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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ERROS SEM PERDÃO / Herman Tellgon
ERROS SEM PERDÃO / Herman Tellgon

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

" Histórias do F.B.I."

 

ERROS SEM PERDÃO

 

Uma série de roubos a bancos em cidades da Costa do Pacífico, levaram o FBI a designar os agentes Bill O'Hara e Charles Earl para trabalharem no caso.

Investigações mostraram aos dois que estavam lidando com uma inteligência superior, comandando os assaltos, sobre os quais não se tinham encontrado, até aquele momento, nenhuma evidência.

Mas, com informações recebidas de Bob Urso, O'Hara conseguiu infiltrar-se na quadrilha, logrando desbaratá-la por completo.

 

              

Apenas alguns rápidos bordejos e o barco se enfiou pelo porto, tranquilamente.

Atracou perto do grande pesqueiro, ainda coberto de salitre da última viagem pelos mares do norte.

Mal baixaram a ponte, os quatro marujos des­ceram e ficaram em frente, comentando ruido­samente os casos de bordo.

O mais alto, muito alto, feito uma torre, em­bora ágil, feições corretas, aproveitou a primeira pausa:

— Bem, rapazes, vou me mandar. Meus gor-gomilos estão que nem estufa. Mais tarde nos veremos.

Parece que foi o sinal de debandada.

              O mais alto e o mais baixo tomaram táxis diferentes na primeira rua, mas ambos para o centro e para apartamentos diversos e alugados pelo mesmo cavalheiro procedente do Middle West.

Os outros dois foram andando pela beira do cais.

A partir daquele instante, todos sincronizados por um mesmo controle remoto.

Cada qual, roupas mudadas, com pinta de gen­te da cidade, menos pelo bronzeado da pele. E todos reunidos no "Gato Dourado", pontualissimos.

A           louraça de cadeiras opulentas, atração da tasca, impressionou-se com a figura do mais alto. Parecia um "viking", desses do cinema, com vestimenta de peles e troféus de caça. Atendeu prontamente à voz cantante do homem alto, com um sorriso de simpatia à primeira vista e, curvando-se, sem se importar com o decote, mos­trando os generosos atributos de que fora dotada pela mãe natura.

— Escute aqui, meu broto – o gigante retri­buía o sorriso e olhava para onde devia. — Uns uísques pra gente. Mas, antes, me diga uma coisa: sabe onde é que fica a garagem de Forly?

— Muito fácil, meu bem. É logo uma rua adi­ante. Vizinha do Banco Currier.

— Obrigado. Você merece um beijo, boneca. Acertou uma palmadinha um pouco abaixo da cintura da moça que se virou para despachar o pedido, castigando um rebolado que só não interessou ao mais baixo:

— Onde você está com a cabeça, Cargan? Pra que tanta pergunta? Perdeu as instruções?

Cargan, o "viking", despertou das contempla­ções, olhando meio espantado em derredor:

— E não é que perdi?! Não sei onde, diabo, foi parar o plano. Fiquei doido e não encontrei. Só se deixei no barco. Não ia perder a hora, não acham?

Ninguém respondeu. Silencio francamente desconcertante. E Cargan emendou:

— Mas essa loura me deu a chave. Julgam que pode lembrar-se da gente? Duvido. Deve ter miolo de pão na cabeça.

Perto do balcão, a garçonete loura se abria numa risada marota, com a possível piada de um barrigudo ao lado. Cargan, tentando con­vencer:

— Eu não disse?

Entretanto, o gigante se enganava. A moça guardou-lhe o tipo. Só que, quando foi preciso, já não adiantava mais nada. Porque, naquele instante, Cargan sem saber tinha as horas con­tadas. Olhou para o relógio de pulso e sobres­saltou-se:

— Bem, rapazes, está na horinha. Vamos an­dando!

Na garagem de Forly, um homenzinho de olhar esquivo atendeu os quatro. Foi o mais baixo quem falou:

— Temos um carro guardado aqui, amigo. Sou Peter Crame.

O empregado olhou a turma, fez um sinal e entrou, seguido dos quarto:

— É este, Crame?

Mostrou um Ford 59, cinza. E estendeu a mão suja:

— Cinquenta bagarotes, amigo.

Peter Crame fez sorrir a carteira gorda. E escolheu uma inteira de cinquenta.

Os quatro ocuparam o carro, Cargan ao vo­lante.

O empregado virou as costas, resmungando, ainda ouvido:

— Tomara que se estrepem, sovinas de uma figa! Nem um níquel de gorja!

Peter Crame foi abrindo a porta:

— Esperem, aí. Esse cara me ataca o fígado. Cargan preveniu:

— Mas não demore!

O mais baixo foi andando e o homenzinho da garagem pressentiu. Virou-se com a chave inglesa que apanhou numa banca de trabalho:

— Não se aproxime! Vou lhe...

Perdeu a voz de repente. Já estava enquadrado por um Colt, empunhado por mão decidida.

— Largue esse brinquedo, seu atrevido! – or­denou o baixo.

A chave inglesa fez logo tilim no cimento. O empregado era apenas um velho resmun­gão, perseguido por uma antiga úlcera no esto­mago, sem parentes nem aderentes, sem nada de especial pela vida, mas tremeu todo quando se viu ameaçado. A mão não apertou o gatilho, mas empurrou-lhe a arma na barriga. O desgra­çado quase desmaiou, botando a boca no mundo, com brasa viva nas entranhas, retorcendo-se. Cargan não suportou:

— Ande logo, Crame! Faça esse verme ca­lar-se!

O mais baixo levantou o revólver e baixou com vontade na nuca do coitado. Uma só vez. O desgraçado desabou, completamente.

Quando o carro ia saindo, um dos bandidos ainda olhou o corpo do velhinho estendido sobre as manchas de óleo.

— Caiu como um coelhinho, hem, Billy? E o Billy sentenciou:

— É sempre assim. Só que eu procuro a seme­lhança entre um tipo como aquele e um coelho, e não encontro...

O mais alto fez valer a sua voz:

—Meio-dia e meia!  Já devíamos estar lá!

E o mais baixo retrucou:

— Ora, vejam! Que importância tem isso? Só fecham daqui a uma hora! Temos tempo de sobra.

O Ford subiu por Market Street, evitando o tráfego mais intenso; deixou à direita o anún­cio da Firestone, um enorme cartaz na fachada de uma casa comercial, dobrou à esquerda e, finalmente, parou em frente do Banco Federal.

Era um pequeno edifício de estilo colonial, com os ladrilhos vermelhos já um tanto desbo­tados, alguns quebrados.

Três entraram e ficou o magrinho nervoso ao volante, o motor ligado.

O gigante foi na frente, aproximando-se do guichê do pagador. O funcionário aguardou-o, indiferente. Apenas mastigou:

— Que deseja, senhor?

— Por favor, pode chamar Limmy Maple?

— Quem? — o moço estranhou.

— Limmy Maple, um amigo meu. Ele traba­lha nesta agência.

Armadilha das mais ingênuas, mas que sem­pre dava resultado.

— Está enganado, cavalheiro. Nunca ouvi esse nome. Aqui só trabalham, além de mim, Roddy, Eric e Karl Wooster.

Cargan mudou de cara, feroz:

— Vamos deixar de conversa! Vá erguendo os braços! – a pistola apontando a cabeça do funcionário. — Agora, vá saindo bonitinho. Qual­quer movimento extra, leva bala! – pulando o balcão e cutucando a costela do infeliz. — Em­purre a porta e chame seus companheiros. Rá­pido! – e pressionou o cano.

Na porta, lia-se "Gerência". Mãos ao ar, o caixa gaguejou:

— Roddy, venha aqui... – estirando o pes­coço para dentro do gabinete.

E a voz de dentro:

— Será possível! Não posso ficar um minuto em paz?

O medo fez funcionar a imaginação do apa­vorado:

— Gente de Washington, Roddy. Depressa! Querem todos reunidos. Parece que há diferen­ça...

Cadeira arrastada e só aí Roddy percebeu o companheiro ameaçado:

— Já vi tudo, covarde!

Cargan, entre os dois outros pistoleiros, cor­tou em cima:

— Como é, velhinho? Vai fazer o machão? Todo mundo pra fora! Isto é um assalto. Ou ainda não manjaram?

O mais baixo estava de metralhadora. E o mais alto é quem dava as ordens.

— Quem tem a chave desta ratoeira? – Car­gan apontou para o cofre.

O caixa olhou Roddy sem querer. O gerente virou uma fúria. E Cargan comandou:

— Derrubem o valente!

Foi com a culatra da metralhadora. O gerente caiu de maduro.

Cargan puxou com a esquerda a orelha do caixa:

— Vamos, belezinha da mamãe, deixe de tremedeira... A chave!

— Eu... não sei... não, senhor... Eu juro...

— Fale logo, redondinho, ou vocês todos vão pro beleléu... Diga onde está!

O funcionário nem pôde mais articular coisa alguma. Inútil. Cargan plantou-lhe um direto nos queixos. E virou-se para outro, apontando a pistola. Não precisou falar. O outro foi logo dando o serviço:

— Está com Roddy. Ele é quem guarda... Por Deus, eu juro!

Cargan tacou um pontapé no traseiro do ge­rente desmaiado. Nem assim o homem acordou.

— Reviste o bruto! – o altão ordenou ao alcaguete improvisado.

Era um sujeito sem qualquer definição, esta­tura mediana, cabelos e olhos castanhos. Apenas o queixo enérgico. Ajoelhou-se junto ao compa­nheiro caído, remexeu-lhe os bolsos e levantou-se, repentinamente, empunhando um revólver.

Cargan pulou de banda, gritando:

— Cuidado, Roscoe!

O funcionário não acertou. E foi acertado. Caiu varado por uma bala na testa, o queixo firme contraído.

— Reviste você, Roscoe.

A caixa-forte foi aberta e deu para deixar em pé todos os sacos que os assaltantes trouxeram.

O golpe fora muito bem preparado. Aquele di­nheiro todo se encontrava, assim, em Charleston, porque era destinado ao pagamento dos salários do Centro de Investigação Especial, situado em Virgínia City, localidade vizinha.

Os empregados ficaram amarrados e com esparadrapo na boca. Cargan fez humor:

— Múmias do Museu Egípcio de Nova Ior­que...

Os bandidos deixaram o local serenamente, carregando os sacos e comentando:

— Essa gente de Charleston parece surda. Os tiros não chamaram nenhuma atenção – Ros­coe estranhou.

Cargan explicou:

— Não é nada disso! Questão dessas paredes coloniais. O pessoal, antigamente, construía tudo na base do castelo. Cada parede larga que vou lhe contar. Ninguém ouve nada de fora.

O baixo, agora, deu as ordens:

— Vamos embora, minha gente! Vão querer ficar para o Natal?

O carro arrancou a toda. Caminho de volta com o mesmo percurso e, ao fim de Market Street com Oitava Avenida, marcha diminuída. Já aí o dinheiro havia sido transferido dos sa­cos para as malas.

Cargan ajustou:

— Tudo acabado. Pare na primeira esquina que eu vou saltar. Depois salta Roscoe e, mais adiante, Billy. Largue o carro no ponto combi­nado.

Ninguém disse sim nem não.

O magro do volante deslizou normalmente até Oitava com 6th Street. Parou com categoria profissional. À descida, Cargan ainda falou para o mutismo e a imobilidade dos companheiros.

— Vamos nos encontrar, agora, só no barco. Entendido?

O Ford disparou e o gigante saiu andando com as duas malas de mão, pegando o primeiro táxi.

Olhou para um lado e para outro, como se procurasse um endereço, deixando o táxi afas­tar-se. Subiu para voltar a vestir a roupa de marujo da chegada. A bolada estava agora me­tida no seu saco de lona de viagem, a tiracolo. Seguiu assobiando, despreocupado, pelas ruas do centro. Pegou outro táxi para o cais do porto.

Fez tudo como mandava o figurino. Tranquilamente atravessou a passarela, desceu ao tombadilho, atravessou o corredorzinho até o cama­rote do capitão.

Os três companheiros já lá se encontravam. Um sujeito troncudo, barbas cerradas, um ar enérgico, o capitão, recebeu o mais alto com cara de poucos amigos.

— Ora viva, chefe!

O capitão nem bulhufas. Fechou mais a cara dura, segurando o telefone interno:

— Podemos zarpar, Joe.

Ligeira pausa, o motor deu duas tossidas, pe­gou logo e foi fazendo tac-tac, se afastando do paredão.

E só aí o chefão se dirigiu a Cargan:

— Você é um idiota, menino. Você mesmo se condenou.

O gigante, aos primeiros segundos, só conse­guiu arranjar um sorriso amarelo. Por fim, tartamudeou:

— Mas... não compreendo?... Saiu tudo cer­to!... Eu... – olhou os companheiros em volta e cada um foi tirando a vista. — Eu agi direi­to... Olhe aqui, o dinheiro todo! Por favor, Urso, estão todos doidos?

O chefe Urso, quase fechando o olho esquerdo, o direito esbugalhado, sobrancelha no meio da testa, encheu o cubículo com a sua poderosa voz abaritonada:

— Você é um perfeito cretino, Cargan! Ouça bem: você não fez uma só coisa inteiramente certa...

Naquele momento, a loura do bar não acha­ria Cargan parecido com um "viking" de cinema. O gigante achatou-se:

— Mas... chefinho!

— Qual chefinho, nem meio chefinho, seu bo­boca! Aliás, vou emendar: o cretino sou eu, que fui confiar missão tão importante a um calhor­da da sua marca! Chefinho!... Vejam só! Não é homem, não, sujeito? Não tolero macho frou­xo!

O capitão, enfurecido levantou-se, olhou pela vigia e voltou a sentar-se, ainda bufando. Final­mente, falou mais sossegado:

— Repare só, Cargan. Primeiro você deixou, aqui, o plano de ação que preparei com o maior cuidado, com todas as instruções detalhadas. De­pois, fez uma pergunta perigosa à primeira va­gabunda que lhe abriu as fuças, no botequim. Além disso, perdeu tempo deixando Roscoe mal­tratar o empregado da garagem, e a culpa é sua que estava chefiando o comando. Pronunciou o nome verdadeiro de Roscoe, esquecendo-se do combinado "Peter Crame". Não se lembra? Quan­do aquele empregado do banco apanhou o revól­ver do gerente abatido. Um imbecil total, ainda por cima, permitindo a um otário apoderar-se de uma arma.

Pausa para acender o cigarro:

— Ainda pensa que fez um bom serviço? O dinheiro não é tudo...

O rosto de Cargan ia assumindo uma expres­são cada vez mais angustiante. Conseguiu mur­murar:

— Bem... eu... bem... não sei. Que é que eu podia fazer? Procurei agir...

Foi quando o chefe Urso abriu a gaveta de chofre e sacou a sua Luger famosa, que, em suas mãos, jamais desperdiçou bala.

O gigante louro caiu de joelhos:

— Pelo amor de Deus, Bob Urso! Não faça isso! Tenha pena de mim. Eu sempre fui seu...

Foi uma só, entre os olhos. Não disse nem ai.

Bob Urso soprou o cano da Luger e conti­nuou empunhando a arma.

Os outros três, olhos parados sobre o chefe.

Mais pausadamente, Urso largou a última sen­tença:

— Você, também, Roscoe... Podia muito bem ter dispensado a cena com o encarregado da garagem. Mas não é por isso, não... Cargan o condenou quando pronunciou seu nome, no ban­co. A culpa é desse...

Roscoe tentou sacar seu Colt, mas a mão não che­gou a ficar na horizontal. A Luger de Urso não consentiu. A bala perfurou-lhe a mão e se encaixou no pulmão direito.

Os dois caídos e o tapete marrom do camaro­te se empapando de sangue.

Os dois restantes, embora lívidos, com um sor­riso de aprovação para o chefe.

Bob Urso olhou a pistola. Com a mão esquerda pegou o cigarro da borda do cin­zeiro, para mais uma tragada. Esmagou a bagana e guardou a arma. Levantou a vista, afinal, com a ordem:

— Levem esses trastes daqui, amarrem um peso nos pés e esperem o barco se afastar mais.

Mãos à obra, incontinenti.

E já foram saindo, cada qual seu fardo às costas, sinistramente.

— Esperem... Voltem depois. Quero que mu­dem o tapete sujo.

Sozinho, Urso uniu as pontas do indicador e do polegar da mão direita, num gesto muito seu, como se levasse à cangalha do nariz, entre os olhos, um "pince-nez" invisível. Minutos assim, olhos fechados, no mundo das confabulações. Com os seus sabidos toques filosóficos.

Bob Urso era uma vocação de pensador.

 Só que as suas elucubrações o conduziam a um estado de espírito em sépia — fundo neutro por onde desfilavam, na planície, silenciosas si­lhuetas. O seu breve mundo sem interrogações e sem exclamações. Só o seu vulto definido, ilu­minado e sem iluminar os circunstantes, o cor­tejo amorfo da sua grei. O seu ideal sonhado.

Levantou-se como se despertando de aparente letargia.

Andou em derredor, olhou mais uma vez pela vigia e contemplou detidamente a pequena es­tante em frente, onde luziam lombadas de ouro.

Lá estavam Aristóteles, Santo Tomás e Bertrand Russell, Platão, Hegel, Spinoza, Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger.

Como que resolvido, apanhou finalmente o que se encontrava na horizontal, sobre a coluna de­corativa e reluzente. O seu Nietzsche, que já ia perdendo o dourado da encadernação de luxo. Pensou em voz alta:

— Sou o responsável pelos erros dos meus co­mandados. Se o chefe não erra... deve castigar os faltosos, os tolos, os néscios, os ineptos. Im­placavelmente! E concluiu: — Dos covardes a história não fala!

 

  Bob Urso desceu do táxi perto de Central Park.

Foi andando para os lados de Park Avenue.

Chamava atenção sua figura realmente im­pressionante, ombros largos, cadeiras estreitas, cabelos negros encaracolados, barba espessa, um tipo de grande atleta envergando, estranhamen­te, discreto azul-escuro dos big shots de Wall Street.

Seu Cadillac cinza-prateado estava estacionado mais adiante, no meio-fio.

O chofer recebeu-o cordialmente: — Alô, Bob.

A resposta foi um grunhido sem matizes. Urso entrou no veiculo.

Ordenou, secamente:

— Vamos! Tenho pressa.

Bob Urso recostou-se no assento fofo.

Sob sua tranquila aparência ardia um vulcão de pensamentos inquietantes.

Na última expedição, tudo correra mal. Claro que a culpa não era sua, mas daquele idiota de Cargan. Não fizera nada certo, o imbecil.

Mas os homens aos quais se dispunha visitar consideravam qualquer fracasso como responsa­bilidade direta do chefe do grupo.

Observou, indiferente, o colorido espetáculo da cidade, que se desenrolava diante de seus olhos, com imagens parecidas às de um filme muito lento.

Não gostava de Nova Iorque. Nem de Chica­go, ou São Francisco. Nenhuma grande cidade era o sonho de sua vida.

Entretanto, amava o mar. Embora aquele amor o tivesse levado a converter-se em instrumento cego de ordens criminosas.

Tudo acontecera simplesmente, quase sem es­forço. Fora uma consequência direta da mono­tonia que começava a chegar, também, para os únicos aventureiros que ainda restavam no mun­do.

Era como se a maldita burocracia, a ordena­ção em massa de todas as coisas, viesse manchar com sua baba viscosa a vida livre dos marinhei­ros.

Cada barco começava a converter-se numa es­pécie de oficina, controlada até os mínimos de­talhes, manejada por "robôs" humanos, que logo se tornariam verdadeiras máquinas, dota­das de cérebros eletrônicos.

A única coisa que não haviam conseguido mu­dar era a magnífica força do oceano enfurecido, a maravilhosa beleza das noites escuras. Miríades de estrelas assomando ao céu para o espe­táculo das embarcações.

Urso jamais se preocupara com o que aconte­cia em terra firme.

Nem sequer recordava seu lugar de nascimen­to, ou o nome dos pais. Ou, talvez não desejasse recordar...

Era um produto do mar. Segundo se comprazia em afirmar, aparecera num dia qualquer, num porto de Boston, quando apenas contava doze anos; desde então, não permanecera ancorado mais de dez dias, em toda a sua vida.

Por isso, tremenda amargura apoderou-se de seu coração quando teve de renunciar a ficar embarcado, durante dois meses, "grudado como um maldito colarinho engomado" – segundo sua expressão –, no cais número oito de Manhattan, por causa de um detalhe de burocracia.

A coisa não poderia ter sido mais absurda. Al­guém descobrira, de repente, que ele não era norte-americano.

Não importava que em toda a sua vida tivesse servido em navios que ostentavam a bandeira estrelada, ou que durante a guerra tivesse com­batido no Pacífico, obtendo várias condecorações.

Os papéis sabiam mais do que Bob e de to­dos seus amigos juntos. Demonstravam que seus pais foram imigrantes clandestinos e que ele jamais conseguira a cidadania americana.

Sua existência toda a pique, por causa de um pormenor mesquinho e sem importância!

Negou-se a solicitar uma revisão de seu caso. Bob Urso não estava acostumado a mendigar.

Instalou seu posto de comando na taberna "Varizes", uma espelunca cheia de ratos, inclu­sive humanos, situada no extremo mais infecto do cais.

Ali encontrou o homem que deveria ocasionar a guinada de leme mais imprevista, com que ja­mais sonhara.

Era apenas um intermediário. Um tipo insig­nificante, um crápula, cujo ofício consistia em vender informações: um espião.

Deslizara para um banco junto ao seu, com os movimentos furtivos de uma serpente.

Falara com voz sibilante, em saltos bruscos:

— Mister Bob; acho que... os tempos maus... as autoridades de imigração... dificuldades... proibição de embarcar...

Compreendia-se a razão por que haviam ape­lidado aquele tipo de "Telegrama".

Bob Urso pensou que tentava vender-lhe do­cumentos falsos. Esteve a ponto de jogá-lo dali, com um safanão.

Mas algo do que "Telegrama" lhe dizia o con­teve.

— Meu assunto?... Tenho uma colocação pa­ra você... boa... estupenda... muito futuro...

Por fim, conseguiu entender a proposta. Assim começara tudo.

Uma vida cheia de aventuras, excitante, dra­mática. E, especialmente, ação direta contra aqueles que o mergulharam no mar da revolta, contra os detestáveis homens do governo.

Primeiro, como integrante dos grupos de cho­que, os chamados "comandos".

Aquilo agradava. Três ou quatro homens de­sembarcavam num porto qualquer, previamente escolhido. Num golpe rápido: milhares e milha­res de dólares surripiados das arcas do Tesouro para os bolsos de homens que sabiam gastá-los. Trabalho fácil. E limpo.

De quando em quando, alguém morria. Mas na simplória filosofia do Urso, a morte em luta aberta era o único final digno da trajetória de um homem.

Entretanto, com o transcurso do tempo, Bob fora perdendo seu entusiasmo primitivo.

Dava-se conta de que servia antes, aos inte­resses de uma simples quadrilha de criminosos, carentes de verdadeira personalidade.

Resultavam quase tão maus quanto os buro­cratas, responsáveis por sua decisão.

Estes também se encontravam modernamente organizados. Manejavam com os assuntos como o faria uma companhia dedicada a investimen­tos industriais.

A única diferença consistia na possibilidade de um fim violento.

Precisamente naquele momento, Urso ia ao encontro do que poderia resultar em sua morte.

Súbito, inclinou-se para frente. Tocou no ombro do motorista:

— Pare aí. Em frente a esse bar.

O outro obedeceu. Não obstante, em suas pu­pilas ficou estampada uma expressão de curio­sidade.

Bob Urso venceu a distância que o separava da entrada do estabelecimento, onde se propu­nha penetrar em duas passadas.

Tomara uma decisão. Talvez a entrevista que o esperava não tivesse consequências desastro­sas.

Mas, se assim fosse, estava disposto a deixar atrás de si um rastro de inquietações para os homens aos quais, até então, servira fielmente.

Possuía boa memória. Revolveu nas recorda­ções, tirando o número de telefone necessário.

Discou-o com lentos e pausados movimentos. Ouviu, durante alguns instantes, o zumbido ao outro lado da linha.

Depois, chegou-lhe a voz sonora de um homem. Reconheceu o timbre imediatamente. Exclamou:

— Alô, Bill. Você ainda continua aborrecendo os contribuintes?

Houve um silêncio e logo ouviu:

— Alô! Bob Urso! É você, homem?

Sentiu-se satisfeito. Bill O'Hara ainda se lem­brava dele. Gostaria de dispor de mais tempo para conversar com ele.

Mas a entrevista cujas consequências tanto o preocupavam não poderia ser retardada. Por­tanto, foi diretamente ao assunto. Falou:

— Escute, Bill. Talvez ache estranho o que eu vou lhe dizer. Mas isso é de suma importân­cia para mim.

Ligeira pausa e continuou:

— Estou navegando em água pesada, rapaz. É possível que acabe servindo de comida pra tubarão. Se não voltar a lhe telefonar amanhã, investigue. Vai encontrar coisa de muita impor­tância para você. A voz de Bill chegou-lhe excitada:

— Que foi que houve, Bob? Que é isso?

— Não posso continuar falando. Só peço que cumpra o que pedi. Nada mais, Bill. Adeus.

Desligou. Saiu da casa e tornou a entrar no carro. Deixou passar por alto a interrogação que percebeu no olhar do motorista.

Ordenou:

— Pode seguir.

Outra vez o Cadillac deslizou em meio ao intenso tráfego da cidade.

Chegaram, por fim, à ponte de Brooklin. Des­viaram para a South Street, em Montgomery.

Detiveram-se diante do Edifício Garden. Bob desceu do carro. Misturou-se à multidão.

O elevador conduziu-o para o trigésimo quinto andar.

Andou pelo longo corredor atapetado até uma porta de vidros, em que se lia: "General Ships Company".

Não se preocupou em bater. Entrou. Atraves­sou o pequeno hall, deserto, até a porta dos fundos. Abriu-a. Fechou atrás de si, cuidadosa­mente. Dois homens o contemplaram em silên­cio, enquanto avançava na direção de ambos.

O contraste entre aqueles dois indivíduos era extraordinário.

Um de aparência suave, cabeleira branca, corretamente vestido, olhos claros num rosto inexpressivo.

O outro de grande corpulência, feições rudes, cabelos crespos e cor de fogo.

O primeiro saudou-o:

— Que foi que houve, Bob? Demorou muito. Sabe que eu não gosto de esperar.

Bob permaneceu em silêncio. Estava alerta, percebendo que logo desapareceriam os modos corteses, para dar lugar aos verdadeiros méto­dos de seus associados.

O outro continuou:

— Mas isso não importa, agora. Nós o cha­mamos para que explique o que aconteceu no último trabalho. Que é que tem para dizer?

Urso ocupou o assento forrado de couro verde, no outro lado do escritório, diante de seu inter­locutor.

Acendeu um cigarro. Mostrava-se sereno, mes­mo com seus pensamentos num turbilhão. Por fim:

— Já disse tudo o que houve, em meu relató­rio escrito. Não foi culpa minha. Aquele idiota de Cargan complicou tudo. Que é que eu podia fazer?

— Claro que você explicou muitas coisas, Bob. Em demasia, talvez. Mas esse relatório mostra, fielmente, o caminho que devemos seguir, ami­go. Não lhe parece?

— Que quer dizer?

Interveio, então, o ruivo. As palavras lhe saí­ram da garganta como rajada de metralhadora:

— Raios! Parece que você não compreende o que acontece, não é? Trata-se de aplicar seus próprios remédios, sabe? Unicamente isso.

Bob enfrentou o ruivo. Pouco a pouco, a crise ia atingindo seu ponto culminante. Tornou a perguntar.

— Que quer dizer?

Os ombros do ruivo, pelo visto, adquiriam maior consistência. Levantou o queixo agressivo, ameaçadoramente.

Grunhiu:

— Está bem, idiota! Vou lhe explicar... Agora parecia morder as palavras. Prosseguiu:

— Você julgou conveniente eliminar Cargan e outro dos homens, para apagar as provas. Bem: essa foi uma decisão inteligente. Mas, por que só eles?

Apontou Bob com uma mão que mais parecia a garra de um gorila. Um véu vermelho marca­va-lhes os nós viscosos. Finalizou:

— Você também representa um perigo, Bob. A organização não deve se expor a ser descober­ta. Em consequência...

Não disse mais. Urso compreendeu perfeita­mente. Aquilo representava sua sentença de morte.

Pouco antes, ao falar com Bill O'Hara, colo­cara uma carga de explosivo que, esperava, sal­taria sob os pés daqueles homens.

Mas tentou esquivar-se ao impacto do destino.

Sabia que sua condenação fora ditada. Sob o braço esquerdo, o volume da Luger no coldre parecia lançar-lhe mensagens de luta.

Falou para ganhar tempo:

— Estão loucos! Acham que  devem levar as coisas tão longe? Eu fiz o indispensável. Ninguém... – A mão direita, num movimento perfeitamente natural, deslizou em direção à pistola. Continuou falando... —nos descobrirá. Ninguém! Nunca! Eles... De repente, deteve-se. Compreendeu que não conseguia enganar.

O ruivo empunhava um cano-curto, cabo de madrepérola, reluzente, mais um enfeite de "boudoir" que propriamente um duro instrumen­to de trabalho nas mãos decididas de um homem. Só aparência, porque vomitava fogo como qual­quer outro.

E o outro, ao lado, impassível, olhar parado e o que seria um sorriso em hora amável.

Bob Urso já conhecia aquela gente para sen­tir que nada mais adiantava.

Só ação desesperada.

Não se morre na cama, ou semi-embalado nu­ma poltrona qualquer.

Pulou como se impulsionado em trampolim, já de pistola na mão.

Não chegou a baixar inteiro no tapete.

Caiu como um gigantesco pássaro abatido.

Mão direita apertando aquela mesma Luger que jamais falhara, agora inútil.

 

Bill O'Hara possuía uma insolente confiança em sua boa estrela. Dizia sempre: "Se eu me perder num deserto, será a poucos me­tros do único oásis, em um milhão de milhas ao redor."

E geralmente tinha razão. Mas, de vez em quando, a sorte contrariava, embora seu otimis­mo resistisse bravamente.

Naquele dia, porém, já era demais. Tudo saí­ra mal. Primeiro, "El Dorado" mancou e era "barbada". Entrou em terceiro e Bill O'Hara pelo cano.

Os quinhentos dólares, propriamente, não eram seus.

É verdade que, antes, em dias de patas mais firmes, quase toda a bolada fora conseguida com os cavalinhos. Grande parte. Isso, porém, não justificava. Dinheiro foi ganho e bem ganho. Agora é que perdera.

Além dos quinhentos, perdera Lana Fleur... Isto, sim! Parecia escutar-lhe a voz navalhando: "Não, não me apareça, nunca mais! Não estou disposta a suportar um tipo que só faz jogar dinheiro fora, um irlandês repugnante, dominado pelo vício!"

Lana ofendeu. Sim, ofendeu demais. Com al­guma razão, sem dúvida. Ele não poderia esque­cer que parte dos quinhentos era da moça.

Bill regressou à cidade, em melancólicas re­flexões.

No cruzamento de Lexington com Rose May, deteve-o um motociclista.

Havia deixado para trás, sem mais aquela, um sinal vermelho. Custou-lhe outros cinco dó­lares, apesar de que, ao mostrar seus documen­tos, fizera ressaltar, mas não demasiado, o fato de ser um agente do FBI.

Um dia estúpido, desde cedo manchado por uma série de estúpidas complicações.

Num repente de mau-humor, decidiu encerrar-se em casa e permanecer assim o resto da jor­nada infeliz.

Tinha suficientes provisões na geladeira, in­cluindo uma garrafa de uísque escondida na ga­veta central da sua mesa de escritório.

O apartamento parecia frio, silencioso. Acen­deu as luzes dos quatro aposentos e abriu os radiadores da calefação.

Ali acabou sua atividade. Sentou-se atrás da mesa e puxou a gaveta da garrafa. Despejou uma boa dose, no copo longo. Ficou assim. De vez em quando, olhando o copo contra a luz. De vez em quando, baixando o nível do con­teúdo.

O diabo daquela bailarina estampada no vidro do copo deu agora para sorrir como alguém, para se movimentar com tamanha graça que só al­guém cuja última aparição não deixou de ser uma fúria linda...

De repente, assaltou-o um sentimento de so­lidão, nunca antes experimentado.

Era como se, de súbito, se tivesse convertido no único habitante de um planeta desconhecido, uma espécie de Robinson Crusoé.

Só que sua aventura transcorria na enorme cidade de Nova Iorque, rodeada de milhões de seres, muitos dos quais eram seus amigos, ou, pelo menos, conhecidos.

Analisou o que sentia. Não apreciou a con­clusão. E o diabinho da bailarina do copo com atitudes inteiramente conhecidas. No fundo de todos os seus pensamentos, apenas uma imagem. Maravilhosa imagem. Ouro nos cabelos, nácar na pele e pérolas e rubis na boca. Não importava a joalharia, mas era assim mesmo. Sorriu e tragou com vontade seu drinque no nível peri­goso.

Desgraçadamente, o mínimo era constatar que estava apaixonado... Como iria acontecer aqui­lo? Apaixonar-se? Impossível!

Em centenas de vezes, nos seus tratos com mulher, chegara ao mais sensato julgamento da questão: conceder-lhe maior importância que a outro passatempo qualquer, significava pura e simples debilidade mental.

Estaria ficando maluco? Idiotizando-se?

Serviu mais uma dose avantajada.

O negócio era tomar um laxante qualquer. Pai­xão? Só poderia ser consequência de algum desarranjo do aparelho digestivo. Balançou o copo e já fazia o arco para a boca. A bailarina ficou no ar.

A campainha do telefone retiniu na hora mais imprópria.

A interrupção irritava-o. Estava indócil, na ponta dos cascos. Porque resolvera tomar um pileque modelo grande.

— Alô, Bill, ainda continua chateando os con­tribuintes?

Mais do que o tom de voz, foi a frase que lhe reavivou as recordações. Bob Urso. Seu antigo chefe de operações na guerra do Pacífico!

Urso jamais dera o braço a torcer, desde o dia em que soubera de sua entrada para o FBI.

Para eles, os agentes federais cumpriam apenas uma obrigação: arrecadar impostos.

Ficou emocionado ao ouvir aquela voz. Era a lembrança de ontem que lhe chegava de pron­to, a alegria de reencontrar um velho amigo.

— Alô, Urso! É você, homem!

Pensando bem, que estaria acontecendo com Bob Urso? Só poderia ser algo de muito im­portante, terrivelmente perigoso. O marinheiro não era de recorrer a alguém por dá cá aquela palha. Era barra pesada das mais autênticas.

Dissera que navegava em mares turbulentos. Disse qualquer coisa sobre tubarão. Estava claro que se referia a alguma ameaça. E deveria ser muito grave, isto não tinha dúvida.

Xingou o telefone que parecia uma esquisita deidade maligna, assim deitada, com um disco numerado na barriga, segurando os frutos ne­gros dos fones pendurados. Negócio de bêbedo? Ainda não. Inspiração de artista dopado.

Bob Urso prometeu ligar no dia seguinte... Caso ainda estivesse em condições.

Encolheu os ombros. Que poderia fazer de mo­mento? Só restava esperar.

Mas agora as quatro paredes assumiam o triste aspecto de frios muros de prisão.

Largou tudo, garrafa e tudo, e bateu a porta de saída atrás das costas, como se perseguido por milhões de diabinhos sarcásticos, rindo-se da sua falta de homem.

Deixara o carro perto da entrada. Os pneus cantaram de cara.

Atravessou as ruas de Manhattan repletas, entulhadas de veículos de toda espécie, um trepidante enxame enfurecido.

Deteve-se, por fim, diante do edifício do Ban­co Milton. Ali vivia Lana Fleury.

Quando se dispunha a saltar, viu-a saindo. Sen­tiu como uma golfada de ódio no rosto e a gosma percorrendo as veias.

Um homem acompanhando Lana! Ah! Vontade de correr-lhe ao pescoço e apertar-lhe, assim, assim, até vê-la esbugalhar os olhos, a língua estirada grotescamente, toda ela transformada num monstrinho horripilante! Seria possível? (O companheiro não tinha importância. Estava no seu papel. Mulher dá bola, o homem não é trouxa.)

Olhou o sujeito. Gabardina clara e chapéu flexível. Um tipo qualquer, entre os milhões de Nova York.

Uma nuvem encarnada atravessou-lhe a vista. Sabia, precisamente, que o desejo de cometer um assassinato se aninhava em seu coração.

Pulou feito um gato até ao casal. Segurou o camarada pelo ombro e, feroz, obri­gou-o  a voltar-se sobre si mesmo.  Preparado para desferir-lhe um murro que seria uma patada. No estômago. Quando Ele se inclinasse, aí seu joelho funcionaria na cara do atrevido que lhe roubava Lana.

— Mas que é isso, Bill?! Que está fazendo? Você...

A ira irracional dissolveu-se como um torrão de açúcar na água quente. Fez cara de menino sem jeito:

— Ah! Ê você, Charles? Pensei que...

As perscrutadoras, claras pupilas de Charles Earl, agente do FBI, seu companheiro mais che­gado desde que ingressara nas hostes famosas, estavam ali, bem lúcidas, com uns laivos de ironia.

Junto a Earl, Lana parecia uma estátua de indignada expressão. Em seu rosto surgira um certo muxoxo de desprezo.

Bill perdeu a faculdade de improvisar. Não havia palavras que pudessem dar a medida de seu assombro.

Earl falou de novo, vindo em seu auxílio:

— Bem — começou. — Rapaz, você chega caído do céu, mas muito oportunamente. Preciso falar com você. Pensei que estivesse com Lana. Então, vim vê-la. Mas ela...

A menção de seu nome pareceu como o toque de uma corrente elétrica sobre a pele da moça. Que falou, indignada:

— Eu lhe disse, Charles, que não sabia nada sobre ele. E mais ainda: nunca mais quero saber! Entendeu?

Durante um instante, Lana permaneceu ante os dois homens, bela, luminosa, desafiante. De­pois, deu meia volta e encaminhou-se para o ho­tel. A suave curva de seus ombros expressava um mudo protesto.

Charles assobiou baixinho. Logo comentou:

— Diabos! Ela está furiosa, hem? Que acon­teceu desta vez?

Suas palavras chegaram até Bill, tirando-o do silêncio sombrio em que havia caído.

De repente, riu. Subitamente compreendia algo, até então vedado ao seu raciocínio.

Lana pertencia-lhe, na mesma medida em que ele estava ligado a ela.

O comentário de Charles Earl revelava algo que, sem dúvida, pertencia ao domínio público, que era assunto habitual entre os que os conhe­ciam.

Que acontecera desta vez? Nem mais nem me­nos do que o de sempre.

Um simples caso de amor entre duas pessoas por demais independentes.

Tornou a rir. Agora sabia que Lana jamais poderia deixá-lo. Era certo que, naquele instan­te, devia estar desejando matá-lo. Mas as tem­pestades de verão passam logo e a natureza flo­resce com maior força.

Charles falou de novo. Em sua voz havia um tom de preocupação:

—Escute, Bill. Está se sentindo mal? Você ri como se estivesse louco! Que é que tem?

Com esforço, Bill recuperou a compostura:

— Não se preocupe. São assuntos pessoais. E, em seguida, perguntou:

— Você disse que estava me procurando. Pre­cisa de alguma coisa?

— O "Velho" quer vê-lo. Tem um caso para nós dois. Um quebra-cabeça.

— Está bem. Vamos.

Entraram no carro de Bill e riparam.

Enquanto percorriam os atapetados corredores que conduziam ao gabinete do chefe da Divisão de Nova York do FBI, Bill tratou de saber algu­ma coisa a respeito da missão projetada.

— Tem ideia do que se trata, Charles?

— Acho que é uma série de roubos ao longo da costa oeste, Bill. Mas não conheço os pormenores. Sabe como é que o "Velho" trabalha.

Bronson Rommer contava apenas quarenta anos. Entretanto, os homens que trabalhavam sob suas ordens chamavam-no de "Velho".

Alto, de feições dignas, movimentos seguros e firmes.

Todos os seus atos eram presididos por uma mente analítica, muito precisa.

Tinha por costume, antes de ordenar qualquer tarefa, estudar o caso minuciosamente.

Recolhia todos os indícios possíveis, utilizando para isso a formidável máquina do FBI.

Quando considerava que todos os dados esta­vam em suas mãos, avaliava-os, designando, en­tão, o homem certo, segundo sua apreciação, para o serviço certo.

Indicou as duas poltronas forradas de couro amarelo. Bill O'Hara e Charles Earl, sentaram-se.

Os agentes da divisão do FBI em Nova York diziam que aquelas poltronas eram os modernos cavalos de tortura, utilizados por Rommer para criar uma sensação de desconforto em sua volta, espantando os paulificantes.

Mas, apesar das brincadeiras e das opiniões dos agentes a seu respeito, Bronson Rommer go­zava do respeito e admiração de sua turma.

Enquanto esperava que Rommer falasse, Bill O'Hara voltou seu pensamento à chamada tele­fônica de Bob Urso.

Desconcertante, para quem conhecesse aquele homem. Bob jamais pedira ajuda a ninguém. Tinha condição de lutador nato. Gostava do pe­rigo. Em meio à violência, Urso movia-se com um dinamismo fulminante de uma absoluta con­fiança em si mesmo.

Algo muito perigoso e que, ao mesmo tempo, não poderia enfrentar por seus próprios meios, levou-o a aquele telefonema de socorro.

 

A voz metálica do inspetor Bronson arrancou-o dos seus pensamentos.

— Escutem, rapazes, gostaria de chamar-lhes a atenção para alguns pontos importantes do trabalho em mira...

Bill escutou atento, distante das suas preo­cupações de há pouco.

Abrindo a volumosa pasta de cima da mesa, Bronson prosseguiu:

— Trata-se dessa série de assaltos a bancos, nas cidades da costa do Pacífico. Os jornais não falam de outra coisa, vocês já devem saber. Mas o fato é que precisamos dar um paradeiro no assunto, quanto antes.

Abriu um gráfico.

— O inicio das atividades teve lugar, precisa­mente, aqui, em Los Angeles — apontou no mapa. — Contra o Banco Harvard, com cem mil dólares arrancados, sem tiro nem morte. Os assaltantes caíram do céu, ou foram expelidos do inferno, realizaram o trabalho e deram o fora sem deixar rastro.

Andou com o lápis, apontando.

— A segunda incursão foi em São Luís, con­tra o Banco Santa Fé. Duzentos mil dólares! Dessa vez, o caixa mais afoito tentou resistir e ficou inválido para o resto da vida, com o braço amputado. De novo, os criminosos viraram azougue.

Indicou São Francisco.

— Aqui, a coisa piorou: meio milhão e um morto. Banco Federal. E novamente não deixa­ram pista.

O inspetor largou o gráfico e fitou Bill O'Hara.

— Depois... Oakland, Sacramento, Mendocino...

Fez uma longa pausa, não podendo conter um gesto de revolta, não obstante o olhar frio, o ar de eficiência e compostura. Mas é que jamais um caso fustigou tanto os federais. Foi lembrando, mentalmente, todos os ases do FBI que nada conseguiram até o momento. Na reu­nião de Washington, convocada por sua sugestão, aventara o nome de Bill O'Hara, sempre lembrado, geralmente, para outros ramos de contravenções, mas um superagente, de grande experiência, com um sem-número de vitórias que o faziam quase legendário. Discutida a proposi­ção e finalmente aprovada, os que fizeram res­trições, quanto ao setor diferente do habitual para o agente em questão, estiveram acordes em considerá-lo excepcionalmente dotado. Seu otimismo constante parecia a razão de ser dos seus múltiplos êxitos, nas áreas em que fora empenhado até agora. Pela primeira vez, então, iria defrontar-se com assaltantes, misteriosos as­saltantes que frustravam a habilidade de todos os especialistas.

O inspetor voltou a falar aos dois policiais ali presentes, no seu gabinete:

— O último assalto foi há pouco, na cidade de Charleston, contra outra agência do Banco Fe­deral. Mataram um homem: Karl Wooster. E desta vez parece que deixaram algum indício: um dos bandidos gritou o nome do outro. E localizaram os dois. Melhor, três dos assaltan­tes...

Bill interrompeu:

— Não arrancaram nada dos caras? Num caso assim, vale até barra pesada...

— De nada valeria torturar cadáveres — ata­lhou Bronson. — Os três homens foram mor­tos. Pelo menos, dois. O terceiro desapareceu.

Charles Earl, como de hábito, assobiou baixi­nho, sempre que decepcionado com alguma coisa. E ajuntou:

— Usam métodos bastante rudes... Bronson continuou.

— Pelo visto, os chefões do bando só conhe­cem um meio de fazer calar possíveis infor­mantes. São brutais.

Por fim, Bill quis saber diretamente:

— Suponho, então, que o trabalhinho é nosso, mesmo?

O meio sorriso de Bronson disse sim.

— Vamos dar-lhe essa oportunidade de divertir-se mais um pouco, Bill. Segundo se diz, ulti­mamente as suas atividades estão sendo desen­volvidas numa área muito restrita, nas proxi­midades do hipódromo...

Ligeira pausa e acrescentou:

— É lógico que o nosso Earl será seu compa­nheiro.

E apontando a pasta:

— Todo o material conseguido está aqui. Algu­mas informações, logicamente. — E para O'Hara: — Talvez agora você encontre o tal oásis...

Só mesmo com Bill, o inspetor Bronson se permitia alguma brincadeira, depois de tantos casos resolvidos juntos. Conhecia-lhe o valor, não obstante  a aparência  boêmia,  despreocupada.

Considerava-o uma inteligência superior servida por impressionante capacidade física.

Os agentes deixaram o gabinete do inspetor e foram diretamente para uma sala ao lado, destinada a reuniões.

Duas horas depois, examinada a papelada toda da pasta, chegavam à conclusão que pouco an­daram.

Bill sacudiu a cabeça leonina, com algum desespero:

— Não... agora, chega! Isto é limão que já deu sumo. Vou sair.

— Pra onde?     

— Tomar um pouco de ar puro... — já res­pondendo do corredor.

Não foi propriamente a fome que conduziu os passos do agente Bill O'Hara ao restaurante próximo ao edifício do FBI. Nem a sede. Qual­quer coisa lhe dizia que Lana, passada a raiva primeira, a indignação contra o seu último fra­casso no hipódromo, correria a um encontro ca­sual, no ponto de sempre...

Acertou. Conhecia o seu eleitorado.

No lugar habitual, junto à janela para o rio, no reservadinho favorito, Lana Fleur desabrochava, mesmo com trocadilho... Que beleza de

Lana! Certamente, caprichara. O vestido era o mesmo do primeiro encontro. Inclusive, aquela flor no ombro. Tudo como da primeira vez ali mesmo, naquele mesmo lugar, o mesmo garçom e a mesma bebidinha, o mesmo "pernod" esbranquiçando, o mesmo copinho da casa... Lana era o máximo! Cheia de detalhes, quando queria agradar. Só que não suportava perder nos ca­valinhos... Não tinha importância! E com isso sentia que algo um tanto estranho lhe envolvia a mente.

Sentou-se, finalmente, na cadeira, ao lado da moça. E continuou calado. Fitando-a, apenas. Ruminando considerações que o assombravam, por dentro. Até então, a jovem não passara de mais uma em sua vida um tanto turbulenta, compa­nhia agradável depois de vasto batente. Mas ago­ra o prisma era outro. Perdê-la, agora, seria como secar para sempre a sua fonte de ternura.

Suspirou. Murmurou:

— Escute, querida, sinto muito, eu...

A moça tapou-lhe a boca com muita graça, como se lhe desse a mão a beijar:

— Ouça, Bill, não prometa mais nada. Estive pensando em nosso caso. Garanto-lhe que nunca me senti mais humilhada e ofendida. Meu desejo era afogá-lo, confesso, ou, mais simples, perdê-lo de vista para nunca mais...

Fez uma pausa, olhos brilhantes, e continuou:

— Pensei em ir embora, por algum tempo.

Comecei, inclusive, a arrumar as malas. De re­pente, compreendi tudo. Era alguma coisa muito simples que vinha tentando ocultar de mim mes­ma, talvez por medo...

Olhou-o firmemente. Bill sentiu seu coração dis­parar, mas continuou escutando.

— Estou apaixonada por você, Bill! Esta é que é a verdade. Estou perdidamente apaixona­da! E que posso fazer contra isso?

Bill O'Hara estarreceu-se, embora com clarinadas matinais naquele fim de tarde enlanguesceste. Sem dizer nada, levantou-se de brusco e obrigou Lana a levantar-se. Estreitou-a, estrei­tou-a, cingiu-a, apertou nos braços a bem-amada! Que desfalecia, num enlevo.

Despertaram com o toque do garçom, o peque­no Jorginho Careca da simpatia de ambos.

Jorginho castigou um pigarro sem jeito:

— Quero ser o primeiro a felicitá-los. Espero que o casamento seja logo.

Bill foi categórico:

— Pra já, meu caro, pra hoje mesmo, se pos­sível! Daqui a pouco, irei...

Estancou o entusiasmo. Lembrou-se do tra­balho. Sentaram-se. Lana quis saber:

— Alguma dificuldade, Bill?

— Escute, minha filha, esqueci uma coisa im­portante. Teremos de esperar mais um pouco. Há um assunto que devo liquidar, antes...

A jovem noiva recobrou o habitual:

— Bill O'Hara! Não trate de me enganar... É qualquer coisa relacionada com o seu serviço, não é?

Bill fez que sim com a cabeça.

— Assim, está bem. Não pretendo interferir na sua carreira. Quero que siga adiante. Admiro sua profissão e nunca serei um obstáculo.

O agente federal percebeu que, apesar das palavras corajosas, sua noiva por pouco soluça­va. Mas sentiu que havia sinceridade. Porque o amor chegara para ambos inapelàvelmente e trilhando caminhos sinuosos, aos tropeços.

— Depois disso, meu amor, creio que a pista será de grama.

Lana fez que não ligou para a imagem do seu viciado muito querido. Respondeu no mesmo tom de encantamento:

— Tudo farei pra que meu bobinho não tope... raia pesada...

Sorriram ambos, felizes, felizes, beijando-se, felizes, nem reparando no Jorginho Careca que trazia mais bebidinha, agora oferta da casa.

 

Charles Earl levantou a cabeça, indignado. Em seus olhos brilhava a expressão furiosa de fera acossada.

Explodiu:

— Diabos! Este monte de lixo não serve pra nada! Podíamos jogar fora esse papelório todo, agora mesmo. Raios! Que é que vamos fazer?

Encontravam-se no apartamento de Bill, que ocupava o divã cinzento no "living".

Earl agitava-se numa cadeira, em frente.

Agarrou o copo de uísque, que estava ao lado, sobre a mesinha redonda.

Bebeu um gole. Passou as mãos pelos lábios, num gesto habitual quando se encontrava em ponto de bala.

Os nervos de Charles Earl eram motivo de constante troça por parte de seus companheiros.

Mal começava a mergulhar nos complicados problemas de um caso, surgia a série de tiques que não conseguia dominar.

Sua interrogação ficou flutuando no ar. Bill olhava para o teto, como se lá fosse encontrar a inspiração necessária.

Earl prosseguiu:

— Esses coiotes aparecem e desaparecem, como fantasmas. Ninguém os vê antes, ninguém os torna a ver depois. Como é que conseguem isso?

Fez uma pausa. Depois finalizou, numa ex­plosão:

— Raios os partam!

Ficaram silenciosos, perdidos em reflexões. O'Hara apanhou o copo que estava sobre o tape­te, junto ao divã.

Tomou um gole e, por fim, murmurou:

— Escute, Charles. Há uma coisa que, talvez, pudesse ter uma explicação. Pelo menos, é a única que eu encontro.

Earl saltou da cadeira, ansioso:

— Demônios! Qual é? Tem certeza que...?

O'Hara ergueu-se, abandonando a horizontal ainda àgilmente. Falou:

— Bem, é o que eu vejo. Todos esses assaltos têm uma qualidade em comum. Uma só. Fixe-se nisso.

Mostrou ao companheiro o gráfico que o inspe­tor Bronson utilizara, no dia anterior.

A linha da costa do Pacífico desenhava-se claramente, desde o cabo Flattery até São Diego, Seguiu-a com o dedo. Continuou:

— Note isso, Charles. Em todas as ocasiões, os assaltantes agiram em uma cidade marítima, ou bem próxima à costa. Em todos os casos, tratou-se sempre de uma cidade pelo menos pró­xima de um porto. Nunca agiram a mais de cinco ou seis milhas para o interior. Isso me sugere uma coisa.

— Diga logo, homem!

— Por que não imaginarmos que praticam a fuga por via marítima? Seria muito fácil. Che­gam ao porto e desembarcam aparentando ino­cente tripulação. Perdem-se, então, na cidade. Reaparecem, depois, convertidos no que realmen­te são: um bando de assassinos, dispostos a tudo. Quando acabam o trabalho, põem-se novamente ao largo. Simples, não é?

Pouco a pouco, Charles ia-se aproximando dele. Em seus olhos brilhava uma expressão de en­tusiasmo. Mal O'Hara cessara de falar, gritou:

— Estupendo, Bill! Maravilhoso! Naturalmen­te que deve ser assim. Estamos com o caso resolvido. Você é fabuloso! Eu...

Com um gesto, Bill conteve explosão do com­panheiro.

— Um momento, Earl. Não é tão simples como parece. Pense um pouco, rapaz. Torne a olhar o gráfico. Talvez perca seu otimismo.

Charles obedeceu. Seu rosto foi-se alargando. Bill disse:

— Que lhe parece?

— Tem razão, Bill. Vai ser tão difícil como sair do inferno.

— Isso mesmo — confirmou 0'Hara. — Eles escolheram bem os lugares, se não estamos en­ganados. Quantas centenas de toneladas entram, por dia, nesses portos?

Um gesto de desalento foi a resposta de Char­les Earl. A interrogação de O'Hara abria parên­teses de incerteza.

O movimento portuário desses lugares era imenso.

Centenas de embarcações, procedentes de todos os pontos da terra, teriam de ser investigados.

Milhares e milhares de homens sobre os quais poderiam recair as suspeitas.

Talvez pudessem reduzir a área de investiga­ção, tomando como base as datas próximas ao momento em que ocorreram os assaltos.

Mas, ainda assim, resultaria uma tarefa estafante. Earl comentou:

— Teremos de trabalhar como formigas.

Lançou seu assobio, agora mescla de resig­nação e protesto. Bill disse:

— Escute, Charles. Você vai iniciar as inves­tigações, ainda hoje. Peça que lhe mandem a lista dos barcos que entraram em cada um desses portos, abrangendo um lapso de tempo de, apro­ximadamente, dois meses. Obrigue os rapazes de Washington a se mexerem. Precisamos das listas dos tripulantes, dos nomes dos comandantes, dos armadores, das casas consignatárias. Enfim, todos os dados relacionados com essas embarcações. É possível que, ao estudarmos o conjunto, possa­mos esclarecer algo, não acha?

Earl inclinou a cabeça, concordando. Sabia que as ordens de O'Hara não poderiam ser outras.

O trabalho policial geralmente está condicio­nado a noventa e nove por cento de serviço si­lencioso, tenaz, meticuloso, de estudo dos dados recolhidos aqui e acolá. Só valia um por cento de intuição.

A dupla Bill O'Hara e Charles Earl entendia-se às mil maravilhas.

O'Hara era a usina das ideias.

Earl incumbia-se da execução.

Só no fim, na hora do pega pra lascar, então ambos se convertiam numa máquina única, uma poderosa máquina de briga, espécie de gigantes­co rolo compressor levando tudo de vencida.

Bill levantou-se. Apanhou o paletó que havia deixado, cuidadosamente, sobre a cadeira.

— Onde é que vai? — quis saber Earl mais com os olhos.

— Uma investigaçãozinha muito pessoal. Por minha conta... Ainda não lhe posso dizer nada. Trata-se de uma ideia que vai surgindo devagarzinho...

Saiu enfiando o casaco e falando.

Qualquer coisa lhe agitava o pensamento, aflo­rando aos poucos do subconsciente. E dominando-o por inteiro.

Saiu correndo, então.

O tema marinho voltava, insistente, desde o dia anterior.

Primeiro, fora o telefone de Bob Urso, com sua estranha significação.

Depois, pouco mais tarde, o inspetor Bronson deixava cair sobre seus ombros a tarefa de acabar com aqueles assaltos, que pareciam insolúveis.

E agora encontrava-se ante a possibilidade de que os criminosos responsáveis por tais fa­çanhas utilizassem vias marítimas, que não dei­xavam pegadas...

Por outro lado, havia a promessa feita a seu velho amigo, de investigar, no caso em que ele não voltasse a chamá-lo.

Esperara notícias de Urso, mas parecia como se a terra o houvesse tragado.

Recordava o que lhe afirmara o marinheiro: "Se eu não tornar a chamar, investigue. Vai encontrar coisas de muita importância para você."

Encaminhou-se para o edifício do FBI.

Diretamente, em busca do homem que poderia resolver o problema imediato.

Peter Monsen lembrava uma traça, em constante movimento entre empoeirados papéis.

Seu aspecto sugeria cenários de outros tempos, talvez dos dias em que Dickens mostrava seus personagens a um mundo semiadormecido, in­capaz de contemplar-se no espelho de seus es­critos.

Mas Monsen reinava num lugar supermoderno, parecido a um laboratório, submetido a uma im­placável assepsia: o Arquivo da Divisão do Fe­deral Bureau of Investigation na cidade de Nova Iorque.

Cumprimentou Bill com um sorriso. Sua figu­rinha ágil deslizou sobre o chão de matéria plástica, com os movimentos de gnomo de Walt Disney.

— Alô, Bill, algum problema? O'Hara dramatizou:

— Um milhão deles! E só posso contar com o meu amigo Peter Monsen.

Monsen esfregou as mãos.

— Vamos ver. De que se trata?

— Preciso saber do roteiro de um homem e a partir de 1947. E se possível seu domicílio atual. É bárbaro!

— Diga o nome do bruto.

— Urso, Bob Urso. Imagino que não seja "Urso" o sobrenome. Mas nunca lhe soube de outro.

Peter botou os olhos no teto. A ponta do in­dicador na ponta do queixo... E iluminou-se:

— Eu manjo esse boneco! Bob Urso... Há qualquer coisa nos arquivos.

Deu um passo na direção dos enormes armá­rios de aço.

— É pra já!

E partiu feroz para o seu tesouro de car­tões.

— Bob Urso... Urso Bob...

Deteve-se, por instante.

— Claro que é Ele. Bob Urso, antigo mari­nheiro. Atuou no Pacífico, ganhou medalhas, um tipo fabuloso. Claro! Os rapazes da Imigra­ção deram-lhe muito trabalho. Foi muito feio, sabe? Esse homem era tão americano como qualquer outro. Acho que isso lhe soube muito mal...

Enquanto falava, abriu um dos arquivos metá­licos. Rebuscou.

Pouco depois, tirou uma ficha.

— Aqui está. Bob Urso. Roberto Malinsky. Um metro e noventa de altura. Cabelos negros, feições regulares. Orelha direita deformada, aficcionado de pugilismo. Profissão: marinheiro. De­clarado imigrante ilegal. Humm!

O zumbido de Monsen prolongou-se por alguns segundos. Finalmente, retomou o fio:

— Perambulou pelo país vários anos, enquan­to seu caso era estudado pelas autoridades. Sem emprego conhecido. Viveu em Chicago, Detroit, Nova York, outra vez Chicago e, por fim, Nova York. Último domicílio conhecido: 47 Leste, Nolford.

Ergueu os olhos da ficha. Olhou Bill. Finali­zou:

— Não há nada mais. Mas esses dados são de 55. A julgar pelas atividades de Urso, é possível que, a estas alturas, se encontre na Groenlândia, ou, talvez, ainda mais longe. Depois de ligeira pausa, perguntou:

— Isso pode lhe servir para alguma coisa? Bill O'Hara encolheu os ombros. Comentou:

— Ainda não sei. Mas vou tratar de investi­gar.

 

Quarenta e sete, Leste. Nolford está situada nas proximidades do Armazém 7, em Whitehall.

Uma ruazinha, de casas não muito altas, pare­des cinzentas, descuidadas.

Bob Urso vivera ali, na pensão da viúva Madison.

Só um homem não se preocupando com as mínimas exigências da vida poderia suportar semelhante vizinhança.

O'Hara subiu pela escada ensebada e corroí­da que leva até aos escuros aposentos da viúva.

Lógico que antes de chegar até ali, a ficha da mulher fora detalhadamente levantada. O agente não se mancava. A dona era receptadora, achacadora, traficante de drogas, exploradora do lenocínio. Completíssima. Com uma lista de breves condenações, tão longa quanto sua própria vida.

A cara de corvo de Sara Madison assomou cau­telosamente, às batidas de Bill.

Os que vivem à margem da lei desenvolvem uma fenomenal capacidade olfativa, para tudo quanto cheire a agente policial.

Os olhos de abutre da viúva Madison pisca­ram alarmados com a presença de O'Hara.

O agente empurrou a porta e foi recebendo o bafo azedo de verduras cozidas, ambiente fe­chado, poeira, imundície.

No pequeno "hall", as figuras se confundiam na escuridão.

Bill disse logo ao que veio:

— Procuro Bob Urso. Quero saber onde ele está.

Não precisava enxergar. Adivinhou o susto da mulher.

A resposta foi a esperada:

— Vá bater em outra porta, moço. Não conhe­ço nenhum Bob Urso por aqui. Pode ir embora!

Olhos mais acostumados, Bill atravessou a saleta. E puxou com o dedo o interruptor da luz.

Uma lampadazinha sonolenta apenas conseguiu borrifar penumbra no local. Mas a miséria am­biente adquiriu relevo.

Sara Madison lembrava uma dessas bruxas dos contos infantis, embora sem vassoura e cha­péu de ponta, mas sem beleza e sem virtude. O mapa do tempo, em baixo-relevo, no seu rosto de ave. Vestia uma indumentária esquisita. Blusa de seda brilhante e calças masculinas, sujas e desbotadas.

Bill O'Hara insistiu:

— Escute, Sara, não vamos perder tempo. Ou prefere ser interrogada fora daqui? Vamos, logo. Preciso dessa informação. Não tenha receio...

Falando e mostrando o distintivo que ainda mais perturbou os olhos redondos da velha.

A viúva Madison odiava a polícia em geral e, de um certo modo, não considerava muito os seus agentes. Questão de hábito. Durante os seus longos anos, já enfrentara um sem-número de representantes da lei. Mas a verdade é que não suportava mais sair daqueles seus domínios. Valia a pena atender, então. Qualquer resistência maior, talvez significasse mais uma condenação, largar tudo e recomeçar tudo de novo. A vida não passava de um carrossel sem graça, repe­tindo as mesmas coisas. Além disso, a sigla do FBI, o famoso FBI, sempre representava, para qualquer marginal, algo digno de respeito.

Bill detalhou:

— Vamos, minha santa, eu conheço o seu parangolé... E muito bem! Só que desta vez sua escrita é legal. O negócio não lhe diz respeito. É só dar o servicinho sobre Urso. Preciso falar com esse cara. É urgente. E sei que você manja o assunto. Agora... se persiste de bico fechado, vai se aborrecer, garanto que vai! Compreende?

A mulher percebia a ameaça.

Que aconteceria se permanecesse muda?

Uma série de inconvenientes. Seria uma teimo­sia tola.

Mastigou, finalmente:

— Faz muito tempo que Urso se pirou daqui. Nunca mais soube dele.

Bill "morava" nas reações normais dos delinquentes. Admitiu que a mulher dizia a verdade... em parte.

Certamente, Bob já não parava mais naquela pocilga. Mas Sara deveria saber o seu destino.

— Está bem. Você não sabe de nada. Terei de tirar minhas próprias conclusões. Isso não vai ser bom pra você. Já estou pensando que você é sócia de Urso. E daí?

Deixou que suas palavras fizessem o efeito desejado na mente da bruxa. E continuou:

— Escute bem, sua teimosa, eu quero saber onde foi Bob Urso! Faça tudo pra lembrar-se. Do contrário...

Com visível esforço, a mulher disse:

— Urso anda trabalhando por fora. De um lado para o outro. Ultimamente, dizem que se alojava no "ForesfS... — puxou as calças pra cima e concluiu: — Não sei de mais nada. Pronto! Já disse tudo. Além disso, não suporto esse tal Urso de uma figa. Nem ele nem suas amizades. Agora, dê o fora! Já perdi muito tempo com aquele traste... — e como se justificando: — Aquele pilantra indecente! Mal se viu com um dinheirinho muito micha, foi logo se mandando... Cre­tino!

Bill compreendeu que era tudo. E era muito. Saiu considerando o salto dado por Bob, da as­querosa pensão da viúva Madison ao fastígio do "ForesfS". Da água para o vinho.

O "ForesfS" era uma espécie de Palace Hotel para a fina flor do gangsterismo. Só gente bem do "metier" podia se dar ao luxo de uma suíte no conhecido hotel dos criminosos, uma dessas curiosidades da cidade grande.

Um apartamento simples, quarto e banheiro, custava muito mais por um dia, do que Ele, Bill, agente federal, ganhava num mês. Um despro­pósito. Só com dinheiro fácil.

E ali estava o mostrengo. Pretensiosíssimo. Ar­quitetura tirada à moderninha, com toques, ima­ginem, de gótico!

O energúmeno que o concebeu gastou mármore como material básico. Resultando: aquela espé­cie de panteon de bôlo-de-noiva suburbano, onde os cadáveres desfilavam, no entra-sai dos seus negócios geralmente escusos.

Interrogou o funcionário fardado, entrinchei­rado no balcão.

Teve de vencer a reserva do homem, mediante nova exibição de credenciais.

Ficou sabendo que Bob Urso tinha mesmo um apartamento no hotel, mas que, naquele momen­to, estava ausente. Há umas quarenta e oito ho­ras, ninguém via o marinheiro...

Bill ia notando as reticências.

Parecia que todo mundo sabia de mais alguma coisa irrevelável.

Foi ver os aposentos de Urso. Nada mais frio. E na base do mármore da fachada. Nada menos acolhedor.

Procurou ficar sozinho. Lentamente, refrean­do os nervos que o impeliam a agir depressa, ini­ciou uma busca minuciosa. Negativa. Bob Urso era um fantasma. Sem consistência. Imaginou que alguém, antes, já passara o pente fino no local.

Revistou, conscienciosamente, os bolsos dos ter­nos dependurados no embutido.

Esquadrinhou tudo.

Parou, pensando uns bons minutos.

As palavras do velho amigo e companheiro de campanha no Pacífico lhe ressoando no cérebro, constantemente. Um pedido de socorro. Mas, pelo visto, Urso pretendia vingança, unica­mente. (E vingança não ajuda.) A conclusão era óbvia.

— Enfiaram o amigo Urso no pijama de ma­deira.

Não fosse assim, ninguém teria se preocupado em -apagar até a mais leve impressão digital, na­queles seus aposentos do "ForesfS".

Sem mesmo saber por que, Bill O'Hara rela­cionava o desaparecimento de Bob Urso com o caso dos assaltos.

Nada que apoiasse firme semelhante ideia. Mas a coincidência no tempo, os processos utili­zados, tudo isso fazia algum traço de união.

Apanhou o telefone na mesinha de cabeceira. A voz da telefonista, uma gostosura, atendeu. Pediu uma ligação com o FBI. Imediata. Peter Monsen atendeu.

— Escute, velhinho, preciso mais de você. Co­nhece alguém no "ForesfS"? Alguém que se possa pressionar, de quem se possa conseguir alguma colaboração?

Monsen foi rápido.

— Procure Hamley — O Matador. Diz que é de­tetive da casa. Não conte com coisa alguma es­pontaneamente. Mas esse rato treme de medo só em pensar no nosso grupo. Já o apanhamos mais de uma vez. Qualquer resistência, fale meu nome. Vai ver como ajuda.

Bill desligou. Uma sorte aquele tipo, O Mata­dor, empregado do "ForesfS".

Detetive de hotel deve conhecer mais que ninguém as atividades dos hóspedes. Lógico.

Foi encontrar O Matador no bar do restau­rante, castigando uma dose dupla, com a cabeça quase tocando as costas.

Era um indivíduo de baixa estatura, óculos de lentes grossas, cabeça de bola, com uma penugem avermelhada.

O Matador viu logo o agente se aproximando.

Bill ocupou o outro tamborete alto ao lado.

Hamley se mexeu incomodado, fazendo menção de retirar-se.

O'Hara segurou-o pelo braço, prevenindo-o:

— Nada disso, Matador. Quero que tome uma bebida comigo. Será que você esqueceu os velhos amigos?

Efetivamente, Hamley — O Matador – conhecia de sobra o federal. Só que antes o investigador baixinho usava outro nome.

O'Hara continuou:

— Eu estava me perguntando quem poderia ser o grande O Matador, o detetive particular de uma casa como o "ForesfS". Então, é você, hem?

O agente fez o pedido ao barman. E logo:

— A propósito, como é mesmo que você se chamava, no tempo daquele casinho de Chicago? Não há meio de me lembrar!

O Matador quase se engasgava. Suor na testa. Bufando. E grunhindo, quase ao ouvido do G-Man:

— Está bem, O'Hara, você ganhou. Que é que anda buscando por aqui?

Lançou um olhar furtivo para o barman e acrescentou:

— Por favor, amigo, agora sou um homem hon­rado. Tenho um trabalho aqui e gostaria de conservá-lo. Não fale tão alto.

Bill teve vontade de aplicar-lhe um pontapé nas canelas.

Sabia que, assim como os patos se lançam na água logo que nascem, O Matador não podia ver poça imunda.

Aquele homem não tinha noção do bem e do mal. Uma longa lista de delitos, de todas as espécies, enfeitava sua ficha policial, sem que jamais aparecesse nela a menor referência a uma possível retificação de conduta.

Acedeu, não obstante. Conhecia os criminosos e suas manhas. Por outro lado, o caso de Urso parecia cheio de possibilidades sinistras. Talvez, naquele momento, O Matador já desconfiasse do que esperava dele.

— Bem — disse Bill, — vamos para qualquer lugar onde possamos beber em paz. Você conhe­ce o ambiente. Vamos lá!

Hamley foi aos saltinhos de pássaro se en­caminhando para o elevador.

E Bill atrás. Até o sexto andar. O quarto do detetive particular era mais digno de uma pobre ratazana escorraçada. O que dava a medida da importância que o "ForesfS" concedia ao seu in­vestigador.

O agente ocupou a única cadeira existente. E o Matador na beira da cama, de lençóis encardidos e embolados.

Hamley rompeu o silêncio, com cara de choro.

Fazendo o injustamente maltratado pelo des­tino:

— Julguei estar livre dos tiras pro resto da vida. Garantiram que seria assim, logo que con­seguisse um emprego honesto. E não é verdade! Já estou farto. Agora é você...

— Stop, Hamley! Ninguém está aqui pra in­comodá-lo. A menos que não se mostre razoável. Só pretendo algumas informações. Depois, pode continuar sua vidinha honrada... Até que co­meta algum engano e vá espiar o sol quadrado.

O Matador gemeu:

— Eu não sei de nada! De nada mesmo! Me deixe em paz...

Bill cansou-se da chanchada. Levantou-se num Ímpeto e juntou o homenzinho pela lapela.

— Fale logo, seu anão! Está pensando que estou aqui de brincadeira? Ou dá o serviço, ou lhe arrebento as fuças, imbecil!

Empurrou-o de volta ao catre. O Matador de pernas pro ar, subindo e descendo no lastro ba­rato.

E Bill em cima:

— Vou mandá-lo pra cadeia o resto da vida! Vai gramar uma cana sentida, seu piva ordiná­rio. É só remexer uns casinhos antigos, mais ou menos esquecidos. Você sabe disso.

O Matador já sentado, com o pavor nos olhos.

Bill acendeu o cigarro, deu uns três passos até o armário de pinho. Umas três tragadas. Mais calmo, afinal.

Ficou em frente do detetive Hamley — O Mata­dor, que pegava a sua estadia no "ForesfS", depois de toda uma vida atrapalhada.

O agente federal olhando firme, em silêncio.

Esperando o resultado das suas ameaças bem sacadas.

Afinal, Hamley:

— Pode me ceder um crivo?

Bill passou-lhe o cigarro, ainda sem dizer nada.

O Matador quase não percebeu o maço, no seu nariz. Só aí lembrou que os óculos lhe caíram quando o agente o suspendera, atirando-o na cama. Pôs-se de pé e abaixou-se, apalpando o assoalho. Bill teve pena e ajudou.

Colocando os óculos de lentes grossas Hamley parecia que ressuscitou. E foi logo falando:

— Obrigado, O'Hara. Que é que você anda bus­cando?

— Preciso de Bob Urso, ou de alguma informa­ção que me leve à sua presença. Você deve saber alguma coisa a respeito.

— Bem, o que eu sei é muito pouco. Era um tipo mais fechado do que uma ostra — Bill ano­tou que, ao falar de Urso, Hamley o fazia no passado. — Além disso, tinha uma maneira pou­co amistosa de olhar. Duas ou três vezes eu quis puxar conversa com ele, mas só o que consegui como resposta foi um grunhido.

O'Hara recordou-se da pouca simpatia que Urso demonstrava, durante a guerra, por aqueles que queriam imiscuir-se em sua vida privada.

Manteve-se em silêncio, deixando que O Mata­dor prosseguisse em sua explicação.

— Eu, então, me afastei dele. Não gosto de me meter com a vida daqueles que matam pulgas, compreende O'Hara? Mas, não deixei de sentir curiosidade. Urso surgira aqui de repente, trocando a casa da viúva Madison pelo "Fo­resfS". Não era estranho?

Sem esperar resposta, O Matador prosseguiu, embalado pela confidencia:

— Comecei a vigiá-lo. Trazia dinheiro. Muito dinheiro. Tutu grosso. E sabia gastar. Bebida, mulher, baralho. Só com gente dele. Mas era um tipo engraçado. De vez em quando, nada disso. Aparecia com uns livros difíceis, bem encaderna­dos, com nomes arrevesados. Nada de revista amarela, ou máscara negra. Assuntos importan­tes. Sujeito curioso, aquele Bob Urso. Depois, de­saparecia. Três a quatro semanas de cada vez. E de novo começava a torrar a gaita. Ou a ler, muito compenetrado. Nunca consegui saber por onde andava. Apenas...

Deteve-se. Em seus olhinhos havia, agora, uma expressão de ansiedade, de medo enorme. Perguntou:

— Isto que estamos falando vai ficar só entre nós dois, não é? Eles me matariam!

Bill tranquilizou-o com um gesto, ao mesmo tempo em que dizia:

— Sabe que nem uma só palavra sairá daqui. Continue.

Limpando o suor que lhe escorria pela testa, o homenzinho voltou a contar:

— Levei vários meses para relacionar os fa­tos. As viagens de Urso coincidiam, sempre, com as visitas de um homem. O sujeito apresentava-se aqui, ou o chamava pelo telefone. Reuniam-se sem beber, percebeu? Tratavam de negócios, sem dúvida. Depois, Urso desapareceu em uma de suas viagens misteriosas. Isso é tudo o que eu sei.

Bill perguntou:

— Como se chamava esse homem? O Matador tentou ganhar tempo:

— Que homem? Ah! Você se refere ao visitan­te de Urso, não é? Bem, a verdade é que... eu...

Com entonação feroz, O'Hara intimou-o:

— Vamos! Solte tudo, de uma vez! E rápido! O Matador, desgostou-se:

— Está bem, está bem, vou lhe dizer... Mas acontece que...

Subitamente, Bill apertou o nariz do homen­zinho. Entre o indicador e o polegar. Fez uma pressão brutal. E torceu. Lágrimas de dor man­charam os grossos óculos do valente investigador particular do hotel dos "gangsters". Que lançou um guincho de rato com focinho na ratoeira.

Bill abriu os dedos. E O Matador gemeu:

— É Tom High "Telegrama". Ele dizia ser representante da "General Ships Company", uma companhia que transporta frutas do Caribe para os Estados Unidos. Mas "Telegrama" jamais teve uma só hora de trabalho honrado, durante a vida. Então, decidi segui-lo... Isso foi um erro. Quase me custou a pele. Eu...

— E o que aconteceu?

A lembrança do que sucedera refletiu-se no olhar de O Matador e também na transpiração tra­duzido em grossas gotas de suor sobre a testa.

Baixou a voz, como se temesse ser ouvido:

— Nunca pensei que "Telegrama" pudesse ser tão perigoso. Ou seus amigos, o que dá no mesmo. Observei andanças, durante algum tempo. Uma noite, dois tipos me agarraram, dois assassinos. Eles...

Fez uma pausa angustiosa. Finalizou, num sussurro:

— Estive um mês no hospital, sabe? Desde en­tão, aprendi a manter-me longe de Bob Urso, de "Telegrama", qualquer que fosse seu maldito ne­gócio. Aquilo era forte demais para mim.

Bill O'Hara tinha a sensação de que seus pres­sentimentos sobre uma possível conexão dos assaltos com Bob Urso iam adquirindo consis­tência.

Perguntou:

— Quais foram as conclusões que tirou de suas averiguações, antes que o agarrassem?

Agora Matador parecia até contente de falar. Talvez pensasse que aquele seria o meio de vin­gar-se dos homens que o haviam maltratado.

Explodiu:

— Esse bastardo de "Telegrama" está servin­do de isca para uma "gang". São tipos espertos, é lógico. Devem ter um negócio que é uma mina de ouro, a julgar pela quantidade de dinheiro que manejam os homens que trabalham para eles...

Parou de falar. Com um suspiro queixoso, acrescentou no fim de um instante:

— Vão me matar se souberem que andei fa­lando como um papagaio! É certo que me matam!

Bill resolveu ir embora.

— Não continue falando assim, Hamley. Você é capaz de me fazer chorar. Mandarei uma coroa para seu enterro.

 

O "living" do apartamento de Bill O'Hara es­tava que era só papel, fichas, pastas, es­tatísticas, jornais.

Qual um pobre náufrago esquálido, Charles Earl se levantava daquele mar de documentos.

Montado na única cadeira disponível, Bill ia consumindo seu cigarrinho, enquanto escutava as lamentações do companheiro:

— Veja só a minha vida! Jamais pensei que iria topar com uma coisa assim, quando entrei para as forças federais. Sonhei que era só fazer o mocinho a toda hora, lutando contra as — enfatizou, gozando o assunto — terríveis forças ocultas que ameaçam a humanidade!  Seria o herói do FBI! E, agora, veja... É um papelório nauseabundo! Eu morro! Bill interrompeu o orador:

— Está bem. Charles. Sei que você está farto disso. Mas o que eu quero saber é o resultado do seu trabalho. Que foi que tirou a limpo?

— Malditos sejam todos os papéis e todos os gabinetes! Há vinte e quatro horas que engulo poeira! Você pensa que...

Interrompeu-se ao não encontrar palavras su­ficientemente fortes para traduzir sua revolta.

Depois de um certo silêncio, decidiu seguir o conselho de O'Hara. Falou, mais calmo:

— Bem, a verdade é que tenho muito pouco para lhe oferecer. Há umas duas pistas. Vai ser difícil segui-las. Mas, na falta de coisa melhor, teremos de nos conformar com isso. Eu...

— Vamos, Charles. Que é?

— Segui suas indicações. Só duas companhias marítimas podem ter conexão com o caso. Em todas as ocasiões em que se realizaram assaltos aos bancos, próximos aos portos, ou neles mes­mos, havia barcos seus, de onde os assaltantes pudessem partir. Uma, chama-se "Transocean Company". A outra, "General Ships Company". A primeira...

Bill reagiu, como se lhe tivessem aplicado uma corrente elétrica.

— Você disse "General Ships Company"?

— Isso mesmo. Trata-se de uma companhia que se dedica ao transporte de frutas. Tem uma série de embarcações de pequena tonelagem. A maior parte foi comprada ao fim da guerra, dos excedentes das forças navais. Suas agên­cias estão em Nova York. Mas as primeiras investigações indicam que não é possível... Bill interrompeu-o, novamente:

— Não se preocupe com o que possam dizer essas primeiras investigações, Charles. Concen­tre seus esforços nessa companhia. Acho que temos o fio que andávamos buscando. Escute...

Começou a relatar a Earl o resultado de suas investigações no caso de Bob Urso. Finalizou:

— Está percebendo? Aí temos a necessária coordenação. Urso sentia-se em perigo, quando me chamou. Talvez pensasse que conseguiria livrar-se. Podemos admitir que seus receios tinham origem nos misteriosos contatos com "Telegra­ma", encobertos por uma aparência legal, sob o nome de "General Ships Company".

Acendeu um cigarro. Earl escutava-o, atento.

— Agora, preste atenção. No único caso em que os assaltantes deixaram pista, em Charles­ton, conheceu-se o nome de um. Seguido seu ras­tro, localizado, isso de nada nos serviu, não foi? Os três homens, que tomaram parte no assalto, estão agora mortos. Coincide com o telefonema de Urso. Pode deduzir-se que, talvez, esteja sendo processada uma limpeza geral entre os componentes do bando, executores do último assalto. Se for assim...

Vinha armando precipitadamente todo o caso, tratando de derrubar o muro que se interpunha entre seu caminho e o dos assaltantes.

O fato de Bob Urso ter encontrado a morte lutando, parecia-lhe inteiramente lógico.

Há muito tempo que não via seu amigo. Mas, nos raros momentos em que lhe viera a lem­brança de Urso, sempre o imaginara metido numa roda viva de perigos e violências.

Bill O'Hara, que sempre aceitara, tranquila­mente, a possibilidade de morrer, de um instan­te para outro, como resultado de ação violenta, não podia sentir rancor por alguns desconheci­dos, possíveis autores da morte de Urso.

Tudo fazia parte de um jogo. Cujas regras estavam escritas por lutadores e para lutado­res.

Earl obrigou-o a desviar o curso de seus pen­samentos, perguntando-lhe:

— Que pensa fazer em tal caso?

Olhou para o companheiro. A resolução, que já estava forjada em seu cérebro, tomou forma:

— É muito simples. Vou pôr-me em contato com "Telegrama". É possível que ele precise de algum novo recruta para sua organização, com­preende?

Earl assentiu, em silêncio. Sabia que Bill O'Hara se dispunha a realizar uma tarefa ar­riscada.

Ia introduzir-se nas fileiras dos criminosos. So­mente assim, seguindo o frágil fio que parecia enlaçar a "General Ships Company" com os as­saltantes, conseguiriam algum resultado positivo.

 

Tom High "Telegrama" era alto, delgado, de bigodinho fino caído sobre as comissuras dos lá­bios.

Tinha o feio aspecto de um falso profeta des­nutrido. Seus olhos olhavam o mundo suavemen­te, assombrados com tanta maldade, tanta vio­lência.

Claro que aquele aspecto era apenas aparente. Seu verdadeiro caráter, que refletia sobre toda a vida de "Telegrama", estava ali, nas parcas e tão expressivas linhas das fichas policiais.

Nem ele mesmo poderia dizer onde nascera. Ou de quem.

Era um produto típico da grande metrópole. Um homem que, como ele próprio costumava di­zer, fizera-se por si mesmo.

Possuía uma grande força de vontade. Sur­gindo do lixo e no lixo do Armazém Sete abrira passagem aos empurrões, num mundo de homens fisicamente mais bem dotados.

Chegou a obter o diploma de advogado. Mas tal ascensão não servira para mudar-lhe as ideias com respeito à sociedade.

"Telegrama" chegara à conclusão de que so­mente o dinheiro dignificava o homem.

Em consequência, todos os seus esforços ten­deram sempre para a obtenção do vil metal, transformado pela técnica moderna em simples retângulos de papel quase sempre esverdeado.

Logo percebeu que nunca teria êxito como ad­vogado, fazendo jogo limpo nos Tribunais.

O defeito de pronúncia, que determinara seu apelido de "Telegrama", fechava-lhe o caminho.

Mas, se bem que a oratória lhe fosse vedada, não acontecia o mesmo com o de "consultor ju­rídico".

Durante alguns anos, depois de terminado o curso, todos os criminosos, de uma ponta a ou­tra da nação, começaram a ouvir falar em "Telegrama".

Dizia-se que seu domínio do Código e das pos­síveis escapatórias para os criminosos chegava às raias do milagre.

Contava-se que conseguira salvar da cadeira elétrica Terry MacLeod, convicto por assassi­nato de quatro pessoas, demonstrando que seu cliente não podia ser condenado por não estar previsto o caso de um criminoso analfabeto nas leis especiais de Oregon, lugar do julgamento.

Sussurravam-se fantásticas histórias dos casos em que "Telegrama" interviera, salvando os acusados por meio de piruetas legais, mais ou menos verdadeiras.

Fosse como fosse, certo ou não; pura propa­ganda ou fatos reais, "Telegrama" conquistou uma reputação muito sólida.

Seguia vivendo em Brad Street, a sórdida rue­la onde iniciara sua carreira no passado.

Só que, agora, "Telegrama" cercava-se de to­das as comodidades possíveis do mundo da téc­nica e do conforto.

A casa em que morava não experimentara ne­nhuma mudança exterior. A fachada ameaçava cair a qualquer momento, deixando a descoberto os quartos, como num cenário cinematográfico.

No interior é que ele havia deixado transbor­dar sua ânsia de luxo, o apetite pelas coisas que lhe foram proibidas na infância miserável.

Encontrava-se agora na peça que, habitual­mente, utilizava como estúdio.

As paredes apareciam cobertas de grossas cor­tinas de veludo vermelho, onde, de vez em quan­do, vinha a surpresa de uma figura geométrica numa violenta cor amarela.

A mesa de gabinete era enorme, pesada, de pés torneados com motivos tirados da Divina Comédia. Era um móvel pesado e incômodo, mas do qual "Telegrama" se orgulhava, que o encomendara sob desenho de sua própria au­toria.

Várias poltronas modernas, de diversos tipos, ocupavam os cantos propícios. Luzes indiretas, um bar, um televisor...

Naquele momento, o aparelho estava ligado. Mas "Telegrama", sentado numa poltrona em frente, ignorava o que se passava no vídeo.

Seus pensamentos corriam alucinados em mui­tas direções. Como insetos desenfreados davam uma e muitas voltas, tornando ao ponto de par­tida, para iniciar nova corrida.

Aquele assunto dos barcos transformara-se nu­ma vespa furiosa, entre seus dedos.

No princípio, parecera-lhe que poderia mane­jar a situação de forma bastante aceitável. Tudo parecia simples questão de inteligência e de pla­nejamento.

Mas, agora, um medo sutil ia-se apoderando dele. Como uma torrente.

Não que se preocupasse pelo fato de que al­guém morresse em consequência de seus mane­jos.

Mas era a sua pele, que amava sobre quase to­das as coisas.

"Telegrama" possuía uma espécie de sexto sen­tido, que o avisava do perigo.

Havia perigo por todos os lados, cm cada fa­ceta do assunto. As armas haviam iniciado seu concerto infernal, envolvendo os mesmos que ha­viam recorrido a elas.

Realmente, teria de acabar com o "negócio". Mas, era demasiado bonito, os dólares afluíam de tal maneira, que seu peso mantinha o fiel da balança entre o perigo e a cobiça.

Surgiu no vídeo a cara do vice-presidente concitando os cidadãos ao voto.

Prometia grandes coisas, desenvolvimentos fan­tásticos, prosperidade sem limites, "se fosse elei­to Presidente".

Durante alguns instantes, a atenção de "Tele­grama" desviou-se naquela direção.

Em seu rosto apareceu uma expressão irôni­ca. Como Hamlet, repetia para si mesmo: "Pa­lavras, palavras, nada mais que palavras..."

Para ele, o mundo não era senão um "ring" de luta aberta, a cancha onde apenas algumas centenas de homens inteligentes conquistavam os prêmios, apoiando-se nos ombros da massa.

Democratas ou republicanos, no fundo, moti­vos iguais aos seus...

Poder, dinheiro, satisfação dessa força obscura que obriga a Humanidade a avançar para a in­certeza.

Com um gesto impaciente, afastou aqueles pen­samentos. Voltou sua atenção para os problemas pessoais.

A morte de Bob Urso era como um aviso de perigo no curso sereno de suas atividades.

Bastaria uma pequena falha para que o ne­gócio, que tanto trabalho lhe custara, viesse por água abaixo.

Verdade que, mediante os drásticos processos, se podia tampar os canos da inundação.

Mas a morte trazia em si mesma uma amea­ça futura. Assim como Bob Urso fora destruído, outros o seriam também.

Tal eventualidade, precisamente, era a que "Telegrama" desejava evitar.

No fundo, a covardia nos seus atos. Era o medo pela vida, pela luta franca.

Seu cérebro continuou trabalhando sem cessar, buscando uma possível solução para o problema de poder continuar o negócio, de eliminar os perigos que se iam acumulando.

No vídeo, a figura dos políticos, dos atores, gesticulando incansáveis, com torrentes de pa­lavras.

"Telegrama" concluiu que, na realidade, sua grande força era, precisamente, a palavra.

Um homem esperto, inteligente, vivo, podia ganhar batalhas sem apelar para a força. Sem apelar para a ignorância.

 

O telefone tilintando e, instintivamente, consultou o relógio de pulso.

Nove da noite. Com passos largos, elásti­cos, encaminhou-se para a outra extremidade da sala.

Tomou do aparelho de um vermelho atroz. A voz rouca, apressada, que reconheceu imediata­mente.

— É você, High? Aqui é Carter.

— Sim. Diga logo.

Houve uma reação violenta do outro lado da linha, o que provocou um sorriso irônico em "Telegrama".

— Vá para o inferno! Por acaso não sabe? Aquele sujeito está aqui comigo. Você disse que eu o procurasse, não foi?

John Carter tinha um temperamento horrível. Passava a maior parte da vida buscando brigas e... encontrando-as, na maioria das vezes.

Continuou berrando, do outro lado:

— Estou farto de você, excomungado! Se fos­se um homem, em lugar de um corvo maldito, eu faria engolir o...

"Telegrama" interrompeu-o:

— Basta. Traga-o aqui, depressa, possível... Desligou. Infinidade de vezes quisera corrigir a gagueira.

Não o conseguindo, adotara uma maneira telegráfica de falar, suprimindo todas as palavras ou locuções, nas quais gaguejava mais.

Havia esquecido, por completo, do que enco­mendara a Carter: procurar um homem capaz de substituir Bob Urso.

Não era tarefa muito fácil. Seriam necessárias qualidades extraordinárias e especialíssimas.

Em primeiro lugar, devia ser alguém inteira­mente à margem da sociedade ou que, pelo me­nos, estivesse em condições mentais propicias para isso.

Depois, devia possuir amplos conhecimentos de navegação e uma forte personalidade.

Coragem, decisão, sangue frio... Mas, sobre­tudo, amar o dinheiro acima de tudo.

Carter teria conseguido um tal conjunto de qualidades com esse seu candidato?

Necessariamente devia confiar nisso, pois se dispunha a levá-lo à sua presença.

Caso contrário, Carter conhecia muito bem o perigo a que se expunha.

E, apesar de seu temperamento de luta, não era tão imbecil para procurar o suicídio.

No silêncio, o televisor desligado, ouviu a cam­painha da porta.

"Telegrama" vivia só. Movimentou-se para abri-la. Dois homens recortaram-se no umbral.

Afastou-se para um lado, para deixá-los pas­sar. Seus olhos perscrutadores examinaram o acompanhante de Carter.

Tratava-se de um indivíduo de avantajada es­tatura, ombros largos, firmes, movimentos deci­didos.

Calculou que devia ter uns trinta anos. Pos­suía um rosto enérgico, o queixo avançado agres­sivamente.

Foi Carter quem rompeu o silêncio.

— Raios, High! Está um tempo infernal. Não tem por aí algum uísque? Acho que não faria mal.

Apresentou o companheiro, em sua maneira brusca de sempre.

— Este é Dog O'Hara. Um bom elemento. Jus­tamente o que você andava buscando. High.

John Carter era a única pessoa, entre as que o advogado conhecia, que sempre o tratava pelo nome verdadeiro.

"Telegrama" estendeu a mão para o homem que lhe fora apresentado como Dog O'Hara.

Bill O'Hara, agente do FBI, sentiu vontade de apertar o gatilho, fazendo com que aquele indi­víduo se retorcesse, uivando como um coiote na armadilha.

Odiava semelhantes marginais. Conhecia o his­tórico de Tom High "Telegrama".

Receptador, vigarista astuto, que encobria suas atividades desonestas atrás de delinquentes alu­gados e pouco inteligentes.

Conteve-se, porém. Sob o disfarce da perso­nalidade adotada, seu papel devia ser mantido com perfeição.

Seguia um caminho tortuoso para chegar ao centro da organização criminosa que tentava destruir.

Por sorte, entre as fichas manipuladas pelos homens do FBI, encontrara, justamente, a do tipo de indivíduo que necessitava para seus instintos.

E não só isso, pois havia ainda a coincidência do nome.

Realmente, Dog O'Hara fora o protótipo do aventureiro sem escrúpulos, disposto sempre a lutar contra a sociedade.

John Carter conhecera-o tempos atrás. Tive­ram, inclusive, alguns negócios em comum, pelo que sua apresentação equivalia a uma garantia total.

O fato de que Carter servisse, naquele mo­mento, a tal propósito, era muito simples.

O FBI possuía meios suficientes para pressioná-lo, tornando-o um objeto de fácil manejo.

Bastara que Bill recordasse certos casos es­quecidos, para que Carter se entregasse como um cordeirinho.

"Telegrama" encaminhou-se para o pequeno bar, instalado num canto, lembrando um nicho.

Tirou uma garrafa de uísque e três copos. Ser­viu generosas doses para seus visitantes.

Depois tornou a sentar-se na poltrona, que pouco antes ocupara, em frente ao televisor.

Carter e Bill O'Hara imitaram-no, escolhendo as grandes poltronas forradas com uma imita­ção de couro.

O advogado gaguejou:

— Queria... saber mais... sobre seu... ami­go, Carter. Fazer... comprovação, sabe?

— Certo — respondeu o outro. — Sei que você tem meios suficientes para isso, Você é um tipo organizado, High... às vezes demais.

— Quer dizer que... ?

— Não gosto que desconfiem de mim, ouviu? O'Hara é um grande amigo meu. Já trabalhamos juntos, mais de uma vez. Que é que você tem ainda de investigar?

— Eu não mando em... Sabe. "General Ships Company" tem que investigar... vida rapazes... contrata. Não confia... assuntos... gente desco­nhecida. Que... fazer?

Carter era sempre o mesmo:

— Vá pro diabo que o carregue! Eu...

O agente do FBI interrompeu-o, falando pela primeira vez:

— Deixe, Carter. Acho muito bem que façam isso. Por que haviam de confiar em mim, ou em você? Nos negócios, prefiro tratar com sujeitos prudentes. Dessa maneira evitamos os riscos, compreende?

Não lhe importava que "Telegrama" investi­gasse sua vida.

Tudo estava previsto. Inclusive na ficha exis­tente nos arquivos policiais, aparecia uma foto­grafia sua, em lugar da do verdadeiro Dog O'Hara.

Carter aparentou ceder. Disse:

— Está bem. Mas, algum dia...

Estava representando seu papel com perfeição. Era muito o que arriscava nisso.

Por um lado, ia trair "Telegrama" e os homens que se ocultavam atrás dele. Mas, por outro, punha em jogo sua liberdade, durante uma tem­porada bastante longa.

Ofereceu, portanto, a "Telegrama" uma bio­grafia resumida de seus contatos com Dog O'Hara e da sua personalidade.

O outro escutou-o com atenção. Nem um ins­tante deixou de observar o silencioso acompa­nhante.

Naturalmente, pensava realizar as investiga­ções necessárias para confirmar o que ouvia.

Suas "relações" eram numerosas e de toda es­pécie. Como havia comprovado ao longo de sua vida, o dinheiro era a mais poderosa alavanca para dobrar a vontade daqueles de quem tentava servir-se.

Homens situados em postos de responsabilida­de na máquina legal do país gravitavam era sua órbita.

Através deles poderia chegar a todos os arqui­vos, conhecer tudo quanto o interessasse a res­peito de certas pessoas.

Mas, também, confiava em seu próprio julga­mento. E, talvez, cinicamente nele.

Via diante de si um homem enérgico, seguro de sua capacidade, confiante em sua força.

 

Havia nele aquela qualidade que Bob Urso possuía em alto grau e que o levara a escolhê-lo, entre muitos outros, para a tarefa de dirigir as operações relativas aos assaltos de bancos.

Porque não se tratava de comandar uma tri­pulação qualquer, submetida de antemão a uma disciplina rígida e plenamente aceita.

Pelo contrário, os homens que compunham os "comandos" constituíam uma representação es­colhida no submundo do crime, entre seus mem­bros mais ferozes.

Só alguém que possuísse uma forte personali­dade poderia pôr-se à frente da caterva.

E, no entanto, Bob Urso tinha sido um acha­do seu, assim como Carter e outros.

Pela primeira vez ia correr o risco de confiar em informes alheios.

De repente, decidiu-se:

— Está bem! Acho que encontramos o homem. Esperem aqui. Quero certificar-me.

Desapareceu no interior da casa. Bill levantou-se para apanhar a garrafa.

Com um gesto decidido, fez Carter calar-se, pois este se dispunha a fazer um comentário.

Beberam em silêncio, enquanto esperavam. "Telegrama", por seu lado, discara um número no telefone instalado em seu quarto mobiliado como um pesadelo.

Logo que conseguiu comunicação, disse em tom autoritário:

— Fala Tom High. Bramley?

— Que é que você quer a essas horas?

— Preciso de informação. Agora mesmo.

— Está doido? Pensa que isso são horas de... ?

— Eu disse "agora mesmo", Bramley. Arran­je-se.

Silêncio do outro lado da linha. Com toda a certeza, o chamado Bramley tentava recuperar o domínio dos nervos.

Por fim, falou mais calmo:

— Está bem... De que se trata?

— Está aqui um homem, Dog O'Hara. Vou uti­lizar, segundo seu informe. Não posso esperar. Homem tem... começar trabalho logo, compre­endeu?

Fez um breve resumo do que fora dito por Carter sobre seu protegido. Finalizou:

— Quanto... tardará... conseguir dados ? Respondeu o outro:

— Se ele estiver fichado, apenas alguns mi­nutos. Do contrário, nem mesmo que você man­dasse uma dúzia de pistoleiros atrás de mim, eu não poderia fazer nada antes de quarenta e oito horas.

— De acordo. Espero mesmo telefone. Depres­sa.

Desligou. Sorriu satisfeito. Isto mesmo. Era assim que devia tratar esses canalhas.

Julgavam, então, que era só receber dinheiro sem nenhum esforço, como um donativo piedo­so. Que nada custaria?

Mas em ocasiões como aquela, "Telegrama" va­lorizava os investimentos.

Bramley pertencia à numerosa fauna de indi­víduos cuja vida se equilibrava sobre bases fal­sas, em acessos superiores aos que conseguiriam normalmente, pela capacidade profissional co­mum.

Tudo começava para eles de forma suave, num caminho aplainado habilmente por aqueles que pretendiam utilizá-los.

Às vezes, resultava simples. Era suficiente des­cobrir-se uma fraqueza qualquer para que, ato contínuo, fosse iniciada a exploração. Corridas de cavalos, pôquer, mulheres ou, simplesmente, o gosto pela boa aparência.

Parecia incrível como, de maneira tão suave, aceitavam "presentes", pensando que jamais te­riam de pagar por eles.

Pouco a pouco, contraíam dívidas, adquiriam hábitos de vida, aos quais era muito difícil re­nunciar.

Por fim, diante da necessidade de devolver o que tinham aceitado ou, simplesmente, de aban­donar um tipo de vida superior, preferiam co­meçar a pagar com serviços, agindo já aberta­mente como membros de uma organização ilegal.

No caso de Bramley, os motivos haviam sido vulgares: tudo se devia ao fato de ter escolhido uma mulher excepcionalmente ambiciosa.

O primeiro abrigo de pele que Ellen Bramley tivera em sua vida, fora pago por Tom High "Telegrama", embora ela não o soubesse, em plena segurança.

Depois, Bramley deixou de ser um obscuro e honrado membro da Polícia Metropolitana en­carregado do arquivo, para converter-se em alia­do da quadrilha.

Em troca disso obteve não só dinheiro mas promoções e vantagens.

Porque, assim como ele, outros homens ser­viam ao advogado. Homens pertencentes a es­feras de poder e influência.

Políticos profissionais, jornalistas, autoridades, com a cobiça, a ânsia do poder, os obscuros complexos de uma sociedade atormentada, inca­paz de encontrar seu caminho.

O telefone tocou.

Bramley:

— Escute, Tom. Esse sujeito é O.K.

— Está... seguro?

— Demônios! Claro que sim. Tem uma ficha tão longa, quanto a edição de domingo do "New York Times". Pode utilizá-lo... no que julgar oportuno, ouviu?

Acrescentou, depois de uma pausa:

— Mas... só uma advertência, Tom.

— O quê?

— Maneje-o com cuidado. É dinamite pura, ou­viu? Costuma resolver suas desavenças de for­ma séria. No cemitério, percebeu? Estou preve­nindo.

"Telegrama" não respondeu. Largou o tele­fone.

Seu ar era mais suave, mais bondoso do que nunca.

 

Charles Earl deteve o táxi com uma hábil manobra, em frente ao amplo portão de madeira da "General Ships Company". Sem voltar a cabeça, disse: — Está bem, Bill. Chegamos. Felicidades. Bill O'Hara desceu. Tudo estava preparado para o último ato.

Os homens do FBI foram mobilizados, na maior força policial de sua história, a fim de segui-lo passo a passo na aventura que se dis­punha a iniciar.

E não porque concedessem a Bill maior im­portância do que a qualquer outro homem da organização federal.

Aquele alarde justificava-se. Era o desejo de acabar com os escorregadios assaltantes de ban­cos, a "gang" que desafiara, uma a uma, diver­sas divisões do FBI, encarregadas de sua captura.

Atravessou a porta que dava para a sala do homem a quem "Telegrama" o enviara.

As palavras do advogado foram, como de cos­tume, vagas, muito pouco definidas.

A única coisa real era que as ordens lhe se­riam dadas nas oficinas que estavam instaladas naquele edifício.

Tratava-se, simplesmente, de um armazém, no cais onze. Era um a mais, entre os monstruosos formigueiros preparados para receber mercado­rias do mundo inteiro.

Veio-lhe ao encontro um indivíduo mal-encarado, com um jaquetão azul desbotado.

Perguntou:

— Que é que esta procurando?

— Meu nome é O'Hara. High foi quem me mandou.

O ar truculento daquele homem não se modi­ficou, parecendo, apenas ter afrouxado um pou­co a tensão que lhe repuxava os músculos.

Disse: — Siga em frente. Por aquele corredor. Mostrava uma passagem aberta entre fardos de mercadorias, empilhados até à coberta on­dulada.

No fundo, via-se uma luz tênue. Bill seguiu as indicações. Acariciou o cano da "Luger", que levava no bolso direito do amplo jaquetão de marinheiro.

Cerrou-lhe a passagem uma porta em que se lia: Diretoria. Bateu com os nós dos dedos.

Alguém, de voz forte, sonora, convidou-o a entrar.

Assim o fez. Dois pares de olhos se cravaram nele, mal havia atravessado o umbral.

Surpreendeu-o o contraste entre os dois ho­mens que o recebiam.

Era um par incompatível mas que talvez ao se unirem completaram suas falhas individuais.

Um deles, que vestia um sóbrio terno azul, mui­to bem cortado, foi quem rompeu, começou.

Seus olhos eram duas punhaladas de reflexos acinzentados, num rosto inexpressivo.

— É Dog O'Hara, não?

Bill inclinou a cabeça. O outro continuou:

— Bem. "Telegrama" diz que você é o homem apropriado para o trabalho que vamos confiar-lhe. Tem alguma ideia do que se trata?

Interrompeu-o, então, seu companheiro, cuja aparência física podia corresponder à de um lu­tador de "catch" de cabelos cor de fogo.

— Raios! Vamos às falas. Não gosto de per­der tempo. Diga-lhe o que tem de fazer e basta.

Acrescentou, ato contínuo:

— A única coisa que precisa saber é o que pode acontecer-lhe, no caso de sair-se mal. Ande, diga isso!

Um sorriso de desculpas apareceu no rosto do primeiro. Murmurou:

— Sinto muito, O'Hara. Devo apresentar-me. Chamo-me Cassidy Hart. Este é Deegan, meu sócio.

Encarou Deegan e disse-lhe:

— Combinamos que eu é quem falaria. Fe­che o bico então, ouviu?

Bill O'Hara teve a impressão de que os mús­culos de Deegan se contraíam para reprimir o ódio.

Aquela cena parecia-lhe grotesca. Não eram os dois homens que ali estavam os tipos que imaginara dirigindo assunto de tal natureza.

Mas, sem dúvida, possuíam qualidades ocultas, capazes de os converter em chefes de um bando de facínoras.

Prosseguiu Heart:

— O lugar desta vez é Jacksonville. Conhece a cidade?

O'Hara falou, afinal.

— Claro. Mas não vejo de que forma vamos desembarcar. Trata-se de uma muralha de ro­chas, que se projeta para o mar por um bom par de milhas. Você quer que eu vá voando?

Suprimira, deliberadamente, o tratamento de senhor ao dirigir-se a Heart. E viu surgir-lhe no rosto um ar de contrariedade.

Um risinho escapou-se dos lábios de Deegan. Que murmurou, irônico:

— Não queria ser tão correto, Cassidy? Aí tem o resultado. Este sujeito trata-o como a um marinheiro. Vai consentir nisso?

Bill havia estudado, perfeitamente, o persona­gem que estava representando.

Sabia que não deveria tolerar ofensas de ne­nhuma espécie, mesmo que isso acarretasse sua própria ruína.

E, de acordo com isso, agiu. De um salto, pôs-se em pé. A cadeira que ocupara obedecendo a uma indicação de Heart, rolou, indo chocar-se contra a parede, num baque surdo.

Mergulhou o punho direito no estômago de Deegan. Um segundo depois, desferia um soco violento no queixo do ruivo.

Deegan caiu como um fardo. Bill voltou-se para Cassidy Heart.

Gritou furioso:

— Que história é essa? Vocês são malucos? Pensam que vim aqui para que esse cretino me trate como um escravo?

Heart olhava-o impassível. De repente, Bill teve uma prova da capacidade de persuasão de seu interlocutor.

Houve um movimento rapidíssimo. Foi como se assistisse a um truque de ilusionismo.

Na mão direita de Heart apareceu uma arma. Uma pequena pistola de bela aparência.

Mantinha-a, formando uma linha reta entre o coração de O'Hara e o ponto de mira.

Cassidy murmurou com um ar suave:

— Vamos, moço. Não seja tão impetuoso. Quer que eu lhe crave uma carga de chumbo no estô­mago?

Não esperou resposta para aquela pergunta retórica. Prosseguiu:

— Deegan não é nada diplomático. Não sabe se expressar. Mas ele tinha razão. Você não deve tomar intimidades comigo. Não gosto disso. A "General Ships Company" trata seus empregados de forma paternal, mas não tolera falta de dis­ciplina, compreendeu?

Em outra ocasião qualquer, Bill teria recebido aquela declaração com uma gargalhada.

Mas agora estava surpreendido. Jamais imagi­nara tão grande rapidez em empunhar-se uma arma, como a que acabara de presenciar.

E ele era considerado no FBI como um dos homens mais rápidos, na matéria.

Mas pensava que frente a Heart nada poderia fazer. Sua habilidade parecia coisa de circo.

Heart continuou falando:

— Agora, tome essa garrafa de água que está em cima da mesa e jogue um pouco em Deegan. Quando acordar, ele estará num mau humor ter­rível, mas não se preocupe. Você tinha razão. Eu me encarregarei de convencê-lo.

Fez uma pausa, que rompeu para prevenir, enquanto Bill seguia suas instruções:

— Mas, cuidado para não se enganar, O'Hara. O que aconteceu foi apenas por sorte. Numa luta normal, Deegan o esmagaria. Ele é forte como um gorila.

Suas últimas palavras coincidiram com o des­pertar do monstro vermelho.

Durante alguns instantes, Deegan pareceu de­masiado aturdido para recordar o que aconte­cera. Mas, em seguida, brilhou em suas pupilas uma chama de ódio assassino.

Pôs-se em pé num salto. Fez um gesto de lan­çar-se sobre O'Hara.

O federal esperava, disposto à luta. Heart in­terpôs-se:

— Não se faça mais de idiota, Deegan — or­denou sem ênfase. — Estou farto de suas asnei­ras. Sente-se.

Surpreendentemente, Deegan obedeceu. Bill pensou que ele devia conhecer a fulminante ra­pidez de seu companheiro com um revólver e como devia cumprir suas ameaças.

Cassidy Heart voltou-se outra vez em direção a O'Hara. Seu aspecto parecia mais inofensivo do que nunca.

Entretanto, Bill retificara, em parte, sua pri­meira impressão.

Um, pelo menos, dava as medidas do chefe sem escrúpulos, capaz de levar adiante um trabalho como o dos assaltos aos bancos.

— Bem — anunciou Heart. — Acho que agora poderemos continuar com nosso problema, não é?

Sem transição, voltou ao tema primitivo:

— Tinha razão O'Hara, no que concerne a essa zona da costa. Efetivamente, a navegação ali é difícil. Mas não é impossível, atente bem. Perto de Empire, a algumas milhas de Cap White, há uma pequena enseada, para onde pode levar o barco. Chegando lá, vai encontrar um jipe no qual você e os seus homens poderão chegar a Jacksonville.

Tirou da gaveta do centro um envelope de grandes dimensões. Continuou:

— Tome. Aqui estão as instruções detalhadas. Não o abra, antes de ter se afastado do porto. Vai encontrar tudo resolvido. Não é necessário que pense, nós o faremos por você. Só uma coisa vou recomendar-lhe...

Calou-se. De repente, seu rosto mudou comple­tamente. Era como se tivesse sobre ele a más­cara que, de pronto, retirara.

Os traços suaves, delicados, transformaram-se em linhas verticais, que o obrigaram a assumir uma expressão de terrível crueldade.

Inclusive sua voz, quando tornou a falar, ha­via mudado num tom letal, espantosamente frio, gelado.

— Não se desvie um só milímetro das instru­ções recebidas, O'Hara. Não trate de pensar por conta própria. E, sobretudo, não deixe o menor rastro seu e de seus homens. Tudo está conce­bido para fazer de vocês uma espécie de fantas­mas, que desaparecem sem deixar sinal algum. Se, por uma falha, os planos tão cuidadosamente preparados fracassarem, isso significará sua mor­te. A sua e a de todos os que o acompanham, mesmo que nenhuma culpa tenham no que suce­deu.

De pé, entregou o envelope a O'Hara.

— Alguma pergunta? Bill respondeu:

— Nenhuma. Ou melhor, sim. Há uma coisa que eu gostaria de saber.

— Do que se trata?

— Que acontecerá se eu precisar falar com o senhor? Alguma coisa pode falhar, não acha?

O sorriso que distendeu os lábios de Heart produziu um calafrio, que correu por toda a co­luna vertebral do agente do FBI.

Respondeu o homem:

— Nada pode falhar, O'Hara. Já lhe disse que tudo está previsto. Se for necessário entrar em contato comigo, nós é que o faremos, compreen­deu?

Era evidente o que Cassidy insinuava. Queria significar algo simples, fundamental, num "ne­gócio" como aquele.

Ninguém possuía a confiança plena dos cabe­ças da organização.

Em seu caso, logo que abandonasse o arma­zém da "General Ships Company", seria vigiado.

Começava a sentir um grande respeito pela inteligência que fazia funcionar tudo aquilo.

Recordava-se de seus dias de guerra nas for­ças navais, quando tudo já fora previsto, até os mínimos detalhes.

Inclusive o fato de entregar ordens fechadas, que só deviam ser abertas uma vez fora da bar­ra. Carta de prego.

— Está bem — assentiu. — O senhor ganha. O brilho de satisfação que surgia nos olhos miúdos de Heart, cada vez que se dirigia a ele de forma respeitosa, era outro pormenor a acres­centar ao retrato psicológico que ia formando de seu interlocutor.

Dispôs-se a sair. Deteve-o a voz de Deegan. Jamais percebera tão grande corrente de ódio atravessando as intenções de um homem, como naquele momento.

— Escute, O'Hara. Não pense que eu esqueci o que aconteceu. Sou muito paciente. Algum dia você há de me pagar por isso! Vou arrebentar-lhe os ossos, um a um!

Bill estava farto daqueles homens. Gostaria de poder agir livremente.

Possuía a qualidade dos verdadeiros lutadores, que os incita a desafiar o perigo, a sobrepor-se a todos os obstáculos.

Respondeu:

— Estará também presente Cassidy Heart, quando isso acontecer, meu caro?

— Que é que está insinuando?

— Pouca coisa Deegan. Talvez você fosse pre­cisar que o ajudassem novamente. Ele agiu como se fosse sua babá.

Um rugido escapou-se da garganta de Deegan. Seu rosto descompunha-se numa careta medo­nha.

Cassidy riu irônico. E outra vez interveio pa­ra impedir que seu sócio realizasse o propósito destrutivo que sempre o animava.

— Deixe-o, Deegan! Não é o momento para isso. Você conhece a história dele, não é? Por que se enerva? Dog O'Hara tem fama de ser louco por...

Finalizou:

— Talvez, algum dia, eu possa presenciar um encontro dos dois. Isso me agradaria bastante.

Bill saiu.

Percorreu de novo a escura passagem entre os fardos, que o levaria à rua.

O indivíduo mal-encarado que o recebera à en­trada estava agora acompanhado por outro ho­mem.

Foi, então, que tudo esteve a ponto de fra­cassar. Porque a casualidade quis que se tratasse de um antigo conhecido de Bill.

Chamava-se Roddy Glend, aliás "Sardento". Tempos atrás ocupara uma cela em Alcatraz, devido a "gestões pessoais" de Bill O'Hara.

— Diabo... — grunhiu. — É Bill O'Hara!... Que significa isso? Mald...

A reação fulminante do agente federal. O ban­dido não esperava a joelhada na barriga. E os dois punhos unidos levantando-o pelo queixo. Só dois urros, guturais.

"Sardento" tombou como um fruto podre.

O sujeito mal-encarado, vigia do armazém, bo­tou a boca no mundo:

— Que história é essa? Vocês enlouqueceram? Socorro!

Também recebeu o dele. Caiu todo, com um golpe na carótida. Perfeito.

Os punhos de Bill O'Hara eram tidos como martelos hidráulicos. E com justa razão.

O vigia tropeçou numa pilha de fardos, derrubando-os. E ficou imóvel, a cabeça num ângulo trágico com o peito.

Bill esperou tenso alguns instantes. Não tar­dou a comprovar que o sucedido não chamara a atenção de ninguém.

Com gigantesco esforço, arrastou os corpos para um canto.

Descobriu um rolo de corda sobre o balcão de embalagem.

Em poucos instantes, transformou os dois ho­mens em pacotes, perfeitamente acondicionados.

Colocou-os, depois atrás dos montes de caixas e fardos, que lhe pareceram menos removíveis.

Abandonou o armazém. Seu ar era tranquilo, indiferente. Ninguém poderia adivinhar a enor­me tensão que lhe contraía os nervos.

Precisava ganhar tempo, antes que o alarma fosse dado.

Descobriu, não longe dali, um bar. A fachada cinzenta mostrava-se carcomida pela ação do vento salino, que a açoitava continuamente.

O balcão estendia-se ao longo da parede opos­ta à entrada.

Pediu um drink. Enquanto o serviam, meteu-se na cabina telefônica.

Discou um número. A voz de Charles Earl chegou-lhe em seguida.

— Escute, Charles — disse. — Tem que agir sem perder um segundo. Consiga uma patrulha e dirija-se aos armazéns da "General Ships Company". Com um pretexto qualquer, detenha quan­tos homens encontrar por lá. Nem um só deve escapar, compreendeu?

— Que aconteceu?

— Um pequeno contratempo que pode estragar todo o trabalho. Quero, especialmente, que agar­re logo os homens que vai encontrar dormindo, atrás de uns fardos. Não quero que eles falem com ninguém, entendeu?

— De acordo. Até logo, amigo.

Desligou. Mandou a maior talagada. E depois saiu caminhando para o armazém 14, onde devia encontrar o barco cujo comando lhe fora con­fiado.

 

Era um cargueiro de umas cinco mil tonela­das. Estava recoberto por uma camada de tinta acinzentada, utilizada por quase todas as embarcações, para evitar, na medida do pas­sível os estragos da água salgada.

Bill O'Hara atravessou a passarela. Um ho­mem, vestido com a clássica camiseta listrada de marinheiro, esperava no tombadilho.

Quando chegou a pouca distância, Bill foi di­zendo:

— Sou O'Hara. Onde estão os rapazes?

O outro, antes de responder, cuspiu na água suja.

— Foram pra baixo. Estão jogando pôquer. Diabos! Estamos esperando por você, como se fosse um almirante de verdade.

Aquilo era uma amostra do que poderia es­perar de sua tripulação.

E também revelava que a disciplina, imposta pela "General Ships Company" em suas normas gerais, não atingia os homens que deveriam rea­lizar a parte mais importante do trabalho.

— Está bem, amigo. Como é seu nome?

— Burke Lein.

— De acordo, Lein. Leve-me pra baixo. Quero conhecer o resto dos homens.

Antes de iniciar a descida da empinada escadinha Bill observou o porto.

Viu satisfeito, não longe do lugar onde o car­gueiro se encontrava ancorado, vários carros es­tacionados.

Até aquele momento, tudo ia saindo bem. Isso provava que as instruções dadas a Earl, com respeito ao armazém da "General Ships Company", foram cumpridas com êxito.

Seguiu Burke Lein.

Bill conhecia muito bem aquele tipo de embar­cação. Das construídas às centenas durante a guerra, destinadas a missões de apoio e como auxiliares. Eram rápidas, manobráveis. Tinham ainda a vantagem de que sua pouca altura as tornava quase invisíveis, num mar um pouco agitado.

Enfrentou a quadrilha com inteira serenidade, completamente senhor dos seus nervos.

Quatro homens, além de Burke Lein. Todos se pareciam uns com os outros apesar da diferença de tipos.

Aos olhos experientes de Bill 0'Hara, aqueles quatro homens constituíam uma perfeita repre­sentação do mais sórdido das vicias do submun­do do crime.

Sob as roupas de marinheiro, seus gestos, a dura expressão fisionômica, a catadura de cada um, o olhar frio com que desafiavam a morte a qualquer momento, tudo isso compunha a marca imitaria da crueldade e da vileza.

Burke apresentou o novo comandante, a seu modo, um tanto brusco, sempre agressivo:

— Rapazes, este é Dog O'Hara. Nosso "pa­trão".

Pretendia mostrar-se irônico.

Mas semelhante tentativa de parecer uma pes­soa normal não chegou a ser devidamente apre­ciada.

Um dos bandidos, de pequena estatura, peito avolumado, cara marcada por uma profunda cicatriz, levantou-se violentamente.

Seus olhos fixaram-se no agente federal, com um lampejo de susto.

Bill preparou-se para o pior. Porque, estava certo, de algum modo aquele homem descobrira sua artimanha.

Burke gritou:

— Que é que há, Morris? E Morris, alarmado:

— Com mil demônios! Enlouqueceram, vocês?! Esse homem não é Dog O'Hara!

Durante alguns instantes, o tempo pareceu converter-se em algo sólido  petrificado.

Finalmente, Burke, que parecia dirigir o quin­teto, balbuciou:

— Que história é essa? Está querendo brincar conosco?

Ao mesmo tempo em que falava, seus gestos se adiantavam às palavras.

A mão, que lembrava uma garra de abutre, mergulhou no bolso traseiro das apertadas cal­ças.

Tornou a aparecer armada de uma grande na­valha.

Enfrentou Bill O'Hara.

Com um estalo sinistro, acionou a mola auto­mática do aço rebrilhante. Gritou:

— Desgraçado! Que significa isso? Vou te ma­tar!

Bill agiu com uma rapidez inverossímil. Agar­rou o revólver de cano curto que trazia no bolso do jaquetão de marinheiro, numa fração de se­gundo.

E atirou, quase sem apontar.

Lein deixou escapar um grito, ao mesmo tem­po em que a navalha caía ao chão. O sangue espalhou-se, rapidamente, ao longo do braço. O projétil atingira-o no ombro.

Sem esperar pelo resultado do disparo, o agen­te federal correu em leque a arma que empunha­va.

Parou-a, apontando para Morris, o homem que descobrira sua identidade. Ordenou:

— Que ninguém se mova! Suas cabeças já es­tão cheirando a pólvora!

Ergueu a arma e fez alguns disparos para o teto.

Morris tentou um movimento, mas Bill tornou a apontar-lhe o revólver.

Um ruído de passos apressados, no tombadilho. Pouco depois, a figura de Charles Earl sur­gia na pesada atmosfera da cabina.

Bill convidou-o:

— Entre, Charles. Estes rapazes estão loucos para ver uma cara mais agradável do que a minha. Parece que não gostam de brincadeiras pesadas.

Morris murmurou:

— Tira desgraçado! Vou lhe ens...

O que ia dizer ficou para sempre ignorado. Earl fez cócegas na metralhadora que abraçava convenientemente.

Os bandidos, ainda não inteiramente refeitos da surpresa, foram levados para a coberta onde carinhosamente, os outros agentes do FBI os esperavam.

Bill foi ver como seria seu camarote, o peque­no mundo de Bob Urso, seu antigo camarada da guerra.

Era lógico que ali também não encontraria rastro do velho amigo desaparecido.

Apenas uma pilha de livros retirados de uma pequena estante em frente.

Assobiou ao ler os autores, em letras doura­da nas lombadas: Platão, Spinoza, Hegel, Mar­tin Heidegger, Níetzsche...

Sem saber por que, veio-lhe à lembrança a fi­gura do bom padre O'Maley, no fundo da paró­quia do seu bairro, com a sua lição costumeira de Religião.

Quem sabe, com aqueles livros todos, se o po­bre Urso teria encontrado respostas às suas angústias?

O Padre O'Maley aconselhava:

— Façam uma experiência, meus meninos. Em qualquer momento difícil, abram o Livro. Assim, como agora o faço — e abriu a Bíblia, de olhos fechados. E, daquela vez foi lendo: — São Lucas: "Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados; dai, e dar-se-vos-á; boa me­dida, calcada, sacudida, transbordando, vos po­rão no regaço; porque a medida de que usais, dessa tornarão a usar convosco."

Jamais esquecera as palavras do vigário de sua gente. Aquele trecho da Bíblia tocou-lhe, es­pecialmente. Decorara. Não sabia mesmo por que, mas achava que Bob Urso teria sentido aquela lição. Agora, já seria tarde.

Charles Earl chegou com o resultado:

— Todos os pássaros estão na gaiola. Tudo acabado. E agora?

O'Hara abriu o envelope que recebera de Heart e chamou Charles para ler junto.

— Puxa, como era bem arquitetado! Genial! Pena que uma inteligência dessa só sirva ao cri­me. O que não compensa, definitivamente. Creio que essa turma, quase toda, será torrada. Pelo menos, os chefões.

Bill escutou as conclusões do companheiro e a juntou:

— O verdadeiro culpado ainda está solto. Jul­ga-se a salvo. Nem Cassidy Heart nem Deegan. Este plano não é de nenhum desses. Vamos ao autor, antes que consiga fugir. O homenzinho é um crânio.

 

Tom High "Telegrama" seguia atento a audi­ção da Quinta Sinfonia de Beethoven.

Aquela era uma de suas distrações favoritas. Isso, um bom uísque, uma sala aquecida, pol­trona confortável e o velho robe de chambre estampado agressivamente.

Pensamentos grandiosos atravessavam-lhe o cérebro. A música era um estimulante às suas faculdades intelectuais. Todas as suas "grandes ideias" haviam sido elaboradas submergindo das cataratas sonoras das sinfonias do mestre.

Estava esperando os resultados da última ex­pedição. Se aquele homem, Dog O'Hara, fosse tão bom quanto seu "dossiê" e seu aspecto da­vam a entender, tudo tornaria a andar sem di­ficuldades.

O som da campainha da porta arrancou-o às meditações. Abandonou a cômoda posição e en­caminhou-se para abrir.

Diante dele, erguia-se o homem em que pen­sava naquele momento.

Um sorriso, que o encheu de negros pressen­timentos, na boca do visitante.

— Não me convida a entrar, Tom?

O medo apoderou-se de seu coração. Era por demais amistoso o tom com que O'Hara lhe fa­lava.

Afastou-se para um lado. O agente do FBI en­trou.

Vigiava atentamente os movimentos do advo­gado.

"Telegrama" perguntou:

— Que... aconteceu?

— Tudo correu magnificamente — informou Bill. — Pelo menos, para mim. Não sei se você achará tão bom quanto eu.

— Que... quer... dizer?

O'Hara ocupou a poltrona que, poucos antes, "Telegrama" deixara. Acendeu um cigarro. Falou, com dicção bem clara:

— Ouça, amigo. O brinquedo terminou, sabe? Na verdade, eu me chamo O'Hara, mas minhas atividades sempre estiveram ao lado da Lei. Mais ainda: pertenço ao FBI.

O rosto de "Telegrama" ia-se cobrindo pouco a pouco de um suor frio. Prosseguiu Bill O'Hara:

— Foi muito inteligente o plano que você tra­çou, não só no que se refere à forma de realizar os assaltos aos bancos, como também à manei­ra de ficar encoberto de todas as responsabilida­des. Você cometeu um só erro.

— Como assim? Não... verdade! Eu... não sei nada!

— Claro que sabe, Tom. Seguimos seus pas­sos, um a um. Tenho as falsificações que você fez ao realizar as compras dos barcos gêmeos.

Você fez com que aparecesse a assinatura da­quele idiota de Cassidy Heart mas os peritos confirmaram que foi sua mão que guiou a ca­neta. E também foi você quem recrutou os ho­mens da organização. Tanto os que pertenciam à parte ativa, criminosos que cometiam os assal­tos, como o total da rede informativa...

Uma pausa.

Fumou pensativo.

Depois, jogou o resto do cigarro para um can­to.

Desligou o toca-discos, onde ainda girava a Quinta preciosa. Continuou:

— Sim, amigo. Você é um grande estrategis­ta. É pena que seus dotes devam acabar na ca­deira elétrica!

Uma espécie de grasnido escapou da garganta de "Telegrama":

— Mentira! Eu... inocente! Culpado... Cassidy Heart! Também Deegan! Menti...

Interrompeu-o Bill:

— O truque de empregar os barcos gêmeos para as operações foi, verdadeiramente, genial, Uma vez realizado o assalto, as embarcações se encontravam em alto-mar. Trocavam de nomes e de tripulações. Assim, no caso em que houves­se suspeitas, nada poderia ser encontrado. Seria descoberto, apenas, um inocente carregamento de frutas e de outras mercadorias. A "General Ships Company" ficava sempre a salvo. E você ainda mais. Porque já preparara vários pontos de contato, quase impossíveis de serem segui­dos. Mas acontece que Cassidy Heart e seu com­parsa Deegan cantaram a ópera inteirinha. Isso não lhe deixa a menor saída, percebe? O final você já sabe. Em outra parte, seria a câmara de gás. Neste Estado, a cadeira elétrica.

Foi aí que "Telegrama" cometeu o seu único e último engano.

Bill O'Hara acompanhou as reações do crimi­noso. Sentiu que atingia o alvo, não obstante não ter nada de concreto contra o acusado. Um advogado hábil como era o caso daquele Tom High não se impressionaria com as simples pa­lavras do agente. Mas todo gênio tem a sua hora de papalvo.

Bill O'Hara virou as costas, indiferente, pu­xando um cigarro, senhor da situação. Deliberadamente?

"Telegrama", mudando de cor mas fingindo conformar-se com as circunstâncias, abriu de manso a gaveta central da sua espalhafatosa escrivaninha e sacou a pistola. Num abrir e fe­char de olhos. A bala passou raspando a cabeça do agente que já empunhava a sua automática, com decisão.

Tom Hig. — o "Telegrama" — recebeu o tiro bem no peito. Caiu botando sangue aos borbo­tões. Para não mais levantar-se.

Teria sido absolvido? Apenas só lhe pesariam, legalmente, suspeitas. E só suspeitas. Era um fabuloso estrategista. Mas o medo foi a sua per­dição. O medo gerado de sentir-se descoberto. Ele que tanto confiara na sua inteligência, na segurança dos seus planos realmente geniais.

 

No mesmo reservado de sempre, no mesmo restaurante em frente, o mesmo Jorginho Ca­reca, o garçom favorito, servindo a bebidinha inicial.

Bill e Lana, olhos nos olhos, distantes do mun­do, envolvidos na mesma aura de sonho que só o amor sabe inspirar.

— Padre O'Maley dispensou os proclamas, o bispo deixou. Será no sábado, minha querida, à tardinha. A minha rua inteira estará presente.

— Já estou pedindo a Deus para que não acon­teça até lá um novo "Telegrama"...

Aí, chegou Earl com um ramo de rosas deste tamanho:

— Para a senhorita noiva, com as homenagens do senhor inspetor Bronson e as felicitações pela vitória do noivo! — E virando-se para Bill: — O inspetor manda dizer que acharam mais restos dos bandidos jogados ao mar. Novo informe da costa oeste.

— E de Bob Urso?

— Só a confissão de Deegan. Cantou direitinho. Parece até que com um certo gosto mórbi­do, contando o tombo de Urso quando recebeu a bala de seu revólver. Mas nada disseram sobre o destino do corpo.

Lana Fleur, cingindo o pescoço do noivo, olhan­do Charles e fazendo voz de menininha:

— Agora seu feio, tome logo seu drink e vá embora. Você só sabe falar de serviço... Deixe a gente em paz, viu? Meu amor está cansadinho...

E Earl, já de saída:

— Ele só?

 

                                                                                            Herman Tellgon

 

 

                      

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