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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESCANDALO EM HELDENTATT / Alec Baurer
ESCANDALO EM HELDENTATT / Alec Baurer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Oh, Viena Oh, Viena O sentimento se foi, só você e eu!
PARA DIRK HOLZBIENE, Viena era mais do que apenas “mais uma” cidade europeia de renome. Viena era a conjugação de todas as coisas boas que se via em Londres, em Edimburgo, em Budapeste e no Cazaquistão! Tudo junto, misturado e organizado! E funcionando, diga-se de passagem.
Nesse determinado dia, 7 de maio, Dirk tinha vindo de Bratislava para Viena de trem, desembarcando na estação central (Wien Hauptbahnhof).
O hotel ficava bem ao lado da estação de metrô Kettenbrückengasse. Depois de dar um destino à bagagem, Dirk partiu para uma volta pela capital, a começar pelo Palácio Schönbrunn.
Voltando para o centro, desembarcou na estação de metrô para justamente conhecer a Praça Karlsplatz. A praça era limpa, bem cuidada, arborizada, com bancos e um lindo espelho d’água; ao redor, os prédios históricos. Mais adiante, as atrações turísticas: Naschmarkt, Karlskirche, Musikverein, etc.
Nascido no centro de Frankfurt, em uma família de 3 crianças, Dirk Holzbiene se iniciara na cozinha através dos livros de culinária, dos jantares em família e “cozinhando depois das aulas”.
Ainda adolescente, fora a Paris para estudar na Le Cordon Bleu, escola de cozinha francesa clássica. Durante esse período fizera dois estágios, um na área de buffet no Trater
Hotel e Chabeau, e outro estágio no restaurante Les Elysee Verne.
Agora, com o diploma em mãos, o futuro sorria para o novo cozinheiro. Em uns 20 anos trabalhando em um bom restaurante poderia se tornar chef pâtissier.
Chef pâtissier!

 


 


Dirk não podia deixar de pensar que a profissão era singularmente bem-remunerada. Até custava a crer que poderia chegar tão longe…
Dirk correu os olhos pela praça. Foi um olhar grave, austero, mas confiante do divino direito de estar naquele lugar, naquela hora. Alguns turistas zanzavam nas proximidades.
Um rapaz com um mapa na mão; um senhor inglês com calças velhas de flanela e um paletó remendado e bastante gasto; uma moça trajando um leve casaco, movimentos graciosos e o cabelo preso em um rabo-de-cavalo.
Quase por acaso, Dirk viu uma senhora pousada em um dos bancos, à sua direita. Era uma mulher de meia-idade, de pequena estatura e um pouco gorduchinha, que tremia como uma cotovia assustada. Por um instante ocorreu a Dirk que ela certamente fora magra, talvez até bastante magra, durante a primeira metade da vida, mas que engordara com a idade.
Nunca devia ter sido bonita, mas tinha as feições regulares e, menos compenetrada, poderia até mesmo ter um certo encanto.
“Que mulherzinha engraçada!” pensou ele. “Toda enrugada… e bastante reumática, provavelmente. Que será que está fazendo aí, falando sozinha?”
Assim como o pássaro que voa para o poleiro, Dirk se aproximou de onde ela estava. Fazendo uma pequena inclinação, Dirk pigarreou e disse, meio sem jeito:
- Eu sou Dirk. Prazer em conhecê-la, Frau…?
A mulher empertigou-se, ajeitou o chapéu que escorregara para um lado, e concentrou-se no rapaz que olhava para ela. Ele começava a se perguntar se ela seria surda e estava
preparado para repetir a pergunta em um tom de voz mais alto quando: - Dargnell - respondeu ela. - Rose Dargnell.
Tratava-se de uma mulher vibrante, de olhar penetrante e julgador. Os cabelos castanhos, meio acinzentados, iam até o meio das costas.
- Desculpe por me intrometer assim, Frau Dargnell - Dirk abriu a conversa -, mas a senhora… está bem? A senhora parece assustada.
Frau Dargnell assentiu com a cabeça. A atitude dela se modificou como se tivesse perdido o ar defensivo. Ela fez um sinal para que ele se sentasse ao seu lado.
- Oh! É mesmo?
Um jovem tão bem apessoado! E que se expressava tão bem! Quem seria ele? Curioso que tivesse reparado nela. As pessoas hoje não reparavam nem em si próprias! Muito menos nos outros…
- Qual é o problema? A senhora está inquieta com alguma coisa? Se eu puder ajudá-la…
- É muita bondade sua, meu bem, mas na verdade, acho que não pode, obrigada. Oh! Você é um jovem tão simpático! Quando se vive tanto quanto eu, acaba-se descobrindo que as
pessoas, hoje em dia, não são muito solidárias umas com as outras.
- Mas eu sou - sorriu Dirk. - Ou pelo menos luto para ser.
- O que é muito nobre e muito bom - disse Frau Dargnell com vivacidade. Lançou um olhar agradecido sobre Dirk.
- A senhora mora por aqui?
- Não, não. Eu moro em Heldenstatt.
- Heldenstatt… Não me lembro de ter ouvido esse nome. Onde fica?
- Ao sul… a uns trinta quilômetros de Graz.
- Imagino que seja uma aldeia onde a modernidade ainda não conseguiu causar muitos estragos.
A mulher refletiu sobre certos aspectos do seu local de residência.
- Bem, nem tanto. Tem havido grandes mudanças por lá. Mas acho que não dá para deter certas coisas, não é? A gente precisa se adaptar aos tempos. Quer dizer, com tantos aparelhos
eletrônicos à venda hoje em dia! Aparelhos que são projetados para conectar pessoas, mas que, na realidade, colocam barreiras emocionais entre elas. Todos esses jovens que
não vivem mais sem internet e celulares. Estão mais brancos do que cera, estão ficando gordos e doentes por trocar a alimentação nutritiva por um lanche na frente do computador.
- Eu não definiria melhor - disse Dirk. - Considerando todo o abuso da tecnologia destes últimos anos, é fácil concluir de quem é a culpa pelo surto de falta de interação
entre as pessoas. E o que veio fazer em Viena, se me permite a pergunta?
- Vim visitar uma amiga. Há muitos anos que não nos víamos. Ingrid nasceu em Heldenstatt, mas veio para Viena ainda bem novinha. Conseguiu um ótimo emprego. Os patrões gostam
dela, admiram principalmente sua vitalidade e iniciativa. Foi um prazer revê-la. Ficamos recordando o passado e nos lembramos das pessoas que ela conheceu em Heldenstatt.
Falamos sobre quem noivou e casou, quem teve filhos e, claro, sobre os crimes que houve por lá ultimamente.
Dirk poderia ter dito: “Crimes? O que a senhora está querendo dizer com isto?”, ou então: “Do que a senhora está falando?”!
Em vez disso, Dirk olhou para ela, como se não soubesse muito bem aonde ela queria chegar. Não lhe parecia uma histérica ou uma mulher de imaginação fértil.
- A senhora quer dizer que houve… hum… um assassinato?
- Dois assassinatos - corrigiu ela. - Dois… quase um atrás do outro.
- Deve ter sido assustador.
Ela sacudiu a cabeça de novo.
- Sim, muito.
- E como aconteceu… esse crime?
- Dois crimes.
- Que seja… dois.
- Sim.
- E como aconteceram? - repetiu Dirk pacientemente.
- Começou meses atrás - disse Frau Dargnell. Ela esboçou um sorriso que não impediu o rosto de ficar vermelho, enquanto as pupilas brilhavam de ansiedade. - Sou boa em perceber
detalhes. Sempre percebo tudo, principalmente quando se trata de gente. Mesmo assim, é bastante difícil explicar. A primeira a morrer foi Betty Riedell. Uma moça que não tinha
nada, mas que pensava ser alguém. Vestia-se como se fosse uma dama. Quando criança, Betty viveu numa situação próxima da miséria. Só não caiu na prostituição graças à generosidade
de benfeitores. Diziam que ela era meio estranha, que desde criança era esquisita. Não era nada disso. Betty tinha suas esquisitices, é verdade, mas, no fundo, ela sempre
quis fazer o que é direito. Trabalhava como empregada doméstica por causa das dificuldades financeiras da família. “Eu posso tomar conta de mim” dizia ela, cheia de si. A
vida dela foi tão difícil… Mas ela nunca reclamava, isto eu digo.
- A senhora era muito ligada a ela?
- Bem, para dizer a verdade, eu considerava Betty como filha minha - uma filha que nunca tive. Eu a conhecia muito bem, sabe. Ficou sob meus cuidados por um breve período.
Eu mesma fiquei contente pela distração de ter uma pessoa jovem que carregasse os meus embrulhos e com quem passear por aí. Passei a gostar muito de Betty, ainda mais, talvez,
por logo perceber que ela era, digamos, uma pobre menina desvalida. O pai muitas vezes bebia e, quando chegava em casa, ameaçava matar a mulher com uma faca ou por estrangulamento.
Um canalha, que não teve nem a coragem de assumir sua canalhice, que talvez nem tenha se dado conta dela! Felizmente ele morreu logo depois, o que trouxe sossego para todo
mundo. Anne, a mãe, mudou-se então para uma casa melhor, onde ficou muito bem, cuidando das filhas que ela tanto amava.
Frau Dargnell reclinou-se para trás, fechou os olhos.
- Anne embarcou com as crianças para interná-las num colégio e eu fiquei com a chave para tomar conta da casa. Infelizmente o colégio recusou-se a matricular as meninas, e
Anne foi obrigada a fazê-las frequentar a escola da vila.
“A história parece ser de um romantismo estratosférico” pensou Dirk. “Mas… quem sabe?”
- A senhora falou em duplo assassinato - volveu ele. – Quem foi a outra vítima?
- O Dr. Fleissig. Era um homem bem-humorado, muito instruído, com uma veia irônica que os pacientes achavam muito estimulante. Ele dizia não querer nada com as mulheres, mas,
claro, era só um blefe. A verdade é que ele era um mulherengo incorrigível. Um homem cheio de preconceitos e arrogante, mas também um médico muito bom.
- Mas houve uma investigação, não houve? O que disseram?
- Claro que houve uma investigação! - respondeu Frau Dargnell com veemência. - A polícia fez uma série de campanhas; realizaram um inquérito exaustivo, cobrindo todas as circunstâncias;
arquitetaram mil e uma teorias para interpretar os fatos. Infelizmente nada foi apurado. Falaram com Mara, mas ela, pobrezinha, manteve uma atitude de fria hostilidade; estava
tão ressentida por estar sendo interrogada, fossem quais fossem as perguntas, que foi difícil saber se seu embaraço tinha a ver com as perguntas relacionadas com a morte do
marido, ou não.
- Como é que ele era?
- Heinrich? Oh! Era cortês, e tinha modos refinados, mas também era muito calado e reservado. Isso quando estava sóbrio. Depois que tomava dois ou três uísques, desandava
a falar como uma vitrola velha. Morreu envenenado.
- Não pode ter sido suicídio?
- Não, não - respondeu Frau Dargnell, enfaticamente. - Tenho certeza de que o Dr. Fleissig não cometeria suicídio. Ele já morava lá há muito tempo.
- E gozava de boa saúde?
- Heinrich teve um diagnóstico de sopro cardíaco quando era adolescente ou coisa parecida; mas vivia tomando remédios e fazendo regime.
- Por acaso não teriam brigado?
- Às vezes discutiam, mas nunca passou disso.
- Na opinião da senhora, o crime foi cometido por alguém da vila?
- E quem mais poderia ser? O assassino devia ser alguém que ele conhecia, se bem que a polícia não tenha conseguido pegar ninguém; vizinhos dizem que viram alguém rondando
a casa, horas antes, mas nada além disso.
Ela calou-se, para reabastecer seus pulmões.
Dirk sentia-se num estado de paralisia mental. A situação era tão irreal que seu cérebro se recusava a funcionar.
- Que coisa estranha… que coisa mais fantástica… e aconteceu logo na aldeia onde a senhora mora!
Em meio ao seu alvoroço, ela assentiu com a cabeça.
- Quem já ouviu falar de algo assim, não é? Essas coisas se espalham por um povoado com muita rapidez, sabe, embora possam levar um pouco mais de tempo - acrescentou - para
chegarem às autoridades.
- E a senhora sabe quem é o… assassino?
- Não, não sei - disse ela.
- Nos romances policiais, as pistas têm sempre a ver com algum trejeito do assassino - disse Dirk, tentando argumentar. - Trejeitos que a gente não consegue esconder. Digamos,
alguma forma específica de comportamento; algo do tipo: ‘eu não quero falar isso’, então a mão vai à boca; ‘eu não quero ouvir isso’, a mão passa pela orelha; ou ‘eu não concordo
com isso’, e a pessoa coça a cabeça. Mesmo que não queira, todo bom assassino é um bom mentiroso. Mas, muitas vezes, quem mente dá indícios de que está mentindo. Desvia o
olhar, fala com muitas justificativas, mexe mãos e pés de forma frenética, muda o tom de voz. Talvez mude até a forma de andar. Não lhe ocorre nada parecido?
De repente Frau Dargnell pareceu a ponto de perder a rigidez que Dirk julgava ser parte inerente de sua personalidade. Era como se tivesse percebido que havia alguma coisa
ali…
Com a ponta dos lábios, disse:
- Forma de andar?
- Forma de andar! - frisou Dirk. - A senhora lembrou-se de alguma coisa, não foi?
- Acho que não faz diferença.
- É claro que faz diferença. Do que foi que a senhora se lembrou? Pode dizer…
- Nada, nada… Estava só… tentando me lembrar se tem algo de que me esqueci.
- Deve ter havido uma causa, uma razão para alguém fazer isso. Nenhuma lembrança? Qualquer coisa?
Frau Dargnell olhou diretamente para o rapaz, pensativa, como se quisesse dar uma explicação.
- Bem, acho que não faz diferença - disse Frau Dargnell, agarrada a sua expressão idiomática favorita.
- Entendo - murmurou Dirk. - Acha que possa haver outras mortes?
- É do que tenho mais medo - disse Frau Dargnell, quase sem fôlego. - É uma ideia que não posso suportar! Bom - concluiu. Maquinalmente, ela se levantou. - Está ficando tarde!
Desejo-lhe tudo de bom, meu bem.
- Igualmente.
Dirk despediu-se com um aperto de mão. Definitivamente, sentira-se impelido a falar com aquela mulher. Notara que ela também parecia interessada, mas, quanto àquela última
pergunta, mantivera-se como se estivesse envolta em um casulo. Frau Dargnell se virou e se afastou lentamente.
Dirk deu de ombros, por ora dando o episódio como encerrado, embora outros desdobramentos estivessem prestes a ocorrer.
II
HELDENSTATT. SEMANAS DEPOIS.
Frau Rose Dargnell alisou a toalha e olhou ao redor para se certificar de que estava tudo em ordem. Embora houvesse muitos voluntários para ajudar nos preparativos do bazar,
a maioria dos homens reunia-se em grupos no gramado, enquanto as mulheres ficavam estendidas nas espreguiçadeiras, lagarteando ao sol e gastando a língua jogando conversa
fora.
“Realmente, está tudo muito ruim” resmungou para si mesma. “Para se tocar um evento, é necessário ter cooperação.”
Em resumo, era ela uma das poucas pessoas ali que pegava no pesado, e que não se constrangia com isso. Mesmo não estando entre as pessoas do comitê, suas qualificações e sua
experiência estavam sempre ao dispor dos organizadores do tão prestigiado evento anual.
Como nas edições anteriores, haveria uma barraca de utensílios domésticos, controlada por Herr Fuchsmann e família. Haveria também diversas “barraquinhas” exibindo eletroeletrônicos,
sapatos, acessórios, bolsas, artigos para animais, móveis - tudo novo, seminovo ou usado, porém em bom estado. Tudo era vendido durante o bazar a preços de desapego, e toda
a renda revertia para a Associação Comunitária das Mães e Noivas.
Anos atrás, Frau Dargnell podia se gabar de conhecer cada morador da aldeia, e podia afirmar com segurança que todos eram cidadãos dignos e respeitáveis.
Mas era preciso encarar os fatos: Heldenstatt já não era mais o lugar de sempre. Não depois da morte de Betty!
Betty - que desde o berço fora uma criança mimada, indomável, sem estribeiras, satisfazendo facilmente os seus caprichos pela força de sua beleza, da sua inteligência e da
sua sedução.
- É o inquérito mais decepcionante que se possa imaginar - dissera o inspetor destacado para o caso. - Se lhe tivessem roubado alguma coisa, tudo seria de uma simplicidade
infantil. Mas não roubaram nada! Ninguém viu nem ouviu nada! Só alguém muito astuto seria capaz de dizer por que a moça foi morta.
Frau Dargnell não se julgava astuta. Mas após ter conversado com aquele jovem na Karlplatz; após ter voltado de Viena para sua aldeia-natal (onde se dedicava à decoração da
casa e ao cuidado do jardim com afinco, consciente de que o trabalho era o refúgio secreto que lhe possibilitava ter um pouco de paz de espírito); depois de ter pensado em
todos os que, de algum modo, poderiam ter tido algum motivo para assassinar Betty e o Dr. Fleissig, finalmente ela sabia por que eles tinham sido mortos! E, sobretudo, por
quem.
Ela sabia. Mas a que custo?
Jamais antes desses últimos dias experimentara tal sensação de isolamento e desamparo. Primeiro viera a negação. Negação de que suas suspeitas pudessem ser corretas. Daí a
raiva. Depressão. Como fases de um luto. Quando finalmente ela se convencera da veracidade de suas descobertas, desatara a chorar - chorar incontrolavelmente.
A dúvida que imperava era: devia ir à polícia? Não devia ir à polícia?
“É bom pensar e repensar antes de agir” dizia para si mesma, tentando adiar o inadiável.
Ir ou não ir?
Quem sabe se estipulasse para si mesma um prazo-limite?
Que tal - segunda-feira?
Dali a dois dias.
Dois dias para fortalecer a sua resolução!
Ou para desistir, caso achasse que não deveria ir.
Segunda-feira!
Pronto! Estava decidido.
Frau Dargnell semicerrou os olhos, e perdeu o olhar na distância, como se tivesse olhando para dentro de si mesma ou coisa parecida.
Ouviu um farfalhar de tecido atrás de si.
Ela aprumou o torso e levantou a mão num gesto quase de desenvoltura, no qual havia, porém, um imperceptível sinal de medo. Precisou tossir. Bem que gostaria de parecer uma
grande senhora, muita tranquila, mas, mesmo tentando conter-se, teve um estremecimento; por um instante ficou com a boca entreaberta, a buscar a respiração.
Que barulho fora aquele?
Frau Dargnell virou-se e foi em direção aos fundos da barraca. Tomando uma súbita decisão, pôs a ponta da mão direita na junção entre os panos e espiou para fora. Por um instante,
pareceu desorientada pelo contraste entre o claro-escuro dentro da barraca e a claridade do sol que brilhava forte, fazendo cintilar as gotículas de água sobre as bétulas.
- Quem… está… aí? - balbuciou, após um longo silêncio.
Falava devagar, com a voz arrastada, como se tivesse dificuldade em formar as palavras. Falava olhando à direita e à esquerda de um jeito aparentemente sonso.
Ficou assim por mais de um minuto.
- Tem alguém aí? - articulou com uma voz mais rouca.
Esperou uma resposta. Mas não houve resposta.
- Deve ser um gato - exclamou ela jovialmente, com a despreocupação restaurada, depois de um breve eclipse. - Francamente! Realmente precisa se torturar tanto assim, Rose?
Decidiu não se preocupar com aquilo.
Virou-se e voltou a ajeitar a prateleira onde ficariam os pães e doces.
Outro farfalhar…
Frau Dargnell teve a sensação de que seu coração se contraía, transformando-se em um pequeno ponto de angústia. Tinha ouvido um levíssimo ruído - certamente ouvira alguma
coisa… Dali em diante, formou-se um silêncio carregado de tensão.
O sentimento de horror se intensificou.
Havia alguém ali…
Bastava virar a cabeça para vê-lo.
Mas não podia virar a cabeça…
Se ela gritasse…
Mas não conseguia gritar.
O pano moveu-se ligeiramente, como que ao toque da brisa. Apareceu qualquer coisa, um aro duro e redondo, com um brilho fosco de metal…
Frau Dargnell virou-se; empalideceu.
- Não… não pode…
Mas ela foi incapaz de acrescentar qualquer outra coisa.
O gatilho foi apertado… uma… duas vezes.
Cheiro forte de pólvora… A mulher gemeu, seus olhos começaram a nublar-se, a cabeça a latejar furiosamente, tudo começou a girar…
Frau Dargnell desabou para frente, esparramando-se pesadamente no chão.
Capítulo 1
CONDUZIDO A UM QUARTO envolto em seda cor-de-rosa e lavanda, Dirk encontrou Rachelle terminando de se arrumar. O perfume intenso dos narcisos enchia o ambiente.
- Visitas, Fräulein Rachelle! - anunciou o lacaio.
- Oh!
Ela levantou-se de um salto, hesitante e curiosa, girando na direção das palavras ditas atrás dela. Dirk viu que ela tinha o rosto coberto por um opaco pó facial e vestia
uma blusa com monogramas em índigo. Longos cílios delineavam os olhos azuis e arredondados, marcados por finas linhas de expressão quando ela sorria.
- Bom dia, Rachelle.
- Oh! É você, Dirk… Estou contente em vê-lo tão bem.
- Achou que fosse Bob?
Rachelle sacudiu a cabeça.
- Bob se foi, Dirk. Não tenho mais noivo. Rompemos, você não sabia?
- Ué, por quê?
- Um homem que raramente toma banho, muda de meias só quando janta fora ou vai ao cinema, sem endereço fixo e que, além disso, come mal e porcamente? Você queria o quê? Naturalmente
era hora de soltar as rédeas.
- Ele parecia tão charmoso!
- Charmoso, atrevido e fanfarrão, você quer dizer. Foi até melhor assim. Bob era meio possessivo, sabe? Imagine a pouca vergonha dele! Ficou mandando mensagens de texto. Mensagens
de texto! “Não pense que vai se safar desta!” Que descaramento! Ah! Eu não suporto homens possessivos! Quanto mais longa a vida, mais desapontamentos e solidão.
- Fico feliz que tenha terminado com ele. Era um pilantra como nunca vi igual. Bem que falei que vocês não eram compatíveis. Você é nova. Não tem com que se preocupar. Você
tem um queixo muito bonito. Procure mantê-lo erguido. Pretendentes não faltam - e Dirk olhou insinuantemente para ela.
- Você me elogiando! - exclamou Rachelle. - A que se deve tanta amabilidade?
- Não é amabilidade nenhuma. É a mais pura verdade, poxa.
Ele a estava encarando, os olhos cintilando com algo que ela não conseguiu identificar.
- Não vem com essa! Deve haver alguma coisa. Eu conheço você, Dirk. O que é?
Dirk relatou o episódio da praça, acontecido dias antes, sobre a mulher “assustada como uma cotovia” e tudo o que ela dissera. Rachelle olhou para ele, um sorriso irônico
nos lábios.
- Não levou isso a sério, levou?
- Naquele dia, não. Francamente, o que ela me contou parecia uma bobagem sem tamanho! Ela falava, falava, e eu estava achando tudo muito maçante. Então, apenas entrei na onda.
Ainda assim, há um detalhe que me intriga.
- Que detalhe?
- Este - e Dirk abriu a página online do Der Standard em seu smartphone.
- “Mulher é morta ao ser abordada por ladrão durante organização de festividade ao ar livre em prol de instituição de caridade.” O que tem isso? Oh!… A mulher…
- Pois é. É a mesma. Veja o sobrenome.
- Está achando que…
- Não deixa de ser curioso.
- Talvez seja. Ou não.
- Qual é, Rachelle! A mulher fala comigo, diz todas aquelas coisas e, menos de um mês depois, alguém acaba com ela.
- Mas aqui diz que foi reação a um assalto.
- Com um tiro na nuca e outro nas costas? Ouça a matéria: “O Inspetor Sven ainda não fez nenhuma declaração oficial sobre as circunstâncias da morte, embora a polícia esteja
investigando, na tentativa de determinar as razões.”
- Hum… - grunhiu Rachelle. - É meio estranho.
- Estranho é apelido! - concordou Dirk em tom sucinto.
- Às vezes acontecem coisas que fogem ao nosso entendimento…
-… o que não quer dizer que não devamos tentar dar um sentido a elas - disse Dirk.
- Pode ser só coincidência.
- E se for mais do que isso?
- Que está querendo dizer?
- Que ela pode ter sido morta em represália a alguma coisa que talvez soubesse.
- Represália? - perguntou Rachelle. - Você está caçoando de mim?
- É claro que não.
- O que pretende fazer?
- Tudo o que acho é que aí está um caso a ser investigado.
- Bem que imaginava por que você queria falar comigo em condições tão misteriosas. Você quer solucionar, como por magia, um mistério que a polícia e investigadores experientes,
dispondo de bem mais recursos, não solucionaram? Dirk, você bebeu?
- Desejo apenas verificar as coisas à minha maneira.
- Por que você tem que ser sempre assim?
- Qual é, Rachelle! Siga o coelho na toca; veja aonde vai dar. É esse o meu mantra.
- Admiro-me que pense dessa forma.
- Que bom que ainda consiga surpreendê-la.
Ela estremeceu. Por um instante permaneceu imóvel no mesmo lugar. Havia uma recriminação em seu olhar.
- Quero que saiba que respeito sua decisão. Mas não vou fazer parte disso. Por mais que eu quisesse, não poderia.
Dirk olhou para ela durante algum tempo, como se não tivesse intenção de responder.
- Não estou pedindo que faça, estou? Eu a amo, e quem ama, cuida.
- Cuidado, Dirk. O amor não correspondido pode ganhar uma dimensão patológica quando o admirador começa a demonstrar comportamentos e fantasias incontroláveis em relação à
pessoa amada.
- Bobinha! Há uma grande lacuna entre admiração e obsessão.
Rachelle sorriu; mudou de assunto: - Pelo visto, você quer saber o que aconteceu à pobre mulher que falou com você!
- Saber, eu já sei. Ela foi assassinada. A questão é: Por quê?
- Tente ligar para o meu tio. Marskin. Klaus Marskin. Ele mora em… como é mesmo o nome do lugar?… ah, sim, Heldenstatt. É um expert em artes, gastronomia e vinho. Todo mundo
fala sobre ele como se soubesse andar sobre as águas.
- Seu tio?
- Só quero facilitar as coisas para você. Ligue para ele e veja se ele pode dar alguma informação. Se não quiser, não ligue, ora.
Dirk estufou o peito.
- Já estou indo, desculpe-me por ter perturbado você. Não me castigue por querer vê-la sempre que venho a Viena. A não ser - ele fez uma pausa; acrescentou: - a não ser que
você já esteja apaixonada por outro homem.
- Outro homem? Ora, seu… seu… Xô! Xô! Saia já daqui.
II
O CELULAR TOCOU. Rachelle atendeu.
- A trama se complica - pôde ouvir a voz pesada do outro lado da linha.
- O quê? - perguntou Rachelle, desnorteada. - Como? Quem é?
- Sou eu… Dirk.
- Ah… Oi, Dirk. Que susto! O que foi desta vez?
- Eu disse que a trama se complica.
- Trama? Que trama?
- Lembra-se que eu falei da morte de um tal de Dr. Fleissig?
- Dr. Fleissig? Espere aí, de quem está falando?
- Alô, alô… Cápsula lunar contatando Rachelle. Câmbio! Lembra-se que eu estive com você na semana passada e nós falamos de uma certa aldeia onde aconteceram alguns assassinatos?
Rachelle fez uma pausa. Quando ela finalmente falou, foi muito bruscamente: - Sim, sim… Estou lembrada. E daí?
- Lembra-se que eu falei sobre um médico que tinha morrido por lá, morte esta que a polícia estava tratando como suicídio, coisa que uma tal de Frau Dargnell sustentava ser
absurda etc., lembra?
- Ah-rã.
- Pois é, a hipótese de suicídio foi descartada. Parece que o Dr. Fleissig não se matou, afinal de contas. Pelo que li, ele era um homem íntegro, tolerante, corajoso; eu diria,
quase irretocável. Parece que possuía status quase sagrado no imaginário de Heldenstatt. Então, por que ele se mataria?
- É… não faz muito sentido.
- Você disse tudo - concordou Dirk, empolgado. - Não importa por que lado a gente veja, isso não faz o menor sentido. Com certeza não faz… não, não consigo ver nenhum sentido
nisso. É por isso que vou até lá, para comprovar o que aconteceu.
- O quê?!
- Eu vou até lá.
- Você pirou?
- Dá vontade de saber o que realmente aconteceu a Frau Dargnell - explicou Dirk.
- Ela foi assassinada. Foi o que você disse.
- Sim, mas quem a matou, e por quê?
- Descobrir isso é tarefa da polícia.
- Exatamente. E a polícia ainda não descobriu nada. Isso significa que o assassino não dá ponto sem nó. Eu quero, desesperadamente, fazer alguma coisa, Rachelle. Fazer qualquer
coisa; pelo menos, durante uma ou duas semanas. Quando eu souber quem é o assassino, até posso ir arranjando as pistas. Fico pensando… Dane-se! Rachelle, eu sempre quis que
alguma coisa emocionante acontecesse! O problema mais urgente que tenho pela frente é encontrar a resposta para: até que ponto Frau Dargnell tinha razão?
- A sua euforia é comovente, Dirk. Admito que você tenha bom faro. Fareja informações como ninguém. Mas você não tem o mínimo conhecimento prático. Eu se fosse você, me manteria
fora disso.
- Por quê?
- Ora, Dirk! - a voz de Rachelle endureceu. Tudo aquilo parecia atingir as raias da loucura. - Você sabe que o mundo está cheio de pessoas capazes de tudo. E se houver mesmo
um serial killer? E se ele for atrás de você? Pense nas consequências. Você parece um trem desgovernado, Dirk querido!
- Um trem desgovernado…
- É. Ou pior.
- Você nunca desejou ter feito alguma coisa por alguém?
- É claro que sim. Mas não me matando! Não sei o que deu em você.
- E quem disse que vou me matar?
- Mas é o que parece! Nunca ouvi você falar dessa maneira.
Rachelle fez outra pausa e deu um suspiro.
- Quer mesmo ir adiante nisso?
- Quero não. Eu vou.
- O que vai fazer? Vai submeter a besta com os seus olhos meigos?
- Se puder, sim. Não importa o grau de inteligência de um homem se ele não tiver um propósito. Tire o propósito e ele vai junto.
- Muito bem, se insiste. Não diga que não avisei. Quer que eu faça alguma coisa?
- Sabe que não posso forçá-la. Vamos fazer o seguinte: eu me encarrego da ação em campo. Se precisar de aconselhamento, falo com você por meio de uma chamada de vídeo.
Rachelle deu um grunhido que provavelmente queria dizer ok.
- Se for isso o que você quer…
- Vá e faça, este é o segredo de tudo - disse Dirk. - Vou enfrentar seja o que for. Venha o que vier.
- Bem, então boa sorte. Sei que tudo vai dar certo.
Dirk não conteve um sorriso.
- Não, não sabe, mas obrigado pela solidariedade.
Capítulo 2
EM HELDENSTATT, EM GERAL, o inverno era rigoroso, com muita neve e chuvas recorrentes ao longo do ano. O mês mais seco, fevereiro e o mais úmido, junho. A temperatura média
girava em torno dos 8 graus - com clima frio mesmo no verão. Durante o inverno, a maioria dos hotéis e atrações turísticas fechava as portas. Existiam poucos restaurantes.
O que preponderava eram as cafeterias e alguns pubs.
Enquanto guiava pelas ruelas, Dirk observou os detalhes das casinhas cujo ponto mais alto podia ser acessado por escadinhas de muitos degraus. Passou pela Central Square Marktplatz.
Depois, o Museum Heldenstatt; ou simplesmente, Museu da Herança Cultural. De acordo com as pesquisas de Dirk, nele era retratada a história do vilarejo desde a época da colonização
romana até os dias atuais.
A Mansão dos Teixos era uma residência bucólica. Para chegar até lá, Dirk teve que tomar um longo caminho de cercas, ladeado por uma série de jardins e gramados. O edifício
de pedra, do século 18, fora expandido ao longo do tempo. A casa com vigas aparentes, piso de pinho era uma típica construção do campo, com todo o charme e nostalgia.
A chuva vinhas das montanhas quando Dirk apeou do carro. Um lacaio veio recebê-lo.
- Olá. Tempo ruinzinho, não? - disse ele. - Herr Thröllinger só vai chegar ao meio-dia. Tenho certeza que está preparado para a entrevista.
- Estou sim.
Chegando ao saguão, o lacaio foi entrando primeiro. Era uma sala com pouquíssimos móveis e não continha nenhuma indicação dos gostos ou preferências de seus habitantes. Pequenas
achas de casca grossa ardiam no fogo. Em cima da mesa, um jarro vermelho transparente com água e dentro, um ramo de violáceas. Havia três pessoas no local, todos membros da
família: a mulher posicionava um arranjo de flores, o rapaz estava estendido como um paxá num divã, fones no ouvido, e a moça treinava alguns passos de balé.
- O novo cozinheiro! - anunciou o lacaio em voz alta, como se fosse um título real.
Todos olharam curiosamente para Dirk. A mulher se antecipou, os olhos um tanto abobalhados. Tinha uma beleza um pouco severa, mas apreciável. Usava um vestido de cetim, do
tom de cor azul, com alças calcedônias, meias e sapatos artoise.
- Você é Dirk Holzbiene?
- Sim.
- Molly. Molly Süssenbach. Saiba que sua vinda nos dá muito prazer, e que nos sentimos muito lisonjeados por tê-lo em nossa companhia. Venha, quero que conheça meus filhos.
Molly o rebocou até a lareira.
- Meu filho Rolf.
- Hop! - cumprimentou o rapaz, enquanto acompanhava o compasso da música no smartphone.
- E minha filha… Julie.
- Fräulein! - Dirk inclinou-se respeitosamente.
Julie mal olhou para ele. Uma moça muito arrumada, os cabelos louros puxados para trás, uma blusa de gola e olhos graciosos emboscados atrás de uma fileira de cílios longos
e sedosos. Continuou flexionando as pernas, como se estivesse treinando para o Lago dos Cisnes.
Muito atraente, reparou Dirk com grande admiração.
- Que peninha! - disse Molly, compadecida com a situação de Dirk. - Você está todo molhado.
- É só água, não é nada.
- Ora, mas você precisa trocar de roupa.
- Não, eu…
- Harry! Harry! Traga camisa e calça secas.
Dirk ainda quis protestar, mas logo percebeu que ela não era pessoa que pudesse ser facilmente dissuadida.
- Veio por causa do emprego?
- Pelo que compreendi no anúncio - disse Dirk -, vocês querem alguém para cozinhar e limpar a cozinha, e alimentar a despensa.
- Exatamente.
- Se o lugar estiver vago…
- Está sim. Por que não estaria?
- Não sei - disse Dirk.
Molly sacudiu a cabeça e afirmou categórica: - Não é fácil conseguir bons empregados hoje em dia. Ninguém mais quer um trabalho humilde. Todo mundo prefere se atracar em cursinhos,
se especializar nisso e mais aquilo, só pensando no que dá mais dinheiro.
- Isso é verdade.
- Você não é assim, é?
- Eu estou aqui, não? - sorriu Dirk.
- Que bom! - disse Molly. - Quem indicou o nosso nome?
- Uma amiga.
- Eu a conheço?
- Não creio. Katja Whally.
- Whally? Não, nunca ouvi falar.
- Nascida em Gießen.
- Não. Eu me lembraria se a conhecesse. Foi ela quem me mandou aquele e-mail?
- Sim. Ela disse que a senhora tinha uma governanta.
- Oh! Você está se referindo a Frau Dargnell… Ela morreu.
- Morreu? - perguntou Dirk, expressando um pesar que convenceria até o mais cético dos mortais.
- Oh! Você não soube?
- Acho que não.
- Nossa vida toda parece que se esfacelou no decorrer de um só mês. Foi tudo muito triste.
- O que foi muito triste?
Tal pergunta partiu de Jürgen Thröllinger, o homem que acabara de assomar à porta. Herr Thröllinger - com quem Molly se casara depois que Herr Süssenbach, o primeiro marido,
morrera vitimado por um câncer hepático.
- Estávamos falando da morte de Frau Dargnell - explicou ela, um pouco constrangida.
- Espero que não queira falar disso outra vez - resmungou Jürgen. Cruzou os braços fitando a esposa intensamente, o rosto parecendo uma máscara de bronze. - Nós não estamos
em meio ao caos de Gomorra. Já chega desse assunto.
Dirk olhou para ele. Jürgen Thröllinger tinha um queixo largo, com covinhas, e a boca rasgada de orador. Alto e entroncado, devia ter uns vinte e nove anos (menos da metade
da idade da esposa!).
- Quem é você? - os olhos de Jürgen pousaram em Dirk.
- Jürgen, este é Dirk, o novo cozinheiro.
Dirk teve a impressão de ver as sobrancelhas de Jürgen se elevar uns dois ou três centímetros.
- Então você deve ser o sujeito do qual ouvimos falar.
- Acredito que sim, senhor.
- Prazer. Só é pena que não precisemos mais de seus préstimos. Molly, deseje bem a ele e deixe-o ir.
A mulher estremeceu. Possuída por uma determinação feroz, Molly replicou: - Jürgen! Não seja tão rude. Este rapaz não veio de tão longe para ser despachado de volta dessa
forma. Temos que dar uma oportunidade a ele. Eu vou dar uma oportunidade a ele. Dirk, a partir deste momento considere-se contratado… por mim.
Dirk olhou de viés para Jürgen. Os olhos de Jürgen se fixavam na esposa; estava boquiaberto e suas feições distorcidas de contrariedade. Mas durou menos de um quinto de segundo.
- Se for isso o que deseja, querida - disse Jürgen. - É claro, querida.
- Ah! Muito melhor - disse Molly. Virou-se para Dirk. O seu semblante transparecia bondade, o que foi confirmado quando disse: - Quando você pode começar?
- Quando quiser, Frau. Prometo que levarei a cabo minhas funções da maneira mais adequada.
Ela deu um sorriso genuína e francamente divertido.
- Então fica decidido, Senhor Formalidade.
Dirk foi conduzido numa tournée pela casa, uma imensa mansão de alto padrão. A sala ostensivamente limpa abrigava uma mobília pesada de estilo jacobino. Havia ainda uma adega
rústica, uma sala de caldeira, e, no andar de cima, três quartos com banheiro privativo. As dependências adicionais incluíam: ao lado da piscina, a casa de hóspedes de dois
andares com quarto e cozinha. O celeiro garagem, reformado, era revestido de paredes de pedra, utilizado também como oficina, e em outra ala, um salão de festas para a família,
miniteatro e uma autêntica estufa Amish.
Depois de informá-lo sobre as horas das refeições e deixá-lo inspecionar a despensa, Molly disse: - Agora vou mostrar-lhe o seu alojamento.
Seguiram por um corredor. Molly se deteve e pôs a mão sobre uma maçaneta de bronze reluzente. Acesas as luzes, o quarto revelou ser aconchegante e bem equipado, decorado com
estilo.
- Espero que goste - disse ela. - Há um banheiro logo ali, no fim do corredor. Jürgen fala em adicionar mais banheiros, mas por enquanto não temos condições. A verdade é que
tivemos esta manhã uma longa discussão sobre a melhor maneira de tratarmos isto.
- É uma bela vista, devo confessar.
- É muito agradável sentar aqui e desfrutar de uma bela paisagem à moda antiga - disse Molly. - Tem bagagem?
- Para ser sincero, não.
- No armário deve ter algum traje de que goste. Só peço que desculpe Jürgen… Receio que já tenha percebido que ele é meio bronco, e às vezes diz o que pensa sem medir as consequências.
É um mistério para mim por que insisti com Jürgen para que se casasse comigo vinte e quatro horas depois de ele ter vindo à minha casa. Casar-se, sempre acreditei, já parece
ser bastante desafiador; mas, manter uma relação conjugal, ano após ano, também precisa ser levado em conta. Imagino que saiba que me casei com ele assim que obtive a certidão
de óbito de Walfred. Acho que de fato estava apaixonada por ele já há um bom tempo, mas, é claro, não teria destruído meu casamento, por causa de Rolf e Julie. É tão importante,
não é, que as crianças cresçam tendo um lar? Você entende, não é?
- Certamente - disse Dirk. - Perdoe minha intromissão, mas, há pouco, a senhora disse que as coisas aqui têm mudado de uns tempos para cá.
- Têm mudado, e muito.
- O que houve?
- O fato é que Frau Dargnell não foi a única a morrer. Morreu também nosso médico (Ele era o proprietário de todos os vinhedos que pode ver naquela colina, dos quais ele mesmo
se ocupava!) e outra moça, filha da costureira. Todos na vila temem que haja um assassino por aí. Temem que ele chegue a fazer novas vítimas.
- Imagino como deva ser. Não há nada pior do que conviver com o terror.
- Se me der licença, vou terminar de ajeitar as coisas para o almoço.
- Se houver algo que eu possa fazer…
- Oh, não! - ela sacudiu a cabeça com veemência. - Deixe que eu me vire com isso. Pense em alguma coisa para o jantar.
- O que a senhora sugere?
- Bem… que acha de frango grelhado com legumes no vapor? Consegue dar conta?
- Perfeitamente, Frau.
Ao se deitar naquela noite, Dirk deixou escapar um suspiro de insatisfação.
“Odeio esse drama grego em que tudo acontece fora do palco. Amanhã mesmo vou começar minha investigação. Venha o que vier, amanhã será o dia.”
Capítulo 3
COMO DONA DA CASA, MOLLY falava com Dirk todas as manhãs, encomendando as refeições. Os dois discutiam o menu, apesar de parecer que Molly já tinha decidido tudo de antemão.
Depois de um abundante café da manhã, Dirk servia um suflê de chocolate e um prato de bolinhos recém-saídos do forno, ou outro doce recheado qualquer.
Dirk imaginara o seu plano de ação com cuidado e preparou-se para executá-lo na tarde seguinte, após o seu primeiro dia de trabalho. Dirk refogou o almoço, serviu-o, lavou
os pratos, e um pouco antes das duas da tarde estava pronto com a arrumação. Pôs as meias de lã, as botas e vestiu uma jaqueta suplementar. A primeira pessoa a receber sua
visita foi Herr Marskin.
Diziam que Herr Klaus Marskin era de ascendência austro-irlandesa. Diziam também que tivera uma inclinação frustrada para a música, daí seu hábito obsessivo de viver assobiando
La Montanara, uma de suas melodias prediletas.
Pelo que Dirk se lembrava, Rachelle lhe dissera que o tio dedicara a atenção em alguns casos criminais da região, sendo até mesmo convidado a participar de um e outro inquérito
policial. E, segundo os registros, contribuíra decisivamente para a elucidação do homicídio de um criador de ovelhas, passando, a partir daí, a ser muito requisitado pelas
pessoas da localidade.
Eram duas e meia quando Herr Marskin ajeitou o par de óculos com hastes de prata e examinou a tira de papel que o criado lhe entregara. Aproximou-se da luz da janela e começou
a analisá-la, com certa dificuldade de leitura.
- Dir-k Holzbie-ne - quase soletrou. - Holzbiene *, hein?
Falava mais consigo mesmo do que com o criado.
- Devo mandá-lo entrar, Herr?
- Sim… - exclamou Herr Marskin, visivelmente desolado. - Acho que não tenho outro jeito senão recebê-lo.
Dirk compareceu à presença do velho um pouco intimidado. Este ficou parado, a fim de examinar o rapaz. Assim que formou uma impressão, dirigiu-se para ele.
- Respeite minha modéstia, meu jovem - disse Herr Marskin. - Mas quem é você?
O rosto de Dirk estava tão tenso, que parecia repuxado e contraído. Aproveitando a deixa, apresentou-se e, de quebra, mencionou o nome de Rachelle, por intermédio de quem
tinha vindo parar naquela região meridional da Áustria. O velho ficou sinceramente espantado com a menção do nome da sobrinha.
- Ora essa! Ora essa!
Fitou o rapaz com ar carrancudo.
- Perturba-me saber que um jovem como você tenha relações com essa… menina.
- Senhor, receio que ela já seja mais do que uma menina.
- Ora essa! - repetia Herr Marskin, vez após vez, como um gato espirrando para expressar todo o seu desgosto.
Dirk sentiu-se incomodado com semelhante reação.
- Há alguma coisa que eu deva saber? Sobre Rachelle, quero dizer.
- Nada, nada - retrucou Herr Marskin impulsivamente, amansando as suas maneiras. - Mas e aí? O que o traz a Heldenstatt?
- Vim por causa de uma entrevista de emprego.
- E conseguiu?
- Sim.
- Quem o contratou?
- Frau Süssenbach.
Herr Marskin pousou os olhos inquisidores em Dirk.
- Molly Süssenbach?
- Sim.
- A que ponto a conhecia?
- Não a conhecia. Vim para cá em um tipo de expedição de reconhecimento. Gostei da vila. Bastante calma, ouso crer. Sem roubos… sem assassinatos… essas barbaridades tão comuns
nas metrópoles. Adoro lugares assim.
- Era uma vila bastante calma - retificou Herr Marskin. Havia em seu redor uma espécie de auréola de sua autoridade, de suas convicções. - Seria um erro, claro, colocar todas
as coisas no mesmo balaio, mas o fato é que somos produtos da natureza, dos genes e da educação. E, infelizmente, não existe mais educação em lugar nenhum. Boas maneiras são
uma coisa rara hoje em dia. Todo mundo vive com tanta pressa que as pessoas raramente pensam em algum tipo de cortesia básica. Furam filas, fumam em elevadores lotados, tocam
música alta em locais públicos. Empurram e acotovelam nas filas, ou dirigem sem paciência, cortando os outros veículos, apenas para ganhar alguns minutos ou segundos. Não
raro, ficam tão entretidas em seus assuntos pessoais, ou então têm uma programação tão cheia, que qualquer contratempo ou visitante inesperado é motivo de aborrecimento. A
baderna, o vandalismo e o preconceito têm-se tornado parte inevitável de nossa vida miserável. E, pior, até os assassinatos fazem agora parte da ordem do dia.
- Não em Heldenstatt, espero - disse Dirk.
- Até em Heldenstatt sim senhor - retrucou Herr Marskin, com um gemido bem-comportado de irritação. - Proporcionalmente, até em maior escala. Um efeito colateral desagradável,
mas inevitável da vida moderna, sem dúvida. Primeiro foi assassinada aquela garota… Betty Riedell. Talvez um pouco magra aos treze ou quatorze anos, quase anoréxica, mas bonita
- acrescentou. - Diziam que ela era estranha, coisas assim. Também diziam que era meio fraca aqui. - Cutucou a têmpora com o indicador para mostrar o que queria dizer. - Na
verdade, ela não tinha nada de estranho - era uma garota má, de mau caráter, uma sirigaita autora de seus próprios infortúnios, só isso. Uma sirigaita travessa. Muito travessa.
O pai era um bêbado, um traste inútil, que foi abandonado pela mulher - a mulher o deixou para viver a sós com as filhas. Betty costumava fazer atos de caridade às pessoas
mais pobres da vila. Era uma garota de muitas faces, eu diria. Vivia por aí, usando saias cada vez mais curtas, com cortes cada vez mais soltos. Para compensar o mau comportamento,
dava uma de boazinha e ajudava os mais necessitados. Uma hipócrita! Sim, hipócrita. De qualquer forma, que diferença faz? Está morta - provavelmente morta por um de seus ex-namorados.
Lei da ação e reação. Deus dá o frio conforme o cobertor, não dá?
- Acho que sim.
Dirk disse sim sem a consoante final.
- A pobre infeliz acabou sendo assassinada na cabana perto do rio. Acho que ela sempre soube que isso fosse acontecer. Que algo do seu passado voltaria para assombrá-la e
matá-la qualquer dia desses.
- Qual a impressão que tinha dela?
- Para mim, Betty era uma moça muito viva - disse Herr Marskin pretensiosamente. - Talvez esteja se perguntando como eu sei de tudo isso. Acontece que costumo anotar mentalmente
os pequenos fatos que acontecem por aí na vila. Isso tem se revelado útil em mais de uma ocasião. Depois disso aconteceu o assassinato do Dr. Fleissig. O Dr. Fleissig era
um bom médico, não resta dúvida. Granjeou grande popularidade atendendo em domicílio os doentes que não conseguiam chegar ao consultório. Um bom cavalheiro, não importa o
que digam dele.
Herr Marskin mencionou as últimas palavras que trocara com o Dr. Fleissig na noite anterior à sua morte. Morte esta, segundo o veredito inicial, decorrente de suicídio.
- O curioso - acrescentou o velho - é que Heinrich em nenhum momento deixou entrever uma intenção funesta. Especula-se que, de manhã, ele se serviu de café e misturou, aproximadamente,
duas colherinhas de açúcar. Pôs-se a ler alguns exames feitos na véspera, depois bebeu o café, levantou-se, para logo tombar no chão, já morto. Suicídio, pois sim! Para mim,
uma teoria carregada de absurdos jurídicos; desde o início, me opus a ela.
- Qual o veneno usado?
- Cianeto de potássio. Tudo foi examinado e averiguado. O bule de café não continha qualquer traço dele. O veneno, claro, poderia estar o fundo da xícara, mas esta tinha sido
retirada pela criada de um jogo de chá onde havia meia dúzia de outras xícaras iguais: o eventual assassino não poderia adivinhar qual delas a criada escolheria. A menos que,
de algum modo, estivesse implicada no crime. As provas, no entanto, provaram que o cianeto estava no pote de açúcar. A criada encontrou o Dr. Fleissig às oito e meia da manhã,
minutos após o desmaio fatal, deitado lá onde tinha caído. Não chegou a recobrar a consciência e morreu antes de ser levado para o hospital.
- E o senhor não sabe nada sobre o que pode ter acontecido, mesmo depois de examinar os fatos?
- Tentei descobrir algumas coisas, mas não funcionou. Tudo volta sempre para o mistério da morte, ou melhor, das três mortes. O que eu estudei, vi e revi, nesses crimes foi
a questão da vantagem.
- Vantagem?
- Exatamente. A vantagem que alguém obteve como resultado dos assassinatos; tanto a vantagem financeira quanto a vantagem técnica. Nestes casos, nenhuma. Não houve nenhuma
vantagem. Para ninguém. Não podemos esquecer também uma questão que me interessa muito. A questão da infidelidade. Um caso extraconjugal poderia levar ao crime. Mas, pelo
que se sabe, não houve nada nesse sentido.
- Estava dizendo - instigou Dirk - que aconteceram três crimes? Quem foi a outra vítima?
- Rose Dargnell. Quem quer que seja o assassino, valeu-se de um expediente inteligente para cometer o assassinato. Dois tiros pelas costas.
- Imagino - disse Dirk com cautela - que tenha tentado chantagear alguém.
- Chantagear? É o que alguns acham, agora, se estão certos ou não, não sei direito. Se ela sabia de alguma coisa, é uma pena que não tenha ido direto à polícia.
Dirk decidiu partir para o ataque: - E quanto ao senhor? O que, de fato, pensa sobre isso?
- Não sei - declarou Herr Marskin. - Não sei se posso falar alguma coisa.
- Que tal se foi o marido quem cometeu o crime?
- Não. Eu particularmente não consigo achar um motivo qualquer para que ele quisesse se livrar dela. Teria que se tratar de uma encenação muito bem-feita, ainda que eu dificilmente
acredite nisso.
Herr Marskin estava falando mais para si mesmo do que para Dirk. Fixou o olhar entre os joelhos, na direção do carpete. Se tivesse olhado para cima, talvez a expressão no
rosto do jovem o tivesse surpreendido.
* Holzbiene é o termo em alemão para designar a abelha carpinteira, uma espécie comum na Europa que tem esse nome devido ao fato das abelhas criarem seus ninhos em madeiras.
Capítulo 4
DIRK ULTRAPASSOU O PORTÃO e partiu em direção da casinha em estilo enxaimel. Quando ia apertar o botão do interfone, uma garota abriu a porta e brindou Dirk com um olhar de
profunda desaprovação.
Era uma moça magra, com ar de camponesa, e umas bochechas vermelhas que pareciam rosbifes. Os cabelos da cor das folhas de outono. Ela se parecia tanto com Betty Riedell!
Pelo menos, segundo as fotografias que Dirk tinha visto. Não, impossível: Betty estava morta.
Dirk ficou ali, mudo e imóvel, até que, por fim, entreabriu os lábios, dizendo: - Fräulein…
Ela avançou até ficar diante dele.
- Quem é você? O que está fazendo aqui?
- É aqui onde mora Frau Riedell?
Fitando-o entre surpresa e aterrada, a moça fez um esforço para se concentrar.
- É minha mãe… O que quer dela?
Essa pergunta foi acompanhada por um olhar de assombro e desconfiança. Constrangido, Dirk respondeu: - Queria falar com ela, se fosse possível.
- Sobre o quê?
Dirk ia contestar, mas refletiu logo que, se o fizesse, o resultado poderia ser o inverso do que esperava.
- Sobre algumas receitas que, pelo que ouvi dizer, ela guarda a sete chaves.
- Receitas?
- Sim.
Talvez pela sua resposta sem noção, ou pela sua honestidade, a moça decidiu-se a murmurar que sim, Frau Riedell morava ali.
- Anuncie a sua chegada ao interfone. Você sabe o que é um interfone, não é?
- Sei, sei…
- Also! - exclamou ela.
E tendo proferido essa sentença, que pareceu mais uma cuspida, voltou às costas a ele, dirigindo-se para um dos canteiros do jardim, cuja terra passou a revolver, de cócoras,
com o sacho.
Pasmo, como se tivesse acabado de receber uma admoestação do próprio rei Henrique 8º-, Dirk aproximou-se da porta e apertou o botão.
Dois minutos se passaram. Dirk já se dispunha a ir embora, fugir, apanhar um navio para Nova Guiné, ou Islamabad, quando a porta se abriu e apareceu uma velhinha.
Frau Anne Riedell era uma matrona gorda e simpática, com um rosto rosado e oleoso. Usava um vestido de crepe de seda verde, que dilatava ainda mais as amplas curvas dos quadris
generosos.
Fingindo não saber por que o jovem estava ali, já que, lá dentro, havia ouvido a conversa, pediu que Dirk entrasse. Depois de oferecer um chá, ela sentou-se, olhando benevolamente
para ele. Uma cortina de musselina esvoaçava na janela entreaberta, através da qual se avistava a vila, lá adiante.
- Eu sou o novo cozinheiro dos Thröllinger - explicou Dirk, assim que a questão foi abordada.
- Oh! Hoje em dia é tão raro encontrar um bom cozinheiro! Só quem os tem para saber a falta que fazem. Não adianta você gostar de fazer a comida. Tem que gostar do todo, de
colocá-la à mesa, de bem servir, de harmonizar, de conversar com as pessoas. É um conjunto de coisas… Midge, que ficou conosco por dois meses, era uma moça grandona, de movimentos
bruscos e desastrados, propensa a enlambuzar o chão. A carne muitas vezes passava do ponto e havia sempre uma pilha de panelas esperando para serem lavadas na mesa da cozinha.
Todas aquelas receitas velhas, cardápios de restaurantes e pedacinhos de verdura espalhados pelo chão! “Reduza a quantidade de coisas que traz para casa” dizia eu. Mas qual
o quê! Midge não dava a mínima! E o pior é que estava sempre atrasada para o trabalho. De manhã, entrava correndo com uma bolacha na boca e um copo descartável de suco na
mão. Betty ficava tão chateada… e com toda razão!
- Betty?
As sobrancelhas de Frau Riedell se juntaram.
- Betty… a minha segunda filha. A que… morreu.
Disse isso como se tivesse um peso oprimindo o seu peito.
- Eu lamento… - disse Dirk.
- Oh! Já faz alguns meses. Eu vivia dizendo para Betty não se meter na vida dos outros. Mas ela não me ouvia. Aquela pobre criança! Achava que podia fazer o que bem entendesse.
Uma vez, quando Betty tinha 13 anos, eu dei um tapa nela. Ela chegou em casa bêbada, às 5h da manhã. Ela entrou e seguiu para o seu quarto sem nem olhar para mim. Ah! Não
pude admitir aquilo… No ano passado, porém, ela estava tão diferente! Betty começava, certamente, a se tornar adulta, mas tanto colegas de classe quanto professores afirmaram
que ela estava mais fechada e reservada. Ela queria porque queria um marido. Andava por aí como uma gata borralheira atormentada! Atormentada e à procura de seu príncipe encantado.
“Quero me casar” dizia ela. “Quero ter filhos. Algo vindo de mim.” Betty era tão doce! Todos os que a conheceram na infância gostavam dela.
- De que tipo era ela? - perguntou Dirk francamente.
- Bem, ela era tudo o que se podia esperar de uma filha. Claro que não era uma aluna aplicada; para ser franca, tirava notas muito baixas. O psiquiatra dizia que ela tinha
transtorno de déficit de atenção. Mas hoje em dia, na verdade, a gente dá graças a Deus por conseguir criar uma filha. Betty era muito negligente nos estudos e estava sempre
querendo sair. Bem, na verdade as moças são assim mesmo, não é? Parecem não compreender que os pais têm o direito de impor regras e limites.
- Ela namorava alguém, ou estava noiva?
- Betty dizia que ia à casa de Thomas, o filho mais velho dos Herring. Foi o que Betty me disse.
- Ela parecia amá-lo?
- Isso eu não posso dizer.
- A senhora os via juntos com frequência?
- Sim. Mas nunca os vi se beijando ou de mãos dadas. A maneira como ela falava dele… Não que eu queira dizer que houvesse alguma coisa errada. Mas eu não gostava… Não gostava
nem um pouco. Muitos que se casam bem jovens descobrem que, depois de uns poucos anos, as suas necessidades e desejos, bem como os de seu cônjuge, mudaram. Eu conheço as estatísticas!
Os que se casam na adolescência têm muito mais probabilidade de ser infelizes e de recorrer ao divórcio do que aqueles que esperam um pouco mais.
- E a senhora? - perguntou Dirk docemente. - A senhora a instigava a deixá-lo de lado? Fazia-lhe recriminações?
- Era o meu direito, não?
- Como ela morreu?
Frau Riedell esbugalhou os olhos. Apenas o bastante para Dirk perceber sua surpresa, antes de baixar a cabeça. Depois de ter se recomposto, disse: - Agredida por um taco de
críquete.
- Céus!
- É tão injusto alguém fazer algo assim!
- Sem dúvida.
- Lembro-me como se fosse hoje - a mulher engoliu em seco. Acrescentou: - Eu nunca me esquecerei daquela manhã de quinta-feira. Eu tinha saído, deixando Betty e Nelly em casa.
Betty estava adoentada; sentia falta de ar e palpitações, e não sei mais o quê. Não se cuidava, muitas vezes saía na friagem, como se não houvesse nenhum mal nisso. Quando
voltei, ela não estava; vi que, lá fora, toda a roupa continuava no varal. “Que menina desobediente” pensei comigo mesma. “Nem mesmo fez o favor de recolher a roupa!” Daí
Midge chegou e começou a preparar o almoço; quando deu meio-dia, chamei por Betty mas não obtive nenhuma resposta. Midge e eu ficamos ambas muito apreensivas. Então fomos
até a porta da frente e, por sorte, Johannes, o filho do açougueiro, estava justamente vindo para cá. Ele parou e, olhando para nós, disse que tinham encontrado Betty na cabana
do rio. “Por que ela não vem para casa?” perguntei. Foi então que vi que havia alguma coisa! Alguma coisa que ele não podia, ou não queria, me dizer. Saímos todos juntos;
meu coração estava aos saltos. Quando chegamos à cabana, já havia algumas pessoas lá… Olhavam para a porta… como se… de alguma forma… algo tivesse acabado de acontecer. Entrei
e vi… Oh! Eu fiquei petrificada… Foi tão difícil de acreditar naquela imagem, naquela cena. O meu bebê! Oh! Meu bebê! Eu só queria o melhor para ela.
Dirk ouviu os tênues e roucos soluços de Anne Riedell e viu que as lágrimas rolavam abundantemente em seu rosto.
- Foi tão desagradável! - prosseguiu ela, com um certo amargor na voz. - Betty, a pobrezinha, assassinada e os policiais, todos alvoroçados, andando por todo lado e fazendo
perguntas.
- Eu sinto muito - disse Dirk, com tato. - Acredito que o assassino da sua filha tenha sido encontrado, não?
- Ninguém viu nem ouviu falar dele. Acho que a polícia não se incomoda tanto quando é gente daqui. O que a polícia pode fazer, afinal?
- Ninguém viu ou ouviu nada?
- Nadinha - declarou ela com absoluta franqueza.
- Nem mesmo sua filha indo para a cabana?
- Não.
- Mas como é possível?
- Eles acham que Betty possa ter ido usando o caminho do bosque.
- Caminho do bosque?
- É uma trilha de uns quinhentos metros, que começa ali atrás da casa. Mas ora… quanta bobagem a minha! Um rapaz como você não deve gostar de ouvir essas coisas, não é?
- Muito pelo contrário - afirmou Dirk. - Meu irmão foi consultor do FBI na caça aos chefões dos cartéis que atuam na fronteira entre os Estados Unidos e o México. Sempre quis
ser igual a ele. Amo histórias de crime e coisas do gênero. Continue, Frau Riedell. Continue.
Ela ficou confusa e um pouco espantada.
- Oh! Se você diz…
- Digo sim. Disse que a polícia não descobriu nada que fosse relevante. E a senhora: quem acha que matou sua filha?
- Quem eu acho que matou Betty? Quer que eu lhe dê a minha opinião?
- Eu faço questão, Frau Riedell.
Ela sacudiu a cabeça; apertou os lábios: - Já que insiste… Para mim, o culpado foi o penúltimo namorado dela. Hans… é assim que o chamam.
- Ela falava muito nele?
- Até demais! Sempre o julguei muito burro. Mas aí Betty rompeu o namoro. Disse que não queria mais vê-lo e mandou que ele não aparecesse mais aqui. Mas Hans ficou resistindo,
querendo reatar; ligava para cá todo santo dia. Ela chegou a comentar com certos amigos que estava com medo de que ele poderia vir a se vingar dela. Era um rapaz bem-vestido,
bem-tratado e perfumado. Mas tão ciumento! E pudera… Betty era como um anjo de luz. Poderia ter sido modelo, se tivesse tido mais juízo. Espere - disse ela, se levantando
de repente. - Vou fazer algo melhor do que descrevê-la. Vou mostrá-la.
Com um gesto repentino e brusco, ela se esticou para pegar a bolsa, abriu, retirou uma fotografia e entregou na mão dele.
A fotografia retratava uma garota de seus dezenove anos, os lábios escarlates e polpudos. A gola do casaco era de linho branco e um chapeuzinho cobria a massa de cabelos dourados
em torno de sua cabeça. Suas mãos, ajustando a gola do casaco, eram delicadas, com unhas de um suave tom de pérola. Mãos belas, finíssimas, porém de uma solidez que surpreenderia
todo bom observador.
Teria sido mesmo o ex-namorado o responsável por sua morte? Talvez para muita gente tivesse sido, inclusive para os investigadores. Mas para Dirk não. Ele (sim, ele - por
um motivo oculto qualquer) fora agraciado com a bênção de ouvir o relato de Frau Dargnell, na Karlplatz. Segundo o que ela dissera, havia uma conexão clara entre a morte de
Betty Riedell e a morte do Dr. Fleissig. Clara e palpável. Tão palpável que podia afirmar que tinham sido praticados pela mesma pessoa.
Um mesmo assassino.
Com um jeito especial de andar!
Esse trecho é o que mais desnorteava Dirk. Até ali, tendo se socializado com tanta gente da aldeia, ainda não vira ninguém andando de um jeito especial. Pelo menos não nos
termos mecânicos aplicáveis. O que, de certo modo, contribuía para agravar progressivamente os sintomas de seu desapontamento.
Às vezes, durante certas horas do dia, chegava a ponto de se sentir arrependido de ter-se metido naquela aventura. Aventura que, querendo ou não, poderia tê-lo exposto até
mesmo a um real perigo físico.
Nessas horas, podia ouvir Rachelle dizendo: “E se houver um assassino? E se ele for atrás de você?” Será que devia ter seguido seu conselho e ter ficado fora daquele assunto?
Dirk devolveu a fotografia.
- Muito bonita mesmo.
Sentada rigidamente em uma cadeira, Frau Riedell contemplou durante uns segundos a sua visita; por fim, um pouco intrigada, perguntou:
- Veio me pedir alguma coisa, não foi? Posso ajudá-lo?
Dirk virou-se para ela com afável interesse.
- Como a senhora adivinhou? Foi alguma coisa que eu disse?
- Ouvi você conversando com Nelly - Frau Riedell corou, um pouco envergonhada. - Mas diga… O que quer?
- Gostaria de saber se acharia um abuso se eu lhe pedisse algo… Digo… basta apenas dizer “não dá”, e fica por isso.
- É algo que quer que eu faça?
- Não é bem isso. A senhora vai rir de mim quando eu disser. Como eu expliquei, sou formado em culinária. Achei que, sei lá, a senhora me poderia dar uma ajuda. Deve haver
receitas antigas, ou talvez saiba de alguma receita interessante, que eu poderia incrementar ao típico cardápio regional que estou desenvolvendo.
Frau Riedell demorou algum tempo para responder. Em seguida falou, e Dirk notou um leve constrangimento em sua voz.
- Bem, não sei. Quem sabe… quem sabe!
- Vamos lá, Frau Riedell - insistiu Dirk. - A senhora é uma mulher vivida. Deve ter alguma receita… aprendida em algum lugar… que possa compartilhar comigo.
O rosto rosado da mulher tornou-se levemente purpúreo.
- Eu vou ver… Tenho uns cadernos, sabe? Talvez haja alguma coisa…
- Fico muito grato.
Dirk levantou-se dizendo: - Bem, preciso ir embora. Obrigado pelo chá.
Frau Riedell apertou a mão de Dirk.
- Talvez nos encontremos novamente.
- Espero que sim - disse Dirk calorosamente. - Mande me avisar assim que tiver achado algo.
II
APROXIMADAMENTE ÀS CINCO da tarde, já de volta às suas tarefas, Dirk estava junto à bancada central, sovando massa, quando ouviu um pigarro atrás de si.
- E aí? - perguntou Rolf. - Espero não estar incomodando.
- Não, não…
- Puxa… Quanta farinha pela cara! O que vai fazer?
- Pão - disse Dirk.
- Isso deve ser coisa de mamãe, não é?
Dirk meneou a cabeça. Seus olhos avaliaram discreta e cuidadosamente Rolf enquanto ele falava. Parecia que por trás de sua cara de bom moço estivessem escondidos sentimentos
explosivos que não queria mostrar, dos quais não ousava falar.
“Olhe só para ele. Parece que está incorporando Camelot!”
- Alguma coisa errada? - perguntou Dirk.
- Não - disse Rolf.
- Quer me parecer que você não concorda muito com o que sua mãe faz ou pede para fazer.
Os olhos reptilianos de Rolf, avermelhados pelo uso constante dos aparelhos eletrônicos, encontraram-se com os de Dirk.
- Não mesmo! - respondeu. - Acho que você já deve ter começado a ver como mamãe é. Uma mulher forte e corajosa, sim, mas que deveria, não sei… Acho que ela deveria dar vazão
ao que sente. É óbvio que vem segurando tudo dentro de si mesma, reprimindo toda a sua infelicidade.
- Está dizendo que ela não é feliz?
- Ah! Vá… Vai dizer que não notou! Antes de você vir, a maior parte do que ela falava eram coisas do tipo: “não aguento mais”, “quero sumir”, “quero morrer”, “minha vida não
vale a pena”, “vocês vão ficar melhores sem mim”, “era melhor não ter nascido”. Você não sabia? Ela só não se matou porque não teve coragem para isso. Mas às vezes a gente
a vê lá, meio deitada, meio sentada, pensando sabe-se lá o quê, como se estivesse numa espécie de piloto automático. O psiquiatra teme que seja algo sério, pois mamãe sofre
de tensão nervosa e outros problemas… Além do mais, não vai dizer que você gosta daquele cara! Porque, francamente, eu não gosto.
- Talvez sua mãe goste! - arriscou Dirk.
- Gosta nada! - disse Rolf. - Um babaca arrogante como ele? Veio para cá achando que poderia mandar em tudo e em todos. Para mim ele é quase um caso de internação. E não é
só isso. Alguma coisa está errada, não sei onde, não sei como - mas está. Sujeitinho desaforado!
“O famoso ciúme do filho vendo a mãe casada com outro homem!” pensou Dirk.
- Você sabia que ele tem uma pistola? - perguntou Rolf.
- Isso para mim é novidade.
- Pois tem. Toda vez que analiso o modo como ela morreu, fico me perguntando: “E se for ele o assassino?” Isso dá o que pensar, não é?
- Ela? Quem?
- Frau Dargnell, a nossa governanta. Ela foi assassinada. Disso você tinha conhecimento, não tinha?
Dirk enrugou a testa.
- Sim. Já me disseram alguma coisa. Era uma boa mulher, suponho.
- Muito boa.
- Ela nunca falou de nenhum inimigo? Alguém que nutrisse alguma mágoa contra ela?
- Nunca. Frau Dargnell era muito benquista. Por todos. Não só nós, mas por toda a gente da vila. No entanto, sua falta de confiança em si mesma era terrível; era tímida e,
no fundo, creio, sofria de algum tipo de melancolia crônica.
- Ela teve algum desentendimento com seu padrasto?
- Não digo isso. Embora, claro, ela não fosse muito com ele. Na realidade, ninguém até hoje foi muito com ele! Uma vez Julie preferiu ficar seis meses em um estágio idiota
na Alemanha a passar outro dia aí olhando para a cara dele. Mamãe, é claro, está aborrecida com o que aconteceu a Frau Dargnell. Apesar de não ter nada com isso. Não acho
que possamos jogar a culpa em alguém. Afinal, quem lá é que vai saber o que foi que aconteceu com ela?
Dirk deixou a massa de pão de lado. As suas pupilas, maiores do que o normal, moviam-se para não abandonar por um instante sequer Rolf, que não parava de ir e vir, de esboçar
vários gestos aparentemente à esmo.
- Por que está me dizendo isso?
- Por nada. Por nada. Estou só desabafando… Oh! Isso atrapalha você? Não seja por isso… Não era minha intenção! Eu… Bem, acho que já vou indo.
Como se tivesse ouvido o tilintar de um telefone imaginário, Rolf deu meia-volta e precipitou-se para fora da cozinha, antes de as sobrancelhas de Dirk terem voltado à posição
horizontal.
“Meu Deus!” perguntou Dirk. “Que tal essa? Ele fugiu. Fugiu! O que será que o assustou dessa maneira? Será que ele quer obter informações sobre a morte da governanta, quer
descobrir qualquer coisa que esteja enterrada na areia? Mas de mim?”
Ah, vá lá saber o que o playboy queria, não é mesmo? Ou será que tinha dito aquilo por algum motivo pessoal? Mas que motivo seria esse?
Devo manter a presença de espírito… contanto que mantenha a presença de espírito… - tudo está perfeitamente bem!
Dirk deu de ombros e voltou a sovar a massa, furiosamente.
Capítulo 5
COM DIRK DE PÉ À SUA frente, Thomas Herring o examinou vagarosamente, reparando nos sapatos e nas calças, parando no colarinho.
Sua boca assumiu uma expressão decidida.
- Tenho uma memória extraordinária para nomes e fisionomias. Pelo que me lembro, eu nunca falei com você, falei?
A esta altura, Dirk já estava sem jeito, achando que talvez tivesse sido melhor não ter vindo.
- Não, não… É a primeira vez.
- Ah! E quem é você, afinal?
Thomas Herring era um indivíduo alto, com uma postura altiva e orgulhosa. Tinha cabelos crespos, o que lhe dava uma aparência de carneiro. Os dedos curtos e grossos, cujas
unhas eram bem-cortadas, ajeitaram o maço de partituras, que largou negligentemente sobre as teclas do piano.
Piscando um pouco e delicadamente disfarçando o nervosismo, Dirk olhou para Thomas.
“Este é o cara que dizem ter namorado Betty Riedell? Não parece ser lá grande coisa!”
- Sou funcionário do recenseamento do Fisco Transiberiano - disse Dirk um tanto incerto. - Não tenho palavras para expressar o quanto lamento incomodá-lo desse jeito. Mas
o que se vai fazer? A minha função é recolher informações relativas a todos os proprietários de terra de Heldenstatt. Coisas do governo!
- Bem, parece que errou o pulo - respondeu Thomas. Havia uma aguda ênfase de desprezo em sua voz. - Eu não sou proprietário de coisa alguma. Para falar sobre isso, vai ter
que vir em uma hora em que meu velho esteja em casa.
Dirk pegou de uma prancheta e a exibiu. Medindo as palavras, disse: - Francamente, é um questionário que pode ser respondido por qualquer pessoa.
- Inclusive eu?
- Sim.
Estavam os dois em uma sala de música à la Maria Antonieta. Muito teso, com os calcanhares juntos, Thomas inclinou-se ligeiramente, voltando a cabeça como se fosse ouvir uma
confissão.
- Muito bem, Herr…?
- Pointer - mentiu Dirk, para dar mais credibilidade à sua encenação. - Mark Pointer.
- Inglês?
- Irlandês.
- Muito bem, Mr. Pointer - disse Thomas. - Basta responder a uma série de questões, e estará tudo ok?
- Resumindo, sim.
- Se não há mesmo jeito…
- Não há, eu lamento.
- Bem, o que tem a perguntar?
Dirk acenou.
- Seu nome completo, por favor?
- Thomas L. Herring.
- Idade?
- Vinte e sete.
- Mora aqui?
- Sim.
- Permanentemente?
- Espero que não.
As sobrancelhas de Dirk se ergueram e ele abriu a boca, como se fosse discutir esse ponto.
- Ocupação?
- Vadiagem.
- Como?
- Não tenho ocupação. Sou sustentado por meu velho. Tive aulas de canalização hidráulica e carpintaria e quiseram me contratar como técnico de manutenção. Mas eu recusei.
E, ah, nas horas, sou informante.
- Informante?
- Tiro dúvidas. Polícia. Patroas aflitas. Coisas do tipo: “Ela foi uma boa mulher, generosa e altruísta, e quero que o bastardo que a matou pague pelo que fez.” Cabe a mim
fornecer as informações, entende?
- Casado?
- Solteiro.
- Namorando?
Thomas interrompeu em tom quase áspero: - Isso interessa?
- É apenas a título informativo.
- No momento não. Namorei… meses atrás. Mas ela morreu.
- Oh! Eu lamento. Doença?
Thomas fez um gesto de descaso. Seu humor era seco e eventualmente acompanhado de uma leve dose de ironia.
- Não. Assassinato. Um ato sórdido e criminoso.
- Não diga!
- Espantoso, não é?
- Como aconteceu?
- Alguém achou que a cabeça dela fosse uma bola de críquete. Quer dizer, ela pode ter sido morta por alguém que simplesmente gosta de atacar moças, mesmo não tendo sido molestada
sexualmente. Ou ela podia saber alguma coisa sobre um caso amoroso de algum figurão, ou pode ter visto alguém arrastar um corpo na floresta, ou pode ter reconhecido alguém
que estava na lista de procurados da Interpol. Ou talvez soubesse a senha de uma conta no banco que pertencia a algum sonegador de impostos vingativo. Ou o vizinho pode ter
enterrado o cadáver de alguém e ela viu da janela de seu quarto. Ou ela pode ter furtado qualquer coisa de um de seus empregadores e este, fulo de raiva, foi lá e, em vez
de exigir a devolução, bateu nela até a morte.
- Onde a conheceu? - perguntou Dirk, se esforçando para interromper o fluxo de palavras. - Ela era daqui?
- Quando éramos crianças, costumávamos brincar juntos por aí pelo campo. Ela era atraente, muito bonita mesmo. Eu a achava o máximo. Mas meu velho não simpatizava com ela.
- Ele não gostava dela?
- Não - respondeu Thomas. - Acho que a detestava, que sempre a detestou. Acho que tinha criado um bicho de sete cabeças sobre Betty, e por isso não queria que nos relacionássemos.
- O nome dela era Betty?
- Era. Mas eu sei por que ele não queria que namorássemos. Betty não era da nossa classe social, ou sei lá o quê. Como se isso fosse importar alguma coisa. Para mim, não importava
nada. Quando se está apaixonado, a gente segue adiante apesar das luzes de alerta. Eu estava gamado nela, como se diz. Betty tinha alguma coisa… é como se visse através de
mim, sabe? Conhecia-me como a palma da mão. Compreende isso?
- Traduzindo, vocês se davam bem.
- Ao contrário - lançou Rolf, com certa brutalidade. - Betty sabia tudo sobre mim, mas eu não sabia quase nada sobre ela. Acabou dando no que deu. Betty gostava de gente,
todo o tipo de gente, e gostava de variar de companhia masculina. Ela saía todos os sábado à noite para ir ao clube, e voltava apenas de madrugada. Em resumo, ela começou
a sair com qualquer um de quem conseguisse uns trocados. É a clássica história de dinheiro corrompendo valores, a cidade corrompendo o campo, a demagogia corrompendo a política,
a fama corrompendo o talento, o poder corrompendo a alma, o sexo corrompendo os bons costumes. É, meu amigo. As coisas estavam longe de ser o que eram… pelo menos para mim.
- Como soube que ela o traía?
- Bem, digamos que ela permitiu que sua infidelidade se tornasse um pouco transparente demais. O engraçado é que, quando a confrontei, ela negou. Dá para acreditar? - Thomas
deu um olhar esquivo para Dirk. - Isso é mesmo importante? Acho que está custando demais a largar o osso. Você não é um investigador, é?
O olhar o atingiu tão de repente que Dirk o sentiu quase como se tivesse sido atacado.
- Oh, não! Oh, meu caro, não. Ora, eu nem mesmo sabia de sua existência até trinta minutos atrás. Tudo isso é apenas rotina.
Dirk virou a página e começou em outra.
- Praticou esporte no colégio?
- Sim.
Dirk não fazia ideia de onde vinham as palavras, mas elas vinham de qualquer maneira. Milagrosamente, manteve o olhar firmemente sobre Thomas.
- Já foi preso alguma vez?
- Caramba! São essas as perguntas que se faz hoje em dia? Sim, já sei! Não precisa nem dizer. É só a título informativo.
- Exatamente.
- Não. Nunca fui preso.
- Nenhuma chance de ter sido você que a matou?
Dirk fez o comentário, obviamente com a intenção de ver a reação de seu entrevistado. A reação, sob todos os efeitos, foi pior do que imaginava.
- Você está sendo imperdoavelmente rude, meu caro! - disse Thomas, com tom ligeiramente ácido na voz. - Que raio de pergunta é essa? Pensa que fui eu que a assassinei? Pensa
que fui eu que assassinei minha própria namorada?
- Perdoe-me… Eu não queria irritá-lo.
- Não queria me irritar? Não é assim que eu encaro a coisa. Talvez você não quisesse, mas conseguiu me irritar!
- Tudo bem, chega por hoje - disse Dirk, mantendo a voz surpreendentemente branda. - Muito boa tarde e obrigado por ter respondido tão gentilmente a nossas perguntas.
- Deixe-me levá-lo até a porta!
- Oh, muito obrigado! - agradeceu Dirk com um brusco risinho nervoso. - É muita bondade sua.
Chegando ao vestíbulo, Dirk reparou na uma mesa-vitrina que havia ali. Inclinando-se sobre ela, Dirk viu um coldre quadrado de umas cinco polegadas de lado, e no coldre, um
revólver pequeno e jeitoso.
“Eis aí um brinquedinho perigoso” pensou. “Daria para matar um homem com isso.”
- Seu pai é colecionador?
- O quê?
- O seu pai… Ele coleciona armas?
- Sim - disse Thomas secamente.
Thomas estudava-o atentamente. A arrogância havia atingido um novo nível e a voz vibrava de determinação.
- Qual é o setor para o qual disse que trabalha?
Dirk hesitou um segundo - sentiu que navegava em águas nebulosas e incertas.
- Fisco Transiberiano.
- Nunca ouvi falar! Por que não dá seu nome e endereço? Vai ser interessante saber quem você é… de verdade.
- Isso está fora de cogitação - esquivou-se Dirk com o fiapo de sangue-frio que restava. - Mantemos todos os nossos dados sob o mais absoluto sigilo.
Dirk virou-se e saiu com um ar de quem cumprira seu dever, tendo lidado eficazmente com outro contribuinte insatisfeito.
II
O SUPERMERCADO FICAVA A apenas cinco quadras. Ainda sentindo o sangue latejar nas têmporas, Dirk encheu duas sacolas de papel com curry, raiz forte e alho, vinagre e orégano.
Feito isso, foi para a padaria onde pediu croissants e café.
“Caramba, essa foi por pouco!” ele soltou um suspiro de alívio.
A situação excedera as normas habituais de etiqueta e civilidade. Poderia ter levado uma surra caso Thomas tivesse engrossado e estivesse habituado a apelar para a violência.
Artimanhas, avanços pragmáticos, pressão e truculência nem sempre constituíam a melhor estratégia.
“Está aí o suspeito ideal… se for acontecer outro crime.”
Às quatro horas, Dirk dirigiu-se para casa, carregando suas compras. Galinhas e gansos atravessavam a estrada principal, e o céu estava pardacento, com nuvens baixas, mas
não chovia. De algum lugar vinha o som dos golpes espaçados do martelo na bigorna do ferreiro.
Plim… plim… plim…
O barulho rítmico lhe causou um arrepio.
Ia ser mais cauteloso dali por diante. Muito mais cauteloso…
Capítulo 6
ENQUANTO AMANHECIA, A CHUVA martelava as telhas de barro da mansão. Molly afastou as cobertas, pulou da cama, vestiu-se e foi para a sala de jantar.
Rolf e Julie estavam à mesa, tomando café.
- Olá. - Beijou os dois e juntou-se a eles. - Acordaram cedo!
Julie balançou a cabeça.
- Estava sem sono. Além do mais, ouvi o chiado da cafeteira… Mm, estava um cheirinho tão bom!
- A cafeteira, é? - disse Rolf, com ironia. - Confesse, Julie… Não foi culpa da cafeteira. Deve ter sido outra coisa.
- Cale essa boca, Rolf!
- Ué, vai negar! Depois que mamãe contratou um certo masterchef, você tem andado muito enjoadinha.
- Vá se catar!
Molly olhou para os filhos.
- Calma, crianças. Menos, por favor. Já conversamos sobre essas provocações, não foi?
Rolf e Julie se entreolharam. Ele, com um risinho no canto da boca; ela, mostrando a ponta da língua.
- Mãe - disse Julie, pousando a xícara no pires. - Eu queria tanto ir a algum lugar. Viajar, poder curtir a vida.
- Viajar? - riu Rolf. - Como da última vez? Seis meses em Dortmund! Até que seria uma boa.
- Ora, não se meta onde não é chamado. Fiz um estágio em Dortmund, fique sabendo. Desta vez quero espairecer, ver o mundo, contatar gente diferente.
- Oh, Ju! - disse Molly. Encarou a filha com ternura. - E para onde você quer ir?
- Berlim, Barcelona…
- É uma pena, mas agora não dá. Você sabe que gastamos muito nas reformas. Que tal no ano que vem?
- Ano que vem? - Rolf empurrou a cadeira, zangado. - Tudo por ela e nada por mim, hein? Espero que dessa vez me incluam no que combinarem.
- É claro, filho. Por que não iríamos incluir? Amamos você.
- É mesmo? Amam, mas nem tanto. Se ao menos a senhora tivesse a decência de morrer, tudo estaria bem.
E, com os olhos faiscantes de cólera, Rolf retirou-se, andando duro. Antes que as duas pudessem se recobrar do susto, entrou Jürgen, o rosto contorcido e com profundos vincos
na testa.
- Ah! Empreiteiros de uma figa… Prometem uma coisa, e por fim fazem outra. “Acabou o material” dizem eles. “Tivemos que improvisar.” É nisso que dá! Se pudesse, ajustaria
contas com todos eles!
- Meu Deus, o que está havendo com vocês hoje de manhã? - exclamou Molly, jogando as mãos para o alto. - Mal sai um, esbravejando contra Deus e o mundo, e já vem outro.
Jürgen parou. Dava para ver o espanto estampado em seu rosto.
- Perdi alguma coisa?
- Perdeu sim. Perdeu a chance de ficar quieto. O que deu em vocês? - Molly tentou se controlar, mas as lágrimas já toldavam as suas vistas. - Isso vale para você também, Julie
- seus olhos se fixaram, sem pestanejar, no rosto bonito e leviano da filha. - Pare de provocar o seu irmão. Quantas vezes tenho que repetir? Você é a mais velha, devia dar
o exemplo. Faça um favor para ele e para você.
Fazendo um valente esforço para interpretar esse enigmático pronunciamento, Jürgen encolheu os ombros e sentou-se na poltrona junto à lareira.
- Também não é preciso se aborrecer tanto assim, mamãe - disse Julie, aparentando desinteresse. - Rolf não é mais criança.
- Rolf não é mais criança. Não espere que eu a aprove porque sou sua mãe. Estou por aqui com você, enojada de ter de aturá-la, Julie. Enojada! Sendo filha minha ou não, você
vai aprender a fazer o que eu peço. Se eu tiver de falar com você outra vez, vou acabar dizendo coisas que você não quer ouvir.
- A senhora me odeia, não é?
- Odiar você? Eu não disse isso. Eu acho você imatura. Tudo de que precisa é de um pouco de bom senso.
Julie atirou o guardanapo em cima da mesa, encerrando a conversa. Pobre mãe, tão pacifista, tão exasperante, tão protetora, um verdadeiro porre.
- Não ferra, mamãe! A senhora acordou muito mimimi - e, com o nariz levemente arrebitado, saiu, no exato momento em que Dirk trazia os croissants.
Mostrando os caninos faiscantes, Julie passou por ele a passos largos.
- Não ligue para ela - disse Molly para Dirk, quando já não podia ser ouvida pela filha.
- Oh! Eu não ligo - disse Dirk. - O mau-humor dela é uma coisa insignificante comparado ao que já enfrentei.
- Espero que esteja gostando daqui.
- Sim.
- De todos?
- De todos.
- Só pergunto a fim de me certificar que está se adaptando. Quero saber se para você está bem esse tipo de contrato, porque não quero que surjam problemas entre nós.
- Está sim. A senhora tem sido muito correta comigo desde que comecei aqui.
- Nenhuma reclamação?
- Não.
- Nem mesmo de Julie?
Dirk estranhou a crueza da pergunta. Disse: - Não. Embora ela seja um pouco difícil de agradar.
- Bom - Molly sorriu -, gosto não se discute. Acho que ela aprendeu isso de mim.
“Que mancada!” disse Dirk consigo mesmo. “Gosta de Julie? Claro, claro, Frau Süssenbach. Embora ela seja um pouco difícil de agradar.” Decididamente um comentário idiota.
Idiota e de mau-gosto.
Dirk balançou a cabeça lamentando a própria estupidez.
II
O DIA FOI QUENTE E ABAFADO e, à noite, Dirk dirigiu-se para a varanda, onde se sentou na cadeira-de-balanço. Para afastar os pensamentos um tanto inquietante pôs-se a olhar
a aparência das videiras e do lago dos patos. Fazia um calor sufocante e nuvens se espalhavam no céu salpicado de estrelas.
O som de passos no jardim atraiu a sua atenção. Ergueu os olhos e viu Jürgen passeando pela alameda que, cruzando o parreiral, ia dar no portão da propriedade. À luz da lua,
o homem tinha em seu rosto um esgar tão intenso e ferino que Dirk sentiu um arrepio nas costas. Jürgen mais rastejava do que caminhava, como um homem que está prestes a desmoronar
a qualquer momento. Parou diante do portão, curvado em dois, a mão apoiada no quadril esquerdo. Um ricto de dor contorcia estranhamente seus lábios. Passados alguns minutos,
voltou, se movimentando com a mesma lerdeza, e entrou pela porta lateral da casa, sumindo de vista.
Dirk ainda estava se questionando sobre o significado daquilo, quando ouviu passos atrás de si.
- Oi.
Julie havia vindo para junto dele tão silenciosamente, que ele nem percebera sua aproximação. Os olhos dela estavam abertos e fixos nele. Usava um roupão de seda e tinha os
pés enfiados em chinelas de pele de cabrito.
- Olá - respondeu Dirk.
Sentiu uma emoção nova, como se, de repente, todos os seus desejos se realizassem.
- Que noite empolgante, não acha? - perguntou a moça. - A sala estava tão bonita e a comida, tão deliciosa! Achei que devia vir aqui dar um alô.
Ela era sim bonita. De um jeito quase voluptuoso. Talvez até mais do que Rachelle!
- Está procurando alguém, Fräulein?
- Sim. Você.
Dirk estremeceu. Você? Quando ergueu de novo os olhos, ela o olhava atentamente.
- Na verdade, vim falar com você.
- Comigo?
- Sim.
“Que coisa!” pensou ele.
- Notei que você ficou fora a tarde toda e que voltou um tanto… misteriosamente. Algo que eu possa ajudar?
Dirk franziu a testa. Havia como que uma nota de franca solicitude na voz de Julie.
- Se foi meu padrasto que o ofendeu…
- Não tem nada a ver com seu padrasto.
- Quem então? Mamãe?
- Nem ela nem ninguém. Estou só chateado.
- É sobre o que Herr Marskin disse?
Dirk encarou a moça, desconfiado.
- Andei sabendo de umas coisinhas - disse Julie, fazendo um beicinho com os lábios rebocados de batom.
- Que coisinhas?
- Por exemplo, o seu interesse na morte do Dr. Fleissig. Gostaria que soubesse que quero ajudá-lo.
Dirk parecia ter virado um pilar de sal. É a segunda vez que ela dizia aquilo.
- Entendeu o que eu disse, Dirk? - perguntou ela.
- Ainda estou tentando.
- Pois eu vou confessar uma coisa. Só não conte nada a mamãe. Pode fazer isso, Dirk? Você pode?
Ele sacudiu a cabeça, desnorteado. Onde será que aquilo ia dar?
- Meu caro Dirk, o que, realmente, veio fazer em Heldenstatt?
Dirk olhou para ela, surpreso.
- Desculpe-me?
- Devia descer das nuvens e se juntar à raça humana, para variar. Perguntei o que veio fazer aqui.
- Você não faz muitos rodeios, hein?
- E nem você, pelo jeito. Passa as tardes andando por aí, fazendo perguntas a um depois a outro. O que achou? Que poderia ficar indo para cá e para lá, como um ioiô, sem levantar
suspeitas? Você não um detetive ou qualquer coisa do tipo, é?
Dirk deu uma risada.
- Ora essa! - suspirou. - Oh, pois bem! Acho que fui um pouco otimista demais supondo que ninguém desconfiaria de mim. Acho que não acreditaram nesta história de eu estar
coletando receitas antigas para dar um toque pitoresco ao meu primoroso talento culinário.
- Você está encrencado?
- Encrencado? Oh, não!
- Que bom. Já me sinto mais segura. Mas é cozinheiro, não é?
- Que pergunta! Eu cozinho tão mal assim?
- Não estou dizendo que cozinhe mal. Ao contrário. Só queria uma confirmação.
- Sim. Eu sou cozinheiro. Ainda preciso me adaptar, sabe? É um trabalho meio incomum.
- Incomum? - perguntou Julie. - Não entendo.
- É a primeira vez que arranjo emprego numa casa de família. É por isso.
- Justo o que eu imaginei.
Dirk fez uma careta.
- Hum! Não vamos desviar do tópico principal da conversa. Você dizia…?
- Eu dizia que deve estar aqui por alguma razão - disse Julie friamente. - E eu gostaria muito que me dissesse do que se trata.
- Bem, na verdade, não posso dizer de que se trata. Eu lamento. Deve ser doloroso ouvir isso, mas, conforme eu disse, é a verdade.
Mas Julie prosseguiu calmamente: - Mais uma vez sua conduta se mostra suspeita, o que dá margem à suposição de alguma atividade ilícita. Ou acha que sou tão insignificante
que não mereço saber os seus motivos? - Dirk balbuciou algo ininteligível. - A escuridão não favorece a maioria das cores, você sabia?
Dirk sacudiu a cabeça. E então, sentindo que quanto mais cedo chegasse ao seu objetivo, tanto melhor, disse: - Bem, talvez eu tenha sido um tanto misterioso até aqui, e garanto
que tenho minhas razões. Mas eu não pensei que alguém chegaria a reparar nisso.
- Não, não, você não pensou. Você não parece alguém que se preocupa com essas coisas! - Depois de uma pequena pausa, Julie acrescentou: - Falta responder a minha pergunta,
meu docinho.
Dirk se virou e a examinou. Agradou-lhe verificar que estavam os dois a sós, pois dessa maneira poderia expor, sem adiamentos, o que lhe ia ao coração.
O silêncio que se seguiu à afirmação foi quebrado por Dirk, que disse: - Acho que está querendo que eu lhe diga a verdade, não é?
- Toda a verdade.
- Posso ser franco com você?
- Deve ser franco e deve ser verdadeiro.
- Quantos “deve” numa única frase! Pois aí vai. Eu acredito que no fundo, bem no fundo, você sabe qual é o motivo para eu estar aqui.
- Alguma coisa a ver com a morte de Frau Dargnell?
- É essa a sua opinião? Que minha vinda para cá tem conexão com a morte da governanta?
Julie deu um risinho abafado: - E não tem?
- De certo modo, sim.
Julie tinha olhos cor de nogueira sob as pestanas longas e curvas. Os trajes ocidentais até podiam ser um tanto vulgares. Mas os olhos! Aqueles olhos deixavam Dirk completamente
enfeitiçado!
- A razão para eu vir até aqui pode parecer absurda, mas, se ouvir minha justificativa, vai perceber que não é. Desde o dia em que Frau Dargnell conversou comigo, e me disse
algumas coisas bastante desconcertantes, até semanas atrás, quando li a respeito do que aconteceu a ela, eu não paro de pensar em uma forma de descobrir como foi exatamente
que ela morreu.
- Mas o que houve em relação à sua morte que… bem, que despertou o seu interesse?
- O que houve? Ora, ela levou dois tiros… e pelas costas! Não vai me dizer que isso não é motivo suficiente para ficar com a pulga atrás da orelha!
- Vai lá saber! - disse Julie. - Mulheres como ela são cheias de falsos positivos. Eu, por mim, sempre achei que algo assim acabaria acontecendo algum dia.
- Por quê?
- Frau Dargnell era… como é que se diz?… meio abilolada.
- Abilolada?
- É. Doida. O marido dela ficou dois anos na prisão por ter se apropriado sem permissão de dinheiro que não lhe pertencia; não para ficar com ele, mas para restitui-lo a pequenos
investidores prejudicados pela ganância da corporação para a qual trabalhava. Já viu loucura maior? Ela era tão louca quanto ele.
- Oh!
Dirk respondeu contraindo o queixo, mostrando todo o seu constrangimento.
- Por que, exatamente, acha que ela pode ter sido morta? Não por ser abilolada, suponho!
- Dizem que a morte pode ter ocorrido por engano.
- Por engano?
- Não há provas, mas a polícia alega que o ladrão, após concluir o assalto, se atrapalhou e… pou!… atirou nela sem querer.
- Assalto? Não me lembro de ter lido isso.
- É uma informação extraoficial, digamos assim.
Dirk fez um rápido resumo de seu encontro com Frau Dargnell.
- Incrível! - exclamou Julie quando a narrativa terminou.
- Não é mesmo? E aqui estou eu, atrás de um assassino em Heldenstatt… um assassino que, em teoria, pode tanto ser o atendente da mercearia quanto a mulher do peixeiro. Nessa
era da informação, nós nunca fomos tão cegos e surdos em relação uns aos outros. Se Frau Dargnell estava certa, e sabia o nome do responsável pelas mortes de Fräulein Riedell
e do Dr. Fleissig, é bem capaz de ele tê-la matado também.
- Compreendo - disse Julie.
- Acredita que seja possível?
- Sim, creio que sim - disse Julie.
- Me diga uma coisa: durante o inquérito que se seguiu, não foi sugerida nenhuma hipótese de que poderia haver qualquer irregularidade?
- Não.
- A questão de morte proposital não foi sequer levantada, suponho.
- Não.
- E Betty Riedell? Mencionaram o seu assassinato?
Dirk estava esperando uma reação, para ver se ela mordia a isca. Mas Julie sorriu.
- Oh! Não!
- Ninguém chegou a sugerir que pudesse ter sido o mesmo assassino?
- Ninguém.
- Imagino que Betty não fosse muito bem cotada pelas pessoas do vilarejo - disse Dirk.
- Cotada?
- Você não veio com abilolada? Acho que isso nos deixa quite, não?
- Eu sempre me dei bem com Betty - disse Julie. - Ela tinha muito medo de que, no fim das contas, nenhum rapaz quisesse casar com ela. A ideia de ficar sozinha para sempre
era a pior coisa que podia imaginar. Quase me inclino a acreditar que…
- Sim?
- Que Betty se sentia mal amada.
Dirk assentiu com a cabeça.
- Betty, Dr. Fleissig, Frau Dargnell - enumerou Julie, pensativamente. - Quem poderia querer matar essa gente?
- Aí é que está! Essa pergunta me confronta constantemente, de forma quase imperativa. E é também a maior lacuna vaga de minha linha de raciocínio. Preciso encontrar alguma
coisa que relacione essas pessoas entre si.
- Roma não se fez num só dia.
- Consegue pensar em um motivo pelo qual alguém quisesse ver-se livre do Dr. Fleissig? - perguntou Dirk.
- Nenhum. Você sabia que ele era escocês? A maioria dos escoceses é católica, não é?
- E os ingleses são maioritariamente anglicanos? Sim, sabia. Por quê?
- Só curiosidade.
- A propósito, como é que ele morreu?
- Não lhe disseram?
- Disseram, mas eu gostaria de ouvir uma versão nova.
- Ingeriu café envenenado, ou algo assim. Para mim, foi descuido. Um médico com vista fraca, rodeado de remédios, poções e mais disso e daquilo. Pegou um frasco qualquer achando
ser açúcar, mas que, na verdade, não era.
- Mas, pelo que sei, ele não pegou um frasco qualquer. Era o açucareiro!
- Oh, é mesmo?
- Sim. Recipiente no qual alguém poderia, com toda a facilidade, ter colocado veneno.
- Vendo por esse ângulo - disse Julie, na dúvida. - Oh! Dirk… Você é tão inteligente! Parece que você faz… mágica.
- Não é mágica. É uma reconstituição dos fatos baseada nas evidências físicas coletadas no local do crime. O que eu não entendo é como ninguém suspeitou que houvesse uma relação
na morte de três pessoas.
- Frau Dargnell suspeitou - lembrou Julie.
- E você? O que me diz? Não há nenhum morador em Heldenstatt que cause uma estranha fascinação, alguém com modos sinuosos e furtivos, ou alguém que tenha transtornos mentais
ou com livre acesso a armas de fogo? - perguntou Dirk.
Julie permaneceu em silêncio por algum tempo.
- Você acha que se pode reconhecer um assassino só por olhar para ele?
- Oh! A possibilidade não pode ser excluída, mas não só por olhar para ele, mas principalmente por ouvi-lo. Frau Dargnell mencionou um jeito especial que ele tinha de andar.
- Jeito especial de andar?
Dirk contorceu o rosto como quem está com dor de dentes.
- Não me pergunte; eu também não sei.
- Poderíamos descobrir os dois juntos. É assim que trabalham as abelhas: em grupo, cada uma contribuindo com sua parte, para que o todo resulte maior do que a soma delas.
O que me diz?
- Sério?
- Estou sempre pronta para um desafio. Além disso, também acho que o Dr. Fleissig foi assassinado por alguém da vila - disse Julie, quase num sussurro.
- Por quem?
- Não sei. Alguém que queria, ou precisava, que ele morresse.
- E quanto à sua mãe?
- Quem disse que nós precisaremos informá-la?
- Você acha que ela tentaria impedi-la?
- Oh, aposto que não! Só uma pergunta: você já tem algum suspeito em vista?
- Eu diria que sim.
- Quem?
- Seu padrasto.
Julie fitou-o atentamente.
- Tem certeza? Ele parece ser incapaz de fazer mal a alguém.
- As pessoas raramente são o que são - sem reservas nem subterfúgios. Temos sempre tendência a confiar nas pessoas e a acreditar no que dizem a respeito de si mesmas. No entanto,
todos têm duas caras; a cara habitual, e a outra, que envergam conforme as circunstâncias.
- Em hipótese nenhuma ele pode ficar sabendo que você suspeita dele. Pelo amor de Deus!
- Deixe comigo. Serei a discrição em pessoa.
- Durma bem, Dirk.
Dirk foi para o quarto, ruminando sobre o que viera fazer ali, e por fim decidiu que Julie podia tornar-se uma aliada valiosa.
Ouviu as mensagens do celular. Depois, ligou para Rachelle, mas obteve como resposta apenas a secretária eletrônica.
Capítulo 7
A TARDE SEGUINTE FOI PREENCHIDA com os preparativos para a ceia, que consistiu de sopa de alho-poró seguida por frango assado com endívias refogadas e batatinhas. Depois,
uma salada. De sobremesa, uma torta de morango e, finalmente, queijos variados. Dois dias depois, porém, Dirk conseguiu um tempo livre e foi visitar Frau Mara Fleissig, a
viúva do honorável finado doutor.
A casa de madeira era alta e ampla por detrás do postigo da cerca maltratada pelo tempo. A porta foi aberta por uma criada de meia-idade, uma mulherzinha seca, de olhos argutos
e lábios retos.
Dirk dirigiu-lhe a palavra amavelmente.
- Preciso falar com Frau Fleissig, por favor.
- Frau Fleissig - afirmou ela - não recebe ninguém sem hora marcada, senhor. Receio que não vá ter oportunidade de falar com ela hoje à tarde.
Dirk tinha percepção das coisas e podia reconhecer um discurso ensaiado quando o ouvia.
- Não tenho hora marcada - disse -, mas eu espero - completou.
Passou ao lado da criada hall adentro e sentou-se em um banco de carvalho do corredor.
- Senhor! Ela é uma mulher muito doente e está… hã… repousando esta tarde e, de fato, não pode ser perturbada.
- Tenho tempo - disse Dirk. - Eu espero.
A criada hesitou e lançou-lhe um olhar para lá de duvidoso. Começou a dizer algo, por fim virou-se e foi lá para dentro. Ele podia escutá-la balbuciando e resmungando xingamentos.
- Frau Dargnell dispõe de alguns minutos - anunciou ela, reaparecendo ao lado do rapaz.
- Que bom. É muita gentileza dela - disse Dirk colocando-se de pé.
- Pode me acompanhar.
Embora tivesse um bom pretexto, Dirk sentiu-se um tanto minúsculo quando apareceu em presença de Frau Mara Fleissig. A criada desapareceu na copa vizinha e logo se ouviu que
esfregava a cera no soalho, enquanto um forte cheiro de terebintina impregnava a casa.
Desde o começo, Frau Fleissig revelou ser uma mulher desconfiada. Assim que viu Dirk, ficou atônita, olhando-o fixamente através das espessas lentes de seus óculos de aros
de ouro.
Mal, porém, abriu a boca, Dirk viu que seus temores eram infundados.
- Fui tratado pelo seu marido quando tive bursite, anos atrás. Tinha bondade, vitalidade e um profundo interesse pelas pessoas. E também era gentil - disse ele - sim, muito
gentil - acrescentou no tom de alguém que quer convencer a si mesmo.
- Oh, querido! - disse ela, olhando com pena para Dirk.
- Vim só ver como ele está passando.
- Veio ver Heinrich? Oh, você não soube? Heinrich morreu.
Dirk abandonou o esforço que fazia para sorrir.
- Não diga! Quando?
- Há três meses.
- Infarto?
- Não, muito pior - disse a mulher. Hesitou. - Morreu com uma dose de uma substância cujo nome oficial não me arrisco a pronunciar, mas que, conforme compreendo, é conhecida
como cianeto de potássio.
- Envenenado?
- Sim.
- Dose acidental?
- Não, não mesmo.
- Que quer dizer?
- Dizem que… Heinrich… fez de propósito.
- De propósito?
- Sim.
- Como assim?
- Bem, a polícia alega que ele se matou.
Frau Fleissig falava gravemente e, em toda a sua seriedade.
- Se matou? Poxa! E por que ele faria isso?
- Não fez - disse ela brutalmente. - Heinrich jamais faria uma coisa dessas.
- É claro que não.
- Não é mesmo?
- Mas eles, claro, pensaram de outro modo.
- Sim. Eles disseram que Heinrich estava deprimido e que, num momento de fraqueza, cedeu à tentação. É claro que ele tinha artrose avançada em ambos os joelhos. Chegou até
a consultar um colega médico para entender melhor o problema de saúde que tinha. Mas ele havia feito mudanças na rotina e tirado tempo para descansar e fazer exercício. Aos
poucos, vinha aprendendo a controlar os sentimentos e não deixar a ansiedade tomar conta dele. Quando Pollye, nossa arrumadeira, o encontrou, o rosto dele estava todo cinzento.
Diz ela que saiu correndo e trouxe um pano úmido e sais aromáticos, que esfregou em seu nariz até que ele começou a se mexer. Mas ela diz que foi por pouco tempo. Heinrich
morreu logo em seguida.
- O doutor tomava algum medicamento para depressão?
- Mirtazapina.
- Pobre doutor! E a senhora nem estava em casa quando aconteceu!
Frau Fleissig ficou um pouco admirada.
- Como sabe disso?
- Foi só um… palpite - gaguejou Dirk.
- Pois acertou. Eu tinha ido à Stuttgart, visitar minha irmã Margareth. Foi Vinny quem ligou a fim de dar a má notícia.
- E a senhora veio logo, suponho.
- Vim na mesma manhã.
- Quando chegou, a polícia já estava aqui?
- Sim. Revirando tudo de um lado para o outro. Fiquei ali parada, observando, completamente aturdida.
- O veneno tinha sido colocado no café?
- No açucareiro.
- Foi comprovado que estava no açucareiro?
- Sim. Deram todos os detalhes específicos quanto a isso.
- A senhora achou que foi um acidente?
- Bem, poderia ter sido um acidente, suponho - respondeu Frau Fleissig. - No início, ninguém disse nada em definitivo, em termos oficiais, digo. Só aquela bobagem sobre não
terem encontrado pistas e assim por diante. Mas, é claro que todos os nossos vizinhos trataram do assunto como se fosse um assassinato.
- E falaram alguma coisa sobre quem poderia ser o culpado?
- Não - confessou a velha. - Não falaram. Porque, na realidade, não viam quem poderia ter feito aquilo.
- Como assim? Não viam quem poderia ter feito a façanha em si ou não conseguiam pensar em ninguém que desejasse matá-lo?
- Não conseguiam pensar em ninguém que desejasse matá-lo.
A mulher, que falava intercalando cada palavra engolindo grandes haustos de ar, fez um resumo dos acontecimentos. Ao cabo do relato, Dirk perguntou: - Como era seu marido
na intimidade?
- Oh! Era um homem muito manso, mas nunca deixava de dar o devido castigo a quem quisesse abusar de sua boa-vontade. Dizia, com orgulho, que sua linhagem chegava aos huguenotes
da Alsácia.
- E a senhora acha que ele foi morto.
- Sim.
Questionada sobre o que poderia ter motivado o crime, ela não soube responder.
- Bom, francamente - disse Frau Fleissig -, não consigo imaginar ninguém querendo matar Heinrich.
- Talvez ódio. Sim, o ódio seria um motivo.
- Mas ninguém odiava Heinrich! Ele participava de uma série de simpósios e seminários e coisas assim, e havia algumas pequenas rivalidades locais, mas nada além disso.
- E dinheiro?
- Ele não tinha somas em dinheiro que justificassem um assassinato, tanto assim que ninguém saiu lucrando com a morte dele.
“Um argumento fraco” pensou Dirk.
- Parecia cansado ou preocupado, por exemplo, quando a senhora esteve com ele pela última vez?
- Não que eu tenha notado. Não, não notei nada.
- E quem está com o caso nas mãos? - perguntou Dirk. - A polícia?
- Sim.
- Houve alguma audiência preliminar?
- Sim, mas o requerimento foi negado.
Por um pequeno e frágil instante a voz de Frau Fleissig demonstrou algo que Dirk ainda não havia percebido antes.
- Deve haver algum maníaco por aí - acrescentou Frau Fleissig. - Betty, Heinrich, Rose… Três assassinatos. É tão perturbador - disse ela. - Faz com que toda a vila se torne
tão assustadora.
- A senhora disse Rose? Quem é ela?
- Eu ainda não falei dela?
- Temo que não.
Frau Fleissig falou de Frau Dargnell, de sua idade, dos anos tinha passado trabalhando para os Süssenbach, e, lógico, da manhã em que um ladrão inconsequente, lamentavelmente,
a tinha matado a tiros.
- Quando lembro que eu mesma estive lá por um breve período no começo da manhã! Que eu também poderia ter sido atacada ou morta… - fechou os olhos e titubeou.
- A senhora esteve lá?
- Sim. Eu e mais umas trinta pessoas. Praticamente vimos tudo acontecer - declarou Frau Fleissig.
- Incluindo o atirador?
- Oh! Não. O que foi uma pena. Afinal, se o tivéssemos visto, ele já teria sido julgado e atualmente estaria cumprindo uma bem merecida sentença na penitenciária.
Ela levantou-se do sofá e dirigiu-se à lareira para atiçar o fogo.
- Espero vê-lo mais vezes.
II
DE PIJAMA, DIRK CORREU PARA abrir e viu Julie cair sobre ele, se refugiando em seus braços. Dirk estremeceu. Se era estranho vê-la sentada à mesa da sala de jantar, era mais
esquisito ainda flagrá-la em seu próprio quarto, literalmente abraçada a ele.
Dirk travou, sem saber como reagir. Até então, conversara com ela uma única vez; mesmo assim, brevemente. E eis que ali estava ela: se agarrando a ele, rosto transtornado,
o corpo tremendo, chorando em seu ombro.
- Não posso continuar deste jeito! Não posso… Você tem que me ajudar, Dirk. Precisa fazer alguma coisa. Não quero ficar sozinha… Não quero… Tenho medo…
- Medo do quê?
- Você precisa fazer com que ele vá embora!
- Quem?
Julie balançou a cabeça.
- Aquele homem - deixou escapar por fim, com esforço.
- Quer dizer… seu padrasto?
- Sim, sim…
- Por quê? O que ele fez?
- Estou apavorada. Estou terrivelmente apavorada… Oh! Eu não ouso dizer…
- Não ousa dizer o quê?
Julie fez uma pausa e olhou diretamente nos olhos de Dirk, com os dentes cerrados.
- A coisa mais suja, ignóbil e baixa que um homem pode exigir de uma mulher.
- O que quer dizer? Ele…
- Não, não… Graças a Deus, não. Mas ele me propôs coisas sobre as quais não posso falar. Você me entende, Dirk? Você entende, não é?
- Sim, acho que sim.
- Você tem que me proteger! Tem que fazer alguma coisa! Sabe… eu deveria ter dito antes… Mas não encontrei ocasião oportuna. É que…
- O quê?
- Você não fala comigo, não olha para mim e nem me deixa chegar perto de você.
Dirk sacudiu a cabeça.
- Não sei o que vai acontecer, mas, seja lá o que for que aconteça, vou cuidar de você, Julie. Vou mantê-la segura.
- Vai cuidar mesmo para que nada me aconteça? Você jura, Dirk? Jura?
- Sim.
- Que bom que ainda existem pessoas boas. Obrigada, Dirk. Muito obrigada.
Ela tinha parado de tremer e de arquejar.
- Bem, não quero ser grosseiro - disse Dirk -, mas suponho que seja melhor que você vá. Se a acharem aqui, em meu quarto…
Ela fez que sim com a cabeça. Foi até a porta, deteve-se e, sem olhar para ele, disse: - É um alívio saber que não sou objeto de pena de todo mundo.
Dirk voltou a deitar-se, muito deprimido. Era nessas horas que não conseguia entender como pudera se meter naquela empreitada. Talvez o melhor fosse tomar um táxi até Graz
e embarcar no primeiro trem com destino ao Norte.
- Ah, e agora mais essa! - gemeu irritado. Levantou-se e foi fechar a porta, virando a chave na fechadura. - Melhor deixá-la logo trancada!
Seu último pensamento antes de dormir foi que corria o sério risco de enlouquecer se houvesse mais um assassinato.
Capítulo 8
HERR DARGNELL SEGURAVA UMA TESOURA de podar. Ele permaneceu muito ereto, olhando severamente por sob a larga aba do chapéu para Dirk, que sorriu amavelmente e fez um breve
movimento com a cabeça. O velho pareceu tentar se lembrar de onde conhecia o jovem.
Roland Dargnell era um homenzinho baixo, nervoso, estranhamente ossudo e anguloso. Principalmente por causa do bigode enroladinho e de óculos com armação de metal.
- O senhor está muito ocupado?
- Não, não estou - respondeu Herr Dargnell. - Estava aparando as roseiras.
Depois de ter estudado Dirk atentamente, Herr Dargnell pegou sua cesta de jardinagem e suas luvas e continuou seu passeio pelo roseiral. Dirk ficou observando-o por um instante
e, arrancando uma flor de magnólia, sentiu seu perfume e foi atrás dele.
- Não me lembro de tê-lo visto por aqui - disse Herr Dargnell.
- É que sou novo na área. Comecei com os Thröllinger há poucos dias.
- Ah, então é isso, hein? Como disse que se chama?
- Holzbiene. Dirk Holzbiene.
Capengando, Herr Dargnell saiu caminhando na direção do banco de ébano onde se sentou. Inspecionou o rapaz com olhos inquietos.
Dirk suportou sem alarme o exame escrutinador do velho. Este, ao fim de dois ou três minutos, deu-se por satisfeito e disse: - Sente-se.
Dirk obedeceu mecanicamente. Ele absolutamente não conhecia Herr Dargnell. Sabia apenas que havia sido tanoeiro, profissão que exercera durante mais de sessenta anos.
- O que acha dos Thröllinger? - perguntou Herr Dargnell.
- Boa gente - disse Dirk -, embora um pouco…
- Estranha?
- Na falta de um termo melhor…
- E pensar que conversei uma só vez com aquele sujeito! - disse Herr Dargnell. - Travamos relações, é verdade, mas não posso dizer que tenhamos ido muito além disso.
- O senhor não voltou mais a vê-lo? - perguntou Dirk.
- Não. Só de olhar notei de que material ele é feito. É um cabeça-tonta, inconsequente e festeiro, que sempre viveu às voltas com mulheres. É revoltante, na minha opinião
- Herr Dargnell prosseguiu com plena falta de tato. - Molly deve ser pelo menos vinte e cinco anos mais velha do que ele, uma vergonha! Está visto por que ele se casou com
ela. Quando criança vivia por aí, arrumando confusões por toda parte, com um gênio horroroso; nunca teve um caráter muito recomendável. Perdeu o pai cedo, morto num acidente
de teleférico na Suíça. A mãe se casou de novo, mas o padrasto e ele se odiaram de cara. Certa noite, deixou os dois para trás e foi buscar guarida na casa de Molly Süssenbach.
Sendo ela viúva, ofereceu-lhe teto e comida, em troca de certas compensações conjugais.
- Quanto a Herr Süssenback. De que foi que ele morreu?
- Câncer no pâncreas ou fígado, algo assim - disse Herr Dargnell.
Dirk olhava Herr Dargnell com grande atenção.
- A sua mulher, pelo que ouvi dizer, serviu os Süssenback, não foi?
- Quatorze anos. Quatorze. O que não é pouco!
- Não é mesmo. Ouvi dizer também que alguma coisa… não sei o quê… aconteceu a ela.
Herr Dargnell ficou em silêncio, de testa franzida. Dirk não se moveu. Nada disse, para não perturbar a corrente de seus pensamentos.
- Pobre Rose! Uma alma tão piedosa! Doava aos outros sem esperar nada em troca. “Competência e dedicação pesam mais do que beleza”, é o que ela sempre dizia. Ainda lembro-me
do dia. Um sábado. Rose tinha ido ajudar na montagem das barracas do bazar anual, programado para o dia seguinte, domingo. Por causa de alguns ajustes, fora encarregada da
barraca de pães e doces, que, neste ano, deveria ser montada perto da cerca de azevinhos nos fundos do terreno. Rose estava, portanto, sozinha, isolada dos outros, quando
foi abordada. Ninguém sabe quando nem como aconteceu. A única coisa que se sabe é que, por volta das dez e meia, alguém passou por lá e a encontrou toda ensanguentada. Quando
fiquei sabendo do ocorrido, larguei tudo o que estava fazendo e fui imediatamente para lá. O pior de tudo é que pode ter sido qualquer uma das pessoas lá presente. Quando
cheguei, todos pareciam estar no estado de agitação nervosa que seria de se esperar, com muita ansiedade e generalizada expectativa. Talvez nada fosse aquilo que parecia ser.
Enquanto interrogava as testemunhas, o inspetor ordenou aos seus agentes que organizassem uma primeira ronda nas redondezas. No entanto as buscas não deram em nada e foram
interrompidas por volta do meio-dia. Examinei também o terreno lá fora, nas proximidades da cerca. Mas fora pisado por tantos pés que cheguei à conclusão de que era inútil
perder mais tempo a examiná-lo.
- Como ela foi morta?
- A tiros.
- Oh! Meu Deus - exclamou Dirk, simulando o mais vívido espanto. - Ninguém ouviu nada? O espocar da arma, nada?
- Não.
- Entendo - disse Dirk. - E o que disse a polícia?
- Homicídio com objetivo de roubo, ou roubo seguido de morte.
- Latrocínio?
- Sim.
- Concordou com isso?
- Nem por decreto! O empenho da polícia foi relativamente grande durante algum tempo. Mas, como as investigações não avançaram, o interesse foi diminuindo. Por fim, abandonaram
o caso. Assim, resolvi continuar por conta própria. Coletei todas as informações que consegui encontrar: o inquérito policial, as anotações sobre tudo o que as pessoas disseram
ter feito ou ter visto. Dediquei semanas coletando informações relativas aquele dia.
- E? - perguntou Dirk esperançoso.
- E nada. Uma perda de tempo e de dinheiro. Decidi que as coisas deveriam seguir o seu rumo sem a minha interferência.
- Deve ter sido terrível para o senhor.
- Mais do que isso. Quase acabou comigo.
Dirk notou de repente que nuvens sombrias toldavam o céu. Posicionando a bengala, Herr Dargnell se ergueu. Voltando-se, começou a avançar em direção à porta, dizendo:
- Vamos… Vem vindo uma tempestade.
Mal tinham entrado quando ouviram o ruído da chuva contra a vidraça. Herr Dargnell arrastou-se debilmente para a sala de estar e deixou-se cair na poltrona.
Cautelosamente, deliberadamente, Dirk acomodou-se no sofá.
- Eu ia dizendo… - o velho franziu a testa. - O que é que eu ia dizendo? Ah! Sim. O assassinato de Rose destruiu-me por dentro. Foi também o que me levou a abandonar progressivamente
o convívio com meus vizinhos. Desde então, levo uma vida retirada. Ninguém vem aqui. Eu não vou a lugar nenhum. Todas as semanas havia em nossa casa um grande jantar, e habitualmente
saíamos para jantar com amigos duas ou três vezes por mês. Agora a casa tem estado totalmente solitária. Perdi toda a motivação para essas coisas. Sei que há um assassino
por aí, e as especulações e a busca da verdade se tornaram um fardo pesado demais para mim.
- O que acaba de me contar é muito surpreendente, Herr Dargnell.
- Se ao menos eu pudesse pensar no que fazer… Mas não dá para controlar certos eventos. Temos que aceitá-los como eles vêm e seguir adiante.
- Não desejo afligi-lo fazendo perguntas dolorosas, mas o senhor poderia dar uma sugestão, apenas uma sugestão, entenda, não estou lhe pedindo nada além de um palpite… Quem
acha que esteja por trás disso?
- Um lobo agasalhado de cordeiro - retrucou Herr Dargnell, secamente. - Receio que não haja muita dúvida quanto a isso!
- Acha que possa ser um caso de insanidade temporária?
- Insanidade? Oh! Não… Tem muita coisa conectada com matar alguém. Insanidade! Honestamente, acho que não, e posso dizer que já pensei muito sobre esse assunto.
- Julga que a pessoa que atentou contra sua esposa já possa ter matado antes?
- É bem provável. Não sei dizer com certeza.
- Ouvi alguém dizendo que houve outras mortes, além dessa.
- Houve sim. Mais duas.
- Pelo que me lembro, uma moça e um advogado…
- Médico.
- … um médico.
- Sim.
- Então é justo dizer que, talvez, o assassino, até aqui, tenha feito três vítimas. Correto?
- Se for o que está dizendo…
- Não tem mesmo nenhuma sugestão sobre quem possa ter baleado sua esposa?
- Não, não tenho. Como… foi que ficou sabendo disto tudo?
Dirk meneou a cabeça.
- Muita gente comentou. Sempre chega aos ouvidos de todo mundo, mais cedo ou mais tarde. Além do mais, li na internet. Tinha uns quarenta artigos.
Herr Dargnell balançou a cabeça, perplexo.
- Quarenta artigos?
- Por baixo.
- Discutiu essa teoria com mais alguém?
- Que teoria?
- Sobre minha Rose ter sido morta pelo mesmo assassino que matou o Dr. Fleissig e a moça.
- Bem, acho que o senhor tocou em um ponto sensível. Não vou mentir. Discuti sim.
- Por que foi que se envolveu nisso?
- Deixando de lado, as teorias de conspiração? - sorriu Dirk. - Nunca ouviu falar em espírito aventureiro, Herr Dargnell?
Capítulo 9
ATO CONTÍNUO, DIRK OLHOU AS horas. Com um suspiro, percebeu que os ponteiros do relógio indicavam um quarto para as cinco.
- Puxa! Desculpe ter que sair tão às pressas, Herr Dargnell, mas infelizmente estão me esperando em casa.
- Quer mesmo sair num tempo como este?
- Tenho que ir - respondeu Dirk -, se quiser chegar antes do gongo.
Levantou-se e deslizou para fora da sala, murmurando por sobre o ombro: - Obrigado, Herr Dargnell.
A garoa continuava caindo, regular, fininha. Uma brisa soprava a névoa pela rua pouco populosa, com lojas pequenas e construções de madeira.
Ideias pipocavam em sua mente.
Até ali tinha ouvido três parentes de vítimas: Frau Riedell, Frau Fleissig e Herr Dargnell. Os depoimentos haviam sido bastante esclarecedores, embora não houvessem respondido
duas questões primordiais. Por que Frau Dargnell reparara especificamente na morte daquelas pessoas? E que ligação havia entre elas e a família Thröllinger?
Em sentido ilustrativo, aquilo representava um mistério envolto em névoas e breu. Pareciam casos isolados, sem qualquer entroncamento, mas, fosse como fosse, aquilo não convencia
Dirk. Mas qual seria o fio conector entre os dois primeiros assassinatos? E mais: qual seria o fio conector entre eles e a morte abrupta e inexplicável de Frau Dargnell?
Dirk, de sobrancelhas franzidas, ia em frente, em direção à ponte. Uma vez mais se sentiu tolhido pelas dimensões irreais da sua missão. Quanto havia de verdadeiro em tudo
o que ouvira? E quanto de fantasia? Já tinha submetido todas as hipóteses a um exame minucioso - e nada. Havia toda uma desordem de interesses, de ódios, de processos sem
fim… Ainda não existia nenhuma ideia definida, nenhum entendimento definitivo, a respeito da culpabilidade de quem quer que fosse.
Quem eram as vítimas?
1. Uma moça que tinha grande prazer em viver, e para quem a vida constituía uma fonte contínua de diversão; que topava tudo por um pouco de carinho, passando por cima até
mesmo de seu amor próprio.
2. Um médico que possuía um coração terno e um vivo e raro senso de humor.
3. Uma governanta que fazia tudo, providenciava tudo, dava um jeito em tudo; e que tinha sido incrivelmente competente em gerir o front doméstico da família Süssenbach.
“E aqui estou eu, no meio do caos. Só mesmo um débil mental igualaria tanta tolice.”
Depois de enveredar por uma última ruela, Dirk embicou em direção ao rio. Todo aquele mistério se arranjava e rearranjava em formas caleidoscópicas dentro do seu cérebro.
A atmosfera estava impregnada de uma espécie de negrume elétrico. A claridade vinda dos postes de iluminação pública formava um halo de luz em pleno ar. Dirk atingiu a ponte
e, sem se deter, seguiu para a outra margem. Subitamente foi tirado do seu devaneio com a visão de algo amorfo caído à base da amurada da ponte, metros à sua frente. O tamanho
e o formato não deixaram dúvidas: era uma pessoa.
- Caramba! O que… será… que… aconteceu?
Praguejando, Dirk aproximou-se. Por alguns segundos, pôs-se a esquadrinhar os arredores, como se quisesse certificar-se de que não estava sendo vigiado. Mal se ouvia, em volta
dos bancos de areia, o murmúrio da água corrente. Em seguida, andou em torno do corpo, a passos leves, furtivos, e contemplou-o de todos os lados. Agachando-se, debruçou-se
sobre ele.
Saia de poliéster, cinto de couro com metal, bolsa de material sintético e, nos pés, botas de neoprene com couro. Antes mesmo que conseguisse enxergar o rosto, já sabia quem
era.
Ele pensou rapidamente na lição de primeiros socorros que aprendera na aula de trânsito. Checou a função respiratória, a circulação. Nada. Ficou petrificado durante o que
pareceu uma eternidade, incapaz de entender o que poderia ter acontecido.
As náuseas foram tomando conta de Dirk. Tudo começou a nadar diante dos seus olhos e ele se sentiu enjoado.
O horror daquela visão, e as circunstâncias incomuns paralisaram suas pernas. O seu lábio inferior pendeu. Um pulsar surdo ecoava dentro do peito.
- Ah! Não. Ah! Não.
Além da garoa fina, havia algo de pesado e implacável naquela cena. Era preciso conservar as ideias em ordem.
Era preciso fazer alguma coisa imediatamente… mas o quê?
Dirk pôs-se de pé; sem ouvir nem enxergar nada, como que fora de si, seguiu para casa. Não ouvia outros ruídos a não ser o da própria respiração.
A noite caía, o silêncio se abatera sobre a campina.
Ao cabo de alguns minutos que pareceram horas, percebeu, enfim, as luzes da mansão. Mais um pouco, e parou junto ao pórtico de entrada. Ergueu os olhos para o primeiro andar,
onde uma janela irradiava luz por entre as folhas de videira.
Entrando, Dirk subiu e aproximou-se do pequeno retângulo de luz formado pela janela da copa, cuja persiana estava fechada. Havia uma fenda de uns dez centímetros no umbral
da porta.
Ele se deteve na soleira.
Sentado num tamborete, Jürgen imediatamente ergueu a cabeça com um movimento abrupto. Após examinar Dirk com os olhos vidrados, grunhiu alguma coisa incoerente.
- O que houve?
Dirk não respondeu.
Jürgen levantou-se e caminhou rapidamente até Dirk e agarrou-o com firmeza pelo antebraço.
- O que houve? - repetiu Jürgen. Tentou falar com Dirk em voz baixa, tentando, de vez em quando, pousar a mão em seus ombros.
Passou-se um minuto até que Dirk pudesse dizer alguma coisa.
- Morreu na hora - murmurou.
Sua boca ficou escancarada, como se ele tivesse engasgado ao libertar a enorme tensão acumulada.
- Morreu na hora? - repetiu Jürgen, os olhos fixos em Dirk. - Controle-se, homem! - disse com frieza, como se quisesse apaziguá-lo. - Quem morreu na hora? Quem?
Uma mudança se operou em Dirk, que falou de forma grave e decidida: - Sua esposa… Molly… Molly está morta.
Capítulo 10
- E? - PERGUNTOU JULIE.
Uma hora tinha se passado. O “e” da moça era dirigido ao padrasto, que acabava de voltar do local do incidente.
Jürgen manteve-se imóvel, com o queixo apoiado no peito, imerso em um profundo estupor. Grossas gotas pingavam de seu sobretudo preto com gola e punhos de astracã.
- E cheguei tarde… muito tarde… - murmurou.
- Mamãe! - gritou Julie. - Mamãe! Ela vai ficar bem, não vai?
Jürgen balançou a cabeça em negativa.
- Não está dizendo… - Os olhos de Julie se arregalaram de pavor. - Não pode estar dizendo… Ela não está morta, está?
Jürgen assentiu.
- Ah, sim. Está morta. E já faz algum tempo.
- Ela morreu? Mas como…? Por favor, me diga que ela não morreu.
- Lamento que sim. O tiro atravessou o corpo e foi disparado com a arma a pequena distância de seu peito. A morte deve ter sido instantânea. É claro que será feita uma autópsia.
Julie começou a tremer, e, balançando a cabeça, consternada, deu um passo para trás. Dirk se adiantou e, bondosamente, ajudou-a a sentar-se.
- Mamãe! Oh, mamãe! Como é possível?… Quem fez isso?…
- Traga um copo d’água… depressa! - comandou Dirk, dirigindo-se para Rolf. Este correu para a cozinha e Dirk virou-se novamente para a moça. - Calma, Julie… Tente respirar!
Assim…
Depois que Rolf voltou, e tomou conta da irmã, Dirk caminhou para junto de Jürgen. Movido tanto pela necessidade de se justificar quanto pelo desejo de mostrar-se interessado
no caso, perguntou: - Acharam a arma?
- Nada.
- Então ela não… se suicidou?
- Se suicidou?! - exclamou Jürgen com um brilho impiedoso no olhar e um rangido na voz. - Não sei se estou entendendo direito o que está falando. Meu Deus, que é que há com
você? Não vai dizer que acredita nessa bobagem?
- Na verdade não, mas…
Não chegou a completar a frase.
- Corta essa! Isso é ridículo! Molly era uma mulher muito boa e estava sempre fazendo coisas para os outros. Ela jamais faria uma loucura dessas.
- Desculpe, eu… - balbuciou Dirk.
Jürgen virou-se para ele, com o rosto cheio de ódio, e falou:
- Você não mexeu em coisa alguma, tocou no corpo ou qualquer outra coisa?
- Eu não seria tão tolo.
- Ótimo. E não viu mais ninguém por lá?
- Ninguém.
Dirk sacudiu a cabeça. Sua mente retornou à cena que tinha testemunhado. Horrível, nada menos do que isso.
Dirk tentou mudar de assunto: - A polícia já veio?
- Não. Quem veio foi o médico legista e sua equipe. Tudo de acordo com as regras, creio eu. O doutor disse que teriam que fazer uma autópsia… ou como quer que se chame aquilo.
Achei engraçado - acrescentou Jürgen.
- Como assim engraçado? - inquiriu Dirk.
- Bem - considerou Jürgen. - Como se ele não soubesse o que havia por trás daquilo. Como se ele não soubesse que Molly havia sido… assassinada. Ah, parece que ultimamente
não acontece nada além de crimes e enterros. Os problemas nunca vêm sozinhos, é o que dizem, e é bem verdade.
Jürgen olhou firmemente para Dirk.
Somente a palidez do rosto e os lábios comprimidos deixavam perceber a emoção que ele tentava ocultar.
- Sua história é meio suspeita.
- Que parte?
- Toda ela. Diga-me uma coisa… Como foi que você a encontrou?
Dirk fez um relato resumido de onde tinha ido, omitindo, naturalmente, a sua visita a Herr Dargnell.
- E não fez mais nada? - insistiu Jürgen.
- Como o quê?
- Você sabe o que eu quero dizer. Você passou a tarde fora, talvez sabendo que Molly iria para o centro. Talvez tenha ficado de tocaia na ponte e, quando ela chegou…
- Olha, com todo o respeito, não foi nada disso. O fato de ter encontrado sua esposa naquelas circunstâncias foi puramente casual.
Jürgen fez uma pequena pausa, porém perceptível, antes de enxugar a testa.
- Consagrei minha vida a ela. Ela tinha uma simpatia intuitiva por todo mundo. Molly era tudo o que me restou. Molly era uma das duas únicas pessoas para quem eu valia alguma
coisa.
- Quem é a outra?
- O quê?
- Disse que ela era “uma das duas únicas pessoas”. Quem é a outra?
Dirk propôs a pergunta com naturalidade, mas seu olhar era interessado e atento.
- Minha mãe - disse Jürgen, ligeiramente envergonhado.
Dirk não questionou a construção um tanto duvidosa da frase, mas sentiu que, de algum modo, havia alguma coisa por trás daquela resposta. Ficou imaginando o que devia estar
se passando pela cabeça de seu patrão.
A sua esposa… a pequeno-burguesa que acolhera o plebeu - o ambicioso e pretensioso plebeu - estava morta.
Bem, geralmente quando ocorre uma coisa dessas a gente fica se perguntando! E, no entanto… Não vejo como poderia ter sido de outro modo.
II
ÀS DEZ E MEIA, DIRK SENTIU QUE não suportaria mais continuar acordado. Detestava aquele estado de vulnerabilidade forçada. Resolveu ir ao seu quarto e colocar uma compressa
de água fria sobre as têmporas doloridas.
Assim que fechou a porta atrás de si, tentou se acalmar e pensar de forma racional. Ele se defrontava com um tremendo problema. Outro assassinato!
Cada assassinato, cada hora que se esvaía, tornava mais problemática a prisão do assassino. Estavam lidando com uma pessoa para quem a violência era familiar e que, literalmente
falando, não se detinha diante de nada. Era muita coisa para um só dia, para absorver e refletir, tudo de uma vez.
Quem seria o assassino? Um anarquista? Fanático? Extremista? Nacionalista? Ou apenas um idiota, que não sabia o valor da vida humana?
- Não posso imaginar quem possa ter feito isso - disse Dirk para si mesmo. - Pelo menos, é claro, posso imaginar… Posso imaginar qualquer coisa! Isso é que me deixa fulo.
Posso imaginar milhares de coisas. Coisas que atraíram a minha atenção, coisas um tanto… esquisitas. Mas a qual delas devo dar prioridade?
Um impulso repentino e doloroso do setor de lógica de seu cérebro o arrancou das meditações.
- Muito depende de o quanto se olha para um fato.
Tinha que colocar tudo por escrito!
Ele pensou por um segundo, depois pegou uma caneta e, lentamente, elaborou o texto abaixo:
Vítimas
Betty Riedell
Morta com um taco de críquete, em dezembro do ano passado.
Existe a hipótese de que ela sabia de algo sigiloso.
Algo sigiloso? Mas o quê? E referente a quem?
Seria ela, no fim das contas, apenas uma caçadora de emoções?
Dr. Fleissig
Dívidas e relacionamentos extraconjugais foram descartados como possíveis motivações do crime. (Ele não era o que se poderia chamar de libertino ou sensual!)
Frau Dargnell
Possível motivo para o crime:
Talvez soubesse a identidade do assassino (muito provável!) de Betty e do Dr. Fleissig.
Agravante: Passava a impressão de ser o tipo de mulher que, se acaso soubesse de alguma coisa sobre qualquer pessoa, não teria como evitar falar disso para outros.
Molly S.
Uma mulher introvertida, educada e determinada.
Ninguém parece tê-la detestado a ponto de chegar a odiá-la.
E não dá para imaginar que ela estivesse chantageando alguém.
Suspeitos
Herr Dargnell
Um pobre homem, sozinho, que vai e vem e não se sente bem em parte alguma, a não ser, talvez, quando está podando flores e quando não vê ninguém.
Ele deve saber quem foi, ou suspeita de alguém… mas não vai falar. E ainda não sei o porquê de não querer falar.
Fatores atenuantes: Sem boatos sobre ele estar enrolado com alguma vizinha ou qualquer outra mulher.
Poderia ter assassinado qualquer uma das três primeiras pessoas, mas não Molly, já que, àquela hora, estava em casa (álibi que posso confirmar).
Jürgen Thröllinger
Um indivíduo controlador, narcisista, que, de certa forma, domina completamente, não só as mulheres, mas qualquer um que esteja perto dele.
Fato:
Não há dúvidas de que os maridos, muitas vezes, querem se livrar das esposas. E Rolf disse que Jürgen tinha uma pistola.
Nelly Riedell
Uma adolescente na flor da juventude, suscetível aos apelos dos hormônios. Apaixonada por Thomas Herring, mas rejeitada por Thomas porque ele preferiu ficar com Betty, irmã
dela.
Diz que, na manhã do crime, Betty deixou de responder porque estava olhando para além dela, para alguma outra coisa lá fora.
Thomas Herring
No hall de entrada da casa, há uma mesa-vitrina expondo uma coleção de armas. Será uma delas a arma que baleou Frau Dargnell e Frau Süssenbach?
Frau Fleissig
Caso quisesse, poderia ter envenenado o marido.
Assim que pousou a caneta, Dirk sentiu-se subitamente aliviado.
- Verba volant, scripta manent! *
Parafusou e parafusou de um lado para o outro dando tratos à bola, pensando em uma pista em algum lugar, uma frase solta, uma observação curiosa. Por fim caiu num sono agitado,
do qual foi despertado, na manhã seguinte, por batidas à porta do quarto. Olhou para o visor luminoso do radiorrelógio na mesinha de cabeceira.
6h30.
Dirk girou as pernas para fora da cama. Era Rolf. O seu rosto estava roxo e congestionado.
- O que é?
- Temos visitas - disse Rolf.
* As palavras voam, os escritos permanecem!
Capítulo 11
O OFICIAL MAURRICE LAFRANCE era um sujeito forte e gordo, com o rosto vermelho como um crustáceo cozido. À parte esse detalhe pitoresco, um chapéu de três bicos, um relógio
na algibeira e um cachimbo de prata, complementavam seu visual.
Maurrice Lafrance já participara de vários inquéritos sobre crimes e assassinatos. No todo, tinha uma carreira impressionante e, claro, se sentia satisfeito pelo trabalho
realizado até ali. Confrontara-se com toda sorte de criminosos: vigaristas, estelionatários, traficantes e um psicopata com alto grau de periculosidade.
Naquela manhã, porém, quando deparou com quatro pares de olhos fixos nele, não conseguiu se libertar da convicção de que aquele caso prometia ser absolutamente original e
à parte de todos os outros que já tivera.
Depois de dar uma baforada em seu cachimbo, perguntou:
- A quem devo me reportar?
- A mim, obviamente - disse Jürgen, com certa rispidez.
- E o senhor é…?
- O marido da vítima.
- Ah! Sim… Deixe-me ver… Não, nesta página não. (Folheia) Não… não… (Folheia) Ah! Aqui está… O senhor é Jürgen Thröllinger. Confere?
- Sim.
- E os demais?
- Este é meu enteado; a irmã dele; e, bem ali, o nosso cozinheiro.
Maurrice Lafrance relanceou os olhos ao redor. Dos três jovens, a moça de pele alva e nariz reto é quem mais tremia; parecia prestes a desmoronar.
- Ela se foi - gemeu Julie. Tais palavras foram pronunciadas em voz baixa, quase aos sussurros, mas com um caráter tão definitivo que dava para ouvi-las distintamente. - Mamãe
se foi e… ah, meu Deus!
O rapaz, com a boca aberta e parecendo igualmente agitado, embora fizesse um grande esforço para esconder a emoção, ofegava como um condenado. Não chorava, mas a sua voz era
lacrimosa. Dava batidinhas na mão da irmã, enquanto dizia: - Shhh, Julie! Shhh…
Terminadas as apresentações, Lafrance abordou logo o assunto que lhe interessava.
- Bem, como devem saber, temos muita coisa a fazer esta manhã. Muita coisa. Assim sendo, se puderem nos dar licença, prefiro falar com Herr Thröllinger a sós.
Todos olharam para o oficial. Finalmente Julie tomou a iniciativa - levantou-se e, engolindo as lágrimas que queimavam seus olhos e faziam sua garganta arder, rumou para o
quarto. Rolf seguiu atrás dela. Dirk, por sua vez, saiu pela porta da frente.
O oficial Maurrice Lafrance era um agente atípico.
Durante algum tempo, os seus olhos rolaram nas órbitas como bolas de gude. Por vezes se fechavam, outras vezes se fixavam em Jürgen com uma expressão determinada.
- Muito bem, Herr Thröllinger. Compreendo que esteja passando por um momento de instabilidade emocional e gostaria que acreditasse que não o importunaria agora, a menos que
fosse absolutamente necessário. Suponho - testou Lafrance, sondando o terreno - que tenha sido um choque o que houve com a sua mulher.
- Mais do que um choque. Foi um horror - disse Jürgen, gravemente. - Molly é só um número para o senhor. Um número. Mas era minha mulher. Minha mulher. E não é a primeira
vez que acontece uma coisa dessas. Deve saber que, além deste, houve outros crimes - continuou Jürgen.
- É, ouvi dizer - respondeu Lafrance. - Eu não estava aqui na época em que aconteceram esses tais crimes, nem durante o inquérito que se seguiu. Isso significa que sei muito
pouco sobre eles. A única coisa que posso fazer, portanto, é trabalhar com hipóteses.
- A propósito do que quer falar comigo?
- Olha, eu não quero me prolongar, por isso vou falar logo. Acho que é um jeito bastante impertinente de abordar o tema, mas há uma pergunta que gostaria de fazer. Para ser
exato, sobre o que o senhor fez a partir das três horas, ontem à tarde.
- Três horas? - perguntou Jürgen, parecendo entrar em coma. - Deixe-me ver. Lembro-me que estava entediado e fui dar uma volta. Não… isso foi antes. Definitivamente, foi antes.
- Compreendo… Não precisa dizer mais nada! Tinha visto sua mulher durante a tarde?
- Não, não a tinha visto desde o almoço. Eu sei que, às três e meia, Molly desceu a escada, vestida para sair. Perguntei-lhe aonde ia, mas ela não disse.
- Não disse?
- Exatamente, não disse. Molly não era de dar muitas satisfações.
- Nem ao senhor?
- Muito menos a mim.
- Deve compreender, Herr Thröllinger, como estou ansioso em determinar o estado de espírito de sua esposa imediatamente antes de sua morte. Como a viu pouco antes da ocorrência,
estou particularmente interessado em saber como foi o comportamento dela. Estava preocupada, ansiosa ou qualquer coisa assim?
- Pode estar certo de que farei tudo o que estiver ao meu alcance para ajudar - respondeu Jürgen - Mas, infelizmente, isso eu não posso lhe dizer.
- O que significa que não me vai dizer, ou que não sabe?
A voz de Jürgen transformou-se num rosnar mal-humorado.
- Francamente falando, eu não notei nada de anormal. Eu sei que, dois dias atrás, Molly estava me dizendo o quanto estava feliz e como sentia que, enfim, conseguiria se estabilizar
e viver uma vida doméstica normal, só nossa, agora que, finalmente, tinha conseguido deixar o passado para trás.
- Que passado?
- Aquela coisa do assassinato da governanta… Havia uma calma e uma tranquilidade nela que eu jamais havia visto. Até que aconteceu isso!
Ele olhou diretamente para Maurrice.
- Mas não percebo o que isso tem a ver com o caso. Sua investigação é sobre o assassino ou sobre a vítima?
- É cedo para determinar - disse o oficial Lafrance. - Conhecerei o assassino quando conhecer bem a vítima. Vim buscar todas as informações que julgo indispensáveis para a
descoberta do culpado. Por outro lado, é meio… como é a palavra?… desnorteador; alguém tem a coragem de agir tão deliberada e abertamente em plena luz do dia, e ninguém perceber
nada?!
- Vistas assim, as coisas parecem mesmo muito desfavoráveis! - retrucou Jürgen.
- Vamos ser sinceros, Herr Thröllinger. Se o senhor quer mesmo que a verdade venha a público, é necessário que mostre total transparência. Responda-me só uma coisa. Por que
se casou com uma mulher, que, pelo que sei, tinha praticamente o dobro de sua idade?
Jürgen demorou um segundo antes de responder:
- Houve uma época em que eu tinha uma vida boa, sabe. Muitos amigos e as garotas gostavam de mim. Algumas iam ao escritório só porque eu estava de plantão. Era eu quem ia
buscar um cappuccino e brincava com elas. Fazia com que elas se divertissem. Era uma função agradável e que, de fato, me entretinha. Então tudo acabou! Mamãe conheceu e casou
com aquele canalha! Virei um ninguém! Um intrometido. Um grande idiota intrometido!
- E depois?
- Nada. Ela me chamou de filho ingrato.
- Teve muito ódio dela?
- E por que não teria? Ela fez a pior coisa que uma mãe pode fazer para o filho: mimá-lo, cercá-lo de carinho e devoção e depois descartá-lo como se fosse um verme. Tornei-me
uma pessoa amarga, rancorosa; aos poucos, todos se afastaram de mim. Os parentes, os amigos, as garotas, todos. Foi como se eu tivesse me tornado um criminoso, ou sabe-se
lá o quê. Sem nem uma única pessoa com quem eu pudesse contar em busca de apoio. Aí, quando eu estava só, totalmente só, Molly apareceu. Se preocupando comigo, fazendo-me
sentir que eu era capaz, garantindo-me que eu era capaz, repetindo-me a mesma coisa milhares de vezes, encorajando-me o tempo inteiro, até obter o efeito desejado. Eu a quis
desde o primeiro momento que a vi. Ela era uma criatura de coração mole, com um ar tão juvenil, mesmo para sua idade. E Molly queria um homem a seu lado, um homem que, após
a morte do primeiro marido, tivesse o direito legal de protegê-la. Como vê, eu cumpri o meu papel e preenchi muito bem a lacuna.
Jürgen olhou para Maurrice, soltou uma gargalhada e disse:
- Com quem eu poderia contar? Nem com a minha própria mãe, que, intencionalmente ou não, fez parte do contexto que produziu minha saída de casa. A vida é mesmo imprevisível.
Chutado fora um dia, padrasto e dono de uma casa no outro. E agora viúvo. No espaço de um ano, me converti de enteado sofredor a esteio de uma família. Um dia o desespero,
daí a benção de ser acolhido por Molly, que me manteve por perto quando rompi o elo com minha mãe. Extraordinário, não é?… Eu, um homem que passou a infância sem dispor de
um centavo para os menores prazeres, finalmente rico. Que acha disso, oficial?
Maurrice Lafrance deu de ombros.
- Como o senhor disse, a vida é imprevisível. Gostaria de lhe fazer uma pergunta - falou. - Sua mulher devia saber que, ao casar-se com ela, seria banido por sua família.
- O mal de Molly é que ela era meio ingênua. Era muita ingênua, para sermos francos. Até demais. Ela nunca teria acreditado, mesmo se lhe dissessem, que alguém fosse querer
acabar com ela. Uma coisa dessas jamais passaria pela cabeça dela.
- Pode ser que tenha razão - falou Maurrice devagar -, mas isso agora nos deixa com outra pergunta. De quem o senhor suspeita?
- Não sei. Já pensei nisso, e muito, espremi os neurônios, como se diz, mas não há nada, absolutamente nada que me leve a suspeitar de alguém específico. Parece tão impossível
para mim que alguém tivesse tanto ódio… tanto rancor contra ela… para fazer uma coisa dessas.
- Inimigos?
- Nenhum inimigo! Um perrengue aqui, outro ali, mas nada que fosse causar uma indisposição permanente. Disso tenho certeza. Eu lhe garanto - declarou Jürgen Thröllinger -
que estou completa e absolutamente zonzo. Isso tudo é fantástico. Sei que soa inacreditável para o senhor, oficial - falou –, mas honestamente não tenho qualquer opinião sobre
esse assunto.
- E o senhor não tem nenhuma confidência a fazer, nada que possa me ajudar de alguma forma? Nenhuma sugestão de quem poderia ter cometido o crime?
- Insisto que ninguém iria querer matar Molly.
- Bem, agradeço a sua contribuição, Herr Thröllinger. Gostaria que o senhor permanecesse por perto caso eu precise chamá-lo outra vez.
- Certamente - respondeu Jürgen, enquanto se levantava. - Espero que o meu nome não seja jogado à voracidade dos jornalistas, oficial! Talvez saiba que tenho um tio que é
membro do Conselho Nacional. Ele tem muita influência nos meios governamentais e, como o senhor é funcionário…
- Tentarei me lembrar disso, Herr Thröllinger.
- Posso ser útil em mais alguma coisa?
- Sim. Talvez possa ver se sua enteada já está em condições de ser interrogada. Se estiver, diga-lhe que venha para cá.
- Julie me detesta, sabe? Ela me trata muito bem, mas me detesta. O senhor não pode deixar essa visita para outro dia? Ela pode estar muito abatida…
- Ela é livre para não responder. No entanto - disse Lafrance - devo lhe alertar que preciso falar com ela hoje. Perdoe minha insistência.
Capítulo 12
A PORTA SE ABRIU E JULIE SÜSSENBACH entrou. Lafrance virou-se para ela. Esticou o braço, chamando-a. Ela deixou que ele a conduzisse até uma cadeira.
Julie tinha a boca entreaberta. Estava tão abalada que mal se sustinha nas pernas. Lágrimas isoladas e dispersas umedeciam os seus olhos azuis muito grandes, mas a desfiguração
momentânea não era suficiente para estragar a beleza de seu rosto levemente ruborizado.
- Sente-se, Fräulein - disse o oficial amavelmente. - Tenho que fazer algumas perguntas, mas temo que a senhorita esteja abatida demais para respondê-las.
- Não, tudo bem. Por favor, aceite minhas desculpas. Foi o choque mais terrível que tive na vida; mal posso acreditar que seja verdade. Mas eu aguento… Eu sempre aguentei.
Bem, oficial, o que deseja saber?
Ele olhou para ela por alguns segundos, como se estivesse tentando decidir se deveria avançar ou não. Então disse: - Tentarei ser o mais breve possível. Quantos anos têm?
- Dezenove.
- Agora, Fräulein, pode me dizer quando viu sua mãe pela última vez ontem à tarde?
- Eu estava na sala dos fundos, trocando as cortinas. A porta do hall estava aberta e eu vi quando mamãe desceu as escadas, cruzou-o e dirigiu-se para a porta.
- Sim, sim, compreendo. E como ela estava vestida?
- Saia verde… cinto de couro… uma bolsa… - disse Julie, e acrescentou com desânimo: - Não é muito, não é?
- A que horas foi isso?
- Pouco depois das três. Talvez umas três e vinte.
- E foi a última vez que a senhorita a viu?
- Foi.
- Ela parecia aborrecida ou perturbada?
- Não sei. Ela estava muito longe para eu poder ver seu rosto. Pude apenas notar seu vulto, nada mais. Se o senhor me perguntasse se a maneira de andar sugeria excitação ou
preocupação, minha resposta seria não.
- Ela saiu sozinha?
- Sim.
- Seu padrasto chegou a trocar alguma palavra com ela?
- Acho que ele perguntou alguma coisa sobre onde ela estava querendo ir.
- Qual foi a resposta?
- Acho que não houve resposta. Ouso dizer que ele já deve ter falado sobre isso.
- Quis ouvir de novo da senhorita - respondeu Lafrance com candura. - O seu relato é bastante claro, o que é bom, e a senhorita parece segura dos fatos. Vamos abordar outro
ângulo da questão. A que horas ficou sabendo da morte dela?
- Foi exatamente às cinco e vinte e cinco.
- Fräulein, agora quero perguntar algo mais direto. Espero que se permita ser franca, caso saiba de alguma coisa. Quem poderia querer prejudicar a sua mãe? Soa meio brusco
quando colocado deste jeito, mas a senhorita acha que ela tinha algum inimigo? A senhorita sabe de alguém que poderia ter motivos para matar a sua mãe?
As bochechas de Julie ficaram um pouco mais rosadas. O tom, de repente, tornou-se amargurado.
- Não posso lhe dizer.
- Desculpe-me, Fräulein, está dizendo que não pode ou que não quer?
- Eu… eu não sei de ninguém. Mamãe nunca fazia nada sem antes pesar as consequências. Ela transmitia força e magnetismo; era dona de si mesma. Realmente, eu não poderia dizer
nada a esse respeito.
- Se tiver a menor suspeita sobre qualquer pessoa, fale para mim agora.
- Mas não tenho - a voz dela elevou-se num guincho. - Precisa acreditar em mim.
- Está com medo de que alguém possa feri-la, ou machucá-la, se falar? - perguntou Lafrance. - Essa pessoa, quem quer que seja, pode ser um pouco desequilibrada mentalmente.
- Não estou com medo de ninguém. Eu simplesmente não sei.
- A sua mãe ultimamente vinha tendo contato com uma pessoa, ou pessoas, de fora?
- Não… acho que não. Bom… - ela lhe lançou um olhar de viés e com um esboço de insegurança. - Não, não! Devo estar enganada.
Julie engasgou.
Maurrice Lafrance não soube o porquê, mas, de todo modo, ela engasgou.
- Como disse?
Julie ficou ruborizada ao perceber, com horror, que cometera uma gafe.
- Ah, por favor, desculpe-me. Eu não queria dizer nada disso. Estou imaginando coisas - murmurou baixinho. - Fantasias idiotas!
- Não, não - respondeu Maurrice Lafrance, parecendo muito interessado. - Continue, por favor.
- É que… - Ela pigarreou. - Havia um homem…
- Que homem?
- Oh! Isso foi há uma semana. Ouvi um barulho… estalos! Acendi a luz do abajur, e olhei para o relógio. Era quase meia-noite. Sentei-me na cama… Fui até o alto da escada e
ouvi… Era a voz de mamãe. Ela estava dizendo: “Se eu perder você, vou lamentar pelo resto da vida.” Oh! - exclamou Julie. - Bem… e… - balbuciou a seguir, para ganhar tempo.
- E?
- Eu desci alguns degraus… para ver quem estava com ela. Não sabia se devia acender a luz. Então eu vi…
- Viu quem?
- Ele!
- Quem?
- Não sei. Eu não o reconheci! As luzes estavam apagadas. Oh! Foi horrível!
- Por quê? O que eles estavam fazendo?
- O que eles estavam fazendo? - Julie olhou para Maurrice Lafrance sem entender. Estava espantada com a pergunta. - Se abraçando… se beijando! É isso o que eles estavam fazendo.
- Tem certeza? A senhorita pode ter se enganado. Veja bem, não estou dizendo que se enganou, mas há uma possibilidade.
- Eu vi, estou lhe dizendo que vi! O senhor precisa acreditar em mim - Julie enxugou os olhos com um pequeno quadrado de linho branco. - Precisa… acreditar… em mim…
Depois, levantando-se bruscamente, como se a poltrona estivesse em chamas, abriu a janela.
Os pensamentos se engalfinhavam na cabeça de Lafrance.
- Sua mãe estava… há-a… beijando um homem…
- Sim.
- Quem era ele? Você pode descrevê-lo?
- Alto… forte… um piercing na orelha…
- Piercing na orelha?
- Ora, oficial! Como o senhor quer que eu saiba? Eu só o vi à meia-luz, já disse.
- Perdão… Eu esqueci.
- O senhor já viu muitos assassinatos, não viu?
Lafrance olhou-a como se estivesse surpreendido com a pergunta à queima-roupa. Pestanejou e moveu afirmativamente a cabeça.
- Uns trinta ou quarenta - respondeu, sem a menor modéstia.
- Já prendeu muitos assassinos?
- Mais ou menos.
- Algum maníaco sexual? - perguntou Julie, temerosa.
- Certamente que sim.
- Eu não gosto de maníacos sexuais - disse Julie, cabisbaixa. - De vê-los nos filmes, quero dizer. Parecem todos loucos… ou drogados.
- Provavelmente.
- Eu não gostaria de deparar com um deles. - Julie hesitou, sentindo-se subitamente constrangida. - É isso. Já contei tudo e não tenho mais nada a acrescentar. Agora, se o
senhor me der licença, posso me retirar?
- À vontade, Fräulein.
A moça saiu. O oficial apanhou a sua agenda e escreveu algumas linhas furiosamente.
Ele se pôs de pé e, atravessando a sala até a lareira, apanhou o atiçador de fogo. Remexeu a lenha por alguns minutos; depois, ainda pensativo, tocou a sineta.
- É a vez de ouvir o hippie.
II
MAURRICE LAFRANCE INCLINOU-SE para trás na cadeira e aspirou vagarosamente o cachimbo. De vez em quando, erguia os olhos e meneava a cabeça, observando o rapaz à sua frente
com atenção. Mas não era apenas astúcia que se podia ler naquele olhar; havia também uma pitada de desdém.
- Estou ciente, meu jovem, de como tudo isso deve ser penoso para você. Deve compreender que, à vista do que ocorreu, sou obrigado a interrogar todos os familiares. Tenho
algumas perguntas essenciais para fazer e não ficaria tranquilo enquanto não falasse com você.
Rolf não respondeu, indicando claramente que não nutria a menor simpatia pelo oficial. Olhou pela janela por um breve instante, como se precisasse de uma pequena pausa antes
de se recompor.
- Francamente, o senhor não precisa se justificar - retrucou Rolf. - Pode dizer logo de uma vez o que está querendo. Eu não ligo. Tem ideia de como passei minha infância?
Como um animal encurralado. Meu maior passatempo era atear fogo na cauda dos passarinhos e soltá-los, ver como voavam. Aí, quando eu tinha dezenove anos, meu pai morreu. Depois
meu cachorro fugiu. Por fim, me conformei com o fato de que nada disso fazia diferença.
As sobrancelhas de Lafrance ergueram-se ligeiramente.
- Bem, então vamos lá. Sabe se havia alguma discussão ou atrito entre a sua mãe e seu padrasto?
- Atrito? E por que haveria algum atrito?
- Acha que eles eram fiéis um ao outro?
- É claro que eram fiéis. Eles formavam um casal de primeira linha.
- Mas a natureza humana sendo como é - murmurou Lafrance sugestivamente. - Todas as relações são marcadas por fases boas e ruins. Apesar de alguns casais conseguirem superar
as fases negativas, outros nem sempre conseguem ultrapassá-las e a traição é uma das consequências. Alguma vez teve a impressão de que sua mãe estivesse tendo um caso amoroso,
ou um relacionamento com algum homem?
- Um caso? É claro que não! O que acha que ela era? Uma prostituta?
- Lembra-se de alguém que tenha se desentendido com ela recentemente, ou contra quem ela nutrisse alguma animosidade?
Rolf não refutou a pergunta. Em vez disso, franziu a testa.
- Não - disse secamente.
- Nenhuma mulher? Uma mulher que tivesse algum tipo de ressentimento contra a sua mãe?
- Não que eu me lembre.
- E quanto a você? Dava-se bem com ela?
- Lógico! - disse Rolf, com uma ferocidade não premeditada. - Quando eu era pequeno, foi ela que cuidou para que os gatos não me arranhassem, acordava no meio da noite e vinha
me cobrir, levava e trazia brinquedos, brincava comigo e cuidava de mim se estivesse doente. Eu a amava.
- O que você acha de seu padrasto?
- Arrogante demais para o meu gosto - disse Rolf. - É um sujeito que se acha. A sua única motivação é a necessidade de ter sucesso. E exibi-lo. “Eu sou isso, eu sou aquilo,
veja o que eu tenho. Veja onde moro. Veja minha casa. Meu carro.” Ele não dá a mínima para ninguém. Não gosto de gente assim.
- Sabia que ele já foi preso por lesão corporal?
- Não. Não sabia.
- Seja o que for que esteja pensando, fale, por favor.
Rolf começou a gaguejar.
- Não posso. Não posso me envolver nisso.
Maurrice Lafrance se surpreendeu com essa súbita efusão sentimental.
- Não há nada com que se envolver. Só quero saber o que aconteceu com sua mãe.
- Não sei o que aconteceu com ela.
- A começar pelo seguinte: Como acha que sua mãe foi parar naquela ponte?
- Deve ter ido à mercearia. Eu a vi lendo uns papéis logo após o almoço. Sei que ela lia com impaciência e andava a passos curtos, interrompidos, levantava e baixava a cabeça,
pegava um objeto num lugar para colocá-lo em outro, sem razão aparente. Depois ela foi até a lareira e jogou tudo às chamas. “Contas, mamãe?” perguntei. Vi que ela estremeceu.
“Oh! São só papéis” disse. “Devia ter me desfeito deles há mais tempo.” Não eram contas, oficial! Eram papéis grandes, com outra textura, outra cor. No verso estavam desenhadas
cifras de música, ou algo semelhante.
- Meu jovem - disse Lafrance severamente. - Com os meus conhecimentos sobre a psicologia das testemunhas, sei que indicações assim não têm muito valor. Tem de decidir a quem
vai ser leal. A ela ou a mim.
Rolf se contraiu um pouco, mas Maurrice Lafrance prosseguiu, inexorável: - Acha que ela tinha ido se encontrar com alguém?
- Eu-não-sei!
- Escute - Lafrance adotou um tom gentilmente paternal. - Eu quero descobrir o que houve com ela. Você também quer descobrir o que houve com ela. Estamos no mesmo barco, vê?
Que tal tocá-lo para frente em vez de tentar nos afundar mutuamente? Houve outros crimes além deste, meu rapaz. Acha que eles possam ter relação entre si?
- Então, não é apenas por causa de mamãe que o senhor quer algumas respostas?
- Não, suponho que não - respondeu Maurrice Lafrance. - Não havia nada que você pudesse considerar pouco comum?
- Acho que mamãe andava estressada com alguma coisa.
- Estressada e ansiosa?
- Não diria ansiosa. Mas estressada, sim.
- Você teria alguma ideia sobre a causa de seu estresse?
- Não, nenhuma.
- Algo a ver com alguma pessoa ou algum acontecimento recente?
- Não saberia lhe dizer. Mas ela começou a mostrar tais sinais depois da morte brutal de Frau Dargnell.
- É mesmo?
- Frau Dargnell, como o senhor sabe, trabalhou muito tempo para nossa família. Tínhamos verdadeira afeição por ela. E uma bela manhã, só para mostrar que era o bonzão, alguém
resolveu se divertir atirando nela.
Maurrice Lafrance falou de novo.
- Você se surpreendeu com o assassinato?
- Muito. Foi algo terrível para todos nós. Nunca supusemos algo assim pudesse acontecer.
Lafrance concordou. Estreitou os olhos, como se estivesse evocando o passado, e lançou-lhe um olhar penetrante.
- Não há mais nada que você queira me contar… por exemplo, nada que tenha acontecido nos últimos dias?
- Estou lhe dizendo que não sei de nada - as palavras soaram quase como um latido.
- Nós precisamos nos apressar, meu rapaz. É óbvio que você sabe de alguma coisa. Tente se lembrar! Vamos, tente…
Rolf olhou Lafrance com uma expressão vazia.
- Será que precisamos discutir esse assunto agora? - perguntou ele numa voz queixosa. - Estou cansado… Muito cansado.
- Se tiver algo a dizer, diga.
Rolf levantou-se sacudindo a cabeça.
- Não tenho nada a dizer. Nada, senhor, nada mesmo.
“Está mentindo” avaliou Lafrance, fazendo uma pausa retórica; a seguir, passou a falar com mais intensidade na voz.
- Tenho a sensação de que você sabe de algo, mas não quer me dizer. Você tem que falar… para o seu próprio bem. Está andando sobre uma linha ética muito delicada, meu jovem.
Não me faça lembrá-lo disto uma segunda vez. Se há algo que eu deva saber, espero ouvir sobre isso antes do fim do dia - e, agradecendo a Rolf, dispensou-o.
Capítulo 13
DIRK ZANZAVA PELO PÁTIO. Sobre ele, a folhagem de uma faia, cujo tronco erguia-se majestosamente, fazia dançar manchas de sombra e luz. Folhas castanho-douradas caíam suavemente
de uma árvore.
Foi quando apareceu o oficial Lafrance. Tinha as meias e os sapatos bem cuidados, cabelos arranjados com esmero sob um chapéu de palha branco.
- Olá, Herr Holzbiene.
- Oficial!
- Perambulando por aí?
- Digamos que sim. Como foi com Rolf?
- Aquele lá? É um mentiroso incorrigível. Disse que a mãe, ontem depois do meio-dia, queimou uns papéis na lareira da sala de estar. “Papéis com cifras de música desenhadas
no verso, ou algo semelhante.” Valha-me Deus! Para gente assim, é preferível uma vida de mentiras a uma vida de indiferença e descriminação. Um pouco de reflexão sóbria não
faria mal a ele.
- E Julie? Ela disse alguma coisa?
- Não é boba! Sabendo que pode se incriminar, não deixaria vazar a informação, ainda que soubesse alguma coisa… Uma boa jovem, eu diria, mas está terrivelmente abalada com
essa catástrofe lamentável. Tentei poupar-lhe o máximo de aborrecimentos, mas é claro que a dor não podia deixar de ser considerável.
- O senhor parece estar com pressa de resolver o caso - disse Dirk.
- Pressa? Um pouco. O que me chateia é que há uma plêiade de casos graves de erro judiciário por conta de investigações malfeitas. Não quero incorrer no mesmo erro.
O rosto de Lafrance, com o cachimbo fumegando no canto da boca, revelava inteligência e perspicácia.
- Então foi você quem encontrou o corpo?
Dirk encolheu os ombros, em um gesto de insegurança.
- Sim.
- Poderia dizer como foi?
Dirk fez um breve relato de suas andanças do dia anterior. A dada altura, Maurrice Lafrance o interrompeu: - Como é o nome do homem que visitou?
- Herr Dargnell.
- O que foi fazer lá?
- Tenho folga das duas às cinco da tarde. Costumo sair, vaguear por aí, contemplar a paisagem. Ontem fui em direção leste, e, quando percebi, acabei dando lá.
- Quer dizer - por acaso?
Dirk assustou-se, supondo que o oficial soubesse de algo relativo à sua entrevista da véspera com Herr Dargnell.
- Totalmente por acaso - mentiu Dirk.
Lafrance abriu ligeiramente a boca pronunciando um sugestivo “Não diga!”.
- Era o que eu já estava imaginando. Essa declaração corrobora que os fatos que compilei são substancialmente corretos. Mas me diga… Acha que pode ter sido o marido?
- Eu… não sei. Ele diz ter ficado em casa, não diz?
- Diz ter ficado em casa. Essa é uma frase com mais de uma definição. Vou-lhe ensinar uma coisa, meu jovem. As pessoas mentem por muitas razões. Por piedade, por falsidade
ideológica, por vingança, mas também para ocultar o que são. O comércio ganancioso, a política corrupta e as religiões estão cheios de engano, falsidade, manipulação e fraude.
As pessoas são motivadas pela ganância e pela ambição de subir na vida ou de conseguir riquezas, poder ou posição social que não merecem. Outro fator por trás da mentira é
o medo - medo das consequências ou do que outros possam pensar caso se diga a verdade. É somente natural que as pessoas desejem ser estimadas e aceitas por outros. Esse desejo,
porém, pode levar alguns a distorcer a verdade, ainda que apenas um pouco, para encobrir falhas, esconder detalhes desagradáveis ou simplesmente para causar uma boa impressão.
Uma mentira costuma levar a outra. Thomas Jefferson, um dos primeiros estadistas americanos, declarou: “Não há vício tão vil, tão lamentável, tão desprezível; e aquele que
mente uma vez, achará muito mais fácil fazê-lo uma segunda e uma terceira vez, até que por fim vira um hábito.” Diz ter ficado em casa! Talvez você, como leigo, acredite nisso.
Eu não. A menos que apresente provas confiáveis, a informação concedida por ele não vale uma pataca. Você é muito jovem. Os jovens têm uma mentalidade muito impúbere para
essas coisas.
Dirk quis replicar que absolutamente não tinha uma mente impúbere… não importa o que isso quisesse dizer.
- Bem, e qual será seu próximo passo?
- Confesso que gostaria de dar uma espiada… só para me certificar… na cena do crime. Se quiser me acompanhar…
- Certamente. - Os dois homens começaram a passear vagarosamente. - Alguma evidência física?
- Nenhuma. Não foi feito qualquer movimento de defesa, o que indica que Frau Süssenbach conhecia o assassino.
- Acho - sugeriu Dirk de modo inesperado - que o senhor deve fazer uma visita a Frau Fleissig.
- Frau Fleissig? Quem é ela?
- A mulher do médico que supostamente se suicidou. Ela pode lhe contar algumas coisas muito úteis sobre o que está acontecendo.
- Sobre o que está acontecendo, no geral? Ou só sobre a morte do marido?
- No geral. Mas também sobre a morte do marido.
- Não vejo como. Será impossível apurar o que aconteceu se ninguém assistiu ao chamado suicídio… que, agora sabemos, foi assassinato.
- Fale de outras coisas - estimulou Dirk. - O senhor é um investigador calejado. Improvise. Assuntos não faltam.
- Assuntos tais como?
- O senhor disse, de manhã, que, pelos seus conhecimentos e conclusões, por enquanto, só pode falar em hipóteses. Disse que muitas questões ainda precisam ser esclarecidas.
Não foi?
- Ahn… E daí?
- Daí que, até esse exato instante, nenhum dos outros crimes foi resolvido. Sobre todos eles paira um véu de mistério e incerteza.
- E o que acha que eu deveria fazer?
- O senhor bem que poderia retomar a investigação desde o início. Sem ignorar nada desta vez.
Maurrice Lafrance ficou em silêncio, olhou para Dirk, surpreso, soltou uma gargalhada e disse: - Tolice! Não estou interessado nos outros crimes - blefou. - O que eu quero
é desmascarar essa mistificação de araque… o assassinato de Molly Süssenbach. Nada mais do que isso.
- Mistificação de araque?
- E o que mais seria? Reflita comigo! De acordo com o testemunho do marido, a mulher saiu de casa às três e meia da tarde. Meus agentes confirmaram que ela esteve na vila.
Primeiro no açougue e depois no tabelionato, sendo que deixou este último por volta das 4h45. Qual a distância do tabelionato até a ponte?
- Uns trezentos metros. Dez minutos a pé.
- Ou seja, podemos supor que Frau Süssenbach deva ter chegado à ponte em torno das cinco horas. Mais ou menos o mesmo horário em que você alega tê-la encontrado.
A conversa tomara um rumo inesperado e Dirk imediatamente ficou alerta.
- Não está achando que eu sou o assassino, não é, oficial?
- O que o faz supor isso? - perguntou Maurrice Lafrance.
- A sua maneira de falar… É como se estivesse desconfiado de mim.
- Eu só fiz uma pergunta; não quis incitar uma revolução. Não precisa ser tão fervoroso, Herr Holzbiene.
- Fervoroso? Eu?
- Fervoroso. Guerras já foram iniciadas com muito menos fervor. Estou apenas interessado no que alega ter visto.
- Pois eu vou lhe dizer uma coisa, Herr Oberster: eu cheguei à ponte umas 5h10. E reafirmo que, nessa hora, ela já estava morta.
Maurrice Lafrance fez uma pausa antes de perguntar: - Você tem certeza que a mulher estava morta naquela hora?
- Ela estava morta, sim, tenho certeza. Os olhos haviam saltado das órbitas… ora, eu prefiro não falar sobre isso!
- Eu não tenho a mínima dúvida de que você tenha mesmo visto o que me disse ter visto. De qualquer maneira, preciso pesquisar.
- O senhor não está pensando que eu inventei ou bolei esta história, está?
- Oh! É só um detalhe - disse Lafrance com desdém. - Um mero detalhe. O fato de vocês terem estado ao mesmo tempo no mesmo local mostra que você pode ter visto mais do que
admite ter visto.
- Sim, eu sou mesmo o assassino!
- Sobre este ponto ainda tenho dúvidas. Entretanto, o tiro foi aparentemente a causa da morte. Tiro este que pode ter sido disparado por você.
- Mas… que… absurdo! Por que eu mataria minha patroa? Ela era uma mulher maravilhosa e admirável em todos os aspectos. Não havia nela mesquinhez alguma, nem inveja, e era
quase inacreditavelmente generosa.
- Confesso que não posso dar uma explicação coerente… ainda. Via de regra, a maioria dos motivos vai surgindo ao longo do curso da investigação. O assassino deveria estar
a par do itinerário dela ou ele pode ter encontrado com ela por acaso. Mas, se foi por acaso, por que estaria armado? Normalmente as pessoas não saem por aí carregando um
revólver. Não nesta vila microscópica! Não, um encontro casual não se ajusta ao esquema geral. Está mais do que claro que o crime foi proposital. Não fique tão encolerizado
- disse Lafrance. - Pois bem, não vou mais acusá-lo, já que isso o aborrece.
- Aborrece, e muito.
- Santo Deus, meu rapaz! Estou fazendo apenas suposições. Suposições, nada mais. Nada com que deva se preocupar. Bem, aqui estamos. Se houver alguma probabilidade de encontrar
alguma coisa, este é o lugar.
A circulação fora bloqueada porque os policiais do condado tinham esquadrinhado o terreno. A investigação, que ocupara toda a manhã, fora meticulosa e milimétrica, mas não
conduzira a lugar nenhum.
Os dois passaram por baixo da fita amarela que delimitava a área e, à medida que se aproximavam do cenário do crime, Dirk pôde observar que o oficial, por trás das espirais
de fumaça do cachimbo, começava a ficar profundamente agitado.
Metodicamente, Maurrice Lafrance atacou o seu plano de campanha, levando em conta a chuva que havia caído na tarde anterior, um dado retardador, já que, por sua causa, a maioria
dos vestígios relacionados à presença do assassino devia ter sumido permanentemente. Quanto a pegadas, era inútil procurá-las nas ervas secas, assim como nos lugares onde
o solo era muito pedregoso.
- Sabe - tornou Lafrance, que não tinha inclinação para o trabalho em campo e sentia prazer em associar-se a alguém com mais vigor físico do que o seu. - Esses crimes foram
planejados sim. Mas não de forma muito inteligente e muito cuidadosa. Não. Acho que, pelo que dá para perceber, o assassino agiu mais por impulso, como se quisesse, de algum
modo, dar o quanto antes um fim em suas vítimas.
- O senhor está querendo insinuar que os crimes não foram premeditados?
- A princípio eu não pensei assim - disse Maurrice Lafrance. - Poderia lhe disser que era uma mera suspeita da minha parte, sem nenhuma prova que sustentasse a hipótese. Normalmente
ninguém iria supor uma coisa dessas. Não estou dizendo que não tenham sido premeditados. O que estou dizendo é que talvez não tenham sido premeditados com tanta antecedência
quanto supúnhamos de início. Entende o que quero dizer?
Lafrance parou na entrada da ponte e apontou para o lugar onde os primeiros investigadores haviam desenhado a giz o contorno do corpo de Frau Süssenbach. À exceção dos restos
mortais, que tinham sido removidos, tudo estava exatamente como Dirk se lembrava. A polícia tinha anotado e fotografado tudo o que havia ali.
- Era aqui que estava o corpo?
- Sim.
- Em que posição a encontrou?
- De bruços.
- Algum vestígio de luta?
- Não.
- Pegadas?
- Oficial! Eu não reparei.
Depois de algum tempo pulando para lá e para cá, Lafrance sugeriu que fossem até a Sinclair & McFadden, que era uma combinação de loja e açougue.
Lá, perguntou a um homem de sessenta anos, atrás do balcão, se Molly Süssenbach havia estado ali no dia anterior. Diante da resposta afirmativa, Lafrance agradeceu e os dois
foram para Pettson, Pettson & Heydi-Joy, Tabelião e Juiz de Paz. Toalhinhas de crochê e bibelôs de porcelana se espalhavam pelos consoles e estantes. Atrás da mesa de recepção,
um par de olhos se ergueu para eles. Os olhos pertenciam a uma figura feminina solitária, quieta, com maçãs do rosto tão rosadas que, a julgar pela aparência, pareciam prontas
para serem colhidas.
Se Frau Süssenbach tinha estado ali na véspera? Sim, sim. A que horas saíra? Cerca de umas quinze para as cinco. Não, ela não tinha nenhuma ideia de quem pudesse tê-la assassinado.
Sentia muito, mas não sabia de nada.
Os dois voltaram a cruzar a ponte, e Lafrance recostou-se contra a borda da amurada. Ele permaneceu mergulhado num silêncio tão inexpressivo que Dirk começou a se impacientar.
- E aí? Alguma ideia?
- Receio que não - disse Lafrance, com pouca convicção. - As circunstâncias, por enquanto, não estão muito claras. Mesmo assim gostei de ver com meus próprios olhos o local
do crime.
Dirk observou-o. Não conseguia se livrar da sensação de estar esquecendo alguma coisa. Estava quase lá, nas fronteiras de sua memória.
- Creio que preciso lhe contar uma coisa, oficial. Uma coisa que Frau Dargnell falou para mim.
Lafrance olhou para ele.
- Ela era uma das mulheres que estava ajudando lá na festa - explicou Dirk. - No dia do bazar.
- O que foi que ela disse?
- Talvez seja um pouco difícil de explicar - Dirk se deteve. - Bom. Eu a encontrei há algumas semanas em Viena. Ela me contou que aqui, em Heldenstatt, haviam acontecido dois
crimes. Chegou a citar inclusive o nome das vítimas, e tudo o mais, conforme manda o figurino.
Dirk fez outra pausa, como que esperando, de certo modo, algum comentário de Maurrice, mas este se limitou a acenar com a cabeça e continuou a tragar o cachimbo.
- Ela fez isso, foi?
- Sim.
- Não está romanceando ou imaginando coisas? Se estiver, isso pode levar a muitas complicações.
- Posso lhe garantir que não.
- Mas acha que ela falou sério?
- Falou sério, claro. No começo, fiquei pensando que, talvez, estivesse só me enrolando e que houvesse algum motivo para ter me contado aquilo. Não posso afirmar que ela soubesse,
naquele dia, quem era o assassino. Talvez não. Provavelmente o senhor vai saber isso melhor do que eu. Tudo o que estou dizendo é que Frau Dargnell me contou aquilo e, qual
não foi minha surpresa quando, semanas mais tarde, li que ela também estava morta.
Lafrance esfregou as mãos uma na outra, eufórico: - Agradeço muito por ter me contado isso. Se o que ela lhe disse tiver fundamento, isso pode indicar, não é mesmo, que, sem
querer, ela pode ter pintado um alvo nela mesmo. Você concordaria que foi esse o caso?
- Esse é o ponto - disse Dirk. - Acredito exatamente nessa possibilidade.
- E por que ela não foi falar com a polícia sobre isso?
- Sem essa, ela não tinha a informação completa - observou Dirk. - Não chegou a pensar que de fato soubesse quem era o assassino, entende? A única coisa que ela disse foi
que ele muito provavelmente tinha um ‘jeito especial de andar’. Enfim, acho que ela queria amadurecer a ideia.
- Que tal se eu lhe propuser uma coisa? Uma coisa que quero que faça por mim. Você não é detetive, mas, pelo que vi, é esperto. Muito esperto. Permita-me colocar isto de forma
direta: eu quero o seu auxílio.
- Para quê? Que quer que eu faça?
- Direi exatamente o que você deve fazer… desde que, claro, obedeça às minhas ordens.
- Obedecer às suas ordens? - Dirk olhou para Maurrice com ar perplexo. - É um pedido bastante ousado para se fazer a um civil.
- Quer dizer que se nega?
- Não foi o que eu quis dizer.
- Deve haver gente que sabe o que aconteceu e que talvez esteja disposta a abrir o baú.
- Espere aí! - disse Dirk. - Desculpe, não sou muito bom em adivinhações. O senhor não está sugerindo… ou querendo me recrutar, está?
- Justamente isso.
- Não tenho nenhuma especialidade nisso. O que eu fiz até aqui foi completamente amador.
- E daí? Você não precisa fazer nada heroico. Não, você só precisa continuar perguntando para um, perguntando para outro e ouvindo o que se diz por aí. Cada avanço é válido.
- Devo interrogar mais alguém? Devo ir a algum lugar?
- Acho que existem pessoas que sabem o que aconteceu e por que aconteceu. Você é um jovem vigoroso, a julgar pela aparência.
- Acho que sou bastante forte.
- E decidido?
- Creio que sim.
- Muito bem.
- Faço votos de que não me arrependa disso.
- Não vai - disse Lafrance, batendo jovialmente em seu ombro. - Não vai, eu garanto. Seu trabalho será ficar de olhos e ouvidos bem abertos a fim de me manter informado.
- Informado do quê?
- De qualquer coisa que vir ou escutar. Tenho que ver o quadro completo. Para isso, é necessário aumentar o ângulo de visão. Você pode ajudar nisso. Posso lhe pagar. Posso
lhe pagar muito bem.
Lafrance extraiu a carteira do bolso, abriu-a e tirou algumas cédulas. Entregou o dinheiro a Dirk.
- Aqui está seu pagamento, adiantado. Aceita? Se quiser, terá seu mérito reconhecido se solucionarmos o caso. Quinze minutos de glória é melhor do que o anonimato eterno,
que tal? - disse Lafrance. Ao fim do que, perguntou: - E então, posso contar com a sua colaboração?
Os olhos dele encontraram os de Dirk. Dirk analisou a oferta cuidadosamente, franzindo a testa e alisando o queixo, como sempre se tivesse que decidir o destino da Via Láctea.
Faria o papel de assistente da polícia, e às favas com o resto! Era um desafio, mas ele sabia que se mostraria à altura.
- Bom… - Fez um leve aceno com a cabeça e disse: - Se eu puder fazer alguma coisa para aliviar o seu fardo… Negócio fechado.
- Fantástico! Fantástico! Para começar, há uma coisa que gostaria que fizesse. Gostaria que anotasse para mim, com a maior precisão possível, o nome de cada pessoa com quem
conversou, quais foram suas alegações, onde diz ter estado na hora de cada crime, e por aí vai. Em resumo, anote a essência do que apurou. Recapitule os fatos do modo como
os vê. Isso vai ser de inestimável ajuda para mim.
Dirk achou graça. Se dissesse que era exatamente aquilo que vinha fazendo durante todos esses dias?
- Farei o meu melhor - disse com a máxima seriedade.
Capítulo 14
APÓS AS CERIMÔNIAS FÚNEBRES, Jürgen teve que ficar na vila, a fim de cumprir certas formalidades relativas ao atestado de óbito da esposa.
À noite, tirada a mesa, foi servido o chá. Após o chá, com a porta fechada, ficaram todos aconchegados junto ao fogo. À exceção de Julie, que ficou sentada a uma certa distância.
Rolf jogava paciência em seu smartphone, e Jürgen revisava a soma total de seus débitos automáticos. Dirk achou que a cortesia o obrigava a dizer alguma coisa. Mas não demorou
a sentir que fora um erro, pois Jürgen olhou-o de maneira bastante significativa, de modo que Dirk se calou.
Julie lançou-lhe um olhar e ficou imóvel em uma espécie de abstração mal-humorada, sem dizer nada. Rolf também manteve silêncio. De vez em quando, bocejava.
- Vou para a cama - anunciou Julie. - Estou com muito sono.
Jürgen olhou para ela, sem se mexer, de olhos brilhantes. Sua grossa mão não se levantou. Jürgen sugeriu que já era hora de todos irem dormir.
De volta ao seu quarto, Dirk abriu o laptop e, correndo o dedo pela lista de contatos, clicou no nome de Rachelle. A conexão se estabeleceu. Depois de alguns segundos de espera,
subitamente a tela tremeluziu e, à luz de um pequeno abajur, surgiu uma imagem.
- Oi, Rachelle.
- Olá.
- Você está encantadora!
- Me esforcei um pouco. E aí? Como foi o seu dia?
- Longo.
- O que foi? Você está bem?
- É difícil ser um detetive - disse Dirk. - Não fui treinado para isso. Qualquer ilusão pessoal que eu tenha tido ficou para trás.
Rachelle percebeu que Dirk tinha um ar de extremo desamparo. Ela ergueu a cabeça para que seus olhares se cruzassem.
- Que cara é essa? Está parecendo um cãozinho resgatado de uma poça de lama.
- Pudera! Minha patroa acaba de ser assassinada e, sem querer, virei o depoente-mor do departamento de polícia do condado. Fazer a coisa certa nem sempre nos ajuda a angariar
simpatizantes para a nossa causa.
- ‘Tadinho! Mas conte… Como foi que ela morreu?
Dirk fez um gesto com a mão, como se varresse o ar.
- Calma. Se eu lhe contar, promete que não vai divulgar nada a ninguém, não importa a quem for?
- Prometo.
- Ótimo. Posso contar-lhe o que sei, até o ponto em que conheço os fatos, mas não estou em condições de provar nada. Além disso, há coisas que não posso explicar e nem imaginar
qualquer explicação para elas. Tudo anda meio complicado, por isso vou contar a história em ordem cronológica. Tudo aconteceu assim…
Dirk falou sobre o assassinato. A seguir, relatou as medidas que haviam sido tomadas. Tudo com uma objetividade e uma riqueza de detalhes que surpreenderam a moça.
Colocada a par de todas as circunstâncias, Rachelle disse:
- Que acontecimento aterrador. Outra vítima baleada! Quem diria… O marido dela está sofrendo muito?
- Nunca vi um homem tão indiferente! Fica me dando ordens de como fazer as coisas. Chega até a querer dizer-me como tenho que servir o bife! Aquele lá parece que rompeu todas
as leis fundamentais de Deus e do homem! Em termos de sentimentos, eu acho que ele não tem nenhum.
- Não está de luto?
- De luto que nada! Pelo contrário, jantou com excelente apetite. Se quer saber, é a primeira vez que o vejo com uma cara tão boa. Parece que não está nem aí para a morte
da esposa. Eu diria até que deu uma animada nele. Ou ele se faz de idiota, e nesse caso é um ator de primeira, ou então não passa de um grosseirão. É o protótipo de um homem
com sonhos de grandeza que acredita que a complacência e a misericórdia são coisa de gente medíocre.
- Devia denunciá-lo, então.
- Com que provas? Não tenho provas.
- Por que não procura? Deve ter um monte de coisas aí pela casa que possam servir como prova.
- Quem dera que fosse! - suspirou Dirk. - O problema é que não vejo o que eu possa fazer! Infelizmente não posso andar por aí investigando e procurando pistas.
- Pobre camarãozinho!
- Há muitos olhares voltados para mim e nem todos são gentis. O truque é sorrir e fingir que concordo com tudo.
- É bom que ainda haja decência no mundo numa hora dessas - disse Rachelle. - E a filha?
- Quem?
- Julie… ou sei-lá-o-quê.
- Por que a pergunta? Por acaso está com ciúme dela?
- Para estar com ciúme é preciso amar - respondeu Rachelle, zangada.
- Eu e Julie temos uma afinidade natural - disse Dirk maliciosamente. - Algo que não dá nem para narrar.
- Então ela tem sido útil para você!
- Muito. Tão útil quanto um alicate de vidro.
- E quanto ao tal marido da governanta…
- Herr Dargnell?
- Sim. Falou com ele?
- Falei, como quem não quer nada.
- E?
- Um velho arenque seco, é o que ele é! Está tão fraco que mal deve conseguir levar o garfo à boca.
- Deus do céu, Dirk!
- Frau Dargnell morreu baleada numa barraca nos fundos do terreno onde é realizado o bazar anual do vilarejo. Nos fundos do terreno, entendeu, Rachelle? Pelo que diz o marido,
perto de uma sebe de azevinhos.
- E daí?
- Daí que, qualquer um, vindo por trás da barraca, poderia tê-la surpreendido e ter cometido o crime… e, sobretudo, sem ser visto. Sem ser visto, entendeu, Rachelle?
- Você está querendo me dizer alguma coisa?
- Por quê?
- Você fica aí, repetindo: “Entendeu?” a toda hora. Eu não sou surda, ouviu? E quanto à morte do tal médico?
- Ah, sim. O Dr. Fleissig. Como você sabe, ele morreu intoxicado.
- Acha que pode ter sido a esposa? Esposas são geralmente as maiores suspeitas nessas ocasiões.
- Não creio. A polícia verificou seu álibi e ele é sólido. Passou o dia com a irmã em Stuttgart e só voltou para casa na manhã da morte do marido.
- Mas você não disse que foi envenenamento?
- O que quer dizer?
- Quero dizer que ela poderia ter colocado o veneno não-sei-lá-quando e ter viajado.
- Sim. Essa hipótese foi tomada em consideração. Mas, a não ser que se descubra um motivo, não há a mínima perspectiva de relacioná-la com o assassinato. Tenho uma suspeita
que me devora o peito. Quero que esteja a par dela, Rachelle, pois, caso me aconteça alguma coisa e a coisa fique feia, você será a única que sabe disso.
Rachelle se remexeu diante de declaração tão categórica. Dava até para ver o branco de seus olhos arregalados.
- Dirk! Estou ficando assustada.
- Por muito tempo achei que o mal não existia. Só pensei que havia pessoas que faziam coisas boas ou coisas ruins. Mas agora…
- E por que está me dizendo isso?
- Porque a considero a única pessoa em quem confio.
- Uau! É a segunda vez que você me elogia dessa maneira.
O rosto de Dirk afogueou-se.
- Escute… Eu temo que o assassino possa ser exatamente Herr Thröllinger. Nunca, sob quaisquer circunstâncias, conte isso a ninguém, ouviu?
- Claro. Só contarei à minha mãe, mas ela não vai…
- Não! Não pode contar a ninguém. Está me entendendo? Absolutamente ninguém!
- Está bem, se é assim que você quer.
- É assim que eu quero.
Rachelle dirigiu-lhe um olhar questionador:
- Há algum atrativo em morar nesse fim de mundo ou… - ela deixou a frase incompleta, com uma interrogação no ar.
- Você devia vir aqui experimentar.
- Talvez eu vá a Bombaim. Gosto de sol. Ah! Bombaim. O portal para as glórias do Oriente.
- Por que você não vem amanhã? Poderíamos visitar um castelo. Dar um passeio. Jantar juntos.
- Quer que eu vá aí amanhã? Quer que eu vá aí só porque você foi? Perdoe-me, mas não posso.
- Se for para ser meu último dia, que pelo menos seja um dia prazeroso.
Rachelle olhou para ele, estupefata.
- Último dia? Do que está falando, Dirk? Não vá me fazer nada arriscado, Dirk. Não cometa nenhuma loucura!
- Farei o que for preciso. Quanto menos souber a esse respeito, tanto melhor para você.
- Já chega por hoje. Vá dormir. Você parece exausto.
- Ligo de novo assim que tiver alguma coisa.
- Proceda com muita cautela.
A imagem de Rachelle se apagou na tela.
Dirk tinha estendido as pernas, e estava olhando para os pés cruzados.
- Está bem - disse com uma voz frágil e desanimada.
Tinha a impressão de estar se debatendo em águas turbulentas, sem chão para se apoiar.
Mesmo sem poder explicar a si mesmo as razões, a sua suspeita era que, na cadeia de acontecimentos, o primeiro evento havia, de algum modo, provocado o evento seguinte. Este,
por sua vez, tinha provocado o terceiro evento, o qual, por fim, tinha redundado na morte de Molly.
Naturalmente Dirk ainda não sabia disto, mas naquele instante, na realidade, ele havia atingido o ponto culminante de sua autoimposta investigação.
PARTE 2
Capítulo 1
OITO ARQUIVOS COMPUNHAM A base do inquérito policial sobre os assassinatos em Heldenstatt. Oito! Um número não só expressivo, como impressivo. Era difícil para o Comissário-Adjunto
Burghard imaginar que assassinatos num vilarejo tão pequeno pudessem produzir um resultado tão volumoso. Ele exercera bastante influência para que seus agentes seguissem todas
as pistas, tanto as plausíveis como as inconcebíveis - inutilmente.
Todo aquele caso havia ido parar nas manchetes de jornal a tal ponto que, apesar da intervenção do Ministério de Relações Exteriores, causara uma comoção quase interestelar.
O Comissário-Adjunto Burghard era de meia-idade, meia altura, rosto comprido e sem cor. As suas sobrancelhas pareciam duas centopeias. Estava sentado em seu escritório, em
Graz, vestindo um felpudo casaco de lã, calçando botas de couro e tendo na cabeça um boné com orelheiras.
- Sven foi transferido - anunciou ele na manhã após o funeral. Olhou para Maurrice Lafrance. - Você vai tomar o lugar dele e dar continuidade ao seu trabalho. Consegue dar
conta disso?
- Sim, senhor.
- Já tem alguma ideia sobre o caso, Lafrance?
- Muitas ideias, comissário. Já fiz até um relatório a respeito. Leia e verá que não vai ser preciso implementar muita coisa.
O comissário pegou o documento. Folheou-o ao acaso. O texto era bem redigido e ele teve a impressão de que o volume era uma cópia passada a limpo de casos mais antigos.
- O que é isto?
- Isto é o que eu defino como o diário de bordo pessoal de minhas investigações. Compilei um relatório com o nome de todos os suspeitos e os prováveis motivos para o crime.
Prova contra ou circunstâncias suspeitas.
- Você tem a tendência de complicar as coisas mais simples, Lafrance. Não entendo os motivos de tanto interesse nestas frivolidades!
- Não são frivolidades, senhor. São fatos.
- A julgar pelo modo como as coisas vão indo, me parecem frivolidades. Se não fecharmos o caso logo, na semana que vem estaremos deferindo um requerimento de exumação de meia
dúzia de cadáveres. E sabe Deus lá onde isso vai parar! Eu sei que você está fazendo tudo o que pode, mas já pensou que isso talvez não seja suficiente? Não quero que incorra
em outro equívoco, está me entendendo?
O comissário deu à última frase uma inflexão significativa.
- Permita-me ser franco, senhor - disse Maurrice Lafrance. - Não acredito que esteja incorrendo em nenhum equívoco.
- E se estiver? Para o seu próprio bem, eu recomendo uma coisa. Deixe tudo isso para trás e se atenha ao crime na ponte. Só o crime na ponte, jawohl? O seu problema é que
você, muitas vezes, não vê as coisas como elas são: você vê as coisas como você é. Consegue notar a sutil diferença? Pare de criar estereótipos. Sou contra estereótipos!
- Mas, comissário… Acho que, de alguma forma, todos os crimes estão interligados.
- Incluindo a morte do Dr. Feiling?
- Fleissig - corrigiu Maurrice Lafrance, cauteloso. - Dr. Fleissig.
- Pensei que ele tivesse se suicidado.
- Pois é, eu também. Tudo que eu li dizia que ele tomou uma xícara de café e, uns cinco minutos depois, passou mal e morreu mais rápido que um piscar de olhos. Estou começando
a achar que foi assassinato. Um assassinato friamente calculado e executado. Existe a versão que atribui o crime ao próprio médico, que teria se matado de remorsos. Outra
versão é que a mulher descobriu que ele estava de namorico com a tal moça que morreu - Betty Riedell - e, por isso, o matou. Com pequenas variações é o que as pessoas dizem;
porém, provas que é bom, nada. Portanto, o Dr. Fleissig pode ter tido um caso com a empregada, com outras moças e até com uma mulher de fora. As pessoas contam as mais diversas
versões: um cigano que teria jurado se vingar depois que a filha morreu de apendicite na mesa de cirurgia; o merceeiro que, não sei por que, tinha uma encrenca com ele e assim
por diante. Mas eu particularmente acredito que exista só um assassino.
- Está sugerindo que toda essa gente morreu às mãos de um assassino? Do mesmo assassino?
- De certa forma, acho que sim.
- É uma alegação vaga e intangível.
- A verdade, senhor, é que obtive uma pequena ajuda.
- Ah, uma ajuda! - as centopeias do Comissário-Adjunto Burghard formaram um arco. - De quem?
- Ainda não sei tudo sobre ele, senhor.
- Ele quem?
- Fiz apenas algumas checagens de rotina para saber sua data de nascimento, o estado civil et cetera. Prefiro manter a testemunha anônima, por enquanto.
- Ainda assim, gostaria de saber. Se vai mesmo jogar sua carreira fora, que seja pelo menos pelas razões certas. Conte-me tudo, por gentileza.
Diante da insistência de seu superior, Maurrice Lafrance contou sobre Dirk, e de tudo o que este lhe dissera. O comissário ouviu com atenção, sem interrompê-lo.
- Bem, creio que é tudo - terminou Lafrance.
- Não pode adiantar mais nada?
- Não.
- E você confia nesse indivíduo?
- Sim. Ele respondeu de maneira muito adequada a todas as perguntas que fiz.
- E foram respostas úteis?
- Favoráveis, eu diria. Além disso, como eu disse, chequei o currículo. O avô dele foi professor de engenharia hidráulica em Berkeley. Isso pode causar estranheza, mas para
mim vale alguma coisa.
- Pelo jeito, deve ser um santo. Tomara que a auréola não pese muito.
- Foi Sven quem trabalhou a fundo nesses casos. Há alguma pista que ele tenha achado ser relevante?
- O problema de Sven é que ele gostava de se ater aos métodos ensinados nos manuais - disse o Comissário-Adjunto Burghard. - Por mais que tenha virado e revirado essa história,
ele jamais entendeu os motivos. Esse é o ponto. Por que a garota foi morta? Por que o médico foi morto? Você, Lafrance, parece ter formulado a teoria de que existe uma ligação
entre as mortes. Uma ligação, por enquanto, puramente teórica.
- Sim.
- As provas precisam ser cuidadosamente analisadas.
- É o que farei. E se eu achar que vale a pena investigar, por menor que seja a chance, farei isso.
- A seu ver, acha que, com os recursos que tem, vai dar conta do recado?
Lafrance esperava a pergunta, temendo o momento em que seria obrigado a dar sua opinião.
- Os recursos estão distribuídos amplamente e espalhados. Acho que dá para anular qualquer possibilidade de fracasso. Além do mais, as peças estão se juntando e começando
a dar uma visão macro do caso.
- E se não derem?
- Desculpe-me, mas… e se derem?
O Comissário-Adjunto Burghard encolheu os ombros e replicou: - Muito bem. Às vezes até os reis devem ceder à pressão dos seus ministros! Se estiver errado, terá que arcar
com as consequências.
- Sim, senhor.
- Bem, se vai mesmo fazer isso, que seja para valer. Só me traga coisas que dê para confirmar. Tendo dito isso, acho melhor tratarmos desse assunto o quanto antes, para o
bem da segurança nacional. Se quiser que um inspetor vá com você, me avise.
- Não, tudo bem - respondeu Lafrance. - Eu me viro. Sei que terei um dia muito frutífero pela frente.
- Não se alegre antes do tempo. Lembre-se que corremos contra o tempo. O Ministério Público quer ação e resultados. Em meio ao atual processo de análises, adaptações, planejamentos
e ações emergenciais, a maioria da população quer respostas imediatas. Aproveite todas as oportunidades possíveis, a fim de que cheguemos logo ao fim disso.
O Comissário-Adjunto Burghard suspirou.
- Agora vá. Em algum lugar daquela aldeia há um assassino à solta. Consiga um veredito líquido e certo. Se não tomarmos conta disso agora, isso vai continuar dominando a imprensa.
Não quero ser forçado a mobilizar uma força-tarefa… E que Deus tenha misericórdia de nós…
Capítulo 2
ESTAVA NA HORA DE FAZER UMA visita a Herr Marskin. Não que seu nome estivesse diretamente relacionado aos autos do caso. Mas como seu pai e seu avô e muitos de seus bisavôs
e tataravôs tinham vivido em Heldenstatt, era quase encarado como o consultor oficial da vila.
Aparentemente não havia ninguém em casa quando o oficial Lafrance tocou a campainha. Finalmente, porém, um cavalheiro apareceu e ficou olhando inquisitivamente para ele.
A primeira coisa que Lafrance fez foi apertar-lhe calorosamente a mão.
- Sou o oficial Lafrance - disse rapidamente, para desanuviar qualquer mal-entendido.
- Eu sei quem é o senhor, oficial - disse Herr Marskin. - É do Departamento de Polícia Regional, não é?
- Sou.
- Não foram vocês que tiraram o caso da polícia local?
- Bem, tiraram não é bem o termo, entende? Sendo Graz a sede do governo distrital, da guarnição da polícia regional, de vários serviços administrativos e federais, escolas
e centros de instrução assim como sede de companhias internacionais, o chefe da polícia local achou que seria melhor se a investigação fosse conduzida por nós. Antes que o
caso adquira proporções transcontinentais.
- Vamos, entre… Quanta gentileza em dedicar um tempo para vir me visitar. Aceita alguma coisa? Cerveja?
- Oh! Um cálice de Schnapps está bom, obrigado.
- Caso queira se sentar.
Maurrice Lafrance selecionou uma poltrona. Ao lado de uma mesa cujo tampo estava coberto com um napperon bordado com fios de seda de diferentes cores.
Com a testa franzida, Herr Marskin sentia-se vagamente insatisfeito.
- É um prazer tê-lo aqui, mas diga-me… Que pretende de mim? Que veio fazer aqui?
- Francamente, nem eu sei ao certo - disse Maurrice Lafrance reflexivo. - Estou fazendo uma investigação na qual o seu nome foi citado. Sei que já respondeu algumas perguntas
na época para saber se viu algo incomum, algo que pudesse ajudar. Há questões que ainda não têm resposta, e estou incumbindo de encontrá-las.
- É o que chamam de sondagem preliminar tendo em vista uma determinada reação, não é? - sugeriu Herr Marskin.
- Algo parecido - respondeu Maurrice Lafrance.
- Vou ser franco, oficial. Eu não tenho ilusões. Assassinatos compõem o cenário de nossa atual sociedade doente. O presidente da França foi assassinado; a imperatriz da Áustria;
o rei da Itália; dois ou três presidentes dos Estados Unidos foram assassinados; o primeiro-ministro da Espanha; e, claro, o arquiduque dos Habsburgo. E mais… Há séculos existe
uma equivalência equivocada entre cristianismo e patriotismo. Soldados cristãos de todas as denominações foram exortados a matar uns aos outros em nome de seu Salvador. Daí
se vê que qualquer pessoa, por mais bem instruída que seja, pode ser facilmente manipulada por alguém que tem maus propósitos. Duvido que o senhor pegue o assassino, embora
seja da polícia. Já houve um inspetor que veio investigar, nos primeiros tempos. O que eu posso lhe dizer não o ajudará em nada a esclarecer o seu caso.
- Diante de uma emergência - disse Lafrance -, exigem-se soluções excepcionais. Achei que, pelo menos, poderíamos bater um papo. Creio que o senhor já disse praticamente tudo
o que sabia ao Inspetor Sven. Portanto, vou incomodá-la o menos que puder.
- Por favor, pergunte-me o que quiser.
A atitude de Maurrice Lafrance alterou-se imperceptivelmente.
- A minha sindicância visa dois objetivos distintos: descobrir alguma coisa a respeito dos crimes que têm acontecido na aldeia, suas características e assim por diante e,
de outro lado, desvendar o que aconteceu a Molly Süssenbach. Quero que me ajude a atravessar o vale das sombras, Herr Marskin.
- Isso é meio… intimidador! Não é exatamente a minha área de competência.
- Eu vou facilitar as coisas. Ou foi suicídio, ou assassinato: tem que ter sido uma dessas duas coisas.
- Oh, não necessariamente.
- O que está querendo dizer? Está insinuando que a morte de Frau Süssenbach não se deve a suicídio, nem a assassinato?
- O que estou dizendo é que talvez a morte dela não se deva a nenhuma dessas duas causas. Pode ter sido acidente.
- Ora - disse Maurrice Lafrance, laconicamente, aborrecido com este desvio, mas procurando ao máximo não afobar o homem. - Não foi acidente. É fato consumado: foi assassinato.
- Compreendo. Ahn… muita bondade sua deixar que eu saiba disso.
- E quanto ao Dr. Fleissig? Também acha que foi acidente?
O rosto de Herr Marskin contorceu-se.
- Não, claro que não.
- Já é uma boa coisa. Não ocorreu a ninguém o nome de alguém que possa tê-lo assassinado?
- Não que eu saiba.
- Mesmo o senhor? Não estou dizendo que o senhor saiba quem é a pessoa, mas acho que deve ser capaz de me informar uma suspeita ou uma vaga ideia.
Ele pareceu refletir.
- Bem, talvez eu não devesse dizer isso…
- Dizer o quê?
- Bem, é uma charada embrulhada em um mistério. Eu não esperava que Heinrich Fleissig fosse morto, mas, por outro lado, não posso afirmar que fiquei muito surpreso. A verdade
é que Heinrich não batia bem da cachola. O que piorava quando ele bebia. Nessas horas, ele se tornava abertamente tagarela. Chegava ao ponto de revelar coisas particulares
de seus pacientes! Algo muito constrangedor, acredite.
- E o senhor acha que isso é motivo suficiente?
- O senhor não? Imagine que o senhor tenha uma doença terminal, mas não queira alarmar seus familiares, de modo que varra a coisa toda para debaixo do tapete. Agora suponha
que seu médico, a pessoa em quem confiou, a pessoa a quem consultou e contou todo o seu problema, vá e espalhe aos quatro ventos que, de acordo com os exames, o senhor está
literalmente com um pé na cova! Como acha que se sentiria? Ultrajado, para dizer o mínimo. O senhor não é um homem de violência, mas… bem, há gente disposta a tudo.
- Uma explicação e tanto.
Herr Marskin limitou-se a olhá-lo fixamente.
- Quer discutir algum outro assunto comigo, oficial?
- Sim. Gostaria que o senhor me dissesse outra coisa.
- Sobre a moça? - perguntou Herr Marskin. - Betty Riedell?
- Sim. O senhor a conhecia bem?
- Como se pode conhecer alguém que a gente só encontra de vez em quando? Diria que a mãe seria a pessoa indicada para interrogarem a respeito disso.
- Sim. Naturalmente. Mas poderia haver uma chance de que o senhor soubesse algo sobre a vítima que não fosse do conhecimento da mãe. Por exemplo, o que achava dela?
- Tinha muito tutano - disse Herr Marskin. - Sobre a vida privada dela, não sei absolutamente nada. Mas imagino que fosse muito interessante e original. Dá vontade de saber
o que realmente aconteceu - explicou. - O mal sobrevém a todos nós - falou bruscamente. - Assim são as coisas. Apenas temos de aceitar. Algumas pessoas vivem, outras morrem.
- Ela foi assassinada.
- Sim, mas por quem e por quê?
- Isso eu não sei - disse Maurrice, como se estivesse repetindo uma poesia bem decorada. - Para ser franco, há muitas coisas sobre as quais eu nada sei. Betty Riedell, Dr.
Fleissig, Frau Dargnell… e agora, Molly Süssenbach. Tudo parece cada vez mais enrolado.
A próxima frase de Herr Marskin não foi o começo de outro assunto e sim a continuação da conversa:
- Por falar em Molly, já foi definida a questão da herança? Imagino que alguém vá herdar um bom dinheiro com a morte dela.
- Isto ainda está longe de ser conclusivo. Os bens dela serão divididos em partes iguais entre o atual marido e os filhos. Mas primeiro é preciso estabelecer a sua morte.
Apurar se um deles, de alguma forma, concorreu para o crime ou a trama, como coautor ou partícipe. A lei, em seu texto, veda a um criminoso usufruir dos frutos de seu crime.
Herr Marskin hesitou um segundo antes de se decidir a falar com franqueza. Quando falou, falou à vontade e sem parar, narrando meticulosamente tudo o que sabia sobre o caso.
- Que interessante - comentou Lafrance, acolhendo a explicação com uma expressão de interesse cortês. - É só isso?
- Bem… Não sei mais o que lhe dizer. Ah, espere… Há mais uma coisa. Um jovem veio aqui dias atrás. Cozinheiro, eu suponho. Era tão persuasivo que conseguiria vender leite
azedo às vacas.
- Quem? Lembra-se do nome?
- Biene-alguma-coisa.
Maurrice Lafrance bateu o cachimbo e se pôs a enchê-lo outra vez.
- Veio aqui, oficial, perguntando sobre esses crimes horríveis e aquela coisa toda - o velho inclinou-se para frente, num impulso súbito. - Agora é minha vez. O que o senhor
acha disso tudo?
- Como perito não posso ter opiniões, apenas posso relatar aquilo que pesquisei e descobri. E pelo que pesquisei e descobri, esses assassinatos parecem ter uma relação.
- Que tipo de relação?
- Relação vítima/vítima e assassino/vítima.
- Perdoe minha honestidade, mas, para mim, o senhor pegou o bonde errado. Relação isso e relação daquilo? Bobagem! O assassino, seja quem for, não regula bem. É apenas, sabe…
- deu batidinhas na testa - perdido!
A afirmação era obviamente falsa, pois neste instante Herr Marskin começou a assobiar desafinadamente La Montanara.
Lafrance, que se esforçava por dar algum sentido ao interrogatório, fez uma pausa, então anunciou:
- Bem, eu já vou indo. Obrigado pelo tempo que me dispensou, Herr Marskin. Estou muito grato.
- Não precisa agradecer.
Maurrice Lafrance ajeitou o chapéu firmemente na cabeça e já ia sair e fechar a porta, mas virou-se.
- Logo teremos o nome do responsável pela morte de toda essa gente. Vamos caçar até identificá-lo. Depois, prendê-lo. Para mim, todo mundo é igual; seja engenheiro, juiz,
técnico agrícola, cantor ou jogador de futebol, se for pego por assassinato, a lei deve puni-lo.
Capítulo 3
FOI UM OFICIAL LAFRANCE CANSADO e deprimido que se encontrou com Dirk no dia seguinte.
- Oficial, que prazer em vê-lo.
Dirk deu a volta pela porta lateral e, em seguida, juntou-se a Lafrance.
- Posso dar uma palavrinha com você em particular? - perguntou Lafrance.
Os dois estavam no recanto do patamar da escada. Dirk aquiesceu. Tomou o corredor e foi caminhando quase até o final, quando então abriu uma porta e convidou Lafrance para
entrar.
- Ninguém vai nos perturbar aqui - disse.
Ele ofereceu uma cadeira e, em seguida, sentou-se.
- Aconteceu alguma coisa? - Dirk tomou a iniciativa. - Parece estar bastante aborrecido. Posso perguntar o que foi?
- Houve um assassinato - respondeu Lafrance. - Meu sobrinho… Parece que matou um imigrante sírio.
Dirk ficou com uma expressão de cartaz de barbearia! Sobrinho? Imigrante sírio? Ele não soube o que responder.
- Quando? Onde?
- Em Hannover, ontem à noite - disse Lafrance, inclinado para a frente, com a cabeça abaixada. Era a imagem do desespero. - O sírio estava na companhia de amigos, quando entrou
em discussão com Zachary, seguida de luta corporal. Durante a briga, Zachary sacou uma faca tipo peixeira e cravou na costa de um deles e depois fugiu. Minha irmã está arrasada.
O sentimento da família, neste momento, é o pior possível. Ninguém faz ideia do que aconteceu. A Bundespolizei está fazendo os exames necessários, mas é impossível detectar
alguma coisa na pouca nitidez que os fatos têm tido até agora. Deve haver um inquérito, um julgamento e a penalidade. Seja como for, há algo de estranho por trás dessa história.
Zachary estava de férias. Por que foi fazer uma coisa dessas? - disse o oficial devagar e em voz baixa. - Meu Deus, por quê?
Dirk limitou-se a acenar com a cabeça. Seria absurdo formular objeções a essa hora. Ficou sentado olhando para ele.
- Bem, vamos deixar isso para lá - Lafrance deu de ombros. E de modo jovial, aparentemente dissipando o mau humor, acrescentou: - E aí, meu jovem, o que tem para mim?
- Dicas quentes, oficial. Muito quentes.
Lafrance inclinou-se para frente, os longos braços apoiados nos joelhos.
- Excelente!
- Todo mundo fala demais, é o que dizem. E imagino que seja bem assim. É difícil, sabe, decidir se as pessoas estão exagerando, se estão tendo delírios, ou dizendo a verdade.
- Isso eu entendo muito bem - falou Lafrance.
Depois de relatar sucintamente como fizera suas descobertas, Dirk entregou-lhe a folha de papel que continha as suas anotações.
- No todo, o que eu descobri é isto.
- Um trabalho muito eficiente - elogiou Lafrance, após dar uma lida -, se me permite dizê-lo. - Balançou a cabeça em sinal de aprovação. - Muito sensato. Muito inteligente,
meu jovem. Exatamente o que eu estava querendo.
- Fui pago para isso - disse Dirk.
- Não foi isso que eu quis dizer. Julguei-o mal quando o vi pela primeira vez. Saber sobre quem estava fazendo o quê no dia dos crimes, o que viram ou disseram que viram,
onde estavam ou disseram que estavam, é o melhor artifício para formar uma imagem mental do que, por exemplo, eu e você, individualmente, teríamos observado caso estivéssemos
presentes a cada um dos eventos. Não é grande coisa, mas se soubermos em que ordem os atos e gestos se desenrolaram… O que não podemos é ficar perdidos em um universo de possibilidades,
à mercê de fatores imprevisíveis. Há um assassino aqui. E ninguém sabe quem é… Pode ser qualquer um, qualquer um. Mas por quê?… Por quê?… Alguém que quer ver todo mundo morto…
Mas quem é essa pessoa? Quem? Vejo aqui um bocado de apontamentos interessantes. E nomes. A segunda filha de Frau Riedell, Nelly. “Uma moça sonhadora, suscetível aos apelos
dos hormônios.” Que poético! “Apaixonada por Thomas Herring, mas Thomas preferiu ficar com Betty, irmã dela.” Não vejo bem o significado disso.
- Considerei que, apesar de Nelly ser rejeitada, nada indica que ela não possa ter engravidado do rapaz. Pelo que vi, ela é o tipo de moça que não hesitaria em fazer qualquer
coisa, uma vez que suas emoções forem despertadas.
- Está dizendo que ela pode ter engravidado… mas não quis que isso viesse à tona?
- Estou dizendo que é uma possibilidade e, se for assim, é de se perguntar por que não? Mas suponhamos que Betty tenha descoberto. Suponhamos que Nelly previsse o escândalo
que aquilo causaria caso a irmã a delatasse. Nesse caso, um assassinato seria não só a solução mais evidente como também a mais lógica.
- Uma porção de pessoas se envolve em atos promíscuos - disse Lafrance -, mas poucas, pouquíssimas, saem por aí matando os próprios familiares.
- Devemos estar abertos às exceções - disse Dirk.
- Suponho que não haja nenhuma chance de ter sido a mãe.
- É tentador pensar nisso, concordo. Mas, até onde posso ver, é altamente improvável que tenha sido ela.
- Dá a entender que o motivo, a raiz do problema, possa ser algo do qual ninguém tenha suspeitado.
- É - disse Dirk com um sorriso tímido.
- Bem, vamos adiante. - Lafrance estudou o relato mais uma vez. Restavam vários nomes ali. - Temos também Frau Mara Fleissig, a esposa do médico. Eu a colocaria como suspeita
número 2.
- Motivo?
- Primeiro: ela, mais do que qualquer outro, poderia facilmente ter envenenado o marido. Segundo: Betty, semanas antes de ser assassinada, trabalhou na casa dela. E você disse
que Frau Dargnell disse que o doutor era um mulherengo inveterado. O que foi? Acha que não pode ter sido Frau Fleissig?
- Não é isso - disse Dirk. - Estou considerando a dificuldade.
- Que dificuldade?
- De matar Frau Dargnell, em uma barraca em local público, sem ninguém ter visto.
- Bem, isso vale para todo mundo, não é? Para metade do país, pelo menos!
- Um assassinato não deve apenas ser cometido. É preciso também que não haja testemunhas!
- Tendo uma razão que, intimamente, justifique seus atos, as pessoas fazem qualquer coisa para alcançar seus objetivos - comentou Lafrance. - Sede de sangue é um impulso difícil
de satisfazer. Foi um risco que o assassino teve de correr, e correu.
- Ah, isso sim. Não questiono isso nem por um momento. Mas, segundo descobri sondando e somando o número de voluntários, havia pelo menos de umas vinte e oito a trinta pessoas
no lugar. É evidente para mim que, entre tanta gente, alguém deveria, obrigatoriamente, ter notado alguma coisa.
Lafrance acenou que sim.
- É fácil pensar assim, com certeza. Por outro lado, pela simples e objetiva evidência dos fatos, foi exatamente isso o que aconteceu. Obviamente, ninguém viu nada. E por
uma única razão. Esse assassino, como já disse, não se importa em correr riscos. Isso tem ficado evidente o tempo todo.
- Quando falei com ela, Frau Fleissig não demonstrou sinais de estar escondendo qualquer coisa. Era de se esperar, com toda a certeza, que ela dissesse qualquer coisa casualmente.
- Mas o que ela realmente pensa ou sente, ou até o que sabe sobre o assunto, não dá para saber, não é mesmo?
- E o que me diz do revólver pertencente aos Herring?
- Está aí uma coisa que eu desconhecia! - Lafrance enchia o cachimbo, comprimindo cada pitada de tabaco com uma série de movimentos do indicador e do polegar. - Um revólver!
Isso dá o que pensar, não? Vou ter que ver isso. Mais alguém? Herr Marskin?
- Não.
- Herr Dargnell?
- Provável, mas, quanto à morte de Molly Süssenbach, não. Conforme consta aí, e é o segundo registro que faço disso, eu estive com ele naquela tarde. A menos que seja um velocista,
e corra feito um coelho superdesenvolvido, não consigo imaginar que ele pudesse chegar à ponte antes de mim.
- Por falar em Molly Süssenbach, há uma coisa que você não incluiu aqui.
- O quê?
- A filha acha que ela estava tendo um caso.
- Um caso? - arquejou Dirk, com a voz mais horrorizada que foi capaz de produzir.
- Exatamente isso. A moça diz ter visto a mãe fazendo algo um tanto… escandaloso.
- Julie viu? O que foi que ela viu?
- Ela não contou a você?
- Garanto, oficial, que não sei nada a respeito disso.
- Bom, ela disse que viu a mãe beijando… alguém.
- Alguém?
- É - disse Lafrance vagamente. Abriu bem os olhos e, com dignidade, acrescentou: - Outro homem.
- É mesmo? - assoviou Dirk. - Quando?
- Uma noite dessas.
- Incrível!
- Acha que seja verdade?
- Se ela disse, não vejo por que não. Mas quem?
- Não sei. O tempo urge… urge - Lafrance murmurou para si mesmo. - Será que há algo errado aqui? Estou inclinado a acreditar que há. Mas o quê? Não faria mal se déssemos uma
verificada.
- Claro, claro…
- E quanto a Herr Thröllinger? - Lafrance examinou Dirk com o olhar aguçado.
Este retribuiu o olhar.
- O que o senhor acha?
- Eu disse e repito: acho que é, disparado, um fortíssimo candidato. Ainda mais com o enteado, Rolf, dizendo ter ele uma pistola! Quer saber? Na minha opinião esse homem tem
uma amante em algum lugar e talvez filhos com ela. Não me parece que ele seja do tipo capaz de matar, mas isso explica uma coisa: o motivo por que ele logo apresentou um álibi,
por exemplo.
- E quanto a Rolf? Ou Julie?
- Estão no páreo. Mas correndo pela linha lateral, eu diria.
Lafrance inspirou bruscamente, emitindo um chiado.
- Sempre se descobre que temos mais perguntas, conforme o caso vai engrenando e tomando forma. Tem de haver respostas, e nós temos de encontrá-las por nós mesmos, pois não
creio que alguém possa nos ajudar. O que torna tudo mais bizarro.
Assim, ficaram cerca de uma hora discutindo todos os aspectos do caso que Lafrance estava proposto a solucionar.
- Tem de ser alguma dessas pessoas - finalizou ele. - Dá para eliminar uma porção de gente, mas não todo mundo. Quando alguém é morto, o assassino precisa pagar por isso.
É o que diz a lei. Vim para cá para responder a duas perguntas. “Como foi que Frau Süssenbach morreu? Por que foi que ela morreu?” Mas as coisas, eu logo vi, não se resumiam
à morte dela. Havia outras mortes não-solucionadas. Agora que exploramos as possibilidades, podemos ir um passo adiante.
Capítulo 4
MAURRICE LAFRANCE ATRAVESSOU o vestíbulo em direção ao portal da sala de visitas onde se encontrava o seu anfitrião.
Jürgen levantou-se para receber o visitante. Mantinha um ar de tristeza que parecia mais artificial do que espontâneo.
Fazendo um aceno de boas vindas, Jürgen disse: - Bom dia, oficial Lafrance. Por favor, sente-se. Temos muito que conversar.
- Obrigado.
- Quer que eu lhe sirva alguma coisa?
- Por enquanto, nada! - falou Lafrance, categórico.
- Espero que afinal tenha alguma informação encorajadora para mim.
- Infelizmente não tenho, Herr Thröllinger. Já viramos essa história de pernas para o ar e ainda não sabemos muita coisa. Apenas gostaria de fazer mais uma ou outra pergunta.
- Mais perguntas? Pensei que, a esta altura, já tivesse respondido todas as perguntas possíveis e imagináveis.
- Eu sei disso e peço desculpas, Herr Thröllinger. Existem coisas que ainda precisam ser averiguadas. Eu, quando começo um caso, costumo levá-lo às últimas consequências.
Doe a quem doer.
- Tudo bem, oficial. Seu procedimento é absolutamente correto, eu sei que é. Estou às suas ordens. Quando um homem é meu amigo, pode contar comigo para tudo.
“Para tudo?” o agente da lei avaliou o interlocutor. “Isso é o que já vamos ver…”
- Creio que preciso fazer-lhe uma pergunta um pouco embaraçosa.
- Faça - disse Jürgen. - Direi tudo o que quiser saber.
- Posso?
- Se eu disse que sim!
- O senhor tem uma pistola, Herr Thröllinger?
- Pistola? Acho que devo ter uma, sim. Não para justificar o argumento de “autodefesa”, acredite, mas sim pela beleza do equipamento em si, eu diria.
- Permite que eu a leve? - interveio Lafrance, virando-se para Jürgen.
- Levar a pistola?
- Sei que o senhor não quer se aborrecer com detalhes técnicos, por isso não vou perder tempo com isso. O que posso adiantar é que estamos desenvolvendo algumas experiências.
- Está certo - assentiu Jürgen, se bem que parecesse bastante apreensivo. - Espere-me aqui, oficial.
Jürgen encaminhou-se a passos rígidos até a porta, abriu-a e saiu. Passaram-se três ou quatro minutos. Quando voltou, trazia uma legítima pistola, a qual entregou, um pouco
titubeante, para Lafrance.
- Tomara que sirva para alguma coisa.
- Deixe isso por minha conta, Herr Thröllinger. Mais uma pergunta. O senhor já me falou sobre a sua vida conjugal. O seu relato, porém, ao invés de esclarecer a situação,
tornou tudo ainda mais incompreensível em vista de uma coisa que fiquei sabendo mais tarde.
- O quê?
- O testemunho humano, muitas vezes, é incerto. Alguém, porém, me disse que sua mulher estava tendo um affair.
- Mas realmente, oficial!
Maurrice Lafrance fez um gesto com a mão.
- Por favor, Herr Thröllinger, sei como isso soa, mas é importante. Acha que ela tinha ou não tinha?
- Recuso-me a admitir essa hipótese!
- Isso, naturalmente, fica a seu critério.
- Molly era fiel! Pertencia a mim - Jürgen bateu no peito. - Só a mim!
- Sei - murmurou Maurrice Lafrance.
- Como? - perguntou Jürgen.
- Nada, nada - respondeu Maurrice Lafrance. - Estava pensando em voz alta.
Jürgen olhou-o fixamente, sem perceber por um momento, depois, chocado, ergueu-se rapidamente.
- Se for sobre isso que veio falar, oficial, terminamos por aqui. Molly era minha mulher. Eu confiava nela. Dormia com ela. Eu saberia caso ela tivesse… como é que o senhor
disse?… um affair! Quer saber? Eu não vou discutir isso.
Maurrice ficou calado por um minuto ou dois, calculando se devia rebater a afirmação.
- Pela minha experiência prática - acrescentou, mudando de assunto -, geralmente, quando ocorre um crime, o móvel é o dinheiro. Quem vai ganhar ou perder com a morte… coisas
assim.
- Engraçado o senhor mencionar este fato… creio que não me lembraria se o senhor não tocasse no assunto. Bom, em se tratando de Molly, vou ser franco com o senhor. Todo o
patrimônio (incluindo bens e o dinheiro) será dividido equitativamente em três partes: entre mim, o marido, e os filhos dela, Rolf e Julie. Vou tratar disso - disse Jürgen
- quando chegar a hora.
O oficial olhou-o com ar de dúvida.
- Não quero chateá-lo, mas o senhor não parece muito triste pelo que aconteceu à sua esposa.
- Estou triste, é claro! Acontece que sentimentos e emoções não condizem com gente da minha família. Se eu pareço insensível à situação… entenda, é assim que eu sou. Meu pai
me ensinou dessa maneira. Quando vovô morreu, lembro-me dele dizendo: “Filho, saiba que nós, os Thröllinger, não somos covardes chorões. Temos que seguir em frente, haja o
que houver”. E foi o que fizemos.
- Pelo jeito, seu pai era um homem de boa índole.
- Muito pelo contrário. Meu pai era frio e insensível, um homem que trouxe os seus amados filhos ao mundo e depois delegou à mamãe o cuidado com nossa educação e nosso bem-estar.
Ele mal conseguia disfarçar o desprezo por nós. Na verdade, era especialista na arte de denegrir todos os que se engajavam em alguma causa humanitária.
- O que acha que aconteceu à sua esposa?
- Foi assassinada, claro. É a única explicação plausível. Mas não entendo o motivo. Não pode ter sido obra de um ladrão nem de um estuprador, ou coisa que o valha.
- Acha que ela foi morta por alguma razão precisa?
Jürgen refletiu um instante.
- O assassinato pôde ter sido cometido de improviso. Alguém aproveitou a ocasião quando surgiu uma oportunidade. Se eu conhecesse o motivo, saberia quem a matou.
Maurrice Lafrance ficou olhando para o homem pensativamente. Ele já havia catalogado Jürgen: sabia que com esse tipo de gente é preciso paciência, evitar interromper e, sempre
que possível, aprovar cada frase com a cabeça.
- Obrigado, Herr. Isso é tudo que eu queria saber.
Depois que Jürgen saiu, permaneceu sentado, meditando sobre o que acabara de ouvir. Em seguida, dirigiu-se na ponta dos pés até a porta, abriu-a bruscamente para certificar-se
de que não havia ninguém à escuta.
Pegando a sua caderneta, fez a seguinte anotação:
Poderá Jürgen Thröllinger, de algum modo, estar ligado à morte da esposa? Ele não pareceu nem intimidado nem perturbado; mas, se for culpado… ou mesmo conivente… não estará
procurando fingir as duas coisas?
Quanto mais avançava na investigação, mais os indícios e as pistas exploradas se tornavam evidentes. Lafrance não esperava descobrir algo que seu predecessor não tivesse percebido,
mas uma coisa se impunha: tinha que tentar sondar as motivações psicológicas da pessoa implicada nos crimes.
“Quando eu descobrir por que, saberei o que houve e quem foi o responsável.”
Capítulo 5
O OFICIAL LAFRANCE SUPUNHA SER extremamente competente para levar a cabo um inquérito criminal, mas ainda assim admitiu que o inspetor Sven fora excepcionalmente consciencioso
no cumprimento de seu dever. Todas as questões imagináveis haviam sido exploradas e todos os indícios verificados, mesmo os mais improváveis. O fato, porém, é que a solução
do mistério não podia ser atingida por meio de um mero inquérito policial - por mais bem engendrado que fosse. Era preciso algo mais: intuição.
Intuição! Algo que Lafrance achava ter de sobra. Tanto assim que era sua intenção entrevistar os habitantes de Heldenstatt, usar a sua mente prodigiosa e dizer quem era o
assassino.
Sim, era essa a intenção.
Pensando nisto, e nas dificuldades inevitáveis que acompanhavam tal ensejo, Maurrice Lafrance caminhou até a porta da casa e tocou o interfone. A porta abriu depois de alguns
segundos e, conforme as especificações, ele subiu a escada até o primeiro andar e bateu na porta à esquerda.
Herr Dargnell recebeu-o com as bochechas encovadas, os olhos injetados de sangue. Uma barba de três ou quatro centímetros cobria o seu queixo e quase toda a face, de modo
que, visto de longe, parecia tão peludo como um chimpanzé albino.
- Sente-se ali, oficial. É a única cadeira que não afunda quando mudamos de posição.
- O senhor sabe por que vim procurá-lo?
Herr Dargnell sacudiu a cabeça. Encarou o oficial com olhos que se mantinham firmes e imóveis, mas ao mesmo tempo pareciam transmitir um sorriso cínico. Ele disse: - Não,
não faço ideia do que possa trazer à minha presença alguém tão ocupado quanto um agente da polícia.
- Mil desculpas pelo incômodo! Vim até aqui porque estou investigando o caso que me foi entregue pelo meu departamento. Autorizaram-me a fazer tudo o que for necessário. No
início, parecia tratar-se de um caso sem a menor importância. Mas, em vez de simplificar, as coisas foram se complicando, se complicando e… bem… Acho que o senhor ouviu falar
no assassinato de Frau Süssenbach, não é, Herr Dargnell?
Os olhos do velho se voltaram velozmente para Maurrice. Ele pensou ter visto um pingo de suspeita refletido neles, mas aquilo, sabia bem, não era nada extraordinário. Herr
Dargnell resfolegou e, depois de refestelar-se numa poltrona, respondeu: - Ah, é claro. As notícias se espalham bem depressa por aqui - comentou. - Não só ouvi falar, como
estive lá, no local da tragédia.
- Então o senhor sabe o que aconteceu.
- Naturalmente.
- Achei que o senhor, quem sabe, pudesse me ajudar.
- De que maneira?
- Estava cogitando se poderia sugerir algum motivo para a morte dela. Creio que a sua esposa trabalhou durante alguns anos para ela, não foi?
- Sim.
- O senhor também deve tê-la conhecido bem?
Houve uma pequena pausa. Lafrance teria jurado nesse instante que seu interlocutor não estava à vontade. Esperava as perguntas com um ar de suspeita, dava um tempo, pesava
as palavras. Os olhos de Herr Dargnell se moveram debilmente de um lado para o outro. Sem se alterar, respondeu:
- Não, para ser sincero não a conhecia muito bem. Ela não era uma amiga próxima.
- Mas o senhor sabia a seu respeito. A sua esposa deve ter comentado alguma coisa sobre ela.
- Comentou, mas sempre com muita discrição. Rose não achava ético ficar por aí fofocando sobre a vida pessoal de seus empregadores.
- Quer dizer, então, que o senhor não sabia praticamente nada sobre ela?
- Não, mas não sou cego.
- Estou certo que não. O que foi que o senhor viu?
- Exatamente que, para mim, eles não formavam um casal muito normal.
- Oh, não? Por que não?
- Ela tinha idade suficiente para ser sua mãe… ou sua tia, não tinha?
- Mas eles pareciam gostar muito um do outro, não é?
- Depende do que se queira dizer com isso.
Maurrice Lafrance sacou o cachimbo, acendeu-o e, tendo expelido uma baforada de fumaça, acrescentou:
- Por questões formais, é necessário que eu confirme algumas coisas. Onde o senhor esteve, anteontem, às cinco horas da tarde?
- Lá embaixo, em minha sala de visitas.
- O senhor ficou o tempo todo lá?
- Sim.
- Alguém que possa lhe fornecer um álibi?
- O rapaz que encontrou o corpo… Ele estava comigo.
- Holzbiene? A que horas ele saiu?
- Um pouco antes das cinco, pelo que me lembro.
Herr Dargnell calou-se. Finalmente disse:
- Suponho que já tenham chegado a uma conclusão sobre a morte de minha Rose.
- Não completamente - disse Maurrice Lafrance, impassível. - Isto é, não chegamos a nenhuma conclusão nova. Não sabemos quem matou a sua esposa, se é isso o que o senhor quer
saber.
- Nenhuma teoria?
- Algumas. Mas são teorias vagas e fugazes, que nem sequer foram formuladas direito.
- Quer dizer que o inspetor Sven trabalhou em vão!
- De jeito nenhum. O inspetor Sven, ao que me conste, nunca se preocupou muito com o porquê e o como. Ele estava mais a fim de desvendar o quem. Ele não achou que houvesse
indícios suficientes para efetuar uma prisão - desculpou-se Lafrance. - Não naquela ocasião.
- E agora, há? - Herr Dargnell ergueu as pálpebras suavemente. - Quero saber a verdade - afirmou. - Talvez o senhor não possa descobrir, talvez não esteja à altura da tarefa,
ou talvez o senhor não queira descobrir. O que quero saber é o que o senhor vai fazer a esse respeito.
- Bem… nós…
- O senhor vai tomar alguma providência, não vai?
- Não se trata disso - revidou Lafrance. - Em todas as investigações que faço, costumo rever as informações que já tenho e validá-las, para verificar se as pessoas ainda se
lembram do que disseram, para verificar se não surgem contradições, ou qualquer coisa do tipo. Às vezes, porém, a verdade pode ser desfigurada por uma pista falsa, por exemplo.
Já ocorreu ao senhor, Herr Dargnell, que a morte de sua esposa pode não ter sido acidental? Que ela era o verdadeiro alvo do atirador?
Houve um silêncio. Por fim, Herr Dargnell rilhou os dentes.
- Já - confessou baixinho –, tem toda a razão, oficial. Tive certeza disso o tempo todo.
- Mas não comentou nada a esse respeito, nem com o inspetor Sven, nem durante o inquérito?
- Não.
- Por que não?
- Eu não queria me comprometer.
- Não queria se comprometer! Vamos lá. O senhor pode fazer melhor do que isso. O senhor esteve lá naquele dia. Acha que entre as pessoas que estavam ao seu redor naquele curto
espaço de tempo, entre a sua chegada até o momento em que a área foi isolada… acha que entre aquelas pessoas poderia haver alguém que fosse capaz de dar aqueles tiros em sua
esposa?
- Sim. Acho que sim…
Lafrance encarou Herr Dargnell pensativamente. Seu álibi na época da morte da esposa fora muito frágil. Tinha sido detido para investigações e depois solto por falta de provas.
Mesmo assim, muitos habitantes da aldeia o tinham considerado o mais provável suspeito.
- A tese de sua mulher era que duas pessoas haviam sido mortas pelo mesmo assassino - acrescentou Lafrance. - Vamos supor que ela tenha descoberto a identidade do suposto
assassino. Apenas uma hipótese. Ela pode ter guardado essa informação só para si, ou pode mesmo ter falado sobre isso com a pessoa em questão. Pode ter tentado chantageá-la
ou ter tido pena dela, sem saber se deveria denunciá-la. Pode ter se decidido a revelar o que sabia, informou o assassino disso, e ele, sem a menor complacência, a matou.
Portanto, é concebível que ele pode ter escolhido aquela ocasião justamente porque, havendo um número considerável de pessoas presentes, as circunstâncias mostraram estar
a seu favor, visto que ficou difícil, ou, até mesmo impossível, atribuir a ele a responsabilidade pelo crime.
- Creio, oficial - disse Herr Dargnell, mostrando desagrado -, que esse assunto não compete mais ao senhor. E se não resolvê-lo, oficial? Onde é que isso me deixa?
- E se eu resolver?
- Não gosto de gente vasculhando a minha vida.
- Ninguém vai vasculhar a sua vida. Espero que o senhor não se aborreça, Herr Dargnell, se eu lhe fizer uma pergunta um pouco indelicada. Quem se beneficiou financeiramente
com a morte de sua esposa?
- O testamento dela contemplou várias pessoas, mas nenhuma recebeu muita coisa. Suponho que o maior beneficiado, financeiramente, como o senhor diz, fui eu, na condição de
marido.
- Houve algum desentendimento entre o senhor e o finado Dr. Fleissig a propósito de algum diagnóstico que ele tenha feito para o senhor.
Herr Dargnell ficou subitamente muito vermelho.
- N-não, de jeito nenhum - gaguejou. - Eu não tinha o costume de me consultar com ele, para ser franco.
- Por que não?
- Ele não era propriamente um modelo de boas maneiras. Há uma ética profissional segundo a qual existe uma obrigação do médico para com o paciente. Aquilo que o paciente lhe
diz é confidencial e precisa ser mantido como tal. Mas Heinrich não ligava a mínima para isso. Coisas íntimas, coisas que jamais deveriam ser divulgadas, apareciam misteriosamente
na boca do povo.
- Então quer dizer que havia uma certa divergência de opiniões entre os senhores?
- Não era divergência de opiniões. Apenas falta de ética profissional por parte dele. Heinrich era meio doido. É triste que se diga, mas ele se supervalorizava.
- Por falar nisso, o senhor receberá uma intimação para comparecer ao inquérito.
O austríaco fez um gesto impaciente com o braço.
- Mas eu não tenho nada a ver com isso - exclamou.
- Tem tudo a ver.
- Suspeita que eu matei minha esposa?
- Não estou sugerindo nada - disse Lafrance.
- Ah, não, não faria isso, faria? Não precisa se esquivar. Eu poderia ter criado a oportunidade, mas será que teria motivo? Ah, isso é o que deseja saber. Qual era meu motivo?
- Devo supor que tinha algum?
- Talvez…
- Isso é com o senhor.
Maurrice Lafrance levantou-se de repente e vestiu seu casaco de pele.
- Outro inquérito! - disse Herr Dargnell. Depois de uma pausa, rosnou: - Que utilidade ou sentido pode haver nisso? Heldenstatt precisa de policiamento, oficial. Policiamento!
E toque de recolher. Ninguém devia sair depois de escurecer. E todos deviam trancar e aferrolhar as portas.
Neste ponto, porém, Maurrice Lafrance afirmou não poder prestar qualquer assistência.
Capítulo 6
ELE TOCOU A CAMPAINHA E COMO ninguém viesse atendê-lo, tocou novamente e depois bateu com a aldraba por alguns minutos, vigorosamente. Enxugando as mãos num avental, uma mulher
abriu a porta e olhou-o com desconfiança.
- Pois não?
- Boa tarde - cumprimentou Lafrance. - Vim falar com Frau Fleissig.
A mulher abriu a boca de um jeito impulsivo, mas a fechou de novo.
- Vai tomar cuidado, não vai? - perguntou.
Lafrance franziu a testa com aparente dificuldade para entender o que ela estava dizendo.
- Cuidado? Com quem?
- Com Frau Fleissig. Sabe, ela é tão interessada em tudo, mas não faz muito bem para ela se comover por causa do que aconteceu ao marido, coitada. Não vai aborrecê-la, vai?…
Uma pobre velhinha que não fez mal a ninguém. É muito fraquinha, e usa drogas para mascarar a depressão. Tudo aquilo a afetou de uma maneira!…
- Está bem - disse Lafrance. - Eu vim aqui em um espírito franco e amigável, mas já que a senhora avisou, estou perfeitamente disposto a pegar leve com ela.
- Obrigada - disse a matrona, com a devida dignidade.
O oficial sorriu e, em seguida, sua guia rebocou-o através do vestíbulo e abriu uma porta à direita. Entraram numa bela sala de estar, com floreiras e sofás forrados com pano
xadrez.
- Vou avisar Frau Fleissig - disse a mulher, e saiu fechando a porta.
Maurrice Lafrance passeou os olhos pela sala. Havia uma imensa parede de estantes repletas de livros e uma lareira de mármore.
Dali a pouco apareceu a dona da casa. Frau Fleissig não se parecia em nada com a imagem que Lafrance havia feito dela. Usava um vestido de cor vermelho brilhante, um cordão
na cintura, em estilo oriental. Olhando para ele, aparentava ser uma senhora à frente do tempo, cordial e prática.
- Frau Fleissig - cumprimentou ele, enquanto se erguia.
Ela disse: - Me avisaram que o senhor queria falar comigo.
Antes que ele pudesse abrir a boca, porém, ela fez um gesto para o serviço de chá de prata sobre a mesa e falou: - Tomei a liberdade de pedir chá. Se não quiser, posso chamar
a criada e pedir outra coisa.
- Não, obrigado - respondeu Maurrice Lafrance. - A senhora estava me esperando?
- Sim. Aceita um café?
Não, ele não estava disposto a beber coisa alguma. Pôde apenas agradecer, sorrir, um sorriso pálido de cortesia.
- Não espero tomar muito o seu tempo. Quero lhe perguntar sobre um assunto que me interessa muito.
Frau Fleissig sacudiu a cabeça e se sentou em uma das cadeiras, enquanto murmurava: - Estava curiosa por conhecê-lo. O senhor é o substituto do inspetor Sven, não é?
- Sim.
- Veio ver-me por causa do assassinato de Molly?
- Também. Aos poucos precisamos ouvir e desenrolar o fio de toda essa trama. Espero que a senhora não se importe se eu lhe fizer algumas perguntas.
- Oh! De modo algum. Aquele rapaz não lhe contou nada?
- Dirk? Sim, ele me contou alguma coisa. Mas mandou que eu viesse procurar a senhora. Peço que me perdoe. Estou ansioso por ouvir qualquer coisa que me possa falar sobre o
caso.
- Certo, entendo. Estou certa de que deve haver algum motivo convincente para alguém matar Molly. Inveja, ciúme, idealismo mal orientado… Mas quem foi? Alguém com problemas
psicológicos? Acho que sim! Era isso que o senhor queria que eu dissesse?
- Não só isso. A senhora é uma mulher cuja opinião vale a pena ouvir. Poderia me sugerir alguém que possivelmente tivesse um rancor tão profundo que estivesse disposto a acabar
com ela?
Ela considerou a pergunta.
- Às vezes - disse -, para que surja uma disputa, basta que uma das partes seja dominadora e queira as coisas ao seu modo. E Molly era dominadora. O caso parece grosseiramente
familiar, não acha?
O oficial não se deu ao trabalho de refutar a alusão. Em vez disso, buscando as palavras apropriadas, perguntou em tom casual:
- Foi este o local onde ele morreu?
- Meu marido?
- Seu marido. Foi este o local?
- Sim, foi. Bem ali.
- A senhora não poderia me dizer se, antes de morrer, ele teve algum contato com Betty Riedell?
- Que tipo de contato?
- Profissional.
A mulher olhou para ele, contraindo ligeiramente o rosto. Seus lábios permaneceram entreabertos, como se ela quisesse dizer alguma coisa e tivesse esquecido o quê.
- Por que está me perguntando isso? O que isso tem a ver com tudo o mais?
- Teve ou não teve?
- Não nos termos que o senhor está sugerindo. Betty tinha saúde para dar e vender. Mas a verdade é que ela foi nossa empregada por algum tempo.
- Que interessante! Não sabia disso.
- Ela era uma boa garota… a seu modo. Mas também muito instável. Ela se empenhava no trabalho, mas eu sentia que havia algo de muito duvidoso em relação a ele. Coisa que Heinrich
não aceitava de jeito nenhum. Para ele, era imperdoável que uma moça vivesse por aí, se queixando da sorte na vida. “Não vou abdicar de meus princípios só para agradar uma
garota mimada” dizia ele. Pobre Heinrich! Muito genioso, apesar de tão reservado. A fim de preservar a paz, não tive outra saída senão demiti-la.
- Como ela reagiu?
- Ficou muito magoada, claro, e furiosa. Francamente Betty era um caso psiquiátrico. Algumas vezes se comportava de maneira estranha. Mas uma família deve permanecer unida,
acima de tudo. De qualquer modo, Betty arrumou suas coisas e foi embora, sem completar um mês nem esperar por seu ordenado. Isso importa para o senhor?
- Ainda não sei - disse Maurrice, prosseguindo: - Outra coisa que eu gostaria de saber: seu marido chegou a lhe contar que achava estar sendo vítima de uma ameaça?
- Ameaça? Não, acho que ele nunca me falou nada.
- Ameaça, agressão física, bullying. Nada?
- Não, não, acho que não. Heinrich teria ido à polícia se alguém tivesse feito isto com ele.
- Então ele nunca disse nada a respeito?
- Não… não… - respondeu Frau Fleissig.
- Quando a senhora viu seu marido pela última vez?
- Dois dias antes de minha viagem a Stuttgart.
- Havia algum assunto sobre o qual ele mais falasse naquelas últimas semanas?
- Não me lembro muito bem. Falava sobre os temas habituais. A dúvida em torno da paternidade do filho dos Desirée. O mais recente escândalo da esposa de Herr Erzt, o verdureiro.
Sobre uma tal fulana, que meses atrás quis que ele fizesse uma intervenção cirúrgica porque não queria ter o bebê. Uma intervenção cirúrgica, imagine só! Como é que alguém
pode querer fazer uma coisa dessas? Matar um bebezinho por nascer. É evidente que Heinrich se negou. Ele fazia parte de uma escola médica muito tradicional, e opunha-se firmemente
a quaisquer práticas abortivas. Muitos pais, quando confrontados com a gravidez de uma filha adolescente e solteira, julgam que qualquer preço é razoável para resolver tal
situação, principalmente se o aborto puder ser feito de forma rápida e segura. Uma coisa que Heinrich não podia tolerar. “Meu inteiro objetivo é salvar vidas, e não o de realizar
esta forma específica de homicídio” dizia ele. Onde já se viu? Uma mãe querer matar o próprio filho!
- Triste! - o oficial sacudiu a cabeça.
- Eu mesma nem sei quem era a moça. Não cheguei a vê-la pessoalmente. Mas devia ser bem bonita, pelo que o ouvi dizer. Mas como eu ia dizendo, Heinrich falou também sobre
o marido de Molly, que veio aqui discutir a manutenção do memorial em homenagem aos mortos na guerra. Ou foi por causa da hérnia de disco? Bem, foi por algo assim.
Ela deixou a frase no ar. Falara mecanicamente, dando a explicação detalhada como se estivesse pensando em outra coisa.
Os olhos de Maurrice se apertaram.
- Ele esteve aqui… nesta sala?
- Sim.
- A senhora o viu?
Ela respondeu imediatamente.
- Já que o senhor está me fazendo uma pergunta direta, responderei: sim, vi.
- Eles tomaram alguma coisa? Cerveja?… Chá?
- Chá.
- Foi uma surpresa ele ter aparecido?
- Diria que sim - afirmou a mulher. - Muito simpático da parte dele ter vindo e bastante inesperado. Por quê?
- Prefiro não dizer, senhora, se não se incomoda, até que eu tenha colhido todos os indícios.
Maurrice Lafrance ruminou durante alguns segundos sobre as possibilidades sugeridas por esse fragmento de informação. Perguntou: - A senhora tinha afeição por seu marido,
Frau Fleissig?
Frau Fleissig se surpreendeu com a pergunta.
- Eu… sim - respondeu meio embaraçada. - Suponho que tenha uma boa razão para estar fazendo tal pergunta.
- Tenho.
- Promete que fica entre nós?
- Com certeza.
- O senhor sabe, Heinrich era um tanto brusco às vezes. E quando bebia, era ainda pior. Dizia as coisas sem o menor tato. Coisas que um homem nunca deveria dizer para uma
mulher. Felizmente ele passava a maior parte do dia em seu consultório.
- E ele amava a senhora?
- Oh! Heinrich não demonstrava muito os sentimentos. Foi criado por um pai severo, que nunca falou uma palavra de apreço nem para a mulher nem para os filhos. Para ser sincera,
acho que ele estava arrependido por ter casado comigo.
- E por quê, Frau Fleissig?
- Oh! Eu vou dizer por quê! Ele sempre quis ter um filho, um filho homem para dar continuidade ao nome Fleissig. Acho que ele não tolerava a ideia de morrer sem deixar descendentes.
Mas eu não podia… Aos 15 anos, fui submetida a uma cirurgia e tive que retirar o útero devido a uma malformação. Mais tarde, tentamos adotar uma criança, mas o processo deu
errado. Do seu ponto de vista, era uma agonia.
- Para a senhora também?
- Nem tanto. Acho que devemos aceitar as coisas como elas são. Não adianta forçar algo contrário à natureza.
- Agora, senhora, eu vou propor-lhe outra questão! O laudo inicial aventava a hipótese de que ele provavelmente se suicidou. Concorda com isso?
- Não! - exclamou ela, peremptoriamente. - Foi assassinato! Assassinato.
- Tinha certeza que a senhora ia dizer isso. Mas se foi assassinato deve ter havido um motivo. Vou fazer mais uma pergunta e gostaria de saber sua resposta. Não se trata de
uma confissão direta e sim de um ponto de vista. A senhora consegue imaginar algum motivo?
- Inveja, talvez - respondeu ela, franzindo as sobrancelhas, como se Lafrance tivesse tocado num assunto delicado. - Já fiz esta pergunta a mim mesma várias vezes. É a única
coisa que me ocorre.
Maurrice Lafrance assentiu. Fez perguntas meticulosas sobre os hábitos do Dr. Fleissig, a sua qualificação, o nome de alguns pacientes - mas tudo muito superficialmente, como
quem estivesse tateando no escuro.
Quando se levantou, dando o interrogatório por encerrado, duas perguntas novas constavam na página de sua agenda:
Seria Betty Riedell a moça que queria que o Dr. Fleissig realizasse o aborto?
Terá sido mesmo o assunto do memorial… ou da hérnia de disco… que trouxe Jürgen Thröllinger para conversar com o Dr. Fleissig?
Maurrice Lafrance estava satisfeito. Certamente estava obtendo progressos. Algumas de suas teorias tinham sido eliminadas, mas duas ou três certezas começavam a emergir do
mar de suposições em que estivera mergulhado.
No entanto, ainda era muito cedo para deixar-se levar em conjecturas, quanto mais em teorias; faltavam ainda alguns fatos a serem apurados.
Capítulo 7
MAURRICE LAFRANCE PERCORREU O caminhozinho de saibro em direção a casa. Depois de esperar alguns momentos, bateu com suavidade à porta. Ouviu passos do lado de dentro. Aos
ouvidos dele, pareciam lentos e quase hesitantes. Então a porta se abriu e uma mulher apareceu enquadrada pelo batente da porta. Frágil, cabelos castanhos matizados de gris,
penteados para trás. A princípio, foi como se não o visse… como se ele fosse invisível para o seu olhar abstrato. Ela ficou olhando para ele, incrédula, por um momento ou
dois, e então disse: - Pois não?
- Frau Herring?
- Sim. Quem é o senhor?
Quando Lafrance se apresentou, Frau Herring levantou o rosto em cheio para ele. Desconfiada, em guarda, com medo dele, ou com medo de seu distintivo. Rugas grossas de preocupação
apareceram em sua testa.
- Bitte, entre.
Maurrice Lafrance deixou que sua anfitriã o conduzisse para a sala de estar, e sentou-se. Era uma peça redonda, condizendo com a forma de uma torre, com um teto baixo, a janela
engrinaldada de hera.
- Suponho que o senhor queira tomar alguma coisa - sugeriu ela, com relutância.
- Hoje não, danke.
Maurrice Lafrance olhou para Frau Herring. Frágil e delicada na aparência, mas de espírito forte, que não se vergava diante de uma insígnia! Tratava-se, evidentemente, de
uma mulher da alta roda, e ele achou estranho que ela estivesse ali, mofando em uma cidadezinha do interior.
- O senhor veio ver meu marido? É por causa do Imposto de Renda?
- Oh, não - respondeu Maurrice Lafrance com uma expressão adequadamente chocada -, nada disso. Vim ver seu filho. Se for possível, gostaria de dar uma palavrinha com ele.
Frau Herring levou algum tempo refletindo antes de responder: - É sobre o assassinato da garota?
- Sim.
- Se quiser, eu posso responder por ele - sugeriu ela. - De qualquer forma, duvido que haja alguma coisa que ele possa lhe contar que também não possa ouvir de mim.
Ao longo de sua carreira, Lafrance interrogara e fora capaz de sintetizar muita gente. O que ele viu ali não foi difícil de interpretar. Uma mãe abnegada se oferecendo de
forma voluntária para ser dilacerada pelas garras de um representante da lei no lugar do filho mimado, obstinado, teimoso e, provavelmente, metido a sabichão.
Os lábios do oficial se fecharam com firmeza.
- Eu lamento, senhora. Mas vai ter que ser com ele.
Frau Herring deu um suspiro profundo e pareceu relaxar. Ela fez soar um gongo sobre a mesa, e o lacaio entrou.
- Sim?
- Peça a Thomas que tenha a bondade de vir até aqui. - E voltando-se novamente para Lafrance, disse: - Ele está de muito mau humor, sabe, e fechado em si mesmo. Não sei qual
é o problema com ele. Tão nervoso e irritado. Os amigos ligam para ele e deixam recados e ele se recusa a atender. É isso que me enlouquece. Ele não me diz nada. No começo,
achei que fosse aquela mulher, mas não acho que seja. Não pode ser…
- Aquela mulher? Que mulher?
Porém, antes que Frau Herring pudesse responder, um rapaz apareceu na porta do saguão, ainda lutando com o agasalho que havia apressadamente posto por cima de sua camisa com
as mangas arregaçadas.
- Mãe, a senhora me chamou?
- Sim. Tem um policial aqui que quer vê-lo. Eu quero, meu filho, que você escute o que ele tem a dizer.
Frau Herring deslizou para fora da sala. Thomas ficou ali parado, hesitante. Depois de pigarrear num tom alto e teatral, olhou interrogativamente para o oficial.
- Bem, em que lhe posso ser útil? Receio que estou um pouco ocupado no momento, mas, talvez, se o senhor me explicasse a natureza das perguntas que deseja me propor…
- Posso lhe explicar de maneira bem simples o motivo por que desejo falar com você - e Lafrance repetiu o que acabara de dizer para a senhora.
Thomas escutou. Tinha olhos orgulhosos e ao mesmo tempo patéticos. Ao final da narrativa, Thomas ficou em silêncio por alguns segundos e, por fim, disse:
- Esse caso não acabou… não foi resolvido?
- Nada acabou e nada está resolvido! Agora sou eu que comando as investigações. A bem dizer, mal roçamos a superfície da verdade.
- Bem, o que é desta vez? - replicou Thomas, impaciente.
- A primeira pergunta que gostaria de fazer - começou Lafrance -, e é uma pergunta que vou despojar de todo e qualquer detalhe supérfluo é: a sua namorada, Fräulein Riedell,
por acaso não lhe mencionou que sabia de… digamos… um segredo? Um segredo relacionado a uma pessoa ou a um grupo de pessoas da aldeia?
De braços cruzados, Thomas contemplou o lustre, depois olhou para Lafrance.
- Caramba! Este caso já deu o que falar. Mas é interessante que o senhor esteja me perguntando isso. Ela falou alguma coisa sim nesse sentido.
- Ah, é? Lembra-se do que era?
- Não. Não creio que ela tenha chegado a dizer.
- Nem uma palavra? Qualquer coisa?
- Negativo. Eu me lembraria, se ela tivesse dito.
- Outra coisa… Ficaria satisfeito se você pudesse me dizer exatamente onde andou e o que esteve fazendo na manhã de 25 de maio, das 10 horas até meio-dia.
- Puxa! Não estou bem certo de que possa responder à sua pergunta. O que eu fiz na manhã de 25 de que mês?
- Maio.
- Ora, como é que eu vou saber? Já faz… deixe-me ver… quase um ano.
- Não faz nem meio ano - corrigiu Maurrice calmamente. - Algumas semanas, no máximo.
- Dá no mesmo. O senhor não teria, se não for pedir muito, algum ponto de referência?
- Foi o dia em que morreu Frau Dargnell.
- Agora sim! Explicando, tudo fica mais fácil. Na manhã em questão, eu estive no escritório de meu pai.
- Fazendo o quê?
- Fazendo jus à mísera mesada que recebo dele! Mas não fiquei muito tempo, não. Saí de lá bem cedo.
- A que horas foi isso?
- Não me lembro exatamente. Acho que cheguei em casa por volta das dez.
- Foi sua mãe que abriu a porta?
- Eu tenho uma chave, oficial. Eu mesmo abri a porta.
- Então não há ninguém que possa confirmar o que está dizendo?
- Não, creio que não.
- E a que horas voltou a sair?
- Creio que pouco antes das onze.
- Para onde foi?
- Ora, provavelmente apenas dei uma volta por aí.
- Poderia ser mais específico?
- Heldenstätter Marktplatz… Sim, é para lá que eu fui.
- Fez apenas isso?
- Naturalmente. O que mais poderia ter feito? Suas perguntas são muito estranhas, oficial! Poderia me dizer o que significa isso?
- É uma investigação de rotina.
- Por que está querendo saber onde estive naquela determinada manhã? O senhor não está insinuando que eu… Isso é tolice! Primeiro vocês vêm aqui e, sem mais nem menos, me
acusam de ter matado Betty. Agora, pelo que parece, fui eu também que matei aquela velha cabra cega! Palhaçada…
Maurrice Lafrance balançou a cabeça. Quando falou, o fez de forma cautelosa, mas firme: - Prefiro não comentar. Mas é parte de minhas funções verificar todos os fatos. O caso
exige mais do que frias conclusões racionais.
- O senhor falou em Betty… Já sabem por que ela foi assassinada?
“Meu Deus… mais um cobrando resultados!” suspirou Maurrice Lafrance.
- Não, mas estamos averiguando.
- E se tiver sido Nelly, a irmã dela? - sugeriu Thomas. - Nelly tentou afogá-la em um buraco em um lago coberto de gelo quando Betty tinha 6 anos. Betty chegou a perder os
sentidos, mas, no último segundo, foi salva pela mãe. Sem dúvida é suspeito, muito suspeito mesmo, que eu lhe diga isso, mas é a verdade.
Maurrice Lafrance roncou, grunhiu, resfolegou.
- Acha isso? Conferir o álibi de Nelly Riedell. Pronto, tomei nota. Parece ter sido um boato bem comentado que, meses atrás, você esteve dando trela a essa moça.
Thomas encolheu os ombros.
- Está querendo insinuar alguma coisa com esse comentário, oficial Lafrance?
- Preciso investigar as relações passadas de todas as pessoas envolvidas no drama - disse Lafrance com um tom seco. - Dizem que você a encorajou e, mais tarde, a rejeitou
para ficar com Betty, a irmã dela.
- E se for? Comparada a Betty, Nelly era um verdadeiro anticlímax: quieta, obediente… sem sal. Isso não me torna um assassino, ou torna?
- Não, não torna. Bem - disse Maurrice Lafrance, levantando-se -, isso é tudo. Sinto muito tê-lo tirado de seu trabalho.
Em voz alta, Thomas retrucou:
- Costuma acontecer o tempo todo. Nesses dias foi um recenseador do fisco. Hoje, o senhor. É uma pena que eu não tenha podido ajudá-lo.
- Só uma coisa, para finalizar… Eu vi que há um acervo de armas, ali no saguão. Posso dar uma olhada?
- Pode, claro. Venha, eu mostro ao senhor.
Enquanto falava, Thomas precedeu o oficial até a mesa-vitrina que, dias antes, fora objeto da curiosidade de Dirk.
- Está trancada.
Algo em sua voz fez Maurrice Lafrance olhá-lo de esguelha.
- Sim, estou vendo que está trancada. Talvez você possa fazer a gentileza de arrumar a chave.
Thomas ficou imóvel. Sentia-se nervoso, mas não quis demonstrar.
- A chave? Eu não sei onde está a chave.
- Não sabe? Puxa, que azar. Talvez devêssemos arrombá-la. Ou acionar um serralheiro.
O rapaz fez que não com a cabeça.
- Bem, eu… vou falar com mamãe. Pode ser que ela…
Thomas desapareceu em direção à sala dos fundos e, daí a dois minutos, voltava com um molho de chaves na mão.
- Estava no gancho - explicou.
- Ótimo - disse Maurrice Lafrance.
Tomando a chave de bom grado, colocou-a no cadeado e abriu a vitrina. Conforme já tivera oportunidade de ver, entre as armas expostas havia um revólver Taurus, calibre 38,
6,5 polegadas, oito tiros.
Quando Maurrice Lafrance se preparava para pegá-lo, Thomas disse: - Papai o trouxe quando foi para o Serengeti.
Tirando-o do coldre de couro, Maurrice Lafrance examinou cuidadosamente o revólver. “Sem balas, hm”.
- Receio, meu filho, que terá de nos entregá-lo por algum tempo. Vamos precisar dele para o teste de balística. Mas será devolvido assim que for possível.
- Isso é mesmo necessário?
- Sim. Trata-se de uma formalidade que não podemos deixar de cumprir. Cada calibre tem suas características e, a partir delas, o perito pode extrair várias informações que
são fundamentais para inocentar (ou acusar) uma pessoa. - Satisfeito, Lafrance trancou de novo o cadeado e entregou a chave ao rapaz. - Obrigado. Por enquanto é só, mas talvez
eu volte outra hora.
Lenta, arrogantemente, Thomas fitou-o com uma expressão inocente.
- Pode vir sim. O senhor será bem-vindo. Mas, a próxima vez que vier, traga um mandado.
Capítulo 8
UM LACAIO DE LIBRÉ E PÓ-DE-ARROZ abriu a porta.
- Pois não, senhor - disse o criado.
Sem esperar ser convidado, Maurrice Lafrance passou pela porta e a fechou atrás de si.
- Frau Riedell se encontra?
Acompanhando o lacaio, Maurrice Lafrance foi introduzido numa sala grande, forrada de livros, na qual, no sofá, estava sentada uma velhinha encurvada e simpática.
Instantaneamente ela se endireitou, com uma expressão do mais vivo interesse na fisionomia. Tinha um olhar disposto a dar boas-vindas sem demonstrar uma condescendência excessiva.
- Eu sou o oficial Lafrance e vim até aqui para fazer algumas perguntas. Espero que não seja uma hora ruim.
- Boa tarde, oficial. Estava mesmo esperando por sua visita. É a respeito da morte de Betty?
- Sim, suponho que sim.
- Não sou contra o senhor. Só não quero ser puxada para tudo isso outra vez.
- Eu não teria vindo se não fosse importante. Como sabe, houve outro assassinato.
- Pobre Molly! - disse Frau Riedell, com pesar. - Uma mulherzinha muito peculiar, se o senhor me perguntasse. Falassem bem ou falassem mal, ela não se importava. Quando o
primeiro marido se foi, ela não derramou uma lágrima sequer. Ele era tão… bem, severo e disciplinador. Um tipo rude, mal-educado e fácil de irritar. É tão triste que tenha
acontecido isso a ela!
- Achamos que, de algum modo, exista uma conexão entre os crimes.
- Que conexão?
- É isso o que eu quero determinar. Esses eventos são como uma caixa de varetas. Você mexe uma e todas se mexem. Por isso pensei ser possível que a senhora soubesse de algo
que pudesse ampliar meus horizontes. Peço perdão pela falta de tato…
- Absolutamente - disse Frau Riedell. - Basta que me diga quais são esses seus horizontes.
- A senhora não tem nada a acrescentar desde o seu último depoimento, algo que me ajude na apuração dos fatos?
- Não.
- Compreendo que a senhora talvez não se lembre de todos os acontecimentos…
- É claro que me lembro. Afinal foi em dezembro passado. Impossível esquecer uma coisa dessas…
O rosto muito pálido de Frau Riedell mostrava que ela estava obviamente indisposta.
- Sua filha Betty se dava bem com Molly Süssenbach? - perguntou Maurrice Lafrance.
- Para ser sincera, Betty odiava Molly. Chamava-a de “velha gralha antipática”. A mesmice deixava Molly entediada, e frequentemente pulava de um assunto para outro, de tal
maneira que sua conversa por vezes se tornava desconcertante.
- E o filho dela?
- Rolf? O que tem Rolf?
- Betty tinha contato com ele?
- Temos muitos vizinhos e as crianças viviam se reunindo. Sim, ela tinha contato com Rolf.
- E a senhora concordava ou discordava com isso?
- É uma pergunta difícil de responder - falou Frau Riedell devagar. - O que sei é que, no início, Rolf gostava de Nelly, minha outra filha, mas depois, por uma razão qualquer,
transferiu sua afeição para Betty, com quem quis se casar. Mas Betty o rejeitou, e preferiu ficar com Thomas. Thomas acabou se tornando o último namorado dela.
- Essa sua filha - Nelly… Que tipo de pessoa é?
- É uma menina de ouro, que nunca me deu o menor trabalho. Completamente diferente de Betty.
- Será que ela amava ou odiava a irmã?
- Sei que ela amava a irmã - respondeu Frau Riedell -, com um amor verdadeiro e protetor. Era ela quem queria Betty perto dela em casa; era ela quem queria protegê-la da tristeza,
do perigo que corria lá fora. Ter um amor não correspondido foi muito difícil para Nelly. Enquanto Betty saía por aí, Nelly ficava em casa, quase sempre a chorar, fechada
no quarto com livros que nunca abria, querendo, julgo eu, que Betty tivesse mais consideração por ela. - Frau Riedell acrescentou: - Tenho saudade de Betty e gostaria que
ela não tivesse morrido. Não queria que fosse desse jeito.
- Bem, Frau Riedell, agradeço muito por tudo o que me disse. Vem confirmar o que eu já havia escutado. Faltavam porém os detalhes.
- Quer falar com Nelly?
- Se a senhora for capaz de achá-la para mim.
- Claro.
- Então creio que seja melhor que faça isso e peça a ela que venha aqui sem demora.
Frau Riedell concordou.
- Direi, mas é provável que ela não queira ver o senhor.
II
CONTRARIANDO A PREVISÃO, APÓS um minuto Nelly estava sentada na borda de uma cadeira, encarando nervosamente Maurrice Lafrance. Fungava enquanto ia chupando uma pastilha de
hortelã.
Era uma moça austríaca de aparência agradável, de seus 29 anos. Usava uma saia cor do céu, com coletinho de veludo azul e botões dourados. Não havia nenhuma indicação de seus
sentimentos. Aparentava ser angelical (Um verdadeiro colírio para os olhos!), mas poderia, pensou Lafrance, não ser nada daquilo. Ninguém conseguiria, pensou, arrancar nada
dela; nada que ela já não estivesse preparada para dizer.
Maurrice Lafrance decidiu de imediato deixá-la à vontade.
- Posso falar com a senhorita alguns instantes, não posso?
Um leve rubor de excitação subiu às faces de Nelly. A resposta veio lentamente, quase de maneira indesejada.
- Oh, sim! Se o senhor acha que seja importante.
- É importante, Nelly. Mais do que imagina. Como sabe, houve ultimamente algumas mortes misteriosas na vila. Preciso fazer uma ou duas perguntas, que a senhorita provavelmente
já deve ter respondido, mas mesmo assim gostaria de fazer de novo, e fico feliz por ter a sua colaboração.
- Sim?
- Quero saber, se for possível confirmar, por onde andavam por ocasião dos crimes todos os que de alguma forma tinham alguma ligação com as vítimas.
Nelly pareceu ligeiramente intrigada.
- O senhor está suspeitando que eu tenha matado a minha irmã? - perguntou ela, rudemente. - Eu não a matei!
- Mas talvez saiba quem foi?
- Não sei de nada, garanto.
- Mas tem alguma suspeita?
- Ah, a gente sempre tem suspeitas. Betty era uma idiota. Sempre querendo isso, aquilo e mais um pouco e, assim que conseguia, jogando fora. Não sei por que os rapazes gostavam
tanto dela.
“Hum! A gatinha está virando uma tigresa” pensou Maurrice.
- Ainda guarda muito rancor, entendo.
- Não. Guardava, mas hoje em dia não guardo mais rancor. Já superei.
- Ela a ignorava?
- Ficava pior quando ia às festas.
- Não estou culpando a senhorita - disse Maurrice Lafrance, - estou apenas fazendo uma pequena averiguação. E, para isso, tenho que levar em conta todas as hipóteses. Talvez
ela estivesse paquerando o rapaz de que a senhorita gostasse.
- Não! - disse Nelly, obstinada. - Eu lhe asseguro que não sei do que o senhor está falando. Betty fez gato e sapato de quantos rapazes aqui por perto. Fingia que dava bola,
depois os deixava a ver navios, pobres dos bichinhos. Não sei por que está dizendo essas coisas!
- Calma, Fräulein! Deixe-me falar e explicarei tudo num minuto. É uma coisa muito simples, na verdade. Desculpe-me… mas creio que a senhorita está apaixonada por Thomas Herring.
- Eu… apaixonada? Como se atreve?!
- Não estou insinuando que a senhorita seja amante dele. Só acho que o ama.
- Ele é meu amigo e… - disse Nelly. Ela estancou. Então, com uma golfada brusca de palavras, prosseguiu: - Sim, é verdade, eu o amo. Não me envergonho disso. Ele sempre confiou
e se apoiou em mim. Eu não sou exigente; só amá-lo e poder ficar com ele seria o bastante. Confiança, amizade, fé em mim… Mas Thomas não me ama. Não me importa o quanto tenha
de esperar, anos, se for preciso, mas um dia vou acertar as contas com ele.
- Este é o ponto! Sendo Betty a sua rival no amor, a senhorita resolveu dar um fim nela… definitivamente. Já observei casos semelhantes. O respeito pode facilmente se transformar
em ódio; às vezes é mais fácil odiar um irmão ou irmã do que se tornar indiferente em relação a ele ou ela. Não é preciso que eu lhe diga que isso a põe em uma posição incômoda.
Se bem que Lafrance não estivesse olhando para ela, estava perfeitamente consciente do seu olhar ansioso fixo nele.
- Por que o senhor está dizendo isso?
- Simplesmente - respondeu ele -, porque é a verdade. Agora, diga-me uma coisa, Fräulein. - Lafrance olhou para ela e arriscou. Não tinha muito em que se basear. - A sua irmã
estava grávida?
- Grávida? Céus, quem lhe disse isso? Está sonhando.
Ela riu. Havia talvez um toque muito sutil de histeria na risada dela.
- Acho que não - o policial a encarou de novo. - E posso verificar, sabe, com um pouco de tempo e paciência. Para mim, não será difícil. Acho, senhorita, que tem condições
de me revelar um pouco além do que está dizendo.
O rosto dela endureceu.
- O que está querendo dizer?
Ela olhou fixo para ele, as pupilas dos olhos amplamente dilatadas.
- Não entendo aonde quer chegar.
Ela se levantou num pulo e caminhou de um lado a outro, mexendo e contorcendo as mãos.
Lafrance foi tomado de admiração por aqueles movimentos arrebatados e atormentados.
- Vamos lá, Fräulein. Se souber de algo, é melhor que a senhorita me diga.
- Eu não sei de nada - ela disse. - Nada.
- Talvez eu tenha me expressado mal. A senhorita não sabe, mas acredito que imagine. Tenho bastante certeza de que imagina.
- Agora o senhor está sendo sensacionalista!
- Não é sensacionalismo… É outra coisa… É perigoso.
- Perigoso? Para quem?
- Para a senhorita.
- Já disse, não sei de nada.
- Têm suspeitas, então…
- Nem isso - disse Nelly. Sua voz era alta, quase ríspida. - Por que supõe que ela estivesse grávida?
- Não sou pago para supor, Fräulein. Só para registrar os fatos. Estava grávida ou não?
- Como é que vou saber? Como poderia saber?
- Acho que a senhorita deve ter alguma ideia.
- Não tenho. Eu lhe garanto que não tenho. Bem, já que o senhor quer mesmo saber, é melhor que eu lhe conte o que aconteceu naquela manhã. Lembro-me que nós duas estávamos
na sala de visita. Tínhamos discutido e lembro-me de Betty ter me provocado cruelmente e de ter dito que sabia de um segredo. Um segredo que, se fosse revelado, arruinaria
o nome de muita gente da vila. Eu estava com raiva, muita raiva, e não conseguia controlar o que dizia nem o que pensava. Daí, em certo momento eu a vi olhar fixamente sobre
meus ombros, tanto que eu também me virei para olhar. A cortina estava aberta, e pude notar os arbustos do jardim e por um segundo tive a impressão de ver um vulto se movendo
ali. Não pude dizer quem era, mas eu senti que havia alguém lá fora. Quando perguntei a Betty o que ela tinha visto, ela me disse que não era da minha conta. E isso é tudo
o que sei.
- A senhorita não foi ver quem era?
- Eu não tive tempo, pois, nesse instante, Betty largou tudo e saiu correndo. Só tivemos notícias dela quase ao meio-dia. Mamãe saiu e eu fui atrás. Enquanto caminhávamos
ela dizia: “Aconteceu algo com Betty, tenho certeza.” Encontramos minha irmã caída na cabana, morta. Por um momento, ficamos sem saber o que fazer; ninguém se atrevia a mexer
nela, e eu, em pânico, voltei correndo para casa, assustada, desesperadamente assustada. Eu não sei o que pensei, nem sei o que senti. Não conseguia pensar em mais nada naquela
hora. Fiquei lá… deitada com a cabeça enfiada no travesseiro… Via-me só pela primeira vez. Eu tremia toda vez que me lembrava do que havia acontecido a Betty… na forma como
ela havia morrido.
Nelly falava mais rápido, como se estivesse ficando impaciente. Como se tivesse pressa de acabar com aquilo.
- A que segredo acha que ela se referiu?
- Não sei. - Falou em um sussurro ligeiro: - Betty costumava bisbilhotar um pouco. Sabia de tudo que acontecia… Sabe como é. Se ao menos tivesse algum dinheiro, eu ia embora,
mas sem dinheiro não posso.
Maurrice Lafrance ainda insistiu um pouco mais, porém não conseguiu saber de mais nada.
- Terminou? Posso ir?
- Sim, Fräulein. Vá.
Nelly retirou-se.
Lafrance ergueu as sobrancelhas e, tomando uma súbita decisão, esgueirou-se por uma porta lateral adjacente muito conveniente. Sempre rodeando, foi até a parte de trás da
casa.
Havia uma trilha aberta, quase perdida, no bosque de pinheiros. Disposto a fazer um pouco de exploração, disparou a toda velocidade por ela, pois, de acordo com sua orientação
espacial, em algum ponto a trilha devia desembocar em uma planície. Enquanto isso, ia repassando os farrapos de informação que obtivera e se congratulando consigo mesmo pela
ideia que tivera de avistar-se com os parentes das vítimas.
Ele caminhava de cabeça baixa, a passos largos, fazendo um verdadeiro esforço para se colocar na pele do assassino. Estava mais febril do que gostaria de estar, talvez porque,
desta vez, tinha a impressão de seguir a pista derradeira.
Bem… Tenho que me encontrar com o Comissário-Adjunto amanhã pela manhã para fazer um relato do caso, e, seja lá como for, preciso levar respostas… e não só hipóteses.
A dupla face de um crime. Não, dupla não… Quádrupla. Sim. A quádrupla face de um crime. Uma história e tanto, capaz de fundir a cabeça de qualquer psiquiatra.
Sua manobra foi bem sucedida e, meio quilômetro adiante, chegou de modo brusco em uma campina. O céu estava escuro, e o vento soprava em súbitas rajadas. Lá longe, uma trilha
serpenteava por uma íngreme colina em cujo topo se erguia um pinheiro. Ao sopé da colina, uma cabana de madeira construída por cima do rio, com um pequeno píer e um local
coberto para guardar barcos. Perto dali, a eclusa do canal lateral do rio. Lafrance perguntou-se quantas vezes Betty Riedell brincara ali quando criança. Ali - onde ela acabara
sendo morta.
- Então, é isto - Lafrance disse para si mesmo. - Ela veio aqui para se encontrar com alguém. Quem iria encontrar? - Depois, refletiu mais um pouco e completou: - E por quê?
O assassino deve tê-la matado num acesso de loucura… o crime não pode ter sido premeditado, ninguém escolheria um lugar destes para cometer um assassinato.
Alguém, em meio a toda aquela gente, devia ser o assassino. Mas quem? Quem?
Capítulo 9
- POSSO FALAR-LHE UM momento, Herr Thröllinger?
Jürgen ergueu a cabeça apreensivamente.
- O que foi?
- Eu queria saber o que vai acontecer comigo - disse Dirk. - Afinal, quem me contratou foi a sua esposa… Se quiser mandar-me embora, preciso de um ou dois dias para dar uma
ajeitada na despensa.
Jürgen mediu Dirk sem a menor sutileza.
- Nada vai mudar no que diz respeito ao seu emprego. Você continuará sendo nosso cozinheiro, esteja Molly viva ou não. Além disso, vai ser bom que permaneça aqui. Gosto do
fato de você ser metropolitano. Não quero parecer grosseiro, mas posso fazer uma pergunta? Por que foi que veio para Heldenstatt? Diverte-me pensar que tenha vindo só porque
tínhamos uma vaga de cozinheiro.
Dirk compreendeu que não conseguiria manter seu disfarce por muito tempo, mas, apesar da frieza conferida às perguntas, Jürgen não estava se reportando com hostilidade a ele.
- Ah, gosto de lugares exóticos - Dirk encolheu os ombros. - Além disso, uma aventurazinha de vez em quando não faz mal a ninguém.
Depois da refeição, Dirk deu uma volta pelo jardim. Entretanto, esse passatempo, em geral tão absorvente, não o entusiasmou naquele dia.
Dirk começava a se desesperar e a achar que todo a sua dedicação não servira para nada. Toda a sua dedicação não o fizera avançar um milímetro sequer em direção à solução
do enigma. Estava em um ponto do caminho a partir do qual não havia retorno: tudo o que tinha descoberto até ali parecia, repentinamente, ultrapassado.
De volta ao quarto, tirou os sapatos e pôs um par de pantufas. Ah! Como os seus pés precisavam de alívio.
Caminhou até a varanda traseira e recomeçou, uma vez mais, a refletir sobre o que tinha obtido até ali. Pareceu-lhe que toda a verdade estava ali, espalhada ao redor. Tudo
o que ele via… tudo… dizia que sim. E mais… Tinha a sensação irritante de estar a um palmo do ponto X e, no entanto, de ser incapaz de atingi-lo.
Havia coisas que ele não estava entendendo… Faltava coesão. Coesão. Todos os motivos sugeridos até então eram fracos ou inconsistentes. Havia algo de misterioso, de equivocado,
não se podia dizer bem por quê.
Ele não conseguia deslindar o caso. Talvez a simplicidade elementar das coisas o estivesse confundindo. E o incidente com sua patroa lançava um sentimento de ameaça iminente
e sugeria que o tempo ia passando e aquele mistério só tendia a ficar cada vez maior.
Maurrice Lafrance dissera claramente que não conseguia afastar a suspeita de que havia uma ligação entre Jürgen Thröllinger e os crimes.
Dirk continuava com a mesma sensação vaga e desconfortável: a sensação de que isso soava falso, que isso desafinava.
Durante um quarto de hora, foi de um lado a outro, de cabeça baixa e mãos às costas. A coisa toda tinha que se juntar em algum tipo de padrão - mas nada se juntava, nem nisso
nem naquilo. Indícios tentadores apareciam aqui e ali, mas não passava disso.
Uma leve ruga apareceu entre seus olhos.
Um padrão…
Meu sobrinho… Parece que matou um imigrante sírio. Durante a briga, Zachary sacou uma faca tipo peixeira e cravou na costa dele e depois fugiu. Zachary estava de férias. Por
que foi fazer uma coisa dessas?
Ele estava de férias.
Férias…
Por que foi fazer uma coisa dessas?
As palavras despertaram uma recordação vaga em sua mente. Algum boato… O que seria?
Nelly Riedell…
Uma adolescente… suscetível aos apelos dos hormônios. Apaixonada por Thomas Herring, mas rejeitada por Thomas porque ele preferiu ficar com Betty, irmã dela.
Nelly - grávida?
De quem?
De Thomas…
Thomas?
Espere. O oficial dissera alguma coisa.
O que fora?
Sobre Herr Thröllinger…
Na minha opinião esse homem tem uma amante em algum lugar e talvez filhos com ela.
Herr Thröllinger… uma amante…
Dirk revirou seus pensamentos buscando a possibilidade de um paralelo.
Apanhou o seu caderno de notas, deu uma olhada breve para refrescar a memória.
Repassou criteriosamente os diversos relatos que tinha ouvido. Ou, melhor dizendo, os diversos relatos que tinham lhe impingido. Repassou toda a história desde o começo, metódica
e laboriosamente, como faziam os detetives dos rocambolescos thrillers policiais que costumava ler.
Talvez Frau Dargnell não tivesse a informação completa.
- Sim, começo a compreender.
Dirk assentiu com a cabeça, parecendo totalmente embasbacado, com uma animação imensa subindo dentro dele.
Uma lembrança agitou-se no fundo de sua mente. E se?
De repente ele vislumbrou por que aquilo soava falso, por que aquilo desafinava.
- Que coisa! - disse. - Imagino que ninguém teria dado atenção a uma coisa dessas. Ninguém pensaria que uma coisa assim importaria, pensaria? Porém, aí está. É o que basta
para o oficial se basear, imagino.
Fabuloso! Era a primeira vez que formulava conscientemente a suposição de que havia alguma coisa naquilo tudo. Alguma coisa que, até ali, tinha deixado escapar.
Uma nova versão dos fatos se esboçava automaticamente em seu espírito.
Soava inverossímil! No entanto era a única hipótese logicamente formulável a partir dos indícios que havia colhido.
Um pouco de cor espalhou-se pelas bochechas de Dirk. Subitamente, ele se sentiu um pouco mais revigorado.
Contra todas as expectativas, ele se deu conta de que havia descoberto um indício novo. Se ao menos houvesse como…
Uma ideia agitou-se levemente no fundo de sua mente.
Rachelle tinha falado de Bob.
Bob…
Muitas coisas agora adquiriam forma e volume. Não tudo. O caso ainda não estava resolvido… Era preciso decidir o que ia fazer em seguida. A parte boa é que pelo menos tinha
um rumo.
Tinha uma teoria!
O dilema era: a quem deveria pedir ajuda?
Dirk considerou vários nomes e possibilidades. Acabou ficando na escolha inevitável: Maurrice Lafrance. Querendo ou não, o oficial tinha algo imprescindível para averiguar
se havia fundamento na tênue ideia que tinha esboçado: contatos para além da fronteira austríaca.
Seus dentes brancos lampejaram em um sorriso satisfeito… e, de qualquer maneira, a coisa não podia falhar.
II
DIRK SERVIU O CAFÉ DA MANHÃ no dia seguinte às oito e meia.
À mesa, a cabeça loura e bem penteada de Julie estava abaixada enquanto ela folheava as páginas de Diva. Rolf, como sempre, estava silencioso. Ficava a maior parte do tempo
encolhido em sua cadeira, mexendo em seu celular. Como um zumbi, totalmente alheio ao que se passava ao seu redor.
Como em outras partes do mundo, os correios postais em Heldenstatt oferecem uma vasta gama de produtos e serviços. Dentre eles, os serviços bancários e, lógico, os serviços
postais tradicionais. Para comodidade dos moradores, a correspondência da aldeia era entregue às primeiras horas da manhã. Sentado à cabeceira da mesa, Jürgen Thröllinger
tinha à frente a pilha de cartas e faturas que separava em montinhos menores.
Qualquer envelope endereçado a Julie ou a Rolf ele entregava diretamente para os dois. Os outros ele abria por conta própria e separava em categorias. Abriu duas que eram
obviamente contas e largou-as de lado.
Subitamente, assumiu uma expressão um tanto atônita.
- Vejam só!
A exclamação foi tão sobressaltada que todas as cabeças se voltaram para ele.
- Para você, Dirk. Uma carta… - e para acentuar o efeito de suas palavras: - Anônima!
Dirk inclinou a cabeça, deu um pequeno risinho.
- Para mim?
- A-hã.
- Deixe-me ver.
Dirk estendeu a mão. Jürgen fez a carta deslizar pela mesa. Dirk apanhou o envelope. Abriu-o. Ele alisou a folha e leu. Havia apenas uma linha escrita.
Todos puderam ver quando ele cambaleou, e seu rosto ficou perceptivelmente mais pálido. Balbuciou:
- Oh!
No cômputo geral, foi essa uma das indicações de que algo não ia bem.
- Com sua permissão, vou sair para respirar um pouco de ar fresco - murmurou e retirou-se em direção da cozinha.
Os outros três se entreolharam, aturdidos.
Julie levantou-se da mesa.
- Vou me deitar um pouco - disse.
Jürgen colocou-se de pé, inquieto. Lançou-lhe um olhar desconfiado: - Está tudo bem?
- É só uma dor de cabeça - disse Julie e, num impulso, saiu.
A segunda indicação ocorreu dali a meia hora.
Rolf encontrou Dirk na sala de visitas, andando para lá e para cá com um ar preocupado. Na luz baça da manhã, Dirk parecia pálido e abatido. Um espetáculo de cortar o coração!
- Meu caro amigo! - exclamou Rolf, aproximando-se dele. - O que há com você?
Dirk teve um estremecimento, atordoado com essa intervenção inesperada. Recuou, lançou um olhar circular, como para se agarrar em alguma coisa. Apoiou-se na cômoda.
- Tive uma terrível crise de fígado! Não dormi a noite toda.
- Crise de fígado?
- Sim - disse Dirk. Sua voz sumiu num gorgolejo. - Se bem que não sei por quê. Há muito tempo evito alimentos gordurosos.
- Rapaz, isso deve doer. Quer que contate um médico, alguém? - perguntou Rolf.
- Não, não… acho que não é necessário. Mas muito obrigado por ter se oferecido.
- Espero que melhore.
- Eu também - disse Dirk. Completou com um tom seco: - Eu também.
Os seus olhos estavam arregalados e fixos.
Rolf o olhou, sem emoção, sem cólera, apenas com um pequeno traço de ironia. Nunca tinha visto o medo estampado com tanta força num semblante humano.
- Você é quem sabe…
Rolf empurrou a porta da copa.
Assim que ficou sozinho, Dirk mudou. A transformação foi rápida. Endireitou-se e, dirigindo-se para o hall, abriu a porta de comunicação que dava para o quarto dos empregados.
Olhou para o corredor, tudo quieto e escuro.
Foi para a escada e, silenciosamente, subiu até o corredor que dava para o quarto de Julie. Bateu.
- Oi, Julie - disse ele, assim que ela entreabriu uma fresta da porta. - Será que posso entrar e tomar um pouquinho do seu tempo?
- O que aconteceu?
- Preciso conversar com você.
Julie fez um aceno com a cabeça e deu um passo para o lado. Pelo canto do olho, Dirk viu que suas pálpebras estavam avermelhadas e inchadas. Ficou pensando. Será que estivera
chorando? Tentou captar seus sentimentos, mas sem êxito.
- Entre.
- Ocupada?
- Não, não. Estou só sentindo a brisa. A noite está tão linda. Ué, o que o traz aqui? Que cara de morte é essa!
- Para ser franco, vim lhe mostrar uma coisa.
- O que é?
- Bem, provavelmente não é nada, mas alguém mandou algo para mim. Veja!
E Dirk estendeu o envelope que tinha recebido mais cedo. Julie o abriu e desdobrou o bilhete que havia dentro. Dizia o seguinte:
Não pense que vai se safar desta.
Julie olhou para Dirk, com um esgar de horror e espanto.
- Não pode ser! - exclamou perturbada. - Não pode ser! O que significa isso?!
- Significa que as coisas estão se afunilando. Não tinha nada que achar que as coisas seriam melhores para mim do que para qualquer outra pessoa.
- É impossível!
- Não é impossível. A prova está aí. Pense bem, eu estou tentando desmascarar um assassino. Um assassino!
- Acha que é uma advertência?
Dirk assentiu com a cabeça.
- Tem explicação melhor? Claro que é uma advertência.
Parado ali, muito empertigado, Dirk parecia não conseguir relaxar; como se sentisse uma necessidade premente de desabafar seus sentimentos.
- Se a intenção era me deixar amedrontado, deu certo. Acho que vou ser a próxima vítima, Julie.
- Vamos, vamos, Dirk… Não fale desse jeito. Não consigo parar de pensar que está mais para uma brincadeira patética do que qualquer outra coisa. Se acha que está em perigo,
por que não dá um tempo?
- Dar um tempo? - retrucou Dirk. - Quer dizer: afastar-me das investigações!
- Sim.
- Por quê?
- Para que não se torne a próxima vítima, ora! Não foi isso o que acabou de dizer? Melhor um cão vivo do que um leão morto, certo? Ninguém sequer chegou perto de fazer o que
você fez. Para ser sincera, continuo sem entender por que você se meteu nessa confusão. Você tem um diploma de gastronomia, Dirk! Você devia estar tentando ser um gourmet,
não detetive.
- Eu me meti nessa confusão, como você diz, porque um certo dia uma senhora me contou uma história, uma história para lá de bizarra e que estava sendo tratada com descaso
pela polícia.
- Sendo tratada com descaso, vírgula. A polícia já tomou as rédeas do caso, não percebe? Outra coisa. Pense nisto aqui! Se alguém mandasse uma ameaça dessas para mim, eu largaria
mão de ser uma heroína na hora. Ou você quer morrer? É isso o que você quer - morrer?
- É claro que não - disse Dirk. - Só achei que seria legal alguém estar disponível para acompanhar os desdobramentos do caso. Achei que quanto antes tudo isso fosse resolvido,
melhor.
- Esqueça. Quer que eu diga o que deu em você? Surto total, Dirk. Surto! Psicose! Se você não desistir, dentro em breve haverá outra lápide em nosso cemitério.
Dirk não se apressou em negar. Refletiu um instante e depois sacudiu a cabeça, quase com pesar.
- Não - disse ele. - Acho que não posso desistir. Não agora.
- Você não entende…
- O que eu entendo é que cheguei tão perto do alvo que quem está por trás de tudo isso está apelando para as ameaças para me deter.
- De qualquer forma, você concorda comigo, não é?
- Concordo. Ainda mais agora, quando o caso está tendo conotações cada vez mais sinistras.
- Você não tem nenhuma suspeita de quem possa ter enviado este bilhete para você?
- Nenhuma - respondeu Dirk. - Seja o que for, a verdade é que acabei inquietando alguém. Alguém que cometeu quatros crimes. Quatro - e todos eles com grande eficiência. Não
houve escândalos nem suspeitas. Não creio que esse alguém, seja lá quem for, esteja muito feliz de ver o assunto sendo investigado por mim - principalmente sabendo que posso
estar tão perto da verdade. Ele, ou ela, agora está atrás de mim. Alguém quer me matar, e eu não quero morrer. Nunca pensei que essa história pudesse se tornar tão perigosa,
Julie. Pareceu que talvez… - hesitou.
- Sim, Dirk?
- Que poderia ser alguém da vizinhança. Ou o seu padrasto.
Os olhos dela se arregalaram.
- Ainda nisto? Por que acha que Jürgen pode ter feito uma coisa dessas?
- Por que não? É uma explicação muito plausível, que ocorreria facilmente a qualquer um.
- Mas qual seria o motivo alegado?
- Julie! Julie! Não vai dizer que esqueceu o que me disse? “Você precisa fazer com que ele vá embora! Você tem que me proteger dele! Tem que fazer alguma coisa!”
Uma ligeira expressão de contrariedade se estampou no rosto de Julie, que perguntou:
- É a primeira mensagem desse tipo que recebe?
- Sim. Sabe com o que isso parece? Com aquela cantiga que diz:
Durma, meu principezinho, durma…
Já descansam carneirinhos e passarinhos Emudeceram jardins e prados
Também nenhuma abelhinha zumbe mais
O carneirinho… o Dr. Fleissig… já está descansando. Também os passarinhos… Betty Riedell, Frau Dargnell e Frau Süssenbach. Agora - disse Dirk - só falta a abelhinha.
Capítulo 10
AS PRIMEIRAS QUARENTA E OITO horas tinham minguado as esperanças de um desfecho rasteiro e feliz do caso, substituídas gradualmente pelo terreno subjetivo das especulações.
E se isso? E se aquilo?
Às 9:30 da manhã de 10 de junho Maurrice Lafrance teve uma reunião com seu superior, o Comissário-Adjunto Burghard, a respeito do inquérito. O oficial apresentou imediatamente
um resumo do que tinha acontecido e do que ele tinha feito, bem como dos próximos passos que pretendia dar. Disse que ainda não tinha resolvido o mistério, mas descobrira
elementos novos e estava seguindo algumas pistas.
- No começo, todas as investigações estavam centradas em Betty Riedell. Agora estou convencido de que a história começou antes, com o Dr. Fleissig. O que muda a perspectiva
das coisas.
- Muda, mas muito vagamente - disse o Comissário-Adjunto Burghard.
- Eu sei. Mas vale a pena conferir.
As centopeias do comissário se torceram como se quisessem rastejar pela testa abaixo.
- Desde que as coisas andem…
- Tenho aqui o relatório do médico-legista e os autos de processo da polícia local. O inquérito já foi marcado, suponho.
- Sim. Já estive com o juiz encarregado.
- E quando será?
- Semana que vem.
- Estou desencavando algumas coisas.
- Já estava na hora - disse o Comissário-Adjunto Burghard.
- Senhor?
- Eu disse que já estava na hora. De você desencavar as coisas, quero dizer. Parece que até agora você não fez nada. - A voz do comissário tinha um tom de censura.
- Chefe, esqueça os telejornais. Nem sempre dá para confiar neles.
Concluído isso, Maurrice Lafrance ficou livre para seguir uma ou duas das linhas de investigação que havia elaborado na véspera. Meia hora depois, chegava à Mansão dos Teixos,
onde, assim que atravessou o saguão, esbarrou com Dirk.
- Bom-dia, senhor - cumprimentou Dirk.
- Aí está você, meu rapaz.
- Queria me ver?
- Sim.
Dirk se deteve ao reparar na expressão dele. Ali estava um homem sob muita pressão. Dirk já o vira sob pressão antes, mas jamais com aquela fisionomia.
- É. Dá para perceber o quanto está atribulado! Sente-se e fique à vontade.
Lafrance fez um gesto de assentimento. Tinha uma imaginação tão viva que jamais o deixava ver as coisas de um ângulo vulgar ou incolor.
- Estou aos pedaços - disse, acomodando-se em uma poltrona. - Não gosto de ser derrotado. Eu já olhei todos, e acho que o assassino é sim Jürgen Thröllinger.
- Essa teoria tem um ponto familiar. Eu já havia pensado nisso. Mas não acho mais que tenha sido ele.
- O quê? - gritou Lafrance, pasmo.
- É o que estou dizendo. Não acho mais que tenha sido ele - disse Dirk mais uma vez, por entre os dentes, mas dessa vez com certeza intensificada.
- Mas e todas aquela conversa que tivemos, todos os nossos argumentos em favor do contrário? E as evidências… nuvens de evidências, aliás… que se acumulam contra ele?
- Evidências que, a meu ver, não podem ser provadas.
- A cadeia de incidentes começa em um ponto, num único bendito ponto! Desde que aquele cara se infiltrou na vida de Molly Süssenbach, a vila virou de cabeça para baixo. Muitas
mortes, muitos fatos que não têm a menor explicação. Acho que você deveria considerar a possibilidade de que foi ele sim. O álibi dele para a tarde da morte da esposa é, de
longe, o mais estapafúrdio que eu já ouvi. Das três e meia às cinco horas em casa? Naquele breve lapso ele pode tê-la matado com a serena consciência de um homem que cumpriu
o seu dever. Isso abre um vasto campo a especulações, em que o ponto central é um só: onde esteve Jürgen Thröllinger na hora em que Fräulein Riedell foi abatida com o taco
de críquete, ou na manhã em que Frau Dargnell foi baleada ou nos dias anteriores à morte do Dr. Fleissig? Quanto a este último, a própria esposa do doutor disse que Jürgen
esteve com ele, dias antes, supostamente por causa de sua hérnia de disco. E se foi nessa ocasião que ele colocou o cianeto de potássio?
Dirk arregalou os olhos.
- Hérnia de disco? Disse hérnia de disco?
- Por quê?
- Vi Jürgen outra noite comprimindo as mãos nos quadris. Achei que estivesse passando mal… O que o senhor acaba de dizer, pelo visto explica tudo.
- Bem, é uma maneira de ver as coisas - disse Dirk. - Mas lembre-se que não há, absolutamente, qualquer prova de que tenha estado fora de casa na tarde em que a esposa foi
assassinada. Nem tudo pode ser do jeito que queremos. Às vezes as coisas simplesmente são o que são.
- As coisas simplesmente são o que são. Isso é o quê? Algum provérbio? O que eu sei é que concluir o inquérito nesses termos seria a confissão do mais estrondoso fracasso.
Não quero atrelar meu futuro a uma nota de rodapé deste caso. Cada minuto neste lugar, sem resultados concretos, enfraquece ainda mais minha já combalida posição diante do
meu chefe. Algo deve ser feito, convém não esquecer.
- Não esqueci - disse Dirk. - E quanto às armas que o senhor recolheu? Alguma coisa nos testes?
- Sim. Ficou comprovado que nem o revólver dos Herring, nem a pistola de Herr Thröllinger, são a arma que procuramos. Uma pena! Já estou redigindo o relatório. As três balas
(duas que mataram Frau Dargnell e uma que matou Frau Süssenbach) foram disparadas pela mesma arma, não há dúvida alguma. Donde se conclui, parece, que foram disparadas pela
mesma pessoa. Um revólver automático de precisão, de modelo corrente, provavelmente vindo de uma fábrica nacional. Mas me diga… O que você soube? O que andou fazendo? Você
parece animado.
- Estou animado sim.
- E a sua parábola investigativa, como vai?
- Digamos que está no fim.
- É mesmo? E o assassino?…
- Já sei quem é.
Lafrance, cujo primeiro movimento foi de recuo, olhou para Dirk com tanta intensidade que deu a impressão de que pretendia abri-lo para uma vivissecção.
- Já sabe?
- Sim. Pensei bastante e acho que descobri certas coisas que poderão nos ajudar a esclarecer melhor o caso que estivemos investigando.
- Esclarecer melhor o quê?
Dirk empregou um tom confidencial:
- Creio que descobri a verdade, a julgar pelo modo como as coisas se ajustam. Oficial, sei quem matou essas pessoas e posso provar.
- Vamos. Desembuche.
- Tudo bem, eu falo.
- Boa escolha!
Sem se fazer de rogado, Dirk fez uma descrição detalhada de todas as ponderações que tinha feito nos dois últimos dias. Lafrance não o interrompeu uma única vez. Quando o
rapaz terminou de falar, permaneceu mudo por um longo tempo, em transe. Então mostrou sinais de reviver. Expeliu uma ou duas baforadas de fumaça, bufou como um antílope ferido
e, depois de suspirar ruidosamente e de balançar a cabeça, disse: - Havia muito eu sentia que alguma coisa não colava nessa história. Naturalmente, devia ter adivinhado algo
assim. Talvez tivesse sido mais sensato de sua parte se tivesse me contado antes.
- Então concorda comigo?
- Epa! Tem que admitir, meu caro Holzbiene, que é uma história um tanto inverossímil. Não é raro que provas obtidas dessa maneira sejam posteriormente questionadas em juízo.
- De modo que o senhor não acredita!
- Que o que você disse seja a explicação para o que esteja por trás desses assassinatos em série? - Maurrice ergueu os ombros. - Para falar com toda a franqueza, não. Nem
um pouco. É tudo meio novelesco!
- Novelesco? Talvez seja. Mas o que conta são os fatos, não são? Uma vez que o senhor aceite a história contada por Frau Dargnell!
Lafrance pareceu cético, porém não conseguiu dizer nada. O rapaz acabara de apresentar duas coisas: uma teoria e seus respectivos argumentos. Mesmo que quisesse, não havia
como duvidar daquilo. Com dificuldade conteve uma exclamação.
- Mais alguém sabe disto?
- Ninguém, a não ser eu e… agora o senhor.
- Nesse caso, acho que devemos agir, e logo. Confirmar o que você disse vai demandar algum tempo.
- Quanto tempo?
Lafrance efetuou um cálculo instantâneo. Apesar de sua austeridade, de seus gestos comedidos, disse: - O processo deverá durar uns quatro ou cinco dias.
- Quatro ou cinco dias?
- Deve compreender que vou ter que fazer com que isso seja feito discretamente. Fique certo, porém, de que farei tudo o que estiver ao meu alcance para que tais providências
regulares sejam encaminhadas ainda hoje.
- Wow! - disse Dirk. - Proponho que, assim que o senhor tiver checado tudo, se reúna todo mundo que, desde o começo, esteve entrelaçado com o caso.
- Como quiser…
- Então estamos em pleno acordo que, vistas todas as circunstâncias, esta é a solução mais viável para o caso?
Havia uma insinuação de pergunta no tom de Dirk. Lafrance olhou para o forro, em busca de inspiração. Meneou a cabeça:
- Sim - respondeu. - E que Deus nos ajude se não for.
Capítulo 11
NOS DIAS SEGUINTES, LAFRANCE realizou algumas pesquisas tentando, de todos os modos, erguer a colcha de interrogações que parecia envolver o caso como uma névoa impenetrável.
Dois objetivos se tornaram prioritários: primeiro, pôr à prova a teoria de Dirk, ziguezagueando pelo elaborado labirinto de Minotauro da burocracia internacional e, segundo,
acalmar os ânimos acirrados da imprensa que, há semanas, permanecia agarrada ao caso como uma harpia com as garras encravadas na presa.
À medida que as horas iam passando, um crescente receio foi invadindo o espírito de Lafrance. As suas noites eram preenchidas com pesadelos, e todas as manhas ele despertava
com uma sensação de derrota iminente. Aquele homem, esgotado e desanimado, sofria os efeitos da situação precária em que se encontrava. No entanto, no quinto dia as nuvens
finalmente se dissiparam e, para seu imenso alívio, foi obtida a tão esperada resposta que queria. A frustração se dissipou na mesma proporção e uma expressão de benevolência
se instalou em seu rosto.
Uma hora mais tarde, um Lafrance exultante e uma comitiva de policiais chegavam à Mansão dos Teixos. A porta foi aberta imediatamente e logo estavam todos na presença do anfitrião,
que ficou desconcertado com aquela invasão inesperada de seu domicílio.
- Espero que haja uma boa explicação para esse… alarde - disse Jürgen Thröllinger. - Se houver qualquer coisa que eu possa fazer…
- Há uma coisa que o senhor pode fazer sim. Escute…
E no tom de quem se entretém numa conversa domingueira, Lafrance expôs a parte concludente do plano que ele e Dirk tinham elaborado dias antes.
- O quê, oficial? - Jürgen parou de andar em volta do aposento, como se de repente tivesse ficado preso ao chão.
Olhou para o oficial com um sentimento que beirava a admiração. Mas uma admiração particular, fortemente marcada de repulsa.
- Isso mesmo o que o senhor ouviu.
- Ó… Deixe-me ver se entendi… O senhor quer transformar esta sala, a minha sala, em um tribunal?
- Nada de tribunal - Lafrance muniu-se de paciência. - Só quero chamar algumas pessoas para uma conversa vis-à-vis. Se aquilo em que acreditamos for verdade, precisaremos
de toda a engrenagem da lei para fazer justiça. Lamento que as coisas tenham chegado a esse ponto. Não é minha intenção abusar de sua boa-vontade.
- Bote incoerência nisso, oficial! - retrucou Jürgen. - Posso saber quem está patrocinando essa mise-en-scène?
- Não vai ser uma mise-en-scène! Andam por aí dizendo coisas. Nem mesmo dizendo. Insinuando. A investigação cativou toda a região, todo o país e, talvez, todas as galáxias
até Andrômeda. Cabe a mim tomar providências em casos como esse, e até agora não fizemos nada. Às vezes temos que olhar alguém nos olhos para saber o que a pessoa está pensando.
Temos que procurar o sentido de todos os indícios, ou melhor, temos que tentar conciliar os indícios contraditórios.
Julie apareceu e se afundou no gigantesco pufe de frente para eles. Tinha os olhos fechados e dava a impressão de estar com dor de cabeça. Abriu os olhos.
- O que foi? - perguntou ela, a voz um pouco rouca. - Que chororô é esse?
Lafrance explicou a situação em breves pinceladas.
- Que ótimo! - exclamou Julie voltando-se para Jürgen. - Você vai permitir, não vai?
- Você também? - perguntou Jürgen com uma mescla de desprezo e decepção. - Este homem diz não querer abusar de minha boa-vontade, mas convidou a vila inteira para vir aqui
hoje à tarde! Não é irônico?
- A vila inteira não. Três pessoas. Herr Marskin, Herr Dargnell e Frau Fleissig. Sei que isso deve ser muito aflitivo, Herr Thröllinger, mas não temos alternativa. A sua mulher
foi assassinada, Herr Thröllinger. Não só ela. Mais gente morreu. Acreditamos saber quem fez isso. Só falta ajeitar as peças do quebra-cabeça. Para isso, precisamos fazer
um balanço das informações que já temos. E que lugar melhor do que aqui?
Jürgen não teve coragem de replicar. Por algum tempo ele andou de um lado para o outro, os lábios apertados, os punhos cerrados a ponto de marcar as palmas com as unhas.
- O senhor parece ter pensado em tudo, oficial.
- Sim.
- Minha mãe morreu, Jürgen - disse Julie. - Minha mãe foi assassinada! Eu quero saber quem foi.
Jürgen desviou os olhos, fixou-os no fogo, e tentou assumir e manter uma postura calma e composta.
- Que seja então! Mas saiba que esse é o último consentimento que o senhor vai arrancar de mim.
“O último consentimento, hum” grunhiu Lafrance. “Qual será que foi o penúltimo?”
Rolf entrou na sala.
- O que está havendo?
Lafrance se deteve por um momento diante do jovem, examinando-o dos pés à cabeça.
- Não tem nada que queira me dizer, meu rapaz?
Rolf, entretido no tablet com um artigo super-mega-ultra-imperdível sobre a procriação das minhocas, engoliu a saliva e gaguejou: - N-não… Nada.
Ele começou a lançar olhares a Lafrance para enfatizar o que dizia. Mas em vez de fechar um olho, fechava os dois, muito rápido, dando mostras de seu nervosismo.
- Está bem - disse Lafrance. - Sente-se…
Rolf assentiu e sentou-se docilmente em uma cadeira.
- E Dirk? - perguntou Julie. - Onde está Dirk?
- Ele já está vindo, Fräulein - disse Lafrance. - Preocupada com ele?
- Não, mas me pareceu tão febril hoje de manhã. Falava com uma voz agitada que me impressionou.
Ato simultâneo, a porta se abriu.
- Desculpem a demora - Dirk entrou. - Herr Marskin disse que não viria. Achei que deveria haver um meio de convencê-lo.
- E havia? - perguntou Julie.
- Não tenho certeza. Eu apenas… Estou com um pressentimento.
- Eu não acredito, isso é maravilhoso!
- Não vejo nada de maravilhoso - resmungou Jürgen.
Ela continuou impassível, olhando para ele. Em seguida, com um suspiro, recostou-se no pufe.
- Pelo amor de Deus, mantenha o bico fechado!
- Por favor, nada de brigas - disse Lafrance. - Queremos um corte limpo, não uma ferida aberta. Acho melhor irmos para a sala de estar. Vamos tentar ver se dá tudo certo.
Em um minuto estavam todos instalados, esperando as três pessoas restantes.
II
A FRESTA NA PORTA ALARGOU-SE aos poucos, muito gradualmente, muito suavemente, e então, recortado entre as ombreiras, surgiu o vulto de um homem.
- Herr Dargnell! Que bom que veio.
Sem ser convidado, Herr Dargnell acomodou-se em uma cadeira, como se suas pernas estivessem fraquejando. A mudança que ocorrera nele em uma semana era espantosa. Tinha as
faces encovadas, os olhos alcoolicamente distantes, como se estivessem fixos em Marte ou Vênus.
Na segunda vez, entrou um homem idoso, cujo terno novo era completado por um elegante chapéu de feltro.
- Ah, senhores - disse o homem - desculpem-me por chegar tão tarde. A reunião já começou? Disseram-me para estar aqui às três horas.
- Não, a reunião vai começar daqui a pouco. Entre, Herr Marskin.
Frau Mara Fleissig foi a última a vir. Ao ver toda a gente ali reunida, seus olhos se entreabriram, e eles puderam ouvi-la sussurrar, angustiada: - Oh! Deus Todo-Poderoso!
- Senhora… - disse Dirk. - Queira sentar-se ali, por gentileza.
A atmosfera estava tão pesada que dava para senti-la fisicamente. Todos se mantinham à espreita, enquanto se esforçavam para reprimir o nervosismo que ameaçava dominá-los.
Antes que os ponteiros do relógio marcassem três horas, Maurrice Lafrance tirou do bolso uma caderneta de apontamentos, coberta de uma capa marrom. Adiantou-se e disse:
- Lamento tê-los trazido até aqui, Herren und Damen, mas há uma questão que deve ser resolvida. Após alguns meses de investigações frustradas, sem qualquer perspectiva de
elucidação dos fatos, finalmente sabemos quem é o assassino. Viemos aqui hoje à tarde por essa razão. Tivemos quatro mortes não-explicadas. A saber, Betty Riedell, o Dr. Fleissig,
Frau Dargnell e, esta semana, Molly Süssenbach. Aqui está o nome das pessoas assassinadas; quem teria um motivo e qual seria esse motivo para assassiná-las? Estabelecemos
a seguinte premissa em nossa investigação: que devia haver o mesmo assassino para todas elas.
- O mesmo assassino? - atalhou Herr Marskin. - Com base em quê?
- Bem, não há uma base definida. Os crimes foram cometidos de formas diferentes e não há uma verdadeira assinatura do assassino. Mas, pela conjuntura dos fatos, é possível
sim associá-los a uma mesma pessoa e a uma mesma motivação. Vou dizer o que aconteceu e o que ocasionou as tragédias.
- E se nós não quisermos ouvir? - perguntou Herr Dargnell.
- Vocês vão ouvir, mesmo que seja para me desmentir. Acho que seriam capazes disso, mas não creio. Vão por mim: essa história está precisando é da verdade, não da fantasia
ou de suposições. Todos vocês me contaram coisas - disse Lafrance, - principalmente coisas relacionadas às mortes de seus parentes e amigos. Alguns contaram as coisas corretamente,
outros não. Mas antes de mim, este jovem aqui já os havia sondado por sua própria iniciativa. A partir dessa sondagem, ele elaborou uma lista de suspeitos que, por alguma
razão, poderiam estar ligados às tragédias. Li os vários itens para ver se encontraria neles alguma similaridade com as conclusões a que havia chegado o inspetor Sven, meu
antecessor - fez uma ligeira pausa e repetiu com ênfase: - Li os vários itens… e fiquei gratamente surpreso por constatar que havia ali detalhes não explicados pela averiguação
feita por Sven. Hoje concluo que isso se devia, em parte, à sua personalidade, mas o motivo maior é que ele estava abordando o assunto de um ângulo totalmente diferente.
“Visto isto, podemos passar ao ponto em questão: os suspeitos. Herr Dargnell, Frau Fleissig, Frau Riedell e sua filha, Thomas Herring (namorado de uma das vítimas), talvez
Herr Marskin, Herr Thröllinger (com quase certeza), o seu enteado Rolf e a enteada Julie. Entre estes, quem tinha um motivo… um motivo forte e válido? A ciranda de mortes
começou com Betty Riedell. Por que alguém haveria de matá-la? De acordo com o depoimento da irmã dela, Betty teria dito que sabia de um segredo. Um segredo que poderia arruinar
a reputação de gente da vila. O que seria? Não sabemos, porque, antes que ela falasse a respeito, Betty viu alguém no jardim. Quem? Também não sabemos. Mas, de acordo com
o que aconteceu a seguir, não é difícil adivinhar. Imaginem que, na hora em que Betty dizia aquilo, alguém haja passado perto da casa! Betty olha para a pessoa e percebe que
ela, de algum modo, ouviu o que ela disse. Num ato de desespero, Betty sai de casa e vê que a pessoa, em vez de esperar ali mesmo, se embrenhou pela trilha da floresta. Ela,
paralisada de vergonha, e querendo a todo custo justificar o que tinha acabado de dizer, vai atrás. A perseguição termina na cabana à margem do rio. Lá, antes que possa se
explicar, Betty recebe o primeiro golpe. Possivelmente o segredo envolva o nome do agressor. Ele sabe que, se quiser que ela não volte a mencionar aquilo, é preciso silenciá-la.
Ele a mata. Por que um taco de críquete foi escolhido como arma? Crimes assim normalmente significam que não houve planejamento; um crime premeditado certamente teria sido
cometido por uma arma mais segura. Isso sugeria que os planos iniciais do criminoso não envolviam assassinato, ou, pelo menos, não um assassinato ali, naquele lugar. Depois,
foi a vez do Dr. Fleissig. Por que esse homem teve que morrer? Justamente porque, de todos os bons cidadãos daqui, era dele que Betty poderia ter ouvido o tal segredo. Sequer
passou pela cabeça do assassino que, talvez, não houvesse sido culpa do médico que Betty soubesse daquilo. Pelo que a senhora disse, Frau Fleissig, a moça foi empregada em
sua casa durante algum tempo. Imaginem que, sem querer, o doutor tenha contado a ela algo confidencial, coisa da qual se arrependeu mais tarde e, por isso, a demitiu. Seria
possível? Mais do que possível; seria até bastante lógico. Mas o assassino não pensou nisso. Não, ele achou que o Dr. Fleissig havia traído sua confiança. Havia traído sua
confiança falando a outros sobre algo que deveria ter ficado sob sigilo profissional. Assim, qual deveria ser a pena infligida a ele? Havia uma só: a morte. Fingindo precisar
de uma reconsulta, o assassino vai até a casa do médico, consegue dar um jeito de ser levado para dentro, e, num dado momento, bota o veneno no açucareiro pertencente ao jogo
de chá. Feito isso, o criminoso tinha certeza de que as suspeitas não recairiam sobre ele, ainda mais que os indícios jogariam as suspeitas em cima de outra pessoa… a própria
Frau Fleissig.
“Agora, a morte de Frau Dargnell. A pergunta que se impõe é: Por que o assassino matou essa frágil e inofensiva velhinha, uma vez que, pelo que se sabe, ela não possuía relação
nem com uma nem com outra das vítimas? Qual terá sido o critério adotado por ele para cometer tal brutalidade? Será que Frau Dargnell já estava em sua lista negra mesmo antes
de ele levar a cabo o primeiro crime? Ou será que Frau Dargnell estava ciente de qualquer coisa que punha a liberdade dele em risco, sendo que, por isso, cruel e impiedosamente,
teve que assassiná-la?
“As hipóteses são tão inúmeras quanto variadas. Aí é que entrou o componente-chave para ajudar a solucionar essa parte do mistério: o jovem Holzbiene. Cabe aqui abrir um parêntese…
Talvez para a maioria de vocês a vinda de Dirk para Heldenstatt pareça ser casual, uma vez que havia uma vaga de cozinheiro, etc. etc., vaga esta que ele preencheu satisfatoriamente.
O que talvez não saibam é que, antes de vir para a vila, Dirk conversou com Frau Dargnell, quando esta estava em Viena, ocasião na qual ela contou sobre os enigmáticos assassinatos
acontecidos na aldeia.”
- Ela contou para você? - Jürgen dirigiu-se a Dirk. - Por que não nos disse nada?
- Mas ele disse! - interveio Julie. - Dirk me contou tudo… desde o começo.
- Mas não para mim.
- Nem para mim!
- Isso não vem ao caso aqui - atalhou Lafrance. - Importa dizer que, dias mais tarde, quando Dirk leu a notícia da morte de Frau Dargnell, uma luzinha se acendeu em seu cérebro.
A julgar pelo que ele tinha ouvido dela, ela sabia de coisas que o assassino não ia querer que fossem espalhadas, coisas que ele não ia querer que fossem divulgadas, e por
causa disso devia tê-la matado. Essa foi a primeira hipótese, construída a partir de um conjunto de circunstâncias perfeitamente ordenadas. Era uma pista vaga, quase nula,
mas assim mesmo Dirk resolveu vir, se empregar e, em suas horas de folga, investigar os três assassinatos que, até então, tinham ocorrido. Pode parecer estranho, mas foi isso.
Uma má aplicação do termo “extravasar as energias acumuladas”, mas foi o que aconteceu?
“Não falaremos no que se seguiu, não vale a pena relembrar esse trecho. Quando fui realocado para investigar o assassinato de Frau Süssenbach, imaginei uma dúzia de explicações,
cada qual mais grotescamente improvável que a outra. Nenhuma delas levava diretamente a uma conclusão mas eram encorajadoras, se tomadas em conjunto. Posso lhes dizer, com
base na minha pesquisa e no que lhes contei, que mais e mais pontos de interrogação se impuseram à medida que avançávamos no inquérito. E, assim como das outras vezes, ninguém
tinha ouvido nada. Nem mesmo o som do disparo. Ganhei uma semana… ou meu superior traria outros agentes. Não sabíamos o que havia lá fora. “Precisamos nos apressar” advertiu
ele. “Não dispomos de muito tempo.” Chegamos ao momento em que posso dizer, sem a menor contemplação, que sei como foi que tudo aconteceu. O que aconteceu foi o seguinte…
O Dr. Fleissig sabia de um segredo do assassino e, depois de uma de suas habituais bebedeiras, falou sobre isso a Betty Riedell. Ela, por sua vez, quase o contou para a irmã,
Nelly. Eu vou recapitular. O assassino tinha um segredo. Ele, movido pelas circunstâncias, falou sobre isso com o Dr. Fleissig. Este o contou para Fräulein Betty Riedell,
e esta, por sua vez, quase o contou para a irmã. O assassino entrou em pânico; de jeito nenhum ele ia permitir que aquilo viesse à tona! Que aquele escândalo horroroso viesse
à tona. Primeiro foi a vez de Betty. Depois, do médico. Duas mortes limpas, sem testemunhas, sem suspeitas. E, por fim, Frau Dargnell, na véspera do dia do bazar. Era evidente
que havia muitos campos de busca abertos à nossa frente. Hoje, enfim, começamos a enxergar as coisas com alguma clareza. E agora tenho um dever doloroso a cumprir.
Maurrice Lafrance fez uma pausa. A seguir, disse: - Fräulein Julie Süssenbach, eu acuso a senhorita do assassinato de sua amiga, Betty Riedell, do Dr. Fleissig, de Frau Dargnell,
e de sua própria mãe, Molly Süssenbach. Advirto de que tudo o que venha a dizer poderá ser usado como prova contra a senhorita.
Capítulo 12
JULIE FICOU OLHANDO PARA ELE, com a testa franzida, intrigada. Ela levantou e deu uma gargalhada.
- Que coisa mais ridícula de se dizer! Suponho que seja obrigado a fazer isso. É claro que eu não fiz nada disso! - completou, com uma pontinha de sarcasmo.
Lafrance disse:
- A época de sua ida ao exterior - o seu tempo de permanência e o seu posterior retorno - coincide com a época em que ocorreu o assassinato de Betty Riedell. A senhorita foi
a casa dela naquela manhã. Quando cruzou diante da janela, porém, ouviu-a se gabando de saber de algo que, se revelado, causaria uma sensação e tanto na aldeia. Ela não chegou
a dizer do que se tratava, mas o choque em seu rosto vendo a senhorita lá parada, olhando fixamente para ela, foi mais do que suficiente. Foi demais para a senhorita. Se tivesse
tido tempo de pensar, de se acalmar, de ser persuadida a relaxar… mas não se permitiu esse tempo. Ali estava uma pessoa que poderia destruir a sua felicidade. Quis puni-la.
Quis matá-la. Possuída por um sentimento avassalador de pena, tristeza e raiva, a senhorita, invés de parar, passou direto e, tomando a trilha na mata, foi para a cabana,
local onde, tantas vezes antes, tinha se recreado com ela. Conforme a senhorita previa, Betty apareceu logo a seguir. Deve ter havido uma conversa genérica entre as duas,
com ela se justificando, etc. Àquela altura, porém, a senhorita já havia decidido o que faria: matar Betty, antes que o que ela sabia acabasse se tornando um mexerico público.
Sem a menor misericórdia, a senhorita a golpeou… uma, duas vezes… com a primeira coisa que lhe veio à mão. Foi de fato, um assassinato irrastreável, cometido no impulso do
momento, sem tempo para pensar ou refletir. Queria Betty Riedell morta e, poucos minutos depois, Betty Riedell estava morta. A senhorita não percebeu a gravidade do que havia
feito e sem dúvida não viu as consequências daquilo até ser tarde demais.
“Feito isso, a senhorita deve ter pensado: “Se Betty sabia, quem foi que contou a ela?” Só havia uma pessoa que poderia ter contado: o Dr. Fleissig, em cuja casa ela, tempos
antes, estivera empregada. Fosse como fosse, ele também precisava ser calado. Imbuída de tal propósito, a senhorita foi até lá e, em dado momento, colocou o cianeto de potássio
em um lugar em que seria facilmente acessado. Morto o médico, o alívio: seu segredo estava a salvo! Foi nesse estágio dos acontecimentos, porém, que Frau Dargnell começou
a nutrir suspeitas - suspeitas bem definidas - de sua culpabilidade nos assassinatos. Talvez tenha expressado isso pessoalmente à senhorita, não sei. De qualquer forma, foi
um erro. Um erro que lhe custou a vida.”
- Não entendo - disse Frau Fleissig. - Está dizendo que essa menina matou Heinrich? Está dizendo que ela matou todas essas pessoa?
- Sim.
- Mas que razão ela teria? Por que ela ia querer fazer uma coisa dessas?
- Por causa do segredo que mencionei.
- Que segredo?
- O de que Julie estava esperando um bebê fruto de seu relacionamento com Jürgen Thröllinger, seu padrasto.
- O quê? - Frau Fleissig se levantou. Disse com uma espécie de piedade condescendente: - Não está sugerindo que houve algo entre Julie e… - ela titubeou e apontou com Jürgen
com asco -… ele? Os dois se odeiam!
- Aparentemente.
- Essa é a maior loucura que já ouvi! - rosnou Jürgen. As pálpebras piscavam sem parar, enquanto a expressão fisionômica era ao mesmo tempo maliciosa e assustada. - Não há
nenhuma evidência disso!
- Mas também não há evidências em contrário - disse Maurrice Lafrance. - Frau Fleissig contou que o marido, meses atrás, consultou uma paciente que queria que ele fizesse
um procedimento para interromper a gravidez. Mas o Dr. Fleissig, estribando-se em sua consciência e em seus preceitos pessoais, negou-se a assisti-la. Rastreamos a viagem
que a senhorita fez meses atrás a Dortmund. Checamos tudo: com quem esteve, o que fez e por onde andou… e obtivemos alguns dados bem interessantes. Não, a senhorita não foi
para fora em um estágio para ganhar novos conhecimentos. Para começo de conversa, a senhorita ficou hospedada na casa de Herr e Frau Humphraes. E, depois de um período de
seis meses, a senhorita passou três dias internada no St. Josefs-Hospital. Foi ali onde nasceu a sua filha.
- Eu não… tenho… nenhuma… filha.
- Não é mais sua filha porque foi adotada por Herr e Frau Humphraes. Nós apuramos. Pegamos uma cópia dos registros hospitalares. É melhor saber a verdade do que viver em um
mar de mistério e angústia. É sua vez de falar, Herr Holzbiene.
Com isso, Dirk começou o seu relato, fazendo-o em um tom baixo, sussurrado.
- Eu não imaginava que fosse você, Julie - finalizou. - Mas quando rememorei todos os fatos, tudo o que tinha visto, tudo o que tinha ouvido, as coisas foram se ajustando,
um pouco aqui, um pouco acolá. Se alguém conta uma história e, aos poucos, partes dela vão se despedaçando, é preciso descobrir o que está havendo. Essa coisa dentro de você,
Julie, vai matá-la se você não a puser para fora. Mas se a puser para fora, vai ficar tudo bem. Você o ama, não ama?
Cólera, consternação e espanto dominaram sucessivamente o semblante de Julie Süssenback.
- Sim. Desde que o conheci. Sempre o amei.
- A própria mãe agora era sua rival. Algo que, aos seus olhos, se tornou completamente insustentável. Essa foi uma das duas razões por que ela teve que morrer. O que a impeliu
a matá-la não foi a raiva. O que a impeliu foi a paixão. Está aí um exemplo do que um amor pervertido pode provocar. Uma paixão cega e sofrida pelo homem que dizia amá-la.
Que dizia ser você a mulher de sua vida. A mulher por quem ele morreria, se preciso fosse, e… bem, estou sendo subjetivo, pois, é certo, não sabemos qual o teor das promessas
absurdas que ele sussurrou ao seu ouvido para extasiá-la daquela forma, para fazê-la perder todo o senso de moral e respeito pela vida humana. Isso seria o fim da picada,
se não fosse por um pormenor, um pormenor que atenua um pouco a irracionalidade de seus atos. Molly Süssenbach, na verdade, não era a sua mãe biológica (sangue do seu sangue,
como se diz), mas a sua madrasta. Sim, porque é isso o que Molly Süssenbach era: sua madrasta. Você, Julie, é filha de Walfred Süssenbach e sua primeira esposa, Griselda,
que morreu de insuficiência respiratória quando você tinha dois anos de idade.
Ela fuzilou Dirk com os olhos.
- Essa é apenas uma teoria sua - disse ela.
- Pode colocar as coisas dessa maneira, se preferir, mas você sabe que estou dizendo a verdade. Lembro-me de Molly dizer, num momento de exaltação: “Sendo filha minha ou não,
você vai aprender a fazer o que eu peço!” Pedi que o oficial checasse os seus registros de nascimento. Está lá, preto no branco: sua existência, idade, nacionalidade, o nome
dos seus pais, além de outras informações. Está tudo lá.
“A senhorita foi mais uma mosca na teia de seu padrasto. Foi ele que a obrigou a ir longe demais, a ultrapassar todos os limites. Talvez vocês estejam se perguntando: “Mas,
por que Julie, a doce Julie, faria algo tão terrível?” A razão é muito simples. Porque ela estava total, completa, profunda e perdidamente apaixonada por ele. Como um vírus,
a paixão tinha se alastrado nela, tinha tomado conta dela e, aos poucos, minado a sua vida. Mau-caráter, infiel, desleal - faz parte da natureza certos homens trair, enganar,
iludir, mentir, pisar e usurpar aquilo a que não tem direito. Jürgen disse que duas pessoas já haviam feito alguma coisa por ele: Molly e a mãe, disse ele. Mas não era nelas
que ele estava pensando. Não, não… Ele estava pensando em Molly e… Julie. Ele ama você? Sim. Pretende se casar com você? Talvez. Quis assumir o bebê? Não. Aliás, foi graças
às suas instigações que você resolveu não ter o bebê. Mas o Dr. Fleissig se recusou a fazer o aborto. “Ao se considerar o aborto” ele disse, “a questão básica realmente é
se o ato constitui ou não assassinato. Isto, por sua vez, depende de se o feto é ou não um ser humano, porque não existe nenhuma sociedade civilizada em que a lei ou a moral
permita que um ser humano reconhecido seja destruído, e em muitas sociedades até as execuções de criminosos são proibidas. Embora talvez não sejam concedidos a um feto certos
direitos legais, negar que é humano, por qualquer razão, é simplesmente evitar os fatos, e destruí-lo propositalmente, mesmo que venha à existência em condições subumanas,
ou por qualquer outro motivo, assume todas as formas de assassinato assim como é certamente assassinato proposital matar um adulto já em pleno uso de suas faculdades mentais.”
Foi esse o raciocínio do Dr. Fleissig. Isso a forçou a optar pelo procedimento em uma clínica no estrangeiro. Mas, chegando lá, suas inclinações com relação ao assunto mudaram,
como um rio que de repente inverte sua correnteza. Você não mataria o bebê. Não, você teria o bebê - nem que fosse para entregá-lo para adoção. O que teria sido um final extremamente
satisfatório para a história. Mas, então, numa certa manhã, você, de modo inteiramente casual, ouve aquele comentário infeliz de Betty. Imediatamente, vêm as preocupações
e assolam a sua alma. “E se mais gente souber o que eu fiz? Os sussurros, as fofocas, a vergonha a que serei exposta!” No lugar de sofrer, você resolveu revidar. A raiva fez
você se mexer, pensar em uma estratégia, fazer planos, se modificar, passar a ser mais ousada, mais intuitiva para ver e perceber as coisas, mais lúcida e determinada.
“Você veio ao meu quarto, jogou-se em cima de mim, fez todo aquele carnaval representando o papel de alguém que está fora de si, e disse temer que Jürgen quisesse molestá-la!
Suplicou-me que a protegesse dele, que a mantivesse a salvo de sua luxúria. Foi tudo fita, Julie! Fita. Soube disso quando, na quinta-feira, fui falar com você e lhe mostrei
o bilhete que, supostamente, me fora mandado pelo assassino. Vi o quanto aquilo mexeu com você. “Santo Deus!” você pensou. “Mas não fui eu que escrevi isto!” Sim, Julie, não
foi você; fui eu.”
O fim do mundo não poderia ser pior. Subitamente, todo o antagonismo existente entre Julie e Jürgen se desvaneceu. Ela soltou um gritinho abafado. O coração disparou, e o
rosto ficou quente. Percebia que era inútil negar as evidências.
- Chega! Chega! Querido - Julie virou-se para Jürgen, os grandes olhos parecendo boiar num mar de lágrimas -, eu nunca o abandonarei! Nunca, nunca… Não tenho orgulho do que
fiz. Eu dei o tiro! Dei o tiro. Oh! Ainda possa ver… O sangue escorrendo… O agasalho ficando ensanguentado… Ela lá de pé, os olhos fixos em mim, esperando que eu fizesse alguma
coisa. Mas… mas eu não fiz nada! Eu não podia! Ninguém deve querer ser o que não é. Acha que Deus perdoará o que fiz? Será que Deus vai perdoar, Jü? Eu fiz uma coisa má com
essas pessoas, agora não estão mais entre nós… Nunca mais ninguém vai gostar de mim. Eu sou um fracasso!
Jürgen recorreu a todo o poder de autocontrole de que dispunha para reprimir a emoção. Nada mais havia a esconder.
Finalmente ele se adiantou, sentou-se no divã ao lado dela e, tomando-lhe a orelha delicada entre os dedos, suavemente fez com que ela se voltasse para ele.
- Shh… Não. Não, você não é um fracasso. Eu sempre vou gostar de você, ouviu? De certo modo, eu estava esperando por esse dia. Eu e você estávamos esperando, Ju. Ouviu o que
ele disse? Dirk acha que sou um canalha vil e ordinário que fingiu amá-la e, com isso, a arrastou deliberadamente para uma armadilha. Ele acha que tirei a sua honra e roubei
o seu respeito próprio. Mas não se preocupe… Você é tudo o que eu sempre quis. Lembra-se do que eu lhe perguntei naquele domingo, em novembro?
- É claro. Lembro-me de tudo. Escute… - disse Julie. Acima de qualquer outra coisa, sua voz era uma súplica. - Quando eu sair, ainda vai querer se casar comigo?
- Sim, claro que sim.
- E quando eu e você nos casarmos, vamos ter nossa própria casa, nossos próprios móveis, tudo, tudo nosso… só nosso. Então… estaremos juntos… sempre… sem a intromissão de
ninguém. Você vai trazê-la para nós, não é, Jü? Você vai, não vai?
Cuidadosamente, com ternura, Jürgen disse:
- Sim. Eu vou. Eu vou trazer nossa filhinha. Fique calma, agora, e enxugue os olhos.
O rosto dela estava horrível de se ver. Não havia o que dizer.
- Isso ensina mais uma vez que nunca se sabe o bastante de uma pessoa - rosnou Lafrance. - Homens, vamos! Levem os dois daqui.
Escoltado por um par de policiais, um de cada lado, o casal de jovens foi levado dali.
- Devia ser preso e ser julgado, o pilantra - disse Lafrance.
- Mas o fato é que ele não os matou, oficial - disse Dirk.
O grupo se manteve imóvel. Ao mesmo tempo, Rolf gesticulou, excitado.
- Ela matou minha mãe. Ela matou minha mãe. Como é que ela pôde?
- Você sabia disso - advertiu Lafrance severamente. -Percebi isso no dia em que o interroguei. Avisei que estava andando sobre uma linha ética muito frágil. Eu soube que tinha
acertado em cheio, pois você ficou olhando para mim, boquiaberto, e toda a cor desapareceu de seu rosto. Você devia ter me contado, meu rapaz. Devia ter me contado. De certo
modo, você divide a responsabilidade pelo que ela fez. A sua escolha em mentir o colocou em confronto direto com a lei.
- Eu… eu não podia… Não podia…
- Existe a perspectiva de que vá precisar testemunhar contra ela.
Frau Fleissig deixou escapar um uivo cavo e estremecido.
- Oh, Heinrich, Heinrich!
- Graças a Deus está tudo terminado - disse Herr Dargnell. - Que pesadelo!
Herr Marskin virou-se para Lafrance: - Fico muito satisfeito em saber que o senhor não pensou que eu tivesse algo a ver com isso.
E, secamente, bateu em retirada.
“Hum!”, fez Maurrice. “Que gênio.”
Epílogo
À TARDE DO DIA SEGUINTE, UM dia cor de opala, no qual um belo sol espraiava seus raios de ouro nas águas do rio.
Dirk e Lafrance vieram andando pelo atalho do bosque. Dali se via o cimo de uma pequena elevação de terreno, onde, durante o verão, as pessoas jogavam croquet, ou então, portando
enormes chapéus de palha, jogavam tênis.
- Acabo de receber um telefonema do Distrito. Não do Comissário-Adjunto em pessoa, mas do seu principal secretário particular. O caso repercutiu e deixou os jornalistas em
polvorosa. Não é bem esse o final que o comissário queria, no entanto, parece que ele aprovou o resultado.
- Que bom - disse Dirk.
- Não me julgue mal - disse Lafrance. - Já deliberamos sobre isso, mas confesso que, até agora, ainda não entendi muito bem a razão de tantos assassinatos.
- Que bom que tocou no assunto, oficial - disse Dirk. - Sei perfeitamente que o senhor está muito interessado em obter um esclarecimento. Todo esse caso tem um enredo bastante
linear, sabe? Eu devia ter suspeitado de Julie há mais tempo. O que facilitou a solução do mistério, o que deu a chave de tudo, foi uma coisa que o senhor disse.
- Eu?
- Sim. O senhor disse que seu sobrinho havia matado um imigrante sírio, ou coisa do tipo. Em Hannover. Foi essa recordação que me levou à solução do caso.
- É? - estranhou Lafrance.
- Daí que eu pensei assim: “Um jovem viaja a Hannover; lá se mete em um rolo que, é óbvio, não tinha nada a ver com o propósito inicial de sua viagem. Mas” pensei eu, “outro
alguém havia dito que fora para a Alemanha. Alguém… quem?” Daí me lembrei que fora Julie; ela dissera ter feito um estágio por lá. Mas que garantias nós tínhamos de que ela
tinha feito um estágio? E se ela tivesse ido por outro motivo? Um motivo, sabe-se lá, relacionado com a história contada por Frau Fleissig sobre a tal moça grávida? Quanto
mais ruminava, mais me convencia. E quanto mais me convencia, mais se impunha a necessidade de tomar uma ação decisiva.
- E quanto ao que Frau Dargnell disse: “Aquele jeito de andar”?
- Ter citado isso para o senhor foi estupidez minha - disse Dirk. - Acontece que no dia acabei afirmando para ela que algumas coisas, eventualmente, poderiam ajudar, ou facilitar,
a identificação de um assassino. A forma de coçar o queixo, ou a forma de mexer no cabelo… Sim, ela disse a frase - ou murmurou, que é talvez uma palavra mais adequada às
circunstâncias - e eu achei que, naquela hora, ela estivesse evocando alguma particularidade referente ao assassino. Mas não. Na verdade, ao dizer aquilo, ela estava se lembrando
do Dr. Fleissig. O Dr. Fleissig, pelo que eu soube, tinha um tumor no fêmur direito. Ele sentia dor o tempo todo, mas o fato de andar já era um bônus, porque, segundo a opinião
de especialistas, a perna deveria ter sido amputada. Fui eu, fascinado com o relato dela, que acabei trocando as bolas. Isso é algo sobre o qual o senhor não tinha conhecimento.
Não haveria como ter, porque eu não contei ao senhor o que Frau Dargnell disse exatamente.
- Mas me contou - protestou Maurrice. - Me contou quando estávamos na ponte.
- Sim - concordou Dirk -, mas não tem conhecimento exato porque, entenda, a própria Frau Dargenll não pronunciou a frase em questão se referindo ao assassino, como equivocadamente
imaginei. E quando o fez, o senhor nem mesmo estava com ela, oficial.
- E dificilmente poderia tê-lo feito considerando-se que eu não estava em Viena naquele dia - disse Lafrance.
- Sim.
- Agora entendo.
- O que o senhor entende?
- Que não deveríamos ter procurado um assassino manco, por exemplo.
- Posto dessa forma - sorriu Dirk -, até que tem graça. Eu não creio que a chantagem tivesse entrado nos planos de Frau Dargnell. Não, ela não era uma chantagista. Depois
de voltar de Viena, ela precisou de um tempinho para pôr as ideias em ordem. Houvera dois crimes. Quem seria o assassino? Suponho que, para chegar a um nome, ela tenha se
sentado e refletido bastante, arquivando e descartando as possibilidades. Por fim, ela descobriu… Era Julie Süssenbach. A filha de sua ex-patroa. Não, ela deve ter se negado
a acreditar. Julie? A Julie que ela ajudara a criar? Porém, por mais difícil que fosse, os fatos eram esses.
“Morta Frau Dargnell, uma coisa foi levando à outra. Julie não negligenciou nada para que a farsa fosse completa. O que nos deixou no limiar de um mistério cada vez mais intrigante.
O único porém, a meu ver, é que ela pecou por confiar demais em si mesma. A confiança excessiva, uma característica comum entre a maioria dos criminosos.”
Um táxi se aproximava pela estradinha.
- Ué, quem será? - perguntou Dirk. - Frau Riedell não tomaria um táxi!
Uma moça corada e ofegante saltou do automóvel. Tinha a saia levemente arregaçada e segura por uma das mãos.
- Oh! - exclamou Dirk, correndo para ela. Era como se uma estátua tivesse de repente se animado. - Rachelle! Rachelle!
- Olá, Dirk. Me disseram que você estava aqui.
- Como você veio parar aqui?
- Linha férrea.
- Por que não disse que viria?
- Foi uma coisa de última hora - disse Rachelle. - Eu não poderia ficar longe de você, você sabe. Papai ficou muito bravo, disse que ia me deserdar.
Dirk meneou a cabeça, como que para demonstrar que estava compreendendo.
- Você é um amor, Rachelle. Venha cá… Conheça o oficial Lafrance! - Assim que os cumprimentos foram feitos, acrescentou: - Vamos entrar… Eu trouxe a chave.
Entraram. A cabana era um antigo armazém de dois pisos, com paredes de nó de pinho e um telhado de zinco de duas águas. Na sala quadrada e fresca havia cadeiras e uma mesa.
- O que estamos fazendo aqui? - perguntou Rachelle.
- Aqui ocorreu o primeiro homicídio. Achei que seria o lugar ideal para escrevermos o epílogo do nosso caso.
Vozes e passos se fizeram ouvir e, dali a pouco, duas sombras taparam a porta. Como em uma cena de teatro, entrou Frau Riedell. Os olhos refletiam um temor urgente. Pareciam
dizer: “Aqui foi o lugar onde Betty morreu. Devo entrar?” Junto com ela estava a filha Nelly, que batia os saltos de maneira indignada.
- Nós recebemos o seu recado, oficial - disse Frau Riedell - e achamos melhor aceitar o convite.
- Ah! Mamãe… Não diga bobagem! - protestou a moça, rispidamente. Mas a verdade é que ela corou, com uma expressão furiosa.
Maurrice Lafrance executou um gesto que poderia situar-se entre uma saudação e uma reverência.
- Obrigado, senhoras.
Daí a pouco apareceu um rapaz alto, magro e esbelto, com ares de conspirador.
- Desculpem a minha demora.
Dirk procurou observar a reação de Nelly.
- Oh! - exclamou Nelly, correndo para a porta, com o rosto iluminado pela alegria. - É você, Thom? Eu não sabia que você viria!
Thomas Herring levou um susto ao reconhecer a moça.
- Um certo recenseador do Fisco Transiberiano pediu que eu viesse - Thomas olhou torto para Dirk.
Um pouco de lado, o oficial Lafrance cerrou os dentes sobre o tubo do cachimbo. Seu aspecto era o de calma e autocontrole, mas quem o conhecesse melhor perceberia a sua excitação.
- Sente-se - disse Lafrance.
- Prefiro ficar de pé.
- Acho que querem saber por que estão aqui, por isso vamos ao que interessa. Ontem à tarde Julie Süssenbach assinou uma confissão de culpa por todos os crimes que lhe foram
atribuídos. Na confissão, ela revelou o esconderijo do revólver que usou em dois dos crimes. Ficou tudo melhor, agora que temos a prova física.
- Vocês merecem uma medalha de honra ao mérito - disse Thomas. - Mas, ufa, agora acabou. Terminou… Chegou ao fim.
Dirk olhou em torno a sua seleta audiência.
- Peço desculpas por todo esse mistério, mas não. Não é o fim. Há uma coisa em aberto.
- Que coisa?
- Quem foi o homem que Julie diz ter visto abraçando a mãe uma noite dessas - respondeu Dirk, sacrificando o gênio criativo de Lafrance perante a velocidade de seu próprio
raciocínio. - Discutimos isso, não discutimos?
- Mais essa! - resmungou Lafrance. - Julguei que, com tudo apurado, isso fosse só um blefe dela.
- Não creio. Essa é a segunda razão pela qual Julie matou a mãe. Foi isso que canalizou a sua determinação, digamos. Procure me acompanhar… As pessoas não fazem as coisas
por mil razões. Não. Elas fazem as coisas por quatro razões primárias. Sexo, dinheiro, ódio ou amor. Sabemos que, em grande parte, Julie atirou na mãe porque tencionava ficar
com Jürgen. A razão sexual… Mas essa questão, que ela abordou no depoimento ao senhor, deve ter tido um peso e tanto durante a tomada de sua decisão. A mãe tinha um caso!
Isso inferiu no quê? Ódio, oficial. Muito ódio! Jürgen não era, de fato, o melhor dos maridos. Ele repetidamente insultou e usou todo mundo que amava (e muita gente que não
amava) sempre que era conveniente para ele.
- Mas com quem?
- Com Thomas, claro.
Lafrance deu um passo à frente. Disse, de modo bastante incoerente: - Como é que é?
- Naquele dia, Thomas, você me falou que era informante. Meio que ironicamente, mas falou. Isso explica por que Julie o viu em companhia da mãe. Molly estava atrás de pistas
a respeito do assassino da ex-governanta. Provavelmente ela o interrogou a respeito, e você, para satisfazer a sua ânsia por informações, concordou em anotar tudo de que se
lembrava. Mas você não sabia muito, o que explica por que Rolf a viu queimar os papéis naquela tarde, “papéis com desenhos de cifras de música no verso”.
- Isso é verdade? - perguntou Lafrance para Thomas. - Creio que seria bem melhor se confiasse inteiramente em nós.
Thomas não fez nada além de mordiscar o lábio. Finalmente, com a voz rouca e irreconhecível, disse: - Ela veio falar comigo lá em casa um dia. “Andava querendo falar com a
senhora, mas nunca imaginei que seria assim” disse eu. Dava para ver que ela estava muito ansiosa. Quando disse o que queria, fiquei meio confuso. “Se lembrar de algo, ligue
para mim” disse ela. No começo, não dei muito crédito. Daí, pensei: “Não tenho nada a perder.” Foi o que fiz. Naquela noite, sim, voltei a falar com ela. Mas foi breve. Entreguei
o meu relatório e caí fora. Não vi ninguém; nem soube que tinha sido visto.
- E aquela história de abraço… e beijo?
- Um exagero poético, oficial - disse Dirk. - Julie viu a mãe e um homem juntos? Sim. Em uma situação comprometedora ou até mesmo imoral? Não. Essa foi uma adição feita por
ela, digamos, para enfeitar a narrativa. Essa historinha de faz de conta não poderia se sustentar para sempre.
- Ah! Então foi a essa mulher que Frau Herring estava querendo se referir quando falei com ela! “Meu filho está nervoso e irritado! No começo, achei que fosse aquela mulher,
mas não acho que seja.”
- Se foi o que ela disse, deve ter sido.
- Dá tudo na mesma, no final das contas - disse Thomas, levantando-se. - Acho que isso é um problema de segunda ordem. E agora, cavalheiros, se não têm mais nada…
Thomas ia saindo, mas então olhou para Nelly, sentada de cabeça baixa. Ocorreu-lhe uma ideia tão audaciosa que quase o deixou sem fôlego.
- Posso falar com você, Nelly?
Um leve rubor coloriu as faces da moça.
- Oh! Thom… Betty era adorável, mas eu não sou. Sou quieta.
- Bem, isso é uma das coisas que fazem de você uma pessoa adorável. Sei sempre onde estou pisando. E posso dizer de primeira mão que é uma de suas qualidades mais positivas.
- Vá, filha - disse Frau Riedell. - Vá, pode ir.
Nelly olhou para ela hesitante e prosseguiu para fazer o que lhe foi pedido. Os dois jovens se retiraram de braços dados.
- Parecem feitos um para o outro - disse Rachelle.
- Preciso ir também - disse Frau Riedell, tentando manter a compostura. - Este lugar me lembra… Betty - deixou transparecer claramente um tom de tristeza. - Ela conseguiu
andar com oito meses, sabiam? Sempre disse que queria fazer balé. Tinha comprado sapatilhas de bailarina… Ia fazer uma audição.
- Lamento o que aconteceu com ela - disse Lafrance. - Creio que é hora de virar a página, olhar para o futuro. Obrigado por ter vindo.
Frau Riedell saiu.
- Pobrezinha! - disse Rachelle. - Não há dor pior do que a perda dos filhos.
- Bem, isto é tudo - disse o oficial, dirigindo-se à Dirk. Apertou-lhe a mão, num gesto de simpatia. - Meu jovem Dirk, a raposa.
O rapaz cambaleou um pouco de susto com aquele comentário.
- Raposa, oficial?
- É. Uma raposa sabe qual é o melhor momento para agir. Tem sentidos apurados. Mantém-se na retaguarda e ataca apenas na certa. A raposa não é um animal gregário. Prefere
a articulação misteriosa, isolada, mas eficaz. Parabéns pelo que fez! Você até que é bom nisso. Por que não pensa… sei lá… usar essa sua aptidão… mais vezes? Posso precisar
de você um dia.
E deixando a frase diplomaticamente no ar, Lafrance fez uma mesura e foi embora.
- “Mais vezes?” O que será que ele quis dizer?
Rachelle sorriu para ele.
- O que aconteceu com você? E aquela história de: “Um dia vou ser o maior mestre-cuca que já existiu”?
- Meus sonhos não incluem descascar batatas para sempre.
- Já que tem um dom para expor tanta coisa sobre os outros, Dirk querido, talvez devesse expor algo sobre você.
- Sobre mim? O quê?
- Devia dizer que me ama.
- Isso todo mundo vê - disse Dirk. - E você? Me ama? Você pode dizer não quantas vezes quiser, Rachelle, mas um dia acabará dizendo sim.
Rachelle lhe ofereceu um olhar no qual o convidava a ler sua sinceridade.
- Acha mesmo que não tenho coração? É claro que eu me casarei com você, seu bobo. Só seja bom para mim, por favor - murmurou ela.
Dirk tomou-a nos braços.
- Farei tudo o que puder. E, desde que você não me ponha para fora de casa, serei fiel a você e a nossos votos.
- Você deve me achar terrivelmente egoísta.
- Se soubesse quantas vezes imaginei essa cena! E Bob? Ele já se afastou de você?
- Bob? Ele é cheio de ego e masculinidade, mas nada mais do que isso.
- Grande Bob! Falando nisso, sabia que foi graças a uma frase com que ele brindou você que consegui solucionar o caso?
- Uh, sim, sim? Estou ouvindo.
- Eu estava lá - disse Dirk - me perguntando: o que posso fazer, o que não estou vendo, o que ainda não fiz? Aí me lembrei… Não pense que vai se safar desta. Foi assim ó…

 

 

                                                                  Alec Baurer

 

 

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