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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


EPISÓDIO DA VIDA DE TIBÉRIO / J. W. Rochester
EPISÓDIO DA VIDA DE TIBÉRIO / J. W. Rochester

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

 

 

Ditei a Rochester o que segue, pedindo-lhe transmitir ao espírito que ele conhecia e com o qual me encontro, em sucessivas reencarnações.

É com o maior desprazer que vou falar de uma existência que me retrata numa época bem torpe, mas dedico este episódio de minha vida ao espírito de Lélia, embora saiba que mais de uma pessoa lerá com interesse esta exposição feita pela boca do verdadeiro Tibério, e não do personagem descrito pelos historiadores.

Meu reinado, minha vida e a dos meus contemporâneos pertencem à história; mas, os que a escreveram tanto acrescentaram, desnaturaram e retificaram os fatos, sob a impressão do momento, que, da maior parte dos homens desse tempo, nada mais ficou de verdadeiro, além dos respectivos nomes.

Envergonho-me do passado, agora que séculos e vidas expiatórias me hão moderado e tudo transformado em mim; a simples lembrança de minha malícia e crueldade faz-me tremer. No episódio que vou contar, abusei do meu poder saciando covardemente essa crueldade numa indefesa mulher, que, por contingência de guerra, caiu nas minhas mãos. Queria-lhe o amor, mas nunca pude obter o que buscava, desde séculos, com toda a tenaz obstinação do meu caráter. Contava sempre que a minha maldade lhe vencesse a resistência, que a crueldade a subjugasse; todos os meus esforços foram vãos e, contudo, jamais a poupei, sempre a espreitei no seu aspecto extenuado, se as suas forças e o seu orgulho se tinham esgotado, entretanto, por mais infeliz ou desgraçada que ela fosse, não cedia e me conturbava sem cessar: “Mata-me, tu não o podes fazer duas vezes!”

Essa resistência me enraivecia a tal ponto que era capaz de matá-la; contudo, jamais deixou de preferir a morte.

Assim continuava o combate através dos séculos, não para a posse do corpo, que o poder me conferia, mas para a posse da alma, que nada podia conquistar.

Era ainda herdeiro da coroa, ao tempo em que se desenrola este episódio de minha vida — vida sinistra em que morri como tinha vivido. Guerreava então os germânicos, mas a campanha já havia terminado. Vitorioso, retirei-me para um campo entrincheirado, a fim de aguardar a chegada de algumas legiões ainda retidas pelo inimigo.

O acampamento era campo de diversões. Bebedeiras, devassidão com as prisioneiras, constituíam agradável passatempo. Por mim, dava festas na minha barraca, armada no meio do campo e decorada com o luxo fabuloso da época; tudo o que havia de mais precioso tinha sido prodigalizado para ornar a habitação do herdeiro do trono.

Contando então cerca de quarenta anos, sentia-me insaciável de prazer.

Uma tarde, reuni os comandantes das legiões, tribunos e outros comandantes de unidades; junto a mim se encontravam, de um lado a minha bela favorita Febé, e de outro Sejano, homem da minha confiança. Os guardas pretorianos, imóveis como estátuas de bronze, guardavam o interior e o exterior da tenda. Em dado momento, vieram dizer-me que uma das legiões retardatárias acabava de chegar trazendo grande número de prisioneiros.

— Muitas mulheres? — perguntei a Sejano.

Sejano pôs-se a rir, dizendo:

— Já não tendes tantas? Nem sabemos que fazer das que aqui se encontram e será preciso enforcá-las ou queimá-las, porque não é possível alimentá-las todas e encaudá-las ao exército.

Entretanto, o centurião me respondeu que traziam apenas três, pois as demais haviam perecido na viagem, por fadiga ou às mãos da soldadesca. Dessas três, duas eram velhas e agonizavam; a terceira, era jovem e noiva de um chefe germânico chamado Hilderico. E acrescentou que essa prisioneira era uma verdadeira diabinha, que dera muito trabalho para deixar-se conduzir; que também combatera, mas vendo a derrota dos seus, cedera o cavalo ao noivo e este havia fugido, caindo ela prisioneira; que durante o trajeto, várias vezes, tentara suicidar-se e que somente por ser jovem e bela, haviam-na trazido para que eu decidisse da sua morte. — Muito bem! — respondi — veremos e, se não me agradar, Sejano poderá tomá-la; tragam-na aqui.

Instantes após, abria-se o reposteiro da barraca e entraram escravos conduzindo nos braços uma mulher, que depuseram de pé, à minha frente. Fitei-a e meus olhos ficaram cravados nela, como que fascinados. Sem dúvida, o passado estava esquecido, o homem Tibério nada recordava; mas a alma acabava de reconhecer o seu fatal antagonista de muitas etapas terrenas. A jovem que aí estava diante de mim não retraçava uma beleza clássica, nem possuía, ao demais, o puro tipo germânico; antes parecia inculcar um misto de raças; muito delgada, porte médio, rosto pequeno e redondo, modelado por traços delicadíssimos, grandes olhos azul-escuros e um brilho metálico, de expressão algo tigrina, a revelarem muita teimosia e ódio feroz à minha pessoa. Não baixou a cabeça como faziam os demais prisioneiros, em cujos semblantes se poderia ver, claramente, temor e desespero; ao invés, mostrava-se altaneira e olhava-me, cheia de ódio e audácia. Fiquei tão surpreso quanto interessado. Com que contava ela? Não saberia diante de quem se encontrava? Trazia um vestido branco de lã, sujo pela viagem, uma capa azul pendente dos ombros, pulsos algemados. Percebi, desde logo, que estava extremamente fatigada, pois palidez mortal lhe cobria o belo rosto, e, não obstante, se mantinha de pé em atitude insolente, como se nada temesse.

Isso me revoltava.

— Sabes diante de quem te encontras? — perguntei-lhe. — Por que de joelhos não pedes graça como os demais prisioneiros?

Ela demonstrou imediatamente que não tinha a língua algemada como os pulsos:

— Não suplico graça senão aos deuses e não a um tirano como tu; mata-me; não poderás fazer-me maior mal, pois tudo perdi e não me interessa viver.

Jamais havia encontrado mulher tão atrevida, que falasse como quem comandava.

— Cala-te! — exclamei — ninguém te pediu opinião e farás o que te for ordenado.

Desdenhoso sorriso se esboçou nos lábios da prisioneira:

— Ordena e verás se te obedeço; podes fazer tudo; bater-me, torturar-me, matar-me, jamais te obedecerei.

Eu estava interessado no mais alto grau; aquela frágil criatura, que mal se sustinha nas pernas vacilantes, falava com tom gigante; notei, também, que seu rosto era fascinante e que a obstinação feroz condizia admiravelmente com os seus traços infantis.

— Sou Tibério,— disse-lhe — meu nome deve ser conhecido e temido por ti e pelos teus. Eu te ensinarei não somente a obedecer-me, mas também a amar-me, pois te reservo para mim.

Voltando-me para Sejano, que aguardava ansioso a decisão:

— Não te suponhas com força para domar este pequeno tigre; eu próprio o farei; e tu, Febé, não ouses invejá-la; conheço-te e advirto: se fizeres cair um só cabelo da cabeça desta jovem, mandarei decapitar-te; dou-te minha palavra e tu sabes que a cumpro. Não concederei a ninguém a glória de dominá-la; eu mesmo o farei, e para isso, atentai todos vós a quem a confio, para que não lhe aconteça o menor mal ou venha a fugir, sob pena de terdes a cabeça decepada. Agora, Febé, toma conta da prisioneira, a fim de que se alimente e cuide da sua higiene, porque mal se agüenta. Quanto a ti, jovem, é preciso que me ames e convém que não recalcitres. Como te chamas?

Em lugar de responder, virou o rosto, muda.

— Como te chamas? — repeti. Nada...

— Como te chamas? — bradei furioso.

— Para ti não tenho nome, compreendes? Deixei, lá atrás, tudo: nome, pátria, pais, noivo, amor; aqui sou objeto sem nome, e aquilo que todos que me são caros pronunciaram, tu não o saberás.

— Oh! — exclamei — mandarei espancar-te até a morte, se não me responderes.

— Por que falas tanto em lugar de executar? exclamou a diabinha, cujo faro feminino tinha percebido já, até que ponto sensível me havia tocado. Piquei petrificado, pois mulher alguma ousara ainda dizer-me tais coisas.

— Acreditas que teus berros me amedrontam? . Podes matar-me. Se me espancares, morrerei mais depressa e eis tudo, porque minhas forças me abandonam; com o meu cadáver farás o que te aprouver, mesmo uma iguaria com que te repastes.

Levantei-me e bati o pé.

— Como ousas responder dessa forma, insensata, a mim, futuro imperador? Esmagar-te-ei com o meu poder, louca!

Ela não baixou a cabeça, antes me fitou com insolência:

— Faço idéia muito relativa do teu poder, que não me impressiona: mostra-mo, então, porque apenas vejo que te enraiveces muito.

Ordenei aos guardas que a pusessem perto de mim. E dirigindo-me a ela, disse-lhe:

— Aproxima-te e segura a minha taça.

Obedeceu, recebeu a taça que um escravo acabava de encher e, inclinando-se, derramou-a sobre a minha cabeça.

Não soube mais o que fazer. Para um tal crime de lesa-majestade, devia matá-la, não podia mesmo inventar outra punição. Febé chorava de tanto rir, repetindo:— Mas é louca, a ferazinha!

Fiz-me enxugar, lavei-me e, braços cruzados, aproximei-me dela.

— Que fizeste? — perguntei — estas em teu perfeito juízo?

— Sim,— respondeu — sou filha de um chefe e jamais desempenharei papel de serva, mesmo para um futuro imperador.

— Ah! recusas por orgulho? Pois bem; ordeno que me obedeças.

— Deixa-me antes repousar, manda enforcar-me, queimar ou afogar, à tua escolha, contanto que acabe com isto.

Percebi-lhe o desejo de morrer.

— Isso nunca! — Antes hei de possuir-te.

Pela primeira vez, ela recuou apavorada; teria esquecido o poder que eu tinha sobre os prisioneiros? De repente disse com voz mudada e terna:

— Deixa-me morrer honestamente; sou noiva de Hilderico e tu aí tens tantas prisioneiras para satisfazer-te a concupiscência e crueldade... Não desejo viver, a morte é a única graça que te peço.

Oh! amava então esse Hilderico, de quem já ouvira gabarem a coragem!

Esse pensamento me tornou sobremaneira insensível.

— Nada de morte; viverás e hás de ser minha, por bem ou por mal.

Ela pôs-se a rir às gargalhadas.

— Amar-te a ti? tão feio, com essa cabeça e essa cara raspadas? Nunca viste Hilderico e por isso não podes fazer idéia de algo semelhante.

Diante dessa resposta digna de uma selvagem, apenas os semblantes dos guerreiros permaneceram impassíveis. Estranha expressão de constrangimento se esboçou nos demais convivas.

Provei uma nova e maior decepção porque me julgava assaz bonito.

No mesmo instante, ela cambaleou e teria baqueado se não a houvesse amparado. Coloquei-a a meu lado e só então lhe notei uma ligadura ensangüentada. Atentei para os seus guardas, eles empalideceram e me disseram que ela havia tentado matar-se e que havia quatro dias vinha recusando todo e qualquer alimento. Experimentei, então, verdadeiro terror, imaginando que pudesse morrer nas minhas mãos, antes que a domasse e transformasse em mulher amável, que me achasse bonito.

— Vós me pagareis tudo isto! — exclamei.

Derramei vinho nos seus lábios e ela acabou por voltar a si, mas, tão fraca que apenas respirava.

Levei-a para o meu palácio em Roma, instalando-a num aposento de cuja chave não me separava. Eu próprio levava-lhe as refeições, mas não conseguia que se alimentasse. Só podia forçá-la a comer um pouco, empunhando chicote ou punhal. Era então minha amante, não tive outra tão rebelde e de uma vida estranha. Detestava-me a tal ponto que só comia de olhos fechados.

Eu queria tornar-me amado sem o conseguir, apesar da maior severidade. Deixava-a sem comer amarrada no leito, privada de liberdade e movimento e nada obtinha; só respondia às minhas palavras com desdenhoso silêncio. Dizia-lhe: Se não te tornas mais amável, não reaparecerei senão quando me rogares de joelhos.

Nem assim respondia, e os dias se passavam e eu me sentia obrigado a voltar para junto dela.

Certa feita, precisei ausentar-me de Roma por oito dias. Confiei a chave do seu quarto a um criado, com ordem de levar-lhe as refeições; mas, pouco depois, me esquecia disso e, por um motivo qualquer, fiz decapitar o detentor da chave. Quando voltei, foi preciso arrombar a porta e fui encontrá-la quase morta de fome. Teria passado terríveis momentos, pois tinha as vestes esfarrapadas, os anéis de ferro da algema lhe haviam penetrado profundamente na carne e coberta de sangue. Certamente, quisera desembaraçar-se da corrente, sem o conseguir. Só a custo de muito trabalho, conseguiu-se reanimá-la e procurei, então, ser mais indulgente. Nada, porém, lhe abrandava o caráter atrevido.

À proporção que corria o tempo eu me tornava mais estranhamente ligado a ela. O ódio manifesto que me votava, aquela resistência de todos os momentos, irritavam agradavelmente os meus nervos esgotados. Visitava-a todos os dias, muitas vezes levava-a a passear, se bem que ela preferisse a prisão ao ar puro em minha companhia.

Cerca de um ano assim correu, até que um dia notaram que vários homens rondavam a parte do palácio onde ficava a prisão de Lélia, os quais pareceram suspeitos.

Informado de que haviam chegado a Roma numa embarcação, fi-los vir à minha presença para interrogá-los. Estava a refrescar num terraço tendo-a perto de mim deitada sobre almofadas, quando se apresentaram os detentos.

O primeiro era um rapagão de notável beleza; cabelos louros, longos e encaracolados caiam-lhe pelos ombros e os grandes olhos azuis rebrilhavam de orgulho e energia. Ao ver Lélia, soltou um brado de alegria, que tratou, em seguida, de disfarçar desviando o olhar.

Eu sabia que eles eram germânicos e uma vaga desconfiança se apoderou de mim.

— Como te chamas? — perguntei. Ergueu altivamente a cabeça e já se dispunha a responder, mas, no mesmo instante seus olhos se fixaram em Lélia e calou. Voltei-me bruscamente e percebi ainda o gesto suplicante que ela lhe dirigia para que se calasse.

— Ah! — pensei — este é o Hilderico, mais belo do que eu!

Ele recusou-se identificar-se, mas, pela tortura, consegui que os companheiros revelassem a sua identidade.

Prendi Lélia a sete chaves e ordenei a morte de Hilderico pela seguinte forma: enterrado até o pescoço, com a cabeça exposta ao sol. Em redor da cova um muro de pedra, circular, e no recinto fechado mandei lançar ratos esfomeados de três dias, que entraram a roer o belo Hilderico com voracidade inaudita, com o que me deleitava através de uma abertura adrede preparada no muro.

Lélia, no auge do desespero, queria a todo preço rever Hilderico. Então, por vingar-me das suas insolências, levei-a ao local e, erguendo-a, fi-la espreitar pela abertura. Ao ver Hilderico sem nariz e orelhas, lábios, faces carcomidas, irreconhecível e disforme, ficou acabrunhada.

— Pois bem — disse-lhe — ainda sou mais feio do que ele?

Ela que, por princípio, jamais me respondia, voltou-se nesse momento e eu fiquei positivamente horrorizado com a expressão do seu rosto: os olhos injetados de sangue, a boca escumante, atirou-se a mim qual besta fera, tentando estrangular-me. Seus dedos enterraram-se no meu pescoço como pinças de ferro e meus guardas tiveram grande trabalho para me desvencilhar da sua fúria.

Após este segundo crime de lesa-majestade, reuniu-se um conselho que decidiu fosse ela exposta às feras no circo, na primeira função. Eu, porém, me sentia tão ligado a ela, que, apenas expedida a sentença, começava a voltar atrás; parecia-me não constituir suficiente vingança vê-la espedaçada pelas feras; eu mesmo poderia puni-la bem mais severamente. Minha dignidade, porém, não permitia retratar-me e conceder-lhe o perdão por iniciativa própria. Fiz-lhe saber, então, que, se publicamente e de joelhos me pedisse perdão, eu lho concederia. O gladiador Astartos( ), que deveria vigiá-la até o dia do espetáculo, foi incumbido de conduzir a negociação. Tive com ele várias conferências a respeito, e como fosse um belo tipo de moço, o ciúme começou a espicaçar-me e avisei-o de que, sob pena de morte, deveria mostrar-se pouco compassivo com a prisioneira, reservando-me eu próprio para esse ser ingrato ao qual desejava conceder, excepcionalmente, uma proposta de perdão.

Ela respondeu por intermédio de Astartos, que preferia mil vezes a morte ao meu perdão. Exasperei-me.

No dia aprazado, fui ao circo e logo que me instalei no camarote, senti-me possuído de penosa angústia ao pensar que ela ia ser estraçalhada e devorada.

Os gladiadores foram os primeiros a penetrar e tomar posição na arena; depois, abriu-se pequena porta e entrou Lélia. Estava toda de branco, um cinto prateado à cintura, solta a soberba cabeleira loura, encimada por uma grinalda de flores. Havia ordenado que lhe fosse dado tudo que pedisse e ela quis assim preparar-se para morrer. Entretanto, no momento decisivo, parece que lhe fraquejou a coragem, porque se apoiou no muro e tapou o rosto com as mãos.

Abriu-se uma jaula e gigantesco tigre saltou na arena rugindo. Lélia deu um grito o caiu de joelhos, não voltada para mim, mas para o tigre, que estacou um instante, surpreso e indeciso.

Aproveitei o lance: conheciam as condições que havia imposto para conceder-lhe a vida. Elevei a voz:

— Ela pede graça, gladiadores; salvem-na, se possível!

Procurei não parecer muito solícito, mas o populacho bradava também: «graça! graça!»

O tigre, que já havia espertado com a minha exclamação, ainda não tivera tempo de começar o ataque, porquanto, nesse instante, entraram na arena um leão, uma pantera e outros animais. As feras rugiam lugubremente e se entreolhavam, prontas a disputar a presa; haviam cercado Lélia desmaiada, e apenas o ciúme recíproco lhes impedia começar o repasto.

Impossível qualquer tentativa de salvação. Não obstante os gladiadores terem-se colocado entre as feras para dispersá-las, Astartos se lançou corajosamente sobre o leão, que, com a língua avermelhada, já lambia a alabastrina espádua de Lélia, e desviando-o com vigoroso golpe de sabre, arrebatava-a para uma das jaulas vazias, ali encerrando-a.

Salva!

Não prestei grande atenção ao resto do espetáculo, durante o qual os gladiadores mostraram toda a sua coragem e agilidade, tendo mesmo mais de um sacrificado a vida.

Meu pensamento vagava longe. Determinei que Lélia fosse conduzida ao palácio e desde que lá cheguei, permaneci junto dela, embora já fosse tarde. Ela dormia e como estava extenuada, logo que tentei reanimá-la, com dificuldades abriu os olhos para fechá-los em seguida, recaindo novamente inerte, como morta. Permaneci a seu lado algumas horas e voltei aos meu aposentos muito contente por ter-se ela ajoelhado diante do tigre.

Ela mesma dará os pormenores de nossa vida em comum; aqui mencionarei apenas que, ao cabo de dois anos, fugiu em um navio pirata, fretado pelo irmão para libertá-la. Empreendi a perseguição, sendo logo encontrado o navio. Determinei, então, fosse incendiado e gozamos o belo espetáculo de um barco em chamas, no meio do oceano, em fundo enegrecido pela fumaça. A equipagem atirou-se ao mar para salvar-se. Ordenei aos pretorianos capturassem Lélia viva, se fosse possível. Nesse instante, lobriguei-a no convés incendiado e vi que se atirara ao mar. Meus soldados se precipitaram igualmente. Avancei minha embarcação e breve minha bela companheira, retirada das ondas, era-me restituída a debater-se como louca, a arrancar-se dos meus braços para mergulhar de novo. Enraivecido ao extremo por ver uma obstinação tão tenaz, saquei do punhal e enterrei-lho no flanco. Tombou inerte banhada em sangue.

Passado o furor, arrependi-me vivamente do feito. Conduzi-a ao palácio, onde o médico declarou que apenas teria algumas horas de vida. Pensou-se a ferida; mandei que todos se retirassem; queria ficar sozinho com a agonizante, levada ao seu próprio quarto.

Há momentos em que o tirano mais poderoso, o assassino mais endurecido, experimenta arrependimento e remorsos. Era o que me sucedia então.

Cabisbaixo, permaneci junto do leito onde ela jazia inanimada; apenas um cirro se lhe escapava da garganta e a respiração lenta e difícil, indicava que o coração estava prestes a terminar o seu último e doloroso esforço. Eu sabia que tudo estava perdido e aguardava o fim.

Prestes a respiração pareceu parar; inclinei-me e vi que seus olhos se reabriam como em plena consciência. Nossos olhares se encontraram e constatei que a morte não lhe alterava o ser; a boca não mais podia falar, mas os olhos exprimiam todos seus pensamentos; envolveu-me num último olhar saturado de ódio implacável, de desprezo esmagador; depois amorteceu, a respiração cessou; apalpei-lhe o coração, já não batia, estava morta!

Que sentimento estranho domina o coração do homem quando ele sente a própria incapacidade diante de um cadáver, cuja impassibilidade parece ridicularizar o seu poder! Eu era Tibério, o futuro imperador! Mas ali meu poder havia esbarrado nos seus limites. Nem meu amor, nem meu ódio, puderam algo sobre aquela mulher, cujo cadáver agora afrontava a minha autoridade!

Certamente, ninguém percebeu meus sentimentos. Abandonei a sala mortuária, impassível; nada em meu rosto traía qualquer emoção ou arrependimento; e, no entanto, sentia-me profundamente acabrunhado até as profundezas do meu ser.

Determinei pomposos funerais e depois minha vida retomou seu curso normal; não me tornei nem mais nem menos cruel do que fora até então; matei à fome minha mulher e minha mãe, pereci asfixiado por aqueles que acreditavam que eu ainda viveria muitos anos. O momento da morte pareceu-me longo atordoamento, durante algum tempo não pude compreender minha situação; enfim, percebi que tinha deixado a Terra e, errando no espaço, vi muitos personagens poderosos, que, relegados à solidão, gemiam dolorosamente. Eu mesmo presenciei o desfilar de TODAS, TODAS as minhas vítimas; todos aqueles nos quais cevara minha crueldade, vinham com seus sofrimentos cercar-me em delírio; Lélia também não faltou! E depois, apesar de tantos séculos de provas e expiações, combateremos ainda as nossas más paixões até o momento em que, abrandadas e dominadas, sejamos capazes de nos amarmos com verdadeiro sentimento cristão, tal como prescrevem as leis divinas. Mas, até agora, as paixões inferiores despertam em nós um ódio recíproco, talvez um pouco mais atenuado que outrora; dissimulado sob as cinzas dos séculos, despertando sempre em cada uma das nossas encarnações terrestres.

 

NARRATIVA DE LÉLIA

O descrever esta vida e muitas outras, cheguei por vezes a duvidar da justiça divina que, tão freqüentemente, me colocou sob o poder desse monstro, para corrigi-lo, sem considerar o que isso me custava.

Morrendo quase sempre na flor da idade, século houve em que tive duas encarnações; e se uma era tranqüila, a seguinte tornava inevitável meu encontro com Tibério. Será que eu fora criada para fazer dele um homem virtuoso?

Aqui tudo contarei, sem nada ocultar, porque ele, Tibério, silenciou muita coisa, máxime o que diz respeito à Febé, cúmplice que sempre o acompanhou em todas as encarnações em que fui sua presa. De fato, ela sempre foi o obstáculo contra o qual esbarravam ainda as minhas boas intenções. Tibério só manifestou indulgência para com essa criatura nefasta em todas as vidas em que combatermos, eu para o bem, ela para o mal. Ela sempre o dominou e isso não é de estranhar, porque seus crimes e profunda perversão moral tornavam-na mais atraente para ele do que eu. Também tenho meus defeitos, muito grandes mesmo, mas, em todas as minhas encarnações sempre me esforcei por dominar as paixões e aspirei despertar em mim sentimentos humanos; nunca fui cruel por prazer, para regozijar-me friamente com os sofrimentos alheios, tal como eles que sempre se alegraram com a desgraça de quantos se lhes aproximavam.

Na vida de Tibério, de Derblay, de Saurmont e noutras biografias em que não tenho mencionado o seu nome, duas mulheres desempenharam um papel principal. A Febé cabia a parte funesta e, por fim, ele sempre acabava-nos eliminando.

Abro esta narrativa partindo do tempo em que me encontrava na Germânia, em companhia dos meus, e quando se iniciava a desastrosa guerra com os Romanos.

Minha família compunha-se de pai, mãe e dois irmãos já homens feitos. Minha mãe era uma romana aprisionada pelos nossos, quase criança; cresceu na tribo assimilando nossos costumes e mesmo a religião, e acabara casando com meu pai, grande chefe de uma das tribos alemãs, a quem muito amava. De sua origem romana apenas lhe ficou o conhecimento da língua latina, que nunca esquecera e me ensinara.

Resolvida a guerra com os romanos, antes da abertura das hostilidades, foi celebrada grande festa para toda a tropa reunida.

Em vasta planície levantaram-se as barracas rodeadas pelos carros e demais coisas inúteis, que o nosso exército de bárbaros levava no seu séqüito.

Ergueram-se altares ornamentados de flores e folhagens, todos vestiam as melhores roupas e a festa começou por imensos sacrifícios aos deuses, para obter feliz sucesso. Depois, começaram as danças ao ritmo dos cantos selvagens dos nossos guerreiros a prolongarem-se até alta madrugada.

Esse dia foi para mim duplamente feliz, pois celebrou-se também o meu noivado com Hilderico, jovem chefe já afamado ao qual me ligava com amor recíproco.

A guerra começou e, com ela, tempos bem duros; entretanto, eu me sentia feliz acompanhando meu pai e os guerreiros; participava de todos os combates, embora me mantivesse um tanto à retaguarda, e não era mulher indefesa, pois em caso de necessidade sabia muito bem combater; montava a cavalo como uma Valquíria e manejava perfeitamente o arco e o dardo. Adorada pelos soldados e por todos respeitada, porque nossos costumes eram severos e a mulher ocupava, na família, posição e consideração destacadas, quase em paridade com o homem, jamais qualquer rude guerreiro que se aproximasse de mim, esqueceu o respeito devido ao meu sexo. Cercavam-me de todo conforto compatível com a situação; dormia no campo, onde, à noite, me preparavam uma cama feita de lanças reunidas, cobertas com pelegos; acendia-se a fogueira perto da barraca e nada me faltava. Para mim os melhores bocados e o primeiro trago de vinho. Vivia assim tranqüila, feliz e lisonjeada...

Entretanto, oh! Deus, que sorte horrível me estava reservada!

A luta tornou-se desfavorável para nós. Tibério, o futuro imperador, comandava os exércitos romanos, que, mais disciplinados e melhor equipados, nos guerreavam sem tréguas. O inimigo esforçava-se, sobretudo, por aprisionar o maior número possível de mulheres, a quem um triste destino aguardava na longínqua Roma, onde a depravação — dizia-se — atingira as raias do inacreditável. Também, nós, fizéramos juramento de morrer voluntariamente, antes que nos rendermos vivas às mãos do inimigo.

Dentro em pouco empenhou-se grande batalha na qual meu pai tombou gravemente ferido. Nesse dia, tristemente memorável, o exército romano apresentava grande superioridade numérica e fomos esmagados. Os soldados caíam um por um, nossas fileiras rareavam a olhos vistos.

Esquecendo toda a prudência, eu combatia furiosamente ao lado de Hilderico, pois odiava de morte os romanos. Já no fim do combate, caiu morto o cavalo de Hilderico e ele próprio ia sendo sacrificado. Um soldado romano já o havia lançado por terra e alçado o braço para desferir o golpe mortal. Vendo o perigo, galopei para o local, ergui o alfange e de um golpe fendi o crânio do romano. No mesmo instante saltei do cavalo, dizendo:

— Toma-o, és chefe, tua permanência aqui será a desonra; cumpre-te comandar os nossos, foge!

Ele montou e partiu como um relâmpago. No mesmo instante, fui envolvida por furiosa soldadesca que me teria degolado, se um oficial não me protegesse, notando-me a beleza e a mocidade.

Tentei suicidar-me, mas fui impedida, conseguindo apenas ferir-me. Algemaram-me, então, e partimos para o acampamento de Tibério.

Não direi da trágica viagem e dos maus tratos que suportei. Os romanos, apesar de se julgarem muito superiores a nós em civilização, eram muito mais grosseiros que os nossos selvagens guerreiros.

Enfim, chegamos.

Tibério, ao que diziam, deveria decidir da minha sorte. Ordenou fosse conduzida à sua presença e, como me recusasse a andar, carregaram-me até lá.

Recordo-me ainda, perfeitamente, o interior dessa barraca, onde, ao redor de uma mesa posta com luxo até então por mim desconhecido, um grupo de homens ricamente vestidos e de rostos afogueados pelo vinho, mantinham-se recostados e coroados de flores. À cabeceira da mesa, num leito mais elevado e mais enfeitado que os outros, vi um rosto cujo aspecto me inspirou terror e asco. Face raspada, olhos enervados, tinha uma expressão de crueldade e desconfiança qual leão em atitude indolente; recostado com uma das mãos apoiada no joelho, inclinava-se para frente a fim de melhor me observar. Cingia uma toga encarnada e tinha um aro de ouro na cabeça; rico e brilhante colar pendente do pescoço. A seu lado, um homem alto, gordo, de rosto congesto e avinhado, expressão sórdida e insolente. Do outro lado, assentada, uma mulher de saia curta, verde, bordada a ouro, deixando ver as pernas inteiramente nuas até os joelhos. Da blusa insuficiente, não falarei; seu rosto não era feio, mas de traços grosseiros, faces caídas, avermelhadas pela bebida e os grandes e desavergonhados olhos negros que me observavam, transparentes de ódio e zombaria. Mantinha soltos os cabelos negros, que lhe caíam em massa sobre os ombros, encimados por uma coroa de flores encarnadas.

Tibério descreveu, ele próprio, o que se passou então, mas, prudentemente calou que foi a minha referência à sua fealdade que o levou a espancar-me e que desmaiei sob os seus golpes.

Oh! quanto o abominava! Sua presença era-me odiosa!

Conduziu-me a Roma e encerrou-me numa sala razoavelmente mobiliada, mas de janela gradeada. Febé era a minha guardiã e livre Deus os detentos de uma tal carcereira.

De começo, procurou mostrar-se amável, mas pouco a pouco lhe percebi toda a crueldade. Tibério, que sempre procurou justificar as próprias culpas, mentiu ao dizer que havia proibido me tocassem. Febé e Sejano podiam atingir-me, sobretudo Febé, que devia fazer-me comer a força. Assim que, de uma feita, esteve a ponto de estrangular-me, forçando-me a engolir o alimento, porque eu estava amarrada e quase privada de movimentos. Noutra ocasião, deu-me vinho fervendo, derramando-o tão desastradamente que me queimou a boca, pescoço e braços. Tibério não lhe fazia a menor advertência. Uma vez, mordi-a no peito com tal gana que ela enfermou algumas semanas. Assim foi que o meu algoz passou a servir-me pessoalmente, pois não confiava em Sejano e desejava conservar-me para si.

Tibério era um caráter tão teimoso e cruel, que parecia não alimentar qualquer sentimento de humanidade. Convenceu-se de que devia ser amado por mim e imaginava que o conseguiria pela crueldade. Repetia freqüentemente que eu devia amá-lo, mas por sua vez não o fazia. Visitava-me todos os dias para sondar meu íntimo e sua insolência chegou a ponto de pretender que eu dissimulava o meu afeto à sua pessoa! Essa presunção ridícula ter-me-ia feito rir em qualquer outra circunstância, mas a horrível situação em que me encontrava, havia-me desabituado de fazê-lo. Depois de falar, ordenar, gritar, sobrevinham os acessos de furor e saía dizendo:

— Olha, não voltarei senão quando estiver quebrada a tua teimosia e houver experimentado todos os sofrimentos de um amor desdenhado.

Para me suscitar ciúmes, trazia Febé, abraçava-a e acariciava diante de mim, encenando ternuras amorosas. Meu coração, porém, estava longe de Roma, não dava atenção a essas representações ridículas.

Febé detestava-me, mas não se atrevia a ferir-me diretamente; conhecia a fundo o caráter de Tibério e exercia grande influência sobre ele; sabia aguardar os momentos favoráveis para tecer alguma intriga, encontrando quase sempre acolhida. Durante muito tempo, eu de nada soube e só mais tarde percebi que, permanecendo longas horas junto de mim, sem jamais obter uma resposta, ela me deixava para ir dizer a Tibério que eu lhe havia assacado os mais terríveis ultrajes.   Sejano, seu amante, confirmava e jurava ter testemunhado ou sabido o que eu dissera a Febé e tanto excitavam Tibério, que ele parecia um verdadeiro tigre quando aparecia, sem nunca aludir, entretanto, as mentiras que lhe contavam.

Havia no caráter de Tibério qualquer coisa de covardia, uma baixeza, que mesmo os séculos não puderam corrigir inteiramente; nas outras encarnações que de conjuguei com ele, essa fraqueza constituiu sempre o fundo do seu caráter, sobretudo em face dessa mulher ordinária que ele temia estranhamente, apesar da sua alta posição e ferocidade.

Um dia em que, de novo, eu fingia, por que não queria confessar-lhe o meu amor, levantou-se e disse:

— Pois bem! parto e não me verás até que, por tuas súplicas e plena confissão de teu amor, eu consinta em perdoar-te. Vou procurar Febé, que me é mais dedicada e tem por mim verdadeiro amor.

Com isso esperava enciumar-me, mas nada respondi e lá se foi ele.

Veio a tarde, transcorreu a noite, surgiu o dia sem que me trouxessem o menor alimento. Amarrada ao leito, achava-me até privada de movimentos e, nessa horrível posição, experimentei todas as torturas da fome e da sede. Fase terrível essa. Queria desembaraçar-me do leito maldito, ao qual estava atada; pedia, gritava, tudo em vão. Boca ressequida, língua colada ao véu palatino, ardiam-me os olhos, tinha desmaios; os anéis das algemas haviam penetrado profundamente na minha carne pelo esforço que fazia para desembaraçar-me; o sangue cor ria, eu me debatia delirante, louca.

Por fim, fiquei como que envolta numa, nuvem, meu corpo queimava; pensei que o teto desabava sobre mim, que os muros se fendiam em círculos de fogo; depois, sobreveio um último desmaio e perdi os sentidos. Pensei que estivesse morrendo. Mas, seria tão dolorosa a separação da alma e do corpo?

Passado algum tempo, que não posso precisar, pareceu-me que despertava; senti sacudir-me fortemente e despejar qualquer coisa em minha boca. Abri os olhos e vi o meu perseguidor Tibério, lívido, assustado, a sacudir-me, quase a quebrar-me os ossos.

Vendo-me reabrir os olhos, colocou-me na cama e busquei dar-lhe a entender que vivia para não ser maltratada por aquela forma.

Mais tarde, vim a saber que, por abominável intriga, forjada por Febé e Sejano, o homem que guardava a chave do meu quarto e que deveria trazer-me alimentos, tinha sido decapitado.

Tibério não arredou pé e quando me viu pouco melhor, disse:

— Tudo isso é fruto da tua teimosia estúpida em não querer confessar teus verdadeiros sentimentos para comigo.

A presunção do tirano não lhe permitia compreender que era incapaz de me inspirar paixão e assim se manteve em mais de uma existência. Nem sempre, porém, dispôs dos meios de tirano para me dominar e contentava-se, então, em praticar crueldades que lhe permitia a época em que vivíamos e a posição que ocupava.

Essa dissimulação de minha parte e que ele no seu íntimo não acreditava, sempre o exasperou e conduziu à maldade; nunca, porém, experimentou o único meio que me poderia reconduzir-lhe. O amor não se inspira pela violência, mas pela nobreza e bondade da alma, que fazem esquecer ofensas e despertam afeição. Sua presunção e orgulho não lhe permitiam manifestar tais sentimentos. Além disso, Febé e Sejano, constituiam-se fiadores dedicados da sua desmoralização e dos seus vícios, de que tiravam partido.

Em muitas existências Febé concorreu comigo, mas também sempre recusei combatê-la.   Tibério não contribuía para isso, porque, constantemente, me preferiu. Quanto a mim, tenho um espírito que me é caro e simpático: o de Helderico; quando o reencontro, esqueço tudo mais.

O médico prescreveu passeios; eu devia respirar ar puro, se quisesse restabelecer-me. Tibério consentiu em que o fizesse, mas unicamente na sua companhia. Muitas vezes também repousava num terraço, deitada sobre almofadas, mas raramente trocávamos palavra. Tibério tinha um gênio pouco comunicativo e absorvia-se nos seus pensamentos; e eu, por mim, me encontrava em tal estado de espírito, que mais me aprazia calar.

Certa feita, conduziram a esse terraço onde me encontrava, como de costume, vários prisioneiros. (Soube mais tarde que eles haviam rondado a minha prisão). Vendo-os, quase desmaiei de alegria e terror; é que entre eles reconheci Hilderico e meu irmão Raimundo. Tibério percebeu a alegria de Hilderico ao ver-me e seus olhos brilharam sinistros.

Após breve interrogatório, fê-los recolher à prisão.

Até então, apesar dos meus padecimentos, gozava relativa calma, mas daí por diante, sabendo que Hilderico e meu irmão se encontravam perto de mim, todo o meu estoicismo desapareceu. Queria vê-los a qualquer preço. Tibério não aparecia e eu o aguardava com tal impaciência, que, cada passo me fazia estremecer. Ele não vinha. Então — coisa incrível— decidi-me a comunicar-lhe que desejava vê-lo. Mesmo assim, não atendeu. Meu desespero era indescritível. Febé, que se mantinha a meu lado, dizia:

— Enfim, vês que Tibério te abandona e não atende ao teu chamado. Mas o que ignoras é que os prisioneiros, que viste, vão ser mortos e o belo jovem louro terá os olhos vazados e o nariz cortado.

Eu tapava os ouvidos para não ouvir essas horríveis confidências e pedia insistentemente que chamassem Tibério.

For fim ele veio, mas acompanhado de numeroso séqüito. Ao entrar, deixou a porta aberta e disse de modo a que todos ouvissem:

— Enfim, o amor dominou teu orgulho e mandaste chamar-me. A uma bela mulher é preciso tudo perdoar.

A raiva se apoderou de mim e exclamei:

— Não foi por isso que te mandei chamar, tirano!

Não pude continuar, porque Sejano bateu a porta com violência, para nos separar da comitiva. Tibério estava fora de si.

— Então, por que me chamaste? Como ousas desdizer-te? Desde que me avistas, retomas tua insolência e neste caso retiro-me sem te ouvir.

Como se tratasse da vida de Hilderico e de Raimundo, eu estava completamente fora de mim. Tibério abriu a porta e quis sair.

— Fica! — exclamei.

Ele saia devagarinho, apenas movia os pés.

— Fica, Tibério.

Mas não parecia ouvir-me.

— Eu te suplico, fica. Voltou-se e disse:

— Por que mo pedes? não cales, nem escondas o motivo de tanta insistência, porque, de outro modo, não mais me verás.

A raiva me sufocava: se lhe dissesse que desejava falar dos prisioneiros, estaria tudo acabado, ele não mais voltaria.

Corei de vergonha e revolta; ele queria forçar-me a declarar, diante do seu séquito, que o retinha por amor, e eu preferia, contudo, ter a língua cortada a dizer semelhante coisa.

Começou a sorrir... Como já disse, ele era a fatuidade personificada. Mantinha, indolentemente, uma das mãos na cintura e outra acariciando o queixo.

— Pois bem, Lélia, bela Mara!   Vês? Desde o momento que me tornei caro a ti, os deuses permitiram soubesse teu verdadeiro nome — e voltando-se para o séqüito. — Vede, entretanto, como ela se sente acanhada em confessar que me ama! Fraquezas da alma feminina! Mas o tempo urge, Mara, por que me chamaste? Como choras! Não chores, confessa somente a verdade!

Meu coração batia na iminência de romper-se. Poderia sacrificar Hilderico e Raimundo? Retruquei, pois, com voz apenas inteligível:

— Pesava-me a tua ausência, pois que to amo!

Com extraordinária precipitação Tibério voltou-se e fechou a porta. Estava radiante com a vitória. A agudeza do meu ouvido pode perceber um riso abafado por trás da porta, mas ele nada ouviu. Então, pedi que me mostrasse os prisioneiros, que lhes concedesse a graça de regressarem ao seu país.

— Bem — respondeu — se diante de todo o meu séquito disseres aos prisioneiros que me amas a ponto de não mais desejares voltar à tua pátria, mesmo com minha aquiescência, eu lhes concederei graça e os reenviarei a seu país.

Prometi. Para salvar-lhes a vida estava pronta a jurar que alimentava uma paixão insensata pelo verdugo.

Chegou o dia marcado para a audiência. Tibério me presenteara com magníficos vestidos para esse ato; queria mostrar que me proporcionava luxo.

Apresentei-me, pois, com rico vestido todo bordado a ouro, capa encarnada e coberta de jóias preciosas, e assim fui conduzida ao salão. Tibério estava sentado num estrado atapetado de veludo, rodeado dos seus cortesões e pretorianos. Fêz-se assentar junto do estrado e mandou entrar os prisioneiros, que se apresentavam sãos e salvos.

Vendo-me, manifestaram grande alegria. Disseram a Tibério que estavam dispostos a negociar meu resgate, para levar-me. Tibério, com aquela voz profunda e impassível, respondeu que concordava em entregar-me.

— Vede, acrescentou, que não lhe falta nada; tenho-a mantido comigo, mas, se ela o quiser, não me oponho a que vos acompanhe.

O olhar dos prisioneiros recaiu sobre mim. Minha palidez e a mudança do meu aspecto fez, certamente, com que duvidassem da verdade, mas não ousei, sequer, dirigir-lhes um olhar de inteligência, em atenção à vida deles.

— Então, Lélia — prosseguiu — resolve: queres voltar para junto dos teus, ou preferes ficar comigo e mandar dizer a teu pai que és feliz e se ele desejar ver-te será bem recebido?

Foi então que proferi a mais horrorosa mentira, que jamais a angústia impôs a um coração humano. Respondi:

— Amo Tibério e não desejo separar-me dele por coisa alguma deste mundo... Inútil, porém, que meu pai venha visitar-me, pois está velho e ficará plenamente satisfeito sabendo que sou feliz.

A essa altura, Tibério inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos e parecia sonhar.

Vencido o angustioso momento, experimentei passageira alegria quando abracei meu irmão. A Hilderico contentei-me em apertar-lhe a mão. Depois, aconselhei-os a que partissem o mais depressa possível, para levar notícias a meu pai, dizendo-lhe da minha parte que não mais deveria inquietar a meu respeito, porque me sentia inteiramente feliz.

Tibério estava satisfeito. Separamo-nos e não mais vi os prisioneiros. Dias depois, quando tive novamente a idéia de não mais dissimular meus sentimentos diante dele, ficou possesso. Eu acabava de lhe dique o detestava e que meu coração havia seguido Hilderico.

— Vem, quero mostrar-te qualquer coisa — disse.

Conduziu-me a um pequeno pátio, onde vi um muro de pedra muito alto, com uma porta fechada. Em vez de abri-la, ele suspendeu-me nos seus braços e enfiou-me a cabeça pela abertura existente no muro.

Fiquei espantada, mas, de pronto não atinei o que significasse tudo aquilo. Do solo emergia uma cabeça, rodeada pelos louros anelados cabelos de Hilderico, porém estava irreconhecível e rodeado por quantidade de ratos, que se empurravam mutuamente para melhor devorá-la! O nariz, as faces e mesmo os olhos, haviam desaparecido, tragados pelos vorazes roedores; e dessa massa sangrenta, horripilante, que não mais parecia uma cabeça escapavam-se, de tempos a tempos, gemidos que nada tinham de humanos.

Fiquei petrificada e admiro-me de não haver enlouquecido naquele momento.

Voltei-me, atirei-me a Tibério com tanta raiva que me não recordo do que fiz, senão que desejava matá-lo.

 

Arrancaram-me de cima dele. Os assistentes estavam estarrecidos; o furor me cegava; abri passagem, corri para o cercado; queria passar através da abertura, era impossível. Voltei-me então para Sejano que o estupor tinha colado ao solo, tomei-lhe o alfanje e abri a portinhola lançando-me sobre Hilderico. Levantei a arma e lhe rachei o crânio. Era um benefício que o livrava do suplício atroz.

Só então percebi que os ratos começavam a subir na minha roupa. Horrorizada, desmaiei.

Quando voltei a mim, estava na minha prisão e lá fiquei só durante longas horas, até que chegou Febé. Seu olhar cintilava com expressão de satânica alegria.

— Enfim — disse — tua maldade vai custar-te a vida; morrerás pelos teus crimes e para desafrontar o atentado à pessoa de Cláudio Tibério Nero. È preciso ter os miolos às avessas para arriscar uma tal aventura! Teu irmão voltou ao seu país, mas, somente depois de lhe cortarem as orelhas e o nariz. Isto, entretanto, não impediu Tibério de apossar-se da importância do teu resgate. Ele, por sua vez, muito sofreu, tem o pescoço inteiramente ferido, mas não pode resistir a tentação do ouro; neste momento está contando o dinheiro em companhia de Sejano e diz que enriquecerá o tesouro do império.

Não me admirei dessa nova infâmia, pois conhecia a sórdida avareza de Tibério.

Febé continuou a contar novidades muito agradáveis.

— Sabes que se reúne um conselho para Julgar-te pelo atentado à pessoa de Tibério? Terás as mãos cortadas e serás queimada viva.

— Tibério não consentirá que eu seja mutilada,— respondi. — Ou me matará, ou morrerei com todos os meus membros; ele apenas desfigura aos que me são caros.

Ela estava furiosa, mas ficou junto de mim para me torturar, falando do suplício de meu irmão, como lhe haviam cortado as orelhas e o nariz, e como ficara ridículo depois disso!...

À tarde desse mesmo dia, compareci perante o conselho, para ser julgada.

Firme e tranqüila, aguardava a morte; eles não podiam ir além.

Tibério estava sentado no centro da sala, pálido e assaz inquieto; mostrando no pescoço a avaria dos meus dedos, manchas azuladas e ranhuras que ainda sangravam; seu aspecto demonstrava (supondo-se que isso fosse possível) maior crueldade e impassibilidade que de costume.

Sejano lá estava junto dele e de numerosos patrícios, seus conselheiros.

Levada por dois soldados armados, mantive-me de pé, aguardando a sentença.

Quando Sejano começou a longa e pomposa arenga em que relatava a minha ingratidão e o atentado afrontoso que, só graças aos deuses, não tinha se consumado contra a pessoa do futuro imperador, glória e esperança do povo romano, Tibério aprovava com a cabeça; e quando falou da minha ingratidão, voltou o rosto para o meu lado e, pretendendo demonstrar bondade para comigo, suspirou, fechou os olhos com ar triste e pensativo.

Eu sabia que estava perdida e dei livre curso à minha cólera e desespero.

— Sim — disse — é verdadeiramente lamentável que um tal tirano, desprovido de todo sentimento de humanidade, não tenha perecido às minhas mãos. Qualquer outro teria feito o mesmo, vendo infligir a um ente amado tão infernal suplício.

Tentaram interromper-me, principalmente Sejano, que continuava a falar para abafar-me a voz, a repetir uma série de acusações desprovidas de sentido; com isso atrapalhava e me impedia de continuar. Vendo que não podia dizer o que queria, impacientei-me!

— Oh Sejano! falas muito para obstar que diga a verdade, mas fica certo que tu mesmo perecerás às mãos deste monstro; crês que tua baixeza e co-participação em todos os seus crimes te garantirão? Enganas-te: tão logo te tornes suspeito, ou importuno, desaparecerás; lembra-te, então, das minhas palavras.

Tibério não olhou para o seu lado e depois de haver discutido, ainda por algum tempo, a maneira mais cruel de me punir, decidiu lançar-me às feras do circo.

No dia seguinte fui levada às prisões do circo e entregue a um gladiador encarregado de custodiar as vítimas destinadas ao espetáculo mais próximo.

Esse gladiador, belo homem chamado Astartos, inspirou-me logo a maior confiança e muita simpatia. Conduziu-me a uma prisão escura, de paredes nuas e úmidas, onde havia apenas um feixe de palhas.

— Não ficarás só— disse ele ao recolher-me — há aqui outra mulher também destinada ao circo.

Saiu. A obscuridade não me permitiu de pronto distinguir os traços da pessoa que lá estava deitada sobre a palha; mas, quando meus olhos se habituaram ao ambiente, percebi uma mocinha muito pálida e assaz bela. Sua expressão denotava energia incomum e teimosia que devia igualar, pelo menos, à minha.

O infortúnio comum nos aproximou rapidamente e vim a saber de Veleda (esse o seu nome) que, tal como eu, preferia a morte a um tirano, abominável. Depois, descobrimos que ainda um elo nos unia: sua mãe fora germânica, caída prisioneira e desposada por um negociante de perfumes. Veleda era fruto dessa união. Contou-me que tinha vivido feliz em Pompéia, até que lá chegasse o procônsul Gálio, que a perseguia com o seu amor e lhe cortara a existência, ordenando, finalmente, que fosse lançada às feras, devido ao seu insolente atrevimento e insistente teimosia. Ela própria vos dará os pormenores dessa horrenda história. Pouco depois nos separaram e soube, por Astartos, que Gálio a retomara, levando-a consigo para Pompéia e que, a uma nova tentativa de fuga, fê-la morrer num banho de vapor e decapitar um moço patrício que a amava e havia tramado a evasão.

Novamente só, Tibério várias vezes ainda propôs, por intermédio de Astartos, conceder-me perdão se lhe pedisse publicamente, o que sempre recusei, pois queria morrer.

Até que enfim, chegou o dia trágico.

Apesar da minha coragem, experimentei grande terror e fui tomada de íntima fraqueza ao aproximar-se a hora do suplício. O lúgubre rugido das feras muitas vezes me acordara durante a noite; entretanto, devia aprontar-me convenientemente para morrer; tinha o vestido rasgado e sujo, após tantas vicissitudes suportadas e não queria aparecer em público naquele estado. Pedi outras vestes. Por ordem de Tibério, Astartos levou-me ricas e elegantes, com que me preparei pela última vez na vida, qual supunha.

Terminada a tarefa, fizeram-me sair e entrei na arena. O imenso anfiteatro regurgitava, maravilhoso, e, no camarote imperial, Tibério trajado com luxo, mantendo a cabeça curiosamente inclinada para frente, estava rodeado por Sejano e outros cortesãos. Meus nervos cederam; inteiramente trêmula, apoiava-me contra o muro e cobria o rosto com as mãos; não desejava, no último instante de vida, contemplar o semblante odioso do meu verdugo.

Abriu-se uma jaula e um tigre pulou na arena. Vendo-o tão próximo, de olhos verdes pestanejantes, quase sentindo no rosto seu hálito inflamado, caí de joelhos e desmaiei.

Quando voltei a mim, supus que estivesse morta e deparando o rosto de Tibério a fitar-me, repeli-o apavorada, exclamando:

— Ainda tu? Não ficarei jamais livre, nem mesmo depois da morte?

Esta exclamação muito o contrariou; entretanto, estava satisfeito por haver-me recuperado e procurava mesmo mostrar-se bondoso e amável, à sua moda. Mas depois do ocorrido, vinha muito tarde; eu não lhe suportava a presença senão com grande sacrifício.

Uma vez restabelecida, recomeçou a vida habitual, monótona, só interrompida a intervalos por suas cenas de ciúme ou de raiva, por causa da minha dissimulação ou falsidade — como ele dizia; de um modo geral porém, nada de grave me sucedeu. Lembro-me somente de uma ocorrência que me deixou funda impressão, começando por me divertir bastante, mas depois quase fazendo perder a vida. Entretanto eu já estava habituada a correr tais riscos.

Nesse dia, realizava-se em Roma grande festa popular. Por toda parte alegria, jogos, diversões.

Depois do almoço, os cortesãos de Tibério se dispersaram e, como entardecia, ele deliberou dar um passeio pelos jardins. Pobre criatura obrigada sempre a lhe fazer companhia, fui, seguida de algumas outras. Caminhando, aproximamo-nos de pequeno peristilo contornado por colunas e que constituía dependência do palácio. Dali partia um sussurro de vozes. Tibério parou e, com um gesto, ordenou silêncio; ouviu-se então distintamente a voz de Febé, que falava de Tibério; espreitei através dos arbustos e reconheci-a no pequenino terraço, de vestido curto e rosto esfogueado pelo vício, rodeada de rapazes, todos de costas para nós. Se ela não estivesse embriagada, não falaria do seu terrível senhor; no estado em que se achava, porém, tagarelava sem peias e, se não desvendava graves segredos, ao menos falava de fraquezas, faceirices e fatuidades de Tibério. Foi então que fiquei sabendo que ele disfarçava secretamente os defeitos com maquilagem, embora desdenhasse aparentemente todo artifício para se tornar mais bonito.

Também contava que, muitas vezes, fazia-se admirar por ela, inteiramente despido, para demonstrar-lhe que era igual a um Apoio nas formas.

Com as explosões de riso que esta revelação provocou, notei que Tibério experimentara um tremor nervoso em todo corpo e fiquei apavorada; nesse instante Febé, para coroar tamanha leviandade, gabava-se de possuir um amante, (cujo nome revelou), enquanto Tibério acreditava ser o único amado por ela.

Este não mais se conteve.

— Prendam-na! — berrou.

Em tal ouvindo, Febé rojou-se-lhe aos pés, pedindo perdão.

Insensível, mas menos cruel que de costume, ele decretou para o jantar um suplício a fim de punir os culpados, não de morte, mas de degradação moral.

O infeliz que com ele dividia o amor de Febé foi posto em baixo da mesa, para comer a restos que os convivas lhe atiravam, em sinal do mais profundo desprezo; Febé, ao invés, montada num enorme suíno, segurando-lhe a cauda, passeava ao redor da mesa, conduzida por dois escravos.   Sua atitude era tão grotesca, que até eu, que nunca ria, fi-lo gostosamente, para maior gáudio do tirano.   Ela lamentava-se quando passava junto de Tibério, mas tanto que se lhe aproximava, um escravo aplicava-lhe pancadas na nuca com uma espécie de vassoura, para obrigá-la a baixar a cabeça; o porco grunhia horrivelmente e a alacridade era geral. Quanto ao seu cúmplice, esse lá estava em baixo da mesa, com os bacorinhos amarrados às mãos para compartilharem do que lhe davam, e ainda sujeito aos pontapés que os convivas estavam autorizados a lhe aplicar, prazer que Tibério foi dos primeiros a experimentar.

Após o jantar, o desgraçado recebeu duas terríveis bofetadas e os escravos o expulsaram a pontapés. Por fim, desapareceu, feliz sem dúvida por haver pago tão barato o seu delito.

Febé prosternou-se, lacrimante, aos pés de Tibério, a implorar perdão; mas para ela ainda não estava tudo acabado.

Os convidados retiraram-se ficando apenas eu e os íntimos. Então, Tibério mandou chicoteá-la em sua presença. Quatro escravos seguravam-na e ele próprio lhe prendia a cabeça com os pés. A execução começou. Eu permanecia junto dele, segura pela mão, mas corava de vergonha e voltava o rosto para não ver a cena hedionda.

Percebendo meu desgosto e constrangimento, Tibério pôs-se a rir e para resguardar minha sensibilidade, cobriu-me a cabeça com a própria toga.

Terminado o castigo, Febé toda chorosa ajoelhou-se para beijar os pés do algoz e insistir no seu perdão.

Ele estava satisfeito e observava-me para conhecer o efeito que me causava aquela humilhação.

Experimentei profunda aversão por essa mulher ignóbil, que ainda beijava os pés do seu carrasco, depois de tais ultrajes. Por mim, tê-lo-ia estrangulado sem temor!

Com olhar sinistro e desconfiado, fixo em mim, ele disse:

— Por que, Mara, tens um ar tão desdenhoso? Vês como se vingam os agravos à minha pessoa?

Descuidei-me e respondi imprudentemente:

— Podes esperar toda a vida, que te não beijarei as mãos, quanto mais os pés. Ê preciso ser mulher bem ordinária para fazê-lo. De resto, sereis sempre bons amigos, porque onde não há honra não pode haver ofensa.

— Ah! — exclamou com a voz inteiramente mudada — Mara, tua língua te custará a vida, apesar da minha indulgência sem limites para contigo.

Inclinou-se para mim, ameaçador:

— Achas que sou indigno de que me beijem os pés; pois bem, eu te forçarei a fazê-lo, a ti que tanto desdenhas o teu futuro imperador.

Um tal ou qual terror se apoderou de mim; arrependia-me de haver arriscado semelhante ofensa, mas, minha convivência com Tibério me havia ensinado certas pequenas manobras que podiam ajudar a dominá-lo (não fosse eu mulher); assim, apesar da profunda aversão que lhe votava, servia-me desses pequeninos meios para tornar mais tolerável a situação.

Minha força era a delicadeza do meu físico, pois, extremamente fraca, desarmava-o sempre; suas mais violentas manifestações de cólera se extinguiam diante das minhas lágrimas e da palidez (meios, aliás, de que raramente me servia). Devo confessar, apesar de tudo, que a convivência me habituara a esse homem, a despeito do meu ódio, porque eu não o deixava jamais, visto que me guardava como gato ao rato. Conhecia-lhe as fraquezas, e, astuciosa, as explorava; quando ele me cobria de grosserias e insolências, procurava acalmá-lo, emprestando à voz uma entonação terna e cheia de escusas. Naquele lance, arrependia-me do que dissera. Sem dúvida, não acreditava que ele pudesse forçar-me a praticar um ato degradante, beijar-lhe os pés; mas, ainda dessa feita, temia-lhe a violência.

— Então — prosseguiu — levanta-te e vem beijar-me o pé!

Levantei-me.

— Estás louco! — respondi — bem sabes que o não faria jamais.

— Ah! — berrou já fora de si — pois isso te custará a vida.

Em vez do punhal, tomou do chicote que tinha servido para Febé.

O momento se tornava crítico e previ que a cena poderia acabar mal, porque, embora sempre mantivesse atitude que importava em obediência, a qualquer um outro alto personagem, talvez concordasse em conceder esse testemunho de respeito, sem me sentir muito humilhada, mas tratando-se dele, eu preferia a morte antes que lhe dar tal satisfação. Mesmo quando me ameaçava brandindo o punhal, não cedia.

Para abrandar-lhe a cólera, porém, propus abraçá-lo espontaneamente e ele concordou de pronto. Fizemos as pazes.

A necessidade me fizera hábil comediante, quando, sem constrangimento aparente, passava os braços pelo seu anguloso pescoço e lhe beijava os lábios pintados, sem, entretanto, tisnar os meus.

Um dia, ao findar esse ano, Febé veio procurar-me e confidenciou que meu pai e meu irmão Aleric se achavam ocultos em Roma; haviam fretado um navio, tramando minha fuga; de tudo estava informada, e como a minha presença lhe fosse incômoda, desejava que me evadisse e me ajudaria a fazê-lo na primeira ocasião que Tibério se ausentasse de Roma por dois ou três dias.

O plano surtiu efeito, tudo correu a contento e passei um dia feliz a bordo, livre e rodeada por meu pai e meu irmão. Mas o destino devia cumprir-se. Tibério regressou inesperadamente e me perseguiu sem trégua nem vacilações. Não estávamos ainda muito longe, quando vimos o mar coalhar-se de embarcações cheias de soldados romanos. Aqueles barcos ligeiros, muito bem dirigidos, cedo nos alcançaram; fomos cercados e recebemos uma chuva de archotes acesos. Logo envolvidos pelas chamas, desesperada e furiosa com a perspectiva de perder novamente a liberdade, atirei-me ao mar atrás de meu pai e de meu irmão, mas os soldados me retiraram das ondas e me entregaram ao perseguidor. Tibério, vendo que eu preferia a morte à sua companhia, arrancou do punhal e feriu-me o peito mortalmente.

Longa e dolorosa foi a minha agonia. Minha alma não se separou do corpo senão lentamente. Já agonizante, percebi que Hilderico vinha ao meu encontro.

Quando tudo tinha acabado, lancei um derradeiro olhar aos meus despojos mortais e vi Tibério ainda abraçado ao meu cadáver,

Decorrido muito tempo, muitos anos para os homens e um instante no mundo dos espíritos, nos encontrávamos todos reunidos e, contudo, ó nosso julgamento não tinha sido marcado, porque faltava Tibério. Ele reinava ainda, arrogante imperador, desfrutando todas as honras e saciando-se de crueldades.

Certa feita, passou entre nós um murmúrio, que massas transparentes transmitiam umas às outras.

— Tibério atinge o fim; vamos recebê-lo e conduzi-lo a julgamento.

Achava-me com Hilderico e também quisemos ir ao seu encontro.

À nossa passagem, muitos espíritos se nos juntaram, formando logo um verdadeiro exército. Todos tínhamos sido tiranizados por aquele que íamos recepcionar.

Em massa compacta, movendo-nos qual nuvem tempestuosa, baixamos ao palácio de Tibério. As sentinelas de guarda às portas, imóveis qual estátuas, não puderam opor-se à nossa invasão.

Numa alcova decorada com luxo real e francamente iluminada, estava um velho estendido no leito. Havia mudado bastante desde a época em que eu o deixara; a velhice acentuara ainda mais os traços angulosos dando-lhe o fácies de uma crueldade ainda maior; parecia enfraquecido, mas, nos olhos encovados brilhava uma chama lúgubre, cheia de energia e orgulho.

Entre os visitantes invisíveis, muitos o contemplavam cheios de ódio e enraivecidos, comprimindo-se ao redor, enquanto ele apoiava-se num dos cotovelos e meditava. Não via, sem dúvida, aqueles inimigos, mas foi tomado de opressão mais forte e profundo suspiro lhe escapou do peito.

— Dentro em pouco — murmuravam as massas flutuantes e cheias de ódio — deixaras este asilo que te colocou acima da justiça humana.

Nesse momento, um homem togado entrou de mansinho, aproximou-se e tomou-lhe o pulso, dizendo logo a seguir:

— Todo o perigo, passou; ainda viverás muito tempo.

Um riso escarninho agitou a turba insaciável, que apertou mais o cerco.

O homem saiu e a cabeça do poderoso imperador recaiu nos travesseiros.

— Que os deuses sejam louvados — murmurou ele — viverei por muito tempo.

Os espíritos se agitam:

— Eles vêm, eles vêm!...

Essas palavras passaram entre nós como um sussurro.

Com efeito. Alguns homens entram; dois escravos assentados perto do leito se levantam e depois ficam imóveis; os recém-vindos investem para Tibério. Ele ergue-se, compreende o perigo; seu rosto se torna lívido, os olhos se dilataram; procurou uma arma e não encontrou, quer levantar-se, mas o corpo não obedece; grita, mas a voz, que durante cerca de quarenta anos congregou massas de homens e de exércitos, à menor suspeita, desta vez, permanece sem eco.

A multidão transparente de espíritos se comprime entre os assassinos e parece tudo dirigir; percebem-se suspiros roucos e, depois, abafado estertor.

Eu me quedava à parte, com outros espíritos, quando uma vibração toda espiritual, somente a nós, perceptível, anunciava a morte de Tibério.

Instantaneamente, no meio dos espíritos, aparecia um feixe de fios luminosos, qual fuso que se desenrola, e imediatamente o perispírito de Tibério se mostrou já condensado. Confinado e envolvido, recuou apavorado, mas a massa nevoenta o reteve e se elevou no espaço com o seu troféu, enlaçado e mantido por centenas de fios luminosos.

Os demais espíritos afastaram-se para dar passagem ao nosso estranho cortejo, que conduzia, enfim, à justiça e à expiação, a alma daquele que perdera todo o poder terrestre e agora nada mais era que um grande culpado, abandonado à sanha de milhares de inimigos.

 

NARRATIVA DE VELEDA

Nasci em Pompéia, filha de abastado negociante. Nossa casa de comércio achava-se num dos melhores quarteirões da cidade e negociava em vinhos, óleos aromáticos e perfumes.

Titus, meu pai, já velho e doente, tinha entregue todos os encargos do negócio a mim e a Tito, meu irmão adotivo.   Minha mãe, há muito falecida, era germânica aprisionada pelos romanos.

Eu dirigia o negócio e atendia os fregueses auxiliada por Tito, que o surtia em mercadorias. Assim vivíamos, tranqüilos e felizes em nossa mediocridade, que nada parecia dever perturbar.

Ao tempo em que começo este depoimento, contava os meus dezessete anos e era tida como beldade das mais notórias de Pompéia; acabava de contratar casamento com Tito, coisa que meu pai mais almejava, certo de que, sob nossa direção, o negócio prosperaria. Tito era um belo rapaz, que qualquer ricaça pompeana desposaria de bom grado; mas a verdade é que ele me adorava e preferia a qualquer outro, partido.

Cumpria-me desenvolver muita atividade para atender à clientela, pois a casa era muito afreguesada e, devo confessar, minha pessoa lhe emprestava grande atrativo, pela formosura que atraíra muita gente; jovens e ricos patrícios raramente deixavam passar um dia sem adquirir alguma coisa das mãos da «bela Veleda».

Uma tarde, regressando das compras, Tito mostrou-se muitíssimo entusiasmado, dizendo:

— Sabem o que se propala? Uma das legiões, que voltaram da Germânia, com Tibério, vai aquartelar aqui; mas o principal é que o procônsul Gálio, vem igualmente residir nesta cidade. Consta, ao demais, que já se cogita de preparar-lhe magnífica recepção.

Também exultei com a notícia, pois há muito não se realizavam festas dessa natureza.

Não se passaram muitos dias e correu por toda a cidade que «o ilustre Gálio, amigo e companheiro de armas de Tibério, vindo da Germânia coberto de glórias, resolvera fixar-se na cidade natal, a fim de repousar das fadigas da guerra, e que, desejando homenagear o regresso do grande cidadão, honra da pátria, o Senado local resolvera que se lhe preparasse uma recepção triunfal.

A notícia alvoroçou a pequena cidade e todos se preparavam, cuidando também de aumentar, na medida de suas possibilidades, o brilho da manifestação.

Foram erguidos arcos de triunfo engalanados de flores e folhagens, constituídas comissões para ir ao seu encontro, as moças de Pompéia, à entrada da cidade, deveriam entregar-lhe flores e valiosos presentes.

Entre as mais belas, participei dessa comissão feminina, e a questão da minha Claudette me absorveu inteiramente. Depois de muito pensar, decidi-me por um vestido cor-de-rosa, enfeitado com pregas de ouro e um véu branco marchetado de estrelas douradas..

Chegado o dia solene, coloquei sobre os cabelos louros uma coroa de rosas e, num último olhar ao espelho de metal, dei-me por satisfeita. Nada obstante, sem motivo justificável, vaga inquietação, um estranho mal-estar foi-me possuindo aos poucos, e, corno houvesse esperado aquele dia com grande impaciência e alegria, não podia compreender-me a mim mesma. Tito também observou meu nervosismo.

— Que te falta ainda, Veleda? — perguntou. — Estás-me parecendo esquisita; numa ocasião como esta tudo te enfada, nada te satisfaz. Vamos. O ar puro dissipará o mau humor.

Tomou-me a cesta de flores e folhagens, e, a certa altura, nos separamos porque ele fazia parte doutra comissão.

Colocaram-me na primeira fileira de moças e aguardamos.

Junto à porta de acesso à cidade, alcalifada de folhas e decorada com magníficas cortinas, comprimia-se a multidão de cabeflas ondulantes como vagas marulhosas e todos os olhares se concentravam na direção em que deveria apontar o cortejo.

Eu sobraçava convulsivamente minha cesta florida e o mal-estar, a inquietação que me haviam torturado em casa, aumentavam de instante a instante nessa expectativa. Apesar do calor abrasante, sentia frio e febre, tendo os olhos como que cravados no arco de triunfo, cuja metade se ocultava atrás da massa popular.

— Estás doente, Veleda? — perguntou uma das moças vizinhas — vejo-te tão pálida e trêmula!...

Nada respondi, porque no momento um eco longínquo me chegava aos ouvidos. Eram as aclamações frenéticas dos que saudavam a passagem de Gálio.

Todos os meus sentidos se concentraram na vista; a mole popular, eletrizada, acabava de se dividir em duas, enquanto os batedores abriam alas em grandes brados, precedendo o brilhante cortejo. Ã frente os prisioneiros; depois os soldados e finalmente Gálio, de pé, num carro dourado, ostentando a purpurina toga. O sol se lhe esbatia na armadura e no capacete em revérberos de ouro, rodeado de numerosos oficiais qual se fora o próprio deus da guerra.

Quando o carro passou rente a mim, inclinei-me reverente e lhe atirei aos pés as flores da cesta. Imediatamente estremeci. Gálio acabava de parar e inclinava-se para mim. Fixou-me um olhar que me feriu como acerado punhal partido de uns olhos pardos como os do tigre e cheio de admiração não disfarçada.

— Quem és e como te chamas, bela rapariga?

Balbuciei uma resposta: a emoção me sufocava, e quando dei acordo de mim o carro tinha desaparecido na massa popular e somente as exclamações indicavam a direção do cortejo.

Cercaram-me, felicitavam-me por ter merecido a honra de ser notada por Gálio, mas, sempre muito orgulhosa, não podia regozijar-me com aquele triunfo inesperado. Não compreendia o motivo dessa tristeza e sentia, apenas, que a admiração de Gálio me era odiosa.

De regresso a casa, comentou-se o imprevisto incidente e meu pai disse, abanando a cabeça:

— O mal é maior que a honra; ser bela e identificada por um tirano, não pressagia nada de bom. Que os deuses nos preservem de uma desgraça! Ouvi hoje muita coisa a respeito de Gálio, mas nada ouvi de bom; cruel e libertino, tal como Tibério, seu ilustre amigo.

— A propósito — interrompeu Tito — conversei com alguns soldados da legião que acaba de chegar e me contaram coisas interessantes da guerra, inclusive que Tibério trouxe da Germânia uma jovem prisioneira, filha de um chefe, a qual se deixara aprisionar cedendo o seu cavalo ao seu próprio noivo para o salvar. Essa bela e corajosa mulher chama-se Lélia. Tibério leva-a consigo por toda parte e ela o destrata horrivelmente, ao que se diz.

— Aí está uma coisa de que eu duvido muito — disse meu pai. — Uma rapariga prisioneira, sem proteção, maltratar Tibério! Ele já a teria matado há muito tempo.

— É com efeito inacreditável— acrescentou Tito — mas pretende-se que ela o maltrata de todas as maneiras.

Não sei por que o nome dessa Lélia desconhecida me, chocou. Seria por mera compaixão? Minha mãe também fora germânica. Qual o crime dessa pobre moça arrancada à família, ao noivo, e posta sob o jugo de Tibério?

Muitas vezes, não sabemos onde nascem as idéias; mas, fosse pressentimento ou o que fosse, o certo é que pensava comigo mesma: Se alguém viesse igualmente arrancar-me Tito, ou meu pai, e se fosse Gálio, por exemplo, como não o odiaria e maltrataria! Eu justificava Lélia.

Gálio quis retribuir dignamente a magnífica recepção que lhe haviam tributado os conterrâneos; organizou festas, jogos e representações no circo, e a que eu e Tito não faltamos.

Um dia, houve uma festividade noturna em que tudo resplandecia à luz das tochas. Ele perambulava familiarmente entre a multidão para fruir da alegria que proporcionava aos pompeanos. Também lá estávamos eu e meu noivo confundidos na massa popular.

Já muito longe notei que o procônsul caminhava seguido de vários escravos carregando sacos de moedas e cestas contendo quinquilharias, que distribuía de passagem. Ora parava para falar a um pacato negociante, ora dirigia uma palavra ou um sorriso a alguma bonita moça, mas seus olhos brilhantes não demoravam em ninguém; pareciam buscar qualquer coisa e perscrutavam avidamente a multidão que o cercava.

O rumo seguido devia fazê-lo passar junto de mim; instintivamente, quis recuar e desaparecer entre a multidão, mas o destino havia criado uma barreira intransponível de corpos humanos, que se comprimiam para a frente e não me deixavam qualquer brecha de escapamento. Involuntariamente, apertei mais fortemente a mão de Tito, que, no momento se inclinava para mim, dizendo:

— Gálio vai passar e estou certo que falará contigo; dize-lhe, então que sou teu noivo e ele nos dará talvez um presente, pois está distribuindo ouro.

Nada respondi, mas a idéia de receber um presente de Gálio me repugnou no mais alto grau.

Não tive, contudo, tempo de meditar, pois o procônsul se aproximava e parava diante de mim. Seus olhos, que continuavam a perscrutar a turba, deram comigo e um sorriso de contentamento lhe aflorou no rosto seco e anguloso.

— Ah! a bela Veleda — disse, pois não havia esquecido o meu nome. Aproximou-se lesto e tomou-me a mão apertando-a com efusão. Eu estava como que aniquilada; sentia dever responder-lhe alguma coisa, mas faltava-me a palavra. Vendo-me assim perturbada, sorriu.

— Acalma-te, bela menina, eu te protegerei e dispensarei amizade.

Tito me apertou o braço querendo, sem dúvida, lembrar os presentes esperados.

O olhar arguto do procônsul percebeu o sinal de inteligência:

— Que é isso? — perguntou franzindo o cenho.   Já Tito ensaiava uma resposta, quando interrompi:

— Este é meu irmão — disse tomada de emoção; eu era mulher e a mulher acabava de compreender o sentido e o alcance das palavras de Gálio e a expressão que as acompanhara; meu coração me advertiu que Tito acabava de correr terrível perigo; ele ficou aturdido, mas compreendeu pela expressão do meu olhar que devia conter-se.

— Onde moras, Veleda?

Como poderia esconder-lhe o endereço? Disse-lho.

— Muito bem; irei a tua casa fazer algumas compras.

Inclinei-me profundamente. Então, tirou de si magnífica jóia e ma entregou dizendo:

— Usa-a como penhor da minha estima, e que Júpiter te conserve a saúde.

Curvou-se, enquanto o seu olhar cintilante mergulhou no meu.

Depois, estendeu o braço para um dos sacos contendo peças de ouro, que os escravos conduziam, tomou um punhado e deu a Tito, seguindo após nos apertos de mão.

Eu sufocava, faltava-me o ar.

— Vamo-nos embora quanto antes — disse a Tito — não posso aqui ficar mais tempo, falta-me o ar.

— Estás no teu juízo, Veleda? — retrucou ele — não vês que a festa apenas começou e haverá uma...

— Vamos, quero ir-me embora — conclui, interrompendo-o resoluta.

Cedeu, como sempre, à minha vontade, tomamos o caminho de casa. Lá chegando, deixei-me cair num divã e explodi em soluços; depois lancei fora o pegador que acabava de receber. Tito, que me observava espantado, comentou para meu pai:

— Veleda é insensata; Gálio nos cumulou de gentilezas e nos prometeu vir e sem dúvida fará grandes compras.

— Não passas de um idiota — disse meu pai — se Veleda chora, deve ter motivos sérios para fazê-lo.

Levantei a cabeça.

— Se prezas a vida e o nosso futuro, Tito, não digas jamais, por enquanto, que és meu noivo, porque Gálio quer nos perder; não viste o seu olhar desconfiado e ameaçador, ao indagar quem eras?

Tito bateu na testa:

— Ah! tolo que sou! Agora tudo compreendo; mas não podia imaginar que um tal personagem pudesse olhar-te com tais intenções. Agora, que fazer? Como salvar-nos?

Meu pai abanou tristemente a cabeça:

— Fugir — disse — é irritá-lo desde logo; um tirano tão rico e poderoso, é capaz de tudo. Meu conselho é aguardar e agir segundo as circunstâncias.

No dia seguinte Gálio foi à loja. Assentou-se e lhe ofereci vinho, que bebeu, à minha saúde; depois de haver conversado e feito vultosas compras, despediu-se sorrindo amavelmente e apertando-me a mão.

Na tarde desse mesmo dia, ocupada na arrumação de umas mercadorias, entrou na loja uma tal Cláudia. Eu a conhecia; era tida por feiticeira, intrigante e agenciadora de amantes para os patrícios ricos. Ã chegada dessa criatura tão mal-afamada, fez-me subir o sangue à cabeça, pois compreendi o que significava a visita; temendo-lhe, porém, as bruxarias, procurei dissimular a raiva e convidei-a a sentar-se, oferecendo-lhe doces e vinho.

Depois de haver comido e bebido, disse olhando-me com admiração:

— Como és bela, Veleda. Tua sorte, não pode vegetar numa loja obscura; acredita-me, eu leio o futuro e ele te promete riqueza e amor de um homem poderoso.

— Boa Cláudia,— respondi — sinto-me tão feliz que nada mais desejo que viver e morrer nesta casa.   Nenhuma riqueza, o amor do próprio Tibério, não poderia substituir a ventura de meu casamento com Tito, de quem sou noiva, como sabes.

— Maluquinha — retrucou Cláudia — desprezas a sorte e repeles um futuro de que não fazes nenhuma idéia; escuta, vou descrevê-lo.

Encostei-me à mesa, cruzei os braços.

— Fala, mas, ainda que me mostrasse os esplendores do Olimpo, nem assim me tentarias.

— Criança, ouve antes de falar: tu deixarás esta pobre vivenda para habitar um palácio ornado de colunas de mármore; poltronas estofadas e bordadas a ouro, ao invés destas cadeiras de pau; escravos dedicados adivinharão na tua fisionomia a menor expressão dos teus desejos; encantarão teus olhos com danças e os ouvidos com os seus cantares; as iguarias mais raras, os vinhos mais deliciosos, ser-te-ão servidos em baixelas de ouro; esses vestidos de lã serão troçados por outros de seda preciosa, com jóias dignas de tua beleza; teus pequeninos pés jamais tocarão o pavimento das ruas; quando deixares teu palácio serás levada em liteira dourada, recostada em macias almofadas; fruirás sempre a companhia de um homem poderoso e poderás dizer a ti mesma, com satisfação: aquele diante do qual todos se inclinam até o pó, curva-se diante de mim. Aceita o amor daquele que me envia e ele colocará a teus pés todas as delícias do inundo.

Ouvi, contendo a respiração:

— E que deverei fazer para obter o céu na terra?

— Somente amar o potentado que me fez sua mensageira, acompanhar-me permanecendo em minha casa o tempo necessário para mudar os andrajos que te cobrem por vestidos de seda e pedrarias.

Eu respirava com dificuldade.   Ódio e desprezo sufocavam-me.

— Vou dizer-te, Cláudia, o que se pede em troca desta riqueza: é a minha honra, e o homem que te envia é Gálio; compreendi seus projetos vendo-te entrar. Agora, se a minha mensageira e leva-lhe a resposta. Jamais. — ouviu? — jamais pretendo amá-lo; desdenho o seu ouro, tanto quanto o seu amor, e desejo unicamente que me deixe em paz. Transmite-lhe isso.

Cláudia levantou-se:

— Louca que és — disse — tu te perdes porque Gálio te ama e não é homem para renunciar a uma coisa que deseja tão apaixonadamente. Curva-te, senão quiseres perder-te com todos os teus!

— Não, não! — exclamei fora de mim — vai-te, jamais pertencerei a Gálio.

Ela partiu e corri para junto de meu pai, a fim de inteirá-lo da malfadada ocorrência. Ele torceu as mãos, desesperado:

— Eis a desgraça que eu previra — disse — minha pobre Veleda, se os deuses não nos salvarem, estamos todos perdidos.

Nesse momento abriu-se a porta e Tito entrou seguido de um rapaz.

— Veleda, pai, vede quem aqui está— disse prazenteiro.

Voltei-me e reconheci no recém-chegado um amigo de infância, Marcos, filho de um rico mercador de trigo, que havia estudado medicina e se tornara médico de Tibério.

Abraçamo-lo cordialmente, eu e meu pai, dizendo-lhe este:

— Que feliz acaso aqui te traz, meu caro Marcos? Não estás mais adido à corte de Tibério?

— Vim passar apenas umas semanas, visitar minha velha mãe e resolver negócios urgentes. Tibério só a contragosto me concedeu esta licença, porque precisa freqüentemente de mim.

Fechamos então a loja para conversar mais à vontade.

— Conta-nos algumas novidades de Roma e da corte — disse meu pai — lá no centro do mundo político tudo podes saber.

Marcos apoiava-se na mesa e denotava tristeza e sofrimento.

— Escuta — disse-lhe tocando no ombro — é verdade que Tibério trouxe da guerra uma jovem germânica que o maltrata?

Aguardava a resposta com ansiedade. Se, de fato, uma mulher ousava maltratar Tibério, um futuro imperador, maior direito me assistia de fazer o mesmo a Gálio, se ele ousasse aproximar-se.

 minha pergunta, súbita palidez cobriu o rosto de Marcos.

— Que os deuses nos preservem sorte igual a da pobre Lélia! Feliz, tu, Veleda, por não teres sido focalizada por um tirano; bela qual és, procura fugir dos olhares de um potentado, porque, em lhe caindo em graça, terás em perigo a própria vida.

Não pude conter um profundo suspiro. Tarde vinha o aviso; a desgraça me atingira; queria, entretanto, colher o maior número possível de informações sobre essa companheira de infortúnio, que combatia em Roma o que certamente me competia fazer em Pompéia.

— Meu Deus! — acrescentou Marcos — em retribuição ao tratamento que Tibério lhe dispensa, Lélia o maltrata muito pouco. Tive ocasião de vê-la ainda no acampamento, logo que a apresaram. Trata-se de uma jovem selvagem, aferrada aos seus afins e que se julga muito ilustre, porque é filha de um chefe. Durante a viagem, esteve gravemente enferma, conduzida em liteira, entre a vida e a morte e sob os meus cuidados. Tibério já se interessava tanto por ela que vinha vê-la a todo o instante, repetindo:

— Marcos, é preciso que viva; toma nota! Fiz para isso todo o possível, e, embora se trate de uma constituição delicadíssima, poucos dias depois de chegarmos a Roma, ela se restabelecia.

Tudo ia bem quando, uma noite, fui despertado em sobressalto:— Vem ao palácio depressa, quanto antes — dizia o escravo. Corri até lá, levando a botica dos remédios. Ao entrar, fiquei estupefato: Tibério estava de pé, lívido e ensangüentado; colar e roupa em frangalhos; pescoço, braços, mãos, rosto, tudo coberto de ferimentos. — Fecha as portas e pensa-me — ordenou o imperador. Obedeci e apliquei-lhe pomadas e emplastros. Quando terminei, disse:— Salva a besta! — Olhei, espantado, ao redor, porque acreditava que estivéssemos sozinhos e só então percebi, no chão, um corpo inerte e, ao lado, um chicote. Recuei apavorado, era Lélia, exânime, com o corpo crivado de horrorosas equimoses.

Ouvindo Marcos, meu coração batia angustiado; era o poder de que me falara Cláudia, a tirania do forte contra o fraco, era o que me esperava. Então, perguntei ofegante:— Que fizeste?

— Ergui-a e auscultei-lhe o coração, que batia fracamente. Nesse momento, infernal idéia me ocorreu e perguntei a mim mesmo se o melhor remédio não seria facilitar a morte da infeliz criatura.

Em assim falando, Marcos levantou-se e comprimiu a fronte com as mãos.

— Tibério é me odioso — acrescentou — vocês não sabem o que é servir a um tirano detestado, que desejaríamos enforcar e ao qual somos obrigados a demonstrar humildade, obediência, admiração por seus pretendidos méritos. — Quando quis erguer Lélia, Tibério se aproximou e me auxiliou a colocá-la no leito; seus olhos cruéis e desconfiados, não se despregavam do corpo inerte da moça.

— Reanima-a e te recompensarei regiamente — disse, abaixando-se para escutar se o coração ainda batia. — A miserável me mordeu levando-me a puni-la, pois do contrário não teria tocado neste miserável esqueleto; mas, que fazer agora?

Prescrevi logo um banho quente. Tibério não me largou um instante e ajudava-me juntamente com as negras, no banho à enferma, que continuava desacordada, e a pensá-la e acomodá-la. Oh! como é bela, Veleda; se tu a visses! Terminadas as ligaduras, Tibério assentou-se à beira do leito, segurava a mão de Lélia e perguntava a cada instante:

— Marcos, ela ainda vive? Oh! eu lhe pagarei estas horas de inquietação.

Depois inclinava-se:— Lélia, Lélia, gata selvagem, escuta; eu perdôo os teus crimes, olha-me! — e abraçava-a.

Tudo aquilo me revoltava por tal forma que nem sei como dizê-lo. Por fim, sentiu-se fatigado e deitou-se noutro leito, ficando eu junto da enferma.

Desde que um ronco sonoro e estentórico anunciou que Tibério dormia profundamente, a moça reabriu os olhos e me fixou suplicante, tomando-me a mão:

— Marcos, mata-me; é um ato de caridade.

Já minha mão mergulhava na caixa de remédios para dar-lhe a morte desejada, quando, fixando-a, não tive coragem e pus-me a tremer.

— Lélia — disse-lhe — pede-me tudo que quiseres, menos a morte, porque não me sinto com forças para tanto.

Apertava-lhe a mão, quando, nesse instante, Tibério levantou a cabeça:

— Ah, conversais!

De um salto veio para junto de Lélia, que fechou os olhos e calou-se.

— Marcos, tenho gana de mandar de golar-te, por causa dos teus remédios que atuam como narcóticos na doente — e seu olhar, cruel e perscrutador, procurava descobrir na minha fisionomia o que presumia estivesse no meu coração.

Lélia abriu imediatamente os grandes olhos azuis.

— Ah! é um milagre,— disse Tibério; Marcos, teus remédios são bons e não desejo tua cabeça; vejo que ela sabe apreciar devidamente a excelência do teu tratamento, sobretudo para casos como o de hoje.

Ela fitou-o com desprezo:

— Abominável tirano, odeio-te, e se te aproximas experimentarás outra vez os meus dentes.

A estas palavras, o monstro pôs-se a rir, mas, contrafeito.

— Conheço os teus dentes, pequena víbora que aqueço em meu regaço; mas, não desanimo; tu hás de amar-me um dia!

— NUNCA, NUNCA! — respondeu ela.

— Esta vida de médico se me torna odiosa de dia para dia — acrescentou o rapaz enquanto caminhava agitado.

Apesar das nuvens tempestuosas que se acumulavam sobre minha cabeça, eu era muito jovem e ingênua para não esquecer tudo, para não satisfazer minha curiosidade de momento. Assim, quis obter de Marcos notícias dos amigos de infância, que ainda viviam em Roma.

— Dize-me, Marcos, que é feito do nosso belo Astartos e como vive ele em Roma? E Agripa?   Com este deves estar freqüentemente, pois não é certo que ele serve na guarda de Tibério?

Marcos sorriu.

— Astartos é um verdadeiro astartos no horizonte do circo; sua beleza maravilhosa faz as mulheres perderem o juízo e acredita-se que mais de uma ilustre patrícia o admira muito mais do que deseja. Em geral, os pais e os maridos vislumbram traições quando o belo gladiador passeia pelas suas vizinhanças. É preciso acrescentar, de resto, que ele possui uma coragem incomparável; é o primeiro domador de feras e nada mais surpreendente que ver os leões submissos ao seu olhar. A propósito, lembras-te de Febé, que fugiu há alguns anos? Ainda eras menina quando isso aconteceu, mas o caso deu que falar, porque o velho pai dela morreu de desgosto. Pois bem, agora se fez amante de Tibério, após uma vida muito acidentada. Começou com procedimento muito irregular em Roma, depois, amasiou-se com Astartos, que a fez dançarina do circo. Um dia, durante uma representação, Tibério agradou-se dela e tomou-a para si, presenteando Astartos com uma taça de ouro para o indenizar.

Fiquei espantada.

— Como — perguntei — Tibério mantém as duas ao mesmo tempo, Febé e Lélia?

— Não. Febé não é mais a sua favorita, apenas conserva o lugar junto dele, lisonjeando-lhe desmedidamente a fatuidade e fingindo uma paixão louca, além de chamá-lo um deus. É uma criatura ordinária, que associa igualmente Sejano. Tibério sabe dessa ligação, mas nada diz, muito preocupado com Lélia, que lhe dá muito o que pensar e Febé desempenha perfeitamente os dois papéis.

Nesse momento, Tito saiu para trazer alguns refrescos. Então Marcos me disse:

— Veleda, tenho um encargo junto de ti, da parte de Agripa.

— Que é? — perguntei.

— Quando Agripa te reviu na sua últirna viagem a Pompéia, tua beleza lhe causou tal impressão que não pode mais esquecer-te e incumbiu-me de consultar-te se consentes em esposá-lo.

Esta revelação caiu sobre mim como um raio.

— Ama-me Agripa, então? — repliquei admirada.

— Sim — acrescentou sorrindo; somente temo que ele tenha chegado tarde demais, porque Tito me disse que eras sua noiva; entretanto, não quis ocultar-te esse pedido. Talvez pudesses mudar de opinião. Agripa é um partido inesperado; rico, patrício, constitui em todos os sentidos um outro destino que te não pode dar Tito. Pensa nisso.

Baixei a cabeça e meditei. Conhecia Agripa da mais tenra infância; era um belo moço, mas muito exaltado, caprichoso, querendo sempre mandar em todos, até mesmo em mim; ao passo que eu dominava Tito, que só fazia o que me convinha e agradava. Ê verdade que Agripa era patrício, mas isso pouco me tentava. Meu caráter inflexível e dominador detestava toda espécie de sujeição; aqui eu era senhora absoluta, minha vontade, meus caprichos, eram leis; com Agripa, seria preciso conformar e esforçar por satisfazer-lhe todos os desejos, porque sempre julgaria haver feito um favor e um grande sacrifício desposando-me. Seria desdenhada e mal vista pelas outras patrícias, por causa de minha origem plebéia; todo o meu orgulho se manifestou diante dessa hipótese. Não, melhor seria permanecer no meu lugar, dirigindo Tito.

Expliquei tudo isso a Marcos, que me ouvia atento.

— Tens muita razão, admiro o senso e clareza do teu raciocínio. Uma velha cabeça de filósofo não pensaria melhor que o teu cérebro de dezessete anos.

No dia imediato e nos que lhe sucederam, Cláudia recomeçou suas visitas e insinuações, transmitindo-me da parte de Gálio promessas sempre mais sedutoras.

Eu dissimulava e procurava ganhar tempo, mas Tito, por mim informado da finalidade dessas visitas, cometeu grave imprudência. Um dia, encontrando-a novamente comigo, indignou-se e, encolerizado, proferiu contra Gálio pesadas injúrias; depois, pegando Cláudia pela nuca, atirou-a escada a baixo. Sem prever as terríveis conseqüências deste episódio, rimos a mais não poder da maneira cômica como saiu a intrujona.

Na manhã seguinte, ocupava-me em transvasar óleo perfumado de uma grande ânfora para pequenos vidros, quando um reunir de armas ressoou na porta e um oficial, seguido de alguns soldados, entrou na loja.

Aterrorizada, meu coração cessou de bater. Que significava aquilo? Nossa incerteza não demorou muito: o oficial desenrolou um pergaminho e leu uma ordem de prisão para Tito, por insultos graves e ameaças de morte proferidas contra o procônsul Gálio.

Banhada em lágrimas, atirei-me nos braços de Tito, queria defendê-lo; meu velho pai acorreu também, mas nada conseguimos. Os soldados me repeliram brutalmente, ligaram os pulsos de Tito, puseram-no entre eles e foram-se. Tito mostrou-se firme e corajoso; não pronunciou qualquer palavra imprudente, exortando-me apenas que tivesse calma.

Depois que ele se foi, terrível desespero se apoderou de mim e de meu pai; Tito, nosso auxiliar e arrimo, prisioneiro e talvez condenado à morte... Era horrível! Sentimos que era preciso tentar salvá-lo, mas não sabíamos como fazer.

À tarde, veio Marcos. Cobrimo-lo de perguntas; ele, acostumado na corte, devia saber como agir, a quem nos dirigirmos para salvar Tito.

Abanou tristemente a cabeça:

— É um caso difícil— disse. — Sabeis que o poderoso é sempre justo, mesmo que seja mil vezes injusto e tirânico. O único conselho que eu posso dar é irem os dois se prostrarem aos pés de Gálio, num dia de audiência; melhor ainda, se forem amanhã à casa dele, à hora do almoço; eu vos introduzirei, porque sou um dos convidados. Haverá lá muita gente e talvez ele não ouse, diante dos convivas, revelar suas verdadeiras intenções relativamente a Veleda e solicitarão graça para Tito.

No dia seguinte preparamo-nos e fomos para as proximidades do palácio, aguardar a chegada de Marcos, que, inicialmente, procurou encorajar-nos, dizendo que Gálio muito o estimava por sua condição de médico de Tibério; que tivera mesmo ocasião de tratá-lo durante a guerra, e prometeu interceder na medida do possível, sem despertar suspeitas.

Após essa ligeira digressão, penetramos no átrio. Compacta massa de escravos e criados entravam e saíam do interior, conduzindo enormes travessas de assados e pastelarias, grandes ânforas de vinho e cestas dos mais belos frutos.

Nos degraus de mármore que conduziam ao interior, estava disposta uma fileira de soldados. Quiseram impedir-nos o acesso, mas Marcos, familiar da casa, disse: Deixai passar esta pobre gente, eu a conheço; querem implorar uma graça ao procônsul.

Então deixaram-nos entrar, atrás de Marcos, para um extenso peristilo sustentado por colunas de mármore branco, onde nos foi mandado esperar.

Lancei ao derredor um olhar curioso. Luxo fabuloso me cercava. Cortinas de seda escarlate bordadas a ouro, ornamentavam as portas; piras enormes espalhavam ondas de perfume; dando alguns passos à frente, pude entrever a sala do banquete, que aparecia através das colunas. Extensa mesa, sobrecarregada de baixelas preciosas, estava posta e rodeando-a, refestelados em leitos de repouso, acomodavam-se os convivas ricamente vestidos e coroados de rosas; escravos e raparigas circulavam enchendo de vinho as taças vazias. Esforcei-me por distinguir Gálio e imediatamente o reconheci: coberto de jóias, coroa de louros à fronte, permanecia recostado, apoiando-se no cotovelo; rosto afogueado, erguia, no momento, a taça em honra a uma jovem prisioneira germânica, que lhe servia o vinho em atitude desesperada. Era, pois, o luxo de que me falara Cláudia. Comprimi o coração, que parecia romper-se de tanto bater; um ódio feroz contra Gálio me sufocava. Dirigir-lhe uma súplica parecia-me um tal suplício, que, por vezes, preferia mesmo a morte de Tito a essa humilhação; depois, uma voz interior me dizia: é inútil o sacrifício; nada fará por nós.

Nesse momento, fomos chamados e introduzidos, na sala, por um escravo.

Quando nos aproximamos de Gálio, ele estava quase assentado; um sorriso de triunfo e contentamento iluminou sua fisionomia cruel.

— Ah! a bela Veleda — disse — tu te Iembraste da amizade e proteção que te prometi; que posso fazer a favor da mais linda das pompeianas?

Nada respondi; a dor, o desespero me tolheram a palavra; meu pai, porém, falou e intercedeu por Tito. Gálio não se mostrou absolutamente agastado e respondeu com bondade:

— Minha cara gente, jamais pretendi punir esse moço louco pelas suas imprudentes palavras; mas o nosso augusto imperador precisa de novos soldados para cobrir as baixas sofridas por nossas legiões, durante a guerra. Assim, convocam-se aqui recrutas e pensei honrar Tito fazendo dele um soldado; não aceito senão os jovens mais belos e robustos; ele experimentará a glória de defender a pátria e elevar o nome romano de vitória em vitória.

Espanto, ódio, raiva, quase me fizeram desmaiar; como era astucioso e pérfido! E como habilmente mascarava o seu ato de violência e de ciúmes, sob uma falsa aparência de honra! Mas, suplicar, ainda, seria em vão; os princípios de honra da época impediam intercedesse para livrar alguém convocado para defender a pátria; seria um ultraje para ele e para nós e isso acarretaria nódoa infamante à família que assim procedesse.

Gálio continuou com uma naturalidade cheia de benevolência:

— Partirá dentro de poucos dias, mas permito que se despeçam dele, entregando-lhe tudo que quiserdes, como bagagem e dinheiro.

Depois, fêz-nos sentar noutra mesa e mandou servir-nos abundantemente; mas nada podia atravessar minha garganta fechada; eu compreendia o miserável mais que ninguém e minha raiva impotente tornava-me quase louca.

Chegado o dia da partida de Tito, fui com meu pai para junto da porta da cidade, a fim de aguardar o contingente. Era aquela mesma porta onde, semanas antes, encontrava-me de pé com a minha cesta de flores e suando frio, presa de inquietação inexplicável. Agora compreendia aqueles pressentimentos e ressentia-me dos terríveis sucessos. Levamos embrulhos com roupas, dinheiro e provisões secas; enfim, o que de melhor dispúnhamos.

Os soldados pararam, coroados de flores e acompanhados de gritos de alegria e votos de boa viagem da turba. Tito estava triste e pálido; atirou-se ao pescoço de meu pai e me apertou fortemente contra o peito; mas o adeus foi breve porque devia retomar o lugar entre os companheiros.

Silenciosos e desesperados, reentramos em casa. Tudo estava vazio; mortal silêncio parecia reinar na loja, cada objeto lá deixado por Tito queimava-me os olhos; por outro lado, todo o trabalho que ele desempenhava revertia sobre nós. Eu chorava amargamente, pensando na felicidade desfeita e meu ódio a Gálio aumentava dia a dia, quando pensava no ato de injustiça, violência e na minha incapacidade para vingar-me; então, o sangue me subia à cabeça e dizia de mim para mim que, se ele ousasse apresentar-se, bem saberia mostrar-lhe p meu ódio e o meu desprezo.

Vários dias decorreram, eu começava a me tranqüilizar, supondo que Gálio havia limitado sua vingança em arrebatar-me Tito e abandonando os primitivos projetos, melindrado com a minha ingratidão, em repelir suas belas propostas. Desgraçadamente, estava iludida. Homens do temperamento de Gálio, jamais abandonavam uma vítima escolhida.

Certa manhã, achava-me sozinha na loja, quando grandemente surpresa vi entrar o procônsul acompanhado de vários guardas, que deixou atrás da porta. Aproximou-se sorrindo, com ar muito amável. Saudei-o reverente, mas, sem pronunciar palavra. Vinha escarnecer da minha dor e rasgar meu coração. Vendo-o olhar ao redor, ofereci-lhe uma cadeira e pedi suas ordens.

— Por que ordens? — disse amavelmente, devorando-me com os olhos — eu nada ordeno, bela Veleda; ao contrário, só aspiro realizar todos os seus desejos.

Esbocei uma fria cortesia:

— Agrada-vos tripudiar de mim, procônsul; nada posso desejar nem querer, porque sou pobre, ínfima, e vós sois rico e poderoso, comprovando-o muito bem o arrebatar-me o noivo.

Ele levantou-se franzindo o cenho:

— Toma cuidado, rapariga, em não te lembrares por mais tempo desse noivo; ele partiu e deve combater para glória da pátria; resta-te maior compensação: eu! Far-te-ei feliz e rica; és bela, Veleda, como Afrodite; teus cabelos dourados me enfeitiçaram; amo-te e deves pertencer-me.

E, com rápido gesto enlaçou-me pela cintura, apertando-me apaixonadamente contra o peito. Inclinou o rosto horrível e me beijou de forma a sufocar-me, com os seus lábios pintados. A surpresa e o desgosto imobilizaram-me um instante: a seguir, como que embriagada pela cólera e sem medir conseqüências, esbofeteei-o com toda a força das minhas mãos muito pequeninas, mas nervosas; depois, o repeli com tal energia que, tropeçando, foi cair sobre enorme ânfora cheia de óleo, que se quebrou cobrindo-o do seu conteúdo e destroços.

Com o espantoso alarido, acorreram os guardas; viram ainda Gálio caído, com as bochechas inchadas e vermelhas; eu, de pé como um tigre, de punhal na mão. Compreenderam tudo e se aproximaram do procônsul que se levantou, voltou-se para mim e mostrando os punhos cerrados, exclamou:

— Oh! animal! caro me pagarás!

Todas essas emoções tê-lo-iam enfraquecido, ou quereria somente demonstrar como o havia maltratado? Certo é que dois guardas o sustentavam por baixo do braço para poder andar, e assim se foi sem ordenar minha prisão, o que muito me admirou.

Corri para meu pai, que trabalhava no pátio e tudo lhe contei.

— Infeliz! que fizeste! Estas perdida! Foge imediatamente; vai-te a Roma, onde estão Agripa, Astartos e uma velha parenta minha.

Compreendi que ele tinha razão e entrouxei apressadamente alguma roupa indispensável; em seguida dizendo-lhe um triste adeus, dirigi-me para uma das portas da cidade. Ao aproximar-me, alguns soldados me cercaram, exclamando:

— Ah! miserável! Querias fugir? Bem se vê que cometeste uma ação má!

Prenderam-me.

Gálio havia dito que se eu tentasse fugir, era porque me considerava culpada. Conduziram-me ao palácio do procônsul. Como estivesse muito doente, ordenou que me encarcerassem até que o seu estado de saúde lhe permitisse julgar-me pelo atentado à sua pessoa. Por mim, estava tão irritada contra ele, que permaneci calma e, indiferente a tudo o que ocorria. Sentia-me mesmo satisfeita por ter podido maltratá-lo a tal ponto, e isso saciava a raiva impotente que me causara a partida de Tito. Por semelhante prazer a morte não passava de bagatela. Recordei Lélia, que também suportava todos os suplícios, pelo prazer de vingar-se do seu perseguidor.

Os que me escoltavam abriram pesada porta e me entregaram a um horroroso carcereiro. Tomou de uma tocha, abriu segunda porta e me fez um gesto para que o acompanhasse. Não opus a menor resistência e com o meu embrulho na mão (pois não mo arrebataram), acompanhei-o. Descemos uma escada que me pareceu interminável; o ar começava a tornar-se úmido e abafadiço; por fim, paramos diante de uma porta que o guarda abriu, empurrando-me para dentro de um compartimento sombrio. O ruído da chave girando na fechadura me advertiu que estava encarcerada. Meus nervos, superexcitados pelas emoções do dia, começaram a fraquejar; a cabeça pôs a rodar e perdi os sentidos. Quando voltei a mim, procurei orientar-me no meu triste aposento; era um compartimento estreito e escuro, com um buraco no teto que deixava coar fraca claridade. O chão e as paredes estavam úmidos e como que cobertos de uma camada de lodo viscoso e escorregadio; a um canto, um molho de palha à guisa de leito, e, sobre grande pedra servindo de mesa, uma ânfora com água e uma côdea de pão.

Refleti e encarei a situação corajosamente; de pronto, devia submeter-me a tudo e, graças aos deuses, não me encontrava de todo desprovida de meios. No pacote que levara comigo, havia provisões de boca e até uma quartinha de bom vinho.

Primeiramente, retirei do embrulho um capote que vesti e um vestido de lã; cobri a palha suja e úmida que devia servir de leito, assentei-me e comi. Reconfortada, guardei cuidadosamente o sobejo e em seguida a uma ardente súplica a Júpiter e às Eumênides, para que me concedessem sobre Gálio uma vitória estrondosa, adormeci.

Assim passaram quinze dias de monotonia apenas interrompida pela chegada do carcereiro, que, silenciosamente, me trazia pão e água. O pão eu escondia como se o tivesse comido, enquanto me alimentava, economicamente das minhas provisões. Triste, mas ainda não desesperada, aguardava o julgamento. Entretanto, o tempo acabou por me parecer muito longo; esgotaram-se as provisões, veio a fome. 0 ar úmido e confinado da prisão me adoecia; a companhia dos ratos e baratas, que formigavam, era-me odiosa; a paciência e a resignação atingiam o seu limite. Com a cabeça descansada nas dobras do capote, pensava no meu terrível destino e em meu pai, que devia estar desesperado com a minha sorte.

Uma tarde em que não mais esperava o carcereiro, ele apareceu ordenando que o acompanhasse. Levantei-me, mas as pernas me tremiam e vacilavam; desde que fui reclusa, faltou-me ar e privei-me de movimentos, agora a cabeça rodava e o guarda teve que amparar-me. Assim auxiliada, subimos a interminável escada; passamos vários compartimentos e corredores, até que me fez atravessar elegante peristilo, guardado por duas sentinelas e entrar num aposento, onde me fechou.

Tudo me parecia um sonho. Encontrava-me numa sala magnífica e brilhantemente iluminada; a mesa coberta de pratarias estava repleta de iguarias as mais apetitosas e um leito ali preparado parecia convidar ao repouso. Enormes bandejas douradas, cheias de flores, perfumavam toda a sala, na qual me encontrava sozinha; olhei ao redor espreitosamente, mas nada vi; era tudo deserto, vazio, silencioso.

Por fim, percebi ao fundo da sala uma porta entreaberta; deslizei até lá em ponta de pés e lancei um olhar para dentro; era um banheiro elegante, esplendidamente iluminado, mas sem vivalma, como o resto do apartamento.

Entrei e pus-me a examinar tudo: na banheira de mármore branco estava preparado um banho; sobre a mesa perfumes e todas as miudezas que fazem o encanto da mulher; no leito, maravilhosos vestidos.

De toda aquela magnificência, a água lépida e aromatizada foi o que mais me seduziu. Sentia-me impregnada da umidade da enxovia, tinha as vestes mofadas e sujas, os membros entorpecidos.

Não pude resistir à tentação. Fechei a porta e me despi; banhei-me e perfumei-me deliciosamente. Ninguém me incomodou. Dispunha de muito tempo para concluir a toilette; assim, penteei, trancei e perfumei a cabeleira que me cobria qual manto dourado até os pés; não pude suportar a roupa quase apodrecida e escolhi, entre os vestidos colocados sobre a cama, uma blusa branca de seda oriental e uma capa verde inteiramente coberta de rendas prateadas.

Assim preparada, experimentei um grande bem-estar; ainda uma vez dei volta às duas salas tudo examinando escrupulosa-mente, mas não pude descobrir nenhuma traição; tudo estava silencioso e deserto. <Em todo caso,— pensei — permanecer aqui prisioneira é mais agradável que lá na cela subterrânea». Desejava possuir uma arma, como medida de precaução, mas não pude descobri-la apesar de minuciosa busca.

Fatigada e faminta, assentei-me à mesa, não resistindo à tentação das iguarias, comecei a comer. Jamais saboreara iguaria; tão finas; comia um pouco de tudo com a maior tranqüilidade, apenas intrigada com o motivo que levara Gálio a retirar-me da infecta prisão para instalar-me tão luxuosamente.

Acariciei a idéia de que ele pretendesse abrandar meu gênio, supondo que na cela ficaria ainda mais rancorosa do que nesse magnífico apartamento.

Sombrios e tristes pressentimentos me empolgaram. Afastei a travessa das frutas e apoiei a cabeça nas mãos. Que futuro me aguardava, que lutas me reservaria e qual o seu desfecho?

Recordei o tempo em que, feliz e sossegada, vivia com Tito e meu pai, até que o capricho e a violência de um tirano me fossem usurpar a felicidade. Agora, ali estava prisioneira e entregue à sua discrição. Minha beleza era a causa da minha desonra.

O sangue subiu-me à cabeça. Mas, como vingar-me? Estrangulando-o? Apunhalando-o? Sim, vingar-me, ainda que a custo da própria vida. Essa resolução inabalável me acalmou, reconfortando-me; aliás, no momento, tudo me parecia inofensivo e nenhum perigo me ameaçava. «Sem dúvida — pensei — ele supõe que todo este luxo me tentará... Mas está enganado».

Assaz contente com a idéia do seu desapontamento, servi-me de um licor avermelhado, muito doce e agradável ao paladar; bebi com prazer, mas fui logo tomada de estranho langor; as pálpebras pesadas cerravam-se contra minha vontade; apoiei a cabeça no braço e, sem nada suspeitar, adormeci profundamente.

Deveria ter decorrido muito tempo, antes que reabrisse os olhos e pudesse recobrar a consciência, reconhecendo-me no leito de que não me havia servido e percebendo, espantada, que Gálio dormia tranqüilamente a meu lado.

A realidade do quadro me iluminou como um raio. Compreendi que estava desonrada. Insensato furor apoderou-se de mim. Como impelida por uma mola, saltei nos pés; o sangue borbulhava como lava, subia ao cérebro e me embriagava! Apertei a cabeça entre as mãos e, com desesperado esforço. reconquistei uma calma aparente. Queria morrer, mas saboreando, antes, a agonia do miserável. Só pensava em como fazê-lo sofrer o mais possível. Meu olhar percorreu a sala e fixou a porta de entrada; uma chave maciça estava na fechadura; não pensei em fugir, porque por trás estariam, certamente, os guardas de Gálio. Ao demais, eu não mais queria viver. Rápida qual sombra, deslizei até a porta; fechei-a com duas voltas, retirei a chave conservando-a convulsivamente na mão; apanhei o único facho que ardia sobre a mesa e que iluminava lugubremente o aposento; fechei a sala de banho e ateei fogo às cortinas, aos móveis, à mesa e, finalmente, à roupa de Gálio. Retirei-me em seguida para um canto afastado, de olhos fixos no meu perseguidor, espreitando o seu despertar.

As línguas de fogo lambiam as paredes e o teto, tudo consumindo; negra e espessa fumarada encheu logo a sala, dificultando a respiração. Eu sabia que ia igualmente perecer, mas, primeiramente teria tido a satisfação de ver asfixiado e carbonizado o torpe inimigo. E regozijava-me com o seu sofri mento e desespero. Selvagem alegria me invadia e dava graças aos deuses, em fervorosa prece, por terem assim atendido aos meus votos de vingança.

Nesse instante Gálio despertou em sobressalto. Assentou-se, esfregou os olhos e depois, com uma exclamação de terror, saltou do leito. As vestes em chamas o envolveram numa cortina de fogo; olhos esbugalhados de louco, arrancou a roupa do corpo. Estava atordoado o miserável!

Com gritos de terror atirou-se contra a porta. Encontrando-a fechada, um impropério de raiva escapou-se-lhe dos lábios. A fumarada acre e espessa ocultava-o às minhas vistas, além de que não tinha tempo para procurar-me. Debatia-se como doido e dava urros de fera; esmurrava a porta e rebolcava-se no assoalho, impotente contra o elemento destruidor que eu desencadeara contra ele. Por fim, calou-se imóvel, estendido. Eu também mal respirava, pois a fumaça me asfixiava. Por que me mantinha ainda de pé, quando ele, homem robusto, já havia sucumbido, não o saberia explicar; mas, nesse momento, golpes de machado advertiam-me que os guardas fiéis forçavam a porta.

A idéia de que Gálio escapasse, apesar de tudo, renovou num instante as minhas forças. Com um grito selvagem, atirei-me a ele e, com a chave maciça que ainda segurava, esbordoei-lhe com todas as forças o rosto e a testa. Foi quando a porta cedeu despedaçada, deixando penetrar uma corrente de ar puro e benfazejo. Ainda percebi, como através de um véu, o rosto de Gálio ensangüentado e desmaiei...

Não sei quanto tempo assim estive após aquele terrível momento. Quando recobrei os sentidos, entreabri os olhos e vi que estava deitada em modesto leito, num grande quarto pobremente mobiliado, e ao fundo do qual Cláudia conversava animadamente com um desconhecido.

Fechei os olhos não querendo dar a perceber que havia recobrado os sentidos e me esforçava por compreender o assunto da conversa. O que disso conclui, foi muitíssimo útil e me inspirou a conduta a seguir, depois daquele ato de terrível vingança que o desespero me impusera.

__ Pensais, Graco, que a pobre criatura está realmente louca e assim permanecerá, senão para sempre, ao menos por alguns anos? — perguntou Cláudia.

__ Sim,— respondeu o homem assim designado — é o meu parecer e isso mesmo já declarei hoje ao procônsul. Ê pena, disse-me ele, pois se não estivesse louca, fá-la-ia pagar caro o estado lastimável em que fiquei; mas, que fazer com uma demente?

No meu ímpeto, às minhas palavras; já não queria fingir; a vida era-me odiosa.

Eles me ouviram espantados; depois Graco declarou que eu havia recuperado a razão e que ia comunicar a Gálio quanto se passava.

Fiquei só, mergulhada em tristes conjeturas sobre o tremendo passado e o crime odioso que acabava de praticar.

Depois de longas horas, Cláudia voltou para dizer:

— Olha, criatura desnaturada, apesar dos seus sofrimentos, Gálio vai chegar até aqui e tu podes tremer diante da sua justa indignação. Seu coração está transformado pelo teu nefando crime.

Permaneci indiferente a tais ameaças, mas o pensamento da vinda de Gálio, me produziu um tremor de frio global. Rever o responsável pelos meus infortúnios e pelo meu crime, ultrapassava minhas possibilidades de auto-domínio. Enterrei a cabeça nos travesseiros e tapei os ouvidos para não lhe ouvir os passos nem a voz, quando aparecesse.

Não sei quanto tempo assim estive, até que Cláudia me sacudiu rudemente:

— Veleda, ajoelha-te aos pés do teu benfeitor e pede-lhe perdão.

Levantei a cabeça e, olhos flamejantes de ódio, fixei Gálio deitado num leito ali trazido por quatro escravos. Seu rosto e braços ainda estavam ligados e cicatrizes de inúmeras queimaduras eram bem visíveis. Cercava-o numeroso séquito de oficiais, guardas e escravos, além de dois padres.

Quando nossos olhares se encontraram, ele cobriu o rosto com as mãos e disse:

— Servidores dos deuses, falai a esta criatura desnaturada, explicai-lhe quanto é odioso o seu crime e dizei-lhe que, se não quiser arrepender-se, desencadeareis sobre, ela as implacáveis Eumènides.

No primeiro momento, os dois padres me inspiraram grande respeito; mas a essas palavras, compartilharam do meu ódio. Deviam desencadear as Eumènides contra mim, a vítima que havia sido assassinada moralmente e apenas se havia defendido! À vista disso, Júpiter era injusto e a deusa da justiça deixava de existir. No momento, ao menos ainda não sofria nenhuma das torturas que iam desencadear sobre mim e deixei-me levar, de alguma sorte, por minha teimosia.

Os dois padres, um pertencente ao templo de Júpiter e outro ao de Juno Lucino, protetora dos recém-nascidos, se aproximaram e me exortaram a reparar meu crime pela humildade, deprecando perdão aos deuses e a Gálio.

Diante do meu mutismo e indiferença, entoaram um canto lúgubre e cadenciado, o qual dizia que as Eumènides haviam costurado minha língua e entorpecido meus membros, o que significava ter Nêmesis, a terrível deusa da vingança, desencadeado sobre mim toda a sua cólera. Depois, trouxeram uma tripeça, um dos padres lançou no fogo perfumes e após uma evocação aos deuses, declarou que eles, os deuses, exigiam um sacrifício expiatório.

A um sinal de Gálio, abriram-se as por tas da sala e com grande espanto vi entrai mais dois padres, vestais e multidão de servidores do procônsul.

Armaram um altar, nele colocando estátuas de Júpiter, Juno e Nêmesis. Depois, todos os assistentes se prostraram, face em terra, enquanto os padres e as vestais começaram a cantar. Lúgubres pensamentos me assaltaram ao ver aqueles aparatos. Trouxeram uma bezerra branca e uma ovelha preta; mas, antes de as imolar aos deuses, os padres se aproximaram de mim, cantando e me exortaram, ainda uma vez, a pedir perdão aos Imortais e a Gálio.

A esse tempo eu já era um espírito for-te, algo cético. Não vendo as Eumenides que deveriam apoderar-se de todos os meus membros e me tirarem o coração, roendo-o. Recuperei pouco a pouco toda a calma; mas os cantos, os ruídos, as vestes brancas das vestais e todas aquelas cerimônias, irritavam-me os nervos sobre excitados e cobri o rosto para nada ver.

Imolaram a bezerra e como não me aproximasse para molhar as mãos no sangue da vítima expiatória, me agarraram e arrastaram até junto do altar.

Sacrificaram a ovelha preta e, depois de consultadas suas entranhas, o padre declarou que os deuses recusaram aceitar o sacrifício expiatório e me abandonavam à fúria das Eumenides.

Tal sentença me revoltou. O sangue germânico e selvagem de minha mãe começava a ferver dentro de mim. Levantei-me e cruzei os braços, para bem demonstrar que ainda gozava da liberdade dos meus movimentos e da minha palavra.

— Não creio nas Eumenides — disse — não as vejo nem sinto; mas a ele, o tirano, (apontei o procônsul), elas o segurarão e o perseguirão por sua violência e crueldade. Arrancou-me do seio de minha família, desonrou-me e induziu-me ao crime, seu filho, nenhuma divindade poderá ordenar-me que o ame; matei-o sacrificando-o aos deuses, para que me vinguem do procônsul. Sim! — continuei Voltando-me para ele — sobre tua cabeça detestável, Gálio, invoquei a vingança dos teus deuses e dos da minha mãe, muito mais terríveis ainda.

A estas palavras Gálio desmaiou. Mas, recobrando os sentidos imediatamente; posse de joelhos e elevou os braços ao céu, sustentado pelos padres:

— Poderosos deuses, reunidos no Olimpo e tu, Júpiter, conheceis minha bondade para com esta criatura indigna; imploro-vos não permitais que os deuses vingadores germânicos (que brevemente combaterei de novo) aceitem o sacrifício de meu filho para se vingarem de mim. Oh! poderoso deus da guerra, Marte, por quem sacrificarei alegremente minha vida! Não é por mim que peço, mas pela glória e felicidade do povo romano. Se os deuses dos germanos lhes concederem a vitória, minha derrota e desonra serão também dos romanos.

Exclamações frenéticas dos assistentes quase abafaram as vozes das vestais que cantavam e dançavam uma composição sacra.

Novas vítimas foram imoladas e os padres leram nas suas entranhas que Júpiter e Marte prometiam proteger Gálio e defendê-lo dos deuses vingadores dos germânicos, lisonjeados com o sacrifício de Veleda.

Depois, Gálio se levantou, bateu com o pé e mostrou-me os punhos:

— Entendeste, animal sem coração? Selvagem exaltação empolgou-me; perfilei-me e elevei os braços ao céu:

— Tu apenas sacrificas animais, exclamei; mas os imortais apreciam muito mais as vítimas humanas; o sacrifício de uma mãe imolando o filho sempre foi aceito. Deuses implacáveis dos germânicos, confio-vos a minha vingança.

Brados de indignação se fizeram ouvir e Gálio ordenou que fosse enclausurada no templo, para ali viver o resto da vida; os padres, porém, lhe disseram que os deuses exigiam fosse entregue às feras do circo: «A poderosa Juno — disseram — quer que a mulher, que agiu com ferocidade animal, pereça pela mesma forma».

Até o momento de ser transportada para Roma, estive recolhida ao templo; mas, no imo do coração, me retornara inteiramente aos deuses de minha mãe; as Eumenides não se apresentaram e isso mais me aferroava numa crença nova; meu ódio selvagem contra Gálio havia mesmo extinguido os remorsos pelo assassínio de meu filho.

Durante minha estadia no templo, soube que Gálio, o grande comediante, fingia-se desesperado após a morte do filho; que fizera à criança solenes funerais; que andava de cabeça baixa e vivia muito retraído, não consentindo a aproximação de ninguém.

No dia de minha partida, vestiram-me de branco e toda a comunidade religiosa me acompanhou às portas da cidade, entoando cânticos lúgubres por que eu ia, enfim, expiar meu crime sofrendo morte horrorosa.

Durante a viagem que me pareceu interminável, minha exaltação diminuiu pouco a pouco e um torpor vizinho do embrutecimento me invadiu; finalmente, um dia, o pequeno cortejo parou diante de sólido edifício de pedra; abriu-se uma grande porta e franqueamos vasto pátio.

Aos chamados da escolta acorreram gladiadores ricamente vestidos; um deles, ao avistar-me, disse:

— Ah! trazem uma mulher para os jogos do circo; é preciso chamar Astartos, pois é ele quem cuida sempre dos prisioneiros.

Astartos veio imediatamente e reconheci nele o belo amigo da infância. Reconhecendo-me, empalideceu terrivelmente, mas logo se dominou. Passou recibo aos condutores e, tomando-me pela mão, disse:

— Muito bem, agora podeis retirar-vos e tu, rapariga, segue-me.

Conduziu-me a uma prisão subterrânea, dependente do circo, porém muito menos asquerosa que a do palácio de Gálio, onde definhei. Fechou atrás de si todas as portas e quando ficamos sós, abraçou-me ternamente e disse:

— Minha pobre Veleda, que infeliz destino te conduz até aqui! E sou EU, EU, o amigo de infância, que te devo lançar às feras! É horrível!

Caminhava agitado e, por fim, assentou-se junto de mim, tomando-me as mãos:

— Ê preciso tudo fazer para salvar-te. Hoje mesmo irei prevenir Agripa; seria atroz que perecesses dessa forma. Tem calma e repousa; amigos velam por ti e agora vou buscar alguma coisa para te reconfortares.

Saiu e voltou logo, trazendo alimentos, vinho e roupa; procurava dar-me todo o conforto possível naquele lugar e eu permanecia relativamente tranqüila. Havia sido condenada por Gálio, poderoso amigo de Tibério e contra ele que poderiam fazer Astartos e mesmo Agripa?

Na tarde do dia seguinte, cochilava quando a porta do cárcere se abriu de chofre e divisei Astartos seguido de outro homem. Fizeram entrar uma mulher, que, após alguns passos incertos, deixou-se cair num banco de pedra. Depois nos trancaram de novo e retiraram-se.

Permaneci deitada, observando em silêncio a recém-vinda, cujos traços não podia distinguir na obscuridade ambiente. Súbito a mulher empertigou-se e, aproximando-se, perguntou:

— Quem sois?

— Uma companheira de infortúnio — respondi — porque vossa presença aqui prova que, sem dúvida, a mesma sorte nos aguarda. Chamo-me Veleda; e vós?

Minha companheira, aliás jovem e bela, suspirou profundamente:

— Aqui chamam-me Lélia, mas meu verdadeiro nome é Mara.

Estremeci. Lélia, a Lélia de Tibério! Por um estranho acaso, o destino me colocava em presença da mulher cuja sina triste me pareceu outrora um reflexo do meu futuro, e nós duas nos encontrávamos condenadas à morte pelos tiranos de quem éramos joguetes; nossa vida e felicidade, apenas haviam servido para satisfazer seus caprichos; tornadas supérfluas, entregavam-nos ao suplício. O nome de Lélia bastou para despertar minha simpatia; atraí-a para junto de mim, sobre a palha e trocamos confidencias sobre a nossa desgraçada existência. Quando concluímos, Lélia apertou-me a mão:

— Apesar de tudo — disse — somos fortes e indomáveis porque preferimos a morte aos nossos verdugos; eles não nos podem matar duas vezes, e olha, Veleda, sabem que a morte é a menor das punições a nos infligir; é por isso que temem matar-nos.

— Sim,— respondi satisfeita — dizes a verdade, Mara; agora porém, chegamos ao fim; a morte vai-nos libertar e subtrair a esta vida indigna.

— Sim, a libertação vem próxima e sinto-me feliz por nunca mais ver Tibério; oh! (e comprimiu com as mãos o peito ofegante) não preciso dizer-te quanto o detesto; quando incendiaste o palácio de Gálio, experimentaste toda a profundeza desse sentimento. Não poder vingar-me de Tibério como aspira minha alma!

Abraçamo-nos e desde esse momento nos ligamos por estreita amizade, reunidas pela comunhão de nossas desgraças e pelo ódio selvagem aos nossos perseguidores.

Dias depois, durante a noite, despertei sobressaltada com o rangir dos gonzos da porta e por uma luz que caía perpendicularmente sobre meu rosto. Lélia dormia e eu me levantei e aguardei curiosamente quem poderia vir, aquela hora, a nossa prisão. Com grande surpresa, vi entrar Astartos empunhando uma tocha, acompanhado de Agripa e Marcos.

Há tanto tempo que não via um rosto amigo, que, avistando Agripa experimentei imensa alegria. Foi ele o primeiro a se aproximar e a abraçar-me ternamente:

— Em que triste situação te reencontro, minha pobre Veleda! — disse comovido — que morte te preparam!   Mas é preciso salvar-te!

Assentou-se a meu lado, absorvido nos próprios pensamentos. Voltei-me para cumprimentar Marcos, de quem me havia esquecido no primeiro momento de emoção. Vi-o ajoelhado perto de Lélia e parecia desesperado, falando-lhe do seu amor.

— Não te desesperes, Marcos — respondia Lélia — se me amas, deves alegrar-te com a minha morte; poderias, porventura, ver-me sofrer e pertencer a Tibério, sem sentires ciúmes? Hilderico tê-lo-ia feito em pedaços; nós, os alemães, amamos diferentemente; se Hilderico o visse maltratar-me, matar-me-ia primeiro e em seguida a ele; tu, pelo contrário, pretendes curar as feridas abertas pelo seu chicote. Vai-te! Não sabes amar!

Nesse momento Agripa apertando fortemente minha mão, disse:

— Devo salvar-te, Veleda; tenho amigos poderosos, tudo se arranjará embora isso deva custar-me a vida.

— Meu bom Agripa — contestei reconhecida — agradeço tuas boas palavras, mas não arrisques a vida por mim; estou perdida, desonrada e, depois de tudo que se tem passado, como posso desejar a vida? Qual será o meu futuro? Além disso, Gálio não abandonará sua presa; ele está furioso por lhe haver queimado uma orelha.

Agripa pôs-se a rir:

— Como foi isso? Mas é de lamentar profundamente que lhe não houvesses feito o mesmo com o nariz; este, Veleda, é que devia ter sido queimado! Mas, a respeito de Gálio, devo contar-te uma novidade: ele vem a Roma onde é esperado dentro de alguns dias; seu dedicado amigo Tibério enviou-lhe um convite nesse sentido; ouvi-o dizer a Sejano: «Convidei Gálio para o espetáculo do circo, onde será punida a besta pelos seus crimes». Ouvi tudo isso hoje — acrescentou Agripa — porque estava de serviço; Tibério anda muito irritado; à mesa, esbofeteou Febé e quando Sejano teve a infeliz idéia de se vangloriar da própria severidade para com Lélia, olhou-o de esguelha e aplicou-lhe um soco tão violento que o sangue esguichou do nariz; e como um escravo se abaixasse para apanhar o punhal que havia caído, deu-lhe um pontapé que lhe quebrou o maxilar. Há dias já que ele se vem mostrando insuportável, não perdoando a ninguém; se lhe apresentam uma lista de condenações, faz uma cruz sem mesmo ler. Ontem, foi ao quarto de Lélia e fechou-se por dentro; quando saiu, encontraram em frangalhos a colcha de seda que guarnecia a cama; tudo revirado, o busto de Lélia em pedaços, no chão. Ao jantar falou-se novamente na próxima chegada de Gálio e Tibério começou a blasonar: «È estranho que o amigo Gálio tenha caído em semelhante armadilha; mas eu afirmo que ele é um homem fraco, sem caráter; Lélia jamais ousaria tocar-me com um dedo sequer; soube submetê-la a mim; Gálio, porém, deixa-se bater, esbofetear e aleijar, porque ela até lhe queimou uma orelha, quebrou-lhe sete dentes e avariou-lhe uma vista. Estivesse ela aqui e eu lhe ensinaria como se doma semelhantes feras. Eu domei Lélia — continuou — que se tornou delicadíssima, por fim, e jamais teria consentido na sua condenação se ela não tivesse imprudentemente dito que desejava estrangular-me.

Era do meu dever evitar tal atentado contra mim, a esperança do império.

— Digo-lhe, Veleda — prosseguiu Agripa — a gente se cala por temor, mas não é possível conter o riso quando esse tirano ciumento, enfatuado, fala assim tão descaradamente diante de nós. Eu mesmo já ajudei arrancar Lélia do seu pescoço; dezoito dentadas é quantas lhe tem dado, além de lhe haver decepado a metade do dedo mínimo; ele tem o rosto todo marcado de cicatrizes que diz ser erupção, e isso diante de nós, que sabemos a verdade.

Agripa entrou a rir de novo.

-— Conta a Veleda a história da semana passada — disse Astartos, rindo igual mente.

— Ah! é verdade. Uma história extraordinária, começou Agripa. Há seis ou sete dias, durante o almoço, Tibério mentia e se gabava, como de costume; todos se mantinham sérios, mas Febé, que goza de muita liberdade com ele, atreveu-se a rir; Tibério, então, aplicou-lhe tamanho soco na nuca, quebrando-lhe dois dentes no rebordo da taça em que bebia, no momento. Furiosa, entregou-se a uma cena pouco edificante para ser relatada, e após haver escarrado em Tibério, sumiu-se. Durante três dias ninguém lhe soube do paradeiro. Tibério que se sente inteiramente só, depois que Lélia foi recolhida à prisão, mandou procurá-la por toda a parte. Havia-se refugiado em casa de Astartos, que a reconduziu depois de lhe haver aplicado formidável sova, por sua revolta e desobediência para com o poderoso Tibério.

— Deu-me um saco de moedas pela minha lealdade — acrescentou Astartos, rindo e mostrando os seus lindos dentes brancos.

Apesar da nossa infeliz situação e da terrível sorte que nos aguardava, não pudemos deixar de compartilhar da hilaridade dos nossos amigos.

— Sabei — disse Astartos — que de uns dias para cá tenho uma entrevista com Tibério todas as manhãs; ele manda me chamar e pergunta pela sua prisioneira. Quer saber se ela não manifesta desejo de lhe pedir perdão; ele, a indulgência personificada, consentiria, talvez, em perdoá-la; sempre me adverte desconfiadamente: — Diga-lhe, pois, da possibilidade de ser perdoada!   Toma cuidado, gladiador! — Inclino-me sempre muito respeitosamente e lhe digo que me confiou uma verdadeira fera.

Marcos não tomou parte em nossa conversa; caminhava agitado; de repente, parou e torcendo as mãos, disse:

— Que poderia, pois, fazer, poderosos deuses, para te salvar, pobre Lélia? Agripa ainda pode tentar libertar Veleda; é patrício, rico, dispõe de amigos influentes; mas eu, pobre médico do tirano, que poderei fazer? Juro, entretanto, que se ele te mata, se te expõe às feras, o primeiro medicamento que lhe receitar será um veneno.

Lélia levantou-se:

— Faze-o, Marcos, se eu viver, se ele me perdoar; mas não se eu morrer, pois então serei livre e feliz.

Depois de nos ter ainda encorajado, pro metendo fazer tudo pela nossa liberdade e deixando boas provisões, despediram-se.

O tempo corria de maneira assaz suportável; Astartos passava conosco boa parte do dia, a pretexto de convencer Lélia a pedir perdão; divertia-nos com as novidades da cidade e da corte e anedotas sobre Tibério e Gálio; à noite vinham Marcos e Agripa, que nos relatavam os esforços empregados para nossa libertação; no íntimo, porém, eu duvidava muitíssimo que lograssem sucesso.

Uma tarde Astartos preveniu-nos que os nossos amigos não viriam, por estarem de serviço, e nos deitamos. Com surpresa, fui despertada pelo ranger da pesada porta! Abrindo os olhos deparei com Astartos que, empunhando uma tocha, procedia um homem revestido de toga. Tipo de fisionomia seca e antipática, olhos cruéis e penetrantes, que pareciam sondar o ambiente.

— Onde está Lélia ? — murmurou.

Duvidei que fosse Tibério. Astartos levantou o archote. Imóvel e indiferente, iluminou Lélia, que dormia, não tendo mesmo percebido a entrada dos dois homens.

Tibério deixou cair a toga e, de braços cruzados e cenho carregado, fixou Lélia. Como se a pobre criatura sentisse o olhar do perseguidor, começou a agitar-se como presa de um pesadelo, revolvendo-se na enxerga.

— Lélia, Lélia — disse Tibério, apressurado.

A essa voz, ela despertou em sobressalto e o seu primeiro olhar caiu sobre o tirano:

— Oh! — disse, recuando — mesmo em sonho ele não me concede nenhum repouso; como um pesadelo me persegue!

— Lélia — disse Tibério — alma danada, reconsidera que estás vendo o teu benfeitor; é o pavor do suplício que te tira a razão. Confia ainda. Se te mostrares compassiva e diante de todos me pedires graça pela tua enorme ingratidão para com o teu amigo, senhor, futuro soberano e benfeitor, que substituiu junto de ti pai, irmão, marido, TUDO!

— MENTIROSO, mentiroso! — berrou Lélia que de um salto se pôs de pé diante dele.

Um ódio feroz que jamais lhe adivinharia nos traços infantis, rosto contraído e olhos brilhantes como brasa, pareciam devorá-lo.

— Convence-te, finalmente, tirano abominável, de que és impotente diante da minha resolução de morrer. Jamais curvarei a cabeça diante de ti, ainda mesmo que me cortasses em pedaços. Carrasco! Ousas dizer que substitues para mim pai, irmão, marido? Quem, senão uma outra Febé, te aceitaria por marido, monstro de cara raspada com os teus músculos salientes como nervos de boi!

Eu estava admiradíssima e amargamente arrependida de não ter assim insultado Gálio, mostrando-lhe a sua feiúra, a ele que se acreditava tão bonito.

Tibério tremia como tomado de febril acesso; mas, não tocou em Lélia, que se mantinha diante dele em atitude agressiva.

— Infeliz criatura — disse por fim, após se ter acalmado um pouco — Gladiador Astartos, estais tão cego a ponto de não ver que ela perdeu a razão? Ê preciso chamar Marcos — disse comprimindo as frontes com as mãos. — Devo consultar os deuses e perguntar se lhes é agradável a punição de uma louca. Pobre criatura! Vai, gladiador, prevenir Marcos; mas, eu te acompanho e esperarei atrás daquela porta, porque é perigoso ficar junto de loucos.

Nesse momento seus olhos me descobriram.

— Quem está ali? — perguntou apontando-me com o dedo.

— É Veleda,— respondeu Astartos, a mulher condenada pelo procônsul Gálio por ofensas graves contra a pessoa dele.

— Oh! oh! é aqui o antro dos leões, duas loucas reunidas...

Retirou-se para junto da porta, dizendo:

— Conheço a história de Gálio; pobres criaturas; elas pecam na sua loucura, pois de outra forma não se revoltariam contra os seus benfeitores.

Lélia, fora de si, quis atirar-se a Tibério, mas este já havia desaparecido atrás da porta e apenas um naco de pão duro o atingiu na nuca.

— Veja, Veleda! O miserável pretende que estejamos loucas, oh! o infame!

Sentou-se, esgotada; eu também, muito perturbada, mas resoluta.

— Tranqüiliza-te — disse apertando-lhe a mão — embora nos chamem de loucas, isso não impedirá detestá-los, ameaçá-los e matá-los se houver ensejo de o fazer.

Ao fim de algum tempo, a porta se abriu de novo e Tibério entrou seguido de Marcos e Astartos; este último voltou-se para colocar um segundo archote na cantoneira de ferro e percebi também que mordia os lábios para não rir. Escondi a cabeça na palha, porque ria igualmente.

Tibério conservou-se de pé e olhou para Lélia.

— Examine-a, doutor — disse — mas toma cuidado, porque é uma louca perigosa.

Lélia se levantou.

— Por que esta comédia?   Mentes! Queres fazer crer que estou louca a fim de que as injúrias que te assaco, não provenham de um cérebro equilibrado. Agora já não me aflijo, mas repito: jamais te pedirei perdão; odeio-te e prefiro a morte a ti.

Tibério baixou a cabeça como se estivesse consternado.

— Vê, doutor? O pior é que os loucos falam sempre como pessoas ajuizadas. Pobre Lélia, reconhece, entretanto, o teu benfeitor, que jamais te fez mal.

Pretendeu tocar-lhe no braço, ela recuou contrariada.

— Eia! pobre criança — disse Tibério — retiro-me sem me sentir ofendido, porque não estás no teu juízo perfeito; mas se o recuperares e te arrependeres da ingratidão para com o teu benfeitor, estou sempre pranto a perdoar-te. Gladiador, observarás cuidadosamente e me avisarás ao menor indício de lucidez.

Parou diante de mim e me examinou atentamente.

— Astartos, esforçarás ao mesmo tempo em agir relativamente a esta infeliz; o amigo Gálio também tem um coração caridoso e perdoará mediante um arrependimento sincero.

Tiranos infames e mentirosos, pensei comigo mesma. Quem vos leva a sério? E acrescentei em voz alta:

— Odeio o procônsul; ele poderá aguardar eternamente o meu arrependimento; se a segunda orelha o incomoda, que venha aqui persuadir-me.

Lélia havia assentado no banco e tapava os ouvidos com as mãos; Tibério estava roxeado e tremia de raiva.

— Oh! — disse — é afrontoso estar entre duas insensatas! — e estendeu o braço a Marcos. — Veja, doutor, creio que a emoção muito forte pela dor que me inspira a loucura desta pobre criatura, que tenho ainda a fraqueza de proteger, me produziu febre.

Marcos tomou-lhe o pulso, e inclinando-se, disse:

— Devo confessar que vosso estado é muito grave e exige imediato e absoluto repouso, para que as forças não vos abandonem.

— Ah! — murmurou Tibério — já me sinto muito mal, com efeito, e não me posso agüentar.

Cambaleou e caiu nos braços de Marcos e de Astartos.

Durante esse colóquio, Lélia levantou-se sobre os cotovelos e vendo o inimigo estendido, cabeça derreada e olhos fechados, instantaneamente como um relâmpago, tirou a sandália do pé e aproximou-se, aplicou-lhe com ela duas formidáveis bofetadas.

Como se houvesse experimentado um choque elétrico, Tibério saltou nos pés sem nenhum sinal de fraqueza; a boca lhe escumava e já queria atracar-se com Lélia, quando Marcos o conteve:

— Apenas um gesto, uma emoção a mais, será inevitável a rutura do coração.

Tibério desfaleceu nos braços do médico, porém, com maior prudência que antes, manteve os olhos abertos.

— Conduzam-me para fora daqui — murmurou.

Nossos amigos não esperaram segunda ordem e eu, muito imprudentemente, dei uma gargalhada, antes que a cabeça raspada houvesse transposto os umbrais da prisão.

— Olha, animal — vociferou ele ao mesmo tempo que me ameaçava com um gesto — pagarás esta risada!

— Pobre louca — disse Marcos dando de ombros.

Lélia, após o seu ato de indignação, havia prudentemente desmaiado quando notou cólera de Tibério com os braços erguidos sobre a sua cabeça.

Tão logo a chave rodou na fechadura, ela saltou nos pés e atirou-se ao meu pescoço:

— Vê, Veleda, como o tenho maltratado; que repita ainda que não ouso tocar-lhe, sequer!

Abracei-a e felicitei-a por sua rara coragem.

Na noite seguinte vieram os três amigos, como de costume e nos fizeram muito rir. Agripa e Marcos contaram que, ao chegar em palácio, Tibério dissera a todos os presentes ter visitado as prisões e, por acaso, avistado Lélia de quem já se tinha totalmente esquecido; que, vendo-o, a infeliz se lhe agarrara à toga, e prostrada a seus pés lhe implorara graça; que isso por tal forma o comoveu que desfalecera, batendo de encontro à parede, coisa muito extraordinária, resultando as duas manchas roxeadas, iguais, nas duas faces.

— Hoje — falou Agripa — vai reunir o conselho privado para decidir a sorte de Lélia, porque não queria resolver por si mesmo. Sejano, que, creio, queria desembaraçar-se de ti, declarou que se implorasses perdão ao teu benfeitor, de joelhos e diante de todos, era possível concedê-lo; Tibério dirigiu-lhe um olhar furioso, porque não propusera que te fosse concedida uma absolvição plena e incondicional.

— Quando deixei o tirano — disse Marcos, rindo — embora contra a vontade, ele estava acamado. Eram-lhe aplicadas compressas de óleo de rosas nas bochechas, que Febé renovava de vez em quando; todos se admiravam grandemente dessas estranhas manchas, de contornos tão regulares.

— Gálio chegou esta noite — acrescentou Agripa — fui eu quem o introduziu no palácio. Como desejaria aplicar-lhe boas espaldeiradas em vez de lhe prestar honras! Mas, não te desesperes, Veleda; penso ainda poder salvar-te.

Sorri tristemente, sem responder; havia-me por tal forma habituado à idéia de morte próxima, que não mais temia esse terrível instante e calmamente o aguardava. Lélia passava mais agitada; seu temperamento nervoso lhe proporcionava momentos de lúgubre desespero; queria muito morrer, mas preferia um outro gênero de morte que não atirada e estraçalhada pelas feras; apesar da sua coragem, tremia, apavorada com a lembrança de tal sofrimento.

Alguns dias se passaram sem qualquer novo incidente. Uma noite, entretanto, de novo se abriu a porta da prisão e Astartos conduzindo um archote, introduziu dois homens: eram Gálio e Tibério.

Gálio parou prudentemente perto da porta e seu olhar percorreu a sombria prisão; vendo-me, seus olhos brilharam; aproximou-se rapidamente e fixou-me num misto de paixão e ferocidade.

— Como te encontras aqui, Veleda? — perguntou. — A prisão, os sofrimentos, a separação de teu pai, amoleceram teu coração de ferro? Queres implorar meu perdão, aceitar meu amor e ser feliz? Responde; teu futuro depende das palavras que pronunciares.

Percebi que ele se mantinha em atitude reservada e prudente; respondi com dignidade, sem me exaltar:

— Odeio-te, Gálio, tu o sabes de há muito; jamais te amarei; nenhuma prisão, nenhuma separação modificará este meu ódio; teu amor é me mais detestável que qualquer suplício; quero morrer, convence-te.

Gálio amarfanhou nervoso o pano da toga e suspirou fundo:

— Não sabes o que é a morte no circo, Veleda; do contrário, preferirias o meu perdão; és bem ingrata, quando venho em pessoa propor-te a paz e o perdão, a despeito de todo o mal que me fizeste. Queimaste-me uma orelha e...

— Não me arrependo senão de uma coisa — interrompi — não te haver matado ou, ao menos, queimado a tua língua infame.

— Cala-te, insensata! minha infinita indulgência te perdoou todo o passado e te proponho a paz, eu! o procônsul, o herói Gálio e tu, plebéia, ainda ousas insultar-me!

— Nunca mais te rebaixes, então, a propor-me teu perdão — disse-lhe com desprezo; aspiro somente a morte, que me livrará de ti e do teu amor odioso.

— Ah! — disse ele, e cruel sorriso lhe frisou os lábios. — Queres ser livre! Pois bem! não morrerás, acompanhar-me-ás a Pompéia onde já passamos tão belos tempos!

Voltou-se para Astartos:

— Gladiador, tu a terás sob tua guarda até a minha partida e então a entregaras aos meus homens.

A essas palavras, apoderou-se de mim um desespero incoercível, sapateava de raiva:

— Queres ser queimado todo inteiro, tirano infame, então leva-me; mas se te aproximares de mim, arrancar-te-ei os olhos com as unhas e te morderei por toda parte onde alcancem meus dentes.

— Ta, ta, ta — fez Gálio. — Que mulherzinha de maus instintos! mas, como prevines, o perigo não é tão grande e saberei subjugar-te.

Compreendi só então o erro e a fraqueza em que incorrera; voltei-lhe as costas; não queria mais falar-lhe e atirei-me às palhas. A voz de Lélia, porém, me fez lembrar dela e de Tibério. Sem dúvida os dois tiranos haviam tramado esse perdão e Lélia, como eu, obteria graça contra a sua vontade. Mas eu me equivocava; o conselho havia decidido que ela implorasse perdão diante de todos e seus olhos inflamados, davam muda resposta às insinuações de Tibério.

— Abençoados sejam os deuses por depender de mim e não de ti este perdão — disse no momento em que comecei a prestar atenção — receias que eu morra, porém nada podes fazer porque tua fatuidade te impede de perdoar-me sem que eu me humilhe diante de ti. Jamais o farei, pois morro contente.

 

Tibério estava agitadíssimo.

— Víbora, serpente, ordeno que me peças graça; não quero que morras; Lélia, ingrata criatura, lembra-te de todos os meus favores e pede perdão ao teu benfeitor.

Ela alçou os ombros:

— Deixa-me sossegada; dentro de poucos dias estarás livre de mim.

Tibério assentou-se, muito inquieto.

— Mas, Lélia — acrescentou — se eu pedisse para suplicar graça, mesmo que fosse fingida, para que tivesse apenas o pretexto de te perdoar? És ingrata, Lélia; tanto tenho cuidado de ti depois de trazer-te do campo de batalha; submete-te, eu assim o quero. Ela voltou-lhe as costas e pôs-se a rir:

— Pede-me de joelhos que te suplique graça, mas diante de todos.

Ele levou a farsa ao ponto de apoiar a cabeça com as mãos, como um homem desolado.

— Lélia, tua teimosia me acabrunha e enferma, o que pedes é impossível e não posso aceitar; já faço por ti coisas inacreditáveis. Lamento o teu destino.

E mergulhou a cabeça inteiramente nas dobras da toga.

Um movimento de Gálio me fez reparar nele. Havia-se apoiado à parede e zombeteiro sorriso lhe pairou nos lábios. Fixando-me, sua fisionomia retomou imediatamente uma expressão triste e séria.

— Ora, aí estão — disse — duas conquistas que fizemos, duas feras metidas pelo capricho dos deuses em corpos de mulher.

Tibério nada respondia, continuando a chorar; então Lélia levantou-se e aproximou-se dele, disse:

— Acaba com esse fingimento, meu caro Tibério; conheço essas manhas; não mais me enganas e tuas fingidas lágrimas não despertarão minha compaixão. Tirano miserável, sem coração, jamais me tiveste amor, porque do contrário serias outro para mim; contudo, bem me conheces e sabes que nunca pedirei graça; deixa, pois, de enxugar com a toga os olhos secos. Ê inútil. Perdoo-te o passado, morro por tua ordem e é essa a maior caridade que me fizeste até hoje.

Vendo-se desmascarado, Tibério levantou-se e foi atirar-se nos braços de Gálio. Vi, novamente, estranho sorriso pairar nos lábios deste, que a seguir, em atitude muito respeitosa, o amparou e conduziu para fora da prisão. Astartos os precedeu, grave e impassível, erguendo bem alto o archote para iluminar o caminho.

Uma vez sós, não pudemos conter o riso, apesar da nossa triste situação, tal o quadro exótico e ridículo que ofereciam os dois tiranos apoiados um no outro.

Astartos esteve ausente cerca de meia hora. Após haver colocado o archote na cantoneira de ferro, veio compartilhar da nossa hilaridade, rindo até às lágrimas.

— Ah! — disse por fim — que seria se as minhas caras amigas pudessem ter assistido à cena cômica que acabo de presenciar! Imaginem que, saindo daqui, Tibério logo desmaiou e se fez carregar até o palácio. Enquanto o colocavam na liteira, Gálio torcia as mãos, enxugava os olhos e repetia:

— Dizer que um homem como Tibério é tão incompreendido! Se fosse eu, vá lá; mas ele! Ê horrível!

Observei nesse instante que o tirano entreabria um olho e observava Gálio, fechando-o imediatamente. Finalmente, cercado de guardas, de Gálio e Marcos, lá se foi ele num estado deplorável. Convocado pelo imperador para assistir a um conselho, declinou de comparecer, desculpando-se».

— Sim — disse Lélia — é um hábil comediante. A princípio eu o tomava a sério. Uma vez, após tê-lo repelido duramente, assentou-se e pôs-se a soluçar. Sabia que nem pancada, nem ameaças de morte me comoviam; estávamos sós e guardava no bolso a chave do compartimento. Acreditei na realidade das suas lágrimas e vendo-o tão desolado, penalizei-me; aproximei-me e lhe falei com ternura. Levantou-se para sair e cambaleava. Não sei porque, desconfiei que fingia, mas faltava-me uma prova; cerquei-o diante da porta e, pondo-me de joelhos, disse: «Perdoa, Tibério, haver-te ofendido por tal forma»— e fingi um desmaio, tudo observando de olhos semi-cerrados. Ele parou, deixou cair a toga e riu satisfeito; de lágrima, nada!   Aproximou-se e procurou erguer-me, mas a satisfação por tê-lo assim desmascarado me entusiasmou, levantei-me sozinha e confessei-lhe minha desconfiança.

Mostrou-se envergonhado, ausentou-se alguns dias, mas logo esqueceu o episódio e de tempos a tempos recomeçava as mesmas artimanhas; sempre que lhe recordo esse episódio, desaparece.

Depois dessa noite não mais vimos nossos perseguidores e o tempo corria dolorosamente; cada qual absorvida nos próprios pensamentos: Lélia imaginava o suplício próximo, e eu o terrível futuro que me aguardava. Gálio, a quem detestava mais que a morte, me retomaria, para impor-me seu odioso amor e eu não encontrava meios de salvação. Agripa procurava consolar-me prometendo tudo arriscar para subtrair-me ao procônsul; e eu o ouvia desesperada, porque o poder de Gálio escudado em Tibério parecia-me sem limites. Em profunda apatia, aguardava o futuro, disposta unicamente a empregar uma resistência férrea em quaisquer circunstâncias. Um dia bem triste ainda, me aguardava em meio a tantos sofrimentos morais — o da execução da companheira de infortúnio, a que me havia extremamente afeiçoado no convívio do nosso cárcere.

Certa manhã, Astartos pálido e agitado aproximou-se de Lélia.

— É para hoje a carnagem — disse tomando-me a mão — Tibério assistirá ao espetáculo, pois já se restabeleceu.

A despeito da sua coragem, Lélia empalideceu e cambaleou, mas, reagindo, pediu vestidos adequados. Uma hora depois, Astartos voltou com uma bandeja cheia de aviamentos. Ajudei a pobre Lélia a vestir-se e choramos amargamente durante as horas que nos restavam. Marcos veio, por sua vez, apertou Lélia nos braços e expressou desesperados adeuses. Astartos também chorava e, por fim, lá se foi ela com o meu último beijo. Fiquei só, de olhos pregados na enxerga que lhe servira de leito. Cobri o rosto e as lágrimas borbulhavam ao considerar o pavoroso suplício que lhe estava reservado.

Os muros da prisão me impediam de ouvir distintamente os ruídos exteriores, entretanto, percebia o rugir dos leões e, a contragosto, a imaginação desenhava o quadro que deveria estar se desenrolando no circo: Lélia a entrar na arena, as feras a se precipitarem sobre ela, estraçalhando-a... Depois, nada mais que destroços ensangüentados e deformados...

Tapava então os ouvidos e enterrava a cabeça na palha. Enferma e martirizada de tanto tempo, minha excitação nervosa pouco a pouco se transformou em delírio. O corpo ardia, julgava-se na arena; leões, entre os quais um com a cabeça de Gálio, avançavam e me atacavam de todos os lados; em seguida, pareceu-me ver entrar Astartos carregando o cadáver de Lélia; meus ouvidos zumbiam e perdi os sentidos.

Quando voltei a mim, estava sozinha, uma semi-obscuridade enchia o calabouço. Meu coração se confrangia dolorosamente à lembrança esmagadora da realidade; naquele momento Lélia estaria bem longe do número dos vivos; nada restava dela...

Chorava e refletia, aguardando ávida mente cada passo que ecoava no corredor, Astartos não viria contar-me detalhes horríveis dos últimos momentos de Lélia?

Finalmente, após uma espera que pareceu eternidade, ouvi passos precipitados; a porta se abriu e Astartos entrou, seguido de Agripa.

— Lélia vive e está salva! — foram as suas primeiras palavras —Tibério levou-a para o palácio. Assustada, ela caiu de joelhos diante das feras e Tibério pretendeu que o fizera para pedir-lhe graça. Salvei-a com risco da própria vida e sinto-me feliz por isso. É o egoísmo do coração humano que prefere para o ser amado a pior vida a uma libertação.

Depois me preveniu que Gálio partiria no dia seguinte para Pompéia e determinara minha recondução, pela manhã, ao seu palácio.

Fiquei aniquilada. Agripa estava fora de si; a raiva e o ciúme devoravam-no, mas, dominou-se e me disse:

— Acalma-te, Veleda, não estarás só nem abandonada; tomarei férias de algumas semanas e te acompanharei a Pompéia; lá, farei o impossível para te libertar e, se o conseguir, fugiremos para a Germânia. Quando os irmãos e o noivo de Lélia aqui estiveram para libertá-la, relacionei-me com eles; são homens honrados e corajosos, um dos irmãos evadiu-se graças à minha intervenção e ao partir, disse-me: «Meu reconhecimento e o da minha tribo estão ao teu dispor; se algum dia tiveres necessidade, manda em nós». Iremos para junto deles —acrescentou cerrando os punhos; prefiro viver entre os selvagens a estar submetido a tiranos que escarnecem todos os sentimentos humanos. Todavia, por enquanto, suplico-te dissimules teu ódio a tudo, suportando, sem jamais irritar o verdugo, até que tenhamos tudo pronto para nossa fuga.

Atirei-me aos braços de Agripa agradecendo o seu devotamento; prometi conformar-me com os seus desejos, por mais penosa que me fosse a submissão.

No dia seguinte, após triste despedida de Astartos, retomei na comitiva de Gálio o caminho de Pompéia. Levada em liteira, pude sonhar à vontade com os meus projetos de evasão.

Muitas vezes Gálio aproximou o cavalo da minha liteira e procurou entabolar conversação comigo. Respondia-lhe com discreta frieza, mas sem irritação e isso parecia surpreendê-lo. Regozijava-me intimamente ao pensar na sua raiva impotente, quando soubesse da minha fuga sem poder seguir-me.

Uma vez chegados, Gálio me permitiu ir a casa de meu pai, que encontrei muito mudado e envelhecido. Foi uma triste entrevista. Ele conhecia e aprovava os projetos de Agripa.

— Ide, meus filhos, eu vos seguireí com todas as nossas economias, pois nada me prende aqui. Estou velho e apenas vos tenho como tesouro único neste mundo.

Mas o tempo corria sem que se apresentasse ensejo favorável. Gálio mantinha-me reclusa com tais precauções que me levavam ao desespero. Várias vezes havíamos fixado a data da fuga, sempre em vão, porque Gálio me guardava com a maior vigilância. Visitava-me todos os dias. Eu mostrava-me sempre reservada, mas sem ódio aparente, buscando atenuar-lhe a desconfiança pela submissão e fingindo-me conformada com o destino.

Pouco a pouco, pareceu acreditar e relaxou a vigilância. Fixamos, então, novamente o dia da fuga. Por feliz acaso, à tarde, quando ele veio honrar-me com a sua visita, estava ligeiramente alcoolizado e dormiu profundamente. Então, levantei-me e sem perda de tempo, muni-me das cordas e do emplastro visguento que meu pai me havia dado para o caso; colei-o à boca de Gálio e amarrei-o fortemente ao leito: «Antes que se desembarace de tudo isto — pensei — já estarei longe»; depois, tirei-lhe do bolso a chave do corredorzinho que comunicava com os seus aposentos, onde, apenas dois escravos montavam guarda e aos quais havíamos previsto ministrar um narcótico.

Gálio começou a agitar-se e saí qual sombra, mas atrás de mim percebi grande barulho; era ele que se debatia no leito. Corri o mais que pude para o jardim, através de uma portinhola que dava para uma rua deserta e junto da qual deveria encontrar Agripa e meu pai. Quando me aproximava, ouvi gritar: — Veleda fugiu; ela não pode estar longe! Não era a voz de Gálio, mas evidentemente, ele tinha-se feito entender.

Corri de perder o fôlego, mas ao chegar à pequena porta vi brilhar os capacetes de dois soldados que se atravessaram à minha frente e me agarraram.

Gálio havia desconfiado da minha docilidade e só a meu lado é que aparentava diminuir a vigilância; exteriormente, dobrara as sentinelas.

Amaldiçoei a fatalidade do destino, mas resistir seria loucura; reconduziram-me diante de Gálio que estava de pé, junto de uma mesa, pálido e perfeitamente são; haviam-lhe tirado o esparadrapo, mas as bochechas, lábios e queixo pareciam queimados. Os dois soldados que me escoltavam insinuaram-me prostrar-me a seus pés, pedindo graça, mas eu estava possuída de um ódio tal que me não movia, preferindo morrer a humilhar-me numa súplica.

Avistando-me, os sentimentos mais diversos se lhe retrataram no rosto; deu um passo à frente e mergulhou no meu o seu olhar brilhante.

Adivinhou, sem dúvida, meu pensamento através do meu olhar, porque respirou dolorosamente, passou a mão na fronte e disse com voz fremente de cólera:

— Réptil ingrato a quem amei, enquanto existires, minha vida correrá perigo; minha indulgência e estima me farão correr risco de morte horrível a cada momento.

Pela minha pátria, que precisa da minha vida, devo massacrar-te como se faz a um animal peçonhento.

Voltou-se e, com mão trêmula, firmou um pergaminho que estava em cima da mesa.

— Morre, pois, ingrata; morre sufoca da, como querias que eu morresse.

Virou as costas e saiu sem me fitar.

Um oficial superior tomou o pergaminho e me conduziu a um quarto vazio, onde fiquei reclusa, até o momento do suplício.

Compreendi que tudo havia terminado — Pobre Agripa! — pensei. — Dentro de algumas horas estarei morta, mesmo antes de saberes da minha condenação. Estranhos pressentimentos me assaltaram, enquanto aguardava o terrível momento; involuntariamente fui tomada de glacial tremor ao conjeturar o gênero de morte que me destinavam:— asfixiada pelo vapor — dissera o oficial— e o cérebro superexcitado fazia me sentir a umidade do banho e do vapor espesso que me sufocava. De pé, respirava com dificuldade, parecendo-me faltar o ar no vasto compartimento.

Cobri o rosto; era realmente o fim e não dispunha de arma para dar cabo da vida por forma diferente; um acesso de raiva e desespero impotentes me assaltou; desfalecia e o solo me faltava numa espécie de torpor.

Não sei quanto tempo assim estive, até que a porta se abriu e entraram alguns homens armados; leram-me um ato de condenação do qual nada compreendi; meu coração estava para estourar de tanto bater; chegara o momento da morte e, por mais forte e enérgico que fosse meu espírito, o corpo tremia e a matéria experimentava toda a agonia.

Agarraram-me, conduziram-me por cor redores, vestíbulos e escadarias intermináveis, até que paramos diante de pequena porta; as paredes estavam úmidas, um ar quente e pesado me envolvia.

Nesse momento abriu-se a porta e recuei apavorada; um vapor espesso, esbranquiçado e abrasador, escapou-se do interior e me sufocou; não deram tempo a que resistisse; braços nervosos me empurraram para o interior e a maciça porta se fechou atrás de mim.

Dei alguns passos vacilantes, pois o vapor cáustico me sufocava, entrando pelos ouvidos e nariz; o sangue subiu à cabeça aos borbotões, senti dor atroz como se o crânio estalasse e caí por terra. Meus pensamentos se baralhavam; sufocava-me horrorosamente, sentia-me como que mergulhada numa pasta úmida e pegajosa; cada partícula do corpo parecia contrair-se ao contacto do ferro em brasa. Por fim um choque terrível, que pareceu arrancar-me as entranhas e estilhar o cérebro em milhares de átomos dolorosos. Perdi os sentidos.

A primeira sensação, ao despertar, foi a de um calor agradável a envolver-me; todos os membros ainda doridos, mas, parecendo de extrema leveza, porque eu me elevava rapidamente no espaço cheio de um frescor dos mais agradáveis; admirada e confusa, olhei para mim mesma e depois para o que me cercava e fiquei deslumbrada.

Sem maior dificuldade, mesmo sem querer, elevava-me facilmente qual uma sombra em atmosfera azulada e transparente, que projetava por toda parte reflexos fantásticos; e eu, — sonhava ou me encontrava numa festa esplêndida? Havia trocado as vestes comuns por longa túnica flutuante, fina e transparente como um vapor rosado, reflexo da atmosfera azulada que me circundava. Era eu mesma! Reconhecia-me nos braços, nas mãos, mas eram róseos, transparentes e vaporosos; a cabeleira opulenta e dourada, era bem minha, mas despida do seu peso, cercando-me qual manto de ouro impalpável. Duvidando de mim mesma, estendi os braços nessa atmosfera estranha, apalpei-me, mas a mão atravessava sem obstáculos, qual massa vaporosa que se refazia imediatamente. — Estarei na região dos bem-aventurados? — perguntava a mim mesma — onde os deuses, comovidos pelas minhas dores, me haviam colocado na mansão do Olimpo?

Comecei a lobrigar seres flutuantes, vaporosos e transparentes, mudos como eu, sem descerrar os lábios, a trocar somente fios elétricos-luminosos e nos compreendemos: eram amigos que me recebiam, interrogavam e censuravam-me por ter cometido grande falta, matando meu filho.

Conversávamos ainda, quando, rapidamente a atmosfera se iluminou de alvinitente claridade e vimos, então, flutuar acima de nós uma entidade de beleza surpreendente e fulgurante como um sol.

Reconhecemos o protetor do nosso grupo e curvamo-nos diante dele!

— Espírito de Veleda — disse — cometeste um crime ao defender tua honra! Enorme é o teu crime, mas, por tua dolorosa morte expiaste, em parte, esse assassínio; vai-te, pois, por enquanto, repousar no espaço como espírito errante e preparar-te, segundo tuas forças, para a próxima encarnação.

Desapareceu dissipando-se na atmosfera; meu caminho e destino, como espírito, tinham sido determinados.

Após haver-me orientado sobre a nova estância, o pensamento se voltou para a Terra e quis rever o lugar em que havia deixado os despojos mortais.

Meu espírito atravessou sem dificuldade aquele vapor espesso e mortal, tremendo, às vezes, à lembrança dos sofrimentos morais que tinham sido muito maiores que os do corpo. Vi por fim, estendido no chão úmido a prisão carnal que acabava de deixar. A morte não tinha desfigurado meus traços e, na sua imobilidade, meu cadáver assemelhava-se a uma bela estátua de alabastro. Entretanto, afligia-me dolorosamente, porque acabava de experimentar essa emoção tão penosa para o espírito, quando reconhece sua incapacidade para comunicar-se com os encarnados; a inteligência se desdobra e, muito mais esclarecida pela separação da matéria, permanece, todavia, muda, diante do ser amado.

Agripa estava ajoelhado junto da morta, a cabeça apoiada nas mãos, chorando amargamente. Em vão inclinei-me para ele, toquei sua cabeça, disse-lhe que ali me encontrava e que a morte corporal não era a morte dos sentimentos e da afeição; que o corpo espiritual é mais belo que o da terra. Ele não me ouvia, não se mexia e eu me afligia no meu desespero impotente.

Imediatamente, a pesada porta se abriu e apareceram soldados armados no umbral Prenderam Agripa, conduziram-no a uma prisão e lá o encerraram. Colei-me a ele cor mo se fosse uma sombra, não o abandonando um instante. Assisti, assim, o julgamento iníquo que o condenou e acompanhei-o ao suplício. Revi Gálio e todo o meu ser só transpirou vingança: ah! — pensei com satisfação projetando-lhe maus pensamentos — ignoras que não me aniquilaste, que meu ódio sobreviveu à destruição do corpo; que sou uma entidade inacessível e disposta a seguir-te, molestar, inspirar, obsidiar com recordações, temores, remorsos, numa palavra: fazer-te experimentar a sensação da presença de um inimigo sobre o qual não mais podes exercer qualquer vingança.

Agripa recebeu a morte com o estoicismo de um romano e a calma de um inocente; um único golpe de machado lhe decepou a bela cabeça. No mesmo instante, envolvi-o com o meu perispírito e esforcei-me, com os seus amigos, por cortar os fios que ainda o ligavam à matéria. Imediatamente estava entre nós, leve, flutuando e mais belo que antes.

Passadas as primeiras expressões de alegria pelo nosso reencontro, decretamos contra Gálio uma vingança implacável; em vão o protetor do grupo e os amigos procuraram dissuadir-nos, dizendo que o ódio materializa e ensombra o espírito; que a Nêmesis pertence à Justiça Divina e ao Conselho Supremo. Repelimos toda sugestão nesse sentido e nos apegamos a Gálio como dois fiéis companheiros infatigáveis; com o pensamento seguíamo-lo por toda parte, perturbando-lhe o sono, tirando-lhe o sossego, contrariando-lhe todos os projetos.

Finalmente, ele partiu para a Germânia, onde a guerra começara. Inspiramos-lhe os planos mais desastrosos e em conseqüência experimentou derrotas sobre derrotas.

Um dia em que se travava grande batalha, decidimos, se possível, por termo aos seus dias, porque, até então, havia sido poupado pelas armas assassinas.

Para um vivente da terra, seria curioso espetáculo se pudesse ver, qual vemos, o aspecto de um campo de batalha: todos os mortos cercados por espíritos flutuantes, que ajudam os novos companheiros a se desembaraçarem do corpo mutilado, caído por terra; ouvir as milhares de descargas elétricas anunciando cada uma a desencarnação de um espírito, semelhante ao brado de despedida do seu fiel companheiro. Nesse ambiente pesado e grosseiro, no meio dessa violenta emigração, passamos como tempestade, vomitando o nosso ódio e preparando a perda do inimigo.

Coberto com as suas magníficas armas, mas triste e inquieto, Gálio mantinha-se de pé no seu carro, acompanhando com olhar colérico as peripécias do combate.

Agripa barrou a passagem dos cavalos projetando-lhes violentamente fios elétricos, que o tornavam visível aos animais espantados; e assim, em comunicação com eles que, assustados, de crinas eriçadas, corcoveavam diante da aparição. Depois, dispararam passando como relâmpago sobre montes de cadáveres e destroços de viaturas. Os musculosos braços de Gálio foram impotentes para contê-los assim desembestados. Eu me colava com ele, envolvendo-o com um fluído estonteante; a cabeça lhe rodava, soltou as rédeas e rolou por terra. Corpulento germano que passava na ocasião, foi aproveitado como excelente intermediário, ou antes, como um bom médium.

Apossamo-nos dele fluidicamente; dirigi o seu olhar para essa rica presa; Agripa inspirou-lhe rapacidade e ódio nacional contra o romano; nossa vontade o estimulou e sustentou; ele levantou, então, o machado que brilhou por um instante ao sol, para cair em seguida sobre a cabeça de Gálio.

Ajudados por seus numerosos inimigos invisíveis, cercamo-lo e seguramo-lo, arrancando-o do corpo; em seguida, na atmosfera turvo-avermelhada das nossas paixões apareceu, mantido por centenas de fios luminosos, o perispírito de Gálio, reunido, mas terrivelmente apavorado e flutuando como atordoado.

Contentes com a descarga do nosso ódio, conduzimo-lo a julgamento e à Nêmesis esperada.

 

NOTA DO TRADUTOR: Veleda, entre outras reencarnações, veio na pessoa de Frei Benedito, no romance "Abadia dos Beneditinos".

 

NARRATIVA DE ASTARTOS

Nasci no rico solar de um patrício romano chamado Agripa, onde minha mãe Teodora dirigia os trabalhos domésticos; ela fora ama de leite do pequenino Agripa, filho único do patrício que perdera a esposa ao dar à luz o menino.

Tive uma infância alegre e me desenvolvi rapidamente. Caráter violento, ousado até a temeridade, ávido de perigos, não conhecia medo nem obstáculos quaisquer, os exercícios mais perigosos constituíam minha paixão. Minha pobre mãe receava muito pelas minhas aventuras e tremia quando eu montava cavalos redomãos ou me punha, no pequeno pátio empedrado de nossa casa, a provocar os bois de serviço, para que investissem contra mim, agitando-lhes com um pano vermelho e quanto mais irritados ficavam, mais me alegrava. Quando o animal se enfurecia eu parava, cruzava os braços e exercitava sobre ele a força dominadora do meu olhar. Este exercício perigoso sempre triunfou e meu olhar fascinador domou os mais rebeldes.

Aos dezoito anos sobreveio um incidente que decidiu do meu futuro.

Haviam levado ao circo um tigre enorme, que, por infeliz acaso, se escapou da jaula. Solto pelas ruas, espalhou-se o pânico entre o povo que fugia horrorizado, gritando desesperadamente.

Estava eu precisamente no pátio a jogar o disco, quando os clamores e os tumultos de fora me despertaram atenção:

— O tigre!   O tigre soltou-se! — bradavam vozes desesperadas; mata a todos que encontra de passagem!

Sem mais refletir, tomei do meu cutelo (para o caso do meu olhar não ter ação sobre o animal) e corri à praça do mercado, em cujo ângulo residíamos.

Minha pobre mãe que, dessa vez, me julgou irremediavelmente perdido, tentou impedir-me a passagem:

— Astartos, oh imprudente, olha que arriscas a vida; proíbo-te que saias!

Eu, porém, não estava habituado a ouvir outra voz que a das minhas paixões, e a idéia de subjugar um tigre me perturbava.

Aspirava à celebridade por todos os poros de minha alma violenta e, sem atender aos soluços maternos, lancei-me à praça que o tigre já havia juncado de cadáveres de muitas vítimas.

No momento que lá surgi, o enorme animal agachado, com o focinho sangrento, preparava-se para investir num velho estimadíssimo magistrado, que, aterrorizado, havia caído de joelhos recomendando-se aos deuses.

De um salto barrei o caminho ao tigre, que, à vista do meu aspecto atlético, parou rugindo e abanando a cauda. Essa atitude apenas durou um instante e logo se preparou para atirar-se a mim; tive, porém, tempo de cruzar os braços e fixá-lo. Dirigi meu olhar para as suas pupilas esverdeadas com toda a força do meu querer, fez-se um silêncio de morte, eu respirava penosamente, mas não deixava de fitar a fera, que demonstrava ter já perdido a agilidade. De pronto, os olhos se lhe fecharam, oscilou e estendeu-se preguiçosamente no solo. Sem desviar os olhos, aproximei-me, agarrei-o pela juba e o reconduzi à jaula.

O terror e o espanto paralisavam os espectadores da cena, ao verem-me levar o tigre. A massa de curiosos, tudo esquecendo, seguiu-me e quando as sólidas barras de ferro isolaram o inimigo comum, um eco de alegria e admiração reboou e a multidão entusiasmada precipitou-se, carregando-me nos braços, em triunfo, até a minha casa.

Minha mãe me abraçou, chorando, eu não me sentia mais sobre a terra. Fui cumulado de presentes, dizia-se abertamente que era lamentável vegetasse eu em Pompéia; que meu futuro e glória estavam no circo de Roma, onde me tornaria estrela de primeira grandeza. Sôfrego de sucesso, amando o perigo e as emoções violentas, segui estes conselhos e, com os bolsos bem recheados, parti para Roma.

A notícia da façanha facilitou minha recepção com alegria e decidiu-se a estréia no circo no primeiro grande espetáculo, ao qual devia assistir Tibério, com sua mãe e a esposa. Até o dia solene, vivi contente; não estava sozinho naquela cidade, onde encontrara dois amigos sinceros: meu irmão de leite, Agripa, que servia na guarda de Tibério, e Marcos, amigo de infância, embora pouco mais velho do que eu, médico da corte.

No dia do espetáculo, obtive estrondoso sucesso; dominei todas as feras que se me apresentaram; estava cansado, mas feliz e envaidecido; os frenéticos aplausos da multidão me embriagavam; recebi uma coroa de flores e um colar de ouro.

Quando me inclinei diante da tribuna de Tibério, a mão branca de Júlia lançou-me uma echarpe de seda e a expressão do seu olhar dizia claramente que o homem era admirado quanto o gladiador.

Após tantos séculos decorridos e tão diversas encarnações terrestres, creio poder afirmar, sem fatuidade, que na minha vida de Astartos fui de uma beleza admirável; alto e esbelto, minha mãe de origem grega, havia-me transmitido em toda sua pureza o tipo e as formas das antigas estátuas; minha cútis tinha a palidez mate dos homens muito apaixonados; cabeleira negra, abundante e anelada, olhos grandes, negros, penetrantes, molduravam um conjunto que bem podia tentar as mulheres.

Em seguida à representação è afastamento do público, houve grande banquete para os gladiadores, dançarinas do circo, seus parentes e alguns convidados. A festa se prolongou, degenerando em formidável orgia em que se bebia e cantava. A alegria, o alarido e os gritos eram espantosos. Pronunciei, então, uma arenga em meu próprio louvor e questionei com um gladiador invejoso dos meus sucessos. Exaltamo-nos em recíprocas bravatas, enumerando sucessivamente as de que nos sentíamos capazes, quando um criado do circo se aproximou e me tocou no ombro: — Gladiador Astartos, vem daí que alguém deseja falar-te.

Levantei-me, e acompanhei-o.

Debaixo de grande portal, um negro ricamente vestido me aguardava; inclinou-se profundamente e disse-me que uma pessoa desejosa de beneficiar-me o havia incumbido de levar-me à sua presença.

Experimentei grande surpresa, pois, aquela hora, quem poderia querer ver-me? Essa ingênua ignorância apenas se desculpava porque me encontrava em Roma havia quinze dias; mais tarde não me admiraria quando, após os espetáculos, um criado de confiança vinha falar-me de uma protetora.

Mas, muito intrigado, acompanhei o mensageiro até que parou diante de pequena porta duma ala do palácio de Tibério, habitada pelos escravos. Tirou do bolso uma echarpe de seda:— Tenha confiança em mim, gladiador; devo vendar-lhe os olhos.

Eu não conhecia perigo e comecei a pensar que o episódio teria um fim aventuroso. Deixei-me vendar. O cicerone tomou-me a mão e seguimos.

Depois de muito andarmos, parou; percebi ao derredor um fru-fru de cortinas preciosas, ao mesmo tempo que aspirava deliciosos perfumes.

— Tira a venda — disse uma voz suave.

Obedeci e fiquei aturdido no umbral de uma alcova cujos reposteiros suntuosos acabavam de ser descerrados atrás de mim; um luxo fantástico me cercava; vi, então, pequena mesa coberta de áurea baixela com iguarias apetitosas e ânforas cinzeladas; mas, o que cativou inteiramente minha atenção, foi a existência, no fundo do quarto, de um leito sobre estrado guarnecido de tapetes purpurinos. Sedutora mulher ali estava deitada — ou melhor — recostada em almofadas de seda bordada a ouro. Braços nus, carregados de pulseiras, cabelos desnastrados até os joelhos, mas, oculto o rosto por espesso véu.

— Astartos — disse a mesma voz meiga — aproxima-te, meu amigo; quero proteger-te e amar-te.

Aproximei-me inteiramente perturbado e, caindo de joelhos, beijei-lhe as mãos.

— Que fiz para tornar-me o mais feliz dos mortais?

— Tua beleza e coragem fazem de ti um semideus; toma e bebe.

Passou-me a taça cheia e bebi um vinho capitoso, que me reanimou.

Ajoelhando nos degraus do leito, troquei com a desconhecida ternas palavras amorosas. Mas, como o vinho me subisse à cabeça, a mão audaciosa pretendeu levantar o véu que cobria o rosto da bela desconhecida.

— Desgraçado, a que te arriscas? — disse, desviando-me a mão.

Levantei e cruzei os braços:

— Desejo ver-te e se não te pejas de aceitar o meu amor, não deves esconder-me teu rosto.

— Cruel Astartos! não posso; exiges o impossível.

— Para a mulher que ama, nada é impossível.

Ela insistiu na recusa, eu agastei-me.

— Pois bem — disse — deixo-te; não posso amar uma criatura que não confia em mim.

Voltei-me e dirigi-me para a porta, certo de que não me deixaria sair.

Não me enganava. Um grito aflitivo logo me fez voltar.

O véu tinha caído e contemplei o belo rosto de Júlia, a mulher de Tibério.

Meu sangue gelou; aquela aventura podia custar-me a vida; mas, apesar de tudo, Júlia era sedutora na sua rica toilette. Atirou-se-me aos braços e tudo foi esquecido: o terror e Tibério.

Depois disso, raras noites passei no circo; a atitude muito apaixonada e o ciúme feroz de Júlia me desgostaram e fizeram aborrecê-la de pronto. Não ousei, contudo, demonstrar esses sentimentos, temendo provocar ódio e vingança. Via-me obrigado a esperar, impacientemente, que ela elegesse outro amante.

Entretanto, enchia-me de ouro e de presentes, tomando-me o mais rico gladiador de Roma. Eu não trocaria então minha vida pela de um deus. As mulheres me cortejavam e Júlia tinha razão de enciumar-se, pois, deixava-me seduzir por toda parte. Tive também a muita sorte de não me haver encontrado jamais com Tibério nos apartamentos da rainha. Ele nunca desconfiou da afeição apaixonada que inspirei à ilustre esposa. Não tinha aliás muito tempo para a espionar, porque se entregava a toda sorte de divertimentos.

Mais de dois anos assim passaram. Por fim, minha mãe adoeceu e desejou ver-me. Despedi-me de Júlia, que, só a contragosto, consentiu na minha ausência. Ainda assim, cumulou-me de presentes para minha mãe.

Cheguei a Pompéia aureolado como um semideus. Meus triunfos eram conhecidos e falava-se à socapa das concessões de Júlia; fui festejado, adulado e em recompensa distribuía punhados de ouro e brindes diversos.

Durante a estadia em Pompéia, travei conhecimento com Febé, filha de um rico agricultor da redondeza, chamado Glauco; ela fora à nossa casa para cuidar de minha mãe e logo percebi que lhe havia despertado uma paixão tão violenta quanto a de Júlia.

Nunca fui mau e logo um terno amor nos uniu; mas, em mim, esta paixão diminuiu com incrível rapidez, enquanto que em Febé aumentava sempre.

Enfim minha mãe se restabeleceu» Comuniquei-lhe até que ponto era vítima da paixão daquela moça. — Partirei secretamente — disse — para evitar dolorosas despedidas. Minha mãe concordou; abençoou-me e parti às escondidas, desaparecendo de Pompéia como uma sombra.

Mas, apenas vencido um dia de marcha, eis que Febé foi alcançar-me, montando um cavalo branco de espuma; cobriu-me de censuras e declarou que, por coisa alguma do mundo, me abandonaria.

Isso me exasperou de tal forma que tomei de rebenque (éramos já muito familiares para que me sentisse constrangido diante dela) vergastando-a como merecia e ordenando que regressasse a Pompéia. Ela, porém, suportou pacientemente a minha brutalidade e ficou. Tal manifestação de humildade e afeição, sensibilizou-me; disse-lhe então que consentia em fazê-la dançarina do circo, mas que se precatasse de ser infiel ou imprudente, porque, do contrário, o chicote entraria novamente em cena. Mostrou-se de humildade extrema e tudo prometeu. Continuamos a viagem para Roma.

Com grande e geral espanto, instalei-me com ela no meu apartamento do circo, e, para acalmar a curiosidade dos companheiros, disse-lhes que ela possuía grande vocação para as danças e a trouxera para ensaiar convenientemente e apresentá-la no circo, o mais breve possível.

à noite, muni-me da chave que Júlia, a minha poderosa senhora, me dera e, bem a contragosto, dirigi-me para o palácio de Tibério. Dissimulei o melhor que pude minha presença, para não nos comprometer.

Atravessei sem dificuldade o corredor secreto, e, abrindo a porta, espreitei, através das cortinas, o interior da alcova já bem conhecida, e onde, por ocasião da primeira visita, magnífica mesa guarnecida e perfumes estonteantes me haviam perturbado.

Vi Júlia recostada no leito, abraçando pelo pescoço um homem ajoelhado numa almofada diante dela. Trocavam frases amorosas.

Surpreso um instante, permaneci mudo. Tinha um rival?

Satisfeitíssimo, levantei a cortina e me apresentei aos dois amantes, fingindo grande espanto.

Vendo-me, Júlia deu um grito tapando o rosto; o oficial levantou-se de um salto e desembainhou a espada; empertigando-me arrogantemente, disse:

— Peço perdão de haver perturbado a vossa entrevista; mas, eis o que devo restituir.

E coloquei a chave na mão do jovem patrício estupefato: — Aqui tem a chave da alcova e do coração — acrescentei. Virando-me para Júlia, inclinei-me profundamente e lhe disse em tom imperioso: — Vós mesma assim o quisestes e não ouso me insurgir contra os vossos desejos.

Saí lépido e radiante por me haver desembaraçado de tão perigosa aventura.

Desde então, não mais a vi. Tempos depois, entretanto, soube por Marcos que um oficial da escolta de Tibério havia perecido, acusado de haver levantado a vista para a augusta e real senhora.

Por nada deste mundo teria querido rever tão perigosa criatura.

Febé habituara-se rapidamente à sua nova situação e os gladiadores lhe agradavam muito; por questão de amor-próprio, eu não poderia tolerar tal coisa e nunca essa criatura relaxada e pérfida fora submetida a tão rude e severa disciplina; desde que eu virava as costas, ela tramava alguma infâmia; mas, como já desconfiava, surpreendi-a muitas vezes e então a espancava sem compaixão. Por fim, ela já me temia como ao próprio fogo e isso constituía o seu único freio.

Certa feita, exasperada, tentou envenenar-me e o acaso me salvou. Teria podido usar de represália, mas me contentei, após uma punição exemplar, com encerrá-la numa jaula onde a sovava três vezes por dia, ao levar-lhe as refeições. Um dia, Marcos deu-me um pó que adicionei ao alimento, provocando-lhe vômitos e ela acreditou ter sido envenenada; rolou, então, a meus pés, pedindo perdão. Fingi dar-lhe um antídoto, desculpando-a.

Depois de muito trabalho e exercícios de alguns meses, Febé tornara-se uma dançarina digna de figurar no circo. Comprei-lhe vestidos adequados e um dia apresentei-a na arena. Sua estréia foi um grande sucesso. Linda de corpo, jovem, robusta, de traços acentuados, com opulenta cabeleira negra e belos dentes, grandes e muito claros.

Não agradaria a uma pessoa de gosto apurado, mas o seu desempenho artístico valeu-lhe aplausos frenéticos da multidão e Tibério mostrava-se admirado.

Envaidecida, vendo que agradara, sobrepassou-se e praticou maravilhas.

No dia seguinte um oficial da guarda imperial foi chamar-me a palácio. Supus que o futuro imperador quisesse exprimir-me pessoalmente sua satisfação e apresentar cumprimentos por ter preparado uma dançarina tão hábil. Aprestei-me e segui o oficial.

Fêz-me entrar numa sala luxuosamente decorada onde avistei Tibério deitado numa cadeira preguiçosa, acariciando com os dedos o colar de ouro.

Com um gesto afastou os presentes e fiquei a sós com o temido e poderoso herdeiro do império.

Durante alguns instantes, cravou-me os olhos cruéis e penetrantes.

— Gladiador Astartos, quanto queres pela tua «Bestia?» — disse finalmente.

Compreendi de pronto: o bom Tibério pretendia desembaraçar-me da víbora, que nenhum gladiador quereria.

— Nada vale tanto como um instante de prazer para o meu ilustre senhor e futuro soberano; basta-me a alegria de lhe ser agradável — respondi, inclinando-me reverente.

Um sorriso de íntimo contentamento iluminou o rosto anguloso do potentado.

— Bem, gladiador; lembrar-me-ei de ti; conta com a minha proteção. Quando me enviarás essa mulher?

— Dentro de uma hora — respondi em voz baixa, acrescentando — Meu augusto senhor, cedo-a, mas devo prevenir-vos que, com ela, é preciso usar sempre do chicote; é uma víbora que morde a mão que a sustenta e trai o benfeitor.

Tibério sorriu:

— Bem, envia-me o teu chicote com ela.

Tomou de cima da mesa uma taça de ouro ricamente cinzelada e ornamentada de camafeus:

— Bebe — disse — e guarde-a como lembrança.

Bebi à sua saúde e depois de agradecer, retirei-me satisfeitíssimo. Chamei dois escravos e retornei à casa. Febé preparava no momento a nossa refeição.

Não experimentava qualquer contrariedade em pensar que ia separar-me da minha doméstica, pois temia sempre ser envenenado por ela e sentia-me feliz por desembaraçar-me dos seus préstimos.

— Veste-te, bruta! — disse-lhe, desenrolando o chicote.

Olhou-me espantada, acreditando que houvesse descoberto alguma das suas infâmias.

— Ofertei-te a Tibério — continuei — e ele me pediu que te enviasse com o chicote que te mantém rigorosamente obediente. Mas, não te regozijes muito com a aventura e que o fausto não te perturbe o miolo; aqui não recebeste senão pancada; mas, se irritares Tibério, que não é de brincadeiras, tua cabeça servirá de pasto aos porcos; sou eu que te digo; toma cuidado, pois, com esta minha última recomendação.

Vestiu o melhor que tinha e depois de uma despedida muito respeitosa, acompanhou os dois escravos.

Depois disso não a vi senão durante as representações em que Tibério quis que ela figurasse. Apesar da sua nova situação, o amor frenético que ela sentia por mim não arrefeceu, mas como todas as suas demonstrações ficavam sem resposta, pouco a pouco passou a votar-me um ódio surdo e implacável e eu amaldiçoava o dia em que encontrara essa mulher pérfida e dissoluta.

O tempo escoava-se em festas, orgias e jogos diversos. As mulheres mais belas e ricas de Roma queriam-me por amante, porque minha beleza e coragem as embriagavam e lhes transtornavam a cabeça. Eu estava tão rico que poderia deixar o circo e viver confortavelmente. Minha velha mãe gozava de grande abastança. Contudo, eu adorava aquela vida perigosa, cheia de incidentes que, muitas vezes, me punha a dois dedos da morte; minha força e destreza, porém, sempre me fizeram triunfar.

A essa altura, estalou nova guerra com os Germânicos. Tibério partiu para a campanha levando consigo Febé e Marcos, seguido de numerosos patrícios. Fiquei à vontade, sem temer ciúmes intempestivos, pois muitos patrícios combatiam para glória da pátria.

Entretanto, como tudo tem fim neste mundo, um belo dia chegou a desagradável notícia de que Tibério e o exército vitorioso regressavam a Roma. Batedores anunciaram em todos os quarteirões da cidade que os romanos, após grandes vitórias sobre as tribos germânicas, regressavam a seus lares, carregados de despojos e conduzindo inúmeros prisioneiros de ambos os sexos.

Resolvi, também, praticar um ato de caridade, tomando uma das pobres prisioneiras para criada (uma das mais belas, está visto) e ela parecia sentir-se muitíssimo feliz com a sorte que mais de uma patrícia invejaria.

No dia marcado para a entrada triunfal de Tibério, toda a cidade e sobretudo as ruas que o cortejo deveria percorrer, estavam magnificamente ornamentadas e atapetadas; foram construídas tribunas para as vestais e os principais patrícios. Todos os logradouros foram invadidos pela multidão, até mesmo nos telhados viam-se espectadores. Coloquei-me defronte da tribuna das senhoras e, como chegasse cedo, vi-a encher-se pouco a pouco. A mãe de Tibério e Júlia, esta toda de branco e coberta de jóias, foram as últimas a chegar, acompanhadas de numerosos patrícios e escravos.

Com a presença delas, iniciou-se o desfile.

Após os soldados, veio a presa de guerra; depois, a massa de prisioneiros e em seguida um carro puxado por cavalos brancos, conduzindo Tibério, que, de pé, envolto numa toga encarnada e coroado de louros, saudava com as mãos o povo estúpido que o aclamava de passagem com frenética algazarra.

Pouco adiante do carro ia, como última das prisioneiras, uma rapariga que atraiu minha atenção e provocou murmúrios do povo, porque já se havia espalhado o boato de que Tibério trazia uma prisioneira de nome Lélia, que o detestava e maltratava por todas as formas. Acrescentava-se, mesmo, que, quando do seu primeiro encontro, ela lhe havia despejado na cabeça todo o vinho de uma taça que ele lhe havia ordenado que segurasse.

Eu sabia muito mais ainda, a esse respeito, porque na véspera, à tarde, Marcos tinha ido visitar-me e muito me falara do caráter enérgico dessa jovem selvagem.

Compreende-se, pois, a curiosidade com que fixei essa Lélia, vendo-a aparecer. Linda mulher de olhos grandes e azuis, soberba cabeleira loura, solta e anelada caía-lhe até a cintura. Vestia costume branco com uma capa azul; um braço e ombro envoltos em ligaduras.

Tibério parecia a alegria personificada. Quando, porém, o cortejo passou diante da tribuna das patrícias, Júlia fixou um olhar ávido e curioso no rosto mortalmente pálido da prisioneira. Esta, sem dúvida, sabia ou compreendeu diante de quem se encontrava, porque, subitamente corou de vergonha, deu alguns passos vacilantes, estacou e levando a mão ao peito, caiu desmaiada na poeira da rua.

Tibério inclinou-se vivamente; manchas vermelhas afluíram-lhe ao rosto. Eu sabia por Marcos que todas as ordens relativas à prisioneira partiam dele; assim, ninguém ousou tocá-la nem socorrê-la. A expectativa se fez silenciosa, geral, profunda.

Júlia comoveu-se e pareceu dar ordens aos pajens; alguns se levantaram e desceram conduzindo frascos; mas, antes que chegassem ao meio da rua, Tibério em atitude feroz ordenou que levantassem Lélia e a colocassem aos seus pés, atravessada no carro:

A ordem foi imediatamente cumprida e o cortejo prosseguiu mais depressa para o palácio. Observou-se, então, que Tibério se retraiu e parecia distraído e de olhos quase sempre baixos.

Cheguei a casa muito intrigado com tudo aquilo. Ã tarde, apareceu Marcos e falou longamente dessa aventura, referindo o orgulho tão raro da rapariga, que não suportava afrontas sem revidar com raiva e ódio verdadeiramente selvagens.

Passaram-se meses sobre este incidente. O circo me tomava quase todo o tempo e, contudo, graças a Marcos, sempre obtinha novidades frescas da corte. Soube, então, que Febé se tornara amante de Sejano, o poderoso conselheiro de Tibério, mas este simulava ignorar essa ligação; muito mais preocupado com a jovem germânica, que o maltratava sem tréguas e, apesar disso, ele adorava a seu modo, guardando-a como a menina dos olhos.

Decorreram assim muitos meses sem que eu tornasse a ver Lélia. Uma tarde, porém, um portador de Tibério me intimou a acompanhá-lo até o palácio, levando o meu alfange. — Ele quer castigar um pouco a insolente selvagem, acrescentou o mensageiro — que recusa confessar-lhe abertamente o seu amor, e essa dissimulação o irrita ao mais alto grau.

Chegando a palácio, levaram-me a uma sala ricamente decorada. Na extremidade da mesa, ainda posta, Marcos de pé, impassível, com a sua caixa de medicamentos e ligaduras, pronto para tudo. Tibério andava de um lado para outro, agitado, de braços cruzados às costas; percebi que tinha uma orelha pensada e, conhecendo por Marcos os detalhes da sua vida íntima, imaginei que provavelmente se houvesse aproximado de Lélia para abraçá-la, e que os dentes da pequenina fera se cravaram naquela orelha sempre surda, quando ela repetia: abomino-te!

Cumprimentei detendo-me respeitoso junto à porta, fixando curiosamente a heroína de. tantas aventuras. Ela estava tranqüilamente assentada num divã, apoiada em almofadas bordadas a ouro.

Dessa vez, pude analisá-la a meu gosto; era uma jovem de dezenove anos no máximo, muito franzina; rosto encantador, somente os olhos de um azul de aço traduziam expressão feroz e rancorosa; as mãos delicadíssimas repousavam, naturalmente cruzadas, sobre os joelhos; vestia costume branco e um laço dourado lhe retinha os cabelos louros e crespos.

Tibério que, durante todo esse tempo,, continuava a passear nervoso de um lado para outro, parou subitamente à minha frente:

— Gladiador — disse em tom grave - vou confiar-te esta jovem criminosa. Trouxeste o cutelo? Bem, leva-a e sem perdei tempo faze dela um ensopado para as tuas feras.

Marcos estremeceu e seus olhos me fixaram com pavor. Tibério fitou-a querendo observar o efeito da ameaça. Ao nosso constrangimento, porém, ela correspondeu com uma estridente gargalhada. Tibério ficou vermelho de raiva.

— Insolente! exclamou — ousas rir da minha severidade!

— Bah! — retrucou Lélia — tantas vezes me tens ameaçado com a tua severidade e os teus carrascos, de me fazerem em pedaços, que já não tenho mais medo. Acaba logo com isso, pois a ti prefiro tudo.

— Cala-te, bestial — esbravejou, batendo o pé — ainda ousas raciocinar em minha presença!

— Em tua presença — repetiu ela desdenhosamente — sempre em tua presença, porque não me deixas um instante de sossego, embora eu não sinta nenhum prazer em falar contigo.

E levantou-se:

— Vamos, gladiador; faze de mim um repasto para tuas feras; é sempre melhor do que ser dia por dia uma presa de Tibério. Estendi o braço para agarrá-la cumprindo a ordem, mas Tibério tornou-se inquieto e posse a caminhar a passos precipitados, parando a cada instante. Quando alcançamos a porta, precipitou-se rápido como um falcão para junto de Lélia.

— Ah! queres ir!   Pois, ficarás; viverás e hás de amar-me, pequena víbora; agora, pede-me perdão por me haveres magoado a orelha. Sim, porque a verdade é que não ousaste morder-me e eu quis somente punir-te pela tua insolente intenção.

Tomou-a nos braços e colocou-a no divã.

— Acalma-te — prosseguiu — o terror tornou-te pálida. Se tiveres a coragem de confessar-me o teu amor, não considerarei tudo isso mais que simples exaltação de espírito. Ainda que eu seja o futuro imperador e constitua praxe considerar divindade um personagem do meu quilate sem lhe atribuir sentimentos e paixões humanas, eu prometo desculpar-te.

Lélia o fitou muito espantada.

— Divindade, tu? Em que templo ouviste dizer semelhante coisa? Por que pensar que receio declarar um amor que não existe? Não sou Febé, que ora beija os pés e ora te bate.

Tibério empertigou-se:

— Infeliz! Se assim falas para me despertar a idéia de te justiçar, toma cuidado!

— Vai-te! — disse-me em seguida — uma vez que ela pede graça e, a meu mal grado, lhe perdôo; vai-te — repetiu.

Sem dúvida, minha presença o constrangia em face da própria dignidade.

Saí muito admirado do caráter estranha do futuro imperador, que, positivamente, suportava todas as grosserias de Lélia sem muito se ofender, interpretando-as de forma singular.

Mais de um ano se passou após este incidente, sem ocorrer acontecimentos dignos de menção, quando um dia, ocupado em distribuir ração às feras ouvi chamar: «Astartos, Astartos!» Era um dos meus colegas. — Vem imediatamente, trouxeram uma prisioneira que o procônsul Gálio envia para ser lançada às feras.

Como fosse eu quem sempre recebia os condenados, interrompi a tarefa e fui ao pátio. Lá deparei com um grupo de camaradas que examinavam curiosamente a recém-vinda.

Aproximei-me também, mas, desde que vi a prisioneira, parei estarrecido, pois acabava de reconhecer Veleda, amiga da infância, filha de um rico negociante de perfumes, cuja loja ficava fronteiriça à casa de Agripa.

Eu e esse irmão de leite havíamos passado agradáveis momentos em casa dela; brincávamos com o filho adotivo do bondosa negociante e com a filha, a pequenina Veleda; eles, quando o pai não estava em casa, nos davam a mancheias os perfumes que queríamos e agora era essa mesma Veleda que me entregavam para fazê-la morrer de morte horrível.

Tomei de pronto a deliberação de tudo fazer para livrá-la, mas, aparentemente, dominei-me para não despertar desconfianças, mostrando qualquer interesse pela prisioneira.

Preenchendo rapidamente as formalidades necessárias, conduzi-a para o cubículo e indaguei o motivo que a arrastara aquele triste lugar. Veleda se mostrava triste e muito cansada, mas, ainda assim, contou-me em poucas palavras a sua triste história; depois, esgotada, assentou-se na palha da prisão.

Agitado, procurava observá-la. Minhas recordações da infância me assaltavam de tropel; revia-me na loja, assentado no chão, encharcado de óleo perfumado, que as suas pequeninas mãos esforçavam em vão, em desesperadas fricções, para empastar-me a cabeleira e que escorria em grossos filetes pelo meu pescoço, braços e roupa, enquanto Tito e Agripa furtavam os potes de tinturas. Depois, recordei o dia de trágica memória, em que quebramos grande cântaro de óleo de rosas; Tito queria suicidar-se; Veleda torcia as mãos repetindo: — Que dirá papai ? E nós, os malfeitores, olhávamos consternados o rio aromático, sem saber o que fazer. Por fim, ganhamos coragem e tomamos de outro cântaro, recolhemos o óleo. O que faltou, foi completado com outra qualidade de essência menos preciosa. Tito esqueceu prontamente a idéia do suicídio e se consolou, dizendo que a parte perdida seria paga pelos fregueses.

Pobre Veleda!   Como estava mudada!

Não era a mesma daqueles tempos felizes! Havia quatro anos que nos não víamos. Ela se desenvolvera e era agora uma mulher de beleza invulgar. Vou tentar, aliás, descrever aqui essa vítima da tenaz e brutal paixão do procônsul Gálio. Extremamente delgada e franzina, de porte médio e cútis branca e resplandecente das mulheres louras; o rosto pálido, porém, iluminado por grandes olhos negros, velutíneos, a rebrilharem com sombrio orgulho; um rosto pequeno e rosado; a expressão severa e enérgica emprestavam-lhe aparência de mais idosa do que realmente era. Mas o que sobressaía, à vista, era a cabeleira de um louro dourado, que, em massa de incrível opulência, estendia-se até os tornozelos, qual manto ondulante. Pés e mãos de pequenez rara e uma ideal perfeição de formas completavam a harmonia de conjunto, que, repito, integrava uma beleza sem par.

Naquele instante, a expressão sinistra dos olhos e a contração rancorosa dos lábios toldaram um pouco a harmonia dos seus traços admiráveis.

Após havê-la encorajado quanto possível, encarcerei-a e corri a avisar Marcos e Agripa. Este último, loucamente apaixonado por Veleda depois da última viagem a Pompéia, um ano antes, resolveu tudo fazer para salvá-la. Quanto a Marcos, apesar de todo o interesse que votava à Veleda, estava muito absorvido com os próprios pesares depois de uma ocorrência que os seus amigos sabiam bem dolorosa.

Tentaram libertar Lélia, mas o plano fracassara, sendo presos seu irmão e o noivo, de nome Hilderico, jovem cuja beleza ultrapassava de muito a minha; jamais vi tão belos cabelos louros e anelados, nem mais admiráveis olhos de um azul profundo como o mar. Tibério, abjetamente enciumado, mandou enterrar o infeliz Hilderico até o pescoço, deixando a cabeça de fora para que ratos esfaimados a devorassem. Como coroamento de crueldade, levou Lélia a ver o afrontoso suplício aplicado ao homem amado. Louca de raiva, ela atirou-se à garganta de Tibério e tê-lo-ia estrangulado se Agripa não a retirasse, aliás com grande dificuldade, ficando o tirano caído, sufocado.

Um tal ato de violência, praticado diante de tantas testemunhas, não podia ficar abafado: Lélia foi submetida a julgamento pelo Conselho privado de Tibério e condenada a morrer no circo, estraçalhada pelos leões. A infeliz criatura foi entregue à minha guarda e levei-a à mesma prisão em que se encontrava a minha amiga da infância.

Cedo, estreita amizade as reuniu, porque nada melhor que desgraças e ultrajes comuns para aproximar almas.

Todos os nossos pensamentos, nessa ocasião, se concentravam nos meios de salvar as duas prisioneiras, mas as dificuldades eram enormes, sobretudo com relação à Lélia.

Constantemente, antes de visitar as prisioneiras, aqueles amigos se reuniam em minha casa e discutíamos o assunto. Os dois jovens apresentavam um estranho contraste: Agripa fogoso, impulsivo, orgulhoso da sua condição e fortuna, zangava-se freqüentemente, porque lhe parecia que duvidávamos da eficácia dos seus planos; estava convencido de que salvaria a mulher amada; Marcos, pálido, apreensivo, torcia as mãos repetindo com desespero: «Nada posso, á não ser entregá-la a Tibério. Ah! sorte maldita!»

Empregando minha força dominadora, acalmava os arroubos de um, consolava e animava os desfalecimentos do outro e restabelecido o equilíbrio, descíamos ao calabouço.

Certa manhã, Tibério mandou chamar-me.

Introduziram-me na sua alcova. Estendido num canapé, parecia preocupado e fitou-me com expressão rancorosa. Talvez suspeitasse no belo gladiador um rival junto da mulher que tencionava matar dentro de poucos dias.

Falou-me da possibilidade de um perdão (covarde tirano que só experimentava os temores da perda quando as coisas já haviam sido levadas ao extremo).

— Previne-te — concluiu ao despedir me — se me ocultas que a infeliz criatura confia em mim, porque existe a possibilidade de que a minha infinita indulgência lhe perdoe os seus crimes.

Depois deste colóquio, ele próprio foi visitar a condenada, primeiro só, depois acompanhado de Gálio. Veleda descreveu essa visita dos verdugos.

Enfim, chegou o terrível dia do suplício de Lélia. Desde cedo, quando ela assim o quis, dei-lhe novos vestidos; ao levar-lhe a última refeição, (na qual não tocou), fiquei impressionado com a sua beleza e o contraste entre ela e Veleda. Mais alta que esta, também delgada e elegante, Lélia possuía um rosto de criança, sorridente, claro e rosado; olhos grandes, azuis e brilhantes; dir-se-ia radiosa aurora ao pé da sisuda e sinistra Veleda, tão imobilizada e pálida que se poderia tomar por uma estátua, não fossem as sombrias chamas dos seus negros olhos.

Lélia estava pronta. As duas jovens permaneciam abraçadas. Quando lhes anunciei o momento da separação, tudo fizeram para se manterem calmas e após um derradeiro adeus Veleda atirou-se na enxerga e mergulhou a cabeça para esconder as lágrimas. Lélia, lábios trêmulos, cambaleava; apoiava-se em mim e assim a levei para fora da prisão. No corredor, estava Marcos encostado à parede. Ocultava com as mãos o rosto pálido. Quando Lélia o avistou, aproximou-se rapidamente e tocou-lhe na mão:

— Marcos, meu amigo, não te desesperes por não teres podido salvar-me; sou feliz porque prefiro a morte à vida; roga apenas aos deuses para que meu sofrimento não seja longo.

Marcos soluçava; tingiu-a de encontro ao peito, desesperado. Nesse momento, sapateados e longínquo rumor anunciaram, a impaciência do público.

Glacial suor inundava-me a fronte. Urgia separá-los.

— Coragem, meus amigos; submetei-vos ao inevitável!

Ela desprendeu-se de Marcos e seguimos.

— Lélia — disse, apertando-lhe a mão — sou inocente pela tua morte, não passo de simples instrumento.

— Sei, Astartos — respondeu apertando-me também as mãos — e te agradeço todas as atenções.

No momento de abrir a portinhola e introduzi-la na arena, ouvi o baque surdo de um corpo que rolava pesadamente no piso do corredor... Era Marcos!

Gostei desse acidente, pois isso era melhor que ter consciência do terrível momento que se aproximava.

Nesse instante, foram soltas as feras; afastei-me e permaneci de pé, semi-louco deixando todo o trabalho aos demais gladiadores. Não desejava presenciar o horroroso espetáculo.

Imediatamente, a voz de Tibério se fez ouvir, aquela voz seca e estridente, de timbre metálico: «Gladiadores, salvai-a se for possível! — Sim, sim, graça para a condenada, vociferou a turba».

Essas palavras me reanimaram. Tudo esquecendo, em dois saltos me coloquei no meio da malta esfaimada, que já lambia a presa desmaiada e caída na arena. Uma raça sobre-humana me invadiu, saquei do alfanje e desferi golpes a torto e a direito. Os demais gladiadores me secundaram, mas ainda me restava um último inimigo. Corpo a corpo, defendia Lélia contra um enorme tigre. A temível fera se tinha alçado nas patas traseiras e permanecíamos abraçados. Já os dentes do animal começavam a dilacerar-me a carne das espáduas e as garras tremendas a se me cravarem nos rins.

O público, eletrizado pelo espetáculo, gritava com frenético entusiasmo, sem imaginar que se tratava de um combate mortal e que um momento de desfalecimento seria a minha ruína.

A dor atroz da espádua parecia paralisar-me o braço; meu alfanje caiu; uma nuvem passou-me pelos olhos e suor glacial inundou-me a fronte. Gritos de terror anunciavam o receio da multidão em perder o seu gladiador favorito. Ouviam-se gritos das mulheres e a palavra — perdido — passou-me pela mente como um relâmpago. Recuperando novamente as forças, mergulhei meu olhar intrépido nas pupilas esverdeadas do tigre, que se imobilizou pouco a pouco. Seus dentes se descerraram, as garras afrouxaram, o pelo se eriçou; todo ele tremeu, cambaleou e abateu-se a meus pés.

Agarrei-o pelo couro do pescoço e, baixando a cabeça para não desviar o olhar, conduzi-o à jaula, deixando cair a grade.

Aclamações frenéticas colimaram a vitória; sangrando, mas radiante de contentamento, inclinei-me ante à multidão e, nesse instante, grosso colar de ouro caía-me aos pés, atirado pelo próprio Tibério,

Mandei logo retirar Lélia e corri para junto de Marcos ainda desfalecido no corredor.

— Levanta-te — disse sacudindo-o — ela está salva; vem prestar-lhe tua assistência.

Ele voltou a si e correu como louco para a jaula vazia, onde haviam depositado Lélia. Pobre rapaz, que se regozijava em ver que o joguete do seu rival estava salvo! Eu, teria tido coragem para matá-la e nunca para contemporizar em partilha.

Findo o espetáculo, Tibério foi aonde estava Lélia. Lá também acorri, após haver-me lavado e feito pensar.

— Conduzam-na para minha casa — ordenou — e tu, gladiador, me acompanharás para receber uma recompensa digna da minha satisfação. Vamo-nos quanto antes — acrescentou fixando um olhar apaixonado no rosto pálido de Lélia ainda desacordada.

Por mim, desdenhava qualquer recompensa do tirano, mas não ousava desobedecer-lhe abertamente; cumpria-me acompanhar os escravos que conduziam a pobre prisioneira. Introduziram-me no quarto onde a depositaram num leito de ébano esculturado. Marcos, aparentemente impassível, ocupava-se em preparar uma poção reconfortante.

Dentro de poucos minutos, Tibério entrou precipitado; parecia muito contente e nos saudou cordialmente. Bateu-me no ombro dizendo:

— És um herói, Astartos.

Tirou do dedo um anel com magnífica esmeralda e me presenteou:

— Guarda-o como lembrança da minha estima; repito, és um herói, embora não tenhas combatido num campo de batalha.

Inclinei-me profundamente.

— Ah! já estás aqui, doutor — disse Tibério lançando um olhar desconfiado à bela e imperturbável fisionomia de Marcos, que descreverei de passagem: era de porte médio, muito bem proporcionado; seu rosto de traços bem regulares, traduziam lealdade e bondade; olhos pardos e grandes, atraíam-lhe simpatia.

Lélia acabava de reabrir os olhos, mas, muito depauperada, repousava nas almofadas, como se estivesse toda fraturada. Tibério aproximou-se vivamente e se debruçou para ela, naturalmente com intenção de abraçá-la. Não vi o que se passou, porque seu corpo se interpunha, mas, ao recuar rapidamente notamos que uma das suas bochechas parecia inchada. Ele não disse palavra, mas ficou desapontado e muito irritado.

Nesse momento entrou um negro conduzindo uma bandeja cheia de moedas.

— Toma esse ouro, Astartos — disse Tibério — e vai-te com Marcos.

Ouvindo a ordem, Lélia deu um grito. Sem dúvida a companhia do tirano, a que já estava desacostumada, era-lhe por isso ainda mais odiosa.

Ele sorriu aquele seu sorriso satânico e disse, colocando a mão sobre a dela:

— Acalma-te, Lélia, tenho muito o que te dizer; há muito que não nos falamos pessoalmente, e vocês dois podem sair.

Seu rosto estampava uma ferocidade implacável; possivelmente Lélia conhecia aquela expressão, porque recaiu nos travesseiros como desfalecida.

Marcos afastou-se cambaleante.

— Repousa, doutor — disse-lhe Tibério — noto que trabalhas muito; tua saúde me é muito preciosa, por causa da cara Lélia; vai repousar, pois hoje não tenho mais necessidade dos teus serviços, mas deixa-me algumas gotas fortificantes.

Olhar perturbado e como que embriagado, Marcos tirou um vidro da sua botica e lho apresentou. Tibério fitou-o e afastando-lhe o braço, disse:

— Marcos, vejo-te muito perturbado; seria perigoso, talvez, aceitar o teu remédio; se te enganasses no vidro? Vai, vai com a tua botica, pois poderá fazer mais mal do que bem; minha estima, espero, constituirá o melhor elixir para esta louquinha, quando se convencer que o meu perdão é sincero e completo.

Levei Marcos para minha casa. Estava desesperado e tive muita dificuldade em acalmá-lo.

No dia imediato, já tão agitado, pelos acontecimentos da véspera, despedi-me de Veleda, que Gálio reconduziu a Pompéia. Agripa, loucamente apaixonado, partiu igualmente, e não mais os revi. Só muitos meses mais tarde, soube do fim trágico desses dois amigos. Haviam tramado fugir juntos, mas a tentativa de evasão foi descoberta e Gálio, furioso, condenou Veleda a morrer sufocada num banho de vapor e de pois, supondo com justa razão que ela não poderia ter maquinado a fuga sem auxílio externo, mandou espionar Agripa, de quem muito suspeitava a louca paixão. Este, sabedor da condenação de Veleda, a peso de ouro, conseguiu chegar até o local do suplício, disfarçado em foguista, esperando poder salvá-la no último momento. Chegou tarde, porém, Veleda já estava morta. Surpreendido pelos guardas junto do cadáver, foi preso e alguns dias mais tarde decapitado.

Quando readquiri um pouco mais de calma, depois dessas tristes ocorrências, retomei a faina habitual, vivendo muito bem com a bela prisioneira que elegera e que mui to me estimava.

O amor de Febé não diminuíra; mas, como sempre foi repelido e desdenhado, ela dissimulava os próprios sentimentos.

A presença da jovem germânica em minha casa despertou-lhe feroz ciúme e percebi que arquitetava qualquer vingança diabólica; todavia, a atenção que Tibério me dispensava, constituía um freio para ela, pois, apreciando minha destreza e habilidade, ele chamava-me muitas vezes a palácio para distraí-lo nos seus momentos de enfado, afastando os seus familiares. Conversávamos ou jogávamos uma partida de dados.

Uma tarde, ocupava-me em afiar minhas armas, quando chegou todo esbaforido um mensageiro de Tibério, para que fosse encontrá-lo sem tardança.

Lélia havia fugido num barco, e, sabendo que eu era excelente mergulhador e tão bom nadador como atirador de arco, queria ter-me a seu lado, para dar-lhe caça.

Bem contra vontade, mas não ousando desobedecer, conformei-me com a ordem recebida e cheguei no instante mesmo em que ele embarcava, porque queria estar presente no momento da captura. Colocou-me na sua embarcação, que se mantinha um pouco atrás das outras, para evitar qualquer perigo.

Marcos, desesperado, postara-se junto de mim; Tibério, muito nervoso, tinha o rosto coberto de manchas roxeadas; seus olhos pareciam devorar o mar.

— Ah «bestia» ingrata! — dizia — ela me pagará tudo isto!

Bateu na testa e acrescentou:

— Tolo que fui, pois ela se mantinha muito amável nestes últimos tempos; eu devia prever uma traição — mostrava os punhos cerrados.

— Se contas comigo — pensava eu, fixando-o,— para rever essa desgraçada, muito te enganas, pois se a tiver nas mãos serei o primeiro a afogá-la.

Parecia que voávamos cortando as ondas e, breve, avistamos no horizonte longínquo um grande navio de comércio, que, com todas as velas desfraldadas, empregava os maiores esforços para escapar-se.

Vã tentativa, porque nossos barcos muito ligeiros, embora sobrecarregados de soldados, eram superiormente dirigidos e a distância diminuía de instante a instante.

Mantinha-me de pé com os braços cruzados; Tibério ofegava de impaciência.

— Lá, lá está a traidora, a ingrata! Astartos, imagina algum meio para apressar mais rapidamente aquele barco maldito; tu tens sempre idéias divinas.

— Estou pensando, meu augusto senhor, mas os deuses me são hoje desfavoráveis, porque meu cérebro nada encontra.

Infelizmente haviam já imaginado, sem minha intervenção, um processo eficiente: dos barcos próximos ateariam fogo, por meio de archotes inflamados, no malsinado navio.

Caía a noite e contemplamos, então, um espetáculo grandioso e sinistro: sob a um céu pardacento, destacava-se a silhueta de um navio incendiado, envolto em fumo, e cujas linhas sobressaíam como se fossem de metal fundido. O clarão a vermelhado do incêndio iluminava extensamente o mar, os nossos barcos e os metais brilhantes dos soldados; um cenário horrível e grandioso, repito.

Brados e maldições angustiosas se fizeram ouvir; a equipagem começou a jogar-se ao mar; Tibério de pescoço esticada, repetia aflito:

— Onde está ela?   A ingrata ousará deixar-se queimar?

Nesse instante, apareceu no convés uma esbelta figura de mulher bem conhecida de todos nós. Evidentemente, a infeliz fugia ao incêndio, porque vimo-la atirar-se ao mar.

Tibério de pé, gritava, gesticulava de raiva e impaciência e lançou-se tão violentamente para a frente que acreditei, por um instante, fosse precipitar-se ao mar para recolher a cobiçada presa. Marcos também queria atirar-se, mas, com mão de ferro o detive:

— Idiota — murmurei — deixa-a morrer.

Ele deixou-se cair pesadamente num banco.

Nesse instante Tibério voltou-se para nós e seu olhar penetrante percebeu a cena muda.

— Ah! traidores! — exclamou empertigando-se e indicando o mar — a água, gladiador, onde jogas a tua cabeça!

Sem refletir, atirei-me ao mar e me dirigia para o ponto onde Lélia mergulhara, quando, ao aproximar-me, um soldado de uma barca que nos precedera, retirava o garfo de ferro que havia lançado mui acertadamente e com o qual alcançara o vestido de Lélia. Esta apareceu balouçando sinistramente à flor das águas. Um brado de alegria se escapou do peito de Tibério.

Regressei à embarcação, no momento em que os seus angulosos braços estendidos para fora recebiam o corpo de Lélia das mãos do soldado.

— Possuo-te, «bestia», e agora não mais irás livremente — disse.

Envolveu-a num manto de lá e com um gesto chamou Marcos:

— Vê se ela vive; a danada é capaz de ter morrido de raiva; já ouvi falar de casos semelhantes; agora — disse voltando-se para mim — explica a cena muda que percebi entre ti e este cara-amarela.

Respondi inclinando-me:

— Detive meu amigo Marcos porque é um péssimo nadador e o devotamento aos vossos interesses tê-lo-ia levado, certamente, à morte; temi, também, privar o meu senhor do seu médico, num momento em que lhe podia ser muito necessário. Eis porque o retive e foi apenas o que percebestes, mesmo porque — acrescentei perfilando-me — jamais fui traidor.                                                                        

Marcos, que havia examinado Lélia, levantou-se.                                                                                          

— Ela vive, o coração pulsa — disse em voz baixa e trêmula.

— Sendo tão bom médico — disse — por que não te curas a ti próprio? Surpreendo em ti estranhos desfalecimentos e tudo isso me admira.                                                                        

Seus olhos cruéis mergulharam avidamente nos de Marcos, que continuavam pregados no chão. Nesse comenos, Lélia reabria os olhos e o rosto de Tibério iluminou-se.

— Ah! malévola criança, recobras os sentidos?

Como única resposta, ela despegou-se dos braços de Tibério, que não esperava por uma tal manifestação de força, e atirou se novamente na água.

Ele segurou-a pelos vestidos e, louco de raiva, tirando o punhal da cintura, berrou:

— Morre, miserável e abjeto esqueleto! A arma brilhou e desapareceu inteiramente no flanco de Lélia.

Um duplo grito ecoou. Marcos quis sustar o braço do arrebatado, mas era muito tarde. Lélia tombou agonizante; o sangue borbulhava da ferida.

Tibério caiu em si; apenas os flocos de escuma nos cantos da boca, demonstravam a raiva que o possuíra.

— A «bestia» me enlouqueceu — disse — Salve-a, Marcos!

Depois de examinar o ferimento que cobriu com uma echarpe de seda, Marcos se perfilou e disse:

— Por enquanto nada posso afirmar. Tibério entristeceu. Levava consigo a presa, mas, não pronunciou palavra durante o regresso.

Antes de atracar, confiou-nos o corpo de Lélia com a recomendação de levá-lo ao palácio. Depois, auxiliado por dois oficiais, desembarcou e sem voltar a cabeça, acomodou-se na liteira e partiu.

Chegados ao palácio, dirigimo-nos diretamente para o apartamento de Lélia. Tibério ceava, disseram-nos.

Trocamos a roupa da doente por outra enxuta. Marcos examinou novamente a ferida e eu permanecia junto dele porque as mãos lhe tremiam nervosamente e recusavam obedecer-lhe. Finalmente, voltou-se e disse:

— A ferida não é mortal; ela se restabelecerá.

— E tu a deixarás viver? — perguntei fora de mim, indignado.

Nesse momento Lélia parecia mais um cadáver que pessoa vivente; reabriu os olhos e com um gesto chamou Marcos.

Ele se aproximou.

— Em nome do amor que me consagras — disse juntando as mãos — acaba com esta tortura que se chama vida; serás covarde e infame se me deixares viver; não sofres, então, vendo-me assim martirizada? Mata-me depressa, antes que ele volte, porque depois, será impossível.

Marcos torcia as mãos.

— Não posso — repetia — e assentando-se num tamborete, cobriu o rosto com as mãos.

Inclinei-me para ele e pus a mão no seu ombro:

— Marcos, és indigno de ser homem, pois vejo-te menos corajoso que uma mulher! Não queres, então, te vingar de Tibério e ao mesmo tempo praticar um ato de caridade? Tens em mãos a arma com que podes mortalmente feri-lo.

Ele se levantou com o rosto esfogueado; abriu a caixa de remédios e, com mão febril, tomou de um frasco cujo contendo vazou numa compressa; depois correu para junto de Lélia, que o não perdia de vista, e, retirando o primeiro curativo, substitui-o por esse último.

— Sim — disse exaltado e ofegante — morres! És a maior vingança que posso exercer contra Tibério.

Lélia alçou para ele os olhos grandes e brilhantes e perguntou:

— É mesmo a morte que me concedes e não um calmante que me faça viver?

Ele ergueu as mãos para o céu:

— Imploro o perdão dos deuses para o que acabo de fazer; este dia não terá amanhã para ti; desta vez, Lélia, vais morrer!

Apertei-lhe a mão emocionado; pareceu inteiramente transfigurado. Uma firmeza que lhe não era comum, transparecia-lhe do rosto. Debruçou-se para a moça e abraçou-a.

Nesse momento, o ruído das sentinelas que apresentavam armas, anunciou a aproximação do verdugo.

Havia terminado a ceia em que o havíamos tão bem servido.

Apenas retomáramos atitude indiferente, abriu-se a porta e ele, despido da toga, apareceu no umbral. Com um golpe de vista penetrante, inteirou-se de toda cena:

— Ah! estais ainda reunidos! Que fazes aqui, gladiador?

— Marcos me enviara à sua casa para trazer ataduras e alguns ferros, que acabo de lhe entregar — respondi saudando-o.

Tibério inclinou a cabeça:

— Muito bem. Ah! a ingrata com os grandes olhos abertos é um bom sinal, penso...

— Preciso falar-vos — interrompeu Marcos inclinando-se — mas não aqui.

A um sinal de Tibério, reunimo-nos os três no compartimento em que velavam as sentinelas. Tibério encostou-se à parede e disse:

— Fala agora; que tens a comunicar-me?

Marcos inclinou-se novamente:

— A arma trespassou o pulmão, toda a ciência humana é impotente; Lélia não passará desta noite. Julguei do meu dever prevenir-vos, mas não o poderia fazer diante da moribunda.

Uma palidez esverdeada, entremeada de manchas vermelhas, cobriu o rosto e o pescoço de Tibério, que se apoiou mais fortemente na parede, enquanto com as mãos amarfanhava nervosamente as próprias vestes. Os lábios lhe tremiam. Nada respondeu, Cabisbaixo. Fez-se um silêncio de morte.

Por fim, empertigou-se. O rosto se tornara impassível e cruel, como de costume.

— Muito bem, Marcos; teus cuidados são supérfluos; eu próprio velarei a moribunda.

Reentrou no aposento e fechou a porta a chave.

— Pobre Lélia! — exclamou Marcos desesperado — só com ele, que morte horrível!

Retiramo-nos para um pequeno vestíbulo, de onde podíamos notar a saída de Tibério. Gostaria bem de saber o que se passava no interior, mas as sentinelas não abandonavam o corredor.

Marcos continuava impassível qual esfinge; somente um suor frio lhe carinhava a fronte e notei que minhas palavras de consolo não eram percebidas.

Finalmente, pelas três horas da madrugada, abriu-se uma porta e passos apressados ecoaram no corredor. Tibério saíra, sucumbido, pálido como um cadáver. Sem olhar ao redor e sem mesmo fechar a porta, dirigiu-se para os seus aposentos.

Entramos então no quarto de Lélia; estava morta. Uma grande calma e profunda satisfação lhe transparecia do rosto. Marcos ajoelhou-se junto do cadáver e eu afastei-me devagarinho para não perturbá-lo na sua compunção.

Profundamente emocionado, voltei para casa e, por distrair-me, entrei a trabalhar um leopardo que me mordera um braço. Desejava domesticá-lo, mas nisso, havendo-me acalmado um pouco, deitei-me e adormeci.

No dia seguinte, Tibério me chamou para domar um magnífico cavalo com que lhe presentearam. Recebi ordem de me dirigir em seguida aos seus apartamentos, para arrancar os dentes a dois pequenos tigres.

Chegando ao palácio fui logo ver Marcos. Estava profundamente abatido e muito desfigurado. Fiz, também, curta visita à morta, então já ricamente vestida. Terminados os outros encargos, introduziram-me no quarto de Tibério.

Deitado num canapé, folheava pergaminhos; assustei-me com a sua palidez e incrível expressão de ferocidade retratados no rosto.

Com minha chegada, ergueu a cabeça e apontou-me os dois tigrezinhos seguros por um escravo.

— Ocupa-te com essas duas feras — disse — quero assistir à operação; depois, aqui ficarás alguns dias, a meu serviço.

Os animais foram conduzidos para perto do canapé, seguros por negros e arranquei-lhes os dentes com a destreza habitual. Depois, tive a honra de permanecer junto do tirano, a fim de o distrair, pois se achava muito triste; afastava os familiares e a mim era dado diverti-lo no seu isolamento; toda noite, por algum tempo ele permanecia junto do corpo de Lélia, mas sua fisionomia se tornara impenetrável.

Chegado o dia dos funerais, ordenou que a pira crematória fosse armada num dos pátios do palácio e, de pé, junto a janela, assistiu à cerimônia.

Tudo se fez com grande pompa. Embora Lélia houvesse conservado a religião dos seus maiores, uma legião de sacerdotes nossos foi convocada. Colocaram o féretro sobre a pira, com todos os rituais e cânticos em uso. Conservei-me de pé, no centro do pátio, entre os assistentes, mas não tirava os olhos do rosto de Tibério, que, apoiado à janela, acompanhava todos os detalhes com um olhar enraivecido.

Quando acenderam a pira, mudou várias vezes de cor, o fogo já se propagara por toda a parte, quando, num dos lados declinou um pouco e a cabeça da morta tornou-se visível por um instante, como para dizer um último adeus. Percebeu-se distintamente o perfil de Lélia iluminado pelas chamas; depois, a fumaça tudo encobriu. Tibério, diante desse quadro, recuou bruscamente.

Pouco depois, fui chamado para junto dele, a fim de jogar os dados.

Quando entrei, ele estava sozinho e andava pelo quarto a passos precipitados; por fim, assentou-se e começou a jogar; a partida já durava silenciosamente muito tempo, quando surgiu um padre que havia assistido aos funerais. Trazia magnífica urna — tudo que restava de Lélia...

Depois de tê-la depositado sobre a mesa, retirou-se.

Tibério interrompeu o jogo e entrou a cismar profundamente; depois abriu a urna e com dois dedos retirou um pouco de cinza, dizendo:

— Vês ? É tudo o que resta da criatura teimosa e má! Eu a reduzi a cinzas; terrível é o meu poder!

Inclinei-me profundamente e ele acrescentou:

— Sabes, gladiador, o que pretendem os padres egípcios?

— Não — respondi.

— Pois bem: eles acreditam que isto renasce (designando os cinéreos resíduos). Então, a ser verdade, isto renascerá com toda a sua coragem e insolência indomável, que eu, o futuro imperador, não pude vencer.

Empurrou bruscamente a urna.

— Não, não quero mais combatê-la; depois que a vi, não tive mais sossego; os egípcios são loucos insolentes; além disso, (pálido sorriso lhe descerrou os lábios) Tibério não pode renascer senão imperador e isto não será ainda tão mau. Tomou os dados.

— Vejamos qual de nós ganhará. Se fores tu, gladiador, a pretensão dos egípcios é falsa; se for eu, é verdadeira.

Atirou os dados e ganhou.

Nesse momento, débil mas bem conhecida risada feriu nossos ouvidos.

Tibério ergueu-se de olhos esbugalhados, tomou-me do braço e murmurou com voz trêmula:

— Ouviste a risada? De quem era? De quem? — e batia o queixo — Responde! Reconheceste a risada? Fala, ordeno-te!

As pernas lhe dobravam, a fisionomia tornou-se horrorosa. Eu mesmo tremia. Intrépido diante de qualquer perigo humano, sentia-me agora ali desfalecer diante do invisível, um suor frio cobriu meu corpo.                              

— Lélia!   Foi ela quem riu! Exclamei fora de mim.

Tibério largou-me o braço, recuou, e com o dedo me apontou a mesa em que tínhamos jogado. Ao lado dos dados ainda                     reunidos, meus olhos apavorados descobriram um camafeu bem reconhecível: era uma pedra preciosa, na qual estava gravado o retrato de Tibério; engastado em forma de medalhão, suspenso por uma corrente de ouro. Pertencia a Lélia, oferta de Tibério. A moça deveria usar sempre aquela jóia e Tibério jamais consentiu que a tirasse, até mesmo para ser incinerada. Recordava-me perfeitamente de que, momentos antes, nada havia sobre a mesa, além da urna e dos dados; meus olhos estavam como que pregados no camafeu, trazido por mão invisível e o riso, o sinistro riso de Lélia, ainda timbrava em meus ouvidos.

— Ah! — exclamou com voz abafada — os mortos voltam, então? Que significa isto, gladiador?

Nada pude responder e apenas enxugava o suor que me cobria o rosto.

Pouco a pouco Tibério recobrou seu natural; passou a mão pela fronte como querendo afastar dolorosos pensamentos:

— Que jamais uma palavra desta história escape dos teus lábios, gladiador, se é que tens amor à vida? É, pois, verdade que se revive e ela riu-se. Teria dissimulado um sentimento de ternura para mim, pobre Lélia?

Tomou o camafeu, beijou-o acrescentando:

— Se bem-vindo da parte de quem vens, tu que sobreviveste ao fogo.

Chamou os guardas e despediu-me.

Daí por diante, evitou sempre permanecer sozinho; à noite distribuía soldados ou escravos nos degraus do leito.

Naturalmente, guardei o segredo, só a Marcos contei a estranha ocorrência.

Pouco tempo depois da morte de Lélia, Gálio foi a Roma, a negócios. Preparava-se nova guerra, da sua comitiva fazia parte o seu médico Graco. O procônsul visitava Tibério amiudadas vezes e, uma tarde em que estavam reunidos, ocorreu esta cena, que me foi relatada por um dos presentes.

Falava-se da morte de Lélia e Graco, que tinha escutado com a maior atenção, perguntou:

— Ficou bem esclarecido que o ferimento era mortal?

A essas palavras Tibério ordenou que lhe trouxessem uma certa caixinha.

Abriu-a e, com espanto dos presentes, retirou ataduras impregnadas de uma substância enegrecida.

— Examine isto, doutor — disse apresentando as ataduras a Graco. Este material estava embebido em bálsamos aplicados pelo dr. Marcos. Estais de acordo com a eficácia do remédio?

Graco, que há muito invejava a posição de Marcos, tomou da faixa, examinou-a como entendido e levantou-se:

— Tibério, meu augusto senhor e futuro soberano, fostes traído e enganado, este bálsamo, aparentemente saudável, era um veneno mortal.

Marcos estava presente, mas, triste e pensativo, não se tinha metido na conversa. Tibério fixou nele um olhar penetrante e cruel:

— Eu desconfiava da verdade: médico de nervos frouxos, tu muito requestaste a bela Lélia e eu te predisse que teus nervos te perderiam. Responde, traidor que me enganaste, quem te permitiu tocar na minha bem-amada?

Marcos viu-se perdido. Levantou-se e, cruzando os braços, disse:

— Sim, tirano, eu matei-a. Por muito tempo fraquejei, porque a amava; mas, quando a feriste, não mais desejei continuasses a cevar nela a tua crueldade. Mata-me, pois não desejo viver.

Tibério sorriu, com aquele malicioso sorriso todo seu.

— Vede que traços de sua passagem nos deixou essa linda Lélia! — Prendam-no — ordenou, apontando Marcos. — Amanhã será julgado por assassínio e traição.

Uma hora mais tarde eu era prevenido desse funesto acontecimento. Marcos, que praticava muita caridade, contava numerosos e devotados amigos; tentaram salvá-lo e a peso de ouro ele evadiu-se com o seu carcereiro, embarcando ambos num navio de comércio.

Quando Tibério soube da fuga, insensata raiva se apoderou dele. Fez perecer em torturas horríveis mais de trinta pessoas suspeitas de cumplicidade no feito, mas esse massacre não o acalmou. Batia cornos punhos, sapateava e gritava:

— De que me servem todas estas miseráveis cabeças em troca da do traidor?

Felizmente, esse furor se anulava porque Marcos estava a bom recato.

Com o correr do tempo fui me sentindo assaz isolado, tinha perdido os melhores amigos, os companheiros da infância e resolvi casar-me.

Queria desposar a jovem prisioneira que estava a meu serviço, meiga e encantadora criatura extremamente devotada, mas quando Febé soube desta novidade, tomou-se de terrível acesso de ciúme; ainda que possuidora de dois raríssimos tesouros — Tibério e Sejano — foi à minha casa e desfechou uma cena injuriosa, jurando vingança e prometendo assassinar minha esposa.

Meu casamento se realizou sem novidade; mas, tempos depois, Tibério (para festejar um acontecimento de que não me recordo), ordenou grande espetáculo no circo, no qual Febé devia tomar parte como dançarina.

Preparando-me para o festival, tristes pressentimentos me assaltaram; uma inquietação me torturava; mantinha-me abstrato e abatido.

Com o coração cerrado, despedi-me da jovem esposa, perturbada e lacrimosa diante das minhas apreensões.

Entrei na arena. Devia combater sucessivamente, nesse dia, um leão, um tigre gigantesco e dois leopardos.

Esperei o primeiro inimigo, impassível como sempre; mas desde que o tigre saiu, notei nele estranha agitação; rugia surdamente, o pelo estava eriçado e meu olhar parecia haver perdido a força.

Estava muito ocupado em dominá-lo, quando repentinamente mão invisível abriu segunda jaula e o leão apresentou-se furioso, pelo eriçado, batendo com a cauda nos flancos; investiu-me pelas costas e pousou as patas nos meus ombros, rugindo.

 frente o tigre, por trás o leão: senti-me perdido e um grito se me escapou.

Nesse instante dois leopardos saíram, por sua vez, e atrás da grade vi Febé a olhar-me com expressão escarninha.

Um combate mortal, medonho, travou-se entre mim e a malta; eu sentia o hálito quente dos leões, seus dentes e garras rasgavam-me a carne, clamores e brados de terror repercutiram no ambiente, todos os gladiadores armados acorreram, mas feras irritadas me cercavam igualmente, e assim não puderam defender-me.

Caí de joelhos segurando o alfanje com mão desfalecente; o tigre abaixou a enorme goela à minha garganta.

Dando um último grito, enterrei o ferro no peito da fera.

No mesmo instante senti dor atroz, parecia-me que o cérebro explodia, que os olhos saltavam das órbitas; sucumbi como que galvanizado, um peso enorme a sair de mim, arrancando-me todos os membros como se eu fosse retalhado em mil pedaços. Depois, qualquer coisa como se um raio me ferisse.

Quando recobrei consciência de mim mesmo, elevava-me numa atmosfera transparente e azulada; ao derredor se comprimiam seres flutuantes e leves, que me cobriam de fios luminosos, parecendo que me tiravam de qualquer coisa pesada que ainda me retinha. Meu olhar voltou-se para a Terra e vi o circo; na arena, estendida sanguinosa massa informe, conservava intacta apenas uma bela cabeça anelada. Uma avalanche de espectadores se comprimia à volta do cadáver. Alguns passos adiante, estendido também o tigre, meu valente competidor. A centelha indestrutível acabava também de se desprender da sua massa corporal; espíritos de animais, de evolução superior à sua, auxiliavam-no a se destacar.

Liberto e feliz, lancei-me no espaço, rodeado pelos meus velhos amigos e protetores.

 

                                                                                J. W. Rochester  

 

                      

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