta — Hoje é o dia em que temos permissão de sair para dar um passeio na cidade e me atrapalhei em escolher uma roupa. Não estou mais acostumada com isso.

Pedro finalmente a encarou com certa curiosidade.

Pela primeira vez desde que a conheceu estava diante de uma Vivianne sem o habitual vestido azul marinho e o jaleco branco com seu nome estampado.

A noviça não se parecia mais com uma quase freira psicóloga, mas sim com uma moça como outra qualquer. O cabelo longo e escuro descia por suas costas até a cintura e Pedro teve a impressão de nunca ter reparado que eram tão belos. Os mesmos contrastavam com o lindo par de olhos azuis e as poucas sardas espalhadas nas bochechas. Vivianne parecia usar algum tipo discreto de maquiagem - que ele não sabia dizer o que era - mas passava tão despercebido que sequer podia ser notado.

Seu vestuário do dia era um clássico vestido bege com um casaquinho rosa claro cobrindo os ombros e sapatilhas no mesmo tom. Por um segundo Pedro acreditou estar diante de um anjo ao contemplá-la.

Jamais pensou reparar na beleza de uma mulher tão natural, totalmente diferente das garotas que estava acostumado. Vivianne não precisava de roupas da moda, modeladores de cabelo ou quilos de maquiagem para ser incrível e tal fato o surpreendeu.

— Pedro? Está tudo bem? — A voz tranquila o arrancou dos devaneios e Pedro esfregou o rosto para afastar os pensamentos.

Não podia estar pensando que Vivianne Grace, a menina quase freira, era a mulher mais bonita que já havia visto em sua vida.

Isso era pecado, afinal!

— Está Vivianne... É que estou com a cabeça cheia por umas coisas que Paola me contou ontem — Soltou a frase sem sequer pestanejar.

Nunca havia sido tão direto e Vivianne estranhou a deixa tão fácil. Era a primeira vez que Pedro se abria de tal maneira e isso a instigou.

— Você pode me falar do que se tratar... Se quiser, é claro.

Pedro seguiu sentado em frente a ela e buscou não encará-la para não perder o rumo das palavras, mas de fato era incontrolável dirigir o olhar por pouco tempo que fosse. Vivianne o atraia e isso parecia incompreensível. A noviça era tão ingênua a ponto de sequer notar a maneira como ele gaguejava ao encará-la e o jeito como as mãos fortes suavam diante dela.

— Fernanda. Trata-se de Fernanda — Soltou antes que mordesse a língua e dissesse o quanto ela era bonita.

— Sua ex-esposa?

— Sim, a própria. Ela está vivendo em nossa antiga mansão com o atual marido, um empresário português — Não escondeu a revolta em seu tom de voz e muito menos colocou freios na língua. Pela primeira vez abriu o coração, talvez movido pelo constrangimento de estar admirando a noviça — Não consigo compreender o porquê dela fazer isso se o tal cara é um ricaço europeu. Os dois podiam estar navegando a costa, mas estão metidos na casa que ela tirou de mim no divórcio. A casa que construí da maneira que sempre sonhei! Fernanda nunca quis saber de meu estado de saúde após a morte de nossos filhos... A única coisa que ela fez foi me culpar e gritar para todos que me odiava enquanto raspava meus cofres em nosso divórcio. Ela levou tudo e me crucificou diante da sociedade e sequer cheguei a dizer para alguém que foi ela quem insistiu para que eu levasse os meninos para a casa de campo.

— Ela insistiu? — Vivianne sussurrou.

— Sim, insistiu e muito! Queria a todo custo que eu fosse com os garotos para longe por algum tempo e praticamente me obrigou a ir, mesmo com a tempestade iminente. Não estou tentando apaziguar minha culpa, mas... — Vivianne o interrompeu.

— A culpa não foi sua, Pedro — Disse seguramente e os olhos do rapaz se encontraram com os dela — Coloque essa frase de uma vez em seu coração... — A mão dela tocou a dele com cuidado e carinhosamente — A culpa não foi sua!

Por longos segundos os olhos esverdeados de Pedro se prenderam aos azuis de Vivianne e ambos se conectaram em um longo silêncio gritante. O coração do rapaz corria no peito devido ao toque gentil das mãos pequenas nas suas, mas também pelo impacto que as palavras tão firmes da moça causaram em seu coração.

— Não é... — Vivianne o interrompeu novamente. Após tanto tempo ela finalmente tinha a chance de falar e não a desperdiçaria.

— Fernanda quer te atingir e isso é evidente. Talvez ela ainda te ame ou sinta tanta dor a ponto de ter que canalizá-la em outro alguém... Em você, que está mais frágil. Isso é sinal que em algum lugar dentro dela há uma ponta de culpa. Fernanda sabe que não foi sua culpa e também se sente responsável de alguma maneira. Ela sofre, mas, ao contrário de você, não era ela quem estava dirigindo aquele carro — Pedro abaixou o olhar e respirou profundamente.

— Você está enganada, Vivianne. É minha culpa sim! — Pesou a voz sem encará-la, apenas envolto em seu próprio desprezo — Como você mesmo disse, era eu quem estava dirigindo o carro!

— Se realmente fosse sua culpa eu estaria conversando agora com um indiciado por homicídio culposo, não com um interno por problemas de desacato — Pedro ergueu o olhar para ela novamente e viu-se sem palavras — O inquérito está concluído já faz algum tempo, Pedro. O motorista estava embriagado, dormiu ao volante e perdeu o controle do caminhão. O veículo dele invadiu a pista oposta e foi isso que causou o acidente, não você.

— Já chega Vivianne! — Pediu um pouco nervoso e com lágrimas nos olhos — Cada palavra sua me remete aquele dia.

— Se você não encarar os fatos jamais vai se livrar do fantasma que te persegue — Pedro a encarou novamente e a capacidade que Vivianne tinha de lhe atingir era inacreditável — O que guardamos nos aprisiona e nos transforma em escravos. O que contamos e encaramos nos liberta e transforma.

Pedro voltou o olhar para sua mão unida a da noviça sobre o colo e demorou ali por alguns segundos.

— Paola estava certa — Disse sem pensar — Você tem mesmo capacidade de convencer.

— Não quero te convencer — Corrigiu retirando a mão da dele um tanto perturbada. Após um bom tempo tomou noção do que havia feito e se envergonhou pela proximidade — Quero te ajudar.

Pedro se colocou de pé ao final da frase.

— Por hoje é só — A moça também se colocou de pé em frente a ele e rapidamente lhe estendeu um pedacinho de papel amarelo.

— Para você se lembrar de hoje.

O rapaz agarrou sem ler o conteúdo e concordou com um aceno sem querer aprofundar a conversa dolorosa, porém libertadora.

— Bom passeio Vivianne.

Foi tudo que disse antes de deixá-la sozinha na sala e caminhar em direção à porta. Uma vez no corredor, não hesitou em puxar o papelzinho amarelo e ler as palavras contidas nele.

Não foi culpa sua.

 

 

A s vitrines atraiam a atenção de Vivianne enquanto caminhava com as demais noviças e algumas irmãs responsáveis do convento pelo centro comercial da cidade. As garotas não eram acostumadas a sair dos arredores do convento, mas a proximidade do aniversário da madre Superiora as fez abrir uma exceção para irem atrás de um belo presente para a autoridade.

Vivianne não conseguia de fato prestar atenção em tudo ao seu redor, uma vez que sua mente estava presa no Hospital da Graça em um único nome específico.

Ele.

Pedro Pelegrini.

— O que acha desse ramo de flores para presentearmos a madre Superiora? — Júlia, sua colega mais próxima do convento, apontava a sua frente um belo arranjo de flores lilás. Vivianne, no entanto, parecia completamente fora de área naquele instante — Anne? Olá? Está tudo bem com você?

Vivianne piscou algumas vezes e voltou-se para amiga tentando compreender o que se passava.

— Oi? — Encarou o arranjo a sorriu abertamente — Oh, é um lindo arranjo! Poderíamos dá-lo de presente para a madre Superiora, não é? Lilás é a cor favorita dela.

Júlia torceu os lábios e se aproximou ainda mais da colega.

— Está tudo bem mesmo, Anne? Você parece estranha... Anda muito calada e diferente do habitual — Vivianne tentou disfarçar o constrangimento e fingiu observar melhor as flores na vitrine da loja de arranjos.

— Apenas estou cheia de trabalho, Júlia. Sabe como é... Muitos casos e cada vez mais pacientes — Explicou sem muitos rodeios.

— Não sei como você consegue dar conta de tantos casos complicados aliados a rotina de orações e obrigações do convento — As duas caminhavam entre as prateleiras coloridas e Vivianne buscava a todo custo aprofundar a conversa de modo a não chegar no nome de Pedro. Não queria deixar evidente para ninguém o quanto aquele homem mexia com seu coração — Principalmente depois de pegar o caso do Pelegrini.

— Ele também é filho de Deus e merece uma chance. Acaso se esqueceu de que Deus o ama como ama a mim e a você, Júlia? — Relembrou fazendo sua amiga rodar os olhos no rosto. Júlia já era freira, uma vez que já havia realizado os votos e era um tanto mais velha que Vivianne.

— Você está certa, como sempre. Mas ainda sou da opinião de que Pelegrini é um homem muito ferido para ser consertado.

— Tenho fé nele — A curta frase de Vivianne fez a moça encará-la com certa curiosidade.

— Por qual motivo? A única coisa que Pelegrini sabe fazer é arranjar confusão com quem quer que seja — Vivianne nada respondeu, apenas a encarou de lado enquanto apalpava entre os dedos uma das pétalas de um belo e grandioso girassol a sua frente — Não vai me dizer que ele conseguiu te conquistar com seu belo par de olhos claros?

Júlia lançou a pergunta inocentemente, por isso sequer encarou Vivianne e por sorte não notou a maneira como a noviça corou e mordeu os lábios.

— Por favor, irmã. Não diga absurdos... — Suspirou timidamente, buscando sair da vista de Júlia por enquanto — Pelegrini é um paciente que quero muito ajudar. Tornou-se um objetivo profissional que almejo alcançar — Vivianne retirou o grandioso girassol do lugar e o cheirou próximo ao rosto.

— Desafio profissional... Vivianne... Sua primeira prioridade deve ser Deus e se ordenar! — Júlia, que era a freira que acompanhava Vivianne de perto nas obrigações do convento, a repreendeu educadamente — Por esse motivo eu disse a madre que era um erro deixar você se formar antes de se ordenar. O lado profissional acaba sendo mais importante do que as coisas de Deus.

— Recuperar a alegria de um homem também deve ser importante para Deus, irmã Júlia. Não concorda? — Júlia encarou o sorriso esperançoso de Vivianne sem ter nada a responder diante da colocação.

A certeza que Vivianne tinha ao mencionar a recuperação de Pedro Pelegrini, um caso considerado perdido por todos, de certo enchia os olhos de quem ainda acreditava que a esperança era mesmo o último sentimento a desaparecer de nosso coração.

— Espero que saiba o que está fazendo, Vivianne, e não apenas perca tempo com essa história sem pé nem cabeça de um homem que não deseja ser ajudado — As duas caminharam até o caixa e a freira depositou sobre ele o presente da madre.

Vivianne, por sua vez, seguramente depositou ali o belo girassol e com um largo sorriso anunciou...

— Vou levar. Por favor, embrulhe-o para presente.


— Pedro?

Cansado das atividades físicas que tinha acabado de fazer com o professor de ginástica voluntário do convento, Pedro estreitou os olhos sob o sol quando ouviu seu nome ser chamado na porta do vestiário masculino.

Virou-se lentamente até encontrar a dona da bela voz que entoava e respirou fundo ao avistar Vivianne correndo em sua direção. Os cabelos negros esvoaçavam com o vento de início de tarde e os incríveis olhos azuis cintilavam junto ao restante do sol. Seu estômago afundou ao notar o belo sorriso em seu rosto, assim como a maneira delicada como segurava um belo pacote em suas mãos e a alça da bolsinha de lado.

Simplória e doce.

Delicada e bela como um anjo.

A bela noviça agora representava um grande problema, visto que não saía de seus pensamentos nem sequer com as intensas corridas e atividades que pediu para que o professor lhe passasse. Esfregou o suor em sua testa e se envergonhou pela maneira como a roupa estava encharcada pelo mesmo.

— O que foi agora, Vivianne? — Sua colocação um tanto grosseira foi a maneira como encontrou para tentar tirar um pouco do sorriso que o encantava. Não podia de maneira nenhuma manter qualquer pensamento impuro com a quase freira. Apesar de não ser católico, se meter em confusão por uma menina como ela seria totalmente impensado — Veio falar um pouco mais sobre coisas que não desejo lembrar?

— Não... Isso eu só faço em nossas sessões — Deu de ombros meigamente e sequer a dureza do rapaz a fez murchar a expressão iluminada — Vim te trazer isso — Estendeu em direção a ele o pacote branco em seus dedos.

Pedro a encarou sem compreender e vasculhou sua mente em busca de uma imagem mais inocente. Vivianne sorria como uma menina e com os cabelos revoltos ao redor do rosto assemelhava-se a uma pintura feita à mão. Demorou alguns segundos até que ele aceitasse o embrulho e o tomasse para si após longos segundos a encarando com as mãos na cintura.

— O que é? — Questionou olhando mais de perto — Uma flor? — Sorriu sem muito humor e desembrulhando o girassol vistoso.

— Um girassol, Pedro — Explicou com o tom um tanto irônico. O rapaz analisou mais de perto — Nunca viu antes?

— Claro que sim, é muito bonito, mas... Eu por acaso tenho cara de ser o tipo que gosta de flores, Vivianne? — Uma vez mais tentou ser grosseiro, mas a moça não parecia disposta a ceder a sua tentativa de afastá-la — A única coisa que ainda tenho certeza que sou é homem. E muito homem!

— Não te faz menos homem receber uma flor de presente — Deu de ombros — Receber uma flor tem muitos significados e entre eles está o renascimento, a paz e o perdão — A mão dela tocou uma das pétalas do belo girassol e Pedro não pôde deixar de sentir a proximidade do toque dela em seus dedos — Bom... Se não gostou me desculpe, mas tenho o costume de presentear meus pacientes quando fazemos uma boa evolução e com você não podia ser diferente.

— Acha que evoluí, é? — Questionou surpreso e ela seguiu tocando a flor em suas mãos com o olhar meigo de costume.

— Você sabe que sim... Está até fazendo atividade física com o professor! — Analisou o vestuário dele e Pedro se envergonhou — Creio que estamos melhor do que eu pensava.

— É a primeira vez que me juntei a turma depois de um bom tempo — Confessou um tanto encabulado — Estou com umas coisas confusas na cabeça e precisava extravasar de algum jeito. Aqui dentro não me restam muitas opções...

— Isso é ótimo, Pedro. Estou muito feliz... Não pode imaginar o quanto! — A vontade de Vivianne era abraçá-lo fortemente, mas tinha plena consciência de que estavam em um local público dentro do convento e que não seria nada apropriado, por isso tocou a mão dele com carinho — Nós vamos conseguir.

Pedro abaixou o olhar e não teve coragem de dizer nada que a desencorajasse, mesmo que essa fosse a coisa certa a ser feita.

— Vivianne... — Chamou-a quando a moça estava prestes a sair — Obrigado pelo presente.

Um sorriso foi sua resposta e Pedro a observou caminhando até que desaparecesse.

Uma vez mais encarou a flor em suas mãos e sentiu como se o belo girassol fosse o suave toque de Vivianne em seus dedos. Jamais conheceu uma mulher como ela... Alguém que não precisasse usar da sedução para encantá-lo.

Apertou os olhos com os dedos ao sentir o peito queimando com a lembrança dela.

Vivianne o confundia com sua inteligência.

Vivianne o desconcertou com sua gentileza.

Vivianne o impressionava com sua beleza e o pior...

O fazia querer viver de novo quando estava próximo dela.

Notou um pequeno bilhete atrelado ao caule do girassol e o puxou para ler discretamente.

“Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para perdoar nos purificar de toda injustiça.” — 1 João 1:9.
“Não se esqueça... Não foi culpa sua.”


Vivianne segurava entre seus dedos um lindo porta retrato onde era exibida uma bela fotografia de sua família reunida.

Estavam todos lá... Seus dois irmãos mais velhos em pé ao lado dos pais, que sentavam-se no belo banco da fazenda da família. Ela, mais jovem na época, sentava-se aos pés da mãe com um sorriso largo e contente por poder posar para foto. Costumava ser escondida pelos pais, uma vez que ambos temiam que o mundo corrompesse os pensamentos da garota e a menina acabasse se desviando do caminho religioso. Era constantemente proibida de tirar fotos, ter redes sociais ou qualquer interação que desagradasse seus genitores. Sentia-se como um passarinho preso na gaiola por toda a vida e, por incrível que pareça, o convento era o lugar onde mais pôde ser livre em toda sua história.

Ao lado das freira ao menos estava livre do jugo dos pais e da dura imposição que significavam. A madre superiora - considerada por tradição demasiadamente conversadora - soava como um anjo ao lado de seus pais extremamente religiosos e marcados pela tragédia com suas irmãs.

Sabia que podia ser livre se quisesse, mas não tinha coragem para abdicar a família e muito menos foi criada com desenvoltura suficiente para encarar o mundo lá fora sozinha. Já não dependia financeiramente da fortuna dos pais, uma vez que tinha sua própria profissão, mas emocionalmente sentia-se responsável por toda a loucura que envolvia sua família.

Como uma garota criada em uma redoma - sempre protegida pelos pais ou atrás dos muros altos de instituições religiosas - poderia se tornar de hora para outra uma mulher independente? Vontade não faltava a Vivianne, mas de certo não saberia se virar e muito menos imaginava como poderia.

Apesar de tudo, não podia negar que amava e admirava os pais. Irma e Joseph a criaram de tal maneira imaginando que a protegiam devido a tudo que houve com as outras meninas. Não tinha verdadeiramente coragem suficiente para confrontá-los.

— Está ouvindo isso Vivianne? — Júlia, que também era sua colega de quarto, levantou-se um tanto assustada com os gritos que vinham do corredor.

Vivianne largou a fotografia e também sentou-se apressadamente. Não demorou até que as duas ouvissem batidas frenéticas na porta do quarto. Júlia afastou as cobertas e caminhou até a porta um tanto nervosa, deparando-se com a auxiliadora da madre superiora um tanto aflita demais para o horário. A mesma usava roupas de dormir e estava coberta pelo robe da camisola, como era padrão do convento.

— Irmã Júlia, onde está noviça Vivianne? — Júlia abriu ainda mais a porta e Vivianne apressou-se em juntar-se a elas fechando o robe de sua camisola de maneira a não se expor.

— Boa noite irmã. Está tudo bem?

— Não, Vivianne. Seu paciente precisa de você — Declarou nervosamente e sem esconder que estava assustada.

— Pelegrini? — Questionou com o coração preocupado — O que houve? — Não deixou sequer que a senhora terminasse, adiantando-se a sair porta afora — Onde ele está?

— Ele está em surto em seus aposentos, mas travou a porta de modo que ninguém entre — As duas caminhavam rapidamente pelo corredor em direção ao alojamento dos internos — A madre está tentando falar com ele para que abra, mas não está obtendo sucesso.

— Oh, por favor! Basta que usem a chave reserva e mandem os rapazes segurá-lo! — Interveio sem compreender.

— Ele quebrou os vidros da janela e a madre acha que vai tentar se suicidar — Explicou assim que chegaram a frente do quarto de Pelegrini. A madre, alguns médicos e freiras estavam ali conversando entre si, todos usando trajes de dormir — Mas ele topou falar com você... Por isso te chamamos.

— Pedro, está me ouvindo? — A madre disse próxima da porta assim que avistou Vivianne — A noviça Vivianne está aqui... Não deseja falar com ela?

— Pedro? — Vivianne trocou um longo olhar com a madre e notou a preocupação em seu olhar — Sou eu, Vivianne. Posso entrar?

— Minha querida Vivianne — A madre disse baixinho e tocando em seus dedos — Acho que nós estávamos erradas... Esse moço... — Apertou os lábios em sinal de desolação.

— Acalme-se, madre. Vai ficar tudo bem — Garantiu docemente e no mesmo momento ouviram um alto barulho atrás da porta.

Pedro destravou seja lá o que tenha feito para trancar a porta e abriu passagem para que Vivianne entrasse em seu quarto. A madre lhe segurou pelo ombro e a empurrou em direção a porta, de maneira que Vivianne compreendeu bem o recado: Ela deveria falar com ele!

Caminhou até a porta e adentrou um tanto nervosa, mas querendo demonstrar segurança diante de seu paciente. Ele estava com vidros lá dentro e poderia feri-la, mas Vivianne sabia que Pelegrini não era um assassino e não lhe faria qualquer mal.

Ao entrar, no entanto, deparou-se com uma das cenas mais desoladoras de sua vida.

 

 

I ncontáveis fotos dos garotos Stefano e Pietro estavam espalhadas pelo chão e se mancharam pelo sangue que escorria de um dos braços de Pelegrini. O quarto resumia-se a uma pequena cama sob a janela e um pequeno armário ao lado da mesma.

Um grande pedaço da vidraça da janela era facilmente reconhecida cravada no braço forte de Pedro, exatamente sob a tatuagem com o nome dos garotos. A camisa branca também estava suja com sangue e nitidamente o rapaz sentia muita dor.

— Pedro... — Cobriu os lábios com as mãos e aproximou-se dele em passos lentos. Sentado abaixo da janela, Pelegrini suava e Vivianne tinha certeza que parte do aguaceiro em seu rosto eram lágrimas — Pedro... Porque você fez isso?

Abaixou-se ao lado dele com calma e rapidamente buscou um pedaço de pano para limpar o sangue que escorria de seu ferimento e o suor em seu rosto. Ela jamais viu um homem tão grande parecer tão frágil sob suas mãos.

— Porque você fez isso comigo, Vivianne? Porque chegou e abriu as feridas de um jeito que ninguém antes tinha feito? Porque me deu aquela flor e... Ai! — Reclamou quando ela tocou em algum lugar em seu braço.

— Vamos limpar esse machucado... Você vai tomar pontos, ao que parece — Tentava desviar o assunto nitidamente preocupada com a gravidade do ferimento e a maneira como ele parecia sofrer — A dor precisa ser sentida, mas não desse jeito, Pedro. Não faça isso novamente...

Pela primeira vez em anos Pedro via alguém realmente preocupada e triste pela situação dele, mas de uma maneira especial. Vivianne tinha lágrimas nos olhos, porém buscava ser segura em suas ações para deixá-lo mais calmo. Tal fato o comoveu. Tal fato o tocou tão profundamente que não pôde controlar a avalanche de sentimentos em seu coração.

— De qual jeito, então, irmã? — Questionou ao vê-la tão perto. O rosto de Vivianne estava a centímetros do dele e a sensação de proximidade o incendiou por dentro. A quanto tempo não ficava tão junto de uma mulher? — Você está me fazendo esquecer a dor por alguns momentos e isso não pode acontecer...

Pedro não se referia somente ao tratamento, mas especificamente ao fato de a noviça tomar conta de seus pensamentos constantemente. Quando fechava os olhos e apenas o que podia ver era o belo par de olhos azuis sorrindo para ele, Pedro perdia o controle.

— O que te fez esquecer? — A pergunta dela era uma resposta surpresa para a colocação dele. Vivianne não esperava tais palavras, muito menos o que veio a seguir.

O silêncio dominou entre ambos enquanto os olhos verdes de Pelegrini brilhavam em direção a ela mesmo repletos de lágrimas. O olhar profundo, admirado e apaixonado não passou despercebido pela inocente noviça, que pela primeira vez em toda sua vida sentiu o corpo todo pegando fogo pela proximidade com aquele ferido homem.

Uma das mãos dela segurava um pano no braço dele para estancar o sangue e a outra teve de se apoiar no peito largo quando o rapaz a puxou em direção a seus lábios em um encontro surpreendente e devastador.

Vivianne sequer sabia beijar e muito menos teve tempo de raciocinar ao sentir os lábios firmes nos seus pela primeira vez. Não se moveu, somente o acompanhou quando seu corpo em um reflexo aproximou-se ainda mais do peito forte de Pelegrini. Apertou os olhos para afastar os pensamentos e sentiu que algo muito forte varria para longe qualquer vontade de afastá-lo.

Jamais pensou que podia sentir algo tão poderoso quanto o desejo que a atravessou ao beijá-lo.

O pano ensanguentado caiu de suas mãos e todo o corpo estremeceu. Era como despencar de um precipício e Pedro usou as mãos fortes para ampará-la diante da fraqueza que atingiu-a. As mesmas mãos fortes a guiaram em um beijo calmo e proibido, algo tão secreto que até mesmo a escuridão da noite não podia presenciar.

A doçura de Vivianne encantou Pedro de maneira tão profunda que o rapaz estava seguro de que poderia fazê-la sua ali mesmo... Não fosse, é claro, pelo fato de Vivianne ser uma noviça e ele seu paciente.

— Vivianne... — Ela o afastou com um empurrão sutil e colocou-se de pé em uma passada nervosa — Meu Deus... Eu não...

As palavras o faltavam e a moça sequer conseguia pensar. Estava corada até a raiz dos cabelos e seu coração corria tão fortemente no peito que estava convicta de que em breve explodiria! Cobriu os lábios com as mãos e apertou os olhos de modo a evitar encará-lo. Pedro se levantou com dificuldade e parou diante dela totalmente desconcertado. O braço sangrava, mas nada parecia doer mais do que a burrada que havia feito.

Beijar a noviça.

De certo estava ferrado com F maiúsculo!

— Vivianne... — Tentou falar novamente — Me desculpe, eu...

— Vou chamar o Doutor José Luiz e você vai fazer o que ele pedir, tudo bem? — Mais controlada e com a aparência melhor, Vivianne tentou manter-se firme mesmo que todo seu interior desfalecesse em calor e desespero.

— Vivianne, espera... — Pedro tentou segurá-la, mas a moça lhe deu as costas e saiu apressadamente.

Sequer teve tempo de contestá-la, mas fez o que ela pediu. Não se opôs quando o Doutor José Luiz - o psiquiatra que costumava atendê-lo e desistiu de seu caso - apareceu. Seguiu as recomendações, tomou as medicações por conta própria e deixou que as enfermeiras lhe dessem os pontos no braço.

Nada o confundia mais do que o beijo que deu em Vivianne.

Nada nunca havia sido como aquilo.

Ainda podia senti-la entre seus braços... Beijá-la havia sido como tocar o céu e Pedro estava convicto de que a quase freira com olhos de anjo era de fato um ser celestial.


Vivianne trocou algumas palavras com a madre e o doutor José Luiz sobre Pelegrini e, assim que o viu sendo atendido pelo médico, alegou estar indisposta e retornou para seu aposento buscando finalmente se refugiar.

Não queria demonstrar o turbilhão de sentimentos que atravessavam seu coração e se ficasse muito tempo diante dos olhos alheios tudo ficaria demasiadamente evidente. Júlia já dormia quando retornou e agradeceu silenciosamente pelo fato.

Sentou-se na beira da cama e sequer conseguiu se mover ao retornar ao momento que viveu poucos minutos atrás. Parecia estar imersa em um sonho, por isso tocou seus lábios ainda inchados pelo beijo enquanto observava sua mão trêmula. Apertou os olhos com o nervosismo e se martirizou por desejar poder voltar no tempo.

Jamais havia sido beijada e, apesar de ter fantasiado com o fato algumas vezes, nunca havia considerado que realmente pudesse acontecer. Os homens tinham medo de se aproximar devido ao status de noviça e em sua cidade natal todos temiam seu pai, um importante fazendeiro. Pelegrini era o único louco suficiente para tentar se aproximar dela.

Jamais havia ficado tão próximo de um homem e o mais assombroso de tudo é que não havia se intimidado, tão pouco o repudiado, como as demais irmãs diziam que o fariam se estivessem em determinada situação.

Seu coração corria no peito e mal podia controlar a emoção que lhe tomava por completo. Estava encantada com o beijo e isso a assustava mais do que qualquer coisa!

— O que ele tem na cabeça para fazer isso comigo? — Sussurrou a si mesma enquanto retirava o robe da camisola e se metia sob as grossas cobertas — Meu Deus... — Sussurrou no escuro — Como vou contar isso para a madre?

Deveria contar.

Mas não deveria!

Deveria dizer o que houve imediatamente para a madre, mas certamente o pouco de credibilidade que Pedro ainda possuía com ela iria por água a baixo e o rapaz estaria entregue novamente a custódia da justiça antes que o dia seguinte terminasse. Se não contasse e fosse descoberta, por outro lado, estaria colocando seu chamado em risco e com ele toda sua trajetória. Poderia ser expulsa do convento caso fosse pega em uma situação tão comprometedora com um homem, ainda mais sendo ele um de seus pacientes.

Vivianne sequer pregou os olhos naquela madrugada. Passou largas horas em claro orando a Deus para que conseguisse reunir coragem suficiente para se abrir com a madre superiora e dizer de uma vez que Pelegrini não poderia mais ser seu paciente.

Foi isso que decidiu após ponderar todos os lados da balança.

Contaria a madre... Não podia colocar sua vida religiosa em risco por um paciente que sem medir qualquer consequência se aventurou a beijá-la. O que sentiu a assustou demasiadamente e mais do que nunca precisava dele longe naquele momento. Pedro poderia acabar com seus planos e tudo que ela construiu até ali caso insistisse no que havia acontecido.

Ele a queria longe, afinal, e estava tendo êxito na missão.

O dia amanheceu e Vivianne teve de se concentrar para disfarçar bem seu conflito interno. Caminhou certeiramente para o gabinete da madre superiora sabendo que se demorasse um pouco mais e tivesse mais tempo para pensar não o faria. Tinha de agir com a razão e jogar Pedro Pelegrini de uma vez na fogueira antes que aquele ferido homem a incendiasse de maneira irreversível.

Pedro podia estar brincando com ela, mas Vivianne não sabia fazer parte da brincadeira. Era um jogo muito injusto um homem como ele envolver uma garota inexperiente como ela. Uma garota prometida.

Bateu a porta da madre um tanto receosa por ser sábado de manhã e não encontrar a secretária auxiliadora e logo recebeu permissão para entrar.

— Vivianne, querida, como você se fez oportuna! — A voz da madre a surpreendeu, porém não mais do que adentrar a grande sala e se deparar uma vez mais com o par de olhos verdes mais perigosos que já vira — O senhor Pelegrini disse que tem algo a me dizer sobre você... É ótimo que esteja presente, assim podemos fazer uma pequena reunião sobre o caso todos juntos.

Pelegrini a encarou como se pedisse desculpas e Vivianne congelou sob sua presença. Tudo sumiu de sua mente ao vê-lo ali, disposto a contar o que ela vinha justo dizer.

Era claro para ela que Pedro estava ali para falar sobre o beijo, do contrário porque a encararia com a expressão tão transtornada e pesarosa? Sentia-se da mesma maneira, mas as palavras travaram sua garganta.

O rapaz estava com o braço esquerdo imobilizado e um grande e extenso curativo lhe cobria o músculo onde outrora esteve o vidro cravado. Usava uma camisa verde na cor de seus olhos, jeans claros e o cabelo bagunçado. Sua aparência cansada refletia que também não tinha tido uma boa noite e notoriamente desejava dizer tantas coisas quanto Vivianne.

Travaram-se mutuamente diante do olhar curioso da madre superiora. Seu coração falou mais alto diante de toda a situação e certo fogo ardeu em seu peito. Não podia entregá-lo. Simplesmente não conseguia.

— O que queremos dizer é que chegamos a um ponto onde ficou difícil continuar, madre. Passei dos limites com Vivianne e... — A moça o interrompeu rapidamente.

— E agora Pedro aceitou consultar-se voluntariamente com o doutor José Luiz — Completou arrancando um suspiro de surpresa da senhora — Chegamos a um ponto onde somente as sessões não estão sendo suficientes e Pedro tomou ciência de que precisa de um profissional da psiquiatria para complementar o tratamento — O olhar surpreso do rapaz em direção a ela deixava evidente que não era o que de fato pensava. Vivianne tomou partido da situação e o colocou em uma enrascada. Cabia e ele desmenti-la para se safar, mas não foi o que aconteceu — O doutor pode ficar tranquilo porque Pedro se comprometeu a tomar as medicações corretamente e seguir as instruções adequadas... Não é mesmo senhor Pelegrini?

Vivianne sabia que estava errada em mentir e colocá-lo em tal situação, mas o sopro de esperança em ajudar aquele ferido homem ainda era mais poderoso do que a vontade de mandá-lo para longe. Sabia que a madre o expulsaria caso soubesse do beijo, por isso resolveu mudar o rumo da história.

Colocava a si mesma em perigo deixando-o ficar... Não somente por estar ocultando o ocorrido da madre superiora, mas por aceitar prosseguir sob o mesmo teto que Pedro Pelegrini.

A simples presença dele a fazia estremecer por dentro e cada vez mais estava convicta de que deveria ficar longe dele... Somente não sabia como.

— Senhor Pelegrini? — A madre chamou a atenção dele quando o rapaz se manteve calado, limitando-se a encarar Vivianne de maneira extremamente confusa — O senhor realmente tomou ciência da importância do tratamento que estamos fazendo?

— Sim madre — Respondeu sem desviar o olhar de Vivianne. A moça buscava ser indiferente a ele, mas não podia conter a vontade de encará-lo — Tudo o que Vivianne disse é verdade.

A noviça respirou aliava ao ouvi-lo e sorriu para a madre, que parecia estar em um dos momentos mais felizes de sua vida.

— Como é bom ouvir isso, senhor Pelegrini. É muito bom saber que o senhor está evoluindo tão rapidamente. Melhor ainda é saber que Vivianne não me decepcionou e segue crescendo em sua profissão — A admiração nas palavras da madre fizeram Vivianne corar — Essa realmente é minha menina de ouro!

— Sim, ela é — Pedro completou de maneira enfática — Vivianne sabe mesmo convencer as pessoas.

— Por isso eu te disse que ela é...

— Minha última esperança, eu sei — Completou encarando a noviça sem desviar. Vivianne estava segura de que poderia derreter sob aquele olhar e se envergonhou por Pedro a percorrer com os olhos daquela maneira diante da madre — A senhora tinha razão, madre, devo confessar. As sessões com Vivianne têm sido muito boas para mim e agradeceria se ela pudesse continuar me ouvido e auxiliando.

Vivianne o encarou receosa.

Ele sorriu e ela soube naquele momento que Pelegrini estava usando de sua mesma artimanha para convencê-la a continuar atendendo-o. O olhar dele deixava tudo bem claro...

“Você não vai fugir de mim”.

Era o que os olhos verdes falavam em silêncio.

— Por certo que sim, não é Vivianne? Seu caso é um compromisso nosso e Vivianne apenas te deixará partir quando estiver curado, senhor Pelegrini.

Vivianne suspirou e dissimulou em frente a madre. Não havia o que dizer para se livrar dele e muito menos podia se dar por vencida agora. Mais uma vez Pedro lhe passava a frente e ela se via presa em uma enrascada.

Pedro era sua enrascada.

 

 

 

P edro não costumava entrar no convento e sequer sabia se tinha permissão para isso, mas naquela tarde de domingo não pôde controlar o impulso de procurá-la.

Sequer sabia como sair do hospital da Graça para adentrar a casa das freiras, mas vasculhou pelo local até conseguir uma pista de por onde deveria ir. Podia ser barrado, talvez, mas nada o impediria de finalmente estar cara a cara com Vivianne sozinho. Ela fugia dele como o diabo da cruz então cabia e Pedro procurá-la de uma vez.

— Frida, espera — O rapaz segurou a jovem de cabelos vermelhos pelo braço e ela o empurrou de maneira nervosa — Calma, estou em missão de paz!

— Não gosto que toquem em mim, Pelegrini, qual é! — Ajeitou-se ao notar que Pedro era conhecido — Sabe como funciona um trauma.

— Desculpe... — Sussurrou olhando ao redor e baixando o tom de voz — Por acaso sabe como faço para entrar no convento?

— É só seguir até o final e virar a direita — Apontou o final do corredor e Pedro olhou na direção em que ela apontava um tanto curioso demais — Mas que diacho você quer fazer no convento? E que raios houve com você, cara? Pedindo desculpas... Dando uma de bom moço... Qual é?

— Preciso falar com Vivianne — Confessou ainda de maneira discreta — Ela anda me evitando, mas tenho umas coisas para acertar com ela.

— Vivianne? — A menina sorriu e torceu os lábios — Acabei de vê-la. Nós almoçamos juntas e ela não estava muito amigável quando perguntei de você. O que foi que você fez para ela ficar tão bolada?

— Melhor nem te falar... Você não acreditaria — Piscou de maneira sedutora e a menina deu de ombros — Sabe onde ela está agora?

— Na capela fazendo suas orações — Rodou os olhos no rosto — Coisas de freira.

— Quase freira — Pedro completou antes de sair da vista de Frida — Obrigado pela ajuda.

Não sabia ao certo como funcionavam as coisas no convento, porém não foi impedido de entrar e caminhar pelas áreas livres do lugar. Notou a presença de alguns rostos conhecidos por ali e isso o relaxou. Talvez por ser domingo a tarde as visitas estivessem liberadas, quem sabe?

Parou próximo da capela e notou a presença de algumas noviças lá dentro, todas vestidas como Vivianne. Não foi difícil localizá-la ajoelhada em um dos bancos orando em silêncio. A moça usava um bonito véu branco sobre os cabelos escuros e longos enquanto sussurrava suas preces de maneira nervosa. Parecia realmente conversar com Deus e isso o tocou um tanto profundamente.

O que estava fazendo?

Perguntou-se Pelegrini enquanto se aproximava dela em passos lentos. Vivianne era uma noviça... Uma garota prometida... Que direito tinha dele de beijá-la? Que direito tinha ele de não permitir que ela fugisse? Que direito tinha de sonhar com ela mesmo em meio a tantas feridas?

Que direito tinha ele, um homem tão pecador e machucado, de tocar em uma criatura tão pura e bela como ela?

— Você deveria falar mais alto — Pedro disse ajoelhando-se ao lado dela. Vivianne apenas abriu os olhos e o encarou lentamente — É o que minha tia dizia... Se nós orarmos em voz alta Ele escuta melhor.

— Ele nos escuta de qualquer maneira — Respondeu secando uma lágrima que rolava em sua bochecha e o olhando de maneira confusa — O que está fazendo aqui, Pelegrini? Como chegou até aqui?

— Você foge de mim, não foge? Parece que as coisas mudaram... Antes era eu quem fugia de você — Pedro seguiu ajoelhado ao lado dela e Vivianne nada disse, apenas desviou o olhar para outra direção — Porque você mentiu para a madre ontem, Vivianne? Porque não contou o que houve e acabou com tudo isso de uma vez?

— O que queria que eu dissesse a ela? — Abaixou o olhar de maneira a evitá-lo.

— Que eu te agarrei e te beijei a força — Completou calmamente — Acho que seria o suficiente para que ela me mandasse para bem longe.

— Eu estaria mentindo — Vivianne disse sem pensar, mas não o deixou terminar. Colocou-se de pé rapidamente e se afastou dele em passadas precisas. Pedro a seguiu de perto — Pedro, por favor. Me deixe em paz!

— Você mentiu de qualquer jeito, Vivianne, e se estou aqui é para te pedir desculpas.

— Você já fez isso e já está perdoado — Disse um tanto nervosa — Mas não acho prudente que sigamos trabalhando juntos depois do que aconteceu e você deve respeitar minha vontade. Por favor, não volte a me perturbar.

O coração de Vivianne doeu ao dizer tais palavras, porém era o que sua racionalidade dizia que deveria ser feito. A moça seguiu caminhando em direção a saída da pequena igreja e Pedro não desistiu de persegui-la. Já nas escadarias da capela, o rapaz se colocou à frente dela após segurar seu braço. Vivianne se deteve e olhou ao redor para ter certeza de que não estavam sendo observados. Uma cena como aquela seria suficiente para levantar rumores sobre sua relação profissional com Pedro Pelegrini.

— Não Vivianne... Espera! Você já viu isso aqui? — Pedro a surpreendeu com o questionamento, principalmente quando olhou para o objeto que ele segurava em mãos.

Tratava-se de um colar prateado com pingente de cruz exatamente igual ao que a própria Vivianne carregava em seu pescoço. A semelhança era tanta que a noviça levou uma das mãos em direção ao peito em busca de seu colar. Ao sentir sua jóia, avaliou a semelhança de ambos e se colocou ainda mais confusa.

— O que significa isso?

— Nós temos um colar igual — A colocação dele a fez analisar ainda mais profundamente — Não acho que nós estejamos juntos aqui por acaso, Vivianne. Desde que a madre me falou de você e sobre você ser minha última esperança algo diferente vem acontecendo comigo, não sei se sou capaz de te explicar...

A moça estreitou o olhar e tentou parecer controlada. Por dentro todo seu corpo estava em chamas diante da presença imponente daquele belo homem grandioso que poderia cobri-la com seu corpo se desejasse.

— O que está querendo dizer Pelegrini? — Não disfarçou seu tom de voz alterado, mas manteve-se parada diante dele com toda sua firmeza — O que está acontecendo não era exatamente o que você queria? Eu fui a última pessoa a acreditar em você dentro deste lugar e agora acabou... Não era seu objetivo me afastar para que eu abandonasse seu caso? Pois bem... Você conseguiu! — Pedro a observava parado a sua frente com as mãos na cintura de maneira desconcertada. Jamais sentiu tanta raiva de si mesmo quanto sentia agora por ter assustado Vivianne com o beijo. Era nítido que a noviça havia mudado com ele.

— Me desculpe por ter te beijado — Sussurrou aproximando-se um pouco mais dela, porém Vivianne recuou. Era a primeira vez que falavam abertamente sobre o assunto — Eu estava fora de mim e perdi o controle.

Vivianne o encarou em silêncio durante alguns segundos antes de ter coragem para responder.

— Você deveria saber que não pode fazer isso comigo. Sou uma...

— Noviça, eu sei — A interrupção dele foi imediata — Sei que errei, Vivianne, mas ultimamente a única coisa real em minha vida é você e...

— Olhe para mim! — A moça apontou para si mesma de maneira enfática, principalmente em direção a seu vestido cinza até as canelas e o véu sobre seus cabelos longos — O que você vê?

— Quer mesmo saber? — Questionou com um sorriso de lado.

— Pelegrini... — Apertou os olhos já se sentindo mais corada do que deveria — Sou uma moça prometida e você nunca deveria ter tido a audácia de me tocar. Eu deveria ter te dado um tapa na cara naquele dia e saído de lá direto para o gabinete da madre, mas...

— E porque não fez isso? — A interrompeu — É o que quero entender. Se você é tão segura da sua posição de noviça e prometida porque não contou logo para a madre, Vivianne? Essa história já teria terminado para sempre se você realmente quisesse... — O tom de súplica de Pedro a fez considerar — Por favor, Vivianne... Não me abandone agora que consegui respirar pela primeira vez depois de tanto tempo.

O olhar esverdeado era o mais sincero que Vivianne já havia visto em Pelegrini. Apertou a bíblia que carregava em mãos ainda mais contra o peito e fechou os olhos em nervosismo. Odiava encará-lo tão de perto. Odiava aquele olhar tão arrebatador combinando com o perfume que a embriagava. Não tinha forças para discutir com Pelegrini, muito menos quando sabia perfeitamente de sua desvantagem desleal.

— Não cheguei até aqui para te abandonar — Garantiu convicta — Não vou arruinar todo seu tratamento por uma bobagem como um beijo.

— Bobagem?

— Não vou deixar de te atender, mas existe uma condição... — Ele concordou imediatamente — Você nunca vai dizer a ninguém sobre o beijo e nunca mais voltará a se aproximar de mim novamente. Entendeu?

— Tudo bem.

— Sou prometida a Deus desde que nasci, Pedro. Você não pode chegar aqui e arruinar tudo porque sou uma novidade na sua vida — Pontuou firmemente.

— Está dizendo isso para mim ou para você mesma? — Vivianne nada respondeu, apenas seguiu encarando-o com firmeza — Vou me comportar. Eu prometo.

— Então até amanhã, senhor Pelegrini.

— Até amanhã, Vivianne.

A moça se afastou sentindo o olhar de Pelegrini lhe devorando pelas costas. Cada palavra dele martelava em sua mente de maneira desconcertante.

“Não me abandone depois que consegui respirar pela primeira vez”.

“Você é a única coisa real em minha vida ultimamente”.

O que ele estava pensando?

O que ela estava fazendo quando considerou continuar a ajudá-lo?

Era um grande erro seguir ao lado de Pelegrini no tratamento, mas fugir dele parecia a coisa mais complicada do mundo. Não mais difícil, no entanto, que fugir dela mesma. Vivianne desconversou quando questionada, mas no fundo de seu coração sabia a resposta do porquê não entregou Pedro para a madre...

Não podia.

Não desejava.

Não queria.

Pedro também era a coisa mais real para ela naquele momento, mas de certo jamais chegaria a saber. Algumas freiras talvez se apaixonem, e o amor dela sempre estaria escondido, oculto e trancafiado como um pecado que jamais poderia ser descoberto.


Pedro não podia mais se aproximar dela.

Vivianne não sabia porque, mas tal afirmação a deixava um tanto receosa. Pelegrini era um homem difícil e adorava desafios. Esperava em Deus, no entanto, que ela não representasse para ele apenas um objetivo sem fundamento. Estar na mira de um homem significaria problemas, principalmente sendo ele um de seus pacientes.

— Pedro já está avisado... Ele não voltará a me perturbar — Pontuou a Frida assim que terminaram de conversar.

— Uau, Anne — A garota de cabelos vermelhos estava realmente impactada pela narrativa que acabara de ouvir da amiga noviça — Você e o Pelegrini... Quem iria imaginar...

— Eu e o Pelegrini nada, Frida! — Exclamou nervosamente, porém em tom de voz controlado. As duas conversavam sentadas na sala de estudos das noviças e Vivianne seguia com sua pilha de livros pousados a sua frente. Os mesmos formavam uma pequena torre que impedia os demais de vê-las — Foi só uma vez e eu fui agarrada! Ninguém pode sonhar que isso aconteceu! Ouviu bem?

— Seu segredo está salvo comigo, Anne. Você é minha única amiga e sabe tanto sobre mim que seria até injusto comparar com esse segredo — Ironizou — Mas convenhamos... Você ficou bem nervosa com tudo isso, não ficou?

A garota sorriu sorrateiramente e Vivianne soltou um muxoxo envergonhado. Seu rosto corava com a simples lembrança de estar nos braços de Pedro.

— Aquele homem é um atrevido! — Disse entredentes, mas de fato não sentia raiva. A coisa que queimava em seu peito era muito mais intensa do que isso — Até agora não entendo como ele pôde... Como teve a audácia de me tocar!

As mãos de Vivianne tremiam enquanto falava e Frida teve vontade de rir.

— Você gostou, né?

— Do que? — Vivianne a encarou surpresa.

— Do beijo, menina — Ironizou — Seu rosto está pegando fogo e você parece que vai explodir cada vez que fala o nome dele. Anda, Vivianne, assume! Está dando para ver nos seus olhos que Pedro Pelegrini, o gostosão tatuado, mexeu com seu coraçãozinho de noviça! — Frida se divertia zoando Vivianne e não tinha ideia do quão reais eram suas palavras naquele momento.

Sim. Mil vezes sim!

O coração de Vivianne gritava. Mas não... Jamais assumiria em voz alta que havia realmente gostado.

— Frida, por favor... — Sussurrou sem encará-la, fingindo juntar os livros uma vez mais — Fiquei surpresa porque nunca havia sido beijada antes. Nada mais do que isso.

— É, tá bom... Estou vendo que foi isso mesmo — Ironizou e a noviça seguiu sem encará-la — Que bom, então. Porque isso prova que você realmente tem vocação para ser freira, não é mesmo? — O jogo de palavras da garota ruiva fazia Vivianne fervilhar por dentro — Que bom que você não gostou nada de ter sido agarrada pelos braços musculosos do Pelegrini. Muito menos de ter sido beijada por aquela boca deliciosa, estreitada contra o peito largo e sentindo aquela pele quente contra a sua...

Ao final das palavras de Frida o rosto de Vivianne parecia pegar fogo. Tudo... Absolutamente tudo ela sentia! Era como voltar no tempo e estar novamente naquela cena que se repetia a cada minuto em sua mente apavorada. Somente pensar em Pelegrini lhe causava arrepios e a ideia de encontrá-lo novamente era tentadora. Estar sozinha com ele seria uma tentação dali em diante.

— Estou realmente feliz porque você parece muito melhor do seu trauma com homens, Frida. Seu tratamento tem surtido o efeito desejado — Desconversou tentando sorrir.

— Os livros de romance que você me indicou estão fazendo bem. Lá consigo ver que o amor não tem nada a ver com promiscuidade... Nem com pecado ou lascívia — Vivianne suspirou. Frida sabia que era assim que os pais de Vivianne sempre descreveram o amor para ela. O medo da garota se desviar do caminho religioso levou Irma e Joseph a pintarem o amor como algo pecaminoso para a filha mais nova.

— Falando nisso... Vamos? — Vivianne se colocou de pé carregando alguns livros — Você vai participar hoje da aula comportamental.

— Ah não, Vivianne. Isso não!

— Ah sim... Isso sim! — As duas começaram a caminhar e Frida parecia estar sendo levada para forca, tamanha sua apatia — É muito importante participar.

— Pois é, não é? — Pararam na porta da sala de aula e Frida espiou pela vidraça da entrada — Veja só seu mais aplicado paciente sentado na primeira fila.

Os olhos de Vivianne não acreditaram no que viram.

Ele estava lá.

Pedro Pelegrini.

E parecia mais atraente do que nunca.

 

 

A ulas comportamentais eram a parte mais complicada para Pedro em todo tratamento.

Tomar as medicações, praticar atividades físicas, ajudar em trabalhos sociais e as sessões com Vivianne eram fichinha perto de cinco horas por semana tendo que ouvir um padre ou uma freira falando sobre reintegração social.

— Só algumas horas, Pedro. Só algumas horas... — Sussurrou para si mesmo enquanto sentava um pouco mais a vontade nas cadeiras do auditório de aulas.

Precisava cumprir algumas horas entediantes para finalmente estar livre de tudo isso e poder provar a si mesmo que era melhor do que sua atual situação. Não somente por ele, mas por Vivianne, que também acreditava nele.

Um sonho que teve após o beijo com Vivianne fez brotar nele novamente a vontade de viver. Não pela paixão que vinha sentido nascer no peito somente, mas pela certeza de que Stefano e Pietro não iriam querer que sua vida acabasse desse modo. Seus filhos desejariam que ele voltasse a viver.

Sonhou claramente naquela noite que os garotos corriam em sua direção sem dizer nada e lhe entregavam flores. Girassóis como Vivianne Grace, a noviça, havia dado a ele. Stefano e Pietro sorriam alegremente e os olhos verdes dos garotos - como os dele - transmitiam paz e tranquilidade. Os dois brincavam em um belo jardim e estava junto a luzes de bons sentimentos.

Estavam bem.

Estavam em paz.

Estavam com Deus.

Após os meninos se afastarem lhe dando tchau de longe, Pedro ouviu uma voz muito clara ecoando em meio ao belo jardim.

“Não desista, Pedro. Coisas boas ainda tenho para você. Nunca desista”.

Despertou naquela manhã sabendo que não deveria parar e tendo a certeza de que Vivianne Grace fazia parte dos planos que o dono da voz tinha para sua vida. Talvez o dono da voz fosse Deus. Talvez Vivianne estivesse lá sendo usada para reerguê-lo.

Impaciente, rodou os olhos pelo lugar novamente em busca da presença do palestrante do dia, que sempre era um dos padres ou uma das freiras mais antigas do lugar. Não gostava das palestras justamente por isso... Não concordava com muitas coisas impostas pela Igreja Católica e algumas vezes tinha de ouvi-las quieto e cabisbaixo simplesmente para agradar ao convento.

— Pelegrini... Que surpresa hein, cara? — Assustou-se ao ouvir seu nome sendo chamado justamente em tal lugar.

Não tinha amizade com ninguém ali dentro, muito menos com os demais pacientes. Sempre que conversava com alguém arrumava confusão porque era grosseiro com os homens e costumava ignorar as mulheres que tentavam alguma coisa a mais. Ainda não compreendia porque diabos deixavam os dois sexos se misturando naquele hospital.

Sabia de quem era a voz, por isso virou-se em busca de Frida com o desdém corriqueiro. A garota de cabelos vermelhos gostava de provocá-lo com ironias e por ela até que tinha um pouco de estima. Somente não contava em encontrar os doces olhos de Vivianne Grace bem ao seu lado.

— Ô garota... Hoje não é um bom dia para você vim me provocar — A voz morreu em seus lábios quando avisou Vivianne em pé ao lado de Frida no corredor central. A noviça carregava alguns livros, como sempre, usava o uniforme do convento e parecia aflita com sua presença. Porque estaria tão nervosa? — Olá.

Colocou-se de pé e foi tudo que conseguiu dizer diante dela. Não se lembrava de estar próximo da noviça com alguém entre eles e a destemida Frida parecia muito consciente da maneira cúmplice como Vivianne e Pedro se encaravam.

— Vivianne — Frida a cutucou discretamente — O Pedro está falando com você.

— Olá Pedro... É bom te ver por aqui — Respondeu educadamente e com a voz nitidamente trêmula.

Ao vê-la tão abalada com sua presença Pedro se questionava o porquê de Vivianne negar que havia gostado do beijo que trocaram. Após o ocorrido ela jamais foi a mesma menina falante e alegre. Agora parecia tão atraída quanto ele e sugada pela tensão que os cercava. Ficava ainda mais confuso em sua mente o fato dela insistir em ser uma noviça.

O que levou Vivianne a estar naquele convento, afinal?

— É você quem vai dar a palestra hoje? — Questionou sem esconder a empolgação em seu sorriso. Frida engoliu a gargalhada por notar como o rapaz se alegrou ao ver Vivianne.

— Não... Vou somente auxiliar. O palestrante de hoje é o Padre Kalebe — Pedro desfez o sorriso. Não gostava nenhum pouco do tal Padre e sequer disfarçou — Vamos nos sentar Frida?

— Vou sentar aqui com o Pelegrini, Anne. Está tudo bem, não é cara? — Perguntou a Pedro e ele concordou lhe apontando a cadeira. Vivianne acenou.

— Tudo bem. Vou subir para auxiliar o Padre.

— Vivianne? — O rapaz a chamou após Frida se sentar. Vivianne o encarou surpresa e olhando ao redor para ver se alguém os escutava — Será que posso falar com você depois da palestra?

— Acho que não será possível, Pedro.

— Não tem problema não, cara — Frida interveio — Amanhã vocês se falam na terapia.

O rosto de Vivianne corou e ele não pôde evitar um sorriso de canto. Naquele momento Pedro soube que Frida sabia sobre o beijo. A frase repleta de duplo sentido deixou claro a situação.

— Com licença — Vivianne deu as costas a ambos e caminhou em direção ao palco sentindo o olhar de Pedro lhe queimando as costas.

— Esse Padre Kalebe é um babaca — Comentou sentando-se ao lado da garota de cabelos vermelhos. Frida concordou com um aceno — Já peguei esse otário olhando para várias meninas aqui dentro. Pena que não posso enfiar a mão na cara dele. Não quero parar na cadeia de uma vez.

— Se você bater nele um dia me chama que te ajudo — Pedro sorriu e Frida continuou — Ela me contou tudo.

— Ela quem? — Desconversou.

— A Vivianne, cara. Não se faz de desentendido — Ironizou e ele suspirou — Vocês ficaram. Quer dizer... Você foi maluco o suficiente para beijá-la — Pedro nada respondeu, apenas seguiu encarando a garota com cara de culpado — Realmente você é o cara mais doido que tem aqui dentro.

— Obrigado pelo elogio — Deu de ombros e rodou os olhos — Até parece que você não conhece minha fama.

— Você seria expulso na hora se a madre soubesse dessa presepada — Frida o alertou — Mas por sorte Vivianne é minha amiga e eu não quero prejudicá-la.

— Você acha que ela gostou do beijo? — A pergunta saiu sem que Pedro pensasse e o rapaz se arrependeu no mesmo instante — Quer dizer...

— Pedro Pelegrini, o macho alfa do hospital.... Não estou acreditando no que acabei de ouvir — O rapaz sentiu o maxilar contraído diante da ironia dela — Você está apaixonado pela noviça, é isso mesmo?

— Fica quieta, garota — Desdenhou e tentou disfarçar — Imagina se eu estou apaixonado...

— É melhor você maneirar no jeito que olha para ela. Todo mundo vai começar a desconfiar se você ficar comendo ela com os olhos na frente das pessoas — Pedro a encarou e nada respondeu.

— Dá para notar desse jeito? — Frida gargalhou.

— Dá para notar a quilômetros — Bateu no ombro dele amigavelmente — Por isso é melhor você começar a maneirar, cara. Se alguém começa a desconfiar que você e a Vivianne andam flertando as coisas vão ficar feias para os dois.

— Nós não estamos flertando. E será que dá para você responder a pergunta? — O jeito grosseiro de Pedro agora parecia mais maleável aos olhos dos demais. O rapaz vinha perdendo a agressividade e ganhando mais leveza graças a Vivianne.

— Se ela gostou do beijo eu não sei, mas é fato que depois dele ficou muito nervosa e perturbada, algo que não seria típico para uma noviça comum. Ela deveria sentir nojo, certo? — Pedro assentiu — Mas não foi o caso.

— Não sou tão tolo, também — Confessou baixinho — Percebi que ela ficou diferente comigo. Sei quando uma garota está na minha, porém é bem estranho achar isso da noviça.

Havia beijado-a pelo impulso de estar atraído por ela, no entanto não contava que seria correspondido por uma quase freira. Vivianne o amarrou com corda de aço. Além de ajudá-lo na terapia, agora ocupava sua mente todo o tempo. Estava fazendo o serviço completo.

— Por acaso conhece a história de Vivianne e o porquê dela estar aqui?

— Claro que não. Ela nunca me contou nada sobre si — Frida assentiu.

— Por isso você não entende o que está acontecendo — A curiosidade de Pedro se aguçou no mesmo momento — Sugiro que pergunte a ela se realmente está interessado. Pode ser que essa conversa renda bons frutos.

— Do que está falando?

— Você vai ter que descobrir sozinho.

Não demorou para que o Padre Kalebe começasse a palestra. O tema da noite não podia ser mais oportuno... O casamento e a família.

Pedro suspirou diante da apresentação do sacerdote. Poucas pessoas o irritavam tanto quanto tal sacerdote, que se escondia atrás de uma batina para dar uma de santo. O homem ainda era jovem - deveria ter entre 30 ou 40 anos - e por ser um dos únicos Padres em tal faixa etária despertava o interesse de muitas internas do Hospital da Graça e sempre tinha a atenção de várias pessoas pela influência que exercia.

A Pedro ele não enganava... Havia algo de muito estranho naquele homem que olhava para as mulheres de maneira pouco cômoda para um padre. Não pelo fato de se interessar por elas, - afinal, era um homem como outro qualquer - mas sim pela maldade que parecia imperar por trás de seus atos. Definitivamente não era um homem confiável e tão pouco parecia íntegro.

Pensou que não pudesse desgostar ainda mais do sacerdote, mas seu estômago afundou em raiva ao presenciar a maneira como o homem olhava para Vivianne. A sua Vivianne.

A noviça estava ajudando na palestra e levou água para o púlpito. O sorriso sedutor e a maneira como a abraçou passando a mão pelas costas da moça fez com que Pedro sentisse vontade de se levantar e ir até lá naquele momento para lhe partir a cara. Não se tratava de algo ousado ou falta de respeito, mas lhe causou imenso ciúme.

Moveu-se desconfortavelmente na cadeira e coçou o queixo. As coisas estavam ainda piores do que ele pensava! Acabou de se pegar sentindo ciúmes de Vivianne Grace, a noviça quase freira!

Engoliu em seco e pigarreou.

Ela havia estremecido em seus braços. Aquilo tinha de significar alguma coisa, afinal!


Padre Kelebe discursava sobre um tema em particular que sempre quando mencionado inquietava profundamente a noviça..

Família e casamento.

Inúmeras vezes já havia usado o tema de argumento com os pais para justificar sua vontade de ter uma família como ministério cristão. Também fazia parte dos planos de Deus ver o homem e a mulher construindo uma família e se tornando uma só carne. O amor é bíblico, puro e doce. Vivianne sabia disso. Não existe pecado algum em se casar, mas os pais insistiram que seu destino era ser freira.

Vivianne ouvia cada palavra atentamente, sabendo que talvez aquele fosse seu verdadeiro chamado.

Inquieta, movia-se na cadeira no canto do palco com um nó em seu estômago. A cada palavra mencionada pelo Padre atribulava ainda mais o coração marcado de Vivianne. O olhar de Pelegrini parecia preso no dela cada vez mais intensamente, fato que causava arrepios em sua pele e lançava ainda mais fogo em seu sangue.

— O amor é o sentimento mais sublime criado por Deus. A bíblia, em 1 Coríntios 13:4 descreve o amor como “paciente e bondoso”. Aquele sentimento que “não inveja, não se vangloria, não se orgulha e tão pouco maltrata. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Assim, perfeito, é o amor criado por Deus para um homem e uma mulher. Tão lindo que faz até mesmo eu, um padre, me emocionar com sua descrição mesmo sabendo que jamais poderei desfrutar do mesmo.

Vivianne abaixou o olhar por saber que aquilo também se aplicava a ela, mas ergueu o rosto novamente quando a voz de Pedro Pelegrini ecoou pelo recinto que se calava para ouvir as palavras de Padre Kalebe.

Era para ter sido uma piada a parte final dita pelo Padre, mas Pelegrini levou tudo muito a sério.

— E o senhor poderia me apontar na bíblia a parte onde está escrito que os padres e as freiras não podem se casar?

Absolutamente todos os olhares dos presentes no pequeno auditório se direcionaram para Pelegrini sentado na primeira fila. O coração de Vivianne corria no peito por saber que aquela pergunta tinha um motivo especial... Ela.

Pela primeira vez desde que estava no convento viu o padre Kalebe sem palavras. O sacerdote parecia sem ação para responder o questionamento tão informal feito diante de tantas pessoas.

— Acho que não é muito apropriada sua interrupção para o momento, senhor Pelegrini — Respondeu após alguns segundos de completo silêncio.

— Não é uma interrupção, mas somente um questionamento. O senhor mesmo disse que estaria aberto as dúvidas no início da palestra — Pedro respondeu ainda em tom educado. O padre engoliu em seco.

— Pois é... É um questionamento bem interessante — Frida concordou — Também quero saber a resposta. Porque padres e freiras não podem se casar?

— Foi uma ordem que partiu de Deus? — Pedro prosseguiu — Quer dizer... Ordem não seria a palavra correta. Deus deixou seus ensinamentos através da palavra e os seguem quem deseja, correto? — O padre assentiu — Deus designou também o celibato?

Vivianne mordeu os lábios.

Pelegrini! Seu coração gritava. Como pode ser tão atrevido? E maluco? E insistente?

— Senhor Pelegrini... — Nitidamente Padre Kalebe não parecia confortável com a situação — Padres e freiras não se casam devido a uma tradição da Igreja Católica. É primordial que os membros da Igreja estejam focados na vida religiosa e não exista nenhuma outra prioridade. Não está escrito na bíblia que os líderes não podem se casar.

— Ah, certo — Pedro sorriu satisfeito — Era somente isso que eu queria saber. Obrigado.

Vivianne quase engasgou com a respiração.

Os cochichos eram demasiados e Pelegrini parecia satisfeito por ter feito o Padre suar com a resposta.

Atrevido. Petulante. Determinado!

Tudo o que ele mais queria naquele momento era tocar o coração dela e abrir os olhos de Vivianne para o inevitável... Deus não se importaria se os dois ficassem juntos.

 

 

V ivianne não sabia até que ponto Pedro estava disposto a chegar em nome de sua liberdade, tão pouco podia mensurar quanto ela significava em meio a tudo isso.

A única coisa da qual a bela noviça tinha total convicção é de que se Pedro Pelegrini continuasse a encará-la da maneira sedutora como fazia em frente aos demais as coisas tomariam um rumo perigoso para sua ordenação e isso de maneira alguma poderia ser colocado em risco. Pensou em várias coisas a serem ditas quando se encontrassem novamente dentro do consultório, mas as palavras certas lhe faltaram quando se deparou uma vez mais com o lindo par de olhos verdes do rapaz.

— Boa tarde noviça Vivianne — Cumprimentou após passar pela porta. A moça a encostou um tanto receosa, mas buscando manter-se firme em sua posição.

— Olá Pedro — Respondeu vendo-o caminhar em direção ao divã um tanto mais calmo do que nos outros dias — Está tomando as medicações prescritas pelo doutor José Luiz?

— Claro. Foi assim que você estipulou e é assim que eu faço — Sentou-se no divã sem muitas delongas e ela se colocou na cadeira ao lado um tanto desconfortável — Parece que você tem minha vida em suas mãos agora.

Pedro tinha uma boa aparência naquela tarde cinzenta e parecia menos cauteloso. Vivianne analisou sua camiseta vermelha e perdeu o foco quando avistou as tatuagens desenhando seu braço forte. Engoliu em seco e voltou a atenção para a prancheta.

— Apenas quero tornar nossos momentos proveitosos para te ajudar — Deu de ombros e ele sorriu para ela. As covinhas nas bochechas do rapaz faziam as pernas da noviça bambearem.

— Sabe que nunca pensei que diria isso, mas de fato você tem feitos milagres em mim, Vivianne Grace — Ele acomodou as mãos atrás da cabeça em uma postura relaxada no divã. A noviça respirou profundamente para disfarçar o desconforto por sua posição. Os braços fortes pareciam convidá-la — Nunca pensei que me daria por vencido desse jeito. A madre tinha razão em dizer que você é...

— Sua única esperança — Completou e ele concordou.

— Exatamente.

— Porque está dizendo isso agora? O que aconteceu para que mudasse de opinião? — A resposta poderia ser o beijo que ambos trocaram, mas Pedro não pegou Vivianne tão por baixo.

Levantou-se do divã e sentou de frente para ela em uma postura mais séria. Queria contar o que tinha a dizer de maneira sincera e sem o tom irônico de sempre. Diante dos olhos azuis de Vivianne Grace seu mundo desabava e apenas o melhor dele conseguia ficar de pé.

— Depois daquele dia que nós... — O olhar de Vivianne se constrangeu, porém seguiu encarando-o — Bom... Naquela noite tive um sonho com... — Demorou a conseguir falar — Com meus filhos.

— Você não consegue dizer o nome deles? — Vivianne questionou inocentemente, sentindo em sua pele a dor refletida no olhar de Pelegrini.

Demorou um tempo a mais para que o rapaz reunisse coragem suficiente para verbalizar o nome dos meninos.

— Pietro e Stefano — A voz dele estremeceu ao proferir os nomes. Os olhos de Pelegrini se inundaram em lágrimas, mas as segurou com toda sua força — Foi a primeira vez que sonhei com eles após o acidente. A primeira vez que meu coração sentiu um pouco de conforto depois de todo esse tempo. E eu acho que tudo isso tem a ver com você, Vivianne.

Um nó se fez na garganta da noviça ao ouvir tais palavras. Não pôde esconder a emoção que também tomou conta dela. Não era comum emocionar-se com os pacientes, mas a história de Pedro era especial pela maneira profunda como ocorreu.

— Você pode me contar o sonho? — Não tinha muitas expectativas com a pergunta, mas foi surpreendida pela resposta positiva de Pedro.

— Os dois pareciam felizes brincando em um lindo jardim. Estavam em paz e tranquilos, algo bem diferente do que imaginei todo esse tempo. Sempre pensei que estivessem tristes e decepcionados comigo, mas não... Eles desejam que eu reencontre a felicidade — Sorriu com lágrimas nos olhos. A dor dele era palpável e Vivianne não pôde evitar tocar em sua mão forte. Pedro apertou seus dedos imediatamente.

— Você deve seguir em frente por eles e principalmente por si mesmo — Suas palavras eram envoltas por uma grande emoção — Os meninos te amaram muito, pude perceber pelo pouco que Paola me disse. Stefano e Pietro tinham orgulho, respeito e admiração pelo pai. Ambos jamais iriam querer vê-lo entregue a uma vida profana e amarga.

— Sim — Pedro concordou — Você está certa.

— A maior prova de amor que você pode dar a eles agora que tudo aconteceu é seguir em frente com a cabeça erguida e sempre se recordando dos bons momentos que viveram juntos. Eles viverão para sempre em seu coração, portanto, seu coração deve ser terreno de alegria e maravilhosos sentimentos! Aqui — Vivianne se aproximou ainda mais de Pedro e tocou o centro do peito forte do rapaz com sua mão — É o local onde seus filhos habitam agora. Não se deixe contaminar. Não se deixe enganar. Viva para ser feliz.

Uma lágrima desceu pelo canto dos olhos de Vivianne e Pedro não se conteve diante das belas palavras. Não pensou antes de puxá-la em direção a seus braços e a estreitou contra o peito em um abraço forte e aliviado.

A noviça se assustou com o ato, mas ao sentir que o rapaz precisava daquilo não hesitou em abraçá-lo de volta com carinho. Mais do que isso, com cuidado. A vontade que dominava o coração dela agora era de cuidar das feridas de Pelegrini para sempre de modo a nunca mais vê-lo sofrer de tal maneira.

— Eles me presentearam com girassóis no sonho — Disse após se afastarem, mas ainda tinha as mãos pequenas da moça entre as suas — A mesma flor que você me deu aquele dia.

— Verdade? — Vivianne sorriu meigamente.

— Isso provou o que venho sentindo aqui dentro — Tocou o local onde antes Vivianne colocou a mão — Você foi enviada pelo céu para me resgatar. Você com sua bondade e inocência trouxe luz às minhas sombras e preencheu com doçura grande parte do vazio que carrego. Nunca pensei que existisse uma mulher como você.

— Ninguém nunca disse coisas tão bonitas sobre mim — O sorriso de Vivianne era sincero e genuíno, a coisa mais encantadora que Pelegrini havia visto nos últimos meses. Não pôde evitar tocar o rosto dela com carinho. A noviça cogitou se afastar, mas não reuniu coragem suficiente para fazê-lo — Pedro...

— O que você está fazendo aqui, Vivianne? — A pergunta dele era objetiva e realmente confusa — Não consigo entender o que uma moça inteligente, linda e cheia de sentimentos faz dentro de um convento!

— Esse é o meu destino — Os olhos azuis derramaram mais algumas lágrimas — Essa é minha ferida e você deve respeitá-la.

— Você cutucou minha ferida até conseguir começar a cicatrizá-la e acha que não vou querer saber um pouco sobre a sua?

— Acredite... Minha história não é tão emocionante quanto a sua. Você tem a opção de seguir em frente enquanto eu jamais poderia mudar meu destino — Explicou retirando a mão das dele e secando as lágrimas em seu rosto.

— Nós somos donos de nosso destino e escrevemos nossa própria história. É isso que venho aprendendo nas lições que tenho recebido de você — Pedro parecia confuso e Vivianne não achava uma maneira de se safar de seus questionamentos — Você sabe que ser freira não é para você, não sabe?

— Pedro... Não seja tão atrevido — Repreendeu de maneira leve — Serei freira e isso não é uma opção.

— Me dê um único motivo... Porque sinceramente não compreendo como uma freira pode beijar um homem como você me beijou — Vivianne se colocou de pé no mesmo momento devido as palavras dele. Corou até a raíz dos cabelos e vasculhou a mente em busca do tal motivo.

— Acho que você está esquecendo que eu sou a terapeuta aqui. Meus problemas pessoais só dizem respeito a mim e, quer saber? — A moça respirou profundamente antes de prosseguir. Seu olhar envergonhado em direção a ele falou mais do que mil palavras — Aquele foi meu primeiro beijo. Nunca nenhum homem se atreveu a me tocar como você fez.

— Está aí a prova de que você sempre se escondeu muito bem atrás destas paredes — A ousadia de Pedro a deixava nervosa, porém não podia negar que as provocações faziam todo sentido — Não foi tão ruim, foi?

— Como ousa me perguntar isso? Olhe para mim, Pedro! Veja o que eu sou! — Tocou a cruz de prata que descansava no colar sobre seu peito — O único que posso amar é Jesus.

— Não quero competir com ele e tão pouco posso, Vivianne. Apenas almejo fazer parte do jogo. Você pode gostar de mim também — Vivianne não podia acreditar no que ouvia. Não podia crer que a tentação batia tão fortemente a sua porta de tal maneira — Sei que você gostou do beijo. Vi em seus olhos e senti nos meus braços — Aproximou-se dela a ponto de ficarem a centímetros um do outro — Estou aqui, diante de você, querendo entender o motivo de você ainda estar aqui. Esse convento não é seu lugar e nós dois sabemos disso.

— Pedro... Para! — A moça tocou o peito dele com cuidado e buscando manter certo equilíbrio — Minha história é complicada, não é tão fácil explicar...

— Mas tem que haver um motivo...

— Os meus pais — Começou timidamente, sentindo o coração explodindo pelo nervosismo de estar tão perto dele — Meus pais são muito católicos e eles me designaram a esta vida.

— Só isso? — O rapaz ergueu uma sobrancelha.

— Você diz só isso?

— Seus pais não podem decidir algo por você e...

— Pedro, por favor — Interrompeu afastando-se dele e caminhando na direção oposta da sala — Não toque nesse assunto. Não é tão fácil compreender.

Para sorte de Vivianne, ambos foram interrompidos por uma das freiras que solicitava a presença da noviça em outro ambiente. Vivianne agradeceu a Deus por terminar ali a conversa e Pedro se questionou uma vez mais se teria ele também uma missão para cumprir com a bela noviça de olhos azuis.

Seria Pedro, para ela, também uma última esperança?


— E aí, Paola? — Pedro sentou-se ao lado da irmã após trocarem um beijo cordial de boas-vindas — Conseguiu as informações que pedi?

— Pelo jeito a tal Vivianne te inspira bastante, irmão — A moça comentou colocando no colo dele alguns livros que lhe trouxe e tocou em sua perna de maneira amigável — Mas sim... Consegui encontrar as informações solicitadas. O que quer saber primeiro?

Pedro, pela primeira vez em muito tempo, pediu ajuda verbalmente para uma pessoa. Antigamente, em seus tempos de glória, poder e dinheiro, o rapaz se intitulava autossuficiente e pedir algo a alguém era como se humilhar, mesmo sendo tal pessoa sua irmã. Após descer ao fundo do poço, Pedro notou que um simples pedido de ajuda não o tornava nem pior nem melhor do que ninguém. A vida era tão passageira que auxiliar e ser auxiliado era uma das grandes maravilhas dela.

Apesar de pensar diferente, Pedro sentiu-se envergonhado por estar investigando algo sigiloso sobre alguém... Algo que sequer deveria rondar seus pensamentos, mas vinha se tornando uma obsessão. Saber mais sobre Vivianne Grace.

— Tudo. O que de fato descobriu sobre ela? — Paola o encarava com os olhos esverdeados perdidos em total confusão.

Surpreendeu-se ao receber uma ligação por parte do irmão, principalmente quando o mesmo lhe pediu para pesquisar um pouco sobre a vida da tal noviça que o atendia nas sessões de terapia. Separou um pouco de seu tempo para se dedicar a Pedro, sabendo que seu único parente vivo precisava muito de sua atenção. Realmente queria ajudá-lo. Queria Pedro de volta com sua corriqueira alegria e talento.

— Bom... Não foi muito fácil conseguir informações. Tive de entrar em contato com muitas pessoas até chegar em alguém no interior do Mato Grosso que pudesse me narrar um pouco da história da família Grace. Alguns fatos, porém, tive fácil acesso na internet — Paola colocou sobre o colo de Pedro uma pasta com algumas impressões. Dentre elas, alguns recortes de jornais — Creio que será um pouco doloroso para você ler o que está escrito aí. Terá de ser forte.

A voz de Paola sumiu ao fundo quando Pedro pousou os olhos nos recortes. Os anúncios lhe pareciam improváveis, mas as pessoas nas imagens eram muito semelhantes a Vivianne e realmente se tratava da família dela.

“Acidente de carro mata duas crianças na estrada das lágrimas. Família em estado de choque”.

“Terrível acidente tira a vida de duas meninas da tradicional família Grace”.

Pedro desviou o olhar em direção a Paola e a mesma o encarava com tristeza no olhar. O rapaz realmente sentiu o coração doer, mas prosseguiu a leitura mesmo com a mente embaralhada por tantas coincidências.

“A Família Grace - importante Família de fazendeiros da região - sofreu um grave acidente automobilístico na estrada das lágrimas na noite de ontem e duas de suas crianças perderam a vida no local, sendo elas as meninas Victoria (8 anos) e Valentina (6 anos). Irma, a matriarca da família, está internada em estado de choque. Joseph e os meninos saíram com algumas escoriações, mas passam bem. O enterro das garotas deve acontecer na tarde de hoje no cemitério da cidade”.

— O acidente aconteceu dois anos antes do nascimento de Vivianne. Ao que parece os pais dela surtaram após perder as filhas e fizeram um tipo de promessa em troca de ganharem outra. Prometeram que a nova filha seria serva de Deus e religiosa — Paola explicou o que descobriu para Pedro, porém ele seguia encarando o jornal de maneira desacreditada — Uma coisa bem louca.

— Eles selaram o destino da filha por causa de uma perda que ela sequer chegou a sentir? — Paola concordou — Isso não faz muito sentido...

— As pessoas da cidade comentaram que eles não batem muito bem das ideias, principalmente a mãe de Vivianne. São imensamente ricos, porém reservados e muito católicos. Poucas pessoas na cidade já viram Vivianne pessoalmente. Ela sempre foi escondida por eles e tratada como algo valioso. Realmente acreditam que ela nasceu para ser freira como querem. Enlouqueceram após o falecimento das filhas — Pedro ouvia a irmã sem acreditar e trocaram um olhar cúmplice — É muita coincidência, não acha?

Coincidência demais, Pedro concluiu.

Verdadeiramente Vivianne havia escolhido trata-lo por fidelidade a madre superiora ou foi uma maneira de compreender melhor a mente doentia dos pais que a submeteram a uma vida infeliz em troca de uma promessa sem fundamentos?

Pedro e o casal Grace tinham muito em comum. Ambos sofreram uma grande tragédia. Ambos não sabiam lidar com a dor.

Ambos perderam os filhos e ganharam Vivianne.

Pedro apenas não sabia qual dos lados a teria para sempre.

 

 

— Como anda o Senhor Pelegrini, Vivianne? É verdade o que o doutor José Luiz me disse? — Vivianne encarava a madre superiora com certa cautela, mas buscando de manter positiva e disfarçar a profunda inquietude que a assolava — Ele realmente está livre dos remédios?

— Sim, madre — Ambas sentaram-se frente a frente no grande gabinete da superiora — Pedro não precisa mais fazer uso dos remédios que antes utilizava. Agora o doutor José Luiz acredita que apenas um calmante de manhã e outro a noite conseguirá controlá-lo.

Vivianne demorou alguns instantes discursando com a madre sobre as grandes evoluções de Pedro Pelegrini e a surpresa no semblante da senhora podia ser considerada uma vitória para a noviça. A madre parecia cada vez mais animada com os resultados que Vivianne conseguiu com suas sessões e não escondia sua admiração pela moça.

— Mas também devo dizer que Pedro ter aceitado novamente o doutor José Luiz foi fator determinante em sua recuperação. Um psiquiatra como ele faz toda diferença em um tratamento como o de Pedro — Humildemente Vivianne explicou. A madre logo pegou em suas mãos com carinho.

— Você o fez aceitar, querida, e isso é realmente uma vitória — As bochechas da noviça enrubesceram e ela abaixou o olhar — Seu carinho, persistência e dedicação foi o que fez toda a diferença.

— Talvez sim, madre. Pelegrini, no fundo, estava gritando por ajuda. Acho que Deus iluminou meus passos para que de alguma maneira minhas palavras e atitudes acalmassem seu coração e o inspirasse — A madre assentiu positivamente.

— Vocês dois se entenderam bem no final... Depois de tantas brigas — Vivianne concordou. Sentia-se a pior das pecadoras estando frente a frente com a madre e mentindo a ela sobre suas reais intenções.

— Pedro é um bom homem — As palavras saíram atropeladas — Ficarei muito feliz se conseguir se livrar da cadeia.

— Ele irá se continuar assim. Dentro de duas semanas acontecerá seu julgamento e com certeza tudo será positivo. Você conseguiu resultados muito antes do esperado, querida — A madre parecia orgulhosa — Eu disse ao Padre Kalebe que tudo não passava de um relacionamento profissional. Você é de fato uma menina muito profissional e tem um firme chamado.

— Como assim? — Estranhando o comentário da madre, Vivianne estreitou o olhar — O que Padre Kalebe tem a ver com isso?

— Bom... — O tom da madre se alterou para desconfiança — Ele me disse que viu Pelegrini muito interessado em você por aí. Disse que achou estranho o fato de sempre encontrar o rapaz perto de você e a maneira como conversavam, tão intimamente — Os lábios de Vivianne se separaram de maneira surpresa — Expliquei a ele que confio em você cegamente e que tudo não passava de uma relação profissional. Os resultados de Pelegrini estão aí como prova.

— O Padre Kelebe... — Deteve-se antes de terminar — Madre...

— Oh, não se preocupe, menina! Ele apenas sugeriu que eu afastasse você de Pedro para não criar possíveis problemas... Se é que me entende... — Revirou os olhos — Mas uma noviça tão decidida e empenhada quanto você não precisa de certos cuidados, estou certa?

Vivianne assentiu, mas por dentro seu sangue corria ainda mais forte nas veias!

Ela vinha evitando ficar a sós com Pelegrini e até mesmo nas sessões de terapia costumava deixar a porta aberta ou levar uma estagiária consigo para não correr riscos. O rapaz buscava maneiras de ficarem a sós, no entanto Vivianne fazia questão de frustrar todas suas tentativas! Não podia ceder, porém era demasiadamente difícil lutar contra ele.

— Eu não a desapontarei, madre.

A seriedade de Vivianne fez a senhora sorrir e apertar ainda mais os dedos dela nos deus.

— A irmã de Pelegrini esteve aqui ontem e nós conversamos sobre algo que me pareceu muito interessante — Vivianne assentiu positivamente.

— Paola?

— Sim, a própria — Confirmou sorridente — E como Pedro está prestes a passar pela audiência de julgamento, seus dias aqui estão contados.

Foi como se o chão se abrisse debaixo dos pés de Vivianne. Pensar na simples possibilidade de não se deparar com os olhos verdes de Pelegrini pelos corredores fez doer seu coração de maneira absurda! Ficar sem vê-lo... Ficar sem saber que ele estava ali... A ideia doía e lhe parecia estranha. Foi como sentir que a chance de ser feliz lhe escapava por entre os dedos como areia que ela não podia agarrar. Engoliu em seco.

Tudo era pior do que imaginou. Ainda sonhava com ele, mas foi justo naquele instante que descobriu estar apaixonada. O medo de perder algo que sequer teve lhe revelou tais sentimentos.

— E o que eu posso ajudar com isso, madre? — Sua voz estremeceu.

— Paola me fez um pedido cordial e um tanto ousado, mas devo considerar pelo caso de Pelegrini ser especial e por confiar em você — Vivianne ouvia atentamente as palavras dela sem querer perder nenhum detalhe — O último lugar onde os filhos de Pedro queriam ir era a tal casa de campo da família. Paola acha que o que falta para o irmão se encontrar é passar alguns dias neste local para finalmente ser considerado apto a ressocialização.

— Ótimo. Isso realmente faria bem a ele, madre, se deseja minha opinião — Completou animadamente — Faria muito bem para Pedro passar alguns dias com a irmã e fora daqui em um ambiente que o agrade. Concordo com sua ida.

— Eu sabia que iria concordar... Mas não é somente isso — Prosseguiu — Paola pediu minha permissão para deixar que você vá com eles nessa pequena viagem, irmã.

— O que? — Vivianne não escondeu a surpresa e o medo — Eu, madre? — A superiora assentiu positivamente e Vivianne buscou em seu semblante qualquer sinal de brincadeira, no entanto não encontrou — A senhora acha prudente?

— De fato não é algo que costumo fazer, irmã — Admitiu um tanto receosa — Mas por se tratar de um paciente especial com Pedro e pela irmã dele ter vindo me pedir com tanta educação e gratidão, devo admitir que não vejo mal que você vá com os dois. A não ser, é claro, que você não queira acompanhá-los. Neste caso não poderei fazer nada.

— Mas madre... Não posso me ausentar do convento para uma viagem. Isso não é comum entre nós e...

— De fato não é comum, mas Paola teme que o irmão tenha uma recaída ao sair daqui e me pediu ajuda no sentido de ter um profissional ao lado deles neste momento para auxiliá-lo. Ela confia em você e disse que ninguém nunca teve tanta influência sobre Pedro — Vivianne corou. Paola não podia dizer tais coisas a madre — Você estará lá como uma profissional, não como visitante. Encare isso como uma viagem a trabalho.

Vivianne apertou os olhos. Não sabia o que dizer para se esquivar da situação, tão pouco podia deixar transparecer para a madre toda sua insegurança. Ir para uma viagem com Pelegrini e Paola em meio a toda essa situação seria como colocar-se diante do perigo de maneira irrevogável. Não podia aceitar!

— Não acredito que seja prudente, madre.

— Pense, Vivianne. Você terá tempo para isso — Sorriu amigavelmente — Se decidir ir terá minha permissão. Se decidir ficar, também. A irmã de Pedro estará lá e não há problema que vá com eles, além do mais, confio em minha mais preciosa noviça.

Esse era o problema.

Vivianne não confiava em si mesma perto de Pelegrini.

Saiu da sala em direção a capela de orações, mas sem que pensasse com coerência seus pés desviaram a rota e foram em direção à quadra de esportes do hospital. Era exatamente onde Pelegrini estava.

Estreitou o olhar debaixo do sol de fim de tarde para vê-lo correndo pela quadra com outros internos jogando futebol. A camiseta molhada de suor se colava ao peito forte conforme Pedro se movimentava em meio ao jogo. O rapaz era habilidoso e parecia ser a presença mais marcante naquele campo... Não conseguia esconder que mesmo de longe Pelegrini tirava o ar de seus pulmões como se os roubasse.

Não demorou para que a encontrasse ao longe e parou seus movimentos no mesmo momento. Observou um pouco mais para estar seguro de que era mesmo Vivianne e correu em sua direção após pedir saída ao professor. As pernas da moça estremeceram ao vê-lo se aproximar e não pôde disfarçar a maneira como o mesmo mexia em seus sentimentos.

— Pedro... Nós precisamos conversar — Começou um tanto nervosa. O rapaz parou frente a ela nitidamente cansado, mas muito interessado no que tinha a ser dito.

— Juro que dessa vez não fiz nada.

— Sua irmã pediu a madre superiora para que eu fosse em uma viagem com vocês — Os olhos esverdeados do moreno cresceram em seu rosto, dada a surpresa — Isso é inviável! O que as pessoas vão pensar?

— Paola fez isso? — Questionou em tom divertido.

— Não me diga que não sabia... — Ironizou e ele deu de ombros.

— Claro que não. Sequer sabia que posso sair daqui para ir a algum lugar — Vivianne o encarava com os olhos azuis divididos em vários sentimentos — Não seria má idéia, que tal?

— Pedro... Por favor — Repreendeu — Diga a Paola para retirar o pedido, caso contrário a madre vai insistir para que eu vá.

— E qual é o problema, Vivianne? — A pergunta fez a moça apertar os olhos pela apreensão — Parece que você tem medo de mim.

— E não deveria? — O tremor na voz dela deixava claro a Pedro o tanto que sua presença mexia com os sentimentos da encantadora noviça.

— Acha que eu seria capaz de te machucar? Por todas essas semanas fui capaz de fazer algo que te faltasse com respeito verdadeiramente? — O silêncio de Vivianne enquanto o encarava deixou claro sua posição. A moça ajeitou o cabelo escuro atrás da orelha e desviou o olhar dos lindos olhos verdes — Ou será que você tem medo de si mesma quando está comigo?

— Sou muito segura quanto ao meu chamado — Os olhos marejados da moça imploravam socorro por si só. Tudo o que dizia lhe era imposto e não real.

— E como foi ele? Você nunca falou sobre isso... — O tom provocador de Pedro a enraiveceu e Vivianne hesitou.

Nunca falou porque nunca de fato o teve. Nunca sentiu um chamado em relação a nada relacionado a vida religiosa. A única coisa próxima de um chamado - ou como as freiras o descreviam - havia sido ao conhecer Pedro Pelegrini e tomar para si a sua história. Talvez ele fosse seu chamado, porém Vivianne o ignorava veemente. Não podia respondê-lo. Não podia fraquejar diante da tentação!

— Não preciso falar sobre isso.

— Você só engana a si mesma, noviça Vivianne.

— Você está me desafiando, é isso? — Pedro deu de ombros e seu sorriso reluziu sob o sol da tarde. Os músculo torneados se moviam por debaixo da camiseta suada e Vivianne não podia esconder a maneira como o encarava — Acha que tenho medo de você?

— Se não é isso, então o que é? — As bochechas da noviça enrubesceram e os olhos azuis se tornaram altivos como Pedro jamais presenciou — Não vejo outro motivo, noviça Vivianne.

A vontade dele naquele instante era estreitá-la contra o peito e beijá-la como jamais havia feito com outra mulher. Se não fosse o público ao redor certamente o teria feito. Ela o queria e podia ver em seu olhar o quanto estava aflita com os sentimentos que a assolavam. Não sabia reconhecê-los e tão pouco controlá-los.

— Está bem — Suspirou ainda em sua postura segura — Aceito ir com você e Paola neste passeio — Pedro fingiu aplaudi-la — Vou te provar que não tenho medo de você, senhor Pelegrini.

— É uma boa maneira de começar, noviça Vivianne — Cruzou os braços sob o peito e ela pôde ver um pouco mais da tatuagem exibida em seu músculo. Um grande leão em sua postura de soberania.

— É bem a sua cara isso — Apontou a tatuagem dele um tanto timidamente — Um leão pomposo e metido — O tom descontraído de Vivianne era novo para Pedro. Ele deu uma olhada rápida para o desenho e sorriu amigavelmente.

— Protetor e teimoso — Piscou para ela e a moça quase explodiu de vergonha — Costumo tatuar as coisas que me marcam. Quando sair daqui certamente desenharei uma cruz em homenagem e você e tudo que aprendi sobre Deus com seus ensinamentos.

— Pedro... — O suspiro dela foi contido — Você não desiste, não é? — Referiu-se ao fato de provocá-la.

— Não, não desisto — Garantiu enfaticamente e o tom poderoso de sua voz fez as pernas da noviça estremeceram uma vez mais. Seus olhos azuis se derretiam dada a intensidade como os olhos verdes dele a devoraram com sua perspicácia — Quando quero uma coisa luto incansavelmente por ela.

— Mesmo quando não pode tê-la? — Jogou a indireta sem pensar e arrependeu-se no mesmo instante.

— Se fosse impossível Deus não teria colocado em meu caminho.

Vivianne desviou o olhar e afastou-se dele. Pelegrini era um homem inigualavelmente tocante quando queria. Ele também sabia usar as palavras e bastava um olhar para desmontá-la de sua armadura fajuta de quase freira bem resolvida.

— Preciso ir — Respondeu finalmente, sem delongas — Nos vemos na terapia.

— Tudo bem. Nos vemos em breve, irmã Vivianne.

— Não me chame assim — Sussurrou antes de sair.

— Foi você quem pediu...

— Vindo de você, me irrita.

Ela se foi e o complemento da resposta ficou no ar. No entanto, Pedro já sabia o motivo.

 

 

A madre superiora aceitou com normalidade o pedido de Vivianne para ir ao passeio de dois dias com Pedro e sua irmã Paola na casa de campo da família deles no interior de São Paulo. Obviamente passou algumas orientações referentes ao passeio, ofereceu ajuda em alguns aspectos, mas nada muito novo em relação ao que já estava acostumada.

Vivianne não conseguia compreender como a madre havia sido tão fácil de convencer por Paola.

A superiora costumava ser rígida com as meninas, principalmente as noviças que ainda não haviam se ordenado, no entanto, aceitou com tranquilidade a saída de uma delas do convento ao lado de um homem.

A única coisa plausível ao entendimento de Vivianne era a confiança que a madre tinha nela e a maneira como acreditava em sua vocação para o celibato. Por outro lado, Pelegrini nunca foi um homem desrespeitoso com as mulheres dentro do hospital e não havia contra ele qualquer queixa de violência contra o sexo oposto. A ferida de Pedro estava sarando e nada tinha a ver com condutas duvidosas neste aspecto. Paola estaria lá, também, e o fato era primordial para que a madre aceitasse sua ida.

Vivianne recebeu uma ligação de casa e falou com Victor, um de seus irmãos mais velhos. O irmão deu notícias sobre sua esposa, - que havia acabado de ganhar um bebê menino - Valentim, o outro irmão de ambos que se casaria em breve, e os pais. Irma estava bem e Joseph andava muito doente.

— Você não vem para o casamento de Valentim? — Questionou e Vivianne pensou por algum tempo.

— Acha que papai e mamãe concordariam?

— Quem tem que saber é você, Vivianne, não eles. Até quando vai viver a vida do jeito que nossos pais querem? — A moça não escondeu a surpresa pela resposta — Você já está trancada em um convento desde pequena porque eles mandaram, será que isso não é suficiente?

— Victor, você sabe que...

— Que você nunca teve pulso firme suficiente para se impor. Você não é uma boneca manipulável, menina. Desde pequena nossos pais fazem de você o que querem e você, por dó ou pena, aceita calada. Mas a sua vontade importa também e são eles quem tem de compreender isso de uma vez.

Jamais ouviu um de seus irmãos falarem de tal maneira e aquilo a impactou profundamente. Tudo parecia estar acontecendo ao mesmo tempo em sua vida. Era como se fosse o momento de seus olhos serem abertos e suas amarras desprendidas.

— Você vai viajar sozinha com o Pelegrini? — Frida disse entre risadas e Vivianne corou ao ouvir a amiga — Olha Anne, acho que é a hora de conversarmos sobre preservativos e...

— Frida, por favor! — Repreendeu olhando ao redor enquanto a moça seguia gargalhando de sua expressão nervosa — Se alguém escutar você falando assim estou perdida! Por favor!

— Vivianne... Por favor digo eu! — Abaixou o tom e se aproximou dela — Você está gostando dele.

— Frida!

— Assume de uma vez, vai! Está escrito na sua testa! — Falou seriamente — Ficar escondendo é pior, apenas digo que deve assumir para si mesma antes que tudo fique ainda mais complicado para você — A noviça se calou diante das palavras da menina porque as conhecia intimamente. Aquelas palavras eram suas — Foi você que sempre me aconselhou a ser quem sou, ser feliz com tudo que tenho e jamais esconder algo de mim mesma. Estou decepcionada vendo que uma das pessoas que mais admiro em minha vida está com medo de ser quem é.

— Mas Frida, não é assim... Eu... — Abaixou ainda mais o tom de voz — Você conhece a minha história. Sabe tudo que passei... — Respirou profundamente — Não posso me entregar.

— Espero que saiba o que está fazendo.

A expressão decepcionada de Frida refletia bem o que a noviça sentia em sua alma. Porém, apesar de tudo, ela tinha razão!

Ao fechar os olhos Vivianne ainda podia sentir em seus lábios o beijo de Pedro Pelegrini. Ao deitar-se a noite imaginava-se sendo envolta pelos braços fortes, abraçada contra seu peito largo e saboreava intimamente a sensação de seu abraço quente e carinhoso. Os olhos verdes e poderosos lhe perseguiam em sonho e a lembrança dele a atormentava em um turbilhão de emoções inquietantes.

Sua verdade era uma e não poderia ser mais oculta.

Ela, Vivianne Grace, a noviça quase freira, estava apaixonada por Pedro Pelegrini, o homem ferido e valentão.

Não sabia mais o que fazer para tirá-lo de sua mente e, cada vez que se ajoelhava e pedia a Deus que o tirasse de seus pensamentos, o mesmo voltava ainda mais forte em sua direção. Era como se o caminho de ambos fosse um e a noviça não compreendia qual poderia ser a intenção de tê-lo em sua história se não podiam ficar juntos.


Ela é proibida.

Pedro sentia-se melhor em vários aspectos relacionados a sua saúde mental. No entanto, nada lhe fazia mais confuso do que pensar que parte dele - talvez uma que somente tenha sido tocada por seus filhos - vinha sendo preenchida de maneira impiedosa por uma mulher que não podia lhe pertencer.

Quando em vida ele - um cara de tudo e de todas - poderia se pegar fisgado por uma noviça? Uma mulher inocente, de belos olhos e modos singelos, algo totalmente diferente do que estava acostumado a conviver. Nada comparada a elegante e impassível Fernanda, sua ex-esposa que lhe roubava a paz.

Aprontou-se para a viagem com a irmã sem ter certeza se Vivianne toparia estar presente nela ou não. Apostava que não aceitaria e talvez assim fosse melhor.

— São seus últimos dias aqui, senhor Pelegrini — A madre superiora parecia animada enquanto conversavam em uma manhã ensolarada — Após voltar do passeio com sua irmã teremos uma reunião com o representante do ministério público e os advogados para decidirmos seu destino. Doutor José Luiz participará da assembleia e Vivianne Grace também. Caberá a eles passarem sua atual situação para a definição de seus processos.

— A senhora acredita que realmente me deixaram sair?

Ao contrário das outras vezes, Pedro não parecia empolgado com a idéia de partir e a madre notou a pontada de decepção em sua voz. O rapaz nitidamente pensava mais do que deveria.

— Estou otimista em relação a você. Creio que Vivianne e Doutor José Luiz já entraram em consenso e sua saída se dará — Pedro não esboçou qualquer reação, apenas desviou o olhar da madre — Algum problema senhor Pelegrini? O senhor não parece muito feliz com a notícia.

— Talvez eu tenha me acostumado com esse lugar e as pessoas ao redor — Deu de ombros e a madre seguiu encarando-o — Aqui encontrei o descanso.

— Aqui encontrou o que veio buscar.

O olhar de Pedro encontrou o da madre e ele pôde sentir muita verdade no que dizia.

— Exatamente — Completou sem mais explicações — Sairei daqui com a mente bem mais em paz porque compreendi que a culpa não foi minha. Meu coração sempre lamentará a perda de meus filhos e, como Vivianne disse, é onde eles habitarão para sempre.

— Vivianne é uma jovem excepcional — Pedro concordou sem encará-la. Olhava para uma cruz sob a mesa da madre e não podia se esquecer da noviça de belos olhos. Ela era um assunto sagrado que lhe roubava os sonhos. Vivianne Grace era um ponto fraco e todo seu problema em deixar o hospital se dava por ela — De alguma forma sabia que ela iria conseguir tocar seu coração.

— É bem difícil resistir a ela — Disse sem que pudesse controlar as palavras. A madre o encarou um tanto confusa e Pedro logo retificou — É muito teimosa e inteligente. Sabe como convencer.

— É claro — Sorriu — Espero que sua vida seja diferente de agora em diante, senhor Pelegrini. Espero que confusão seja passado para o senhor.

— A senhora sabe que elas me atraem. Devo ter um imã para problemas, eu sei lá — Sorriu com ironia. A maior delas, certamente, era se interessar por uma menina prometida a Deus — A senhora sabe me dizer quando Vivianne vai virar freira de verdade?

— Em breve. Creio que dentro de poucos meses acontecerá sua ordenação — Garantiu orgulhosamente — Porque a pergunta?

— Curiosidade, madre.

Não podia crer que questionou tais coisas para a madre, porém de cinco palavras processadas por sua mente, dez eram sobre Vivianne. Mesmo que quisesse, para de pensar nela era algo difícil e também muito desafiador. Pensar nela aliviava suas dores e dava alegria em seus dias.

— Tem alguém aí fora que veio te visitar, Pedro — O rapaz ergueu as sobrancelhas. Ninguém além de Paola interessava em sua vida naquele momento — Se não quiser recebê-la vou compreender, mas talvez seja a hora de encarar essa situação.

— De quem a senhora está falando, madre? — Sua pergunta foi direta. No fundo sabia de quem se tratava, por isso não esperou mais entraves.

Topou ir até a sala de visitas para encontrar a tal pessoa e seus passos não foram nada ansiosos. Parte dele queria encontrá-la, porém a outra jamais queria vê-la novamente. Olhava para o chão quando encontrou quem buscava.

Ela.

A mulher de origem humilde que um dia conheceu e sempre buscou esconder as essências em roupas de marca e maquiagens caras. A garota que um dia o teve a seus pés, mas agora se transformou em seu pior pesadelo. Não sabia ao certo definir o que sentia por Fernanda naquele momento, muito menos se aquilo que queimava em seu peito era resto de amor ou puro ódio. Somente sabia que vê-la lhe causou uma dor tão forte que foi quase palpável.

Naquele ventre moraram seus filhos e naqueles braços eles se acalentaram. Ela significava o mais próximo de Pietro e Stefano e talvez fosse a única que compreendesse sua dor.

Usava um sobretudo rosa e botas altas de inverno. O cabelo loiro estava curto na altura dos ombros e ela parecia ainda mais com uma mulher da alta sociedade, totalmente diferente da meninota que gritava seu nome com pôsteres de seu rosto na adolescência.

— Fernanda — Chamou-a e a moça parou de avaliar os livros da sala de visita para se direcionar a ele.

Os olhos castanhos pareciam surpresos, assim como a maneira como o encarou de cima a baixo totalmente ressabiada.

— Pedro? — Nitidamente não acreditava em sua aparência. O avaliava com os lábios separados e as mãos sobre os lábios — Pensei que... Que você estava...

— Na pior? Largado às traças como você me deixou? — O tom irônico a fez abaixar as mãos — Fala sério, Fernanda. O que está fazendo aqui?

Ela não sabia por onde começar. Ameaçou se aproximar, no entanto Pedro deu dois passos para trás rapidamente.

— O que foi, Pedro? Você sequer pode me cumprimentar com um beijo? — O rapaz riu ironicamente — Qual é a graça em tudo isso? Sou eu quem deveria ter algum sentimento ruim em relação a você, afinal, mas resolvi esquecer.

— Resolveu esquecer? — Cruzou os braços sob o peito — Que bom que agora você se tornou uma pessoa complacente, Fernanda, mas eu estou bem longe de esquecer que minha esposa me abandonou no momento em que mais precisei dela.

— Não podia ser de outra maneira — A resposta de Fernanda foi rápida — Ou você esqueceu o que aconteceu? Olhar para você era como estar diante do assassino de meus filhos.

Aquilo doeu demasiadamente em Pedro, mas a imagem dura de Fernanda foi rapidamente substituída pelo olhar doce de Vivianne Grace. A noviça apareceu na porta atrás de Fernanda e o encarou de longe como se mandasse forças para ele naquele momento. O olhar da doce noviça o remeteu a tudo que trabalharam na terapia e em todos os bons sentimentos que agora habitavam em seu coração.

Após tanto tempo, Pedro conseguiu dizer o que sempre deveria ter dito.

— A culpa não foi minha — Foi uma pequena vitória dizer tais palavras a Fernanda e sentiu-se aliviado — Não fui culpado pela morte de nossos filhos e isso está mais do que provado. Do contrário, eu estaria preso — Fernanda o encarava absolutamente surpresa — Se veio até aqui para me fazer sentir culpado e me arrancar ainda mais dinheiro com sua chantagem emocional, sinto muito, mas você perdeu seu tempo! Isso não funciona mais, Fernanda.

Pedro ia lhe dar as costas, mas a moça o segurou com força pelo braço.

— Quem fez sua cabeça contra mim?

— Você mesma — Admitiu tirando a mão dela de seu braço — Se estou aqui, grande parte da culpa é sua! Você sabia exatamente o que dizer para me destroçar e me jogar no fundo do poço. Deste modo, ficaria com grande parte da minha fortuna.

— Tudo isso é um disparate, Pedro — Mostrou-se ofendida — Quando Paola me procurou com seu advogado para assinar o divórcio pensei que tudo não passava de uma brincadeira!

— Ah... Então foi para isso que veio. Se você não assinou, é melhor assinar. Aliás, não está casada com outro homem e morando na casa em que vivíamos? — A moça engoliu em seco.

— Apenas moramos juntos, mas isso acabou. Eu estava confusa e carente quando tudo aconteceu — Respondeu em tom ponderado.

— Pouco me importa. A única coisa que desejo é ser livre e, sabe de uma coisa, não quero te ver nunca mais!

— Pedro... — Aproximou-se dele vagarosamente — Vim até aqui porque já te perdoei — O rapaz ergueu uma sobrancelha diante da hipocrisia da mulher — Penso que agora é o momento de ficarmos juntos novamente e escrever uma nova história.

— Está falando sério? — O sorriso irônico do rapaz a fez concordar — Depois de tudo que aconteceu... De ter me acusado diante da família e da sociedade? Depois de ter me abandonado, de ter me traído por meu dinheiro e pior... De ter dito que Pietro e Stefano me culpariam para sempre!

— Eu estava nervosa, Pedro, entenda! — Esbravejou — Mas ainda te amo e quero continuar.

Vivianne assistia tudo e ouvia ao longe as palavras da mulher. Abaixou o olhar diante da sentença e sentiu o coração doer por saber que a qualquer momento poderia perder Pelegrini fatalmente. Ela não o tinha e talvez nunca o tivesse, mas de fato o amava de maneira proibida e secreta.

— A única coisa que entendo é que nossos caminhos jamais deverão se cruzar novamente.

— Nem por nossos filhos? — A mulher cutucou sua ferida, mas Pedro estava firme em seus sentimentos — Pietro e Stefano desejariam isso. Desejariam que tanto você quanto eu fôssemos felizes.

— Tem razão, Fernanda — Concordou com um aceno e encarou Vivianne Grace ao longe — Mas a minha felicidade não está mais com você e talvez nunca tenha estado. Eu te perdoo, se quer saber, porque alguém me ensinou que o perdão é o sentimento que mais nos aproxima de Deus — Vivianne o encarava com um pequeno sorriso orgulhoso — No entanto, a partir de hoje, te peço que nunca mais volte a cruzar meu caminho. Nunca mais.

— Não compreendo como pode ter se curado da morte de nossos filhos tão facilmente — O encarou com desprezo e Pedro abaixou o olhar um tanto nervoso e controlando-se para não perder a razão — Logo você, Pedro, que deveria sentir essa dor a vida toda.

— Esquecer jamais irei, porém fui curado pelo amor. Um sentimento que certamente você nunca conhecerá verdadeiramente — Pedro ia lhe dando as costas e Fernanda elevou o tom de voz .

— Não é o que penso.

— Já não me importa o que você pensa — Piscou de maneira provocativa antes de sair — Adeus Fernanda.

 

 

O encontro com as sombras de seu passado foi marcado pela visita de Fernanda e era tudo o que Pedro precisava para se livrar de muitas marcas. Ela queria feri-lo, porém apenas o ajudou. O alívio tomou conta de seu espírito e Pedro pôde finalmente se reencontrar. Já não existiam palavras engasgadas e tão pouco perdão retido.

Agora tudo se faria novo, apenas não sabia como recomeçar.

“Não compreendo como pode ter se curado da morte de nossos filhos tão facilmente. Logo você, que deveria sentir essa dor a vida toda”.

Na frente de Fernanda disfarçou, porém aquelas palavras o atingiram de maneira violenta e fizeram a ferida em seu coração sangrar novamente. A simples presença de Fernanda o confrontava, uma vez que era impossível não se lembrar dos meninos frente a ela. Tudo nela recordava Stefano e Pietro e estarem juntos trazia a tona o pior de seus pesadelos. Fernanda queria atingi-lo para desestabilizá-lo e ficar com sua fortuna, no entanto agora Pedro jogou por terra todas suas vãs tentativas.

Vivianne Grace o salvou. Abriu seus olhos. Retirou suas amarras. O trouxe de volta à vida.

No entanto, era uma mulher proibida e jamais poderia tê-la.

— Já está tudo pronto, irmão? — Paola estava linda como sempre naquela manhã ensolarada de verão e parecia ainda mais contente com a ideia de poder passar um tempo de qualidade com o irmão mais velho após tanto tempo.

— Sim. Tudo arrumado. A madre disse que posso começar a empacotar minhas coisas, pois acredita que em breve se dará minha saída, finalmente — Respondeu jogando a mochila sobre os ombros. Sua expressão monótona fez a moça cruzar os braços diante do peito.

— Não parece muito empolgado com a ideia — O ajudou a apanhar uma bolsa com algumas roupas e ambos caminharam até a porta do quarto, de modo a sair dele.

— Simplesmente não sei o que fazer depois de sair daqui, muito menos para onde ir — Paola o esperou fechar a porta e ambos caminharam lado a lado pelo corredor.

Paola usava shorts e roupa esportiva, algo que atraía a atenção de algumas pessoas ao redor. Estava decente, mas diferente do habitual. Era uma moça muito vistosa, assim como o irmão. Ambos exibiam uma beleza invejável e bastante saudável. Pedro sequer parecia o mesmo homem destruído do começo de sua estadia no Hospital da Graça. Agora, longe de álcool e os demais vícios prejudiciais, aparentava ser um novo homem.

— Estarei te esperando lá fora, maninho. Sabe que eu e William estaremos sempre com você — Referiu-se a seu noivo e grande amigo de Pedro. Tocou o ombro do irmão em um carinho fraternal.

— Não quero ser um chato. Vocês acabaram de ir morar juntos e não vou me meter no seu apartamento — Paola gargalhou.

— Tem um apartamento vago no meu prédio, se quiser saber. William sugeriu que você comprasse lá para ficar mais perto de mim — Pedro considerou a ideia — Acho melhor ficar lá do que voltar para uma de suas casas. Aliás, você tem que enxugar seu patrimônio e se fixar em um lugar só. Para de fazer besteira.

— Vou cuidar disso. Pedirei a meu advogado para dar um jeito em tudo — A moça concordou.

— Promete pensar sobre morar próximo de mim e parar de fazer besteira? — Pedro deu de ombros e tocou a bochecha da irmã de maneira palhaça. A garota afastou sua mão e os dois riram juntos — Já sei como te convencer... Vou falar com noviça Vivianne que, aliás, deve estar esperando a gente!

Paola olhou o relógio em seu pulso ao se lembrar do atraso e Pedro gelou quando ambos chegaram na saída do Hospital da Graça e se depararam com Vivianne ao lado da madre Superiora. O rapaz ficou parado no lugar como uma estátua humana vendo sua irmã mais nova correr até as duas e as abraçar com uma intimidade que parecia ser de longa data.

As três trocaram conversa animadamente e em sua cabeça nada fazia sentido.

Vivianne não estava vestida como noviça, mas sim como uma moça comum. Usava um belo vestido branco com detalhes em floral, sapatilhas e o longo cabelo escuro descia por suas costas. Ela sorria de maneira emocionada e parecia imensamente feliz com a possibilidade de passear. Carregava consigo uma pequena mala de mão e uma bolsa maior, indicando que sim, iria acompanhá-los. Caminhou até elas quando a despedida se iniciou e não pôde disfarçar o sorriso em direção a noviça.

— Veja só, Pedro! — Paola abraçou Vivianne carinhosamente — Noviça Vivianne vai nos acompanhar no passeio! Não é incrível?

Vivianne o encarou desafiadoramente por detrás do belo semblante. Com sua presença, a moça deixava claro que não tinha medo dele.

— Será um prazer tê-la conosco, noviça. Você merece um belo passeio pelo bem que fez por minha família, que somos eu e Paola — Respondeu educadamente — Obrigado madre. Vivianne foi muito importante para mim aqui dentro.

— Sei disso, filho — Respondeu a superiora — Cuidem dela, por favor. É minha joia rara.

Vivianne se despediu da madre e Pedro teve de rir da maneira como Paola se portava diante da mesma. Parecia ser um anjinho em forma de garota, bem diferente da festeira e animada Paola de sempre. Os três entraram no carro de Paola e ela rapidamente voltou a ser a de sempre. Vivianne sentou-se no banco de trás e o rapaz ao lado da irmã, que ligou o rádio em uma boa canção de rock romântico.

— Pronto, Vivianne, agora você está livre! — A morena brincou e Pedro viu o rosto belo da noviça corando no banco traseiro — Sinto muito se vamos decepcionar a madre, mas você vai curtir dois dias de pessoas normais ao nosso lado.

— Como assim Paola? — Pedro questionou quando o carro começou a rodar em direção a estrada — Ficou louca foi? Nós vamos até a chácara e se eu der qualquer problema volto direto para a cadeia!

— Claro que nós vamos para a chácara, mas tenho uma surpresa para você lá hoje a noite! — Pedro estreitou o olhar pelo mistério da irmã — Verá.

— Paola, olha só... Eu não posso me meter em confusão — Vivianne começou, mas a morena a cortou.

— Não vai ter confusão. O que menos quero é que meu irmão se prejudique... Vocês podem confiar em mim, por favor? Estou feliz que meu irmão voltou a ser normal e agora estamos juntos novamente... Estou feliz que você esteja aqui, também, Vivianne — A noviça, no fundo, gostava de ouvir as palavras de Paola. Soavam como um sonho que jamais pôde viver — Gosto de você, Vivianne, e acho que merece essa chance de ao menos um dia experimentar ser normal. Já sei sua história — Pedro encarava o rosto de Vivianne pelo retrovisor — Já sei que sua família te obriga a ser assim.

— Paola, eu...

— Não, não se explique — Seguia empolgada — Antes de dizer qualquer coisa, se dê uma chance.

Uma chance.

Vivianne retribuiu o olhar de Pedro pelo retrovisor e abaixou o rosto pela confusão que se estabeleceu em sua mente. Não sabia ao certo o que a irmã dele pretendia, mas algo dentro de si era incapaz de seguir a razão a pedir para que fosse levada de volta. Resolveu aceitar e dar uma chance ao destino.

Ouviram música por toda a estrada e ficou nítido para ela como era doloroso para Pedro encarar aquele caminho novamente. No exato local onde ocorreu o acidente todos ficaram calados e a música parou. Pedro fez questão de observar cada canto da paisagem com atenção redobrada e não escondeu delas a maneira como sofria em estar ali. A dor foi sentida em silêncio e seguiram assim até a entrada da pequena cidade interiorana onde se localizava a casa de campo.

Vivianne jamais viu um lugar tão belo em sua vida, mesmo que a fazenda de seus pais fosse tão encantadora quanto a chácara da família Pelegrini. O lugar era cercado de flores coloridas e de longe se notava a presença da memória dos garotos Stefano e Pietro. Os brinquedos infantis e a bela piscina ainda tinham objetos que remetiam a eles, assim como toda a decoração. Tudo era belo, doce e muito alegre. O clima ensolarado animava ainda mais o ambiente e Vivianne desceu do carro apaixonada pela paisagem.

“Chácara Stefano & Pietro”

Era o que estava escrito na entrada do local em uma bela placa na fachada da varanda.

Pedro colocou os óculos de sol para não chorar em frente a elas e caminhou pelo local em completo silêncio. Vivianne e Paola se reuniram na varanda e trocaram algumas palavras observando-o, porém respeitando o tempo de luto que o rapaz precisava viver.

— Tudo aqui lembra os garotos — Paola comentou ao lado da noviça, que sentia o coração partindo ao vê-lo se aproximar da casinha dos cachorros — Se Pedro sair bem daqui certamente será a prova de que está curado.

— Curado ele jamais estará, mas certamente saberá lidar com isso de maneira mais tranquila e sensata — Paola concordou diante das palavras dela — Aqueles são os filhotes da cachorrinha que os meninos queriam conhecer? — Questionou a Paola e ela concordou rapidamente.

— Sim. São os filhos de Angel.

Uma bonita cadela vira-lata de cor caramelo saiu da casinha grande junto à dois cachorros um pouco menores, - um branco e outro caramelo com manchas - mas muito brincalhões e animados. Ambos jamais haviam visto Pedro anteriormente, no entanto correram até ele com entusiasmo redobrado ao vê-lo se aproximar. Era como se sempre houvessem esperado por ele e tal fato emocionou grandemente Vivianne e Paola.

As duas se entreolharam com lágrimas nos olhos e se abraçaram carinhosamente enquanto assistiam a cena da varanda.

Pedro abraçou os animais com muito amor e deitou e rolou com os dois na grama. Era como vê-lo brincando com os filhos, talvez somente a memória deles. A alegria dos animais era tanta que latiam fortemente e choramingavam de alegria pelo carinho de Pedro. Nina, a caseira da casa, chegou para cumprimentá-las também comovida pela cena e se juntou as garotas na plateia.

— Ele melhorou, Paola? — A senhora questionou sem evitar as lágrimas. Era uma mulher de meia idade simples, de cabelos brancos curtos e expressão amigável.

— Sim, Nina. Graças a Vivianne — Apontou a noviça e sorriu — Ela foi um anjo na vida dele. Uma garota enviada pelo céu.

— Finalmente Pedro encontrou uma namorada que não parece uma louca interesseira — A senhora sorriu para Vivianne e a noviça a encarou surpresa — Ele está bem apaixonado. Vi como olhava para você quando chegaram e sei que jamais olhou assim para a maluca da Fernanda. Meus parabéns...

— Não, Nina — Paola interveio gargalhando — Ela não é namorada do meu irmão. É uma noviça que cuidou dele no Hospital da Graça onde está internado. Ela é psicóloga.

— Noviça? — Vivianne concordou timidamente — Mas Pedro se mete em cada uma... Nada para esse garoto é fácil.

— Você preparou tudo para hoje a noite como pedi? — Paola questionou fazendo mistério.

— Sim senhorita. Está tudo pronto. O pessoal virá fazer a decoração as 18 horas — Respondeu animadamente.

— Ótimo! — Abraçou Vivianne de lado. Pedro continuava brincando com os cachorros.

— O que você está aprontando, Paola? — Questionou a noviça ao ver o rapaz se colocando de pé e caminhando até elas.

— Eu te disse que ia ter diversão, não disse?

Pedro às alcançou no exato instante. Vivianne não deu muita importância para as palavras de Paola, pois seu olhar se fixou no dele e ambos se encararam em silêncio durante algum tempo. Paola saiu de fininho indo em direção a Nina e, ao se verem a sós, Vivianne teve coragem de perguntar.

— Como se sente agora?

— Por incrível que pareça me sinto bem — A resposta dele foi sincera e dolorosa — Acho que não existe outro lugar onde eu desejaria estar agora.

— Que bom Pedro — Respondeu emocionada. Os olhos azuis brilhavam em lágrimas e ele não hesitou em se aproximar naquele momento de fragilidade. Abraçou Vivianne sem pedir e ela retribuiu com carinho e entusiasmo.

Ser envolvida pelos fortes braços de Pedro Pelegrini a fazia flutuar. Estar tão próxima dele era de fato a coisa mais sublime que já experimentou e devia confessar a si mesma que tinha medo do que ele a fazia sentir.

— Só tem uma coisa que me faria mais feliz do que estar aqui... — Separaram-se, mas Pedro continuou com os braços ao redor da cintura dela.

— O que? — Questionou com a voz trêmula.

— Você me dar uma chance.

Vivianne não teve tempo de responder, uma vez que Paola voltou ao encontro de ambos e os apressou em um passeio.

Mostraram a chácara toda para Vivianne e almoçaram no restaurante da família de Nina nos arredores. Todos eram cordiais e amigáveis e, pela primeira vez, Vivianne podia ser livre e ela mesma. Não existia em sua testa uma luz que denunciasse seu cargo de noviça e prometida à ser freira.

Se divertiu muito durante o dia com os irmãos Pelegrini, que descobriu serem brincalhões e animados demais da conta. Ao final dos passeios, no entanto, foi arrastada para o quarto onde dormiria e Paola expôs diante dela um belo vestido preto com rendas. Era a peça de roupa mais ousada que Vivianne ganhara na vida, apesar de ser uma peça discreta.

— Vai ficar lindo em você — Disse a Paola analisando a peça nas mãos da irmã de Pedro.

— Não é para mim. É seu. Um presente meu para você — A noviça encarou a morena com estranheza — O que foi? Não gostou?

— Claro que gostei, mas onde acha que poderei usá-lo? — Brincou pelo fato de ser um vestido de festa — Não creio que a madre aprove seu uso nas imediações do convento.

— Que convento, o quê... — Paola ironizou — Você vai usá-lo hoje a noite.

— Como assim? — Vivianne gargalhou — Ficou louca?

— Não, não estou louca — Explicou — Você vai tomar um banho agora e colocar esse vestido. Daqui a pouco venho para te maquiar e te ajudar com os restante — Vivianne apanhou o vestido que Paola colocou em suas mãos — E não quero um não como resposta!

— Mas Paola...

— A madre não está aqui, Vivianne, nem os seus pais! — Segurou as mãos de Vivianne com carinho — Você merece ser você, mesmo que seja só por uma noite.

A noviça não conseguiu lutar contra a insistente e teimosa Paola Pelegrini. Fez o que ela pediu e não pôde duvidar que sim, ela realmente merecia uma chance.

Seu coração merecia conhecer o amor.

 

 

P edro não sabia qual era o plano de Paola para aquela noite, no entanto tinha a impressão de que a muito tempo não se sentia tão amado quanto agora, ao lado de sua irmã mais nova e de noviça Vivianne.

O único problema com ela era exatamente este... Ser uma noviça.

Tinha em mente que não poderia tê-la, porém seu coração teimoso custava em compreender que aquela moça doce, de belos olhos e linda alma era inacessível para qualquer homem que andasse sobre a terra.

Fez como Paola pediu e deu um bom trato na aparência, preocupando-se de fato em ficar bonitão após tanto tempo. Olhou-se no espelho e reconheceu-se, finalmente, naquele homem moreno e alto, de físico atlético e expressivos olhos verdes. Sorriu para si mesmo quando ajeitou o cabelo da maneira como fazia em sua adolescência e realmente sentiu-se assim... Como um garoto novamente. Sabia bem que Vivianne tinha tudo a ver com sua ansiedade e vontade de impressioná-la. Ela por si só e com sua delicada simplicidade o surpreendia apenas com um olhar. Era difícil para ele respondê-la a altura.

Não sabia qual era o nome da mágica da linda noviça, apenas tinha convicção de que ela o tinha a seus pés e a gratidão de Pedro era tamanha que faria qualquer coisa por ela. Qualquer coisa, até mesmo deixá-la em paz se assim fosse sua vontade.

Saiu do quarto no horário estipulado após receber uma mensagem no celular que Paola havia emprestado. Caminhou de maneira curiosa pela casa até alcançar a porta por onde adentravam vozes e luzes. Chegando até a mesma, abriu-a e deparou-se com a varanda vazia. Por detrás dela pôde ver o lago ao lado da casa e caminhou até ele lentamente. Seus olhos não podiam crer em tudo o que avistaram.

Havia uma bela faixa comemorativa pendurada sobre os convidados da pequena festa e palavras de boas-vindas eram escritas nela.

“Bem vindo de volta, Pedro!”

Eram os dizeres mais simplórios, porém verdadeiros que poderia ter lido. Bem vindo de volta à vida, eles queriam dizer. Sorriu desacreditado ao encontrar Paola ao lado de seus grandes amigos Brandon, Parker e William, sendo o último noivo de Paola. Os garotos que no passado formaram sua famosa banda adolescente. Não pôde acreditar que estavam ali junto de suas namoradas.

Era uma pequena comemoração ao lado do lago com uma incrível decoração com temas musicais, mas o que de fato o surpreendeu foi avistar Vivianne ao lado de Paola, tão encantadora que mal pôde reconhecê-la.

A noviça usava um bonito vestido negro e rendado, algo totalmente atípico dela. Também usava um elegante salto junto de uma bonita e trabalhada maquiagem no mesmo tom. Teve a sensação de perder o chão abaixo dos pés quando seus olhos cruzaram com os dela. Sempre elogiou a beleza singela de Vivianne e foi por ela que caiu apaixonado, porém ao vê-la arrumada como a moça bonita que era o fez perder o ar. De fato estava apaixonado por ela e não conseguia de modo algum explicar a seu coração como fazer para esquecê-la.

Todos gritaram “Surpresa” quando ele chegou e Paola foi a primeira a abraçá-lo.

— Gostou da surpresa irmãozinho? — A morena, também linda em um vestido branco, parecia satisfeita com sua expressão emocionada — Todos vieram te felicitar!

— Claro que sim, claro... — Respondeu ainda nervoso, caminhando em direção aos demais.

Foi abraçado pelos amigos e festejou com eles, mas seus olhos não conseguiam abandonar Vivianne por nem um só instante.

Não podia esconder, tão pouco, o quanto a admirava apenas com o olhar. Sabia que aquela noite significava uma chance... Talvez sua única chance.


O estômago de Vivianne encontrava-se cheio de borboletas e a noviça não conseguia compreender como foram parar lá dentro.

Sentiu arrepios inexplicáveis ao ver Pedro chegando tão lindo e forte, o olhar sedutor penetrando no seu de maneira intensa e desestabilizando-a com a proximidade. Nunca sentiu o ar faltar em seus pulmões, mas no instante em que os braços quentes a envolveram em um abraço apaixonado o mundo desabou junto de toda sua boa vontade.

Ela o queria perto... Tão perto, a ponto de estar dentro dela.

Não, definitivamente Frida tinha razão! Suas vontades não condiziam em nada com as de uma freira. Uma verdadeira freira - realmente entregue ao celibato - jamais sentiria tais coisas! Uma verdadeira noviça não usaria tais vestidos, não se maquiaria de maneira chamativa e muito menos estaria ali, louca para estar nos braços de um homem!

Não pôde soltá-lo quando a mão de Pedro se prendeu a dela de maneira possessiva. Ambos não conseguiam se afastar da energia eletrizante que os envolvia e isso era claro e perigoso. Vivianne chegou a se perguntar se de fato fez o correto ao aceitar as propostas de Paola.

— Finalmente arranjou uma namorada gata, hein, cara! — Parker, o amigo ruivo de Pedro, bateu no ombro do amigo. Vivianne enrubesceu no mesmo momento — Meus parabéns. Fico feliz em vê-lo bem, amigo.

— Obrigado, cara, mas infelizmente ela não é minha namorada — A resposta de Pedro fez Paola intervir rapidamente.

— Ela é minha amiga... Uma das melhores — Paola trocou o olhares com Vivianne — Pessoal, conheçam Vivianne. Vivianne, estes são os meninos da banda de Pedro e William, meu noivo.

Paola a apresentou de tal maneira para que ninguém soubesse de sua real situação. Como disse anteriormente, Vivianne estava livre naquela noite.

— Se ela não é sua namorada, posso me declarar interessado? — Parker apertou a mão de Vivianne e após o cumprimento fez a brincadeira, deixando-a ainda mais vermelha.

— Só se você estiver louco — A resposta de Pedro fez todos ao redor gargalharem.

— Então tudo já ficou bem claro para mim — Parker respondeu a brincadeira animadamente e Vivianne parecia querer explodir pela vergonha.

A noviça seguiu Pedro para a beira do lago, afastando-se um pouco dos demais convidados da noite. Todos tocavam instrumentos e conversavam juntos.

— Para com isso, Pedro — Sussurrou a moça próxima dele — O que as pessoas vão pensar de mim?

— Você está bebendo vinho, noviça Vivianne? — A moça olhou para a taça em suas mãos e sorriu diante do olhar intrigado do rapaz — O que as pessoas vão pensar de você?

— Por favor, não conte para a madre! — Pediu em um súplica inocente.

— Pode ter certeza que a última coisa que farei é contar alguma coisa para a madre. E Deus que me perdoe... — O olhar dele percorreu novamente o vestuário da noviça e Vivianne desviou o olhar pela maneira intensa como era analisada — Você acha justo fazer isso?

— Fazer o que?

— Esconder sua beleza por debaixo daquele vestido cinza e encarcerada nos muros altos daquele convento — A expressão de Vivianne se tornou tristonha, mas Pedro tocou-lhe o queixo de maneira a fazê-la encará-lo — Não creio que seja esse o real plano de sua vida, Vivianne. Você não nasceu para se esconder. Você brilha em meio a todos os outros, principalmente para mim.

— Pedro... Você não sabe nada sobre mim — Suspirou e segurou a mão dele que lhe tocava a face — Eu não tenho escolha.

— Foi você quem me ensinou que todos nós temos escolhas — Vivianne suspirou e olhou ao redor. Os demais não pareciam prestar atenção neles — E sim, Vivianne, eu sei coisas sobre você e, desde que tomei ciência delas, tenho guardada em meu peito a vontade de te fazer uma única pergunta... — Vivianne o encarou sem compreender suas palavras. Realmente mostrava-se surpresa pela maneira como a abordou — Quando ficou sabendo de minha história, verdadeiramente me escolheu para agradar a madre ou para compreender seus pais?

— Do que está falando, Pedro? — Os olhos azuis o estudavam com nervosismo.

— Suas irmãs faleceram em um terrível acidente automobilístico no passado, exatamente igual a meus filhos — O coração de Vivianne perdeu uma batida ao ouvir as palavras de Pedro. Sempre temeu a reação dele ao saber de tal fato, por isso sentia-se à beira de um precipício com seu enfrentamento — Seus pais sofreram a mesma dor que sofri, mas de maneira mais radical a canalizaram. Eu usei álcool e drogas para afogar as mágoas... Eles usaram você.

— Quem te contou tudo isso? — Suas palavras saíram atropeladas.

— Não importa quem me contou... O que importa é que quero você e seus pais são uma barreira entre nós — Pela primeira vez Vivianne ouviu dos lábios dele que a queria. Aquilo soou mais provocante que qualquer outra coisa — Não é justo subjugarem sua vida toda a vontade deles próprios. É loucura.

— Eles acham que estão me protegendo... — Deu de ombros já sentindo os olhos queimando pelas lágrimas — Pedro, por favor. Não toque nesse assunto. É muito doloroso para mim.

— Sinto muito, Vivianne, mas eu te fiz esse mesmo pedido meses atrás quando nos conhecemos e eu estava me matando em vida. Você não me abandonou mesmo quando lhe dei as costas e lutou por mim até o final, não foi? — À maneira segura como Pedro falava tocava profundamente o coração da moça — Agora quem implora em silêncio por ajuda é você e não pretendo abandoná-la!

Era tudo que ela precisava ouvir, mas Vivianne não sabia como agir diante da situação.

— Pedro... — O rapaz não hesitou em tocar seu pulso com cuidado e puxá-la para longe dos demais. Caminharam um pouco até a varanda da casa e, longe da vista de todos, Vivianne se permitiu chorar em silêncio. As lágrimas rolavam em seu belo rosto em um pedido desesperado de socorro e todo o resto se apagou ao redor — Eu sei o que você quer, Pedro... Você quer ficar comigo porque está deslumbrado com a ajuda que te dei. Eu sou a única moça que você vê em muito tempo e por isso acha que gosta de mim... Mas depois que eu for sua, esse deslumbramento vai acabar e você voltará a ser o Pedro conquistador de sempre.

— É isso que realmente pensa de mim, Vivianne? Que estou aqui querendo que abra mão de toda sua vida para brincar com você? — Puxou a mão dela e colocou em seu peito, acima de seu coração — Estou apaixonado por você... Tão apaixonado que esse sentimento já me impediu várias vezes de te estreitar contra meu peito e te fazer minha em meio a nossas sessões. Ninguém iria saber e duvido muito que você iria querer fugir de mim — Ela nada respondeu, uma vez que seu fôlego foi perdido e a verdade era a própria escancarada — Mas se eu o fizesse jamais conseguiria viver em paz sabendo que não fui homem suficiente para lutar por você. Lutar como você lutou por mim. Te quero por inteiro, não por um momento. Você é a mulher que quero ao meu lado por toda minha vida.

Vivianne pensou em dizer tantas coisas, mas nada fez mais sentido do que largar a taça de vinho em meio ao chão e puxar Pedro pela nuca em busca de um beijo preso em seus lábios a muito tempo.

Seu corpo todo fervilhou ao ser envolvida pela cintura por ele, que a tomou em seus braços fortes com ardor e paixão. Teve a sensação de flutuar de encontro a seu peito, segurando-o com a felicidade irradiando da alma.

Como o queria!

Como também o desejava!

Não era capaz de afastá-lo e tão pouco queria. Não podia mais ocultar de si mesma que também estava apaixonada. Não pôde mais se esconder após ouvir as palavras dele e tomá-las como certas. De fato implorava por Pedro silenciosamente. De fato teria sido dele se Pedro realmente quisesse tê-la tomado em seus braços em meio às sessões. Não contaria a ninguém porque era exatamente o que desejava... Ser dele.

— Vivianne... — Pedro a segurou pela cintura após separem-se do beijo. Vivianne estava tão trêmula que seu corpo não podia se afastar do dele — Você definitivamente não serve para ser freira...

Pedro sorriu e ela abaixou o rosto, envergonhada.

— Eu nunca fui beijada antes, Pedro. Você sabe disso — Ele tocou o rosto dela com carinho.

— Se você fica assim com um simples beijo, imagina com todo o resto... — O olhar azul da moça se mostrou assustado diante dele — É por isso que você me deixa louco. Nunca conheci alguém como você. Nunca imaginei ser possível uma mulher ser tão doce, bela e sincera. É como se você fosse enviada pelo céu especialmente para mim.

— Ou talvez você tenha sido enviado para mim.

Pedro a beijou novamente, depositando no ato ainda mais carinho e paixão que anteriormente. Tocar os lábios de Vivianne era como ir ao céu, dada a doçura e delicadeza que a moça depositava em seus atos. Não podia crer que finalmente a tinha, mesmo que não fosse da maneira intensa como a desejava ardentemente em seus sonhos.

Não podia assustá-la assim. Não podia lançar sobre a doce noviça todo o fogo guardado em seu peito por tanto tempo. Se o fizesse poderia assustá-la e arruinar tudo com sua intensidade. Deveria esperar o momento certo.

— Você ainda não respondeu minha pergunta... — Ela o encarou curiosa. Era nítido em seu olhar que a própria Vivianne não podia crer em tudo que estava acontecendo — Me escolheu para agradar a madre ou para compreender seus pais?

Vivianne reuniu em seu peito toda a coragem de seu ser para responder o mais sinceramente possível a pergunta. Já não importava todo o resto, a única coisa que existia naquele instante era Pedro Pelegrini e seus braços fortes ao redor dela. Tudo o que queria era ser dele e todo o resto já não importava.

— Algo tocou em seu coração quando a madre falou sobre você. De alguma maneira eu já sabia antes mesmo de te conhecer que estava apaixonada. Quando te conheci, tudo foi abaixo. Você arruinou todo o resto e chegou como um sonho.

 

 

O s garotos da banda demorar a convencer Pedro para pegar no violão, mas após muita insistência o moreno aceitou arranhar algumas notas nas antigas cordas que por tantos anos o acompanharam.

Vivianne sentou-se ao lado de Paola enquanto assistiam o rapaz envolto pelos amigos tocar sozinho e a visão dele tão empolgado com a música fez ambas se emocionarem.

— Faz tanto tempo que não vejo meu irmão sorrindo... — O comentário de Paola era sincero e seus olhos lacrimejavam — Ah Vivianne... Não sabe como lhe sou grata por isso — Passou um dos braços nos ombros da amiga e as duas sorriram.

— Não fiz nada, Paola. Foi Pedro quem fez o principal... Ele se dispôs a ser ajudado — Paola negou.

— Você não desistiu dele, mesmo que o próprio tenha insistido para que o fizesse. Conheço meu irmão e sei que ele não é fácil, principalmente quando contrariado. Sempre serei grata por você ter insistido nele e te deverei um favor por toda minha vida. Nós só temos um ao outro e pensei que o perderia... Agora, no entanto, o tenho de volta comigo e de quebra ganhei uma grande amiga — Vivianne retribuiu o abraço de Paola.

Ao lado dos irmãos Pelegrini se sentia amada e querida como nunca antes havia acontecido. Paola era o mais próximo de uma irmã que já tivera, uma vez que não conheceu as suas e seus irmãos eram muito mais velhos para manter qualquer relação que não seja cordial.

— Você não me deve nada, Paola. Mas, se de fato te consola saber, estou muito feliz com esse vestido e essa maquiagem. Nunca me senti mais bonita — Vivianne fez pose e Paola concordou animada.

— Você é linda, amiga. Linda, inteligente, ótima profissional e uma mulher incrível — A noviça a encarava um tanto tímida — A única coisa que te falta é coragem para enfrentar o mundo e, principalmente, para viver a história que te espera.

Pedro e os amigos cantavam juntos na roda de violão uma canção famosa e que até mesmo Vivianne, criada dentro dos colégios religiosos, conhecia bem.

Meu caminho é cada manhã
Não procure saber onde vou
Meu destino não é de ninguém
E eu não deixo os meu passos no chão...

— Do que está falando? — Paola encarou Pedro, que tocava e as observava sem disfarçar.

— Do meu irmão... Ele está louco por você, não finja que não sabe! — Paola estreitou o olhar — E não é por nada não, mas ele é um tremendo gato e um partidão! Se você quiser, basta estalar os dedos que ele cai todinho aos seus pés.

— Sei disso — Respondeu olhando para Pedro também e nervosa com sua maneira intensa de encará-la — Mas você sabe que eu sou...

— Boba! — Paola interveio rapidamente e Vivianne riu — Pedro quer se casar com você e o casamento também é bíblico e tudo mais. Você não vai desrespeitar Deus se desejar se casar como uma mulher normal.

Vivianne não conseguia encarar Paola, tão pouco a si mesma. Presa em suas convicções, não conseguia encontrar uma maneira de se entregar aos braços de Pelegrini sem que sua vida desmoronasse de uma só vez. Entregar-se significava abrir mão do convento, portanto, desonra para seus pais e o final de todo seu projeto de vida. Se os desobedecesse, para onde iria, afinal? O que faria sem o convento, uma vez que jamais imaginou sua vida sem ele?

Se um dia eu pudesse ver
Meu passado inteiro
E fizesse parar de chover
Nos primeiros erros...

A canção seguia e Vivianne não soube o que dizer a Paola. Desconcertada, encarou a amiga com lágrimas nos olhos e vulnerável por toda situação. Seu conflito interno era tão pesado e evidente que comoveu o coração de Paola a ponto de fazê-la abraçar Vivianne também em lágrimas.

— Não leve em consideração as coisas que estou falando, Vivianne, acho que estou bêbada — A noviça riu baixinho — Mas, por favor, reconsidere. Tenho certeza que Pedro poderia te fazer muito feliz.

Os garotos seguiram cantando e tocando e Vivianne ouviu a canção atentamente, como se a letra falasse com ela mesma.

Deveria ter parado de errar no passado. Deveria ter se imposto quando percebeu que ser freira não era o que ela desejava para sua vida. Deveria ter erguido sua voz diante de sua conservadora família, demonstrando que ainda poderia ser uma mulher virtuosa mesmo que não desejasse seguir a vida religiosa.

Errou por toda sua vida e agora, diante de sua grande chance de ser feliz, já não sabia se era tarde demais para voltar atrás.

Meu corpo viraria sol
Minha mente viraria
Mas só chove, chove
Chove, chove...

Paola terminou a noite ao lado do noivo e Vivianne a perdeu de vista quando os garotos da banda resolveram sair para curtir no centro da cidade com os demais amigos e suas namoradas. Ela, no entanto, ficou para trás com Pedro, que não tinha permissão de ir a outro lugar que não fosse a casa de campo.

Cansada pela noite agitada, retirou os saltos dos pés enquanto caminhava em direção à varanda da casa grande. Tomou um grande susto quando foi agarrada pela cintura e erguida no ar em uma chegada repentina de Pedro. Os saltos caíram de suas mãos e ela agarrou o rapaz pela nuca nervosa e surpresa por sua atitude.

— Olha, eu já sei que você é louco... Mas para com isso! — Brincou após o susto — Não sei me comportar socialmente e acabo passando vergonha — Sussurrou.

— Não tem problema, nós estamos sozinhos aqui. A Nina já foi se deitar — O comentário dele fez o corpo todo de Vivianne estremecer em seus braços, algo que não lhe passou despercebido — Ficou com medo, não foi? — A risadinha dele a fez negar — Mas é para ficar mesmo... Não pretendo que essa noite termine em branco.

— Pedro, para! — Ela disse quando o rapaz caminhou com ela em direção a piscina iluminada — Você não se atreveria... Ah!

A voz da noviça foi interrompida quando Pedro pulou com ela na piscina aquecida e ambos foram imersos pela água. Vivianne emergiu sem fôlego, mas não pelo susto. As mãos de Pedro seguiam ao redor de sua cintura e os lábios a centímetros de se tocarem. Os lindos olhos verdes a desmontaram e eram impossível ser imune a ele.

— Gostou do banho? — Vivianne negou com expressão nervosa.

— Demorei vinte e dois anos para conseguir fazer uma boa maquiagem e você estragou tudo, até mesmo meu cabelo... — Referiu-se a maquiagem que escorria por seu rosto e o cabelo molhado. A brincadeira dela o fez sorrir, tocando-lhe o rosto com carinho.

— Você não precisa de nada disso para ser incrível, Vivianne. Na verdade acho que sua melhor versão é a que conheci... E foi pela menina com carinha de noviça que me apaixonei.

Pedro controlou-se muitas vezes para não passar dos limites com Vivianne, mas após ser beijado por ela uma vez mais, sentiu que seu corpo explodia pelo desejo guardado por todo esse tempo. Não controlou seus lábios de devorarem os dela, muito menos suas mãos de passearem pelo corpo curvilíneo que se derretia sob seu toque. Sentiu-a em suas mãos, em seu braços e contra seu peito, demonstrando a ela toda sua paixão e masculinidade.

A respiração descompassada e o nervosismo que encontrou nos grandes olhos azuis da moça foram o ponto chave para trazê-lo de volta a realidade.

— Você está tremendo tanto... É pelo frio? — Questionou um pouco receoso de tê-la assustado.

— Não, é... — As palavras são saiam e Vivianne parecia tímida.

Pedro a guiou para a saída da piscina e a ajudou a subir as escadas. Uma vez fora, caminharam até as toalhas e sentaram-se nas espreguiçadeiras. Não estava frio, apesar de Vivianne ainda tremer. Seu nervosismo se dava pela proximidade e pela paixão contida em seu peito.

— Você vai me achar boba, mas posso te pedir uma coisa? — Questionou o vendo enxugar o cabelo sentado à sua frente.

— Claro. O que você quiser — Respondeu animado. Os olhos azuis de Vivianne brilhavam em curiosidade.

— Me mostre suas tatuagens... — Pedro a encarou lentamente e sem esconder o quão surpreso ficou com seu pedido. Soltou um sorriso tímido e se achou o mais babaca dos homens por se sentir de tal maneira em frente a uma noviça — O que foi?

— Todas? — Questionou curioso e ela assentiu positivamente.

— São muitas? — O tom seguro da moça deixava claro que ela sabia bem o que estava fazendo.

— Creio que nove, não me recordo ao certo — Deu de ombros — Eu era muito jovem quando fiz algumas delas.

Pedro ficou de pé e retirou a camisa preta que usava por cima da cabeça. Vivianne apertou os lábios quando se viu diante dele com o peito forte desnudo e não conseguiu disfarçar a maneira como se inquietou. Jamais havia visto um homem sem camisa antes, muito menos um homem tão atraente.

Pedro tinha braços fortes, ombros largos e o corpo bem definido. Seus dois ombros e bíceps eram cobertos por desenhos bem feitos e realistas, chamando a atenção para seu porte atlético e másculo. Vivianne se colocou de pé diante dele de modo a analisar mais de perto, tomando coragem para se aproximar dele a ponto de tocar sua pele úmida.

O nome dos filhos dele, Stefano e Pietro, tinha lugar especial em meio aos demais desenhos. Um belo diamante estava tatuado sob eles em seu peito, demonstrando o valor que ambos tinham para o pai, e uma asa de anjo decorava os mesmo. O sobrenome da família, Pelegrini, também estava lá acima de sua clavícula e, finalmente, Vivianne pôde ver a tatuagem do leão impositivo completa em seu bíceps. Havia uma bonita rosa preta em seu ombro e a noviça sorriu ao vê-la.

— Esse desenho Paola e eu fizemos em homenagem a nossa mãe. Era tatuadora e seu desenho mais estimado era essa rosa que ela também tinha riscada no mesmo lugar — Vivianne tocou o desenho sem pedir permissão a Pedro e ele se retesou sob o toque macio e inocente.

— É muito bonita... — Sussurrou deslizando a ponta dos dedos por sua pele quente.

Pedro também tinha alguns desenhos em suas costas, mas o que de fato chamou a atenção da noviça foram os dizeres abaixo da tatuagem grande do leão que cobria todo seu braço.

“Para sempre, amém”.

— O que quer dizer? — Sussurrou tocando as palavras.

Pedro se controlava para não agarrá-la, buscando manter-se calmo diante da tentação que a doce Vivianne lhe representava estando tão próxima e tão atraente com a roupa molhada colada a suas curvas. Seu desejo era tamanho, que chegava a doer fisicamente.

— O leão não tem a ver comigo, como você sempre pensou — Confessou sem medir as palavras — É o leão de Judá.

— Você está brincando, não está? — Vivianne sorriu sem humor e desacreditada — Você não acredita em Deus.

— Quem disse que não? — Vivianne o encarava sem saber se deveria levar fé em suas palavras. Apenas sabia que tudo o que sentia ao lado de Pedro lhe assustava grandemente — Você está aqui... E eu não sabia que se interessava tanto por tatuagens.

Vivianne gargalhou baixinho e torceu os lábios.

— Tem muitas coisas que não deveriam me interessar, mas não posso evitar achá-las interessantes — Confessou um tanto tímida. Ele se aproximou ainda mais e a envolveu pela cintura.

— Sei bem como é. Tem coisas que eu sequer poderia colocar os olhos, mas não posso evitar achá-las encantadoras.

Vivianne pousou as mãos no peito de Pedro e, ao sentir seu calor contra os dedos, sentiu o coração derreter e as pernas bambearem. Era assim que os grandes romancistas descreviam a verdadeira paixão... Quente, forte e arrebatadora!

Seus olhos azuis se fixaram nos de Pedro quando o rapaz tomou uma de suas mãos nas dele e beijou a ponta de seus dedos.

— Você me deixa com medo, Pedro. Me faz sentir coisas estranhas e até chego a pensar que estou enlouquecendo — Ele lhe tocou o queixo com carinho.

— Eu já fiquei louco à muito tempo.

Os lábios de Pedro encontraram os de Vivianne em um beijo profundo e urgente. A necessidade que sentia dela era tão grande que sequer podia esconder sua ânsia por tocá-la, deixando claro que suas emoções eram reais e certas.

Temendo a chegada repentina de alguém, Vivianne o convenceu a entrarem e os passos incertos de ambos os guiaram até o quarto onde a noviça estava hospedada. Apesar de tentarem, a distância causava repulsa e a própria Vivianne não sabia como fazer para não estar em meio aos braços dele.

Tocou os ombros fortes com ardor e acariciou a pele firme em seus dedos hesitantes. A umidade do corpo de ambos incendiava ainda mais o momento, uma vez que buscavam aplacar o frio que a mesma proporcionou ao caírem na piscina.

Não podia estar ali, mas não conseguia evitar.

Pedro beijava Vivianne com todo carinho que jamais destinou a outra mulher. Não se conformava com a maneira inocente e doce como ela o retribuía, nitidamente dominada por sentimentos e sedenta por carícias. Jamais esteve com uma mulher tão inexperiente e sentia a cada toque que a noviça direcionava em sua pele as descobertas que aquele momento lhe proporcionava.

Amor era o único termo que podia descrever aquele momento.

Os cabelos longos e escuros da noviça dançavam entre suas mãos conforme as deslizava ao decorrer dela. A respiração descompassada de Vivianne se confundiu com a sua quando a deitou sobre os lençóis da cama de maneira calma e cobriu seu corpo com o dela.

Uma virgem como ela não teria chance alguma contra um homem experiente como ele. Se Pedro assim quisesse, a doce Vivianne seria sua ali, agora, naquele momento e sem nenhuma hesitação. Seus beijos a envolviam e suas carícias a enlouqueciam. Pedro sabia do que era capaz e tinha total ciência de que Vivianne não media as consequências de seus atos.

Não podia raciocinar dominada pelos prazeres carnais, portanto não mensurava a gravidade de seus atos. Ser dele significava derramar seu sangue sobre sua pele. Ser dele significava o fim de tudo que ela considerava correto e, por amor, Pedro não conseguiu prosseguir.

Nunca viu olhos mais azuis e mais lindos em toda sua vida. O medo estampado em sua face o fez reconsiderar.

— Pedro... Desculpe-me se fiz algo errado — O rapaz se sentou ao lado dela na cama e apertou os olhos pela sensação avassaladora do desejo que lhe tomava.

— Você não fez nada errado — Tocou o rosto dela e afastou os cabelos revoltos e úmidos — Sou eu que não posso, Vivianne. Seria um canalha se me aproveitasse de você.

A noviça abaixou o olhar após cair em si. Apertou os olhos também, nervosa pela situação.

— Me desculpe, Pedro — Sussurrou tocando sua mão com carinho — Eu sou um erro.

— Você vai ser minha, Vivianne, e te esperar será a maior prova de amor que poderei lhe dar.

Pedro abraçou-a com carinho e beijou sua testa com todo seu amor. Aquela, talvez, seria a única maneira de Vivianne realmente enxergar que Pedro Pelegrini, o homem problema, estava verdadeiramente apaixonado por ela.

 

 

P or muito pouco Vivianne não caiu nos braços de Pelegrini e tal fato a assustava demasiadamente.

Não soube se controlar, sequer tinha ideia de como foi parar sob o corpo quente e másculo em uma cama de casal qualquer. O desejo a tomou pela primeira vez e a sombra do pecado bateu à sua porta.

Ao contrário das outras vezes, quem esteve lá para salvá-la foi Pelegrini.

O que teria sido dela se houvesse se deixado levar? Arruinaria toda sua vida religiosa! Poderia certamente enganar a madre e a igreja, mas não a Deus. Mesmo que não quisesse ser noviça, ainda era uma serva de Deus e acreditava na palavra dele. Não podia ser leviana a ponto de se entregar a um homem na primeira oportunidade, mesmo sendo ele o amor de toda sua vida.

Não amava apenas a beleza exterior de Pedro Pelegrini que tanto a atraía. Amava também sua personalidade singular, suas carícias apaixonadas e suas tatuagens significativas e profundas. Amava seu sorriso, sua maneira de pensar e a bravura com a qual lutou contra seus fantasmas.

Agora, após essa grande prova, não podia duvidar de seus bons sentimentos. Seria fácil para Pedro tê-la feito dele naquele momento, mas seu amor falou mais alto que o desejo e Vivianne tinha diante dela sua prova de amor. Ela não significava apenas uma aventura e a seriedade de Pedro a constrangeu. Assustada e desesperada, o misto de emoções lhe acompanhou fielmente durante toda a viagem de volta onde sequer podia encará-lo sem se envergonhar. Fugiu a seus costumes... Fugiu a sua criação... Fugiu a tudo que conhecia em nome de um sentimento indescritível e visceral.

— Posso esconder de todos o que vem acontecendo em minha vida, Senhor — Sussurrou a si mesma assim que chegou ao convento novamente e se ajoelhou para fazer suas orações — Menos de ti, Deus. Peço que me perdoe por ter dado voz a minha carne, mas devo confessar o que já está tudo muito claro em meu coração. Estou apaixonada por ele e minha condição é irreversível — Lágrimas rolavam em sua bochecha corada e seus sussurros continuavam a encher a capela vazia — Me ajude a conseguir me livrar de minhas amarras e ser livre para correr para seus braços.

Vivianne teve tempo de secar algumas lágrimas antes de ouvir a voz grave de Pedro ecoando atrás dela.

— Acho que chegou a hora de nós dois conversamos — A noviça se ajeitou no banco da capela e secou os olhos com ainda mais afinco. O rapaz, ao lado dela, parecia confuso em suas próprias convicções.

— Não tenho nada para lhe dizer ainda, Pedro — Respondeu docemente, mantendo-se firme.

— Já ouvi tudo o que precisava. Você está apaixonada por mim... — Ela abaixou o rosto — E isso é motivo suficiente para que eu vá até o inferno se for preciso para levá-la comigo deste lugar.

— Se tudo fosse tão fácil... Você faz parecer tão simples e bonito — Pedro tocou a mão dela e Vivianne olhou ao redor para garantir novamente que estavam sozinhos na capela fria.

— Mas é assim que as coisas são entre nós, Vivianne. Simples e bonito... Doce — Aproximou-se ainda mais e a noviça não pôde conter a vontade de tê-lo por perto — Já perdi tudo em minha vida no passado e você é minha recompensa divina. Não aceito perdê-la. Não mesmo.

Vivianne não pôde fugir do beijo apaixonado de Pedro e da maneira delicada como suas mãos percorriam seus braços. Ela não era mais a mesma e jamais poderia negar que Pedro Pelegrini a transformou e a libertou de suas próprias mentiras. Beijou-o de volta pedindo em pensamento para que alguma coisa acontecesse em seu favor. Também não podia aceitar perdê-lo, porém tão pouco fazia ideia de como seria dali para frente.

— Pedro, por favor — Segurou as mãos dele que repousavam em seu rosto e sua cintura — Vá. Não podem nos ver juntos — Os olhos esverdeados deixaram claro sua decepção com as palavras — Por favor... Vá.

— Tudo bem — Colocou-se de pé e ela seguiu observando-o — Você já sabe, Vivianne. Aceito perder tudo... Minha liberdade, meu dinheiro, minha vida... Mas não aceito perder você.

A noviça respirou profundamente enquanto o via se afastando em passos largos e derramou algumas lágrimas quando o perdeu de vista. Sobressaiu-se, no entanto, ao ouvir outra voz chamando seu nome.

— Noviça Vivianne — Virou-se em direção a entrada oposta da capela, próxima do confessionário, e deparou-se com Padre Kalebe de pé a encarando com um meio sorriso.

— Padre... — Colocou-se de pé nervosamente, perguntando-se quanto tempo o sacerdote esteve ali e o que presenciou exatamente — O senhor...

— Podemos conversar um minuto? — Sem resposta, prosseguiu — Só por um momento. Por favor.

Vivianne não sabia o que fazer, porém achou melhor aceitar a proposta e o seguiu para dentro da pequena sala atrás do confessionário. Seu coração palpitava em nervosismo e parte dela, não sabia exatamente qual, lhe dizia que algo não estava correndo como deveria. Algo em Padre Kalebe parecia estranho e o medo de ter sido vista com Pedro a assolou intensamente.

— Padre, eu... — Começou a dizer quando o sacerdote fechou a porta em uma atitude suspeita — Está tudo bem com o senhor?

— Claro que está, Vivianne. E presumo que com você também, por certo — Vivianne o encarava com os olhos azuis atentos e ansiosos — Tenho te observado nas últimas semanas e notei que tem andando muito próxima de seu paciente, o senhor Pelegrini.

— Sim. Pedro é um caso que acompanho de perto e... — A interrompeu com uma risada irônica. Os olhos escuros do belo homem e seu semblante perverso a amedrontavam pela primeira vez. Ele colocou a mão no bolso de sua calça escura e aproximou-se alguns passos.

Vivianne sentiu o estômago embrulhar apenas pela maneira estranha como o homem se dirigia a ela. Era como se uma máscara houvesse descoberto o rosto do bondoso padre e um terrível demônio se apoderado de seu ser.

— Já percebi que vocês dois tem um caso — A noviça não conseguiu responder, uma vez que o padre prosseguiu — E não tente negar, pois acabei de presenciar uma cena muito comovente. Um beijo nada adequado para uma noviça prestes a se ordenar como a condecorada da madre superiora.

Vivianne abaixou o rosto sem saber o que dizer. Parte dela agradecia por ter sido descoberta, mas a outra gritava em desespero. Estava nas mãos do padre agora.

— Eu posso explicar, Padre — Tentou começar, mas ele a interrompeu novamente.

— Não há o que ser dito, Vivianne — Pontuou severamente — Você está fora da lei e meu testemunho seria suficiente para acabar com sua vida religiosa.

— Sei disso, mas as coisas não são assim. Pedro e eu temos uma história que pode ser explicada. Por favor, não conte nada para a madre antes que eu me explique. Certamente o senhor irá me compreender — Tentava argumentar com as palavras trêmulas, ainda assustada com a maneira perversa como o padre a encarava.

— Não gaste seus esforços. Nós temos somente dois caminhos — Mostrou o número dois com os dedos — Primeiro... Saio daqui e cumpro meu papel contando tudo para a madre. Segundo... Você abre um espaço na sua agenda e faz comigo tudo o que já fez com ele.

Os olhos de Vivianne cresceram no rosto e ela demorou alguns segundos para processar o que ouviu.

— O que o senhor disse? — Sussurrou incrédula — O senhor está me propondo...

— Que seja também minha amante, porque não? — Deu de ombros enquanto a rondava com o olhar vagando por seu corpo, a cobiçando — Já estou te observando a tempos e confesso que sempre desejei uma brecha para tê-la em minha cama, mas você era bem difícil de burlar qualquer coisa. Agora que o momento chegou, não pretendo deixá-la escapar.

— O senhor está louco? — Não acreditava no que ouvia e foi tomada pelo medo quando ele tocou seu cabelo longo e levou-o ao rosto para sentir sua fragrância. Afastou-se nervosamente — Por Deus... Como pode me propor uma coisa assim? O senhor é um padre...

— E você uma noviça, porém nós dois estamos vivos e temos vontades — Desdenhou — Não se faça de santinha, Vivianne. Quantas vezes já não deve ter ido para cama com ele?

— Você está muito enganado a meu respeito... Não sou como o senhor e muito menos aceito suas propostas! — Esquivou-se dele, que continua com a mesma postura irônica — O que tenho com Pedro envolve amor, não é algo puramente carnal e tão pouco me submeteria a suas vontades! Se quer me denunciar para a madre, fique a vontade! Eu mesma aprontarei minhas coisas e irei embora daqui!

A mão dele se fechou no braço de Vivianne quando a mesma tentou chegar até a porta. O corpo maior do padre se colocou diante dela na parede sem oferecer qualquer chance de escapar. Vivianne tentou empurrá-lo, mas ele seguiu espreitando-a contra si de maneira a embrulhar ainda mais seu estômago. Sentia o hálito quente lhe percorrendo o pescoço e as mãos dele vagando por seus quadris. Jamais se sentiu tão enojada e constrangida com uma situação em toda sua vida. O medo a dominava, assim como a terrível sensação de que jamais se livraria dos sentimentos horríveis que aquele homem lhe causava.

— Todas fazem como você no começo, mas no final acabam gostando — Sussurrou ao ouvido da noviça e ela seguiu se esquivando como podia.

— Se não me soltar eu vou gritar! — O empurrou fortemente, mas ainda assim a força dele prevaleceu.

Lágrimas brotavam nos olhos de Vivianne e ela não podia crer estar imersa em tal situação. Jamais pensou que chegaria a ser abusada sexualmente por alguém, muito menos dentro do convento por um padre que confiava. Não pôde evitar gritar na tentativa de afastá-lo e, antes que pudesse pensar, a porta foi aberta com um empurrão forte e vigoroso.

Pedro surgiu diante deles em uma atitude impulsiva e seu olhar, repleto de ira, não abandonava a cena que presenciava. Vivianne caiu no chão quando o padre a largou e levantou-se com dificuldade em seguida. O padre o encarava de volta com a expressão surpresa, aguardando que algo fosse dito.

— Sai Vivianne — Disse sério em uma postura centrada e fria. Vivianne não sabia o que fazer, porém Pedro insistiu em sua ordem — Saia Vivianne! — Repetiu entredentes.


De certo Pedro era maior que o padre e muito mais forte fisicamente. Vivianne temeu que houvesse uma briga entre os dois, mas naquele momento não havia muito que ser feito. Obedeceu a Pedro ainda em meio às lágrimas e saiu da pequena sala sem olhar para trás, correndo em direção ao corredor.

Uma vez sozinhos, a única coisa que pairava na mente turbulenta de Pelegrini era a maneira como havia encontra sua Vivianne em meio aos braços de um homem que a tocava contra sua vontade. Não estava errado quando decidiu voltar atrás dela após ouvir sua voz se misturando com a de alguém após sua saída. Seu instinto falou mais alto, principalmente depois de vê-la entrando na sala com o padre e ouvir seus gritos por socorro em seguida.

Pedro jamais sentiu tanta raiva em toda sua vida e a confusão de sentimentos em seu peito o tornou, novamente, capaz de tudo por alguém que amava.

— Pelegrini... Porque toda essa cena? — O padre dizia com a voz entediada — Você por acaso se importa tanto assim em dividir a noviça? Creio que ela dê conta de nós dois tranquilamente. É uma jovem muito atraente e saudável. Por cento saberá servir dois na cama sem grandes preocupações.

Pedro não pensou duas vezes antes de cerrar os punhos e avançar sobre o padre com toda sua raiva contida transformada em força.

Não se importou com sua condicional, muito menos com a internação e todos os problemas com a justiça que o cercava. Não se importava se iria passar o resto da vida na cadeia. A única coisa refletida em seu coração naquele momento era o desprezo, nojo e ódio que sentia pelo padre que tentou abusar de Vivianne. As palavras dele tornaram tudo ainda mais inaceitável, fazendo com que os socos que Pedro desferiu em seu rosto se tornassem ainda mais intensos.

— Isso é para nunca se esquecer o que merece um verme como você, abusador de mulheres e covarde!

Em seus punhos a justiça era feita e Pedro o fazia em nome de tantas mulheres inocentes que já haviam sofrido demasiadamente nas mãos daquele falso padre. Não era sacrifício nenhum esmurrar a face daquele homem e sua vontade, no real sentido da palavra, era fazer com que pagasse com sua própria vida.

Pedro não sabia ao certo quanto tempo bateu no padre, apenas deteve-se quando chegaram alguns curiosos e conseguiram se colocar entre ambos. Foi segurado por alguns seguranças do convento, que se chocaram ao ver a situação lastimável em que se encontrava o sacerdote.

Soube, ao vê-lo no chão completamente ensanguentado, que sua história com Vivianne corria grande risco de não sobreviver a tal situação.

Estava completamente ferrado!

 


V ivianne não soube nada sobre Pedro nas horas seguintes ao ocorrido, apenas foi ordenado pela madre que se recompusesse em seus aposentos e se falariam no dia seguinte.

Ainda baqueada pela situação desesperadora a qual foi exposta, Vivianne tentava se manter calma enquanto era amparada por Frida e algumas amigas freiras do convento. Ao contrário do que imaginou, não foi acusada por todas, mas prontamente acolhida. Todas as garotas acreditaram imediatamente em sua palavra, algo muito raro de acontecer quando se tratava de uma situação de abuso.

A vítima, geralmente desacreditada e tratada injustamente como possível sedutora, desta vez foi abraçada e muito lamentada.

O pior de tudo, aquilo que mais doía em seu peito, era não saber nada sobre Pedro e o que tinha sido feito dele. Não se conformava em ser a culpada por seu declínio, uma vez que lutou tanto para livrá-lo de seus inúmeros problemas. Justo quando iria receber sua alta, tão fatalidade o compromete!

— Muitas de nós já sabem quem ele é, Vivianne, apenas não sabíamos como contar — Júlia, sua colega de quarto, a confortou com tais palavras — Muitas já passamos por situações terríveis nas mãos dele.

— Mas ninguém nunca teve um Pedro Pelegrini para lhe socorrer — Frida completou com um largo sorriso.

— Vivianne... — A madre chegou após muito tempo com a expressão desolada e um tanto decepcionada — Nós duas precisamos conversar.

As demais se entreolharam quando Vivianne se colocou de pé e lhe desejaram sorte quando a madre adentrou a seu gabinete sem mais delongas. A moça secou algumas lágrimas e apertou os dedos de Frida em sinal de apoio.

— Estou com medo por ele... O que será que fizeram com ele? — Choramingava. Frida lhe tocou o rosto com carinho.

— Ele deve estar bem, amiga, fique calma! Pelegrini é duro na queda, você sabe bem como ele funciona — Sussurrou tentando animá-la.

Vivianne caminhou em direção ao gabinete da madre ainda zona pela situação e adentrou a sala um tanto receosa. A madre a analisou ainda com a mesma postura decepcionada.

— Sente-se — Disse cordialmente e foi o que Vivianne fez, acomodando-se na cadeira em frente a ela — Você sabe porque está aqui, não sabe? — A moça assentiu positivamente com lágrimas nos olhos — O que aconteceu foi muito grave, Vivianne. Muito grave!

— Eu sei, madre, eu... Sinto muito — Declarou emocionada — Não queria causar problemas, eu...

— Tenho aqui uma de minhas melhores noviças, um padre de nosso convívio e um interno que estava prestes a receber alta social — Enumerou ressentida — Os três envolvidos em um escândalo e não sei para qual lado correr — Vivianne abaixou o olhar.

— Como está Pedro? — Sussurrou já desesperada para ter qualquer notícia dele, por mínima que fosse — Onde ele está? — Choramingou — Por favor, não me diga que está na cadeia... Depois de tudo que houve, Pedro não merece ir para cadeia e ser desacreditado novamente por uma situação que me compromete! — Algumas lágrimas caiam em seu rosto e ela as secava com mãos trêmulas — A culpa é minha, não dele...

— Pelegrini está aqui, detido no isolamento — Respondeu um tanto comovida pelo desespero de Vivianne — Não comunicamos as autoridades. Quero esclarecer a situação com você antes, Vivianne.

— Esclarecer o que, madre?

— É verdade o que Pedro disse? É verdade que o Padre Kalebe tentou abusar de você sexualmente? — Vivianne se calou diante da madre e por um momento considerou se realmente deveria contar o ocorrido. Sentiu-se envergonhada e com muito medo de ser desacreditada. Era o que sempre acontecia quando um padre ou figura de autoridade estava envolvido em tal situação — Ou é a versão do padre que está correta?

— O que ele disse? — Questionou nervosa.

— Que pegou você e senhor Pelegrini se beijando e, ao te repreender, foi surpreendido por Pedro. Enraivecido pela situação desfavorável, Pedro perdeu o controle e lhe deu uma surra porque ele não aceitou esconder de mim o que presenciou — Vivianne separou os lábios em total indignação — Pelo visto a versão dele te surpreende.

— Madre... Sei que pode não acreditar em mim, mas juro pelo nome de Deus que esse padre... Esse homem terrível... É um asqueroso — Vivianne não conseguia conter as lágrimas e a emoção. O sentimento de impotência a dominou uma vez mais ao relembrar tudo que lhe foi feito. Cada recordação era como uma facada em seu coração marcado pela dor e humilhação — Ele me cercou na sala da capela e me fez propostas que jamais esperei ouvir da boca de um homem de Deus. Ele, na verdade, envergonha a igreja e todos nós!

A madre ouvia cada palavra atentamente e retirou os óculos do rosto para seguir presenciando a narrativa.

— Continue — Vivianne abaixou o rosto, envergonhada.

— Recusei suas propostas e ele avançou sobre mim de maneira violenta. Pedro entrou na sala quando ouviu meus gritos por socorro — Terminou de narrar sem mais detalhes — Sei que a senhora tem motivos para acreditar mais nele do que em mim. Sou apenas uma noviça e ele é um padre... Mas a justiça de Deus não falhará, madre. Essa nunca falha!

Por um longo tempo o silêncio dominou o ambiente até a madre prosseguir.

— Várias moças vieram até mim fazer denúncias referentes ao comportamento sexual indevido do padre Kalebe quando o comentário começou a se espalhar pelo hospital e pelo convento — Vivianne se surpreendeu ao ouvir tais palavras. Secou algumas lágrimas em seu rosto enquanto vasculhava a mente em busca de algo compreensível. Como poderia imaginar? — Você não é a única a acusá-lo de tentativa de estupro e, infelizmente, muitas delas narraram situações diversas, envolvendo o estupro, propriamente dito — A noviça cobriu os lábios com as mãos após ouvir a madre. O mundo caía a seus pés por ouvir tudo aquilo, porém sentia como se avistasse uma luz ao final do túnel. Pelegrini estaria a salvo, então? — Foi realmente um baque para todos nós, porém ele segue negando todas as acusações com afinco.

— Obviamente negará. É uma vergonha para todos nós, madre — Lamentou-se e a superiora concordou — Sinto muito por tudo.

— Você não tem que se desculpar. É terrível para todos nós presenciar um homem que deveria representar a bondade de Deus agindo de maneira tão desprezível — Garantiu nitidamente cansada — Acho prudente que saiba que o advogado de Paola e Pedro Pelegrini foi acionado ontem e, ao que parece, conseguiu contato com uma ex-interna do hospital que garante ter um filho do padre Kelebe gerado a partir de um estupro — A cada revelação os lábios de Vivianne se separava ainda mais, tamanha sua indignação — Dependendo do resultado do exame de dna, ele deve ser destinado a um presídio assim que sair do hospital. Está internado em inúmeras fraturas devido a surra que levou de Pedro.

Vivianne abaixou o rosto e apertou os olhos.

“Aceito perder tudo... Minha liberdade, meu dinheiro, minha vida... Mas não aceito perder você.”

Lembrou-se das palavras de Pedro antes do trágico ocorrido e sentiu os olhos sendo preenchidos por lágrimas. Ele não mentiu quando disse que iria até o inferno por ela. Não mentiu quando aceitou lutar pela história de ambos e Vivianne sentia-se a mais infeliz das mulheres por não ter sido forte o suficiente por eles.

— Por favor, madre. Me diga que Pedro ficará em liberdade — Suplicou em meio às lágrimas — Ele não merece passar nenhum minuto na cadeia. Sei que ele tem fama de bagunceiro e problemático, mas desta vez apenas tentou me ajudar.

— Sei que Pelegrini não tem culpa, mas sua fama o levou onde está — Vivianne nada respondeu, apenas secou algumas lágrimas em seu rosto. A madre parecia séria e um tanto receosa — Ele não será encaminhado para o presídio, certamente. Agora que aclaramos as coisas enviarei ordem para que seja solto da detenção, mas tenho uma pergunta a lhe fazer antes disso, irmã.

— Claro madre. O que a senhora quiser — Respondeu prontamente, um tanto assustada com o rumo da conversa.

— Serei direta — Encarava Vivianne fixamente e ansiosa pela resposta — Como Pedro sabia onde te encontrar naquele momento, Vivianne? Como ele sabia que o padre representava um perigo para você? Para ser mais clara... — A noviça não escondia a tensão nos grandes olhos azuis — O que existe entre você e o senhor Pelegrini é apenas uma situação de trabalho ou também um envolvimento... Amoroso?

Vivianne travou a respiração, mas não foi capaz de arquitetar nenhuma mentira. Respirou profundamente e preparou sua resposta sabendo qual deveria ser ela.

— Pedro está apaixonado por mim, madre — As palavras saíram rápidas, mas certas — Nós estávamos juntos antes de tudo acontecer e ele me viu entrando na sala com o padre, por isso estava lá.

— Pedro está apaixonado por você? — Vivianne assentiu positivamente a pergunta e a madre pareceu realmente surpresa — E você, irmã... Você o corresponde?

— Sim senhora... — Sua resposta foi dada com timidez e a madre seguiu encarando-a sem esconder o impacto da notícia — Mas eu lhe asseguro que nunca... Nunca me envolvi com ele fisicamente. Nunca fomos para cama. Sigo sendo pura, madre.

“Porque Pedro assim determinou.” Completou em mente.

— Isso realmente não importa — A superiora prosseguiu enfaticamente — O fato de você estar apaixonada por ele já diz muito sobre seu chamado e, para ser sincera, sempre desconfiei que seu lugar não fosse entre nós, Vivianne.

— A senhora conhece a minha história — Deu de ombros. Ao contrário do que pensou, a superiora não parecia irada ou enraivecida. Tratava tudo com muita cautela — Os meus pais... Eles...

— Conheço sua história como a palma de minha mão e acho que chegou o momento de você encarar tudo que sempre te cercou, Vivianne — A moça se assustou com o tom pesado da madre.

— O que a senhora quer dizer?

— Que é hora de voltar para sua cidade e encarar seus pais definitivamente. O convento não é o lugar onde você pretende passar o resto da vida e muito menos um bom refúgio para se esconder do mundo — Dizia tranquilamente e Vivianne sentia-se imersa em um filme de fantasia. Sempre quis ouvir tais palavras da madre, mas nunca julgou que esse dia chegaria de fato.

— Mas madre... O que direi a eles... O que... — A superiora a cortou.

— Você voltará a sua cidade e dirá que eu, a autoridade do convento, asseguro que sua vocação não corresponde à vida religiosa e que está liberta da promessa que eles fizeram quando suas irmãs morreram — Vivianne engoliu em seco — Mandei uma carta e eles terão tudo por escrito como um documento de dispensa.

— Isso quer dizer que a senhora está me mandando embora?

— Não. Você é uma profissional admirável e pretendo tê-la por perto, nem que seja trabalhando apenas no hospital como psicóloga, se assim desejar — Os olhos de Vivianne se marejaram por lágrimas. Era tudo que sempre quis, mas nem tudo seria tão fácil quanto as palavras da madre. Ela parecia um cordeirinho perto de seus pais conservadores — Eu desejo que você seja feliz, irmã. Você e o maluco que está preso lá embaixo.

A madre sorriu ao falar de Pedro e Vivianne a acompanhou.

— Ele não é uma pessoa ruim... Tem um bom coração.

— Sim, é apenas demasiadamente inconsequente — A superiora deu de ombros — Onde já se viu... Se apaixonar por uma de minhas noviças! Ele realmente é mais louco do que eu imaginava...

— Pedro jamais me faltou com respeito, madre. Eu juro — Garantiu e a senhora assentiu.

— Acredito em você. E como eu disse... Espero que tudo termine bem, irmã.

As palavras faltaram a Vivianne quando caiu em si e parou para pensar sobre todo o ocorrido. Em apenas dois dias tudo mudou em sua vida de maneira drástica e assustadora! Agora já não sabia o que o futuro a reservava e muito menos podia pensar com que cara chegaria a sua cidade natal para enfrentar seus pais após tantos anos longe e destinada a vida religiosa.

Não podia temer, por hora, pois ainda ansiava ver Pedro e tirá-lo de uma vez de toda essa enrascada.


As paredes gélidas pareciam se fechar sobre Pedro novamente, exatamente como na primeira vez em que esteve na cadeia.

Não estava de fato em uma cadeia, apenas na detenção do hospital, porém a sensação estranha e solitária era dolorosa da mesma maneira. Não se arrependia de estar ali e talvez jamais se arrependesse. O tal padre havia merecido cada soco desferido em sua face e Pedro lamentava não poder tê-lo matado. O faria se pudesse sem pensar duas vezes, pois ao lembrar da cena daquele homem sobre o corpo inerte de Vivianne, a raiva inundava seus sentimentos da maneira mais primitiva que poderia imaginar.

Sozinho na cela, pegou-se cantarolando melodias em busca de uma sonoridade perfeita para encaixar a letra da música que vinha compondo em mente a alguns dias. Era uma música especial e queria dar o melhor de si.

Sabia que após a morte dos garotos havia parado completamente de compor e pegou-se pensando que jamais voltaria, mas agora a vida lhe devolvia novamente a inspiração. Uma linda, doce e de incríveis olhos azuis, inspiração... Era uma música para ela.

Uma música para Vivianne e ela se chamaria “última esperança”.

Diferente da outra vez, agora era um transtorno estar na cadeira. Não queria decepcionar Paola, tão pouco Vivianne. As duas esperavam mais dele e vê-las felizes era tudo o que desejava.

Para sua surpresa e muito antes do que imaginou, a porta foi aberta e por ela passaram a madre superiora e ninguém menos que Vivianne Grace, a noviça dona de seus sonhos. Colocou-se de pé rapidamente e tratou de vestir a camisa que descansava ao seu lado rapidamente.

— Boa tarde Pedro — A madre disse cordialmente quando as duas pararam ao lado de fora da grade. Um homem uniformizado destrancou as fechaduras do cadeado da cela de maneira barulhenta — Obrigado — A madre dispensou o mesmo quando terminou o serviço.

— Madre... — Seus olhos não conseguiam abandonar os de Vivianne, que se afogavam de angústia para tocá-lo — Vivianne. O que fazem aqui?

— Viemos soltá-lo, filho — A superiora seguia em tom cauteloso.

— Mas já? Pensei que teria ainda mais problemas — Coçou o rosto de maneira cansada. Sua barba começava a aparecer no maxilar e Vivianne se perguntava se aquele homem poderia ficar ainda mais bonito — Me desculpe, madre. Não queria desapontar a senhora e causar problemas novamente. Eu juro.

— Não precisa se explicar. Já está tudo bem aclarado e seu advogado está desempenhando muito bem o papel dele — Afirmou — Vivianne estava ansiosa para que você saísse imediatamente.

A noviça corou quando Pedro se aproximou um pouco mais dela.

— Você está bem? — Sua pergunta foi direta e carregada de emoções. Os olhos azuis transbordavam sentimentos diversos, entre eles desespero e amor.

— Melhor agora, com certeza — Sorriu um pouco mais animado — Espero que você também esteja e que tenham acreditado nos fatos. Sei bem como as vítimas de situações como a sua são tratadas por aí.

— Fui muito bem acolhida. Graças a Deus a reputação do padre não deixa dúvidas sobre sua conduta — Vivianne sorriu — Fico imensamente feliz que esteja passando bem, Pedro.

— Vivianne tem minha total confiança, senhor Pelegrini... E espero que por ela ser essa menina tão doce o senhor tenha total certeza do que está fazendo quando se propõe a ter um relacionamento com ela — Os olhos de Vivianne cresceram no rosto diante das palavras da madre e Pedro não podia parecer mais surpreso.

— Madre... — A noviça repreendeu educadamente.

— A senhora pode ficar tranquila, madre. Como sabe, sou um novo homem e isso se deu pelas mãos desta menina que a senhora sempre chamou de minha única esperança — As bochechas de Vivianne enrubesceram e seu coração inflou de orgulho — E certamente se ela me quiser, irei daqui para o altar.

— Então o senhor pretende se casar com minha noviça? — Pedro assentiu positivamente — Definitivamente, senhor Pelegrini... Sua estadia em meu hospital se deu por obra divina. Eu deveria mandá-lo para cadeia de fato pela imoralidade de seduzir uma de minhas noviças e causar desordem em meu convento... Mas algo no fundo de meu coração me faz simpatizar com o senhor e acreditar em suas boas intenções. É algo impressionante!

— É porque estou sendo sincero — Pedro piscou em direção a ela — Obrigado madre... Obrigado por acreditar em mim. Farei de tudo para não decepcioná-la.

 

 

V ivianne não sabia como conseguiu reunir coragem suficiente em seu ser para escapar de seu quarto em meio à madrugada e se esgueirar pelas paredes do convento até alcançar a ala dos internos.

Mentiu para alguns seguranças dizendo que precisava visitar um paciente em seu quarto e não obteve recusas. Todos ali sabiam que ela era a mais notável pupila da madre superiora e não ousavam desobedecer a seus pedidos. Sua conduta invejável também ajudava para converter a situação a seu favor.

Não se importava em ser descoberta, tão pouco no que poderia acontecer. Embarcaria rumo a sua cidade no dia seguinte e não podia viajar para casa sem antes conversar com Pedro. Precisava vê-lo a sós, nem que fosse pela última vez. Não tinha ideia de como seria, se de fato voltaria ou como tudo iria suceder. Sua única certeza é que precisava estar com ele uma vez mais.

Bateu na porta olhando para os lados em meio ao corredor escuro e deserto. Insistiu três vezes, porém não obteve resposta. Resolveu abrir por si mesma e espreitou-se até conseguir entrar. Lá estava ele... Adormecido, lindo e sem camisa.

Vivianne se encostou a porta quando o avistou deitado sobre a cama com o peitoral nu e as belas tatuagens bem a sua frente para serem analisadas novamente. Ela sonhava com cada uma delas todas as noites. Não conseguia dormir em paz sem se recordar da firmeza da pele de Pedro sob seus dedos e a maneira sedutora como ele a encarava enquanto se tocavam. Não tinha paz em seu sono desde que descobriu pelas mãos dele o que era receber carícias de um homem.

Caminhou em passos lentos até a beira da cama e ele sequer se moveu. Dormia como um anjo caído e ela jamais poderia afastar tal cena de sua memória. Seus belos músculos pareciam desenhados, assim como cada traço de seu rosto. As mãos fortes descansavam sobre o estômago e Vivianne não pôde conter a vontade de sentar-se bem ao lado do másculo corpo inerte.

Pedro exalava desejo. Paixão. Firmeza.

Tudo o que Vivianne mais ansiava naquele momento era se perder em meio aos braços fortes e afundar-se em seus músculos até esquecer o próprio nome. Não sabia como se controlar e muito menos queria. Instintivamente tocou em seu braço rígido e deslizou os dedos em sua pele. Não demorou até tocar seu peito forte e sentir os poucos pelos daquela região lhe roçando os dedos.

Um arrepio doce percorreu seu corpo de baixo para cima e, quando deu por si, Vivianne se via aproximando o rosto do de Pelegrini para tocar seus lábios em um beijo repleto de saudade.

Instantaneamente os braços fortes do rapaz a envolveram pela cintura e seu frágil corpo foi lançado na cama e coberto pela altura imponente. Assustada, a noviça o envolveu pelo pescoço e seus olhos o fitaram profundamente.

— Pedro... — A voz dela morreu nos lábios quando o rapaz iniciou novamente um beijo apaixonado.

Os dedos vacilantes da noviça percorriam as costas nuas com avidez, proporcionalmente a maneira voraz como Pedro lhe tocava afastando todas as roupas que poderiam estar pelo caminho. A força e a paixão de Pedro a assustavam, porém nada era mais forte que o desejo pulsante que a tomava por completo. Vivianne queria cada vez mais estar envolvida pelos braços fortes e afagada pelas quentes carícias que a despertavam para um mundo novo.

A doce noviça respirava descompassadamente quando se viu despida de seu robe e camisola na cama dele.

Jamais esteve parcialmente nua em frente a um homem e tal fato a fez estremecer. No momento em que os lábios cálidos de Pedro lhe roçaram os mamilos, o gemido doce e assustado de Vivianne o fez despertar de sua loucura.

— Vivianne... — Voltando-se para o rosto dela, Pedro parecia confuso — Isso não é um sonho? — Sua pergunta era sincera e o rapaz realmente a encarava de maneira confusa. Vivianne não sabia o que dizer. Paralisou diante de seu olhar apaixonado e imerso em devaneios — Vivianne...

Pedro roçou os lábios no estômago da moça e admirou sua nudez sem reservas. Sonhou tantas vezes com isso... Desejou tantas vezes tê-la nua em sua cama... Parte dele desejava afundar-se em seu íntimo até se perder em pecado. A outra, no entanto, ainda se lembrava de quem ela era e da prova de amor que prometeu oferecer.

Afastou-se dela tomando consciência de que não se tratava de um sonho.

Sentou-se sobre os lençóis na certeza de que seus esforços seriam recompensados e ao final de tudo Vivianne seria dele para sempre.

— Pedro... Eu... — O rapaz apanhou as roupas dela do chão e estendeu-as em sua direção na intenção de esconder sua visão tentadora.

— Como entrou aqui? — Questionou um tanto apreensivo.

— Perdoe-me se te assustei, mas precisava te ver antes de... De partir — Pedro a encarou quando Vivianne terminou de colocar a camisola. Sentados lado a lado na cama, ambos pareciam desconcertados e tensos com toda a situação.

— Partir para onde? Do que está falando? — Tudo sumiu dentro da mente de Pedro e a única coisa que poderia dominá-lo agora era a ideia de estar longe de sua amada.

— Acha que a madre superiora deixou por tão pouco a notícia de que nós dois temos algum envolvimento? Acha que ela não tomou qualquer atitude para comigo? — As palavras nervosas e um tanto tristonhas da moça tocaram o coração dele, dado seu semblante choroso — Ela me mandou embora, Pedro. Vou voltar para minha cidade com uma carta de dispensa do convento e terei de encarar meus pais de uma vez.

Pedro analisou cada palavra minuciosamente e calou-se por alguns segundos. Vivianne ir para longe era algo que o assustava, no entanto, resolver sua situação com seus pais definitivamente parecia interessante. Não pôde controlar as emoções e sorriu um tanto animado.

— Me espere sair daqui que irei com você — Segurou a mão dela com carinho — Resolveremos juntos essa situação e poderei finalmente te pedir em casamento formalmente.

— Não Pedro! — Assustada, Vivianne puxou sua mão das dele — Isso é algo que tenho que fazer sozinha. Meus pais não são tão calmos e compreensivos como a madre superiora. Ela tem várias noviças e várias freiras... Meus pais só têm a mim.

O semblante assustado de Vivianne deixava claro que realmente temia a reação de sua família e não sabia até que ponto poderiam lidar com isso. Ela, principalmente.

— Tenho convicção de que quero você para minha esposa e espero que você também tenha certezas em relação a mim — Vivianne abaixou o rosto e ele prosseguiu — Seus pais podem dizer não para nós, mas já te disse que irei até o inferno se for preciso para ter você ao meu lado.

— Existem tantas mulheres boas por aí — Sussurrou com um sorriso pequeno — Tantas descompromissadas e livres... Porque logo eu, Pedro? Porque invocou comigo de tal maneira?

— Porque estou apaixonado como nunca antes aconteceu em minha vida. Porque, talvez, você seja tudo que vim procurando durante todo esse tempo — Vivianne encarou os olhos verdes de Pedro com lágrimas rolando em seu rosto — Você pode ir, mas saiba que se não voltar, irei te buscar — Pedro se aproximou dos lábios dela e beijou-a com carinho — Seja onde for, irei te buscar.

— Sinto muito por ser tão complicada.

— Nada que vem fácil é tão bom no final — Vivianne sorriu — É por isso, também, que te espero. Não sabe como é difícil renunciar a meu desejo de tê-la, porém sei que no final serei recompensado e minha vitória será grande. Não desistirei de nós.

Vivianne o abraçou pelo pescoço como se fosse a última vez. Sentiu seu perfume másculo e estreitou-se contra o peito largo recordando-se da primeira vez em que se cruzaram na sala fria da madre superiora. Seu coração doía com a ideia de jamais voltar a vê-lo, porém não conseguia verbalizar tais palavras. Não queria quebrar o coração machucado daquele homem mais uma vez.

— Obrigado por ter me salvado — Sussurrou olhando nos olhos claros — Obrigado por ter intercedido por mim quando o padre quis me machucar e, mais do que isso, obrigado por libertar-me de um destino que não era o meu. Sempre serei grata por isso.

— Você me salvou primeiro, Vivianne, não se esqueça — Tocou o rosto delicado com carinho — Você intercedeu por mim junto a Deus.

Vivianne sorriu e o beijou novamente, sentindo seus lábios e marcando-os em sua memória com ferro e fogo.

— Jamais me esquecerei de você, senhor Pelegrini — Garantiu com um pequeno sorriso triste em seus lábios e com o rosto tomado por lágrimas — Jamais esquecerei que o homem mais maluco que já conheci foi responsável por despertar meu primeiro amor.

— Não fale como se fosse uma despedida. Você vai voltar, não vai? — Vivianne suspirou.

— É o que mais desejo.

A noviça colocou-se de pé para sair e ele a acompanhou. A dor de deixá-lo era a coisa mais terrível que Vivianne enfrentou em toda sua vida e Pedro sentia como se aquela fosse sua segunda maior perda. Não haviam palavras capazes de descrever toda a emoção de saberem que o destino tinha em suas mãos poderosas armas para separá-los.

— Não seria suficiente pedir para que ficasse aqui comigo, seria? — Vivianne abaixou o olhar quando alcançaram a porta — Cuido de você. Cuido de tudo.

— Não posso continuar fugindo, Pedro. Preciso encarar isso de uma vez. Por favor, entenda — Seu doloroso pedido o comoveu.

— Seria suficiente dizer que eu te amo?

Vivianne o puxou para um beijo novamente. O beijo final. Seu coração sangrava no peito e suas palavras morreram em seus lábios.

— Adeus, Pedro — Sussurrou antes de deixá-lo — Oro para que voltemos a nos encontrar.

Novamente lá estava ele.

Sozinho.

Perdido.

Com um coração antes cheio e agora completamente vazio.


— O que acha, irmão? Faz o seu tipo?

Pedro adentrou ao espaçoso apartamento olhando em volta com admiração. Retirou os óculos escuros que cobriam sua bela face para analisar ainda mais nitidamente toda a sofisticação do local decorado por Paola.

— Fiz tudo pensando em você e com muito carinho — A mão pequena da morena pousou no braço forte do irmão mais velho — Vê-lo livre e ao meu lado é incrível. Acho que hoje é um dos dias mais felizes de minha vida.

Os irmãos Pelegrini nunca foram tão próximos antes do acidente com os garotos, uma vez que Pedro estava frequentemente ocupado e era afastado da irmã por Fernanda. Vivianne conseguiu mudar a situação após deixar claro a ele o valor da família e a importância que a presença de Paola tinha em sua vida.

— Você realmente leva jeito para coisa, Paola — Seguiu admirando a decoração que não fazia muito seu estilo de solteiro e trazia um ar mais maduro e ponderado, porém com o toque musical que o acompanhava desde sempre.

— Sei que não está tão sua cara e sim muito mais clean, mas acredito que como você pretende se casar em breve as coisas devem seguir uma linha mais familiar. Além disso, Vivianne pode mexer no que achar necessário se assim desejar.

Pedro não respondeu as palavras da irmã porque era incapaz de falar sobre Vivianne em voz alta. Sua linda noviça morava apenas em seus pensamentos repletos de saudade e dor.

Há quase um mês não tinha notícias sobre ela.

Há quase um mês viu o amor de sua vida partindo de longe e sequer pode conter as emoções. Não se lembrava de ter chorado desde a morte dos meninos, no entanto, ao vê-la ir embora, sentiu o coração doer e as lágrimas se formarem em seus olhos.

Viver no hospital sem encontrar Vivianne a cada dia era a pior maneira de enfrentar a situação. Tudo ali o lembrava ela e nada era capaz de confortá-lo de sua ausência. Conversava com Frida sobre a noviça todos os dias e ambos lamentavam-se pelo vazio deixado. Pela primeira vez empenhou-se ainda mais em receber sua liberação daquele local.

Como prometido, sua audiência aconteceu pouco depois dela ir embora e seu parecer, junto ao do Doutor José Luiz, foram positivos e lhe concederam alta dos tratamentos. A madre também o liberou para o convívio social e a justiça considerou que Pedro poderia responder a seus processos em liberdade.

Finalmente voltaria a respirar o ar da liberdade. Finalmente seria liberto das amarras que o prenderam.

Tudo estava em ordem, mas seu coração ainda trazia um enorme vazio.

Pegou-se inúmeras vezes olhando a foto dos garotos e se afundando em saudade e dor. Sem Vivianne seus sentimentos se intensificaram de tal forma que o levavam a crer que tudo podia voltar a desmoronar.

Porque foi louco o suficiente para se apaixonar por uma noviça inocente? Como pôde crer que venceria essa guerra?

— Veja só o que consegui... — Paola o estendeu algo que parecia ser um documento — Sua carteira de habilitação.

— É sério? — Pedro sorriu — Pensei que seria impossível — Olhou sua foto atualizada.

— Foi um pouco difícil, mas consegui após muita insistência dos advogados. Você só não pode se meter em problemas, ok? — Pedro sorriu e beijou o rosto da irmã em gratidão.

— Obrigado, mana. Sem você tudo seria impossível — Paola sorriu e o abraçou — Espero que William não esteja bravo em te dividir um pouco comigo. Agora você tem um noivo e um irmão para tomar conta, afinal, não somos nada sem uma mulher para ajudar.

— Ajudar não, né? Fazer tudo! — Brincou e ambos sentaram-se no amplo sofá da sala com vista para varanda — Será que agora você pode me dizer se finalmente vai voltar aos estúdios?

Pedro pensou por alguns segundos antes de respondê-la.

— Sei que jurei não voltar a compor após a morte dos meninos, mas desde que conheci Vivianne e passei tantos dias trancado no hospital, foi inevitável não pensar em algo e me ver repleto de novas canções martelando em minha mente — Confessou para a alegria da morena.

— Tenho sido procurada por muitos cantores em busca de suas canções, irmão. Você tem um talento nato e precisa extravasar, do contrário ficará louco em sua própria consciência — Pedro assentiu positivamente.

Não sabia quando nem como, mas seus planos coincidiam com as palavras de sua irmã. Após ver-se sozinho em seu novo apartamento, Pedro apertou as chaves de seu antigo carro que descansava na garagem e resolveu fazer uma coisa que o incomodava a muito tempo.

Dirigiu, após tanto tempo, em direção a um estúdio de tatuagem. Desceu do carro após estacionar na entrada do estabelecimento e arrancou olhares por onde passava. Havia esquecido que era uma figura pública e costumava chamar atenção, principalmente em relação às mulheres.

— Pedro Pelegrini? — Fabrício, seu antigo tatuador, sorriu ao vê-lo adentrando ao estúdio — Não posso acreditar!

Pedro o cumprimentou com um abraço forte e retirou os óculos de sol para conversarem melhor. As pessoas ao redor continuavam a encará-lo como se fosse alguém de outro planeta.

— Como vai, Fabrício? Pensou que jamais voltaria a me ver? — O homem de cabelos grisalhos e tatuagens diversas o encarou com espanto.

— Pensei que te veria novamente sim, mas não achei que estaria tão bem! Fico feliz em revê-lo! — Pedro sorriu — Veio fazer um novo desenho para marcar a liberdade que cantou, finalmente?

— Vim fazer um desenho sim... Quero uma cruz aqui — Apontou para o peito — Uma cruz bem bonita daquele jeito que só você sabe riscar.

— Uma cruz? — O espanto do tatuador era óbvio — Que furacão foi esse que passou por sua vida, cara?

— Se eu contar, talvez você acredite.

Pedro tatuou sua cruz representando Deus e escreveu o nome dela abaixo do desenho. Não poderia esquecê-la jamais e mesmo sem a certeza de que de a teria para sempre queria levá-la consigo para onde quer que fosse.

Marcou com tinta permanente os feitos de Vivianne em sua vida de modo a jamais esquecer o significado que aquela mulher, Deus e todo o resto tinham em sua alma. Toda sua história já não era a mesma graças a ela.

Se encontrasse um novo amor futuramente, algo que duvidava muito acontecer, poderia explicar que Vivianne Grace foi a mulher que o salvou de si mesmo e o devolveu a vida.

 

 


V ivianne secou as lágrimas após mais um dia vencido.

Desde que retornou a sua cidade natal não teve sequer um dia de descanso. Parte do sofrimento, no entanto, teve um fim naquela manhã ensolarada de sexta-feira.

Ao chegar encontrou seu pai terminalmente doente, acometido por um câncer generalizado e incurável. Prestes a morrer, Joseph terminou os dias descrevendo o testamento e se despedindo de cada filho. Vivianne não teve coragem de contar a ele que foi expulsa do convento. Disse somente que foi liberada por sua condição de saúde e assim se estenderam seus dias ali até a partida do patriarca da família Grace.

Agora Victor, seu irmão mais velho, era quem estava no comando dos negócios e da família. Valentim, formado em direito, cuidava de toda parte legal e dos trâmites necessários.

— Fique calma, Vivianne... Seu pai está com Deus agora e todo seu sofrimento acabou — Uma de suas cunhadas a consolou ao ver suas lágrimas.

— Penso em minha mãe. Em como deve estar sendo duro para ela — Sussurrou abraçando-a com muita emoção.

— Nossa mãe não tem noção da realidade — Victor apareceu atrás das duas e tocou o ombro da irmã — E acho que chegou a hora de nós dois termos uma conversa, minha irmã.

Vivianne o encarou surpresa. O irmão mais velho costumava ser sempre sério e muito centrado. Pouco abria espaço para conversas ou demonstrações de afeto. Victor, pela primeira vez, parecia realmente abalado com algo em sua vida.

A moça o acompanhou até a o escritório na biblioteca da grande casa. A família Grace era muito rica e tradicional, assim como mandavam os costumes mais antigos. Vivianne sentou-se à frente do irmão como costumava fazer com o pai, mas Victor puxou uma cadeira ao seu lado ao invés de a sua frente.

— Será que agora você pode me dizer o verdadeiro motivo pelo qual voltou tão repentinamente? — A pergunta dele a fez abaixar o olhar.

Os olhos escuros de Victor e sua postura impositiva a intimidava um pouco, mas a ex-noviça sabia que não podia fraquejar agora. Durante dias engoliu em seco para não contar a verdade e não podia seguir sustentando uma postura que não lhe pertencia. Já não suportava toda sua angústia misturada a imensa saudade que sentia de Pedro.

— Victor, eu... — Começou, mas não conseguia falar.

— Você saiu do convento, foi isso? — Arriscou dizer e ela concordou.

— Na verdade, fui praticamente expulsa — Completou encarando-o de baixo.

— Expulsa? Você, minha irmã? — O tom de Victor era engraçado — Mas como e por quê?

— Victor... Você sabe que esse nunca foi o meu caminho. Você sabe tudo o que tive de suportar todos esses anos porque papai e mamãe assim quiseram — O rapaz concordou em silêncio — Eu sabia dentro de meu coração que uma hora tudo iria explodir aqui dentro — Tocou seu peito — E aconteceu. Apareceu alguém que fez tudo isso acontecer.

— Alguém foi capaz de tocar seu coração, então? — Vivianne assentiu timidamente — E onde está essa pessoa?

— Creio que agora esteja bem e em sua casa — Respondeu hesitante — Mas trata-se de um homem. O nome dele é Pedro. Pedro Pelegrini e era um de meus pacientes na ala de psiquiatria. Eu o ajudei a superar um grande trauma e devido a nossa proximidade acabei me apaixonando...

— Pedro Pelegrini, o compositor? — Victor questionou ainda mais surpreso — Aquele do acidente com as crianças que passou na televisão?

— Você o conhece? — Ele ria da inocência da irmã e de sua expressão atônita.

— Às vezes esqueço que você é tão inocente e foi desligada do mundo real por tantos anos, Vivianne — Tocou com carinho o rosto da irmã — Claro que conheço Pedro Pelegrini e sei bem que tipo de homem ele é. Um conquistador.

— Ele era assim, Victor. Não é mais! — Declarou enfaticamente — Pedro mudou após o acidente com seus meninos e hoje é um novo homem.

— E quais são as intenções dele para com você? — A pergunta séria do irmão fez Vivianne encará-lo ainda mais surpresa. Victor não parecia mentir. Realmente mostrava-se firme em sua posição de aceitar a saída da irmã do convento com muita naturalidade.

— Pedro quer se casar comigo, mas... Você não se importa que eu jogue a vida religiosa que nossos pais sonharam para o alto e me case?

— Claro que não, Vivianne. Você é uma jovem bonita e inteligente. Pode fazer de sua vida o que quiser e estava mais do que na hora de acordar para toda sua situação. Nosso pai não está mais aqui e mamãe não tem mais noção da realidade, dada sua idade avançada — Dizia seguramente.

— Não posso acreditar que estou ouvindo isso — A emoção de Vivianne fez o irmão sorrir e tocar sua mão carinhosamente. Receber um gesto de carinho por parte de alguém de sua família era novamente uma grata surpresa.

— Além do mais, você tem direito a sua parte da herança. Papai separou igualitariamente seus bens entre nós três. A parte que cabe a mamãe refere-se a casa e seus bens particulares. Ele sabia que ela já não estava apta a viver sozinha — Os lábios de Vivianne se separaram em espanto.

— Isso quer dizer que eu...

— Você tem seus próprios bens agora. Seu próprio dinheiro e pode fazer com ele o que desejar. Valentim vai te passar os trâmites legais para acertar tudo — Tudo aquilo significava a independência para Vivianne.

Já não precisaria depender financeiramente da família para nada e muito menos ser refém de suas vontades novamente. Seu pai antes de morrer garantiu sua liberdade, mesmo que inconscientemente.

— Victor... Não posso acreditar — Sussurrou mais para si mesma do que para o irmão.

— Você é livre agora, minha irmã, e concordo que siga sua vida, mas não acho que Pedro Pelegrini seja o homem certo para você.

— Do que está falando?

— Acho que Pelegrini é um tipo muito arruaceiro e não é o homem indicado para você. Creio que seja prudente escolher um noivo de nossa cidade e que faça mais o seu estilo de moça conservadora — Vivianne estreitou o olhar em direção a ele — Não quero que você sofra ainda mais do que já sofreu todos esses anos.

— Mas eu não amo qualquer rapaz desta cidade... Eu amo Pedro Pelegrini e é com ele que desejo ficar! — Garantiu com muita convicção — Se for para me casar, que seja com ele. Não desejo ser de nenhum outro, a não ser dele!

Victor ponderou as palavras da irmã. Jamais viu Vivianne tão decidida como naquele momento e por isso não criou ainda mais atritos.

— Papai e mamãe te colocaram em uma redoma por anos e não serei eu quem colocarei outra coleira em seu pescoço, minha irmã. Se deseja se casar com Pedro Pelegrini, tudo bem. Você é livre para tal — Assegurou — Mas sei que você é uma moça de família e não está acostumada com a vida que ele costuma levar. É melhor pensar muito bem nas consequências.

— Não sou tão boba, irmão. Sei até que ponto posso acreditar em Pedro.

— Espero que assim seja, no entanto, desejo conhecê-lo pessoalmente. Se realmente tem intenção de se casar com você, ele deve vir até aqui conversar comigo e com Valentim — Vivianne concordou — É bom que ele saiba que você tem família para defendê-la caso precise.

— Acredite... Ele sabe disso — Sorriu sem humor — Acha prudente convidá-lo com a mamãe aqui? Ela acha que voltarei para o convento a qualquer instante.

— Continue fazendo-a achar. Faremos como fizemos com papai... Ela viverá até seu último dia realmente acreditando que você será freira — Vivianne abaixou o olhar de maneira cansada — Sei que é terrível mentir, mas é melhor do que criar um escândalo. Esse assunto é perigoso com eles porque remete ao acidente das meninas e tudo...

— Está certo, Victor. Assim farei porque também acho prudente — Concordou e ele assentiu — No que cabe a Pedro, pensarei em uma boa maneira de convidá-lo para vir.

— Nossa casa está aberta. Cabe a você considerar se ele realmente é a pessoa certa para se casar contigo, algo que eu acredito não fazer sentido.

Vivianne não sabia o que pensar.

Seu irmão não se opôs totalmente a seu relacionamento com Pedro, mas fez o pior que poderia ter feito em dada situação. Jogou completamente a situação em seus ombros, responsabilizando-a pela primeira vez em toda sua vida por seus atos. Jamais teve liberdade para escolher algo, muito menos algo tão sério quanto um casamento.

Victor queria que ela se casasse com um rapaz da cidade. Sua vontade era voltar para Pedro... A ex-noviça realmente via-se perdida entre as opções. A morte do pai doía, ficar longe de sua família doía... Mas, mais do que tudo, a saudade de Pedro a dilacerava.

Arrependeu-se por não ter sido dele uma noite que fosse.

Arrependeu-se de não ter ficado quando Pedro lhe pediu com lágrimas nos olhos.

Os dias com sua família eram pesados e intermináveis, quase uma tortura para quem morria de saudades. Ainda não havia considerado partir porque resolvia sua situação com os irmãos em relação ao testamento e inventário, mas tão pouco saberia o que fazer quando chegasse a hora. Iria de fato atrás de Pedro? Arriscaria tanto sozinha em meio às incertezas?

— Porque ainda chora, Vivianne? Aconteceu algo? Victor foi cruel com você? — Bianca, esposa de Victor e recém-mãe de seu sobrinho, sentou-se ao seu lado no banco da varanda.

— Não, Bianca. Victor foi complacente e não brigou comigo como esperei todo esse tempo — Explicou tentando se controlar — Apenas estou perdida em meio a tantos sentimentos.

— O que quer dizer? — Bianca sabia de sua história com Pedro pois era sua amiga e confidente — Victor não aceitou a ideia de Pedro se casar com você?

— Ele não concorda que Pedro seja meu marido. Acha que não temos nada a ver um com o outro —Secou as lágrimas com os punhos — Mas não me impediu.

— Então vá até ele! Você está com saudade e vocês dois precisam conversar melhor... — Incentivou-a a cunhada.

— É difícil deixar tudo para trás e tomar uma decisão como essa.

— Seus irmãos estarão sempre aqui por você. Eles te amam muito — Garantiu convicta — Victor pode não concordar com a ideia, mas certamente acabará aceitando Pedro e tudo ficará bem.

Vivianne caminhou por longas horas em meio à fazenda de sua família simplesmente admirando a paisagem. Por anos foi refém das paredes da casa e agora se sentia como um animal finalmente solto da jaula. Pensou horas a fio sobre sua vida e seu destino, lembrando-se a todo o momento que suas passagens mais felizes eram ao lado de um homem machucado, tatuado e de dois metros de altura.

Pelegrini a fazia feliz. Era ele quem dominava seus sentimentos, mesmo indo contra tudo que ela conhecia e todos em quem acreditava.

Deveria dar voz ao amor?

Deveria voltar?

Correu entre as flores do grande jardim como sempre quis fazer em sua infeliz infância e chorou de alegria por finalmente se sentir normal. Sequer podia acreditar que a vida lhe presenteava com tamanha alegria. Livre, finalmente. Livre, mesmo que por cima da vontade de seus pais.

— Vivianne? — A voz de sua mãe a surpreendeu grandemente e no mesmo momento a moça parou de correr.

Via-se de frente com Irma Grace parada na entrada do jardim com muitas rugas a mais do que no passado do qual Vivianne se recordava tão nitidamente. Usava sua famosa saia escura até os tornozelos, uma blusa florida e o cabelo branco solto nas costas. Ainda era sua mãe, apesar de tão idosa e acometida pela idade. A moça caminhou em direção a ela seguramente, ainda admirava pelas recordações da infância. Era exatamente assim que sua mãe a chamava quando ela escapava do cárcere algumas vezes quando ainda era menina.

— Está tudo bem com a senhora, mamãe? — Questionou preocupada.

— Porque você está aqui fora correndo quando deveria estar lá dentro, ajoelhada e rezando? — Questionou como sempre fazia. Vivianne sorriu sem humor.

— Porque já não quero somente rezar, mãe. Agora eu quero correr também e fazer outras coisas — Afirmou com a voz carregada de emoção. Jamais teve coragem de afirmar isso alto para ela.

— Você deve voltar imediatamente para o convento, filha. Deve ficar sob o jugo da madre todo o tempo — Afirmou.

— Não quero mais voltar para o convento — Segurou na mão de sua mãe com cuidado — Quero ficar com a senhora e com nossa família.

— Mas Vivianne... Você é uma menina de Deus e ele vai te castigar caso você não reze e volte para o convento! — Insistiu nervosamente — Querida... Você sabe quantas maldades podem te acontecer fora de lá? Você é uma moça pura demais para esse mundo...

— Mamãe... — Suspirou — Não se preocupe. Deus quer que eu seja feliz — Uma lágrima deslizou do canto de seu olho azul. Irma tocou sua bochecha — E ele sabe que não sou feliz trancada em um convento.

— Você é tão bonita, minha filha. Tão inocente e boa... — Irma suspirou novamente em meio a suas lágrimas — Como suas irmãs eram. Eu só quis te proteger.

— Sei disso. Pode ter certeza que sei disso! — Afirmou sorrindo. Parte dela não sabia se sua mãe estava realmente lúcida, mas resolveu acreditar em suas boas intenções — E te perdoo por tudo — Beijou a mão da mãe com carinho.

— Você honra a Deus com essa atitude. Aliás, com todas elas! — Irma parecia realmente orgulhosa — Tenho orgulho de você, filha. Eu não merecia o seu perdão.

Não demorou muito para que Irma se distraísse com outras coisas e deixasse completamente de lado o assunto com Vivianne. Realmente estava acometida por doenças mentais, talvez Alzheimer, não sabia ao certo. Tudo o que Vivianne sabia é que precisava realmente daquela conversa e foi um presente conseguir tê-la.

— Vivianne, Vivianne! — Bianca a chamava da varanda — Tem uma ligação para você!

A moça correu até a varanda e alcançou a cunhada, que a aguardava ansiosamente com o telefone em mãos.

— Quem é?

— É de São Paulo — Sussurrou — Paola Pelegrini.

Vivianne tomou o telefone em suas mãos e encarou a cunhada com o coração disparado no peito. Algo muito forte se apossou dela naquele momento... Um medo inexplicável e que jamais experimentou em toda sua vida.

— Paola? — Disse nervosamente — Sou eu, Vivianne.

— Vivianne... Meu Deus... Eu precisava muito falar com você e foi tão difícil te encontrar! — Dizia chorosa e ofegante — Aconteceu uma coisa terrível!

— O que houve com Pedro? — Questionou direto ao ponto e com as mãos trêmulas.

— Meu irmão sofreu um acidente. Você precisa voltar, Vivianne. Por favor. Ele precisa te ver... Nem que seja pela última vez.

 

 

P edro sentia imensa vontade de fumar, mas controlou-se diante de tudo que havia aprendido no convento. Não queria voltar a se matar com vícios nocivos e muito menos ser o que antes costumava ser.

Realmente era um novo homem.

Colocou um palito entre os lábios para conter a vontade e caminhou junto aos demais em busca da única vivente capaz de consolar um pouco sua alma sofredora. Não acreditava que estava novamente entre as paredes daquele convento em menos de um mês, mas não teve escolha quando seus sentimentos se apertaram de maneira dolorosa. Precisava falar sobre ela. Precisava extravasar, nem que fosse por um minuto.

— Frida? — Disse ao parar ao lado da moça de cabelos vermelhos que se afundava em um livro de romance em uma das cadeiras da biblioteca vazia.

Os olhos castanhos se ergueram para ele por detrás do livro que ela fechou em seguida. A moça se ajeitou na poltrona e cruzou os braços.

— Pelegrini... Você não recebeu sua alta milagrosa faz alguns dias? — O rapaz se sentou a frente dela sem ser convidado — O que faz aqui, cara?

— Vim colher flores no jardim e cantar com o coral — Ironizou e a menina riu baixinho.

— Larga de ser idiota... Fala logo o que quer — Gesticulou de maneira cansada.

— Vim falar com você, né, palhaça — Segurou a mão dela com carinho após retirar do bolso um pacote — E certamente trouxe um presente. Não sou tão grosseiro como você imagina.

— Ora, veja só... Pelegrini sendo gentil! — Sorriu e apanhou o pacote. Tratava-se de uma edição especial de um de seus romances favoritos e uma barra de chocolate belga — Uau... Valeu a pena a má sorte de ver sua cara hoje — Ergueu o chocolate e ele torceu os lábios — Obrigado pelo presente.

— Obrigado nada... Você vai me fazer um favor — Frida riu já prevendo o jeito engraçado de Pedro agir. Ele tentava ser gentil, mas não sabia esconder seus sentimentos de maneira satisfatória — Vim aqui te fazer uma pergunta.

— Claro... Já desconfiava — Colocou os presentes de lado para conversarem melhor — Acho até que já esperava por sua visita.

— Então me diga o que desejo ouvir — Praticamente implorou — Onde está Vivianne?

Frida o encarava com a face dominada pela surpresa. Parecia também indignada.

— Me diga qual foi o feitiço que Vivianne lançou sobre você para te fazer cair de quatro desse jeito, cara? Você não desiste e não deixa ela em paz mesmo!

— Frida... Você sabe que nós nos amamos. Você acompanhou tudo de perto. Não posso desistir assim, tão fácil!

— Fácil? Você está se desgastando faz meses atrás dela e Vivianne fugindo de você — Pedro seguiu com a mesma postura e a moça suspirou — Ela está na casa dos pais no Mato Grossa. Você sabe!

— Qual é o endereço? — Pedro tirou do bolso uma caneta e um papel — Minha irmã não consegue descobrir, também. Ao que parece são muito reservados.

— Acho melhor você deixar Vivianne voltar, não ir atrás dela — Frida soava sincera, sem o tom brincalhão de sempre — Pode arrumar problemas para ela.

— Não me importa. Eu preciso ao menos tentar antes de desistir de uma vez.

— Se Vivianne não voltou em todo esse tempo, acha mesmo que ela vai voltar? — Pedro seguiu encarando-a — Vivianne não é como nós, Pedro, eu já te disse isso! Ela é boa e pura.

— E eu sou teimoso e não descanso enquanto não consigo o que quero! — Insistiu e a moça sorriu — Vai me passar o endereço ou não?

Conseguiu o que queria de Frida e saiu do convento encarando o papelzinho entre os dedos. Foi surpreendido, antes de entrar em seu carro no estacionamento, pela presença da madre superiora. Caminhou até ela sem poder ignorar seu chamado, ansioso por saber algo sobre sua amada.

— Como vai Pedro? — Questionou sorridente — É bom te ver por aqui, meu rapaz. Está muito bem, pelo que vejo!

— Sim senhora. Também é bom revê-la — Cumprimentou tomando a mão dela e depositando um beijo na parte de cima com muita educação — Como vai?

— Muito bem... Acho que veio aqui saber sobre irmã Vivianne, não é mesmo? — O rapaz nada disse, apenas seguiu encarando-a com um misto incontrolável de ansiedade se instalando no peito — Pois bem... Ela me ligou faz alguns dias comunicando sua saída definitiva do convento. Não faz mais parte do meu grupo de noviças.

— Mas ela está bem? — Questionou um tanto desestabilizado.

— Seu pai estava doente e parecia não ter muito tempo — Pedro abaixou o olhar — Creio que ela não voltará por agora.

— Mas a senhora acha que um dia ela retornará, nem que seja para atender os pacientes?

— Ela não me disse nada — O tom triste da madre dilacerou ainda mais o emocional de Pedro, que encarou o chão sem muito assunto — Sinto muito.

Pedro voltou para casa e sentou-se em sua varanda com o violão no colo e muitas ideias na cabeça. Encarou sobre a mesinha uma árvore decorada com fotos especiais e em quase todas elas encontrou imagens de seus filhos.

— Sei que prometi ser diferente — Sussurrou enquanto deslizava os dedos entre as cordas e fazia uma melodia suave ecoar pelo lugar. Encarava uma foto onde os dois meninos posaram juntos com os rostos idênticos colados um ao outro. Os olhos verdes como os seus eram o que mais chamava atenção no retrato e sentia como se pudesse ser realmente ouvido por ambos — Mas sem ela parece que tudo volta a ser escuro. Encoberto. Frio. Vazio. Sem vocês e sem ela... Já não faz sentido nenhum, entendem?

Seguiu tocando em completo silêncio.

— Ela me enganou — Disse após terminar a canção — Não vai voltar. Não me amava como acreditei — Por um segundo recordou-se de momento ao lado de Vivianne.

Recordou-se da maneira doce como ela sorria.

Recordou-se do jeito infantil como corria até ele quando desejava encontrá-lo no convento, do modo engraçado como sempre carregava os livros e de seu perfume adocicado e floral.

Recordou-se do girassol que ganhou de presente e da maneira linda e sincera como ela sorria naquela tarde sob o sol e com os cabelos longos colados à face.

Sua lembrança marcante atrelava-se ao desejo ardente que ainda carregava em seu peito. Um desejo tão poderoso que o fazia sonhar com ela por toda noite, cada dia de sua vida, sabendo que jamais seria completo se não estivesse com Vivianne ao seu lado.

— Não posso ter me enganado assim — Disse a si mesmo — Ela me amava sim, mesmo que jamais tenha dito. Ela me amava...

Recordou-se do primeiro beijo. Do olhar azul e aterrorizado de Vivianne em direção a ele. Lembrou-se da mão dela entre as suas e da primeira vez que a tocou com mais intimidade.

Não... Não podia estar enganado! Não com ela! Ela seria dele e sua alma sabia disso... Mas tudo e todos diziam que ela não iria voltar.

A campainha de seu apartamento soou e achou estranho não ser comunicado pelo porteiro. Caminhou até a entrada e abriu acreditando ser a irmã que morava no mesmo prédio.

— Paola... Você tem a chave! — Abriu a porta e praticamente caiu para trás ao deparar-se com sua ex-mulher — Fernanda?

— Pedro — Cumprimentou com um sorriso sínico — Posso entrar?

— Era só o que me faltava... — Disse quando ela passou por si e adentrou ao apartamento sem ser convidada — O que faz aqui?

— Vim te visitar — Pedro seguia parado na entrada com a porta aberta — Hoje é aniversário de morte dos meninos e achei que poderíamos ir juntos visitar os túmulos. O que acha?

— Quem comemora aniversário de morte? Você perdeu a noção das coisas, foi? — Fernanda suspirou e ajeitou o cabelo loiro atrás da orelha — Vá embora, por favor.

— Pedro... Quantas vezes você foi até lá depois do velório? — Pedro negou.

— Nunca fui e nunca irei. Os meninos não estão mais lá, aquilo é somente uma lembrança. Agora eles habitam em meu coração — Garantiu com mais seriedade — Por favor, vá embora!

— Essas também são palavras da noviça que virou sua cabeça? — Pedro a encarou confuso — Já soube sobre ela. Todos ao seu redor já sabem.

— Vá embora — Insistiu — Não devo satisfações da minha vida para você.

— Acha mesmo que vai dar certo uma relação entre você e uma noviça? — Desdenhou de maneira irônica — Por favor, Pedro... Seja racional!

— Claro que vai. Ela é completamente o oposto de você — Deu de ombros e Fernanda fechou o semblante. A moça caminhou até a porta e parou fora dela, porém seguiu encarando-o firmemente.

— É verdade que ela foi embora e fugiu de você? — Pedro nada respondeu — Se ela fez isso é porque não te ama da mesma maneira.

— Vá embora.

— Nós podemos ter mais filhos que lembrarão os meninos sempre... Você sabe que podemos! Nós fomos felizes por muitos anos e acredito que possamos voltar a ser — Insistiu.

— Então passe a desacreditar — Fechou a porta fortemente e voltou-se para dentro.

Todas as vezes que encontrava Fernanda era para sua infelicidade. A presença dela conseguia desestabilizá-lo a ponto de tirar tudo de órbita. Nervoso, foi até o quarto e tomou o comprimido calmante que o doutor José Luiz receitava em suas visitas mensais. Sentia-se nervoso e trêmulo pelos nervos à flor da pele, principalmente por Fernanda tentar se comparar a relação que tinha com Vivianne.

Pensou nos meninos.

Pensou no aniversário de três anos da morte deles.

Pensou que Fernanda jogava baixo para tentar voltar para sua vida.

“Nós podemos ter mais filhos que lembrarão os meninos para sempre”.

Como ela podia considerar tal ideia?

Desestabilizado e um tanto descontrolado, Pedro vestiu sua jaqueta de couro favorita, suas botas e um óculos de sol. Apanhou as chaves do carro e desceu pelas escadas, ansioso por alcançar o carro. Adentrou ao automóvel sem pensar, dirigindo em alta velocidade sem direção certa.

Qual rumo tomaria sem Vivianne e a ideia que criou que um dia se casariam?

Como superar mais essa perda terrível e dolorosa?

— Ela deveria ter me deixado lá... Apodrecendo naquele hospital! — Sussurrou para si mesmo.

Antes que pudesse raciocinar, Pedro estava dirigindo a caminho da casa de campo que agora não trazia apenas lembranças dos meninos, mas também de Vivianne. Aquele, talvez, fosse o único lugar onde tudo fizesse um pouco de sentido, afinal.

Dirigia em alta velocidade e desviava dos carros com a ideia de chegar mais rápido. Parou repentinamente, no entanto, quando alcançou o local onde o acidente com os garotos aconteceu.

Reviveu tudo em sua mente, dirigindo mais devagar e analisando os arredores.

Via exatamente o corpo sem vida de Pietro deitado no local onde foi encontrado. Via o rostinho do garoto com os olhos fechados e o nariz sangrando. As mãos pequenas abertas e o urso de pelúcia favorito sujo de sangue ao lado. Não o encontrou de tal maneira, mas teve acesso as fotos que a polícia tirou.

Recordou-se da voz animada de Stefano minutos antes da colisão e da última vez que o viu deitado sobre o leito do hospital.

Não podia suportar tais lembranças.

Não de maneira sóbria.

Foi como reviver três anos atrás... Virou-se imediatamente quando viu luzes piscando a sua frente e sequer soube explicar o que aconteceu. Não soube dizer como seu carro invadiu a contramão e colidiu violentamente com outro veículo em alta velocidade.

Uma vez mais, Pedro perdeu o controle.


Era estranho estar em meio às pessoas sem usar o vestido tradicional até as canelas ou algum adorno que indicasse sua posição de noviça.

Vivianne sentia-se como um animalzinho fora da jaula cada vez que alguém a tratava por “senhorita Grace”, não mais irmã Vivianne. Sentiu-se estranha ao ter que pedir algumas roupas emprestadas da cunhada, uma vez que não tinha peças suficientes para fazer uma mala sem os vestidos tradicionais do convento. Usava uma simples calça jeans, casaco e botas e já parecia que estava vivendo outra vida. Quando em vida teve permissão para usar uma calça?

— Você vai mesmo atrás dele? — Victor questionou um tanto contrariado. Vivianne terminava de enfiar todas suas roupas em uma pequena mala e reunia seus documentos da mesma forma.

— Ele precisa de mim — Sua respiração ofegante e a maneira ansiosa como se apressava deixava claro seu nervosismo por ir de uma vez — Não posso abandoná-lo agora, Victor. Entenda, por favor!

— Pedro Pelegrini não é o homem certo para você, Vivianne — Repetiu enfaticamente.

— Mas não posso deixá-lo — Vivianne fechou a mala e apanhou suas coisas — Preciso ir... Desculpe-me, porém não posso obedecer dessa vez.

Vivianne jamais pensou que seria capaz de abandonar sua casa e todo o resto para trás sem pensar duas vezes. Tudo o que desejava agora era saber algo sobre Pedro... Algo além do que Paola havia dito por telefone. Estava hospitalizado em uma situação crítica e tudo o que Paola pediu foi para que orasse pela vida do irmão. A voz sempre divertida da morena deu lugar a lágrimas de desespero e muitos soluços. Não conseguia imaginar o que se passava no coração de uma mulher que já viveu tantas tragédias!

Chegou a São Paulo na manhã do dia seguinte e seguiu com mala e tudo para o hospital. Perguntou por Pedro na portaria e logo foi encaminhada para seu corredor, local onde encontrou Paola chorando apreensiva. William estava lá com a noiva e foi o primeiro a vê-la. Abraçaram-se com bastante tristeza.

— Como ele está? — Questionou desesperada — Posso vê-lo?

— Está em cirurgia — Algo no semblante dele não condizia com as expectativas positivas que Vivianne adotou pelo caminho — Já faz quatro horas. Ninguém fala nada, ninguém diz nada... Não sei mais o que fazer para consolar Paola.

Vivianne caminhou em direção a Paola e sentou-se ao lado dela com cuidado. A morena ergueu os olhos para ela e a abraçou assim que tomou consciência de sua presença.

— Vivianne... Obrigado por vir! — Chorava inconsolavelmente nos ombros da amiga — Porque tudo isso tem que acontecer comigo? Porque tive que perder meus pais, minha tia, meus sobrinhos e agora o meu irmão?

— Paola, fique calma... — Sussurrou tentando se manter firme — O que aconteceu com Pedro? Como foi esse acidente?

— Eu não sei, eu... — Respirou profundamente — Ele estava bem de manhã e saiu para visitar uma amiga no convento — Vivianne estreitou o olhar — Voltou, me ligou e horas depois... Horas depois o telefone toca... Era a polícia me comunicando o acidente. Foi na estrada indo para a casa de campo... No mesmo lugar onde aconteceu tudo com os meninos.

Vivianne a abraçou novamente e desta vez soube, bem no fundo de seu coração, que a culpa era sua.

— Foi por mim, não foi, Paola? — Questionou com lágrimas nos olhos azuis — Pedro estava nervoso por minha causa?

— Não pense assim — Tentou parecer firme — Você jamais foi algo ruim na vida de Pedro, por isso te liguei assim que soube. Sei que ele precisa de você agora.

— Me desculpe por demorar tanto para entrar em contato... Meu pai acabou de morrer e tudo estava uma bagunça por lá. As coisas ainda são muito confusas para mim. É difícil me ver fora do convento e da vida que sempre levei em meio às freiras — Explicou com a voz vacilante e as lágrimas rolando no rosto.

— Você me parece ótima — Analisou a roupa de Vivianne e sorriu — É tão bom te ver bem... Livre daquelas roupas horríveis — As duas sorriram em meio ao trágico.

— Pedro vai ficar bem, não vai? — Perguntou segurando a mão dela firmemente — Ele é forte...

— Os médicos estão fazendo o possível. Ele teve algumas fraturas e ainda não sabemos se atingiu algum órgão vital, realmente. Chegou aqui desacordado e com uma concussão cerebral — Vivianne apertou os olhos e suspirou.

— Temos que orar e ter fé. Deus não vai permitir que Pedro morra depois de tudo que passou... Depois de ter se recuperado como ele se recuperou.

Vivianne ficou com Paola durante todo o tempo da cirurgia e, ao receberam a notícia de que Pedro já estava no pós-operatório, todos comemoraram e se aliviaram um pouco mais. Afastou-se de Paola e William e desceu até a capela do hospital, onde orou por muito tempo em agradecimento ao sucesso da cirurgia. As lágrimas rolaram a todo instante em seu rosto enquanto pensava que se tivesse sido corajosa e voltado antes, Pedro não precisaria estar passando por tal situação.

— Vivianne — William a chamou dentro da capela. Secando as lágrimas, voltou-se para o noivo de Paola — Você pode subir para vê-lo. Ele está bem.

 

 

N ão sabia quantas horas haviam se passado desde que começou a pedir a Deus que salvasse Pedro naquele lugar, no entanto, subiu rapidamente até o quarto dele em busca de notícias. Paola estava no quarto sentada ao lado da cama do irmão e segurava em sua mão com carinho.

Vivianne se aproximou e parou ao lado da cama. Como era bom voltar a ver Pedro após tantos dias...

Mesmo adormecido sobre a cama, ligado a aparelhos e com a expressão cansada ele ainda parecia ser o homem mais bonito que já viu. Seu coração apertou no peito quando se abaixou próxima dele e lhe deu um beijo no rosto. Paola seguiu sentada no lado oposto apenas observando-a. Acariciou a face desacordada e deslizou os dedos por seu cabelo escuro e desalinhado. Como o amava! Sentia o corpo todo extasiado por vê-lo e tudo o que mais queria era encarar seus lindos olhos novamente.

— Pedro... Sou eu, Vivianne — Disse carinhosamente — Você é terrível mesmo. Apronta cada uma que deixa eu e Paola sem palavras — Brincou em meio às lágrimas — Eu voltei. Estou aqui por você... Te disse que nunca te abandonaria, não é mesmo?

As máquinas que monitoram a vida de Pedro seguiam apitando, mas aumentavam de ritmo conforme Vivianne falava. As duas percebiam sua movimentação.

— Acho que ele pode te ouvir — Sussurrou Paola — Está vendo, seu teimoso? Eu disse que sua Vivianne ia voltar, não disse? Mas é claro que você não podia sentar esse traseiro e esperar... Teve que arrumar alguma confusão em meio a isso, não é?

Vivianne gargalhou e voltou a beijar o rosto de Pedro com carinho.

— Por favor, Pedro. Não me deixe agora... Por favor — Pediu ao pé do ouvido dele e acariciando sua barba por fazer — Eu te amo. Por favor... Duvido que um dia vá encontrar outro homem que me ame como você me ama. E que eu ame como te amo — Paola se emocionou com as palavras de Vivianne. Era difícil presenciar algo tão profundo e doloroso — Desculpe por demorar. Desculpe por ser tão complicada.

— A culpa não é sua — Paola repetiu um pouco mais centrada — Tinha que acontecer.

Vivianne nada disse, apenas seguiu sentada ao lado da cama segurando na mão de Pedro o mais firmemente que podia. Paola seguia em completo silêncio apenas olhando as máquinas em busca de qualquer resposta do irmão.

Os médicos pediram para que as duas apenas esperassem.

— Você acha que ele vai se recuperar em breve? — Questionou Vivianne.

— Ele é forte feito um touro — Sorriu em meio ao semblante tristonho — Não vai se dar por vencido tão facilmente.

Vivianne acariciou o rosto adormecido com carinho e se aproximou para beijá-lo novamente.

— Eu te coloco nas mãos de Deus, Pedro. Ele vai te trazer de volta — Sussurrou para ele com carinho — Ele não levaria embora um amor que demorou tanto para chegar em minha vida, porque, como você disse um dia, ele não juntaria nossos caminhos se fosse impossível.


Pedro se via novamente em meio ao belo jardim que outrora avistou em um belo sonho.

Tratava-se do mesmo local onde voltou a ver Stefano e Pietro e por isso caminhou sem medo entre as flores. Sabia que os garotos estavam ali em algum lugar e os procurava com anseio e afinco, ansioso por novamente estar junto dos garotos.

— Meninos? — Gritava animado e correndo em busca deles — Sou eu, o papai! Já cheguei para ficarmos juntos! — Olhava entre os arbustos, as flores e todos os locais onde julgava de fácil acesso — Venham me dar um abraço!

A felicidade que irradiava de seu peito era tamanha que sequer podia parar de sorrir. Ali sabia que as dores do mundo não mais o atingiam e que estava uma vez mais com os meninos. Não se importava com o resto. Se Vivianne não o queria, sua única vontade seguia sendo partir para ficar ao lado deles.

— Eles não estão aqui agora, Pedro — A voz que ecoou no outro sonho agora era ainda mais forte e poderosa do que se recordava.

Deteve-se ao ouvi-la e analisou ao redor em busca do rosto que a portava. Não encontrou nada, somente as belezas do vazio jardim.

— Onde eles estão? — Questionou confuso.

— Não precisa mais se preocupar com eles. Onde estão nada de ruim sentem e tão pouco precisam de você agora. Os garotos podem esperar — Revelou a voz em tom calmo — Você, por sua vez, ainda tem coisas a serem cumpridas e um longo caminho a percorrer.

— Não quero saber de nada. Nada mais lá me importa. Desejo ficar aqui... Será que você pode me aceitar? — Pediu cordialmente.

— Você tem alguém lhe esperando. Acaso não se recorda? — Pedro abaixou o olhar.

— Ela não me quer. Fugiu de mim.

— Sua vida é de grande valor. Deixe de uma vez o passado para trás que haverá novamente um sol para brilhar acima de seus olhos. Por hora, despeça-se de tudo que te amarra.

No exato instante Pedro avisou os garotos ao longe correndo em sua direção. Os meninos sorriram animados e ele se abaixou para abraçá-los quando chegaram a seus pés. A última coisa que ocupou sua mente e marcou grandemente seu coração foi ver as mãos pequenas dos garotos entre as suas.

Um clarão se fez diante de seus olhos e tudo o que pôde ver foi a sala branca e ruidosa de um hospital qualquer.

Abriu os olhos nervosamente e tossiu pela sensação estranha em sua garganta. Levou as mãos aos fios que se prendiam em seu rosto e tentou se sentar da maneira cansada.

— Onde estou? — Sussurrou a si mesmo e não demorou nada para uma enfermeira aparecer e acalmá-lo.

— Senhor Pelegrini, está tudo bem! O senhor acaba de voltar da anestesia, pode se sentir confuso... É normal — Resolveu se deitar novamente para ver se a tontura passava e se acomodou nos travesseiros.

— Chame minha irmã, por favor. O nome dela é Paola Giovanna — Pediu tossindo e sentindo muitas dores.

O médico chegou antes que a enfermeira saísse e realizou muitos testes em seu corpo. Pedro apenas buscava descansar das dores após receber um bom medicamente. Paola entrou em seguida, esbaforida e sorridente.

— Pedro! Seu maluco! Finalmente! — O abraçou com carinho e Pedro gemeu pela dor no braço engessado — Oh, desculpe! Pensei que essa anestesia não ia passar nunca!

— O que houve comigo, Paola? Parece que um caminhão passou por cima de meu corpo todo! — Gemeu novamente.

— Foi tipo isso... Mas acho que não chegou a passar por cima não — Brincou ao vê-lo mais calmo — Você sofreu um acidente, não se lembra?

— Um pouco — Alguns flashes invadiam sua mente, mas não sabia dizer se eram memórias do acidente anterior — Que droga. Estou acabado.

— Não fala isso... Você vai ficar bem! O pior já passou! — Segurou a mão dele com carinho.

— Sonhei... Sonhei com os meninos — Confessou ainda confuso — E com Vivianne. Até mesmo pude ouvir a voz dela como se estivesse ao meu lado.

— Mas ela estava — Paola sorriu — Acabou de ir para casa tomar um banho e se recuperar da viagem, mas em breve retornará.

Pedro pulou da cama e sentiu a dor lhe atingir grandemente.

— Ela voltou? — Não acreditava no que ouvia — Mas...

— Claro que voltou! Quando soube que você tinha se acidentado, demorou apenas horas para chegar aqui — Pedro sorriu abertamente.

— Ah, então valeu a pena me arrebentar todo — Paola rodou os olhos.

— Pedro, por favor! Você podia ter morrido, seu maluco! — O rapaz deu de ombros.

— O que é a vida sem um pouco de emoção, não é? — Paola teve de rir da maneira pouco preocupada como o irmão lidava com a situação — Perdi o carro? — Paola assentiu positivamente com expressão triste — Que droga. Acho que nunca mais vou poder dirigir na vida.

A porta do quarto de foi aberta e ambos se viraram para encarar a pessoa que se juntava a eles. Tratava-se de Vivianne, que parou estática ao ver que Pedro já havia acordado. A ex-noviça usava um bonito vestido azul, casaco branco e sapatilhas. O cabelo longo descia úmido ao lado do corpo e os olhos estavam inchados pela maneira como vinha chorando nos últimos dias.

Pedro a encarou fixamente, sem esconder a emoção de voltar a vê-la. Cada vez que se encontravam era como abrir um grande espaço em seu coração. Não sabia dizer como resistiu a tanta saudade, principalmente agora que a via diante de seus olhos novamente.

— Pedro... — A voz dela saiu como um sussurro.

— Vou deixá-los a sós. Com licença — Paola passou por Vivianne e fechou a porta, deixando-os sozinhos dentro do quarto.

Vivianne aproximou-se lentamente e parou ao lado da cama sem saber o que fazer. Pedro esticou o braço livre do gesso pedindo para que ela se aproximasse. A mão dela tocou a dele com delicadeza e Vivianne sorriu por finalmente senti-lo próximo após tanto tempo. Abraçou-o com ímpeto e Pedro sequer reclamou da dor que o ato causou em suas fraturas. Beijou o cabelo dela com carinho e afagou-a com cuidado.

— Pensei que nunca mais iria te encontrar... — Disse ao ouvido dela sem ter coragem de lhe afastar.

— Pensei que não teria coragem para voltar, mas descobri que meu sentimento por você é muito maior do que qualquer medo. Muito mais forte do que imaginei — Respondeu separando-se dele e contemplando os olhos esverdeados tomados por lágrimas — Você está chorando, senhor Pelegrini? Pensei que homens grandes como o senhor nunca choravam — Ele sorriu e ela tocou sua lágrima.

— Homens por acaso não tem sentimentos? — Pedro a abraçou novamente — Que bom que voltou. Assim me poupou de ir até sua casa e causar alguns problemas por lá.

— Pedro, por favor... Você sequer saiu de uma confusão e já quer se meter em outra? — Suspirou, mas por dentro estava feliz e aliviada por vê-lo bem.

— Eu disse que iria até o inferno, não disse? — Vivianne abaixou o olhar.

— Não creio que seja necessário — Confessou baixinho — Percebi que não tem nenhum lugar no mundo onde desejo estar que não seja ao seu lado. Mesmo todos ao redor dizendo que você não é o homem certo para mim, sei que jamais vou amar alguém como amo você.

— Você o que? — Pedro não podia acreditar no que ouvia. Vivianne sorriu timidamente — Sonhei agora mesmo que você dizia que me amava e agora sou presenteado, finalmente, com essas palavras. Isso realmente é um milagre!

— Você não sonhou não, seu bobo! — Falava ainda timidamente — Eu disse quando cheguei.

— Então repete agora que estou acordado — Pedro a puxou mais para perto e seus rostos ficaram a centímetros. Vivianne estremeceu com a proximidade e tocou a barba por fazer com carinho.

— Pedi para que não me deixasse porque te amo... E sei que nunca vou encontrar um homem que me ame como você ama e que eu ame como te amo — Repetiu de maneira emocionada e Pedro podia jurar que jamais ouviu uma declaração mais sincera. Os olhos azuis brilhavam emocionados — Me senti demasiadamente confusa com tudo que houve na casa de meus pais, mas ao ouvir de Paola que sua vida corria risco, tudo desapareceu diante de meus olhos. A única coisa que me importa é te ver bem e feliz.

— Para isso preciso de você ao meu lado — Beijou-a com cuidado — Por favor, me diz que não vai embora. Não faça eu ter me arrebentado a toa!

— Não — Respondeu baixinho com meio sorriso — Não vou sair daqui até te ver bem.

— Como estão as coisas na sua casa? Você conversou com seus pais?

— Meu pai faleceu faz alguns dias — Seu semblante foi tomado por tristeza — Minha mãe está fora da realidade devido à idade. Acreditamos que esteja doente.

— Caramba... Sinto muito — Pedro tocou a mão dela de maneira solidária. Mesmo cansado, ainda tinha forças para conversar.

— Não é hora de conversarmos sobre isso. Você precisa descansar — Ajeitou as almofadas atrás dele.

— Não se preocupe. Vou provar para eles que sou um bom rapaz agora.

— Descanse, Pedro — Mandou com um sorriso — Você tem que ficar calmo.

— Espera... — Segurou-a antes que Vivianne descesse da cama — Puxa aqui. Quero te mostrar uma coisa que fiz — Apontou para a gola da roupa do hospital.

Vivianne envergonhou-se, mas ele insistiu. Vagarosamente puxou a gola da roupa até desnudar parte do peitoral, onde pôde rapidamente avisar o que ele tanto queria mostrar. Tratava-se de uma nova tatuagem. Uma cruz com o nome dela abaixo da mesma.

— Pedro! — Repreendeu — Você ficou louco? Tatuar o meu nome! — Um sorriso cansado se fez nos lábios dele ao ver a expressão surpresa da ex-noviça.

— Louco já fiquei há muito tempo — Respondeu feliz — Você bem sabe.

Vivianne aproximou-se para beijá-lo rapidamente. Aquele homem maluco era tudo o que tinha agora e não sabia, e tão pouco queria, livrar-se dele.

 


Paola e Vivianne comemoraram a recuperação de Pedro ao voltarem para casa, uma vez que agora o rapaz não poderia ter acompanhante no período da noite por já ter recuperado a consciência.

A noviça se hospedou no apartamento dele e demorou longos minutos analisando toda a bela decoração com muito cuidado. Tudo parecia muito ele, mesmo Paola tendo insistido que ela própria havia cuidado de cada detalhe. O lugar tinha o cheiro másculo de Pedro e Vivianne se pegou sonhando em como seria sua vida caso realmente se casasse com ele.

Havia um belo álbum na sala principal e provavelmente Pedro estava mexendo nele antes de sair. Vivianne sentou-se ao sofá com o mesmo no colo e abriu vagarosamente. Todo o conteúdo era voltado para os gêmeos, desde o nascimento até a última foto.

Pôde ver retratos de Fernanda - a ex mulher de Pedro que uma vez viu no convento - ainda grávida. Fotos dos nomes dos bebês decorando a barriga e do chá de fraldas. Logo em seguida os viu recém-nascidos no colo de Pedro e as primeiras fotos em um local especial. Seu coração apertou em dor conforme foi passando os retratos e acompanhando o crescimento da linda dupla. Ambos tinham os olhos idênticos aos de Pedro e era isso que mais lhe chamava atenção. Eram idênticos, de cabelos negros, pele amorenada e olhos brilhantes e esverdeados. Deteve-se ao ver uma foto da família completa. Pedro abraçava Fernanda com os garotos em frente a ambos. Aquela talvez fosse a única foto do tipo e aconteceu no último aniversário dos gêmeos.

Como deveria ser difícil passar uma situação como aquela. Se somente de folhear o álbum seu coração sangrou, que dirá para um pai que criou o filho desde o nascimento!

Ligou para sua casa e comentou com Bianca a melhor no quadro de Pedro e garantiu que assim que possível retornaria para acertar os últimos detalhes com os irmãos e, se possível, para o casamento de Valentim.

Adormeceu aquela noite sonhando com os gêmeos e sofrendo pela eterna dor que Pedro sentiria até o momento de sua partida. Não havia cura para uma perda como tal, somente cuidados paliativos. Dirigiu-se ao hospital na primeira hora do dia seguinte e foi recebida com muito carinho por Pedro, que parecia esperá-la ansiosamente.

— Agora sim o meu dia começou — Comemorou ao vê-la entrar.

Vivianne sorriu e caminhou até ele para lhe dar um beijo.

— Como se sente essa manhã? — Questionou próxima dele e acariciando seu lindo rosto. Pedro beijou a palma de sua mão.

— Sabendo que você está aqui, não tem como ficar melhor — Realmente parecia mais corado e animado. Os prognósticos eram bons e Pedro estaria completamente restaurado em questão de dias — Esse acidente foi para me trazer de volta a vida depois daquele outro ter me tirado tudo.

Vivianne sorriu e não pôde esconder a emoção.

— Vi fotos dos meninos no seu apartamento. Eles eram lindos e... — Respirou profundamente — Sinto muito, Pedro. Eles devem estar muito orgulhosos de você.

— Eles eram incríveis — Seu comentário não foi triste, mas sim repleto de saudade — Acha que um dia ainda iremos nos encontrar?

— Claro que sim. Não tenho dúvidas.

No momento em que trocavam um beijo apaixonado, a porta foi aberta. Vivianne se afastou dele um tanto assustada pela intromissão, principalmente ao ver de quem se tratava.

— Fernanda? — A voz de Pedro era de total desdém — O que faz aqui? Quem te deixou subir?

— Bom dia — Respondeu fechando a porta atrás de si e caminhando até a beira da cama. Vivianne seguiu parada ao lado da cama de Pedro um tanto intimidada.

A ex-mulher de Pedro era ainda mais bonita de perto. Usava saltos, saia, blusa de pedrarias e brincos grandes. Não fazia o estilo sofisticado, pendendo para um modelo mais piriguete, porém ainda assim era vistosa com um corpo trabalhado em academia e cabelos loiros platinados. Uma mulher como ele estava acostumado.

Seu estilo simples de moça do interior em nada poderia se comparar com ela.

— Bom dia — Vivianne respondeu educadamente.

— Você deve ser Vivianne, acredito — Fernanda a encarava com certo desdém — Já ouvi muito sobre você. A freira que virou a cabeça de Pedro — Sorriu com ironia.

— Saia daqui, Fernanda. Não tem nada que fazer aqui! — Pedro esbravejou.

— Porque tanta hostilidade? Não creio que sua namorada se importe que a mãe de seus filhos venha te visitar.

— Ela pode não se importar, mas toda vez que minha vida cruza com a sua alguma tragédia me acontece! Não está vendo o resultado de nosso último encontro? — Referiu-se a sua situação.

Último encontro? Pensou Vivianne. Pedro ainda se encontrava com ela? Cruzou os braços diante de si e abaixou o olhar.

— Está me culpando por sua irresponsabilidade?

— Apenas te mandando embora. Volte por onde veio, por favor — Repetiu enfaticamente — Não volte a nos incomodar.

Fernanda os encarou um tanto receosa, sem disfarçar a maneira como odiava Vivianne pelo olhar. Não se conformava em ver Pedro ao lado de uma mulher tão diferente de si, bonita e que nitidamente era muito amada.

— Fico feliz em te ver melhor, Pedro. Com licença.

Fernanda saiu do quarto e não se deixou vencer. Esperou muito tempo até poder encontrar Vivianne a sós no corredor, após o horário de visitas se encerrar. Puxou-a pelo braço quando ex-noviça passou por ela e nitidamente a assustou.

— No que posso ajudá-la? — Vivianne questionou ao vê-la.

— Não se faça de sonsa, menina. Nós duas queremos o mesmo homem, aliás, você quer o meu homem!

— Você e Pedro já se divorciaram. Ele é livre — Relembrou em tom ponderado, mantendo sua postura firme.

— O que foi que você fez com ele, hein? O que foi que fez para que Pedro caísse aos seus pés assim? O que fez para que ele te amasse dessa maneira?

Vivianne pensou por alguns segundos antes de respondê-la.

— Talvez eu tenha reconstruído os pedaços que você quebrou, já pensou nisso? — Continuava calma e sem entrar na pilha de Fernanda, que nitidamente desmoronou emocionalmente com a sentença — Se você o ama, porque o culpou de uma coisa que sabe que ele não fez por querer? Se você o ama, porque o acusou diante de todos que ele amava para difamá-lo? Se o ama, porque o abandonou quando Pedro mais precisa de ajuda? Se o ama... Porque está aqui agora, quando o que menos ele quer é te ver? — Fernanda não soube o que dizer. Travou-se diante das palavras dela — Você não o ama... O que tem é interesse na fama e nos bens materiais que Pedro possui, por isso não me importo em estar no lugar que está reclamando os direitos. Você perdeu todos eles!

— Acha mesmo que Pedro será feliz ao lado de uma menina como você? — O tom ríspido de Fernanda não tirou Vivianne do sério — Sabe como Pedro era antes, não sabe? Ele gosta de festas, de amigos, de bagunça e nunca consegue ficar com uma mulher só! Pedro gosta de mulheres experientes, bonitas e sofisticadas! Mesmo que diga que te ama... Ah... Ele diz isso para todas! — Ironizou — Pode ser que realmente goste de você porque o tirou do buraco, mas logo vai se cansar e ir atrás de uma nova aventura.

— Pedro mudou.

— Mudou? Já ouvi isso tantas vezes... — Seguiu em tom irônico — Você é muito ingênua, menina, em achar que dá conta de um homem como aquele! Quando se cansar de você rapidamente irá atrás de uma mais gostosa, mais interessante e aventureira... Mais mulher! Você é só o momento, por isso sei que em breve passará. Não viu que Pedro e eu nos encontramos? Pois é... Tudo voltará ao normal entre nós cedo ou tarde!

— Realmente... — Suspirou — Tenho pena de você e lamento muito por não ter um pingo de Deus no coração.

Fingiu não estar abalada quando deu as costas a ex esposa de Pedro, mas no fundo de sua alma sentia-se profundamente confusa.

Sentou-se em uma das cadeiras no corredor e se pegou pensando se ela teria razão. Seu irmão também pensava o mesmo... Acreditava que Pedro não era homem para ela por ser um arruaceiro. Suspirou e cobriu os olhos com as mãos ao pensar se estava se enganando. Ele mudou, afinal. Acreditava em seu amor e era isso que Pedro vinha provando todos os dias. Voltou para o quarto de Pedro no restante do horário para se despedir.

— Estava chorando? — A pergunta dele foi direta — O que aconteceu?

— Sua ex me disse coisas horríveis — Não sabia mentir, por isso entregou de uma vez.

— Não acredito que deu ouvidos para Fernanda!

— Não acredito que tenha se encontrado com ela novamente! — Pedro parecia desacreditado.

— Ela foi até meu apartamento me perturbar! Jamais tive qualquer coisa com ela depois que nos separamos e não iria querê-la nem se fosse a última mulher no planeta! A única que quero é você!

— Ela me disse que você vai se cansar de mim e ir atrás de uma mulher do seu tipo... — Tentava ser forte, pois tudo era muito doloroso e falava diretamente com seus medos — Disse que não sou mulher para você porque seu estilo é bem diferente e sabe... Todo mundo diz a mesma coisa!

— Você só pode estar brincando, não é, Vivianne? — Pedro não acreditava que ouvia tais palavras e foi dominado pela indignação — Sabe de uma coisa? Sou um completo idiota! Eu deveria ter te feito minha de uma vez para acabar com suas dúvidas, mas não... Fui dar uma de bom moço e acabei na pior!

— Talvez você devesse ter feito isso mesmo, Pedro. Assim já teríamos acabado com isso para sempre! — Esbravejou.

— Tentei provar o meu amor e você ainda duvida!

— Não sou como elas e você sabe! Não vou saber ser descolada, comunicativa e muito menos experiente! Você é o único homem que conheço mais intimamente — Dizia nervosa.

— É por isso que te amo — Tudo parecia óbvio para Pedro.

— Será? Todos acham que você vai se cansar de mim e do meu jeito conservador.

— Diga a todos que eles estão errados. Se existe uma certeza em meu coração é que te amo... E se eu for infeliz por isso um dia... Paciência!

Vivianne aproximou-se para dar um beijo no rosto dele com carinho antes de sair. Mesmo sob as súplicas dele, não conseguiu manter-se livre de seus pensamentos plantados por Fernanda com maldade.

Saiu do hospital um tanto perdida em meio ao caos da cidade, sem saber para onde se dirigir. Caminhou pela calçada até o primeiro ponto de ônibus e sentou-se ali observando tudo ao redor. O único lugar que tinha como destino era o apartamento de Pedro e combinou com Paola ligar para que a buscasse, porém não sentia vontade de retornar. Levantou-se rapidamente quando viu o ônibus que costumava passar na porta do Hospital da Graça e acenou para o mesmo.

Subiu no ônibus sem pensar muito, sentada na janela enquanto o mesmo percorria seu trajeto em meio a São Paulo barulhenta. Era uma estranha no ninho, porém não mais um pássaro enjaulado. Agora tinha liberdade e precisava usufruir dela. Desceu na porta do Hospital e viu irmã Júlia conversando com algumas freiras e pacientes. A mesma rapidamente a reconheceu e correu a seu encontro.

— O que está fazendo aqui, Vivianne? A madre me disse que você tinha voltado para casa — Após o abraço, Vivianne segurou nas mãos dela com carinho.

— Precisei vir para São Paulo e resolvi passar por aqui. Sabe se a madre está no gabinete?

Júlia caminhou com ela pelos corredores narrando às novidades do local e Vivianne se sentiu absurdamente em casa com tudo aquilo. Não queria ser freira, mas aquele foi seu mundo por vinte e dois anos e era sua zona de conforto. Sentia-se em paz e familiarizada com todos.

— Você está tão linda, irmã! Deveria ser modelo! — Uma das adolescentes que cuidava na área dos internos comentou ao vê-la usando uma roupa que não fosse à bata do convento.

Todas as enfermeiras e pacientes que trabalharam ao lado dela no hospital pararam para perguntar quando retornaria às atividades e Vivianne soube que a parte dela que chorava por dentro era de saudade de seu trabalho. Amava seus pacientes, sua missão de ajudar e as histórias que deixou para trás. Talvez seu lugar fosse trabalhando ali, de fato.

— Um bom filho a casa torna, não é querida?

Abraçou a madre superiora quando a viu na porta do jardim e não pôde evitar algumas lágrimas ao fazê-lo. A madre era o mais próximo de uma mãe que tinha, uma vez que a sua verdadeira jamais foi tão zelosa com seus sentimentos. Ambas sentaram-se em um banco sob uma árvore e finalmente ficaram a sós.

— Me desculpe por vir sem avisar, mas é que não tinha mais para onde ir... — Disse após toda emoção.

— Como está Pedro? Soube do acidente...

— Está melhor, graças a Deus! Orei muito para que se recuperasse.

— Foi por isso que voltou a cidade? — Vivianne concordou — Ainda não se acertaram?

— É tudo tão complicado, madre — Confessou um tanto envergonhada — Tenho medo. Tenho muito medo...

— Medo do que, filha? — Suspirou comovida pelas lágrimas da noviça.

— Tenho medo do que sinto por Pedro e mais medo ainda de fazê-lo infeliz — Não conseguia encarar a madre — Ele é um homem do mundo... Cantor, compositor, famoso, cheio de amigos... E eu? Sou uma menina do interior criada em colégios religiosos que quase se tornou freira. Sou conservadora e bem diferente de tudo que ele está acostumado.

— Por acaso você o enganou alguma vez? — Vivianne não compreendeu de imediato — Não foi por essa Vivianne que Pedro se apaixonou?

— Sim... Mas é tudo tão confuso! — A madre segurou nas mãos dela com carinho.

— Pelegrini é um bom homem. Não creio que te enganaria, minha filha. E, por outro lado, todos corremos o risco de nos enganar! Você mesma não se enganou por vinte anos achando que seria freira, quando na verdade sabia que não servia para isso? — Vivianne concordou — Pois bem... Todos estamos sujeitos.

— Eu sei, madre.

— Ter medo te impede de viver. Ter medo não te leva para lugar algum — Dizia seguramente — Dê tempo ao tempo. Deixe Pelegrini se recuperar do acidente e veja o que acontece em seguida.

Talvez fosse realmente o melhor a ser feito, pensou. Concordou com as palavras da madre.

— Posso ficar aqui por enquanto? A senhora permite?

— Claro, querida. Aqui sempre será sua casa e seu trabalho está te esperando! — Sorriu animada — Você pode ficar com as internas até se estabelecer na cidade e retomar as atividades, se quiser.

— É o que mais quero... Voltar a trabalhar — Respirou aliviada.

— Mas sabe que a primeira coisa que Pedro fará quando sair do hospital é vir atrás de você, não sabe? — Vivianne suspirou.

— Ele está bravo comigo. Acho que não acredita mais em meus sentimentos devido a minhas dúvidas e medos. Talvez ele perceba que nós realmente não somos feitos um para o outro.

— É isso que você acha? — Vivianne concordou e a madre sorriu — Está falando isso do homem que ousou se apaixonar por uma de minhas noviças, deu uma surra em um de meus padres e ainda o mandou para cadeia! — A moça gargalhou lembrando-se dos feitos de Pedro — Aquele maluco te ama, filha. Ele virá. Se de uma coisa estou segura é de que ele virá...

 


P edro não sabia mais o que pensar em relação à Vivianne.

Estava seguro que a amava, mas não tinha certeza se os sentimentos dela condiziam com os dele. Porque tinha tanto medo? Porque não conseguia se entregar a história deles sem reservas e questionamentos?

Doía saber que não a tinha por inteiro e que suas dúvidas superaram seu amor, mas tentava compreender que ela jamais havia estado apaixonada ou inserida em tal situação. Sentia-se frustrado pela pequena discussão que tiveram e por estar internado em um hospital sem poder aclarar as coisas.

— Você a encontrou? — Questionou a Paola assim que a mesma passou pela porta de seu quarto.

— Sim — Disse mais calma — Adivinha onde ela está?

— Onde?

— Voltou para o convento — Paola sentou-se ao pé da cama dele e encarou a expressão transtornada do irmão, que ainda usava o braço engessado e tinha alguns curativos espalhados na bela face — Porque essa cara? Pelo menos não voltou para a cidade dela.

— Pior ainda... Voltou para o convento! — Não parecia crer — Depois de tanto insistir, já estou ficando cansado.

— Qual é, Pedro? Você achou que tudo seria fácil? — A ironia de Paola o constrangeu — Você se envolveu com uma quase freira... Acorda! A menina não é qualquer uma. Não ia cair na sua cama de graça e se casar com você no dia seguinte! Ela tem valores diferentes dos nossos... É diferente!

Considerou as palavras de Paola em silêncio.

— Ela acha que não seria capaz de me fazer feliz — Disse após pensar um pouco — Não compreende que mudei. Acha que sou o mesmo homem que era casado com Fernanda.

— Vai ser difícil, mesmo ela tendo presenciado sua mudança, a cabeça dela é muito confusa por tudo. Vivianne não conhece o mundo além dos muros do convento. Acho melhor você... — Calou-se, não querendo desestabilizar o irmão.

— Termine o que ia dizer... — Incentivou.

— Acho melhor você dar espaço a ela... Ou sair fora de uma vez — Falou rapidamente — Talvez ela tenha razão. Talvez seja um conflito muito grande a realidade de vocês e tudo desmorone de verdade.

— Acha que eu não a amo o suficiente para sossegar? — Paola deu de ombros.

— Sei que você é teimoso e quando encasqueta com algo não desiste até conseguir o que quer... Talvez tenha encasquetado com essa menina e está teimando para não perder — Arriscou — Sabe que sou a presidente do fã clube de vocês... Mas ela não acredita em seus sentimentos.

— E olha que tentei provar... Não fiz amor com ela quando tive chance para que ela não pensasse que eu apenas queria sexo, mas olha aí... — Paola mostrou-se desacreditava.

— É sério? — Pedro concordou — Mas você é um idiota...

— Você acha?

— Então é por isso. Vivianne não conhece de fato o amor, por isso está abrindo mão dele.

— Se ela está jogando nossa história para o alto vai ter que dizer isso olhando na minha cara — Convicto, Pedro parecia mais seguro do que nunca.

— Como assim? — Sobressaltou-se — Vai continuar insistindo nela?

— Vou até o convento para conversarmos uma vez mais. Só que vai ser uma conversa mais aberta.

— Pedro... — Paola dizia com cautela — Já pensou que ela pode não te querer?

— Se ela não me quiser você me segura, porque vou voltar a ser mais louco do que um dia já fui... Muito mais... — Os olhos verdes brilharam em verdade — Se Vivianne não me quer, nada mais me importa. Vou quebrar tudo e me acabar de uma vez.

— Era só o que me faltava — Paola suspirou levando as mãos ao rosto — Melhor eu começar a orar para santa Vivianne. Você ficou louco de vez, foi isso?

— Sempre fui, Paola. Sempre fui.


Tudo ali lembrava Pedro, por isso Vivianne não foi capaz de esquecê-lo durante um só momento.

Temia morrer sufocada por seus desejos, uma vez que todas as noites antes de dormir se lembrava das carícias dele e dos breves momentos onde esteve em seus braços fortes. Pedro tinha razão! Se houvesse sido dele antes, talvez seus medos agora não existissem. Ainda tinha a chance de dar um passo para trás e voltar a ser noviça, mas realmente não pensava em tal possibilidade. A única coisa que sabia é que tinha magoado Pedro profundamente com suas incertezas e ele talvez não voltasse a procurá-la.

Algumas semanas se passaram desde que o viu pela última vez e não houve sequer uma ligação. Paola falou com ela brevemente quando Vivianne ligou para saber da saúde de Pedro e não deu mais detalhes sobre o que o irmão sentia. Demonstrou-se desapontada com sua partida, mas não fez mais comentários. Pedro estava sofrendo além da conta e a culpa era dela.

Por sorte estava se recuperando e acreditava que aquela altura já estava em casa, livre da internação.

— Parece triste, Anne — Frida comentou sentando-se ao lado dela na quadra.

Vivianne acompanhava as crianças do hospital em uma atividade ao ar livre. A única coisa que a fazia feliz no momento era estar com seus pacientes e trabalhando vinte e quatro horas de seu dia. Agora não usava mais o vestido azul, apenas calças jeans confortáveis, vestidos leves e sandálias frescas. Adorava combinar as roupas e pendurar broches em seu jaleco... Tudo tinha a ver com sua liberdade. Agora a chamava de doutora Anne, não mais noviça Vivianne. Tudo era diferente e muito mais animador.

— Não é nada, amiga — Sussurrou com olhos baixos — É só...

— Ele. Pelegrini — Frida arriscou certeiramente — Ele não veio atrás de você como um cachorrinho.

— Talvez assim seja melhor. Talvez ele tenha percebido que nós dois não somos feitos um para o outro — Comentou olhando as crianças brincarem entre si — Apenas me pergunto que um dia serei capaz de me apaixonar por alguém como me apaixonei por ele...

Sua tristeza aparente comoveu Frida, que tocou seu ombro com carinho.

Amava Pedro com tamanha intensidade que apenas mencionar o nome dele já fazia acelerar seu coração. Cada passo de seu dia era pensando nele e se pegava emocionada quando se recordava de seus bons momentos juntos. Foram poucos meses, mas viveu intensamente cada emoção e suspirou ao lado dele. Ninguém nunca a faria tão feliz.

— Não acredito que Pedro desistiu tão fácil, mas se ele o fez é porque realmente não daria certo.

— Somos muito diferentes e ele sabe disso.

— Olha isso... — Frida colocou sobre o colo dela uma revista publicada naquele dia — Acabei de ver na biblioteca do convento. Todo mundo estava falando sobre isso.

Vivianne apanhou a revista e leu rapidamente.

“Pedro Pelegrini de volta aos palcos”.

Uma foto dele era exposta em destaque na capa de uma famosa revista de música e Vivianne o admirou por um longo tempo. Estava lindo usando uma jaqueta de couro marrom, os olhos verdes brilhando e o cabelo ajeitado. Tratava-se de uma imagem recente, uma vez que ainda tinha os arranhões do último acidente lhe decorando a face. Engoliu em seco pela visão e pegou-se pensando como nunca antes tinha reparado na fama de Pedro.

— Pedro... — Suspirou tocando a foto dele com carinho — Que saudade!

— Pensei muito se deveria te mostrar ou não, mas você ia ver de qualquer maneira.

Vivianne abriu na página da entrevista onde Pedro falava rapidamente sobre sua volta aos palcos com os amigos da banda e dizia que seria uma pequena turnê. Seu foco agora eram as composições e estava entregando muitas músicas a nomes famosos. Não pôde fugir de perguntas sobre os meninos, o acidente e todo o resto...

Pedro falava sobre ela e sobre como o amor havia mudado sua vida. Sobre perdas, danos e a força que a recuperação exigia. Seus planos eram claros... Compor, cantar e seguir em frente. Não disse nada sobre ela além de que foi de grande ajuda, sem citar seu nome, é claro.

Vivianne engoliu em seco após fechar a revista. Pedro estava em casa e até mesmo dando entrevistas por aí. Não havia ido procurá-la e pegou-se pensando se era ela quem deveria ir atrás dele naquele momento.

— Você vai procurá-lo?

— Acho que Pedro não quer mais me ver.

— Ele sabe que você é tímida e não queria te expor. Acho que isso significa muito.

— Frida, preciso ir reunir as crianças. Com licença.

Vivianne não disfarçou a tristeza. Sim, havia perdido Pedro por seus medos e insegurança. Correu para o convento quando deveria ter corrido para seus braços e talvez isso ele não perdoasse.

Terminou seu trabalho e voltou para o quarto que compartilhava com algumas internas de modo a chorar em silêncio. Tocou seu colar de cruz prateada e lembrou-se imediatamente da primeira vez em que ele disse claramente que gostava dela. Não conseguia afastá-lo. Não conseguia não amá-lo. Pelegrini viveria para sempre perambulando por sua perdida memória.

Foi fraca, medrosa e incapaz. Foi tudo que jamais deveria ter sido. Fernanda tinha razão... Ela não era mulher para Pedro. Não sabia como lutar por ele contra si mesma.

— Vivianne? — Abriu a porta do quarto ao ouvir a irmã Júlia lhe chamar — Vamos. Vai ter uma palestra no teatro.

— Que palestra? Ninguém me avisou nada! — Fechou a porta atrás de si e saiu com a irmã.

— É algo de última hora... Sabe como é a madre — As duas desceram e Vivianne notou que muitas pessoas se aglomeravam até mesmo na porta do lugar para assistir a tal palestra, algo totalmente atípico para o lugar.

— Quem é o palestrante? Pelo visto é bem famoso — Comentou seguindo Júlia e estranhando que a mesma a levou para um assento nas primeiras fileiras.

Não teve resposta, uma vez que ao chegar, as luzes começaram a iluminar a escuridão do palco e a madre superiora apareceu nele com sua simpatia corriqueira.

— Muito obrigado por estarem aqui, queridos. Sei que o evento é de última hora, mas o palestrante de hoje é uma pessoa bem enxerida e maluca, que certamente não me avisou nada antes de aparecer aqui e pedir uma oportunidade na cara e na coragem — Todos riram e Vivianne estranhou — Quando conheci essa pessoa algo em meu coração me dizia para ajudá-lo, mesmo contrariando a todos os profissionais que eu conhecia — Vivianne estremeceu — Não me arrependo, pois sei que foi um chamado de Deus... Apenas Deus pode usar as pessoas de tal maneira para transformar vidas como acontece aqui dentro. No caso dele, tivemos Deus e o verdadeiro amor... Espero que todos desfrutem da palestra de meu grande e querido amigo, senhor Pedro Pelegrini.

Vivianne quase caiu da cadeira ao vê-lo entrando no palco e cumprimentando a madre. Era corriqueiro ex-internos que voltaram à vida social de maneira satisfatória fazerem palestras de incentivo aos internos atuais, no entanto, Vivianne sentia que algo diferente acontecia ali.

Pedro usava calça jeans, camiseta preta e jaqueta de couro. Tinha um belo sorriso estampado na face, os olhos ainda mais verdes do que ela se lembrava. Era como se pudesse sentir seu cheiro másculo e tocar seus ombros largos... Vê-lo significava querê-lo. Naquele momento tudo o que desejava era ir até lá e se afundar em seus braços.

— Eu disse que ele ia aparecer... — Frida sussurrou aparecendo próxima dela.

Vivianne engoliu em seco quando seus olhos cruzaram com os dele. Seu coração corria no peito e a emoção a tomava. Estava muito melhor do que da última vez e parecia feliz.

— Sei que muitos aqui me conhecem como um dos caras mais problemáticos que já passou por aqui e o restante como o cara que bateu no padre Kabele e o mandou para cadeia... — Todos riram — Mas acreditem... Por trás de tantos dramas existe uma história real como a sua.

Todos os assistiam em silêncio. Vivianne teve a certeza de que Pedro nasceu para ser aplaudido. Sobre um palco ele dominava tudo totalmente.

— Todos sabem que perdi meus filhos gêmeos em um acidente há três anos... Mas acho que nem todos sabem o que significa de fato essa dor. Um dia, ao perder meus pais quando jovem, pensei que nada pudesse ser tão desafiador... Até me deparar com a perda daqueles que ganhei como recompensa. Daqueles que eu amava mais do que a mim mesmo — Dizia um pouco emocionado — Foi como se todas as luzes se apagassem ao meu redor e nada... Nada... Poderia fazer aquela dor passar. Nada! Não existia mais nada ao meu redor para me segurar e acabei me prejudicando fisicamente com álcool e drogas em busca de aplacar minha culpa. Confesso que aquilo era bom, entorpece o suficiente para apagar a dor por alguns instantes, mas não para sempre. O que quero dizer? Se você, assim como eu, tem uma dor profunda e inabalável, saiba que o único jeito de arrancá-la é cortando o mal pela raiz. Todo o resto não passa de uma ilusão. Você precisa ir ao mais profundo da dor e puxar tão forte até não sobrar nada.

Vivianne o assistia sem conseguir desviar o olhar.

— Não é tão fácil fazer, sei disso. Confesso que se não fosse pela madre superiora e por sua fé em mim nada disso teria acontecido... Através da madre cheguei a este lugar e foi aqui onde minha dor começou a ser podada por mãos sábias e doces... Pelas mãos daquela que a madre dizia ser minha última esperança — Vivianne não sabia como agir, apenas sentia-se dominada pela emoção — No início não compreendi o que a madre queria dizer com “última esperança”, mas vejo que fez todo o sentido. Se Vivianne Grace não houvesse aparecido em meu caminho talvez hoje eu não estivesse aqui enchendo o saco de vocês e contando essa história.

Todos riram e ele também.

— Era só uma noviça de um metro e sessenta, com olhos lindos e muita inteligência... Mas mudou completamente minha maneira de ver o mundo. É por ela que estou aqui — Confessou, afinal — É por ela que estou falando. Vivianne cruzou meu caminho meigamente, tentando de todas as forças me ajudar com as armas que podia. Evite. A rechaçar. Chegou uma hora que ela mesma se perguntava se aquilo daria certo e, quando se viu sem armas para lutar, resolveu apelar para algo tão antigo quanto o mundo... A gentileza. Sei que vocês esperam minha história de superação, mas ela vem a partir do amor que passei a sentir por aquela doce noviça quando a mesma me entregou um girassol atrelado a um versículo da bíblia em uma tarde ensolarado ali no jardim — Dizia com a voz carregada de amor — “Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para perdoar e nos purificar de toda injustiça.” 1 João 1:9 . Era o que dizia o bilhete. Aquela simples mensagem entrou em meu coração de maneira que nenhum outro tipo de tratamento considerado eficaz conseguiu, tornando-me suscetível a todo o resto. A gentileza de Vivianne me conectou com Deus, permitindo-me enxergar que meus filhos habitam em meu coração para sempre, que vamos nos reencontrar e que a culpa não foi minha.

Aplausos se fizeram sob suas palavras e Pedro parou para ouvi-los.

— Ela me ensinou que devemos nos desprender do passado e dar chance ao futuro, do contrário, não vale a pena viver. Cada dia recebemos o presente de estar vivos, respirando e escrevendo mais uma página de nossa história, que talvez ainda esteja esperando para ser escrita. Vivianne Grace foi minha última esperança e, graças a Deus, deu certo. Não por técnicas infalíveis da psicologia ou qualquer coisa que possa ser explicada... Deu certo por sua vontade de ajuda, por sua paciência em esperar o meu tempo e pelo empenho de conseguir. Deu certo porque usou de gentileza, bondade e amor... Ela me livrou das trevas e trouxe luz ao caminho. Me mostrou que temos de oferecer o que temos de melhor e que estamos aqui, neste mundo, para ajudar. Apenas para ajudar e ser feliz.

Aplaudiram novamente e Pedro sorriu em direção a ela.

— Consequentemente me apaixonei por ela e agora possa falar isso publicamente. Sim... Se você me achava louco, saiba agora que me atrevi a olhar para a mais querida pupila da madre superiora e me apaixonei como o maluco que sou — Confessou animado — Como não me apaixonar? Trata-se da criatura mais linda, doce e com os mais belos olhos que eu já vi... — Pedro sorriu quando todos fizeram barulhos sugestivos. O rosto de Vivianne queimava em timidez, mas também em felicidade — Estou aqui para dizer que o amor é a mais eficaz arma para nos tirar do buraco. Não há nada mais poderoso no mundo que o amor e se você tem alguém para amar, meu querido ou querida, vale a pena lutar. Seja um filho, um pai, uma mãe, um cachorro, um marido, uma esposa... Lute! Se existe amor, lute até o final e até as forças se esgotarem. Eu, Pedro Pelegrini, sou a prova viva de que o amor vale a pena. O amor pode curar. O amor... O amor salva como Vivianne Grace me salvou.

Novamente aplausos e Pedro desceu um pouco, até ficar na altura da arquibancada.

— Espero que minhas palavras tenham ajudado um pouco vocês, meus amigos, mas confesso que o principal motivo de eu estar aqui hoje é um... — Aproximava-se de Vivianne, que o encarava fixamente sem conseguir se mover — Vim saber se essa mulher incrível que me cicatrizou aceita, definitivamente, ser minha para sempre.

— Pedro... — Vivianne disse um tanto nervosa — Você é maluco! — Colocou-se de pé e foi até ele lentamente.

O rapaz tirou do bolso da jaqueta uma caixa de veludo vermelha e abriu-a, revelando um anel de brilhante em ouro. Vivianne não escondeu a surpresa e o sorriso.

— Sou mais maluco ainda por você... — Sussurrou apenas para ela, longe do microfone — Você aceita, Vivianne? Aceita se casar com esse maluco aqui que precisou vir até um convento para encontrar a mulher de sua vida?

Todos ao redor diziam para ela aceitar e Vivianne sorriu emocionada.

— Pedro... Pensei que estivesse com raiva de mim — Disse apenas para ele, que negou.

— Eu disse que iria até o inferno por você... Mas não foi preciso porque foi você quem me tirou de lá. Por você vou apenas até o céu. Foi de lá que você veio — Vivianne não esperou mais nem um instante para laçá-lo pelo pescoço e beijá-lo como vinha sonhando há dias.

— Você, Pedro Pelegrini... Você também foi minha última esperança — Confessou apaixonada — Sim. Eu aceito ser sua para sempre.

 


P edro não pôde acreditar que Vivianne escolheu ser sua para sempre. A ex-noviça aceitou se casar com ele, mas por hora continuaria morando no convento até finalmente se casarem. Ainda era uma moça tradicional.

Pedro não quis esperar sequer um minuto. Viajou com Vivianne para a casa da família dela assim que Victor, o irmãos mais velho, os convidou para o casamento de Valentim. Viajaram até o mato grosso sem delongas e finalmente o rapaz conheceu um pouco da família tão conservadora de Vivianne.

Foi recebido por dois homens de dois metros, cabelos escuros e olhos claros como os dela. Os irmãos Grace não negavam ser parentes de Vivianne, assim como o bonito bebê loiro filho de Victor. Bianca, a cunhada e esposa de Victor, era muito cordial e gentil. Irma, mãe de Vivianne, achava que ele era um dos irmãos de Bianca e resolveram não insistir. Era melhor mantê-la em seu próprio mundo, uma vez que a velha senhora já tinha muita idade e não conseguia compreender as mudanças.

Pedro não podia mentir. Tinha a sensação de estar inserido em uma realidade paralela, uma vez que a cidade pequena estreitava a mente das pessoas por ali. Os irmãos Grace eram mais antenados que os demais, por isso não foi difícil conversar na mesma língua e convencê-los de que de fato era um novo homem. Victor, que acabara de ser pai, pôde compreender a dor que Pedro sentiu ao perder os filhos e se solidarizou com a história.

— Serei franco... Não acho que você seja o homem indicado para minha irmã. Pensamos que ela deveria se casar com um homem do campo como nós, que saiba cuidar da fazenda e do gado. Mas, se assim ela deseja, daremos total apoio. Apenas peço que não a faça sofrer. Ela é uma jovem muito doce e sofreria demais se alguém a magoasse. Não estou disposto a deixar que aconteça — Pedro assentiu positivamente às palavras dele.

— Te dou minha palavra que amo sua irmã e jamais a machucaria de qualquer forma. Estou disposto a provar que está enganado e que sou sim indicado para ela.

Victor apertou a mão que Pedro estendia a ele e ambos selaram a paz. Não podia sentir raiva de Victor Grace. Se tivesse uma irmã como Vivianne também iria desejar protegê-la. Se Paola sendo Paola - desbocada e dona de si - já despertava seus sentimentos de proteção, que dirá uma menina tão inocente quanto Vivianne! Tudo o que queria era conquistar a simpatia da família dela e por hora estava conseguindo. Certamente em um futuro próximo todos estariam devidamente em paz.

O casamento foi rápido, mas muito sofisticado e bonito, realizado ao ar livre e com as presença de quase toda cidade. Vivianne chorou muito com a cerimônia e Pedro se perguntou se a noviça não gostaria que o casamento acontecesse em sua cidade, com os seus. Vivianne não quis. Escolheu se casar em São Paulo, com uma festa para os amigos de Pedro e suas amigas de convento. A madre superiora seria presença ilustre e o padre da paróquia do convento o celebrante da união. Todos ali presenciaram sua história e eram eles sua querida plateia.

Concordou e contratou, mesmo de longe, pessoal para deixar tudo no jeito para a cerimônia o mais breve possível. Não aguentava mais, afinal, passar um dia sem estar com Vivianne. Ainda não consumaram o amor e ele sabia que ela esperava o casamento. Esse era o preço de se ter ao lado uma ex-noviça com olhos de anjo, mas estava mais do que disposto a pagá-lo.

— No final das contas gostei de sua cidade — Comentou Pedro enquanto os dois conversavam sentados a beira de um lago. Acabaram de andar a cavalo e apreciavam a beleza da paisagem próximos da cabana de repouso da família, um local pequeno e aconchegante para descansar de longos passeios pelas trilhas — É um lugar incrivelmente aconchegante. Foi ideal para concluir minha música. Devo dizer que virei um eterno admirador de tudo neste lugar.

— Uma música, é? — Pedro concordou com um sorriso sem vergonha — A música que estava escrevendo misteriosamente por esses dias?

— A própria — O tempo não estava muito aberto naquela tarde. As nuvens revoltas indicavam que viria uma chuva muito em breve, principalmente a julgar pelo tempo cinzento — Devo dizer que você é muito observadora, senhora Vivianne.

— E quando poderei ouvi-la? — Ansiosa, analisava a expressão dele.

— Apenas quando lançar oficialmente.

— Para quê tanto mistério? — O abraçou com carinho pelos ombros e ele a enlaçou pela cintura.

— Para ficar mais emocionante. Sabe que adoro grandes emoções — Comentou olhando para o céu.

— É claro... Se apaixonar por uma noviça, talvez, seja bem emocionante!

— Foi complicado, devo dizer, mas deu certo no final — Piscou para ela de maneira emocionante.

Era como um sonho para ela ter Pedro por perto, em sua cidade. Mais inacreditável era presenciar seus irmãos o tratando com educação e como parte de família. Sentia-se imensamente feliz em saber que estava livre de suas amarras verdadeiramente e poderia ser feliz ao lado do homem que Deus designou para ela.

— Acho melhor voltarmos. A chuva vai começar em instantes — Recordando-se do grande trauma de Pedro para com tempestades, Vivianne o puxou pela mão apressadamente, mas o rapaz foi rápido em contê-la.

— Espera — Segurou-a pela cintura um tanto decidido demais.

— Mas Pedro... Vai ser uma tempestade... Você sabe... — Insistiu por se lembrar que era justamente naquele momento em que as feridas dele se abriam.

Era como se o dia do acidente fosse revivido na mente dele cada vez que a chuva caía e Vivianne não estava disposta a vê-lo ter uma crise após tanto tempo. A mão de Pedro a segurava com astúcia e não compreendia qual era a intenção dele em não partir. O coração dele sangrava e suas feridas ardiam, mas o rapaz sentia que era o momento perfeito para enfrentar, também, aquele grande fantasma.

— Vamos ficar — Sussurrou quase em uma súplica. Os olhos verdes do rapaz brilhavam sob a luz do final de tarde, abaixo das cinzentas nuvens. Vivianne tomou seu rosto entre as mãos com carinho.

— Mas Pedro... Isso não é demais para você? — Era possível ver seu semblante de luta interna, porém Pedro se manteve firme e muito convicto.

— Ao seu lado eu enfrento qualquer coisa — Garantiu emocionado.

Vivianne o abraçou pelos ombros no exato momento em que a chuva começou a cair sobre ambos em pingos grossos e vistosos. A água gelada contra a pele era um acalento naquele tempo seco e quente do interior, por isso a moça gemeu de satisfação. Pedro, por outro lado, abraçou-se ainda mais a ela e apertou os olhos com a incrível sensação.

Não sentia dor.

Não sentia medo.

Ainda estava ali, firme, e sentia o chão bem posto a seus pés.

O mundo não acabou de novo, ao contrário. Sentia toda sua vida presa entre seus braços.

Um belo sorriso desenhou os lábios de Pelegrini após tamanha emoção. Era capaz de dominar a si mesmo. Era capaz de enfrentar seus medos e ficava ainda mais forte ao lado daquela mulher que tanto amava. Tocou o rosto de Vivianne ao ver lágrimas nos olhos dela. Somente ela sabia como aquele momento era importante para ele. Somente sua noviça poderia mensurar a grande vitória que estar ali, sob a chuva, significava em sua longa jornada.

Pedro Pelegrini já não era refém de seus medos e nada... Absolutamente nada... Seria capaz de amordaçá-lo novamente. Voltava a ser forte... Voltava a estar realmente vivo!

A água da chuva caminhava pelos corpos de ambos quando os lábios se encontraram em um beijo quente e apaixonado. Vivianne sentia o coração correndo no peito e jamais se sentiu tão sedenta pelas carícias de Pedro como naquele momento, ali, sob a chuva. Penetrou os dedos pelos cabelos escuros com voracidade e aprofundou o beijo com urgência.

— Te amo, Pedro — Sussurrou contra os lábios dele, já sem ar pelo beijo — Te amo... E também não quero ser refém de mais nada!

— Do que está falando? — Feliz com as palavras dela, que dificilmente dizia amá-lo com tamanha intensidade, não hesitou quando a ex-noviça o puxou carinhosamente até a cabana há poucos metros dali — Vivianne...

A moça o abraçou novamente sob a chuva quando pararam em frente a entrada.

— Estamos sozinhos com nosso amor — Sussurrou as palavras ao ouvido dele e Pedro teve de apertar os olhos com a intensidade do desejo que o assolou — Ninguém pode nos ver ou ouvir. Ninguém, senão nós dois...

— Mas o casamento... Eu prometi... — Ela pousou um dedo sobre o lábio dele, que a encarou sob a chuva com expectativa.

O cabelo escuro colava-se ao rosto angelical de Vivianne e os olhos azuis cintilavam de paixão. Ela implorava por seu amor em silêncio, cansada de esperar. Segurou sua mão com carinho e o beijou com todo seu amor.

— Por favor, Pedro. Não tem nada no mundo que você quisesse mais do que se libertar... — Referiu-se aos medos que ele carregava — E não tem nada no mundo que eu deseje mais do que ser sua... Por inteiro... Com meu corpo e minha alma.

Vivianne tomou a mão dele e levou até seu coração, segurando os dedos dele nos seus com carinho. Pedro travou o maxilar e não pôde mais conter a si mesmo.

— Pedindo desse jeito fica difícil, Vivianne... Fica impossível! — O tom descontraído dele a fez sorrir, mas a brincadeira acabou no momento em que seus lábios se tocaram.

Pedro a enlaçou pela cintura com ainda mais voracidade e não pensou um minuto sequer no que deveria ser feito. Em meio a beijos, tropeços e carícias ambos chegaram à cabana e se dirigiram até o pequeno quarto. Havia uma cama singela com lençóis brancos e foi ali onde Pedro a deitou com rapidez e maestria. Vivianne segurou nos ombros largos quando se viu sob ele, atenta aos olhos verdes e ao barulho delicioso da tempestade. Pedro desprendeu delicadamente os botões do vestido dela, expondo partes de seu sutiã rosa e da pele delicada.

O cabelo escuro dele pingava quando o mesmo se ergueu para tirar a camisa por cima da cabeça e expor as belas tatuagens. Vivianne se moveu de modo a retirar o vestido e o sutiã, não esperando sequer que Pedro se ocupasse do feito. O rapaz se deitou novamente sobre ela ao vê-la, tocando-a com cuidado e maestria.

— Sabe quantas vezes sonhei com esse momento? — Sussurrou ao ouvido de Vivianne com a voz carregada de desejo — Foram tantas que sequer posso contar... Em meus sonhos você já foi minha milhões de vezes e além do imaginável.

— Eu não sei muito bem como sonhar com isso, mas se soubesse poderia dizer que te acompanhei de minha própria maneira — Pedro sorriu com as palavras.

— Ah, você não sabe? — Ela negou inocentemente — Então vem que vou te ensinar.

“Que Deus me perdoe, mas o casamento já está marcado!”.

Foi o que Pedro pensou antes de afogar em Vivianne todos seus desejos.

Jamais pensou que seria capaz de amar como a amava. Foi quase como um sonho tocá-la com seus lábios, descobrir seus pontos fracos e arrancar suspiros de prazer. Tantas e tantas noites em claro apaixonado renderam a eles um momento único e especial, tão intenso quanto a chuva que caía do lado de fora.

A bela Vivianne, sempre tão recatada e doce, mostrou-se ainda mais intensa em meio aos braços de Pedro e suspirando por cada roçar de pele ou esfregar de lábios. Pôde contar as tatuagens dele novamente enquanto o assistia tirando o restante da roupa e segurando em seu rosto com carinho.

— Acho que decorei suas tatuagens — Sussurrou sentindo o estômago cheio de borboletas pela sensação de tê-lo sob si, ambos desnudos de corpo e alma.

— Eu ainda vou te decorar... — A voz dele falhou pela maneira como seu corpo vacilava — Preciso de muito para nunca mais me esquecer que você é minha como jamais será de nenhum outro.

Foi o que Pedro disse antes de segurar uma das pernas dela ao lado de seu quadril e encontrar o ângulo perfeito para finalmente serem um só. Seu corpo renasceu enquanto o dela desabrochava para um mundo novo de sensações nos braços do único homem que amou em toda sua vida.

Ninguém jamais a amaria como Pedro a amava.

Ele estava completamente rendido a ela.

Vivianne segurou nos ombros largos conforme se adaptava aos novos sentimentos. Apertou os olhos pela ardência que se apossou e não pôde negar que foi pega de surpresa. Sonhou muitas vezes com aquele momento, mas em nenhum deles sentiu tanto desconforto. Comprimiu os lábios e concentrou-se no crescente calor que emanava do corpo forte de Pedro sob suas mãos. Ele jamais pareceu tão frágil... Tão entregue... Tão real.

Enfim sentiu-se completa.

Dos pés a cabeça.

Do início ao fim.

Não sabia onde ela começava e onde Pedro terminava. Aquela era a verdadeira beleza do amor criado por Deus. O amor que conheceu nos livros e hoje vivia intensamente.

Entregou-se a Pedro sem reservas, sem delongas, sem medo e sem razão. Tudo o que desejava era ser carregada pela avalanche de prazer e se afundar em meio aos braços fortes e tatuados daquele ferido homem que hoje a completava.

 


A vida de Pedro poderia acabar agora, uma vez que seria ele o mais realizado entre os homens.

Enfim podia dizer que era um homem liberto com todas as letras. Enfim podia seguir em frente sabendo que um resquício de felicidade o aguardava.

Ajeitou o smoking do casamento uma vez mais, olhando-se no espelho com orgulho e ansiedade. Paola passou a mão por suas costas e ajeitou a gola com cuidado, analisando-o dos pés a cabeça para se certificar que o irmão estava ainda mais bonito. A morena usava um belo vestido azul claro, assim como todas as outras madrinhas. Escolheram a cor por ser o mesmo tom do céu, algo muito especial e marcante para o casal.

— Não me lembro de ter ficado tão ansioso desde que os meninos nasceram — Comentou com a irmã entrelaçando seu braço no dela de maneira formal — Quando me casei com Fernanda tinha a sensação de estar indo para forca, mas agora é diferente...

— Agora você está casando com o amor de sua vida. Essa é a diferença — Paola sorriu e Pedro pôde ver lágrimas em seus olhos.

— Qual é, irmã? Nunca te vi chorar antes... Você sempre tão durona... O que foi? — Questionou tocado pela maneira como ela parecia emocionada.

— Eu sou durona... Mas também estou emocionada! Quando papai e mamãe morreram você praticamente sumiu de minha vida e depois com a chegada de Fernanda tudo piorou ainda mais — Dizia tentando conter as lágrimas — Os meninos eram nosso único elo e depois que eles partiram, sua vida parecia que iria pelo mesmo caminho. Cheguei a pensar que te perderia muitas vezes, mas graças a Deus e a Vivianne tudo mudou. Hoje somos irmãos de verdade e temos um ao outro — Pedro a abraçou com carinho — Não sabe como estou feliz de finalmente ter uma família. Eu, William, você e Vivianne.

— Lamento muito por ter sido um maluco inconsequente durante tanto tempo e ter esquecido o que realmente importava — A sinceridade de Pedro fez Paola derramar algumas lágrimas.

— Olha ai... Manchando minha maquiagem. Melhor pararmos com esse momento amorzinho antes que as pessoas estranhem os irmãos Pelegrini em harmonia — Ambos gargalharam e voltaram a postura anterior.

Pedro espiou a foto dos meninos em seu bolso antes de entrar na igreja. Com Fernanda não se casou na igreja, por isso pôde fazer a cerimônia como Vivianne sonhava na paróquia do complexo entre o hospital e o convento. Não fazia sentido ser em outro lugar, afinal. A madre superiora fez questão de organizar tudo da maneira mais especial e, obviamente, estava acomodada na primeira fila com as demais noviças e freiras que os acompanharam.

Certamente algumas pessoas acharam um absurdo Vivianne se desligar do convento para se casar com um ex-interno, porém a empatia com a bonita história de ambos mais comoveu do que escandalizou. O mesmo pôde ser dito em relação a família dela. Sua mãe, mesmo fora da realidade, foi trazida ao casamento por Victor e Valentim e parecia animada em meio aos convidados. Talvez não soubesse que era o casamento de sua filha, porém seu sorriso compensava o resto.

Frida, a menina desbocada e amiga de Vivianne, recebeu alta do tratamento e estava em pé no altar como uma das madrinhas da noiva. Seu parceiro era Parker, um dos amigos de Pedro que agora também era o novo namorado dela. Frida acenou para Pedro quando o mesmo se prostrou no altar para esperar a noiva.

— Maluco... — Sussurrou apenas movendo os lábios e ele sorriu acenando de volta.

— Eu disse que ia conseguir — Respondeu da mesma maneira e ela fez sinal positivo, deixando claro que jamais voltaria a duvidar dele.

Todos do convento, amigos e familiares de ambos estavam lá, mas nada foi capaz de tirar de Pedro a emoção de ver Vivianne tão linda e apaixonante vestida de noiva. Se não fosse sua noiva certamente a roubaria dali para sempre. A cada passo era capaz de se apaixonar ainda mais por ela, tornando-se um homem rendido pelo amor.

Vivianne parecia um anjo enquanto caminhava em sua direção com os braços entrelaçados aos do irmão mais velho. O vestido branco, o cabelo escuro e longo e os olhos azuis não deixavam dúvidas a Pedro que ela era um ser celestial.

Sua pureza, sua gentileza e sua bondade o salvaram. Seu amor o curou.

Lembrou-se da primeira vez que a viu entrando na sala da madre nervosa e com seus pesados livros nas mãos. Jamais imaginou que chegariam até ali. Jamais imaginou que se casaria com a bela noviça. Logo ele... Finalmente sossegou ao descobrir o verdadeiro sentido de tudo. A vida apenas fazia sentido quando refletida aos olhos de Vivianne, sua linda noviça - e agora esposa. Se um dia duvidou, agora jamais voltaria a fazê-lo. Aquela mulher de belos olhos claros, sorriso inocente e toque cálido foi certamente enviada pelo céu para mudar completamente sua vida e salvá-lo de suas trevas.


Vivianne não parava de olhar a aliança que decorava seu dedo anelar da mão esquerda junto a um belo anel de brilhantes.

Não conseguia acreditar que agora era de fato uma mulher casada com o amor de sua vida! Poderia parecer antiquado atualmente, mas para ela, que foi criada achando que o amor era pecado, tudo o que acabou de acontecer naquele incrível dia era o mais lindo sonho.

Pedro tomava banho e ela o esperava na cama ampla de casal usando uma bonita camisola branca que Paola lhe presenteou. A lua de mel de ambos acontecia em uma bela praia do nordeste, destino escolhido por ela, que nunca conheceu o mar. Todos os detalhes compunham o sonho, mas Vivianne tinha ciência de que um casamento não era apenas mil maravilhas.

Aproveitaria cada instante feliz e seria grata para sempre por ter sua família. Não podia imaginar uma riqueza maior, afinal.

Aquela era sua primeira noite casada e sorriu ao pensar que não seria sua primeira vez com Pedro. Encostou-se as almofadas da confortável cama ainda pensando em todos os acontecimentos recentes. Se lhe dissessem que se casaria com Pedro Pelegrini, o paciente problema, jamais daria a devida credibilidade.

Fechou os olhos ao se lembrar de como havia sido especial estar com Pedro pela primeira vez. Ainda se assustava com as lembranças e por tudo que aconteceu, mas aos poucos se adaptava aos intensos sentimentos. Não queria mostrar-se tão inocente e desprovida de experiência, mas era impossível, a julgar por sua criação.

O frio na barriga lhe perseguia ao pensar que em breve estariam juntos novamente, como marido e mulher, finalmente. Viu as coisas pessoais de Pedro sobre o criado-mudo ao lado e esticou-se para apanhar uma foto virada para baixo. Era um retrato dos meninos dele ainda pequeninos, tendo por volta dos quatro anos. Sorriu emocionada ao encarar o sorriso inocente e doce daquelas crianças e pegou-se pensando em como seriam seus filhos com Pedro.

Tudo o que mais queria após casar-se era dar um filho a ele para que o sentimento da paternidade aflorasse novamente em seu coração cheio de cicatrizes em relação ao tema.

— Vou cuidar bem dele, meninos — Beijou a foto com carinho — Eu prometo.

Sobressaltou-se quando Pedro saiu do banheiro apenas de toalha, com o peito nu e o cabelo molhado. O rapaz estreitou o olhar ao vê-la com a foto em mãos e se aproximou um tanto receoso.

— Tudo bem? — Comentou sentando-se ao lado dela. Vivianne se ajeitou na cama e concordou.

— Estava vendo uma foto dos meninos... Acho que é a que você sempre carrega — Deu de ombros e mostrou a ele o retrato. Pedro espiou e sorriu.

— Sim... É ela.

— Eles eram a sua cara... — Pedro concordou — Estava aqui pensando se nossos filhos também serão.

— Nossos filhos? — Questionou surpreso — Você por acaso está grávida? — A voz dele vacilou.

— Não... Ainda não! Você não é tão certeiro assim — Os dois riram e ele deu de ombros.

— Não duvide de minha capacidade, hein? — Vivianne o abraçou com carinho e ele retribuiu beijando-a sobre o cabelo — Não sei como seria ter outro filho... Não sei como reagiria — Seu comentário sincero a fez erguer o olhar.

— Acha que não está pronto? — Arriscou dizer.

— Nunca estarei pronto, apenas saberei como será no dia em que de fato acontecer. Na verdade, ninguém nunca está pronto para ter um filho — Beijou a testa de Vivianne com carinho.

— Você está certo... — Ele tocou um dos olhos dela com delicadeza.

— Tomara que nosso filho tenha seus olhos — Vivianne sorriu apaixonada.

— Tomara que não seja tão teimoso quanto você... Apenas tão bonito quanto — Beijaram-se entre as risadas.

— Se eu não fosse teimoso a ideia de termos um filho sequer existiria — Vivianne concordou.

— Obrigado por ter insistido.

— Aprendi com a mestre da persistência — Piscou para ela antes de voltar a beijá-la e cobrir o corpo frágil com o seu de maneira ansiosa.

— Você não vai se vestir? — Deslizou o dedo por uma das tatuagens no braço forte. Tratava-se de um clave de sol bem desenhado sobre o músculo.

— Para quê, se já vou tirá-la? — Vivianne sorriu envergonhada e ele lhe tocou o queixo — Preciso aproveitar agora, afinal, não estou mais em pecado — Mostrou a mão com a aliança antes de voltar a beijá-la e deslizar as mãos pelo corpo trêmulo.

O primeiro dia do resto de suas vidas terminou com uma noite apaixonada e regada de amor. Pedro perdeu a conta de quantas vezes a teve em seus braços por toda madrugada, mas sabia que nada poderia aplacar o fogo que guardou em seu peito durante tanto tempo.


Vivianne jamais esteve em um show antes, por isso sentia-se um pouco tonta com as luzes e a multidão de pessoas que gritava em frente ao palco.

Paola segurou em sua mão e a guiou entre as pessoas com cuidado, levando-a em direção a área especial onde pôde de sentar com mais calma e apreciar o ambiente criado para seu marido e a banda.

— Nunca pensei que Pedro fizesse tanto sucesso — Comentou ajeitando nos ombros a jaqueta de couro preta que ganhou dele antes de saírem de casa.

Não estava acostumava com música, principalmente rock, mas o estilo que Pedro vinha adotando a fazia se apaixonar. Agora cantava sobre o amor e recomeços, principalmente, tornando mais fácil se apaixonar pelas letras. Resolveu dar uma chance para conhecer um pouco do universo musical ao qual ele pertencia e não estava se decepcionando. Apesar de não ser o que mais lhe agradava, conseguia curtir e apoiá-lo ao necessário.

Orgulhava-se demasiadamente ao ver Pedro sobre o palco com seus amigos fazendo o que mais gostava após passar por tantos perrengues. Aquele lindo cantor musculoso e de olhos claros era seu marido e Vivianne sequer podia acreditar... A vida dava voltas realmente insanas, mas apenas se podia pegar agradecida.

— Hoje é a gravação do dvd. É um dia muito importante para os meninos — Paola respondeu animada, retocando o batom vermelho com empolgação.

Trabalhava no hospital de segunda a sexta-feira, por isso dificilmente acompanhava Pedro nos ensaios durante a semana e não sabia bem o que estava sendo proposto. A única coisa clara em sua mente era que Pedro parecia um rei diante dos súditos enquanto conversava com o público antes das canções.

Como um homem como aquele pode se esconder durante tanto tempo em uma vida tão infeliz?

A voz dele, já conhecida, soava ainda mais encantadora quando ecoava para multidões. Pedro sempre dava seu testemunho de fé e amor em meio às apresentações e obviamente falava dela. Já era conhecida do público e dos fãs, até chegou a participar de entrevistas e programas de televisão, porém ainda era muito tímida para tais situações. Deliciou-se com as canções e foi pega de surpresa um pouco antes de o show acabar.

— Queria dizer que não existe nada mais incrível do que escrever sobre o que amamos... — Com o violão pendurado em frente ao corpo e segurando sua palheta da sorte, Pedro falava já um tanto cansado e suado pela intensidade do show. Vivianne o encarava hipnotizada por sua beleza e apaixonada — Talvez escrever para quem amamos supere tal sensação. Passei quase três anos envolto por sombras e bloqueado por sentimentos terríveis, mas graças a Deus e a uma mulher incrível meu céu voltou a ser azul e pude me reencontrar com a música de novo.

Todos aplaudiram e Paola cutucou Vivianne. As duas riram enquanto o assistiam no camarote.

— Meus amigos, eu queria lhes dizer algo... E que isso jamais se apague de seus corações — Rostos atentos o encarava e ficou claro sua influência na vida de tantos jovens — Nunca perca a esperança em si mesmo. Nunca duvide de sua capacidade e, principalmente, jamais, sob qualquer hipótese, desista do amor. Essa canção escrevi após ter sido louco o suficiente para beijar uma noviça do hospital no qual eu me tratava... E ela se chama “última esperança” — Pedro sorriu e apontou em direção a Vivianne com lágrimas nos olhos — Essa é para você, Vivianne Grace, meu amor.


O amor pode ser doce,
O amor pode ser bom.
Pode ter sorriso fácil,
Covinhas nas bochechas,
Caminhar aos tropeços,
E beijar como jamais.

Vivianne sorria desmedidamente ao ouvir as letras da canção e não conseguia crer que havia de fato servido de inspiração para algo tão fabuloso quando uma música. Pedro, assim como ela, se lembrava de cada detalhe desde o primeiro instante.

Talvez a escuridão
A mais profunda obsessão,
Ouse te afundar.
Incansavelmente
Ela, inocente
Remando contra a corrente
Consegue me salvar.

Nunca soube nada,
Apenas uma certeza existia,
Aqueles olhos lindos,
Daquela bela mulher,
Tudo o que restava
Era minha última esperança.

Juntos ressurgimos,
Brilhamos,
Conseguimos,
Sonhando construímos,
Uma história para contar.

Vivianne, para Pedro, sempre seria sua mais incrível e apaixonante história. A parte mais doce, bonita e inocente a ser contada.

Ele a amava. A única coisa real em sua vida continuava sendo ela e a certeza que sim... Vivianne Grace sempre seria sua última esperança que por sorte - e por Deus - deu certo.

 

 

A doce menina de olhos azuis e cabelos longos corria de um lado para o outro com dois cachorros animados a suas costas.

— Estela! — Vivianne, um tanto nervosa, repreende da varanda — Cuidado! Não corra perto do lago!

Os olhos atentos e espertos da garotinha se dirigiram a ela rapidamente, porém voltou a correr ainda mais feliz do que anteriormente.

— Está tudo bem. Estou olhando, amor — Pedro respondeu sentado na escadaria da varanda e Vivianne apenas assentiu rapidamente antes de voltar para dentro da cama apressadamente.

De fato estava estranha há alguns dias e Pedro não sabia o motivo, apenas podia chutar alguns palpites vacilantes. Voltou-se para Estela novamente e não foi capaz de conter a emoção que sempre sentia ao vê-la. Era como se fosse à primeira vez.

Ainda se lembrava do dia em que Vivianne lhe contou sobre a gravidez. Foi um pouco antes de Nathalia, a filha de Paola e William, chegar ao mundo.

Tinham apenas uns anos de casados quando a esposa anunciou, quase desesperada, que a menstruação estava atrasada e poderia estar grávida. Pedro teve de rir do terror que a moça sentia, uma vez que a mesma jamais se imaginou em tal situação. Foi fácil descobrirem sobre a chegada do novo bebê e Pedro rapidamente se deu conta de que o medo de Vivianne era todo relacionado a ele.

Tinha medo da reação dele ao ser pai novamente. Temia que tudo voltasse a tona quando a realidade o chocasse.

Curtiram demasiadamente a gravidez, a barriga crescendo e certo alívio os dominou quando descobriram que o novo bebê seria uma linda menina. Pedro jamais imaginou que fosse ser pai de uma menina, mas se viu apaixonado pela ideia quando sonhou com uma menina bela como Vivianne, de olhos claros e chamada Estela.

— Estela significa estrela... Assim como a mãe, ela é um presente enviado pelo céu para minha vida — Vivianne ouviu as palavras de Pedro e topou na hora chamar a filha por aquele nome.

Amava a sensação de sentir a bebê se movendo em seu ventre. Amava a sensação de ser mãe. Amava, ainda mais do que tudo, que Pedro fosse o pai dela.

A gravidez foi tranquila e Pedro ainda não conseguia imaginar como seria a chegada do bebê, sua única certeza era que tudo mudaria. Antes do que esperavam lá estava ela... A pequena Estela. Os olhos, como dissera Pedro, eram azuis e brilhavam como estrelas. A maior emoção da vida dele - como o nascimento dos meninos e seu casamento - foi segurar Estela em seus braços.

Aquela incrível criança era o fruto de seu verdadeiro amor com Vivianne e sentiu como se o sentimento palpável e puramente dito pulsasse entre seus braços. A amou intensamente, incontrolavelmente, e viu naquele bebê toda a misericórdia de Deus para com sua vida.

Não era muito de agradecer ou falar com Deus como Vivianne, mas agradeceu por Estela. Agradeceu por seu recomeço.

Foi inevitável pensar nos gêmeos, mas a lembrança deles era terna e especial, não mais turbulenta e inconstante. Certamente queria tê-los ali para que conhecessem a irmã, porém rapidamente se esqueceu de tudo quando os cuidados com a bebê começaram.

— Papai! Papai! — Cada vez que Estela o chamava daquela maneira seu coração se inflava em amor. Novamente este era seu posto favorito de toda a vida — Posso fazer uma pergunta?

A garotinha, agora com quatro anos, sentou-se no colo dele enquanto os cachorros brincavam na grama a frente deles.

— Como se você precisasse perguntar, não é, princesa? — Ela sorriu — Pergunte.

— Porque a casa de campo se chama Stefano e Pietro, e não Estela? — Pedro a encarou surpreso pela pergunta e Vivianne se aproximou deles, saindo da casa lentamente.

Grávida de cinco meses, a moça se preocupou com a pergunta feita pela filha uma vez que nunca tocaram no assunto tão profundamente com ela.

— Lembra que papai falou sobre os irmãos que moram no céu? — Estela concordou — Então. O nome deles era Stefano e Pietro. Como esse era o lugar favorito deles, papai colocou o nome da casa de campo em homenagem a ambos.

— Ah... Entendi — Pedro trocou um longo olhar com Vivianne — Você sente saudade deles, papai?

— Todos os dias... — Garantiu convicto — Mas não fico mais triste com isso.

Estela o beijou no rosto com carinho e saltou novamente para brincar com os cães. Os filhotes de Angel hoje brincavam com Estela e Pedro não podia evitar se lembrar dos meninos cada vez que via a cena. A menina se aproximou da mesinha onde costumava sentar para colorir e passou a brincar com papel e giz de cera, talvez desenhando.

— Está tudo bem? — Questionou a esposa, que sentou-se ao lado dele na escadaria com cuidado devido a gravidez.

— Sim... — Abaixou o olhar de maneira nervosa e Pedro tocou-lhe o queixo com carinho.

— Me conte o que acontece, Vivianne. Porque você está estranha faz alguns dias? — A moça mordeu os lábios com cuidado — Te conheço como a palma de minha mão, não adianta esconder!

— Pedro... Não sei como te dizer — Sussurrou desolada.

— Você não me ama mais? — Ela rodou os olhos no rosto de maneira irônica.

— Claro que amo. Amo todos os dias — Tocou rosto dele com carinho e o rapaz beijou a palma de sua mão trêmula.

— Então me diga... — Insistiu — Por favor.

— Está bem — Segurou a mão dele com cuidado. Os olhos azuis se encheram de lágrimas pelo nervosismo — O bebê... Na verdade são dois bebês.

— O que? — Pedro travou por alguns instantes — São gêmeos? — Vivianne concordou. Parecia familiar reviver a cena onde descobria sobre a gravidez gemelar — Isso é incrível! Como não soubemos disso antes? Já faz cinco meses e...

— Pedro... São dois meninos — Enfatizou o fazendo se calar — Já sei que são gêmeos idênticos desde o primeiro ultrassom, apenas não quis te contar para fazer uma surpresa. Mas aí descobri faz alguns dias que são dois meninos e não soube como dizer... Eu jurava que seriam meninas...

— Você não deveria ter me escondido — Vivianne tocou o maxilar dele tomado por uma barba rala.

— Me desculpe — Sussurrou — Eu só... — Vivianne se calou ao ver os olhos verdes do rapaz tomados por lágrimas. Ele beijou sua mão com carinho e apalpou seu ventre com cuidado antes de desferir sobre ele um beijo longo.

— Nunca pensei que Deus fosse ser tão generoso comigo. Nunca pensei que poderia ter a oportunidade de viver tudo isso novamente — O sorriso de alegria o tomava por completo e Vivianne respirou aliviada.

— Pedro... — Sussurrou emocionada — Eu não sabia como dizer.

— Te amo, Vivianne... E não vejo a hora de conhecer nossos meninos — Declarou-se apaixonado e tomado pela emoção. Ela o beijou com carinho e se abraçaram longamente.

Um enorme peso pulou das costas dela ao confessar seu segredo. De fato Pedro era um novo homem. De fato estava curado. Nada no mundo poderia os abalar, nem mesmo as cicatrizes escondidas em seu coração.

Vendo-os de longe, Estela se aproximou empolgada com um papel em mãos que voava com o vento e os fios longos de seu cabelo escuro.

— Oi meu amor — Vivianne a abraçou junto deles e a menina entregou o desenho nas mãos de Pedro.

— Olhe papai... Desenhei a nossa família — Pedro segurou o desenho e comprimiu os lábios com a emoção que o tomou por completo.

Haviam três pessoas de mãos dadas, uma delas com barriga de grávida - mamãe, papai e Estela - escrito sobre eles. Acima deles havia o sol e algumas nuvens. Sobre as nuvens dois garotinhos com asas de anjos e os nomes Stefano e Pietro sobre cada um.


Gabriel e Rafael.

Eis o nome dos gêmeos, desta vez escolhidos por Vivianne.

Assim como fizeram com Estela, Pedro e Vivianne voltaram ao convento para apresentá-los a madre assim que puderam sair de casa. Aquele lugar ainda era o mais especial do mundo para eles, justamente onde tudo começou.

Estela corria pelo jardim de flores roxas com algumas crianças acompanhada pela irmã Júlia enquanto outras amigas seguravam os bebês.

— Meus filhos... É tão bom revê-los — A madre, abraçada com Vivianne, comentou feliz — Espero vê-la em breve de volta ao trabalho, minha querida Vivianne.

— Assim que a licença acabar, madre — Brincou — Preciso cuidar um pouco do meu melhor ministério, não é?

— Exato querida. A família é nosso principal ministério — Relembrou carinhosamente — E você está de parabéns. Que família linda constituiu.

— E os meus créditos, madre? — Pedro sentou-se ao lado delas e a madre o espiou de canto — Também fiz minha parte nesta linda família.

— O senhor sempre tem uma história para contar, não é, Pelegrini? — Pedro teve de rir — Mas por incrível que pareça, mesmo após ter roubado minha melhor noviça, sigo simpatizando com o senhor.

— E eu sigo grato, madre. Se não fosse a senhora, essa linda família não teria existido. Obrigado — Agradeceu carinhosamente, segurando a mão dela para depositar um beijo cuidadoso.

— Falando assim eu até acredito — Disse em tom brincalhão — Agora sim entendo porque você caiu na conversa dele, minha filha.

As risadas preencheram o ambiente com a felicidade de Estela e das crianças. Juntos naquele jardim Pedro teve a certeza de que era o mais sortudo dos homens.

Onde estaria agora se não houvesse sido resgatado pela madre e se Vivianne não houvesse acreditado nele? O que seria dele se não fosse o amor, a redenção e uma nova oportunidade?

Seguia em paz, feliz e inteiro.

Vivianne observava o jardim do convento com lágrimas nos olhos e ele soube que tudo não passava de imensa gratidão.

— O que é isso? — Ela questionou ao ver o belo girassol entre os dedos dele. Pedro lhe estendia a singela flor com carinho, o que a fez apanhá-la rapidamente e levar ao rosto para sentir o doce cheiro.

— Não se lembra? — Sussurrou ao ouvido dela — Um girassol.

O sorriso doce de Vivianne o fez abraçá-la com ainda mais entusiasmo.

— Ainda se lembra? — Vivianne notou no caule da flor um pequeno bilhete em anexo, exatamente como ela fez no passado.

“Para minha querida Vivianne... Meu anjo enviado pelo céu”.

— Hoje, amanhã e todos os dias de minha vida.

 

 

                                                                  Izabella Mancini

 

 

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