QUANDO o cunhado foi dizer a Katherine que o rei estava morto, ela não pôde acreditar. Henrique, não, não o poderoso conquistador do país dela, não o amante, marido e pai de seus filhos. Olhou fixo para o cunhado, incrédula, abanando a cabeça.
- Não! - bradou ela. - Não. Não pode ser.
John, o grande duque de Bedford, que amara muito o irmão Henrique e sempre declarara ser o seu mais caro desejo servi-lo com todas as suas forças, e que provara que aquilo era verdade, agora a olhava com olhos melancólicos.
- Os últimos pensamentos dele foram para você - disse ele. - "Console minha querida esposa", disse ele. "Hoje, ela será a criatura viva mais angustiada do mundo."
Katherine continuou a olhar para Bedford com olhos incrédulos.
Murmurou:
- Ele estava um pouco doente... sim... Mas a morte...! Oh, não... isso, não - murmurou ela.
- Ele devia ter descansado. Insistiu em ir em auxílio da Borgonha.
A raiva surgiu nos olhos dela, abafando momentaneamente a dor. Toda a sua vida fora abafada pelo conflito entre Borgonha e Orléans. E uma vez mais, era a Borgonha.
- Você o conhecia tanto quanto eu - prosseguiu o duque.
- Ele jamais descansava enquanto houvesse uma batalha a ser lutada.
- Inglaterra... França... meu filho... O que vamos fazer agora? - murmurou ela, com voz pausada.
O duque colocou as mãos nos ombros dela e, atraindo-a para ele, beijou-lhe delicadamente a testa.
- Caberá a Deus decidir - disse ele.
E porque sabia que não havia nada mais que pudesse fazer para consolá-la, chamou uma das damas de companhia de Katherine.
- Deixe-a com sua dor - disse ele. - Mas fique preparada. Será terrível quando ela perceber o que isso significa.
com que então o aparentemente invencível Harry, um nome cuja simples menção provocava o terror dos franceses, estava morto. Desde que subira ao trono, ele deixara para trás sua vida dissoluta e se dedicara a conquistar a coroa da França. Ele fora um homem alto, bonito, viril, ativo, mas delicado e justo em seu comportamento, exceto quando sua raiva era provocada. Nesses casos, os homens comparavam-no a um leão. Era um homem que se recusava a reconhecer o fracasso, e sempre, dali por diante, quando falassem nele, todos iriam pensar em Agincourt, aquela batalha famosa à qual ele liderara seus homens com todo o ânimo e a confiança de um conquistador, de modo que seu pequeno exército, exaurido pelas doenças, enfrentara a poderosa França e obtivera uma retumbante vitória. Tinha sido mais do que uma batalha vitoriosa, porque anunciara o fim da guerra que vinha durando desde a época em que Eduardo III decidira que tinha direito a reivindicar o trono da França.
E justo quando o grande guerreiro estava prestes a aceitar os frutos de sua conquista, ele caíra de cama e morrera.
Katherine poderia perguntar: "E agora?"
Ela estava com vinte e um anos de idade. Não muito velha, mas era provável que uma infância cheia de desgraças a tivesse preparado de algum modo para isso.
No castelo de Windsor, na Inglaterra, um menino de nove meses vivia aos cuidados das amas, sob o controle do irmão de Henrique, Humphrey, duque de Gloucester. Aquele menininho - Henrique, tal como o pai - era a criança mais importante da Inglaterra, porque com a morte súbita do pai ele se tornara rei da Inglaterra.
Agora que se acostumara com a realidade de que Henrique tinha morrido, uma calma tomou conta de Katherine. Seu cunhado John iria dizer-lhe o que fazer, e ela confiaria nele, como fizera Henrique.
Viajou de Senlis para o castelo de Vincennes, onde Henrique jazia, e quando olhou para o corpo do marido morto, a calma abandonou-a e, pela primeira vez desde que recebera a notícia, ela chorou. Era como se finalmente percebesse o que a morte de Henrique significava, e ficou desolada, com medo do futuro.
Muitas pessoas queriam falar com ela. O corpo dele tinha de ser levado de volta para a Inglaterra, diziam elas. Não deveria haver demora alguma. Mas o duque de Bedford dera ordens para que a vontade dela fosse respeitada sob todos os aspectos.
Ela disse que queria ficar sozinha, só durante uma hora... sozinha para pensar. Mandou que seu cavalo fosse selado; queria a solidão que só a floresta podia oferecer.
E assim selaram o cavalo, e ela se dirigiu para o Bois de Vincennes, enquanto a uma distância respeitosa os escudeiros do rei esperavam por ela. Quando desmontou, um dos escudeiros apressou-se a adiantar-se para segurar o cavalo. Katherine olhou para ele. Era jovem, mais ou menos da idade dela, alto, moreno, com um rosto que a interessou.
- Estou com vontade de descansar aqui um pouco - disse ela. A floresta é bela nesta época do ano. O senhor não acha?
- É mesmo, majestade - respondeu ele. Tinha um sotaque que ela achou difícil entender, mas na verdade não era tão proficiente em inglês quanto gostaria. Tornou a se lembrar de como Henrique rira da maneira como ela pronunciava certas palavras. "Eu tenho de melhorar", dissera ela, recatada. "Não", bradara ele. "Eu gosto da sua maneira de falar, Kate. Não mude. Continue sendo a minha pequena Kate francesa."
Katherine se perguntou se passaria o resto da vida se recordando.
- Há sinais do outono - disse ela.
- É verdade, majestade - respondeu o escudeiro.
- É uma pena... o verão acabou. As folhas já estão mudando de cor. Em breve os galhos estarão duros e desfolhados.
Uma terrível melancolia tomara conta dela. Como aconteceu com a minha vida, pensou ela. Ele morreu. O verão acabou. O inverno está se aproximando. Então, olhou para o escudeiro. Era muito moço - dir-se-ia que na flor da idade.
- Que idade o senhor tem? - perguntou ela, num gesto impulsivo.
Ele pareceu surpreso, como se quisesse saber que interesse sua idade poderia ter para aquela rainha. Mas respondeu prontamente:
- vou fazer vinte e um em breve.
Ela olhou para ele e sorriu. Pouco antes, estivera pensando na idade que ele poderia ter, com a vida pela frente; e ele tinha praticamente a sua idade.
Foi como uma revelação. Henrique estava morto; mas ela estava viva, e era jovem. Era bonita; podia ser a viúva de Henrique, o Conquistador, mas também era a mãe de Henrique VI da Inglaterra, e restavam-lhe muitas coisas. Ela tinha o filhinho para cuidar. A vida inteira estava à sua frente. Ela havia enfrentado perigos terríveis no passado; faria isso de novo, se necessário.
Por alguns momentos, a melancolia a abandonara. Ela dirigiu um sorriso estonteante ao jovem escudeiro.
- Voltarei para o castelo, agora - disse ela. - Há muito o que fazer.
Obedientemente, ele a ajudou a montar.
- Obrigada - olhou para ele com olhar fixo. - O senhor tem um jeito estranho de falar - prosseguiu ela num inglês vacilante. - De onde o senhor é?
- Sou do País de Gales, majestade.
- País de Gales. Ah, sim, já ouvi o rei falar no País de Gales. Diga-me seu nome.
- É Owen Tudor, majestade.
- Owen Tudor - repetiu ela. - Obrigada, Owen Tudor. O senhor fez um bom trabalho.
Ela cavalgou, pensativa, de volta para o castelo. Uma esperança voltara. Era estranho que aquilo tivesse acontecido durante uma conversa de alguns instantes com um escudeiro galês.
Colocaram o corpo do rei numa carruagem, que seria puxada por quatro cavalos. Katherine mandara que fizessem uma efígie parecida com ele, e que a colocassem sobre o caixão e a levassem pela França até Calais. Sobre a cabeça da imagem foi colocada uma coroa de ouro e brilhantes, e em volta dos ombros havia uma capa de veludo vermelho adornada de arminho. Na mão direita foi colocado um cetro; e na esquerda, um orbe dourado. Era impressionante. Como se Henrique tivesse voltado a viver para observar os ritos de seu funeral.
A rainha escolhera os que iriam acompanhar o cortejo até a Inglaterra.
- O que você sabe a respeito do escudeiro do rei, Owen Tudor? - perguntou ela a Bedford.
Bedford nunca ouvira falar nele, mas iria descobrir, já que percebera o interesse da rainha.
Era evidente que ele se perguntava por que o jovem escudeiro fizera aquilo, e Katherine logo respondeu:
- Ele pareceu ter ficado muito emocionado com a morte do rei. Tenho a impressão de que foi um servidor leal.
Bedford voltou com a informação:
- Um galês de origem obscura. Neto de Sir Tudor Vychan a não sei das quantas. Esses galeses têm nomes impronunciáveis. Parece que o pai caiu em desgraça de alguma maneira e foi colocado fora da lei.
- Não vamos culpar o filho pelos pecados do pai - disse Katherine.
- Nada disso, ele agradou ao meu irmão. Esteve em combate em Agincourt e distinguiu-se de tal maneira que, apesar da pouca idade, foi feito escudeiro do corpo do rei.
- Tive a sensação de que ele serviu bem ao rei.
- Como foi que ele chamou sua atenção?
- Nada de mais. Ele trouxe meu cavalo. Conversei com ele e fiquei impressionada com seu... sentimento para com o rei.
- Henrique tinha um estilo especial - disse Bedford. Fazia com que as pessoas lhe fossem muito leais. Essa era uma das qualidades dele como líder. Eles o teriam seguido até o inferno, se preciso fosse.
A rainha deu sinais de estar emocionadíssima, e Bedford apressou-se a discutir outros detalhes da viagem para a Inglaterra.
Antes da partida, Katherine deu ordens para que o escudeiro Owen Tudor estivesse entre os que escoltariam a cavalgada até a Inglaterra.
E assim eles partiram, e a rainha, com sua comitiva, seguiu a carruagem que continha o corpo do rei, acompanhada por todos os príncipes e lordes da equipe do rei e por alguns de seus escudeiros. Em Abbeville eles pararam, e lá foram cantadas missas pelo descanso da alma do rei. Foi uma visão impressionante, e o povo esperava à beira da estrada para dar uma olhada no cortejo. Os estandartes dos santos eram levados pelo duque de Exeter e pelo conde de March, e com eles estava Sir Louis Robsart, o cavaleiro da rainha, entre inúmeros cavaleiros e nobres. Quatrocentos soldados armados, vestindo armaduras pretas, cercavam a essa; pareciam muito sérios, como a ocasião recomendava, os cavalos ornados de preto e as lanças seguras com a ponta para baixo. Ao crepúsculo, quando as tochas foram acesas e eles cantavam um canto triste enquanto caminhavam, ficou ainda mais impressionante - uma visão solene e imponente.
Em todas as cidades pelas quais passavam, cantaram-se missas. Seguiram por Montreuil a caminho de Bolonha e depois de Calais, onde navios vindos da Inglaterra esperavam para levar o corpo do rei para seu país natal.
Foi uma travessia calma, e em pouco tempo os rochedos brancos foram avistados. Multidões de pessoas se lamentando esperavam nas praias, e quando a rainha desceu em terra foi saudada por quinze bispos e abades e padres que eram numerosos demais para ser contados.
Katherine parecia muito jovem e desolada e conquistou a simpatia do povo. Ele a ovacionou com fervor. "Vida longa para a rainha!", gritava o povo. "Deus a abençoe assim como o nosso pequenino rei!" Katherine erguia a mão ao passar, em agradecimento ao sentimento do povo por ela, mas estava ansiosa por que o lúgubre processo terminasse.
Queria estar em Windsor, ver o filhinho, assegurar-se do bemestar dele. Ela, que vivera o conturbado reinado de seu pai, sabia que agora teria de ter muito cuidado.
Mas, por enquanto, iria para Windsor. Não tentariam impedila de fazer isso. Primeiro, ela precisava ver o filhinho, pegá-lo no colo. Nunca deveria esquecer-se de que embora ele fosse apenas um bebé - e muito parecido com todos os outros bebés -, era o rei da Inglaterra. Estava apreensiva. Ter nove meses de idade e ser o rei, cercado de homens ambiciosos, era uma questão que devia ser levada muito a sério; e embora a criança dormindo no berço não estivesse cônscia disso... por enquanto... em breve compreenderia.
Enquanto isso não acontecia, a mãe estava ali, para lutar por ele.
Ela ficou profundamente emocionada quando avistou o castelo. Sempre gostara mais dele do que de qualquer uma de suas outras residências. Para ela, aquele lugar representava paz e segurança, e seu início de vida instilara nela uma necessidade de ter as duas. O castelo, grandioso e imponente com sua Torre Redonda, erguendo-se num morro artificial cercado pela fossa profunda, as fortes muralhas de pedra e torres de ameia, encheua de prazer enquanto avançava. Viu a grande floresta próxima, na qual ela e Henrique tinham caçado juntos - não muitas vezes, porque ele raramente tivera tempo para tais atividades -, mas aqueles imponentes carvalhos tinham sido o pano de fundo das primeiras semanas dela na Inglaterra quando se sentira muito feliz e jovem e inocente o bastante para acreditar que a vida continuaria assim para sempre.
Fora no castelo que seu filhinho nascera, e quando pensou nisso, sentiu uma aflição, porque Henrique expressara o desejo de que o filho nascesse em qualquer lugar, exceto em Windsor. Por que surgira o impulso de desobedecer a ele? Katherine não tinha certeza, mas fora irresistível.
- Não quero que nosso filho nasça em Windsor - dissera ele.
- Windsor é um belo castelo - retrucara ela.
- Ah, você gosta muito dele, e isso me agrada. Eu também gosto.
- Ele deveria ser o lugar onde todos os reis deviam nascer - dissera ela.
Então, ele segurara as mãos dela e ficara muito sério.
- Para o nosso filho, não, Kate. Windsor, não.
Nada mais fora dito, e os dois tinham-se deliciado com as belezas da floresta e voltado para o castelo e comido o belo cervo que eles haviam levado para o castelo. E tinham rido e brincado juntos, enquanto por um breve instante ele se esquecera de pensar em guerras.
Quando a hora do parto se aproximara, ela estava em Windsor. Preciso ir embora daqui, dissera para si mesma. É isso que o rei quer. Mas custara a sair, e a neve chegara. Havia intensas quedas de neve por toda parte, e gelo na estrada. "Não é época de viajar, majestade", disseram suas damas de companhia.
Ela concordara de imediato. Henrique não desejaria que ela andasse pelas estradas naquele momento. Quem sabia o que poderia acontecer a uma mulher grávida em uma jornada repleta dos perigos de uma viagem pela neve?
Aquilo tinha sido um mero capricho; ela sempre fora uma pessoa que não dava importância ao que considerava desagradável. Fora a única maneira de viver uma infância como a sua.
E assim, seu pequenino Henrique nascera em Windsor.
com que alegria ela mandara mensageiros à França! Como Henrique ficaria contente ao saber que tinha um filho! E quando o mensageiro voltara, ela mandara chamá-lo e, ansiosa, perguntara: "Como estava o rei? O que disse ele ao ouvir a notícia de que tem um filho?"
- Majestade - fora a resposta -, primeiro, ele gritou de alegria. Disse que aquele era o momento mais feliz de sua vida. E depois...
- E depois...? - perguntara ela. - E aí?
- Ele quis saber onde a criança tinha nascido, majestade.
Oh! - a mão de Katherine fora depressa para a garganta
e ela dissera, em voz baixa: - E o que ele disse quando você contou?
O mensageiro hesitara, e ela continuara, rápido:
- Diga-me.
- Ele ficou pálido. Depois, disse uma coisa estranha, majestade.
- Sim, sim?
- Foi algo mais ou menos assim: "Eu, Henrique, nascido em Monmouth, vou reinar por pouco tempo e conseguir muito,
Mas Henrique de Windsor vai reinar por muito tempo e perder tudo."
E depois, majestade, acrescentou ele, com grande melancolia: "Mas se é a vontade de Deus, que assim seja."
Durante um certo tempo, sentira-se angustiada, mas se recusara a ficar deprimida. Só de vez em quando é que se lembrava; mas, enquanto cavalgava em direção a Windsor, aquilo voltou à sua mente, mais forte do que nunca, porque a primeira parte da profecia se realizara. Henrique conquistara muito e reinara por um período bem curto. Henrique VI reinaria mais tempo. Sim, reinaria; ela iria venerá-lo e amá-lo e providenciar para que nada de mau acontecesse a ele.
O cunhado dela, Humphrey de Gloucester, estava cavalgando para ir ao seu encontro. com ele estava Henrique de Winchester, o tio-avô do menino, que era um dos padrinhos dele. Eles estavam acompanhados por uma comitiva de cavaleiros e escudeiros.
Os dois grupos detiveram-se e ficaram frente a frente. Humphrey de Gloucester cavalgou até a rainha e, segurando-lhe uma das mãos, se inclinou para beijar-lhe o rosto. Depois, ela foi saudada por Henrique de Winchester da mesma forma.
- Bem-vinda a Windsor, querida irmã - disse Humphrey.
- É um momento lamentável.
Era bonito como os irmãos, mas os sinais da vida devassa que levava já eram visíveis em seu rosto. Era um homem de uma ambição avassaladora, e mesmo naquele momento em que lamentava sinceramente a morte de um irmão que ele amara e admirara, não podia deixar de se perguntar que vantagem para ele mesmo poderia advir das circunstâncias.
O bispo-filho de John de Gaunt e Catherine Swynford, tendo começado a vida como bastardo e mais tarde tendo sido legitimado - sempre servira à Coroa com lealdade.
Ficara profundamente aturdido com a morte do rei, porque sabia que com um herdeiro ainda criança não havia dúvidas de que haveria disputas pelo poder e luta entre várias facções, o que não era nada bom para qualquer país.
- Deus a abençoe, majestade - disse ele à rainha. - Que Deus a proteja.
E, então, seguiram para Windsor. Primeiro, ela deveria ir à ala infantil real.
- Vai encontrá-lo com boa saúde - disse-lhe Humphrey. As amas estavam com ele. Uma carregava-o ao colo e cantarolava uma canção, enquanto ele brincava com anéis coloridos.
Katherine entrara com tamanha sem-cerimônia, que a princípio não a reconheceram.
- A rainha! - disse, então, alguém.
Elas fizeram uma mesura acentuada - todas, menos a que estava com a criança ao colo. Katherine dirigiu-se a ela e pegou o menino.
Ele olhou para ela com um olhar de dúvida e, de repente, agarrou a corrente de ouro pendurada ao pescoço dela e tentou colocá-la na boca.
- Ele pega tudo, majestade. É muito rápido e inteligente...
- Henrique, Henrique - disse Katherine. - Não me conhece? Sou sua mãe.
Então o beijou com carinho e levou-o até um assento no vão de uma das janelas e sentou-se agarrada a ele.
- É verdade - disse para si mesma -, tenho muitos motivos para viver.
Nos aposentos do duque de Gloucester, ele e o bispo de Winchester estavam de frente um para o outro. Humphrey estivera tentando evitar a entrevista, porque sabia qual seria o seu estado de espírito, e não tinha intenção alguma de dar ouvidos aos conselhos do velho.
Quem, em nome de Deus, são esses Beaufort?, perguntavase ele. Bastardos, todos eles. Deviam estar agradecidos pelo fato de o pai ter-se preocupado com eles a ponto de legitimá-los, e ficar por aí. Em vez disso, são tão membros da família real quanto eu e meus irmãos, e têm o direito de nos dizer o que devemos fazer.
Henrique de Beaufort sempre exercera uma grande influência sobre o rei Henrique. Tinha sido tutor dele durante certo tempo, e Henrique dera muita importância às ideias do tio. Antes de morrer, ele o nomeara um dos guardiões do filho.
E ele quer dar ordens a todos nós, pensou Humphrey. Ora, ele valver que nisso ele está errado.
Humphrey sabia que a conversa seria sobre Jacqueline, e não havia dúvida de que não receberia instruções sobre o que fazer em relação a ela, porque já decidira que se casaria com ela.
Humphrey era um homem de características conflitantes. Dissoluto ao extremo, frequentador de tabernas de baixo nível e gostava de andar com prostitutas; ainda assim, era um amante das belas-artes. Tinha sido educado, com muitíssimo cuidado, no Balliol College, e adquirira em muito pouco tempo um amor pelos livros que jamais perdera. Ele os colecionava; e reverenciava os homens que os escreviam. Quando tinha vinte anos, fizera uma doação de livros a Oxford, numa época em que a biblioteca de lá estava sendo ampliada. Patrono das artes, era respeitado por aqueles que atuavam nelas, e no meio deles ficara conhecido como o bom Duque Humphrey. Parecia incongruente que uma pessoa que tivesse uma ambição egoísta, que levasse uma vida de farras, fosse conquistar um título daqueles; mas sua natureza era uma natureza de contrastes.
Ao subir ao trono, Henrique o fizera chanceler da Inglaterra, e ele acompanhara o irmão à França e tomara parte na batalha de Harfleur, e também na de Agincourt. Na verdade, em Agincourt ele quase perdera a vida quando fora ferido e atirado ao chão pelo duque dAlençon. Fora Henrique, o rei, que com coragem e energia características achara tempo para socorrer o irmão e salvar-lhe a vida.
Humphrey acreditara que se devia admirar e reverenciar Henrique; mas quando Henrique estava morto, o que aconteceria, então? Humphrey era ambicioso. Um homem tinha de procurar tirar vantagens pessoais. Ele sempre acreditara nisso.
E quem teria adivinhado que Henrique morreria tão jovem? Estava apenas com trinta e cinco anos e, ao que parecera, era forte e estava em perfeitas condições. E ser derrubado por uma febre e uma disenteria! Aquilo tinha acontecido com outras pessoas. A vida de soldado era uma profissão que cobrava muito alto àqueles que a seguiam. Mas quem teria acreditado, diante da glória de Agincourt, que dali a tão pouco tempo o herói de Agincourt iria tornar-se um corpo sem vida?
Ora, aconteceu e não há dúvida de que deveremos seguir em frente, disse Humphrey a si mesmo.
Seu irmão mais velho, John, gozara, da confiança do rei. Gozava, também, da confiança do povo. Havia uma qualidade de honestidade em John que atraía as pessoas. Mas, por merecedor que fosse, faltara-lhe aquela aura de grandeza que Henrique tivera e que lhe possibilitara enfeitiçar aqueles com quem entrava em contato e inspirar lealdade e fé em sua invencibilidade. Aquilo era liderança de verdade. Raramente ela era encontrada, e não havia dúvida de que Henrique a possuía. E ele, Humphrey? Ele não era nenhum Henrique, disso ele sabia. Mas era um homem que sabia lutar pelo que queria.
Enquanto John estava na França, Humphrey ficara no controle da Inglaterra. Quando John voltasse, era claro que Humphrey daria um passo atrás. Mas enquanto isso, estava no comando e não iria receber ordens de Beaufort, por bispo e bastardo real que este fosse.
Quando o bispo chegou, os escudeiros tinham-no anunciado com uma demonstração de reverência que irritou Humphrey, mas no entanto ele teve de admitir que Henrique Beaufort tinha ares de realeza. Jamais poderia esquecer-se de que era filho de John de Gaunt e neto de um rei, e não deixaria que ninguém mais se esquecesse; e agora, por trás dele, ele contava com a autoridade da Igreja.
Ambicioso - não era ele um Beaufort? Bonito - saíra à mãe e majestoso. Dizia-se que era impetuoso, e era verdade que de vez em quando agia sem pensar como devia; e adorava posses terrenas, das quais também se dizia que acumulava bastante. Independente de seus defeitos, ele era consistentemente leal à coroa. Emprestara dinheiro ao rei para as campanhas na França e ninguém se alegrou com sinceridade maior com o sucesso daquelas campanhas.
Era por isso que agora estava decidido a desviar Humphrey de um caminho que ele desaprovava.
- A rainha, que Deus a ajude, encontrará consolo com o filhinho dela - disse o bispo. - Pobre mulher; duvido que ela compreenda as dificuldades que estão por vir.
- É uma pena ele ser tão jovem - disse Humphrey.
- Um problema que o tempo irá remediar. Humphrey ficou um pouco impaciente. O bispo não fora procurá-lo para conversar sobre uma realidade indiscutível como a pouca idade do rei.
Humphrey dispensou os escudeiros, e quando os dois ficaram sozinhos e confortavelmente sentados, o bispo juntou as palmas das mãos como se estivesse para rezar e, olhando firme para Humphrey, disse:
- Ouvi rumores perturbadores.
- Senhor bispo, quem não os ouviu? Rumores perturbadores são tão comuns como o ar que respiramos.
- Alguns são mais perturbadores do que outros. Senhor duque, eu lhe pergunto uma coisa. É verdade que está pensando em se casar com Lady Jacqueline?
- Eu confesso que gosto dela.
- Senhor duque, tenho de receber uma resposta precisa.
- Tem, senhor bispo? Por quê? Será que isso não é um assunto entre a senhora em questão e mim?
- Não, senhor duque, não é. Trata-se de um assunto de profundo interesse para a França e a Inglaterra.
- O senhor está sendo dramático.
- Mas é uma situação dramática. Já pensou que esse casamento poderia provocar um rompimento entre a Inglaterra e a Borgonha?
- E daí?
- Confiamos em nossos aliados na França. O falecido rei teria sido o primeiro a admitir isso. O mesmo aconteceria com o duque de Bedford. Eu lhe pergunto, meu senhor, já discutiu esse assunto com o duque?
- Senhor bispo, deixe-me lhe dizer uma coisa. Eu me casarei com quem quiser, e nem meu irmão nem a Igreja irão mandar que eu aja de outra maneira nesse assunto. vou para onde minha preferência estiver.
- Esperemos que sua preferência não solape nossas conquistas na França.
Houve um breve silêncio. Os dois homens estavam pensando em Jacqueline. Quem teria acreditado, refletiu o bispo, que quando Jacqueline da Baviera procurara refúgio na corte inglesa, o resultado seria aquele? Ela devia estar com cerca de vinte e um anos. Era bem-apessoada, embora não de chamar atenção, e era uma herdeira, se pudesse recuperar o que havia perdido. O bispo não tinha dúvida de que os olhos de Gloucester estavam firmes, com a mesma intensidade, tanto nos bens da jovem como na própria. Henrique a recebera bem na Inglaterra e a beneficiara de tal maneira que ela fora madrinha no batizado do jovem Henrique.
Jacqueline era a única filha de Guilherme IV, conde de Hainault, Holanda e Zelândia, e lorde da Frísia.
Jacqueline fora casada com João da França, irmão de Katherine, que por um curto período fora delfim com a morte do irmão mais velho, Luís. Quase que imediatamente, João havia morrido, e quando o pai de Jacqueline também morreu, ela se tornou a soberana de Hainault, Holanda e Zelândia. com tais possessões, não deixaram que ela ficasse viúva por muito tempo, e logo lhe arranjaram um segundo marido. Este era João, duque de Brabant, primo dela e também de Filipe de Borgonha.
O irmão do pai de Jacqueline, que tinha sido bispo de Liège, tirara os bens dela e fizera um trato com o marido, o fraco duque de Brabant.
Fora àquela altura que ela fugira para a Inglaterra e colocara-se à mercê do rei inglês. Henrique não apenas lhe dera asilo, mas a tratara com a dignidade devida à sua posição, e o antipapa espanhol Benedito XIII fora persuadido a conceder-lhe o divórcio do duque de Brabant.
E assim, ali estava Jacqueline na Inglaterra, membro da corte e uma mulher herdeira de grandes bens, se estes pudessem ser recuperados, e em vista dos sucessos ingleses no continente, Humphrey não via como deixariam de sê-lo. Então, ele poderia ser não apenas o marido de Jacqueline, mas o conde de Hainault, Holanda e Zelândia. Uma perspectiva agradável para um homem que nunca poderia ter a esperança de governar a Inglaterra. Seu sobrinho ainda de colo e seu irmão John vinham antes dele. Ele era um homem que agarrava qualquer oportunidade, e aquela parecia ser uma delas.
O bispo via a questão sob uma luz diferente, e era por isso que estava tão angustiado.
- Meu caro bispo - disse Humphrey, por fim -, o senhor se preocupa sem necessidade.
- Então o senhor entende quais seriam as implicações desse casamento?
- Eu entendo, senhor, que através dele eu poderia trazer mais honrarias para a Inglaterra.
- Ao se casar com essa senhora, o senhor iria colocar-se em conflito com o duque de Borgonha.
- Não sinto pelo nobre duque o mesmo medo que o senhor sente, senhor bispo.
- Tenho medo do que poderia significar para a Inglaterra se ele retirasse seu apoio e deixasse de ser nosso aliado.
- Um aliado incómodo - murmurou Humphrey.
- Concordo, e por isso deve ser tratado com cautela.
- Há quem seja cauteloso demais na vida - murmurou Humphrey.
- Eu sei disso - replicou o bispo. - O senhor duque de Bedfort estará tão ansioso por evitar esse casamento quanto eu, assim como todos aqueles que desejam o bem do nosso país.
- Não gosto do seu tom. Ninguém serve ao seu país melhor do que eu.
- Não estamos preocupados com o que o senhor fez no passado. Esse é um ato que poderia provocar um desastre. com um casamento desses, o senhor iria colocar-se em concorrência com Filipe de Borgonha pelo controle dos Países-Baixos.
- Neste momento, eles estão nas mãos do ex-bispo de Liège.
- Não vão ficar lá por muito tempo. Borgonha vai tomar as devidas providências. Ele irá insistir em seus direitos através de seu primo de Brabant e, meu senhor, se esse casamento se realizasse, não tenho dúvidas de que o senhor também voltaria seus pensamentos para as terras daquela senhora. Borgonha não vai querer vê-las passar para o senhor... como o senhor não iria querer vê-las passar para ele. A Inglaterra não tem como discutir com Borgonha, senhor duque. É por isso que lhe peço que pense muito cuidadosamente neste assunto.
- Pois então o senhor já fez o que considera seu dever, ao me pedir isso. Vamos deixar que fique assim, senhor bispo?
Presunçoso arrogante, pensou o bispo. Henrique jamais teria permitido isso, se estivesse vivo. A cada dia que passava, percebia-se cada vez mais a tragédia que fora Henrique ter morrido.
O bispo levantou-se muito lentamente; seus membros andavam um pouco rígidos ultimamente.
Velho tolo imponente, pensou Humphrey. Que direito tem ele de me dizer o que fazer? Que vá para o inferno. Que o Borgonha vá para o inferno. Por que não devo ficar com Jacqueline... e Hainault, Holanda e Zelândia?
Embora Katherine encontrasse um grande consolo na ala infantil real, ela percebia que aquilo era uma curta pausa. Dentro em pouco as pessoas iriam querer ver o menino, e quando o Parlamento se reunisse, ela teria de levá-lo a Londres. Teria de atravessar a cidade levando o filho no colo. Pobre menino, ele teria de se acostumar a ser exibido. Mas enquanto isso não acontecia, ela podia estar tranquila. Podia ficar no seu adorado Windsor; podia estar com o filhinho como qualquer mulher humilde; podia cavalgar pela floresta, embora nunca pudesse conseguir a solidão pela qual ansiava, porque sempre estaria acompanhada pelas damas de companhia. Elas se mantinham a distância, era verdade; compreendiam o seu desejo de ficar sozinha.
Uma ou duas vezes, ela havia visto de relance o escudeiro galês. Lembrava-se dele com satisfação, e estava contente por ter ordenado que ele fosse incluído em sua equipe. Ele se destacava em meio aos demais. Não era de uma beleza especial, mas havia nele um ar de inocência que ela achava revigorante. Talvez seja, pensava ela, porque como galês ele parece diferente desses ingleses; tal como eu devo parecer.
Ela sabia pouco sobre os galeses. Lembrava-se vagamente de Henrique dizer que houvera época em que tinham causado problemas... como os escoceses tinham causado e como os irlandeses sempre causavam.
Em fins de outubro chegaram mensageiros da França. Ela os recebeu imediatamente em seus aposentos privados e viu logo que a notícia que traziam era triste.
- Majestade - disseram-lhe -, o rei, seu pai, morreu em Paris.
Ela ficou calada. Naquele momento, não podia classificar seus sentimentos. O pai que ela amara e por cujo destino tantas vezes temera não existia mais. Pobre e triste rei da França, cuja vida fora um ónus tão grande para ele mesmo e para outras pessoas. Por um instante, ela estava de volta ao palácio de St. Pol, uma criança amedrontada aguçando os ouvidos para ver se escutava ruídos estranhos que poderiam vir daquela parte da mansão que tinha sido separada para ser usada pelo rei. Lembrava-se de voltar-se para a irmã mais velha, Michelle, e enterrar o rosto contra ela para abafar os sons, e de Michelle acariciando-lhe os cabelos e sussurrando: "Está tudo bem, Katherine, ele não poderá lhe fazer mal. Ele não pode sair. Os enfermeiros estão com ele."
Então houve outra lembrança, do pai saindo do palácio de St. Pol, indo para o Louvre, um homem normal depois de um daqueles estranhos períodos, preocupado com todos eles, preocupado com o país e com o povo.
- O fim dele foi... pacífico? - perguntou ela.
- Majestade, quando ele voltou para Paris, estava bem. Passou pelas ruas, e o povo o ovacionou. Ele era profundamente amado.
Ela confirmou com a cabeça.
- Sim - disse ela. - O rei era profundamente amado. Era um homem bom quando não tinha aquela doença.
- O povo sabia disso, majestade. Dizia-se que se o rei não tivesse sofrido daquela doença, todas as provações que a França passou jamais teriam acontecido.
O homem parou abruptamente. Lembrou-se, de repente, de que estava falando com a mulher do Conquistador. Agora, era inimiga.
Katherine interveio, rápida:
- Compreendo como eles se sentem. Eles têm razão. Tudo saiu errado para a França quando meu pai ficou doente.
Mas ela estava pensando: "Nada teria detido Henrique. Ele estava decidido a conquistar a coroa da França, e ninguém sabe melhor do que eu que ele era um homem que fazia o que queria."
- Vossa Majestade teria ficado emocionada ao ver como o povo o recebia quando ele ia a Paris. Estava-se sob o governo dos ingleses... - uma vez mais a pausa temerosa e uma vez mais Katherine fez um gesto para tranquilizá-lo... - mas o povo gritava por ele. "Noel!", gritavam todos. "Noel!", e as pessoas pareciam achar que por ele estar bem de saúde novamente iríamos recuperar nosso país. E quando ele morreu, o corpo ficou em câmara ardente durante três dias, e as pessoas iam vê-lo e demonstrar seu respeito e sua tristeza. Majestade, as pessoas comentavam sobre ele, dizendo: "Querido príncipe, nunca mais haverá um homem tão bom quanto o senhor. Maldita seja sua morte, porque agora que o senhor foi embora nada restará para nós a não ser guerras e problemas." Elas se comparavam aos filhos de Israel, majestade, gritando durante o cativeiro na Babilónia.
- Deve ter sido muito emocionante.
- Vossa Majestade me perdoe. Igual a muita gente, eu amava o rei seu pai.
É lamentável ele ter sido tão doente - disse ela. E o que
está acontecendo em Paris, agora?
- O Conquistador está lá.
O Conquistador. O cunhado dela, John de Bedford!
- Ele mandou que os arautos proclamassem Henrique de Lancaster rei da Inglaterra e da França.
O garotinho que estava no berço. O seu pequenino Henrique. Ainda não completara um ano de idade. Títulos muito pesados para um ser tão pequenino levar.
O mensageiro estava nervoso. Sua tarefa não era de causar inveja. Tinha de proclamar a morte do pai daquela senhora quando o marido dela fora a causa da débacle da França e o próprio filho dela era o usurpador rei da França.
Katherine compreendeu e seu olhar e seu tom suave de voz reafirmavam a ele que uma vez mais não o culpava por mostrar tão claramente sua lealdade para com seu país natal.
Ela o dispensou para que ele fosse comer e beber alguma coisa depois da viagem e subiu para a ala infantil, porque sentia uma irresistível ânsia por estar com o filho.
Henrique dormia em paz em seu berço. A mãozinha estava fechada, segurando a colcha do berço, e ele chupava a ponta. Esta lhe proporcionava algum tipo de consolo fora do comum, e ele a procurava assim que era colocado no berço.
Que garotinho. Ainda não completara um ano e a coroa da Inglaterra já era sua, e estavam tentando colocar à força a da França por cima dela.
Katherine teve medo do que poderia acontecer a ele. Naquele momento, desejava ser a mulher de um proprietário de terras morando longe dos acontecimentos que sacudiam o país. Imaginou-se acordando todos os dias ao som do canto dos pássaros e do mugido do gado. Considerava isso um absurdo. Ávida não era assim. Tentou imaginar o Henrique amante das guerras naquelas circunstâncias. O combate com a conquista tinha sido a vida dele; e parecia certo que seria o destino daquela criancinha que estava no berço.
Por que os homens tentavam ser reis e governantes? Que prazer aquilo provocava neles? Tinha trazido a morte para Henrique, e, para seu pobre pai, nada, a não ser infelicidade.
Enquanto olhava o filho adormecido, pensou ter visto o rosto do pai dela.
Começou a tremer. Foi quase como que uma revelação. Olhou para o menininho. O que se passara com ela? O rostinho estava em repouso; a mão rechonchuda agarrava a ponta da colcha. Era apenas um bebé... nada tinha de parecido com um velho triste.
Katherine sentiu-se melancólica; lamentou a morte do pai; e estava cheia de apreensões quanto ao futuro.
Se ao menos Henrique não tivesse morrido, pensou ela. Como tudo teria sido diferente! E então, pensou que se ele tivesse vivido, teria sido ele a ser proclamado em Paris, e ela estaria ao seu lado... os coroados rei e rainha da França. E teria havido aqueles, entre a multidão, que teriam resmungado contra eles.
Não, parecia que era pouca a felicidade reservada para os reis.
Katherine foi até a janela e olhou para fora. Era um dia úmido e nevoento. O inverno chegaria em breve. Ela tornou a pensar naquele dia de dezembro em que o pequenino Henrique tinha nascido em Windsor... no proibido Windsor, e prendeu a respiração com um súbito sentimento de terror.
Olhou, com olhos que não enxergavam, para os tardios fiapos de folhagem nos carvalhos, e de repente percebeu de relance o escudeiro galês. Ele estava entrando no pátio a cavalo, a caminho dos estábulos.
Ela se lembrou, então, daquele encontro na floresta e sentiu vontade de tornar a vê-lo.
Para uma de suas damas, disse:
- Aquele escudeiro galês; eu gostaria de falar com ele.
A mulher pareceu surpresa, mas para Katherine era fácil vencer situações incómodas. Ela sempre podia valer-se da sua falta de compreensão da língua e dos costumes do país.
- Eu gostaria de saber como ele desempenha seus deveres...
- prosseguiu. - Eu não gostaria de pensar que incluí na minha equipe uma pessoa que...
Ela vacilou, e a mulher disse:
Quer que eu faça indagações a respeito dele, majestade?
Se ele fez alguma coisa que a desagradou...
. Não... não... não sei. Eu mesma vou falar com ele.
- Vossa Majestade em pessoa?
- É o que pretendo. Mande ele vir falar comigo. Conversarei com ele na antecâmara.
A mulher fez uma mesura e retirou-se para fazer o que lhe tinham mandado, sem dúvida achando que o comportamento dos franceses às vezes era incompreensível. Mas o falecido rei dissera que era preciso ser indulgente com sua mulher. Ele não queria que ela perdesse o encanto estrangeiro.
O escudeiro entrou no aposento, muito tímido, surpreso, naturalmente, por ser convocado à presença da rainha.
- Ah, Owen Tudor-disse Katherine, tropeçando um pouco na pronúncia do nome dele -, o escudeiro do País de Gales ela sorriu, porque ele começava a dar a impressão de que estava alarmado. - Não é preciso ter medo - disse ela. - Eu me lembro de tê-lo visto na floresta de Vincennes. Ordenei, então, que você fosse incluído em minha equipe.
- Eu agradeço, majestade - disse o rapaz -, e se fiz alguma coisa que a desagradou...
- Não, não. Você não me desagradou. Você agradou... - ele pareceu ainda mais alarmado, e ela apressou-se a continuar: Você precisa compreender que ainda não aprendi bem a língua. Há momentos em que digo alguma coisa que nem sempre é entendida.
Ele fez uma mesura e esperou.
- Eu apenas queria conversar com você - disse ela. - Nós conversamos antes. A mim, isso fez bem. Eu me sentia muito infeliz, naquela ocasião... ainda me sinto infeliz.
- Vossa Majestade sofreu uma grande perda. A Inglaterra toda sofreu.
- E o País de Gales? - disse ela.
- Sempre servi bem ao rei, majestade.
- Eu sei, e agora você deve servir ao nosso novo rei.
A expressão dela ficou séria. Ela se lembrara do que lhe provocara aquele estranho impulso.
- Diga-me, Owen Tudor - disse ela -, você é igual a seu pai... ou talvez ao seu avô?
- Meu pai foi acusado de assassinato, majestade - disse Owen -, e eu não vou gostar que isso aconteça comigo. Meu avô foi Tudor Vychan ap Gronw, e pelo que ouvi dizer, foi um homem excelente.
- Você sente orgulho de seu avô, Owen Tudor?
- Ele recebeu o título de cavaleiro das mãos do grande rei Eduardo III. Meu pai, Meredydd, foi tesoureiro do bispo de Bangor.
- E foi ele que foi acusado de assassinato. Fale-me sobre isso.
- Não sei nada a esse respeito, majestade. As famílias não falam nessas coisas, a não ser para dizer que um dos seus membros foi julgado de forma errada.
- com que então você acredita que não houve crime algum? Ele ergueu os ombros.
- Não sei, mas meu pai era um homem esquentado e foi considerado fora-da-lei e obrigado a viver nas montanhas. Eu nasci lá.
Owen Tudor parou de falar, percebendo de repente que era com a rainha que ele estava falando daquela maneira.
- Você acha que é igual ao seu pai... ou ao seu avô?
- Acredito, majestade, que os filhos muitas vezes saem com alguma semelhança com os pais.
Ela olhou alguns momentos para ele, de forma inexpressiva. Depois, disse:
- Meu pai era louco.
Owen não soube o que responder. Pensou que aquela era a entrevista mais estranha de que ele tinha conhecimento. A rainha parecia diferente de quando ele a vira em ocasiões anteriores. Parecia muito jovem e vulnerável, como uma jovem que ele poderia ter conhecido nas montanhas antes de entrar para o exército do rei.
- Acabo de receber a notícia de que meu pai morreu.
Ela estava demasiado tensa. Ele agora compreendeu. Tinha de dar-lhe atenção; tinha de se portar como se fosse a coisa mais natural uma rainha mandar chamar um escudeiro e conversar com ele como se os dois fossem gente simples do interior. Ele tinha de ouvir, não falar demais, e esperar que ela não se lembrasse da indiscrição que cometera e pusesse a culpa nele.
Oh! - explodiu ela de repente. - Você acha que é muito bom ser filha de um rei, não acha, escudeiro Tudor? Não acha?
- É uma honra muito grande, majestade. Katherine riu um tanto desvairadamente.
- Quando eu tinha três anos de idade - disse ela -, fui colocada no palácio de St. Pol com meus irmãos e minhas irmãs. Nós éramos seis... Luís, João e Carlos eram os meninos... e havia Michelle, Marie e eu, as meninas. Eu era a caçula. Sabe por que nós, as filhas da França, fomos colocadas lá? Foi porque mamãe estava morando no Louvre com o amante. Ele era o duque de Orléans, e irmão de meu pai. Você está pensando no motivo pelo qual meu pai, o rei da França, deixou que ela fizesse isso... foi porque ele era maluco, escudeiro Tudor. Eles o internavam... ela girou a cabeça, e a boca se contorceu como se ela fosse chorar. - Quando ele estava... bem, ele era delicado e bom, e nada tinha de fraco... um bom rei. Mas, então, crises terríveis tomavam conta dele. Ele vociferava e ficava violento... - ela se deteve e cobriu o rosto com as mãos.
- Majestade... - começou Owen. Ela deixou cair as mãos.
- Não vá - disse ela. - Fique. Eu posso falar com você. Eu me pergunto por quê. Eu gosto de você, Owen Tudor. Você é bom, acho eu, e confio em você. Talvez não saiba, mas já houve uma vez em que você me deu... esperança. Não sei por que foi assim. Talvez porque você fosse jovem... e de certa maneira, inocente... Acabam de me trazer a notícia da morte do meu pai. Meu filhinho vai ser, agora, coroado rei da França. Ele ainda é um bebezinho. O que será que o espera na vida? Você me acha estranha, Owen Tudor. Não sou inglesa... não sou galesa. Sou francesa, e estou amedrontada. Tenho medo do que possa acontecer ao meu filho. Tenho de falar sobre isso... com alguém... e não há ninguém.
- Majestade, meu desejo é servi-la... agora e sempre...
Ela sorriu para ele.
- Eu tinha ouvido histórias sobre meu pai - continuou Katherine. -A loucura dele apareceu de repente. Aconteceu uma coisa terrível quando ele era rapaz. Ele adorava se disfarçar, e um dia mandou que cinco de seus cortesãos se vestissem de selvagens e foram a um baile. Usavam fantasias coladas ao corpo, feitas de panos de linho, cobertos de resina, à qual colaram estopa para que parecessem homens cabeludos que estavam nus. Alguém se aproximou com uma tocha acesa, e de repente estavam todos em chamas. Não podiam tirar a fantasia, é claro, e morreram queimados, com exceção do rei, porque a tia dele, a duquesa de Berry, reconheceu-o e gritando "Salvem o rei!" envolveu-o na sua capa. O rei foi salvo, mas os outros cinco morreram queimados. Isso foi o começo da loucura dele. A ideia fora dele, e ele se achava culpado e para sempre, depois disso, ficou tendo acessos de loucura. Tiraram-lhe a faca de caça, porque ele tentou se matar com ela. Internaram-no. Ele era alimentado como se fosse um cachorro, e durante cinco meses ninguém se aproximou dele. Ficava violento quando tinha seus acessos. Por isso, eles o trancaram no palácio de St. Pol. Nós o ouvíamos gritar e atirar-se contra as paredes do quarto. Tremíamos e nos abraçávamos, dizendo: "É o nosso pai, o rei."
Owen ficou parado, olhando para ela, enquanto ela falava. Ele gostaria de saber o que dizer para consolá-la.
- E depois - prosseguiu ela -, havia o caso de minha mãe. Diziam que ela era a mulher mais bonita da França. Ela era da Baviera. Quando estava presente, era impossível não olhar para ela. Todos os homens a desejavam, e ela desejava muitos homens. Meu tio, o duque de Orléans, era amante dela. Quando meu pai estava no palácio de St. Pol, ele vivia com ela como rei e, juntos, os dois governavam a França. Eles gostavam da situação, mas, sabe?, havia o Borgonha. O tio de meu pai. Ele se preocupava com a França; preocupava-se ainda mais com a Borgonha. Então, ele morreu, e João, o Destemido, ficou sendo o novo duque. Claro que estava errado. Mas alguma vez foi certo cometer assassinato? Seu pai pensava assim, Owen Tudor, quando estava no exílio em sua casa nas montanhas? Sabe, minha mãe e seu amante foram maus para o país. Eles nos tinham colocado... nós, os filhos da França, no palácio de St. Pol, e não pagavam nossa criadagem porque queriam o dinheiro para gastar com eles. E assim ali estávamos nós, sujos, com fome e, sim... Owen Tudor... nojentos. Nós, os filhos da casa real, vivíamos como diabretes nas favelas de Paris. Não tínhamos roupas para vestir... nada para nos manter aquecidos... nada para comer... Entende, alguma coisa tinha de acontecer, e aconteceu. O duque de Borgonha mandou emboscar o duque de Orléans quando ele voltava de um jantar com minha mãe, e ele foi deixado morrendo nas ruas de Paris. Fomos tirados da nossa miséria. Depois, fui mandada para o convento de Poissy, onde minha irmã fez os votos. Mas por que estou lhe contando isso? Acha que estou maluca... como meu pai?
Owen aproximou-se dela obedecendo a um impulso. Tomoulhe a mão e a beijou.
- Não, não, majestade. Eu a acho boa e valente, e irei servi-la à custa da minha própria vida.
Ela ficou séria de repente. Retirou a mão num gesto brusco.
- Você deve se retirar, agora - disse ela. - Você me fez muito bem, tal como fizera antes.
Ela sorriu para ele, que fez uma mesura. Katherine ergueu as mãos num gesto de desespero.
- Falei bastante, não é? Eu o surpreendi. Ora, eu sou francesa, escudeiro Tudor, e você é galês. Não somos como esses ingleses, somos?
Ela estava sorrindo, e ele também.
- Adieu, escudeiro Tudor - sussurrou ela.
Ficou observando-o, enquanto ele se retirava. Sentia-se melhor. Que absurdo, ter pensado que o jovem Henrique herdaria a doença do avô. O pai de Owen Tudor era um assassino, e ele era o homem mais delicado de Windsor.
Como antes, o encontro dos dois lhe fizera bem. Ficou contente por tê-lo levado para a sua equipe.
DA JANELA de uma das torrinhas, Jacqueline da Baviera aguardava a chegada de Humphrey, duque de Gloucester. Suas esperanças dependiam dele. Jacqueline era uma mulher jovem, mas já passara por dois casamentos e pensava num terceiro.
Jacqueline não era boba. Era frequente reclamar à sua aia que seus maridos tinham se casado mais com seus bens do que com ela.
- Como você tem sorte, menina - dizia ela -, por não ter bens. Quando você se casar, vai saber que terá de ser por sua causa.
E agora, o duque Humphrey. Queria muito casar-se com ele. Não que estivesse apaixonada por Humphrey, mas ele era importante o bastante para ter um certo charme. O poder num homem era uma das coisas que Jacqueline fora ensinada a admirar, e para ela aquele sempre fora um dos mais atraentes atributos que um homem poderia ter. Ora, para ela era uma necessidade ter um marido poderoso, se quisesse recuperar seus direitos e deixar de ser uma exilada vivendo de um consentimento tácito numa terra estranha. Aquela era a parte mais difícil de suportar. Ela, que outrora fora uma herdeira de respeito, agora vivia da generosidade de uma corte estrangeira.
O casamento com Gloucester alteraria a situação. O filho de um rei - e ainda por cima, um homem ambicioso - daria a ela prestígio, e se o interesse dele por ela estava vinculado às propriedades que ela possuía, o dela por ele estava na segurança e na esperança do que ele poderia lhe dar.
A princípio, o futuro dela parecera bastante promissor. Estar casada com o delfim John tinha sido um excelente projeto com uma coroa em vista, que assim que o pai dele, Carlos VI, morresse, seria dele. Pobre velho louco, parecia mais morto do que vivo, mas havia aquela ávida rainha Isabeau, que teria de ser enfrentada quando John subisse ao trono. Jacqueline estivera certa de que poderia lidar com aquela situação. Mas aquilo jamais acontecera.
John fora para a sepultura pouco depois de seu irmão Luís. Claro que muita gente dissera que ele tinha sido ajudado naquilo por sua diabólica mãe, mas o caso ficara envolto em mistério, e não havia dúvida de que a rainha Isabeau iria livrar-se de uma acusação daquelas. E agora, ela estava ficando amiga do duque de Borgonha, por ser o melhor lado em que se ficar.
Pois bem, depois que o pobre delfim John foi enterrado, o próprio Filipe de Borgonha achara uma boa ideia casá-la com o primo dele - e, por falar nisso, dela também, porque Margaret de Borgonha tinha sido sua mãe. E assim ela se casara com mais um John, e desde os primeiros dias do casamento se arrependera. O marido era um fraco, não o que ela teria esperado que saísse de Borgonha, e não demorou muito para que seu maldoso tio, mais um John chamado de John, o Impiedoso, por motivos óbvios, descobrisse que não estava certo de que uma herança daquelas - Hainault, Holanda e Zelândia - ficasse nas mãos de uma mulher e que como irmão do falecido conde William ele tinha mais direito a ela do que a filha do conde.
com que marido fraco e ineficaz a tinham casado! Foi como uma brincadeira de criança, para o ardiloso tio deles, arrancar os territórios do submisso pequeno duque de Brabant, e ali estava ela sem suas possessões e amarrada a um marido que ela não queria.
Nesse ínterim, Katherine de Valois se casara com Henrique da Inglaterra, e quando Jacqueline se casara com o delfim John, Katherine tornara-se sua cunhada. Katherine era uma jovem bondosa, sempre pronta a ouvir pessoas em dificuldade, de modo que Jacqueline fizera um apelo a ela e Katherine e Henrique, que na época ainda estava vivo, a haviam recebido muito bem na Inglaterra.
E então ela conhecera o duque Humphrey, e desde o começo os dois tinham se sentido atraídos um pelo outro. Ela sabia que quando ele sorria para ela estava, na verdade, olhando para Hainault, Holanda e Zelândia, e que quando ela retribuía aquele sorriso com todo o seu charme, estava vendo um homem forte e poderoso que poderia recuperar as propriedades para ela.
E assim eles se sentiam atraídos e ela esperava ansiosa a chegada dele.
Por fim, viu o cortejo ao longe... estandartes tremulando, lanças brilhando ao sol. Humphrey sempre viajava com pompa e queria que se lembrassem de que era filho de um rei. Às vezes Jacqueline imaginava que a insistência dele naquilo surgira porque o pai só se tornara rei depois que destronara Ricardo III. Humphrey e seus irmãos, os netos de John de Gaunt, não tinham nascido na linha direta que levava ao trono.
Pouco importava. Humphrey era uma potência no país, e enquanto o irmão mais velho, Bedford, estivesse na França, Humphrey seria, para todos os fins e propósitos, o rei da Inglaterra, porque aquela criancinha na ala infantil de Windsor não precisaria ser levada em consideração ainda durante anos.
Por isso, ela se sentia triunfante enquanto descia até o pátio para recebê-lo.
Ele era uma bela figura em seu casacão bordado, preso por um cinto que brilhava; as mangas bem largas acompanhavam a última moda, e os cabelos estavam cortados rente, moda admirada por seu irmão, o que explicava, sem dúvida, o fato de ser tão adotada. Os sapatos eram longos e pontudos, embora não a ponto de parecerem ridículos; eles combinavam com os calções, que eram de duas cores que combinavam - azul e lavanda.
Humphrey teria sido um homem muito bonito, não fossem as bolsas embaixo dos olhos, os sulcos nos cantos da boca e uma pele um tanto castigada. Aqueles eram os sinais externos da vida que se dizia, que ele levava, e no entanto havia em torno dele um certo esteticismo. O devasso cavalheiro era, ainda, amante das helas-artes. Um homem interessante, com características conflitantes, mas havia uma delas que sobrepujava todas as demais a ambição.
Jacqueline compreendia tudo aquilo; e não queria que fosse diferente.
Os criados entregaram-lhe a taça. Ela provou o conteúdo, sorrindo - seguindo o velho costume que surgira para assegurar ao recém-chegado que não havia veneno na taça.
Humphrey bebeu bastante e deixou os olhos pousarem em Jacqueline. Bem bonita, pensou. Ela não o levava a um frenesi de desejo. Hoje em dia, seria preciso uma mulher extraordinária para fazer isso. Ele conhecera mulheres demais. Mas Jacqueline... com todas as suas propriedades, embora fosse preciso reconquistálas... seria ótima para ele.
Ele passou a taça para o soldado que esperava e saltou do cavalo. Tomou a mão de Jacqueline e olhou para ela com ar inquiridor. Ela sorriu para ele.
- Tenho novidades - disse ela. - Mas, por favor, senhor duque, vamos para dentro. Estamos preparados para recebê-lo. Faremos o possível para oferecer-lhe uma hospitalidade digna do senhor -, embora, é claro, isso seja impossível.
- Nada disso - disse ele -, eu é que preciso me mostrar digno dela.
Conversa agradável em que nenhum dos dois estava sendo sincero ou na qual nenhum dos dois acreditava um só instante.
Eles entraram no salão. Ele sentiu o cheiro de carne de veado sendo assada, e estava bom. Na verdade, estava tudo bom. Borgonha que fosse para o inferno. Bedford que fosse para o inferno. Humphrey estava certo de que dentro de muito pouco tempo Hainault, Holanda e Zelândia seriam dele.
Ele estava com um humor excelente quando se sentou para comer. Os menestréis tocavam música suave, de que ele gostava, e só os melhores músicos podiam agradar ao seu gosto refinado.
Jacqueline havia sussurrado a notícia para ele quando os dois tinham ido para o jantar:
- Benedito anulou meu casamento com Brabant.
- Bela notícia - replicou Humphrey.
- Eu esperava que você achasse isso. Mas será que é o bastante?
Humphrey hesitou por apenas uns instantes. Na verdade, não era muito boa. O homem que se chamava de Benedito XIII não era reconhecido por todos. Em alguns círculos, era conhecido como o antipapa, porque desde o Grande Cisma havia um grande conflito nos círculos papais. Benedito XIII era um certo Peter de Luna, escolhido pelos cardeais franceses e reconhecido apenas pela Espanha e pela Escócia.
Muitas vezes era útil ter esses lados conflitantes, porque sempre havia um desejo de conquistar o apoio de pessoas que ocupavam altos cargos. Ah, sim, pensou Gloucester, muito útil. Eles iriam fazer com que a anulação concedida por Benedito lhes fosse proveitosa; e por outro lado, se em dado momento quisessem mudar de ideia, sempre poderiam lançar dúvidas sobre a validade do documento.
A mão de Humphrey fechou-se sobre a de Jacqueline.
- Nós vamos aproveitá-la bem - disse ele.
Ela se recostou na cadeira, sorrindo complacente. Não seria difícil trazer de volta aquelas excelentes terras para seus donos de direito.
Enquanto os músicos tocavam, eles já faziam planos.
- Não vejo motivo para adiarmos mais - disse Humphrey. Uma criada estava enchendo a taça dele. Ela inclinou-se mais para perto dele; uma mecha de cabelos escuros, muito gordurosos, caiu sobre o rosto dela; o corpete abriu-se um pouco para mostrar um busto cheio. Os olhos dos dois encontraram-se por um instante. De vez em quando, aquelas mulheres sujas e desmazeladas o atraíam. Já me fartei de mulheres finas, pensou ele.
Seguiu com os olhos o oscilar das nádegas da mulher enquanto ela se afastava sem se esquecer de olhar para ele por cima do ombro.
Uma prostituta saudável, pensou ele.
- Não vai haver oposição - estava dizendo Jacqueline.
Minha cara senhora, quando foi que a oposição me impediu de fazer alguma coisa... ou, mesmo, a impediu?
Raramente, admito.
Ele se inclinou para ela.
Vão abanar a cabeça, de assombro. Talvez nos amaldiçoem. Nós ligamos para isso, doce Jacqueline?
- Por que eu iria ligar, se você não liga?
Ele colocou a mão sobre a dela e apertou-a.
- Neste caso, vamos em frente, hein... sem demora.
Ela estava com o olhar fixo para a frente, sorrindo, vendo a si mesma cavalgando de volta por Hainault, Holanda e Zelândia, com um marido forte ao lado.
Humphrey sorria com ela, vendo praticamente a mesma coisa; mas a descarada criada tornou a cruzar-lhe a visão. Ele estava pensando: deve ser uma garota de alguma experiência.
Estava ficando tarde. Havia muito o que fazer. Os dois partiriam juntos, a cavalo, no dia seguinte, e o casamento iria acontecer logo. Humphrey retirou-se para a câmara que fora preparada para ele e, enrolando-se no robe, sentou-se na cama, pensando no futuro. Ele dispensara os criados.
Pensou em Jacqueline e se perguntou se ela o estava esperando.
Talvez tivesse sido um gesto carinhoso. Ele se imaginou tomando-a nos braços. "Eu não podia esperar pela cerimónia, meu amor, tamanha a minha necessidade de ter você."
Não. Aquilo não pareceria sincero. Jacqueline era esperta demais.
Havia aquela outra. Uma certa excitação crescia ao pensar nela. Seria fácil. Ele poderia mandar um dos criados procurá-la. Eles tinham realizado missões iguais àquela para ele com frequência, e o fariam com uma eficiência discreta. Se quisesse, dentro de quinze minutos ele teria a jovem na sua cama.
Esteve para chamar seu criado. Então, hesitou. Não. Talvez não fosse prudente. Seu irmão John lhe dissera, repetidas vezes: "Você é muito impulsivo, Humphrey. Um dia essa impulsividade vai lhe meter em encrenca."
Por que pensar no John agora? Aquele não era o momento de pensar no bom irmão mais velho, o nobre, o favorito de Henrique. John não iria ficar muito contente com aquele casamento com Jacqueline. Sim, até mesmo John perderia a calma quando soubesse.
Ainda assim, talvez fosse um erro mandar chamar a garota. Jacqueline poderia descobrir. E se descobrisse... quem sabe? Humphrey achou que compreendia Jacqueline, mas se envolvera muito com mulheres e, conhecendo-as bem, a única coisa de que tinha certeza era que nunca se pode ter certeza a respeito delas.
Ele, que passara por tantas aventuras eróticas, sem dúvida poderia passar uma noite sem uma. vou passar, pensou, em nome de Hainault, Holanda e Zelândia.
John, duque de Bedford, era um homem muito aflito. Praticamente não havia um momento do dia em que não lamentasse amargamente o passamento do irmão Henrique. John era aquele que tinha vivido mais intimamente à sombra do irmão do que qualquer um dos demais. Henrique e ele tinham trabalhado juntos, confiado um no outro, compreendido um ao outro. Era como se uma parte dele tivesse morrido quando Henrique se fora, pensou John, e a melhor parte.
Às vezes, parecia-lhe que havia uma praga sobre a família. Teria sido o resultado do fato de seu pai ter tomado o trono de Ricardo? Havia pessoas que acreditavam que atos como aquele podiam lançar uma maldição sobre uma família inteira. Não muito tempo depois da ascensão ao trono, o pai deles, o rei Henrique IV, morrera de uma doença repugnante. Ele jamais desfrutara do poder que lutara tanto para conquistar. Na verdade, John estava certo de que às vezes ele sentia saudades da época em que fora um mero Bolingbroke. As coroas traziam responsabilidades terríveis, e eram apenas as pessoas como Henrique - nascido para ser rei, se alguma vez algum homem nasceu para sê-lo - que podiam usá-la com facilidade e com a certeza do sucesso.
Mas Henrique havia morrido - derrubado no auge de sua existência. Antigamente, eles tinham participado de justas juntos, brincado um com o outro, sonhado com o futuro. E como esse futuro saíra diferente! Eles tinham sido quatro, Henrique, Thomas, ele e Humphrey. E agora só restavam dois. Thomas havia morrido um ano antes de Henrique. Mas a morte dele fora compreensível, porque acontecera em combate.
Henrique gostava muito dele. John se lembrava claramente da tragédia da morte de Thomas.
Henrique o nomeara capitão da Normandia e lugar-tenente da França. Pobre Thomas, como ficara orgulhoso! Mas ele era impetuoso... estava sempre com pressa. Isso será a derrota dele, dissera Henrique; e como estivera certo! Se ao menos Thomas tivesse esperado; se ao menos tivesse contido a impaciência! Mas Thomas queria uma vitória tão gloriosa quanto a de Agincourt. Henrique jamais teria permitido que a coisa acontecesse daquela forma - e, em consequência, custara a vida do pobre Thomas. As forças do delfim tinham avançado para Beaufort-en-Vallée e chegado até Beaugé. Quando a notícia foi transmitida a Thomas, ele ficou ansioso por atacar. Henrique o teria aconselhado a esperar até que pudesse reunir a força principal; mas tratando-se de Thomas, este jamais podia esperar alguma coisa. Por isso, com uns poucos cavaleiros escolhidos, ele atacara e fora morto.
Pobre Thomas, ele ansiara tanto pela glória! Queria ser tão grande quanto Henrique. Infelizmente, não era. A tragédia, pensava John, é que nenhum de nós é.
O conde de Salisbury retirara o corpo de Thomas do campo de batalha e ele tinha sido levado para a Inglaterra e enterrado com grande pompa em Canterbury, onde os ingleses lhe prestaram uma homenagem, acreditando que ele era um soldado quase tão notável quanto o irmão.
E depois de Thomas, a grande tragédia: a morte de Henrique.
Só restaram dois de nós, pensou John. Humphrey e eu.
A ideia deixava-o preocupado, e ele se perguntava até que ponto podia confiar em Humphrey.
E agora, o rei da França estava morto. Aquilo era uma calamidade, embora não inesperada. Quando vivo, Henrique ansiara por ela, porque com a morte do rei da França Henrique iria ser proclamado rei daquele país. Teria sido um momento grandioso e glorioso. Mas agora só havia um garotinho onde deveria ter estado um homem forte. Além do mais, havia um delfim que agora iria proclamar-se rei da França e os invasores ingleses inevitavelmente iriam ver-se cercados por um povo hostil. Ninguém compreendia mais do que John que um povo orgulhoso como o francês jamais iria submeter-se a um invasor estrangeiro e aceitar um estrangeiro como rei.
Muita coisa dependia de Borgonha. Henrique sempre dizia: "Nós precisamos de Borgonha." Na verdade, a derrocada da França fora devida, em grande parte, às facções antagónicas no coração do país. A rixa entre Orléans e Borgonha, que vinha de longe, enfraquecera a França a tal ponto que a conquista fora realizada com uma facilidade maior do que a que poderia ter havido se os franceses tivessem estado unidos contra o inimigo comum.
Henrique chamara a atenção de John sobre a importância de Borgonha. Até mesmo em seu leito de morte, seus pensamentos tinham sido dirigidos ao duque. Ele segurara a mão de John e dissera, com muita ênfase:
- Deixo o governo da França em suas mãos, meu irmão. Mas se Borgonha estiver decidido a fazer isso, deixe que ele faça. Acima de tudo, eu lhe digo que não tenha desavenças com Borgonha. Se isso acontecer... e que Deus evite que você as tenha... os problemas da França, nos quais temos progredido de forma muito favorável, iriam tornar-se difíceis... para nós.
Foram palavras que ficaram gravadas na mente de John, porque ele passara a perceber a sabedoria que havia nelas. Ele não esqueceria a importância de manter a paz com Borgonha.
A França estava tumultuada. Enquanto o louco do Carlos ainda usava o título de rei da França, houvera uma trégua. Os franceses poderiam continuar acreditando que um usurpador não se apossara do trono. Mas agora Carlos estava morto, e era preciso agir para trazer os franceses à realidade, de modo que depois do enterro de Carlos VI em St. Denis, John não tinha outra alternativa que não fazer com que o pequenino Henrique VI fosse declarado rei da França. Essa proclamação deveria acontecer em Paris, e à medida que a hora se aproximava, mais aflito John ficava.
O corpo do rei da França foi levado para St. Denis e lá, com cerimónias de praxe, enterrado. O único príncipe que compareceu foi John, duque de Bedford. Ele tinha tido a esperança de que Borgonha estivesse lá, mas era evidente que Borgonha não tinha vontade alguma de prestar honrarias ao duque de Bedford.
John não podia esperar que isso acontecesse.
Até aí, tudo bem. A cerimónia se desenrolara sem incidentes. Agora, chegara a hora do teste. John teria de cavalgar de volta a Paris e, lá, proclamar seu sobrinho rei da França.
Ele estava profundamente cônscio das multidões carrancudas. Sabia que a qualquer momento elas poderiam levantar-se e atacá-lo. Ele tinha seus guardas, que deviam estar alertas a qualquer perturbação, e eles não portavam armas, mas John não subestimava o poder da turba. Pensou em Henrique e adquiriu coragem com o fato de que estava fazendo o que o irmão teria feito se estivesse vivo naquele dia. À sua frente cavalgava um de seus cavaleiros, levando uma espada desembainhada, que era um emblema da autoridade real. O povo de Paris estaria cônscio disso.
John ficou montado em seu cavalo, muito quieto e calado, enquanto a proclamação soava:
- Vida. longa para Henrique de Lancaster, rei da Inglaterra e rei da França.
John esperou. Eles poderiam ter avançado contra ele, naquele momento. Ele poderia ser obrigado a enfrentar a violência de uma turba parisiense. Estava profundamente cônscio do mal-humorado silêncio que o envolvia por todos os lados.
Não. Estava bem. Eles já estavam fartos de lutas. Tinham passado fome e sofrido; tinham perdido membros da família; formavam um povo dominado e derrotado. Sabiam que, àquela altura, não tinham a ousadia de fazer coisa alguma, a não ser aceitar Henrique de Lancaster como seu rei.
John acreditava que a reivindicação inglesa era justa e legítima - como Henrique sempre dissera e outros haviam dito antes dele. Ela vinha através de Isabella, que fora casada com Eduardo II, e se os franceses defendiam a lei sálica, os ingleses, não. Além do mais, eles tinham vencido por meio de uma conquista. Ainda assim, eram considerados usurpadores.
A cerimónia acabou. Ele cumprira com o seu dever. Enquanto seguia a cavalo para o Louvre, ouvia o retumbar de vozes e percebeu que o silêncio terminara. Henrique fora proclamado, mas agora irromperia a insatisfação. Ela sabia que o povo estava falando no bom Rei Carlos, não no Louco Rei Carlos, o pobre homem incapaz, reduzido, às vezes, quase que ao estado selvagem pela loucura. O homem cujo reinado tinha levado o desastre à França tornara-se um santo.
Não era sempre assim?
Havia despachos da Inglaterra esperando por ele. Sentia-se cansado, exausto pela emoção de sua recente experiência. Mas precisava ler os despachos. Poderia haver, neles, algo da máxima importância.
Leu, e quando chegou à notícia sobre seu irmão Humphrey, fez uma pausa. Sentiu o sangue subir-lhe às faces. Não podia acreditar. Leu duas vezes. Humphrey... casado com Jacqueline! Era impossível. A mulher já era casada... e com Brabant - um casamento arranjado por Borgonha, o que significava que o ardiloso duque estava de olho em Hainault, Holanda e Zelândia. E Humphrey cometera a estupidez de se casar com aquela mulher. Ele não poderia ter pensado em nada melhor para provocar a ira de Borgonha.
John continuou a leitura. Benedito anulara o casamento com Brabant...
Benedito. O antipapa!
Aquilo ali era um desastre. Borgonha iria voltar-se contra eles. Eles não tinham condições de fazer de Borgonha um inimigo. Borgonha era o homem mais poderoso da França. Praticamente as últimas palavras de Henrique tinham sido um aviso sobre Borgonha. Nunca aja de modo a fazer dele seu inimigo. Ora, ele até se oferecera a fazer de Borgonha o regente da França, em seu leito de morte, e isso devido ao fato de Borgonha ter-se recusado a aceitar que o próprio John tivera de assumir aquela importantíssima tarefa.
E agora, com aquele casamento louco, dentro em pouco Humphrey estaria envolvido numa disputa com Borgonha.
Embora exausto pela provação pela qual acabara de passar, John tinha de pensar, agora, sobre a melhor maneira de agir. Deveria explicar a Borgonha, conversar com ele?
Ó Henrique, pensou ele, se você estivesse vivo hoje, isso jamais teria acontecido.
Filipe, duque de Borgonha, um dos homens mais ricos e mais poderosos da França, era filho de João, o Destemido. Na época da batalha de Agincourt, Filipe tinha dezenove anos, já estava casado com Michelle, que era filha do rei da França, e, quando criança, partilhara com Katherine as privações do palácio St. Pol. O maior desgosto da vida de Filipe até aquele momento era não ter estado presente na famosa batalha que levara à derrocada da França. O duque John dera ordens para que seu filho não saísse do castelo de Aire, onde estava morando na ocasião, e o governador do castelo, sob pena de um severo castigo, fora avisado de que, por mais que protestasse, Filipe deveria ficar lá.
Filipe se impacientara com aquelas ordens, mas não soubera, é claro, o quanto aquela batalha seria importante. Se tivesse, jurava ele, teria fugido, não importa a que custo, e teria participado.
E assim, a nata do exército francês fora destruída por uma pequena força contrária e, para sua vergonha eterna, a França ficara de joelhos. Quando soube da derrota, Filipe chorou durante três dias. Recusou todos os alimentos e aqueles que o cercavam temiam pela sua saúde. Durante muitos anos, ele iria referir-se a Agincourt como o momento mais doloroso de sua vida.
Quanto ao duque John, ele também ficara dominado pela dor. Dois dos tios de Filipe, o duque de Brabant e o conde de Nevers, tinham morrido juntamente com grande parte da nobreza da França. Mas, embora lamentasse, o duque John se regozijava pelo fato de seu filho não ter estado presente naquele campo de batalha.
Mesmo assim, ele mesmo se sentira envergonhado por não ter estado lá, e enviara sua luva a Henrique, que na época estava em Calais.
"O duque de Brabant está morto", escrevera ele. "Ele não é vassalo da França e não tem feudo algum aqui, mas eu, irmão dele de Borgonha, o desafio e lhe envio essa luva."
A resposta de Henrique fora típica dele.
"Não aceitarei o desafio de tão nobre e poderoso príncipe como o duque de Borgonha. Em nada me comparo a ele. Se obtive a vitória sobre os nobres da França, foi por uma graça de Deus. A morte do duque de Brabant provocou em mim uma grande tristeza. Receba de volta a sua luva. Nem eu, nem meu povo causamos a morte de seu irmão. Se o senhor estiver em Bolonha no próximo dia quinze de janeiro, vou provar, com depoimentos de prisioneiros e de dois de meus amigos, que foram os franceses que causaram a destruição dele."
Fora uma resposta impressionante, totalmente desprovida da arrogância do conquistador. Fora um estender de mão experimental, para o duque de Borgonha, e causara um efeito marcante sobre João, o Destemido. Este reconhecera em Henrique não apenas um grande soldado, mas também um diplomata. comparara-o com o louco e fraco rei da França e pensara em como Henrique daria um aliado muito mais digno. Mas ignorara o convite de Henrique. Em vez disso, marchara para Paris e dera todos os sinais de que iria pegar em armas contra os ingleses; mas na verdade estivera mais preocupado com a luta pelo poder entre os borgonheses e o povo de Armagnac - estes últimos assim chamados em homenagem ao conde Bernard dArmagnac, que se colocara à frente do partido de Orléans.
Aquela luta vinha sendo ferrenha desde que o duque de Orléans, amante da rainha, fora assassinado por ordem do duque de Borgonha alguns anos antes. O rei inclinava-se a favor do povo de Armagnac, o que fizera com que Borgonha pensasse cada vez mais em apoiar Henrique. Embora não existisse uma aliança franca, ele deixara claro que não considerava Henrique sem direito a reivindicações, e a atitude de Borgonha fora a causa de uma angústia permanente para o rei da França.
A rainha Isabeau, que gostava quase tanto de intrigas quanto de aventuras amorosas, na época decidira apoiar Borgonha contra o marido e contra o povo de Orléans. A única razão pela qual ela estivera ao lado de Orléans era o fato de seu amante ter sido o duque dOrléans. Ela achara muitíssimo emocionante enviar sondagens a Borgonha. Ela estava vivendo muito perto do rei - enquanto ele desfrutava de um de seus períodos de lucidez, e estava de posse de informações que poderiam ser úteis a Borgonha. Quanto a Borgonha, ficara muitíssimo satisfeito por ter alguém tão influente quanto a rainha trabalhando para ele contra seus inimigos, e estimulara a nova amizade.
Praticamente não se poderia esperar que aquilo passasse despercebido muito tempo, porque a rainha não era a única pessoa que agia como espião no palácio, e o conde dArmagnac ficara logo sabendo que informações valiosas estavam sendo passadas para Borgonha por ninguém mais do que Isabeau em pessoa. Ele adotara a providência óbvia de desmoralizar a rainha, e isso não fora difícil, porque a conduta da rainha era, quando nada, desonrosa. Desde o assassinato de Orléans, ela tivera uma série de amantes, e o favorito, àquela época, era um certo Luís de Bosredon, que era não só seu amante, mas trabalhava com ela na obtenção de informações para Borgonha.
Armagnac escolhera o método óbvio de vingança. Fora falar com o rei e, dando a impressão de relutar, dera a entender que Luís de Bosredon não só era amante da rainha, mas estava trabalhando com ela no envio de informações a Borgonha.
O humor de Carlos era instável. Embora às vezes fosse o mais conciliatório dos homens, ele podia explodir de repente em violentos acessos de raiva. Ele não podia deixar de estar sabendo das infidelidades da mulher. A França inteira soubera que o duque dOrléans, o próprio irmão do rei, tinha sido seu amante. Carlos também sabia; mas desde o momento em que pusera os olhos em Isabeau, ele a achara a criatura mais bonita que jamais vira, e ainda achava. Sua mente muitas vezes estava enevoada mesmo nas épocas em que ele era considerado bem o suficiente para levar uma vida normal; e quando soubera que a mulher estava envolvida numa intriga com Luís de Bosredon no próprio palácio, tivera um acesso de raiva.
A rainha ficara assombrada quando ele se aproximara dela. Ele sabia da vida que ela levava; todo mundo sabia, e por isso, por que mostrar tanta surpresa? Mas até ela se intimidara diante da tempestade de acusações que ele fez cair sobre ela.
- Carlos, Carlos - murmurara ela -, você precisa se acalmar.
Se não, eles o levarão de volta para St. Pol. Luís é um amigo... tanto seu, quanto meu...
Mas pelo menos daquela vez o rei estivera imune aos artifícios dela.
- Você ainda não ouviu tudo - gritara ele; e ordenou a prisão de Luís de Bosredon. Aquele cavalheiro um tanto refinado, quando ia procurar a rainha para mostrar-lhe um novo par de luvas bordadas que ele mandara fazer para ele usar e para perguntar a ela se não gostaria de prestigiar as excelentes bordadeiras que ele descobrira, ficara assombrado ao ver-se agarrado e atirado numa masmorra.
A rainha ficara temporariamente perturbada, mas em pouco tempo garantira a si mesma que chamaria o rei à razão; e depois iria vingar-se daquele espião do Armagnac. Provocaria tamanha raiva nos bolonheses, que haveria um massacre em Paris.
A coisa não fora tão fácil quanto de costume. O rei estivera inflexível em sua determinação de desmascarar Luís de Bosredon; ameaçara torturá-lo, e a ideia de seu belo corpo sendo mutilado levara Luís ao pânico, de modo que muito pouco depois ele admitira tudo - seu relacionamento com a rainha e sua participação na espionagem que ela realizava para Borgonha.
O rei ordenara que ele fosse imediatamente colocado num saco de couro, e que o saco, depois de costurado, fosse jogado no Sena. Trouxeram um saco no qual tinha sido bordada a frase "Que se faça a justiça do rei", e a sentença fora cumprida.
Mas isso não fora tudo. A própria Isabeau não sairia sem ser castigada. Ela fora banida da corte e enviada para Tòurs. Lá, fora colocada sob os cuidados de guardas, que tinham ordens para vigiá-la noite e dia e impedir que ela enviasse ou recebesse correspondência.
Isabeau vicejava na intriga. Era engenhosa, e agora decidira aliar-se por completo ao duque de Borgonha. Era bonita, atraente; poucos homens conseguiam resistir a ela; evidentemente, não os membros da guarda. Será que um deles poderia prestar-lhe um favor?, perguntara-se ela. Não precisava ter perguntado. O homem escolhido sentira-se honrado, daria a vida para servi-la, e bem poderia dar a vida, se fosse descoberto, porque ela lhe pedira que levasse uma mensagem dela para o duque de Borgonha.
João, o Destemido, soltara uma gargalhada ao receber o selo que ela lhe enviara. Gostara da mensagem que lhe dizia que se ele quisesse ir buscá-la, ela iria embora com ele.
Ter a rainha em seu poder, a rainha como aliada! Isso lhe seria muito vantajoso. Ele pensara em como conseguir capturá-la sem tomar o castelo de assalto. Mas ela era uma mulher de muitos recursos. Era claro que deveria ter ideias.
O mensageiro voltara para dizer à rainha que, quando ela estivesse recebendo a mensagem dele, o duque de Borgonha estaria a duas léguas de Tours com uma companhia de soldados.
Isabeau estivera com o plano pronto. Dissera aos guardas que queria ir à missa no convento de Marmoutier, que ficava fora dos muros da cidade. Os guardas trocaram ideias. Eles não deveriam sair de Tours. Isabeau batera os pés e vociferara. Será que eles estavam se esquecendo de que era a rainha? Ela pedia apenas o direito de adorar. Será que isso lhe seria negado? Eles iriam se arrepender de tê-la tratado tão mal assim. Não ficaria para sempre naquela triste situação, e não era mulher de esquecer.
Os guardas conversaram entre si. Que mal poderia ter a expedição, se ela estivesse bem vigiada?
Por isso, eles partiram, mas quando chegavam perto da igreja viram uma companhia de soldados que se aproximava. Os guardas ficaram logo desconfiados.
- Minha senhora - dissera o líder deles -, temos que voltar. Esses soldados podem ser borgonheses ou ingleses.
Naquele momento, o capitão que vinha à frente dos soldados galopara até Isabeau.
Aproximara-se do cavalo dela, tomará-lhe a mão e a beijara.
- Eu a saúdo, senhora, em nome do duque de Borgonha.
- Onde está o duque? - perguntara ela.
- Está perto daqui, senhora.
- Então, prenda esses homens que acreditam ser meus captores.
Os guardas, assustados, ficaram pasmos; não podiam acreditar que tinham sido vítimas de um estratagema tão simples.
E lá estava o duque de Borgonha em pessoa, cavalgando em direção à rainha, fazendo uma mesura montado em sua sela, os olhos brilhando de satisfação e bom humor.
- Meu querido primo - bradou a rainha -, você me livrou do cativeiro. Nós somos amigos. Jamais o deixarei na mão. Sei que você é um leal servidor do meu pobre e desorientado marido e de toda a família dele, e um verdadeiro protetor de um triste reino dilacerado pela guerra.
Aquilo fora uma grande conquista. Borgonha e a rainha eram aliados. Os dois criaram um Tribunal de Justiça para substituir o de Paris; Borgonha era, agora, o inimigo proclamado do rei e sentia-se ainda mais inclinado a manter boas relações com o inimigo do rei.
Ao mesmo tempo, ainda não havia um acordo aberto entre Henrique e Borgonha, mas os dois estavam ficando cada vez mais chegados.
Só em julho de 1418 - quase três anos depois da batalha de Agincourt - Henrique tomara Rouen. Aquilo fora o fator decisivo, e Rouen resistira valentemente, por perceber que, como capital da Normandia, se caísse em mãos dos ingleses isso colocaria o selo da morte nas esperanças francesas de vitória.
Fora um cerco de doer o coração. Os habitantes enviavam apelos urgentes ao rei e ao duque de Borgonha; mandaram para fora da cidade todos aqueles que não tinham condições de lutar, e isso significou que homens idosos, mulheres fracas e crianças pequenas perambulavam pelos bairros fora dos muros da cidade, morrendo de fome; mas os cidadãos foram implacáveis. Eles sabiam que iriam precisar de todos os alimentos que tinham para aqueles que pudessem defender a cidade. Por todo o calor de agosto e a névoa de setembro e a ameaça de frio em outubro, o sítio continuara. Dezembro chegara com todo o amargor de um inverno rigoroso. Os cidadãos de Rouen estavam no fim de sua resistência quando chegara uma mensagem de Borgonha ordenando que tratassem com os ingleses as melhores condições que pudessem obter.
Aquilo era a deserção. Nem o rei da França nem o duque de Borgonha poderiam ou iriam ajudá-los.
Henrique gastara homens e recursos financeiros no cerco e estava irritado com os cidadãos por resistirem tanto tempo. Ordenara que todos os homens se entregassem a ele, e, acreditando que isso seria morte certa, o povo de Rouen preparara-se para pôr fogo na cidade.
Henrique ficara impressionado com um povo que podia chegar a pensar em deixar-se morrer queimado, e imediatamente concedera perdão a todos os homens, exceto alguns cujo nome ele iria dar.
Assim, num dia frio de janeiro, Henrique entrara na cidade de Rouen, e chegara o momento de os franceses fizessem um acordo com os ingleses antes que eles tomassem a França inteira e, assim, tirassem os entendimentos das cogitações.
Fora então que Henrique vira Katherine, e assim que isso acontecera passara a ser grande o desejo de casar-se com ela. Mas era, antes de tudo, um soldado, e não faria concessões demais, até mesmo a Katherine. Tinha ido em busca da coroa da França e não aceitaria outra coisa.
Estava profundamente cônscio da existência de Borgonha. Por ansioso que estivesse pela amizade do duque, ficara encantado por causa do conflito entre Borgonha e o rei e o delfim. Queria manter aquele conflito.
Borgonha sabia muito bem o que se passava pela cabeça de Henrique, e decidira aproveitar-se ao máximo. O que ele queria era aumentar suas possessões, e decidira que poderia chegar a um acordo privado com os ingleses. Poderia ser aliado deles mesmo contra os franceses. Por que não? Os borgonheses estavam fazendo guerra contra Armagnac. Ao mesmo tempo, ele não queria que Henrique pensasse que Borgonha seria um aliado de bom grado. Teriam de mostrar-lhe quais seriam as vantagens se ele se juntasse aos ingleses. E como é que isso poderia acontecer - um borgonhês lutando ao lado dos ingleses para tomar a coroa da França da casa francesa reinante!
Na conferência, Borgonha fora extremamente frio para com Henrique.
Henrique não ligara para isso. Ele compreendia exatamente para onde os pensamentos de Borgonha o estavam levando.
Eles tinham recusado suas condições. Recusaram-se a deixar que ele tornasse a ver Katherine.
- Queremos que saiba, primo - dissera ele a Borgonha -, que vamos ficar com a filha do rei e com tudo que exigimos com ela. Caso contrário, iremos expulsar o rei deste reino, e o senhor também, senhor duque.
Borgonha olhara para ele com ar cínico e replicara:
- Vossa Majestade pode dizer o que quiser. Mas antes de expulsar o senhor meu rei e eu do reino, terá de fazer aquilo que irá cansá-lo de tal maneira, que Vossa Majestade terá dificuldades em manter o controle sobre sua própria ilha.
Henrique não guardava qualquer animosidade contra o duque. Claro que ele falava daquela maneira. Claro que não poderia esperar uma aliança ostensiva entre eles. Era verdade, também, que se ele tivesse de continuar lutando na França, empobreceria seu país. Naquele momento, ele estava inflamado com a vitória, e seu povo aplaudia o grande rei cujo génio lhe trouxera muitas conquistas; mas aquelas conquistas tinham de ser pagas... com impostos... e, o que era ainda pior, com o sangue de seus soldados.
Borgonha estava certo.
Um dia, pensara Henrique, ele e eu estaremos unidos. Ele é o único homem da França que eu gostaria que fosse meu aliado.
Isabeau tivera participação nisso. Ela providenciara para que exercesse o controle da filha quando vira que ela seria o melhor balcão de barganha que os franceses poderiam esperar ter. O rei estava, então, em um de seus períodos sombrios e isolado do país. Pouco tempo depois, Katherine e Henrique tinham se casado.
Acontecera, então, o incidente que tornara Filipe de Borgonha inimigo do delfim da França e o voltara para os ingleses com um entusiasmo que seu pai jamais demonstrara.
Ficara decidido, entre os adeptos do delfim, que ele e o duque de Borgonha deveriam resolver suas diferenças, e para que isso acontecesse deveria haver um encontro entre os dois.
O país estava dominado pelos ingleses; tinha de haver um fim naquele conflito interior.
Mensageiros do delfim foram procurar o duque para dizer- lhe que o delfim estava, naquele momento, perto de Montereau, e que se o duque fosse até lá seria providenciado o encontro. Alguns dos amigos do duque tinham sido contra o encontro. Parece muito estranho, tinham dito eles. Por que você não se encontra com o delfim na corte?
O duque não ligara para a preocupação deles e fizera os preparativos para o encontro. Discutira-o com o filho Filipe, que gostaria de ver a paz entre a casa deles e a do rei, por causa de sua mulher. Ele era dedicado a Michelle. Muitas vezes comentara com o pai que as princesas reais pareciam feitas de um calibre diferente quando comparadas com o rei louco e seu vacilante filho.
- Espero que o senhor consiga a paz - dissera ele. Michelle fica muito contrariada com esse conflito. Ela se sentiria muito feliz se o senhor tivesse um bom relacionamento com o irmão dela.
- Michelle tem razão - dissera o duque John. - Nós deveríamos estar unidos contra os ingleses.
E assim, o duque John partira para Montereau e, lá, ficara combinado que o duque e o delfim deveriam aproximar-se um do outro, vindo cada qual de uma das extremidades da ponte Montereau e cada um levando dez soldados armados.
No centro da ponte, o delfim e o duque ficaram frente a frente. O duque John tirou o chapéu e fez uma acentuada mesura.
- Meu senhor - dissera ele -, é meu dever servi-lo em primeiro lugar no país, depois de a Deus. Vim oferecer-lhe meus serviços.
- O senhor disse palavras bonitas - replicara o delfim. Ninguém, creio eu, diz palavras mais bonitas do que o senhor. O senhor demorou-se muito a vir nos procurar.
- Demorei, de fato - replicara o duque. - E agora me pergunto o que fazemos aqui, porque nada pode ser resolvido, a não ser que seja na presença de seu pai, o rei.
- O rei ficará contente com o que eu fizer - replicara o delfim. - Há um detalhe que eu gostaria de discutir com o senhor. Tem sido muito amável com os nossos inimigos, os ingleses, e portanto tem mostrado que não cumpre com o seu dever para com a coroa da França.
- Fiz o que considero ser de meu dever - insistira o duque.
- O senhor falhou no cumprimento do dever - bradara o delfim.
- É mentira.
Um dos homens que estava na ponte gritou:
- Vingança pela morte de Orléans!
O duque voltara-se e vira o machado um segundo antes que ele o atingisse.
- Uma armadilha - murmurara ele, enquanto caía ao chão. - Traição...
Eles estavam em pé, inclinados sobre ele, as espadas desembainhadas. Eram muitos os que queriam vingar o assassinato do duque de Orléans. Fazia doze anos que ele acontecera, mas aquele tempo todo a amargura persistira. Aquilo estivera no próprio cerne do ódio da facção de Orléans pela de Borgonha. Agora, o homem que instigara aquele assassinato tornava-se vítima também.
Quando a notícia fora levada a Filipe, ele ficara aturdido. Seu grande e poderoso pai, morto numa ponte depois de ter sido atraído a um encontro com o delfim e ali abominavelmente assassinado.
Ele ouvira a descrição do que acontecera com um ódio cego no coração.
- Eles tiraram as roupas deles, senhor - disseram a ele -, e planejavam atirar o corpo no rio.
Filipe cerrara os punhos com raiva. Eles deveriam pagar por aquilo. Maldito fosse o povo de Armagnac! Maldito fosse o povo de Orléans! Maldito fosse o delfim!
- Foram impedidos de fazer isso, senhor duque - disseram-lhe. - Um dos moradores de Montereau interveio. Ele vestiu a camisa e o calção no duque e levou-o para a igreja de NotreDame.
- Malditos, malditos, malditos sejam! - bradara o duque. A única maneira pela qual ele podia suportar a dor era alimentando a raiva.
Michelle, ouvindo o mensageiro retirar-se e percebendo que o homem levara más notícias, fora procurar o marido. Olhara para ele, horrorizada, e ele vociferara:
- Seu irmão matou meu pai!
- Não! - a mão dela fora levada aos lábios. Estava tremendo.
- Ele o atraiu para a morte. Eles deveriam conversar sobre a paz, e quando meu pai chegou eles caíram sobre ele e o assassinaram.
- Carlos... Carlos, não - murmurara ela.
- Sim, Carlos, o nosso pobre e ineficiente delfim... Ele só serve para esfaquear homens valentes pelas costas.
Ela virara as costas para ele e enterrara o rosto nas mãos. Ele colocara as mãos sobre os ombros dela.
- Michelle - dissera ele -, tenho ódio de seu irmão. É estranho eu estar apaixonado pela irmã dele.
- Mas isso... - dissera ela.
Filipe a atraíra para ele e a apertara nos braços. -Mesmo isso... não faz diferença alguma. Eu desprezo seu pai. Tenho ódio do seu irmão... mas eu te amo, Michelle.
- Neste caso - dissera ela -, poderemos enfrentar o que vier.
Ele fizera um gesto afirmativo com a cabeça. Mantivera Michelle envolta em seus braços para que ela não visse o desejo de vingança existente em seus olhos.
Não se deveria deixar que o delfim pensasse que podia tratar Borgonha daquela maneira. Ah, sim, Borgonha assassinara Orléans. Filipe sabia disso. Borgonha eliminara aquele traidor devasso que pulara para a cama da rainha assim que o rei fora mandado para o palácio St. Pol, que desviara o tesouro do rei para seus cofres, que não fizera esforço algum para governar, embora tivesse sido nomeado regente a pedido da rainha, de quem na época o rei fazia todas as vontades. Eliminar Orléans tinha sido um serviço para o Estado. Orléans e sua amante, a rainha, tinham internado as crianças no palácio St. Pol, onde viviam como habitantes dos bordéis de Paris... a sua delicada Michelle, Katherine, rainha da Inglaterra, e Marie, agora no convento. Sim, seu pai cumprira com o seu dever para com a nação quando fizera com que Orléans fosse eliminado.
Era diferente convocar o poderoso duque de Borgonha para um encontro com o delfim e, lá, matá-lo a sangue-frio.
Quando a irmã de Michelle, Katherine, se casara com o Conquistador, quando Henrique declarara que seria o rei da França após a morte do louco e velho rei, o novo duque de Borgonha decidira que quem fosse inimigo do delfim era seu amigo.
Assim, tornara-se possível uma ligação mais estreita com os ingleses.
Agora que o rei Henrique estava morto, Bedford iria proclamar Henrique VI rei da França e da Inglaterra. Era inevitável e bem possível que o desgraçado do delfim tentasse levantar forças contra os ingleses. Suas escaramuças eram motivo de zombaria. Bedford era um grande soldado - não exatamente como o irmão fora, era verdade, mas temível. O delfim não tornaria óbvio demais, para Bedford, que gostaria de ser seu amigo.
Por exemplo, ele não foi ao enterro do rei e à proclamação do novo. Seria pedir demais dele. Filipe não queria ser visto ocupando o segundo plano em relação a Bedford. Mas ele admirava Bedford; seria um aliado mais leal do que o assassino delfim, que sem dúvida agora estava se intitulando rei da França.
Borgonha ficou surpreso, um dia, ao saber que Bedford fora visitálo. Olhou por uma janela e viu o duque lá embaixo. Ele devia ter chegado com um máximo de informalidade. Estava conversando com alguém, e parecia animado e contente.
Borgonha percebeu, então, que quem estava com Bedford era Anne. Ele estudou a irmã como se a estivesse vendo pela primeira vez. Ela tem um ar nobre, pensou ele; e é graciosa. Veio-lhe a ideia de que Bedford parecia pensar da mesma forma. Ele conversava com Anne com o máximo de respeito e, de algum modo, dava a impressão de que a considerava uma dama de grande classe.
Aquilo agradou Borgonha. Claro que Bedford devia pensar assim; mas Filipe não deveria se esquecer de que Bedford era um homem muito importante. Muita gente diria que era o homem mais importante da França naquele momento.
Anne estava com dezoito anos. Tinha havido ofertas de casamento, mas o pai deles sempre estivera muito ocupado com outros assuntos para dar a eles a consideração que mereciam. Há tempo, costumava ele dizer; e como Anne mostrava pouco entusiasmo por elas, tinham sido postas de lado. Filipe achava que agora era seu dever encontrar um bom casamento para Anne.
Desceu para ir cumprimentar Bedford, tentando esconder a desconfiança enquanto se perguntava o que teria levado o regente até ele daquela maneira informal.
- Há muito que eu queria falar com o senhor - disse Bedford. - Há vários assuntos de importância que quero discutir.
Anne inclinou a cabeça em direção a Bedford e, sorrindo para ele, disse que iria deixá-lo a sós com o duque.
Os olhos de Bedford a seguiram, enquanto ela desaparecia.
- Sua irmã é uma mulher encantadora e graciosa - disse ele.
- Ah, sim, eu concordo. Bondade sua vir me visitar. Já pegaram seu cavalo? Trouxe amigos com o senhor? Já foi atendido?
- Só um grupo de seis pessoas. Elas estão nos estábulos, agora. Não creio que meus assuntos vão demorar.
- Neste caso, vamos para dentro. Precisa comer e beber alguma coisa.
- Obrigado, senhor.
- Está vindo de Paris?
Bedford confirmou com um gesto da cabeça.
- Por favor, beba um vinho, agora. Espero que almoce conosco.
- vou tomar um pouco de vinho. Depois, partirei. Quero estar a caminho antes do anoitecer.
O vinho foi trazido e, olhando para dentro da taça, Bedford começou:
- Gostaria de pedir um conselho seu. Este país está num estado lastimável.
- O país participou de uma guerra violenta... e perdeu disse Borgonha.
- Às vezes me pergunto se algum país realmente ganha alguma vez. A guerra traz privações.
- Foi uma pena seu irmão... e aqueles que vieram antes dele não terem pensado nisso antes de entrarem em guerra contra a França.
- Infelizmente, não eram só os ingleses que estavam guerreando na França.
O duque confirmou, sério, com um gesto da cabeça.
- Queremos desfazer os efeitos da guerra o mais depressa que pudermos. Quero trazer a prosperidade de volta.
- Os senhores ainda têm de enfrentar o delfim, que se intitula rei Carlos VII.
A fisionomia de Borgonha se fechou quando Bedford mencionou o nome do delfim, e Bedford observou isso com satisfação. Existia, ali, um ódio que jamais acabaria. Bedford gostara muito do que acontecera na ponte Montereau; aquilo fizera de Borgonha um inimigo do delfim para sempre, e qualquer inimigo do delfim deveria ser um amigo em potencial para os ingleses.
- Nós cuidaremos dele, senhor duque. Ele é irritante, nada mais. Não tenho muito respeito por esse rapaz.
Borgonha ficou calado.
- A moeda desvalorizou-se muito - prosseguiu Bedford.
- Quero estimular o intercâmbio. Rouen foi tristemente danificada.
- O cerco praticamente a destruiu. Meu irmão tinha um profundo respeito pelos cidadãos de Rouen.
- Eu sei. Eles teriam preferido pôr fogo na cidade a entregá-la.
- E ele foi leniente para com eles. Como o grande conquistador que era, ele sempre foi misericordioso na vitória.
- E o que o senhor pretende de mim?
- Conselho... e ajuda.
Fez-se silêncio. Borgonha não tinha nada de ingénuo. Sabia qual era o motivo para aquela lisonjeira demonstração de deferência. Bedford queria estar certo de sua amizade. E no entanto, os dois respeitavam um ao outro. Tinham de fazê-lo: Bedford, ir até lá e falar quase que com humildade; e Borgonha, despir-se de sua arrogante indiferença o bastante para ouvir.
- Quero fazer com que o povo de Rouen saiba que pretendo reativar o comércio da lã. Quero torná-los prósperos outra vez.
- Esta é a melhor maneira de conquistar-lhes a simpatia, senhor.
- Achei que o senhor iria concordar. Desejo sua ajuda para fazer isso. Quero que me assessore. O senhor conhece esses franceses melhor do que jamais poderei conhecê-los. Um país próspero e um fim da luta... isso será tão bom para a Borgonha quanto para a França.
- É verdade.
- Então, reformar a moeda, reavivar o comércio da lã. Depois, há os tecelãos de seda de Paris...
- O senhor não fala como um soldado.
- Nada disso, para mim será um prazer acabar com as guerras. O senhor também gostaria disso? Viver em paz e com prosperidade... não se deve preferir isso às devastações da guerra?
- Se puder ser conseguido com honra, sem dúvida alguma.
- Quero que me ajude a conseguir isso com honra. Borgonha ficou satisfeito e não tentou disfarçar.
- O que o senhor diz é sensato... senhor regente - disse ele, e Bedford sentiu que estava se saindo muito bem.
- Há mais outro assunto - disse ele. - Sua irmã. Borgonha semicerrou os olhos e olhou para Bedford com um
ar um tanto sardónico. Ele agora compreendia o significado daquela demonstração de amizade.
- Eu a vi poucas vezes, muito poucas. Mas foi o suficiente. Ela me impressiona bastante. Talvez" eu seja um sentimental. Meu irmão era a mesma coisa. Bastou olhar para Katherine, e ficou apaixonado por ela.
Borgonha sorriu, mas não foi um sorriso desagradável.
- Eu penso, senhor duque, que ele estava mais do que um pouco apaixonado pela coroa da França.
- Nisso o senhor fala a verdade. Mas ele gostava muito de Katherine. Dizia que era o homem de mais sorte do mundo porque iria ter as duas... a coroa, e Katherine. E permita que lhe diga uma coisa, senhor duque: se o rei da França não tivesse tido filha alguma, ainda assim meu irmão teria conquistado a coroa da França. Não, bastou olhar para Katherine, e ele se apaixonou por ela. É assim que me sinto com relação à sua bonita irmã.
- Tal como Katherine, minha irmã tem muito a recomendá-la.
- Meu irmão tinha uma coroa a oferecer a Katherine. Ela agora é a rainha da Inglaterra porque se casou com meu irmão. Não posso oferecer uma coroa à sua irmã, mas poderei dar a ela quase tudo o mais que ela possa desejar.
- É possível que ela não o deseje, senhor. Já pensou nisso?
- Já, sim - disse Bedford -, e tão grande é a minha estima por ela, que eu não iria querer que ela fosse obrigada a um casamento que não lhe agradasse.
- O senhor é um pretendente galante, senhor regente.
- Eu só penso nela. Meu irmão era um homem simples, e eu também. Talvez me falte, como faltava a ele, a capacidade de fazer uma corte cheia de rapapés, mas mesmo assim meu coração está resolvido, e meus sentimentos são profundos.
- Neste caso, quer me parecer que o senhor aceitaria minha irmã sem um grande dote.
Apenas um instante de hesitação, e então Bedford disse:
- Eu não exigiria o que a grande Casa de Borgonha não pudesse dar, mas conhecendo suas posses e seu poder, duvido que ela desejasse que uma de suas filhas fosse mandada para viver com um marido como uma mulher de berço humilde.
Borgonha começou a rir.
- Já conversou com minha irmã? - perguntou ele. Bedford abanou a cabeça, e pareceu chocado.
- Senhor duque, estou surpreso com o fato de o senhor poder sugerir que eu seria capaz de tal indiscrição.
- Nada disso, não pensei que fosse, porque acho que o senhor não iria querer me desbancar.
- Esta é a última coisa que eu iria querer.
Borgonha assentiu com um gesto de cabeça. Aquilo tudo fazia sentido. Consolidar a amizade com Borgonha. Era a maneira mais inteligente de Bedford agir. O respeito dele pelo regente sempre existira; e estava aumentando depressa.
E seria sensato. Por Deus, pensou Borgonha, se eu ficasse do lado dos ingleses, que chance teria contra nós aquele monstrinho miserável que se intitula rei da França?
Ele iria vê-lo humilhado. Seria um choque para o jovem tolo quando soubesse que a irmã de Borgonha estava noiva do regente Bedford.
- O senhor aumenta minhas esperanças, senhor duque estava dizendo Bedford.
- Essas questões não podem ser decididas num instante.
- Não, mas vejo que o senhor está disposto a pensar no caso.
- Vai depender de minha irmã Anne. Não sei o que ela pensa dos ingleses.
- Ela pareceu pronta a demonstrar amizade para com este inglês.
Borgonha confirmou com um gesto de cabeça.
- Se o senhor desse seu consentimento - prosseguiu Bedford -, se pudéssemos chegar a algum entendimento que seja do agrado de nós dois, eu seria o mais feliz dos homens.
Estava claro que Borgonha não estava contrariado com a ideia. Chegara a hora para John fazer alusão ao assunto que era o verdadeiro motivo de ele procurar aquela entrevista com o duque de Borgonha.
- Recebi notícias perturbadoras sobre meu irmão Humphrey - começou ele.
Borgonha ergueu as sobrancelhas. Ficara claramente surpreso com a mudança que houvera na conversa.
- Desculpe por sobrecarregá-lo com esses assuntos. Mas a dama em questão tem ligações com o senhor... por assim dizer... e este caso me preocupa muito. O senhor sabe que meu irmão é de natureza um tanto impetuosa. Isso era uma fonte de muita aflição para o meu irmão Henrique. Humphrey age primeiro e depois enfrenta as consequências. Estas nem sempre são agradáveis. Para dizer a verdade, ele fez um casamento ridículo... na verdade, não foi bem um casamento... mas pode ser inconveniente. É por causa da mulher, entende?
- Que mulher é essa? Eu a conheço?
- Bem... na verdade, ela é sua parenta. Eu me refiro a Jacqueline da Baviera.
O duque ficou pasmo.
- Casada! - bradou ele. - O senhor disse... casada com o seu irmão Humphrey?
- Isso mesmo.
- Isso é um absurdo. Ela está casada com Brabant, e como pode estar casada com seu irmão Gloucester?
- Parece que houve uma espécie de anulação. Borgonha parecia que ia agredir o visitante. Estava claro que
ficara profundamente chocado. John se congratulou por tê-lo deixado de bom humor antes de dar aquela notícia.
- Anulação! - bradou Borgonha. - Como isso poderia ter acontecido?
Ele arranjara o casamento entre seu primo de Brabant e Jacqueline, que também era sua prima, e estava de olho naqueles importantes territórios, Hainault, Holanda e Zelândia. Não seria difícil, para o poderoso Borgonha, arrancá-los do ex-bispo de Liège, e ele pensara que em breve eles voltariam para onde deviam estar - ostensivamente com Brabant, o que significava com Borgonha.
Bedford ficou ansioso por acalmá-lo.
- Não se trata de uma anulação de verdade. Foi dada por Benedito XIII.
Borgonha ficou aliviado.
- Ah, então não foi um casamento de verdade - disse ele.
- O senhor pode compreender a minha aflição - disse John.
- É evidente que seu irmão está de olho nas terras dela. O que ele se propõe a fazer? Tentar ocupá-las?
- É muito provável que ele planeje fazer isso. Mas se vai, ou não, tornar isso realidade, quem sabe? Ele se cansa facilmente de seus projetos.
Borgonha estava nitidamente perturbado.
- vou achar um meio de lidar com ele - disse Bedford. Estou certo de que posso confiar na sua ajuda.
- Pode estar certo de que não permitirei que meu primo seja tratado dessa maneira. Essas terras vieram para ele com a esposa.
- Foi uma pena Brabant tê-las transferido de forma tão insensata para o antigo bispo de Liège.
- Tal como seu irmão, ele nem sempre é sensato. Os dois olharam firme um para o outro.
- Vamos saber como tratar desse caso - disse Bedford.
Enquanto cavalgava de volta, ele se congratulava pela sua esperteza. Ele mesmo dera a notícia da loucura de Gloucester a Borgonha, porque não teria sido bom o duque sabê-la por outra fonte, e Bedford acreditava ter-se saído muito bem. Aquilo poderia, até, ter fortalecido o elo entre ele e Filipe de Borgonha.
ÁVIDA em Windsor era agradável. Katherine sabia que não poderia continuar assim. Não iriam deixá-la ficar com o filho para ela e viver livre das cerimónias. Já houvera uma ocasião em que ela tivera de levar Henrique a Londres para uma reunião do Parlamento. Fora muito irónico ter o rei presente, depois de ter chegado no colo da mãe, ali deitado olhando com interesse para os que o cercavam, rindo de repente como se achasse a sessão ridícula e depois caindo no sono como se, no final das contas, achasse que ela não merecia mais atenção.
O povo ovacionara muito enquanto Katherine passara pelas ruas sentada numa espécie de trono móvel puxado por cavalos brancos. Depois, ela ficara sentada com o filhinho no colo, enquanto os lordes se aproximavam, um a um, para saudá-lo, e todos diziam que ele se comportava com a seriedade adequada, o que era um indício de sabedoria futura.
Mas Katherine estava muito contente por ter voltado para Windsor!
Duas amas haviam chegado. A primeira fora Joan Astley, e o Parlamento concordara que ela deveria receber um salário de quarenta libras por ano, o que era mais ou menos o mesmo que ganhava um assessor privado, porque cuidar do rei da Inglaterra era uma tarefa da máxima importância. Ela se dedicara logo a Henrique e ele gostara dela de imediato.
E então havia Dame Alice Butler, a quem foram atribuídos o mesmo salário de Joan Astley e os mesmos privilégios, inclusive a permissão para castigar o infante real, caso necessário. Katherine dava graças por essas ocasiões não serem frequentes, porque Henrique era um menino bom - raramente chorava e só fazia isso quando estava com fome ou cansado; era um menino alegre e interessado em tudo que o cercava.
Katherine sentia que podia, sem perigo, deixar o filho aos cuidados daquelas duas mulheres.
Ávida em Windsor assemelhava-se à de uma mansão de campo. Não eram muitos os visitantes vindos da corte. A rainha dera a entender que queria viver com tranquilidade durante algum tempo, já que continuava de luto pela morte do marido, e sua vontade, até ali, tinha sido respeitada, mas ela temia que com o tempo a vida teria de mudar.
Um dia, no entanto, James I da Escócia chegou para morar lá. Katherine ouvira falar muito nele em Windsor, porque o castelo tinha sido a principal residência dele fazia muitos anos. Houvera época em que ele ficara alojado na Torre, e mais tarde acompanhara Henrique à França; mas, ao mesmo tempo, ele era prisioneiro da Inglaterra e continuaria assim até que seu povo pagasse o resgate exigido para a sua libertação.
Katherine esperara um jovem mal-humorado. Afinal, era de esperar-se que ele guardasse um ressentimento para com um povo que o prendia havia tanto tempo contra a sua vontade. Ela teve uma surpresa agradável quando os dois se conheceram. Ele era uns sete anos mais velho do que ela - bem-apessoado, espirituoso, gostava muito de conversar e era um homem pronto a ver mais de um lado de um problema; na verdade, era uma companhia muito agradável.
Seguiram-se deliciosas sessões em que ela conversava com ele, com o capelão dele, Thomas de Myrton, e com outros membros de sua equipe. À noite, havia música e dança.
Ele gostava de falar com ela sobre o passado e imaginar como seria o futuro. Ele se lembrava um pouco da Escócia, seu país natal, embora tivesse saído de lá quanto tinha dez anos e nunca mais tivesse voltado.
- Nem voltarei - dizia ele - enquanto não pagarem o resgate.
Eles tinham muito em comum, porque tinham vivido infâncias estranhas. Os dois tinham tido um pai que sofrera de deficiências, mentais ou físicas, embora o rei Roberto da Escócia não fosse louco, como Carlos VI tinha sido.
James e Katherine concordavam que nascer filho de rei era nascer para uma vida arriscada.
Os dois passeavam juntos a cavalo na imponente floresta de Windsor; caminhavam pelos jardins do castelo, e ela falava com ele sobre aquela época terrível no palácio St. Pol e ele lhe falava sobre a infância em Dumfermline e Inverkeithing. Os temores dele tinham sido menos aterrorizadores do que os dela, porque ele tivera uma mãe saudável e boa; mas ele, por sua vez, tinha corrido mais perigo do que ela, porque ela era apenas uma menina - a ser usada, mais tarde, como importante mercadoria de barganha, era verdade, mas que ainda criança pouca importância tinha.
- Foi quando minha mãe morreu que corri perigo - disse ele. - Meu irmão mais velho foi assassinado pelo meu tio, e meu pai, temendo um destino igual para mim, resolveu mandar-me para a França. Mas os ingleses interceptaram o navio em que eu viajava e me trouxeram à presença do rei... pai do seu marido... e desde então sou um refém.
- Você não parece insatisfeito - comentou ela. Ele deu de ombros.
- Aconteceu quando eu era criança. Dez anos de idade. Na época, parecia uma aventura. De certa maneira, desde então tem parecido uma aventura.
Claro que ele tinha sido tratado com honrarias. Ele era um rei, muito embora um rei prisioneiro. Em geral, os reis respeitavam os reis. Eles nunca sabiam quando eles próprios poderiam estar precisando de respeito. A educação de James não fora negligenciada; ele se destacara em esportes másculos; passara a gostar muito de literatura e estava escrevendo um poema, que estava chamando de The Kingis Quair, e de vez em quando lia trechos para Katherine.
Um dia, quando eles estavam sentados conversando, ouviram-se sons da chegada de alguém no castelo, e olhando para fora, eles viram uma jovem cavalgando à frente de um pequeno grupo de criados.
- Visitas - bradou Katherine.
Era sempre agradável ter visitantes, desde que não fossem homens importantes da corte que tivessem ido fazer exigências.
- Que mulher bonita, de chamar atenção - disse James. Katherine concordou.
Os dois desceram para o pátio, a fim de receber os recémchegados. Katherine reconheceu logo a jovem como sendo Lady Jane Beaufort, filha do conde de Somerset. Katherine abraçou-a e depois a apresentou a James.
Ele fez uma mesura acentuada, e Katherine achou interessante ver que ele mal podia tirar os olhos de Lady Jane.
Durante as semanas seguintes, Jane participou dos passeios a cavalo e das conversas, e parecia não ter pressa em deixar o castelo.
Eles estavam apaixonados. Katherine gostaria de poder ajudá-los. Sabia que queriam ficar a sós, mas ela, como rainha, não podia permitir qualquer ato de impropriedade em sua presença. Certa ocasião, saiu a cavalo com eles e, de propósito, perdeu-se deles. Os cavalariços ficaram surpresos ao vê-la voltar sozinha, e ela disse que se perdera do grupo; e eles, acostumados às suas excentricidades, não pensaram mais no caso. Então, ela perambulou pelos jardins e sentou-se num banco rústico que ficava protegido do castelo por arbustos.
Enquanto estava sentada, ouviu o som de passos e, com um misto de surpresa e satisfação, viu Owen Tudor indo em sua direção.
Parecia totalmente embaraçado, e ela bradou:
- É um prazer vê-lo, Owen TUdor. Por favor, sente-se ao meu lado. Eu gostaria de conversar com você.
Ele hesitou. Sempre ficava tímido quando ela se dirigia a ele.
Não podia se esquecer do grande fosso que separava uma rainha de um humilde escudeiro.
- Você acha que isso não é... comme ilfaut... não é? Não está certo, partindo de uma rainha. Mas eu faço tanta coisa que não fica bem numa rainha! Devo lhe dizer que acabo de me perder... de propósito... do rei da Escócia e de Lady Jane. O que acha deles, Owen Tudor? Não formam um belo par? Não são muito bonitos... e não é maravilhoso estar apaixonados como eles estão?
Owen ficou calado, de língua presa na presença de sua rainha.
- Claro que ele é um rei - continuou Katherine. - Mas um rei no exílio. E ela tem sangue real, sabe, Owen? O pai dela é John Beaufort, conde de Somerset, filho de John de Gaunt com sua última duquesa. Ela é aparentada de Ricardo II através da mãe. Não vejo por que não poderia casar-se com um membro da casa real da Escócia. Você vê, Owen?
- Não, majestade.
Ela virou-se para ele de repente.
- Na verdade, Owen, não vejo por que alguma coisa deveria separar aqueles que amam. Pobre James, ele tem conversado muito comigo. Ele teve uma infância triste... exatamente como eu. Você devia dar graças, Owen, por não ter nascido de sangue real. James adorava a mãe dele. Acho que ele não tinha muita certeza quanto ao pai. Mesmo assim, a mãe estava sempre ali, para cuidar dele... até morrer. Depois, o irmão dele foi assassinado pelo tio malvado. Por que será que é tão comum os tios serem malvados? Talvez seja por ambição, e em geral eles são irmãos mais moços que, ao removerem uma pessoa aqui e uma outra ali, poderiam chegar ao trono. As vezes me pergunto se não é uma tolice sonhar com uma coroa, Owen. Você acha que ela traz felicidade? Acha, Owen Tudor?
- Não, majestade. Para mim, raramente ela traz felicidade.
- Ao meu marido, trouxe felicidade... Eu acho que ele amava a coroa dele acima de tudo. Os homens a amam desse jeito, sabe, Owen? E é por isso que aqueles que não têm esperança de conseguir uma coroa ou o poder são mais felizes do que os que têm. Você deve ser um homem feliz, Owen Tudor.
Eu sou, majestade. Especialmente por merecer suas boas
graças dessa maneira. Ela deu uma risada.
- Você as tem, Owen. Elas serão sempre suas. - Lançoulhe um olhar um pouco malicioso. - A menos, é claro, que você faça alguma coisa para perdê-las.
- Lutarei de todo o meu coração para mante-las - replicou ele.
- De todo o meu coração, creio que lutará mesmo. Mas o que você acha que acontecerá ao nosso amante, Owen? Quisera Deus que eu pudesse mandá-lo de volta para o reino dele com a esposa escolhida por ele.
- É bem possível que o povo dele consiga o dinheiro do resgate e ele vá para lá.
- Ó Owen, como você devia sentir-se feliz nas suas montanhas galesas, quando era criança!
- Sempre havia o temor, majestade. Lembre-se de que meu pai estava no exílio.
- Seu pai... sim... o fora-da-lei acusado de assassinato. Parece que todos nós somos vítimas do nosso pai. Como está agradável aqui! Espero demorar-me bastante em Windsor. É o meu lugar preferido. Eles vão querer que meu filho assuma seus deveres em breve. Disso, eu não duvido. Ah, você está sorrindo, Owen. Ele não passa de uma criancinha. Pense na carga que há sobre aquela cabecinha! Um garotinho... usando uma coroa. Eles tentam forçar o orbe e o cetro naquelas mãozinhas rechonchudas. Eu lhe digo, Owen, ele deixa todos confusos ao tentar comê-los.
Ela soltou uma risada, e ele a acompanhou, e o som da risada dos dois lembrou-a da impropriedade de sentar-se nos jardins conversando e rindo com um de seus escudeiros. Se fossem vistos...
Ela queria fazer um gesto de desprezo. Pouco ligava para as regras deles. Faria o que quisesse, e se quisesse estar com Owen, nada a impediria.
Mas ele se sentia constrangido, e ela se lembrou, de repente, de que a conduta dela talvez o colocasse num perigo maior do que aquele que ela mesma estaria correndo.
Aquilo a trouxe um pouco à realidade. Ela se levantou e estendeu-lhe a mão. Ele a beijou e soltou-a depressa.
- Pobre Owen - murmurou ela, e percebeu que ele estava muito mais cônscio do perigo do que ela.
Mesmo assim, ela conversaria com quem quer que desejasse, e naquele momento estava certa de que sua conduta não fora observada. Aquilo era uma das bênçãos de viver tranquila.
- Quero ficar muito, muito tempo em Windsor - disse ela, com fervor.
E então, a passos rápidos, entrou no castelo.
James e Jane estavam sentados no banco no vão da janela. Ele lia para ela trechos do seu fângis Quair.
Katherine entrou em silêncio e ficou sentada, observando-os, por um certo tempo. Havia em torno deles uma aura de felicidade. Que magia, estar apaixonado! com ela e Henrique nunca fora bem daquela maneira. Ele gostara dela e ela gostara dele. Aquilo era diferente. Não se tratava de um amor porque seria proveitoso que assim fosse. Mas sim um amor que se aproximava sem ser solicitado e pegava duas pessoas e as mantinha juntas. Era a coisa mais bela do mundo. Katherine se perguntou se um dia aquilo lhe aconteceria, e algo lhe disse que sim.
Houve um arranhar na porta, e Thomas de Myrton entrou. Era fácil ver que algo importante acontecera.
- Entre, Thomas, e conte-nos a sua nova. Vejo que está ansioso para isso - disse Katherine.
- Minhas senhoras, meu senhor - disse Thomas -, devo partir agora mesmo para Pontefract.
James se levantara.
- Continue, Thomas - ordenou ele.
- Acho que desta vez vai haver um acordo. Talvez, quem sabe, o senhor muito em breve possa voltar para seu país.
Jane esticou uma das mãos, e James a tomou e segurou-a com firmeza.
- Parece que finalmente seus conterrâneos estão dispostos a concordar com as condições.
- Então eles vão pagar o resgate?
Há mais do que o resgate... sessenta mil marcos...
- É muito dinheiro - disse Jane.
- Por um rei? - perguntou Katherine.
- Todas as tropas escocesas deverão ser retiradas de solo
francês.
- E eles estão dispostos a concordar com isso?
- Parece que sim, majestade. De qualquer forma, ficarei sabendo de mais detalhes em Pontefract. É bem possível que isso seja o fim de seu cativeiro.
- Sem dúvida vão querer arranjar um casamento para mim
- disse James. - Thomas, você tem de dizer a eles que eu já escolhi.
Thomas confirmou com um gesto da cabeça.
- vou dizer - disse ele. - E, majestade, até a minha volta, peço-lhe que não faça nada de imprudente. Veremos se podemos concluir o caso de modo a satisfazer a todos
os interessados. Agora peço sua licença para me retirar. Tenho de partir imediatamente.
Os três falaram juntos, agitados.
- Não vou sem Jane - declarou James.
- Não deixarei que você vá - respondeu Jane. Katherine ouvia, ansiosa. Perguntava a si mesma o que ela faria naquelas circunstâncias.
Faria uma careta para todos. Iria se casar por amor; porque vendo aqueles dois juntos e pensando na vida de seus pais e em seu curto casamento, decidira que valia a pena perder coroas e até mesmo o mundo - em nome do amor.
Foi grande a agitação em Wmdsor quando o mensageiro voltou de Pontefract. O tratado entre escoceses e ingleses fora conseguido.
O rei da Escócia seria solto - depois de cerca de vinte anos - para voltar para o seu país. Seriam pagos sessenta mil marcos pela sua liberação, em parcelas de dez mil por ano, e seria necessário entregar reféns como garantia de que não haveria falta de pagamento. Todas as tropas escocesas deixariam a França. Isso foi prometido, e depois vinha a melhor de todas as cláusulas: o rei James teria de casar-se com uma dama inglesa de sangue nobre.
- Há momentos - disse Katherine quando ouviu as condições - em que parece que Deus está do nosso lado. Aí está a sua dama inglesa, James. Não acho que haverá a menor relutância da parte dela.
Foi um fim glorioso para um romance feliz.
Chegaram mensageiros a Windsor. Dessa vez, levavam despachos para a rainha.
O rei deveria comparecer perante o Parlamento, e a mãe dele deveria levá-lo imediatamente a Londres.
- Bem - disse Katherine -, acho que era demais esperar que nos deixassem em paz por muito tempo.
A convocação não deveria ser desobedecida, e ela e Henrique, com uma comitiva muito grande e muita cerimónia - que sempre deveria acompanhar a criancinha para onde quer que ela fosse -, partiram para Londres.
Na noite de sábado eles chegaram à estalagem em Staines, onde deveriam passar a noite antes de fazerem sua entrada em Londres. Na manhã de domingo, eles se prepararam para partir, e multidões saíram para vê-los.
Henrique estava de mau humor. A multidão já não o interessava. Ele gritava até o rosto ficar roxo, e todos temiam que algum mal lhe acontecesse. Tentou atirar-se dos braços da mãe e comportou-se de uma forma tão diferente da sua placidez de costume que ficou decidido que seria levado de volta à estalagem. E assim, a criança que protestava foi levada de volta e ali ficou deitada o dia inteiro, irascível.
No dia seguinte, uma segunda-feira, tornaram a partir. Henrique voltara ao seu normal, sorrindo, fazendo muxoxos, mostrando interesse por tudo à sua volta.
Ele vai ser muito piedoso, profetizou o povo. Tão criança, e já mostra não aprovar que se viaje num domingo.
Assim, naquela tenra idade, Henrique já adquirira a reputação de piedoso.
Na segunda-feira, eles chegaram a Kingston e, na terça, por etapas, a Kennington, e na quarta ele entrou em Londres, sentado no colo da mãe, e parecia que Londres inteira saíra para ver seu adorável reizinho.
Em Westminster, ele compareceu ao Parlamento e foi mostrado aos presentes, que ficaram satisfeitos com seu progresso, e ficou decidido que ele continuaria sob os cuidados da mãe por mais algum tempo.
Katherine descansou um pouco no Palácio de Eltham, e de lá seguiu para o seu castelo em Hertford. Era agradável estar num castelo que lhe pertencia, porque ele chegara até ela como chegara à rainha de seu sogro, e no devido tempo passaria à rainha do pequenino Henrique quando ele tivesse uma, porque o castelo fora dado a John de Gaunt e, assim, passara para o lado dele da família.
Katherine resolveu passar o Natal ali, e mandou um recado para James perguntando-lhe se queria juntar-se a ela.
"Eu já convidei Ladyjane Beaufort", disse ela. "Achei que você e ela devem ter muito o que conversar."
Os dois aceitaram, com sinceros agradecimentos.
Katherine pediu, também, que alguns de seus guardas pessoais fossem para Hertford e fez uma menção especial de que entre eles deveria estar o escudeiro Owen Tudor.
Foi um dia muito feliz, no mês de fevereiro do ano seguinte, quando James I da Escócia casou-se com Jane Beaufort, na igreja de St. Mary Overy em Southwark. Katherine insistiu em estar presente, porque sentia que tinha representado num papel importante naquele romance e estava muitíssimo satisfeita com o fato de o caso ter tido um final feliz. Ela jamais teria suportado se os amantes tivessem sido separados, mas é claro que eles nunca teriam permitido que isso acontecesse.
Foi um final de conto de fadas, e quando fora anunciado o decreto que dizia que o rei da Escócia deveria casar-se com uma nobre inglesa, ele bradara:
- com muito prazer, e eu já escolhi.
Claro que não poderia haver objeção alguma a um casamento com um membro dos nobres Beaufort... que tinham sangue real através de John de Gaunt, embora tivessem vindo ao mundo do outro lado da cerca. O que importava era que eles tinham sido legitimados depois e ocupavam cargos elevados no país. Além do mais, Jane era de sangue real por intermédio de sua mãe.
O conde de Somerset ficou encantado com o casamento da filha, e o tio dela, o bispo de Winchester, insistiu para que o banquete tivesse lugar em seu palácio, perto da igreja.
Foi um acontecimento glorioso, mas nada era mais esplêndido, concluiu Katherine, do que a felicidade estampada no rosto da noiva e do noivo.
No dia seguinte ao casamento, foi anunciado que dez mil marcos do resgate seriam perdoados a título de dote de Jane, e o casal ficou, então, livre para começar a viagem para a Escócia. Em Durham, os reféns teriam de ser entregues em mãos inglesas, mas parecia não haver dificuldade alguma quanto a isso.
Poucas semanas depois, Katherine despediu-se dos amigos.
Sabia que se sentiria muito sozinha sem eles, e quando cavalgou para Hertford, onde decidira descansar um pouco, ela escolheu Owen Tudor para cavalgar a seu lado.
- vou sentir uma falta enorme deles - disse ela. - Mas fico contente por ver a felicidade dos dois. O coração não fica alegre ao se ver um amor desses, Owen Tudor?
Ele respondeu com tranquilidade:
- Fica, majestade.
- Chegar a uma conclusão tão perfeita assim... foi disso que gostei. "Vossa Majestade tem de se casar com uma nobre inglesa", disseram eles, e lá estava ela... ela já estava lá. Que sorte a deles, Owen; se é que se pode chamar de homem de sorte quem passou a maior parte da vida preso.
- Ele agora não tem nada a ver com a prisão, majestade.
- Sim, ele conquista o seu lugar de direito no trono, e tem sua amada ao lado. Você não acha que o amor é a melhor coisa que pode acontecer a um homem e uma mulher, Owen Tudor?
- Eu... não sei dizer, majestade.
- Eu sei... e vou dizer. É, Owen Tudor. É, sim!
Os olhos dos dois se encontraram, e ela sentiu uma grande felicidade que ia tomando conta dela.
- Eles puderam se casar - disse Owen. - Eles são realmente afortunados.
- O final feliz - ponderou a rainha. - Não... final, não... O casamento é apenas o começo. Mas eles estão juntos... e aconteça o que acontecer, poderá ser vencido... com uma pessoa amada para participar. Você acha que eu me comporto de maneira estranha... para uma rainha? - acrescentou ela.
- Majestade, acho que nunca houve uma rainha como a senhora.
Ela lhe deu as costas. O caso de amor de James e Jane a af etara profundamente. Fizera com que ela visse aquilo que nunca ousara olhar muito de perto antes.
UMA CERIMÓNIA muito importante estava acontecendo na cidade de Troyes. John, duque de Bedford, regente da França, estava se casando com Anne de Borgonha, irmã do importante duque, e uma aliança daquelas não podia deixar de provocar especulações não apenas em toda a França, mas também na Inglaterra. Os ingleses acharam aquilo um golpe de mestre. Carlos da França achou aquilo desastroso. O velho duque de Borgonha jamais deveria ter sido assassinado na ponte em Montereau. Eram atos como aquele que marcavam o início de rixas que podiam durar séculos; e a França, naquele momento, estava precisando de todos os amigos que pudesse conseguir. Ter alienado Borgonha daquela maneira era um desastre de grandes proporções. E não apenas a França perderia a amizade de Borgonha: a Inglaterra iria ganhá-la.
O próprio John estava cheio de complacência. A conduta de Gloucester fora suficiente para alienar Borgonha por completo. Ele se regozijava consigo mesmo pelo fato de ter evitado aquilo por aquele brilhante golpe de génio. John era astuto demais para não perceber que o caso Gloucester ainda não estava encerrado. Seria um golpe de grandes proporções se seu irmão algum dia fosse louco o bastante para tentar recuperar Hainault, Holanda e Zelândia. No momento, ele era apenas uma ameaça. Queira Deus, pensou John, que continue apenas isso até que eu possa impedir essa loucura.
John era filósofo. A vida o tornara assim. Percebia que, numa situação arriscada como aquela em que se encontrava, só poderia dar um passo de cada vez. Era o que pretendia fazer. E o passo que estava dando agora era muito inteligente e feliz.
Ele olhou para Anne, que cavalgava a seu lado. A cerimónia acabara e eles estavam a caminho de Paris, onde o palácio das Tournelles fora preparado para recebê-los.
Anne era jovem e bonita; além do mais, era boa e delicada, bens ainda mais valiosos. Ela concordara placidamente com o casamento, o que mostrava não sentir antipatia por ele, e ele não achava que a concordância dela tivesse qualquer coisa a ver com política. Parecia não haver nenhuma razão válida para que Anne quisesse muito uma amizade entre Borgonha e a Inglaterra. Por isso, parecia provável que ela não achasse a pessoa dele desagradável.
Ele era bonito, dizia-se. Mas não era isso que se dizia muito a respeito de príncipes? Ele tinha um nariz belamente arqueado e um queixo bem definido, mas tinha tendência a engordar e a pele era morena demais, talvez resultado de muita exposição ao tempo. No entanto, ele tinha uma semelhança com o irmão Henrique, e achava que isso lhe era favorável.
Anne era muito mais moça do que ele, mas isso acontecia muito em casamentos como o deles.
Enquanto seguiam para Paris, ele quis assegurá-la de que seria um marido bom e fiel.
- Há uma certa surpresa, entre o povo, com relação ao nosso casamento - disse ele.
- Isso era de se esperar - respondeu ela.
- Inglaterra e Borgonha... num momento desses.
- Meu irmão não é amigo de Carlos da França.
- Não se poderia esperar que ele mostrasse amizade pelo assassino do irmão.
A fisionomia de Anne estava tristonha. Fora falta de tato ele ter-se referido ao crime. Afinal, a vítima também tinha sido pai de Anne.
- Desculpe - disse ele.
Ela olhou para ele com surpresa.
- Eu a fiz lembrar-se de seu pai - explicou ele. - Foi falta de tato de minha parte. Para você, foi um grande golpe perdê-lo.
- Assassinato é uma coisa terrível. Eu gostaria de que pudesse haver um fim para o derramamento de sangue.
- Haverá - prometeu John. - Meu propósito será tornar a França próspera outra vez, e isso só pode ser conseguido através da paz.
Ela voltou-se para sorrir para ele, que sentiu uma onda de prazer. Era muito bonita, e talvez pudesse vir a gostar dele.
Foi um homem feliz que entrou em Paris a cavalo. Aquele era um grande passo à frente. Entrar para a Casa de Borgonha pelo casamento com a irmã do duque, com um dote de 150 mil coroas de ouro e a promessa de que se Filipe morresse sem herdeiro homem, o condado de Artois seria dela! E ainda que Filipe tivesse um herdeiro, Anne deveria ter uma compensação de um milhão de coroas de ouro.
Um bom casamento. Um dote magnífico, uma mulher jovem e bonita - e o maior motivo para regozijo era a aliança com Borgonha.
O palácio era magnífico, e as festividades para comemorar o casamento deveriam ser do mesmo nível. Houve banquetes e bailes, mas o tempo todo John estava ciente de um constrangimento. Parecia difícil que todos - inclusive Anne - se esquecessem de que ele era o conquistador estrangeiro.
com o tempo, disse ele a si mesmo, isso será esquecido. Tempo? Quanto? E era suficientemente realista para saber que mesmo que mantivesse um controle firme do governo do país sempre haveria facções para se levantarem contra ele. Carlos não era um inimigo de se desprezar. Ele podia ser fraco, impetuoso, e muitas vezes negligente, mas os franceses ainda o consideravam seu verdadeiro rei e continuariam pensando isso - ele e seus herdeiros por séculos e séculos. A ocupação nunca era fácil.
Durante todas as comemorações, John esteve ciente de desconfianças: sabia que era vigiado furtivamente. Mas ele seria forte. Iria ser como Henrique teria sido. Henrique se casara com a princesa deles; ele fizera uma coisa que estava em segundo lugar em relação àquela: casara-se e entrara para a Casa de Borgonha.
John desejava poder estar certo do apoio deles. Queria, até, poder estar certo a respeito de Anne.
Ela era jovem, inexperiente, idealista, e ele estava gostando muito dela. Era dócil, ansiosa por agradá-lo, mas ele sentia que não a conhecia de verdade. Ele se perguntava o quanto Borgonha tivera de fazer para convencê-la a aceitar o casamento. Será que ele teria se dado a esse trabalho? Ah, sim, era claro que Borgonha considerava o casamento um meio de insultar Carlos VII, e naquele momento a amargura pelo assassinato de seu pai era o tema principal que lhe ocupava a mente.
Mas John tinha outras questões com que se ocupar além do casamento. Um soldado não podia dar muito valor a seus assuntos particulares, exceto quando estivessem intimamente ligados aos seus deveres. Aquele casamento era, naturalmente, uma parte muito importante deles. Mas, agora, tinha sido realizado. John deveria, sempre, tentar seguir o exemplo de Henrique. Henrique ficara encantado com Katherine, mas nunca teria tentado o casamento se ela não fosse filha do rei da França.
Mensageiros estavam sempre chegando a Lês Tournelles. John estava ansioso por saber como suas forças estavam se saindo em DOrsay, porque aquela cidade estava em estado de sítio havia mais de seis semanas e a teimosia dos habitantes o deixava irritado, porque significava gastar um número muito grande de homens e muita munição para manter o sítio.
Já era hora de DOrsay cair; ele garantiu a si mesmo que não devia demorar muito, e então pensou no cerco a Rouen, que causara a seu irmão tantas aflições. Mas acabara sendo vitorioso, e fora um fator decisivo para a vitória de Henrique. DOrsay não era tão importante quanto a outra, mas ao mesmo tempo John aguardava ansioso por notícias daquela cidade sitiada.
Enquanto ele pensava nisso chegou a notícia da rendição de DOrsay.
Anne estava com ele. Ele sorriu para ela.
- Finalmente - bradou ele. - Quem poderia pensar que uma cidade daquelas poderia resistir tanto tempo?
Ela lhe dirigiu um sorriso triste. Mais tarde, ele se lembrou daquele sorriso. Nem sempre era fácil lembrar que aquela gente que estava resistindo a ele era conterrânea dela.
Ele ficou na janela observando os prisioneiros de cabeça descoberta sendo levados para Paris. Eram os homens que tinham feito do cerco a DOrsay um problema tão dispendioso.
Anne estava a seu lado.
- Você parece triste - disse ele.
- Estava pensando naqueles homens. Para onde estão sendo levados?
- Para o Châtelet - respondeu ele.
- Presos - disse ela.
- O que você esperava que fossem, minha querida? Eles mataram meus soldados; lutaram contra mim.
- Em defesa da cidade deles - replicou ela. Ele suspirou.
- Foi uma loucura da parte deles. Se tivessem se rendido seis semanas antes, teriam poupado a nós e a si mesmos muito sofrimento. Têm de pagar pela loucura deles.
John girou sobre os calcanhares abruptamente e retirou-se.
Quando lhe pediram que desse a sentença para os prisioneiros, ele disse que deveria ser a morte. Os cidadãos da França deveriam aprender que não valia a pena reagir contra o regente e que castigos severos aguardavam aqueles que o fizessem; era a única maneira de desestimular os outros.
Havia tristeza na cidade de Paris. O povo não gostava daquelas execuções públicas. As pessoas tinham horror a ver seus compatriotas serem levados para a morte. Por que motivo? Porque tinham desafiado os usurpadores!
Na manhã do dia fixado para a execução, as ruas estavam desertas. Era melhor assim, pensou John, do que tê-las cheias de gente em volta do local da execução. Era um bom sinal. O povo podia estar carrancudo, mas estava resignado.
John acreditava que estava fazendo a coisa certa.
Anne foi falar com ele quando ele estava sentado à sua mesa na antecâmara. Ele se levantou e curvou-se.
- Quer falar comigo? - perguntou ele.
Quero. É a respeito dos prisioneiros.
Eles deverão ser executados hoje.
- John, por favor, não faça isso. Ele enterneceu-se.
- É preciso - explicou, delicado. - Eles são um exemplo, isso você tem de compreender. Não posso suportar muitos mais desses sítios despropositados. Eles sugam demais nossos recursos. Demoram muito. Não posso ter grandes quantidades de homens concentrados em torno de uma cidade porque os habitantes são muito teimosos e não cedem.
- Entenda, por favor, que eles estão apenas defendendo seus lares.
- Eles os teriam defendido melhor rendendo-se aos nossos soldados. Que bem eles proporcionaram? Fizeram com que os habitantes de sua cidade passassem fome; vão deixar suas mulheres sem marido e os filhos sem pai.
Ela se voltou apaixonadamente para ele.
- Meu senhor... perdoe-os.
- Perdoá-los! Você não deve estar falando sério.
- Estou - disse ela. - Eu lhe peço. Perdoe-os.
- Minha cara senhora, compreende o que isso significa? Perdoá-los seria aconselhar outros a fazerem o mesmo. Iam dizer que sou um fraco...
- Poderiam dizer que você é forte... Ele soltou uma risada.
- Nunca.
- Eu pensaria que isso era um sinal de fortaleza. Matá-los mostra que tem medo de que outros façam a mesma coisa.
Ela curvou a cabeça para esconder as lágrimas que havia nos olhos, e ele se viu tomado por uma repentina ternura.
- Você não compreende essas coisas - disse ele, delicado.
- Minha querida esposa, você tem de deixar que eu decida. Você é delicada demais, boa demais. Não compreende os perigos da guerra.
- Compreendo perfeitamente bem - replicou ela. - Sempre tem havido guerra... Guerra entre a minha casa e o povo de Armagnac... Guerra entre França e Inglaterra. Todo mundo neste país assolado pela guerra a conhece.
- Doce criatura, você deve deixar esses assuntos cruéis para os homens.
- A guerra sempre foi uma brincadeira de homens, não foi? Uma brincadeira... sim, é isso que ela é. É uma brincadeira, mesmo. Vocês brincam com homens de verdade como brincariam com soldados de brinquedo. Vocês se esquecem de que eles não são soldados de brinquedo... são de carne e osso.
John tentou segurar-lhe a mão, mas ela a retraiu e, voltandose bruscamente, retirou-se correndo do aposento.
Ele ficou acompanhando-a com o olhar. Ele ficara perturbado por aquele encontro. Ela o considerava um homem cruel, indiferente ao sofrimento. Considerava-o um monstro alucinado pelo poder. Não era assim. Ele fora criado para lutar. Aquilo fazia parte da educação de um menino. Se não se destacasse nas justas, ele era considerado um fraco e era desprezado pelos que o cercavam. Anne não compreendia.
Passou-se uma hora. Ele ainda estava pensando nela. Ela ficara mais bonita chorando do que estivera no majestoso vestido de noiva.
O que ela dissera? Que aquilo mostrava fraqueza. Era um absurdo. Os homens tinham de morrer. Seria loucura deixar que o povo pensasse que poderia desafiar seu exército e ser perdoado como estudantes travessos.
Ele tinha de esquecer o desabafo de Anne. Ela estava histérica; ela era irracional; levara um raciocínio feminino para uma questão a ser decidida por homens.
John ficou de olhar parado para a frente. Foi até a janela e olhou para as ruas desertas. Então, chamou um dos guardas.
Anne estava em pé diante dele. Os olhos dela brilhavam, e ele percebeu que as faces dela estavam molhadas. Estava sorrindo para ele. Ela disse:
- Então, você o fez. Cancelou a ordem.
- Você os defendeu com tanto entusiasmo...
- Mas você disse...
Ele se aproximou dela e tomou-lhe as mãos. Beijou-as.
- Obrigada.
E então ele abraçou-a e apertou-a contra si.
Ele estava gostando daquele casamento - não por causa da amizade com Borgonha, não por causa da promessa de Artois, nem por causa de todas aquelas coroas de ouro... mas simplesmente porque a amava.
HUMPHREY, duque de Gloucester, estava em seu elemento. Ele vicejava na intriga. Seu casamento com Jacqueline focalizara a atenção sobre ele e nada o agradava mais do que estar no centro de uma controvérsia.
- Ah - disse ele a Jacqueline -, isso fez com que meu irmão percebesse que há outros membros da família além dele, que é importante. Isso provocou o orgulho do vaidoso Borgonha. Imagine a consternação nos campos desses dois dignos cavalheiros, minha doce mulher.
- Eu posso imaginar - retorquiu Jacqueline -, mas o que mais me preocupa é quando vamos conseguir o controle dos meus territórios.
- No momento oportuno nossas terras serão nossas. Deixe comigo.
Ele lançou-lhe um olhar dissimulado. Não gostava muito dela. Sem aquelas deliciosas terras, ela não teria atrativo algum para ele. A natureza dela não era o que ele chamaria de ardente muito pelo contrário. Ela se dedicava ao que ele chamava de travessuras na cama sem muito entusiasmo. Para ele, estava claro que se ele se casara com ela por causa das terras, ela se casara com ele para que ele pudesse consegui-las para ela.
Pouco importava. O projeto era agradável e ainda o deixava intrigado.
Ele vivia enviando mensagens para a Europa. Estava tentando fazer com que o papa, Martinho V, concordasse que o casamento de Jacqueline com Brabant não era válido - Benedito não tinha influência suficiente - porque embora Humphrey não estivesse de todo contente com o casamento, era muito importante que ele fosse reconhecido.
Chegaram mensagens inquietantes de seu irmão John. Ele cometera uma tolice, insistia John. No mínimo, comentara aquilo umas vinte vezes. Borgonha estava enfurecido, acrescentava John. Sempre Borgonha! John parecia obcecado por Borgonha. E se casara com a irmã do poderoso duque! O pobre e solene John, obrigado a se casar por causa da conduta irresponsável de seu irmão Humphrey!
- E por falar nisso - disse ele a Jacqueline -, estou trabalhando muito no nosso projeto. Você sabe que dentro em breve terei reunido um exército de cinco mil homens? Logo chegará o momento em que estaremos prontos para atravessar o canal, desembarcar em Calais e depois marchar para Hainault.
- E você acha que Borgonha vai permitir?
- Borgonha não terá condições de deter meus valorosos cinco mil.
- Espero que você tenha razão.
Olhou para ele com os olhos semicerrados. Até que ponto confiava nele? Não era ingénua e sabia que qualquer mulher precisaria ser uma tola para confiar muito em Gloucester.
- Por isso, minha querida - continuou ele -, agora é você que deve fazer os seus preparativos. O que me diz disso? Vai selecionar sua equipe, porque não vou querer que você viaje num estilo inferior ao de uma rainha.
- Não tenho a intenção de viajar em outro estilo - disse ela.
Ele concordou, satisfeito, com um gesto da cabeça.
- Neste caso, minha doce esposa, acelere seus planos. Antes do fim de outubro, deveremos estar a caminho. Não queremos esperar pelo inverno, certo?
- Tão cedo assim? - disse ela.
- Isso mesmo - respondeu ele -, tão cedo, ou mais cedo. Se não acredita em mim, vá examinar as contas que meu tesoureiro está fazendo. Ele terá prazer em discuti-las com você, porque está muito satisfeito com o trabalho dele.
- Eu vou - disse ela.
Ele fez uma mesura enquanto ela se retirava e depois seguiu para os aposentos onde os dois viviam juntos.
Uma mulher estava pendurando uma das capas de Jacqueline num armário. Humphrey já a avistara antes e ela chamara-lhe a atenção. Na verdade, tinha ido ali à procura dela.
- Ora, é Lady Eleanor - disse ele.
Ela girou sobre os calcanhares. Tinha grandes olhos castanho-escuros e espessos cabelos pretos; as faces eram muito coradas, e Humphrey a achava deliciosa. O corpo era voluptuoso ao extremo, cintura fina, busto grande e quadris largos. O cinto que usava à cintura acentuava isso.
- Ah - disse ela, maliciosa -, também vou dizer uma coisa. É o duque Humphrey.
- E talvez você esteja contente por vê-lo? - murmurou ele.
- Senhor duque, há algum motivo para que eu não fique satisfeita?
- Nenhum. Há todos os motivos para que fique contente. vou lhe dizer uma coisa. Você é uma mulher muito bonita.
- Ah - ela colocou as mãos nos quadris. - Então o senhor não veio me dizer que está descontente comigo e que gostaria de me dispensar da equipe de Lady Jacqueline.
- Não, não, eu vim dizer-lhe que gostaria de contratá-la para a minha.
- O senhor está brincando - começou ela, mas não continuou porque ele a abraçara e seus lábios estavam apertando os dela.
Ela foi ardente na resposta, como ele sabia que seria. Fazia dias que ele estava de olho nela... e sabia muito bem que ela estivera ciente disso e cordialmente o convidava a ir em frente.
- Você é uma feiticeira - disse ele. - Você me enfeitiçou.
- Talvez. Mas não foram os meus poderes ocultos que fizeram isso.
- Ora, o que vamos fazer quanto a isso? O que você sugeriria?
- Eu acho que o senhor deve se lembrar de sua boa esposa,
Lady Jacqueline. Mas é possível que eu não diga o que deveria dizer.
- E então, o que você vai dizer?
Ela se afastou dele e pôs a língua de fora, provocante.
- vou dizer o seguinte, senhor duque. O senhor é homem... e os homens fazem o que querem... quando querem, como querem. O que faz uma pobre mulher?
- Você está querendo dizer... - disse ele.
- Não estou querendo dizer nada, meu bom senhor. Mas poderia estar querendo dizer qualquer coisa.
Ele tornou a se aproximar dela. Agarrou-a.
- Eu quero você - disse ele. - Você sabe disso. Ela abriu os grandes olhos lânguidos e disse:
- Quando? Aqui?
- E por que não?
- O senhor é um homem ousado.
- Você vai me achar tão ousado quanto quer que eu seja. Ela o empurrou, fazendo-o afastar-se dela.
- Aqui?... quando minha senhora pode chegar a qualquer momento?
- Ela está examinando as contas. Eu a mandei fazer isso.
- Para que pudesse vir me ver?
- Você sabe que há dias que estou de olho em você.
- Eu vi o desejo em seus olhos.
- Aposto que não é a primeira vez que vê olhares desse tipo. Nem que você os satisfez - acrescentou ele.
- O senhor é agressivo.
- Você desperta a loucura em mim.
- Pouco importa. Em breve o senhor estará no exterior. Contenha-se até lá.
- Você irá conosco. Tem de ir.
Uma expressão de alerta surgiu nos olhos dela.
- Então vou para lá? - aproximou-se dele e passou os braços em torno do pescoço dele. - Eu não vou querer - prosseguiu - encontrar um homem que me agrade e depois perdê-lo para as holandesas, ou para as zelandesas, ou para as mulheres de Hainault.
- É isso que você quer? Vir conosco? Ela inclinou a cabeça para um lado.
- Eu teria de experimentá-lo primeiro, para ver se quero. Ela o arrastou por uma porta. Estavam num cubículo.
- O apartamento onde eu durmo - explicou ela. - Pequeno, mas vai ser o suficiente, acho eu, porque num momento desses até mesmo o poderoso duque de Gloucester tem outras coisas em que pensar do que no ambiente que o cerca.
- Meu Deus - disse ele. Deu uma risada de triunfo. Estava numa excitação como raramente sentira antes. Seu prazer foi ampliado quando percebeu que sua ansiedade era igualada pela de Eleanor.
Ficou convencido de que nunca antes desfrutara de um encontro igual.
Por uma mulher assim, podia esquecer não apenas Jacqueline, mas Hainault, Holanda e Zelândia.
Os preparativos para a partida seguiam com rapidez, e chegavam mensagens aflitas de Bedford.
"Pelo amor de Deus", escrevia Bedford ao irmão, "não faça nada precipitado. Borgonha está furioso. Isso poderá fazer com que percamos a amizade dele."
Humphrey ria e declarava, bombasticamente, a Eleanor que achava engraçado ver o velho John em tamanho estado de pânico. Aquilo poderia fazer com que ele perdesse a amizade de Borgonha, mas traria vantagens imensas a Humphrey.
- Você não acha que devo pensar em mim, querida? Eleanor respondeu que sim, porque aquilo era uma coisa que ele fazia com perfeição, tamanha a sua prática nessa arte.
Ele ria do que ela dizia; ela o divertia; era ambiciosa em relação a ele, também; queria que ele fosse o máximo não apenas na cama, mas também no campo. Achava divertido ter um amante poderoso. Queria que ele fosse o homem mais poderoso da Inglaterra; e seria, quando recuperasse as terras de Jacqueline.
Raramente ele se sentira tão contente consigo mesmo. Tinha muito orgulho por ser marido de Jacqueline e amante de Eleanor.
Eleanor estava com eles quando partiram para Calais. Ele não teria partido sem ela, tamanha a importância dela para ele. Era a mulher de maior experiência erótica que ele já conhecera, e ele conhecera várias. A intriga necessária para manter o caso em segredo para Jacqueline o excitava. Raramente se sentira tão contente consigo mesmo. Ficava deitado com Eleanor, em geral em algum lugar secreto, e depois de terem saciado sua sede amorosa, conversava com ela sobre seus planos.
Ela aplaudia as tramas dele. Dizia que depois que tivesse conseguido os territórios de Jacqueline, ele poderia voltar o pensamento para a Inglaterra. Passariam muitos anos antes que o pequenino Henrique pudesse governar, e só havia John, que estava na França. Era provável que ele continuasse ocupado por lá durante algum tempo.
- Há aquele velho demónio do Winchester - lembrava-lhe Humphrey. - Malditos sejam esses parentes, os Beaufort... todos eles. Bastardos, todos eles.
Ela sorria e mordiscava-lhe a orelha.
Eram encontros maravilhosos. No navio, juntos, chegando a Calais, a emoção de ficar imaginando o que iriam encontrar; ter de viajar pelo interior, onde poderiam encontrar forças de Borgonha. Mas não houve oposição. Foi tudo muito fácil. Eles chegaram até a fronteira de Hainault e nem sinal de um inimigo. Pelo contrário, o povo saiu para saudar Jacqueline. Ele não gostava nada do ex-bispo de Liège.
Dias gloriosos. Os conquistadores cavalgando por Hainault, parando nas casas de nobres que não tinham outra coisa que não calorosas boas-vindas para eles... ou, na verdade, para Jacqueline; recebendo os dignitários com Jacqueline ao lado e cônscio - oh, muito cônscio - de Eleanor ali por perto. E depois, nos momentos ociosos, tentando um encontro. Em qualquer lugar, de qualquer maneira! Eles riam muito dos estranhos lugares onde se encontravam.
Duas coisas tinham ficado claras para ele. A conquista era fácil, e quanto mais ele conhecia Eleanor, mais percebia que não poderia passar sem ela.
Conquista fácil, uma esposa que realizara a ambição dela e se sentia feliz, naquele momento, por fazer daquilo sua única preocupação, e uma amante que o deliciava mais a cada vez que ele a via.
Que mais um homem poderia querer?
Era demais esperar que a vida pudesse ser sempre assim. Chegaram rumores dizendo que Borgonha estava se preparando para atacá-lo e que o poderoso duque unira forças com Brabant.
Gloucester parou de zombar de Borgonha tão abertamente à medida que os rumores ficavam mais alarmistas a cada dia que passava.
Um dia, um dos mensageiros de Borgonha chegou, levando com ele a sugestão de que Gloucestervoltasse imediatamente para a Inglaterra e que Jacqueline voltasse para o marido, o duque de Brabant, e que os dois se esquecessem daquela farsa de um casamento com Gloucester.
Havia, também, uma carta de Bedford. Ele insistia em que Gloucester refletisse bem, para o bem dele próprio e da Inglaterra, porque Borgonha estava a ponto de concluir uma trégua com a França. "Você pode imaginar o golpe que isso é para nós", escreveu Bedford. "Estamos em grandes dificuldades, e se perdermos o apoio de Borgonha, o que sem dúvida perderemos se você continuar irritando-o, poderemos ficar numa posição muitíssimo desfavorável."
Humphrey atirou a carta do irmão para o lado. Será que John pensava que ele abriria mão de todas aquelas possessões recémadquiridas, só porque mandavam que o fizesse?
Outra carta de Borgonha afetou-o mais profundamente. Borgonha estava desafiando Humphrey para um duelo - o tradicional método de resolver uma diferença.
Quando Jacqueline soube, deu de ombros:
- Você tem uma boa chance de vencer - disse ela.
- Contra Borgonha! - Humphrey tremia ao pensar nisso.
A reputação de Borgonha era tal que provocava terror no coração de qualquer homem. Procurou logo uma oportunidade para contar a Eleanor.
- Duelo? - disse ela. - Isso é um absurdo. Não quero que Borgonha assassine você... ou me devolva você em tal estado que não me valha para mais nada.
Os dois riram, mas ele estava seriamente perturbado.
- Estou cansada de Hainault e Holanda - disse Eleanor. Estou com saudades de casa. Quero voltar para a Inglaterra. O que são esses lugares, comparados com a terra da gente? Eu sempre lhe disse que você está perseguindo as coisas erradas. Pense no que pode fazer em seu país... uma criancinha no trono, e você sendo o tio dela! O irmão Thomas já morreu. O irmão John está ocupado na França. Isso deixa Humphrey com o campo livre. Eu tenho dito sempre, e torno a repetir. Saia daqui... antes que o Borgonha chegue.
- Jacqueline jamais concordaria com isso.
- Pois então, deixe-a ficar.
- Você está falando em deixá-la aqui?
- Sou capaz de jurar que é aqui que ela quer ficar.
- Isso significaria que ela teria de enfrentar Borgonha sozinha.
- Ela não tem de enfrentá-lo, se não quiser. Poderia voltar para Brabant.
- Duvido que chegue a esse ponto, a menos que Borgonha insista. Ele parece ser um homem do qual todo mundo tem medo.
- Ele tem um grande poder. Escute aqui, meu amor. Vamos voltar para a Inglaterra. Você concordaria em vir?
- Você não imagina que eu a deixaria partir sem mim, imagina? Acha que alguém ou alguma coisa poderia fazer com que eu a deixasse?
- Não - disse ela. - Você lutaria tanto por mim quanto lutaria pelas terras de Jacqueline. Mas não vai lutar por nenhuma das duas coisas. Deixe as terras para lá... Humphrey... e fique bem perto de mim.
- Deixá-las para lá!
- Você terá de fazer isso quando Borgonha atacar. Ele só está esperando até fazer a paz com os franceses. Você não quer ser humilhado numa derrota, quer, Humphrey? Claro que não. Iremos para a Inglaterra antes que isso possa acontecer.
- Como poderemos ir?
- É fácil. Você vai dizer que irá angariar soldados descansados e preparar-se para o seu duelo com Borgonha.
- Você é uma garota inteligente, Eleanor.
- Eu vivo para servir, senhor duque - retorquiu ela, com um toque de ironia na voz.
Era impressionante como conseguira enganar Jacqueline com facilidade. Ela aceitara tudo o que ele dissera. Sim, eles iriam precisar de mais soldados. Ele tinha de fazer os preparativos para o duelo. Devia partir. Ela tomaria conta da terra até ele voltar. Ele levaria apenas poucos cavaleiros com ele. Seria melhor deixar uma grande força com ela.
com tudo isso ele concordou. Despediu-se carinhosamente dela e partiu na viagem até Calais. Passou algumas horas angustiadas, porque naturalmente Eleanor não poderia cavalgar abertamente com ele. E era claro que se esperava que ela ficasse na Holanda servindo a Jacqueline.
Eles chegaram a uma estalagem onde passariam a noite, e ela ainda não tinha se juntado ao grupo.
Estava começando a temer que ela não tivesse intenção de acompanhá-lo. Será que ela arranjara um novo amante e trabalhara para livrar-se dele? Não, os dois tinham tido momentos notáveis, juntos; não poderia haver outra pessoa no mundo que a satisfizesse como ele. Interessara-se muito pelos assuntos dele. Queria estar ao lado dele quando assumisse o poder na Inglaterra. Ela sentira saudades da terra natal desde o momento em que pisara em solo estrangeiro.
Mas ali estava ele; e Eleanor?
Os cavalos estavam nos estábulos e ele, com seu pequeno grupo de homens, entrou na estalagem. Foi levado até um quarto. O estalajadeiro abriu a porta, e ele entrou.
Eleanor estava deitada na cama.
- Como você demorou - repreendeu-o.
E então caiu sobre ela e seu prazer foi maior do que ele jamais sentira.
HENRY Beaufort, bispo de Winchester, ficou profundamente perturbado quando soube que Humphrey de Gloucester voltara para a Inglaterra.
Expressou sua inquietação junto a Richard de Beauchamp, conde de Warwick. Este era um homem de boa reputação, renomado por sua honra e pela desprendida devoção à Coroa. Henry Beaufort orgulhava-se de ter uma lealdade semelhante. Ele era o segundo filho de John de Gaunt e Catherine Swynford, e nunca se esquecera de que devia seu progresso ao seu relacionamento com Henrique IV, seu meio-irmão. O pai deles esperara que Henrique cuidasse sempre do ramo Beaufort da família, muito embora em determinada fase eles tivessem sido ilegítimos - e isso, Henrique fizera.
Um começo desses era algo que nunca deveria ser esquecido por um homem como o bispo, e ele procurara servir seu meioirmão Henrique IV e seu sobrinho Henrique V com devoção. Estava, agora, pronto para prestar vassalagem a Henrique VI. Lamentava profundamente o fato de o novo rei ser uma criancinha e que outras pessoas tivessem de ser nomeadas para governar durante sua maioridade. Ele tinha John, duque de Bedford, na mais alta conta. com Humphrey, a coisa era diferente.
Agora, Henry Beaufort abanava a cabeça e resmungava dizendo que fora um dia de azar para a Inglaterra quando Gloucester voltara para o meio deles. Warwick concordava.
- A missão no exterior estava fadada ao fracasso antes de começar - disse ele.
- Além do mais, está nos ameaçando de perdermos o apoio de Borgonha. O senhor de Bedford está muitíssimo aflito sobre o resultado.
- Muito justo. Agora, sem dúvida Borgonha vai se meter e tomar os territórios de Jacqueline.
- Quisera Deus que Bedford voltasse.
Warwick compreendia aqueles sentimentos. Desde que Bedford e Gloucester tinham deixado o país, Beaufort assumira a responsabilidade de governar. Fora nomeado chanceler uma vez mais, e era o responsável por todas as medidas impopulares que deviam ser tomadas para sustentar o exército na França.
Ele e Gloucester tinham sido inimigos desde a época da morte de Henrique V Beaufort jamais quisera que Humphrey ocupasse um lugar no Conselho. Ele era, é claro, irmão do falecido rei e tio do que estava reinando; mas Beaufort acreditava que ele fosse não apenas egoísta e devasso, mas inteiramente incapaz de um governo criterioso. Deixara isso muito claro a todo mundo, inclusive a Gloucester, o que, naturalmente, não o tornara pessoa grata ao duque.
Naquele momento, infelizmente, Beaufort passava uma fase de impopularidade em Londres, e os cidadãos estavam expressando sua preferência pelo duque ausente. Beaufort adotara algumas leis impopulares, e os londrinos não demoraram a exprimir a irritação por elas. Declararam que ele mostrava ser mais a favor dos comerciantes flamengos do que dos mercadores ingleses. Além do mais, ele aprovara ordens dadas pelo prefeito e vereadores restringindo o emprego de certos trabalhadores.
Todas as dificuldades do comércio na cidade, inclusive a cobrança extorsiva de impostos, eram atribuídas ao bispo.
- Cartazes têm sido pendurados nos portões do meu palácio - disse ele a Warwick. - Os trabalhadores têm se reunido e ameaçado o que farão comigo se puserem as mãos em mim. Eu lhe digo, Warwick, não há prazer nesse cargo... mesmo sem a presença do duque de Gloucester. Tomei a precaução de colocar uma guarnição na Torre, para a eventualidade de surgirem problemas. Tenho medo de pensar no que aconteceria, agora, se Gloucester entrasse em Londres a cavalo.
Em breve, ele iria descobrir.
Poucos dias depois, Gloucester anunciava que estava de volta e iria descobrir até que ponto seus amigos, os londrinos, sentiam-se ofendidos com o bispo.
Em primeiro lugar, ele enviara recados ao prefeito, que ele sabia estar do seu lado com os mercadores que acreditavam que o bispo os tratara muito mal.
"Meu bom amigo", escreveu ele, "precisamos conter os preconceitos desse bispo novo-rico contra os nossos dignos cidadãos. Peço-the que coloque uma guarda na ponte, para que, quando o bispo for atravessá-la a fim de entrar na cidade, seja impedido de fazê-lo. Isso fará com que ele saiba que estou de volta para defender os direitos dos londrinos."
O prefeito obedeceu a Humphrey, e quando o bispo estava para entrar na cidade, foi detido por soldados armados que lhe disseram que por ordens do prefeito e do duque de Gloucester não era possível deixá-lo entrar.
Como era inevitável, apesar dos esforços do bispo para contêla, estourou um conflito entre os seguidores do bispo e os cidadãos que estavam decididos a defender a decisão do prefeito.
Constrangido, o bispo retirou-se. A situação era ainda pior do que ele imaginara. Não se contentando com prejudicar o domínio inglês na França ao irritar o duque de Borgonha, Gloucester estava, agora, decidido a provocar encrencas no país.
O bispo foi procurar Warwick uma vez mais. Não se precisou explicar a ele o que acontecera na ponte. Todo mundo já sabia.
- A luta foi violenta, enquanto durou - explicou o bispo.
- Se eu não tivesse me retirado e mandado meus homens pararem, poderia ter havido uma arruaça desastrosa. Deus sabe até que ponto aquilo teria ido. Eu gostaria de saber, senhor, se concordaria comigo que só há uma coisa para se fazer. Se o senhor e o Conselho concordarem, sugiro que seja feita imediatamente.
Warwick, sério, fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- Suponho que o senhor queira dizer que precisamos pedir ao duque de Bedford que volte.
- Era exatamente isso que eu tinha em mente.
- Lamento que isso seja necessário. Mas poderá ser perigoso ele deixar a França neste momento, quando a aliança com Borgonha ficou tão prejudicada.
- Gloucester causou encrencas na França; ele poderá provocar uma encrenca ainda maior na Inglaterra.
- Isso é verdade. E depois de pesar os prós e os contras, é a Inglaterra que tem de ser defendida em primeiro lugar... se for o caso de se fazer uma opção.
- Vejo que está concordando comigo. Tenho de mandar uma mensagem urgente para o duque de Bedford. Por mais que sua presença seja necessária na França, ela se faz ainda mais urgentemente necessária aqui.
Naquele mesmo dia, o bispo despachou uma mensagem urgente para o duque de Bedford.
O pequeno Henrique estava sendo vestido num robe de veludo vermelho. Era um lindo dia de abril e ficara decidido que ele deveria aparecer em público na catedral de St. Paul. Pelo visto, a impressão era de que a visão do pequeno rei pudesse aplacar a irada insatisfação que começava a dominar os londrinos desde a volta de Humphrey.
Katherine olhou para o filhinho com um olhar muito triste. Ele só completaria quatro anos de idade em dezembro. Parecia uma pena incluí-lo à força naquelas cerimónias. Ela se perguntava o que ele pensava de toda aquela pompa. O menino não dava sinais de que ficasse perturbado por ela.
Ela tentara explicar a situação a ele.
- É porque você é o rei, meu adorado. O povo quer vê-lo.
- Você também é um rei? - perguntou ele.
- Não, só os meninos podem ser reis. Eu sou uma rainha.
- A Joan é uma rainha? A Alice é?
Pobre e doce criancinha! Quanta coisa ele tinha de aprender!
- Você tem de sorrir para o povo quando ele o ovacionar.
Por que eles vão me ovacionar?
Porque você é o rei. Porque o povo gosta de você.
Ele sorriu, então. Dame Alice era um pouco rigorosa com ele. Afinal, ela recebera o direito de castigá-lo. Não que o fizesse muitas vezes, porque ele era um bom menino, praticamente nunca precisando de castigo. E ele jamais guardava ressentimento em relação a Alice, como também não o fazia em relação a Joan. Ele as adorava. Elas faziam parte de sua vida, tal como sua mãe. E Owen, é claro.
Quando ele montava seu pónei, Owen o conduzia pelo campo. Ele gostava disso. Owen falava com ele numa suave voz galesa, da qual Henrique gostava. Se Owen parasse de falar, ele dizia: "Continue, Owen. Continue." E Owen falava sobre as montanhas galesas e de quando era garotinho não maior do que Henrique, e embora Henrique não compreendesse tudo o que era dito, gostava de ouvir Owen falar.
A mãe gostava de estar lá. Ela o enlaçava e sorria dele para Owen. Ele gostava de os três estarem juntos assim.
Agora, ele passaria pelas ruas de Londres e todas as pessoas compareceriam para vê-lo porque gostavam dele, e por isso ele tinha de se lembrar de sorrir para elas e gostar delas.
- Alice - disse ele -, vamos supor que eu não goste delas?
- Vossa Majestade vai gostar delas - disse Alice. - Tem de gostar. Elas constituem seu povo.
Seu povo! Como seu cavalo. Como as contas num espeto que sua mãe lhe dera. Seu, assim?, queria ele saber.
Bem, não é bem assim, era a resposta, mas um dia ele compreenderia. com frequência, era "um dia". Era tanta coisa que ele iria aprender, então, mas quando chegaria aquele "Um Dia"?
A mãe mostrou-lhe um pequeno gorro de veludo com a borda enrolada, tendo em cima uma pequena coroa.
Colocaram-no na cabeça dele.
- Eu não gosto - disse ele. - É pesado. Está me machucando.
- Vamos, querido - disse a mãe. - Você sabe que tem de usá-lo.
- Não vou - disse o rei, arrancando o gorro da cabeça.
A rigorosa Alice apanhou-o e o recolocou no lugar.
- Os reis - disse ela, em tom muito solene - têm de usar a coroa deles, gostem ou não.
Aquilo pareceu resolver o problema. Henrique estava pensando nos reis e no povo que era dele, e esqueceu a coroa no gorro.
Como o povo o ovacionou! Ele o adorava. Henrique parecia muito desproporcionado com seus mantos reais com a miniatura de coroa na cabeça e a mãozinha rechonchuda agarrando a miniatura do cetro. Ele sorria. Eles gostavam dele. Eles eram dele, de alguma forma estranha que "Um Dia" ele compreenderia.
Levaram-no para dentro da catedral de St. Paul, e ali estava ele em pé e dois lordes vestidos com tal resplendor, que ele quis olhar fixo para eles e examinar as jóias que estavam nos seus mantos. Caminharam com ele até o altar principal.
Houve muita falação, que parecia durar um longo tempo, mas ele estava muito interessado na ação, e depois o conduziram para fora da igreja, colocaram-no num belo cavalinho branco, e ele foi levado pelas ruas de Londres. Todos os comerciantes do Chepe ficaram olhando para ele admirados, e várias mulheres bradaram: "Deus o abençoe!" Ele era o querido reizinho delas. Elas atiravam beijos para ele.
E ele pensou, então, que no final das contas era muito bom ser rei.
John discutiu com Anne a carta que recebera do bispo e do Conselho.
- Parece que meu irmão Gloucester provoca encrenca onde quer que esteja - disse ele. - Eu acho, mesmo, que sou obrigado a voltar para a Inglaterra.
O conde de Warwick fora à França e tinha histórias perturbadoras a contar sobre os problemas que estavam caminhando para um clímax na Inglaterra.
- Seu irmão - disse ele - está decidido a expulsar Henry Beaufort do cargo de chanceler.
John abanou a cabeça.
- Meu tio é um homem bom e honrado. Quem dera que eu pudesse dizer o mesmo do meu irmão.
O duque de Gloucester é um homem muito ambicioso, meu senhor. E quando um país tem um rei que é menor de idade, isso pode criar uma situação difícil.
- É verdade, Sr. Warwick. Quisera Deus que meu irmão Henrique não tivesse morrido e nos deixado esse ónus.
- Foi mesmo uma tragédia. Uma pessoa tão capaz... tão nobre... e morrer no vigor da vida, quando precisavam dele como se precisou de poucos antes.
- Foi um golpe de muita infelicidade para o nosso país. Mas temos de fazer o que pudermos para evitar o desastre.
- O que significa, senhor, que eu penso que sua presença é necessária para resolver esse problema.
- Não estou satisfeito com a situação aqui na França.
- Não, esse caso do Borgonha...
-- Ele era meu amigo, Warwick. A irmã dele é minha mulher.
- Graças a Deus, senhor.
- Ah, tive sorte com meu casamento. Anne fará tudo o que puder para manter o irmão do meu lado. Mas é preocupante que a Holanda e a Zelândia já estejam nas mãos de Borgonha. Quando o ex-bispo de Liège morreu - da maneira mais conveniente possível -, Borgonha declarou-se herdeiro e invadiu. Resta Hainault e entendo que Borgonha está atacando aquele infeliz país neste momento.
- Qual a chance de Jacqueline contra ele?
- Nenhuma.
- E ela está sozinha para enfrentá-lo.
- Abandonada pelo meu irmão. Mas não teria feito diferença alguma se ele tivesse ficado lá. Borgonha vai conquistar Hainault muito depressa. O senhor vê o que meu irmão fez. Afastou Borgonha de nós e, ao mesmo tempo, aumentou o poder de Borgonha.
- Ele deve estar cheio de remorso.
- Será? Ele não irá se arrepender do mal que me causou. Vai apenas lamentar a perda das terras que tentou conquistar.
- E, senhor duque, o senhor pode deixar este campo agora?
- Tenho de deixá-lo, Warwick. Não posso permitir que haja dissensão na Inglaterra. O que me proponho a fazer é deixar homens em quem possa confiar aqui enquanto vou à Inglaterra. Espero que minha estada por lá seja breve. Mas tenho de ir. Warwick, é um prazer vê-lo aqui, e vou nomeá-lo para ficar aqui e, com a ajuda de Salisbury e Suffolk, cuidar dos assuntos na minha ausência.
Warwick fez uma mesura e disse que faria tudo ao seu alcance para servir ao seu país, e Bedford ficou satisfeito. Depois, voltou para perto de Anne.
- O que você acha de uma viagem ao meu país? - disse ele.
- vou gostar mais de ir ao seu país com você do que deixar que você vá até lá sozinho - respondeu ela.
O relacionamento entre os dois se aprofundara depois que ele libertara os homens de DOrsay a pedido de Anne. Ela estava com ele... mesmo quando aquilo significava estar contra o irmão. Mas a coisa ainda não tinha chegado àquele ponto abertamente. Bedford esperava ardentemente que nunca chegasse. Mas era grato pela lealdade dela, e era um prazer poder conversar livremente com ela. As vezes ela lhe dava bons conselhos, porque conhecia a maneira de pensar dos franceses; e sempre podia oferecer-lhe consolo.
Assim, eles deixaram Paris e começaram a viagem para a costa. Enquanto cavalgava em direçáo à cidade de Amiens, um bando de homens hostis esperava por ele. Eles saltaram e atacaram os seguidores dele - que não eram muitos; ele temeu pela sorte de Anne e manteve-a ao seu lado. No entanto, o bando só estava armado de podões - armas muito perigosas, talvez, mas não muito úteis contra guardas experientes - e foram rapidamente dispersados; mas aquilo foi um aviso para que ele ficasse sempre alerta e fez com que aceitasse o fato de que, apesar de ter levado alguma prosperidade à França, ainda era considerado um usurpador.
Quando chegou à Inglaterra, foi saudado pela notícia de que Filipe de Borgonha derrotara as forças de Jacqueline e ela era prisioneira dele.
Humphrey estava decididamente contrariado com o caminho que a vida estava seguindo.
Estava perdendo muito depressa o interesse por Jacqueline. Quisera nunca ter-se envolvido com ela. Mas congratulava-se consigo mesmo por abandoná-la no momento certo. Teria sido um desastre se ele tivesse estado lá quando Borgonha invadiu. E se o poderoso duque o tivesse capturado junto com Jacqueline? Tinha sido inteligente ao atender aos apelos de Eleanor para voltar à Inglaterra. Foi o melhor passo que poderia ter dado naquela triste história. Não tinha tempo, em sua vida ambiciosa, para causas perdidas, e começava a acreditar que a de Jacqueline era perdida.
Ela lhe enviara insistentes pedidos de ajuda. Mas o que ele poderia fazer? Ela agora estava nas mãos de Borgonha. Seria preciso um exército para ir em seu auxílio; e o Parlamento inglês iria conceder-lhe os meios para reunir esse exército? Não era provável.
O que o estava ocupando, agora, era a sua querela com o tio Beaufort. Tio bastardo, lembrava ele a Eleanor. Pensa que tem tanto sangue real quanto eu. Aquele era o problema com aqueles bastardos legitimados. Jamais podiam esquecer que na verdade eram bastardos. Aquilo os fazia sofrer. Fazia com que quisessem afirmar-se.
Beaufort devia ser posto para fora do cargo de chanceler. Na verdade, devia ser posto para fora do país.
- Porque - disse ele a Eleanor - ele não é meu amigo.
Não demorou muito, é claro, para Bedford conseguir um encontro com o irmão.
Ele envelheceu um pouco, pensou Humphrey. É toda essa responsabilidade na França. Esse meu irmão não sabe viver. Ele tem o poder. Disso não havia dúvida. É o rei em tudo, menos no nome, mas como é que ele se diverte? Aquela sua mulher... irmã de Borgonha. Como é ela? Muitas vezes é pouca a diversão nesses casamentos por interesse.
Bedford foi frio. Era evidente que estava indignado por ter sido levado para a Inglaterra quando a situação na França - em parte devido ao comportamento irresponsável de Humphrey não se achava muito segura.
Algum dia deixariam que ele se esquecesse de que ofendera o todo-poderoso Borgonha? E agora ele estava tendo uma desavença com o bastardo Beaufort e John também não gostava disso.
- Parece - disse John com aquele ar indiferente que fazia com que muitos homens o respeitassem e poucos gostassem dele
- que você deixa um rastro de encrencas por onde passa.
- São os outros que provocam encrenca.
- Parece estranho que você esteja sempre no centro dela. Borgonha...
- Por favor, irmão, vamos dar uma folga ao Borgonha, sim? Estou cansado desse sacro nome. Acredite em mim, tenho tido o poder e a importância desse cavalheiro me jogados na cara de manhã, à tarde e à noite.
- Acontece que ele é de grande importância para o nosso sucesso na França.
- Eu sei, eu sei... e você se casou com a irmãzinha dele para acalmá-lo. Uma jogada inteligente, irmão, e uma jogada que devia esperar de você. Espero que Lady Anne não seja uma obrigação muito incómoda.
- Eu insisto em que você não fale de maneira desrespeitosa da duquesa de Bedford. Tampouco vim discutir os desastres que seus atos provocaram na França. Aquela triste história é bem conhecida de todos nós. Essa querela com o bispo de Winchester tem de acabar.
- com que então tio Henry tem choramingado com você, hein?
- Tenho o relatório do Conselho.
- Eles também estão contra mim? Ah, eu não duvido de que o tio sonso os instruiu.
- Mal voltou para a Inglaterra e você está discutindo com o chanceler que, com o conselho, manteve muito bem a ordem na sua ausência.
- Manteve? Já perguntou ao povo de Londres?
- Os mercadores de Londres estão quase sempre descontentes. Eles se sentem melindrados com a tributação que é necessária se quisermos trazer a coroa da França para a Inglaterra e mantela aqui. Cabe a você explicar-lhes a necessidade da tributação. Eles querem que sejamos vitoriosos. Essas coisas têm de ser pagas. Além do mais, você está pensando que se o bispo deixasse de ser o chanceler os impostos iriam ter alguma redução?
- Irmão, ele tentou me manter longe de Londres. Estava envolvido num plano para me matar. Sabe que ele planejava sequestrar o rei?
- Isso é um absurdo. Por que iria ele sequestrar o rei?
- Para que ele pudesse governar. Para que pudesse controlar o menino. Para que pudesse cercar-se de homens dele.
- Humphrey, você está dizendo bobagem.
- vou dizer mais - prosseguiu Humphrey.-Você sabe que ele tramou contra o nosso irmão Henrique? Sabe que ele me aconselhou a tomar a coroa do nosso pai?
John olhou para o irmão, desanimado. Será que a loucura dele não tinha limites?
John ignorou o desabafo e falou sobre a necessidade de unidade na Inglaterra. Apresentar tais acusações contra o chanceler, e ainda mais em se tratando de um membro da família, não podia fazer outra coisa que não prejudicar.
- Mas se for verdade, se alimentamos uma víbora em nosso ninho... não devemos trazer esse assunto à luz, antes que possa causar muito dano?
John não disse mais nada. Não adiantava tentar ponderar com Humphrey; seu único desejo era acabar com a desavença, para que pudesse restaurar algum tipo de harmonia e voltar à importante questão de governar a França.
Ele discutiu o assunto com membros do Conselho e explicou as acusações que Humphrey apresentara contra seu tio. Ninguém acreditou nelas; mas Humphrey era, no final de contas, tio do rei, e quando Bedford estava na França ele era o regente da Inglaterra. O bispo só assumira o papel porque os dois irmãos estavam fora do país.
Ficou decidido que, para satisfazer o duque de Gloucester, deveria haver um inquérito, e o bispo devia ser solicitado a provar que as acusações apresentadas contra ele eram infundadas.
Õ fato de tais acusações terem sido aceitas a ponto de se ter de provar que eram infundadas foi um grande golpe no orgulho do bispo. Ter sido acusado de traição para com seu meio-irmão, Henrique IV, e seu sobrinho, Henrique V, e na verdade também para com o pequenino Henrique VI, era tão injusto, que ele só podia expressar estupefação. Bedford tentou acalmá-lo.
- É melhor resolver o assunto do jeito mais amigável possível. Tudo o que o senhor tem de fazer é mostrar que essas acusações são ridículas, e elas serão rejeitadas.
Beaufort achava que Bedford estava certo. Como seu acusador era filho de Henrique IV, tio do pequeno rei e irmão de Bedford, tinha privilégios especiais, um dos quais era inventar mentiras deslavadas sobre os outros.
Ferido e humilhado, o bispo enfrentou o conselho, frustrou os planos de seu acusador, deixou claro que jamais cometera traição, e foi inocentado.
- vou entregar os Selos - disse ele -, porque não vou continuar chanceler depois que acusações desse tipo foram feitas contra mim. Há muito que venho pretendendo fazer uma peregrinação, e é isso que agora vou me preparar para fazer.
Bedford ficou transtornado.
- vou ter de retornar à França dentro em pouco - disse ele a Anne. - Não tenho coragem de me manter afastado por muito tempo. Gloucester será o meu substituto aqui, o que me deixa alarmado.
- Será que você não poderia persuadir o bispo a voltar ao cargo e, já que seu irmão se mostrou incapaz de manter a paz, tirar o governo das mãos dele?
- Você aprendeu um pouco sobre Gloucester. Ele considera a regência um direito dele. Enquanto eu estiver aqui, ela é minha, é verdade; mas se eu não estiver, ele é o próximo na sucessão. Tenho medo de que, se eu tentasse nomear outra pessoa qualquer, haveria encrenca. Ele tem seus partidários. Ele é popular junto aos londrinos. Homens iguais a ele costumam sê-lo. Tenho de ficar mais um pouco.
- Ouvi rumores de que ele está interessado numa mulher cuja reputação não é muito boa.
- É, trata-se de Eleanor Cobham. Ela é filha de Lorde Cobham... ou dizem que é filha dele. Haverá quem diga a você que ela tem antecedentes duvidosos. É possível que seja uma bastarda de Cobham, que ele levou para morar com ele.
- Seu irmão parece muito apaixonado por ela.
- Humphrey raramente fica apaixonado por alguém ou por qualquer projeto por muito tempo. É provável que a obsessão dele por essa mulher passe. Mas, minha querida, estou mais preocupado com a agitação política que ele parece deliciar-se em provocar. As mulheres dele não me dizem muito respeito.
- Neste caso, teremos de nos resignar com ficar na Inglaterra por algum tempo.
- Pelo menos, você gosta de ver meu país.
- Disso, eu gosto, mas não gosto de ver você angustiado.
- Ah - disse Bedford, sorrindo. - Esta é a cruz que tenho de carregar, como acontece com todos aqueles que vivem perto do trono.
- A cruz não pesa nos ombros do seu irmão Humphrey. Ele olhou para ela, sério.
- Às vezes me pergunto como é que tudo isso vai acabar para ele.
E por um instante ele deixou o pensamento concentrar-se em como a vida poderia ter sido agradável se ele tivesse nascido um humilde escudeiro e Anne uma mulher sem berço nobre. Eles poderiam ter encontrado muitas coisas pelas quais se interessar e com as quais se ocupar numa propriedade rural isolada dos perigos e das intrigas de que sabiam que nunca poderiam fugir.
As vezes, aqueles pensamentos eram tidos até mesmo pelos mais ambiciosos dos homens.
Ele ficou ainda mais desconcertado quando o papa ofereceu a Henry Beaufort um chapéu cardinalício e o nomeou cardeal de St. Eusebius. Beaufort recebera aquela oferta durante o reinado de Henrique V, que o proibira terminantemente de aceitá-la. Tornar-se um cardeal iria dirigir os esforços de Beaufort, e mesmo sua lealdade, para longe da Inglaterra e em direção a Roma. Henrique se mostrara muito contrário a isso.
Agora, Beaufort aceitara.
- Mais um trabalho do meu irmão - murmurou Bedford.
O NATAL chegara, e Katherine decidiu que deveria ser festejado em Eltham. O rei estava, agora, com cinco anos de idade e naquele ano seu tio Bedford o fizera cavaleiro, e vários outros meninos tinham recebido o título de cavaleiro das mãos do próprio Henrique. Tinha sido uma cerimónia interessante, e agora Henrique começava a perceber que era diferente dos outros meninos. As pessoas curvavam-se para ele, beijavam-lhe a mão, ovacionavam-no, aplaudiam-no e faziam com que ele se sentisse muito importante de todas as maneiras. Ele achava aquilo agradável, e agora começava a esperar ser tratado daquela forma especial por todo mundo, assim que fugia da ala infantil. Ali, sua mãe, Joan e Dame Alice continuavam no comando.
Houve grandes festividades no Natal. Henrique gostou muito do ato de dar e receber presentes. Joan Astley ajudou-o a escolher um par de luvas para a mãe e escondê-las de modo a que fossem uma surpresa para ela. Ele tivera grande dificuldade em manter o segredo, e em mais de uma ocasião quase o deixara escapar. A mãe pegara Joan pondo os dedos sobre a boca e ficara muito confusa. Henrique gostara muito de tudo aquilo. Ele adorava o cheiro de tortas cozendo e carne assando, e a mãe lhe dissera que haveria pantomimeiros e dança, e que Jack Travail invadiria o castelo com seus alegres companheiros.
Eltham, aquele palácio construído por Eduardo I, ficava a cerca de treze quilómetros ao sul de Londres, na estrada que levava a Maidstone. Henrique estava acostumado a viver em palácios, mas era emocionante ir para aquele na época do Natal e atravessar a ponte coberta de era com seus quatro arcos abobadados. Quando eles entraram no grande salão, ele segurou a mão da mãe, e os criados se adiantaram para se ajoelhar diante dele. Ele estendeu a mão para que a beijassem, com uma graça natural. Tudo aquilo fazia parte da vida de um rei.
Ele mal podia esperar pela manhã do dia de Natal, quando daria as luvas à mãe e veria o que iriam dar a ele.
Entre os seus presentes estavam algumas contas de coral que o agradaram mais do que qualquer outra coisa, porque tinham pertencido ao seu grande ancestral Eduardo I. Joan Astley contava-lhe histórias dos grandes reis da Inglaterra e das vidas gloriosas que tinham levado. Eduardo in interessava-lhe de forma especial, porque era menino quando subira ao trono - um pouco mais velho do que Henrique, é verdade. Muito velho, como Henrique o considerava. Mas todo mundo dizia que ele não passava de um menino.
Havia outras crianças que foram levadas ao palácio para participar de suas brincadeiras - filhos e filhas de nobres -, e eles brincaram de mordida na maçã e de cabra-cega, na qual os mais velhos se juntaram a eles. Depois, vieram os atores, que representaram um auto sacramental. Henrique achou aquilo um pouco enfadonho, mas quando Jack Travail e os companheiros entraram no salão e divertiram a todos com suas brincadeiras e representações, Henrique ficou encantado. Batia palmas com os demais e gritava: "Mais! Mais!", o que deixou Jack TVavail muito satisfeito. Henrique desejava que o Natal fosse eterno.
Dame Alice chegou cedo demais e declarou que já passara muito da hora de ir para a cama. As outras crianças também foram agarradas, e Henrique foi levado, protestando um pouco, para a cama, onde logo depois dormia a sono solto.
No salão, os festejos do Natal continuavam.
Katherine, sentada num banco baixo, cercada por algumas de suas damas de companhia, observava a dança. Já fazia quatro anos que estava viúva. Muito tempo. Todo mundo dizia que ela precisava tornar a se casar. Ela estava surpresa por não tentarem persuadi-la a fazer isso, e talvez persuadi-la à força. Ela supunha que a morte do pai e a preocupação de seu irmão, que estava tentando recuperar o trono, e o fato de ela ser uma princesa francesa que tinha seu lar na Inglaterra eram, todas, razões pelas quais lhe davam alguma trégua.
Além disso, quando uma mulher se casara uma vez por interesses de Estado, devia ter a liberdade de fazer sua escolha quanto a um segundo casamento. Isso sempre fora uma espécie de lei não escrita, nem sempre cumprida, é claro, principalmente quando uma mulher era um ponto de barganha especialmente bom, o que ela teria sido, não fosse o levante na França.
Por causa disso, deixavam que ela levasse sua vida tranquila em Windsor sempre que tivesse vontade.
As damas e os escudeiros estavam dançando juntos. Ela recusou-se a participar. Queria ficar sentada, quieta, apenas observando. O Natal a deixara muito pensativa. Ultimamente, a pergunta sobre qual seria seu futuro estava sempre na sua cabeça. Ela estava com vinte e cinco anos. Já não era uma menina.
Seus olhos dirigiram-se para Owen TUdor, que estava dançando com uma das damas. Ele nada tinha de gracioso. Dançar não era um dos atributos de Owen. Querido Owen! Ultimamente, ele andava muito calado e pensativo. Ela se perguntava se os mesmos pensamentos que lhe ocorriam passariam pela cabeça dele.
Os dançarinos faziam piruetas, o que alguns executavam com muita graciosidade. Katherine bateu palmas.
- Vejam quem pode girar por mais tempo - bradou ela. Cheguem mais perto, para que eu possa ver.
E assim eles se aproximaram, e ela chamou um de cada vez para se apresentar à sua frente. As damas aplaudiam, e alguns dos homens faziam apostas sobre quem poderia fazer o maior número de voltas nas pontas do pés.
- Venha, Owen Tudor - chamou Katherine. - É sua vez. Quero vê-lo realizar essa pirueta.
- Majestade - disse ele, enrubescendo um pouco -, não sou bom nisso.
Mesmo assim, tem de tentar - disse ela.
Ele ergueu os ombros num gesto de desânimo, o que divertiu todos, e depois aproximou-se dela e começou a girar na ponta dos pés. Um segundo depois, ele tinha caído para a frente. A rainha estendeu os braços, e ele caiu neles.
Foi a primeira vez em que os dois tinham feito um contato tão íntimo, e ambos sentiram uma tremenda excitação. Deviam ter ficado daquele jeito apenas alguns segundos, olhando um para o outro, mas a verdadeira natureza de seus sentimentos foi-lhes revelada... e talvez uma insinuação deles devesse ter passado para os outros.
Owen foi o primeiro a se recuperar.
- Majestade... - balbuciou ele. - Mil perdões...
Ele se levantou desajeitadamente, o rosto agora escarlate. A rainha soltou uma gargalhada, num tom muito alto.
- Não foi culpa sua, Owen - disse ela. -Acho, infelizmente, que você não vai ser o campeão.
Todos estavam rindo agora. Owen Tudor ficava mais feliz montado num cavalo do que fazendo piruetas num salão de baile, diziam eles.
- Mais feliz ainda - sussurrou um dos homens - em companhia da rainha Katherine... a sós.
Quando a rainha se recolheu, estava muito pensativa. Claro que já havia algum tempo que ele percebera. Quando saía passeando a cavalo e ele fazia parte do grupo, o dia se tornava glorioso. Se os dois conseguiam ficar a sós, o dia era realmente feliz.
Ela enfrentou a verdade. Estava apaixonada por Owen Tudor.
Uma das damas de companhia, que estava penteando seus cabelos, disse:
- Majestade, permite que eu fale abertamente? Tratava-se de uma amiga fiel, que acreditava que, por causa
das boas graças que a rainha Katherine mostrara para com ela, gozava de privilégios especiais.
- O que é? - perguntou Katherine.
- As pessoas estão percebendo, majestade, que a senhora mostra uma grande preferência por Owen Tudor.
- Owen Tudor. O escudeiro galês? Ele é um escudeiro muito bom. O rei gosta muito dele.
- Majestade, as pessoas falam.
- Claro que falam. Elas têm língua, não têm?
- Às vezes, pessoas maldosas falam de forma difamatória.
- De mim, é o que você quer dizer?
- Sim, majestade. Contra Vossa Majestade e... Owen Tudor.
- O que dizem elas? Conte-me.
- Que ele deve ser seu amante... e que ele é de origem humilde e a senhora é a rainha da Inglaterra e filha de um rei da França. E também que ele é galês.
- Galês? E o que tem isso?
- Dizem que os galeses são selvagens bárbaros.
- Neste caso, dizem bobagens, não acha? Owen Tudor tem mostrado ser um cavalheiro tão galante e culto quanto qualquer outro da corte.
A veemência de Katherine amedrontou a mulher, que só pensara em dizer algumas delicadas palavras de aviso. Ela não acreditava, nem por um instante, que a rainha pudesse arranjar como amante um escudeiro galês de origem humilde.
- Ah - disse Katherine -, tampouco sou inglesa. Será que também me consideram uma selvagem bárbara?
- A senhora é uma princesa francesa. Os galeses não são como os franceses. Os galeses vivem nos vales das montanhas, como camponeses.
- Oh - bradou Katherine, irritada -, eles estão progredindo um pouco à medida que falamos. Os selvagens
tornaram-se camponeses. Eu não sabia que havia uma diferença nas raças que habitam esta ilha britânica.
- Desculpe-me, majestade. Apenas lhe disse o que ouvi, porque achei que Vossa Majestade deveria saber.
Katherine levantou-se e colocou a mão no braço da dama de companhia.
- Você é uma amiga muito boa. - Não se preocupe. Não vou fazer nada que a desmoralize. - Depois, inclinou-se para a frente e beijou a face da mulher.
A mulher abanou a cabeça. Os modos dos franceses eram enigmáticos, pensou ela.
Pouco importa. Ela cumprira com o seu dever.
Katherine cavalgava ao lado de Owen Tudor. Os dois tinham-se perdido do resto do grupo de propósito.
- Preciso falar com você - disse ela.
- Eu sei - respondeu ele. - Estão falando de nós. Foi no
baile.
- Você caiu nos meus braços - disse ela.
- Não era minha intenção. Eu não era bom na dança deles. Ela estourou numa gargalhada.
- Você estava tão... engraçado, Owen, e gostei de você assim. Gostei muito, e depois, quando caiu, estendi os braços para ampará-lo.
- Foi imperdoável, de minha parte, cair sobre a senhora.
- Pois então, o imperdoável está perdoado - disse ela.
- A senhora é muito boa para mim - murmurou ele.
- Owen - respondeu ela -, será que não está na hora de enfrentarmos a realidade?
Por um instante, ele não respondeu. Depois, olhando fixo para a frente, disse:
- A senhora precisa me mandar embora. Eu poderia ir para a França. Os homens estão sempre sendo mandados para a França. O duque de Bedford está organizando uma nova força para levar quando voltar.
- Eu proíbo - disse ela, com firmeza. - Você não é meu escudeiro?
- Sou, e um escudeiro cuja missão é prestar-lhe um bom serviço. É por isso que sei que devo ir para a França.
- Não - disse ela. -Você vai fazer o que eu mandar... isto é, se quiser. Desmonte, Owen.
- Desmontar, majestade?
- Foi o que eu disse. Ele obedeceu.
- Agora, ajude-me a desmontar.
Quando ele se aproximou, ela passou-lhe os braços pelo pescoço. Beijou-lhe os lábios. Ele ficou hesitante, mas só um instante.
Ela escorregou para o chão e eles ainda estavam juntos, abraçados.
- Isso foi tomando conta de nós devagar-disse ela -, mas agora não há como negar. Você ama sua rainha, Owen?
- De todo o coração - disse ele. - Eu morreria a serviço dela.
- E viveria servindo a ela?
- Farei o que ela mandar, agora e sempre.
- Esse é o voto de um amante de verdade. Agora, vou fazer o meu. Eu te amo, Owen Tudor, e aqui, solenemente, nesta verde relva, eu o aceito como meu marido, meu marido de verdade, que não precisa de sussurros de sacerdotes... nada de imponentes vestes finas, nada de assinatura de contratos... nada, a não ser amor.
- Como eu ansiava por abraçá-la desse jeito!
- E eu por ser abraçada. Vamos andar enquanto conversamos? Vamos prender os cavalos.
- E se formos descobertos? Ela riu.
- Eu sou a rainha, Owen. Faço o que bem entendo.
- Vamos precisar ter cuidado. Se isso for descoberto... Ela ficou taciturna de repente.
- É - disse ela -, tem razão. Você poderia correr perigo. Owen, isso me amedronta. vou tomar cuidado, mas, Owen, não vamos ter o nosso relacionamento impedido. Nisso eu insisto... mas só se você correr o risco. Você corre?
- Eu arriscaria a vida por você.
- O meu medo é quanto a você. Por mim, eu não me importo. Mas não podemos ser impedidos, não é? Nós enfrentamos a verdade. Owen, nós nos amamos. Vamos ficar juntos, porque eu não poderia suportar a vida sem você.
- Nem eu sem você.
- Neste caso, vamos nos encontrar... seremos como marido e mulher, juntos. Eu me sinto muito feliz. Faz tanto tempo que estou sozinha! Eu gostava de Henrique, mas isso, Owen... isso é maravilhoso. Isso faz com que para mim tudo valha a pena. com você acontece a mesma coisa, Owen?
- Meu amor - sussurrou ele -, nós iremos esquecer tudo, exceto nós mesmos.
- Vamos assumir nosso compromisso aqui... na floresta frondosa?
Ele fechou os olhos e abraçou-a com força.
- Vamos arranjar um lugar - disse ela - longe do mundo, onde ninguém possa nos achar.
Gloucester estava apaixonado como nunca por Eleanor Cobham. Não apenas ela era voluptuosa e experiente nas artes eróticas a ponto de continuar a surpreender até mesmo seu embotado paladar, mas também era ambiciosa. Mantinha um controle muito de perto dos assuntos. Ela achara divertido o conflito dele com o bispo de Winchester, e quando Gloucester tendia a ficar deprimido pela natureza sombria de suas perspectivas, ela destacava seus sucessos. Tinha sido uma vitória completa sobre o seu velho tio, não tinha? Beaufort tivera de abrir mão da chancelaria, e o fato de ter sido nomeado cardeal o havia tirado do caminho.
Aquilo, dizia Eleanor, era política sutil, para a qual, com a ajuda dela, ele tinha um talento inegável.
De vez em quando, ele sentia uma ponta de remorso com relação a Jacqueline. Ela contara com ele e acreditara, mesmo, que ele iria recuperar suas propriedades para serem desfrutadas pelos dois. E poderia ter funcionado, é claro, se tivessem podido defender as propriedades e se Eleanor não tivesse aparecido.
Agora, seu grande desejo era estar com Eleanor e passar o tempo que eles tinham exercitando seus grandes talentos na cama - e isso vinha em primeiro lugar - e depois na intriga política.
Era verdade que, até certo ponto, ele ganhara a batalha com o tio; mas isso tivera o resultado de levar o irmão Bedford para a Inglaterra, o que não era tão bom assim. Ele poderia muito bem passar sem a presença do irmão. John assumia o comando e todos tinham tamanho respeito por ele, que tendiam a achar que tudo o que ele dizia era o certo.
John criticava o governo de Humphrey de modo geral. Estar à frente do governo era uma tarefa que devia ser levada a sério, reiterava ele. A pessoa tinha de se dedicar às necessidades de seu país. Devia reprimir seus desejos pessoais, sua ganância. Era essa a mensagem da canção de John. Que ele vivesse de acordo com ela. Aquela não era a maneira de agir do seu irmão Humphrey.
- Que meu irmão governe como quiser, enquanto estiver na Inglaterra - disse ele a Eleanor. - Porque depois que ele voltar para a França, irei governar como parecer bom para mim.
Eleanor concordou.
- Pode estar certo - disse ela - que assim que John sentir que pode ir embora sem problemas, ele irá.
Estavam sempre chegando apelos de Jacqueline. Não adiantava, pensava John. Ela devia desistir. Como ela poderá resistir a Filipe de Borgonha? Se ele não podia enviar tropas, escrevia ela, agitada, será que poderia mandar dinheiro?
Humphrey abordou certos membros do Conselho. Se eles pudessem dar a ela um pouco de dinheiro, aquilo aliviaria sua consciência. Ele não tinha certeza se era a consciência que o atormentava ou o desejo de não dar sossego a Borgonha.
John foi procurá-lo. Ele voltaria para a França muito em breve.
- Bênção pela qual demos graças - dissera Humphrey a Eleanor.
- Você pediu dinheiro ao Conselho para mandar para a Holanda - disse John. - Isso é uma loucura.
- Loucura... dar atenção a um pedido de minha mulher?
- Você quer irritar mais ainda o Borgonha?
- Borgonha! Borgonha! Borgonha! - disse Humphrey em voz alta. - Ele se tornou seu santo padroeiro, não foi, irmão?
- Não tenho de explicar outra vez, tenho?, a importância que a amizade dele tem para nós.
- Se explicasse, teria sido pela décima milésima vez.
- A necessidade de garantir essa amizade é mais importante agora do que era quando você a ouviu pela primeira vez. Pometame uma coisa. Suas aventuras naquela direção chegaram ao fim. Dê graças por elas não terem sido ainda mais desastrosas.
Quando o irmão John falava daquela maneira, era prudente adotar uma expressão de concordância. John era o homem mais poderoso da Inglaterra e também da França.
Pouco importava. O campo estaria livre quando ele voltasse com sua preciosa esposa borgonhesa.
- Não permitirei que meu irmão mande em mim - disse ele a Eleanor.
John partiu para a França, e assim que ele se foi Humphrey voltou a se aproximar do Conselho e pediu cinco mil marcos para enviar a Jacqueline.
O pedido foi recusado. Humphrey deu de ombros. Ele fizera o possível, mas o caso de Jacqueline não tinha solução. Isso foi confirmado quando um dia chegou para ele uma mensagem do papa. Seu casamento com Jacqueline fora anulado.
- Obra do Borgonha - disse ele a Eleanor.
Ela ficou contente. Houve uma expressão maliciosa em seus olhos. Por que não? Ela gostaria de ser a duquesa de Gloucester. Pela primeira vez, aplaudiu um ato de Borgonha. Ela não iria sugerir aquilo por enquanto. Esperaria e implantaria astutamente a ideia na cabeça de Humphrey, de modo a que ele pensasse que a ideia era dele. No entanto, nada deveria ser feito às pressas. Os divórcios eram ardilosos. Ela não queria passar por uma forma de casamento com Humphrey e depois chegar alguém e provar que não houvera casamento coisa nenhuma. E se àquela altura ele já tivesse perdido o desejo de sua companhia? Nunca se podia ter certeza. Homens que se entregavam a paixões com tanta liberdade e consistência quanto Humphrey podiam ficar saciados de repente. Eleanor era astuta, e uma das lições que aprendera era nunca chegar a uma conclusão muito apressada sobre assuntos importantes.
A delegação estava sendo discutida em toda parte. Em algumas pessoas, provocava graça; em outras, preocupação.
- Dizem que ela era composta de mulheres muito respeitáveis.
- Todas muito bem vestidas, segundo ouvi dizer.
- Isso mesmo, nada de ralé. Chegaram de forma bem ordeira. Ora, isso é mesmo um escândalo.
- Ele era muito popular com os londrinos, lembre-se.
- Era, elas mostraram claramente que preferiam o governo dele ao do bispo. Mas o que elas se opõem fortemente, é claro, é àquela mulher. Ela é muito espalhafatosa, e ele a leva a toda parte. Ele continua estupidificado por ela. Dizem que ele nunca foi fiel a uma só mulher por muito tempo.
E por aí ia o mexerico.
Humphrey estava irritado. Eleanor, mais ainda, porque na realidade aquilo era da máxima importância para ela.
O fato era que um grupo de esposas de mercadores apresentara ao Conselho e anunciara que elas estavam profundamente chocadas com a conduta do duque de Gloucester. Ele abandonara a mulher e agora estava exibindo sua prostituta Eleanor Cobham, que estava ao lado dele aonde quer que fosse. Os modos dela eram ousados, e ela proclamava, com todos os gestos, a natureza de seu relacionamento com o duque. As esposas dos mercadores exigiam mais decoro de seus governantes.
As mulheres foram gentilmente recebidas pelos membros do Conselho. Ninguém queria ofender os mercadores, e eles imaginavam que ofender as esposas deles poderia ser ainda mais desastroso. Foi salientado a elas que a moral do duque não dizia respeito ao Conselho e que na verdade o papa anulara o casamento dele.
Isso, as mulheres tiveram de aceitar; mas o ato mostrava a crescente impopularidade do duque, e quando ele saía pelas ruas de Londres a cavalo, meninos que podiam esconder-se rapidamente antes de poderem ser apanhados o xingavam.
O Conselho disse a ele que sua autoridade devia ser contida. Ele não podia esperar um poder igual ao concedido ao seu irmão. Ele protestou, mas de nada adiantou. As donas de casa de Londres tinham provocado algum efeito. Antes, ele se apoiara em grande parte em sua popularidade junto aos londrinos. Era óbvio que essa popularidade diminuíra bastante.
Enquanto ele rangia os dentes de raiva por causa de seu encontro com o Conselho, o duque de Warwick foi visitá-lo.
Ele jamais gostara de Warwick. Um daqueles honrados cavalheiros retos, amigo de John, leal à Coroa, não era homem de se afastar um único passo daquilo que considerava seu dever. Tinha sido amigo íntimo de Henrique V e fora tido em alta conta pelo falecido rei.
Como era de sua característica, Warwick foi direto ao assunto.
- Senhor duque, vim comunicar-lhe que fui formalmente designado para o cargo de guardião do rei.
Gloucester semicerrou os olhos.
Cabia a ele ser o guardião do rei. Ele não era tio do rei? Quem deveria ter a guarda da criança, a não ser o parente mais próximo - e compreendia-se que o menino não poderia ser deixado indefinidamente aos cuidados da mãe. John era o irmão mais velho, era verdade, mas Humphrey estava ali.
Mas nomear Warwick era um insulto a ele.
- E quem lhe concedeu esses poderes? - perguntou Humphrey. - Não fui consultado.
- O Conselho, senhor duque, mas o senhor deve se lembrar de que o falecido rei, seu nobre irmão, nomeou-me guardião do filho dele. Ele legou a mim o cuidado da educação do menino, e agora que o rei está numa idade adequada para uma educação séria, vou cumprir a promessa que fiz ao pai dele.
Gloucester cerrou os dentes de aflição. Mas o que é que ele podia fazer? Aquelas donas de casa de Londres o tinham irritado mais do que qualquer outra coisa. Ele sentia como se o chão estivesse se mexendo sob seus pés.
- O rei está, agora, com sete anos - prosseguiu Warwick.
- Deve ter sua própria criadagem e um corpo de cavaleiros e escudeiros que vamos escolher para ele.
- Vejo que o assunto já está decidido - disse Humphrey, secamente.
- É como o senhor devia esperar que fosse, senhor duque. Jurei ensiná-lo a amar, adorar e temer a Deus. vou desenvolver o caráter dele por linhas virtuosas e fazer com que ele saiba que Deus favorece os reis que são corretos.
- Favorece, mesmo? - perguntou Gloucester.
- Senhor duque, creio que a virtude é o verdadeiro caminho para a felicidade e que prazer algum pode ser desfrutado por um rei ou pelo seu país através da avareza e de más ações.
- Espero que sua sabedoria seja igual à sua piedade, Sr. Warwick.
- Fui nomeado para instruí-lo, cultivá-lo, dar a ele uma boa base em literatura, língua e todas as outras artes e castigá-lo quando ele fizer alguma coisa errada.
- Tenha cuidado com o açoite, Warwick. Os reis têm uma memória duradoura.
- Não deixarei que uma observação dessas perturbe meus atos. Além do mais, senhor duque, terei o poder de afastar dele quaisquer pessoas que eu considere prejudiciais a ele.
- Seus poderes são enormes, meu senhor.
- Farei o possível para usá-los com prudência. Os castelos de Wallingford e Hertford foram escolhidos para ele durante o verão; e Windsor e Berkhamstead, para suas residências no inverno.
- Estou vendo que foi tudo bem planejado. E a mãe dele?
- Ele a verá com frequência.
- Talvez então ela acabe com a viuvez. Que foi longa.
- Estou certo de que a rainha nunca deixará de lamentar a morte do marido.
- Talvez. Talvez. Eu lhe desejo felicidades em sua tarefa. Penso que o senhor vai precisar de todos os votos benfazejos que puder conseguir.
- Estou perfeitamente cônscio, senhor duque, da gravidade e da importância de minha missão.
Warwick retirou-se da presença do duque. Tinha sido mais fácil do que ele esperara. Gloucester estava zangado pelo fato de a guarda do jovem Henrique ter passado para ele; mas continuava sofrendo muito devido aos sinais de sua impopularidade na cidade de Londres para fazer objeções, como poderia ter feito em outras condições.
- Warwick tem o rei - disse Gloucester a Eleanor. - Não invejo a missão dele. Henrique não é o menino submisso que algumas pessoas pensam que é.
- Você deve ter cuidado para não perder sua influência sobre ele - disse Eleanor.
- Nada disso, eu serei o tio favorito. Além do mais, os tutores que são rigorosos... e Warwick bem que pode ser... nem sempre mantêm o afeto de seus pupilos. O açoite é um bom meio de acabar com futuros favores. Imagino que Warwick seja correto demais para levar em conta esse axioma. Ele não vai poupar o açoite, e isso pode muito bem prejudicar
suas oportunidades futuras.
Os dois riram juntos. A nomeação de Warwick não passava de uma irritação sem importância.
E assim Henrique deixara a primeira infância. Já não devia ficar mais sob a influência da mãe. Ela devia estar grata, achava ela, por terem permitido que ele ficasse aquele tempo todo.
Katherine pensou: agora, será mais fácil. Será menor a atenção concentrada em mim. Talvez eu possa viver, agora, como uma humilde mulher do interior. Aquilo lhe serviria muito bem, porque a parte mais importante de sua vida eram as horas que passava com Owen.
Que relacionamento extasiante, o deles! Talvez mais ainda porque devia ser desfrutado em segredo. Agora que o rei se fora, pessoas importantes tinham-no acompanhado. Se ela pudesse continuar a viver na obscuridade no interior, deveria dar graças a Deus. Ela dera um jeito de Owen visitar seu quarto quando a criadagem estivesse dormindo, e ele subira e entrara pela janela. Mas aquilo não poderia continuar assim para sempre. Fora a noite mais feliz da vida dela. Então, pudera jogar para o alto todo o fingimento - porque os dois tinham fingido durante muitos anos; ela, que ele era apenas um bom escudeiro; e ele, que não estava apaixonado pela rainha.
- Eu te amo - dissera ela vinte vezes durante aquela primeira noite romântica; e ele não deixara nela nenhuma dúvida de que compartilhava de seus sentimentos.
Finalmente, ela despertara para a vida - uma vida que nunca tivera antes. Uma paixão ardente a possuía e ela sabia que seria profunda e permanente. Já não era uma jovem para amar romanticamente, e aquela emoção se formara entre eles ao longo dos anos. Os dois tinham tentado negá-la, sabendo que aquilo apresentaria dificuldades, dificuldades intransponíveis, ao que parecia, mas nada era intransponível diante daquela torrente de amor. Ela varria tudo para o lado. A Katherine não importava que ele fosse um humilde escudeiro. Ele não se importava com o fato de ela ser uma rainha. Eram amantes, feitos um para o outro desde o primeiro momento em que tinham estado juntos. Agora, aquele amor não seria negado. O amor dela por Henrique existira. Mas não se comparava com o que sentia por Owen Tudor.
Era inevitável que aqueles que a cercavam percebessem a mudança que ela sofrera. Viam a expressão de seus olhos quando eles pousavam em Tudor; ouviam a inflexão de sua voz quando falava nele.
Dame Alice e Joan Astley abanavam a cabeça juntas. Elas não ficariam ali por muito mais tempo, porque sua tarefa se encerrara. Seu menininho fora tirado de seus cuidados, e elas eram duas mulheres tristes. Quando não falavam nele e não desejavam que o conde de Warwick não fosse muito rigoroso com ele, elas refletiam sobre a teia que a rainha estava tecendo em torno dela.
Elas estavam tristonhas. Aquilo não fora como uma casa real. Teria sido muito agradável esperar a chegada de mais pequeninos que fossem entregues aos seus cuidados.
Dame Alice se perguntava se devia avisar à rainha que as pessoas estavam sussurrando sobre ela e Owen Tudor.
Eleanor Cobham captou a notícia. Ela se orgulhava de ter o que chamava de "o ouvido no chão".
Achou divertido e não perdeu tempo em contar ao amante os boatos que ouvira.
- A rainha tem um amante, não é? - disse Gloucester. Ora, você está surpresa? Você imaginava que a querida criatura estivesse levando a vida de uma freira lá no interior? Como você achava que ela passava os dias?
- Ela era dedicada ao filho. Mas agora que ele foi embora, parece que está seguindo sua tendência.
- Espero que seja uma tendência digna.
- Ouvi dizer que se trata de um humilde escudeiro. E ainda mais, um galês.
- É mesmo? Escudeiro de sorte! Katherine deve estar muito apaixonada para ter escolhido alguém dos estábulos.
Dizem que eles estão profundamente apaixonados. Que
a rainha sempre levou a mais virtuosa das vidas, antes.
Humphrey ficou pensativo.
- É nessas ocasiões que existe o perigo - disse ele. - Não se deve deixar que ela esqueça que é a rainha.
Era um assunto um tanto delicado. Eleanor nunca sugerira que Humphrey se casasse com ela, mas ele se perguntava se ela estaria pensando naquilo ou não. Perguntava-se como iria agir se ela começasse a fazer pressão para que houvesse um casamento. Por isso, não queria discutir em muitos detalhes aquela paixão da rainha. Aquilo poderia provocar aquele outro assunto.
Mas ele achava, sim, que o futuro da rainha era uma questão que ele devia abordar com o Conselho, e iria fazê-lo sem demora.
Teria de agir com muito cuidado no que se referia aos seus assuntos particulares. Como que para lembrá-lo disso, chegaram mais notícias de Jacqueline. Borgonha a derrotara por completo, e ela percebera que não tinha chance alguma contra ele. Assinara um tratado em Delft, no qual se submetia à vontade de Filipe. Ela o reconhecia como seu herdeiro e co-regente de seus territórios. com isso, não perdia tudo. Mas teve de prometer que nunca se casaria sem o consentimento dele, porque o tipo de casamento que ela tivera com Gloucester fora declarado irrito e nulo. Ela renunciava totalmente a ele e aceitava o fato de que nunca estivera casada com ele.
Katherine percebeu que ia ter um filho. A princípio, ficou muito alegre. Parecia o resultado perfeito de seu amor por Owen. Depois, começou a pensar no que aquilo iria significar.
Ela era viúva de um rei. Para onde poderia ir enquanto o filho nascia? Algumas mulheres tinham condições de se esconder por alguns meses. Para uma rainha, era difícil.
Além do mais, ela não estava casada. Seria possível que ela e Owen participassem da cerimónia de um casamento? Por que não? Seu padre iria casá-los. Tinha de ser assim, agora que haveria um filho. Ela se casaria com Owen e depois anunciaria ao mundo o que fizera. O Conselho não podia impedi-la depois que a cerimónia acabasse. Além disso, a quem aquilo dizia respeito, a não ser a ela e a Owen? O Conselho tinha seu trabalho a fazer, governando o país. O que poderia o casamento da viúva do rei significar para ele? Agora poderia preocupar-se com o jovem rei. O Conselho o tirara dela.
Não, ela não tinha importância. Tivera, outrora, é claro, e a tinham usado plenamente para ajudar a conseguir a paz entre a Inglaterra e a França. Aquilo acabara. Henrique estava morto, e ela ficara livre durante seis anos.
Estava ansiosa por contar a Owen. Ele ficaria muito contente... mas com medo. Só pelo que poderia acontecer a ela, é claro. Era por isso que ele tinha medo, assim como Katherine receava pelo que pudesse acontecer a ele. Quanto a eles, cada qual estava pronto a enfrentar a tempestade que surgisse, em nome do que tinham sido um para o outro.
Ele foi procurá-la à tarde. As pessoas que viviam perto dela não podiam deixar de saber do relacionamento entre os dois, porque tinha sido impossível mante-lo em segredo delas. Por isso, Owen entrava e saía com frequência dos aposentos de Katherine, e estavam acostumadas a vê-lo por lá.
Ela se abraçou a ele e então lhe contou. Ele ficou calado, e ela não teve coragem de olhar para o rosto dele.
Quando olhou, viu que ele não cabia em si de alegria e, no entanto, estava com medo, como Katherine sabia que estaria, mas a maravilha daquela situação era grande demais, no momento, para permitir que ele expressasse por inteiro seus temores.
- Nosso filho - ele só conseguiu murmurar. - Oh, Katherine... minha rainha... pensar que você e eu vamos ter um filho!
E então, ele era todo preocupação com ela. Katherine precisava se cuidar. Precisaria ter criadas especiais... Ele parou, recordando-se. Então, olhou para ela, com o medo sendo, agora, o elemento dominante.
- Katherine... como...?
- vou dar um jeito - disse ela. - Tenho amigos fiéis que me ajudarão.
Ele tomou-lhe a mão e beijou-a.
- Nós devemos nos casar - disse ele -, por causa da criança.
Ela confirmou com um gesto de cabeça.
- Eu poderia procurar um padre que o fizesse - disse ela. E nós nos casaremos... com simplicidade... e depressa.
- Antes de nosso filho...
- Sim, antes de nosso filho nascer. Owen, vou mandar buscar Dame Alice e Joan. Elas têm estado tristes desde que tiraram Henrique de nós. Elas irão me ajudar.
- Um filho - disse ele, um tom de perplexidade na voz. Nosso filho. Oh, Katherine... você me fez muito feliz. Vamos ter uma menina, ou talvez um menino?
- Ficaremos contentes com o que recebermos - disse ela.
- Isso parece um milagre. Tiraram meu filho de mim... e agora, você me deu este.
- Não será fácil.
- Meu adorado Owen - disse ela. - Já não sou jovem e tenho idade bastante para saber que nem sempre as melhores coisas da vida são fáceis.
JOHN, duque de Bedford, voltara para a França e encontrara a situação inconclusiva como sempre. Tinha de acabar com aquele impasse. Era verdade que Borgonha, depois
de ter resolvido sua disputa com Gloucester e Jacqueline com grande vantagem para ele, estava mais inclinado a ser amável. Anne, a quem ele era dedicado, exercia certa influência sobre ele, e John estava mais esperançoso do que estivera desde que o terrível caso do casamento - ou casamento de mentirinha - de Gloucester lhe dera tanta angústia.
Seu grande desejo era pôr um fim na luta, e queria dar um golpe decisivo que deixasse perfeitamente claro para os franceses que era inútil eles continuarem com a resistência, a fim de que pudessem resignar-se com um governo inglês e passassem a trabalhar para levar a prosperidade de volta ao seu país.
John sabia que aquilo era pedir o quase impossível de um povo orgulhoso. Os condes de Salisbury e Suffolk, cuja assessoria ele tinha em alta conta, eram de opinião de que se eles pudessem capturar Orléans, poderiam dar um passo muito grande em direção à vitória.
Bedford tinha suas dúvidas. Não, apressava-se ele a dizer, que questionasse a importância de Orléans, mas ele achava que a tomada da cidade seria uma operação demorada. Significaria manter um grande contingente de homens para sitiá-la. O inverno estava chegando; quem saberia quanto tempo duraria um cerco daqueles?
- O inverno é ainda mais cruel para os sitiados do que para os sitiantes - assinalou Salisbury.
- É verdade - concordou Bedford -, e poderíamos levar mantimentos para os nossos soldados. Mas mesmo assim seria uma tarefa hercúlea.
- Creio, com o maior fervor, que enquanto não tomarmos Orléans e conquistarmos o comando do Loire, não poderemos avançar muito. Orléans é tão importante no Loire quanto Paris ou Rouen no Sena.
- E está tão bem defendida quanto aquelas cidades.
- Ela poderia ser tomada por um sítio, senhor duque - disse Salisbury -, e é essencial à nossa causa.
John sabia que não agiria com sensatez se não desse ouvidos ao conde de Salisbury, que era um dos capitães mais experientes do exército inglês - talvez não fosse um exagero dizer que era o melhor. Ele participara de batalhas bem-sucedidas em Champagne, Maine e Normandia, e estivera na Inglaterra havia pouco tempo, com a única finalidade de reunir um exército para, como disse ele, um tamanho ajuste de contas com os franceses que eles não teriam mais vontade alguma de lutar. Entusiasmado, ele falou com Bedford sobre a facilidade com que recrutara arqueiros para o seu exército. Tinha sido mais difícil conseguir elementos de cavalaria e soldados armados, porque eles estavam muito bem instalados em casa para querer ir para um país que há muito vinha sofrendo os efeitos da guerra; mas ele tivera um sucesso moderado e persuadira mais de quatrocentos homens daquele tipo para acompanhá-lo, enquanto reunira mais de dois mil arqueiros.
Ele estava de olho em Orléans. A chave do problema, como ele a chamara. Permanecia inflexível. Tinham de tomar Orléans...
John acabou sendo convencido, e no nevoento mês de outubro começou o cerco a Orléans. Filipe de Borgonha mandou uma pequena força para ajudar os ingleses, e John ficou grato por aquela demonstração de amizade. Mas o povo de Orléans era teimoso; tinha orgulho de sua cidade - o que era muito justo. Não iriam render-se facilmente aos ingleses. Havia uma forte convicção, dentro daquelas muralhas, de que aquilo não era um sítio comum. Não era apenas a cidade deles que estava em jogo. Era a França inteira. Um certo fatalismo tomara conta deles, e isso ficava aparente numa determinação de aceitar qualquer privação, em vez de ceder.
Orléans era uma cidade muito bonita, localizada numa curva do rio Loire - uma cidade de casas de pedra e madeira com altos telhados de ardósia, de torres e campanários, de longas ruas serpeantes que tinham mudado pouco desde a época em que ela estivera sob ocupação romana. Seus muros tinham dois metros de espessura, erguendo-se bem alto acima de um fosso, e esses eram flanqueados por torres, que eram trinta e quatro, cada qual com cinco portões e duas posternas. Ao longo de todos os muros havia parapeitos com ameias providas de balestreiros, dos quais era possível despejar óleo fervendo ou pedras de pavimentação sobre um inimigo invasor, com resultados muito bons.
Uma ponte de pedra levava da cidade à margem esquerda do Loire. Colocada sobre dezenove arcos, ela era mais do que uma ponte; servia como local de moradia de muitos dos habitantes de Orléans, pois fileiras de casas margeavam a ponte em ambos os lados. No décimo oitavo dos arcos, fora construído um pequeno castelo, conhecido como Lês Tourelles.
O povo de Orléans não estava surpreso por se ver sitiado. Na verdade, havia algum tempo esperava que aquilo acontecesse. Sabia que uma cidade atrás da outra estava caindo em mãos dos ingleses e que, com o tempo, chegaria a vez dele. Nos últimos três ou quatro anos, todos tinham estado recolhendo armas e armazenando-as na sua Torre de Saint-Samson; tinham cavado diques e até erguido fortificações. Estavam tão preparados quanto podiam para a chegada do conde de Salisbury. Por isso, não foi nenhum choque quando naquele dia de setembro o conde chegou à cidade de Janville, que ocupou com facilidade, e de lá enviou uma mensagem aos habitantes de Orléans, dizendo que estava marchando em direção àquela cidade e exigia sua rendição.
Eles se organizaram numa procissão e, com padres e comerciantes, mulheres e crianças, ricos e pobres, marcharam pelas ruas cantando salmos enquanto entravam nas igrejas para pedir a Deus e aos seus santos padroeiros que fossem em seu auxílio.
Precisariam dessa ajuda, porque Salisbury levara com ele a nata do exército inglês. O resultado da batalha por Orléans poderia ser decisivo para o resultado da guerra.
Salisbury convencera Bedford disso, e agora estava tão certo disso quanto nunca estivera sobre qualquer outra coisa. com ele cavalgavam Thomas, lorde de Scales, William Neville, seu sobrinho, lorde Richard Grey, William Polé, conde de Suffolk, e o irmão de William, John Polé, e muitos outros nobres. Um dos melhores capitães do exército também estava lá - William Glasdale, um escudeiro de berço mais humilde do que os nobres, mas um homem em quem Salisbury confiava como o fazia em poucos mais.
Salisbury viu logo que o pequeno castelo de Tourelles, que na verdade era um forte, impedia que eles atravessassem a ponte e que sua primeira providência, portanto, devia ser ocupá-lo.
O povo de Orléans lutou desesperadamente por Lês Tourelles, mas depois de alguns dias não conseguiu resistir à força superior dos ingleses, e quando foram obrigados a abandonar Lês Tourelles, tiveram de enfrentar a realidade de que tinham perdido uma de suas mais eficazes defesas.
Numa tarde de domingo ocorreu um estranho acontecimento.
A bandeira de São Jorge tremulava no forte. Os franceses desviavam os olhos dela com raiva e desânimo, enquanto o conde de Salisbury a olhava com o maior dos prazeres, porque agora tinha um ponto vantajoso. Do ponto mais alto da torre, ele podia olhar por cima dos muros e ver a cidade.
Ele subiu na torre em companhia do capitão William Glasdale e alguns outros, e por alguns momentos ficaram olhando para a cidade. De repente, a janela estilhaçou-se. Uma bala de canhão arrancara um canto da janela; uma pedra soltara-se e atingira o conde, arrancando-lhe metade do rosto. Ele caiu ao chão, desmaiado.
Enquanto os companheiros o levantavam, Glasdale olhou à sua volta e percebeu que o tiro devia ter vindo da torre de
Notre-Dame, que ficava perto e que parecia deserta, exceto quanto a uma criancinha que estava em pé.
Foi um acontecimento muito misterioso, e catastrófico para os ingleses, e poucas horas depois de ter sido levado para MeungSur-Loire, Salisbury morreu, sem nunca ter recuperado a consciência desde que o golpe o atingira.
Eles haviam perdido o líder, o homem que tinha a certeza da vitória, e estavam estarrecidos. Aquilo era mais do que a perda de um grande general, porque fora o começo das estranhas histórias que iriam circular por Orléans e seus arredores.
Pessoas que tinham estado perto de Lê Tour Notre-Dame quando o canhão fora disparado juravam que ninguém estivera lá, exceto um menino que estivera brincando tranquilamente.
Teria ele disparado o canhão que matara Salisbury? Não conseguiram encontrá-lo, para que fosse interrogado. Ele aparecera por apenas uns instantes e fugira.
Poderia ser um aviso de Deus?, perguntava o desesperado povo de Orléans. Tinha de ser. Eles precisavam acreditar nisso. Necessitavam muito de ajuda, e quem melhor do que Deus poderia dar-lhes essa ajuda? Orléans estava com sede de milagres. Por isso, quando acontecia alguma coisa que pudesse ser um milagre, eles a glorificavam e aumentavam.
Era um sinal de Deus, diziam todos. Eles ainda seriam salvos.
O inverno estava chegando. O povo de Orléans ainda se recusava a render-se, e os ingleses, vivendo sem conforto fora dos muros da cidade, sofriam tantas privações quanto os lá de dentro. O Bastardo de Orléans fora enviado para ajudar seu povo. Era um guerreiro de grande habilidade e charme, e levou novo ânimo ao povo. Filho do duque de Orléans e sua amante madame de CanyDunois, ele era um homem poderoso na França. Sua condição de bastardo pouco o atrapalhara; afinal, era o filho bastardo de um príncipe. Naquela época, ele tinha vinte e tantos anos de idade e já obtivera muitos sucessos. Levou uma nova esperança para a cidade, porque com ele estavam guerreiros de grande reputação, como o marechal de Boussac e o lorde de Chaumont. Lorde Scales, William Polé e Sir John Talbot tinham assumido o comando do cerco depois da morte de Salisbury, e como o Natal estava próximo, enviaram mensagens à cidade sugerindo ao Bastardo de Orléans que deveriam fazer uma pausa nas hostilidades para comemorar o dia do nascimento de Cristo.
Na cidade, havia um ar de expectativa. Eles acreditavam que suas orações tinham sido atendidas. A história da morte de Salisbury estava sempre sendo comentada. Aquilo, agora, tornara-se um milagre. O canhão, segundo se acreditava, fora disparado de uma torre vazia. A única pessoa que tinha sido vista lá era uma criança. Poderia uma criança ter disparado um canhão? Era praticamente improvável. Uma mão misteriosa tirara Salisbury do caminho deles. Deus os estava ajudando.
Uma das histórias em circulação era de que uma bala de canhão inglesa caíra sobre uma mesa à qual várias pessoas estavam sentadas almoçando. Abala ricocheteara na mesa, e ninguém ficara ferido.
Uma história melhor falava da bala de canhão que caíra perto de La Porte Bannière, porque naquele ponto estavam várias centenas de pessoas e no entanto ela não causara dano algum, exceto arrancar o sapato de um homem. Rindo, ele bradara:
- Os ingleses têm um trabalho enorme para me fazer calçar meu sapato duas vezes num dia.
Essas histórias multiplicavam-se, e a admiração que causavam aumentava a cada vez que eram contadas. O povo de Orléans estava à procura de um milagre. Era muito reconfortante, de fato, acreditar que Deus ou os santos lhes estavam dando aqueles sinais.
Assim, no dia de Natal estavam todos prontos para uma trégua em nome de Jesus Cristo, que nascera naquele dia.
O próprio Bastardo mandou seus melhores músicos para Lês Tourelles; e o dia todo chegava o som da música que eles tocavam e do canto de canções natalinas inglesas.
O povo de Orléans ficava em cima dos muros da cidade ouvindo, sem temor, e os ingleses esqueceram as privações pelas quais estavam passando.
Os inimigos ficaram amigos... só no dia de Natal.
Havia um certo ar de agitação entre o Bastardo e seus amigos, porque seus espiões tinham informado que o exército inglês estava com grande escassez de alimentos e que fora providenciado para que uma grande quantidade de mantimentos lhes fosse enviada de Paris.
- Eles estão muitíssimo necessitados desses mantimentos
- disse o Bastardo. - Se pudéssemos interceptá-los e impedir que chegassem, deveríamos estar virando a mesa. Eles não podem prosseguir sem comida. Isso poderia ser a salvação de Orléans.
Deus estava realmente do lado deles. Agora, tinham certeza. Não deveria ser difícil emboscar o comboio e capturá-lo. Ele seria de muita utilidade para Orléans.
O Bastardo deixou a cidade esperançoso, e o povo lotou as igrejas para rezar. Aquilo era mais um sinal, diziam. Eles tinham apenas de ser pacientes, acreditar em Deus e em Seus milagres, e não apenas Orléans, mas toda a França seria salva.
Em Paris, o Bastardo encontrou-se com o conde de Clermont, um jovem de sangue real e de excepcional beleza e charme, que recebera as esporas de cavaleiro e estava empolgado com a sua importância. O Bastardo deu-lhe instruções para que levasse seus homens e ficasse alerta, ao longo da estrada, para a chegada de Sir John Fastolf, experiente guerreiro inglês que estava no comando do comboio.
Clermont estava decidido a distinguir-se e queria que a honra de capturar os mantimentos fosse só sua. Ele não deixaria o Bastardo de Orléans assumir a glória toda. A importância daquela confrontação estava clara. Impedir que o comboio chegasse aos ingleses iria forçá-los a ir embora para não morrerem de fome. Eles teriam de desistir do cerco, e a glória de salvar Orléans seria dele.
O Bastardo separou-se dele para partir em outra direção, e enquanto Clermont seguia cavalgando alegremente à frente de suas tropas, muito certo da vitória, eles foram alcançados por um mensageiro que vinha a galope. Alguns soldados gascões tinham avistado o comboio. Eles acreditavam que poderiam dominá-lo com facilidade, porque os ingleses ignoravam por completo qualquer perigo. Naquele momento, seria possível pegá-los despreparados para um ataque.
Não façam tentativa alguma antes de eu chegar - bradou o lépido e jovem conde. Seria uma vitória fácil, mas seria dele.
Enquanto isso, os ingleses perceberam que tinham sido avistados e que um ataque era iminente. Eles tinham trezentas carretas e carroções cheios de provisões muito necessárias, e estavam acompanhados por apenas poucos guardas, arqueiros e soldados de cavalaria, com alguns mercadores que tinham fornecido os produtos e uns camponeses para ajudar a descarregálos.
Sir John Fastolf, com Sir Richard Gethyn, sabia que se achavam numa situação muito perigosa, e que para sair dela seria preciso muita engenhosidade. Eles estavam no pior terreno possível, já que se achavam inteiramente desprotegidos, e se uma potente força os atacasse, seriam rapidamente dominados.
Mas Sir John era um guerreiro experiente. Aquela não era a primeira situação difícil em que se encontrava, e estava pronto a tentar qualquer expediente que pudesse ser útil.
Eles tinham visto os gascões e se perguntavam por que não atacavam. Se o tivessem feito, o comboio poderia ter sido perdido.
- Deus nos deu tempo - bradou Sir John. - Era do que precisávamos, e com Sua ajuda, poderemos escapar.
Ele então esboçou o plano. Os carroções proporcionariam a defesa que sua situação na planície lhes negara. Havia trezentos carroções - cento e cinquenta de cada lado quando eram enfileirados com uma estreita passagem entre eles. Em volta de todos os carroções, eles colocaram estacas apontando em direção aos atacantes; atrás das estacas ficaram os arqueiros, de modo que quando Clermont chegou confiante, os ingleses estavam preparados. Clermont deu a ordem para que sua cavalaria avançasse, o que ela fez. Uma chuva de flechas os recebeu; os cavalos tropeçaram e quebraram as patas nas estacas. Não foi difícil arrasar os homens de Clermont, no final das contas, e quando o Bastardo chegou foi ferido no pé e escapou por pouco de ser feito prisioneiro.
Clermont, vendo sua glória desvanecer-se, ficou amuado e recusou-se a ir em auxílio do Bastardo ferido. Trezentos franceses perderam a vida na batalha antes de os carroções - muito pouco avariados por terem representado o papel de fortificações - serem empurrados até os muros de Orléans.
Foi grande o regozijo entre os ingleses quando ficaram sabendo do resultado da batalha. Eles estavam com seus mantimentos - cuja perda teria significado a necessidade de abandonar o cerco.
Sir John Fastolf era um herói, e quando os carroções foram descarregados e viu-se que seu conteúdo consistia, na maior parte, em arenques, aquela confrontação passou a ser conhecida, dali por diante, como a Batalha dos Arenques.
O povo de Orléans ficou desanimado. Daquela vez, Deus não estivera do seu lado. Ele deixara que aquele tolo, o jovem conde de Clermont, os privasse da vitória.
Os pequenos milagres das balas de canhão estavam perdendo o poder de consolar.
O conde de Clermont podia ser primo do rei, mas quando entrou em Orléans foi recebido com desprezo. Até mesmo o Bastardo, que se recuperava dos ferimentos, estava desconsolado, e o marechal de Boussac, que voltara com ele, dava a entender que sua presença era necessária em outro lugar.
O povo de Orléans estava perdendo aquela animada esperança. Precisava tristemente de um milagre.
Os cidadãos conversavam entre si. Estavam sendo abandonados por aqueles que tinham ido ajudá-los, e isso só podia significar uma coisa. Aqueles homens acreditavam que o caso não tinha solução.
Algumas das forças do duque de Borgonha estavam do lado de fora dos muros, com os ingleses. E se se propusessem a render-se a Borgonha? Isso evitaria que caíssem em mãos dos ingleses.
Para eles, parecia não haver mais nada a ser feito. Eles não podiam continuar passando fome e resistir a uma força tão superior. Proporiam, então, render-se a Borgonha.
Filipe de Borgonha não ficou contrariado, em absoluto. Ele declarou que teria prazer em ocupar Orléans, e a cidade deveria ser-lhe entregue.
Mas era praticamente impossível esperar-se que o duque de Bedford ficasse calmamente de lado e visse Borgonha entrar a pé em Orléans. Por que concordaria ele com isso, quando estava claro que o povo de Orléans estava prestes a se entregar? Ele e Borgonha eram aliados, era verdade, mas aliados constrangidos. Borgonha já era poderoso demais. Por que iria ele, Bedford, torná-lo ainda mais poderoso? Quando pensava em todos aqueles homens, todo aquele tempo e dinheiro que gastara naquele cerco, ele ficava enfurecido.
- Isso não vai acontecer - disse ele. - Não quero sacudir os arbustos para que outra pessoa possa pegar os passarinhos.
Borgonha, já preparado para marchar contra Orléans, ficou furioso. Imediatamente, retirou suas tropas e houve um racha entre os aliados.
- Vamos continuar com o cerco - disse Bedford, sério, e o povo de Orléans continuou teimoso como sempre. Continuaria passando privações, em vez de ceder aos ingleses.
Então, até ele tomou ciência dos rumores que andavam pelo ar. Pouco ligou para eles. Aprendera com seus ancestrais que os líderes só acreditavam em superstições quando elas funcionavam em seu favor.
Aquela fora armada pelos franceses. E era um tremendo absurdo. Ele ria ao pensar nela, porque ela mostrava o quanto estavam desesperados, a ponto de inventar e espalhar histórias como aquela, na vã esperança de levar consolo a um povo que já estava farto de sofrer.
Diziam os rumores que havia uma donzela. Ela ouvia vozes que lhe diziam que Deus a escolhera para salvar a França.
John soltou uma sonora gargalhada. Que eles dessem asas a suas fantasias. Pobrezinhos, talvez aquilo pudesse levar um pouco de consolo a seus corpos famintos; o bom senso devia dizerlhes que a derrota estava prestes a acontecer.
Uma camponesa. Uma virgem. Eles salientavam isso. Ela participaria do combate e expulsaria os ingleses da França.
Ele ficou surpreso ao ver que os franceses se permitiam ter uma superstição como aquela.
O cansativo cerco continuava, mas, à medida que as semanas passavam, o nome de Joana dArc era ouvido com uma frequência cada vez maior, e até mesmo John, duque de Bedford, não podia ignorá-lo.
Katherine estava em Hadham, em Hertfordshire. Ali era tranquilo, e ela poderia descansar em paz e fazer planos.
Mandara chamar Dame Alice Butler e Joan Astley. Antes que ela lhes contasse, elas sabiam o motivo. Dame Alice disse que via aquilo na expressão do rosto dela.
- Como sabem - disse Katherine -, eu tenho um marido. Elas curvaram a cabeça e ficaram esperando.
- É claro que nossa união tem de continuar em segredo... por enquanto. Mas agora descobri que estou grávida.
- Nós cuidaremos de Vossa Majestade.
- Eu sabia que cuidariam - replicou Katherine. - Vocês gostavam tanto do meu filho! É uma pena aqueles homens acharem melhor tirar filhos dos que os alimentaram e amaram.
- Eles farão dele um rei, antes de ser um menino - disse Dame Alice.
Joan concordou, num gesto com a cabeça.
- Temos de ficar caladas sobre este caso - prosseguiu a rainha -, até que eu saiba o que o Conselho vai fazer em relação a ele. Não quero que algum mal aconteça ao meu marido.
As mulheres compreendiam perfeitamente. Owen poderia ser tirado da companhia dela. Poderia ser preso pelo que fizera e, por ser de origem humilde, seus atos poderiam ser considerados como traição. Ele poderia ser condenado à horrível morte dos traidores.
Aquelas mulheres compreendiam muito bem a delicadeza da situação; mas sua principal preocupação seria trazer a criança a salvo para este mundo.
Joan era hábil com a agulha, e conseguiu arrumar as roupas de Katherine, de modo que a gravidez não ficasse tão evidente quanto teria ficado.
Katherine mandou chamar seu sacerdote. Disse-lhe que iria casar-se com Owen Tlidor e que queria que ele realizasse a cerimónia o mais cedo possível.
Ele ficou perplexo e relutante. Katherine era uma rainha, e ele poderia correr perigo se realizasse aquela cerimónia.
Abanou a cabeça.
Majestade, acho que devia comunicar suas intenções ao duque de Gloucester. Se ele concordar, poderemos realizar a cerimónia sem demora.
- Eu estou grávida-disse ela. -A cerimónia tem de acontecer imediatamente.
O padre ficou horrorizado. Não queria ter nada com aquela história.
- O senhor é um homem religioso? - perguntou a rainha.
- Vai me negar casamento com o pai de meu filho?
O padre não teve resposta. Ela engambelou; persuadiu; ameaçou; e quando salientou que ele estava contrariando as leis da Igreja ao negar-lhe o casamento, ele acabou prometendo realizar a cerimónia no dia seguinte.
Mais tarde, naquele mesmo dia, uma de suas damas de companhia foi procurá-la, muito agitada. Era um rumor que ela ouvira.
Dizia-se que o duque de Gloucester induzira o Parlamento a fazer uma lei proibindo que qualquer pessoa se casasse com a rainha viúva ou com qualquer dama de alta estirpe sem o consentimento do rei e de seu Conselho.
- Isso não pode ser verdade - bradou ela. - Por quê... depois de tanto tempo? Por que ele faz isso agora?
Ela não precisava de uma resposta para aquela pergunta. Era porque ele sabia.
Mas Gloucester só podia ter ouvido rumores da ligação dela com Owen Tlidor.
- O que vai ser de nós? - bradou, aterrorizada. Mas ela não era de ceder ao desespero. Talvez os horrores da infância a tivessem preparado para lutar sozinha.
Independente da vontade de Gloucester, ela iria se casar com Owen Tudor. Ela decidira que seu filho nasceria de pais casados.
Talvez, pensou ela, fosse melhor não comentar com o padre que havia aquele rumor sobre seu casamento. Se ele os casasse na inocência, não poderia ser considerado culpado. Ela diria a ele que aquele ato deveria ser muito sigiloso. Só o seu círculo mais chegado deveria saber do acontecimento. Eles continuariam a viver como antes. Ela teria o filho para cuidar e esperaria que Gloucester e seu Conselho perdessem o interesse pela mãe do pequeno rei.
A cerimónia teve lugar num sótão na mansão de Hadham, e todos os presentes tiveram de jurar que a manteriam em segredo. O padre pediu permissão para se retirar assim que o casamento tivesse sido realizado, o que Katherine deu de imediato.
E assim, ela se casou.
Poucos dias depois, a nova lei proposta por Gloucester proibindo-a de se casar sem permissão foi aprovada e ela foi oficialmente informada. O que ela poderia fazer? Era tarde demais.
- Não diga nada - disse ela. - Essas coisas passam.
Agora estava completamente absorta pelo seu amor por Owen e pela iminente chegada do filho deles.
O duque de Gloucester era uma fonte de grande irritação para o Conselho, a cujos membros ocorreu que o poder dele poderia ser consideravelmente reduzido se o rei fosse coroado. Assim, ele não precisaria mais de um protetorado. O rei, embora um menino, governaria por conta própria. Assim, o poder de Gloucester poderia ser contido com um só golpe.
O Conselho chegou a um acordo unânime, e num belo dia de novembro o jovem Henrique foi levado a Westminster.
O conde de Warwick o conduziu à alta plataforma que fora armada na abadia, e lá ele ficou sentado, olhando para a frente com uma expressão muito solene, um pouco triste mas conduzindo-se, como todos concordaram, com humildade e devoção.
A coroa foi colocada sobre a sua pequena cabeça, e agora ele sabia que não era hora de reclamar do peso. Já aprendera que, embora às vezes fosse prazeroso ser um rei, em alguns momentos isso tinha suas desvantagens.
Depois de coroado, ele teria de seguir em procissão para Winstminster. Ali, três duques caminhariam à sua frente levando as espadas, que simbolizavam a misericórdia, o Estado e o império, e o próprio Henrique seria conduzido por dois bispos e seis frades, com os barões dos Cinco Portos carregando seu manto; e o conde de Warwick, a cauda. Juizes, barões, cavaleiros e todos os dignitários da cidade de Londres teriam de comparecer.
O bispo de Winchester - agora cardeal - estava sentado à sua direita na festa, e o novo chanceler, John Kemp, estava do outro lado. Era tudo muito formal, e Henrique sentiu pena dos condes de Huntingdon e Stafford, porque eles tinham de ajoelhar-se a seu lado durante a festa, um segurando o cetro e o outro a espada do Estado - embora Henrique também se sentisse muito incomodado com os pesados trajes e com a coroa.
E quando estava sentado e o defensor hereditário entrou a cavalo para desafiar quem não concordasse que Henrique era o rei de direito, o menino prendeu a respiração e olhou à sua volta, aflito, imaginando o que aconteceria se alguém questionasse o fato.
Isso não aconteceu, e a festa começou. Henrique desejou estar de volta a Windsor, conversando com a mãe, enquanto Dame Alice e Joan Astley lhe serviam sua refeição simples.
E assim ele foi coroado, e fizeram com que se lembrasse, com muita insistência, de que era o rei da Inglaterra.
Seu tio Bedford enviou mensagens da França.
Ele aprovava a coroação do rei; e agora queria que ele fosse coroado rei da França. Isso era muito importante.
Assim, mal Henrique passou por uma coroação, teve de se preparar para outra.
Foi numa atmosfera de mistério que o pequeno Tudor veio ao mundo. Claro que era impossível manter sua existência em total segredo, mas os que pertencessem à criadagem precisavam saber.
Se chegavam visitantes, não iriam querer visitar a ala infantil. Os criados eram leais. Tinham de sê-lo, se quisessem manter o emprego, e a maioria gostava muito da rainha.
Katherine decidira que tudo seria realizado com a tranquilidade possível. E ela o conseguiu muito bem. Owen agora continuava com seus deveres de escudeiro, mas morava nos aposentos da rainha.
Eles eram dois pais felizes com um filhinho recém-nascido.
Conversaram sobre como ele deveria se chamar; Owen sugeriu Edmund, e como Katherine desejava o tempo todo agradar Owen, ela concordou.
E assim o pequeno Edmund progredia, e não demorou muito e Katherine ficou grávida uma vez mais.
Àquela altura, as estranhas histórias de uma jovem camponesa chegavam à Inglaterra.
Diziam que era uma virgem dotada de ordens vindas do Céu.
Katherine falava um pouco sobre ela. Estava ligeiramente interessada, porque a jovem era francesa e dizia-se que era de Domrémy, região que Katherine conhecia ligeiramente.
Mas havia coisas demais para interessá-la em sua casa para que ela desse muita importância a uma estranha história sobre uma certa jovem que estavam chamando de Joana D'Arc.
CERCA de dezesseis anos antes de o cerco a Orléans começar, Jacques dArc e sua mulher esperavam, com um misto de emoção e de apreensão, o nascimento do quarto filho.
Não que o que estava para chegar não fosse ser bem recebido. Longe disso. Jacques e sua mulher Isabelle - conhecida carinhosamente por Zabillet - adoravam os filhos. Mas os tempos estavam difíceis
- quando foi que não estiveram? -, e a chegada de um novo filho significaria mais uma boca para alimentar.
Jacques nascera em Arc-en-Barrois, e por não ter um sobrenome legal, era chamado segundo sua terra natal. Ele acabara arranjando emprego perto do castelo de Vaucouleurs, e enquanto estivera por lá conhecera Isabelle Romée. Eles tinham se apaixonado e se casado. Isabelle - ou Zabillet -, embora estivesse longe de ser rica, não era pobre de todo, e ao se casar herdara a casa em Domrémy, onde se instalara com Jacques, e lá os filhos tinham nascido. Não era, em absoluto, uma mansão, mas servia como lar para eles e havia um pequeno terreno anexo que lhes permitia plantar alguns produtos agrícolas e, com isso e com a permissão que era concedida a todos os moradores da aldeia para levarem o gado para pastar nos campos próximos, conseguiam alimentar e vestir a jovem família toda.
Domrémy estava situada à margem do rio Meuse, a cerca de vinte quilómetros da cidade de Vaucouleurs e um pouco mais perto de Neufchâteau. Ao lado dela ficava a aldeia de Greux, e do outro lado do rio ficava Maxey; poucos quilómetros adiante, estavam Burey-le-Grand e Burey-le-Petit, e ao longe, no alto do morro, ficava o Château Bourlémont.
Até as guerras estourarem de novo, fora um lugar pacífico para morar. As notícias custavam a chegar; os aldeões eram como uma só família, entrando e saindo uns das casas dos outros, sentandose à porta da frente no verão, reunindo-se em torno das fogueiras no inverno, com muita frequência em uma ou outra das habitações, a fim de que uma única fogueira pudesse servir a vários deles, já que nem sempre era fácil encontrar combustível. Os aldeões viviam com cuidado, aproveitando ao máximo tudo o que pudessem tirar da terra, e de vez em quando poupando um pouco de dinheiro para guardar para os casos de emergência. Havia uma certa agitação quando chegavam viajantes, o que acontecia de quando em vez, porque perto dali passava a estrada que estava ali desde que fora construída pelos romanos, e pela qual seguiam os mensageiros que iam e vinham da corte; os mercadores também viajavam por ela, de modo que Domrémy não ficava tão isolada do mundo como certas aldeias poderiam ficar. Às vezes, aqueles viajantes permaneciam na aldeia e pediam uma cama para passar a noite e, em troca daquela hospitalidade, contavam o que estava acontecendo no mundo exterior. Além disso, como a casa de Jacques dArc era mais espaçosa do que outras na aldeia, em geral era ele que recebia os hóspedes.
Era uma casa comprida e baixa, com um pesado telhado de ardósia sustentado por grandes vigas. Na frente, havia duas janelas pequenas que tinham sido colocadas tão alto, que o interior ficava muito escuro. O chão era de terra; e a casa, mobiliada com parcimônia, com apenas o estritamente necessário - uma mesa rústica sobre cavaletes, alguns bancos e um tear e a masseira; divisórias rústicas separavam os aposentos. Havia poiais de janela na lareira, e as paredes estavam escurecidas por anos de fumaça. Mas naquelas paredes, em cada cómodo, havia um crucifixo pendurado, porque Jacques e Zabillet eram fervorosamente religiosos e estavam decididos a criar os filhos para que também o fossem.
A igreja ficava tão perto da casa, que o seu triste cemitério era a primeira coisa que a família via quando saía de casa para a luz do dia. Os dias eram acentuados pelo som de sinos. Eles pareciam estar tocando o tempo todo, não apenas para a missa e para as vésperas, as matinas e as completas, mas para todas as cerimónias da aldeia, batizados, casamentos e enterros. A igreja dominava a aldeia.
Era o que acontecia naquela época em que o quarto membro da família dArc estava prestes a surgir. O jovem Jacques - batizado em homenagem ao pai e chamado de Jacquemin,
em parte por afeto e pelo costume que havia na família de dar apelidos, e em parte para distingui-lo do pai - já estava trabalhando no campo com o pai. O mesmo acontecia com o irmão mais moço, Jean; e até a pequena Catherine ajudava na casa e estava aprendendo a tecer. com o tempo, o novo filhinho iria juntar-se a eles - se sobrevivesse -, e Zabillet estava sempre dizendo a Jacques que embora quanto mais filhos eles tivessem mais comida teria de ser arranjada, todos faziam jus ao pão de cada dia. Jacques concordava, e assim, na pequena aldeia de Domrémy, eles aguardavam o nascimento do filho.
Não houve falta de ajudantes quando as dores de Zabillet começaram. As esposas amontoavam-se no escuro interior onde ela estava deitada em seu catre. Os homens ainda trabalhavam nos campos, mas Jacques sabia que assim que o bebé chegasse, ele seria chamado.
Um nascimento era fácil, em Domrémy - mas a morte, também. Zabillet estava bem calma. Aquela era a quarta vez em que se encontrava naquelas condições; e já estava adorando o filhinho.
E assim, a criança nasceu. Uma menininha.
Ora, eles tinham dois meninos, e as meninas eram úteis. Podiam tecer e cozinhar e cuidar dos homens; podiam, também, fazer suas tarefas nos campos.
Era uma menina perfeita, e decidiu-se dar-lhe o nome de uma de suas madrinhas. Jeanette era um nome muito apreciado na França. Era o feminino de Jean, João, e João tinha sido o discípulo de quem Jesus Cristo mais gostara. Era um bom nome.
Além do mais, era uma homenagem a uma de suas madrinhas - Jeanette de Vittel, que tinha ido a Domrémy, vinda de Neufchâteau, para a cerimónia, e era tida em muito alta conta porque o marido, Thiesselin de Vittel, era um estudioso e sabia ler.
Houve muitos padrinhos, como era o costume, e a pequena Jeanette foi batizada pelo cura Jean Minet na igreja que era dedicada a Saint Rémy.
Jeanette estava com pouco mais de três anos quando ouviu falar pela primeira vez na guerra. O assunto entrava muito na conversa de seus pais, e os irmãos falavam muito sobre ela. Agora, outros viajantes passavam a galope pela estrada e às vezes passavam a noite lá. Ela percebia bem a agitação quando os vizinhos enchiam a casa, se fosse no inverno, para sentar-se à volta da fogueira e ouvir as notícias que o viajante trazia, ou se fosse no verão, para reunir-se no gramado, do lado de fora da casa.
Agora havia mais um filho - Herre, conhecido como Rerrelot -, e cabia a Jeanette tomar conta dele, o que, apesar de sua pouca idade, ela fazia razoavelmente bem. Ela era uma garotinha muito séria, e esforçava-se bastante para compreender sobre o que os adultos conversavam e por que às vezes as notícias faziam com que eles ficassem muito tristes e, outras vezes, os deixavam satisfeitos.
Foi nessa época que ela ouviu pela primeira vez a palavra Agincourt. Não sabia o que significava, exceto que se tratava de alguma coisa ruim e vergonhosa. As pessoas ficavam com raiva quando falavam nos godons que, pelo que ela imaginava, eram uma espécie de demónios malvados.
Quando ficou um pouco mais velha, ela começou a aprender mais sobre aqueles assuntos. Havia um inimigo da França que era malvado e cruel. Eram os godons. Eles não acreditavam em Deus e usavam imprecações. "God Damn" ("Maldito seja Deus") era uma que estava constantemente em seus lábios - dita na língua bárbara deles - e da qual eles tomaram seu nome. Eles tinham vencido a batalha de Agincourt e com isso humilhado muito a França e deixado o rei muito triste. Outro nome para os godons era "ingleses".
Por ter uma casa maior do que a maioria dos aldeões, mas principalmente por ser um homem de caráter forte, Jacques dAre tornara-se uma espécie de líder da aldeia. As pessoas iam à sua casa para falar sobre seus problemas; se alguma providência devesse ser tomada, elas ouviam seus conselhos. Jeanette gostava de ficar sentada, quieta, nas sombras, e ouvir, e por isso quando era muito criança já compreendia com bastante clareza o que se passava.
Era Guerra. Aquela era uma palavra odiosa, e ela sentia vontade de tapar os ouvidos para não escutá-la. As pessoas se esqueciam dela por longos períodos e sentiam-se felizes, e então Jeanette tornava a ouvir aquela palavra e as pessoas ficavam tristes - mais do que isso, ficavam com medo.
- Por que temos de ter uma guerra? - perguntou ela a Jacquemin. - Qual é o benefício que ela traz? Por que eles não param com ela? Ela só faz prejudicar as pessoas.
Jacquemin dirigiu-lhe um olhar de desprezo. Disse que ela não compreendia. Ela devia continuar a aprender a tecer.
Ela respondeu que fazia isso, mas que ao mesmo tempo podia pensar.
com o tempo, ficou sabendo que havia encrencas entre o povo de Armagnac e os borgonheses e que isso vinha acontecendo desde que o duque de Borgonha assassinara o duque de Orléans, e agora parecia que o povo de Armagnac tinha assassinado o duque de Borgonha como retaliação.
E o que aquilo tinha a ver com os camponeses de Domrémy?, perguntava-se Jeanette. Às vezes se passava muito tempo sem se falar em guerra. Havia dias felizes, de festas. Jeanette adorava a solenidade deles, os cantos na igreja, o tocar dos sinos. Ela adorava as imagens nas igrejas e tinha prazer em ajoelhar-se diante delas, e gostava acima de tudo quando estava sozinha na igreja. Sua mãe lhe ensinara o Pai-Nosso, a Ave-Maria e o Credo. Ela os aprendera com sofreguidão; para ela, parecia maravilhosamente belo entrar na igreja e ouvir o sacerdote falar. Todas as mulheres da aldeia iam, e Zabillet levava os filhos assim que eles aprendiam a andar.
A igreja parecia, para Jeanette, algo bonito em uma vida cheia de dificuldades e dominada pela necessidade de sobreviver. A igreja fazia uma promessa de paraíso para alguns; oferecia beleza e cor em vidas insípidas. Os camponeses podiam sublimar sua difícil luta na religião. Mas embora se tratasse de uma religião de uma grande promessa de felicidade sublime, ela também tinha seu lado negativo. Era uma religião de contrastes - tal como a própria vida -, e assim como havia o céu para os virtuosos, devia haver um Inferno para os que não atingissem a perfeição exigida pelos portais do céu antes que uma alma passasse por eles. Parecia que era preciso passar a vida fazendo por merecer o direito de entrar, e Jacques e Zabillet estavam decididos a que seus filhos não deveriam ter sua entrada negada.
Jeanette adorava o Domingo das Rogações, quando os estandartes eram tirados e a cruz era erguida da parede e todos seguiam em procissão liderada pelo cura até a árvore sagrada à beira do rio, conhecida como EArbre dês Dames. Os menininhos iam na frente, depois as mulheres e as meninas, e atrás delas, os homens. Enquanto caminhavam, eles entoavam orações, e quando chegavam à árvore sagrada o cura lia o evangelho antes de voltar à aldeia cantando loas a Deus e à Virgem.
Era uma ocasião solene, mas aquela que acontecia no quarto domingo da Quaresma não era tanto. Era o dia das crianças - o dia que eles chamavam de Laetare. Nessa época, a terra estava despertando para a primavera, e o interior ficava com uma aparência linda, e enquanto seguiam em frente, carregando suas preciosas cargas de bolos, pãezinhos, maçãs que tinham sido guardadas durante o inverno, castanhas, queijo e talvez um ou dois doces, se tivessem sorte, iam até a árvore e, lá, cantavam e dançavam. Às vezes, um flautista ia com eles e tocava músicas para dançar; e as crianças colhiam flores silvestres e formavam tiras com elas. Essas tiras elas penduravam nas árvores ou levavam para casa e cuidavam delas em seus lares até que murchassem, o que acontecia logo.
A árvore significava um símbolo. Devia ser assim desde a época pré-cristã, mas os aldeões não ligavam para o fato de que a veneração dela era uma herança do passado. Havia uma forte superstição, em Domrémy, de que os duendes que eles chamam de Gente Pequena ainda habitavam certas partes das florestas. Alguns dos camponeses colocavam alimentos para eles o que mal podiam pagar -, mas na verdade todos tinham medo de ofendê-los, porque os duendes nem sempre eram bons, e algumas pessoas defendiam a teoria de que na realidade eles eram pessoas que não eram boas o bastante para ir para o céu e não eram más o bastante para ir para o inferno e, por terem negada a admissão aos dois, deviam vagar pela Terra.
Havia uma fonte na nascente do rio chamada de La Fontaineaux-Bonnes-Fées-Notre-Seigneur. Ficava a cerca de mil e seiscentos metros da aldeia, à beira de um bosque chamado BoisChesnu; e dizia-se que aquela fonte possuía poderes mágicos. Os doentes beberiam suas águas, mas como também ali era um ponto de encontro daqueles duendes, nos quais não se podia confiar, era-considerado muito perigoso visitá-la, porque em vez de adquirir boa saúde era possível provocar a ira e as maldições da Gente Pequena.
Jeanne - conhecida como Jannet - Aubrit, que fora uma das madrinhas de Jeanette, dizia ter visto os duendes dançando em volta de LArbre dês Dames, e Jannet era mulher de um homem muito importante que trabalhava para os senhores de Bourlémont; Jannet era piedosa demais para ter dito uma mentira. Por isso, existiam duendes, mas Jeanette estava mais interessada nos santos.
Assim, ela ia crescendo numa atmosfera de extrema piedade com uma crença em milagres e uma consciência cada vez maior dos horrores da guerra à medida que esta se aproximava gradativamente de Domrémy. Ela ouvia as conversas sobre a época antes da chegada dos godons. Naquele tempo, parece que tudo era paz, embora às vezes houvesse escaramuças entre os armagnacs e os borgonheses. Mas os godons eram demónios que vinham do outro lado dos oceanos e estavam decididos a tirar a França daquele que era o seu rei de direito.
Quando ficava sozinha na igreja, Jeanette ajoelhava-se diante da imagem da Virgem e rezava para que os godons pudessem ser obrigados a voltar para suas terras e que a França pudesse tornar a ser feliz.
Jeanette contava com alguns amiguinhos na aldeia. Quando trabalhava nos campos ou estava tecendo em casa, Isabelle Despinal e Mengette Joyart, que levavam suas rocas, juntavam-se a ela e os três riam e conversavam. Isabelle e Mengette eram um pouco mais velhas do que ela, mas Jeanette era adiantada para a sua idade, e a diferença passava despercebida. Havia uma oienina, Hauviette Sydna, que gostava de juntar-se a elas. Adorava Jeanette, que nunca deixava de recebê-la muito bem, apesar da pouca idade; e as meninas eram muito felizes, juntas.
Elas tinham muito pouco tempo de lazer quando não estavam tecendo ou trabalhando nos campos ou carregando água para casa, mas um dia, quando descobriram que não havia mais fio para tecer e tinham acabado o trabalho nos campos, Jeanette disse que ia até a capela de Notre-Dame de Bermont a pé.
- É longe - disse Isabelle.
Jeanette disse que, embora fosse longe, ela iria. Estava acostumada a caminhar e só para distâncias muito grandes é que deixariam que ela levasse a pequena mula.
Hauviette implorou para que a deixassem acompanhá-las, de modo que seguiram todas para a capela.
- Antigamente - disse Isabelle - lorde e lady de Bourlémont lideravam as procissões.
- Por que não lideram agora? - perguntou Hauviette.
- Porque morreram, sua boba - disse Isabelle.
- Como é que a Hauviette ia saber disso? - perguntou Jeannette.
Hauviette agarrou a mão dela e apertou-a. Jeannette era bondosa, embora fosse ríspida com quem a contrariasse, mas era sempre delicada para com Hauviette, porque ela era mais nova do que as outras.
Ela agora voltou-se para Hauviette e disse:
- Madame dOgivillier é, agora, a dona das terras de lorde de Bourlémont. Não havia filhos para ficar com elas, e por isso elas passaram para Madame dOgivillier, que era sobrinha dele.
- Ela mora em Nancy - disse Isabelle, para mostrar que seus conhecimentos eram iguais aos de Jeannette.
E se casou com o ecónomo do duque de Lorraine-acrescentou Mengette.
Ficaram todas caladas, tamanho era o respeito.
Isabelle, então, apontou para elas o pequeno castelo ao longe. Ele ficava numa ilhota no meio do rio.
Aquele é o Château de l'Isle - disse ela.
- Nós sabemos disso - lembrou-lhe Jeannette.
- Ele agora pertence a Madame dOgivillier - acrescentou Mengette.
- Que maravilha, ser dona de um castelo - suspirou Hauviette, e todas riram.
Por fim, elas chegaram à capela.
- O que faremos? - perguntou Hauviette. -Vamos colher flores e depositá-las aos pés dela?
- Não - disse Jeannette. - Vamos apenas rezar para ela. As meninas puseram-se de joelhos e rezaram como faziam na igreja de Saint Rémy.
Isabelle levantou-se depois de alguns momentos, e Mengette fez o mesmo.
- Já rezei - disse Isabelle. - Venham, vamos para o campo. Ainda temos um pouco de tempo antes de partirmos.
- Vão vocês. Eu quero ficar mais um pouco. - disse Jeannette.
Hauviette hesitou e ficou com Jeannette, ajoelhando-se a seu lado, pensando no quanto o chão duro machucava-lhe os joelhos e já ia dizer isso a Jeannette quando percebeu que a amiga, as mãos postas como se em oração, estava de olhar fixo na Virgem e que seu rosto ficara mais bonito.
Hauviette ficou perplexa, e as palavras morreram em seus lábios. Esperou.
Durante algum tempo Jeannette ficou como que extasiada.
Depois, levantou-se e olhou para Hauviette como se estivesse surpresa por vê-la e se perguntasse quem era ela.
Tomou a mão de Hauviette. Disse:
- Parecia que a Virgem falava comigo.
Então, elas saíram correndo da igreja e juntaram-se às outras no campo. Colheram flores silvestres e corriam umas atrás das outras, mas Hauviette percebeu que Jeannette ainda parecia extasiada como quando dissera que a Virgem falara com ela.
Era considerado correto os padrinhos verem os afilhados de vez em quando e, portanto, quando madame de Vittel declarou que estava na hora de Jeannette visitá-la em Neufchâteau, Jacques e Zabillet concordaram com a ida da menina.
Eles poderiam dispensá-la por uma semana, e ela poderia ser útil na criadagem dos Vittel. Para ela, era bom estar com gente culta.
Jeannette fez a viagem de cerca de onze quilómetros na pequena mula, e para ela foi um grande prazer cavalgar pelo interior. Os bosques estavam bonitos com carvalhos, azevinhos e castanheiras. Naqueles bosques, ursos ficavam à espreita, mas não saíam durante o dia. À noite, ficavam muito ousados, e se tivessem fome arriscavam-se a ir até a aldeia. As pessoas nunca andavam sozinhas depois de escurecer, porque os ursos podiam ser violentos, e quaisquer viajantes noturnos tinham de estar preparados para um ataque.
Na claridade, era seguro. A luz do dia era como a paz, pensou Jeannette, e a noite, como a guerra. Os ursos pareciam os godons, malvados e cruéis, tentando roubar o que não lhes pertencia.
Jacquemin a estava acompanhando, e ela seguia atrás dele, montada na pequena mula. Ele passaria uma noite em Neufchâteau e voltaria para Domrémy no dia seguinte. Não podia ser dispensado por mais tempo. Teria sido muito mais conveniente Jeannette ter ido sozinha, porque era duro ter de dispensar dois pequenos trabalhadores juntos. No entanto, Jacquemin voltaria em breve, e a visita de Jeannette não demoraria muito, e não havia dúvida de que os padrinhos deviam ver com frequência os afilhados. Talvez Jeannette e Thiesselin de Vittel levassem a menina de volta.
Os dois passaram pelo castelo de Bourlémont, passaram pelo pequeno castelo na ilha - todos pontos bem conhecidos por eles - e depois de um certo tempo chegaram aos vales rochosos abaixo dos planaltos de Lês Faucilles e seguiram o rio serpeante até surgirem os muros e as torres de Neufchâteau.
Houve uma calorosa recepção para as crianças na casa dos Vittel. Jeannette de Vittel ficou encantada com a pequena afilhada e Thiesselin abraçou-a e disse que estava muito contente por ela ficar com eles algum tempo.
Eu quisera que Jacquemin também pudesse ficar - disse ele.
Jacquemin ficou pensativo.
- Nós dois não podemos ser dispensados ao mesmo tempo - disse ele.
Era compreensível, e houve uma refeição maravilhosa, com carne que as crianças raramente comiam em Domrémy. De acordo com os padrões dos dArc, os Vittel eram ricos. Era porque Thiesselin era um erudito. Sabia ler e escrever. Havia livros em sua casa, e Jeannette podia segurá-los, abri-los e estudar as estranhas formas que havia nas páginas e que Thiesselin sabia decifrar de modo muito milagroso.
Havia uma escola em Greux, e alguns dos meninos de Domrémy a frequentavam. Os Are não podiam ser dispensados. Jeannette não tinha certeza se desejaria ir ou não. Ela vira a cartilha coberta com chifre transparente que pertencia a um dos meninos da aldeia, e para ela aquilo não tivera o mesmo encanto que as imagens que havia na igreja e o belo som dos sinos.
Ainda assim, devia ser maravilhoso, admitiu ela, ser um erudito como Thiesselin.
No dia seguinte, Jacquemin partiu. Jeannette teceu um pouco para a sua madrinha, fez um pouco dos serviços de casa e tirou ervas daninhas do jardim. Na verdade, trabalhou tanto, em Neufchâteau, quanto trabalhava em Domrémy. Mas havia mais o que comer, uma comida diferente e mais gostosa; e quando o dia terminou, em vez de ir para a cama como eles faziam em Domrémy, Jeannette acendeu duas velas - uma grande extravagância, porque na sua casa em Domrémy nunca tinham mais de uma acesa de cada vez - e eles conversaram, e às vezes tio Thiesselin - assim ela o chamava - lia para eles trechos dos maravilhosos livros.
Foi de Thiesselin que ela ouviu pela primeira vez as histórias de Santa Catarina e Santa Margarida.
A vida toda, ela iria lembrar-se de estar sentada em um tamborete naquela sala que ia ficando escura, com as duas velas projetando a sua luz sobre o livro que estava aberto em cima da mesa, em frente a Thiesselin.
- Catarina era filha do rei e da rainha de Alexandria - leu Thiesselin. - O rei era o rei Costus, e a rainha, Sabinella. O corpo dela era belo, mas sua alma era preta, porque fora escurecida pela idolatria. Ela adorava ídolos. Muitos homens do reino de seu pai tentaram obter sua mão em casamento, devido à sua beleza. Mas ela dissera não a todos eles. "Eu quero um marido que seja bonito e rico, e o mais nobre do país", acrescentava ela. Então, certa noite, a Virgem apareceu a ela e nos braços levava a criança mais bonita que Catarina já vira. "Você o aceita como marido", perguntou a Virgem, "e você, meu filho, aceita essa bela jovem como sua esposa?" E o Menino Jesus disse: "Não, porque ela adora ídolos. Mas se ela for batizada, eu colocarei meu anel nupcial em seu dedo."
Jeannette ouviu de olhos arregalados a história de que Catarina foi batizada em segredo e ali, numa visão, viu Cristo, que colocou o anel nupcial em seu dedo.
- Então, Maxentius, o imperador dos romanos, expediu uma ordem no sentido de que todos deveriam oferecer sacrifícios aos ídolos que adorassem. Catarina, agora, era
cristã; não podia tomar parte na oferenda de tais sacrifícios, nem poderia ficar calada enquanto aquilo era feito, e quando o imperador e toda a sua comitiva foram a Alexandria assistir aos sacrifícios e estavam reunidos na praça principal, Catarina foi até ele e chamou-o de bobo, porque ele fazia sacrifícios a ídolos falsos. Ele sentia orgulho dos prédios que construía, disse ela. Ele os amava a um ponto que chegava à idolatria, mas devia amar as árvores e a terra, as estrelas e o céu. Aquilo era obra de Deus, e superior à obra do homem.
Ouvindo com avidez, Jeannette estava lá, na praça principal de Alexandria. Ela afogueava-se com o ardor de Catarina. Naquele momento, na sala iluminada por uma vela, ela era Catarina.
Thiesselin continuou a ler, narrando que Catarina tinha sido presa e, como sua beleza impressionara Maxentius, este dissera seus sábios deveriam conversar com ela e fazê-la mudar de idéia com seus argumentos, e depois que provassem a ela que estava louca, ela deveria ter a oportunidade de retratar-se.
Ora - leu Thiesselin -, Deus falou por intermédio de Catarina, de modo que foi ela que rebateu os argumentos daqueles supostos sábios e os impressionou de tal maneira, que eles declararam que era Catarina que falava a verdade.
Aquilo era vívido; aquilo era verdadeiro.
Thiesselin fez uma pausa e disse:
- Por esta noite, já chega. Amanhã, vou ler mais uma parte da história de Catarina.
Jeannette estava deitada na cama sobre rodinhas como se estivesse hipnotizada. Tinha sido uma experiência maravilhosa. Ela mal pôde passar o dia, e quando chegou a hora em que as velas foram acesas, e Thiesselin sentou-se à mesa e continuou a história de Catarina, ela estava tremendo de emoção.
Ela ouviu contar que o imperador, furioso, mandou que os sábios fossem mortos na fogueira, mas embora as chamas ardessem em volta deles, todos saíram ilesos.
- Foi um milagre - sussurrou Jeannette.
- Foi Deus, proclamando a Verdade - disse madrinha.
- E o que o imperador fez, então? - quis saber Jeannette.
- Parece que ele ficara impressionado com a beleza de Catarina e lhe oferecera um lugar em seu palácio, abaixo apenas do da imperatriz. Deveria ser erguida uma estátua dela na cidade, e ela deveria ser adorada como uma deusa. Mas primeiro ela deveria fazer um sacrifício para os ídolos que o imperador adorava. A resposta de Catarina foi de que era esposa de Cristo. Então o imperador ordenou que ela fosse atirada num calabouço depois de açoitada a varas e, lá, deixada para morrer de fome. Depois, ele partiu para suas conquistas. Mas um anjo apareceu à imperatriz, e ela acreditou quando ele lhe disse que Catarina era uma santa.
"O imperador voltou, e quando soube que Catarina não estava morta mas parecia ter escapado ilesa do sofrimento, mandou fazer rodas com espetos agudos, com a finalidade de que o corpo de Catarina fosse quebrado sobre elas, mas quando estavam para ser movimentadas, as rodas fizeram-se em pedaços que se espalharam, matando várias pessoas que tinham ido regozijar-se com o sofrimento de Catarina. A imperatriz, vendo o que acontecera, foi procurar o imperador para protestar e dizer que tivera uma visão e, em consequência, tornara-se cristã. Num acesso de raiva, o imperador ordenou que ela fosse decapitada.
"O imperador, então, ofereceu uma opção a Catarina. Ela podia ser sua imperatriz, ou seria decapitada.
"E assim, ela foi decapitada, e não foi sangue que saiu de seu corpo, mas leite. E do céu ouviram-se os sons de música celestial quando Catarina subiu para ir para junto de seu marido."
Thiesselin fechou o livro e fez-se um silêncio profundo na sala.
A madrinha de Jeannette soprou uma das velas, apagando-a.
- Está dormindo, Jeannette? - perguntou ela. Jeannette abriu olhos arregalados para olhar para ela.
- Dormindo! Querida madrinha, eu estava lá... Eu sabia o que ela pensava. E o leite que correu do corpo dela era a pureza. Só os puros vêem a Deus.
Os Vittel olharam para ela, assombrados. Ela parecia transformada.
- Vá para a cama - disse Jeannette de Vittel com delicadeza.
Jeannette se levantou.
- Vai haver mais leitura amanhã? - perguntou ela. Thiesselin colocou a mão sobre o ombro dela.
- Querida menina - disse ele -, vou ler mais histórias das santas. Santa Catarina não foi a única a morrer por Deus e pela fé.
E aquela visita à madrinha foi um marco importante na vida da pequena Jeannette. Ela esperava os dias passarem fazendo pacientemente as tarefas que lhe eram atribuídas, e enquanto estava no tear sonhava com o que os santos tinham feito por Deus e achava que eles eram as pessoas realmente importantes. Não grandes soldados como os poderosos duques de Borgonha e Orléans, não como o próprio rei... Mas os santos que não se importavam com o que lhes acontecesse e viviam apenas para morrer a serviço de Deus.
Ela sempre adoraria Santa Catarina, e quando ouviu a história da bendita Margarida, as duas passaram a ser como que amigas suas.
com avidez, ela ouviu contar que Margarida, filha de Teodósio, um sacerdote dos gentios, foi batizada em segredo e que Olibrius, o governador da cidade, a viu e admirou-lhe a beleza. Mandou que ela fosse levada à casa dele, e quando ela se recusou a tornar-se sua concubina, mandou pendurá-la de um cavalo de pau e açoitá-la com varas de ferro, enquanto sua carne era rasgada com pinças de ferro. O sangue saía de seu corpo como a água mais pura. Ela sofreu outras torturas nas mãos de Olibrius, mas suportou todas e recusou-se a ceder. Por fim, foi decapitada, e os que assistiram àquilo disseram que quando ela morreu uma pomba imaculadamente branca subiu voando para o céu.
Jeannette pensava muito nas santas, e sua madrinha levou-a à igreja e mostrou-lhe as imagens de Santa Catarina e Santa Margarida, e ela sentiu uma vontade enorme de ser igual às duas.
Quando estava deitada na cama de rodinhas, à noite, ela pensava nas santas; sonhava com elas e era como se conversassem com ela nos sonhos.
Havia um fator significativo com relação à vida delas, a insistência na virgindade. Jeannette sabia que muitas meninas e muitos meninos estavam interessados uns nos outros; ela vira Mengette Joyart flertando com um jovem soldado que vinha de uma das aldeias próximas. Mengette estava sempre inserindo o nome de Collot Turlant nas conversas.
Jeannette teve um estremecimento. Não queria saber daquilo. Queria viver como Catarina e Margarida tinham vivido. Deitada na cama, ela jurou que iria manter-se virgem, porque então poderia se escolhida como tinham sido Margarida e Catarina.
Havia mais histórias sobre santos. Os dias e as noites passavam depressa demais, e um belo dia Jacquemin chegou para levála de volta para Domrémy.
Lamentando-se, ela voltou cavalgando lentamente. Um dia, prometeu a si mesma, estarei entre eles.
A convicção tomara conta dela. Era o primeiro passo na direção que ela seguiria.
Havia uma grande agitação em Domrémy. Cavaleiros galopavam de um lado para o outro nas estradas, mas às vezes paravam para descansar na aldeia.
Jeannette estava com dez anos de idade, com capacidade de compreender um pouco do terrível tormento que seu país estava atravessando.
Sabia que aquele mais malvado de todos os godons, o rei da Inglaterra, chegara a um acordo com o pobre rei louco da França e sua mulher, a bávara Isabeau, que muita gente dizia estar na raiz de seus males. Em consequência, a filha do rei, Katherine, tornara-se a mulher do rei malvado, e esse rei estava se intitulando rei da França.
A consternação estava em toda a parte. As escaramuças entre o povo de Armagnac e os borgonheses não eram nada comparadas com o que acontecia ali. Aquilo era uma desgraça. E mudaria todo o aspecto do interior.
- Como pôde o rei fazer uma coisa dessas? - perguntou Jeannette aos irmãos. - Como pôde o rei pegar a herança do delfim e entregá-la a esse godon?
- Ele foi forçado a fazer isso, é claro - disse o bem-informado Jacquemin. -Você não pode pensar que ele teria feito isso se não tivesse sido obrigado.
- Mas por quê... por quê...?
- Porque os godons possuem mais homens e mais dinheiro... porque nós temos uma rainha que é uma Jezebel e um rei que está louco... e franceses que lutam entre si.
O irmão de Jeannette, Jean, estava envergonhado. Domrémy era a favor de Armagnac, e Greux, de Borgonha, e ele tivera muitas brigas com os meninos de Greux por causa daquela lealdade. Ele não sabia do que se tratava - exceto que o povo de Armagnac era a favor de Orléans e Greux era a favor de Borgonha, e quando eles se defrontavam, brigavam.
- Todos os franceses deveriam ficar juntos - disse Jeannette. - Assim, teriam mais chance de expulsar os godons.
- O que uma menina sabe sobre isso? - perguntou o pequenino Pierrelot.
EU sei que os godons serão expulsos - disse Jeannette - e a França voltará a pertencer aos franceses.
Jean fez uma careta para Jacquemin. Deu a entender que Jeannette estava outra vez num de seus arroubos.
Os problemas não diminuíram por causa do tratado feito entre o rei da França e o da Inglaterra. Ainda havia cidades francesas que não queriam submeter-se ao conquistador, e a luta prosseguia, e isso deixava os godons com raiva. Eles tinham vencido; tinham derrotado os franceses, deixando-os de joelhos; queriam o fim da guerra, e quando o rei louco morresse, o rei deles, Henrique, deveria ser coroado rei da França. Eles mostravam pouca misericórdia para com os rebeldes.
O duque de Borgonha era um traidor - até mesmo os borgonheses de Greux estavam encontrando dificuldades para justificar a atitude dele - e como odiava o povo de Armagnac, de quem o rei gostava, ele se tornara aliado dos godons.
Tudo aquilo era muito desconcertante. Todos sabiam que os godons eram o inimigo, mas afora isso, não tinham certeza de quem lutava contra quem.
Havia histórias aterrorizantes sobre o que acontecia quando os soldados passavam pelas aldeias. Tiravam todos os alimentos; às vezes, ateavam fogo nas casas; levavam as mulheres e as estupravam, considerando-as como espólios de guerra, em nada diferentes dos alimentos em que conseguiam pôr as mãos.
O povo de Domrémy se reunia em torno da casa de Jacques dAre. Ele era um homem não só de profunda piedade, mas de visão. Pouco antes do tratado que dera a França aos godons, ele tivera uma ideia que alguns deles acharam um pouco louca na época e que agora consideravam uma demonstração de talento.
Quando lorde de Bourlémont morrera sem herdeiro, deixara o pequeno castelo situado numa ilha no rio Meuse para a sobrinha, Jeanne de Joinville. Mademoiselle de Joinville casara-se com Henri dOgivillier, que ocupava um cargo a serviço do rei, e fora morar em Nancy, de modo que o castelo ficara desabitado e ela resolvera arrendá-lo, mediante um pagamento anual, a quem oferecesse mais.
Nunca teria passado pela cabeça do povo de Domrémy que eles pudessem arrendar o castelo, até que Jacques chamou a atenção deles. O castelo era um lugar ideal para a defesa, por acharse construído na parte final da ilha e cercado em três lados pelo rio. Os campos da ilha estavam incluídos no negócio, e poderiam ser explorados com fins lucrativos. Seria possível ter cabeças de gado; na verdade, um grupo de pessoas que vivesse lá poderia sustentar-se por completo.
Jacques falara com os aldeões com muito entusiasmo. Unindo-se, eles teriam de adquirir o castelo, se isso fosse possível. Havia esporádicos especares de guerra, que continuariam por muito tempo, já que praticamente não era provável que os franceses fossem submeter-se ao intolerável jugo inglês. Eles sabiam o que acontecia quando uma tropa violenta de qualquer um dos lados passava pelas aldeias. Os habitantes perdiam seus bens; ficavam sem coisa alguma e sem perspectivas, a não ser vagar pelo interior como pedintes. E as mulheres, o que acontecia às mulheres?
- Vocês não irão fazer tudo o que puderem para proteger suas mulheres e seus filhos? - perguntou ele.
Isso os deixou mais decididos, e quando as mulheres acrescentaram suas vozes às dos homens, ficou decidido que deveriam fazer todo o possível para obter o uso do castelo como meio de defesa para o povo de Domrémy.
Jacques e alguns de seus vizinhos fizeram a oferta e, para a surpresa de todos, conseguiram o uso do Château de
l'Ile por nove anos. Na verdade, pouca gente pretendera
ficar com ele, porque não eram muitos os que tinham uma visão como a de Jacques dArc. Eles deveriam pagar quatorze libras por ano, mais seis bushels de trigo, e se esse pagamento fosse mantido, a ilha toda seria deles, exceto, claro, a capela de Nossa Senhora, que estava ali havia séculos e que estava aberta a qualquer pessoa.
O arrendamento do castelo fora um sucesso. A terra era fértil, e eles a aproveitavam ao máximo. Jacquemin, que àquela altura se casara com uma jovem da aldeia, foi morar na ilha, e Jeannette muitas vezes remava até lá para cuidar do gado ou para capinar os campos.
Mas o castelo não fora adquirido, salientava Jacques, apenas para oferecer mais terra de pastagem e um lar para alguns dos que se casavam e, por serem membros de famílias numerosas, achavam suas casas superlotadas. Não, o objetivo de arrendar o castelo tinha sido a defesa. Jacques se dedicara a transformar o castelo numa fortaleza; em frente ao castelo - a única parte que não era cercada pelo rio - ele mandara cavar fossos, que eram mantidos cheios pelo rio; quatro outros jovens, com suas pequenas famílias, juntaram-se a Jacquemin, e o dever das cinco famílias era manter a ilha pronta para a eventualidade de vir a ser necessária. Os aldeões atravessavam-na com frequência, e Jeannette adorava a tranquilidade do local e procurava oportunidades para ir trabalhar nos campos de lá.
Chegou o dia em que um viajante que seguia pela estrada parou em Domrémy a fim de passar a noite e, sentado em volta da fogueira na casa de Jacques dAre, disse à família e a quantos aldeões que haviam se aglomerado na casa que o rei estava morto e alguns meses antes o malvado rei godon também morrera.
- Então - disse Zabillet -, quem é o rei da França, agora?
- É o delfim - disse Jeannette, impetuosa. - Ele devia ser coroado rei.
Houve um silêncio, e todos olharam para Jeannette, porque não ficava bem os jovens falarem como faziam os mais velhos, e na presença de estranhos aquilo era uma petulância considerada imprópria em todas as famílias bem chefiadas.
Jacques estava prestes a fazer uma repreensão quando Zabillet colocou a mão em seu braço. Zabillet adorava aquela filha; desde o dia em que ela nascera, Zabillet tivera a forte sensação de que ela era diferente dos outros.
- Jeannette está profundamente emocionada - sussurrou ela para o marido. - Deixe que ela fale o que quiser.
E por algum motivo que Jacques não pôde explicar, a repreensão morreu em seus lábios. E então, Jeannette prosseguiu:
- Ele será coroado. Ele será coroado, sim.
- Não, mocinha, não vai ser o nosso delfim que será coroado - disse o viajante. - É um menininho que mora na Inglaterra. Ele agora é o rei da Inglaterra e se diz rei da França.
- Os homens malvados é que o chamam assim - disse Zabillet. - Ele é criança demais para ser acusado disso.
O desabafo de Jeannette fora ignorado, e o viajante continuou, dizendo que o garotinho, filho da princesa deles, seria levado para a França e coroado quando ficasse um pouco mais velho.
- A essa altura - disse Jacques -, talvez Deus tenha vindo em nosso auxílio.
- É - disse Jeannette. - Ele virá. Meu coração me diz isso.
- Traga um pouco de vinho para o nosso hóspede, Jeannette
- disse a mãe dela. - Ele deve estar com sede.
Quando Jeannette se retirou para fazer o que sua mãe pedira, havia uma certa exaltação em seu coração.
A situação estava piorando. Havia apenas curtos períodos de trégua. Um viajante que chegou certo dia disse a eles que o duque de Bedford, que se tornara regente com a morte do rei Henrique, e de quem o duque de Borgonha se tornara aliado, agora não estava com um relacionamento tão bom assim com Borgonha. Parecia que Bedford tinha um irmão chamado duque de Gloucester, que ofendera gravemente Borgonha.
- Vamos rezar para que isso traga a lealdade do duque para o lado certo - disse Jacques. - Não fosse essa briga dentro do nosso próprio país, não estaríamos nessa difícil situação em que estamos agora. Se essa desavença unir os franceses, trata-se de obra de Deus.
Mas a obra de Deus, se é que existia, trouxe um alívio pequeno. A notícia seguinte foi de que o duque de Bedford se casara com a irmã do duque de Borgonha e isso fortalecera a vacilante aliança entre eles.
- Como uma nobre francesa pode se casar com um godon?
- perguntou Rerrelot. - Eles não são como nós. Eles têm rabo, assim como os macacos.
- Isso é um absurdo - disse Jeannette. - Eles não têm rabo. São homens e mulheres iguais aos franceses. A maldade deles está na alma, que eles venderam ao diabo.
E será que todos os franceses venderam a alma a Deus? - quis saber Pierrelot.
Vamos rezar para que vendam - disse Jeannette.
Jeannette ia ficando mais piedosa a cada dia. Todos percebiam isso.
- Isso vai passar - dizia Zabillet, séria. - Mas só um pouco espero eu. A minha Jeannette é uma boa menina. Às vezes penso que ela é diferente de todos nós.
A luta entre o povo de Armagnac e os borgonheses estava acirrada como sempre. O povo de Armagnac jamais havia perdoado os borgonheses por terem assassinado Luís de Orléans, e agora os borgonheses não perdoariam Armagnac por revidar, assassinando João, o Destemido, duque de Borgonha. Õ duque Filipe estava decidido a vingar o pai. Enquanto isso, ele odiava tanto o povo de Armagnac que estava apoiando os ingleses contra a própria coroa da França.
Havia, até, conflito entre as aldeias. Domrémy era firmemente a favor de Armagnac, e isso queria dizer a coroa; mas a aldeia de Maxey, do outro lado do rio, era firmemente borgonhesa. Quando os meninos dessas aldeias se encontravam, não demoravam muito a brigar uns com os outros. Jeannette muitas vezes via o irmão chegar em casa arranhado e sangrando, e quando perguntava como ele conseguira ficar daquele jeito, recebia a resposta:
- Ah, foi lutando contra Borgonha.
Seguiu-se um período de maior angústia. A guerra estava se aproximando de Domrémy. Às vezes, eles viam a fumaça de aldeias incendiadas ao longe, e sabiam que os soldados estavam perto. Se eram ingleses contra franceses ou Armagnac contra Borgonha, não sabiam. Tinha importância?, perguntava Jeannette com raiva. Era uma guerra estúpida, sem sentido.
Toda noite, havia vigias na torre da igreja e às vezes, quando era dado um aviso, eles recolhiam os rebanhos e o gado e depois iam para a fortaleza na ilha.
Até ali, Domrémy escapara.
Mas houve uma noite terrível, quando a batalha chegou muito perto. Do castelo, Jeannette via as chamas subindo aos céus e percebeu que se tratava da aldeia de Maxey, que estava sendo saqueada. Seus primeiros pensamentos foram para Mengette e seu marido Collot Turlant, com quem ela se casara dois anos antes. Os dois deviam ter-se juntado a eles no castelo, e no entanto, pensou Jeannette, se qualquer um daqueles soldados resolvesse tomar o castelo, quem impediria?
Pela manhã, eles voltaram para Domrémy. Tudo estava como haviam deixado, e embora o alívio do retorno fosse quase que insuportavelmente grande, todos sabiam que não deviam regozijar-se muito, porque da segurança de um dia eles poderiam ser mergulhados no desastre do dia seguinte.
No final das contas, aquele acabou sendo um dia triste. Mengette foi procurar Jeannete quando ela estava sentada ao tear, e um olhar para a expressão no seu rosto disse a Jeannette o que ela temia.
Ela se levantou e tomou a amiga nos braços.
- O que foi, Mengette? - disse ela.
- Collot - sussurrou a jovem esposa. - Eu vi... a bala de canhão o atingiu... e ele caiu. Havia sangue no chão, Jeannette... sangue dele.
- Ó Mengette, minha pobre Mengette!
- Foi um tempo muito curto que passamos juntos. Só dois anos, Jeannette, e então... essas guerras estúpidas. Por que os homens fazem guerras? Eu quero guerras? Você quer? Collot queria? Se eles querem guerras, que lutem e morram... nós, não... nós, não. O que me importa... Armagnac ou Borgonha... França ou Inglaterra...?
- Acalme-se - disse Jeannette. - Você está muito tensa. vou buscar um pouco de vinho para você.
Mengette abanou a cabeça.
- Eu odeio todos eles. Eu odeio todos eles - disse ela. Levaram Collot. Que mal ele fez? Foi La Hire... o gascão... foram os homens dele. Ele vem a mando do delfim para matar franceses... bons franceses, como Collot.
Jeannette ouvira falar do feroz soldado da Gasconha, Etienne Vignolle, que era conhecido como La Hire; seus soldados deviam ter atacado Maxey ostensivamente porque a aldeia tinha simpatia por Borgonha, mas aqueles homens deleitavam-se com a guerra não por uma causa, mas para satisfazer seu forte desejo de sangue. Matavam gente como Collot Tbrlant e deixavam Mengette viúva.
O que poderia ela dizer para consolar a amiga? Acariciou-lhe os cabelos.
- Minha querida Mengette - sussurrou ela -, você precisa tentar não se lamentar. Um dia tudo ficará bem na França outra vez. Hoje, ouvi uma profecia. Sabe qual foi ela? Foi o Merlin, há muito, muito tempo, que disse que uma virgem piedosa surgiria do povo da França e repararia o dano que fora causado por uma mulher malvada.
Mengette não estava prestando atenção; ficou sentada, o olhar inexpressivo fixo à frente, pensando em tudo o que perdera. Jeannette continuou:
- A mulher malvada é a rainha da França, Isabeau da Baviera. Ela enganou o nosso rei e o nosso país; foi falsa com os dois e deu a nossa coroa e a nossa princesa aos ingleses. Ela é a mulher malvada de quem Merlin falou, Mengette. Mas a virgem piedosa virá.
Poucos dias depois, um grupo de soldados entrou a cavalo em Domrémy. Os aldeões foram depressa para dentro de suas casas e preparam-se para o pior. Os soldados desmontaram e, escolhendo a casa de Jacques dArc por ser a maior da aldeia e em situação destacada ao lado da igreja, bateram à porta.
Jacques abriu a porta e enfrentou-os.
- O que desejam de mim, senhores? - perguntou ele.
- Conversar um pouco. Só conversar um pouco - foi a resposta.
Eles entraram. Jeannette estava trabalhando no tear, e por isso ouviu tudo.
- Estamos a serviço do grande Robert de Saarbrúck anunciaram eles.
Jacques ficou muito aflito. Aquele homem era muito conhecido em todas as aldeias da França. Era um daqueles que faziam da guerra uma profissão e procuravam encher os bolsos à custa dela.
- Como sabe, o meu senhor de Saarbriick declarou-se a favor da causa de Armagnac contra o traidor Borgonha, e esta aldeia, creio eu, apoia firmemente Armagnac.
- Nós somos a favor do rei da França, aquele que agora é chamado de delfim e é, na verdade, o nosso rei - disse Jacques.
- Foi o que pensou o nosso patrão, e ele nos mandou oferecer-lhe proteção contra os borgonheses e os godons. Como sabe, muitas das aldeias aqui por perto estão em ruínas. Não queremos que isso aconteça com Domrémy. Vamos proteger vocês.
- Eu agradeço - disse Jacques. - Acho que precisamos dessa proteção.
O soldado continuou:
- Essa proteção, de que vocês tanto precisam, terá de ser paga. Meu patrão vai precisar de duzentas e vinte coroas de ouro, a serem entregues a ele antes do dia de St. Martin, neste inverno.
- Duzentas e vinte coroas de ouro! Mas isso é impossível. Não tenho nada parecido.
- Meu bom homem, elas não virão apenas do senhor. Há muita gente nesta aldeia. Que todos contribuam. Não é tanto assim, quando fica dividido. Digamos que dois gros de cada família, hein? Era isso que o nosso patrão queria que disséssemos ao senhor. Se dá valor à segurança de Domrémy, meu bom homem, pense nisso. O que são dois gros quando comparados com a perda de suas casas, sua propriedade...?
Jeannette ficou sentada, olhando para o pai, enquanto ouvia o som dos soldados saindo a galope. O rosto dele estava cinza; havia raiva e desespero em seus olhos.
Depois disso, houve várias reuniões na casa e no gramado. Será que eles poderiam arranjar o dinheiro? Tinham de arranjá-lo, dizia Jacques. Ele sentira uma ameaça por parte dos homens de Robert de Saarbriick. Parecia que eles tinham inimigos por todos os lados.
Guerra, pensou Jeannette, maldita guerra; e entrou na igreja para ajoelhar-se diante da imagem da Virgem e rezar.
A vida não era só tristeza. Catherine estava muito feliz naquela época. Casara com Colin, um dos trabalhadores rurais de Greux; os dois tinham estado apaixonados por muito tempo, e Colin costumava segui-las quando elas iam dançar na LArbre dêsbon mês; ele mexia com elas quando entravam na capela para rezar e dizia a Catherine que ela não devia ser tão piedosa quanto a irmã.
Catherine e ele estavam sempre saindo juntos, e como agora
estavam em idade casadoura, não se levantou obstáculo algum para eles. Catherine foi morar em Greux, e tendo em vista que essa aldeia não ficava longe de Domrémy, as irmãs se viam muito e estavam tão felizes, juntas, quanto sempre tinham sido.
Catherine vivia insistindo com Jeannette para que pensasse em se casar. Ela era bem-apessoada. Um ou dois dos rapazes da aldeia tinham olhado para ela. Sempre que Catherine falava em casamento, Jeannette ficava séria e dizia que achava que nunca se casaria.
CatKerine ria com o olhar experiente de uma mulher casada; e embora Jeannette não quisesse, mesmo, se casar, ficava encantada ao ver a felicidade da irmã.
Foi um grande esforço arranjar o dinheiro para dar a Robert de Saarbríick, mas por alguns meses houve uma paz relativa. A esperança ia surgindo porque corriam rumores de um reagrupamento dos exércitos franceses e de que o delfim estava recrutando mercenários da Itália e da Espanha. Havia escoceses violentos, também, porque os escoceses sempre odiaram os ingleses e nunca eram avessos a dar uma ajuda contra eles.
Aquela seria a batalha para acabar com a trágica situação. A França tornaria a se levantar, e em Domrémy havia um espírito mais esperançoso do que aquele que se tivera havia muito tempo. Até os sinos da igreja soavam mais alegres, na opinião de Jeannette.
Todos esperavam notícias. Lembravam-se de que os ingleses não estavam tão fortes quanto antes. O duque de Bedford não era nenhum Henrique V. Ele queria voltar para sua terra. Seu irmão estava criando problemas. Borgonha não era, e jamais poderia ser, um amigo de verdade.
Chegou um dia em que a estrada estava muito movimentada com mensageiros cavalgando de um lado para o outro. Havia soldados, também. Alguns paravam em Domrémy. Sim, tinha havido uma batalha, uma sangrenta batalha, a batalha de Verneuil.
Vitória para os franceses? Nada disso. Os ingleses tinham vencido outra vez. Quando é que os franceses iriam encontrar um meio de derrotar aquelas chuvas de flechas, aqueles cravos voltados para o inimigo, que quebravam as pernas dos cavalos franceses quando eles avançavam?
Então... desastre em Verneuil e pouca esperança de mandar os godons devolta para além-mar. Os saques recomeçaram. Havia ataques de surpresa às aldeias. Ninguém estava a salvo.
Uma noite, o toque de alarme soou. Soldados estavam indo em direção a Domrémy. Estavam quase chegando, e não havia tempo para salvar o gado e também os aldeões.
Eles fugiram para o castelo. A noite toda, ouviram o som de gritos. Aflitos, ficaram esperando pelas chamas.
Na manhã seguinte, voltaram temerosos para a aldeia. As casas estavam intactas, mas o gado todo fora roubado.
A pobreza surgia à sua frente. Como poderiam viver sem gado? Os rebanhos e o gado eram o seu sustento.
Jacques declarou que mandaria imediatamente um mensageiro a Jeanne dOgivillier, a proprietária do Castelo da Ilha; ela era influente junto a pessoas em altos cargos; era uma mulher boa e compassiva e saberia o que a perda do gado representaria para os aldeões. Além do mais, ela era parenta do conde de Vaudémont. Poderia então apelar para ele? Os aldeões não haviam feito nada de errado, mas tinham tido seu meio de sustento roubado durante a noite.
Talvez ninguém tivesse ficado mais surpreso do que Jacques quando o gado, por ordem do conde, foi devolvido à aldeia. Que alegria! Como os sinos tocaram! A aldeia reuniu-se no gramado para celebrar a boa sorte, e Jeannette foi à igreja a fim de rezar para a Virgem.
- Ajudai-os, Virgem Santa - rezou ela. - Ajudai-me a fazer o que puder.
POUCO depois disso, ela ouviu a primeira das vozes. Ela remara até a ilha, a fim de cuidar das ovelhas. Era um dia quente, e tudo em volta parecia tranquilo. Ela estava pensando sobre o ano que se fora e todos os horrores pelos quais tinham passado, a perda do gado, a dificuldade em encontrar o tributo para pagar a Robert de Saarbruck, a morte do marido de Mengette, e o medo constante à noite e o levantar da cama sobre rodinhas quando os sinos da igreja soavam para avisá-los. Os sinos de igreja deviam ser belos, pacíficos, como eram quando tocavam para os ofícios religiosos. Ela adorava os sinos. Sempre pensara que um dos momentos mais maravilhosos do dia era quando estava no campo cuidando das plantações no terreno de seu pai e ouvia os sinos do ângelus tocando. Então, ela se ajoelhava onde quer que estivesse e dava graças a Deus.
Infelizmente, a vida era cheia de angústia e seria assim até que a paz voltasse ao país. Mesmo assim, a vida tinha seus problemas, safras quebravam, gente morria. Ela pensou, então, em Catherine. Ultimamente, ela não parecia bem. Jeannette percebera que ela estava ficando cada vez mais magra, e tinha uma tosse persistente. A própria Jeannette ia a Greux com uma frequência maior. Insistia em ajudá-la no serviço, porque Catherine parecia cansar-se com facilidade.
Jeannette ergueu os olhos para o céu. Uma nuvem negra surgira de repente. Esticou a mão. Estava chovendo bem forte, agora. Na ilha, fora a capela principal, havia a ruína de outra, antiga, que não devia ser usada havia cerca de cinquenta anos. As paredes tinham sido castigadas pelo tempo, mas o que restava iria oferecer um bom abrigo contra uma pancada de chuva.
A chuva estava, agora, caindo com vontade, e ela se colocou sob um telhado que se projetava. Estava claro que aquilo tinha sido um altar à Virgem, e como sempre, quando estava perto de lugares santos, Jeannette experimentou um elevar de ânimo. Ajoelhou-se para rezar, como fazia tantas vezes, e o motivo principal da oração foi, como sempre, no sentido de que Deus pudesse achar recomendável salvar seu torturado país do inimigo.
E enquanto ela rezava, foi tomada por uma estranha sonolência. Não conseguiu entender bem o que se passara, quando pensou naquilo depois. Não tinha certeza se havia adormecido. Era uma convicção, e não qualquer coisa que tivesse visto, mas era clara e diferente de tudo o que lhe acontecera antes. Era como uma visão, na qual ela ouviu a voz de Deus dizendo-lhe que fora escolhida para ir em auxílio do delfim.
Ela acordou... se é que estivera dormindo. A chuva parara, e o sol havia saído. Ele brilhava sobre o gramado e os arbustos molhados, e ela sentia o cheiro do frescor do ar.
Que sonho estranho! No entanto, não fora um sonho. Será que ela ouvira vozes? Não tinha certeza. Era apenas um sonho louco e, no entanto, ela estava sentindo uma exultação, como se tivesse se comunicado com Deus.
Reuniu o rebanho e disse a si mesma que pegara no sono e sonhara. A terrível situação do país estava sempre em sua mente. Não estava na mente de todo mundo? Ninguém podia fugir dela. Talvez tivesse sido por isso que, quando cochilara um pouco, ela tivera aquele sonho. Mas não. Aquilo era uma ideia absurda. Como poderia ela, uma simples e jovem camponesa, ir em auxílio do delfim?
Foi poucos dias depois - um dia quente de verão. Ela estava trabalhando o terreno do pai quando, de repente, vinda da direção da igreja, ouviu a voz outra vez.
- Jeannette, eu fui enviado por Deus para ajudá-la a ter uma vida boa e santa - disse a voz. - Seja boa e Deus a ajudará.
Ela se levantou. Um medo repentino tomou conta dela. Estava na presença do sobrenatural.
Não tenha medo - prosseguiu a voz. - Seja boa. Se for, terá a proteção de Deus.
O medo de Jeannette passou e ela caiu de joelhos. Acreditava que se tratava de Cristo reivindicando-a como sua esposa, como Ele fizera com Santa Catarina.
- Eu vou ser boa - murmurou ela. - Serei a esposa de Cristo. Eu pertenço a Jesus Cristo enquanto Ele me mantiver sob o Seu poder onipotente.
Foi uma estranha experiência. Ela se pôs de pé. Se alguém a tivesse visto, não teria ficado muito surpreso. Todos sabiam o quanto ela vinha sendo obcecada por sua piedade já fazia algum tempo. Mengette, e até mesmo Catherine, tinha dito que aquilo não era normal. Colin, marido de Catherine, ria dela abertamente.
Mas havia algum grande significado para a vida, e ela sentia que estava à beira de uma revelação.
Por isso, não disse a ninguém o que ouvira, e cerca de um dia depois que aquilo acontecera, até ela começou a se perguntar se ouvira mesmo a voz.
Não ficou na dúvida muito tempo, porque poucos dias depois teve outra experiência. Estava no campo, uma vez mais, quando tornou a ouvir a voz. Estava advertindo-a de que devia ser boa. E nessa ocasião, ela viu imagens estranhas... vultos banhados em luz. Em meio a elas havia uma figura majestosa com asas, que ela reconheceu de imediato porque já vira muitas imagens dele. Era o arcanjo Miguel.
- Jeannette - disse ele. -Você é a escolhida. Duas santas de quem já ouviu falar serão enviadas para orientá-la. Santa Catarina e Santa Margarida virão falar com você. Elas foram designadas para guiá-la e assessorá-la. Faça o que elas disserem, para que aquilo que Deus ordenou aconteça.
Jeannette não tinha mais dúvidas. Era aquela a razão de seu excessivo amor pela Igreja e pelos santos; era a resposta àqueles que ficavam imaginando por que ela se mantinha afastada, diferente deles, porque preferia ajoelhar-se e rezar para os santos em vez de dançar nos campos e conversar com os rapazes. Ela era a escolhida. Ela exultou.
- O que houve com você, Jeannette? - perguntou-lhe a mãe. - Você passa horas sonhando.
Jeannette queria contar a eles; mas não tinha coragem. Não acreditariam nela, e assim no início ela não iria suportar a descrença deles.
Ela esperava todo dia que as vozes se fizessem ouvir, que as visões aparecessem. Elas sempre vinham, e como o arcanjo Miguel lhe dissera, ela também via as santas Catarina e Margarida. Elas eram de uma beleza incompreensível para um ser humano, banhadas em luz celestial e exalando o mais doce dos perfumes, mais inebriante do que o das rosas. Falavam com ela com delicadeza, sempre acalmando seus temores. Ela caiu de joelhos diante delas e jurou que manteria a virgindade, como acontecera com elas. Ela era uma delas. Era a esposa de Cristo, e continuaria pura a serviço dele.
- Não tenha medo, Jeannette - disseram-lhe elas. - Confie em Deus.
Ela mal podia comer ou dormir, tamanha era a sua agitação. A mãe a observava, preocupada.
- Estou preocupada com Jeannette - disse a Jacques. -A menina é piedosa demais. Isso não é normal. Ela devia estar com os jovens. Ela agora não quer ir à dança debaixo da árvore.
- Em breve, ela atingirá a idade de se casar-disse Jacques.
- Então, irá se acalmar.
Vagamente, Jeannette os ouvia falar sobre a guerra. Havia um rigoroso comandante em Vaucouleurs, chamado Robert de Baudricourt. Ele era firmemente a favor do delfim e estava dando novas esperanças nos arredores.
Jacques abanou a cabeça.
- O que ele pode fazer? - perguntou. - Há muito terreno a ser recuperado. Nós perdemos muito.
- Não será sempre assim - disse Jeannette. - Vai chegar um momento...
Eles olharam para ela, estranhando aquilo. Os olhos dela brilhavam. Ela falava como uma profetisa.
- O que você sabe sobre essas coisas, menina? - disse Jacques, com rispidez. - Cuide do seu tear.
E ela ficou calada - vendo que seria impossível contar-lhes.
Jeannete foi a pé até Greux, para visitar Catherine. A irmã estava deitada na cama de rodinhas, muito pálida.
Catherine, o que você tem? - perguntou ela. – Está sentindo dores?
Catherine abanou a cabeça.
- O principal é a minha tosse, Jeannette; ela me deixa fraca. Não conte a Colin. Isso o deixa preocupado. Se eu descansar assim, estarei de pé e recuperada quando ele chegar dos campos.
Jeannette limpou a casa e cozinhou e teceu - fazendo o serviço de Catherine e o seu também.
- Obrigada, irmã - disse Catherine.
- Quem dera que eu pudesse fazer mais por você, Catherine... uma coisa estranha me aconteceu. Eu tenho ouvido vozes.
- Vozes? - disse Catherine. -Vozes, de quem?
- Vozes de anjos e santas... Eles falam comigo, Catherine. Catherine olhou para ela com ar de desconfiança, um pouco
amedrontada. Jeannette percebeu que a mãe devia ter-lhe dito que ela vinha se portando de modo um tanto estranho ultimamente.
Catherine não entenderia, e Jeannette não queria amedrontála. A pobre Catherine tinha aflições suficientes - não que aquilo fosse uma aflição, mas Catherine talvez visse dessa forma.
- Você tem sonhado outra vez? - perguntou Catherine. Eu sonhava, quando era mais jovem. Agora, não sonho. Ainda bem. Os sonhos podem ser assustadores quando se tem medo de que os soldados possam vir durante a noite... e parece que estamos sempre com medo de que isso aconteça.
Não, ela não poderia contar a Catherine. Colin chegou dos campos. Sorriu ao vê-la. Ficou satisfeito por ela ter ido dar uma mãozinha a Catherine.
- Ora veja - bradou ele -, você tirou folga da igreja para vir nos visitar!
Claro que ele caçoava dela. Não, ela não poderia contar a ninguém da família da irmã.
Por que contaria? Ela não sabia. Talvez fosse receber uma incumbência e precisasse de ajuda. Eu sou muito ignorante no que diz respeito à vida, pensou ela, não passo de uma camponesa. Será que eles realmente me escolheram? Será que eu sonhei?
Havia uma pessoa à qual ela poderia sussurrar alguma coisa. Era a pequena Hauviette, que sempre ouvira com atenção, assim como quisera estar ao lado dela desde a época em que uma Hauviette muito pequena as seguira de um lado para o outro e tentava participar das brincadeiras delas.
Quando Hauviette foi ao chalé para tecer com ela, falou animadamente o tempo todo e não percebeu o silêncio de Jeannette. Quando escureceu, a menina perguntou se poderia passar a noite ali, como costumava fazer. Ela dissera aos pais que passaria, e muito embora não tivesse de andar muito para ir para casa, era aconselhável que não saísse depois do anoitecer, porque algum urso saqueador poderia aparecer.
As duas meninas estavam deitadas na estreita cama de Jeannette, e esta tentava explicar que os anjos e as santas tinham-na procurado e dito que ela estava escolhida para uma importante missão.
Muito sonolenta, Hauviette escutava, e depois de um certo tempo começou a murmurar algo ininteligível. Jeannette percebeu, então, que ela estava semi-adormecida e que pensara que Jeannette estava lhe contando uma história de uma santa que tinha o mesmo nome que ela. Hauviette não acreditava que Jeannette, que ela conhecera ávida toda, pudesse ser igual a Santa Margarida ou a Santa Catarina.
Ela não contaria a ninguém. De qualquer maneira, jamais acreditariam nela.
Poucos dias depois, chegou um visitante a Domrémy. Era membro da família pela qual Jeannette sempre nutrira uma amizade especial. Durand Laxart era uns dezesseis anos mais velho do que ela e casara com sua prima, Jeanne lê Vauseul, filha da irmã de Zabillet, Aveline. Durand conhecia Jeannette desde pequenina. Ele se sentira atraído por ela porque mesmo naquela época ela parecera diferente das outras crianças. Ele a levava nos ombros e caminhava pelos campos com ela, fazia apitos de madeira para ela, e lhe dizia o nome dos pássaros e das árvores.
Durand sentou-se perto da fogueira e falou sobre o que se passava em Petit-Burey, onde vivia com a mulher e os pais dela. Eles tinham sofrido a mesma coisa que Domrémy e, como os habitantes daquela aldeia, eram perseguidos pela sombra da guerra. Durand não era uma visita muito frequente, porque PetitBurey ficava a oito quilómetros de Domrémy, e embora isso não fosse muito, significava viajar dezesseis quilómetros se a visita fosse acontecer em apenas um dia.
Ele contou que a irmã de Zabillet, Aveline, estava grávida, e isso foi um assunto interminável para todos. Quando Zabillet ficou a sós com Durand, disse-lhe que estava um pouco preocupada com Jeannette.
- O pai dela também está preocupado - disse Zabillet. Ela não é igual às outras meninas de sua idade.
- Nunca foi - disse Durand.
- Ela passa muito tempo na igreja, rezando. Creio que está lá quando deveria ficar cuidando dos rebanhos ou capinando a terra. Ela negligencia o trabalho... Não que seja preguiçosa... e ela está com uma expressão estranha.
Durand achou que deveria tentar descobrir, e quando viu Jeannette entrando na igreja, foi atrás dela e encontrou-a ajoelhada diante da imagem da Virgem. Ficou parado esperando por ela, e quando ela saiu ele percebeu o ar de exultação estampado em seu rosto.
- Jeannette - disse ele. - O que foi que lhe aconteceu? Ela olhou para ele e disse, com simplicidade:
- Deus falou comigo através do arcanjo Miguel e Suas santas.
- Conte-me como foi - disse Durand.
Ela contou, e ele ouviu atentamente. Ele fora o primeiro a levá-la a sério.
- Eu fui escolhida. Eles me disseram.
Ele estava pensativo enquanto os dois voltavam. De repente como se levada por um impulso, ela disse:
- Durand, você me ajudaria, não é?
- Se fosse possível, de todo o coração - garantiu-lhe ele. Quando chegaram de volta a casa, souberam que havia um recado de Colin. Catherine ficara muito doente e queria ver todos eles.
Eles partiram imediatamente para Greux, e lá, deitada na cama, tão pálida e tão pequena que parecia quase ter sido gasta, estava Catherine.
Eles pouco podiam fazer, a não ser chorar. O pobre Colin perdera toda a alegria. Era apenas um rapaz estupefato. Ficava olhando para o corpo na cama, como se tentando convencer-se de que aquela era a jovem com quem ele dançara em volta da Arbre dês Dames e com quem se casara na igreja de Saint Rémy não fazia muito tempo.
Jeannette ficou abalada. Esqueceu-se de tudo, exceto de que perdera uma irmã adorada. Esqueceu-se, até, das vozes.
Ela não podia ficar na casa atingida pela dor, mas caminhou até o jardim perto dali e, ao fazê-lo, as vozes se fizeram ouvir.
O arcanjo Miguel apareceu para ela, e as duas santas estavam junto. Eles olhavam para ela com compaixão e ela percebeu que não devia lamentar perdas terrenas, porque naquele dia Catherine estaria com o Pai dela no céu.
- Filha da França - disse uma voz -, você deve sair de sua aldeia e seguir para a França. Aceite sua bandeira das mãos do rei do Céu. Leve-a com coragem, e Deus a ajudará.
Jeannette tremia. As vozes estavam lhe dizendo que tinha de agir, e ela não sabia como.
Então, o arcanjo Miguel falou com ela:
- Você vai conduzir o delfim a Reims e, lá, ele será coroado - disse ele.
Ela cobriu o rosto com as mãos por alguns instantes. Seu coração estava tomado por um repentino terror. Aquilo era algo acima do que ela imaginara. Podia preservar a virgindade; poderia morrer pela sua fé; mas como é que ela, uma menina do interior, poderia falar com o delfim?
- Você precisa ir procurar o capitão Baudricourt em Vàucouleurs, e depois de algum tempo... mas não no início... ele lhe dará guias para levá-la até o delfim.
O brilho desaparecera; as vozes diminuíram de todo, e ela ficou sozinha.
Será que ouvira bem? Ir procurar o delfim? Procurar o capitão Baudricourt? Ela ouvira o nome dele ser mencionado e sabia que se tratava do chefe da guarnição de Vàucouleurs. Mas como poderia ir falar com ele?
Foi um dia triste aquele em que sepultaram Catherine. Jeannette caminhou com os irmãos e os pais atrás do caixão quando o levaram para a igreja.
Durand Laxart estava junto. Ele não podia parar de olhar para Jeannette.
Ela parece frágil e doente, pensou ele. Será a próxima.
Depois que Catherine foi enterrada, Jeannette dirigiu-se até os campos e prestou atenção para ver se ouvia as vozes. Elas voltaram e repetiram que ela fora escolhida por Deus para acabar a guerra insensata, para expulsar os ingleses da França e coroar o verdadeiro rei em Reims. Sua primeira tarefa era procurar o capitão de Baudricourt, e embora no início ele não fosse lhe dar ouvidos, ela deveria insistir e acabaria vencendo.
Como? Como?, perguntava Jeannette.
Ela devia ser boa, foi a resposta, e tudo aconteceria.
Quando ela voltou para casa, Durand estava com os pais dela e sua mãe disse a ela:
- Durand acha que você devia ficar com ele e Jeanne por uns tempos. Ele acha que a mudança vai lhe fazer bem. Sua tia Aveline deve estar sentindo os problemas devidos à sua condição. Ela já não é criança, e na idade dela uma gestação pode representar um esforço muito grande. Vai ser bom ter mais duas mãos para ajudá-la na casa.
Durand olhava fixamente para ela.
- O que me diz, Jeannette? - perguntou ele.
Um grande júbilo tomou conta dela. Deus colocou essa oportunidade no meu caminho, pensou ela.
Assim, quando Durand Laxart deixou Domrémy, Jeannette foi com ele, montada na garupa da égua dele, e enquanto viajavam pelos oito quilómetros que separavam Domrémy de PetitBurey, Jeannette falou de sua gratidão para com ele pela bondade em levá-la junto.
Teria de ser muito cautelosa ao abordar o assunto de ele levála à presença do capitão de Baudricourt. Embora ele apoiasse, talvez não fosse tão longe a esse ponto. Ela percebeu que ir procurar aquele capitão mundano e dizer que ouvira vozes mandando que levasse o delfim a Reims e lá fizesse com que ele fosse coroado faria com que ele zombasse daquilo.
Mas Jeannette dera os primeiros passos incertos em direção ao seu objetivo, e fora avisada de que seria difícil. Mas agora se sentia menos amedrontada. Os passos deveriam ser lentos e cautelosos - e Deus iria ajudá-la.
Havia trabalho a fazer na casa dos Lê Vauseul, onde Durand e sua mulher Jeanne moravam com tia Aveline e o marido. Tia Aveline ficou encantada ao ver Jeannette, porque não apenas a menina era boa trabalhadora, mas sempre fora sua favorita.
Jeannette estava preparada para ajudar no que pudesse, e descobriu que havia muito menos o que fazer ali do que em sua casa em Domrémy. Havia, também, oportunidades de conversar com Durand e fazer com que ele entendesse a enormidade daquilo que acontecera a ela.
A princípio, ele se manteve incrédulo, mas ela foi tão eloquente e explicou com uma simplicidade tão natural, que ele sentiu o reflexo de seu êxtase. Ela o fez lembrar a profecia de Merlin, de que o país seria arruinado por uma mulher e libertado por uma jovem virgem.
Seria possível que a pessoa escolhida para essa missão pertencesse à família deles - uma camponesa humilde como Jeannette, que nem mesmo aprendera a ler e a escrever?
Jeannette estivera certa ao acreditar que se alguém iria ajudála, esse alguém seria Durand.
Assim, Durand acabou sendo persuadido a levá-la a Vaucoulers. Claro que teria de haver um motivo, e Jeannette e Durand, trabalhando juntos, tentaram inventá-lo.
Durand deu a entender que Jeannette tinha de falar com o capitão de Baudricourt sobre um assunto que tivesse ligação com o dinheiro que fora pago a Robert de Saarsbriick a título de proteção, e como não ficava bem uma jovem ir tão longe sozinha, Durand iria levá-la até lá...
Foi no mês de maio que Durand e Jeannette partiram. Jeannette se sentia exultante. O interior do país estava no auge de sua aparência. Os campos brilhavam com margaridas, ranúnculos, e pequenas ovelhas pretas e brancas brincavam com suas mães, enquanto meninas como a própria Jeannette as vigiavam.
Sobre um suave declive, a pequena cidade de Vaucouleurs espalhava-se à frente deles. No topo do morro estava o castelo, e foi para aquela fortaleza, a principal defesa da cidade, que Durand e Jeannette seguiram. As sentinelas estavam alerta, porque nunca se podia saber quando o inimigo seria avistado, mas o homem do interior e a moça que estava com ele chamaram pouca atenção. Conseguiram entrar no castelo e foram até o salão principal, onde o capitão de Baudricourt tratava, naquele exato momento, de assuntos da guarnição. Muita gente passava pelo salão, e não se tratava apenas de soldados; havia vários cidadãos que tinham negócios a resolver, e soldados e mensageiros vindos das várias partes do país. Jeannette olhou ao redor, ansiosa, e não teve dificuldade alguma em identificar Robert de Baudricourt. Pareceu-lhe que as vozes estavam bem perto e sussurravam:
- Aquele é o homem com quem você tem de falar. Sem medo, Jeannette aproximou-se dele.
- Fui mandada procurar o senhor pelo Meu Senhor - disse ela -, para que o senhor possa enviar um recado para o delfim dizendo que se prepare, mas que não dê combate aos inimigos no momento.
Ela não soube por que disse aquelas palavras, exceto que fora instruída a dizê-las.
Robert de Baudricourt olhava fixo para ela. Não podia acreditar que tivesse ouvido bem. Ele era um homem muito mundano, em consequência de sua vida de soldado. Era um pouco mais perspicaz do que a maioria do seu tipo e, como a maioria, tentava obter o maior lucro possível. Ele era um homem rico. Casara duas vezes, e em ambas as ocasiões tivera a sorte ou o bom senso de escolher mulheres ricas, e não deixava de lucrar com as batalhas em que se envolvia, tal como fazia com os casamentos; tinha uma inteligência viva e um humor alegre, que o tinham levado longe. Além do mais, era um soldado competente, e embora só pudesse achar que as chances de expulsar os ingleses do país eram pequenas, demonstrava lealdade ao delfim.
Por uns momentos, ficou sem fala. Dirigiu um olhar incrédulo para a jovem camponesa em suas surradas saia e blusa vermelhas, e ficou imaginando sobre o que ela estava falando. Parecia maluca. Mas possuía uma certa auréola à sua volta que o fez deter-se por um instante antes de mandá-la embora.
- Quem é você? - perguntou ele.
- Eu fui escolhida - disse ela. - Sou Jeannette d'Arc.
- E o que você está dizendo?
- Que sou uma mensageira de Meu Senhor, que manda dizer que o delfim deve ficar na defensiva e por enquanto não sair para enfrentar o inimigo. Ele receberá ajuda de Meu Senhor, e depois virá a unção.
- Meu Senhor! - bradou Baudricourt. - Meu Senhor! Quem é esse Meu Senhor?
- É o rei do céu - respondeu Jeannette, com simplicidade. Baudricourt ficou ainda mais perplexo.
- Quem é você? - perguntou ele a Durand.
- Sou primo dela, senhor. Eu a trouxe a Vaucouleurs para falar com o senhor.
Baudricourt olhou de um para o outro e depois seus olhos pousaram em Jeannette.
- Você quer entrar em combate, não quer? Quer levar o delfim até Reims? - riu para vários dos homens que estavam parados ali por perto, assistindo a tudo, impressionados. - Existe um único serviço útil que ela poderia exercer no exército, não? É sim, acho que nossos soldados iriam gostar bem dela.
O rosto de Jeannette ficara pálido, e Baudricourt não conseguia tirar os olhos dela. De repente, ele enterneceu-se. Ela era muito criança e muito ardente, e imaginara uma teoria louca. Não era de surpreender, quando se considerasse como era a vida daquela gente do interior. Jamais podiam dormir a sono solto na cama.
Ele voltou-se para Durand.
Vocês estão desperdiçando meu tempo. Leve essa menina para casa. Leve-a de volta para o pai. Diga a ele que lhe dê uma boa surra. É o que ela precisa para incutir-lhe um pouco de bom senso.
Alguns dos homens estavam rindo abafado. Baudricourt berrou:
- Não torne a trazê-la aqui. Se isso ocorrer, eu arranjo um lugar para ela no exército... um lugar mais adequado para os talentos dela do que liderar o delfim para Reims. Ela é uma mulher agradável. Por isso... muito cuidado.
Durand agarrou a mão de Jeannette e levou-a embora.
- Arranjem um casamento para ela, depressa - berrou Baudricourt. - É disso que ela precisa.
Enquanto voltavam para Petit-Burey, Jeannette não se sentia desolada. As vozes tinham dito que não seria fácil e que Baudricourt não daria atenção na primeira vez.
Jeannette agora sabia que haveria um período de espera, porque as vozes tinham-lhe dito que o momento de agir seria em meados da Quaresma. Mas a Quaresma já passara, e seu encontro com Baudricourt dera em nada.
Ela não se perturbou. Estava tudo providenciado, disse a Durand. Ela saberia quando chegasse a hora.
O filho de Aveline nasceu, e ela teve de voltar para Domrémy. Para ela, estava claro que teria de passar algum tempo antes de ser chamada a agir.
Em Domrémy havia uma angústia maior do que antes. Soldados estavam percorrendo o interior, atacando aldeias indefesas. A cada dia que passava, ninguém sabia se a sua seria a próxima.
Era grande a consternação em toda a aldeia porque o arrendamento do Château de l'Ile terminara. Talvez, no final das contas, aquilo não fosse uma calamidade assim, já que ninguém sabia melhor do que Jacques que um bando de soldados treinados dispostos a saquear, estuprar e matar tomaria o castelo em muito pouco tempo, se assim o decidissem.
Ele reuniu os habitantes da aldeia e disse-lhes que tinha um plano e que se concordassem com ele seria melhor pô-lo em prática de imediato.
Sugeriu que reunissem os rebanhos e o gado e saíssem de Domrémy. Levariam o que pudessem e ficariam algum tempo na cidade de Neufchâteau, onde estariam relativamente a salvo, pelo menos dos bandos de soldados errantes que deviam ser muito mais temidos do que os exércitos disciplinados.
Quem concordasse com ele deveria segui-lo; os que não concordassem poderiam ficar em casa.
Não havia um só homem, uma só mulher ou uma só criança em Domrémy que não quisesse ir. Assim, todos partiram como os israelitas de antigamente fugindo da tirania, e acabaram chegando à cidade de Neufchâteau.
Quando entraram na cidade, foram saudados por uma corpulenta mulher ruiva que dirigia uma pequena carroça cheia de garrafões de vinho.
- Por todos os santos - bradou ela. - Então é você, Jacques dArc, ora, e Zabillet com você, e Jeannette e Rrrelot! O que fazem vocês em Neufchâteau? E vieram com a aldeia inteira e tudo o mais... Não me diga. Vocês não são os primeiros. Eles estão atacando de novo, não é? Que Deus os amaldiçoe.
Ela descera da carroça e estava abraçando um por um dos membros da família.
Jacques disse que era verdade e que eles queriam ficar fora de Domrémy até a situação se acalmar um pouco.
- Vocês encontrarão acomodações para todos, aqui - respondeu ela. - Nós nos compadecemos de vocês. Como qualquer um de nós saberá quando é preciso de ajuda? Se não são os malvados dos godons, são os armagnacs... - ela riu e levou a mão aos lábios. Domrémy era a favor de Armagnac, e Neufchâteau era parte da herança de Borgonha. - Ah, pouco importa - continuou ela -, o que são essas coisas entre amigos? Você e sua família ficarão na nossa estalagem até encontrarem outro lugar para onde ir. Venham... Vocês todos podem ajudar. Uma coisa eu lhes digo: há trabalho, e bastante, na estalagem.
E assim, Jacques e a família deixaram o resto do povo de Domrémy, que seguiu pela cidade à procura de algum lugar para habitar, e foram alojar-se em casa do velho amigo de Jacques, Jean A Waldaires, e sua loquaz mulher, conhecida por toda Neufhâteau como La Rousse devido aos cabelos vermelhos.
Que sorte, a nossa! - bradou Jacques. - Poderemos ficar aqui por algum tempo, e todos trabalharemos na estalagem. Estaremos a salvo aqui, e se os agitadores visitarem Domrémy, noderão pôr fogo em nossas casas, mas pelo menos teremos salvado nossos rebanhos e nosso gado.
Foi mesmo uma solução satisfatória, particularmente tendo em vista que havia um pequeno prado anexo à estalagem, onde o gado podia pastar. La Rousse ficou encantada por tê-los ali, em especial Jeannette, que era uma trabalhadora muito boa e eficiente no tear. Ela disse a Jean de Waldaires, na intimidade do leito à noite, que o grupo todo era um bom negócio - em especial Jeannette.
Mas para a jovem foi uma época de provação. Agora que ela realmente tomara uma atitude e enfrentara Robert de Baudricourt
- muito embora aquilo não significasse outra coisa a não ser humilhação para ela -, estava ansiosa por continuar. O temor fora embora. Ela fizera o que havia um ano teria acreditado ser impossível. Enfrentara o grande governador de Vaucouleurs e, embora ele tivesse zombado dela, ela aprendera que nunca se importaria com isso; só se preocupava em fazer bem o que Deus lhe pedira.
Sua refeição era a mínima possível; não sentia vontade alguma de comer. Gostava de ir sozinha para o prado e conversar com suas vozes. Elas chegavam a ela, embora não com a frequência de antes. Tinham-na feito compreender que estava destinada a uma espécie de missão, e quando a hora chegasse, elas lhe diriam o que fazer.
Jeannette vivia num estado de exultação tão avassalador que um dia disse a Michel de Buin, um dos homens que trabalhavam na terra nos fundos da estalagem, que uma virgem, que não estava longe dele naquele momento, levaria o delfim para Reims e lá o veria ser coroado.
Michel lê Bruin olhou para ela e disse:
- Está me dizendo que você é essa garota?
Ela não respondeu. Michel achou que estava maluca e trans, mitiu a outras pessoas, em voz baixa, o que ela dissera. Eles riam juntos. "Jeannette d'Arc é um pouco maluca", diziam alguns.
Outros sussurravam: "Será que ela é uma feiticeira?"
Não, não podiam acreditar nisso com relação à pequena Jeannette, que conheciam havia anos e era religiosa e ia tanto à igreja. Uma frequentadora de igreja igual a ela não podia estar envolvida em feitiçaria.
Mas talvez os duendes tivessem lançado um feitiço sobre ela, sugeriu alguém; e essa parecia ser a opinião geral.
Jeannette d'Arc estava estranha, sem dúvida, se se imaginava cavalgando ao lado do delfim, vestindo uma armadura, e levando-o para Reims.
- Jeannette quer cavalgar com o exército - diziam.
Um rumor disso deve ter chegado aos ouvidos de Jacques, porque uma noite ele acordou muito agitado.
Zabillet levantou-se da cama de rodinhas e perguntou o que ele tinha.
- Foi um sonho que tive. Por todos os santos, Zabillet, eu poderia jurar que era verdade. Eu a vi... nossa filha... Jeannette... indo embora a cavalo, com os soldados.
- Foi um pesadelo.
- Era tão verdadeiro que acreditei. Eu a vi nitidamente. Cavalgando com os soldados, Zabillet... a nossa filhinha...
- Ela nunca escolheria essa vida, Jacques. Você sabe muito bem. Ela é uma boa menina. Você sabe que temos dito que ela passa tempo demais na igreja e não cuida direito dos rebanhos por causa de seu amor pelos santos.
- Zabillet - disse ele, severo -, se eu achasse que meu sonho se tornaria realidade, pediria a você que amarrasse uma pedra ao pescoço dela e a jogasse no rio.
- Eu... a mãe dela, fazer uma coisa dessas? Você está louco, Jacques.
- Se você não fizesse - disse ele, áspero -, eu faria. Preferiria vê-la morta do que desgraçada e desonrada.
- Vá dormir e não sonhe mais. Foi um sonho louco, impossível. A nossa Jeannette é uma boa menina religiosa. Nada estaria mais longe de sua cabeça do que sair com soldados para uma vida de pecado.
Ainda assim, Jacques não conseguiu dormir e ficou acordado muito tempo, pensando na desgraça de uma coisa daquelas acontecer com uma filha sua.
Eu gostaria que um bom rapaz aparecesse e nos pedisse a mão dela em casamento - disse Zabillet.
Isso mesmo - disse Jacques. - Confesso que nunca me sentirei tranquilo enquanto essa menina não se casar.
- Vou levar uma vela à igreja e rezar para isso - assegurou-lhe Zabillet.
Como que em resposta a suas orações, poucos dias depois um dos rapazes da aldeia foi procurar Jacques para dizer-lhe que Jeannette prometera casar-se com ele quando estavam em Domrémy e que chegara a hora.
Zabillet beijou solenemente o rapaz nas faces. Ele era um bom trabalhador, um rapaz agradável; ela conhecia bem a família dele.
- Vamos providenciar o casamento já, já.
Quando Jeannette voltou de seu trabalho na terra, Zabillet aproximou-se dela e abraçou-a. Ela olhou da mãe para o pai e para o rapaz com um certo espanto, imaginando qual seria o motivo daquela demonstração e atmosfera de solenidade, que eram fora do comum.
- Estamos todos satisfeitos, filha - disse Jacques. - Nosso consentimento está dado, e não vemos razão para demoras, muito embora estejamos longe de casa.
- Do que é que o senhor está falando, papai? - perguntou Jeannette, parecendo perplexa.
- Do seu casamento, filha. Soubemos do seu noivado.
- Meu noivado! - explodiu ela. - Não houve noivado algum.
- Jeannette, você sabe muito bem que houve. Você prometeu...
Jeannette voltou-se violentamente para o rapaz.
- Você está mentindo! - bradou ela.
- Silêncio-bradou Jacques.-Você está usando o linguajar dos soldados de quem tanto gosta.
Zabillet percebeu que ele confundia o sonho que tivera com a realidade, e teve medo do que poderia acontecer à filha. O rapaz voltara-se para Jacques.
- Eu lhe asseguro, senhor, que sua filha prometeu casar-se comigo, e vou insistir nos meus direitos.
- E - bradou Jacques - eu vou insistir para que o senhor os receba.
Jeannette correu para fora de casa. Foi para o prado e ficou ali, as mãos postas, olhando, súplice, para o céu.
- Não tenha medo, Filha - disseram as vozes. - Eles vão tentar obrigá-la, mas não conseguirão.
Sentiu-se mais calma, então, e depois de algum tempo voltou para dentro de casa.
O pai estava esperando por ela. Parecia zangado. Ele sempre fora rigoroso, mas antes havia uma espécie de bondade rude. Tudo isso desaparecera, agora. Olhava para ela como se ela fosse... impura. Jeannette viu que a mãe também estava com medo.
- Já é tempo de você se casar - disse o pai, com firmeza.
- O que há de errado com esse rapaz? É um bom trabalhador. E está decidido a se casar com você, apesar da maneira de você se comportar em relação a ele. Você vai se casar com ele.
- Não, meu pai, não me casarei com ninguém. Jurei que ia permanecer virgem pelo tempo que Deus mandar.
- A menina está perturbada - disse Jacques.
- Jeannette - interpôs a mãe -, o certo é você se casar, e essa é uma boa oferta. Ele vai cuidar de você. Você terá filhos...
Jeannette teria ficado muito amedrontada, mas sentia a presença celestial perto dela, assegurando-a de que tudo sairia bem.
Jacques estava triunfante. O pretendente dela, decidido a se casar, jurou que Jeannette fizera a promessa sagrada de se casar com ele, e segundo o costume da época, intimou-a a comparecer perante o tribunal na cidade de Toul, onde ele submetera o caso ao tribunal eclesiástico. O conselho decidia todas as questões que diziam respeito a Domrémy e às aldeias dos arredores, e a decisão dos tribunais eram definitivas. Se ele decidisse que Jeannette estava realmente comprometida, ela teria de se casar, porque o noivado era o equivalente a um juramento, e tais juramentos eram considerados sagrados.
Se ela não comparecesse ao tribunal, seria deduzido que cedera e aceitara seu destino, de modo que só havia uma coisa que Teannette poderia fazer: comparecer e apresentar sua defesa. Ela não fizera promessa alguma e não seria obrigada a se casar. Então você vai ao tribunal? - perguntou Jacques.
- vou - respondeu ela.
- Sabe que ele fica a trinta e dois quilómetros daqui?
- Sei.
- E como vai chegar até lá?
- vou achar o caminho.
- Eu não vou com você... nem ninguém desta casa.
- Não preciso de ninguém. Irei sozinha.
E assim, ela se preparou. Zabillet ficou muito preocupada.
- Não podemos deixar que vá sozinha - disse ela a Jacques.
- Pense no que poderá acontecer a ela na estrada.
- Ela não irá - retorquiu Jacques. - Trinta e dois quilómetros! Uma moça sozinha! Pare de se preocupar. Ela vai partir e voltar cerca de uma hora depois... e então cairá em si.
- Ela é muito voluntariosa.
- Ela nunca enfrentará o tribunal. Mesmo que fizesse a viagem, teria de ceder. Eles teriam a mesma opinião que nós. O casamento é a melhor coisa para ela.
Jacques estava enganado. Jeannette fez a viagem sem contratempos. Estava certa de que seria assim, porque suas vozes lhe haviam dito. Enfrentou o tribunal; estava calma, e jurou com tanta serenidade que não fizera promessa alguma, que o tribunal levou suas considerações muito a sério. Ela foi mandada embora e disseram-lhe que seu caso seria examinado.
Confiante, ela voltou para Neufchâteau, porque suas vozes haviam dito que tudo sairia bem. Cerca de um dia depois de sua volta, chegaram dois mensageiros. Um deles foi para dizer que o rapaz que mentira ao declarar que ela prometera casar-se com ele fora derrubado de sua égua e tivera morte instantânea. O outro mensageiro vinha de Tbul. O tribunal examinara o caso dela e aceitara sua história. Não era ela que estava errada, e se quisesse, poderia continuar solteira.
Jacques abrandou sua atitude. Zabillet não sabia o que pensar. E muito pouco depois disso, Robert de Baudricourt conseguira uma trégua temporária e fora considerado seguro voltar para Domrémy.
O Encontro em Chinon
A VOLTA para Domrémy foi triste, porque eram claras as provas de que os soldados tinham passado por ela. Os aldeões estavam gratos à visão de Jacques ao liderar
o êxodo para Neufchâteau. Uma vez mais, ele mostrara que estava certo. Mesmo assim, os soldados, sem dúvida enraivecidos por não encontrar alimentos para levar, nenhuma jovem para estuprar, haviam causado um certo dano a algumas das casas. Uma ou duas delas tinham sido incendiadas.
- Vamos dar graças a Deus por não ter havido um dano maior - disse Jacques; e a aldeia toda pôs-se a trabalhar para reconstruir o que fosse necessário. A casa de Jacques, por um golpe de sorte, ficara ilesa.
Foram meses difíceis que Jeannette teve de viver; estava profundamente cônscia dos olhares desconfiados, vigilantes, que lhe eram dirigidos. Não havia dúvida de que todos a achavam estranha; na aldeia, sussurrava-se sobre ela, e Jacques continuava a temer que ela fosse embora com os soldados e virasse uma prostituta. Era difícil qualquer profissão menos indicada para Jeannette, mas depois dos sonhos vívidos que tivera, o pai não conseguia afastar a ideia da cabeça.
Mengette, agora se recuperando um pouco do choque pela morte do marido, admoestava-a.
- Lembre-se de que você ainda é jovem - disse ela. Poderia se casar e ter filhos. Acredite em mim, é a melhor vida que se pode ter.
Pierrelot bradou:
- O que há com você, Jeannette? Por que não pode ser igual às outras jovens? Andam dizendo que você é estranha.
- Que digam - respondeu ela. - Que digam o que quiserem. Tenho meu destino a cumprir, e isso interessa a mim, não a eles.
Só Hauviette continuava sendo a mesma para ela.
- Seja lá o que for, Jeannette, que lhe tenha acontecido, é bom - disse ela -, e você vai fazer o que tem de fazer, e o fará bem.
Às vezes, a jovem ia sentar-se ao lado dela no prado enquanto Jeannette tomava conta das ovelhas, ou levava sua roca a fim de que as duas pudessem ficar sentadas tecendo, e só com Hauviette Jeannette sentia um pouco de paz.
com a chegada do outono, houve muito tráfego na estrada principal, e chegou a Domrémy a notícia de que a importante cidade de Orléans estava sitiada. As pessoas conversavam no gramado ao lado da igreja, e o tom era sério, porque tinham sido muitos os reveses para os franceses. Se Orléans caísse em mãos dos ingleses, aquilo poderia ser o começo do fim da resistência francesa.
Jeannette se impacientava com a sua incompetência. As vozes tinham falado em Orléans. Tinham lhe dito, antes que ela soubesse que havia um cerco, que levantaria o cerco daquela cidade e marcharia triunfante em socorro dos cidadãos.
Agora, o sítio começara, e ela ainda estava em Domrémy, onde o pai a vigiava com olhos rigorosos, e ela sabia que se tentasse fugir não a deixariam ir muito longe.
O que poderia fazer? Estava falhando em algum ponto. Sentia-se boba, impotente, indigna da tarefa para a qual Deus a escolhera.
Estava-se em outubro. Por quanto tempo Orléans poderia resistir? E de que adiantava ela, ali em Domrémy?
Ela estava morrendo de angústia, e ia para o campo e esperava pelas vozes.
Elas chegaram.
Não tenha medo, filha-disseram-lhe. - Durand Laxart irá ajudá-la outra vez. A mulher dele, Jeanne, vai ter um filho, e quando a criança nascer ele lhe pedirá que vá tomar conta dela. Então, você irá uma vez mais procurar o capitão de Baudricourt. Dessa vez, conseguirá chegar até o delfim.
Jeannette ficou muito aliviada.
As notícias de Orléans eram más. Os ingleses estavam cercando a cidade e o duque de Borgonha ficara do lado dos ingleses. Aquilo era uma vergonha.
E ali estava Jeannette, esperando o chamado de Durand Laxart.
Os ingleses tinham capturado o forte de Lês Tourelles, e o conde de Salisbury, reconhecido como um dos maiores soldados da Europa, estava comandando as operações.
E nada, ainda, de um chamado de Durand.
Então, eles ficaram sabendo que o conde de Salisbury fora morto de forma muito misteriosa, por uma bala de canhão, enquanto olhava de Lês Tourelles para Orléans, e parecia que a torre de onde a bala viera estava vazia. Alguém vira um menino afastando-se calmamente do canhão... mas aquilo era tudo, e era impossível uma criança tê-lo disparado.
Aquele foi o primeiro dos acontecimentos místicos.
Rumores chegavam a Domrémy todos os dias. Canhões ingleses tinham sido disparados contra a cidade. Uma bala atingira uma mesa à qual uma família fazia sua refeição. Ela quicara na mesa e ninguém se machucara. Uma outra caíra numa praça onde uma multidão estava reunida, e uma vez mais ninguém se ferira.
- Há a mão de Deus nisso - dizia o povo.
Jeannette estava certa disso. Ela estava numa impaciência febril. Então, chegou o chamado de Durand. Sua mulher, Jeanne, estava nos trabalhos do parto. Jeannette deveria ir ajudá-los imediatamente. E por isso, ela partiu para Petit-Burey.
Eram apenas oito quilómetros de distância, e ela podia caminhar com facilidade, de modo que partiu logo, e sua sensação, enquanto atravessava a aldeia, era um misto de tristeza e exultação.
Ela viu Mengette, que correu para abraçá-la.
- Você voltará em breve - disse Mengette. Jeannette não respondeu. Sabia que nunca mais voltaria.
- Vou chamar Hauviette - disse Mengette. - Você vai querer despedir-se dela...
- Não, não - bradou Jeannette. - Hauviette, não... Não poderia suportar aquilo. Gostava muito da menina; se a visse, poderia chorar; inclusive, bradar que aquela era a última despedida.
Ela não deveria ver Hauviette.
Voltou-se para lançar um último olhar para Domrémy antes de prosseguir para Petit-Burey.
Na guarnição de Vaucouleurs, era grande a consternação sobre o possível destino de Orléans.
Robert de Baudricourt estava sentado a uma mesa, bebendo vinho com um dos comandantes da guarnição, e naturalmente a conversa era sobre Orléans.
- Se a cidade cair, será o fim das esperanças francesas disse o comandante Bertrand de Poulengy.
- Bem, admito que será um grande golpe.
- O senhor sabe, capitão, que Orléans é a chave para o Loire. Ela é o que Paris e Rouen são para o Sena.
- Os ingleses sabem disso. É por isso que estão decididos a toma-la.
- E devemos mostrar a mesma determinação em defendê-la. Baudricourt olhou para o companheiro e ergueu os ombros.
- O nosso delfim não é o homem para levar o país à vitória. Os dois homens ficaram em silêncio enquanto degustavam o
vinho.
- Têm acontecido umas coisas estranhas, capitão.
- Ah, você se refere à morte de Salisbury. Uma bênção para nós. Aquele homem teria entrado em Orléans em uma ou duas semanas.
- Ele morreu de uma bala de canhão. Dizem que ela arrancou metade do rosto dele. Ele morreu em agonia duas horas depois.
E daí?
Não é estranho? Ele morreu com um tiro de canhão que parece não ter sido disparado de lugar nenhum.
- É o que dizem.
E houve as balas de canhão inglesas que caíram sobre pessoas e não lhes causaram dano algum.
- Hum - murmurou Baudricourt.
- O senhor é cético, capitão.
- De certa maneira, sim. Se você me perguntar se acredito que Deus ou algum de seus santos disparou o canhão que matou Salisbury, a resposta é "não". Mesmo que você me pergunte se Ele pôs a ideia de dispará-lo na cabeça de um menino, ela ainda é "não". Mas se você me perguntar se é bom as pessoas acreditarem nisso, direi que "sim". Eu lhe digo uma coisa, Poulengy: o povo da-França está num estado desesperador, e se puder acreditar que um auxílio está vindo do céu, é possível que ele saia das dificuldades em que se meteu devido à sua letargia, ao seu rei louco, à sua rainha maquinadora e a suas desavenças internas.
- Capitão, lembra-se de que uma moça esteve aqui uns meses atrás?
- Você está se referindo à louca da Jeannette? Claro que me lembro dela. Uma garota atraente. Cabelos pretos nascendo de uma testa alta e os olhos mais vivos que já vi na vida. A princípio, pensei que ela quisesse ser uma prostituta do exército.
- Não fale dela nesse tom, capitão, eu lhe peço.
- Por quê? O que deu em você, Poulengy?
- Eu estava lá no salão quando ela chegou. Ouvi o que ela disse. Eu a observei. Sabe, desde então tenho pensado muito nela.
- Ora, admito que ela é desejável.
- Não, não. Não fale assim. Pode dar azar. Eu acreditei nela, capitão. Quando ela disse que o Senhor a enviara e o senhor perguntou quem era aquele Senhor e respondeu que o Senhor era Deus. Eu acreditei nela, capitão. E ainda acredito.
- Por todos os santos, você me deixa perplexo, Poulengy.
- Houve esses estranhos acontecimentos em Orléans. Falase nessa menina. Dizem que ela vai coroar o delfim rei e expulsar os ingleses da França.
- Não foi isso que ela nos disse?
- Creio que é verdade.
O capitão Baudricourt ficou em silêncio. Serviu mais vinho no copo do companheiro, e enquanto o fazia um dos outros comandantes juntou-se a eles. Era Jean de Novelempont, de Metz, e era sempre conhecido como Jean de Metz. Baudricourt serviu-lhe uma taça de vinho.
- Obrigado, isso é bom - disse Jean de Metz. - Vocês estão sérios. Alguma notícia má?
- Tanto quanto pode ser, sem ser um desastre completo disse Baudricourt. - Estávamos falando sobre Deus.
Jean de Metz olhou de um para o outro, impressionado, e Bertrand de Poulengy disse:
- Estávamos falando sobre Jeannette d'Arc. Ela esteve aqui uma vez, para falar com o capitão. Ele a mandou de volta com ordens para que fosse devolvida ao pai e levasse uma boa surra por sua temeridade.
- Poulengy acredita que ela era realmente uma mensageira de Deus - explicou Boudricourt.
Jean de Metz olhou firme para o capitão.
- Eu também acho - disse ele.
Baudricourt recostou-se na cadeira como se para olhar melhor para os dois. Ficou calado por um instante.
- Havia algo a respeito daquela garota - admitiu, pensativo.
Poulengy inclinou-se para a frente.
- Se ela viesse outra vez, capitão, o senhor daria atenção a ela? O senhor a trataria com respeito?
Baudricourt deu uma risada.
- Sabe, com tantos homens em cuja inteligência confio acreditando nela, talvez eu deva fazer isso. Sim, se ela voltasse, eu receberia essa criaturinha. Faria o que pudesse para ajudá-la.
Fez-se silêncio à mesa enquanto eles continuaram a beber vinho.
Em janeiro Jeannette partiu uma vez mais para Vaucouleurs, acompanhada de Durand. O filhinho da prima nascera são e salvo, como Durand levava Jeannette muito a sério, o mesmo fazia sua mulher.
Ao partirem de Petit-Burey, Jeannette e Durand pareciam uma dupla insignificante, e ninguém teria adivinhado a importante missão de Jeannette. Seu blusão e a saia grossa de lã estavam cobertos por uma capa de pastor para impedir a entrada dos fortes ventos, e aquela era a única roupa que ela possuía, mas estava inteiramente despreocupada quanto à sua aparência. Sabia que desta vez conseguiria, porque as vozes a tinham avisado.
Durand conseguira que eles ficassem algum tempo na casa de um amigo seu que fazia rodas e veículos sobre rodas. Henri Royer e sua mulher Catherine ficaram encantados com Jeannette. De fato, estava diferente da jovem que fora quando da primeira visita a Vaucouleurs. O fulgor do rosto e a brilhante decisão existente em seus olhos inspiravam nova confiança nos que a cercavam. Estavam começando a acreditar que ela realmente fora dotada por Deus de poderes especiais.
No dia seguinte à chegada, Jeannette, com Durand ao lado, apresentou-se ao castelo.
Baudricourt reconheceu-a no mesmo instante.
- Então você veio me procurar outra vez - disse ele. Não seguiu meu conselho para que se casasse.
- O senhor precisa saber - disse Jeannette - que Deus me disse qual era a Sua vontade, e que essa vontade é de que eu procure o gentil delfim, que é o verdadeiro e único rei da França, para que ele me dê soldados, a fim de que eu possa ir a Orléans e levantar o cerco. Depois, eu o levarei a Reims para ser coroado.
Baudricourt ficou pasmo. Jeannette era muito precisa em suas exigências, e estas eram muitíssimo absurdas. Uma garota procurar o delfim, conseguir soldados e liderá-los contra os ingleses do lado de fora de Orléans!
Como poderia uma jovem viver com soldados rudes? Não era difícil adivinhar o que lhe aconteceria... E se ela fracassasse, ririam dele por ter sido um tolo ao acreditar num absurdo daqueles. Se fosse bem-sucedida, diriam que tinha sido graças a feitiçaria. Ele não pensou, nem por um instante, que a jovem fosse uma feiticeira, mas não era preciso que uma mulher fosse uma feiticeira para ser acusada disso.
A corte estava em Chinon. O que pensariam se ele mandasse uma jovem falar com eles?
E no entanto, por outro lado... havia quem acreditasse em milagres. Ele ficara muito impressionado com a opinião de Poulengy e Jean de Metz. Aqueles dois - ambos soldados calejados - estavam prontos a acreditar que Jeannette tinha poderes dados por Deus!
E se tivesse?
Ele deu atenção à jovem; conversou com ela; tentou fazê-la cair em armadilhas e descobriu que era impossível. Ela era simples e direta; não cometia erros.
Ele sempre achara que em situações como aquela, a tática da protelação era a providência sensata.
Receberia Jeannette - claro que iria. Ela deveria conversar com ele todos os dias. Enquanto isso, era bem possível que Chinon ficasse sabendo da existência dela e mandasse chamá-la. Seria uma solução excelente. Ele não assumiria responsabilidade alguma.
Naquele ínterim, a amizade de Jeannette com Catherine Royer aumentava. As duas sentavam-se juntas para tecer, e Catherine ficou muito impressionada com a competência de Jeannette. Chegava, até, a desejar que Jeannette abandonasse aquele projeto e ficasse morando em Vaucouleurs. Catherine previa muitas horas felizes trocando experiências.
Mas Jeannette se tornava cada vez mais inquieta. A princípio, parecera maravilhoso Baudricourt tê-la recebido e ouvido com respeito o que tinha a dizer. Agora, ela estava percebendo que aquilo não passava de um jogo de prevaricação.
Um dia, quando ela foi uma vez mais conversar com Baudricourt, viu-se frente a frente com Jean de Metz e Bertrand de Poulengy.
- bom dia - disse Bertrand, curvando-se em sinal de respeito. - Então você está de novo entre nós.
- O que faz aqui em Vaucouleurs? - perguntou Jean de Metz.
- Vim evitar que o rei da França seja derrubado do trono e para salvar este país dos ingleses. Os senhores podem achar que meu lugar é em casa de meu pai, mas o desejo do meu Senhor é que eu esteja aqui.
Que senhor? - perguntou Jean de Metz.
O Senhor Deus - respondeu Jeannette.
Eu acredito em você - disse Bertrand de Poulengy.
- Muito obrigada - disse Jeannette, e seguiu seu caminho. Houve mais uma infrutífera entrevista com Baudricourt. Voltou desesperada para a casa do fazedor de rodas.
- Durand - disse ela -, irei sozinha, porque estou vendo que praticamente não terei ajuda nenhuma por parte de Baudricourt. Quer vir comigo?
Durand hesitou. Ele chegara até ali. Deixara sua casa e levara Jeannette para Vaucouleurs. Nunca faria a viagem a Chinon sozinha, salientou ele. Precisava de um acompanhante. Será que ela pensava que o delfim iria recebê-la se chegasse de pés calejados e cansada... uma camponesa? O projeto estava condenado ao fracasso. E ele estava fazia muito tempo longe da família.
Então, Jeannette teve uma ideia. Lembrou-se dos dois jovens com quem falara. Foi procurá-los. Eles estavam juntos, como se a esperassem.
- Querem me levar ao delfim? - perguntou ela.
- Quando quer partir? - perguntou Jean de Metz.
- Hoje, se for possível. Se não, amanhã.
- Nós a levaremos - disse Poulengy -, mas estamos sob as ordens do capitão de Baudricourt e primeiro temos de apresentar a ele nosso pedido de dispensa.
- Quando farão isso? - perguntou Jeannette.
- Agora - disse Jean de Metz. - Volte para a casa em que está hospedada e prepare-se.
Jeannette obedeceu, e os dois homens foram imediatamente procurar Baudricourt. Falaram com ele sobre a conversa que acontecera e sobre suas intenções.
Baudricourt olhou para eles, com ar solene.
- Os senhores são precipitados, cavalheiros - disse ele.
- Juro que essa garota é uma santa - retorquiu Poulengy.
- Estou certo de que é uma boa menina - disse Baudricourt. - Ela tem a aparência de uma boa menina. Mas essa aparência é dada pelo diabo. Não há ninguém que queira mais do que eu ver o cerco a Orléans levantado, o delfim coroado e os ingleses mandados de volta para a terra deles. Mas como é que os senhores sabem, cavalheiros? Como podem ter certeza?
- Eu apostaria minha vida na honestidade dela - disse Jean de Metz.
- Está ansioso demais para arriscar a vida, meu caro. Confirme. Peça ao cura que faça um teste antes de se comprometer. Então, leve-a. Não haverá mal algum, e talvez o delfim consinta em recebê-la.
Baudricourt acabou convencendo-os de que pelo menos Jeannette deveria ser submetida a um teste e, em consequência, o cura visitou a casa de Royer, e na sala que Jeannette ocupava defrontou-se com ela com o traje completo de seu cargo, segurando o crucifixo à sua frente. Mandou que ela se adiantasse se fosse realmente virtuosa. Jeannette fez o que ele pediu e convenceu-os de que não tinha pacto algum com o diabo, já que pôde se aproximar do sacerdote e tomar o crucifixo nas mãos e beijá-lo.
Enquanto ela estava esperando para se retirar, chegou uma convocação do duque de Lorraine, em Nancy. Ela não cabia em si de contente. Sua fama a antecedera, e agora o próprio duque de Lorraine mandava uma escolta para levá-la até ele.
Ela partiu imediatamente e estava cheia de esperança quando chegou ao castelo ducal em Nancy e lhe disseram que o duque estava impaciente para vê-la. -Foi levada logo para os aposentos dele. Nunca estivera em aposentos decorados com tanta suntuosidade. Na verdade, nunca imaginara que pudesse haver tamanha grandiosidade no mundo. O duque era um homem muito importante e poderia levá-la de imediato ao delfim.
Jeannette foi levada a um aposento com ricos veludos pendurados nas paredes e ali, sentado numa enfeitada poltrona, estava a mirrada figura do duque. Estava envolto numa capa de veludo roxo, e sentada num banco a seus pés estava uma mulher, cuja impudicícia no trajar chocou Jeannette a tal ponto, que por uns instantes ela perdeu a fala.
- Você é a donzela conhecida como Jeannette d'Arc? - disse
o duque. Sua voz era a mais macia e mais melodiosa que Jeannette já ouvira, mas seu entusiasmo caía a cada instante. Aquele homem. embora fosse um duque - não tinha o aspecto de uma pessoa que pudesse liderar uma cruzada.
Ouvi dizer que você tem poderes mágicos - prosseguiu
o duque. - As notícias sobre você chegaram até aqui, em Nancy.
Jeannette recuperara a voz.
- Senhor duque - bradou ela -, não tenho poder algum, exceto os que me foram dados por Deus. Fui enviada com uma finalidade, que é a de levar o delfim a Reims e, lá, fazer com que seja coroado.
O duque parecia não estar prestando atenção.
- Eu já não sou jovem - disse ele. -Ah, que saudade tenho da minha juventude!
- Meu senhor - disse Jeannette -, estou vendo que o senhor não teria condições de me levar a Chinon. Mas o senhor tem um genro, eu sei, René de Anjou, o famoso duque de Bar.
O duque pareceu irritado.
- Do que é que essa mulherzinha está falando? - perguntou ele.
A mulher que estava no banco ria, e Jeannette disse:
- Senhora duquesa...
- A duquesa foi embora - disse ela. - Ele não podia aguentar seu jeito piedoso. Eu sou a duquesa aqui, agora. Ele está ficando velho, sabe? Foi por isso que mandou chamá-la. Ele quer poder fazer suas travessuras como antes. Está entendendo?
Jeannette recuou, horrorizada. Pensou na cansativa viagem até Nancy e viu que fora em vão.
- Minha boa menina, acho que teve uma ideia errada do que meu senhor deseja - prosseguiu a mulher. -
Tudo o que ele quer é ser jovem outra vez. Estava certo de
que você poderia fazer isso. Pensou que você fosse uma espécie de adivinha... alguém com poderes especiais.
Ela se levantou e aproximou os lábios do ouvido do duque.
- Ela não pode fazer nada. Só que ir falar com o delfim.
- Ela está louca - disse o duque. - Veio aqui usando de subterfúgios.
- Os subterfúgios ficaram por conta do senhor - disse Jeannette. - Meu tempo foi perdido. Agora, preciso de uma escolta para voltar para Vaucouleurs agora mesmo.
- Vá embora e não me aborreça - disse o duque. - Você vem aqui fingindo que poderia me fazer jovem de novo...
- Não fiz nada disso - disse Jeannette. - Foi o senhor que desperdiçou meu tempo e o tempo de Deus.
- Suma da minha presença - murmurou o duque.
A mulher sussurrou alguma coisa para ele que pareceu que o estava avisando de alguma coisa.
Cansada e fortemente desiludida, culpando a si mesma pela simplicidade com que fora facilmente enganada, Jeannette saiu do castelo e encontrou um cavalariço esperando por ela com um cavalo preto. O duque o estava dando a ela para facilitar sua viagem, e havia uma bolsa contendo quatro francos para ajudar a pagar o custo da viagem.
Jeannette estava prestes a recusar, quando um dos membros da escolta salientou que o cavalo era bom e ela poderia montá-lo com um conforto maior do que aquele que tivera antes. Além do mais, o dinheiro poderia ser usado para apressar a viagem deles de volta para Vaucouleurs.
Ela cavalgou devolta imaginando, consternada, quantas provações mais teria de vencer antes de atingir sua meta.
Assim que chegou a Vaucouleurs, foi procurar Robert de Baudricourt.
Foi veemente ao censurá-lo.
- Está vendo como o senhor me fez perder tempo? Por sua causa, sofremos outro revés dentro dos muros de Orléans.
- Que revés é esse? - perguntou ele, e ela não soube dizer.
De volta à casa do fazedor de rodas, Catherine Royer recebeu-a com grande carinho. Estava muitíssimo aliviada por vê-la de volta a salvo.
- Jeannette - bradou ela depois de assegurar-se de que a amiga estava bem -, tenho novidades para você. Seus pais estiveram aqui. Ficaram muito tristes.
Os olhos de Jeannette toldaram-se de dor.
Eles não vão entender - disse ela. - Esta é a pior parte que tenho de aguentar.
Eles tinham ficado sabendo que você fora embora de Petit-Burey. Vieram aqui para procurá-la. Seu pai estava muito desesperado. Ele parecia pensar que você queria seguir o exército. Acho que no fim sua mãe compreendeu.
- O que aconteceu? Onde estão eles, agora?
- Voltaram para Domrémy. Eu disse-lhes que achava que você estava desempenhando uma missão de Deus e que Durand também acreditava nisso. Eu disse que você era a jovem mais pura que já conheci e que seu pai era o mais errado dos homens.
Jeannette colocou as mãos nos ombros de Catherine e, olhando com insistência para ela, disse:
- Eles me adoram. É o que isso quer dizer, Catherine. Se me amassem menos, seria mais fácil para os dois.
- Sua mãe acredita que você seja a escolhida de Deus. Eu tenho certeza. Ela tentou acalmar seu pai. Penso que fez com que ele percebesse que você já não podia resistir a esse chamado e foi por isso que eles resolveram voltar.
- Oh, Catherine, como eu queria não ter que fazê-los sofrer! Tenho de mandar um recado para eles. Mas como? Oh, Catherine, por que não aprendi a escrever e a ler? Talvez se tivesse implorado a eles que me deixassem ir à escola, eles teriam deixado. Entende, eu jamais quis. Era quase como se eu quisesse apenas deixar-me ficar ignorante. E agora... e agora...
- Existe o escritor de cartas. Ele escreverá o que você quiser dizer e a mensagem poderá ser enviada a seus pais.
- Oh, Catherine, é isso que tenho de fazer. E agora... agora... tenho uma sensação de urgência. Em Orléans estão acontecendo coisas terríveis. Eu devia estar lá... com o delfim ao meu lado, eu sei, Catherine.
- Vamos logo ao escritor de cartas. Quando tiver tirado isso da cabeça, você poderá fazer seus planos.
E assim, foram procurar o escritor de cartas. O que ela poderia dizer a eles? Como poderia fazer com que compreendessem? Quem acreditaria naquelas vozes que eram tão verdadeiras para ela? Como poderia explicar ao pai - aquele homem corretíssimo, mas um homem que nunca fora culpado de dar asas à imaginação? O mais perto que ele chegara daquele estado fora acreditar em um sonho que dizia que ela acompanharia os soldados que partiam para a guerra.
"Deus me confiou uma missão. Ele me escolheu, queridos papai e mamãe, talvez porque eu seja uma donzela simples. É mais fácil aqueles que são simples acreditarem sem discutir. Eu tenho visto coros de anjos. Tenho visto o arcanjo em pessoa. Tenho visto as santas. Eles estão me guiando, e mesmo apesar disso significar sofrimento para vocês, tenho de continuar. Grandes homens estão começando a concordar comigo. O capitão de Baudricourt acredita em mim; ele vai me dar uma escolta até Chinon, onde falarei com o delfim. Outros homens importantes estão do meu lado. Meus pais queridos, peço-lhes perdão pela dor que os fiz sentir e dêem-me sua bênção, porque ela é uma coisa que desejo ardentemente."
Jeannette sentiu-se melhor quando a carta foi enviada para Domrémy e então compareceu uma vez mais à presença de Baudricourt.
Ele estava evidentemente abalado. Foi logo dizendo:
- Você me disse que nosso exército estava enfrentando mais um desastre. Tenho notícias sobre ele. Estão chamando esse desastre de a Batalha dos Arenques. Tínhamos a maior chance possível de interceptar suprimentos muitíssimo necessários aos ingleses. Se pudéssemos ter capturado aquele comboio, isso teria sido o fim do cerco a Orléans. Mas uma vez mais, um punhado de godons derrotou um número muito maior de nossos melhores soldados. Parece que há uma maldição sobre nós. Aqueles godons têm o diabo do lado deles.
- Não se preocupe, senhor capitão. Em breve teremos Deus do nosso lado. Mas pelo amor ao nome dele, não demore mais. Dême uma escolta e deixe-me partir para Chinon.
Ele agarrou o braço dela de repente. Estava realmente perturbado. Para seu próprio espanto, percebeu que passara a gostar dela.
- Jeannette, você faz ideia dos perigos que enfrentará viajando com soldados rudes?
- Não tenho medo.
Pode confiar em Poulengy e em Jean de Mete - disse ele.
Eu sei, senhor capitão.
- Em ninguém mais - acrescentou ele.
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça.
Eles fizeram os planos. Era melhor, disse Poulengy, que viajassem como mercadores. Não deveriam ficar num grupo muito grande de soldados. Haveria simplesmente Poulengy e seu criado; Jean de Metz e o dele; e com eles viajariam um arqueiro chamado Richard e Colet de Vienne, que viera de Chinon a pedido de Baudricourt, que queria obter algum tipo de permissão da corte do delfim antes de deixar Jeannette ir procurá-lo.
Jean de Metz salientou que Jeannette não poderia viajar vestida como estava. Eles tinham de dar um jeito de transformar a jovem donzela em um rapaz.
- À primeira coisa - disse Jean - são os cabelos. Eles têm de ser sacrificados já.
Jeannette disse que abriria mão deles de boa vontade, e em pouco tempo sua aparência ficou transformada. Os espessos cabelos pretos jaziam a seus pés, e o que restava parecia uma bacia preta virada ao contrário sobre sua cabeça.
- Se você entrar em combate - disse Jean -, agora poderá usar a combinação de elmo e gorjal.
Ele encontrou algumas roupas que tinham pertencido a um de seus criados. Não foi fácil vesti-la, porque ela nada tinha de alta, medindo menos de um metro e meio, com o corpo robusto de uma camponesa. Ela vestia uma camisa, calções curtos e meias compridas, escuras, que podiam ser presas ao gibão. Por cima, usava uma capa que lhe chegava até os joelhos. Calçava compridas botas de couro e parecia um rapaz, de boa situação mas não rico.
- Ela vai precisar de uma espada - disse Poulengy. Baudricourt deu-lhe uma espada, e ela percebeu que seus
votos de felicidade a acompanhavam. Ele esperava que ela conseguisse. Ela o compreendia muito bem. Queria ajudá-la, desde que ao fazê-lo não tivesse seu futuro prejudicado. É assim que agem os homens ambiciosos, pensou ela.
Seguindo o conselho dele, todos partiram de madrugada, e ele enviara uma mensagem à abadia de Saint Urbain pedindo ao abade que os aguardasse. Sim, não havia dúvida de que eles tinham o beneplácito de Baudricourt.
Assim, cavalgando entre Poulengy e Jean de Metz, Jeannette saiu de Vaucouleurs para falar com o delfim em Chinon.
Colet de Vienne e o arqueiro Richard seguiam na retaguarda da pequena comitiva.
Os dois conversavam em sussurros.
- Você tem alguma dúvida? - perguntou Colet de Vienne.
- Ela é uma feiticeira. Caso contrário, como poderia uma simples moça camponesa chegar tão longe assim? Está tão claro quanto os campos banhados de sol.
- Está claro - concordou Richard.
- Será que vão zombar de nós, por termos levado uma feiticeira a Chinon? E uma coisa eu lhe digo: quando ela for reconhecida como feiticeira... porque como é que ela resistiria aos testes?... será que vamos ser acusados de cúmplices dela?
- Nada disso, devemos ter cuidado.
- Poulengy e Jean de Metz a protegem dia e noite.
- Eles dormem.
- Com ela entre eles.
- Talvez os dois compartilhem dos favores dela.
- E por que nós não iríamos compartilhar deles?
- Tenho um plano. Primeiro, vamos tentar a feiticeira primeiro. Ela é jovem bastante para fazer com que seja agradável. E se for virgem, melhor ainda.
- Ela não é virgem coisa nenhuma. Todas as feiticeiras têm de ter relações com o diabo antes de virar agentes dele.
- Ora, então, por que não participarmos da brincadeira? Vamos pegá-la numa noite escura... entrar sorrateiramente quando os guardas estiverem dormindo. Abafá-la para que não ouçam os gritos dela.
- E depois?
- Vamos estrangulá-la e jogá-la numa cova.
Talvez consigamos fazer com que seja acusada de feitiçaria. Elas são queimadas vivas por causa disso.
. E haverá honrarias para nós por termos descoberto a verdadeira natureza dela.
Você acha que ganharemos uma recompensa?
Dizem que estão falando nela em Orléans. Ela é um de seus novos milagres.
- Eu digo que ela vem a mando do diabo. Hoje à noite, então. Quando eles estiverem dormindo.
- Hoje à noite - concordou Richard.
Havia apenas uma lua crescente no céu e um salpico de estrelas para combinar com ela. Havia perigo no ar. Jeannette sentia.
- Não tenha medo - disseram as vozes. - Confie em Deus.-Você está a caminho.
Ficou ali deitada, no chão. De cada lado estavam as duas pessoas em quem confiava, Poulengy e Jean de Metz. Nenhuma vez sequer eles tinham tentado tocá-la. Se qualquer homem olhasse para ela, as mãos deles iam logo para suas espadas.
Deus os escolheu, e isso é tão certo quanto Ele ter escolhido a mim, pensou ela.
Por algum motivo, apesar de muito cansada, ela achou difícil dormir naquela noite. Ficou ali deitada pensando em Domrémy e no pai e na mãe, nos irmãos, em Catherine, que havia morrido, e nela mesma. Ela era apenas uma simples donzela do interior. Por que aquela tarefa lhe fora atribuída? Tenho de cumpri-la, dizia. vou cumpri-la.
O estalar da vegetação rasteira. O barulho de uma pedra sendo deslocada, o leve som de uma pisada.
- Não tenha medo - disseram as vozes.
Poulengy e Jean de Metz estavam em sono profundo. Fora um dia exaustivo. Ela ficou imaginando por que não conseguia dormir.
Alguém estava atrás dela, observando-a. Ela ergueu o olhar.
Era Richard, o arqueiro.
Estava parado, olhando para ela. Então, Colet de Vienne surgiu a seu lado.
Ela ficou apenas olhando para os dois. Foi Colet de Vienne quem falou:
- Pensei ter ouvido você pedir socorro - balbuciou ele. Ela abanou a cabeça.
- Então, está tudo bem? Ela confirmou com a cabeça.
Os dois se retiraram furtivamente. Entreolharam-se sob a pálida luz da lua.
- O que aconteceu? - disse Richard. -A coisa não saiu como planejamos.
- Você... percebeu...? - perguntou Colet de Vienne. -Você compreendeu como eu compreendi?
Richard confirmou com a cabeça.
- Ela é pura - disse ele. - Ela é realmente uma enviada de Deus.
- Eu também vi. Fomos salvos da condenação eterna.
- Daqui para a frente, eu acredito nela - disse Richard.
- vou pretegê-la com a minha vida.
Jeannette sentiu uma paz repentina tomar conta dela. Pouco depois, dormia a sono solto.
Eles avistaram Chinon. Os olhos de Jeannette brilhavam enquanto ela olhava para os muros ameiados, os baluartes, os barbacãs e as torrinhas daquele que era tido como o castelo mais bonito da França. E agora, ele tinha uma importância especial, porque o verdadeiro rei da França estava lá - embora Jeannette sempre o considerasse o delfim e fosse fazer isso até o dia glorioso em que ele seria coroado em Reims. Eles entraram na cidade.
- Você vai ficar numa estalagem aos pés do castelo, até que o delfim lhe dê permissão para falar com ele - disse-lhe Colet de Vienne.
Ela ficou satisfeita. Poderia esperar mais algumas horas. Chegara mais longe do que teria considerado impossível um ano antes. Além do mais, queria agradecer à Virgem Santa e aos santos por ajudarem-na em sua missão.
Assim, rezando, descansando e preparando-se para sua provação, Jeannette passou o tempo enquanto esperava a convocação ao castelo.
Irritando-se com a demora, ela sobreviveu às horas de espera até que chegaram homens enviados pelo delfim para interrogá-la.
- Já não fui interrogada o suficiente? - perguntou. - Não foi o próprio delfim que prometeu me receber?
Por que você veio aqui? - perguntaram eles. - Qual é a sua missão?
- Eu já disse várias vezes. Fui enviada por Deus para levantar o cerco a Orléans e levar o delfim a Reims, para ser coroado rei da França.
Eles foram embora. Disseram que ela teria uma resposta em breve.
Por fim, a ordem chegou. Ela deveria apresentar-se ao delfim.
Exultante, ela se preparou. Até ali, conseguira. Acontecera o que suas vozes tinham-lhe dito que aconteceria. O impossível fora conseguido, e aquilo era apenas o começo.
Ela saiu da estalagem e cavalgou até o castelo. Os guardas olharam-na com interesse.
Quando ela passou, um deles gritou:
- Aí vem a donzela! Então, esta é a virgem. Deixem eu passar uma noite com ela, e ela não o será mais.
Jeannette voltou-se para olhar para ele.
- Você é ousado - disse ela - por ofender a Deus... você, que vai morrer em breve.
Ela continuou seu caminho, e o homem ficou acompanhando-a com o olhar, tremendo.
Ela soube, mais tarde, que poucas horas depois ele sentira tanto remorso que se suicidara por afogamento.
Na cidade inteira, comentava-se o fato. Cada incidente daqueles ajudava a melhorar a reputação de Jeannette. Se ela achava difícil convencer os ocupantes de cargos elevados, o mesmo não acontecia com as pessoas do povo. Aumentava depressa a crença de que Jeannette
d'Arc fora escolhida por Deus para salvar a França.
E assim ela entrou no castelo.
O delfim estava sentado no salão cheio de gente, cercado por seus cortesãos e assessores. Ficara muito tempo indeciso quanto a receber, ou não, aquela camponesa. Na verdade, sua vida inteira fora cheia de indecisões. Carlos não tinha certeza se iria viver de um dia para o outro; não tinha certeza sobre os que o cercavam; vivia com medo de ter um destino que não sabia até que ponto seria ruim; mas a maior dúvida que tinha era se era filho de seu pai. Estava assim desde que sua mãe - sem dúvida a mais depravada que a França já tivera - lhe dissera que ele era um filho bastardo.
Sua vida fora perseguida pelo fantasma daquele medo. Será que ele não tinha direito algum ao trono da França? O rei fora um louco, passando anos sombrios de sua vida no palácio St. Pol. A fértil rainha tivera uma série de amantes. Como poderia qualquer um dos seus filhos estar certo quanto à identidade do pai? Além do mais, ela parecia odiar os filhos - não o tempo todo, porque quando vira uma chance de casar Katherine com o rei da Inglaterra, ela parecera amar a jovem de verdade. Quando os dois irmãos mais velhos do delfim tinham morrido de forma misteriosa, pensou-se que a rainha queria a coroa para seu caçula. Mas ela se voltara contra ele e o insultara com a dúvida que o perseguira desde então. Seria ele o verdadeiro herdeiro do trono, ou o resultado de um dos encontros de sua mãe com seus inúmeros amantes?
Talvez aquilo estivesse na raiz de sua letargia.
Ele agora estava com vinte e seis anos e parecia ter quase cinquenta, porque levara uma vida de excessos; saíra à mãe quanto a isso, mas enquanto ela mantivera a notável beleza, ele, que nunca tivera quaisquer pretensões de beleza, ficara cada vez mais desfavorecido.
Começara a vida como uma criança sem atrativos. O rosto fora inchado desde nascimento; o nariz era comprido e largo bulboso e roxo, parecia pendurar-se sobre os lábios flácidos. Os olhos pequenos estavam quase escondidos em dobras de pele. Ele encontrara um grande consolo nos braços de empregadas que, embora não o achassem pessoalmente atraente, ficavam embriagadas com sua realeza. As pernas eram arqueadas, o que provocava um jeito de andar arrastando os pés. Não era, em absoluto, uma figura que inspirasse confiança.
E ele vivia com medo. Havia momentos em que desejava ardorosamente ter sido um nobre sem responsabilidades, exceto as relativas a suas propriedades. Abominava conflitos de qualquer tipo; e não suportava ver sangue. Considerava-se infeliz por ter nascido na época em que a França estava engajada não apenas naquela luta ferrenha com os ingleses, mas em disputas internas. Vivia com um medo enorme não apenas do duque de Bedford, mas do duque de Borgonha, seu inimigo especial, porque Borgonha o achava culpado pelo assassinato do pai.
O medo dominava a vida do delfim. Quando ele estava no castelo de La Rochelle, o teto desabara e só por um milagre sua vida fora salva. Dali por diante, ele vivera com medo de tetos que desabavam. Recusava-se a viver em grandes aposentos. Se fosse desabar, que não passasse de um de pequenas dimensões.
De certo modo, era sutil, ardiloso e astuto, mas era sobrepujado pelo meio onde vivia. Confuso, ansiava por romper com o passado; ansiava por ser declarado filho legítimo do rei da França, e de certo modo tinha medo disso. Sua infância fora estragada por um pai louco e uma mãe devassa, e permaneciam lembranças de uma vida de dificuldades com seus irmãos e sua irmã no palácio St. Pol. A terrível incerteza de não saber o que lhe aconteceria de um dia para o outro deixara-o nervoso e apreensivo. Ele estava como um homem na prisão, esperando ser liberto para que pudesse provar sua inocência.
Aquela altura, sua vida era governada pela dúvida. Seria ele o herdeiro legítimo da França? Será que queria sê-lo? Será que queria lutar para livrar o país do jugo inglês?
Ele estava indeciso.
E agora, estavam trazendo aquela menina para falar com ele. Será que queria falar com ela? Em dado momento, gritou: "Não!" Depois, lembrou-se de que o povo estava falando sobre ela por onde passasse. Diziam que ela era realmente enviada por Deus. Estavam começando a acreditar que ela faria milagres. Soldados experientes emocionavam-se com ela.
Iria recebê-la. Não, não iria. Por que perderia tempo com uma camponesa? Aquilo era ridículo. No entanto...
- Estão falando sobre a profecia de Merlin, senhor - disse Colet de Vienne, aquele homem que saíra um cínico e voltara convertido. - Ela diz que uma donzela salvaria a França.
Era verdade. Ele ouvira a profecia.
- Meu senhor, ela viajou até aqui vinda de Vaucouleurs. O país está dominado por soldados rudes. Há assaltantes por todo canto. Foi uma viagem difícil e perigosa, mas ela, uma jovem simples, veio até aqui.
O delfim resolveu recebê-la.
- Vamos depressa - bradou Colet de Vienne -, antes que ele mude de ideia.
Foi uma cena impressionante no salão principal, iluminado por cinquenta tochas acesas. Jeannette entrou de forma modesta, mas nitidamente sem medo.
Correu os olhos pelo salão e foi direto ao delfim. Colet de Vienne lhe dissera o que devia fazer: ajoelhar-se diante dele e abraçar-lhe os joelhos.
- Deus o conserve, doce príncipe - disse ela.
O delfim tentou confundi-la. Ficara um pouco abalado com o fato de que ela fora direto até ele. Como ela o reconhecera no meio daquela multidão ali reunida? Ele achava, com ironia, que muitos dos presentes tinham mais aparência de rei do que ele.
Ele apontou para um de seus cortesãos.
- Ali está o rei. Não sou eu.
Ela sorriu e continuou a olhar para ele - impelida a fazer isso, pensou ela depois.
- Não... - disse ela -, é o senhor o delfim.
Ele ficou embaraçado, mas ainda não estava convencido. Poderia ela tê-lo visto em algum lugar? Era improvável, mas ela deveria ter ouvido uma descrição dele. Deus sabe que ele era feio o bastante para se destacar.
- Quem é você, que vem assim à minha corte? - perguntou ele.
- Gentil delfim - respondeu ela -, sou uma simples camponesa e as pessoas me chamam de Jeanne, a Donzela. Deus me enviou para levar o senhor ao seu reino. Ele mandou uma homenagem, e eu sou sua mensageira. O senhor deverá ser ungido e coroado em Reims e será servidor do Senhor para governar a França sob a proteção dele.
Você diz palavras estranhas - disse o delfim.
. Eu venho a mando de Deus - respondeu ela, com simplicidade.
Apesar de sua descrença, ele quis conversar com ela.
- Venha - disse ele -, sente-se ao meu lado. Quero conversar com você.
Alguém levou um banco, e ela sentou-se perto dele. O delfim fez sinal para que os cortesãos se afastassem.
- O Meu Senhor me pede que lhe diga que o senhor é, mesmo, o verdadeiro herdeiro da França e filho de um rei - disse ela, tranquila. - O senhor não deve se preocupar mais com isso.
Ele olhou incrédulo para ela. Como poderia aquela menina simples saber do problema que havia tanto tempo dominara sua mente?
Sentiu-se transformado. Agora, acreditava nela. A jovem vinha a mando de Deus. Tinha sido dotada de poderes especiais; e ele era, de fato, filho de um rei.
Ela lhe falou, então, sobre a necessidade de salvar Orléans. Tinham de levantar o cerco. Ela precisava de homens e armas. O delfim tinha de dá-los a ela, e com a ajuda de Deus ela levaria os franceses à vitória. Em Orléans todos já a conheciam. Estavam aguardando por ela, esperando que ela levasse a liberdade.
Ele ficou ouvindo, fascinado.
Ela falava com ele, entusiasmada. Ele ficou impressionado com o fato de uma simples moça do interior saber de tanta coisa.
Jeannette vibrava, triunfante. Agora estava pronta para seguir até Orléans... e Reims.
ALGUMAS semanas depois, em fins de abril, Jeannette, sentada num cavalo branco que lhe fora dado pelo delfim e vestindo uma armadura, entrou na cidade de Orléans depois de escurecer, pela Porta Bogonhesa. À sua direita seguia o Bastardo de Orléans, e à frente ia um porta-bandeira levando seu estandarte, no qual estavam retratados dois anjos segurando a flor-de-lis. Atrás dela cavalgavam capitães e soldados armados, aqueles que o delfim enviara para acompanhá-la.
O povo estava esperando por ela. Era a sua salvadora. O desânimo deles acabara. Não fazia tanto tempo assim desde que, depois da Batalha dos Arenques, eles acreditavam estar perdidos. Tinham recebido a proposta de se render ao duque de Borgonha. Agora, festejavam. A vontade de Deus era no sentido de que resistissem; e Ele enviara aquela mensageira para salválos.
Várias pessoas tinham brigado pela honra de hospedá-la, que acabara ficando com Jacques Boucher, o leal tesoureiro do duque de Orléans. Ele era rico e casara-se com uma mulher tão rica quanto ele e dera muito, em dinheiro e bens, para preservar a cidade contra os invasores, de modo que a ele coubera a honra de ser o anfitrião da donzela.
Era costume, naquelas casas, o hóspede dormir com o anfitrião de modo que Jeanne dividiu um quarto com madame Boucher e sua filhinha Charlotte, na verdade dormindo com a menina na cama dela.
A garotinha ficou deslumbrada com a perspectiva de dormir ao lado de uma pessoa que era uma espécie de anjo. Jeannette não se parecia nada com um anjo. Na verdade, a menina nunca vira ninguém igual a ela. Poderia ser um menino, mas não era, e viera do céu. Isso significava que Charlotte teria de ser de uma bondade acima do normal e lembrar-se de tudo o que lhe haviam dito. Não devia deitar-se no meio da cama, mas ficar na beira; tinha de ficar quieta e não se mexer, e acima de tudo deveria ficar de boca fechada e não roncar.
Jeannette a tranquilizou. Sussurrou para Charlotte que estava tudo bem, porque ela estava muito cansada e não perceberia se ela se mexesse um pouquinho.
Depois de uma noite de sono, Jeannette estava pronta para agir.
Primeiro, proporia aos ingleses que fizessem a paz. Queria escrever para eles, e uma vez mais repreendeu a si mesma por nunca ter feito a menor tentativa de aprender a ler e escrever. Não havia alternativa, a não ser conseguir alguém para escrever por ela, e as palavras escritas seriam aquelas ditadas pelas vozes que ela ouvia.
"Rei da Inglaterra", ditou ela, "e duque de Bedford, que se intitula regente da França, conde de Suffolk, senhores Scales e Talbot, que se intitulam tenentes do citado duque de Bedford, eu lhes peço que se entreguem. Entreguem à donzela as chaves das cidades que tomaram pela força. A Donzela vem a mando de Deus para fazer a paz, se os senhores agirem da forma indicada. Caso contrário, serei uma grande chefe guerreira e farei com que seu pessoal se retire da França. Se eles obedecerem à vontade de Deus, serão tratados com clemência. Eu, que venho enviada por Deus para expulsá-los da França, prometo que se não se retirarem haverá na França um tumulto como não se vê igual há mil anos.
"Duque de Bedfort, que se intitula regente da França, a Donzela enviada por Deus lhe roga que não provoque a destruição de si mesmo e de seu exército. Mas se o senhor se desviar da justiça, ela irá defender os franceses e será efetuada a mais bela façanha jamais feita na cristandade.
"Escrito na terça-feira da Semana Santa.
"Prestem atenção às notícias sobre Deus e a Donzela."
A carta foi entregue no acampamento inglês. Como se esperava, não houve resposta.
- Agora - bradou Jeannette -, temos de nos preparar para entrar em combate.
Houve uma reunião imediata, e opiniões diferentes com relação a quando o ataque deveria começar e que forma deveria tomar. Dunois, o Bastardo de Orléans, estava no comando de Orléans. Um grande soldado - um dos melhores da França -, era totalmente leal à Coroa. Era bem-apessoado, inteligente, valente - na verdade, um modelo de homem; e, claro, tinha sangue real, por ser filho ilegítimo de Luís de Orléans, aquele que fora amante da devassa Isabeau e assassinado pelo duque de Borgonha quando saía dos aposentos dela. Sua mãe tinha sido uma das amantes favoritas de Orléans, Marriette dEnghien, madame de Cany-Dunois. Quanto ao assassinato do duque, a duquesa de Orléans ficara tão impressionada com o Bastardo, então com apenas oito anos de idade, quando ele se oferecera para vingar o pai, que insistira em que ele fosse criado com seus filhos e gozasse dos privilégios que teriam sido dele se seus pais tivessem se casado. Ele sempre fora conhecido como o Bastardo de Orléans, mas jamais se colocara sua lealdade em dúvida.
Foi esse o comandante com quem Jeannette foi colocada frente a frente; ela deveria conversar com o soldado gascão Etienne Vignolle, conhecido como La Hire, de cuja reputação de guerreiro implacável Jeannette ouvira falar quando era criança. Havia, também, o belo jovem Gilles de Rais, um bom soldado, mas um homem que gostava tanto de trajes elegantes e ostentação, que viajava com muita pompa, com baús de roupas vistosas. Entre outros capitães e comandantes estava o Sire de Gamaches, um jovem impulsivo que ela, desde o início, percebeu que não estava nada satisfeito por ter uma jovem sem instrução participando das conferências.
Jeannette estava impaciente. Muito tempo fora desperdiçado, Sua missão poderia facilmente ter fracassado. O povo de Orléans estivera, não fazia muito tempo, disposto a render-se ao duque de Borgonha. E se o tivesse feito? Tudo teria saído errado. O duque de Borgonha era tão inimigo dos franceses quanto os ingleses. Fora a intervenção divina que fizera com que o duque de Bedford - em geral, tão astuto - se recusasse a permitir aquela rendição. Ele dissera que não iria sacudir as árvores para que outro pegasse os pássaros. Essa questão dos pássaros era uma das que seriam lamentadas pelos ingleses por muito, muito tempo.
Mas não devia haver mais tempo desperdiçado. Eles tinham de entrar em ação.
La Hire concordou com ela. Era ousado e conseguira a maioria de seus sucessos mediante uma ação rápida.
- O povo está exultando - disse ele. - Ele acredita na Donzela. Vai lutar como nunca lutou.
O Sire de Gamaches salientou que seria loucura tentar atacar sem o apoio da força que fora prometida das tropas que estavam em Blois.
- Não devíamos esperar - disse Jeannette. - Já esperamos demais.
Dunois avaliou os dois lados. Havia muito de razão em ambos.
De Gamaches, vendo sua hesitação, perdeu a paciência.
- Estou vendo - disse ele - que está se dando mais atenção a uma mulherzinha de baixo nível do que a um cavaleiro guerreiro. Não discutirei mais. Entregarei meu estandarte e lutarei como um pobre escudeiro. Não vou liderar soldados numa ação que considero uma loucura.
Ele entregou seu estandarte a Dunois, que teve o bom senso de recusar-se a aceitá-lo.
- Escute aqui - disse ele, com paciência -, não é esta a hora de discutirmos entre nós. É verdade que o povo está em estado de euforia. Todos acham que a Donzela fará milagres. E verdade que se perdeu muito tempo. É também verdade que precisamos da ajuda das tropas de Blois. Aceite seu estandarte de volta, senhor. Eu mesmo partirei imediatamente para Blois. Voltarei com os soldados. Depois, iniciaremos nosso movimento.
Chegou-se a um acordo de que aquele era o plano mais sensato, e irritada de tanta impaciência, Jeannette consolou-se com o fato de que no Bastardo de Orléans eles tinham um líder inspirado.
Ficou provado que ele estava cheio de razão, porque quando chegou a Blois, descobriu que aqueles que deploravam a espetacular ascensão de Jeannette em importância estavam decididos a destruí-la - ainda que isso significasse a perda da cidade de Orléans para os ingleses.
O principal inimigo dela era Regnault de Chartres, bispo de Reims, que se ressentira do efeito que ela exercera sobre o delfim e queria provar que tinha razão. Homem muitíssimo feio com cabelos e barba eriçados e dentes estragados -, ele odiava a juventude de Jeannette. E quando Dunois chegou em Blois, foi a tempo de alterar a decisão de ignorar a ordem para a ida de soldados para Orléans.
Houve consternação entre os ingleses do lado de fora de Orléans. Eles estavam sempre falando sobre Joan, a Donzela. Tinham passado a usar a forma inglesa do nome dela, e embora alguns tentassem zombar dela, faziam-no com apreensão. Houvera uma mudança na atitude dos franceses desde a chegada dela. Era ousada, e se considerava evidentemente estranho o fato de uma jovem ascender daquela maneira e forçar a chegada à presença do delfim, como Jeannette parecia ter feito.
Era tudo muito bem chamá-la de rameira. Ela nada tinha disso. Dizia-se que ela insistia em que todos reconhecessem sua virgindade, e que embora passasse as noites em companhia de soldados rudes, nenhum deles ousava atacá-la. Ela dizia ter sido enviada por Deus.
Os ingleses diziam que aquilo cheirava a bruxaria.
Mas a verdade era que quer se tratasse de Deus, quer do diabo, o caso estava muito acima da compreensão dos homens comuns, e qualquer um dos dois seria um adversário extremamente desagradável.
Os ingleses viram a chegada das tropas de Blois e se perguntaram o que o futuro lhes reservava. Eles teriam prazer em ver um fim para aquele cerco. Ele durara demais, e eles tinham passado muitas dificuldades. Estavam esperando pelo dia em que entrariam na cidade e desfrutariam das recompensas da conquista e eram a razão mesma pela qual tanta gente exercia a profissão da guerra.
Eles estavam prontos. Jeannette exultava. Ela não tinha dúvidas quanto ao resultado. Suas vozes insistiam para que ela continuasse. Agora, ela realizaria a primeira parte da missão e libertaria Orléans.
Muita gente iria morrer. Ela sentia pena deles. E muitos sairiam ilesos, como acontecia nas guerras. Se ao menos ela pudesse convencer os ingleses de que deviam desistir de Orléans, que a Vontade Divina era de que eles desistissem dela, muito derramamento de sangue poderia ser evitado.
Ela subiu no bastião que ficava diretamente em frente ao de Lês Tòurelles, o principal baluarte em mãos dos ingleses.
Pediu a presença de Sir William Glasdale, que ela sabia ser o capitão encarregado.
- Eu lhe peço que desista - bradou ela. - Tenho ordens de Deus e de Seus Santos, e digo-lhe que seu lugar não é aqui. Vá embora, para que suas vidas sejam salvas.
Sir William Glasdale riu dela.
- Volte para os seus campos, vaqueira - gritou ele. - Lá é que é o seu lugar. Não se meta em assuntos que fogem à sua compreensão.
- O senhor usa palavras ousadas - retorquiu Jeannette. Mas pense bem. Em breve o senhor irá embora. Deveria arrepender-se depressa. Muitos dos seus soldados serão abatidos, mas o senhor não estará aqui para ver.
Glasdale desceu da torre.
Estava um pouco abalado. Havia algo em relação àquela jovem, concluiu. Ela o irritava. O que era? Uma inocência? Será que ele, um soldado calejado, teria medo da inocência?
Ela é uma feiticeira, disse a si mesmo.
Mas no fundo do coração, não acreditava nisso. Havia uma radiância em torno dela, um brilho. Era como se um profeta falasse por intermédio dela.
Ele estava muito aflito. Aquele não era o estado de espírito com que um comandante devia entrar em combate.
A batalha grassava havia vários dias. O povo de Orléans estava certo da vitória, porque Deus estava do lado deles; Jeannette dissera isso, e todos acreditavam em Jeannette. Não foi uma luta fácil. Os ingleses tinham se acostumado com a vitória desde Agincourt, e acreditavam realmente que um inglês valia meia dúzia de franceses. Mas os franceses tinham encontrado uma nova inspiração. Tinham a Donzela, e a Donzela fora enviada por Deus.
Ela estava no auge da batalha - uma figura pequena, mas facilmente perceptível devido ao seu tamanho, à flexibilidade dos movimentos e às palavras de estímulo que estava sempre usando.
Quando a feriram no pé, a consternação foi geral. Como poderiam Deus e Seus santos esquecer-se de um dos seus? Jeannette sentiu um tremor de aflição - não em relação a si mesma, mas ao efeito que aquilo teria sobre os que a cercavam.
Não era nada, disse a eles. Não estava sentindo dor alguma.
Ela sabia que Lês Tòurelles tinha de ser atacada e ocupada. Se pudesse cair em mãos dos franceses, não apenas os ingleses teriam perdido seu mais importante bastião, mas o efeito sobre os dois lados seria enorme.
Mas os ingleses não se entregavam com facilidade. Tinham sabido que Joana d'Arc fora ferida. Era uma boa notícia. Ela não passava de uma ordenhadora, uma vaqueira, no final das contas. Por alguma razão, ela fora se insinuando até chegar à frente, e os franceses a estavam usando como um símbolo. Mensageira de Deus, hein? Se Deus quisesse ajudar os franceses, por que não matara todos os ingleses? Sem dúvida, para Deus aquilo não seria muito difícil. Por que aquele trabalho todo de fazer surgir uma jovem camponesa?
A batalha estava começando a pender em favor dos ingleses.
- Temos de tomar Lês Tòurelles - bradou Jeannette, desesperada.
Havia alguns franceses que queriam parar de lutar. - Não, não - bradou Jeannette. -Vocês já fizeram demais Desta vez, vamos continuar até vencermos. Vamos tomar Lês Tburelles.
Ela pegou uma escada de sítio e começara a subir quando uma flecha atingiu-a entre o pescoço e o ombro e ela caiu.
Dos ingleses, veio um grito.
A Donzela foi abatida. A Donzela morreu. Lá se foi a mensageira de Deus!
Alguém estava curvado sobre Jeannette. Era o Sire de Gamaches, que se melindrara com ela na reunião do conselho de guerra.
- Pegue meu cavalo - disse ele. -Vá para um lugar seguro. Fui injusto com você. Perdoe-me. Eu a admiro. Não me queira mal.
- Obrigada - disse Jeannette. - Eu não lhe quero mal. Nunca vi um cavaleiro mais completo.
O Sire de Gamaches chamou um de seus soldados.
- Leve-a para um lugar seguro - ordenou ele.
Ela foi colocada num cavalo e levada para dentro dos muros da cidade. Enquanto tiravam sua armadura, ela estava semi-inconsciente. Os homens abanaram a cabeça quando viram o terrível ferimento, com a flecha ainda sobressaindo.
Um dos homens ajoelhou-se ao lado dela.
- Salve a si mesma - disse ele. - Você tem poderes. Você pode curar isso com palavras.
- Não sei esse tipo de palavras - respondeu ela. - Se eu tiver de morrer, não há como evitar isso.
- Os ingleses estão dizendo que você morreu. Nossos homens estão perdendo a esperança.
- Neste caso - replicou ela -, terei de mostrar a eles. Jeannette segurou a flecha com as mãos e, com um forte
puxão, arrancou-a. Por um instante, perdeu a consciência, mas só por um instante.
Dunois soubera do que acontecera. Foi até ela correndo.
- Jeannette - disse ele. - Oh, Donzelinha, quer dizer que isso é o fim?
Ela abriu os olhos.
- Como vai a luta? - perguntou.
- Eles viram você cair - disse ele. - Estão zombando. "Acabou-se a ajuda de Deus", dizem eles. Acho que não podemos resistir por muito tempo mais. Temos de recuar para trás dos muros.
- Não... não... - bradou ela.
Dunois estava olhando para o horrível ferimento no ombro dela. Alguém estava aplicando óleo e gordura, o remédio conhecido para casos como aquele.
À medida que o ferimento ia recebendo o curativo, a tontura começava a passar.
- Me ajude a vestir a armadura - disse ela. - Eu vou até lá. Antes do anoitecer, estaremos dentro de Lês Tourelles.
E assim trouxeram a armadura, e ela saiu a cavalo uma vez mais.
Quando os franceses a viram, deram um grito de alegria. Aquilo era um milagre. Ela caíra aparentemente ferida de morte, e agora ali estava como se nada tivesse acontecido.
Os ingleses também a viram. Não podiam acreditar. Ela devia ter-se levantado dos mortos. Não havia dúvida de que possuía poderes divinos. Deus estava contra eles... Deus ou o diabo... e em qualquer dos dois casos, que chance teriam eles?
Aquele foi o ponto em que a batalha virou. Sir William Glasdale viu logo que eles teriam de abandonar Lês Tourelles. Deu ordem de retirada. Enquanto ele passava pela ponte levadiça, um tiro saído dos muros da cidade derrubou a ponte. Ferido, Glasdale caiu na água e morreu afogado, com vários de seus homens.
Os franceses tomaram Lês Tourelles de assalto, onde encontraram alimentos e munição. Os ingleses tinham fugido da cidade, e os franceses tomaram posse do resto das bastilhas que estavam também bem sortidas de mantimentos de que estavam tão necessitados.
Os ingleses partiram em retirada, e o cerco de Orléans acabara.
ELA CUMPRIRA a primeira parte da missão. Orléans estava livre. Agora, tinha de provocar a segunda: a coroação do delfim, que deveria ser Carlos VII da França.
Mensageiros tinham sido enviados a toda velocidade a Chinon, e Jeannette estava se preparando para deixar Orléans imediatamente, com a maioria do exército. Não havia tempo a perder com comemorações em Orléans. O povo de Orléans o faria. Ela precisava encontrar-se com o delfim em Blois, e de lá os dois seguiriam para Reims.
Ela esperava que ele já tivesse chegado, todo alegria, todo ansiedade por ocupar seu lugar de direito em seu país. Foi decepcionante ficar esperando dois dias em Blois e ver que ele não chegava.
Por fim, chegou a mensagem de que ele estava para partir para Tours, e Jeannette deixou imediatamente Blois e dirigiu-se àquela cidade.
Encontrou-se com o delfim logo do lado de fora de Tburs. Os cavalos dos dois se aproximaram, quase se tocando, e Jeannette tirou o gorro e inclinou-se acentuadamente. O delfim segurou-lhe a mão e a beijou. Foi um momento profundamente emocionante.
Ela o achou transfigurado, e não o via como o jovem-velho devasso. Para ela, ele era o rei, e todos os reis tinham uma aura de santidade para os plebeus de Domrémy; e aquela era a escolhida do Senhor. Ela tivera uma bênção especial, fora escolhida pela sua simplicidade e recebera aquela tarefa por parte de Deus Todo-poderoso.
O delfim estava emocionado. Ela - aquela jovem donzela camponesa - salvara a cidade de Orléans. Possuía poderes mágicos, era verdade. Fizera com que ele tivesse certeza de sua legitimidade; e depois fora salvar uma cidade importantíssima para os franceses. Por que uma jovem faria aquilo? Ele deveria ter cavalgado à frente de suas tropas, ao invés de esconder-se em Chinon. Se tivesse sido um grande guerreiro como alguns de seus ancestrais, aquele domínio por parte dos ingleses jamais teria acontecido.
O que poderia ele dizer à salvadora de Orléans? Poderia recebê-la de braços abertos; poderia beijar-lhe a mão; poderia tratá-la com respeito - mas não podia reprimir a pontada de ressentimento, porque sentia inveja pelo fato de que ela fizera aquilo, quando a obrigação era dele.
Juntos, os dois entraram em Tours a cavalo. Era muito grande a alegria que havia nas ruas, mas mesmo enquanto Jeannette desfrutava do sucesso, sentiu como se uma mão gelada lhe apertasse o coração. Aquilo era como devia ter sido naquele domingo, havia muito tempo, quando o povo sacudia as folhas de palmeiras e dava as boas-vindas a outra pessoa, aos gritos de "Hosana!".
Eles descansaram em Tburs. Jeannette estava muito impaciente para partir, mas o delfim parecia indeciso. Ali em Tburs... estava agradável. O povo apoiava-o. Gostava de vê-lo cavalgar ao lado da Donzela. Aquilo lembrava ao povo que Deus estava do lado dele e Deus, dizia-se, era invencível.
Mas como Jeannette se impacientava com a demora, e como o delfim desfrutava dela! Naquele momento, estava muito agradável, pensava ele. Por que não se demorar num estado feliz como aquele?
Mas tinham de seguir em frente, dizia Jeannette.
A atenção dela foi chamada para o fato de que aquilo significava atravessar uma região hostil para chegar a Reims.
- Pois que seja - replicou ela. -Já chegamos até aqui. O Senhor Deus não irá nos abandonar agora. Ele quer que o delfim seja coroado em Reims, e é com essa finalidade que estou aqui.
O delfim estava cercado de seus assessores, cujo chefe era Georges de la Trémoille - um homem covarde, mas sonso e astuto. Parecia um barril, de tão gordo. Era rancoroso, e um homem a ser vigiado, porque os que o ofendiam costumavam sair de cena. Ele estava sempre ao lado do delfim, e sua palavra tinha muita influência.
Para homens iguais a ele, era desconcertante ver tanta adulação dirigida a uma camponesa ignorante.
A La Trémoille interessava ver o delfim fraco, dependendo dele; ele sempre aconselhara uma política de irresolução.
Por isso, quando Jeannette insistia para que fossem para Reims, La Trémoille, junto com o chanceler Regnault de Chartres, opunha-se fortemente a ela.
- Não há tropas suficientes, nem dinheiro, para uma viagem dessas-insistiam eles; e o delfim, como era seu hábito havia muito tempo, dava atenção a eles. A delonga fazia parte de sua natureza, como também da deles. O delfim tinha aversão a mudanças. Era maravilhoso ter conseguido aquela vitória, mas agora ele começara a perceber que aquilo o estava tirando de sua letargia. Era isso que ele queria?
Jeannette não se dava por vencida com facilidade. Foi procurar o delfim em seus aposentos privados, e ninguém teve a coragem de impedi-la. Se Trémoille e Regnault a desprezavam, outros membros da comitiva do rei não agiam assim. Tinham por ela um respeito temeroso.
Ela caiu de joelhos diante dele e disse que deviam partir já. As vozes estavam insistindo com ela. As vozes tinham de ser obedecidas. Ele tinha de ir para Reims.
- Há obstáculos demais - disse ele. - Há cidades que ainda estão nas mãos dos ingleses. Você não percebe que elas estarão duplamente fortificadas... depois de Orléans?
- Percebo apenas que temos de ir para Reims. Minhas vozes assim o exigem, senhor, e elas têm de ser obedecidas.
Por fim, foi dela a voz que o convenceu, e o delfim, com sua corte e um exército de doze mil homens, partiu para Reims.
Houve dificuldades pelo caminho. Jeannette sabia que haveria. Na cidade de Troyes, foi muito decepcionante, porque havia uma guarnição que consistia em seiscentos ingleses e borgonheses. Eles não iriam render-se com facilidade.
Claro que Trémoílle e Regnault salientaram que eles não tinham mantimentos para montar um cerco. Só havia uma coisa a fazer: voltar.
- Não! Não! - insistiu Jeannette. - O meu bondoso delfim, ouça a Deus, que fala por meu intermédio. Espere aqui diante da sua cidade de Troyes, e através do amor ou da força farei com que ela seja sua dentro de poucos dias.
Jeannette preparou-se para a batalha. Ficou acampada do lado de fora dos muros, e no dia seguinte vestiu a armadura, montou o cavalo e, levando seu estandarte, avançou gritando que vinha em nome de Deus, Nosso Senhor.
Não houve luta. Dentro da cidade ouviu-se um grito de "Nós nos rendemos!", e os moradores da cidade saíram declarando que não resistiriam à Donzela.
Ela entrou na cidade cavalgando lado a lado com o delfim. Ela estava triunfante, enquanto TrémoYlle e seus amigos murmuravam que o resultado poderia ter sido o contrário.
Dunois aproximou-se dela com uma grande emoção brilhando nos olhos.
- Você é, realmente, a mensageira de Deus - disse ele.
- Agora o senhor sabe - disse ela. - Utilize-se bem de mim enquanto estou aqui, porque não ficarei por muito tempo.
Dunois agarrou o braço dela e disse, inflamado:
- Por que fala desse jeito? Do que tem medo?
- De traição - disse ela. - Eu a sinto no ar. É isso que irá me destruir.
- Jeannette, você sabe que vai morrer. Quando?
- Não sei quando, mas que vai acontecer, sei muito bem. Estou à mercê da vontade de Deus e realizarei o que me mandaram fazer. Levantei o cerco de Orléans; agora, tenho de fazer com que o delfim seja coroado em Reims. Quando isso estiver acabado... é possível que meu trabalho também esteja.
Peça a Deus, Jeannette, que Ele a preserve.
Ela sorriu para ele.
EU gostaria muito que Ele me mandasse de volta para
minha mãe e meu pai. Eu gostaria de cuidar das ovelhas outra vez e saber que meu trabalho terminou.
Dunois deu as costas para ela. Estava surpreso com a emoção que sentia. Gostava dela, não como mística - nem mesmo tinha certeza de que acreditava inteiramente naquilo -, mas porque ela era simples e humilde e... ele procurou uma palavra para descrevê-la. Pensou: é boa. Jeannette é boa, com uma bondade rara em homens e mulheres.
O exército ficou acampado a cerca de dezesseis quilómetros de Reims. Trémoille declarou que a cidade resistiria a eles.
- Não é verdade, senhor - replicou Jeannette. - O senhor verá que- os principais cidadãos sairão da cidade, trazendo as chaves para o delfim.
E foi isso que aconteceu, porque assim que a cavalgada foi avistada por Reims, os principais cidadãos saíram, como Jeannette previra, e nas mãos levavam as chaves da cidade. Estavam esperando ansiosos a chegada da Donzela com o delfim, e dali a poucos dias depois ele seria coroado rei da França.
Na França, era costume os reis serem coroados num domingo, e o povo de Reims decidira que isso deveria ser observado. Durante todo o dia de sábado, 16 de julho, foram realizados os preparativos. Os habitantes da cidade sabiam que seu delfim adotara como residência o castelo de Sept-Saulx, localizado a cerca de dezesseis quilómetros da cidade.
As nove horas da manhã, Carlos entrou na igreja, e a seu lado estava Jeannette. Era o que o povo esperava. Ele estava ali graças a ela, e apesar de haver quem lamentasse aquilo, teria de ser assim.
Seus magníficos mantos estavam abertos à altura do pescoço e dos ombros, preparados para a unção cerimonial que significaria que ele estava sendo dotado de fama, glória e sabedoria. Ficou parado diante do altar principal e com ele estavam o duque de Alençon e os condes de Clermont e Vendôme.
Dizia-se que o óleo para a unção, contido na Âmbula Sagrada, um frasco de cristal que fora levado do túmulo do Apóstolo, tinha sido usado pelo Beatificado Remi na unção do rei Clóvis.
Jeannette observava a cerimónia, exultante. Aquilo era o clímax. Era para aquilo que suas vozes tinham-na dirigido. Era o momento de realização, e o mais feliz de sua vida.
O arcebispo pegara a coroa que estava no altar - infelizmente, não a coroa de Carlos Magno com seus rubis, safiras e esmeraldas, decorada com a flor-de-lis, porque os ornamentos reais estavam todos em poder dos ingleses e, segundo se dizia, em St. Denis.
Isso não importava, e sim o ato da coroação. O delfim era agora, de verdade, o rei Carlos VIL
As trombetas estavam soando, e o povo gritava: "Noel! Noel!"
Jeannette adiantou-se e ajoelhou-se aos pés dele. Lágrimas escorriam dos olhos dela.
- Amado rei - bradou ela -, agora a vontade de Deus está feita. Ele queria que eu levantasse o cerco de Orléans e o trouxesse a esta cidade de Reims para receber sua santa unção, anunciando que o senhor é o verdadeiro rei e dizendo ao mundo a quem pertence este belo reino da França.
O rei tocou de leve a cabeça dela com os dedos, e o povo gritou, alegre:
- Vive lê rói. Noel! Noel!
O rei, então, seguiu para o banquete que seria realizado, de acordo com a tradição, no antigo salão de Tau. A mesa fora estendida até a rua, para que os festejos fossem acessíveis a todos. Haveria comida e bebida de graça, e centenas de ovelhas, galinhas e bois tinham sido abatidos. Havia Beaune e Borgonha para todos.
Dunois estava observando Jeannette com afeto. Ela realizara um milagre. Devia estar contente, agora. Tinha de voltar para o interior e viver pacificamente o resto da vida. Que voltasse para a vida simples, talvez arranjando um marido, cuidando de uma casa, tendo filhos. Era tão perita nas atividades domésticas quanto se tornara nas da guerra.
Aquilo não era vida para uma jovem. Ela fora convocada para fazer um milagre, e o realizara.
- Jeannette - disse ele-, você conhece a estalagem chamada JeAne Rayé. Devia ir até lá. Acho que encontrará algo de seu
interesse.
- O que encontrarei lá? - perguntou ela.
- Eu a levarei - disse ele - e você verá por si mesma.
As pessoas abriram caminho para ela e o Bastardo de Orléans. Olhos seguiam a Donzela, e ela foi saudada por um silêncio respeitoso; mas aquele dia era o dia do rei. O milagre terminara; agora, eles iriam aproveitar os frutos dele. Suculenta carne vermelha. Vinho em abundância. A Donzela trabalhara bem; eles adoravam a Donzela. Mas aquele era o dia de comer, beber e farrear e cantar Vive lê Rói.
Jeannette não acreditou no que via quando entrou na estalagem. Em questão de segundos, encontrava-se nos braços da mãe. O pai estava ao lado; e também os irmãos Jean, Pierrelot, e o marido de sua prima, Durand Laxart.
Soltando-se dos braços da mãe, ela ficou de frente para todos.
O pai tomou-lhe as mãos e beijou-as.
- Vim pedir perdão - disse ele.
Ela abanou a cabeça, as emoções ameaçando sufoca-la.
- Meu pai, agora o senhor compreende. Eu tinha de fazer o que fiz. Tinha de magoá-los. Era uma ordem de Deus.
- Você salvou Orléans. Você é amiga do rei... - era Pirrelot que falava. - Não posso acreditar nisso, muito embora tenha visto com meus próprios olhos.
- Nós nos sentimos muito orgulhosos de você - disse-lhe Jean.
Jeannette voltou-se para Durand Laxart, que estava um pouco afastado.
- Eu lhe devo muito - disse ela. - Nunca me esquecerei disso. Você me ajudou quando precisei. Deus irá recompensa-lo.
- Eu acreditei em você... desde o início - disse Durand.
- E nós somos aqueles que a rejeitaram - bradou Jacques.
- Que Deus nos perdoe.
- Ele perdoará. Já perdoou - disse Jeannette. - O que o senhor fez foi pelo amor que tem por mim. Qualquer pai teria agido assim.
- Como iríamos saber que nossa irmã Jeannette iria ser a salvadora de Orléans? - bradou Jean.
- E agora que estamos aqui, fiquemos felizes juntos - dis, se Jeannette. - Há muita coisa que quero saber. Como estão as coisas em Domrémy?
- Estamos todos muito orgulhosos... muito orgulhosos murmurou a mãe.
- E Mengette... e Hauviette?
- Estão esperando notícias suas. Pobrezinha da Hauviette, ficou desolada quando você partiu...
- Eu sabia que ficaria. Foi por isso que não pude me despedir. Minha querida Hauviette. Levem beijos para ela. Digam a ela que seja feliz. Diga que penso nela... sempre.
- Ela ficará muito contente por você se lembrar dela disse Zabillet.
- Lembrar-me dela! De Hauviette! Como se algum dia eu fosse me esquecer!
- Você tem tantos assuntos a ocupá-la.
- Sempre haverá um lugar para Hauviette.
- Venham, vamos nos sentar - disse Jean. - Pedi comida e vinho.
E assim, enquanto o povo de Reims festejava nas ruas e o rei no salão de banquete, Jeannette sentou-se para um jantar simples com a família. Eles ficaram impressionados por ela comer tão pouco. Ela não quis nada, exceto pequenos pedaços de pão banhados em vinho. Ela se acostumara àquilo, disse ela; e praticamente não precisava de nada mais.
Pierrelot tentou convencê-la a comer.
- Fique quieto - disse Zabillet. - Você deveria saber que não adianta tentar persuadir Jeannette quando ela já tiver tomado uma decisão.
Mais tarde, o pai levou-a para um lado e sussurrou para ela que havia um assunto de certo interesse para Domrémy e ele queria conversar com ela sobre aquilo.
Ela ouviu atentamente, enquanto ele continuava:
- Nós estamos tão pobres quanto sempre, e você sabe o que isso significa. Estamos encontrando dificuldades em atender às novas exigências do tesouro. Os aldeões imploraram para que eu falasse com você, para perguntar se poderia convencer o rei a nos dar isenção do novo imposto. Dizem que você é amiga dele. Você deu a ele a coroa que ele usa. Será que ele dará essa concessão à sua aldeia natal se você pedir?
- Eu sei que dará - disse Jeannette. - Fique certo de que pedirei a ele.
Jacques pareceu muito aliviado. Fizera aquela viagem principalmente para fazer aquele pedido. Queria ver Jeannette em sua glória, é claro, mas ainda estava um pouco desconfiado do caso. A estranheza dela o preocupara bastante, e o fato de que ela, sua humilde filha, tivesse sido escolhida para uma tarefa como aquela parecia algum tipo de necromancia. Ele ouvia sussurros em alguns lugares dizendo que ela era uma feiticeira. Isso seria a última degradação. Mas vê-la, tão radiante, tão modesta, tão adorada pelo povo e respeitada por grandes homens como o Bastardo de Orléans e o próprio rei, aplacava seu temor, mas não de todo.
Ele sentiu um alívio enorme quando o rei decretou que Domrémy e Greux deveriam ficar isentas de todas as contas, ajudas, subsídios e subvenções. Disse, também, que as despesas da família deveriam ser pagas e que lhe deveriam ser entregues cavalos para levá-la de volta a Domrémy.
Quando se despediram, Zabillet agarrou-se à filha.
- Jeannette - murmurou ela -, por que não volta conosco? Você já fez seu trabalho. Foi para isso que saiu de casa, não foi? Você salvou Orléans para os franceses e fez com que o rei fosse coroado em Reims. O que mais lhe resta fazer, Jeannette?
- Não me sentirei feliz, querida mãe, enquanto restar um só godon na França.
- Jeannette, Deus a protegeu até aqui. Volte para casa, agora. Jeannette abanou a cabeça.
- Deus a proteja, querida mãe. Volte, e viva em paz. Eu saberei o que tenho de fazer quando chegar a hora.
Zabillet suspirou. Como dissera antes a Pierrelot, não adiantava tentar convencer Jeannette.
MAIS TARDE, em seus momentos de maior depressão, ela acreditava que deveria ter ido. Aquele era o momento... o momento de glória. Ela cumprira sua missão. Obedecera a ordem de Deus. Tinha sido o instrumento através do qual Deus impusera Sua vontade.
Por que ficara? Estaria intoxicada pela glória? Será que passara a acreditar que era não apenas aquele instrumento, mas possuidora de poderes divinos? Ela vira um milagre resultar de seu trabalho; ouvira a aclamação das multidões. Em Reims, à época da coroação, os pobres tinham ido ajoelhar-se a seus pés. Pediam apenas para tocar as mãos dela, tocar a bainha de seu traje. Homens importantes tinham feito mesuras para ela, ouvido o que ela dizia, atendido suas vontades, mostrado o respeito que sentiam por ela. O Bastardo de Orléans, o duque dAlençon, o Sire de Gamanche, o próprio rei - todos a tinham tratado com algo parecido com reverência. Teria o pecado do orgulho chegado muito perto dela? Ela salientara sua humildade, suas origens, sua falta de instrução... Mas mesmo naquilo haveria um toque de orgulho?
Como poderia ela dizer? Era fácil olhar para trás, depois, e dizer: eu devia ter feito isso. Não devia ter feito aquilo. Se... Se...
Ela acreditava, agora, ter outra missão. Não descansaria enquanto todos os ingleses não tivessem sido expulsos do litoral da FranÇa- Talvez depois de realizar uma missão aparentemente impossível, ela devesse ter outra.
- Volte conosco para Domrémy - dissera a mãe. – Você fez o que Deus mandou.
Será que ela deveria ter ouvido a mãe? Era fácil dizer "Deveria".?? olhando para trás.
Muita gente a adorava; mas outras pessoas a odiavam. Havia indivíduos ricos, poderosos, que queriam destruí-la. O rei era seu amigo. mas, de que valia a amizade
de reis, e Carlos VII nunca se mostrara um caráter firme. Havia o ardiloso duque de Borgonha, aliado dos ingleses, embora não se mantivesse avesso a um pequeno namoro
com os franceses e estivesse pronto para pular para o lado que fosse melhor para Borgonha. Ele tinha ódio do rei, porque este instigara o assassinato de João, o
Destemido, o duque anterior, e aquilo era algo que o atual duque Filipe jamais poderia esquecer.
E será que ela pensava que o grande duque de Bedford ficaria quieto e veria seus exércitos serem derrotados por uma jovem camponesa vinda de Domrémy?
Havia inimigos mais perto dela. Havia Georges de Ia Trémoille - traiçoeiro como nenhum outro homem. O pai fora ligado ao duque de Borgonha, e Georges fora criado na corte com o duque Filipe. Não seria improvável que Georges ainda mantivesse uma certa ligação com seu companheiro de infância; e o duque devia achar benéfico ter um homem que sentisse uma certa amizade por ele vivendo tão perto de seu inimigo, o rei.
Georges de Ia Trémoille era inescrupuloso ao extremo - um homem que não hesitaria em cometer um assassinato. O tratamento que dera à sua primeira mulher provocara um escândalo certa vez. Casara com ela, tirara todos os seus bens e expulsaraa de casa. Ela morrera em consequência da condição na qual ele a forçara a viver. Sua justificativa para livrar-se dela era que estava de olho em outra mulher atraente e extremamente rica, e ele achava que casar com ela seria não apenas agradável, mas também lucrativo.
Não fora um problema difícil para Trémoille, que gozava das boas graças do rei, providenciar o assassinato do marido dela e casar-se com ela.
Um homem desses não teria escrúpulos e praticamente não teria dificuldade em eliminar Jeannette, assim que a grande popularidade dela houvesse fenecido. Seria perigoso, claro, fazer aquilo numa época em que era considerada como uma santa no país inteiro e contava com muitos amigos em altos postos.
Mas Trémoille sempre fora um homem que sabia esperar.
Regnault de Chartres, o chanceler, poderia ser facilmente manejado por ele. Regnault, bispo de Reims, era um homem ambicioso e procurava satisfazer essa ambição, como tantos tinham feito antes dele, através da Igreja. Ele odiava Jeannette. Se Deus queria guiar o rei para Reims, porque teria Ele escolhido uma simples jovem do interior para fazê-lo, quando o bispo de Reims estava à disposição?
Queria livrar-se de Jeannette, mas, como acontecia com Trémoílle, percebia que deviam esperar até que o tumulto acabasse.
Ele e Trémoílle estavam cientes de que os dois homens mais importantes do país eram Borgonha e Bedford; este último procuraria meios de manchar a imagem de Jeannette. Tinha de procurá-los. A crença nos dons sobrenaturais dela derrotara seu exército. Não fora a força das armas que tinha levantado o cerco de Orléans, mas sim o medo dos poderes da luz ou da escuridão
- não importava qual, os dois eram igualmente eficientes no que se referia a provocar o medo nos homens.
Além do mais, Borgonha não ficaria parado e nem veria Carlos vitorioso. Assim que se livrasse dos compromissos daquele momento, entraria em ação.
Quanto ao rei Carlos, praticamente não o respeitavam. Saberiam lidar com ele quando chegasse a hora.
Jeannette estava, agora, planejando marchar contra Paris. Ela sabia que enquanto a capital não estivesse em poder dos franceses, não haveria uma vitória de verdade. Tinha-se de admitir que a jovem aprendera bem suas táticas militares. Queria marchar contra Paris e ocupá-la para o rei, enquanto Trémoille e Regnault percebiam que se ela conseguisse aquilo, seria impossível destroná-la.
Os dois queriam conquistar Paris através de negociações - negociações deles, e acreditavam que isso deveria ser feito por meio de uma aliança com Borgonha.
Carlos odiava derramamento de sangue, e não seria difícil fazer com que ele lhes desse ouvidos.
Jeannette sabia muito bem que o duque de Borgonha era inimigo do rei da França. Iria sempre considerá-lo o assassino de seu pai, e se alguém o lembrasse de que Luís de Orléans fora morto como resultado da provocação por parte de um duque de Borgonha, isso não fazia diferença alguma.
Assim, Jeannette contava com gente poderosa trabalhando contra ela. Além do mais, agora suas vozes raramente chegavam até ela. Quando ela se envolvia numa escaramuça, às vezes ganhava, outras não. Estava tomada por um forte desejo de expulsar os godons da França, mas no íntimo começava a imaginar se Deus já não queria seus serviços.
Para o povo, ela ainda era Jeannette, a jovem maravilha de Domrémy que realizara milagres. Levaria algum tempo para uma reputação dessas ser destruída, mas muita gente possuía memória curta. O rei parecia não ouvi-la com o mesmo respeito. Seus assessores Trémoille e Regnault dominavam sua atenção; e ele não gostava do que estava acontecendo. Jeannette seguiu o rei de Château-Thierry a Senlis, de Blois a Compiègne. Estava obcecada por sua devoção a ele e à França. Mas sentia falta da inspiração divina. Tornara-se uma boa comandante; mas Dunois, Alençon e dezenas de outros também o eram; e eles não tinham conseguido salvar Orléans.
O duque de Bedford levara quinhentos de seus temidos arqueiros para Paris. Uma divisão de seu exército que estava lá levava um estandarte no qual estavam estampados em relevo uma roca de fiar e um fuso. "Agora, beleza, venha!" era a inscrição. Jeannette estava ansiosa por atacar Paris e ainda contava com partidários influentes. Um deles era o duque dAlençon, que depositava total confiança nela. Mesmo assim, o ataque fracassou.
Então, os ingleses deixaram Paris nas mãos do duque de Borgonha - um sinal, para os franceses, de que ele era um aliado em quem confiavam -, e Jeannette foi obrigada a recuar para Compiègne, onde ficou conhecendo o capitão da guarnição de lá, Guillaume de Flavy. Só mais tarde ela descobriu que ele era meioirmão de Regnault e criado por ele.
Ela estava inquieta. Sabia que Trémoille e Regnault mantinham comunicações secretas com Borgonha. Ela não confiava em Borgonha e implorava para que eles fizessem o mesmo.
- Não pode haver paz com ele, a não ser na ponta de uma lança - insistia ela.
Estava-se no mês de maio de 1430. Quase um ano se passara desde a coroação do rei, e não estavam mais perto da expulsão dos ingleses da França do que naquela época. Jeannette seguira numa expedição a Crépy, e enquanto permanecia lá recebeu a notícia de que Borgonha estava armando o cerco de Compiègne.
- Temos de voltar imediatamente - disse ela. - Temos de abrir caminho lutando para entrar na cidade.
Lembraram-na de que eles eram cerca de trezentos homens - uma pequena companhia para abrir caminho à força pelas tropas de Borgonha; e quando ao amanhecer ela avistou compiègne e os sitiadores não tentaram impedir sua entrada na cidade, pensou ter recuperado a antiga inspiração.
O público cercou-a em massa e seguiu-a até o interior da igreja, onde assistiu à missa. E enquanto as crianças se reuniam à sua volta, tocando-lhe a armadura e buscando a honra de ter falado com a Donzela, ela ouviu-se dizendo - e era como se uma voz falasse dentro dela:
- Crianças e queridos amigos, em breve serei traída e levada à morte. Rezem por mim.
Uma grande depressão tomou conta dela. Sabia que tinham sido suas vozes, que ultimamente se faziam ouvir muito pouco, que haviam falado na igreja.
Apesar disso, naquela noite ela quis fazer uma incursão fora da cidade, e apesar da sensação de desespero que passara a ter, estava ansiosa por continuar com seus planos.
Mandou que Guillaume de Flavy colocasse barcos preparados no rio Oise, a fim de ajudar as tropas a voltar e providenciar para que todas as portas da cidade permanecessem trancadas e que só a porta da ponte ficasse aberta.
Muito rapidamente, percebeu-se que a aventura fora um fracasso.
Temos de bater em retirada - berravam os homens.
Mas Jeannette não queria recuar.
Nunca! - bradou ela. - Vamos resistir e lutar.
- Estaremos perdidos, se fizermos isso - foi a resposta.
Os homens tinham percebido, de repente, que era apenas uma jovem camponesa que estava pedindo que eles arriscassem a vida. Estivera tudo muito bem quando Deus se encontrava com ela, mas era evidente que Ele não estava envolvido naquela operação. Era loucura permanecer ali, acreditavam eles, e não iriam ficar. Correram atabalhoadamente para os barcos que os esperavam.
Jeannette manteve afastado o inimigo que queria evitar que os soldados escapassem, até que os barcos os tivessem levado para a ponte levadiça e todos tivessem passado para um lugar seguro. Ela ficou do lado de fora, com um ou dois fiéis seguidores.
Guillaume de Flavy tomou uma decisão. Ele sabia que ela se encontrava do lado de fora. O mesmo acontecia com os borgonheses, e estes estavam prontos para um ataque fulminante contra a cidade. Guillaume ordenou que a ponte levadiça fosse levantada e que a grade levadiça fosse arriada.
Jeannette, deixada do lado de fora, logo foi cercada.
Ouviu-se um grito:
- A Donzela! Pegamos a Donzela!
Alguém a puxou pelo sobretudo. Ela caiu. Eles a cercaram.
- Renda-se - bradou um deles.
Ela estava derrotada. Acontecera o que ela sabia que ocorreria. Seu destino era aquele, e devia enfrentá-lo com coragem.
Um dos homens que era diferente da rude soldadesca pediu que ela se levantasse. Teria de acompanhá-lo, e ele a levaria ao seu chefe, o conde John de Luxemburgo.
Ergueu-se o brado:
- Pegamos a Donzela! Ela está em nosso poder!
Aquele era o fim dos milagres. Como é que Deus podia deixar que Sua escolhida caísse em mãos dos inimigos? Enquanto a levavam, ela rezava em silêncio.
A notícia espalhou-se rapidamente pelo país. Foi recebida com exultação e com tristeza. Houve lamentações na aldeia de Domrémy.
- Eu sabia que isso ia acontecer - disse Jacques. - Aquilo nunca foi certo. Ela jamais deveria ter nos deixado.
- Era a finalidade da vida dela - respondeu Zabillet Rogue a Deus que Ele trate bem dela.
O rei recebeu a notícia com calma. Não sabia se devia ficar triste ou regozijar-se. Ficara claro, ultimamente, que Deus a abandonara, porque não houvera mais nenhum sucesso espetacular. Ela fizera o que qualquer outro comandante teria feito... nada mais.
O duque de Borgonha estava agitado. Exultante, enviou mensageiros a todos aqueles para os quais a notícia seria do máximo interesse. A Donzela capturada e nas mãos do conde de Luxemburgo - um vassalo seu. O que se faria com ela? Como prisioneira capturada em combate, devia ser tratada com um certo respeito. Teria de ser fixado um resgate, como acontecia com pessoas assim. Resgate! Algumas pessoas pagariam um grande resgate por ela. O rei da França? Ele devia a ela o favor de pagar o resgate e colocá-la em liberdade. Deus sabia que ela havia feito bastante por ele. Bedford estaria louco para pôr as mãos nela, porque enquanto ela vivesse e participasse de batalhas, seus homens sempre teriam medo dela. Os cidadãos de Orléans deveriam pagar o resgate, se tivessem condições financeiras para isso. Ela fizera muito por eles.
Como é que ela fora capturada?, perguntava-se Borgonha. Guillaume de Flavy levantara a ponte e baixara a grade sabendo que ela estava do lado de fora, exposta aos inimigos. E Guillaume de Flavy - o meio-irmão de Regnault - fora criado por este. Estaria Flavy fazendo um favor ao seu meio-irmão?
Bem, fosse lá como tivesse acontecido, estava feito; e Borgonha devia tirar proveito daquilo.
Os cidadãos de Orléans ficaram estupefatos. O povo reuniu-se nas ruas cantando o Miserere; em Tours e em Blois, muitos foram descalços até os santuários dos santos.
Eles não conseguiam entender por que Deus abandonara Sua mensageira. Aquilo era um sinal, garantiam uns aos outros. Ela iria escapar milagrosamente, e isso seria mais outra mostra da proteção divina. Georges de la Trémoille sentia uma imensa alegria. Aquilo era realmente uma sorte para ele. Desconfiava de que Regnault fosse o culpado, porque fora seu meio-irmão que a trancara do lado de fora e a deixara para ser agarrada pelos inimigos. bom trabalho, pensou ele. Foi logo procurar o rei e os dois discutiram a notícia. Ele fingiu estar sério.
- Ela está nas mãos de Borgonha, não dos ingleses - assinalou Trémoille.
- Os ingleses vão esforçar-se para tê-la em seu poder.
- Foi um risco que ela correu, e se foi mesmo enviada por Deus, Ele irá protegê-la. Ela sempre foi imprudente. Nunca ouvia um conselho... sempre fazendo o que queria.
Carlos estava angustiado. Tinha muito o que agradecer a ela. Quando ela o fora procurar e lera a suspeita de sua ilegitimidade em sua mente e o tranquilizara, ele ficara sabendo que ela possuía poderes divinos. Ela salvara Orléans; fizera com que fosse coroado em Reims. A consciência dele ficava preocupada com o fato de ela ter caído em mãos do inimigo.
Trémoille conhecia bem o seu patrão real. Carlos estava preocupado. Poderia tentar agir - ou pelo menos, estava pensando nisso. Seria de esperar-se que ele agisse. O povo exigiria isso dele. Ele poderia encontrar todo tipo de motivos pelos quais isto ou aquilo não poderia ser feito, é claro, mas se tratava de uma situação perigosa.
O destino acabou fazendo o jogo de Trémoille. Talvez fosse natural que depois do impacto que Jeannette causara sobre o povo da França surgissem imitadores aqui e ali.
Antes da captura de Jeannette, uma matrona chamada Catherine de Ia Rochelle declarara que ela também tivera visões. Também fora selecionada por Poderes Divinos para participar da salvação da França. Queria percorrer a França e explicar que uma visão aparecera a ela durante a noite - uma mulher vestida em tecido de ouro que lhe dissera que ela deveria aconselhar a população a tirar seus tesouros dos cofres secretos e entregá-los ao rei da França para continuar a guerra. Ela conhecera Jeannette, e Jeannette a desprezara por considerá-la uma impostora. Por isso, raciocinou Trémoille, Catherine de Ia Rochelle poderia ser útil agora.
O menino pastor de ovelhas foi levado à sua presença. Aquele Guillaume de Gévaudan tivera os sinais dos estigmas de Cristo nas mãos. Disse que lhe fora revelado que Deus permitira que Jeannette caísse em poder dos inimigos porque se tornara insensível de tanto orgulho. Passara a gostar tanto de belas armaduras e de belos cavalos que perdera de vista o fato de que estava trabalhando para Deus.
Quanto a Catherine de Ia Rochelle, ela estava pronta a jurar que Jeannette era uma feiticeira. Em suas visões, ela a vira tendo relações sexuais com o diabo.
Aqueles fatos Trémoille poderia expor ao rei, e a consciência de Carlos estava mais do que pronta para ser tranquilizada.
O duque de Bedford mal podia conter a agitação. Sério, discutiu o assunto da captura da Donzela com os condes de Warwick e Suffolk.
- Foi a melhor notícia que ouvi já faz tempo - declarou Suffolk.
- Teria sido melhor se ela tivesse caído em nossas mãos, em vez de nas de Luxemburgo - comentou Bedford com ironia.
- O que é o mesmo que cair nas mãos de Borgonha-acrescentou Warwick. - O que acha que Luxemburgo vai fazer?
- O senhor conhece aquele ganancioso duque caolho. Ele vai pedir resgate por ela.
- O senhor acha que os franceses...?
- Senhor conde - disse Bedford com firmeza -, temos de providenciar para que os franceses não paguem esse resgate, e a única maneira pela qual poderemos fazer isso é nós mesmos pagarmos um resgate maior.
- Concordo - disse Warwick. - Temos de pôr as mãos na Donzela.
- E provar que ela é uma feiticeira - acrescentou Bedford com firmeza.
- Nossos problemas vão continuar até que ela seja eliminada - concordou Warwick. - Não tenho dúvidas quanto a isso.
Não se trata da perícia dela na guerra - embora isso seja notável para uma simples moça do interior. Mas os franceses acreditam que ela seja uma mensageira de Deus.
E por causa disso, eles lutam como nunca fizeram antes.
- E nossos soldados... no que é que eles acreditam? - perguntou Bedford. - Que ela vem a mando do diabo? Vem, mesSo. Ela é uma feiticeira. Disso, não há dúvida.
Mas se se trata de poderes da luz ou das trevas, o fato é que eles estão agindo contra nós e continuarão a fazê-lo até que ela seja destruída.
- O que se deve fazer, senhor conde?
- Já mandei uma mensagem à Inglaterra. Nada deve ser poupado. Se necessário, serão cobrados novos impostos,
e não na tempo a perder. É preciso mandar dinheiro, para
ficar à espera. Quando Joana, a Donzela, tiver o resgate fixado, nos e que iremos pagá-lo. Disso, não há dúvida.
- É o único jeito. Em breve, Joana estará nas nossas mãos.
- Temos de agir com cautela. Vigiem Borgonha. Ele vai tentar tirar o máximo de proveito disso. Se proibir Luxemburgo de aceitar um resgate, Luxemburgo terá de obedecer.
Mas temos de ficar preparados.
- Nós queremos Joana d'Arc.
Uma desolação terrível tomara conta dela. Alguma coisa saíra errada. Ela desobedecera suas vozes de alguma maneira, bempre soubera que quando o delfim fosse coroado, sua missão estaria terminada. Sua família estivera em Reims. Aquilo era o sinal Deveria ter regressado com eles. Por que ficara? Porque depois de suas experiências nada poderia ser a mesma coisa outra vez. Ela dissera que queria voltar para a vida tranquila do interior, mas será que queria? Ela vivera com grandes acontecimentos.
Desde o momento em que as vozes a tinham procurado - e na época, ela estava com apenas treze anos -, sonhara com grandes eventos. Como poderia voltar a ser uma simples camponesa?
Nada poderia ser o mesmo outra vez. Ela queria seguir em frente. Ela quisera liderar homens numa batalha. Antes da coroação, conhecera a inspiração, algo estranhamente divino. Depois da coroação, a inspiração fora retirada, e ela ficara sendo apenas um ser humano com um grande propósito, apesar de dedicado. Mas ela fracassara e caíra em mãos dos inimigos.
Foi levada para o castelo Beaulieu, que pertencia ao seu captor, o conde de Luxemburgo. Ele pediria um resgate por ela, como era o costume com toda aquela gente de posição de destaque e importância que era capturada em combate. Ela não tinha posição de destaque, mas ninguém, na França, era mais importante.
- Jesus - rezou ela -, não deixeis que eu caia em mãos dos ingleses.
Sabia que estava a meio caminho disso, porque Luxemburgo era vassalo de Borgonha, e este último era aliado dos ingleses. Mas seu querido rei Carlos jamais permitiria que isso acontecesse. À medida que os dias passavam e não chegavam notícias dele, ficava atormentada pelas dúvidas. Tentava chamar suas vozes. Ela as ouvia, mas ao longe. "Ela não devia se desesperar. Deus a protegeria."
Ela queria ser livre. O que estaria acontecendo em Compiègne? Ela devia estar lá. com toda certeza, Carlos mandaria alguém para tomar o castelo, a fim de devolvê-la à liberdade.
Havia muitas vindas e idas. O duque de Borgonha estava no castelo. Ela ouvia o nome do grande homem sendo sussurrado. Ele foi vê-la. A entrevista foi curta.
Ela o repreendeu por ter tomado partido contra o rei da França, ao que ele replicou que estava vingando a morte do pai.
Ela salientou que o pai dele pagara o preço de sua vingança.
Borgonha foi frio.
- Você não devia falar de assuntos que não lhe dizem respeito - disse ele. - Pela Verdade de Deus, menina, você já tem problemas suficientes com os quais se ocupar.
Nada havia a ganhar com aquela entrevista.
Ela não confiava no conde de Luxemburgo. Ele era muitíssimo feio, tendo apenas um olho; mas isso não a repelia tanto quanto sua expressão de maldade. Ele estava claramente satisfeito por encontrar-se naquela situação, e nas raras ocasiões em que Jeannette o via, ele gostava de dar a entender que talvez fosse ser obrigado a entregá-la aos ingleses.
Era por isso que ela planejava a fuga. Seria difícil, mas não impossível, e com a ajuda de Deus poderia conseguir.
Se pudesse sair do quarto e correr por um corredor, havia um canto onde conseguiria esgueirar-se por um estreito espaço na parede. Ela era pequena, e como praticamente não comera coisa alguma desde a captura e mesmo antes disso se sustentara com pedaços de pão mergulhados em vinho, estava muito magra. Sabia que com um pouco de esforço poderia passar por aquela abertura. Depois, teria de passar pela sala da guarda. Mas se pudesse trancar a porta pelo lado de fora, eles ficariam presos enquanto ela fugia do castelo.
Durante vários dias, ela pensou nisso. Imaginava a alegria das pessoas quando lhes mostrasse uma vez mais que Deus estava com ela e provocara sua fuga. Rezou o dia inteiro e com o crepúsculo conseguiu esgueirar-se pela abertura, como pensara; conseguiu girar a chave que aprisionou os guardas.
- Oh, que Deus me ajude - murmurou -, consegui. Desceu correndo a escada em caracol. Um porteiro estava
em pé lá embaixo e agarrou-a quando ela tentou passar correndo por ele.
- Para onde está indo? - perguntou. -Você é prisioneira do meu patrão. Pensou em fugir assim, com tanta facilidade?
Foi levada de volta para a prisão, mas o conde de Luxemburgo ficou alarmado.
Ela poderia ter fugido. E se tivesse, o que teria acontecido a ele? Teria sido considerado o culpado. Era óbvio que Beaulieu não era uma prisão suficientemente segura.
Jeannette foi transferida para o castelo de Beaurevoir, perto de Cambrai, onde poderia ficar muito mais confinada.
Ela se sentia terrivelmente infeliz. Estivera muito certa de que Deus a ajudaria a fugir. Piedosamente, pedia ajuda a suas vozes. Elas chegavam, às vezes, mas fracas, como se estivessem muito longe. Às vezes, quando ficava deitada em sua esteira de palha depois de um dia de jejum, ela via as santas Margarida e Catarina.
- Tenha paciência - diziam as duas. - Você não foi esquecida.
Mas havia momentos em que ela pensava que fora, e sentia um medo terrível. Estava obcecada pelos ingleses. Não podia cair nas mãos deles. Odiava-os com todas as suas forças. Eles eram malvados... todos eles... tinham tido a ousadia de invadir o país dela e chamaram o menino rei Henrique de rei da França. Ela mudara aquilo. Provocara a coroação do verdadeiro rei. Mas o que fariam com ela, se caísse nas mãos deles?
E ela iria cair. Aquele cruel conde de Luxemburgo não poderia resistir ao resgate que eles ofereciam. Além do mais, ele era um vassalo de Borgonha e este último se tornara um traidor da França quando ficara amigo dos ingleses.
Ela não podia suportar aquilo. Pela estreita abertura de sua janela, olhava o pátio de pedras. Se ao menos ela estivesse lá embaixo. Se ao menos fosse livre.
E um dia ela sentiu o impulso. Estava no alto de uma torre de vinte metros, mas os santos iriam conduzi-la na descida. Não deixariam que ela caísse. Se tivesse a coragem de dar o passo à frente, eles a levariam a salvo até o chão.
Ela ficou em pé na beirada. O ar frio bafejou-lhe o rosto. Ela deu um passo para o nada.
Encontraram-na caída inconsciente no chão de pedra e levaram-na para dentro. Estava gravemente ferida e incapaz de se mexer.
O conde ficou profundamente perturbado. Poderia ter morrido. Os ingleses teriam ficado contentes, mas, e o resgate dele?
Jeannette acordou e viu duas mulheres ao lado da cama. Quando abriu os olhos, pensou que eram santas do céu, devido à suavidade dos traços.
Uma das mulheres era muito idosa, a outra, muito mais moça, mas Jeannette sentiu a bondade em ambas.
- Ah, você acordou - disse a mais velha das duas. - Levou uma queda grave, mas vai se recuperar. Precisa descansar. Não há nada a temer. Temos cuidado de você.
- Onde estou? - perguntou Jeannette.
- No castelo de Beaurevoir.
- Ainda aqui.
- É, você caiu da janela.
- Quem são vocês?
- Sou a condessa Jeanne de Luxemburgo... tia do conde, e essa é a esposa dele, Jeanne de Bethune.
Jeannette fechou os olhos. Sabia, agora que sua tentativa fracassara; não estava no céu; continuava presa nas mãos dos ingleses. As duas mulheres não podiam ser chamadas de inimigas. Enquanto Jeannette se recuperava, percebia o quanto devia à bondade delas. Começou a compreender que a senhora idosa era de certa importância, porque era dona das propriedades de Luxemburgo e, se assim o decidisse, poderia deixá-las para outra pessoa que não o conde. Por isso, ele a tratava com muito respeito, o que divertia Jeannette. A jovem condessa de Luxemburgo era delicada e profundamente religiosa; as duas mulheres tinham pena de Jeannette, e tratar dela quando ela quase morrera fizera com que ficassem cônscias de sua piedade. Podiam muito bem acreditar que ela estivera seguindo um propósito divino, e embora se achassem do lado contrário devido à adesão de Luxemburgo a Borgonha, não usavam isso contra ela.
Elas disseram que ela deveria ter algumas roupas de mulher para usar.
- Algo atraente - sugeriu a jovem condessa.
Jeannette abanou a cabeça. Não queria nada de rouPas femininas. Suas vozes tinham dito que ela devia vestir-se como um homem até que lhe dessem ordem em contrário.
Ficaria com o que já possuía.
Pela primeira vez, desde sua captura. ela começava a sentirse um pouco feliz. Sua situação era desesperadora, disso ela sabia, e a ameaça de ser transferida para os ingleses pairava sobre ela, mas havia consolo no convívio com outras mulheres.
O conde de Luxemburgo estava muitíssimo necessitado de dinheiro, e a captura de Jeannete d'Arc lhe parecera um presente do céu. Era avaro por natureza e não tinha certeza quanto à sua herança. Precisava ser muito cuidadoso Para nao ofender a tia; acabara de construir o castelo de Beaurevoir e, como sempre, projetos como aquele saíam muito mais caros do que a princípio tinha sido calculado. Ele precisava muito de dinheiro.
Estava desesperadamente ansioso por conseguir aquele resgate.
O duque de Borgonha, segundo seu raciocínio, estava pensando em pagá-lo. Era um dos poucos que teria condições financeiras para isso. Na verdade, tão rico era Borgonha, que seria bem possível que nem mesmo os ingleses pudessem oferecer mais do que ele. O conde entendia o motivo de Borgonha. Usaria Jeannette como uma ameaça aos ingleses. Aquela sociedade era incómoda. Muito embora Bedford tivesse se casado com a irmã de Borgonha, era grande a desconfiança entre os dois.
Mas seriam os ingleses que acabariam ficando com ela. O conde estava certo disso, e esperava esse dia.
Enquanto pensava nisso e imaginava o ouro escorrendo-lhe pelas mãos, a tia foi procurá-lo.
- Ela vai ficar boa - disse ela. - Pobrezinha. É pouco mais do que uma criança.
- Uma criança, senhora, que provocou muitos estragos num espaço de tempo muito curto.
- Ela acha isso um bem.
O conde encolheu os ombros.
- Eu acredito nela - disse a condessa. - Sua mulher, também. Aquela menina é boa. Veja lá como vai tratá-la.
- Ela não será mais problema meu, assim que sair de minhas mãos.
- Qual será o destino dela nas mãos dos ingleses?
- Vão transformá-la numa feiticeira.
- Ela não é feiticeira coisa nenhuma. É uma boa e santa menina.
- Querida senhora, não cabe a mim dizer isso.
- Cabe, sim. Não deve deixar que ela passe para as mãos dos ingleses. Carlos deveria pagar o resgate. Como é que ele não pode? Pense no que ela fez por ele!
- Carlos não teria recursos para pagar o resgate que lhe seria pedido.
- Por você?
- Eu sou o felizardo que possui a peça tão cobiçada.
- Jean, não deve vender essa menina aos inimigos dela.
- Minha cara senhora, não sabe as dificuldades em que me encontro no momento. A construção deste castelo custou muito dinheiro. E se o senhor duque de Borgonha resolver que a menina deve ser entregue, assim será. Ele manda em mim.
- Ele compreende as leis da cavalaria o suficiente para deixar a decisão em suas mãos.
- A senhora não conhece o duque de Borgonha.
- Eu conheço a mim mesma, sobrinho. E ficaria muitíssimo contrariada se você vendesse Jeannette
d'Arc aos inimigos dela.
Ela se retirou às pressas do aposento. Sempre fora uma mulher enérgica, que gostava de conseguir o que queria. Ela o estava avisando que se ele aceitasse um resgate por Jeannete dArc, poderia afastá-lo como herdeiro das propriedades de Luxemburgo.
O duque de Bedford estava com o duque de Borgonha, e o assunto que estavam discutindo era o destino de Jeannette. Os dois tinham sabido das tentativas de fuga.
- Os anjos tinham abandonado seus postos enquanto ela pulava - comentou Bedford com ironia.
- É verdade - replicou o duque -, e o que estavam fazendo a ponto de deixar que aquele porteiro estivesse de guarda quando ela poderia ter fugido de Beaulieu é uma coisa que não consigo imaginar. Falando sério, a menina é um embuste.
- Como foi que ela conseguiu inspirar o povo de Orléans?
- Medo. Você sabe disso muito bem. Devia ter deixado que a cidade se rendesse a mim.
- Depois que eu tivesse perdido tempo, homens e dinheiro fazendo o cerco?
- Você não iria sacudir a árvore para que outra pessoa pegasse os passarinhos. Lembra-se? Aquilo foi uma de suas raras mancadas. A Mancada dos Passarinhos. Não fosse isso, Orléans não teria sido perdida para Carlos.
Bedford ficou calado. Era um homem que cometera muito poucos erros, e por isso os deplorava quando eles ocorriam. O caso dos passarinhos era apenas um meio erro. Ele não teria ficado satisfeito ao ver Orléans nas mãos de Borgonha - embora fosse melhor do que nas de Carlos, isso ele tinha de admitir, e o fato de seus soldados terem sido derrotados por aquela estranha menina era, realmente, um desastre.
- Luxemburgo quer o resgate - disse Borgonha -, mas a tia dele proíbe que ele o receba.
Bedford ergueu as sobrancelhas.
- Uma senhora muito piedosa, virtuosíssima. Vem cuidando da Donzela e não quer deixar que Luxemburgo receba o resgate.
- E ele não tem coragem para isso?
- Ele tem muito a perder se contrariar a senhora. Bedford ficou levemente aliviado. Não era, em absoluto, um homem impulsivo. Gostaria que, por enquanto, as coisas ficassem como estavam. Joana d'Arc não poderia causar problema algum na prisão, e ele ainda não estava em perfeitas condições para pagar o vultoso resgate que seria exigido.
- A velha senhora não vai durar muito tempo - disse Borgonha. - Está muito idosa e sua saúde não é das melhores. Assim que ela se for, o senhor verá - inclinou-se para Bedford.
- Eu mesmo andei pensando em fazer uma oferta.
Bedford ficou horrorizado. Borgonha era o único participante do leilão que ele temia. Sendo o homem mais rico da França, Borgonha poderia oferecer quase qualquer coisa, e Luxemburgo, devido à sua situação, teria de aceitar a oferta deste, ainda que fosse menor.
Borgonha estava sorrindo com ironia. Havia pouca coisa de que ele gostava mais do que ver o mal-estar de seu aliado.
- Você ficaria muito impopular, meu amigo, se fizesse algum mal à Donzela - sugeriu Bedford.
- Não junto aos inimigos dela.
- O que você faria com ela?
- Ela é uma feiticeira - disse Borgonha. - Praticamente não tenho dúvidas quanto a isso. Eu poderia mante-la na prisão pelo resto da vida. Ou queimá-la como se faz com uma bruxa.
Se ele a condenasse à morte na fogueira... sairia tudo bem, pensou Bedford. Mas ele não faria isso, era astuto demais. Ficaria com ela e cuidaria dela como uma ameaça aos seus aliados ingleses, sempre que achasse necessário. A Donzela não podia cair nas mãos de Borgonha.
O comércio com os flamengos está se desenvolvendo na Inglaterra - disse Bedford.
Os flamengos ficavam nos vastos domínios de Borgonha. Viviam da tecelagem. Haveria uma revolta se houvesse interferência no comércio deles.
Borgonha estava pensativo. Bedford poderia, com uma penada, impedir que os tecidos feitos por eles fossem exportados para a Inglaterra.
Borgonha estava pensativo. Na verdade, não queria arcar com o ónus de ter Joana d'Arc.
Quando chegasse o momento, deixaria que os ingleses ficassem com ela.
Pouco depois, a hora chegou. A velha condessa de Luxemburgo foi encontrada morta na cama, certa manhã. Ninguém ficou muito surpreso; fazia algum tempo que ela estava doente. As propriedades, naturalmente, passaram para o sobrinho, que ficou muito satisfeito por ver eliminada para sempre a ameaça da contrariedade dela.
Os ingleses apareceram então com uma oferta muito boa, e Borgonha, pensando nos tecelões flamengos, permitiu que seu vassalo a aceitasse.
Assim, Jeannette passou para as mãos de seus inimigos, os ingleses, e foi levada para a capital da Normandia, Rouen, onde deveria aguardar o julgamento a que iriam submetê-la.
No FRIO mês de dezembro, dois dias antes do Natal, Jeannette chegou a Rouen. Estava profundamente deprimida. O que ela muito temera acontecera. Sentia-se abandonada pelo rei e, o que era pior, pelas suas vozes.
Sua prisão era uma cela na torre do castelo. Não era pequena, mas muito escura. Não havia coisa alguma, a não ser um catre de palha no chão, e só uma janela, alta demais para que ela pudesse ver o que se passava lá fora.
Por duas vezes tentara fugir, e seus captores estavam decididos a não deixá-la fazer isso de novo. Colocaram grilhões em suas pernas, e um cinto de ferro foi preso em torno da cintura - e todos acorrentados à parede.
Falara-se muito sobre a pureza dela. Se fosse ser condenada como uma feiticeira, não poderia ser virgem, e era necessário que fosse condenada como feiticeira. Portanto, seus carcereiros foram escolhidos entre o setor mais brutal do exército, famoso pelo comportamento bárbaro. Quando aqueles homens atacavam cidades e aldeias, levavam o terror aos habitantes, que lhe haviam dado o nome de houspelleurs, que significava atormentadores. Entre os selecionados para vigiar Jeannette, havia dois homens cuja reputação era ligeiramente pior do que a dos outros. Eram William Tklbot e John Grey. Quando os viu, Jeannette teve um medo de uma intensidade que ela nunca sentira no auge da batalha. Um olhar para os rostos embrutecidos daqueles homens foi suficiente para dizer quais seriam suas intenções. Ela rezava, então, com um fervor ainda maior do que antes.
Como aquilo poderia ter-lhe acontecido? Tinha sido tudo tão gloriosamente bem-sucedido! Ela acreditara que continuaria agindo até que tivesse expulsado os ingleses da França. Como fora boba! Adorara a glória e correra atrás dela depois que sua missão terminara; e agora, tinha de pagar por isso. Parecia que Deus e suas vozes tinham-na abandonado. Quando se recuperara no castelo de Beaurevoir depois de se atirar da janela, percebera isso. Até aquele exato momento, acreditara que eles iriam salvá-la. Talvez tivesse se jogado ao ser tentada, como Cristo o fora no deserto.
- Se eles vão me matar - rezava ela -, ó Deus, que me matem depressa.
Tudo o que as correntes que a prendiam lhe permitiam fazer era dar três passos para a frente e para trás.
Não havia aquecimento na cela, e fazia um frio terrível. A única janela que fornecia um pouco de claridade, e não lhe dava vista alguma, proporcionava as correntes de ar. Jeannette seria julgada e provariam que era uma feiticeira, e estava nas mãos da Inquisição, que tinha seus métodos especiais para provar que um prisioneiro era culpado.
Os carcereiros procuravam insultá-la a todo instante. Provocavam-na, gostavam de amedrontá-la. As palavras não a amendrontavam; eram os atos deles que ela temia.
Eles tinham armado uma mesa e bancos e jogavam dados. Enquanto os observava, rezava em silêncio pedindo a força de que iria precisar quando chegasse a hora, como sabia que chegaria.
Os homens ficavam sentados a um canto da cela com os dados - resmungando e soltando palavrões. Sussurravam sobre ela.
- Não fosse essa Donzela travessa, não teríamos de ficar nessa cela fria esperando o tempo passar. Devíamos estar lá fora... nas tabernas... divertindo-nos com o vinho e com as prostitutas.
- O que você acha dela?
- Não é muito atraente.
- Não... não... mas diz que ainda é donzela. Sempre senti atração por donzelas.
- O quê?! Mesmo quando elas se vestem como se fossem homem!
- Há partes que são iguais às de uma mulher. Eles soluçavam e soltavam gargalhadas.
Jeannette agradecia a Deus pelos trajes que usava - o tipo de roupa que os soldados usavam por baixo da armadura, um gibão de linho, forrado, enfeitado com rendas na frente; calções curtos de pele de alce e meias compridas de lã presas ao gibão por ilhoses e cordões. Os sapatos eram de couro alcochoado. Parecia um soldado qualquer sem a armadura.
Havia uma certa proteção naqueles trajes; por isso, sabia que tinha de insistir em usá-los e resistir a todas as tentações de usar roupas femininas.
Agora, precisava ficar ali deitada ou dar seus poucos passos e aguardar o julgamento, enquanto suportava a conversa obscena dos carcereiros e esperava - em vão, acreditava ela - que não transformassem suas palavras grosseiras em ação.
Sim, parecia que Deus a abandonara.
Não demorou muito para o golpe chegar, como Jeannette sabia que isso aconteceria.
Estava exausta e deitada; os homens jogavam dados. Ouvia a voz deles, indistinta, e embora seu corpo ansiasse por dormir, sabia que tinha de ficar alerta.
Um deles se aproximou dela.
Tocou-a com o pé. Ela se levantou da maneira que as correntes lhe permitiam.
- Apronte-se - disse ele. - Vão besuntá-la de enxofre e levá-la para a estaca hoje à noite.
Era mentira, disso ela sabia.
- Volte para os seus dados - bradou ela.
- Não está com medo, Donzelinha? Pense nas chamas ardentes
lambendo esse seu corpo virgem. É lamentável morrer jovem, sabe? Não vai querer sentir as chamas do inferno antes de ter tido alguns prazeres na Terra, vai?
Você está mentindo - disse ela. - Não houve ordem alguma nesse sentido.
Como sabe?
Deus me disse - disse ela. E o fulgor estava ali, em seu rosto, como acontecera quando ela entrara em Orléans.
Para os homens, parecia que havia uma luz estranha na cela.
William Talbot ficou com um pouco de medo, mas não deixaria John Grey saber disso. John Grey sentiu a mesma coisa em relação a William Talbot.
Talbot agarrou-a e puxou os cordões do gibão.
com toda a força, ela deu-lhe um murro e o fez voar para o outro lado da cela. Ele caiu, batendo com a cabeça na parede.
John Grey soltou uma gargalhada ao ver o estado do amigo.
- Você prefere a mim, não é, Donzelinha? - disse ele.
Ela ergueu o joelho e acertou-o. Ele recuou, cambaleando. Os outros homens que estavam à porta olharam para dentro. Viram os dois notórios houspilleurs caídos no chão, gemendo.
Ficaram olhando, pasmos.
Jeannette ali estava, de pé, o fulgor ainda no rosto.
Ela se deitou no catre. Agora, podia dormir em paz. Sabia que não estava desprezada de todo.
Havia visitantes em sua cela. Cinco senhores importantes tinham ido vê-la. Reconheceu Jean, conde de Luxemburgo, imediatamente. Três dos outros, ela não conhecia. Luxemburgo lhe disse quem eram eles. O grande conde de Warwick, tutor do jovem rei da Inglaterra; o conde de Stafford, que ocupava alto cargo no Conselho inglês; e o irmão do conde, bispo de Thérouanne; e o quinto era Aimond de Macy, um homem que fora falar com ela em Beaurevoir.
Não tinha esperanças de receber ajuda de nenhum daqueles homens. Os ingleses, sabia ela, estavam dispostos a destruí-la; não confiava em Luxemburgo e em nenhum dos amigos dele; quanto a Aimond de Macy, ofendera-a profundamente quando fora vê-la, só por curiosidade, e declarara que vestida de forma adequada e arrumada, ficaria uma bela jovem. Ele comentara que ela possuía seios muito bonitos e tentara tocá-los. Depois, rira da violência com que fora repelido.
O que, então, poderia ela esperar de visitantes como aqueles?
Luxemburgo, que sentia um desejo irresistível de provocála, sabendo o quanto devia estar com medo por ter caído em mãos dos ingleses - aos quais ele a vendera -, disse:- bom dia, Joan.
Agora usavam a versão inglesa do nome dela, porque era assim que os ingleses a chamavam.
- Por que vieram aqui? - perguntou ela.
- Vim comprá-la de volta, com a condição de você prometer nunca pegar em armas contra nós outra vez.
Por que ele dizia uma coisa daquelas? Ela sabia que era só para provocá-la, para erguer-lhe as esperanças, a fim de que pudessem ser derrubadas de novo e ela sentisse, então, uma depressão ainda maior do que a que sentia naquele momento.
- Sei muito bem que o senhor está zombando de mim. O senhor não tem a intenção de fazer o que diz... nem tem o poder.
- Eu lhe juro... - começou Luxemburgo.
- Cuidado com aquele em cujo nome o senhor vai jurar suas mentiras - retorquiu ela. - Sei que os ingleses vão me matar. Eles acreditam que quando eu estiver morta poderão recuperar o reino da França. Não é isso? - ela olhou, com ar desafiante, para os condes de Warwick e Suffolk, que a observavam fixamente.
Ela sorriu com ar zombeteiro.
- vou lhes dizer uma coisa: se houvesse mais cem mil ingleses na França do que há no momento, eles jamais conquistariam este reino. Ele pertence ao nosso rei Carlos VIII... ungido por Deus, e assim vai continuar.
O conde de Stafford ficara branco de raiva. Era conhecido como um homem impulsivo. Sacou a adaga e partiu em direção a Jeannette.
Warwick puxou Stafford para trás.
- Tenha dó - sussurrou ele. - Você atacaria uma moça? Aquilo foi o fim da visita; Warwick, agora, desejava sair dali. Jeannette deixou-se cair no estrado. Por um momento, pensara que o enfurecido conde enfiaria a adaga em seu seio. Quase rezara por que ele fizesse isso. Teria havido então um fim para seu sofrimento.
pensou em Warwick. Teria sido um sinal de pena que ela vira
em seus olhos? Talvez. Mas ele era um homem calmo, astuto.
Sabia que se Joana d'Arc fosse morta pela adaga de um conde enfurecido, continuaria sendo uma mártir cujo espírito teria marchado com os exércitos franceses depois que ela tivesse morrido.
Não. Aqueles ingleses provariam que ela era uma feiticeira. Tinham de prová-lo. Assim, talvez tivesse sido por isso que Warwick contivera o conde de Suffolk.
Pierre Cauchon, bispo de Beauvais, estava encarregado do caso contra Jeannette, porque ela fora presa em Compiègne, que ficava em sua diocese.
O bispo sabia que se esperava que ele provasse que ela era uma feiticeira. Seus senhores queriam isso dele. Era o único veredicto possível. Teria de ser mostrado que Joana d'Arc era uma criatura mancomunada com o Diabo e com espíritos maléficos.
Pierre Cauchon era um homem ambicioso; embora tivesse subido muito na Igreja, tentava, além disso, experimentar seus talentos fora dela.
Ele caíra nas boas graças de Henrique V e do duque de Bedford. Apoiara John de Borgonha quando ele apresentara sua defesa por ter assassinado o duque de Orléans, e por isso conquistara a gratidão de Filipe de Borgonha.
Quando tinha cinquenta anos, tornara-se bispo de Beauvais; naquele momento, estava com sessenta e era um dos clérigos mais ricos da França. Um homem alto, corpulento, com traços duros, tinha uma presença poderosa. A confiança em si mesmo era total. Era avaro, e não tinha muitos escrúpulos. Tratava-se do homem de que Bedford precisava para dar o veredicto que lhe era tão necessário.
Por isso, enquanto Jeannette aguardava na prisão, ele preparava a acusação contra ela.
Um dia, os carcereiros de Jeannette disseram a ela que, como uma grande concessão, um companheiro de prisão estava recebendo permissão para visitá-la. Ele era de Lorena, a mesma província dela, e era um sapateiro chamado Nicholas Loiseleur.
Jeannette ficou encantada e tentou imaginar o motivo pelo qual seus carcereiros, que até ali haviam mostrado tão pouca preocupação com seu conforto, iriam mandar-lhe um companheiro.
Nicholas Loiseleur era uma criatura delicada; tinha cerca de quarenta anos e sua voz era suave. Falava com um sotaque que lembrava o da Lorena, mas às vezes adotava um linguajar mais apurado.
Era muito simpático e fazia muitas perguntas a Jeannette sobre seu lar em Domrémy. Estava muito interessado pela infância dela e perguntava sobre os duendes e as danças em torno da árvore.
Ela tinha visto duendes?, quis ele saber.
Ela lhe disse que apenas os ouvira, e nunca os vira pessoalmente. Acreditava que sua avó os vira, ou pelo menos era o que lhe disseram.
Então, ele quis saber sobre as vozes que ela ouvia.
Ela começou a perceber que em suas visitas ele falava pouco sobre si mesmo, e de repente veio-lhe a ideia de que ele não tinha as mãos de um sapateiro.
Ela tentou desviar a conversa e fazer perguntas sobre ele; e quando as respostas não foram muito satisfatórias, sua desconfiança foi despertada. Percebeu que ele sempre falava em voz alta e voltava o rosto em direção à porta.
O que era aquilo? Mais um inimigo, quando ela pensava que tivesse um amigo!
Era um ardil bem conhecido do Santo Ofício pegar as pessoas de surpresa, levá-las a se condenarem e ter alguém na escuta, tomando notas. com que então era aquela a função do seu amigo sapateiro.
Será que não havia um limite para as humilhações às quais teria de ser submetida? Parecia que não. Um dia, uma grande dama foi até sua cela-nada menos do que a duquesa de Bedford, que também era irmã do duque de Borgonha.
Ela chegara acompanhada de outras duas mulheres, para testar a virgindade de Jeannette.
- Eu lamento - disse ela - que isso tenha que ser imposto a você, mas estou convencida de que você é uma donzela pura, se pudermos confirmar isso, será de muita ajuda para você no seu julgamento, que está próximo.
E se eu me recusar? - perguntou Jeannette.
- Infelizmente, eles não vão aceitar recusas.
Havia algo de muito delicado na duquesa. Não havia lascívia em seus modos, como aquela à qual Jeannette estivera sujeita com tanta frequência.
- Eu lhe prometo - disse a duquesa - que eu e minhas ajudantes faremos o exame com a rapidez e a discrição que for possível. Por favor, submeta-se a ele. Garanto-lhe que é melhor você ajudar do que resistir.
Jeannette, sabendo qual seria o resultado e sentindo simpatia pela duquesa, que parecia muito diferente de seus atormentadores e a fazia lembrar da delicadeza das senhoras de Luxemburgo, submeteu-se ao exame.
Quando ele acabou, a duquesa disse:
- Você é realmente uma donzela, e aqueles que a chamaram de rameira devem sentir-se envergonhados.
Fique certa de que todos saberão do resultado desse exame, e quero lhe mandar um alfaiate que irá fazer roupas para você.
A duquesa foi falar com os carcereiros que havia dispensado durante o exame e disse a eles:
- Joana d'Arc é uma jovem correta. Peço-lhes que a tratem com o respeito que gostariam que outras pessoas mostrassem para com suas filhas.
Jeannette estava deitada em seu catre depois que a duquesa se retirou, e seu ânimo melhorara um pouco. Era reconfortante saber que havia pessoas no mundo que sabiam
ser delicadas para com ela.
A duquesa cumpriu com a palavra, e poucos dias depois seu alfaiate, Johannot Simon, compareceu para tirar as medidas de Jeannette para algumas roupas.
Infelizmente, o homem pensou em tomar liberdades com a prisioneira. Foi contemplado com um golpe no ouvido que o mandou cambaleando para o outro lado da cela.
Os guardas acharam divertido. Dois deles tinham passado por aquilo.
O alfaiate também aprendera a lição. Joana d'Arc não era uma prisioneira comum.
Na capela real do castelo de Rouen, o julgamento de Joana d'Arc estava prestes a começar.
A figura mais importante do tribunal era Pierre Cauchon, bispo de Beauvais. Sentado na plataforma, era uma figura imponente com seus mantos vermelhos com bordas de filigranas douradas. De cada lado dele, sentados em bancos esculpidos, estavam os quarenta assessores vestidos de mantos pretos - um contraste impressionante com o esparrinhar de vermelho proporcionado por Cauchon.
Jeannette era uma figura lamentável - emaciada, pálida, ainda acorrentada e usando as roupas com as quais participara das batalhas, era uma visão que provocava piedade. Mas as pessoas que estavam reunidas no tribunal não tinham ido para sentir pena, mas para fazer o que seus senhores queriam.
Lá de fora, veio uma gritaria. Ouviam-se vozes berrando contra Jeannette. Eram os ingleses que tinham tido medo quando ela os enfrentara. Eles a chamavam de leiteira do demónio, vaqueira de Satã, puta de Domrémy. Não importava se fora declarada virgem; não abriam mão da crença de que era enviada do diabo, porque a única outra alternativa era a de que fora enviada por Deus, e isso era algo em que não tinham coragem de acreditar.
Os escribas sentados abaixo da plataforma olhavam à sua volta, consternados; jamais tinham visto tamanho tumulto num tribunal daquela natureza, e não tinham certeza quanto a como agir. A prisioneira parecia estar mais calma do que todos os demais. Estava sentada, pálida e indiferente, como se não se importasse que sua vida estivesse em jogo.
Por fim, Cauchon conseguiu estabelecer a ordem. Disse a Jeannette que ela devia jurar responder dizendo toda a verdade.
Ela pensou cuidadosamente naquilo. - Mas eu não sei que perguntas o senhor vai fazer - disse ela. - É possível que o senhor pergunte sobre algo que eu não possa lhe dizer.
- Quer jurar que fará como mandaram? - disse Cauchon. - Não - respondeu ela. - Eu posso lhe falar sobre minha casa, sobre meus pais e sobre o que fiz desde quando fui para a França. Mas o que Deus me revelou, não contarei, exceto ao rei Carlos.
Estavam perdendo tempo, disse Cauchon. Ela deveria fazer o juramento, caso contrário, seu depoimento não teria valor algum. Mas ele teve de concordar que ela deveria responder a perguntas sobre seus atos e sua fé, mas poderia não achar que pudesse fazer o mesmo com relação a suas visões.
Se não fizesse o juramento e não respondesse a todas as perguntas que lhe fossem feitas, Cauchon poderia tê-la condenado logo, mas isso não teria sido do interesse do duque de Bedford. Queria desmascará-la, e também o rei da França com ela, como praticantes de feitiçaria. Era isso que os superiores de Cauchon esperavam dele, e o melhor, para ele, era satisfazê-los.
A primeira sessão chegara ao fim. Parecia ter sido totalmente ocupada por formalidades. Quando Jeannette estava para deixar o tribunal, Cauchon lhe disse:
- Devo preveni-la. Se tentar fugir de novo, vai se dar mal.
- Se a oportunidade de fugir aparecer, irei aproveitá-la retorquiu ela. - Trata-se de um direito de todo prisioneiro, e nunca prometi a ninguém que não faria isso.
- Você está ciente de que é prisioneira da Santa Igreja, e que constitui um crime horrendo querer escapar dessa Igreja?
- Não prometi a ninguém que não iria fugir - respondeu, teimosa.
- Você acredita que tem a permissão de Deus para sair da prisão?
- Acredito. Se me derem a oportunidade, irei aproveitá-la. Depois que o tribunal ficou vazio, Cauchon conversou sobre
o andamento do processo com seus assessores. Como poderiam saber o que a jovem diria a seguir? Embora jovem e ignorante, era uma adversária poderosa. Eles teriam de pisar com muito cuidado.
Mais tarde, ele conversou com Jean Beaupère, ex-reitor da Universidade de Paris, que fora designado para ajudá-la na reinquirição. Cauchon tinha um grande respeito por Beaupère. Era um homem astuto, culto em matéria de leis, inclusive das da Igreja. Era um homem de julgamento calmo e claro, e alegara que sob uma reinquirição bem-feita uma simples camponesa iria destruir a si mesma; e quando Cauchon disse que ela poderia ser condenada depois da primeira aparição perante o tribunal, foi Beaupère que salientou que seria melhor que ela comprometesse a si mesma. Eles podiam estar certos de que haveria repercussão. Eles queriam um caso claro de heresia e feitiçaria. Queriam que a Inquisição a declarasse culpada e a entregasse ao setor secular para a sentença, que seria - como acontecia em casos de feitiçaria - de morte na fogueira.
- A próxima sessão deve ser realizada numa câmara menor - disse Beaupère. - Não queremos uma repetição da cena de hoje. A moça tem coragem. Deixe que o julgamento seja conduzido entre nós. Não queremos todo aquele tumulto do lado de fora. Ele agora está contra ela. Poderá voltar-se a favor dela.
Cauchon concordou que a proposta era sensata, e no dia seguinte o tribunal foi instalado numa sala pequena, e guardas postaram-se do lado de fora da porta, para impedir a entrada da turba.
O inquisidor Jean Lê Maítre estava presente, como ele mesmo insistira, não para interrogar, mas para observar, e entre os assessores achava-se o sonso Loiseleur, que se fizera passar por sapateiro e tentara fazer Jeannette cair numa armadilha.
Ela via aquela gente toda e sentia menos medo do que sentira quando tivera de enfrentar os rufiões em sua cela. Ela ouvira suas vozes de manhã bem cedo, e Santa Catarina e Santa Margarida tinham dito que ficasse animada. Deus a estava protegendo, e acima de tudo ela deveria ser valente. Devia falar o que lhe passava pela cabeça. Recusar-se a responder se lhe perguntassem alguma coisa que achasse sagrada demais para ser mencionada. E sobre outros assuntos, dizer a verdade.
Beaupère falava com delicadeza. Se ela fosse tão simples quanto alguns pensavam que fosse, chegaria a acreditar que ele estava do seu lado. Ele fez muitas perguntas sobre sua infância. Ela não fez objeções a falar sobre isso. Mas era inevitável, claro, que chegassem à época em que ela ouvira as vozes.
. Que forma o anjo tomou? - perguntou Beaupère.
Queria que ela descrevesse alguma forma humanizada, porque aquilo parecia uma boa maneira de fazê-la cair na armadilha. Ela estava ciente disso. Era como se as vozes a avisassem.
- Eu me recuso a responder a essa pergunta - disse ela. Um dos assessores bradou:
- O que a prisioneira quer dizer... que não vai responder! Ela está aqui para responder a qualquer pergunta que lhe seja feita.
Beaupère olhou para Cauchon. Os dois se compreendiam. A jovem podia simplesmente recusar-se a falar de todo. E aí? Poderiam torturá-la. Havia muitas coisas que poderiam fazer a ela. Mas seria prudente? Queriam que ela falasse. E que se traísse através das respostas a perguntas sutis.
Cauchon gritou para o assessor, mandando que se calasse.
- Deixe que o julgamento prossiga - acrescentou ele.
Beaupère ignorou a recusa de Jeannette e não insistiu na descrição do anjo. Em vez disso, quis saber de que modo ela localizara o delfim quando fora levada à presença dele. O delfim tentara impingir outra pessoa a ela, não tentara? Mas ela o identificara de imediato.
Ela disse que fora guiada até ele.
- Por que sinal?
- Sobre isso, não vou falar.
Os assessores trocaram sussurros. Que tipo de julgamento era aquele, no qual a prisioneira estava sempre se recusando a responder a certas perguntas?
Eles se voltaram para Beaupère, mas ele aguardava o momento propício. Acreditava poder obrigá-la a ficar numa situação em que ela mesma pudesse se comprometer. Era isso que ele queria.
- Então essas vozes falaram com você, uma humilde camponesa.
Você deveria fazer essa coisa estranha... deixar suas vacas e suas ovelhas e levar o delfim à vitória.
- Foi isso que me disseram para fazer.
- E qual seria a sua recompensa por tudo isso?
- A salvação de minha alma.
Beaupère começara a ficar exasperado. A jovem estava causando uma impressão muito boa. Claro que iriam considerá-la culpada, mas isso devia ser feito de maneira a não deixar dúvida alguma. Não queriam que ela se tornasse mártir depois da morte.
Na sessão seguinte, ele disse a ela que não admitiria mais o absurdo que era ela se recusar a fazer o juramento reconhecido. Mas, uma vez mais, ela se recusou a fazê-lo.
- Eu poderia condená-la por causa disso - disse ele.
- Tome cuidado - avisou ela. - Eu sou enviada por Deus. O senhor se coloca em perigo pela maneira de me tratar.
Beaupère sorriu para ela, satisfeito. Continuou com as perguntas relacionadas com as vozes que ela ouvia - cada uma inteligentemente feita para apanhá-la desprevenida. Depois de muito tempo, ele chegou aos ritos que tinham sido observados durante a infância dela. Deu a entender que se tratava de cerimónias pagãs, e que ela tomara parte nelas. Havia uma inferência de que durante tais cerimónias ela se tornara impregnada da arte da feitiçaria.
No fim da sessão, ela foi levada de volta à horrível prisão, para se estender no seu catre de palha e rezar pedindo orientação, até que adormeceu, exausta.
Um grande temor a assaltara. Não permitiriam que continuasse a recusar-se a fazer o juramento. Sabia que por trás da sorridente face de Beaupère havia um lobo esperando para devorá-la.
Nos dias que se seguiram, seu cansaço era evidente. Beaupère foi o primeiro a perceber. Estava minando as defesas dela, provocando-a com perguntas aparentemente inocentes, à espera de que ela caísse em suas armadilhas.
Por fim, ele terminou. Jeannette sabia que ele a prejudicara bastante, mas não estava certa de que maneira. Ele estivera muito tranquilo, parecera muito calmo - até mesmo compassivo.
Cauchon assumiu o interrogatório. Cansada e sem muita esperança, porque sabia que estava tudo se encaminhando contra ela, bradou:
Eu fui à guerra em missão de Deus. Eu não devia estar aqui. Mandem-me de volta para casa.
- Está certa de que se encontra na graça de Deus? - perguntou Cauchon, com ironia.
Se não estiver - respondeu ela com firmeza -, que Deus queira que eu caia nela. E se estiver, que Deus queira me manter nela.
Cauchon perdeu as esperanças de levar o julgamento a um final satisfatório. Consultou os amigos sobre se deveriam ameaçála com torturas.
Ela devia parar seus apelos diretos a Deus; tinha de mostrar um respeito maior pela Igreja. E no entanto, como poderiam condená-la por rezar para Deus?
Ficou surpresa quando a deixaram ficar na prisão cerca de um dia. Ficou imaginando que novas provações estavam sendo preparadas para ela. Então, descobriu.
Foram procurá-la e, soltando-a das correntes, levaram-na para fora da prisão. Prendeu a respiração de tanto horror quando viu os instrumentos naquele escuro aposento para onde a tinham levado. Aquela era a câmara de tortura.
- Permita que eu suporte isso, ó Deus - bradou ela. Cauchon olhou fixamente para ela.
- Nosso desejo é levá-la de volta para o caminho da verdade - disse ele. -Você fez invenções maldosas e colocou sua alma em perigo. Só a confissão poderá salvar sua alma, e se você não salvá-la sem a tortura, a tortura poderá induzi-la a fazê-lo.
Em meio ao terror que ela sentia, uma grande calma tomou conta de Jeannette, e então palavras que lhe chegaram aos lábios pareciam ter sido colocadas ali pelas santas que ela tanto amava.
- Se quiser, terá de me arrancar membro a membro, e não poderei fazer outra coisa se não me submeter. E se no auge da tortura que a sua crueldade me impuser eu admitir o que o senhor quiser que eu diga, depois irei dizer ao mundo que foram mentiras arrancadas de mim pelos seus instrumentos de tortura.
Beaupère pousou um braço no braço de Cauchon.
Afastou-o para um canto.
- A menina é esperta demais - disse ele. - O que ela diz está certo. Ninguém iria acreditar nas confissões obtidas sob tortura. No caso dela, não vai funcionar. Nossa tarefa é provar a culpa dela. Não vamos fazer isso com tortura. Seria o jeito certo de transformá-la em mártir.
Levaram-na de volta para a prisão, e a ideia de tortura foi abandonada.
Mas o fim do julgamento estava próximo.
De volta ao tribunal, disseram-lhe que ela estaria desobedecendo a Cristo se não obedecesse seus prelados da Igreja.
Como poderia a Santa Igreja sobreviver se todos os seus membros pudessem fazer tratados privados com Deus? Aquele era o pecado dela. Ela humilhava a Santa Igreja. Se qualquer homem ou mulher fosse ter contato com o céu, só poderia ser através da Igreja. Ao se declarar confidente de Deus e Seus santos, ela estava se colocando acima dos representantes do céu na terra - os prelados da Igreja. Ela fora culpada de orgulho e feitiçaria, porque não iriam acreditar que as vozes que ela ouvia vinham do céu. Era culpada de derramamento de sangue. Mas seu grande pecado estava em negar a supremacia da Igreja, e quem quer que fizesse isso era culpada de heresia.
Ela estava deitada em seu catre. O corpo queimava em febre. Acreditava estar de volta aos campos de Domrémy... dançando sob LJArbre dês Dames. Era jovem, apenas uma criança, e não ouvira as vozes.
Ela se virava de um lado para o outro na cama.
Sentia-se exausta, mental e fisicamente. Não comera nada havia dias - a não ser um pouco de pão embebido em vinho. Tentara responder às eternas perguntas deles, tendo o cuidado de evitar aquelas que, segundo ela, poderiam ofender o céu.
Às vezes, acreditava que aquelas vozes a estavam sustentando. Outras vezes, achava que elas a tinham abandonado. Quando falavam mal do rei, ela o defendia com ardor, mas no fundo do coração sabia que ele também a abandonara.
Foram buscá-la para levá-la ao tribunal. Ela olhou para eles com olhos que não enxergavam.
- Deus nos ajude, ela está doente - disse Cauchon. - Ela está doente e vai morrer.
Mandaram médicos vê-la. Ela não podia morrer. Isso não poderia acontecer. Tinham de condená-la; tinham de mostrar que ela fora um instrumento do diabo.
Cauchon mandou seus melhores médicos para o lado dela. Estava exausta, era tudo o que eles podiam dizer. Precisava de descanso, alimentação, paz de espírito.
Os dois primeiros, ela podia ter. Era praticamente impossível que a terceira estivesse ao seu alcance.
Poucos dias depois, quando Cauchon foi visitá-la, ficou aliviado ao saber que ela estava um pouco melhor.
- Fico contente por ver que está se recuperando - disse ele.
- com que finalidade eu deveria me recuperar? - perguntou ela.
- Mandei médicos para cuidarem de você e aliviarem-na de sua doença. Suas respostas no julgamento foram muito inconstantes - disse ele -, mas não me esqueço de que você é uma moça analfabeta. Posso mandar homens competentes para educála e trazê-la de volta à verdade. Devo avisá-la de que se insistir em agir dessa maneira, estará correndo um grande perigo. Nós, que somos os seus mentores na Santa Igreja, queremos levá-la para longe desse perigo.
Jeannette deu um sorriso fraco.
- Obrigada. Mas vou continuar a confiar em Deus. Se eu morrer, espero que tenham a bondade de me enterrar em terreno sagrado.
- Se você desobedecer às leis da Igreja - replicou Cauchon -, não poderá gozar dos privilégios dá Igreja.
- Neste caso, tenho de confiar em Deus.
Ela se recuperou o suficiente para deixar o leito. Sentia-se fraca, como se grande parte de suas forças lhe tivesse sido retirada.
Lembrou que fazia exatamente um ano desde que fora capturada. Ó Deus, rezava, suportei essa tortura durante doze longos meses?
Precisava comparecer uma vez mais à presença dos juizes.
Aquilo era o fim. Se admitisse que as vozes que ouvia e suas visões eram falsas, poderia ser salva.
Pierre Maurice, um dos assessores dele e um cónego de Rouen insistiram em que ela negasse as vozes que ouvia.
Ele era jovem e falava com delicadeza. Havia ocasiões em que Jeannette imaginava que alguns dos juizes tinham pena dela e iriam ajudá-la, se pudessem. Maurice era um deles.
- Jeannette, minha amiga - disse ele -, não rejeite o Senhor Jesus Cristo. Não tome o caminho para a condenação eterna com as forças das trevas que procuram perturbar homens e mulheres assumindo formas de anjos e santos e dizendo que vêm do céu. Repila-as. Dê as costas a elas. Ouça as palavras dos que querem ajudá-la e que são os verdadeiros servos de Deus.
Ela olhou para o rosto sério daquele jovem e talvez por sentir-se muito fraca, tendo acabado de se levantar de seu leito de doente, um lampejo de dúvida passou-lhe pela cabeça.
Pierre Maurice percebeu isso. Inclinou-se para ela.
- Já pensou na agonia da morte na fogueira? Não é rápida, minha amiga. Você sofre os tormentos do inferno... uma amostra do que acontecerá eternamente se você morrer com todos os seus pecados. Pense. Não poderá usar os direitos da Igreja! Ah, pense nisso, Jeannette.
Ela ficou calada, pensando. Onde estavam suas vozes, agora? Onde estava seu bom amigo, o rei da França? Se ao menos pudesse haver algum sinal!
- Levem-na para a cela - disse Pierre Maurice. Dirigiu a ela um sorriso delicado. - Pense nisso, Jeannette - acrescentou ele, com suavidade.
Ela se deitou no seu leito de palha. Estava impressionada por poder dormir. Mas o sono não lhe trouxe consolo. Ela sonhou que as chamas já tinham começado a lamber-lhe o corpo.
Acordou gritando de terror.
Era só um sonho, mas que em breve se tornaria realidade.
Foi cedo na manhã seguinte que a foram buscar...
Beaupère, acompanhado de Pierre Maurice, entrou na cela.
Vamos partir imediatamente - disseram a ela. Maurice pôs uma das mãos no braço dela. -Jeannette - disse ele -, escute o que tenho a dizer. Retrate-se enquanto há tempo. Caso contrário, a Igreja irá entregá-la à lei secular.
- E serei julgada outra vez... e não pela Igreja.
Será condenada. Ninguém iria contrariar o julgamento da Santa Igreja.
A Santa Igreja não deve derramar sangue - disse ela, com amargor. - Por isso, ela passa aqueles que deseja destruir para o setor secular, e azar do juiz de lá que contrariar os desejos daIgreja ?
Jeannette estava surpresa consigo mesma. Fora criada para reverenciar a Igreja. Levou a mão à testa. Sentia-se fraca e doente.
Subiu na carroça que tinham levado para transportá-la na curta distância até o cemitério da abadia de St. Ouen. Lá, plataformas tinham sido montadas e em uma delas estavam sentados vários cardeais e autoridades da Igreja. Entre os cardeais estava o bispo de Winchester, observando os acontecimentos com o máximo interesse, porque eles eram de grande importância para seu sobrinho, o duque de Bedford, e na verdade para toda a causa inglesa na França.
Um sermão foi feito por William Erard, cónego de Rouen, que mais tarde admitiu não ter expressado seu sentimento.
Jeannette ouviu, e foi como se ainda estivesse tendo aquele sonho e já podia sentir o calor do fogo queimando-lhes as pernas.
Sentiu medo.
- Os franceses nunca foram uma nação realmente cristã estava dizendo o pregador. Oh, ele estava decidido a agradar a seus senhores ingleses. E Carlos, que alegava reinar sobre aquela nação, devia ser um herege para ter confiado naquela mulher que agora estava diante de...
Jeannette não podia suportar ouvir falarem do rei daquela maneira. Levantou-se e bradou, em alto e bom som:
- O senhor ofende nosso rei, que é o mais nobre dos cristãos... Ninguém gosta mais da Igreja do que ele...
O orador passou a relacionar os crimes que a Donzela cometera.
- Faça sua submissão - tronitoou ele. - Arrependa-se enquanto há tempo.
Jeannette ainda estava decidida a defender o rei.
- Se tiver havido algum erro, ele é só meu - bradou ela. Pierre Maurice, ouvindo, pensou: ela está enfraquecendo. Ela
disse: "Se tiver havido algum erro." Não teria dito isso uma semana atrás. Pobre menina. Pobre, corajosa menina.
Eles iriam excomungá-la, taxá-la de herege e entregá-la à lei secular para executar a sentença de morte na fogueira.
Erard voltara-se para ela. Pela última vez, estava pedindo que ela assinasse a submissão, que confessasse aquilo de que era acusada.
Estava titubeando, pensou Maurice. Pobrezinha, eles a abandonaram, todos eles. Ela está esgotada de tanto sofrimento.
Ela disse, muito calmamente, que desejava que seu caso fosse submetido ao papa.
- O papa está muito longe - disse Erard -, e seus juizes estão agindo em nome dele. Chegou a hora. vou ler, agora, a sentença de excomunhão.
Jeannette ergueu a mão em sinal de protesto.
Cauchon, observando atentamente, fez um sinal para Erard, e um papel foi colocado diante de Jeannette.
Ela iria assiná-lo em cruz.
Sob uma grande pressão, depois de um ano de sofrimento intenso, fisicamente doente, ignorada pelo rei que ajudara, abandonada pelas vozes para as quais vivera e trabalhara nos últimos seis anos, não poderia suportar mais nada.
Fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- Prefiro assinar do que ser queimada - disse ela.
O que ela fizera? Negara as vozes que ouvira. Traíra Santa Catarina, Santa Margarida e o arcanjo Miguel. O que era pior, negara a Deus.
- Eles me deixaram sozinha à mercê de meus inimigos murmurou ela.
Virava de um lado para o outro no catre. Na penumbra, pensava ver uma luz. Pensou que ouvia as vozes.
Elas a repreenderam delicadamente, mas compreendiam. Ela sofrera como poucos tinham sido convocados a sofrer. Elas estavam com ela. Não teria nada que temer. A felicidade eterna estava muito perto, agora.
De repente, tudo ficou claro para ela. As vozes não tinham prometido nada, a não ser a salvação. Para ela, não havia saída, exceto por meio da morte.
Agora passou a sentir-se mais feliz.
As ruas estavam se enchendo depressa. Era o dia que tanta gente estivera esperando. No final das contas, o povo teria seu espetáculo.
Ela vestia um grande manto cinza, e sobre sua cabeça estava uma mitra de papel, na qual estavam escritas as palavras "Herege", "Relapsa", "Apóstata", "Idólatra". Era o fim.
Pierre Maurice foi visitá-la na cela. Ela ficou emocionada com a tristeza que havia nos olhos dele.
- Onde estarei hoje à noite? - perguntou ela.
- Você não tem esperança em Nosso Senhor? - respondeu ele.
- Tenho - disse ela, e havia êxtase no seu tom de voz. Se Deus quiser, estarei com os santos no Paraíso.
Conduziram-na para a carreta que levava os presos para a execução e que estava esperando por ela. Havia cento e vinte soldados para protegê-la em sua curta viagem
até a praça do mercado. Todas as ruelas que convergiam para a praça estavam apinhadas de gente, todos ansiosos por uma olhadela nos últimos momentos da Donzela.
Cauchon fez o anúncio final.
- Em nome de Deus, nós a rejeitamos, nós a abandonamos, rezando apenas para que o poder secular possa moderar sua sentença.
Aquilo era uma ironia. Havia algumas pessoas na multidão que se espantavam com a hipocrisia de uma Igreja que podia levar um de seus membros até aquela praça com o único propósito de entregá-lo às chamas e ao mesmo tempo livrar-se de toda a responsabilidade, sabendo muito bem que nenhum membro do ramo secular teria coragem de contrariar sua vontade.
Agora, estavam esperando. Ali se achava o pedestal, a escada que ela subiria; os feixes de madeira que seriam acesos.
Levaram-na para o cadafalso e obrigaram-na a subir pela escada. Uma corrente foi presa em torno de sua cintura, para mante-la firme à estaca, e quase que imediatamente a fumaça começou a subir.
"Então, vou morrer", pensou ela. "Nenhuma cruz para segurar, nenhum consolo para me ajudar em minha passagem."
- Não vão me dar uma cruz? - bradou, angustiada, e um dos arqueiros ingleses que tinha ido assistir ao espetáculo viu-se tomado de uma piedade súbita que achou inexplicável. Ele saltou para a frente e arrancou um galho da madeira que estava aos pés dela. Fez com ele uma cruz e deu-a a ela.
Ela a agarrou, agradecida, e segurou-a diante dos olhos.
Um dos monges aproximou-se com um crucifixo que tirara do altar de uma igreja próxima. Ele o segurou em frente a ela.
As chamas, agora, estavam espessas. A multidão gritava tanto, que não pôde ouvir os gemidos misturados com as orações da vítima.
Então, de repente, ouviu-se um grito de "Jesus!".
Por alguns momentos, houve um profundo silêncio na praça.
Então, um soldado inglês falou, e suas palavras foram nitidamente ouvidas pelos que o cercavam.
- Que Deus nos ajude - disse ele -, nós queimamos uma santa.
ELEANOR DE GLOUCESTER
A Feiticeira de Eye
O JOVEM rei estava agitado. Pela primeira vez na vida, deixaria o território da Inglaterra.
O cardeal fora procurá-lo com muita pompa e explicara-lhe que ele iria para a sua terra da França e, lá, seria coroado rei.
Mas já fui coroado uma vez, pensou Henrique. Ele se lembrava bem da cansativa cerimónia e do peso da coroa que o tinham obrigado a usar, e de todas aquelas pessoas vindo uma atrás da outra e ajoelhando-se diante dele. Havia momentos em que desejava sinceramente que tivessem coroado outra pessoa qualquer como rei.
Mas ir à França! Isso deveria ser emocionante.
Olhou para o cardeal, que parecia um homem muito, muito velho e muito sério. Ele ouvira seu tio Gloucester referir-se a ele como "aquele velho malandro". Aquilo o intrigava. Era difícil pensar que o cardeal fosse qualquer coisa que não um daqueles homens bons para o qual as portas do céu estariam abertas de par em par quando ele fizesse sua viagem para lá, viagem que, calculou Henrique, julgando pela idade, devia estar iminente.
Enquanto isso, ele estava na Terra e aparecia de vez em quando para certificar-se de que o rei cumpria seu dever.
Henrique sentia falta da mãe e de Alice e Joan. A vida tinha sido muito diferente quando ele estava com elas. Mas aparentemente as pessoas como ele, que nasciam com o ónus da realeza já pesando sobre os ombros, não podiam ser criadas por mulheres. Tinham de ter à sua volta gente como o conde de Warwick e o cardeal de Winchester - e ocasionalmente os tios, o rígido Bedford e o alegre Gloucester, dois que, apesar de suas naturezas diferentes, o deixavam muito alarmado.
- Haverá um serviço na catedral de St. Paul - estava dizendo o cardeal -, e Vossa Majestade deverá lembrar-se de que Deus o estará observando... e o mesmo estará fazendo o público.
Era muito assustador ser espionado daquela maneira; mas se Deus o amasse tanto quanto o povo obviamente amava, Henrique achou que poderia ser tão bem recebido no céu quanto o cardeal.
- Vossa Majestade deve compreender - continuou o cardeal - que foram feitos grandes preparativos para essa visita, e que cabe a Vossa Majestade fazer com que ninguém fique desapontado com fossa Majestade.
Henrique respondeu, animado:
- O povo grita bastante e me ovaciona e diz: "Vida longa para o pequeno rei!"
- Isso porque Vossa Majestade é um menino. Mas ao mesmo tempo, todos esperam muito de Vossa Majestade. Quanto mais elevado o cargo, melhor a pessoa tem de ser. Vossa Majestade não deve se esquecer de que é o rei deste reino.
- As pessoas estão sempre me dizendo isso - comentou Henrique -, de modo que não poderia me esquecer facilmente.
- Ainda bem - disse o cardeal. - Após o serviço, iremos para Kennington e estaremos em Canterbury no Domingo de Ramos, onde vamos comemorar a Páscoa, o que será apropriado. Depois, seguiremos para Dover.
- Minha mãe vai nos acompanhar? - perguntou Henrique.
- Não, não, não vai - disse o cardeal, rápido. Ele não queria que o lembrassem da rainha-mãe. Corriam certos rumores desagradáveis a respeito dela, alguma ligação com um escudeiro galês. Já havia preocupações suficientes para que ela as aumentasse. As coisas não estavam indo bem na França, e o duque de Bedford estava profundamente preocupado com o abandono do cerco a Orléans.
Assim, a viagem começou tal como haviam programado. De Ttennington a Canterbury, onde o povo foi para as ruas a fim de saudar o pequeno rei. Eles ficaram lá durante
a Páscoa, e todo mundo achou que era um bom augúrio o fato de Henrique fazerse ao mar para a França no dia de São Jorge.
Foi emocionante desembarcar em um novo país. Parecia que ele era o rei dele, tal como era da Inglaterra. Seu pai o conquistara. Henrique sempre ficava um pouco perturbado quando as pessoas falavam com ele sobre o pai, porque em geral vinha o conselho de que ele devia aprender a ser como ele; e Henrique estava começando a pensar que aquilo não ia ser muito fácil.
Eles cavalgaram pelo país, que era muito plano e não diferia da Inglaterra em muitos pontos, exceto que o povo não parecia gostar muito de Henrique. As pessoas saíam de suas casas a fim de olhar para ele, mas não o ovacionavam como faziam na Inglaterra, e algumas pareciam preferir que ele tivesse ficado longe dali.
Henrique ouviu falar muito em Joana, a Donzela. Os criados estavam sempre sussurrando sobre ela.
- Quem é Joana, a Donzela? - perguntou ele.
- Uma feiticeira - foi a resposta.
Uma feiticeira! Os olhos dele ficaram arregalados de tanto medo. Onde estava ela, agora?
Estava onde deveria estar há muito tempo. Na prisão. Eles a haviam capturado. Agora, ela teria de pagar pela sua maldade.
Henrique pensava muito nela. Parecia que todo mundo estava com ela na cabeça.
Pelo visto, ela usara a feitiçaria contra os ingleses e, por isso, eles tinham perdido algumas batalhas. Eles tinham ficado muito ofendidos com aquilo. As batalhas, pelo que Henrique sempre pensara, eram ganhas pelos ingleses. Ele vivia aprendendo a respeito de Crécy, Poitiers, Harfleur e Agincourt. Ninguém podia resistir aos arqueiros da Inglaterra - a menos que fosse com o uso de feitiçaria.
Dirigiam-se para Rouen, e em pouco tempo avistaram as torres da cidade que era a capital da Normandia, que havia tanto tempo era domínio dos ingleses. Guilherme, o Conquistador, colocara-a naquela situação quando fora para a Inglaterra; Henrique aprendera isso fazia anos.
Seu tio Bedford estava em Rouen. Henrique tinha um grande respeito por ele. Era sempre muito rigoroso e nunca deixava de fazê-lo lembrar-se de seu maravilhoso pai. A duquesa era diferente. Mostrava-se delicada e amistosa e parecia lembrar-se com muita frequência de que embora Henrique fosse rei, era também um menino.
Henrique percebeu que estavam todos muito preocupados com Joana d'Arc. Parecia que não se falava em outra coisa. Havia uma espécie de julgamento sendo realizado, e seu tio Bedford estava em estreitos entendimentos com os bispos de Winchester e Beauvais e outros homens; estavam todos muito sérios.
Eles pouco lhe contavam. Tudo o que sabia era que havia uma mulher malvada que era uma feiticeira e que fizera algum acordo com o diabo para coroar o delfim da França, que pensava que a coroa da França era dele, embora na verdade pertencesse aos ingleses devido à conquista do ilustre pai de Henrique e a uma coisa chamada de lei sálica, que os franceses obedeciam e que parecia não ser uma lei de verdade.
Bem, ele tinha de se preparar para a coroação, e também havia muita agitação sobre isso. Os reis da França eram coroados em Reims, e devido à feitiçaria de Joana dArc, Reims estava agora em poder dos franceses, e como o delfim fora coroado lá, praticamente não seria possível que Henrique também o fosse.
Seu tio estava furioso por causa disso. Henrique o ouvira dizer, em altos brados:
- É preciso provar que a mulher é uma feiticeira.
Por isso, Henrique sabia que aquilo tinha algo a ver com Joana d'Arc.
Perguntou a um de seus escudeiros sobre a feiticeira. Era emocionante - e dava medo, também - pensar que estava presa naquele mesmo castelo. Às vezes, ele acordava durante a noite e ficava pensando se as feiticeiras tinham poderes especiais e se podiam fugir da prisão. Claro que aquilo seria uma coisa simples. E se ela fosse procurá-lo? Estaria muito zangada com ele porque, segundo ele ficara sabendo, fora por causa dela que o Delfim tinha sido coroado. Ela não iria gostar muito do rei verdadeiro.
Um dia, seu escudeiro lhe disse:
. Há um orifício na prisão dela. As pessoas a vigiam através dele. Vossa Majestade gostaria de dar uma olhada?
Ele hesitou. Tinha medo do que veria. Imaginava uma velha feia, com verrugas pelo corpo inteiro, nos pontos em que o diabo a beijara.
Mas desejava ver. Queria sentir medo e ficar horrorizado.
Acompanhou o escudeiro à torre e subiu um lanço de escada.
O escudeiro ergueu-o e colocou o olho dele à altura do orifício. Henrique estava olhando para um aposento escuro, sem peça alguma de mobília, até onde conseguia ver, a não ser um catre de palha. Sentada no catre, os olhos voltados para a janela bem alta na parede, que era o único lugar por onde penetrava alguma luz, estava uma mulher. Não era velha. Estava pálida, e os olhos pareciam grandes e luminosos. Henrique não pôde deixar de olhar fixo para ela. Irradiava uma qualidade que até mesmo ele, na sua pouca idade, tinha de reconhecer.
Não poderia tê-la descrito. O único pensamento que lhe veio à mente foi: não parece uma feiticeira. Deve ser uma boa pessoa.
Então, Henrique viu uma mesa naquele aposento, que ele não tinha visto de início. Sentados a ela estavam três homens cuja aparência era tão rude e cruel que faziam um contraste notável com a jovem sentada no catre.
Enquanto olhava, Henrique sentiu uma aflição repentina que não pôde compreender. Fez sinal ao escudeiro para que o pusesse no chão.
Teve vontade de cair no choro.
Não disse palavra enquanto era levado de volta a seus aposentos, mas não podia esquecer a visão da jovem. Ela aparecia em seus sonhos, como fizera antes, mas de uma forma diferente. Antes, ele imaginara uma feiticeira malvada irrompendo em seus aposentos e lançando um feitiço sobre ele. Agora, pensava nela calada e triste... olhando para a luz lá em cima como se estivesse falando com Deus.
Deve haver feiticeiras boas e também feiticeiras más, pensou, e ficou convencido de que era boa.
Chegou o dia em que a agitação na cidade de Rouen atingira um estado febril. Era impossível evitar que ele fosse sentido nos aposentos reais. Estavam todos conversando em sussurros - dos mais destacados aos mais humildes. Naquele dia, todo mundo queria estar nas ruas.
- É o dia em que vão queimar Joana d'Arc na fogueira disseram a Henrique. - Vossa Majestade não deve ir ver.
Ele não queria ir. Cerrou os punhos. Não queria vê-la morrer queimada.
Mas a tensão infiltrara-se no castelo. Podia-se não estar lá para ver... mas podia-se sentir.
Os ingleses estavam-na matando na fogueira. Tio Bedford dissera que aquilo devia ser feito, porque se tratava de uma feiticeira. Ela causara um grande prejuízo aos ingleses e mudara o curso da guerra. Não haveria esperança para a Inglaterra se a deixassem viver e comandar os exércitos franceses.
Henrique sentia o cheiro acre de madeira queimando e do óleo que despejavam sobre a madeira para fazer com que os galhos queimassem mais depressa. E a jovem que ele vira pelo buraco na parede estava no centro da fogueira.
Henrique se perguntava se algum dia poderia esquecê-la.
Tio Bedford estava animado e obviamente aliviado. O mesmo acontecia com o bispo de Winchester. Agora poderiam levar a coroação adiante.
Mas parecia que não era fácil. Tudo se devia ao fato de que, segundo a tradição, os reis da França deviam ser coroados em Reims, e devido a Joana d'Arc os franceses agora ocupavam a cidade e acreditavam que o verdadeiro rei era o francês que já fora coroado, uma vez mais graças a Joana d'Arc.
Tio Bedford foi procurá-lo, um dia, e disse-lhe que dentro em pouco ele estaria seguindo para Paris. Seria coroado lá. Era lamentável que tivesse de ser em Paris, mas eles não poderiam esperar até que tivessem recapturado Reims, de modo que seria coroado lá e voltaria para a Inglaterra, porque o povo de sua terra não iria querer que ele ficasse ausente por muito tempo.
Henrique ficou contente por sua tia Bedford também estar lá. Gostava dela; ela o fazia lembrar de sua mãe. Era delicada e parecia ser a única pessoa que compreendia o sacrifício que uma coroação poderia ser para um menino de nove anos. Era isso; ela o considerava um menino, enquanto aqueles homens importantes o viam como o rei. Pôde dizer à tia que tinha visto Joana d'Arc através do buraco.
- Eles nunca deveriam ter levado você para vê-la - disse a duquesa.
- Mas eu gostei que tivessem me levado. Depois disso, não fiquei mais com medo. Eu andava sonhando que ela vinha ao meu quarto à noite e era velha e feia e lançava um feitiço sobre mim. Então, eu a vi e não sonhei depois disso... exceto para ficar muito triste porque iam queimá-la.
- Cale-se - disse a duquesa. - Não deve falar nela com seu tio nem com qualquer outra pessoa.
- As pessoas falam sobre ela - disse ele. - Ouvi alguém dizer que ela era uma santa.
- Não... não... não. Isso é traição.
- Traição - disse Henrique, em tom solene - é falar e agir contra o rei e o país. Eu sou o rei, e por isso não posso cometer traição falando contra mim mesmo, posso?
- Oh - disse a duquesa, rindo, dando umas palmadinhas na mão dele -, pelo que estou vendo, será um homem esperto. Escute. Seria melhor, agora, se não ficasse perturbado com esses assuntos.
Por mais que tentasse, porém, ele não conseguia esquecer Joana d'Arc, mesmo quando viajaram para Paris, aquela maravilhosa cidade de torres e torrinhas que o deixou encantado. Ele desejou que estivesse indo para lá a fim de ficar com a mãe, como costumavam fazer em Windsor, e eram apenas os dois deles com Alice e Joan e, claro, Owen Ttodor. Naquela época, não havia as angústias quanto ao que ele teria de fazer e se iria fazê-lo a contento para aqueles sisudos homens idosos.
O povo pendurara bandeiras e estandartes para ele, ovacionava-o quando ele entrou na Porte Saint Dennis, mas é claro que se tratava dos conquistadores ingleses. Os franceses ficaram calados e emburrados. Henrique teve vontade de dizer a eles: "A culpa não é minha por eu estar aqui. Eu sou o rei, mas ainda tenho de fazer o que me mandam."
Ele ficaria alojado em Vincennes até a coroação que, disse seu tio Bedford, não devia ser protelada. A situação ficara incómoda desde a chegada de Joana d'Arc, e agora que ela estava morta, sua influência continuava a existir. Ela agora era mártir, e Henrique ouvira dizer que os mártires deviam ser tão temidos quanto os maiores generais.
Dois dias antes da coroação, ele foi levado ao palácio de St. Pol para visitar a avó.
Foi uma experiência alarmante. Isabeau, devastada pela vida violenta que levara, continuava bonita, mas provocou repugnância no neto. Ela estendeu a mão que ele achou parecida com uma garra e puxou-o para perto dela. Henrique olhou para ela com olhos sérios. O rosto dela estava pintado e ela parecia uma deusa poderosa que teria o poder de transformá-lo em pedra se ele a contrariasse.
- Então, meu neto - disse ela -, você vai ser coroado rei da França. Isso é bom... isso é bom.
- Não tenho certeza de que o povo da França pensa assim - respondeu ele.
Ela soltou uma risada.
- Estou vendo que você é um menino inteligente. Continue inteligente, meu queridinho. Há duas coisas que lhe trarão o que você quiser... beleza e inteligência. Antigamente, eu tinha as duas.
Ele não sabia o que responder, e por isso olhou fixamente para ela, achando-a majestosa, embora grotesca.
- Fale-me sobre sua mãe.
- Ela vai bem - respondeu Henrique.
- Eles tiraram você da proteção dela. Henrique concordou.
- Diga-me, meu neto, você conheceu o escudeiro lUdor?
- Owen?
- Era esse o nome dele?
Era, ele era Owen Tudor, neto de Sir Tudor Vychan Gronw, e o pai, Meredydd, era um fora-da-lei acusado de assassinato.
Você se preocupa muito com os assuntos de um escudeiro.
Bem, esse era Owen...
Um escudeiro muito especial, creio eu. Sua mãe achava-o um escudeiro muito especial?
- Achava, sim. Ela dizia que não havia ninguém como Owen. A avó começou a rir.
- Sua mãe foi a caçula dos meus filhos. Tornou-se rainha da Inglaterra e mãe do rei daquele país! Isso é bom... considerando-se a situação em que nos encontrávamos. Derrotados até ficarmos de joelhos por seu pai, meu neto.
- É, estou a par de Harfleur e Agincourt.
- Aposto que está. Os ingleses vangloriam-se de seus sucessos. Como todo mundo faz. Mas me fale mais sobre sua mãe. Fale-me sobre a vida em Windsor... quando você estava com ela. Fale-me sobre Owen Tudor...
Ela o fez falar bastante, e embora sorrisse delicadamente para ele, Henrique ficou muito contente quando a visita ao palácio de St. Pol terminou.
Dois dias depois, ele foi coroado na Notre-Dame, pelo cardeal Beaufort. Não foi uma cerimónia festiva. Havia uma taciturna atmosfera de contrariedade durante todo
o ato, e o povo de Paris reclamou que havia ingleses demais presentes. Claro, pensou Henrique com lógica, isso era de esperar-se, já que se tratava de um inglês, mas os franceses não gostaram. Além do mais, os reis da França deviam ser coroados em Reims, e de qualquer modo já havia um rei da França. Houve outras reclamações, porque muitos dos costumes que acompanhavam uma coroação foram ignorados. Certos prisioneiros recebiam anistia e distribuía-se dinheiro aos necessitados. Tudo isso foi esquecido pelos ingleses, de modo que foi uma coroação estranha sob todos os pontos de vista e programada de propósito para oferecer pouco consolo aos franceses.
O duque de Bedford estava ciente do descontentamento. Naquela época, ele era um homem muito preocupado. Ficara abalado pelos feitos de Joana d'Arc; e sua aliança com o duque de Borgonha estava longe de ser sólida. O duque culpava-o pela perda de Orléans. Se ele tivesse deixado que o povo se rendesse a Borgonha, a cidade não estaria, agora, em poder dos franceses. O fato de Henrique ter sido coroado em Reims fora uma grande decepção para Bedford. Na verdade, a posição na França não fora tão preocupante, do ponto de vista inglês, desde antes de Agincourt. E pensar que tudo se devia a uma camponesa que ouvira vozes deixava o duque enfurecido. Ele não teria ficado tão furioso assim se tivesse sido por causa de um poder de combate e de uma estratégia superiores, mas aquilo era incompreensível, e mesmo agora que a Donzela morrera na fogueira ele ainda estava bestificado e angustiado.
- O rei deve partir para a Inglaterra imediatamente - disse ele ao bispo de Winchester. - Não poderei descansar em paz enquanto ele permanecer na França.
O bispo concordou.
- Mas o senhor verá que agora tudo vai mudar. A feiticeira não existe mais. A influência dela acabou. Será como antes de ela vir perturbar todos nós. Carlos é um poltrão - nenhuma Donzela de Orléans pode alterar isso. Ele é preguiçoso, indeciso, não foi feito para guerrear.
O duque confirmou com a cabeça.
- Eu penso em Borgonha...
- Sua duquesa vai providenciar para que haja paz entre o senhor e o irmão dela.
- Ah, sim. Graças a Deus existe Anne. Mas a saúde dela me deixa um pouco aflito, senhor bispo.
- Ela é jovem. É dedicada ao senhor.
- Isso eu agradeço a Deus. Rezo por um filho... Anne, também. Ela está ansiosa por ter um filho.
- Ele irá satisfazer a vontade dos senhores no momento certo - disse o bispo.
O duque achava difícil afastar a depressão, e o bispo pensou: "Esse caso da Donzela o deixou nervoso... assim como a todos nós."
Por ordem do duque, o jovem rei deixou Paris e seguiu para Rouen, mas o mês de janeiro chegou ao fim antes que ele desembarcasse em Dover, onde descansou um pouco e por etapas curtas fez a viagem até Londres, sendo recebido por uma grande ecepção, e embora fosse um mês de fevereiro frio, o povo saiu aos milhares para saudá-lo. Estava muito bonito em seu manto de gala, com a coroa na cabeça. "Querido reizinho", era como o chamavam. Estandartes tremulavam de todos os lugares possíveis, e o cortejo era detido repetidas vezes enquanto seguia pelas ruas de Londres. Meninas recitavam poemas sobre as virtudes do rei e não deixavam de salientar o fato de que era rei da França e também da Inglaterra.
Foi tudo muito agradável, e uma das raras ocasiões em que ele ficava contente por ser o rei.
Humphrey de Gloucester estava lá para lhe dar as boas-vindas. Henrique nunca tinha certeza quanto ao tio Humphrey. Sabia que o tio Bedford, apesar de rigoroso, era um homem de grande honra e virtude. Henrique não sabia ao certo o que o tio Humphrey era.
Humphrey fora regente durante sua ausência, e Henrique viu logo que havia uma diferença na atitude do tio para com ele. Estava um pouco mais respeitoso.
Ah, pensou Henrique, de forma inteligente, é porque estou crescendo.
Depois de lhe dizer o quanto estava satisfeito por ele ter voltado são e salvo e o quanto estava encantado pelo fato de o povo de Londres tê-lo recebido com tanto calor - sentimentos dos quais Henrique, com crescente esperteza, desconfiava um pouco -, Humphrey começou a falar sobre as iniquidades do cardeal Beauford.
Alguma coisa teria de ser feita sobre o velho malandro, disse tio Humphrey.
Ouvir o nobre cardeal ser mencionado naqueles termos era desconcertante. Acontece que a vida muitas vezes era desconcertante para um rei que estava custando tanto a crescer.
A duquesa de Gloucester estava muito contente com a vida. De origem relativamente modesta, ela subira bastante, porque quem iria questionar o fato de que enquanto o duque de Bedford estivera ausente da Inglaterra, envolvido nas guerras francesas, o duque de Gloucester era o homem mais importante da Inglaterra - rei em tudo, menos no nome; e como a duquesa exercia enorme influência sobre ele, isso significava que ela era uma dama de grande importância social.
Tinha sido um grande triunfo conseguir que Humphrey se casasse com ela. Como a simples Eleanor Cobham, ela o encantara e o escravizara, e poucas pessoas, afora a própria Eleanor, acreditavam que ela poderia continuar a fazer isso e com que efeito. Mas Eleanor tinha plena confiança em si mesma. Humphrey jamais conhecera uma mulher igual a ela. Tão profundamente sensual quanto ele, poderia continuar a excitá-lo naquela área que sempre fora importante para ele; mas em Eleanor havia mais do que realização sexual. Era tão ardilosa quanto qualquer estadista; e sabia como ficar aguardando o momento exato para agir. Nada tinha de impulsiva. Seus olhos estavam bem fixos no futuro.
Havia um reizinho - que ainda seria um menor de idade por alguns anos - maleável como barro nas espertas mãos daqueles que sabiam como moldá-lo. Ele tinha dois tios, e um deles estava envolvido nas guerras francesas. Aquilo deixava o campo livre para o outro - Gloucester... ou teria deixado, se os que tentavam atrapalhá-lo fossem afastados.
Ela estava esperando o marido quando ele voltou dos cumprimentos de boas-vindas ao rei.
Humphrey entrou de sopetão nos aposentos deles. Ela foi até ele, retirou-lhe a capa e, passando os braços pelo pescoço dele, deu-lhe um beijo apaixonado nos lábios. Ele reagiu como nunca podia deixar de fazer e disse:
- Ah, Eleanor, Beaufort voltou com o rei.
- Aquela víbora! - disse ela. - Já é hora de alguém acabar com ele.
- Temos de nos livrar dele.
- Venha - disse ela. - Quer comer? Quer descansar? O que você quer, meu amor?
- Estar com você... falar e falar... Essa coisa está na minha cabeça. Ele tem a confiança de Bedford.
- Vamos comer primeiro - disse ela -, depois, vamos para a cama... e você poderá falar à vontade.
Mais tarde, os dois estavam deitados lado a lado na cama em que adoravam ficar e conversavam sobre o cardeal... e Beaiora.
- Meu irmão envelheceu. Essa mulher o deixou perturbado.
- Ninguém esperaria que ele se perturbasse com uma mulher.
- Não se trata de uma mulher comum, isso eu lhe garanto, mas uma mulher que ouve vozes... nada menos do que uma virgem.
- E o irmão Bedford ia respeitar isso!
- Ele provou que ela era uma feiticeira e matou-a na fogueira, mas o espírito dela o persegue. Eu percebo isso. Ele não tem certeza. Ela foi muito convincente no julgamento - deixou confusos Beauvais e muitos outros. E como é que uma jovem camponesa poderia fazer isso? É o que eles se perguntam. Posso lhe dizer que aquela garota é responsável por mais do Que a Perda de Orléans e a coroação do delfim.
- Mas agora está morta.
- De certa maneira, continua viva. Os franceses agradecem aos céus por ela estar do lado deles, e essa ideia não pode ser tirada.
- Deixar a menina morrer queimada! Nesse caso, a ajuda do céu não foi grande coisa.
- Essa ajuda transformou o caso numa espécie de lenda. Afinal, estão dizendo que Cristo foi crucificado. Se a garota tivesse voltado para seus rebanhos, teria sido esquecida em Poucos meses. Agora, eles jamais esquecerão.
- Então Bedford está sofrendo, não é? - a duquesa estava sorrindo.
- Ele parece mais velho.
- E ele se sente feliz com a duquesa dele? Vocês, irmãos, tiveram sorte no casamento. Henrique gostava de Katherine. Por falar nisso, ainda há o escândalo com as travessuras dela com o escudeiro galês.
- Que faça - disse Gloucester. - Ela não representa uma ameaça para nós.
- Não, e perdemos tempo em nos preocuparmos com ela. Humphrey, se Bedford morresse...
- Ele ainda é jovem.
- Em combate, talvez. Afinal, seu irmão Henrique morreu aos trinta e cinco.
- Sim, se ele morresse, o que aconteceria?
- O que aconteceria, meu Humphrey? Já imaginou que você ficaria sendo o próximo na fila do trono?
- O jovem Henrique é um menino bem saudável.
- Hum... - murmurou ela, e em seus belos olhos havia especulação. - Precisamos ter esperança de que o caminho fique livre. Bedford ainda poderá viver muitos anos. Anne, a mulher dele, poderá ter um filho... que Deus não permita.
Estava profundamente pensativa; tivera ideias que não compartilharia nem mesmo com Humphrey.
Tornara-se uma duquesa, e ninguém teria acreditado que um dia ela poderia ter conseguido. Seria possível ser uma rainha?
Havia um único homem capaz de arruinar seus planos se tivesse a chance, o tio de Humphrey, o cardeal Beaufort.
Ele devia ser eliminado. Humphrey tentara livrar-se dele, e até então fracassara. Era uma pena o velho cardeal deter tamanho poder. Era uma pena ele ter sangue real. Estava tudo muito bem que Humphrey o chamasse de Bastardo. Ele poderia ter nascido assim, mas os instintos paternais do velho John de Gaunt tinham sido fortes, e ele gostara tanto da mãe de Beaufort que insistira para que os filhos dela fossem legitimados. E Henry Beaufort, bispo de Winchester e agora cardeal, mostrara sua lealdade para com a Coroa a vida inteira. Era difícil desbancar um homem daqueles.
- Acho que agora nós o pegamos - disse Gloucester. Vamos pegá-lo com base nopmemunire. Eu soube, de fonte limpa, que ele comprou uma isenção da jurisdição de Canterbury. Andou pagando suborno. E veja como está rico. Como foi que conseguiu esses bens todos?
- Conseguir eliminá-lo seria um grande triunfo - disse Eleanor.
- Não tenha medo, meu amor, vou fazer isso.
Nunca duvidei de que você o faria. Fale mais sobre Bedford.
Ele está, como sempre... decidido a atender à vontade que meu irmão manifestou em seu leito de morte. Mas parece um nouco perturbado com Borgonha. Ele cometeu um erro quanto a Orléans, e devia ter deixado a cidade render-se a Borgonha. Disse que não sacudiria as árvores para um outro pegar os pássaros. Ah, ah! Ele pensou que era esperto. E Bedford não gosta de cometer erros.
- Você diria que as coisas não vão bem na França.
- Isso mesmo.
Ela envolveu-o nos braços e atraiu-o para bem junto dela.
- Temos assuntos aqui na Inglaterra com que nos preocuparmos - disse ela.
No mês de maio Henrique abriu o Parlamento, e a sessão foi muito desagradável, devido à discussão entre tio Humphrey e o cardeal Beaufort.
Durante a discussão, o cardeal levantou-se e, colocando-se em frente a ele e a tio Humphrey, quis saber quais acusações estavam sendo feitas contra ele.
Houve muita recriminação e discussão que Henrique não entendeu, mas ele percebeu bem o ódio que existia entre seu tio Humphrey e seu tio-avô, o cardeal.
Concluiu que o cardeal fizera tratados com o papa e que, ao fazê-los, adquirira um privilégio especial; acumulara uma grande fortuna; e acima de tudo, tio Humphrey não descansaria enquanto não confiscasse a vasta riqueza do cardeal e o exilasse do país.
TUdo aquilo foi muito triste para Henrique, que sentia medo dos dois. Ficou satisfeito por eles não esperarem que ele tomasse quaisquer decisões, por enquanto. Ficaria tudo por conta do Parlamento.
Henrique ficou aliviado quando o Parlamento lhe disse que declarasse sua confiança no cardeal; mas foi tudo muito confuso, e parecia que o cardeal não parecera muito satisfeito com o procedimento. Henrique ouvira seu tio Humphrey dizer que os bispôs ficariam muito agitados com a perspectiva de a sé de Winchester ficar vaga e que isso ajudaria. Henrique não conseguia entender aquilo. Parecia não ter nada a ver com a culpa do cardeal.
Depois disso, eles discutiram o arresto das jóias dele, o que também foi difícil para Henrique entender. Mais tarde, ele soube que o cardeal emprestara muito dinheiro à Coroa, de modo que isso parecia resolver o caso.
Mas Henrique, embora criança, sabia que o tio continuaria a odiar o cardeal e tentar prejudicá-lo; e o cardeal seria sempre inimigo de Humphrey.
Como a corte estava em Westminster para a sessão do Parlamento, foi fácil para Eleanor fazer uma coisa em que havia muito tempo andava pensando. Tirando todas as jóias e o belo manto de veludo, ela vestiu os trajes de uma mulher de mercador e, com uma de suas acompanhantes vestida do mesmo jeito, foi para as ruas, e as duas misturaram-se à multidão.
Seguiram, em silêncio, para uma estalagem em uma das estreitas ruas. O estalajadeiro apareceu, os olhos brilhando ao ver Eleanor, e estava para fazer uma mesura cerimoniosa quando um olhar dela o conteve.
- Os cavalos? - disse ela.
- Prontos e esperando... - respondeu ele de imediato.
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça e, com a acompanhante, foi com o estalajadeiro para o quintal da estalagem, onde dois cavalos já estavam selados. O estalajadeiro ajudou Eleanor a montar e fez o mesmo com a acompanhante. Depois, as duas mulheres saíram juntas do quintal.
Não foi um caminho muito longo para a mansão de Eye-nextWestminster, e tendo chegado à pequena aldeia, dirigiram-se a uma estalagem para deixar os cavalos. Ali, foram recebidas com o mesmo respeito.
Embora aquelas precauções irritassem Eleanor, ao mesmo tempo se sentia eufórica com elas. Conspiradora por natureza, gostava da emoção forte do mistério. Não queria que ninguém soubesse de suas visitas a Margery - nem mesmo Humphrey.
Eleanor tinha muita fé em Margery, e ficara um tanto chocada, não fazia muito tempo, quando Margery fora mandada para Windsor, sob suspeita de feitiçaria.
Podia-se contar que Margery sairia bem daquela, mas até ela mesma não poderia esperar repetir a façanha se outra acusação fosse levantada contra ela, e não seria recomendável a duquesa de Gloucester ser ligada a ela.
As duas chegaram à casa; era pequena, numa fileira de casas daquele tipo, mas havia algo de emocionante a respeito dela, porque era ali que morava Margery Jourdemayne, a Feiticeira de Eye.
Eleanor bateu, decidida, à porta. Esta foi aberta com cautela, e ali estava Margery em pessoa, os olhos brilhando em sinal de boas-vindas.
- Entre, senhora. No fundo de meu coração, sinto-me contente por tornar a vê-la.
- Ah, Margery, deixe-me olhar para você. A mesma de sempre. Não parece ter sofrido muito com sua provação.
- Isso foi há três anos, senhora. E fico satisfeita por vê-la... e saber, por ouvir dizer, que nossos pequenos truques funcionaram. Minha senhora é uma duquesa, agora... nada menos. Uma senhora muito nobre... uma das mais bonitas do país, segundo me disseram. Mas o que estamos fazendo aqui? Entre, senhora... e a senhora também. As senhoras são sempre bem-vindas ao lado da lareira da velha Margery.
Estavam numa pequena sala, escassamente mobiliada com uma mesa, duas cadeiras e alguns bancos. Era ali que Margery recebia os clientes, e praticamente não era diferente de outras salas em casas daquele tipo.
- Sentem-se, por favor - disse ela, e ofereceu uma cadeira à duquesa. Margery sentou-se na outra. À acompanhante da duquesa foi dado um banco.
- O que a senhora queria comigo, duquesa?
- Creio que você tem um bom leite para o rosto, Margery. Você me forneceu esse leite no passado. Estou sentindo falta dele.
- Eu sei qual é, senhora, é uma fermentação especial minha. E feito de... Ah, mas não devo revelar meus segredos. É mais do que as ervas que entram nele. Constitui-se da sabedoria e das bênçãos de mulheres selecionadas ao longo dos anos e transmitidas aos seus descendentes.
- Ele amaciou minha pele e deixou-a como um veludo disse a duquesa. - Margery, leve-me à sua oficina por um instante. Quero escolher meu pote.
- Claro, senhora.
Um entendimento secreto passara entre Margery e Eleanor. Significava que elas deveriam ficar a sós.
A acompanhante se levantou, e Margery disse:
- Não, não, minha cara. A senhora fica aqui.
Aquilo era uma ordem. Eleanor voltou-se para a acompanhante e deu de ombros, como se estivesse dizendo: "Temos de fazer o que a velha quer", e depois seguiu Margery por uma porta, que foi fechada com firmeza depois que elas entraram.
- A senhora conhece o caminho - disse Margery, com uma risadinha.
Eleanor confirmou com a cabeça, e Margery seguiu à frente, descendo um lanço de escada. com uma chave que levava pendurada à cintura, Margery abriu uma porta. Estavam numa espécie de porão, com uma janela gradeada, situada num ponto alto da parede e pela qual entrava uma luz ténue. Das vigas pendiam ervas de muitas espécies, todas em processo de secagem. Havia uma fogueira acesa, e sobre ela estava um caldeirão do qual saía fumaça, e o ar estava cheio do cheiro pungente do que estava sendo cozido. Eleanor reconheceu os equipamentos sobre um banco comprido, que podiam ser usados para cortar, fatiar, bater e coisas desse tipo, porque os vira em visitas anteriores.
- O leite para o rosto de minha senhora. Tenho apenas que decantá-lo - disse Margery. - Fiz isso para a senhora antes de ir para Windsor. Já faz três anos, mas o produto é tão bom que vai durar para sempre.
As duas sabiam que não fora por isso que Eleanor tinha ido até lá. Naturalmente, porém, a duquesa não queria que nem mesmo suas amigas íntimas e acompanhantes soubessem o motivo principal. Elas tinham intimidade suficiente para saber que ela visitava a Feiticeira de Eye, porque para Eleanor não teria sido muito fácil ir sozinha. No entanto, do segredo elas só podiam saber até aquele ponto.
- Margery, o que aconteceu em Windsor? - disse Eleanor.
- Eu fui presa, sabe?, com o frei Ashewell e o sacristão John Virley, e fomos todos acusados de feitiçaria.
- E você foi libertada. Margery teve um sorriso irónico.
- Posso lhe dizer que foi uma surpresa para todos, em Eye, quando voltei. Estavam todos preparados para ir a Smithfield a fim de me ver na fogueira.
- Não fale assim, Margery.
- Ah, minha senhora, foi verdade. Mas eu tinha bons amigos... e para meu espanto, e também para o espanto de outras pessoas, fui posta em liberdade.
- E voltou direto para cá e continuou a vender suas poções afrodisíacas.
- Não há mal nenhum nelas. Elas são boas... como a senhora mesma tem motivos para saber. Foi como se estivessem me fazendo cócegas com dez mil penas quando eu soube que a senhora se casara com o duque. Eu disse: "Ah, imagino que ela deve parte disso à velha Margery." Embora, veja bem, a senhora seja uma dessas mulheres da qual um homem acha difícil escapar se ela decidir que o quer. É um prazer ver a senhora subir tanto no mundo.
A velha Margery tinha um jeito respeitoso de falar que, mesmo assim, continha um lembrete da espetacular ascensão de Eleanor no mundo. A velha mulher estava lhe dizendo que se lembrava da jovem Eleanor Cobham indo procurá-la para comprar uma poção do amor ou algum produto de beleza, quando ela não passava de uma mulher de pequena importância e achava-se com muita sorte ao conseguir o cargo de dama de companhia junto a Jacqueline, na ocasião duquesa de Gloucester.
Margery lembrava-se bem da satisfação da mulher quando se tornara amante do duque e de que as duas tinham planejado juntas uma maneira de fazer dela a esposa dele.
O destino favorecera-as com as guerras na Holanda e em terras estrangeiras, mas quando chegara o momento, com a ajuda de Margery, Eleanor estava preparada - e Margery esperava que a orgulhosa duquesa não se esquecesse.
- E o duque está apaixonado como sempre? - perguntou Margery, querendo saber por que Eleanor voltara a procurá-la agora. Afinal, aquilo precisava de um pouco de coragem - não que a Eleanor algum dia tivesse faltado coragem -, porque Margery fora acusada de feitiçaria uma vez e escapara por um fio. Não havia como dizer que ela não seria presa de novo - na verdade, era muito provável. Não ficaria bem para uma dama poderosa como a duquesa de Gloucester ter tido negócios com ela. Assim, a dedução era de que Eleanor devia querer muito alguma coisa para ter ido pessoalmente procurar a Feiticeira de Eye.
- Está apaixonado como sempre - respondeu Eleanor -, e sei como mante-lo assim.
Margery balançou a cabeça devagar.
- Então... - começou ela. Eleanor interveio, rápida.
- Nós não temos filho. Parece estranho, Margery... que todo esse tempo...
Margery balançou a cabeça.
- Às vezes é assim... A natureza é muito estranha.
- Quero que você me torne fértil. Quero um filho. Margery balançou a cabeça, séria.
- Não é fácil - disse ela.
- Não é fácil! Pensei que você pudesse fazer essas coisas.
- Posso ajudar. Mas, senhora, há outros fatores envolvidos nisso: a natureza, e há o homem.
- O que quer dizer com "o homem"?
- A primeira duquesa não teve filhos.
- Ele praticamente nunca estava com a esposa. Ela não o atraía. Posso lhe garantir que conosco é diferente. Além do mais, houve filhos dele... fora do casamento.
- Posso usar a minha arte... e se for possível, a senhora terá seu filho... Mas a senhora tem de se lembrar... há outros elementos nisso... elementos que as pessoas como eu não podem controlar.
- Você disse que podia me ajudar a arranjar casamento.
- É... e ajudei, mesmo. Dei à senhora unguentos e loções especiais aos quais poucos homens podem resistir. Mas a senhora não era nenhuma coruja. Era um belo passarinho canoro. Foi uma parte devido à senhora, uma parte devido a mim. Só nós duas participamos.
- Houve Humphrey.
- E ele poderia ter sido contra. Mas ele já estava a meio caminho, não é?
- Ora, você está me dizendo que eu não precisava ter vindo?
- Na verdade, minha senhora, podemos fazer todo o possível... e vai ajudar. - Pegou um pedaço de cera de uma prateleira e, colocando-o numa frigideira, segurou-o sobre o fogo.
Quando a cera derreteu, ela tirou-a e deixou-a esfriar por alguns minutos. Depois, com habilidade, fez com que adquirisse a forma de uma criança.
- Pronto - disse ela. - Aqui está seu filho. Iremos tratálo com carinho. Vamos dizer a ele que não seja tão tímido. Ergueu a figura e soprou sobre ela. - Estou dando o sopro da vida em você, filhinho. Acorde. Estão precisando de você neste mundo. Pronto, duquesa - estendeu a figura para Eleanor. Segure-o com carinho. Beije-o. Ficarei com ele aqui durante nove meses, e sussurrarei para ele todos os dias. No fim desse prazo, se a senhora não tiver concebido, eu o darei à senhora e ficará com ele e irá tratá-lo com carinho e garantir a ele que será muito bem recebido se vier.
- Obrigada, Margery - disse Eleanor, e colocou uma bolsa em cima da mesa.
Os olhos de Margery faiscavam enquanto ela olhava para a bolsa. As feiticeiras sabidas conseguiam envolver os nobres em suas teias. Era deles que vinha o dinheiro, e muitas vezes a ajuda nas dificuldades. Uma mulher poderia ganhar apenas o mínimo para viver à custa dos amuletos e dos filtros de amor que vendia a gente humilde, mas para dinheiro de verdade, tinha de procurar a classe alta; e, o que era uma maravilha, estavam tão prontos para consultar a feiticeira quanto os mais humildes.
- vou lhe dar a loção para a pele, senhora, e uma coisinha para pingar no vinho do duque... só para mante-lo alegre e apaixonado.
Eleanor balançou a cabeça, apanhou as garrafas, colocou-as no bolso da túnica, e foi juntar-se à acompanhante na sala em cima.
A Morte de Bedford
A RAINHA Katherine acordava todas as manhãs com uma sensação de agitação. Estendia a mão para ter a certeza de que Owen ainda estava ao seu lado. Ele ria dessa mania. A mão dele enroscava-se na dela e os dois se lembravam de dar graças pelo que a vida lhes fornecera.
- Ainda aqui, rainhazinha? - perguntava ele.
- Nunca ficarei tão acostumada a ser feliz a ponto de esquecer que isso pode passar.
- Por que passaria? - perguntou Owen.
- Porque... Ah, mas você não precisa que eu diga. Sabe que vivemos aqui... em segredo...
- Segredo... quando a qualquer momento seus criados poderão entrar e nos ver aqui juntos?
- Nossos criados... Owen.
- Não - disse ele -, você é a rainha. Eu sou seu escudeiro.
- Você é meu marido.
Owen ficou calado. Será que iriam reconhecê-lo como tal? Será que diriam que um casamento realizado numa água-furtada não era verdadeiro para uma rainha?
Não. Eles não se importariam. Não queriam pensar em Katherine. Homens como Bedford e Gloucester estavam tão preocupados com suas próprias ambições que não considerariam a rainha uma ameaça para eles e, portanto, o que importaria para eles se ela tivesse se casado com um escudeiro galês. Ela que tivesse filhos... eles os chamariam de bastardos, se quisessem.
Bastardos! O pequeno Edmund, o bebezinho Jasper. Ah, não, eles tinham nascido de um casamento santo assim como o próprio rei.
Ele se voltou para Katherine e beijou-a com carinho.
- Sejamos felizes - disse ele. - Temos muita coisa a agradecer, e continuaremos a desfrutá-las.
- Sim - disse ela. - Vamos fazer isso. É o que eu quero.
Depois, ela falou sobre a inteligência de Edmund. Ele já estava balbuciando alguma coisa... a maior parte sem sentido, mas havia palavras aqui e ali. E o pequeno Jasper seria tão inteligente quanto ele.
Ela adorava os filhos, e tudo o que queria era poder viver na obscuridade com a família. Sem dúvida que não era pedir muito.
E assim os dois conversavam sobre assuntos domésticos, e uma criada entrou para levar vinho com peixe conservado em sal e pão, que iriam comer antes de se levantar.
Katherine estava alegre. O dia estava maravilhoso. O sol brilhava. Owen estava a seu lado. Depois que tivessem comido e se vestido, iriam para a ala infantil a fim de ver as crianças. Era uma excelente maneira de começar a manhã.
Mas, no dia seguinte, ela acordaria aflita.
Owen disse que aquilo era devido à infância estranha que ela tivera. Na época, ela não sabia o que iria lhe acontecer de um dia para o outro. Acordar em Hadham era muito diferente de acordar no palácio St. Pol. Lá, ela era governada pela loucura de seu pobre pai e pelo severo domínio da mãe gananciosa. Ali, em Hadham, ela era a rainha, embora vivendo na obscuridade; e tinha os filhos para cuidar e um marido devotado para protegê-la.
- Você tem razão, marido querido - disse ela. - Todos os dias, eu agradeço a Deus por ter você. Lembra-se do nosso primeiro encontro...
E então ela se sentia feliz outra vez, lembrando-se de como os dois tinham se aproximado aos poucos, sabendo no fundo do coração o prazer que um levara ao outro, até aquele dia em que, enquanto dançava, ele caíra no colo dela...
- Vamos agradecer a Deus o que Ele nos deu - disse ela.
E mostrar nossa confiança Nele de que isso durará a nossa vida inteira - acrescentou Owen.
- Amém - murmurou ela.
Era normal esperar que Henrique fosse visitar a mãe, muito embora ele tivesse sido tirado dos cuidados dela. Chegaram mensagens em Hadham anunciando que o rei estava a caminho.
Aquilo fez a criadagem entrar em pânico, não por causa do rei, mas de todos os que iriam com ele. Não se esperava que Henrique fosse viajar sem uma grande comitiva. Afinal, ele não era o menino que Katherine entregara a Warwick. Estava crescendo. Tinha sido coroado rei não apenas da Inglaterra, mas da França.
Como mãe, Katherine ansiava por ver o filho, mas como mulher de Owen Tudor, temia o que a visita dele poderia significar.
Conversou muito sobre isso com Owen, e os dois decidiram que Edmund e Jasper deveriam ficar na ala infantil. Afinal, quem pensaria em procurar por eles, e eles eram crianças demais para compreender do que estavam sendo escondidos. Owen voltaria aos seus aposentos de escudeiro, e eles poderiam contar com a discrição dos criados.
Katherine estava atormentada por suas dúvidas e anseios.
Ela estava na torrinha mais alta, para ver a chegada de Henrique. Viu-o chegando ao longe, galhardetes tremulando e seus porta-estandartes cavalgando à frente dele. Ficou emocionada, lembrando-se do orgulho que sentira quando ele nascera e daquela leve pontada de apreensão que sentira, na ocasião, porque desobedecera os desejos do marido e tivera o filho em Windsor.
E ali estava ele, cavalgando à frente do cortejo - seu filho, seu pequeno rei. Ah, sim, ele mudara. Ela percebeu logo isso. Ele assumira uma nova dignidade. Pobre garotinho. Será que percebia o peso das responsabilidades que lhe seriam colocadas sobre os ombros?
Ela desceu para recebê-lo, e quando Henrique a viu esqueceu-se de tudo, menos de que ali estava sua mãe que ele tanto amara naquela época antes de compreender as dificuldades de ser rei.
- Querida senhora! - bradou ele, e correu para os braços dela.
A rainha sorriu para o sério Warwick, que, é claro, não aprovava aquele tipo de comportamento.
- Ah, então você não se esqueceu de mim, meu filho!
- Ah, mamãe - disse ele -, estou muito feliz por vê-la. Joan ainda está aqui? Alice?
- Estão, sim... - Katherine hesitou por um segundo ou coisa assim, e isso não passou despercebido por Warwick. Ela não podia dizer que tinham ficado com ela para cuidar de seus outros filhos. - Elas ficarão encantadas ao ver você...
- Então elas ficaram depois que parti - disse o rei.
- Elas ficaram acostumadas com nossa criadagem. Os dois entraram na casa lado a lado.
- A senhora gosta de ficar isolada aqui? - perguntou Henrique.
- É bom para mim - disse ela. - O como vai Owen? Ele continua aqui?
- Está... ele ainda faz parte da criadagem.
- Eu quero vê-lo.
- Não tenho dúvida de que o verá.
Eles, todos eles, estavam prestando atenção. Ela estava ciente disso. Até que ponto sabiam? Até que ponto iriam descobrir? Seria aquilo não tanto uma visita do rei à sua mãe quanto uma investigação para descobrir a verdadeira situação em Hadham?
Ela estava encantada por tornar a ver Henrique, embora ele não parecesse ser seu filho agora, como Edmund e Jasper pareciam. Claro que ele parecera quando tinha a idade deles. Espero, pensou ela, poder manter meus filhos Tudor comigo para sempre.
Ela e Owen tinham tido razão ao concordar que podiam confiar na lealdade dos criados. Joan e Alice se mostraram encantadas ao ver o menino de quem tinham cuidado. Ficaram impressionadas com o crescimento dele e a percepção que tinha dos assuntos. Fizeram perguntas, e não havia dúvida de que Henrique estava feliz por ser tratado como criança outra vez.
Ele foi visitar Owen, e os dois conversaram sobre cavalos, e Henrique ficou sempre se recordando da época em que Owen o ajudara a domar um cavalo.
Houve uma ocasião em que Katherine teve a chance de falar com o filho a sós. Quis saber se ele gostava tanto de sua vida agora quanto da de antes.
- É muito diferente - disse Henrique, um pouco triste. Raramente fico sozinho. Sabe, querida mãe, quando eu morava com a senhora, todo mundo fazia o possível para me fazer esquecer que eu era rei; agora, fazem tudo para me lembrar disso.
- O conde é bom para você?
- Para mim, ele é bom, é o que dizem.
Aquele Henrique estava desenvolvendo um espírito agudo. O pai dela fora assim, em seus momentos de lucidez. Um medo agudo passou por ela. Não... não... não havia semelhança alguma entre aquele solene garoto e o louco do pai dela.
- Não é exatamente a mesma coisa - disse ela, rápido. Henrique concordou.
- Ele é um homem bom e honrado. Às vezes, desejo que ele não fosse tão bom e tão honrado. Ele é reconhecido como um homem muito nobre. Tem feito muita coisa digna.
- Foi por isso que seu pai exigiu que ele fosse seu guardião. Espero que ele não seja um feitor demasiado rigoroso.
- Não. Talvez não seja. Eu tinha ficado acostumado com a senhora e com Joan e Alice...
- Elas nem sempre poupavam a vara...
- Mas nunca doeu de verdade, querida mãe. - Ele ficou pensativo por um instante. - Estive na França, mamãe. Visitei minha avó.
A rainha sentiu o coração começar a bater descontrolado, como sempre fazia diante da menção de sua mãe. O nome dela trazia muitas lembranças. Katherine se lembrava da bela face distorcida pela idade, a fria indiferença quando ela mandara que os filhos fossem enviados para o palácio de St. Pol; lembrava-se de uma ocasião em que Michelle se agarrara às saias da mãe num esforço de apelar para que todos eles tivessem permissão de ficar no Louvre e não serem despachados para aquele palácio frio, onde podiam ouvir os sons da loucura do pai. Katherine via, em sua mente, a mãe batendo com raiva nos dedos de Michelle, enquanto a irmã gritava de dor e largava as saias da mãe.
- O que achou de sua avó?
- Ela foi muito delicada comigo. É muito bonita.
- Mas ela deve ter mudado, desde que a conheci. A vida dela é muito diferente do que era.
- Ela perguntou pela senhora. Disse que esperava que a senhora estivesse bem.
Katherine ficou em silêncio.
- E eu vi a Donzela, mamãe. Vi Joana d'Arc. Katherine prendeu a respiração.
- Quando? Você não...
- Não, não vi quando eles a queimaram. Olhei por um buraco que dava na cela onde ela estava. Eu a vi lá com os guardas. Eles pareciam... abrutalhados... e ela, senhora, parecia uma santa.
- Você andou dando ouvidos a rumores e mexericos. Nunca é prudente fazer isso, meu filho. Disseram-me que ela era uma camponesa que aprendera a arte da feitiçaria.
- Ela não era feiticeira coisa nenhuma, mamãe. E depois, fui coroado em Paris porque não podíamos entrar em Reims. Penso muito nela. Ela não queria que eu fosse coroado rei. Por isso ela saiu de sua aldeia natal para lutar. A senhora acredita que os santos podem... podem prejudicar quem contraria a vontade deles?
- Os santos não fazem mal algum, meu filho. Eles só fazem o bem. Por isso são santos.
- Então, ela não vai me fazer mal, porque sei que ela é boa.
Sim, ele tinha amadurecido, mesmo. Não apenas fora coroado rei da Inglaterra e da França, mas vira Joana d'Arc, e a fama dela se espalhara por todo canto. As pessoas até falavam sobre ela na Inglaterra. Era uma feiticeira, diziam, que lutara ao lado dos franceses e conquistara algumas vitórias.
Se o rei Harry estivesse vivo, ela jamais teria conseguido; ele a teria capturado assim que ela aparecesse em cena, teria colocado-a num saco e atirado-a no Sena.
Mas ela deixara Henrique impressionado. Tornara-o pensativo. Mas talvez aquilo fosse apenas o ónus da função de um rei.
A estada não poderia ser longa, e os sentimentos de Katherine eram mistos. Não tinha certeza de que queria que o rei fosse embora ou ficasse.
Warwick conversou com ela depois do almoço, enquanto ouviam os menestréis. Perguntou se estava satisfeita com ávida tranquila que estava levando. Ela respondeu que aquela vida preenchia suas necessidades. Eles tinham concordado que não era adequado o rei ser criado pela mãe, e como a criação e a educação do filho dela estavam nas competentes mãos dele, estava certa de que não precisava preocupar-se quanto àquele aspecto.
- A senhora está bem servida? - perguntou ele. - Está servida de acordo com o que deve ser a mãe do rei?
- Estou bem servida, de fato. Não tenho o que reclamar respondeu ela.
- A senhora tem criados, guarda-costas e tudo de que precisa?
- Os melhores - respondeu ela.
- Estou vendo que Owen Tudor continua a seu serviço.
- Não vejo razão para me livrar de um bom escudeiro, -Nenhuma razão.
- Tudor está a seu serviço há bastante tempo.
- Ah, está. O falecido rei teve a atenção despertada por ele em Agincourt.
- Ah, o cargo dele na criadagem foi, sem dúvida, uma recompensa por bons serviços. Talvez o falecido rei ficasse contente se pudesse olhar lá do céu e ver a senhora tratar bem uma pessoa que serviu com ele em Agincourt.
- Ele teria satisfação em ver Owen Tudor recompensado, disso não duvido.
Katherine não tinha dúvidas de que havia rumores sobre ela e Owen. Warwick fora até lá para investigar, e embora lamentasse perder o filho, ela não podia deixar de sentir-se aliviada por ver a comitiva partir.
Então, pôde voltar à aconchegante domesticidade que tanto significava para ela.
John, duque de Bedford, não era um homem feliz. Não conseguia compreender por que, desde a meteórica ascensão de Joana d'Arc, tudo parecia dar errado. Desde a morte do irmão, estava desejando que este estivesse vivo, mas nunca desejara tanto quanto naquele momento.
O que acontecera? Desde Agincourt, a estrela dos ingleses subira bem alto, e parecia não haver motivo para que não continuasse a dominar o céu sobre a França. Um rei indeciso, filho de um imbecil e da Jezebel de sua era, um país assolado pela guerra, aliados poderosos contra ele... que chance tinha ele? E então, de repente, aquela camponesa feiticeira mudara tudo.
Fora um dia terrível aquele em que a tinham executado na fogueira. Ele nem chegara perto da praça em Rouen. Teria sido uma insensatez. Ficara - alguns diriam escondera-se - a portas fechadas e com janelas pesadamente acortinadas. Não queria ouvir que ela enfrentara com bravura a morte, que alguém dissera ter visto uma pomba branca subir da pira em fogo naquele momento em que ela chamara o nome de Jesus em um último grito trémulo antes do silêncio. Não queria ouvir dizer que as pessoas - até mesmo os soldados ingleses - estavam dizendo que tinham queimado uma santa.
Não queria tornar a ouvir o nome de Joana d'Arc. Mas de que adiantava? A feiticeira aparecera, e aquilo fora o começo do fim do poder inglês na França.
Mas como Bedford poderia evitar ouvir o nome dela? Ainda falava-se nela, e se ele proibisse que o nome dela fosse mencionado, de que adiantaria? Aquele nome continuava se repetindo em sua mente.
Maldita fosse Joana d'Arc! Maldito fosse o azar! O que teria acontecido com as vitórias, com os sucessos?
Tinham acabado de perder Chartres. Por que perderiam Chartres? Ele ficara tão enfurecido que decidira fazer uma grande tentativa de reverter a onda de infortúnios. Deus nos ajude, disse ele, porque vamos perder tudo aquilo que Henrique conquistou se continuarmos dessa maneira.
Havia outra coisa que lhe dava motivo para uma grande preocupação.
Anne andava doente ultimamente. Às vezes, ele achava que a feiticeira dArc lançara um feitiço sobre ela.
Anne tentava atenuar a aflição dele assegurando-o de que se sentia bem, talvez um pouco cansada, mas isso se devia ao calor, ao frio, ou ao fato de que talvez ela tivesse cavalgado demais. Desculpas nas quais ele não acreditava.
As vezes, ele acreditava que ela estivesse mais doente do que lhe dava a entender.
Tinham sido felizes os momentos que passara com ela.
Certa vez, ele lhe dissera:
- Para mim, é impressionante o fato de nós, que nos casamos por interesse de Estado, termos sido tão abençoados.
- Sempre estive decidida a fazer um casamento feliz dissera ela.
- E estar decidida a fazer alguma coisa é a melhor maneira de consegui-la. Oh, Anne, eu gostaria que pudéssemos acabar com essa luta. Que pudéssemos ficar mais tempo juntos. De estar mais certo quanto ao seu irmão.
Ela ficara pensativa. Conhecia bem o irmão. Orgulhoso, arrogante, de sangue real, ele sempre deplorara o fato de o trono francês não ter cabido a ele, e muitas vezes pensava como teria sido diferente a vida para os franceses se aquilo tivesse acontecido.
Borgonha não era um homem que esquecia facilmente os inimigos. Quando Carlos, ainda delfim, estivera com os que tinham assassinado o velho duque de Borgonha, fizera do filho daquele duque um inimigo para sempre. Estava acontecendo uma rixa que quase custara o trono a Carlos... e teria custado, não fosse aquela camponesa na qual ainda se falava.
Mas Filipe de Borgonha adorava a irmã. Ele lhe daria ouvidos, disso ela sabia, e independente dos sentimentos dele para com o duque de Bedford, sentia-se contente por Anne ter encontrado a felicidade com ele.
- vou fazer todo o possível para manter aquecida essa amizade entre você e meu irmão, meu querido marido - disse Anne.
E ela o fizera, consolando-o como sempre fazia. Não, ele tinha motivos para alegrar-se com aquele casamento. Tinha uma mulher a quem amava muito, e o casamento servira à sua finalidade, que fora, primordialmente, fortalecer a aliança entre Bedford e Borgonha.
E agora, a saúde dela lhe dava motivos de preocupação. Mas ele tinha muitíssimas causas de preocupação. Estava com medo da sutil mudança que vinha lentamente tomando conta da França. Sem dúvida, os poderes da feitiçaria não eram tão grandes quanto pareciam. E, no entanto, tudo começara com a Donzela.
Era sempre a mesma coisa. Tudo acabava voltando para a Donzela. Parecia que, apesar da fogueira, a feiticeira continuava viva.
Enquanto ele refletia, chegaram mensageiros à sua procura.
Ansioso, ele esperou o que tinham a dizer. Boas novas, assim esperava, de Lagni-sur-Marne, para onde ele enviara uma potente força para tomar a cidade de assalto.
Infelizmente, porém, não eram boas notícias. Por toda parte, os franceses estavam mostrando uma resistência teimosa. A Donzela parecia tê-los imbuído de um novo espírito. Estavam resistindo, e as tropas inglesas começavam a ficar sem mantimentos. Se não chegasse ajuda logo, teriam de bater em retirada.
Ele estava num dilema. O local não tinha nenhum grande valor estratégico, mas os ingleses não poderiam dar-se ao luxo de mais uma derrota.
Decidiu-se com uma rapidez que lhe era característica. Teria de ir pessoalmente a Lagni-sur-Marne.
Pela Bíblia Sagrada de Deus, pensou ele, atacarei esses franceses com tanta violência, que eles vão pensar duas vezes antes de resistir dessa maneira a nós no futuro.
Pouco depois, ele estava em Lagni. Atravessou o acampamento. Sabia que havia algo de errado. Os ingleses tinham perdido a certeza de que ninguém poderia derrotá-los. O cerco de Orléans fora desmoralizante, e o mesmo acontecera com as vitórias francesas que haviam levado à coroação de Carlos em Reims. Se ao menos Henrique tivesse ficado vivo; ele teria sabido como lidar com aquela estranha influência que afetara os dois lados. Ele, Bedford, sabia que era um bom soldado, um bom general; servia ao seu país com dedicada lealdade, sempre servira assim como serviria; mas havia momentos em que era necessário um génio especial, e esse génio não aparecia em todas as gerações. Se ao menos Henrique tivesse ficado vivo! Tudo teria sido resolvido de maneira satisfatória. Ele teria sabido, desde o começo, como lidar com Joana dArc. Bedford cometera poucos erros em sua carreira militar, mas agora percebia que havia dois que tinham sido vitais. Ele deveria ter deixado o povo de Orléans render-se a Borgonha. Ela jamais iria perdoá-lo por se recusar. com isso, ele dera à Donzela a chance de salvar aquela importante cidade para os franceses. Aquele fora o primeiro erro. Um erro muito maior fora queimar Joana. Aquele ato fizera com que ela vivesse para sempre. E pelo resto da vida, ele seria atormentado por ele.
Parecia que ela lançara uma maldição sobre todos os ingleses, porque por mais violentamente que lutassem, não conseguiam romper o cerco de Lagni. E então... que vergonha... reforços franceses - canhões e cavalaria - chegaram para ajudar a cidade.
Onde estavam os arqueiros da Inglaterra? Eles tinham perdido o ânimo. Acreditavam que Joana d'Arc estava possuída de um poder divino e que ao matá-la na fogueira eles tinham queimado a eleita de Deus. O céu estava contra eles. Muitos dos soldados tinham estado presentes na Praça de Rouen naquele dia. Eles jamais esqueceriam.
Eles recuaram diante dos franceses e Bedford teve a humilhação de ver suas tropas derrotadas.
Ficou ainda mais decepcionado quando soube que os vitoriosos franceses estavam a caminho de Paris.
Cavalgou até lá a toda velocidade, e ao passar pela Porte Saint Antoine, o povo estava mal-humorado. Eles sabiam que naquele momento ele era o senhor deles, mas no fundo do coração não acreditavam que o seria por muito tempo.
Havia um consolo. Anne estava em Paris. Ele foi direto para vê-la, e até mesmo lá o terror o aguardava. Ela não podia esconder dele, agora, o fato de que estava mesmo muito doente.
- Anne - bradou ele -, Anne, meu amor. O que é? Por que não me disseram?
Ela sorriu fracamente para ele.
- Você não iria querer ouvir falar de meus males sem importância - respondeu ela. - Não é nada. Tive um mau dia.
Ele ficou desolado. Deus se voltou realmente contra mim, pensou.
Passava muito tempo com ela. Tentava esquecer a triste situação política. Estamos indo de mau a pior, pensou ele, mas na verdade não podia dedicar sua atenção a outra coisa que não a Anne.
Quando soube que algumas das freiras de St. Antoine, inclusive a abadessa, tinham se comunicado com Carlos e estavam trabalhando para levá-lo para Paris, ficou irritado e mandou prendê-las. Sabia que os parisienses, em sua totalidade, iriam voltar-se contra ele quando e se o momento oportuno chegasse.
Ele não podia conversar com Anne sobre esses assuntos. Ela jazia quieta na cama, os olhos fechados, os dedos entrelaçados nos dele. Casara-se com ela por interesse, mas isso não significava que o seu amor fosse menor do que era.
Não lhe passara pela cabeça que se ela morresse - e ele temia muito que ela fosse morrer-sua aliança com Borgonha teria sofrido um grande golpe. Só ele e ela sabiam o quanto ela trabalhara para manter viva aquela amizade. Era uma amizade anormal - um duque de Borgonha, membro da Casa Real da França, ser aliado dos conquistadores ingleses! Não fosse o intenso ódio de Borgonha pelo assassino de seu pai, ela nunca poderia ter acontecido.
Mas aquela amizade deveria ser mantida viçosa. Ela era o pivô sobre o qual girava o sucesso. Henrique soubera disso. Ele a mencionara em seu leito de morte. "Faça qualquer coisa... quase qualquer coisa... para manter Borgonha do nosso lado."
Ele tentara, como se esforçara para satisfazer todos os desejos do finado rei. Ele sempre soubera que seu falecido irmão era o grande arquiteto do sucesso na França, e tinha muito medo de que sem a capacidade dele de mante-lo, a vitória obtida com firmeza desabaria numa derrota.
Novembro foi um mês triste. Ele iria odiar os novembros para sempre, porque no dia treze daquele mês Anne morreu.
Ela olhou para ele, triste, como se pedindo perdão por morrer. Ela sabia o quanto a amizade de seu irmão era importante para o marido, e sabia que, apesar de impiedoso, brilhante e astuto, Filipe de Borgonha estaria pronto a romper aquela amizade na primeira oportunidade, se isso lhe fosse conveniente; fora a influência de Anne que a mantivera viva.
- John - disse ela -, seja feliz. Diga a meu irmão que meu maior desejo foi vocês continuarem amigos. Lamento, mas tenho de ir embora.
Ele não conseguia falar. Estava emocionado demais.
Ela foi enterrada como desejara, na igreja dos celestinos. O povo saiu às centenas para pranteá-la. Ela se destacara pela bondade e pela beleza, e tendo apenas vinte e oito anos de idade, era jovem para morrer.
O público chegou até a sentir pena do regente Bedford quando viu a dor que ele sentia.
Ele parecia muito mais velho, profundamente curvado de tanto sofrimento e angústia. Não queria ficar em Paris. Partiu imediatamente para Rouen.
Que saudade ele sentia dela! Embora tivesse sido impossível os dois ficarem juntos muito tempo, ele sabia que ela estivera sempre em seus pensamentos. Durante seus dilemas, que ultimamente tinham sido frequentes, muitas vezes dizia para si mesmo: "vou perguntar isso a Anne", ou "Contar isso a Anne", ou "O que é que Anne iria pensar disso?"
Por isso, havia um grande vazio em sua vida. As pessoas consideravam-no frio e distante, mas, afinal, ele era humano; era mais do que um soldado, mais do que um regente. Tinha sido, embora por um curto espaço de tempo, um marido dedicado.
Agora, precisava dela como nunca. Tudo estava dando errado, e ele estava ansioso por conversar com ela, pedir-lhe conselhos, fazer com que ela falasse com o irmão. Sabia que jamais iria esquecê-la.
Ele não era popular nem mesmo em Rouen, onde impostos pesados eram exigidos do povo a fim de pagar pela ocupação. O povo estava carrancudo. Esperara tempos melhores quando a Inglaterra tomara a França, e o que foi que encontrou? Estavam mais pobres do que nunca.
Era necessário aplicar castigos severos àqueles que não pagassem, e ainda mais desconcertante era o fato de que alguns dos soldados estavam falando em motim. Eles queriam voltar para a Inglaterra. Estavam cansados de ficar longe de casa.
John sabia que só havia uma maneira de lidar com gente assim, porque eles não poderiam solapar um exército inteiro, e lidava com eles daquela maneira. Os severos castigos que ele aplicava aumentavam sua impopularidade.
O que ele não daria pelo consolo de Anne naqueles dias sombrios! Um dia, o bispo de Thérouanne foi a Rouen, e com ele estava sua sobrinha, uma jovem de dezessete anos. Bedford acolheu-os calorosamente, porque o bispo era Luís de Luxemburgo, e a família que reinava sobre Luxemburgo era muito rica e poderosa. Durante algum tempo, Bedford procurara fazer uma aliança com eles, porque a frieza da atitude de Borgonha desde a morte de Anne estava se tornando cada vez mais aparente.
Além do mais, era agradável estar na companhia da jovem Jacquetta. Além de muito bonita, era muito animada; sabia cantar com graça, e embora fosse jovem possuía uma certa percepção dos assuntos que para Bedford parecia admirável para uma moça de sua idade.
Ele descobriu que estava procurando muito a companhia da moça, e ela parecia não ser avessa a isso. Ela adquiriu um grande interesse pela guerra e discutia a influência da Donzela que, estava certa, era uma feiticeira.
- As pessoas se lembram agora - disse ela -, mas esquecem depressa, não?
Aquilo pareceu a Bedford um comentário sensato. Além do mais, era uma coisa em que ele mesmo queria acreditar. Ele pensava: ficamos sempre impressionados com aqueles que dizem o que nós estamos pensando.
Mas ela era uma mulher sedutora. Atenuava a torturante necessidade que ele sentia de Anne.
Ele achou que era inevitável e não se surpreendeu quando o bispo foi falar com ele.
- Eu sempre quis uma aliança entre nossos dois países - disse o bispo.
Bedford admitiu que ele também não seria avesso a uma aliança daquelas. Precisava de tantos amigos quanto pudesse arranjar.
- Jacquetta é uma jovem encantadora - disse o bispo, e Bedford também não podia negar isso.
- Sei que uma aliança entre a Casa Real inglesa e a de Luxemburgo nos daria um grande prazer.
E observando Jacquetta e procurando atenuar o terrível vazio provocado pela morte de Anne, decidiu que casar com Jacquetta seria um bom passo, independente do lado pelo qual se olhasse para ele.
Houve uma grande alegria em Rouen. Todos os cidadãos, mesmo os que tinham ficado mal-humorados por causa de uma tributação demasiado alta, adoravam um casamento real. John encomendou à Inglaterra cinco belos sinos para a catedral. Foram seu presente à cidade e representavam seu agradecimento pela felicidade que ele voltara a encontrar.
E assim, apenas cinco meses depois da morte de Anne de Borgonha, Luís, bispo de Thérouanne, casou o duque de Bedford com Jacquetta de Luxemburgo.
O duque de Borgonha ficou enfurecido. Bedford casara-se cinco meses depois da morte de Anne. Considerava aquilo um desrespeito para com Anne e, portanto, para com a Casa de Borgonha. E se casara com Jacquetta de Luxemburgo, o que significava que formara uma aliança com alguém rico e importante. Havia um motivo ainda maior para sentir raiva: Jacquetta era filha de Pierre, conde de St. Pol e regente de Luxemburgo, que era um vassalo do duque de Borgonha, e a permissão do duque para o casamento não fora pedida.
- Por Deus - bradou o duque de Borgonha -, não fui consultado! Eles sabiam muito bem que se tivesse sido, teria recusado permissão para o casamento.
Ele faria com que seu desagrado fosse sentido acabando com todo tipo de comunicação com o duque de Bedford. Se o duque quisesse apresentar suas desculpas a ele, teria de tomar a iniciativa.
Borgonha que vá para o inferno!, pensou Bedford. Ele se casaria com quem quisesse. Não era um desrespeito a Anne o fato de ter se casado tão logo depois da morte dela. Fizera aquilo porque sentira muito sua falta. Anne, minha adorada, pensou, você me fez gostar do casamento. Foi por não poder suportar sua perda que procurei tão cedo preencher o vazio que você deixou em minha vida.
Sim, Anne iria compreender. Não podia esperar que Borgonha fizesse o mesmo. Borgonha só conseguia ver o casamento como um ato político e, naturalmente, não gostava da aliança com Luxemburgo.
Mas talvez ele superasse aquilo. Sempre houvera discordâncias entre eles, antes.
O cardeal Beaufort foi procurá-lo e expressou seu pesar pela desunião entre eles e seu importante aliado.
- Eu sei, eu sei - disse Bedford. - Mas não posso consultar o duque de Borgonha sobre cada detalhe de minha vida privada.
- Acredito que ele ache que esse casamento é assunto que lhe diz respeito, já que o pai da duquesa é vassalo dele... e a irmã de Borgonha foi sua primeira mulher.
Bedford levou uma mão cansada à cabeça e não falou. Observando-o atentamente, Beaufort ficou alarmado. O que teria acontecido com seu sobrinho? Bedford sempre parecera muito alerta. Saíra-se bem na França. O falecido rei teria ficado satisfeito com ele. Mas ultimamente ele mudara, desde a chegada de Joana d'Arc. Não, deve ser algo mais do que isso. Uma jovem camponesa não poderia afetar grandes homens de maneira tão estranha. Talvez Bedford tivesse passado de sua primeira juventude, e perdera uma esposa a quem fora devoto. Bedford não poderia ficar cansado agora. Havia tanta coisa que fazer e muita coisa ganha podia ser perdida com facilidade.
- Deve haver uma reconciliação com Borgonha - disse ele, de forma delicada.
- Não tenho intenção alguma de rastejar humildemente até ele - retorquiu Bedford.
- Eu não quis dizer, nem por um instante, que era isso que você devia fazer. Tem de haver uma reaproximação dos dois lados. Creio que seria uma boa ideia eu tentar provocar isso.
Bedford quis dar de ombros e bradar que estava cansado daquilo tudo. Se Borgonha gostasse de ficar amuado, que ficasse. Mas estava claro que Borgonha não estava amuado. Estava furioso, como sempre ficava quando acreditava ter havido algum ataque à sua dignidade. Era um homem obcecado pela própria importância e pelo próprio poder; mas tinha-se de admitir que aquela importância e aquele poder eram muito grandes.
A coisa sensata a fazer, estava claro, era Beaufort tentar conseguir uma reconciliação.
- Talvez o senhor deva fazer essa tentativa - concordou Bedford.
Beaufort ficou aliviado. Como todos os demais, ele sentiase perturbado pelo rumo que as coisas estavam tomando na França. Sabia que seu velho inimigo, Gloucester, iria aproveitar-se da frustração do irmão. Como ele odiava Gloucester! Um interesseiro; um homem cujas ambições imediatas estavam acima de qualquer outra coisa. Ele parecia ainda pior desde que fizera aquele casamento com uma mulher de nível inferior, a empregada de sua primeira mulher. Bedford tinha de recuperar o controle sobre os assuntos na França; e em breve chegaria o momento em que ele poderia deixar tais assuntos com um substituto, porque sua presença era muito desejada na Inglaterra, onde Gloucester ficava com muito poder quando seu irmão estava fora da Inglaterra.
O primeiro passo era pôr fim à desavença com Borgonha.
- vou providenciar um encontro imediatamente - disse ele a Bedford.
Bedford fez um gesto afirmativo com a cabeça, com ar de cansado. Pelo menos, ele poderia confiar no tio.
O duque de Borgonha, com uma certa condescendência, concordou em encontrar-se com o cardeal em St. Omer.
Desde o primeiro momento do encontro, o cardeal percebeu que estava enfrentando dificuldades e que o fosso seria difícil de ser coberto.
Borgonha disse que os ingleses pareciam estar perdendo a habilidade em combate.
- Isso ficou evidente depois do cerco de Orléans - disse ele. - Se o duque não tivesse evitado que a cidade se rendesse a mim, não teria ficado em enrascadas como essa de precisar de uma aliança com Luxemburgo como medida temporária para dar alento à sua força.
- Meu senhor, o duque de Bedford lamenta profundamente o caso de Orléans. Não fosse a feiticeira...
Borgonha deu de ombros.
- A culpa de tudo é atribuída à feiticeira, mas o senhor, meu caro cardeal, um homem de experiência, não acredita nem por um momento que uma simples camponesa pudesse ter mudado o rumo dos acontecimentos.
- Foi o efeito que ela causou sobre o povo, não o que ela era, meu senhor, mas o que os franceses e os ingleses acreditaram que ela fosse. A influência dela está diminuindo, e se os senhores, dois homens poderosos, esquecerem essas irritações sem importância e se mostrarem unidos, tudo o que foi perdido será recuperado em breve.
O duque ficou calado. Ele está indeciso, pensou o cardeal. Que Deus nos ajude. É verdade, então... esse boato de que ele está pensando em romper sua aliança conosco e unir-se à França. Isso seria realmente desastroso.
- Parece um ato muitíssimo inamistoso casar-se com uma mulher da casa de Luxemburgo - disse o duque, teimoso. - E se o duque de Bedford lamenta seu ato, por que não vem me procurar pessoalmente? Por que enviar um emissário... mesmo um emissário tão importante quanto o senhor, cardeal?
- Não fui exatamente enviado por ele, senhor duque.
- Quer dizer que ele não sabe que o senhor veio me procurar? - O duque estava parecendo mais insolente do que nunca. Aquilo não era bom.
- Não é bem assim, não é bem assim - disse o cardeal, rápido. - Ele ficou profundamente sentido com sua contrariedade, e quando sugeri que eu devesse transmitir ao senhor aquele sentimento, ele não proibiu.
Entendo - disse o duque. - Ele foi orgulhoso demais para vir em pessoa. Deixe que eu lhe diga uma coisa, senhor cardeal, se o duque viesse pessoalmente, talvez pudéssemos dissolver nossas diferenças... quem poderá dizer que sim... Enquanto isso...
O duque fez uma pausa maliciosa. Ele sabia que os rumores sobre as sondagens que os franceses estavam fazendo junto a ele deveriam ter chegado ao conhecimento dos ingleses, e ele compreendia perfeitamente a aflição deles. Que ficassem aflitos. Ele nunca perdoara Bedford por Orléans, e na ocasião tinha-se feito com que ele percebesse com uma intensidade maior que era anormal borgonheses e franceses estarem lutando em lados opostos numa guerra de tamanhas consequências vitais. Estava tudo bem quando se tratava de disputas entre duas facções do país. A desavença entre borgonheses e o povo de Armagnac era perfeitamente normal; mas lutar uma guerra contra um inimigo externo e não ficar unido... Sim, era uma situação realmente esquisita.
Carlos estava sendo muito dócil; estava se desvinculando dos assassinos do antigo duque de Borgonha. Ele poderia não ter tido a intenção de matar. Nisso, era bem possível acreditar. Ele era um homem delicado, não dado a violência de forma alguma. Talvez isso devesse ser levado em consideração.
- É uma pena que deva haver essa desavença - disse o cardeal. - Isso dá ânimo ao nosso inimigo, muito embora Carlos saiba que o senhor jurou não fazer uma paz em separado com a França.
Então ele estivera certo ao adivinhar os pensamentos do cardeal. Eles estavam preocupados, não estavam? Era verdade que ele jurara não fazer uma paz em separado com a França, mas ele estava ficando muito cansado de ter Bedford agindo contra ele, e aquele casamento com a casa real de Luxemburgo estragara realmente o relacionamento deles. Anne estava morta, e agora ele não precisava pensar nela. Não estava lá para interceder junto a ele e explicar os motivos do marido. Bedford devia muito a Anne - no entanto, assim que ela morrera, ele se unira àquela jovem de Luxemburgo.
Borgonha não tinha vontade alguma de reparar aquela disputa. Para ele, era interessante, àquela altura, mante-la acesa.
Ele conhecia o orgulho de Bedford, e por isso fez o gesto que sabia que não seria aceito por Bedford.
- Se o duque de Bedford quiser dizer que se arrepende de seus atos, que venha pessoalmente dizê-lo a mim.
A entrevista chegara ao fim, e o cardeal percebeu que fracassara.
Será que Bedford iria procurar Borgonha, de chapéu na mão, para pedir desculpas? Como é que Borgonha podia pedir a ele que se humilhasse? Por que o regente da França deveria fazer uma coisa dessas, mesmo quando se tratava de um aliado importante? Borgonha sabia que ele não iria. Por isso pedira que fosse.
Humphrey de Gloucester estava furioso. Seu irmão estava voltando. Eleanor era compreensiva. Ela sabia exatamente como lidar com ele. Ele não se desviara de sua devoção para com ela, e sem dúvida alguma ela tinha o poder de controlá-lo. Às vezes, ela ficava imaginando até que ponto devia agradecer a Margery Jourdemayne por isso, mas o fato era que com a ajuda de Margery e com a sua irresistível sexualidade ela podia atrair o duque - e, o que era mais importante, preservar a necessidade que tinha dela - como nenhuma mulher jamais conseguira fazer.
Mas até ali ela continuava estéril. Não conseguia compreender. Fizera várias visitas a Margery e havia visto a imagem de cera. Para ela, a imagem era muito bonita. Margery mantinha-a num pequenino berço forrado de veludo. Um belo objeto, apesar de muito pequeno. Margery dizia que falava com a imagem todos os dias e sentia que estava prestes a obter uma resposta.
- A qualquer momento - dizia ela. Mas fazia meses que dizia isso, e ainda não havia sinal de um filho.
Eleanor sabia que podia esperar um pouco. Sempre havia assuntos importantes a serem resolvidos, e a vida com o duque nunca era enfadonha.
E agora, Bedford estava voltando. Sabia que ele seria contra ela.
- Não há nada que temer da parte dele - disse, animada. __ Ele não está voltando como um conquistador, está?
-- É uma vergonha a má administração dele na França.
-- Deviam ter deixado que você cuidasse delas.
Ele sorriu com carinho para ela. Sempre ficava impressionada com a infantilidade com que ele reagia à lisonja. A carreira militar dele não merecera destaque, mas ele sempre se considerara um grande comandante. Ela não devia reclamar desse traço em seu caráter. Aquilo fazia com que ele fosse mais fácil de controlar.
- Ele investigará como vão as coisas aqui.
- Sem dúvida, e achará erros em tudo.
- Disso você pode estar certa.
- Pois bem, vamos começar achando defeitos nele. Não deve ser difícil. Você podia dizer ao Conselho que não está nada satisfeito com a maneira pela qual ele está conduzindo a guerra. Desde que ele foi tão ignobilmente derrotado em Orléans, as coisas por lá têm piorado cada vez mais. Uma palavra ao ouvido de certos membros do Conselho...
- Tem razão - disse Gloucester.
- Dita com o máximo de cuidado, como você sabe fazer tão bem... lançada em terreno fértil. Há muitos que não gostam muito do seu nobre irmão, Humphrey.
E assim eles conversavam. Gloucester disse que talvez ele devesse oferecer-se para ir à França para corrigir a situação.
Ir à França! Era a última coisa que Eleanor queria. Que ideia horrível! Indo de cidade a cidade, vivendo em acampamentos! Não, ela preferia os castelos e os palácios da Inglaterra. Mas não havia mal em concordar com ele. Ela podia ter a certeza de que ninguém levaria a sério uma sugestão como aquela.
Quando viu Bedford, ficou perplexa com o fato de que ele envelhecera muito desde a última vez em que o vira. A visão dele fez com que tremores de excitação corressem pela sua imaginação viva. Aquele caso de Joana d'Arc o perturbara mais do que parecia possível. E ele estava com aquela alegre esposa que tinha metade de sua idade. Ainda era um homem distinto. Dizia-se que se parecia muito com o irmão. Ele inspirava um respeito que Humphrey, bendito fosse, nunca inspirava. John era uma bela figura de homem; na verdade, não fazia o gosto dela; ninguém poderia dizer a ele como se comportar. Jamais seria escravo de seus sentidos. Tinha sido um marido virtuoso de Anne de Borgonha, e agora se casara com aquela bela criaturinha. Mas aquilo fora, é claro, por Luxemburgo.
Não, ela não devia ter medo de que ele fosse deixar Humphrey ir para a França; e a aparência envelhecida do grande duque e um certo tom doentio na cor da pele fez com que a mente de Eleanor começasse a funcionar.
Bedford enfrentou o Parlamento, perfeitamente cônscio das críticas aos acontecimentos na França. Quando as coisas saíam erradas, o chefe era sempre considerado culpado; isso, ele aceitava. Disse que se quaisquer reclamações sobre ele tivessem de ser feitas, isso devia acontecer perante o rei e o Parlamento.
John Stafford, o bispo de Bath e Wells, levantou-se imediatamente para tranquilizá-lo, dizendo que ele e o Conselho não tinham ouvido acusação alguma daquele tipo e que conversara com o rei, que queria acrescentar seus agradecimentos pessoais aos do Parlamento pela maneira como o duque conduzira a guerra.
Na sessão seguinte do Parlamento, quando a parte financeira foi discutida, Bedford ofereceu-se a abrir mão de grande parte do dinheiro que lhe fora pago pelos seus serviços, a fim de que aquilo pudesse servir de exemplo para o povo, mostrando-lhe como era necessário fazer grandes sacrifícios para obter grandes vitórias.
Houve certos membros do Conselho que deram a entender que a presença de Bedford se fazia necessária na Inglaterra. Aquilo era um indício da impopularidade de Humphrey, e Bedford percebeu muito bem. Não confiava no irmão; sabia que ele era ganancioso e ambicioso, e ficara ainda mais depois do casamento. Mesmo assim, era totalmente impossível ele permanecer na Inglaterra, salientou ele. Tendo em vista o caminho que a guerra estava tomando, sua presença lá era necessária.
Gloucester ofereceu-se, então, para ir para a França em seu lugar, e fez observações jactanciosas no sentido de que em pouco tempo ele corrigiria a situação e os ingleses voltariam a ser vitoriosos.
Naturalmente, Bedford ficou furioso diante do que ele dava
a entender. Disse que Gloucester deveria pôr por escrito o que dissera, a fim de que Bedford pudesse entregar o documento ao rei- Gloucester não tinha vontade alguma de se meter numa discussão aberta com o irmão, de modo que retirou suas observações e sua oferta de ir para a França nem tornou a ser mencionada.
Mas havia uma reunião do Parlamento à qual o jovem rei agora com treze anos e muito sério para sua idade - tinha de comparecer.
Henrique estava mais acostumado àquelas ocasiões, agora, e invariavelmente agradava ao conde de Warwick pelo seu comportamento naquele tipo de sessões. Ele não dizia a eles que muitas vezes sua atenção se desviava e tinha de se concentrar bastante para se lembrar do que estavam falando. Mas, de modo geral, ele não as Cachava cansativas demais, embora, é claro, fossem tornar-se mais árduas à medida que ficasse mais velho.
Era frequente ele pensar na época sem problemas, ao lado da mãe e de Owen. Gostaria de vê-los mais vezes. Houve uma certa onda de sussurros sobre sua mãe e Owen. Parecia que o fato de os dois estarem tanto tempo juntos não era considerado apropriado. Henrique achava que devia ser muito agradável ser eles - vivendo tranquilamente no interior, estando juntos e não tendo de comparecer a longas sessões enfadonhas que cada vez mais estavam se inserindo na sua vida.
Ele ouviu seu tio Bedford arengando sobre os insucessos na França que tinham começado com o malsucedido cerco de Orléans.
- Orientado - disse ele - por Deus sabe lá que conselho.
Todo mundo percebeu, então, que ele estava falando de Joana d'Arc, e a mente de Henrique voltou àquele dia em que olhara pelo orifício e a vira. Achava difícil esquecê-la por completo, e de vez em quando a lembrança dela surgia de repente.
Tio Bedford era um homem muito nobre - diferente de tio Humphrey, sabia ele. Ele agora estava dizendo que voltaria à França e prosseguiria na guerra e que daria a ela toda a receita de suas propriedades na Normandia.
Para Henrique ficou claro que os que tinham ouvido as insinuações irónicas do duque de Gloucester estavam envergonhados e agora aplaudiam sinceramente o duque de Bedford.
Poucos dias depois, Bedford foi falar com Henrique para despedir-se antes de partir para a França.
- Alegro-me ao vê-lo crescer depressa, majestade - disse ele. - Daqui a alguns anos, Vossa Majestade poderá ocupar o lugar que é seu de direito e governar este país.
Henrique ficou contente ao ver que tio Bedford estava satisfeito com ele, mas na verdade não estava ansioso pela hora em que a coroa se tornasse uma realidade em vez de um terrível peso a ser usado na cabeça em ocasiões oficiais.
Não havia dúvida de que todas as partes interessadas estavam ficando cansadas da guerra e concordou-se que deveria haver uma conferência a ser presidida pelos legados do papa Eugênio. Essa conferência seria realizada em Arras e não deveria ser uma questão apenas para os franceses e os ingleses, mas vários dos Estados europeus deveriam comparecer. A guerra entre a Inglaterra e a França, pelo direito do governar a França, vinha se desenrolando fazia quase cem anos. Houve épocas em que parecia estar perto do fim, com a vitória de um lado ou do outro; depois, vinham mais vitórias, mais reveses, e as mesas eram viradas. Há pouco tempo parecera que a guerra terminara com a vitória dos ingleses, mas uma camponesa aparecera e houvera mudança novamente.
Foi um acontecimento grandioso que teve lugar em Arras no mês de julho daquele ano de 1435. Os legados papais chegaram com grande pompa, e também havia embaixadores de Castela, Aragão, Portugal, Sicília, Dinamarca, Bretanha e outros Estados. Mas os delegados principais eram os do rei da França, o duque de Bedford e o duque de Borgonha.
O duque de Borgonha chegou no dia 30, em trajes magníficos e escoltado por trezentos arqueiros, todos usando o libré borgonhês. Ele causou uma certa preocupação por sair da cidade a cavalo, a fim de encontrar-se com os cunhados, o duque de Bourbon e o conde de Richemont, porque naturalmente aqueles homens estavam lutando do lado dos franceses. Borgonha parecia estar atraindo atenção para a situação incoerente na qual ele, um membro da família real francesa, devesse estar em conflito com seus próprios compatriotas. Isso parecia significativo para aqueles que estavam cientes da tensão que existia entre Borgonha e Bedford e que nunca fora sanada desde o casamento deste, porque nenhum dos duques queria abafar seu orgulho o suficiente para aproximar-se do outro.
Era de esperar-se que fosse difícil chegar-se a um acordo. Os ingleses não queriam fazer a paz, o que sem dúvida teria significado abrir mão de tudo que parecera estar em suas mãos antes da chegada da Donzela. Sugeriram uma trégua e, talvez, um casamento entre o rei deles, Henrique, e uma filha de Carlos VII.
Não, disseram os franceses, tem de haver paz; tem de haver um fim para a guerra e para as reivindicações inglesas contra a França.
- Não temos o direito - disse o embaixador inglês - de despojar nosso rei de uma coroa à qual ele tem direito.
Ele salientou para os legados papais que, a menos que eles concordassem, não era possível Borgonha fazer a paz com a França, porque ele jurara não fazer isso sem o consentimento de seus aliados.
No que dizia respeito aos ingleses, aquilo pareceu resolver a questão. Eles iriam concordar apenas com uma trégua. Sua reivindicação da coroa da França não poderia ser posta de lado, e como os franceses não concordariam apenas com uma trégua, a conferência não precisaria ter sido convocada, a julgar pelos resultados obtidos.
Todos os pensamentos voltaram-se, agora, para o duque de Borgonha. Seu cunhado, o conde de Richemont, falou com ele muito sério.
- Você é francês no sangue - disse ele. - É francês de coração e nos desejos. Pertence à casa real. Viu esse reino praticamente destruído; viu os pobres que sofrem. Você não gosta dos ingleses. Muitas vezes, disse que eles são muito arrogantes. Mesmo agora, não mantém uma relação de amizade com Bedford. Ele insultou você e sua irmã. Você entrou nessa aliança devido ao assassinato de seu pai. Irmão duque, você não se encaixa nesse quadro.
Borgonha ouviu com atenção.
- O que você diz é verdade - disse ele. - Mas sabe que fiz promessas. Fiz tratados com os ingleses. Não quero perder minha honra.
Richemont foi insistente. Foi procurar os legados do papa.
- Enquanto o duque estiver aliado aos ingleses, a guerra continuará - disse ele. - Se pudéssemos romper essa aliança, isso significaria que os ingleses não teriam outra alternativa que não a de voltar para o país deles. Borgonha quer rompê-la. Ela é anormal. Eu lhes peço que ajudem.
Como resultado, os legados passaram horas conversando com Borgonha.
- Pelo amor de Jesus Cristo - disseram eles -, ponha um fim nesta disputa. Tire seu país da miséria. Temos ordens do Santo Padre para pedir-lhe que esqueça a vingança contra o rei da França. O senhor não deve procurar mais vingança pela morte de seu pai. Nada aumentaria mais sua fama e posição no mundo do que se perdoasse e esquecesse a injúria que sofreu. O rei da França tem um sangue muito parecido com o seu. Ele é seu parente... e no entanto, por uma questão de vingança, o senhor uniuse aos inimigos dele e aos inimigos da França.
O duque, que sempre se orgulhara de sua honra, ficou profundamente perturbado. Queria muitíssimo pôr um termo em sua aliança com a Inglaterra, mas não via como poderia desvencilhar-se do dilema em que se encontrava.
- Preciso de tempo para pensar nisso - disse ele. - É uma questão que diz muito respeito à minha consciência.
O conde de Richemont disse que ele deveria ter vários dias para pensar.
- Ele é um homem inteligente - disse ele aos legados papais. - Ele verá o que é melhor.
O duque de Bedford voltou a cavalo para Rouen. Sentia-se velho e cansado. A conferência agora em andamento em Arras era uma indicação do quanto fora perdido desde o malfadado cerco de Orléans. Desde então, sua saúde declinara com seu ânimo. Era como se uma maldição tivesse sido lançada sobre ele.
Deus sabia que ele tentara cumprir a palavra dada ao irmão, e ele sempre agira de uma forma que acreditava que iria agradálo. Aquela nobre imagem estivera sempre à sua frente, e no princípio parecera que ele não poderia tropeçar.
E então... a maré mudara, tão rapidamente, tão inesperadamente, que quase seria possível acreditar-se em influências sobrenaturais, e apesar de toda a sua perícia e dedicação, desde aquela época ele estivera envolvido numa batalha perdida.
Ele jamais compreenderia, mas nunca esqueceria aquele terrível dia em Rouen quando ficara atrás de muros de pedra mas, em espírito, estivera lá, naquela praça.
Quando as torres de Rouen foram avistadas, ele estava exausto. O que se passara com ele? Apenas havia um ano, mais ou menos, ele podia passar horas na sela e praticamente não sabia o significado de fadiga. A angústia tomara conta dele com rapidez. Ele pensava muito em Henrique, que morrera muito jovem. Tinha apenas trinta e cinco anos. E ele, Bedford, ora, ele estava com quarenta e seis - não era exatamente um jovem, de meia-idade talvez, mas velho, ainda não, sem dúvida. Jovem bastante para comandar seus exércitos por mais alguns anos.
O cardeal observava-o, preocupado. Havia algo de errado. Bedford era o último homem a demonstrar qualquer fraqueza, e agora estava cansado demais para tentar disfarçá-la. O cardeal também estava se lembrando de que Henrique V morrera de repente.
- Foi um assunto cansativo - disse ele. - Há muita preocupação com Borgonha.
- Ele é um homem honrado - disse Bedford. - Não vai achar fácil quebrar a palavra dele para comigo.
- Não - disse o cardeal -, mas acho que é apenas esse detalhe da honra que o mantém conosco.
- Se ele romper conosco - replicou Bedford -, seremos obrigados a considerá-lo como um de nossos inimigos.
- Ele sempre foi um amigo precário - respondeu o cardeal. A hipótese de um rompimento com Borgonha incomodava bastante. O rei anterior dissera que a amizade dele era essencial para eles, e isso valia tanto naquele momento quanto valera quando ele o dissera.
Estava-se num período de grande ansiedade, e Bedford achava-se exausto demais para pensar em todas as ameaçadoras possibilidades.
Assim que ele chegou ao castelo, foi direto para seus aposentos e lá ficou. No dia seguinte, sentiu-se fraco demais para levantar-se.
Sua jovem esposa foi para o lado dele, consternada. Ele sempre lhe parecera muito maduro, mas agora parecia um velho.
- Senhor duque - disse ela -, o senhor está doente.
- Cansado - disse ele -, só cansado e decepcionado. Ela ajoelhou-se ao lado da cama.
- Oh, meu senhor, o que posso fazer?
- Há pouca coisa que alguém possa fazer - respondeu ele. Ela disse:
- Posso mandar chamar os médicos - disse ela.
Ele ergueu uma das mãos para protestar, mas deixou-a cair outra vez. Estava apático demais para se importar se eles fossem ou não.
No dia seguinte, estava pedindo notícias de Arras. Não havia nenhuma.
O cardeal foi visitá-lo. Deus nos ajude, pensou ele. Parece que vai morrer.
Voltou para seus aposentos, deprimido. Rezou com fervor pela saúde de Bedford. Não tinha coragem de pensar em qual seria o futuro deles se Bedford não estivesse ali para aplicar suas sensatas e firmes opiniões.
Poucos dias mais tarde, Bedford teve febre. Seus pensamentos estavam confusos. Não tinha certeza de onde se encontrava. Pensava sempre que Anne estava perto dele e que ele não conseguia tocá-la.
Seus olhos percorriam o ambiente. Fora naquele mesmo quarto que ele ficara esperando, enquanto as multidões reuniam-se na praça. Pensou que aquilo estivesse acontecendo agora. Via Joana com aqueles calmos e claros olhos erguidos para o céu como se visse alguma coisa lá que era negada aos demais dos que estavam com ela. O que havia naqueles olhos claros e límpidos? Inocência, pensou ele. Sim, inocência de culpa, inocência do mundo, inocência do mal. Era uma bela qualidade.
- Nunca devíamos tê-la queimado como uma feiticeira balbuciou ele.
E eu... será que sou o culpado? Eu poderia ter evitado. Eles a deram aos ingleses e nós a queimamos como uma feiticeira.
Deus querido, eu tinha de fazer aquilo. Ela era uma ameaça aos meus exércitos. De que poder o Senhor dotou essa jovem, a ponto de ela poder afetar a todos nós? Nós a queimamos; mas foi o próprio povo dela que a traiu. E o rei da França, por quem ela tanto fizera, abandonou-a e permitiu que morresse... lamentavelmente... horrivelmente. E no entanto, disseram que quando ela gritoirem sua última agonia, viu-se sua alma, sob a forma de uma pomba branca, subir ao céu.
Fui eu... fui eu... mas que outra coisa eu poderia ter feito? Esquecê-la. Ela está morta. E qual será o futuro? Borgonha... Borgonha... será que você vai romper conosco? Anne... Anne não vai deixar que isso aconteça. Mas Anne se fora, e agora ele estava tentando tocá-la.
- Devíamos chamar os padres - disse Jacquetta. Todos sabiam que o fim estava muito próximo.
O cardeal sentiu um súbito desespero. O que aconteceria agora... não apenas a ele, mas à Inglaterra? O futuro de ambos parecia muito triste.
Gloucester seria, agora, o próximo na fila do trono. Se ao menos Henrique fosse mais velho; se ao menos tivesse uma mulher e um herdeiro! Mas ele ainda não passava de um menino. Seria necessário ficar de olho em Gloucester.
A morte do duque foi recebida com um silêncio chocado em toda Rouen. Começou-se a falar na Donzela. Não era estranho que o duque tivesse morrido na mesma cidade, perto da mesma praça em que Joana, a Donzela, fora morta na fogueira?
Seria uma maldição lançada sobre Bedford? Seria uma maldição sobre os ingleses?
Enterraram o grande duque na catedral de Norte-Dame, e ficou-se pensando, com desânimo, o que aconteceria agora que ele estava morto.
- Morto! - meditou Borgonha. Seu velho amigo e inimigo!
Quem teria acreditado que seria possível? Bedford, com aquela aparência de saúde rosada, parecia estar longe da morte.
E agora ele se fora e isso, é claro, fazia uma diferença total para Borgonha. Sua aliança tinha sido com Henrique V, homem que ele admirara como a nenhum outro que conhecera; Bedford seguira o irmão, e ele também o admirara. Parecera bom aliarse a homens assim. Mas agora eles estavam mortos, e sem dúvida isso poderia ser o fim de uma aliança que sempre parecera incongruente.
Ele compreendera bem Bedford. Um homem astuto, de visão muito ampla. Devia ter percebido logo que se ele, Borgonha, assinasse o tratado de Arras e seu velho amigo se tornasse seu inimigo, isso teria sido o fim do domínio inglês na França.
Os franceses estavam-no cortejando com doces promessas. Carlos rejeitava a culpa pelo assassinato do antigo duque de Borgonha. Ele declarara que aquilo não fora vontade sua. Ele entregaria os assassinos ao duque; pagaria cinquenta mil coroas de ouro pelas propriedades que tinham sido tiradas de Borgonha na época do assassinato; colocaria certas cidades nas mãos do duque. Aquilo iria recompensá-lo pelo que perdera na guerra.
Sim, pensou Borgonha, vou assinar o tratado de Arras. Os ingleses abandonaram a conferência, e agora a única pessoa com quem eu estava apalavrado está morta. Por que não devo me unir ao meu parente?
Aquela aliança ímpia deveria acabar.
Houve cenas de alegria em toda a França. Nas ruas de cada cidade, o povo de Armagnac abraçavam os borgonheses. O rei da França convocou os Estados Gerais para uma reunião em Tours e lá, ajoelhado diante do arcebispo de Creta, depois que a missa foi celebrada, jurou sobre a Bíblia manter a paz com Borgonha. Todos os nobres do país, dos dois lados da disputa, juraram com ele,
Há muito tempo - disse o rei - venho rezando por este dia feliz- Agradeçamos a Deus por ele.
As ruas ressoavam com os gritos: "Viva o rei! Viva o duque de Borgonha!"
O cardeal, triste, voltou para a Inglaterra.
Não poderia haver um golpe maior para a Inglaterra, pensou ele.
Também não poderia haver um golpe maior para o próprio cardeal.
Com aquilo, o poder de seu velho inimigo, Gloucester, aumentara.
Que Deus ajude a Inglaterra, pensou o cardeal. E que Deus me ajude.
ELEANOR, duquesa de Gloucester, estava a caminho de Eye-nextWestminster, para visitar Margery Jourdemayne.
Os esforços de Margery para fazer com que ela ficasse grávida tinham dado em nada, mas ela não perdera a confiança na feiticeira, apesar de tudo. Havia outros elementos a ser considerados, como Margery sempre salientara, e Eleanor concordava.
Ela estivera em estreito contato com Margery havia algum tempo, e andava muitíssimo animada desde que soubera da morte de Bedford. Sentia-se quase tonta de alegria quando pensava no futuro. Seu marido era o próximo na linha de sucessão do jovem rei, e até que Henrique se casasse e tivesse um herdeiro, continuaria naquela posição.
O pior que poderia acontecer a Humphrey e, através dele, a ela, seria o jovem rei ter um herdeiro.
Eleanor achava que Margery iria ser-lhe muito útil no futuro.
Aquilo era muito agradável. Quem teria pensado que o sóbrio e velho Bedford cairia de cama e faria o grande obséquio de morrer? Margery não poderia ter feito melhor, embora nenhuma feiticeira tivesse tido algo a ver com aquele feliz falecimento... a menos que fosse aquela em quem se estava sempre falando... a feiticeira camponesa de Arc.
Agora, pouco importava. Eleanor tinha de aceitar a boa sorte. Bedford morto e Humphrey a um passo do trono.
Margery adivinhara o motivo de sua visita. Margery devia saber da morte de Bedford. Havia muito pouca coisa que escapava ao conhecimento de Margery. E ela já deveria estar avaliando as possibilidades, porque Eleanor sempre fora uma cliente de prestígio, mesmo quando não passava de uma criada de mais categoria da equipe da primeira duquesa de Gloucester. Mas com que rapidez ela saíra daquela situação e subira! E quando se tornara duquesa, isso representara um triunfo tanto de Margery quanto de Eleanor. Margery sempre esperava que ela não se esquecesse disso. Gostava que seus clientes fossem agradecidos e não apenas sob o aspecto material, embora, é claro, isso fosse da máxima importância.
Ela não podia reclamar. Eleanor era generosa, e Margery estava ficando muito rica devido àquela ligação.
Eleanor foi levada à tranquilidade da cozinha de Margery, onde o caldeirão fervia e o gato preto com os maldosos olhos verdes abriu um deles para estudar Eleanor por um instante e depois tornou a fechá-lo.
Um assento para Eleanor, e outro para Margery - este uma espécie de trono com sinais cabalísticos, para lembrar aos clientes de estirpe que Margery era a rainha de seu domínio.
- Senhora - disse Margery, tateando -, espero que esteja bem de saúde.
- Podia ser melhor - disse Eleanor secamente, o que era uma referência à sua impossibilidade de anunciar uma gravidez.
Não vamos mais tratar disso, pensou Margery. O filho é teimoso. Ele não quer nascer.
- Deve estar contente com a situação, senhora duquesa prosseguiu ela. - O senhor duque melhorou de situação no mundo depois que a vi pela última vez, não?
- Bedford morreu... - disse Eleanor. - Isso deixa meu marido a um passo do trono.
- Perto - concordou Margery. - Mas um passo mede quase um quilómetro, se nunca for dado.
Eleanor suspirou. E então olhou de frente para Margery.
- Ele tem de dar esse passo, Margery - disse ela, decidida. Margery pareceu teimosa. Apertou bem os lábios e abanou a
cabeça.
- Ele nunca poderá ser dado, senhora...
A melhor maneira de fazer subir o preço era declarar, primeiro, a impossibilidade, deduzia Margery. E pelos meus feitiços e poções, preciso ser bem paga para me meter em assuntos da realeza.
- Poderia ser dado - disse Eleanor. - Sem dúvida que há meios.
- Minha senhora, a senhora poderia trazer a ruína para todos nós. A fogueira para mim, e o que para a senhora? Talvez não isso... mas não me surpreenderia se fosse um destino terrível.
- Ora, pare de dizer esses absurdos, Margery. Se Humphrey fosse o rei, eu seria a rainha. Eu providenciaria para que você fosse protegida, e quem teria a ousadia de tocar numa rainha?
Margery ficou calada. Às vezes, a ambição da senhora surpreendia até a ela. Ela se tornara duquesa de Gloucester. Será que isso não é suficiente? Não, parecia que a senhora duquesa estava de olho na coroa.
- Tudo vai ser diferente, agora - continuou Eleanor, entusiasmada. - Já mudou. Você não sente, Margery? A coisa está no ar.
- Oh, sim, eu sinto - disse Margery. - Posso sentir, também, as chamas avançando pelas minhas pernas. Dizem que colocam óleo na fogueira para fazer com que ela queime mais depressa.
- Que ideias que você tem! Não haverá possibilidade de problemas, isso eu lhe prometo.
- com todo o respeito, não vejo como a senhora poderia evitar. A senhora sabe... tanto quanto eu... o que aconteceria se fosse apanhada, digamos, com qualquer coisa que pudesse indicar que estava trabalhando contra o rei. O rei, senhora duquesa. O nosso rei.
- Ele não passa de uma criança boba... nada mais.
- Ele é um menino que vai crescer. Nós todos já fomos crianças.
- Já, e algumas de nós sabiam o que queriam desde o começo.
- Talvez ele saiba, tal como a senhora sabia.
- Que importância tem isso? Eu sei o que quero agora. E quero que Humphrey...
- A senhora quer que seu marido seja o rei deste país.
- Não fique tão chocada, Margery. Ele é o próximo na linha de sucessão. Ele é filho de Henrique IV
Margery ficou calada, olhando para suas mãos de ossos grandes, que estavam pousadas no colo.
Depois, soltou um suspiro e dirigiu-se à cera. Colocou-a perto do fogo e começou a moldá-la.
Eleanor observava-a, sôfrega.
Quando Margery terminou, a figura apresentava razoável semelhança com o rei.
Ela não contaria a ninguém - nem mesmo a Humphrey - sua visita a Margery. Ele não sabia de sua conexão com a feiticeira, de modo que não era necessário contar agora. Humphrey era imprevisível. Quem sabia o que iria dizer se descobrisse que se casara com Eleanor em parte porque uma feiticeira o ajudara a cair na armadilha que lhe tinham preparado?
Claro que ele estava muito contente. Não seria mais encoberto por um irmão mais velho que todo mundo considerava um homem virtuoso e nobre. Estava livre. Não teria mais de responder perante ele por coisa alguma.
As pessoas estavam ainda mais subservientes para com ele do que antes. Ele subira um degrau na escada. Não era impossível ele ser, um dia, o rei daquele país. As pessoas tinham de agir com cuidado. Elas poderiam estar falando com o futuro rei.
Sua natureza vingativa fez com que ele olhasse à sua volta para ver se haveria quaisquer desfeitas a ser vingadas. O maior de seus inimigos era seu tio, o cardeal Beaufort. Ele ficou imaginando como Beaufort estava se sentindo a respeito da morte de Bedford. Um tanto aflito, disso Humphrey estava certo. Pois que continuasse assim. Agora, o duque de Gloucester era um homem muito poderoso.
O cardeal voltara chorando e se lamentando por causa do rompimento da aliança com Borgonha. Gloucester vociferava contra o duque, chamando-o de traidor. Mas pouco importava, mostrariam a ele que a deserção do duque de Borgonha nada significava para os ingleses.
- Iremos lá e vamos reconquistar tudo o que perdemos declarou ele.
Seu Conselho estava indeciso. Beaufort, em cujo bom senso muitos deles confiavam, era de opinião de que eles deveriam buscar a paz.
- Pensem na nossa situação lá - disse Beaufort. - Perdemos bastante desde o cerco de Orléans. A maré virou contra nós, e isso acabou na grande calamidade da perda da amizade de Borgonha.
- Ela não valia grande coisa - disse Gloucester.
- Seus finados irmãos eram de opinião de que ela era de grande valia - respondeu Beaufort.
- Ora, ficou provado que não valia nada. Borgonha nos enganou.
- Ele nunca nos enganou. Ele fez o tratado com seus irmãos, não com a Inglaterra. Os dois já morreram... que Deus nos ajude... e, portanto, Borgonha pode liberar-se de forma honrosa o que fez. Devido a isso, está na hora de pensar em fazer a paz na França.
O cardeal era um traidor, declarou Gloucester ao Conselho. Estava trabalhando do lado da França. Talvez esteja recebendo suborno dos franceses, já que está tão ansioso assim por fazer com que haja paz.
Os conselheiros deram de ombros. Nunca haveria um fim para aquela desavença entre o cardeal e seu sobrinho, até um dos dois morrer.
Gloucester queria ir para a França. Levaria um exército, e prometia a eles que em pouco tempo reconquistaria tudo o que tinham perdido.
Será que algum dentre eles acreditava nele? Talvez não. Mas ficou decidido que ele deveria ir.
Eleanor ficou irritada, mas não demonstrou. Ir para a França não era modo de garantir um trono. Além do mais, estava certa de que ele não brilharia como herói militar. Sabia que ele sempre pensava que faria sucesso, mas havia uma diferença enorme entre sonhos e realidade.
Ele estava encantado com a ida à França. Ora, que fosse. Precisava, uma vez mais, aprender uma lição.
Por que ele queria ir à França?, refletia ela. Reconhecimento rápido? Glória militar? Será que realmente pensava que isso era conseguido com facilidade? Seus irmãos tinham sido homens excepcionais - grandes soldados, grandes estadistas. Ninguém sabia melhor do que Eleanor que seu Humphrey não era nem uma coisa nem outra. Era ela que tinha de fazer planos em nome dos dois. Mas que ele fizesse o que pretendia. Jamais ficaria satisfeito se não conseguisse.
Ele tinha de desafiar Beaufort. Este achava que devia haver paz. Portanto, Humphrey achava que devia haver guerra.
Bedford conquistara a aclamação - na fase anterior ao cerco de Orléans, e portanto Humphrey tinha de conquistar a fama.
Mas essa fama não iria durar.
Pelo menos Warwick e Stafford estavam com ele, de modo que poderia não ser um desastre total. Talvez o salvassem disso. Poderia, até, ser uma vitória gloriosa. Nesse caso, os serviços de Warwick e Stafford seriam esquecidos - a serem lembrados apenas se houvesse uma derrota.
Eleanor estava certa. Houve uma rápida escaramuça em Flanders, da qual Gloucester saiu sem conseguir grande coisa; então ele decidiu que não poderia conduzir a guerra daquela maneira. Tinha de voltar para se consultar com o Conselho.
Estava claro que ele estava farto da guerra. Jamais se destacaria nela. Queria voltar para sua terra natal, para a possibilidade de se tornar o rei da Inglaterra e para o leito quente de sua ainda atraente mulher. Assim, poucos meses depois de partir, ele estava de volta à Inglaterra.
A existência na mansão de Hadham era muito agradável. O apaixonado amor entre a rainha Katherine e Owen Tudor transformara-se numa firme devoção. Estavam totalmente satisfeitos um com o outro e com a feliz e pequena família que Katherine dissera, de forma compreensível, que aumentava com o passar dos anos. Havia, agora, Edmund, com seis anos de idade, seguido de Jasper, mais ou menos um ano mais moço, e Owen e Jacina. Todos viviam tranquila e simplesmente, e à medida que o tempo passava parecia que os visitantes se tornavam menos frequentes.
- Que é como eu mais gosto - disse Katherine. - Devo confessar, Owen, que fico um pouco amedrontada quando chega gente em Hadham.
- Eles agora nos esqueceram - replicou Owen. - Enquanto não interferirmos nos planos de homens ambiciosos, ninguém pensará em nós.
Ele não sabia o quanto de verdade havia em suas palavras.
A propriedade era agradável, bem fora do comum. Katherine tornara-se a dona da casa - agora nunca pensava em ser uma figura da realeza. A fase real não lhe trouxera a felicidade daquela existência tranquila. Orgulhava-se muito de supervisionar a criadagem. Parecia ser da máxima importância o fato de que se deveria ter carneiro grelhado no almoço; e se deveria ser peixe fresco ou conservado em sal às sextas. Ela sempre se levantava às sete da manhã e ia até a capela ouvir as matinas em companhia de Owen. Disse a Owen que tão logo Edmund crescesse o suficiente, iria acompanhá-los. Ele riu. Lembrou a ela que o filho mais velho ainda era pouco mais do que um bebé de colo.
- Em breve se tornará um rapaz - disse ela, confiante em que aquela vida tranquila continuaria para sempre. Ela aprendera a tecer e transformar os resultados de seu trabalho em vestidos para ela e para os filhos. Sabia usar o tear como qualquer matrona, dizia ela; assim como bordar como qualquer mulher nobre. Sabia usar a máquina para segurar a lã a ser penteada com a eficiência de qualquer uma de suas empregadas; ficava alegremente ocupada na copa e exultava com seus triunfos ali e lamentava os fracassos, os quais, afirmava orgulhosa, eram muito poucos. Cuidava dos filhos como poucas mulheres nobres e alegrava-se com o fato de poder passar tanto tempo com eles. Muitas vezes pensava em sua amarga infância e comparava o destino dos filhos com o dela.
Felizes, felizes Tudorzinhos - pensava ela.
Ah, ela poderia ter falado com eles sobre o terror de ouvir os gritos de um pai louco, o terror a que crianças podiam ser subflietidas pela cruel negligência de uma mãe malvada.
Mas espero que eles jamais venham a conhecer nada parecido, pensava sempre ela.
E Owen declarava ser o homem mais feliz sobre a Terra. Era o escudeiro e era marido dela, e eles tinham chegado a um acordo quanto à posição deles, de modo que não tinha a menor importância o fato de ela ter nascido uma princesa da França.
Havia momentos em que ela pensava no seu primogénito. Pobre Henriquinho. Ele agora estava com quinze anos, e já estavam pensando em arranjar-lhe um casamento. Ela esperava que não fosse já e que a mulher que viesse o fizesse feliz. Ele tinha sido um menino bom e dócil, e ela estava perfeitamente certa de que o conde de Warwick fizera com que continuasse assim.
E assim os dias felizes passavam com poucas notícias do mundo exterior. Nem eles as queriam. Tudo o que pediam era que continuassem a viver em seu pequeno mundo, desfrutando de cada dia à medida que ele chegava; contentes com o amor de um pelo outro e com a família que aumentava.
Era primavera, e a floração começava a aparecer nas árvores frutíferas no pomar e havia ovelhas de cara preta brincando nos campos. Katherine e Owen saíram juntos a cavalo pelos bosques e lembravam-se dos primeiros tempos em que tinham começado a se conhecer.
Sob as árvores, as campainhas curvavam a cabeça diante dos ventos brandos e a fragrância da terra úmida estava no ar.
Isso é felicidade, pensou Katherine. Tudo o que acontecera antes valera a pena, para resultar nisso.
Ela havia parado o cavalo e Owen levara o dele para esperar ao lado dela.
Ela se voltou para ele e sorriu. Ele compreendeu. com frequência era isso que acontecia, e havia ocasiões em que eles não sentiam necessidade de palavras.
Eles voltariam para a casa onde os cheiros da carne assando provocariam o apetite e eles iriam até a ala infantil para brincar um pouco com as crianças e ouvir as narrativas do drama e da comédia da ala infantil. Que o jovem Edmund deixara o tutor pasmo com sua percepção da leitura; que Jasper escrevera o nome dele; que o jovem Owen jogara o peixe e o ovo no chão; que a pequenina Jacina dera três passos sem ajuda de ninguém.
Todos aqueles assuntos pareciam muito importantes. Katherine adorava o significado das pequenas coisas. Os problemas domésticos lhe pareciam muito mais importantes do que todas aquelas disputas de que ela se lembrava da época de sua infância: desavenças entre casas nobres e da predominância dos borgonheses sobre o povo de Armagnac, as incapacidades de seu pai e os amantes de sua mãe.
- Eu nunca, nunca vou me esquecer - disse ela a Owen.
- E nunca deixarei de comparar o Agora com o Antes.
Ele compreendia, como sempre.
- Meu amor - disse ele -, farei tudo o que estiver ao meu alcance para que isso fique tal como está, até o fim de nossas vidas.
- Vamos sair juntos, Owen - disse ela, num medo repentino. - É isso que eu peço aos santos. Vamos ficar assim até chegar a hora, e então vamos partir juntos.
Foi isso que ela disse naquele dia no bosque de campainhas. Tinha algo importante para dizer a ele.
- É - disse ela. - Outra vez. Mais um pequenino. Vai levar algum tempo. Eu só tive certeza ontem.
- O bebé será tão bem-vindo quanto os outros o foram disse ele.
- As vezes penso que nossos filhos são os filhos de mais sorte do mundo - respondeu ela.
Uma nuvem passou pelo rosto dele, então.
- Katherine... amor - sussurrou ele. - Não provoque o destino.
Ela deu uma risada. Ah, estava feliz naquele momento. Muito certa da felicidade.
Quando voltaram para a mansão, um mensageiro chegara. O rei estava se dirigindo para lá.
Os dois se abraçaram calorosamente. Aquela era uma visita informal, tanto quanto qualquer coisa que Henrique fizesse pudesse ser informal naquela época. Ele agora estava com quinze anos; começava a deixar a infância para trás; e a fase em que vivera naquela ala infantil capitaneada por Joan, Alice e sua mãe parecia muito longe, embora ainda se lembrasse dela com uma terna nostalgia.
Katherine ficou encantada ao vê-lo-embora ele tivesse crescido longe dela e agora parecesse distante comparado com a importância em sua vida dos pequenos Tudor.
- Eu gostaria de vir vê-la com mais frequência - disse-lhe Henrique -, mas eles estão sempre querendo que eu esteja em lugares diferentes, e muitas vezes estou em Westminster, porque tenho de comparecer ao Parlamento e às reuniões do Conselho.
- Você deve estar ficando muito entendido em assuntos do Estado.
Henrique ergueu os ombros.
- Ainda sou censurado quando minha atenção se desvia... como muitas vezes acontece. Eles falam muito, querida senhora. Às vezes, quase me fazem dormir.
Katherine soltou uma risada, e a cada minuto que ficava na companhia dela, Henrique parecia tornar-se um menino outra vez.
Ele disse a ela que só poderia ficar por um dia. Partiria no dia seguinte.
- Seja bem-vindo, meu filho-disse Katherine.-Mas tem de nos perdoar se não o instalarmos como você está acostumado. Aqui em Hadham não estamos habituados a receber membros da realeza.
- Venho como seu filho, mãe querida, não como o rei.
- Ah, neste caso - disse Katherine, alegre -, talvez possamos dar um jeito.
Na cozinha, estavam preparando um banquete especial.
- Não duvido - disse a cozinheira - de que vamos ter o rei aqui mais vezes, agora que ele está ficando homem e pode fazer mais o que tem vontade.
A opinião geral era de que aquilo se tratava de um bom sinal. O rei os visitava, e isso significava, sem dúvida, que aceitava a união de sua mãe. Os membros da criadagem ficavam um pouco perturbados, o que era compreensível, devido a todo o segredo que tinha de ser mantido, e embora com o passar do tempo esse segredo tivesse ficado muito atenuado, o casamento da rainha com Owen Tudor não fora oficialmente reconhecido.
Henrique, no entanto, até aquele momento não sabia da natureza do relacionamento de sua mãe com Owen. Suas visitas eram muito raras e curtas, e quando ele ia estava invariavelmente em companhia de homens poderosos e notáveis.
Daquela vez, estava com um grupo muito pequeno de amigos, e Katherine soube logo o motivo. O próprio Henrique lhe disse.
- Warwick está indo para a França. Ele foi nomeado regente, depois da morte do tio Bedford.
- Ah, isso foi uma tragédia. Eu gostava do seu tio Bedford... Ela ia dizer "mais do que do irmão dele, Gloucester", mas Owen a avisara para ter cuidado com o que dissesse na presença do rei. Não que Henrique fosse querer prejudicá-la; era um filho dedicado; mas não passava de um menino, e se ela dissesse alguma coisa indiscreta, isso poderia ser divulgado por ele sem querer. "Todo cuidado é pouco", acrescentara Owen.
- Ele era um grande homem - disse Henrique. - Mas nunca foi o mesmo desde que haviam queimado Joana d'Arc.
- Isso foi há muito tempo.
- Não... não... querida mãe. Faz só cinco anos... mas não se pode esquecer isso com facilidade - ele franziu o cenho de repente. - Eu a vi... muito rapidamente.
Eles a mostraram para mim na cela dela. Ela não me viu, porque olhei por um buraco na parede. Só um pouco... e no entanto, eu me lembro dela.
- Foi um caso muito estranho - disse a rainha. - Você estava me dizendo que o conde de Warwick está indo para a França. Você vai sentir saudades dele.
Henrique confirmou com um gesto da cabeça.
- Ele foi muito rigoroso. Muito diferente da senhora, de Alice e de Joan, mas eu fiquei gostando dele. Creio que seja um grande homem, e ele tinha de tentar me tornar digno de minha coroa.
Katherine puxou-o para si e de repente deu-lhe um beijo. Naquele momento, ele lhe parecia seu filhinho.
Ela deu uma risada - aquele riso infantil que ecoara pela infância dele e do qual ele não percebera, até aquele momento, a falta que tanto sentira.
Katherine afastou-se dele, mas continuou a segurá-lo pelos ombros.
- Estou esquecendo - disse ela. - Este é o nosso rei... não é mais meu filhinho.
A realeza o deixou; ele envolveu-a nos braços.
- Mãe querida - disse ele -, gosto muito quando sou apenas seu filhinho.
Ela estava afastando as lágrimas dos olhos.
- Você tem de me desculpar, meu querido pequeno senhor - disse ela. - Eu sou assim. Owen diz que sou facilmente levada às lágrimas e à risada...
- Owen? - disse ele. - Ah, Owen. Ele ainda está aqui?
- Você gostava dele, não é? Isso me alegra, Henrique. Fico muito contente, porque...
- Sim, mãe querida?
- Mais tarde - disse ela. - Mais tarde.
Mas Katherine não podia ficar com aquilo dentro de si. Sentia-se muito feliz. Por que não deveriam eles - ali, naquele refúgio seguro - estar juntos como uma família feliz?
- Henrique - disse ela -, alguma vez você se perguntou por que eu estava tão contente por viver aqui sozinha?
Ele abanou a cabeça. Não disse que estivera tão ocupado aprendendo a ser rei que não tivera tempo de pensar nela.
- Eu fui muito feliz, Henrique. Eu SOM muito feliz. E você imagina por quê? Por quê?
- Diga-me.
- Você sempre gostou de Owen Tudor, não é?
- Owen. Ah, sim, claro. Eu adorava Owen.
- Isso me encanta. Eu também gostava, Henrique. Eu também gosto.
Ele olhou para ela, incrédulo, e ela continuou:
- Owen é meu marido. É por isso que tenho estado contente esses anos todos.
Henrique sorriu, descontraído.
- Oh... minha querida senhora mãe... a senhora tem um amor secreto!
Ela segurou-lhe o braço.
- Henrique, você não ficou contrariado?
- Contrariado! A senhora e Owen! Eu amo os dois. Onde está Owen?
- Você irá vê-lo daqui a pouco. Ele não se esquece de que você é o rei. Ele se mantém afastado da realeza até ser chamado para se apresentar.
- Ele agora é meu padrasto.
- Estou vendo que a ideia não o desagrada.
- Tenho de cumprimentar a senhora... e ele.
- Ó Henrique, como me sinto feliz por você ter vindo! Que saudade tenho tido de você, e como gostaria de que pudéssemos estar todos juntos!
- A senhora e ele devem ser muito felizes aqui.
Os olhos de Henrique estavam pensativos. Ele pensava na corte que o cercava. Nos homens importantes que se curvavam tão servilmente e, no entanto, viviam lhe dizendo o que fazer. Ali no interior a vida devia ser maravilhosamente livre.
- Somos. E Henrique. Há mais uma coisa. Venha comigo. Ela o levou até a ala infantil. As crianças estavam todas lá. O jovem Edmund foi imediatamente para perto da mãe e ergueu os olhos para Henrique. Jasper saiu cambaleando atrás dele.
Katherine colocou as mãos da cabeça de Edmund e ergueu Jasper.
- Os pequeninos Tudor - disse ela. - Seus meio-irmãos, majestade.
Henrique ficou perplexo por um instante, até que atinou com a verdade. Então, começou a sorrir; ajoelhou-se para conversar com Edmund. Estava nitidamente encantado com os irmãos.
- E você não deve desprezar Owen, nem mesmo a pequenina Jacina. Eles vão ficar muito decepcionados.
- Mãe querida, e esse tempo todo a senhora estava aqui, criando uma família!
Ele admirou as crianças. Estava nitidamente contente e encantado.
- Agora, nós não temos segredos - disse Katherine. Sempre odiei guardar segredos de você.
- Querida senhora - disse ele -, por que esse casamento é mantido em segredo?
- Mas é claro que você sabe. Vão dizer que é um casamento com desnível de classes... Eu, princesa da França, rainha da Inglaterra, mãe do rei, casada com um escudeiro!
- Mas Owen TUdor... - começou Henrique.
- Sempre me disseram que eu tinha um filho muito inteligente. Sim... Owen Tudor. Aí está a resposta. O melhor homem que já existiu, o meu Owen. Venha, Henrique, agora já sabe que ele é seu padrasto. vou pedir a ele que se junte a nós.
Owen ficou perturbado, como Katherine sabia que ficaria, ao descobrir que ela revelara o segredo deles.
- Já era tempo do meu filho saber que tem uma família disse a rainha.
Henrique sempre gostara de Owen; e estava bem preparado para aceitá-lo como padrasto. Conversou à vontade, e grande parte de sua reserva desapareceu na companhia da mãe e do padrasto.
Falou-lhes sobre a vida sob a tutela do conde de Warwick. Disse que o conde insistira para que ele se destacasse nos esportes equestres, e que quando foi ao exterior mandara fazer para ele um arnês guarnecido de ouro. Falou muito sobre a estada dele na França e disse o quanto odiou ter sido coroado em Paris.
- É deprimente sentir que o povo não nos quer. Eu não queria ser o rei da França. De qualquer modo, eles já tinham um rei. Foi corado em Reims, o local adequado para os reis da França serem coroados. Foi Joana d'Arc que providenciou isso.
A expressão dele se fechou, e sua mãe sentiu que ele continuava a ficar perturbado com Joana d'Arc. Eles nunca deveriam ter deixado que ele a visse. A mulher era uma feiticeira, e estava claro que lançara um feitiço sobre ele.
Mas a melancolia dele não durou muito. Estava encantado por se achar no centro de uma família.
O rei estava triste quando se despediu da mãe e do padrasto.
Humphrey de Gloucester ficou muito satisfeito com o fato de Warwick ter sido mandado para a França como regente. Ele mesmo poderia ter ido. Não, isso não teria sido prudente. Eleanor dissera que ele devia permanecer na Inglaterra agora e, como sempre, estivera certa.
O rei estava com apenas quinze anos - ainda era menor de idade; e como o próximo na sucessão, Humphrey estava mais perto dele do que ninguém.
Eles tinham um grande interesse em comum. Muita gente ficara impressionada com o amor de Humphrey pela literatura. Quando ele estava cercado por literatos, seu caráter parecia mudar. Gostava muito de conversar e parecia despir-se de sua arrogância e de suas ambições obsessivas na companhia deles, formara uma coleção de livros raros e de vez em quando isolava-se para ler. O intelectual parecia totalmente diferente do sensual homem mundano. Era como se duas pessoas espreitassem por trás daquela fisionomia outrora tão bonita e agora muito depravada.
Humphrey cuidara da educação do sobrinho e incutira nele o amor pela literatura. Era o único campo em que os dois podiam se encontrar, e Humphrey ficou encantado por descobrir no rei um aluno aplicado. Henrique gostava do estudo dos livros, em vez dos esportes ao ar livre, e quanto a isso ele e Humphrey estavam afinados.
- Quando você tiver o poder - dissera Humphrey -, deverá fazer o possível para estimular a cultura. Deverá manter as universidades ricas e capazes de cumprir sua função. Deverá estimular homens de letras.
Henrique garantia ao tio, com fervor, que faria isso.
Os dois tinham visitado as universidades juntos. Foram a Oxford, Cambridge e Winchester; Henrique estava muito interessado na nova universidade de Caen, que seu tio Bedford fundara.
Assim, ele e o tio Humphrey eram felizes junto dos livros, porque Henrique adorava mexer em livros, adorava a emoção de abri-los e descobrir-lhes o conteúdo.
Mas ele também estava cônscio do outro lado de Humphrey, e este parecia menos interessado nos livros desde seu casamento com a nova duquesa.
Henrique não gostava de Eleanor. Às vezes, sentia-se verdadeiramente constrangido quando ela estava perto. Erguia os olhos de repente e via os dela fixos nele, e havia neles uma expressão que ele não compreendia.
Foi durante uma daquelas agradáveis sessões com o tio Humphrey que ele falou de sua visita a Hadham.
Eles estavam na biblioteca de Humphrey, e este havia falado por algum tempo sobre um livro que queria que Henrique lesse.
- Depois que você o ler, acho que vai concordar comigo que o autor deveria ser estimulado. Talvez uma pequena pensão...
Henrique concordou, entusiasmado.
- Ele mora em Hertfordshire - prosseguiu Humphrey. Mandei dizer a ele que viesse me procurar. Há um ou dois detalhes que quero discutir com ele.
- Estive em Hertfordshire há pouco tempo - disse Henrique. - Se eu tivesse sabido... Poderia ter mandado chamá-lo. Eu estava visitando minha mãe.
Ele não percebeu que Humphrey ficara mais alerta.
- E como estava a rainha?
- Muito, muito feliz...
- Não diga.
- Não sei por que devia haver esse segredo. Owen é um homem bom... Ele é digno sob todos os aspectos.
- Ouvi algumas coisas sobre a rainha e Owen Tudor.
- Ele é meu padrasto.
- Ah, corria um boato. Eu sabia que ele era o amigo dedicado da rainha... mas casamento! Existe uma lei, sabe?, sobre o casamento de pessoas como a rainha.
- O laço está dado, agora. Os dois estão muito contentes. Têm filhos, também. Quatro. O jovem Edmund é um menino muito inteligente, e acho que Jasper também vai ser.
O duque de Gloucester parecia ter-se esquecido do autor no qual estava tão interessado.
- Então... você aceitou o seu... hmm... padrasto.
- Aceitar? Ora, não se tratava de aceitá-lo. Ele existe. E é um homem interessantíssimo. Eu estava falando com eles sobre a minha coroação na França e sobre como o povo se sentia... e ele disse que aqui o povo me amava, e isso é importante.
- É, mesmo. Mas também é importante que seus súditos franceses também gostem de você.
- Owen disse que eles nunca chegarão a esse ponto. Eles se consideram franceses, e vão continuar franceses. Diz ele que acontece a mesma coisa, de certo modo, com os galeses. Ele é galês, como sabe.
- Seu tio Bedford nunca confiou nos galeses.
- Tio Bedford nunca confiou em ninguém.
- Muitas vezes é sensato não confiar demais.
- Owen disse...
Gloucester não estava interessado no que o Owen dissera, mas ficou perturbado com a frequência com que o escudeiro galês aparecia na conversa.
Era evidente que Henrique estava impressionado com o padrasto.
- vou tornar a visitá-los em breve - disse ele. - Gostei muito de estar com eles. Minha mãe ainda é tão... jovem. Ela tem um riso muito alegre, e é interessante conversar com Owen... e as crianças são divertidas.
O duque de Gloucester estava ficando cada vez mais pensativo.
- Eu seria cauteloso quanto a visitá-los - disse ele. Henrique pareceu orgulhoso.
- Eu sou o rei - disse ele. - Faço o que quiser.
Eleanor quis saber o que ele tinha em mente.
- O jovem Henrique esteve em Hadham e conheceu o padrasto e os novos filhos de sua mãe - disse ele.
- Aquela maluca casou-se mesmo com o escudeiro galês?
- Se casou ou não, ela vive com ele e teve quatro filhos.
Eleanor sentiu uma raiva súbita tomar conta dela. Quatro filhos! E ela não conseguia ter nem ao menos um!
- Isso deixa você perturbado - disse, tensa.
- Ela pode ter cinquenta filhotes, se quiser. O que me perturba é a satisfação do rei em relação a eles. Falou que irá visitálos mais amiúde, e quando o lembrei de que isso poderia não ser prudente, ele me fez lembrar de que ele é o rei.
- Todo-poderoso, hein? - disse Eleanor. - O adolescente está ficando homem. O rei, não é? Ora, isso é tão martelado na sua cabeça, que não é de surpreender que a essa altura ele saiba que é.
- Ele está nitidamente caído de amores pelo escudeiro galês. É o Owen disse isso, o Owen faz aquilo. Por Deus, fica-se pensando que Owen é o papa.
- É óbvio que se deve mostrar que Owen não é o papa. Não é nem mesmo um duque. Mas um simples escudeiro galês que conseguiu, graças a uma beleza excessiva... presumo que seja beleza... enfiar-se na cama da rainha.
- Segundo Henrique, eles formam um casal muito feliz disse Gloucester.
- Tenho certeza de que Owen é feliz. Quem não seria? Eleanor ficou séria de repente. - O que você vai fazer com relação a isso?
- Fazer? O que posso fazer?
- Ora, você não permitirá que Owen se torne o assessor principal do rei, não é? Nem trará a mãe dele de volta à vida dele.
- Eles querem só levar a vida deles no interior.
- Ninguém quer apenas levar a vida no interior.
Eleanor, com sua presunçosa ambição, não conseguia compreender a falta dessa ambição nos outros; estava certa de que ela existia e que as pessoas fingiam que não, a fim de satisfazê-la mais depressa.
- Eu acho que eles querem.
Ela despenteou os cabelos dele com as mãos e beijou-o na boca.
- Você às vezes é um cavalheiro muito romântico, caro marido.
- Sabe - disse ele -, a rainha, na verdade, tem uma alma simples.
- De fato. A princesa da França que se casou com o rei da Inglaterra e obedientemente gerou o herdeiro do trono! Ela odiou ter de afastar-se dele, não foi?
- Ele é filho dela.
- Ele é o rei. Não, eu lhe digo que Katherine não é tão simples assim. Ela sabe como conseguir o que quer. Gosta de um escudeiro e por isso se envolve num relacionamento secreto com ele, embora saiba que o Conselho jamais teria permitido isso. Katherine não tem nada de simples. E agora, quando o nosso querido reizinho vai visitá-la, mostram a ele as delícias da vida doméstica. O querido Owen é muito bom para ele. A mãe o adora. Ora, Humphrey, o que você está pensando? Eles querem assumir o controle do rei.
Ele olhou firme para ela.
- E se for isso... o que posso fazer?
- O que você pode fazer? Você pode agir, Humphrey. E isso que você pode fazer. Ora, existe uma lei que diz que as mulheres nobres como a rainha não podem se casar sem o consentimento do Conselho. Você apresentou o projeto dessa lei. Já se esqueceu?
- É possível que os dois tenham se casado... antes...
- Antes ou depois, o que importa? Pode ser que não estejam casados coisa nenhuma. Trata-se de uma união ilícita, e uma união da qual não se pode deixar que a rainha participe.
- Do que adiantaria rompê-la?
- Adiantaria muito, Humphrey. Henrique está crescendo. Quer que ele se volte para alguém que não seja você? A mãe terá uma grande influência sobre ele. Já começou a ter. E o nosso escudeiro galês, o querido padrasto, estará assessorando-o dentro em pouco, quando o nosso Henrique estiver um pouco mais certo de si mesmo - e isto está acontecendo rápido. Você não teve sua atenção chamada, pelo que presumo com uma certa aspereza, para o fato de que ele era o rei? Claro que se quiser ser derrubado de seu posto de assessor principal pela rainha e seu amante, não faça nada. Deixe Henrique visitar Hadham. Deixe que eles lancem seus feitiços à volta dele. O que importa se Humphrey de Gloucester for afastado em favor de uma rainha frívola e de um escudeiro de classe baixa?
Não havia dúvida de que Eleanor sabia provocar o marido a tomar uma providência.
- Eu poderia prender Tudor por infringir a lei - disse ele.
Ela se aproximou e, passando o braço pelo dele, aninhou-se contra ele.
.- Agora você está falando mais como o grande duque.
No íntimo, ela estava sorrindo. A influência deles devia ser eliminada. Margery Jourdemayne parecia estar perdendo seu poder de magia. Embora alfinetes fossem enfiados na imagem do rei em cera, nada acontecera. Ele ainda gozava de boa saúde.
- Com um rei, demora muito - explicara Margery. Talvez. Mas quando se dispunha de grandes planos, não se queria que os olhos carinhosos de uma mãe vissem demais.
Deveria ser mais fácil afastar a família Tudor da esfera de influência do que trazer um filho ao mundo e fazer com que um menino deixasse este mundo.
O verão estava passsando, mas ainda havia dias agradáveis em que se podia ficar sentado no jardim. Katherine estava chegando ao fim da gravidez. Já havia uma parteira na casa, e ela estava esperando que a criança nascesse a qualquer momento. Owen estava do lado, cuidando muito dela. Edmund observava-a, curioso. Tinham dito que ele deveria esperar a chegada de um novo irmão ou de uma nova irmã. Jasper, que era de um avanço fora do comum para a sua idade, disse que queria mais uma irmã e não aceitaria outro irmão. Ele já estava com dois irmãos, e sua irmã Jacina era a de quem mais gostava.
- Você vai gostar muito da criancinha, seja ela menino ou menina - disseram-lhe.
- vou mesmo? - disse ele, na dúvida.
E ali estavam eles naquele dia fatídico em que uma das criadas foi ao jardim anunciar a chegada de visitantes.
- Quem será? - disse Katherine começando a se levantar.
- Talvez seja alguém que veio nos dizer que Henrique se encontra a caminho.
- Fique onde está. Eu vou ver - disse Owen. Katherine se voltou. Homens estavam pisando no gramado.
Dois deles se adiantaram e ficaram um de cada lado de Owen.
- O senhor é Owen Tudor, escudeiro galês da rainha Katherine? - ouviu ela um deles dizer.
- Sou.
- Temos de cumprir nosso dever e prendê-lo. Katherine, aterrorizada, sentiu o coração dar saltos. Ela adiantou-se.
- com base em quê? - bradou a rainha.
- Em nome do rei - disse o capitão da guarda. Katherine começou a correr.
- Owen... Owen... fique aqui... Não vá.
Ele estava olhando para ela por cima do ombro. Ela viu a angústia nos olhos dele e sentiu que enquanto vivesse nunca esqueceria a expressão do rosto dele naquele momento.
- Katherine... minha... rainha.
As palavras pareciam escapar dos lábios dele. Estava com os braços estendidos. Cambaleante, ela foi em direção a ele. Alcançou-o e caiu neles.
- Owen... Owen... o que significa isso...?
- Não sei. Não pode ser grande coisa. Não fiz nada de errado. Em pouco tempo isso será explicado.
- Não será... não será - exclamou ela. - Eles o estão tirando de mim... Era o que eu sempre temia.
- Temos de ir, agora - disse o capitão, quase com delicadeza.
- Eu quero uma explicação - bradou a rainha.
- A senhora vai recebê-la.
- Não permitirei que ele vá. Não permitirei - bradou Katherine. - O senhor sabe que eu sou a rainha?
- Sei, majestade, mas a ordem do rei foi esta.
- O rei. Meu filho. Levem-me à presença dele.
- Temos ordem de levar o escudeiro, majestade. Venha, escudeiro. Temos de ir embora.
Eles o estavam levando embora.
O sol, de repente, pareceu impiedoso. Ela ouvia Edmund e Jasper gritando um com o outro... aquilo parecia vir de muito
longe.
- Owen, Owen... meu amor - gritou. Ele se voltara para olhar, para vê-la pela última vez, enquanto ela estava ali em pé sobre a grama, os braços estendidos na direção dele.
Alguma coisa estava acontecendo. Owen fora embora. A escuridão caiu sobre ele e ela estava afundando para a terra fria e desprotegida.
Ela estava deitada na cama. Começara a sentir uma dor intensa... e uma sombra desagradável pairando sobre ela, mas não tinha certeza do que se tratava.
Achava estar num mundo estranho; não estava na Terra; não queria voltar. Tinha medo de voltar, por causa da sombra horrível que se revelaria a ela se voltasse. Em algum ponto de sua mente, sabia que a Morte estava muito perto e que, devido àquela sombra, ela queria que a Morte a levasse.
- Ela vai se recuperar - foram estas as primeiras palavras que ouviu, e percebeu que estava voltando.
Abriu os olhos.
- A senhora teve uma garotinha.
- E... meu marido... Onde está meu marido?
A temível sombra estava se revelando e a revelação a estava envolvendo como uma capa de angústia.
- Seu marido foi embora, majestade.
- Quando... quando... há quanto tempo?
- Faz três dias. A senhora ficou muito tempo nos trabalhos de parto.
- Meus filhos...
- Estão bem e aqui, majestade.
Ela fechou os olhos. Então, lembrou-se. Aquela maravilhosa felicidade que tinha sido estraçalhada em questão de minutos. Tinham-no levado embora. Para onde? E por quê?
Precisava ficar boa. Tinha de ir para perto dele. Tinha de trazê-lo de volta. Ela podia. Faria isso. Que mal eles estavam fazendo a alguém? Owen tinha de voltar para lá. Era muito necessário a todos eles.
Levaram-lhe a filhinha... uma criaturinha frágil, não como as outras. Elas tinham sido robustas desde o início. A entrada daquela no mundo fora marcada pela tristeza.
- Ela é muito fraca - disse ela.
- Achamos, majestade, que ela deve ser batizada sem demora.
Palavras ominosas.
Katherine tentou erguer-se e pensar. Onde estava Owen? Precisava se levantar. Tinha de compreender o que aquilo significava. Enviaria uma mensagem ao rei. Pediria que ele fosse visitála. Ele gostara muito de estar com todos eles. Daria atenção à mãe. Iria dizer a ela do que se tratava e mandaria Owen de volta para ela.
A criança foi batizada com o nome de Margaret. Poucos dias depois, morreu.
A rainha teve uma revoltante sensação de perda; mas era Owen que ela queria. O rompimento da felicidade dos dois era tudo em que conseguia pensar. A perda da filha, cuja chegada ela e Owen tinham esperado com entusiasmo, representava mais um golpe. Mas quando se estava atordoada pela desgraça, mais um não doía tanto quanto se tivesse chegado de forma isolada. Ela e Owen teriam chorado a perda daquela criancinha... Mas acontece que se não tivesse sido submetida àquele choque terrível, a pequenina Margaret teria nascido tão forte e saudável quanto os demais.
- O que posso fazer? - lamentava-se ela. - O que devo fazer?
As crianças foram para perto dela.
- Onde está papai? - perguntaram.
- Ele se ausentou, mas por pouco tempo.
- Ele não me disse - disse Jasper.
- Ele não me disse, e eu sou o mais velho - anunciou Edmund.
- Não houve tempo para dizer a vocês. Ele saiu muito depressa.
- E onde está o neném? - quis saber Jasper.
- O neném também foi embora.
- Com o papai? Ele devia ter me levado - disse Jasper.
- Não... eu... eu sou o mais velho...
- Ele vai voltar - disse Katherine e então, porque estava fraca e uma voz dentro dela dizia "Ele nunca vai voltar" não conseguiu conter as lágrimas.
As crianças olhavam para ela, perplexas. Não sabiam que gente grande chorava.
E então estavam todos chorando junto com ela. Sabiam que alguma grande catástrofe atingira o lar deles.
Eles chegaram a Hadham. Estavam em grupo, incluindo freiras. A abadessa foi procurar Katherine e disse-lhe que o rei queria que ela fosse levada para a abadia de Bermondsey, onde seria bem tratada.
- vou ficar aqui - disse Katherine. - Pode acontecer de meu marido voltar.
- Majestade - disse a abadessa -, é melhor que saiba. Owen Tudor está preso em Newgate.
- Por quê? Por quê? - bradou ela. - O que ele fez, a ponto de o prenderem lá?
- Ele se casou contra a lei. Ou se não se casou, tem vivido com Vossa Majestade como seu marido.
- Ele é meu marido.
- Foi esse o crime dele. Ele infringiu a lei que proíbe homens da classe dele de se casarem com mulheres da nobreza.
- Eu me casei por minha livre e espontânea vontade.
- É a lei, majestade, e recebemos ordem de levá-la para a nossa abadia em Bermondsey. Lá, será tratada para recuperar a saúde. Não tem nada a temer de nossa parte Vamos cuidar da senhora.
- Meu lar é aqui. vou esperar aqui pelo meu marido, e tenho filhos... filhos pequenos...
- Eles estão sendo levados para a abadia de Barking- Lá, serão bem tratados e educados de maneira adequada.
- Eles destruíram meu lar...
- Cara senhora, a lei proíbe um lar dessa natureza.
- Ó Deus! - bradou ela. - Eu juro vingança contra aqueles que fizeram isso.
- Não invoque a ira de Deus, senhora. Já pecou gravemente com esse casamento.
- Nunca houve um casamento bom e puro como o meu com Owen Tlidor.
- Venha, senhora, trataremos da senhora e faremos com que recupere a saúde.
- Meus filhos...
- Eles já partiram para Barking. Achamos que seria melhor evitar a angústia da separação.
- Ó meu Deus, vocês me tiraram tudo... tudo de que eu gostava...
- Majestade, a senhora vai se recuperar. Vai encontrar a paz em Deus.
- Só vou encontrar a paz com meu marido e meus filhos. Eu lhe peço que mande chamar o rei. Ele ainda é um menino, mas ele me ama. Não permitirá que façam isso comigo.
- São ordens do rei, majestade...
- Jamais vou acreditar nisso! - bradou ela. - Ele não passa de um menino nas mãos de homens ambiciosos.
- A senhora vai sentir-se melhor quando estiver na paz da nossa abadia. Vamos cuidar da senhora e fazê-la ficar boa. Depois, a senhora fará seus planos... ou vai ficar conosco. Está em suas mãos, majestade. Mas, agora, as ordens são essas. Temos de levá-la para Bermbndsey.
Katherine viu que estava impotente. Tinha de obedecer. Tinha de esperar o momento certo e tentar não sofrer demais pelos filhos ou ansiar um grau demasiado insuportável por ver Owen.
Ela continuava doente. A perda da filha, o súbito desaparecimento de sua vida feliz - isso era demais para ela. Havia vezes em que vociferava contra o destino e aqueles que lhe haviam feito aquilo, e outras vezes em que jazia apática na cama.
Sabia que o tempo passava. Estava sempre perguntando:
- Tiveram alguma notícia sobre meu marido? Nunca havia notícias dele. Nem das crianças.
O que aqueles pequeninos estão fazendo, arrancados de seu lar e dos pais? Como podia alguém ser tão cruel com criancinhas?
Ela pensava, em lampejos, no seu sofrimento no palácio de St. Paul- Mas o que era ele comparado com aquilo? Tratava-se de uma tragédia tão grande, que ela não conseguia raciocinar com clareza. Aquilo a atordoara, fazendo com que caísse numa melancolia de incompetência, num estado de não ligar para coisa alguma, de ansiar pela morte.
Isso mesmo. Se não pudesse ter Owen e as crianças, preferia morrer.
Ela rezava pela morte.
- Ó Deus, tire-me desta miséria. Não posso viver assim. Eu quero Owen. Quero Owen mais do que qualquer outra coisa. Quero meus filhinhos. Ó Deus, como o Senhor pode ser tão cruel?
Em certos dias, ela se reanimava um pouco. Imaginava que alguma coisa pudesse ser feita. Pediria material para escrever ao rei. Faria um apelo a ele, falaria no seu sofrimento. Ele não poderia faltar-lhe.
Mas no íntimo sabia que não deixariam que nada que ela escrevesse para o rei chegasse às mãos dele.
A abadessa e as freiras estavam cada vez mais aflitas- Havia momentos em que a rainha parecia quase uma demente. Em outros, ficava quieta como se já estivesse a caminho da morte.
- Ela tem um temperamento variável - dizia a abadessa.
- Lembrem-se de quem era o pai dela.
O duque de Gloucester, considerado o homem mais poderoso do país, perguntava sobre ela.
- Cuidem sempre bem dela - eram suas ordens. - Não se deve dizer que ela não teve o máximo de atenção. Claro que ela é um pouco agitada. É bem possível que tenha herdado alguma coisa da doença do pai.
A abadessa e suas freiras fariam o máximo possível.
Mas a saúde dela piorava. Ela tornou-se devota. Disse à abadessa que achava estar pagando seus pecados.
Aquilo agradou à abadessa. Era uma boa conclusão a que ela chegara.
- Entende - disse a rainha -, fui para Windsor para o nascimento do filho do rei. "Não vá para Windsor", disse ele. "Eu não quero que meu filho vá para Windsor." E no entanto, fui para Windsor. Não sei o que deu em mim. Havia alguma profecia. Eu era má. Acho que passei algum feitiço mau para meu filho.
Elas tentavam tranquilizá-la. Deus a perdoará, dizia a abadessa. Se ela se arrependesse, se se dedicasse à oração e pedisse perdão com sinceridade, seria perdoada.
- Tenho medo de nunca ser perdoada. Tenho medo do que possa acontecer ao meu filho Henrique. Tenho sonhos, senhora abadessa, sonhos terríveis... de que ele é igual ao meu pai. A senhora não pode compreender, senhora abadessa, o que é ficar trancada em St. Pol e saber que um louco estava lá e que se tratava de meu pai.
- Isso agora pertence ao passado, senhora. A senhora tem de pensar no futuro.
- Nada tenho neste mundo - disse ela. - Eles me tiraram tudo o que eu amava.
- A senhora deve reagir. Arranje um interesse na vida. Talvez pudesse tornar-se uma de nós.
- Só há uma coisa que faria com que eu quisesse viver, e isso é me devolverem meu marido e meus filhos. Não quero viver sem eles. Não posso viver sem eles. Ah... se eu pudesse ter alguma notícia de Owen! O que acha que estão fazendo com ele? Se a senhora pudesse vir me dizer que ele está em liberdade... que está vindo para mim... eu seria jovem de novo amanhã. Minha saúde voltaria. Mas preciso muito dele. Eu o quero, abadessa. Não ligo para nada. Se não puder tê-lo e ter a minha vida feliz, só quero morrer.
- Isso são palavras pecaminosas.
- Não me importo, abadessa. Quero meu marido, que é mantido longe de mim de maneira tão cruel. Eu tinha uma vida triste... e de repente ela ficou feliz. Vim para a Inglaterra e amei o rei, que foi bom para mim... mas isso não foi nada... nada em comparação com minha vida com Owen. Talvez nunca tenha havido... para ninguém...
- Neste caso, a senhora devia agradecer a Deus por ter podido desfrutá-la mesmo que por algum tempo.
- Sim - disse Katherine -, agradeço a Deus pelo Owen..
E por meus filhos... mas tirá-los de mim... que tipo de Deus é esse, que faz isso?
- A senhora está blasfemando. Katherine começou a rir loucamente.
- Não me importo. Que Ele me leve. Que Ele faça o que quiser. Ele o fará. Não poderá fazer nada pior do que já fez.
- A senhora deveria ocupar-se com as orações. Não seria melhor do que essa agitação? Deve rezar por Owen Tudor. Talvez então Deus ache indicado atender a suas orações.
E então Katherine ficou calada. Ela iria rezar. Iria implorar. Ó Deus, mande-o de volta para mim. E assim a vida continuava.
Sua saúde estava fraquejando. Ela não conseguia dormir. Praticamente não comia.
- Ela está morrendo - diziam as freiras.
- Será que devíamos mandar chamar o rei? - indagou uma das irmãs.
A abadessa abanou a cabeça. O duque de Gloucester dissera que não devia haver comunicação alguma com o rei.
Se ao menos ela pudesse ter notícias de Owen TUdor, aquilo a ajudaria, mas ela não sabia de nada, exceto que ele estava em Newgate.
Ela fazia perguntas intermináveis sobre Newgate. O que acontecia por lá? De que forma os prisioneiros eram tratados?
E seus filhos? Era mais fácil dar notícias deles. Estavam se acostumando bem a Barking.
- As crianças se adaptam - disse a abadessa. - Elas esquecem depressa.
- Edmund, não - disse Katherine. - Nem Jasper. Os pequeninos, talvez, mas esses dois, não.
Mas era por Owen que ela sofria. Owen em Newgate... um prisioneiro que infringira a lei ao se casar com ela. A abadessa ficava cada vez mais angustiada.
- Ela está querendo morrer - dizia ela.
Os dias passavam. Apática, Katherine tinha noção do tempo.
O sol nascia; o sol se punha. Mais um dia se passara, e nenhuma notícia de Owen.
Ela ficava na cama. Estava fraca demais para se levantar.
"Morte, venha me buscar", rezava.
Muitas vezes, os pensamentos eram levados para o passado; e então pensava que estava no palácio de St. Pol, agarrada a Michelle... pobre Michelle, ela já havia morrido... assim como em breve eu também, pensava ela. Sim, isso é o que há de melhor para mim. Antigamente, ela lutara para sobreviver, durante toda aquela infância perigosa. Depois, a morte de Henrique, que na época parecera muito terrível. Mas tudo levara àquela época extasiante com Owen e depois... àquilo.
Se eu não tivesse sido tão feliz, não teria ficado tão desgraçada agora, pensava ela. Deus me elevou às alturas, só para me lançar no abismo. Cruel. Cruel! Por que não podíamos ter sido deixados em paz?
E Owen? O que estaria ele sofrendo? Era egoísta ao pensar em si. Ele deveria estar louco para estar com ela e com os filhos, tanto quanto ela; e em alguma cela escura, fria e úmida. Pelo menos ela dispunha de uma cama na qual podia sentir-se desgraçada, boa comida levada até ela, que não comia.
Certa manhã, ela acordou e não tinha certeza de onde estava. Por um curto momento, pensara que estava em Hadham e que bastava estender a mão para tocar em Owen. Mas não... não estava lá. Então, onde... onde...
De uma distância muito grande, ouviu as freiras conversando.
- Ela está com febre alta. Era inevitável... Tamanho desprezo pela saúde...
- Se ao menos houvesse notícias de Owen Tbdor, ela se recuperaria.
A febre piorou; Katheríne não comia os alimentos nutritivos que lhe eram levados. Virava a cabeça para o outro lado quando rezavam ao lado da cama. Não estava interessada em coisa alguma.
E então, um dia chegou um visitante à abadia.
Perguntou se podia falar com a abadessa, e como estava claro que ele levava notícias importantes, a abadessa concordou em recebê-lo.
- Venho a mando de Owen Tudor - disse ele. A abadessa olhou para ele, incrédula.
- Ele está em Newgate... está preso...
.- Não está mais - disse o homem. - Ele fugiu... com a ajuda de amigos.
- Onde ele está?
- Isso, senhora, não posso dizer. Ele quer que a mulher dele saiba que ele está livre e encontrará meios de vir buscá-la.
- Não posso permitir isso. Ela foi colocada sob os meus cuidados.
- A senhora tem de dizer a ela que o marido está livre.
A abadessa ficou pensativa. Recebera ordens do poderoso duque de Gloucester. Devia manter a rainha lá, praticamente prisioneira mas com o máximo de honrarias. Se Owen Tudor fosse até lá e a levasse embora, o que poderia a abadessa dizer ao todopoderoso duque? Ele ficaria furioso; iria dizer que ela era a culpada, talvez demiti-la do cargo.
No entanto... o resultado que aquela notícia teria para a rainha! Ela sabia qual seria o efeito. Se Katherine soubesse que o marido estava livre, que havia esperança de que voltassem a ficar juntos, recuperaria a vontade de viver.
A abadessa era uma mulher profundamente religiosa. Testemunhara o sofrimento da rainha, e embora tivesse obedecido ordens de manter Katherine prisioneira na abadia, muitas vezes lamentava o papel que fora obrigada a representar naquele drama.
Katherine era uma mulher fraca; disso não havia dúvida na mente da abadessa - mas amava com um sentimento profundo; e sem dúvida o amor não podia ser um mal - mesmo o amor carnal entre duas pessoas que não eram casadas.
A abadessa sabia que o duque de Gloucester não iria querer que contassem a Katherine sobre a fuga do marido, mas encaminhou-se para a cela ocupada pela rainha. Abriu a porta e entrou.
Katherine estava deitada de rosto virado para a parede na qual estava pendurado o grande crucifixo.
- Tenho notícias, senhora - bradou a abadessa. - Owen
Tudor está livre. Ele fugiu de Newgate. Mandou uma pessoa dizer à senhora que ele virá buscá-la.
Katherine não se mexeu.
A abadessa chegou mais perto da cama. Colocou uma das mãos na face fria de Katherine.
- Santa Mãe de Deus - murmurou ela -, é tarde demais.
- E então fez o sinal-da-cruz. - Que Deus dê paz à sua alma, pobre senhora trágica - disse ela.
Quando o rei soube da morte da mãe, ficou muito triste.
- Quando estive com ela - disse ele, parecia muito jovem... estava muito feliz. Ah, como foi cruel afastá-la de Owen e das crianças!
Tio Humphrey explicou.
- Owen havia infringido a lei. Atos dessa natureza não podem ficar impunes.
- Eu não consigo ver nada de mau no que eles fizeram.
- Majestade, é sempre necessário manter a lei.
Pare de me tratar como criança, quis Henrique gritar, mas não disse nada. O conde de Warwick o ensinara a controlar o génio - não que ele tivesse herdado o génio dos Plantagenetas, que era famoso. Ele era delicado por natureza, mas às vezes ficava zangado e em geral devido a alguma coisa que achava injusta, como era o caso daquele tratamento que fora dado a Owen e à mãe.
Ele prometeu a si mesmo que faria o possível para ajudar Owen e seus irmãozinhos.
Primeiro, havia o funeral para sua mãe, que deveria ser digno dela. O rei deu ordens para que ela fosse levada até a capela de Santa Catarina, ao lado da Torre de Londres, e exposta em câmara ardente, e de lá fosse levada até a catedral de St. Paul para uma missa e depois enterrada na capela de Nossa Senhora, na abadia de Westminster.
Henrique mandou, então, uma ordem para que Owen Tudor fosse procurá-lo, porque queria falar com ele. Owen não precisava ter medo. Ele lhe prometia salvo-conduto.
Quando Owen soube, ficou indeciso. Confiava no rei, mas este não passava de um menino, era apenas um testa-de-ferro e não dava opinião. O rei jamais teria concordado em prendê-lo e desfazer o lar feliz de sua mãe. Não, Owen
não poderia arriscar-se a ir falar com o rei. Por outro lado, queria notícias dos filhos. Se pudesse encontrar-se com Henrique a sós... Mas do que adiantava? Aquilo era uma armadilha.
Mas foi a Londres, e quanto mais perto chegava da capital, mais aflito ficava. E quando chegou a Westminster, estava tão certo de que haveria traição, tão ansioso por evitar um novo encarceramento em Newgate, que teve medo e, por isso, pediu santuário na abadia de Westminster.
Eleanor e Humphrey ficaram furiosos quando souberam que ele chegara até aquele ponto e ainda assim os enganara.
- O rei está interessado demais em Tudor - disse Humphrey. - Se deixarmos os dois se encontrarem, o garoto estará despejando honrarias sobre ele e antes de sabermos onde estamos teremos um favorito nas mãos, dizendo a ele o que fazer e que todos estamos preocupados com nossas ambições pessoais.
- A coisa nunca deverá chegar a esse ponto - concordou Eleanor. - Ele deve ser atraído para fora do santuário.
- Mas como? - perguntou Humphrey.
- Ele é um soldado veterano, e descobri que costumava frequentar aquela taberna que fica perto de Westminster Gate. Se pudesse ser atraído até lá, poderia ser apanhado e levado de volta para a prisão. Afinal, é culpado por ter fugido.
- Vamos tentar - disse Humphrey.
Claro que não foi difícil achar um velho soldado que tivesse servido em Agincourt com Owen. Agincourt era uma palavra mágica para os velhos guerreiros. Eles nunca resistiam a falar nela e contar que tinham participado dela e vencido uma das maiores batalhas da história militar. O velho soldado teria o máximo prazer em trabalhar para o duque de Gloucester. Ele iria à abadia, conversaria com seu companheiro de armas e falaria com ele sobre as histórias que eram contadas na velha taberna de Westminster Gate.
Owen ficou contente ao ver um homem que não se lembrava de ter visto antes mas que sem dúvida servira no exército do rei Harry. Os dois conversaram sobre o passado, mas quando veio a sugestão de visitar a taberna, Owen ficou desconfiado. Havia muita coisa em jogo para ser arriscada devido a uma noite de congraçamento. Estava sofrendo muito com a perda de Katherine e ainda não podia acreditar que ela estivesse morta. Parecera tão cheia de vida, como uma jovem, e o fato de poder ter definhado, morrido de melancolia, ainda parecia um pesadelo para ele.
E assim, o truque falhou, para grande decepção de Eleanor e Humphrey.
- Ainda vou pegá-lo - jurou Humphrey.
Enquanto isso, Owen procurava uma oportunidade de falar com o rei. Sabia que se ficasse a sós com o menino poderia fazêlo entender que ele, Owen, não cometera crime algum. Ele fugira quando estava preso de forma injusta. Não havia nada de criminoso nisso.
Ele tinha o máximo de fé no rei.
com grande ousadia, decidiu seguir à noite até Kennington, onde o rei estava reunido com seu Conselho Privado. O duque de Gloucester não estava presente, e parecia um bom momento para expor seu caso.
O rei e os membros do Conselho ficaram perplexos quando Owen apareceu de sopetão. Henrique olhou para ele e bradou:
- Owen, você por aqui?
E então uma grande desolação tomou conta do jovem rei, porque aquilo fizera com que tornasse a se lembrar da morte da mãe.
- Senhor rei, senhores do Conselho - disse Owen. -Vim pedir-lhes que me ouçam. Será que tenho sua permissão para dizer-lhes por que estou aqui e explicar que fui preso de forma injusta?
O rei deixou todos assombrados ao dizer em voz alta e clara:
- Owen Tudor, você tem a nossa permissão para expor seu caso.
Owen dirigiu-se ao menino - filho de Katherine, que se parecia um pouco com ela; os mesmos olhos claros, a mesma inocência. Seu ânimo aumentou. Seus inimigos não estavam presentes, ele podia ter a esperança de que o rei o ajudasse, e expôs os fatos com clareza. Ele amara muito a rainha, e ela o amara. Ela já não importava para o país. Quaisquer filhos que eles tivessem seriam Tiidor longe do trono. Os dois tinham se amado e se casado antes de a lei proibindo casamentos como o deles ter sido aprovada. A rainha, agora, havia morrido. Morrera de melancolia porque não conseguira suportar a separação do marido e dos filhos. Ele tinha sido preso. Era verdade que fugira, mas não via crime nisso, porque para início de conversa jamais deveria ter sido preso.
Depois, Henrique falou com uma autoridade e uma sensatez que empregava às vezes e que nunca deixavam de impressionar quem ouvisse. Ele encerrou dizendo:
- Meus amigos, Owen Hador expôs seu caso com clareza. Ele não cometeu erro algum contra nós, e eu digo que daqui por diante ele é um homem livre.
Owen caiu de joelhos diante do rei e beijou-lhe as mãos. Henrique, profundamente emocionado, girou sobre os calcanhares e se afastou. Não conseguia esquecer aquele lar feliz em Hadham que fora desfeito, e que ele nunca mais sentiria a paz e a felicidade que encontrara por lá.
Ele mandou chamar Owen. Já não precisava bancar o rei. Era apenas um rapaz que perdera a mãe.
- Não a vi muito depois que eles me levaram embora disse ele -, mas sempre pensei nela. É estranho, Owen, mas quando eu tinha de fazer alguma coisa que odiava e da qual sentia um pouco de medo, como ser coroado em Paris e ir às reuniões do Parlamento no início, sempre pensava em minha mãe.
Pobre Owen. Não conseguia falar nela porque a emoção o sufocava.
- E Owen, eu também me lembro de você... Você cavalgava comigo.
- Vossa Majestade era um garotinho valente.
- Eu tremia de medo por dentro, e você sempre me deu coragem. Owen... é tão triste ela ter ido embora... e a casa em Hadham...
- Não quero voltar lá.
- Não... nem eu. E as crianças?
- Elas ainda estão em Barking.
- vou cuidar para que sejam bem tratadas, Owen.
- vou visitá-las.
Henrique confirmou com a cabeça.
- Ainda bem que são muito novas. Talvez esqueçam.
- As pequeninas, sim... Edmund e Jasper, não...
- com o tempo, esquecerão. Você vai visitá-las, agora?
- vou, majestade. Comerei e beberei alguma coisa na taberna em Westminster Gate e depois seguirei a cavalo até Barking.
- Que Deus o acompanhe, Owen. Lembre-se de que sou seu amigo.
Owen despediu-se e foi para a taberna, como dissera, e estava acompanhado de seu padre e de um criado, e enquanto estava lá um homem entrou e sentou-se ao seu lado.
O homem usava uma capa grossa, mas ao sentar-se ao lado de Owen deixou que a capa de abrisse e com isso revelou o libré real.
- Venho a mando do rei - disse ele. - Ele me manda avisálo de que o senhor não deve ir a Barking. Seus inimigos estão esperando pelo senhor lá, por ser o primeiro lugar ao qual o senhor iria. Por ordem do rei, o senhor deverá fugir a toda velocidade.
Owen compreendeu. Gloucester não iria deixá-lo ficar em liberdade.
Owen deixou a taberna às pressas com seus dois auxiliares, montou o cavalo e voltou-se em direção ao país de Gales.
Não tinham avançado muito quando perceberam que estavam sendo seguidos, e em pouco tempo uma companhia de homens armados os alcançara e cercara. Gloucester mandara homens para Barking, mas outros tinham ficado à espera em Westminster.
O que eram três contra tantos? E quando Owen viu quem eram seus captores, temeu pelo pior.
E assim ele estava preso uma vez mais. Gloucester não queria aparecer na história e entregou o prisioneiro nas mãos do conde de Suffolk. Um homem perigoso, disse Gloucester, como são todos os que fugiram da prisão.
- Temos de providenciar - acrescentou ele - para que desta vez não haja fuga.
Era mais confortável no castelo de Wallingford do que fora em Newgate, mas Owen ficava irritado com a falta de liberdade
Não havia razão para supor que fossem deixar que ele continuasse ali. Gloucester o queria de volta a Newgate. O lugar adequado, dizia ele, para homens que tinham a temeridade de casar-se com rainhas na esperança de ampliarem suas ambições.
E assim ele voltou para Newgate. Owen percebeu, então, a futilidade de apelar para o rei. Henrique lhe queria bem; era honrado e um filho do qual Katherine poderia ter ficado orgulhosa, mas era impotente nas mãos de homens poderosos.
Gloucester queria eliminá-lo. Teria de ser cuidadoso. Tinha de fazer planos. Não podia ceder. Devia encontrar algum meio de sair de Newgate, em nome de seus filhos.
Havia um consolo. Ele estava acompanhado de seu criado e do padre. Eles podiam conversar; podiam fazer planos.
A oportunidade chegou.
- Não podemos falhar - disse Owen. - Se isso acontecer, eles vão nos separar; vão nos colocar em locais mais fechados. Temos de conseguir, e desta vez nunca dar a eles a chance de tornar a nos pegar.
Foi o método antiquíssimo. Guardas estavam sempre prontos a tomar um pouco de vinho, e se esse vinho tivesse alguma coisa um pouco mais forte nele, ora, o plano poderia funcionar.
Funcionou. Os guardas bêbedos, a escalada dos muros, e a liberdade.
Eles acharam cavalos que foram fornecidos por um amigo numa taberna próxima, e antes de o dia raiar estavam a quilómetros de distância de Newgate, a caminho da liberdade e do país de Gales, terra natal de Owen.
A DUQUESA de Gloucester estava inquieta e desapontada. Seus planos não davam em nada. Os anos iam passando, e o rei ia deixando a infância para trás. Estava com
quase vinte anos. Alguns reis de vinte anos poderiam ser considerados como tendo atingido a maturidade; Henrique, não. Ele sempre fora uma criatura dócil, pronta a ser guiada; às vezes parecia ser um tanto deficiente.
Eleanor gostava de pensar que ele era um imbecil.
Gloucester a reprovava com delicadeza. O sobrinho dele não era, em absoluto, um louco. Na verdade, do ponto de vista intelectual, era muito inteligente. Acontece que não era rigoroso demais para governar. De fato, não fora talhado para ser um rei.
- Este é o cerne da questão - disse Eleanor. - Ele não é dotado das qualidades de um rei.
E estavam falando em casá-lo, o que naturalmente iriam fazer em breve. Era estranho que tivessem deixado que ele chegasse aos vinte anos sem que tivessem arranjado uma esposa para ele. Isso não demoraria muito mais, e então haveria um filho... um herdeiro do trono.
Não, pensava Eleanor, isso, não!
Humphrey estava muito empenhado em sua luta contra o cardeal Beaufort. Era impressionante como os dois sempre tinham pontos de vista opostos. Beaufort era totalmente a favor de que se fizesse a paz com a França, porque dizia que a Inglaterra não tinha recursos para continuar sustentando uma guerra. Humphrey sempre sonhara que brilharia mais do que seu finado irmão Bedford e reconquistaria tudo o que tinha sido perdido desde o surgimento de Joana d'Arc. Humphrey se considerava um outro Henrique V.
Beaufort queria soltar o duque dOrléans, que era prisioneiro dos ingleses desde Agincourt. Era um excelente artigo para barganha. Beaufort estava disposto a fazer qualquer coisa pela paz. Não, bradava Humphrey, não deve haver paz.
Eleanor o apoiava nisso. A paz com a França significaria, inevitavelmente, um casamento para Henrique com uma filha de Carlos VII.
Não devia haver casamento algum. Eleanor ficava desvairada só em pensar.
Alguma coisa devia ser feita antes disso.
Estava desapontada com Margery Jourdemayne. Apesar da bela imagem de cera alimentada em berço próprio, ainda não ficara grávida. Engolira pílulas e poções que Margery lhe garantira serem destinadas a provocar fertilidade, e Margery vinha vivendo havia anos com muito conforto, à custa dos lucros com o patrocínio da duquesa.
E no entanto, nada que a duquesa queria acontecia.
O filho não vinha, e o rei ainda vivia.
Margery estava ficando desesperada. Disse ela que uma certa pessoa conhecida aparecera num sonho e dissera que o defeito estava no duque.
- Não acredito nisso. Antes da nossa ligação ele teve um filho e uma filha ilegítimos.
- Bastardos - bradou Margery. - Como podem ter certeza de quem é o pai deles?
- Arthur e Antigone têm traços do duque.
- Os traços dos Plantagenetas não são raros neste país foi a desculpa de Margery. - Isso vem através de gerações.
Mas Eleanor estava ficando impaciente; e Margery, alarmada, vendo o desaparecimento de sua melhor fonte de renda - e aquela que lhe permitira não apenas viver com conforto, mas guardar alguma coisa para dias menos lucrativos.
- A senhora duquesa poderia gostar de consultar um homem de quem ouvi falar - um clérigo - nada menos do que um homem da Igreja. Ele revelará seu futuro. É disso que a senhora iria gostar. Ouvi dizer que ele pode predizer os astros. Ele é caro... Bem, não para uma dama como a senhora. E vale o que custa.
- Traga-o até aqui - disse a duquesa.
Foi assim que ela ficou conhecendo Roger Bolingbroke.
Ele agradou a Eleanor desde o começo. Era mais sofisticado do que Margery. Não era um feiticeiro; mas sim um adivinho. Usava uma comprida capa preta, e os calções e o casaco também eram pretos. A aparência era impressionante. O pretume dos trajes era aliviado apenas por uma pesada corrente de ouro que usava no pescoço.
Ele tinha olhos penetrantes e um rosto branco, magro; havia em torno dele uma aura de outro mundo. Eleanor estava certa de que ele poderia ajudá-la.
Ele disse que iria consultar os signos. As consultas eram caras, porque exigiam muito dele, e para que ele continuasse em seu trabalho, tinha de ficar longe das preocupações financeiras.
Eleanor disse que nada daquilo tinha importância. Ela estava disposta a pagar o que ele pedisse. Tirou um anel de safira do dedo e o deu como sinal.
Roger ficou encantado. Via o início de uma lucrativa associação.
O primeiro encontro fez com que o ânimo da duquesa subisse aos píncaros.
Roger olhava para ela por sobre os estranhos objetos que ele manuseava em cima da mesa. Ele balbuciava consigo mesmo, enquanto Eleanor ouvia com muita atenção. Depois, ele se aproximou dela e ajoelhou-se.
- Mal tenho coragem de dizer o que estou vendo - murmurou ele.
- Diga-me! Diga-me! - bradou ela. Ele tomou-lhe a mão e a beijou.
- Minha senhora, eu vejo a rainha da Inglaterra.
- Quem é ela... uma esposa para Henrique...?
- Senhora duquesa... a senhora vai ser a rainha. Ela não cabia em si de satisfação.
- Diga mais. Diga mais...
- Agora não consigo ver nada mais... senhora. Esse fato domina tudo o mais.
Ele voltou para o banco. Olhava fixo e balbuciava. Então, enterrou o rosto nas mãos.
- Os poderes foram embora - disse ele. - Eles me revelaram essa ofuscante realidade e dizem que isso é o bastante... por enquanto...
- Então, quando...
- vou me comunicar com os poderes... se é isso que a senhora quer. Preciso de implementos especiais. Eles custam caro... nunca lidei com um caso como este. vou precisar de tempo...
- Tempo... tempo... para quê?
- Para adquirir o que preciso.
- Não deve haver demora.
- Demora... minha senhora... - ele ergueu os ombros. Ela tirou uma corrente do pescoço.
- Tome isso. Pagarei o que o senhor precisar.
- Senhora, vou parar tudo para trabalhar neste caso.
Ele estava trabalhando nele. Mas não podia ir mais adiante. Ela seria a rainha, disse ele. Os poderes, por mais adulados que fossem, não diziam mais do que isso.
Ele consultaria um homem que ele conhecia - isto é, se Eleanor concordasse em incluir um outro participante no caso. Ela devia saber que os serviços dele seriam caros.
Impaciente, ela deu de ombros.
- Não poupe coisa alguma - disse ela. - Quero saber como isso pode vir a acontecer.
Assim, ela conheceu Thomas Southwell, que levou mais respeitabilidade ao processo, porque era um cónego de St. Stephens, Westminster.
Ele confirmou a profecia de Roger Bolingbroke de que Eleanor seria a rainha da Inglaterra. Mas disse que aquilo não seria um acontecimento fácil.
O que eles queriam dizer com aquilo?
- Há alguém no caminho, senhora - disse Thomas Southwell.
- Mas se estiver ordenado que serei a rainha, ele será afastado, por certo?
Os dois homens se entreolharam. Não parecia tão simples assim. Era verdade que Roger a vira com seus trajes reais sendo coroada na abadia, mas agora que sua visão ficara bem nítida, aqueles videntes tinham sido avisados de que o brilhante destino só poderia ser atingido se a mulher tivesse a coragem de vencer certo obstáculo. Havia alguém no seu caminho. O rei.
- Eu não precisava gastar uma fortuna para descobrir isso - retorquiu Eleanor com frieza.
Os homens ficaram alerta. Ela estava ficando impaciente.
- O rei tem de ser eliminado antes que se case - disse Thomas Southwell. - Isso pode ser feito. Margery tem habilidades especiais nessa arte. Ela deve ser chamada de volta.
- Margery vem trabalhando nisso há anos e nada aconteceu.
E assim os dois magos e a feiticeira se reuniram, e Margery fez uma imagem do rei que, segundo ela, demoraria algumas semanas, porque não se tratava apenas de construí-la em cera, que tinha de ser feito, mas seria preciso dar nela o sopro da vida. Margery tinha de repetir sortilégios sobre ela todas as noites. Aquilo tinha de ser feito de acordo com as leis da feitiçaria; caso contrário, seria inútil.
- E quando estará pronta? - perguntou Eleanor.
- Ela será colocada num local quente perto de um fogo, mas não perto demais, e será deixada ali até que a cera derreta... Mas isso tem de ser gradativo. Então, à medida que ela for derretendo, a vida do rei irá esvaindo-se.
- Já tentamos isso.
- Não conosco - disse Roger Bolingbroke.
Ela acreditou neles. Sabia que Roger estava bem instalado perto da catedral de St. Paul, que o pessoal da corte o visitava em segredo, e o fato de um cónego da Igreja estar com eles garantia o sucesso.
Eleanor esperou.
Humphrey atravessava a cidade a cavalo, em direção a Westminster. O povo o saudava, e aquilo era um consolo. Por estranho que parecesse, ele mantivera a popularidade, apesar dos fracassos. O povo parecia gostar de certas pessoas e perdoar-lhes muitas coisas. Ele jamais gostara do cardeal. Ainda o considerava como "o Bastardo". Humphrey ficava muitas vezes impressionado com o fato de as pessoas mais humildes darem tamanha importância ao nascimento e desprezavam aqueles que, embora muito acima delas, não eram do topo.
Ele estava ficando um pouco cansado com todo aquele conflito, mas sua desavença com seu tio cardeal ainda conseguia despertar nele a excitação da luta; mas ele percebia que o Conselho estava pendendo para o lado de Beaufort. Talvez com o tempo o povo também pendesse.
Ele desperdiçara homens e dinheiro na causa de Jacqueline; casara-se com uma mulher de nível inferior ao seu - não que se arrependesse disso. Eleanor valera a pena. Ela ainda o agradava, o que era impressionante, considerando-se o quanto ele estava esgotado. E ela lhe era fiel - ou será que era fiel a si mesma? Quando ele progredia, ela subia junto.
Ele estava cansado. Iria para o palácio e lá se trancaria com um novo livro que acabara de lhe ser enviado. Ele estava interessado no autor, e se achasse o livro bom, iria providenciar uma pensão para ele.
Ouviu gritos nas ruas. Em frente a uma casa, uma multidão se reunira e guardas estavam prendendo um homem.
Algum malfeitor, refletiu ele. Qual terá sido o crime dele?
O homem estava vestido de preto - uma criatura de aspecto estranho.
- Quem é ele? - perguntou Humphrey a um de seus assistentes.
- Senhor, ele é o vidente Roger Bolingbroke. Há muito tempo que se comenta que ele lida com magia negra.
- Mais um deles. Há um número demasiado de feiticeiros e afins neste país.
Ele continuou a seguir em direção a Westminster.
Eleanor ficou encantada ao vê-lo. Os dois se abraçaram com calor. Mais tarde, ela perguntou sobre a saúde do rei.
- Nunca é muito robusto - disse o duque. - Muitas vezes fico impressionado com o fato de meu irmão ter gerado um filho assim.
- Então ele não está tão bem quanto seria normal? - perguntou ela.
- Ah... ele sempre me parece doentio.
Ela ficou exultante. Está funcionando, pensou. Muito lentamente, a cera estava derretendo. Quando tivesse desaparecido por completo, o rei estaria morto.
- Fez boa viagem, amor?
- Foi bem razoável, sim. O povo de Londres me saudava.
- Deus os abençoe. Eles sempre foram leais a você. Tenho confiança no povo de Londres.
- Vi um sujeito sendo preso perto da catedral de St. Paul.
- É? - ela não estava interessada. Pensava apenas na figura de cera que ia derretendo devagar.
- Uma espécie de feiticeiro. Está na hora de investigarmos um pouco mais as atividades deles. Talvez isso seja um sinal.
Um medo súbito tocou a duquesa.
- Uma espécie de feiticeiro... foi o que você disse?
- Nessa área, os homens são tão maus quanto as mulheres. Esse, então, tinha todo o aspecto de um feiticeiro. Vestia-se todo de preto... parecia o diabo em pessoa.
- Ah... perto da catedral de St. Paul, foi o que você disse?
- Isso mesmo, e acho que já ouvi o nome dele antes. Parece que se trata de um bandido muito na moda. Era Bolingbroke Roger Bolingbroke.
A duquesa sentiu uma certa fraqueza. Sustentou-se segurando no braço dele.
- Você está bem, meu amor?
- Estou bem, Humphrey. - Você está...?
Não, pensou ela, irada, não estou grávida. E Roger está preso. O que significa isso?
Ela ficaria sabendo em breve. A corte inteira comentava sobre o assunto. A prisão e o interrogatório de Roger Bolingbroke tinham levado à prisão de seu cúmplice, Thomas Southwell, e os dois tinham tido alguma ligação com Margery Jourdemayne, a Feiticeira de Eye, que enfrentara acusações em Windsor alguns anos antes e, devido aos seus poderes ocultos, dera um jeito de fugir à condenação.
O interesse estava aumentando. As casas dos prisioneiros tinham sido vasculhadas, e houvera uma onda de interesse quando se descobriu uma figura do rei derretida pela metade.
O comentário geral era de que havia nobreza envolvida no caso.
Parecia possível, porque qual seria a justificativa para que homens da posição daqueles dois, e uma velha senhora de Eye, arriscassem a vida para substituir o rei por uma outra pessoa?
As paixões aumentavam. Não se tratava apenas da descoberta de mais um feiticeiro. Aquilo significava feitiçaria com traição.
O duque de Gloucester estava muito angustiado. Como próximo da linha do trono, ele sentia olhos voltados para ele. Tinha medo de provocar o assunto com Eleanor, porque uma terrível suspeita tomara conta dele.
Quanto a Eleanor, estava em estado de grande ansiedade. Não deviam falar no nome dela. Ela não devia ser envolvida naquilo. Mas se decidissem submeter os homens e Margery à tortura, o que revelariam eles?
Nenhum dos dois era valente. Não passavam de clérigos, prelados menores... enriquecendo com a prática de magia negra.
E Margery estivera encrencada antes. Como reagiria ela aos interrogatórios? Estivera pronta a servir à duquesa com diligência... mas isso quando estava sendo paga.
Dias angustiados se seguiram, e quando os dois homens e a Feiticeira de Eye foram considerados culpados de praticar feitiçaria e de traição, ninguém ficou surpreso.
Era um domingo de julho, quente e abafado. Bolingbroke deveria comparecer a St. Pauls Cross, onde um tablado tinha sido armado. Lá, ele confessaria à imensa multidão reunida que praticara a magia negra. Ele agora se arrependia plenamente de seus pecados e estava pronto para pagar a pena que lhe fosse exigida.
Eleanor teria gostado de estar lá, mas não tinha coragem. Sabia que Humphrey sentia a mesma coisa. Ele não estava com ela. Evitava-a, ela sabia por quê.
Mas ela mandara uma de suas criadas misturar-se à multidão e transmitir a ela tudo o que tivesse sido dito.
Trancou-se em seu quarto. Precisava ficar sozinha. Ao mesmo tempo, não devia dar sinal algum de que sentia uma angústia especial.
Já sabia que olhos desconfiados estavam voltados para ela. As pessoas perguntavam-se quem faria uma imagem do rei em cera.
Houve uma batida à porta. Era a mulher que ela enviara a St. Paul. Os olhos da mulher estavam arregalados e aflitos.
- Senhora - bradou ela -, a senhora tem de fugir. Roger Bolingbroke admitiu que praticou magia negra e cometeu traição e diz que fez isso por ordem sua.
Eleanor levantou-se e na mesma hora teve medo de que as pernas não a sustentassem. Era isso que ela temera. Correu os olhos à sua volta.
Onde estava Humphrey? Mas será que Humphrey poderia ajudá-la, agora?
Então, percebeu o que devia fazer.
- Traga-me meus trajes de montaria - disse ela.
- Senhora, para onde está indo?
- Para longe daqui... antes que venham me buscar.
Ela foi ajudada a vestir os trajes de montaria. As mãos tremiam.
- Senhora, a senhora não irá longe...
- Eu sei... mas vou até onde preciso, se Deus quiser. Estou indo pedir santuário em Westminster.
Foi apenas um refúgio temporário. Ela precisara dele enquanto pensava no que devia fazer.
Humphrey não foi procurá-la. Não tinha coragem. Aquilo era um assunto inteiramente do interesse dela. Se mostrasse solidariedade para com ela, seria logo acusado junto com ela.
Não, ela usara Humphrey. Providenciara aquilo sozinha; agora, tinha de pagar a pena.
Por alguns dias, ficou sem conforto em Westminster. Algumas criadas suas iam procurá-la e levavam-lhe notícias do que se passava. Bolingbroke, Southwell e a Feiticeira de Eye estavam todos na Torre. Eles iriam dar-se mal. Dessa vez, a velha Margery não escaparia.
Não foi consolo algum saber que um tribunal estava sendo reunido na capela de St. Stephen, e era presidido pelo cardeal Beaufort e pelo arcebispo Ayscough para investigar as acusações de necromancia, feitiçaria, heresia e traição. Uma respeitável lista de acusações.
Eleanor estava em seu santuário, sem conforto algum. Pensar que chegara àquele ponto depois de sua espetacular ascensão à fortuna! A criada sem importância tornar-se duquesa de Gloucester! Ah, se tivesse ficado satisfeita! Mas quando é que as pessoas ambiciosas consideravam-se satisfeitas? Primeiro, ela tivera de afastar a mulher do duque, e depois disso, o rei.
Teria dado certo, pensou com raiva, não fossem aqueles tolos de Bolingbroke e Southwell. Como puderam ser tão idiotas a ponto de ser presos... e ainda mais citar o nome dela! Aquilo era imperdoável.
Ela foi convocada a comparecer à capela de St. Stephen, para responder às acusações apresentadas contra ela. Iria enfrentálos. Sempre pudera defender-se.
Foi levada perante eles. Enfrentou-os com ar desafiador.
Sim, ela visitara a Feiticeira de Eye. Comprara loções nela. Poderia ter comprado um feitiço.
Ela usara esse feitiço, não?, para atrair o duque de Gloucester para longe da mulher dele?
Isso, não. Só quando ele já se separara da mulher, quando ela, Eleanor, tornara-se amante dele. Ela queria tornar o amor deles respeitável.
- O duque sabia desses feitiços usados contra ele?
- Os feitiços, meu senhor, teriam ficado inócuos se tivessem sido revelados. E não foram usados contra ele... só para proporcionar-lhe maior felicidade.
- E a imagem de cera?
Confessaria aos lordes que estava ansiosa por ter um filho.
Fora uma boba. Pensara que aquela gente poderia ajudá-la. Por isso pedira que fizessem uma imagem de cera.
- E para queimá-la devagar...
- Meus senhores, eu não sabia nada a esse respeito. Podia ser astuta, mas não conseguiu enganá-los. Todos os
acusados foram condenados por traição. Os três necromantes foram mandados de volta para a Torre, e Eleanor foi confinada no castelo de Leeds até que houvesse novas investigações.
O castelo de Leeds, no belo condado de Kent, era muito bonito, já que ficava sobre duas ilhas, ligadas por uma dupla ponte levadiça, mas a beleza dos arredores nada significava para Eleanor. Agora estava aguardando uma convocação para comparecer perante seus juizes, e sentia medo.
Humphrey não se aproximara dela. De certo modo, ela compreendia. Ele não tinha coragem. Ao ir procurá-la, ele arriscava a vida. Ele era o primeiro suspeito naquela trama para assassinar o rei; e tinha de mostrar que ignorava tudo aquilo.
Estava sozinha. Tinha de se defender. Ficava pensando no que fariam com ela. Não acreditavam nela quando ela dizia que a imagem de cera era de uma criança que ela estava ansiosa por ter.
Outubro chegara; as folhas estavam sendo arrancadas das árvores; havia um aviso de inverno no frio que vinha da água que cercava os muros do castelo. Ela olhava pela janela para a margem oposta, para a profusão de árvores e para o tapete de folhas de bronze embaixo delas. Tinha vontade de ir lá fora e cavalgar nos bosques. Queria ser livre para ir e vir à vontade.
Por que não se contentara com o que tinha, quando recebera tanto?
A convocação chegou. Uma vez mais, deveria comparecer à capela de St. Stephen, onde uma comissão especial, da qual faziam parte os condes de Suffolk, Satfford e Huntingdon, fora instalada.
Eles a olharam com desprezo - uma mulher sem berço, jamais tinham conseguido compreender por que o duque se casara com ela. Uma amante saudável, sem dúvida... mas uma duquesa, e duquesa de Gloucester, a mais importante do país... depois do rei!
Depois do rei! Ah, ali estava a traição.
Ela se defendeu com bastante habilidade. Agarrou-se à história de que a imagem tinha sido do filho pelo qual tanto ansiava. Mas não conseguiu convencê-los, porque não podia explicar o motivo pelo qual, quando a imagem fora encontrada, já havia derretido pela metade.
Foi considerada culpada com os demais. A Feiticeira de Eye seria morta na fogueira, e Bolingbroke e Southwell sofreriam a terrível morte dos traidores, que era enforcamento, estripamento e esquartejamento.
Eleanor os viu empalidecerem quando foram condenados... todos, exceto Margery, que se resignara com o terrível destino. Afinal de contas, ela chegara perto daquilo antes.
E agora era a vez de Eleanor. Era culpada de conspirar contra a vida do rei. Só a sua nobreza, adquirida pelo casamento, e sua ligação com a realeza salvaram-na do destino terrível de seus companheiros de conspiração.
Ela ficaria em prisão perpétua, mas antes de ser levada para lá seria obrigada a andar descalça pelas ruas de Londres carregando um círio que iria oferecer a várias igrejas que ainda seriam relacionadas. Ela deveria fazer isso durante três dias antes de ser levada para a prisão onde passaria o resto da vida.
Foi feriado em Londres quando as execuções iam acontecer. O povo encheu as ruas, para não perder nada de agitação. Alguns foram até Smithfield para ver a feiticeira ser queimada. Pobre MargeryJourdemayne, que frustrara os planos de seus acusadores havia cerca de dez anos em Windsor e não pudera repetir o sucesso daquela acusação mais séria. Foi filosófica até que as chamas começaram a tocar-lhe os pés. Aquilo era um dos azares da vida de uma feiticeira.
E então a agonia começou.
- Salve-me, Deus - rezou ela; e depois, protestando: - Ó Senhor, por que mandou a senhora duquesa me procurar?
Ela era idosa, e tinham derramado óleo para fazer a madeira queimar mais depressa, de modo que a agonia não foi prolongada.
Assim morreu a pobre Margery Jourdemayne, a Feiticeira de Eye-next-Westminster.
O membro do grupo que teve sorte foi Thomas Southwell. Ele vivera numa agonia de medo desde que tinha sido preso, e quando a terrível sentença fora proclamada contra ele, ficara em tal estado de choque que praticamente não sabia o que lhe estava acontecendo, e quando os guardas foram despertá-lo na manhã marcada para a execução, encontraram-no morto. Morrera de medo.
O mesmo não aconteceu com Roger Bolingbroke; ele sofreu toda a horrenda operação, e sua cabeça decepada acabou sendo suspensa na Ponte de Londres, e os membros foram mandados para Oxford, Cambridge, Hereford e York, porque até naquelas cidades afastadas o povo ficara sabendo da trama que a duquesa de Gloucester armara com aqueles bandidos para matar o rei e colocar o marido dela em seu lugar.
Ela caminhou descalça pelas ruas da cidade carregando uma vela que pesava um quilo. As pessoas saíam de casa para olhar para ela, para xingá-la. Assassina, diziam todas.
Não olhava nem para a direita nem para a esquerda. Ela caminhou de Temple Gate até a catedral de St. Paul, e, lá, colocou a vela sobre o altar. As pessoas acotovelavam-se à sua volta, puxando-lhe o vestido, insultando-a.
Aquilo era o pior de tudo. Ela fora capaz de suportar o confinamento no castelo de Leeds, mas ser humilhada daquela maneira era realmente um castigo para uma pessoa com o orgulho dela.
Ainda tinha duas penitências a cumprir, e com apenas um dia de intervalo para banhar os pés doloridos de caminhar descalça pelas sujas ruas pavimentadas com pedras, devia recomeçar. Era sábado, e ela devia desfilar do Swan em Thames Street para Christchurch, e no dia seguinte, domingo, da catedral de St. Paul para a de St. Peter, em Cornhill.
Como zombavam dela! Como gostavam de ver a outrora poderosa caída agora! Não fazia muito tempo, quando ela cavalgava por aquelas ruas, aquela gente gritava: "Vida longa para a nobre duquesa!", e esperava que ela atirasse moedas para eles.
Agora, estavam contra ela. Chamavam-na de assassina. Acreditavam que ela tivesse tentado matar seu adorado rei.
E depois daquilo, o que haveria, a não ser a prisão para o resto da vida?
E Humphrey? Será que iria procurá-la?
Ela chegara à catedral de St. Peter, em Cornhill. A penitência terminara. Agora, eles estavam prontos a transferi-la para as mãos de seu carcereiro. Sir Thomas Stanley fora escolhido para esse papel e estava esperando para levá-la para o castelo de Chester, enquanto se decidia onde ela deveria ser encarcerada em definitivo.
E assim caíra a poderosa. Ali estava um fim para suas ambiciosas esperanças. O rei iria casar-se em breve. Geraria um filho. Não haveria coroa para Eleanor.
Humphrey estava velho e cansado. ITudo dera errado. A ambiciosa loucura de Eleanor arruinara a vida deles juntos. Ele a via pouco. Fora enviada para o castelo de Kenilworth e ficara presa nele; e agora estavam falando em mandá-la para a ilha de Man.
Ele sentia saudades; logo depois da sentença, tentara conseguir a liberdade dela. As mulheres nobres, declarara ele, deviam ser julgadas pelos seus pares, de acordo com o espírito da Magna Carta. Claro que teria sido possível comprar a liberdade dela. Mas ele havia caído das graças. O rei estava ficando homem. Henrique ficara horrorizado por ter havido aquela trama contra ele; além do mais, recusava-se a acreditar que seu tio Humphrey não estivesse envolvido com a mulher.
Dizia-se que ele declarara: "Nunca mais vou tornar a confiar no meu tio"; e Humphrey conhecia bem o sobrinho para saber que quando Henrique tinha uma ideia daquelas, esta ficava em sua mente.
Em vez de favorecer as ambições deles, Eleanor as arruinara para sempre. Ele era rejeitado em toda parte. O rei iria casar-se, e não seria com a princesa escolhida por Humphrey. Antigamente, o grande inimigo de Humphrey tinha sido o cardeal. Continuava seu inimigo, mas fora suplantado, sob aquele aspecto, por William de la Polé, o conde de Suffolk. Quando Humphrey perdeu o prestígio junto ao rei, Suffolk teve o seu aumentado.
Suffolk ficara muito amigo do duque de Orléans, que ficara preso na Inglaterra desde Agincourt; fora Suffolk que providenciara sua libertação; e agora, seguindo seu conselho, estava apoiando a ideia do casamento do rei com Margaret de Anjou.
Humphrey queria um casamento com a filha do conde de Armagnac, mas desde o julgamento de Eleanor o jovem Henrique ficara desconfiado de tudo o que o tio dizia e fazia.
Henrique estava se revelando um rei que achava difícil tomar uma decisão sobre qualquer coisa. Estava evidente que seria um fraco. Um rei assim fazia com que a mente de homens ambiciosos fervesse visando ao poder. Suffolk era um desses homens. Ele mantinha uma amizade muito estreita com o cardeal, mas isso era seguro, porque o cardeal era um homem idoso e andava adoentado havia algum tempo. O grande inimigo de Suffolk era Gloucester; e, já que a posição de Gloucester tinha sido muitíssimo enfraquecida com a suspeita de estar envolvido com a mulher numa trama para livrar-se do rei, ele não apresentava uma grande ameaça.
Gloucester estava muito cônscio disso. Ele já não tinha Eleanor para inflar sua confiança e dar-lhe aquele consolo que parecia que só ela podia dar. Não que ele estivesse velho, mas a vida que levara exigira muito de sua saúde, e havia momentos em que uma languidez tomava conta dele, e ele não ligava muito para os sucessos de Suffolk.
Suffolk foi enviado à França para buscar a noiva do rei; Suffolk foi promovido a um marquesado; Suffolk gozava da alta estima da nova rainha. Ele estava pronto para assumir o cargo de assessor principal do rei assim que o cardeal morresse - o que não poderia estar muito longe. E havia um homem que ele estava decidido a destruir-e esse homem era Gloucester. Além do mais, o destino parecia estar do seu lado.
Ah, Eleanor, pensava Humphrey, você quis demais para nós. Deveríamos ter ficado contentes com o que tínhamos. Agora, você perdeu isso... e parece que deverei fazer o mesmo.
Henrique deixara claro que não tinha vontade alguma de recebê-lo. Não confiava no tio e sentia-se muito constrangido em sua presença. Ele fortalecera seus guarda-costas.
- Tenho meus inimigos - dizia ele, e todo mundo sabia que estava pensando em Gloucester.
Mas Gloucester continuava sendo o protetor do país; e aquela era uma situação que não se podia permitir que continuasse.
O Parlamento reunira-se em Bury St. Edmunds, e Humphrey decidira ir até lá e pedir a libertação de sua mulher. Se pudesse levá-la, iria viver com ela, isolado de tudo.
Acompanhado de cerca de oito homens a cavalo, a maioria dos quais galesa, ele seguiu para Bury a fim de integrar o Parlamento que lá estava. A intenção era passar a noite num aposento do North Spital de St. Saviours, na Thetford Road. Eram onze horas da manhã quando ele entrou pela porta do Sul.
Andavam circulando rumores de que ele estava reunindo um exército para atacar o rei e Suffolk. Dizia-se que fora ao País de Gales a fim de recrutar tal exército. Era uma história inventada por seus inimigos. Ele não tinha ânimo algum para um projeto daqueles. Não queria saber de ambição, desde o momento que percebera para onde a ambição de Eleanor a levara.
Não, seu único pensamento, agora, era fazer as pazes com o rei e conseguir que Eleanor fosse libertada. Então os dois fariam uma nova vida juntos.
Um mensageiro cavalgava em sua direção, e Humphrey viu, pelo libré que ele usava, que vinha a mando do rei.
- Ordens, senhor duque - bradou o mensageiro.
- Ordens para mim?
- Do rei, senhor. O senhor deverá seguir sem demora para seus aposentos, e lá deverá ficar até que receba instruções do rei.
Gloucester não tinha alternativa a não ser obedecer, e foi direto para seus aposentos.
Uma refeição estava esperando por ele, e enquanto comia se perguntava o que seus inimigos tinham preparado para ele.
Um ou dois de seus amigos estavam com ele. Não restavam muitos, e pensava em como os amigos se afastavam de um homem em dificuldades.
Eles conversaram sobre o rei e a rainha, que parecia estar conquistando grande influência sobre seu fraco marido; e sobre Suffolk que, junto com Beaufort, parecia estar governando o país. Não por muito tempo. A rainha estava revelando sua índole. Era uma jovem decidida, embora tivesse apenas dezessete anos.
- vou falar com o rei - disse Gloucester - e pedir a ele que solte minha mulher. Então, estarei pronto para me livrar das amarras do cargo e ficar um pouco sem fazer nada.
- Aí o senhor irá recuperar logo a saúde, senhor duque. Humphrey tinha dúvidas. Sentira-se pior desde que chegara à estalagem.
Às vezes, sentia-se enjoado e não conseguia comer o que punham à sua frente.
Por que o mantinham prisioneiro ali? Por que ele não podia ir ao Parlamento e expor o desejo de passar adiante seus poderes, recolher-se à obscuridade com uma mulher que, se algum dia tivesse tramado alguma coisa, àquela altura aprendera a lição?
Seu criado tinha notícias alarmantes para ele.
- Senhor duque - disse ele -, membros de sua criadagem foram presos. Seus inimigos estão dizendo que eles conspiravam para matar o rei e colocar o senhor no trono.
- Isso é um absurdo - bradou ele, e pensou: "Ó Eleanor, como pôde fazer uma coisa dessas? Veja que dúvidas e suspeitas você desencadeou!"
- Seu filho Arthur foi preso.
- Não... não... Ele não fez nada. O único erro dele é ser meu filho.
- Não vão provar nada contra ele.
- Vão espalhar pelo mundo que provaram o que querem provar.
Humphrey levantou-se da mesa de almoço. Não conseguia comer. Queria ficar sozinho para refletir. Aquela doença repentina estava lhe tirando toda a vontade de viver. Ele, o grande Gloucester, irmão de um rei, tio de outro, estava preso naquela estalagem. Iriam condená-lo; chamá-lo de traidor. O que fariam com ele? Cortar-lhe a cabeça, como tinham feito com a de alguns de seus ancestrais? E se decidissem fazer isso, iriam fazê-lo depressa, para que não pudesse haver clamores para salvá-lo.
Ele percebeu tudo com nitidez. Tinha inimigos poderosos demais. O cardeal era bom comparado a Suffolk. Ele tentara influenciar o rei... mas outros tinham feito mais do que isso, e desde o julgamento de Eleanor ele passara a ser suspeito.
Humphrey dirigiu-se ao seu quarto de dormir. Sentia-se tão fraco que achava que ia morrer.
Estava doente... perto da morte, talvez. Havia momentos em que se sentia assim.
Ficou deitado, quieto. Passadas do lado de fora do quarto. Alguém estava vindo. Ele se sentia fraco demais para dar importância.
A porta abriu-se lentamente. Alguém estava ali, em pé.
Disseram que sua saúde, arruinada pela vida que ele levara, cedera de repente. Fazia algum tempo que estava adoentado.
Mas ainda havia quem disesse que sua morte fora muito repentina.
Os lordes e os cavaleiros do Parlamento estavam reunidos perto dali, e muitos foram ver o corpo.
Eles comunicaram ao rei que não havia sinais de violência. O rei devia lembrar-se de que o duque não gozava de boa saúde fazia algum tempo.
Ordenou-se que ele fosse colocado num caixão de chumbo. Ele mandara fazer um belo jazigo em St. Albans. Que fosse levado até lá e enterrado com a cerimónia indicada
para o funeral de um duque de sangue real.
Eleanor ficou pasma com a notícia. Percebeu, agora, que ficaria presa até o fim da vida.
Ela fora levada de Kenilworth para a ilha de Man, e quando olhava para as águas agitadas, voltava-se saudosa na direção da terra firme e pensava em tudo o que perdera.
Estava certa de que tinham assassinado seu marido. Ela devia ter estado ao lado dele, para protegê-lo. Ficou profundamente emocionada ao saber que ele estava a caminho do Parlamento para tentar conseguir perdão para ela.
Às vezes, durante a noite, ela imaginava ouvir os gritos de Margery Jourdemayne e os gemidos de agonia que deviam ter sido emitidos por Roger Bolingbroke em seus últimos momentos.
E Humphrey... o mistério de sua morte iria persegui-la pelo resto da vida, e ela desejaria saber quantas pessoas, pelo país inteiro, estavam perguntando e continuariam a perguntar por muitos anos: terá sido morte natural? Ele estivera doente; envelhecera prematuramente, embora tivesse vivido cinquenta e seis anos, e muitas vezes de forma desregrada. Ou será que um assassino entrou sorrateiramente em seu quarto naquele dia fatídico?
Ela não podia ter certeza. Só os assassinos - se houvesse algum - poderiam saber.
Tudo o que podia fazer era esperar os anos cansativos que a aguardavam e pensar no quanto a vida poderia ter sido diferente se tivesse ficado satisfeita com o que
tinha e não tivesse tentado esticar a mão para roubar uma coroa de ouro.
Jean Plaidy
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