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ESCÂNDALO NA IGREJA / Morris West
ESCÂNDALO NA IGREJA / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Morris West, o famoso romancista é um católico que julga que as leis matrimoniais da Igreja estão erradas e paradas no tempo. Para examinar com lógica e objetividade o fundamento e a aplicação dessas leis, e para ao mesmo tempo propor a reforma das mesmas em nome dos fiéis, da razão e da própria fé, entrou em colaboração com Robert Francis, jornalista de fé anglicana e os dois escreveram o presente livro, dando o subtítulo de: “Memorial de Queixas e Proposta de Reforma das Leis e dos Tribunais Matrimoniais da Igreja Católica Romana”.

 

 

 


 

 

 


PREFÁCIO

Há um escândalo atualmente na Igreja Católica Romana.

É um escândalo de grandes proporções — um escândalo de injustiça que, de uma maneira ou de outra, afeta quinhentos milhões de pessoas, corpo estatístico da Igreja Católica.

Atinge nações inteiras como a Itália e a Espanha, nas quais o divórcio foi abolido por meio de uma concordata e até os que não são católicos não podem ao mesmo recorrer.

O escândalo fere a todos os que tenham contraído ou desejem contrair casamento com uma pessoa católica. Corrompe as relações entre homens e mulheres de boa vontade em todos os cultos e comunidades.

Decidimos trazer o escândalo ao foro público num esforço para despertar a consciência da Igreja Católica Romana e dos seus legisladores.

Na Igreja Católica Romana, tal como é hoje constituída, o elemento comungante ou o não comungante que é atingido pelas suas leis não dispõe de recurso legal contra a lei ou contra quem a aplica.

Está sujeito a dispositivos que, bons ou maus, existem. Não existe um mecanismo que lhe permita contestar-lhes ajustiça, a validade ou até os fundamentos doutrinários. Reconhece um princípio de autoridade, mas não se pode proteger do exercício ilegal ou sem critério da mesma.

É forçado, em vista disso, a recorrer a declarações e debates públicos a fim de incitar a Assembleia a postular-lhe conjuntamente as queixas e os anseios de reforma.

Tem o direito e o dever de assim proceder porque, como diz Karl Rahner, “todo indivíduo é responsável na sua época e à sua maneira pela Igreja e pela vida da Igreja”. Tem uma responsabilidade semelhante como elemento da família humana em geral.

Foi por isso que escrevemos este livro. Sabemos muito bem dos seus defeitos. É manifestamente impossível num só volume referir todas as variedades de normas, práticas, atitudes e interpretações numa organização de quinhentos milhões de pessoas.

É impossível — às vezes em virtude de razões diplomáticas — reconhecer plenamente o mérito das dioceses da Igreja onde homens competentes e devotados estão desenvolvendo uma jurisprudência local evoluída em assuntos matrimoniais. É igualmente difícil, pelo receio de um mal maior, expor toda a injustiça que prevalece nos lugares onde a jurisprudência ainda é antiquada.

Tentamos palmilhar por isso o meio da estrada. Se nossas queixas são injustas, estamos prontos a ouvir a refutação. Se são justas, julgamos ter um direito inalienável a pedir correção e reforma.


Morris L. West

Robert Francis


INDICE


Prefácio

LIVRO 1 — MEMORIAL DE RAZÕES

1 — Os Itens do Memorial

2 — Casamento — O Contrato Social

3 — Casamento Cristão — O Ideal

4 — Casamento Cristão — A Realidade

5 — O Casamento Católico Romano — A Lei

6 — Casamento Cristão e Divórcio

7 — Casamento Cristão — Qual é o Recurso

8 — Casamento Católico — Os Tribunais Diocesanos

9 — Casamento Católico — A Santa Rota

10 — Casos Concretos

11 — Pessoas Privilegiadas

12 — O Número do Irmão e da Irmã

13 — Razões das Queixas


LIVRO 2 — UM PROJETO DE REFORMAS


14 — Condições Prévias para as Propostas

15 — A Finalidade da Reforma

16 — A Base da Reforma — A Verdade

17 — Argumentação em Favor do Novo Critério

18 — O Método de Determinação

19 — Os Obstáculos à Reforma

20 — Quem é Responsável?


LIVRO 3 — AS TOLERÂNCIAS DA IGREJA PRIMITIVA


21 — Que é Tolerância

22 — Da História e dos Historiadores

23 — O Testemunho dos Padres da Igreja

24 — O Testemunho dos Sínodos

25 — O Divórcio e o Concilio de Trento

26 — O Costume dos Homens Honestos


LIVRO 4 — 0 POVO DE DEUS


27 — Os Descontentes da Assembleia

28 — A Autoridade Dentro da Assembleia

29 — Do Dogma, da Definição e da Infalibilidade

30 — Da Lei na Assembleia

31 — Discordância do Povo de Deus

32 — O Protesto Contra a Injustiça Matrimonial

33 — Da Lei Matrimonial e da Liberdade de Consciência

34 — Do Casamento Tal Como o Conhecemos

35 — Dos Legisladores Celibatários

Resumo das Razões


Mas há ocasiões em que acontece que a justiça produz o mal.

Sófocles

 

 

Mais luz! Mehr Licht!

Goethe: últimas palavras

 

 

Quem me disse, / quando eu ainda era um feto no ventre de minha mãe, / “Tens a tua vida, mas com a condição / de acreditares nisso”? — Ninguém! Nem o próprio Deus! / Portanto, cavalheiros, digo, não tendes o direito / de impor condições à minha vida...

Morris L. West: O Herege


DEDICATÓRIA

 

A todos os que sofrem porque uma assembleia cristã deixa de dar-lhes tolerância, caridade ou simplesmente justiça.


LIVRO 1

 

MEMORIAL DE RAZÕES

 

 

Contra a legislação e os processos legais existentes na Igreja Católica Romana sobre o casamento cristão e a injustiça que daí decorre.


1

 

OS ITENS DO MEMORIAL

 

Iniciamos este livro com três proposições, que cremos verdadeiras:

a) Muitas das leis matrimoniais do Código de Direito Canônico Católico Romano são leis más, atentatórias da dignidade humana e baseadas em conceitos anticristãos da pessoa humana.

b) A administração dessas leis pelos tribunais matrimoniais da Igreja Católica Romana deixa de distribuir quer a justiça natural, quer a caridade cristã.

c) Podem e devem ser feitas urgentes reformas para eliminar um flagrante escândalo e uma constante injustiça da vida corporativa da Igreja Católica Romana.

O objetivo que tivemos para escrever este livro é despertar a consciência da comunidade católica para que esta apele para os seus pastores e legisladores, a fim de conseguir modificações imediatas e necessárias.

Escrevemos como crentes. Um de nós é católico romano; o outro é anglicano. Acreditamos que o homem é feito à imagem de Deus. Acreditamos no homem e na mulher, diferentes mas iguais em dignidade, cuja união de corpo e de espírito constitui a célula social básica.

Acreditamos na comunidade humana que se desenvolve das relações entre o homem e a mulher.

Acreditamos na comunidade cristã, a assembleia dos fiéis, dentro mas não separada da comunidade humana.

Acreditamos no direito de qualquer comunidade a regular a sua vida corporativa. Acreditamos no direito de todo homem a protestar contra regulamentações corporativas que interferem com a sua pessoa, as suas relações de família ou a sua dignidade como filho de Deus.

Acreditamos na autoridade. Acreditamos também na consciência privada.

Acreditamos que o homem é imperfeito e que nenhum dos seus julgamentos, das suas leis ou das suas obras está acima de contestação ou de melhoramento à luz de novos conhecimentos ou de maior experiência.

“Mais luz!” É de que precisamos todos. Queremos as janelas abertas.


2

 

CASAMENTO - O CONTRATO SOCIAL

 

 

Nas paredes de todos os cartórios ingleses de registro civil, vê-se uma proclamação impressa que diz: “O casamento é a união de um homem e de uma mulher contratada por toda a vida.”

A definição é admirável. Não diz nem de menos, nem de mais. É simples e ampla, mas muito precisa. Implica mais do que afirma. Ganha sentido graças ao próprio lugar onde é apresentada.

Os costumes matrimoniais são territoriais e culturais. Se alguém quiser ter várias esposas ao mesmo tempo — ou vários maridos — tem apenas de ir para um território onde essa prática seja legal. Por outras palavras, é a comunidade que faz as leis matrimoniais, embora não dote o indivíduo do direito de casar-se. Este pertence em absoluto ao indivíduo.

Examinemos agora o que diz a definição.

“O casamento é a união de um homem e de uma mulher...” O homem é diferente da mulher. Um e outro continuarão diferentes. Não perdem a sua identidade. Os seus direitos não são diminuídos. Ao contrário, são acrescidos, porque cada qual dota o outro de novos direitos que nenhum deles possuía anteriormente. A comunidade reconhece que, juntos, marido e mulher formam uma nova célula social, com direitos e deveres sociais adicionados. Um mais um faz dois. Um mais um também faz um.

A união é “contratada”. Assim sendo, aplicam-se ao caso as leis normais dos contratos. Ambas as partes devem ser mentalmente capazes. Uma pessoa demente não pode fazer um contrato legal. Não o pode também um menor e, portanto, a maturidade legal deve ser estabelecida. O consentimento deve ser livre de ambos os lados. A coação anula qualquer contrato. Não deve haver impedimentos legais. Não se pode comprar uma casa com dinheiro roubado — e ninguém pode casar-se quando já é casado com outra pessoa — devendo ainda o contrato ser atestado e registrado pela comunidade. A comunidade não é uma das partes do acordo, mas tem interesse no mesmo desde que uma nova identidade de grupo passou a existir dentro da estrutura comunitária.

A união é “contratada” “por toda a vida”. Se pode durar por toda a vida é uma questão aberta. Os contratos podem ser violados, anulados ou revogados por mútuo consentimento. Os contratos podem exigir arbitramento. Entretanto, a intenção é clara desde o início... a sociedade pelo resto da vida de um homem e de uma mulher.

Deve notar-se a esta altura que a definição não declara o objetivo da união. As pessoas se casam por toda espécie de razões — amor, dinheiro, sexo, posição social, filhos, espingardas engatilhadas ou, simplesmente, porque se sentem sozinhas.

Entretanto, nas várias fórmulas do contrato de casamento e nas suas habituais interpretações, a finalidade da sociedade é claramente expressa: afeição mútua, apoio mútuo, fidelidade, união dos corpos, procriação dos filhos — tudo o que esperançosamente se entende por “união”, “unidade”, “associação”.

Há uma grande dose de esperança em cada contrato. Espera-se que as mercadorias compradas correspondam aos prospectos de propaganda. Espera-se que a caixa de mudança não se desprenda do carro novo. Espera-se que a companhia pelo resto da vida — ou a própria pessoa — não se gaste muito sob o atrito da coabitação.

Entretanto, na administração dos contratos a esperança não tem lugar. Há apenas presunção legal, que é pelo menos uma meia-ficção, necessária para lubrificar a máquina rangedora da vida da comunidade. Quando as pessoas se casam, a lei presume que saibam o que estão fazendo. Presume que tenham discutido as suas divergências e as tenham resolvido antes de concluir o contrato. Presume que tenham os recursos necessários para enfrentar as longas exigências do acordo que fizeram.

Mas quando o casamento entra em colapso, quando o peso do contrato se torna excessivo para qualquer das partes ou para ambas, as presunções são reconhecidas como falsas e a comunidade é chamada a arbitrar uma terminação do contrato por meio de divórcio ou separação e de um acordo.

Quando se aceita o arbitramento da comunidade, aceitam-se automaticamente as condições por ela decretadas. É o preço que se paga pela participação e pelo serviço do grupo. Justiça áspera? Sem dúvida. Mas a vida é áspera, complicada e confusa e a comunidade tem de proteger-se por meio de uma lógica pragmática e muitas vezes draconiana.

“Se o casal não pode viver em paz, nós também não poderemos viver em paz. Por conseguinte, pague o acordo, desfaça a infeliz união e comece de novo — mas desta vez com mais critério, sim?”

Tudo isso parece ao leitor muito rude, muito simples, muito pouco relacionado com as complexidades das relações humanas? Perturba-se com o que há de paradoxal em tudo isso?

Se assim acontece... muito bem! Estamos diante de um fato importante: o que se pensa do casamento depende do que se pensa sobre o homem... e sobre a mulher!

Que é o homem? Um animal pensante de origem desconhecida, dotado de impulsos gregários e reprodutivos, condicionado por um longo processo evolutivo às artes da organização social? Uma criatura tribal que existe em várias regiões em fases diferentes de desenvolvimento, que elaborou uma série de soluções para os problemas da sobrevivência e da continuidade?

Se é isso o que ele é, cumpre julgar os seus esforços adaptativos pelos resultados obtidos e não por padrões morais importados de outros níveis de desenvolvimento. E não se tem o direito de destruir o mecanismo de sobrevivência enquanto ele não tenha aprendido a criar ou aceitar outro mais eficaz.

Se impusermos a monogamia a um selvagem da Nova Guiné, estaremos destruindo a sua economia. Quando se proíbe o divórcio em todo um país, como a Itália, tem-se nas mãos um grande número de uniões irregulares e uma permanente injustiça para com os filhos que são o fruto dessas uniões.

Ainda que se tenha um conceito diferente do homem, não se pode fugir ao problema da regulamentação social nas sociedades pluralistas do século XX. Que se deve fazer? Homogeneizar a sociedade com um credo imposto — como a Igreja tentou fazer na Europa medieval e os marxistas tentam fazer hoje em dia? Ou aceitar a pluralidade, aceitar a dignidade divina do indivíduo e o direito da consciência privada, orientando a legislação para uma ordem pública baseada no primado da pessoa e no papel subordinado da comunidade?

Seja qual for o caminho escolhido, deparar-se-á com um dilema. A Igreja Católica Romana se encontra hoje num dilema na questão do casamento.


3

 

CASAMENTO CRISTÃO - O IDEAL

 


Um cristão é uma pessoa que professa a crença em Jesus Cristo como Deus, Homem e Salvador do mundo e que, depois de submetido ao rito da purificação (batismo), é admitido à Assembleia dos Crentes, a Igreja. Desde o instante de sua admissão, é um homem transformado. Recebeu um novo dom. Está em união com Cristo. Transcendeu a natureza humana e participa de uma vida sobrenatural.

A comunidade a que pertence é uma comunidade sobrenatural, Ele e os seus semelhantes na Assembleia estão unidos em Cristo, com Cristo e por intermédio de Cristo, Homem-Deus. São os Eleitos, os Escolhidos. Todos os seus atos têm uma natureza nova e especial.

O casamento entre eles é o dom perpétuo de um Eu Especial a outro Eu Especial. O casamento entre eles não é mais um simples contrato. É um sacramento — e isso significa um mistério. É análogo ao dom que Deus faz de Si mesmo às Suas criaturas. A vida mútua deles, sexual, emocional, intelectual, é um meio pelo qual o Dom de Deus é perpetuado para eles, para seus filhos e para a Assembleia dos Crentes. Por conseguinte, a união deles não pode nem deve ser desfeita.

Tudo isso é uma matéria de definição doutrinária na Igreja Católica Romana.

Como se vê, a definição é amplamente diferente da que se encontra nos cartórios do registro civil inglês. Uma se refere a um contrato natural entre participantes de uma sociedade natural. A outra descreve uma união sobrenatural entre participantes de uma sociedade sobrenatural.

E é aqui que o dilema começa a mostrar as suas pontas.

O “natural” é o que se vê, ouve, prova ou toca — e o que se deduz graças à razão dessas experiências. O “sobrenatural” está além da experiência material e além da razão, salvo se a razão for ajudada pelo Dom de Deus. O “natural” é o que conhecemos. O “sobrenatural” é aquilo em que cremos sem conhecer. Em alguns casos, é aquilo em que alguém diz que devemos acreditar... sem pensar!

Logo depois de feita essa distinção, todos ficam confusos. O próprio S. Paulo não pôde contornar nem atravessar com palavras as dificuldades práticas do casamento cristão transcendental. Exprimiu com emoção e com beleza e associação ideal do homem e da mulher em união com Cristo, como Cristo está em união com a Sua Assembleia de Crentes. Mas não pôde legislar sobre ele, exceto da maneira mais peremptória.

Os legisladores da Igreja Católica Romana estão confusos desde então e exatamente pelo mesmo motivo. A união sobrenatural começa como se fosse natural, muito natural. A Assembleia dos Crentes sobrenatural é também sempre embaraçosamente natural. Por isso, os legisladores estiveram sempre com um pé no céu e o outro firmemente plantado no barro de nossa terra. Tentaram aplicar as regras do contrato natural ao que é, ao menos idealmente, uma relação sobrenatural que em verdade não é absolutamente um contrato mas o dom livre do homem à mulher, da mulher ao homem, de Deus a ambos, de ambos a Deus.

Essa tentativa sempre falhou. O seu insucesso é evidente no século XX. O escândalo do insucesso continuará até que ataquemos a questão fundamental, que é a seguinte:

Um casamento entre cristãos é sempre e necessariamente um casamento cristão na verdadeira acepção do termo? Se não o é, o que assim o torna?


A presente resposta da Igreja é a seguinte:


Presumimos que se trata de um casamento cristão quando todas as exigências legais — que nós mesmos estabelecemos! — foram cumpridas. Se nossa presunção é falsa, o ônus da prova em contrário cabe diretamente às partes contratantes. E o simples insucesso do casamento não constitui uma prova em contrário.


— Eminentemente razoável em vista dos precedentes. Na prática? Vamos ver como funciona.


4

 

CASAMENTO CRISTÃO - A REALIDADE

 

 

É um fato da vida que os casamentos entre cristãos dão tão bons ou maus resultados quanto os casamentos entre os que não são cristãos.

Há uniões felizes e construtivas. Há uniões infelizes e destruidoras. E há as que parecem manter-se num impasse de indiferença.

Presumindo que em todos esses casamentos as normas canônicas tenham sido observadas, são todos ainda, no sentido espiritual e sacramental, casamentos cristãos?

Ou, colocando a questão dentro do quadro bíblico:

Deus juntou cada casal de tal maneira que nenhum homem pode separá-los?

O mais conservador dos teólogos confessará que ninguém sabe com certeza. O país da fé é menos bem cartografado do que o país dos fatos. Se lhe pedirem que decida um caso, recuará até à norma judiciária estabelecida pelo Papa Inocêncio III (morto em 1216), segundo a qual o laço matrimonial deve ser favorecido (favor matrimonii) nos casos duvidosos. Isso dispensa o teólogo de maior especulação, mas não resolve o problema humano de um casal para o qual o vínculo é um tormento destruidor.

Os teólogos liberais modernos raciocinam de maneira completamente diferente. Dizem eles:

 

Aceitamos a presunção da lei, segundo a qual, desde que as exigências legais estejam preenchidas, existe um casamento cristão. Aceitamo-la, porém, como uma presunção e não como um fato provado. Se o casamento se desfaz, há outra presunção igualmente lógica: as partes não tiveram a intenção ou a capacidade de realizar um casamento cristão. Existe, portanto, uma dúvida razoável quanto à validade da união.

Se existe uma dúvida razoável, as pessoas é que devem ser favorecidas e não a instituição. Não há justificação teológica para o pronunciamento draconiano de Inocêncio III. Como qualquer manifestação de formalismo jurídico, está o mesmo sujeito a contestação. O casamento foi feito para homens e mulheres.

Não devemos mutilá-los e podá-los para que se adaptem — como se o tálamo conjugal fosse o leito de Procrustes.

 

Tanto os teólogos conservadores quanto os liberais podem apresentar boa argumentação. Poderão até ficar de acordo quanto à dificuldade de legislar sobre uma das mais velhas e mais complexas relações humanas. Mas — e aqui é que está a dificuldade! — teólogos não são legisladores. Cabe-lhes apenas dar opiniões que poderão ou não influenciar posteriormente os legisladores.

Os homens e mulheres cristãos que fazem parte da comunhão católica romana têm de obedecer às leis que existem — boas e más. Nas circunstâncias atuais, não têm influência nem na elaboração nem na modificação das leis. Não têm recurso diante de uma lei má ou de uma má interpretação. Trata-se para eles de pegar ou largar. E largar, para muitos, significa sair da Igreja ou ser expulso dela (excomunhão).

Assim, quem está sujeito ao Código de Direito Canônico ou venha a sê-lo em virtude de casamento com um católico, é conveniente ser informado dos seus dispositivos.

Para isso, precisa-se de uma cabeça lúcida e de um senso considerável de proporção... e de humor!


5

 

O CASAMENTO CATÓLICO ROMANO - A LEI

 

 

As leis matrimoniais da Igreja Católica Romana se dividem em duas categorias: as que são consideradas de origem divina e as que têm sido decretadas pela Igreja como uma sociedade que ensina e governa.

A Lei Divina, tal como é expressa pela doutrina corrente da Igreja, é a seguinte: o casamento cristão é uma união sacramental indissolúvel, contraída e consumada entre cristãos batizados.

Como todas as leis, divinas ou humanas, esta parece muito simples — até que chega o momento de aplicá-la. A Igreja Católica Romana aplica a lei divina por meio de um código de definições, interpretações e regras administrado por um tribunal em cada diocese e por um tribunal central em Roma chamado a Santa Rota.

São essas leis e esses tribunais da Igreja que constituem o tema principal deste livro.

Examinemos três apenas das definições católicas e vejamos aonde nos levam.

Que é um homem? Efetivamente, os cânones definem o homem como um indivíduo masculino sadio e potente de dezesseis anos. Uma pessoa que não goza de sanidade mental não pode participar de qualquer contrato. Um indivíduo masculino que é permanentemente incapaz de ter ereção, penetrar numa mulher, e depositar o sêmen é considerado impotente e não pode contrair um casamento válido. Dezesseis anos é uma idade arbitrária na qual se presume a maturidade física e mental.

Uma mulher? Deve ser sadia e potente, com quatorze anos de idade. A potência numa mulher é definida como a capacidade de receber no corpo o órgão masculino ereto.

Note-se que nenhuma dessas definições leva em conta a maturidade psíquica da pessoa. A Igreja, que cuida de almas, toma pouco conhecimento legal do psiquismo. Desse modo, as definições são, para dizer o mínimo, estreitas.

Se essas duas pessoas estreitamente definidas são batizadas em qualquer das comunhões cristãs, são julgadas legalmente cristãs. Entretanto, se uma delas faz parte da Comunhão Católica Romana, o casamento deve ser regulado pelas normas da Igreja Católica. Se duas pessoas que não são cristãs se casam e uma delas se converte ao cristianismo, o casamento não é considerado indissolúvel. O novo cristão pode invocar um antigo dispositivo legal, chamado o Privilégio Paulino, para dissolvê-lo.

Tendo assim definido o homem e a mulher — excluindo ao mesmo tempo de qualquer categoria um grande número de seres humanos — a lei os classifica em três grupos, dois dos quais — os que não são cristãos e os cristãos que não são católicos — são colocados em desvantagem legal e pessoal em relação ao outro. Todos os homens nascem livres e iguais como filhos de Deus, mas diante da lei alguns são muito mais iguais do que os outros!

Chegamos com isso aos processos legais e às suas consequências.

Você, João, é um homem sadio e potente em idade matrimonial, batizado na Igreja Católica Romana. Quer casar-se com Maria, que é uma mulher sadia e potente, batizada na mesma comunhão.

Os dois apresentam-se ao padre de sua paróquia munidos das respectivas certidões de idade e de batismo. Declaram então a intenção de se casarem.

O padre da paróquia é obrigado a certificar-se em primeiro lugar de que não há impedimentos ou barreiras legais ao casamento.

Ambos parecem sãos e ele presume que sejam.

Ambos têm um aspecto físico normal e, portanto, ele presume que ambos sejam potentes. Não pode, de fato, interrogá-los a esse respeito porque deve presumir, em espírito de caridade, que, sendo bons cristãos, vocês não fizeram ainda um teste de suas capacidades!

As certidões de batismo atestam a idade. Os documentos batismais provam que fazem parte da Igreja Católica.

O padre deve então, mas raramente assim procede, fazer uma série de perguntas, todas elas cheias de intenções.

 

Trata-se de um primeiro casamento para os dois?

Se a resposta é afirmativa, vai tudo bem. Mas cuidado! Vocês estão começando a estabelecer toda uma série de presunções com que jamais sonharam. Estão em idade de saber; presume-se, portanto, que conheçam a natureza do casamento cristão e todas as suas implicações. Estão em idade de consentir; presume-se, portanto, que consintam livremente no contrato. O ônus da prova em contrário recai diretamente sobre vocês a partir desse momento.

 

Se não se trata de um primeiro casamento, algum de vocês já enviuvou?

Há nesta pergunta um pequeno truque bem preparado... para a mulher! Se você é viúva e alega que não é, seu marido pode conseguir posteriormente um decreto de nulidade sob a alegação de que você é “uma pessoa substancialmente diferente” daquela com quem se casou. No direito canônico, uma virgem não é substancialmente diferente da que não o é e uma mulher que já teve um filho não é substancialmente diferente da mulher sem filhos. Mas uma mulher, depois de casada, é uma matrona que passa da posse do pai para a de um marido. E julga-se que o direito de primeira posse legal do homem é violado quando ele não sabe do fato e o aceita. É esse um antigo conceito romano que passou inalterado para o direito canônico moderno.

A simples perda da virgindade é outra coisa e o direito canônico não toma conhecimento dela a não ser que o homem escreva no contrato de casamento que espera uma noiva virgem e não aceitará outra. Assim sendo, as mulheres devem dizer a verdade no mínimo em referência ao casamento anterior, pois no direito canônico as mulheres são consideravelmente menos iguais do que os homens!

 

Se não é um primeiro casamento, cometeram adultério entre si sob promessa de casamento posterior?

Se fizeram isso, cometeram um crime contra a decência pública e, de acordo com um antigo princípio, não devem tirar proveito dele e não podem, portanto, casar-se na Igreja. Se cometeram fornicação juntos, poderão casar-se. Na realidade, talvez seja melhor que assim procedam! Mas a questão do proveito dessa delinquência não é levantada pela lei. A mulher que engravida para conseguir o homem está plenamente protegida.

 

Qualquer de vocês já foi divorciado?

A resposta afirmativa a essa questão gera imediata confusão. Um católico pode contrair um .casamento válido com uma pessoa divorciada. Entretanto, as exigências e ressalvas que governam a situação são tantas que reclamariam só por si um capítulo à parte.

 

Foram ambos suficientemente instruídos na doutrina católica sobre o casamento?

Foram? Neste caso, reforçam a primeira presunção de que conhecem e aceitam todas as condições do contrato sacramental.

 

Pretendem ter filhos?

Se disserem que não, a Igreja não aceitará o contrato de casamento como válido. Se disserem que sim, fecharão automaticamente a porta a uma alegação posterior de nulidade — exclusio boni prolis — o que significa que excluir do contrato a intenção de ter filhos é torná-lo nulo e insubsistente. Mas, se ambos vocês sabem que não podem ter filhos ou se uma das partes é estéril — não impotente! — e maliciosamente oculta o fato, o contrato se mantém! E há muitas zonas intermediárias cinzentas que podem dar trabalho durante anos aos, advogados.

 

Há alguma relação de consanguinidade entre vocês?

Você não se pode casar com sua irmã ou seu irmão, porque isso é incesto. Não se pode casar com um primo-irmão, porque isso é um grau proibido de consanguinidade. Precisa de permissão especial para casar-se com um primo em segundo grau.

 

Há qualquer relação espiritual entre vocês?

Você não se pode casar com seu padrinho ou madrinha!

 

Já foi, o homem, ordenado?

Em caso afirmativo, não se poderá casar sem uma dispensa papal.

 

Qualquer de vocês já proferiu votos solenes de religião?

Em caso afirmativo, não poderá haver casamento válido sem dispensa papal. Se proferiu Votos Simples — uma distinção que pouco sentido tem para o leigo — o casamento será válido, mas não legal. Por outras palavras, a pessoa está casada mas não devia estar!

 

Algum de vocês está sob pressão para se casar?

A coação anula um contrato. Na Itália e em outros países latinos, muitos pais prudentes fornecem aos filhos uma carta incisiva que mais tarde pode ser apresentada nos tribunais eclesiásticos como prova de coação. Trata-se certamente de fraude, mas, num país onde não há divórcio e numa Igreja cujos cânones são contrários à pessoa, a fraude é muito comum.

 

Algum de vocês estabeleceu condições especiais para o casamento?

Insistiu o marido na virgindade da mulher? Exigiu a mulher um acordo matrimonial? Alguém especificou um limite de idade para o outro? Neste caso, será conveniente fazer as condições explícitas desde o início, porque não será possível alegá-las depois quando a noiva desaparafusar a perna de pau ou o noivo revelar brandamente que está falido. “O comprador que tome as suas precauções!” é um velho e cínico princípio de contrato e os juízes eclesiásticos ainda o invocam!

Ainda que o pastor haja corrido toda a sua lista de perguntas achando todas as respostas satisfatórias, fará ainda correr os banhos, que solicitam a qualquer elemento da comunidade que revele os impedimentos ao casamento de que possa ter conhecimento.

Se o pastor não fez as perguntas da lista — e muitos não as fazem — ainda se presume que os nubentes poderiam responder satisfatoriamente e os dois serão considerados como casados, legal e sacramentalmente, até e a menos que possam provar o contrário.

Mas não estão ainda de todo casados.

Salvo em circunstâncias extraordinárias, a cerimônia de mútuo consentimento deve ser realizada na presença de um sacerdote católico e de duas testemunhas.

Se o casamento se efetua no registro civil, não terá validade aos olhos da Igreja porque a forma é deficiente. Será preciso validá-lo numa cerimônia religiosa antes de consumá-lo.

Consumação? Há disso também uma definição clara, ainda que primitiva e duvidosamente cristã de conceito. O casamento é considerado legal e espiritualmente consumado quando João penetra Maria no ato da união física. Uma vez executado o ato — com violência ou com ternura, ou ainda que se verifique uma só vez e nunca mais — o casamento é considerado legal e espiritualmente completo e vinculado para sempre perante Deus e os homens.

Um casamento que não foi consumado pode ser dissolvido, mas provar que não houve consumação a um tribunal da Igreja é uma tarefa difícil e muito embaraçosa. Trataremos do assunto mais detidamente depois.

É tempo de olhar para outro casal que se ama.

Carlos é um homem são e potente batizado na comunhão anglicana. Joana é uma mulher sã e potente batizada na comunhão católica romana. Querem também casar-se.

Carlos é um rapaz simpático, que professa uma série de princípios cristãos. Acredita no casamento de vínculo indissolúvel. Gostaria de ter filhos. Gostaria de casar-se na Igreja, de preferência naquela a que pertence, mas, estando enamorado, está disposto a fazer a vontade de Joana e casar-se na Igreja dela.

E assim, um dia, armado com certidões de idade de batismo, Carlos e Joana vão conversar com o pastor dela. Carlos é submetido ao interrogatório normal e cortês. Responde a todas as perguntas de maneira satisfatória para ele e para o padre. São-lhe feitas então duas exigências bruscas.

Primeiro, terá de fazer um curso sobre os princípios fundamentais da fé católica. Em segundo lugar, terá de não interferir com a prática da religião por sua mulher nem opor qualquer obstáculo à educação dos filhos como católicos.

A primeira exigência é fácil de aceitar. É uma boa idéia as pessoas casadas compreenderem os antecedentes uma da outra. Estranha talvez que não se exija de sua esposa um curso semelhante sobre os fundamentos da teologia anglicana. Acaba atribuindo a culpa disso ao Arcebispo de Canterbury. Talvez ele não se interesse suficientemente pelo assunto para levantar a questão. Carlos concorda de boa ou má vontade.

A segunda exigência deixa-o confuso. Os filhos serão dele também. Ele não acredita nos princípios da Igreja Católica. Não pensa que os filhos devam ser “criados” em qualquer fé. Julga que devem adotar a religião que quiserem por um ato de livre escolha quando chegarem à idade da razão — na época em que essa auspiciosa idade se manifestar. Está em paz com a sua consciência. O que lhe pedem é que se volte contra a sua consciência para assim poder casar-se com a mulher a quem ama. Com isso ele não concorda.

O padre é compreensivo e atencioso — nem todos o são! O padre apresenta o ponto de vista de Joana. A consciência dela a obriga a educar os filhos como participantes da comunhão católica romana.

O dilema é imediato. Carlos segue os ditames de sua consciência. Joana, também. Se Joana ceder a Carlos, casar-se-á em desafio à Igreja Católica e fora dela. Revogará também uma convicção pessoal.

A solução da lei? “Se não chegarem a um acordo, o casamento não será válido, nem legal”.

A resposta de Carlos? “Está dizendo que eu sou um cristão de segunda classe e infringindo o meu direito humano mais fundamental”.

A resposta de Joana: “Amo Carlos. Quero viver com ele até morrer. E, se nos amamos, teremos de encontrar uma boa solução para nossos filhos”.

Resultado final? Ora transigem, ora não. Às vezes, casam-se apesar da lei. Às vezes, não se casam.

Resta sempre uma porção de perguntas sem resposta a respeito da liberdade de consciência e da autoridade, do batismo das crianças, da natureza da união conjugal e da relação pessoal do homem com o seu Criador, bem como os conceitos em que se baseia a legislação matrimonial.

E isso nos leva a Jorge e a Ema!

Jorge e Ema são sadios, potentes e adultos. Nenhum deles é cristão. Casam-se. Vivem felizes durante algum tempo e geram filhos. Por fim, Jorge, como muitos homens de bem antes dele, sofre uma crise de consciência e se converte à Igreja Católica. Ema não se converte. Passam a ser infelizes — em virtude de razões religiosas ou seculares, pouco importa. Jorge ama então uma moça católica — mas é claro que não comete adultério!

Jorge procura então os tribunais eclesiásticos em busca da aplicação do Privilégio Paulino. Alega que sua primeira mulher, que não é cristã, não pode viver em paz com ele. Deseja fundar um “lar cristão” com uma esposa cristã.

O tribunal decide da seguinte forma: o primeiro contrato de casamento foi “natural” e não “sacramental”. Nestas condições, pode ser dissolvido para que o converso possa contrair uma união sacramental.

Desse modo, Jorge ganha uma nova esposa, enquanto Ema fica a lamentar a súbita revelação de que é para a lei cristã uma pessoa de terceira classe.

Isso deixa muitas outras perguntas sem resposta a respeito da justiça natural, do divórcio na Igreja primitiva e das acomodações pragmáticas que a Igreja tem feito através dos séculos a fim de resolver os dilemas conjugais.


6

 

CASAMENTO CRISTÃO E DIVÓRCIO

 

O divórcio significa a dissolução de um casamento válido existente com o direito a outro casamento válido.

Acredita-se em geral e ensina-se veementemente na Igreja Católica que um casamento válido e consumado entre cristãos é absolutamente indissolúvel. Cremos que essa doutrina é passível de sérias objeções.

Acredita-se em geral e ensina-se veementemente que Cristo proibiu absolutamente o divórcio. Cremos que se trata de uma proposição dúbia.

Acredita-se em geral e ensina-se veementemente que a Igreja não tem poderes para dissolver um casamento cristão seja qual for o motivo. Cremos que se trata de uma proposição dúbia.

Acredita-se em geral e ensina-se veementemente que o divórcio e o novo casamento consequente foram sempre proibidos pela Igreja Católica. Acontece que isso não é verdade.

Surpreendem-se? Nós também nos surpreendemos quando as nossas pesquisas nos fizeram examinar a história da doutrina e da prática católicas em matéria de casamento e divórcio. Gostaríamos de expor aos leitores um breve sumário das provas que corroboram as afirmações que fazemos acima.


PROPOSIÇÃO 1. Um casamento cristão válido e Consumado é absolutamente indissolúvel.

O sentido dessa proposição é que o vínculo do casamento cristão nunca pode ser dissolvido, nem intrinsecamente — isto é, pela ação de ambas ou de qualquer das partes — ou extrinsecamente — isto é, por uma parte externa em relação ao contrato, como Deus, a Igreja e o Estado.

Não há qualquer dúvida de que é essa a doutrina atual e oficial da Igreja Católica. Como tal, todos os católicos são obrigados a aceitá-la.

Entretanto, a doutrina não é de fide. Isto é, não exclui a possibilidade de que a doutrina seja modificada, como aconteceu, por exemplo, com a doutrina sobre a usura, à luz de maior experiência e conhecimento. Há provas históricas evidentes de que a doutrina foi modificada.


PROPOSIÇÃO 2. Cristo proibiu absolutamente o divórcio.

Essa proposição nunca foi considerada universalmente verdadeira na Igreja.

Ao contrário, a Igreja permitiu tradicionalmente no Oriente e no Ocidente desde os primeiros tempos o divórcio por várias causas. Era e é considerado de acordo com os ensinamentos de Cristo.

Citemos quanto a isso o Arcebispo Elias Zoghby, Arcebispo da Núbia, Vigário Patriarcal do Egito e um dos oradores do Concilio Vaticano II, que disse o seguinte:


Seja qual for a interpretação que se dê ao texto de São Mateus (XIX: 9), temos de reconhecer que existe uma tradição eclesiástica de tolerância, clara e venerável como todas as outras tradições da Igreja, que foi feita e praticada por muitos santos Padres no Oriente e no Ocidente.


PROPOSIÇÃO 3. A Igreja não tem poderes para dissolver um casamento cristão válido, seja qual for o motivo.

Há em teologia um argumento em contrário, forte e defensável, que diz o seguinte:

“Cristo deu a Sua Igreja. — a Assembleia dos que acreditam n’Ele — o poder ilimitado -de obrigar e dispensar na terra para o bem dos homens e das mulheres que são o objeto de Sua missão salvadora. Esse poder, derivado de Deus Onipotente e por Ele delegado, se estende a todas as circunstâncias humanas, inclusive o vínculo matrimonial”.


PROPOSIÇÃO 4. O divórcio e o novo casamento consequente foram sempre proibidos pela Igreja Católica.

Tornamos a dizer que acontece que isso não é verdade. Citaremos posteriormente neste livro as provas documentais. Por enquanto, contentar-nos-emos com a seguinte afirmação concludente do Arcebispo Zoghby:

O Oriente seguiu sempre a tradição de tolerância [do divórcio] e sempre lhe foi fiel. O Ocidente manteve-a durante muitos séculos com a aprovação positiva de muitos dos seus bispos, papas e concílios, e de fato nunca tentou condená-la no Oriente, ainda depois da cessação da sua prática no Ocidente.

Tendo dito tudo isso, esclareçamos a presente situação na Igreja Católica Romana. Ensina-se que o casamento cristão é absolutamente indissolúvel. O divórcio num casamento católico é neste momento impossível.

Que recurso resta, dentro das leis existentes, para um casal cuja vida conjugal se tornou intolerável?


7

 

CASAMENTO CRISTÃO - QUAL É O RECURSO?

 


O casamento se tornou um fracasso insuportável. Qual é a providência que se pode tomar sem deixar de ser um membro da Igreja?

Primeira pergunta: o casamento foi consumado?

Se não foi, pode-se solicitar a dissolução ao Papa. O fato de se conseguir a dissolução depende de se poder provar que não houve consumação e isso, meus prezados amigos, não é brincadeira!

O casamento, foi consumado?

Pode-se então requerer à Igreja uma separação judicial. Mas, neste caso, o novo casamento não será possível.

Depois da separação judicial, pode conseguir-se um divórcio civil. A Igreja permite fazer isso para proteção dos direitos civis da pessoa em matéria de manutenção, bens e custódia dos filhos. Mas o novo casamento não será ainda possível.

Por fim, pode pleitear-se um decreto de nulidade. Mas, antes de fazer isso, é melhor saber claramente o que se está pedindo. Um decreto de nulidade é uma decisão oficial do tribunal da Igreja de que o casamento contraído não foi válido — em outras palavras, nunca existiu.

É claro que se terá de provar isso antes de conseguir o decreto. E trata-se de uma tarefa realmente pesada!

Examinemos então em ordem as três soluções e vejamos o que se pode fazer para consegui-las.

1. Dissolução sob a alegação de casamento não consumado.

João e Maria se casaram legalmente numa cerimônia religiosa. Fosse por que razão fosse, não puderam ou não quiseram consumar e, de qualquer maneira, não consumaram o casamento. Sabem que assim foi. Mas, para conseguir uma dissolução, terão de prová-lo.

Maria é a querelante. É o que geralmente acontece. A sua queixa é rude e simples. “Quero ser amada, possuída e ter filhos. Meu marido não pode ou não quer penetrar-me e executar o ato”.

Transmite a sua queixa ao padre da paróquia. O pobre homem nada pode fazer. Encaminha-se ao tribunal diocesano. Ali, ela é solicitada a fazer uma exposição de seu caso. Ela assim faz. Pode indicar que João está preparado para corroborar-lhe as alegações. Isso não basta. De acordo com as leis em vigor, a Congregação dos Sacramentos poderá pedir o depoimento de sete testemunhas fidedignas do fato da ausência de consumação e pode de fato exigir prova material.

É conveniente fazer aqui uma pausa e dizer que o número legal de sete varia às vezes. A prova material é às vezes impossível — por exemplo, quando um caso de não consumação é pleiteado depois que a mulher tornou a se casar e teve vários filhos. A jurisprudência local varia consideravelmente.

Mas pode haver insistência na observância dos preceitos legais e, de acordo com as provas de que dispomos, assim frequentemente acontece. Se a prova material é exigida, o seguinte processo é estabelecido numa Instrução da Congregação dos Sacramentos.

Maria é informada de que será o primeiro sujeito e objeto de investigação material. O tribunal deve designar médicos para examiná-la dentre de uma série de regras baixadas pelos legisladores eclesiásticos romanos. Os médicos têm de dizer em laudo se o marido entrou ou não nela pelo menos uma vez depois de realizada a cerimônia do casamento.

Pensem na pobre moça. Nesse momento, ela é uma de três coisas: uma virgem com hímen, uma virgem sem hímen ou uma mulher que teve relações com outro homem que não o seu atual marido.

Se ela é uma virgem com hímen, tem evidentemente uma boa base de alegação.

Se é uma virgem sem hímen, como explica a perda dele?

Se não é virgem, como prova que não perdeu a virgindade para o marido? E, de qualquer maneira, como pode um médico saber disso?

Ainda que João seja uma testemunha disposta a cooperar — o que nem sempre acontece — pode haver a embaraçosa e improvável revelação de que ele é potente com qualquer outra mulher, exceto com sua esposa!

De qualquer maneira, Maria, em desespero, resolve desempenhar o drama. Leva outro choque. Tem de provar primeiro que ela não é uma substituta! Não riam! As leis canônicas especificam as devidas precauções contra a fraude.

Maria acaba provando que não é uma impostora mas, sim, uma mulher frustrada. Enfrenta então os peritos médicos e presta um longo depoimento, interrompido por perguntas, sobre onde, como e quantas vezes ela e João tentaram e como e por que não tiveram êxito!

Se Maria sobrevive a essa provação, é então solicitada a submeter-se a exame médico.

Para esse exame, há um processo minucioso e rigoroso estabelecido pelos canonistas. O decreto, publicado em 1923, compreende cinquenta páginas com um extenso apêndice.

Dois médicos ou duas médicas são designados para fazer o exame. As médicas são preferidas em atenção ao pudor da mulher. Se não há médicas disponíveis, os dois médicos bastarão, desde que sejam “de boa reputação, notáveis pela sua catolicidade e de eminente probidade em suas vidas particulares”. Podem ser empregados médicos que não sejam católicos, mas Roma quase sempre reclama disso. Um médico excomungado não pode ser indicado para esse delicado caso!

A sala onde é feito o exame deve ser bem iluminada. Deve haver uma mesa de exame com suportes para as pernas e equipamento “para inspeção digital e instrumental”.

Dizem ainda as regras que a mulher deve tomar um banho quente, com uma duração mínima de meia hora, antes do exame, “que será com isso facilitado”. Se os médicos julgarem que o banho é desnecessário, consultarão o juiz, que consultará o Defensor do Vínculo e, se esses dois cavalheiros concordarem, a senhora poderá ser dispensada do banho! Seja dito, para sermos justos, que essa regra é em geral posta de lado.

O objetivo do exame é semelhantemente definido. Os médicos devem examinar todos os órgãos que possam indicar ter havido uma consumação bem sucedida. Devem examinar, em especial, o hímen visualmente, digitalmente e com instrumentos. Têm de determinar a que tipo pertence e a forma, espessura e elasticidade do orifício himenal. Cabe-lhes dar parte de lacerações, tecido cicatricial, rupturas e cortes.

Depois do exame visual e digital, serão empregados dilatadores Hegar não lubrificados com o intuito de não dilatar a abertura do hímen mas de medir-lhe o tamanho exato. Os dilatadores devem ser usados em série a partir do menor, como dizem as instruções, e o tecido do hímen é uniformemente distendido em torno dos dilatadores — e assim por diante até que as instruções parecem um verdadeiro tratado de ginecologia!

Enquanto isso, no seu canto, João está representando a versão masculina da comédia. É impotente ou não? É sua impotência permanente e total? É temporária? Resulta de trauma psíquico ou de defeito físico?

Se os médicos o julgarem permanente e totalmente impotente, os tribunais diocesanos recomendarão provavelmente um novo pedido de um decreto de nulidade sob a alegação de impotência. Isso poupará ao Supremo Pontífice o trabalho de dissolver um casamento legal mas incompleto.

Mas isso não salvará a dignidade humana de Maria e João, que foram submetidos a uma inquisição medieval de suas pessoas físicas e de suas naturezas espirituais.

Alguns canonistas dirão que o direito eclesiástico não exige neste particular mais do que muitos códigos civis. A questão levantada por esses autores é se um código civil, obra de homens, deve ser normativo e obrigatório nas relações transcendentais entre o homem e a mulher e seu Criador.

Qual é a conclusão de tudo isso? Se os médicos concordarem, os juízes concordarem e o Defensor do Vínculo concordar que João não teve relações sexuais com Maria, o casamento será dissolvido.

Se não concordarem, o espírito de Inocêncio III terá a palavra final. Favorecerá naturalmente o vínculo e, estando há muito morto, não pode ter mais nada que fazer com os vivos que Sofrem sob o seu antigo decreto.

 

2. Separação judicial

Antes de alguém tentar essa solução, deve ser informado de um fato: o direito canônico proíbe que um casal se separe sem permissão de um tribunal diocesano.

Diante disso, a lei é ao mesmo tempo má e absurda. É má porque priva as pessoas casadas do direito fundamental de protegerem-se ou a seus filhos da injustiça, crueldade e infidelidade do cônjuge. E atribui esse direito pessoal a um tribunal. É absurda porque é inexequível e, de fato, raramente se apela para ela. Na Inglaterra, por exemplo, a separação se efetua com autorização do bispo ou do seu vigário-geral.

Entretanto, a lei existe e os católicos lhe estão sujeitos e os que não são católicos também, desde que estejam casados com um católico. Vejamos, portanto, como funciona.

Em primeiro lugar, faz-se uma distinção entre separação temporária e separação permanente.

A separação temporária pode ser concedida quando o procedimento criminoso ou brutal de um dos cônjuges põe em risco a família. Os advogados canônicos dizem que a expressão “procedimento brutal” é interpretada literalmente. Pequenas brigas ou até discórdias regulares e graves não são uma razão suficiente. Nem é razão para separação, diz contrafeito um perito, quando se trava uma batalha porque um dos cônjuges repreendeu o outro por algum erro. Pode ser também concedida a separação se o marido ou a mulher ingressa numa comunhão acatólica. Há nesse ponto uma interessante contradição. Se um esposo exerce o direito de consciência pessoal assegurado pelo Concilio Vaticano II, o outro cônjuge pode invocar contra ele a sanção da separação. A separação pode ser também concedida se um dos pais cria os filhos fora da fé católica.

Os cônjuges têm a obrigação de reatar o que a Igreja chama esperançosamente de “vida normal” quando a causa da separação cessar, se isso chegar a acontecer.

A separação permanente só é permitida por uma causa: adultério. Entretanto, essa alegação tem também de ser determinada.

É preciso provar que houve adultério antes da separação. Ou então é preciso apresentar provas que justifiquem uma forte presunção — como cartas de amor a outra mulher, longas ausências do domicílio conjugal ou visitas noturnas a uma pessoa de outro sexo!

Ainda mais: quando se aceita o adultério ou não se toma diplomaticamente conhecimento dele, perde-se o direito à separação judicial.

Um ponto secundário não especificado pelos cânones é o seguinte: que deve a pessoa fazer enquanto o tribunal diocesano, assoberbado de trabalho, dispondo de pouco pessoal e não muito bem informado, procura examinar o seu pedido?

No fim, se a pessoa se separa com ou sem sanção judicial, ainda assim não é possível o novo casamento. Dessa maneira, a separação é, na melhor das hipóteses, um meio-termo, um limbo entre o céu dos que se amam com esperança e o inferno de uma união infeliz.

E isso nos leva diretamente à esperança dos desesperançados.

 

3. Um decreto de nulidade

A pessoa está colhida numa armadilha — um casamento infeliz e destrutivo. A única maneira de livrar-se da armadilha é provar que o casamento nunca chegou a existir.

É esse o âmago do problema. Quando um contrato não é um contrato?

Um contrato não é um contrato quando qualquer das partes é mental ou legalmente incapaz de contratar.

Um contrato não é um contrato quando qualquer das partes o assume sob coação ou em consequência da fraude ou de erro.

Um contrato não é um contrato quando qualquer das partes era desde o início incapaz ou infensa a cumpri-lo.

Ao contrário, um contrato continua a ser um contrato ainda que uma parte capaz, ciente e de pleno conhecimento o viole posteriormente.

Se o leitor se tomou muito secular e irreligioso neste momento, devemos lembrar-lhe que a Igreja ensina que o vínculo espiritual do casamento cristão decorre do contrato de casamento e que os tribunais eclesiásticos tratam apenas do foro externo, isto é, dos fatos do contrato! Há um rombo também nesse velho balde, mas esse será descoberto pelo próprio interessado no seu devido tempo!

Enquanto isso, comecemos a fazer algumas perguntas acerca da capacidade, do consentimento e das intenções das partes no contrato.

Eram ambas mentalmente capazes quando se casaram?

Há uma loucura de amor, mas não se pode alegar o fato com esperança de êxito em qualquer tribunal. O teste legal — que não é reconhecidamente o que merece mais confiança — é saber se as partes tinham lucidez suficiente para saber o que estavam fazendo no momento que interessa.

Mas Jorge apareceu na sua noite de núpcias vestido com roupas femininas, quis espancar a mulher antes de ter relações com ela, levou para o quarto um amigo para assistir à consumação ou informou displicentemente à mulher que gostava tanto de mulheres quanto de homens. Era ou é mentalmente são?

Flora, ao contrário, preferia mulheres, mas estava perfeitamente disposta a receber o marido ou precisava de ser espancada com uma escova de cabelo para conseguir o orgasmo. Ou sofria de ninfomania e se sentia irresistivelmente levada a copular com qualquer pessoa que usasse calças. Era ou é mentalmente sã?

A resposta legal provável seria que ambos eram mentalmente sãos para contratar, embora ambos sofressem de anormalidades obsessivas capazes — apenas capazes — de pôr em dúvida o seu consentimento ou as suas intenções.

Cuidado, porém, com qualquer excesso de otimismo.

O direito canônico é muito menos equipado do que o direito civil com dispositivos e definições para enfrentar o procedimento anormal — e, salvo o caso de excessiva aberração, a incapacidade mental é difícil de provar em qualquer código. Por essa razão, nos últimos anos, muitos casos desses têm sido tratados com base não na falta de sanidade mental, mas na “falta do devido julgamento” — a incapacidade de compreender e cumprir as obrigações do matrimônio. Entretanto, os cânones salientam que o que acontece depois do contrato não se relaciona necessariamente com as condições existentes antes do contrato. O ônus da prova da existência dessa relação cabe a quem alega.

Capacidade legal?

A não ser que a pessoa se tenha casado com uma irmã — isso tem acontecido! — com um padre ordenado — isso está acontecendo com muita frequência agora — com sua madrinha, com um frade sob votos solenes, com uma pessoa já casada, com uma divorciada batizada cujo marido ainda esteja vivo ou com uma pessoa impotente, não se pode defender uma boa alegação de incapacidade.

A área do consentimento é um campo de ação muito melhor para os postulantes de nulidade.

Um casamento não é válido se a pessoa foi forçada ou levada ao mesmo por meio de fraude. Os canonistas exprimem o fato de outra maneira: o consentimento é viciado pelo erro, pela ignorância ou pela força moral.

Por conseguinte, o casamento realizado com uma espingarda nas costas não é válido. Mas calma! Mais devagar. É preciso apresentar testemunhas que viram a espingarda ou ouviram o pai da noiva ameaçar o noivo de meter-lhe uma bala na cabeça! Ou é preciso apresentar uma carta de coação.

Aqui também há exigência de outra condição. A ameaça não basta. É necessário que a ameaça gere medo, suficiente para privar a pessoa da sua capacidade de consentir livremente. Vera tem medo do que a mãe poderia dizer se ela desmanchasse o noivado? Não basta. O pai, ao contrário, poderia demitir Henrique e colocá-lo na lista negra da indústria se não se casasse com a filha dele. Isso, sim, poderia justificar uma decisão de nulidade. Mas Henrique ainda tem de provar a ameaça e justificar o medo.

O casamento pode não ser válido se Uma das partes foi levada ao mesmo em consequência de fraude — dependendo da natureza da fraude!

O noivo pensa que está casando com a loura Ida. Mas, na realidade, esta fugiu com um tocador de citara e lhe passou às mãos uma irmã gêmea idêntica. Conseguir-se-á neste caso um decreto de nulidade. Há erro e fraude de pessoa.

A noiva pensa que se está casando com um milionário. O noivo lhe disse que está cheio de dinheiro. Depois da lua-de-mel, apresenta-lhe a conta do hotel e diz-lhe que está arruinado. Não será possível neste caso um decreto de nulidade porque a noiva consentiu em casar-se com a pessoa e não com a sua conta de banco.

Terá êxito, porém, se fez do fato uma condição explícita — por escrito ou perante testemunhas — dizendo que só se casaria com ele juntamente com um milhão de dólares. De passagem, nada feito se as testemunhas morrerem antes de prestar depoimento ou de comparecer ao tribunal.

A noiva diz que tem trinta anos. Depois do casamento, o noivo descobre que ela tem quarenta e cinco, além de uma operação plástica e outros melhoramentos. Neste caso, não há chances também. Trata-se da mesma pessoa com quem o noivo consentiu em casar-se — apenas a qualidade é diferente. E uma diferença de qualidade não invalida o contrato. A não ser também que o noivo tivesse especificado por escrito ou perante testemunhas que a qualidade era uma condição do casamento.

Um homem se casa, na ignorância, com uma mulher que foi uma prostituta. Terá de viver com ela, para o melhor e para o pior, porque a pessoa é a mesma, embora seja inteiramente diferente do que o marido esperava. Examine bem a mercadoria antes de comprá-la.

Uma mulher se casa e consuma o casamento com um homem aparentemente normal, que depois se revela como homossexual ou como um sádico praticante. Neste caso, há uma chance de nulidade, mas não sob a alegação de fraude. A pessoa é a mesma, embora a qualidade seja certamente diferente. A mulher pode alegar que o marido não tinha a intenção de cumprir o contrato, que compreende uma promessa de fidelidade. A mulher pode alegar que o obsessivo problema sexual do marido o tomou incapaz de cumprir o contrato. Ele pode alegar em contestação que a mulher conhecia a fraqueza dele e consentiu no casamento numa esperança mútua de cura. Ou poderá dizer que ela o incentivou e induziu-o a desculpar a si mesmo. Por outras palavras, dirá que a mulher está mentindo. É a palavra de um contra a do outro, sem quaisquer provas confirmadoras, e se os juízes não aceitarem a alegação da mulher de que o marido agiu sem o devido julgamento, as chances de um decreto de nulidade são mínimas.

Imagine-se que um homem se casou com uma mulher na esperança de ter filhos e que ela ocultou deliberadamente o fato de ter feito uma histerectomia. Pode ele lançar a acusação de fraude, mas, à falta de provas, a simples afirmação da mulher de que revelou o fato destruiria a acusação. Não será possível alegar erro de pessoa porque uma pessoa de acordo com a lei não é exatamente a soma de suas partes — a menos que uma dessas partes sejam os órgãos masculinos, cuja ausência toma o homem incapaz de casar-se.

Agora, para fazer justiça ao bom senso que existe na Igreja, devemos dizer que há muitos canonistas que julgam que a distinção entre “pessoa” e “qualidade” é antiquada, irreal e Suscetível de grandes injustiças. Entretanto, as opiniões desses elementos ainda não foram transformadas em lei e as injustiças continuam!

E aqui estão alguns lembretes para guardar no seu caderno:

Uma viúva é uma “pessoa” diferente de uma mulher solteira. Por quê? Porque uma lei antiga diz que é. Assim, se ela não revela o fato de sua viuvez, há margem para se conseguir um decreto de nulidade desde que se possa provar que ela nada disse!

Um escravo é uma pessoa diferente — também! — de um homem livre. Por quê? Porque a lei o diz. Assim, quem se casa com uma bela moça na Arábia Saudita e descobre que a mesma é escrava pode conseguir um decreto de nulidade. Entretanto, se sabia ao casar-se que era uma escrava, o casamento é válido.

Por fim, antes de iniciarmos a nossa longa peregrinação através dos tribunais, vejamos se podemos encontrar outros motivos de nulidade baseados dessa vez na intenção de cumprir o contrato.

A lei que regula as intenções pode ser expressa em duas sentenças. “Se a pessoa não pode fazer certa coisa, não pode comprometer-se por contrato a fazê-la. Se uma pessoa não pretende fazer certa coisa, não se deve comprometer por contrato a fazê-la”.

Quem é impotente não pode fazer um contrato de casamento. Mas cuidado! Há algumas opiniões jurídicas de primeira ordem sobre quem é impotente e não é. Trataremos mais do assunto quando chegarmos aos casos concretos.

Se a pessoa não pretende ter filhos, não pretende ser fiel ao cônjuge, não pretende viver com ele até que a morte os separe, o contrato de casamento não tem validade, sentido ou existência.

Mas como a outra parte pode provar isso? As leis são feitas para proteger os inocentes, mas todos os processos estão cheios de armadilhas contra eles.

Luís se casa com uma herdeira pelo dinheiro dela. Uma semana depois da noite de núpcias, dorme fora de casa com uma amante. A presunção do bom senso seria que Luís só se casou com a moça pelo dinheiro dela. A presunção canônica é que Luís tinha as melhores intenções na época do casamento, mas sucumbiu depois a uma fraqueza da carne!

Ester casa-se com o homem a quem escolher. Ela tenta o sexo uma vez, mas não gosta e daí por diante se recusa ao marido. A presunção canônica é que, embora ela possa falhar nos seus deveres de esposa, se casou com as melhores intenções e deve, portanto, continuar casada. O bom senso e os cânones jamais coincidem inteiramente.

Etelberto é um homossexual que se casa para mascarar as suas atividades preferidas. É claro que suas intenções são deficientes. Mas como a mulher dele pode provar isso num tribunal eclesiástico de onde a razão e a experiência humana são banidas por leis e regulamentos processuais?

Alfredo gosta de crianças. Patrícia diz que quer filhos também. Mas, depois do casamento, ela nunca abandona dispositivos anticoncepcionais ou a pílula. Alfredo jura que ela jamais quis ter filhos. Ela jura em lágrimas que está apenas apavorada com o que aconteceu a uma irmã dela depois do seu casamento com Alfredo. Seria bom não arriscar um só centavo nas chances que tem Alfredo de conseguir um decreto de nulidade.

A verdade é que os tribunais da Igreja têm muito cuidado em aceitar gratuitamente a palavra de um cristão. Alegam que homens e mulheres são propensos a enganar quando está em causa o seu interesse pessoal. A questão que estes autores desejam suscitar é se é obrigatório ou sequer prudente para uma Assembleia fundada na caridade de Cristo assumir o papel da polícia no foro externo. Os legisladores eclesiásticos aprenderam o seu ofício com os antigos romanos, que eram um bando inteiramente céptico de administradores eficientes que se interessavam muito menos pela justiça do que pela manutenção da ordem pública.

É essa a lógica da situação como qualquer juiz da Santa Rota poderá confirmar.

As circunstâncias podem justificar um decreto de nulidade. A pessoa pode estar dizendo a verdade sobre as circunstâncias. Se está dizendo a verdade, o seu casamento não tem de fato validade. Nunca existiu. Mas, sem provas, o casamento tem existência legal.

E é esse o rombo no velho balde!

Você é casado e não é. E a Madre Igreja espera que você continue assim porque ela própria nunca pôde resolver o seu dilema — o dilema criado por uma organização que, em séculos de legislação matrimonial, colocou a instituição acima da pessoa e a ordem pública acima da justiça natural e sobrenatural.

De qualquer maneira, há ao menos alguma intenção de justiça nos tribunais. Escolhamos, portanto, a alegação que pareça mais justa para o caso e entremos na mecânica legal da apresentação e da prova nos tribunais.


8

 

CASAMENTO CATÓLICO - OS TRIBUNAIS DIOCESANOS

 

 

Antes de começarmos esta exposição, admitamos francamente que há muitas dioceses onde os tribunais matrimoniais são administrados com extrema eficiência e com o máximo de atenção possível à justiça e à caridade. Afirmemos, entretanto, com o fôlego seguinte, que há outros em que essas condições não prevalecem. Comecemos, assim, por uma diocese moderadamente má.

Vai-se primeiro ao padre de sua paróquia. Não é evidentemente um advogado. Não é juiz. Não tem qualquer posição judiciária. É apenas o pastor, o pai espiritual da comunidade católica local. Fez o curso normal de Direito Canônico num seminário normal e confessará provavelmente que já esqueceu a maior parte do que aprendeu.

Encaminha, portanto, o postulante à cúria da diocese ou a um funcionário do tribunal matrimonial diocesano. A cúria é um departamento do bispado onde se trata dos casamentos bem como de uma massa de outros assuntos administrativos. Ali vamos encontrar o Padre Tomé — um velho simpático, um jovem nervoso ou um meio-termo entre os dois, dependendo da sorte que se tiver — e lhe exporemos o caso.

O padre dirá que há normas legais a serem observadas. Pergunta-se quais são. O padre não é muito claro a esse respeito, pois na realidade está muito atarefado com o Fundo de Construção da Catedral, com os Cavalheiros de Colombo, com as Filhas de Maria e com o capítulo provincial das Irmãzinhas de S. Tiago de Compostela, que são as freiras prediletas do bispo.

Pede-se um manual de processo. É coisa que não existe. Numa diocese realmente evoluída, pode conseguir-se uma folha mimeografada de instruções básicas. Pede-se um representante legal. O tribunal de cada diocese deve ter uma lista de advogados em condições de assistir os requerentes. Mas ali não há lista, porque o Padre O’Hanlon, o entendido em assuntos canônicos, está ausente em retiro ou dando aulas a seminaristas que não precisam ainda de uma anulação de casamento. Mas o Padre Tomé tem certeza de uma coisa — sim, certeza absoluta! — a petição deve ser apresentada por escrito e então seguirá pelos canais competentes, sejam quais forem estes.

Pergunta-se como deve ser redigida a petição e o Padre Tomé, depois de algumas manifestações de perplexidade, murmura:

— Escreva exatamente o que me disse, com suas próprias palavras. A Igreja trata de milhares de casos assim. Nossos peritos compreenderão o que está querendo dizer.

Pois sim que compreenderão! A pessoa não sabe disso, mas está sendo solicitada a preparar um documento legal — chamado libellus — de cuja forma e de cujo conteúdo dependerá a sua vida futura. Se o pleito não for corretamente classificado, o caso talvez não chegue ao tribunal, sendo rejeitado sem discussão — ad limina litis, no limiar da ação.

O Padre Tomé, para fazer-lhe justiça, talvez não saiba disso, pois vive há tantos anos tão ocupado com as Irmãzinhas de S. Tiago de Compostela e com outros assuntos, que nunca tomou conhecimento do impotente mecanismo judiciário da Santa Madre Igreja, elaborado e emendado para tratar com imperadores, reis, príncipes erráticos, clérigos transviados, duquesas indiscretas e cardeais políticos, do mesmo modo que com pessoas comuns como o requerente.

Este não sabe — até que o fato o atinja em cheio como uma dor no meio da noite — que a Igreja que lhe pede que recorra aos seus tribunais não se sente obrigada, por justiça ou caridade, a dar-lhe a assistência de um advogado pago ou gratuito. A pessoa está por conta própria, salvo se encontrar algum canonista amigo que a ajude. E onde encontrará ela uma lista de canonistas, ainda que conheça o mundo, coisa que não é comum entre a gente simples?

Assim, com ou sem ajuda, o requerente trata de escrever o seu libellus. Manda-o para a cúria. Ao fim de alguns trâmites vai o mesmo parar nas mãos de um homem chamado de Advogado Diocesano — talvez o mesmo Padre O’Hanlon, que estava ausente dando aulas a seminaristas. O Padre O’Hanlon não tem pressa alguma de tratar do assunto. Pertence à velha escola e acredita que um pouco de água fria nunca fez mal a qualquer caso. Talvez nunca tenha ouvido a velha máxima segundo a qual a justiça ou é rápida ou deixa de ser justiça. Isso não consta do direito canônico e, portanto, pode não lhe merecer crédito. Além disso, o uso arbitrário da autoridade costuma tornar-se habitual para os eclesiásticos quando o leigo não dispõe de recurso legal contra o fato.

Assim, algum tempo depois, às vezes muito tempo depois, recebe-se uma nota que pede a apresentação de certidões deidade e de batismo, bem como de casamento. Se marido e mulher não estão vivendo juntos, pede-se que seja mandado o endereço atual da esposa, o nome do vigário da paróquia do requerente e os nomes e depoimentos por escrito das testemunhas que quiser citar em apoio às suas alegações. Tudo isso devia constar do libellus, mas ninguém disse o que era necessário.

Aí, desce o silêncio, um silêncio bem longo. O Padre O’Hanlon está atarefadíssimo. Talvez a diocese não tenha condições de dar-lhe um secretário. Nem os juízes da Rota em Roma têm secretários. Batem a máquina pessoalmente ou escrevem a mão as suas sentenças. Isso pode explicar parte do silêncio. Teoricamente, é o que acontece durante todo o tempo.

O Padre O’Hanlon chegou muito corretamente à conclusão de que o caso não pode ser resolvido na base dos documentos apenas e que o mesmo deve ser exposto perante um tribunal diocesano composto de três juízes, do Defensor do Vínculo e de um notário.

Em vista disso, entrou em contato com a esposa do requerente, informou-se da petição contra ela e convidou-a a contestá-la com testemunhos que corroborem as palavras dela. Além disso, nos intervalos da sua vida movimentada, procurou as testemunhas do marido e da mulher e preparou um relatório do caso. O requerente não sabe o que sua esposa ou as testemunhas dela disseram, porque esse julgamento é diferente de qualquer coisa que ele tenha conhecido, salvo se for latino. Trata-se de uma inquisição, justamente chamada assim, na qual os juízes se encarregam tanto de averiguar os fatos quanto de dar uma sentença com base nos mesmos.

E, se os juízes decidirem a favor do requerente, o Defensor do Vínculo apelará automaticamente da decisão. Mas não haverá ninguém para apelar pelo requerente, caso a decisão lhe seja desfavorável. Desse modo, o vínculo é defendido por lei, mas a pessoa por lei não o é. Mas estamos avançando um pouco. O julgamento ainda não começou. E pode ser que ainda não tenham dito ao requerente que ele tem direito a um advogado e onde poderá consegui-lo. Ainda que tenha advogado, as funções deste são rigorosamente limitadas. Não pode estar presente quando se interrogam testemunhas e nem sequer quando o próprio requerente é interrogado! Alguns tribunais locais abrem mão dessa regra em vista de sua manifesta injustiça, mas a lei é clara sobre esse ponto e em geral é aplicada.

Todo o processo é documentado. Não há debates verbais, nem reinquirição de testemunhas pelo advogado.

Os defensores desse sistema alegam que o processo tem de ser documentado porque os tribunais canônicos não têm poderes para intimar testemunhas que podem viver em jurisdição estrangeira e talvez não possam ou não queiram deslocar-se. Entretanto, diga-se numa refutação ao menos parcial que os tribunais excluem especificamente a prática da reinquirição de testemunhas e de exposição verbal de razões. O sistema é e continua a ser inquisitorial.

O processo é resumidamente o seguinte:

O requerente é chamado ao tribunal, presta juramento e é solicitado a dar testemunho. É interrogado pelo chefe do grupo de juízes, cujas perguntas foram preparadas pelo Defensor do Vínculo. O depoimento é então lido em sua presença, depois do que se lhe pede que faça outro juramento, dividido em duas partes: primeiro, que o seu depoimento, tal como foi redigido, é verdadeiro e, segundo, que ele não discutirá, nem revelará, o seu depoimento antes da conclusão do julgamento!

O mesmo processo é seguido com as outras testemunhas pró e contra a petição.

Se as testemunhas não podem comparecer ao tribunal, prestarão depoimento sob um duplo juramento semelhante perante um funcionário designado pelo tribunal, ainda que vivam em outro país.

Quando todos os depoimentos foram tomados, têm de ser impressos. Outra demora enorme.

Então — e só então! — pode o advogado do requerente ver as razões apresentadas pela oposição. Então e só então pode ele escrever as razões em favor do seu constituinte. Mas o Defensor do Vínculo esteve presente a todos os interrogatórios, de modo que, quando lhe cabe escrever as razões contrárias ao requerente, leva uma incalculável vantagem. Tem também a última palavra porque, depois de ter visto as razões impressas do advogado do requerente, pode escrever segunda refutação de sua parte.

Tudo isso é muito bonito, mas onde está a justiça?

Esse Defensor do Vínculo é tão evidentemente um personagem poderoso que não se perderá nada em dizer algumas palavras sobre o seu cargo e os seus poderes.

O cargo foi criado pelo Papa Benedito XIV no século XVIII “para proteger o casamento dos juízes ignorantes, displicentes e maliciosos e da cumplicidade entre as partes”.

A sua função ainda é a mesma — opor-se a todas as alegações de nulidade.

É a pessoa mais privilegiada do tribunal. Está presente a todos os interrogatórios. Entrega aos juízes num envelope fechado uma lista das perguntas que ele exige que sejam feitas. Pode convocar outras testemunhas além das apresentadas pelos querelantes. Pode requerer que outros fatos sejam apresentados capazes de fortalecer as razões contrárias à nulidade. Os juízes devem consultá-lo sobre todos os pontos processuais e técnicos.

Em 1928, uma carta particular foi enviada pela Sagrada Congregação dos Sacramentos aos bispos, defensores e outros eclesiásticos, na qual se dizia que o defensor nos casos de não consumação deve interessar-se exclusivamente pela validade do vínculo. Um trecho dessa carta dizia o seguinte:

... Muitos Defensores do Vínculo têm deixado de exercer devidamente as suas funções. Isso acontece porque, embora sejam designados para defender o vínculo matrimonial, parecem pensar que às vezes têm o direito de fazer representações por escrito, não em favor do casamento, mas positivamente em favor da verdade — atitude essa tão afastada dos dispositivos da lei que não há margem para discuti-la.

 

Dezesseis anos depois, Pio XII se julgou obrigado a contradizer essa afirmação. Escreveu o seguinte:

É falsa a asserção de que o defensor não é tão obrigado quanto qualquer um a buscar a verdade. Ainda hoje, alguns padres pensam que os defensores, como disse talvez injustamente um padre, se mostram “muito ansiosos em trabalhar a favor do vínculo e não da verdade, muito ansiosos em obter promoção ganhando uma questão para a Igreja”.

 

Nestes últimos vinte anos, tem havido muitas declarações semelhantes. O Papa Paulo VI, porém, achou de dizer alguma coisa em favor de ambos os lados. De uma parte, advertiu que desde que os tribunais matrimoniais funcionam em nome da Igreja “devem estar acima da suspeita da sombra de qualquer injustiça”.

Pela outra, advertiu também que alguns especialistas “profissionais inescrupulosos” podem alterar os casos a serem apresentados.

Paga-se e pode-se escolher entre “suspeita de injustiça” e “profissionais inescrupulosos”. O Defensor do Vínculo ainda está exercendo as suas funções originais no caso que vimos examinando.

Meses, talvez anos, passaram. Foi difícil encontrar testemunhas ou talvez foi impossível persuadi-las a depor. A cúria diocesana estava engolfada em outros trabalhos. Documentos desapareceram. A impressão exigiu muito tempo. A diocese lutava com a falta de pessoal.

Por fim, os juízes chegaram à conclusão de que toda a prova possível foi desencavada e impressa. O Defensor do Vínculo escreveu as suas razões favoráveis ao vínculo. O advogado do requerente escreveu as suas razões em favor de seu cliente. O Defensor escreveu a sua refutação. Uma cópia de todos os documentos impressos foi transmitida a cada um dos juízes. Eles se demoram a estudá-las nos intervalos de suas atividades de pregação, de ministração dos sacramentos, da prestação de serviços como capelães de conventos e de exercício de todas as outras funções sacerdotais.

Reúnem-se, por fim, para chegarem a uma decisão por votos. O voto é igual e secreto, prevalecendo a maioria. Um deles redige a decisão da maioria.

O requerente se considera então um homem feliz. A decisão é a seu favor e o seu casamento nunca existiu! Pode começar vida nova com ou sem outra companheira. Mas não, não pode ainda!

O Defensor do Vínculo ainda está presente. Deve apelar automaticamente da decisão para outro tribunal. O requerente não sabe disso, mas as leis canônicas prescrevem um duplo risco para a parte ofendida!

Na realidade, o risco é triplo, porque o Defensor tem o direito de fazer terceira apelação, se quiser. Somos informados de que não costuma fazer uso desse direito. É um pouco de misericórdia nesse áspero mundo judiciário.

O tribunal de apelação é constituído da mesma maneira que o tribunal de primeira instância, embora com outros juízes. Pode resolver julgar a apelação baseado apenas nos documentos do primeiro tribunal. E pode decidir re-convocar testemunhas e conseguir novas provas. Se isso acontecer, fica-se condenado a outra espera muito longa. E continua-se casado até que os dois tribunais tenham decidido em favor da nulidade.

Imaginemos que a primeira petição tenha sido indeferida. O requerente poderia de seu lado apelar. Se tivesse êxito nessa apelação, teria ainda de pedir um veredicto de confirmação de um terceiro tribunal de apelação, dessa vez provavelmente em Roma.

Isso o levaria, se ainda estivesse vivo e não totalmente desiludido e desesperançado, ao tribunal que é chamado a Santa Rota Romana.


9

 

CASAMENTO CATÓLICO - A SANTA ROTA

 

 

A sede da Santa Rota fica na Piazza della Cancelleria, na velha Roma. Há no pórtico uma inscrição irônica que data do tempo de Napoleão: “Corte Imperiale” — Corte Imperial.

A palavra rota significa “roda”. A origem da palavra é incerta. Dizem alguns que em outros tempos os juízes sentavam-se a uma mesa redonda para as suas deliberações. A mesa atualmente usada é retangular. Outros acham que a palavra surgiu do sistema de rodízio segundo o qual os juízes eram designados para os casos. Os cépticos sugerem uma relação com a tortura medieval em que a vítima era amarrada de braços abertos a uma roda de carro para ser chicoteada ou ter os ossos quebrados!

O tribunal da Rota é formado como os tribunais diocesanos: três juízes, o Defensor da Fé e um notário. Os ritos processuais são os mesmos.

Se é essa a segunda apelação do requerente, a Rota é normalmente o tribunal de última instância. Se é a primeira petição, feita diretamente à Rota, terá direito a mais duas apelações e, de cada vez, a Rota designará novos juízes.

Há atualmente dezenove juízes para conhecer de casos do ·mundo inteiro. Quando indagamos, disseram-nos que esses juízes tinham uma lista de “cerca de mil casos” atrasados, muitos deles pendentes de julgamento havia anos. Desde que todos os casos são examinados por um grupo de três juristas, cada um desses cavalheiros tem sobre a mesa um mínimo de cento e cinquenta casos. Não tem secretários e não pode sequer recorrer a um escritório de datilografia para ter assistência secretarial!

Um juiz da Rota fez a seguinte declaração aos autores:

Escrevo minha decisão a mão porque acho que é o melhor meio. Depois, bato-a a máquina. Em seguida, tenho de procurar alguém para bater o estêncil. Tenho ainda de corrigir pessoalmente o estêncil. Tudo isso me toma muito tempo quando eu deveria estar pensando. Não há uma loja de quarta classe na piazza que pudesse funcionar dessa maneira!

 

Um caso investigado pelos autores levou quinze anos para ser resolvido! Não é de admirar!

Mas é grandemente de admirar, de maneira tragicômica, que o Papa João XXIII tivesse descrito a Rota como

... tendo a glória de ser o tribunal da família cristã, grande e modesta, rica e pobre, na qual entra a justiça para fazer a lei divina triunfar na união conjugal...

 

Se a nossa crítica parece rude, olhemos a Rota do ponto de vista do requerente. O caso foi para ali encaminhado em grau de apelação dos tribunais locais. Ou o requerente resolveu — se tem dinheiro para tanto! — ir pessoalmente a Roma e apresentar o seu caso diretamente à Rota. Para fazer isto, é preciso obter permissão de um grupo de dez cardeais chamado a Santa Assinatura Apostólica.

Em qualquer dos casos, há necessidade de um advogado. Há atualmente cerca de oitenta advogados leigos canônicos que são registrados na Rota e têm o direito de pleitear junto à mesma.

Esses advogados têm de ser pagos. O requerente tem de pagar. Os honorários são fixados pelo tribunal. Se a pessoa não pode pagar, o tribunal nomeará um advogado para representá-la gratuitamente ou com honorários reduzidos. Mas antes disso a pessoa tem de ser submetida a um exame de seus recursos!

É preciso pagar também a tradução de todos os documentos em latim, francês e italiano. O requerente tem de pagar a impressão de todos os documentos e depoimentos em suas várias línguas. Esses pagamentos podem ser também dispensados ou reduzidos depois do exame dos recursos.

Entretanto, desde que advogados, impressores e tradutores têm de comer, há uma razoável presunção, confirmada pelas nossas investigações, de que o cliente que paga conseguirá serviços melhores e mais rápidos do que o que não paga!

Os juízes não são pagos pelos clientes. Recebem da Igreja um modesto estipêndio. Tratam dos casos mais ou menos na ordem em que são apresentados, dependendo da presença da documentação, que depende em última análise da presteza das testemunhas e da atividade dos advogados.

Em face de toda a prova juízes são incorrutíveis. Não são e não podem ser comprados. Esforçam-se o mais possível por fazer justiça dentro das leis que existem, dentro das normas processuais vigentes e conforme a carga de trabalho que têm sobre as velhas costas!

Os advogados? O talento, o zelo, a atividade, a atenção ao dinheiro, o cuidado pelo interesse dos clientes por eles demonstrados são variáveis. Como em todo o sistema legal, é uma verdade da vida que se pode ter serviço melhor, mais rápido e mais meticuloso quando se pode pagar por ele.

Dá também bom resultado ter amigos influentes dentro o perto do Vaticano. Mas não deve haver engano a esse respeito. Esses amigos não podem influir na decisão dos juízes. Mas podem conseguir e conseguem que pastas empoeiradas sejam retiradas dos arquivos, espanadas e submetidas oportunamente à atenção do sobrecarregado pessoal da Rota, o que é já um assinalado privilégio!

Quantos casos são decididos pela Rota num ano? A resposta comum é “cerca de duzentos”. Isso significa que há no mínimo um atraso de cinco anos no momento em que escrevemos!

Uma nota útil: se o requerente é um monarca reinante, um príncipe de sangue ou um Chefe de Estado, o seu caso não será submetido à Rota. Irá diretamente às mãos do Papa, que nomeará uma Comissão de Inquérito especial — constituída de juízes da Rota — para julgá-lo.

Outra pequena jóia: se o requerente é um cônjuge acatólico num casamento misto, ainda que contraído dentro do direito canônico, não poderá apresentar uma petição de nulidade contra o cônjuge católico sem permissão especial da Igreja. Com efeito, a Igreja força a pessoa a submeter-se às suas leis ao mesmo tempo que se reserva o direito de conceder ou recusar os recursos legais dentro dessas mesmas leis!

Devem compreender que até aqui temos tratado apenas das normas processuais dos tribunais. Agora, queremos apresentar alguns casos autênticos e mostrar como foram julgados e que problemas jurídicos e dilemas humanos implicaram.

Todos esses casos são verdadeiros. Alguns são extraídos dos anais oficiais que só são publicados dez anos depois de baixados os decretos. Outros nos foram comunicados diretamente pelas partes interessadas.


10

 

CASOS CONCRETOS

 

 

Molly e Edward, ambos anglicanos, casaram-se em 1953. A Igreja Católica reconhece tal casamento como uma união sacramental cristã. Quatro anos depois, Molly converteu-se ao catolicismo. O marido dela continuou anglicano.

Durante todo esse tempo, o casamento nunca foi consumado. Edward era impotente e Molly era evidentemente uma moça que nunca tinha sido sexualmente despertada.

Molly nos descreveu a situação nas seguintes palavras:

— Meu marido estava em boas condições financeiras. Levávamos uma vida muito confortável. Ele jogava muito golfe e eu tinha sempre muito o que fazer ensinando. Creio que eu pensava que o casamento fosse isso. Não me preocupava naquele tempo com a situação.

Mais tarde, como era muito natural, ela se preocupou. Consultaram médicos separadamente e juntos. Não tiveram êxito! Edward nunca seria um marido normal. Concordaram amigavelmente em divorciar-se perante a justiça civil depois que Molly tivesse completado o seu recurso ao tribunal da Igreja.

Molly tinha dois caminhos a escolher. O primeiro era requerer a dissolução de um casamento válido, mas incompleto, sob o fundamento da não consumação. O segundo era impetrar um decreto de nulidade sob a alegação de que Edward era permanentemente impotente e, portanto, tinha sido preliminarmente incapaz de contratar.

Molly apresentou o segundo pedido.

Conseguiu o decreto dois anos depois da data da sua primeira petição.

Entretanto, do que Molly contou acerca dos processos canônicos, vários fatos interessantes emergiram.

Molly foi rigorosa e intimamente interrogada da maneira que já descrevemos. Foi examinada por dois médicos. O exame provou que ela era virgem. Entretanto, o laudo de um dos médicos foi rejeitado pelo fato de que ele não era católico. Em vista disso, ela teve de submeter-se a um terceiro exame por um médico católico.

Edward não foi absolutamente interrogado. Não lhe pediram nem que se submetesse a um exame médico. Por outras palavras, a impotência dele foi presumida porque Molly era uma virgem inviolada.

Apesar disso, o decreto foi concedido em virtude da impotência dele!

O caso seguinte — e muito estranho é ele! — se refere à impotência feminina. O processo foi iniciado há mais de cinco anos e, tanto quanto sabemos, ainda está em tramitação nos tribunais.

Lucy e Tom, dois católicos, se casaram legalmente de acordo com os ritos da Igreja.

Tom era bem disposto e potente. Lucy, por motivos psicológicos, nunca pôde descontrair-se suficientemente para permitir-lhe penetrá-la e consumar com ela. É um fato excepcional, mas acontece. Os canonistas classificam essa espécie de impotência como relativa. Isto é, relativa a determinada pessoa ou conjunto de circunstâncias. Se se mostrar que a impotência relativa é também permanente, há uma base para um decreto de nulidade.

Lucy tinha evidentemente um grave bloqueio psíquico em relação a Tom e ao seu contato sexual porque, um ou dois anos depois, teve um caso amoroso com um vizinho. Com este, ela podia descontrair-se e era muito potente.

Em consequência disso, ela descobriu que podia descontrair-se com o marido e consumar o casamento com ele. Mas a vida conjugal deles era já um insucesso e se desmoronou. Lucy resolveu requerer um decreto de nulidade — sob a alegação da sua impotência relativa permanente.

De acordo com os fatos, ela não tinha chance. O advogado dela — evidentemente um brilhante canonista! — foi de outra opinião. O seu raciocínio foi o seguinte: A impotência de Lucy era um impedimento ao casamento. O impedimento fora afastado por um ato adúltero. Um ato adúltero é um pecado. Uma situação curada por um pecado não está canonicamente curada. Por conseguinte, a impotência continua a ser permanente.

Esse raciocínio do advogado, segundo fomos informados, poderia ser aceitável para os tribunais. O fato de que os tribunais aceitassem o pedido indica a opinião de que há um caso a ser discutido.

Desse modo, Lucy poderia terminar na posição notável de ser impotente de direito e potente de fato. Em que caso, tendo sido definida como impotente, poderia ela ser classificada se quisesse casar-se novamente?

A resposta é que ela só era permanentemente impotente em relação a seu primeiro marido. Poderia, portanto, ser permanentemente potente com o marido seguinte!

Se pensam, como nós, que o direito canônico faz um rodeio muito grande para colher ovos muito exóticos, vejam o caso seguinte.

Jack e Jill eram um casal católico. Jack era impotente. Não conseguia uma ereção. Não podia penetrar. Por conseguinte, o casamento não era válido de fato e assim poderia ser provado dentro da lei.

Havia, entretanto, uma complicação. Tinham um filho, gerado e nascido na constância do casamento. Como? Jack não podia ter uma ereção. Não podia penetrar, mas podia depositar o sêmen na entrada da vagina e, nestas condições, a concepção é possível, embora reconhecidamente rara e difícil!

Poderiam eles conseguir um decreto de nulidade? Podiam e conseguiram graças a uma decisão do Cardeal Gasparri, um dos principais elaboradores do Código de Direito Canônico em vigor.

Segundo a sua decisão, uma criança assim concebida nasce como se fosse gerada em contato não matrimonial e de pais impotentes.

Assim sendo, pode ser pai de fato e impotente de fato e de direito!

É tempo de observar um paradoxo. Não há no direito canônico uma definição assentada de potência. A prova geralmente aceita da potência do homem é a sua capacidade de ter uma ereção, penetrar e depositar o fluido seminal numa mulher.

O Papa Sisto V decidiu que um homem castrado — isto é, um homem cujos testículos foram tirados — não se poderia casar, ainda que pudesse ter ereção e penetrar sua mulher.

O fato de que ele não pudesse produzir o fluido seminal lhe interditava o casamento.

Ao contrário, uma mulher que pode receber um homem é considerada potente ainda que tivesse sido submetida a uma histerectomia completa, não podendo, portanto, ter ovulação ou conceber.

Como se diz numa peça da Broadway: “As mulheres são evidentemente diferentes dos homens.”

O canonista mais conservador do mundo reconhecerá a contradição existente na lei. Mas até agora nenhum legislador da Igreja sentiu-se na obrigação de eliminá-la!

O caso seguinte é um assunto de conhecimento público. Ainda não foi resolvido. Mas ilustra como as normas processuais podem ser gravemente deturpadas por ignorância, indiferença, falta de cuidado pastoral e quanta injustiça pode ser cometida contra um peticionário honesto.

Carol estava casada havia poucos dias com Patrick quando percebeu que havia alguma coisa muito errada.

Passaram semanas até que ela tivesse ânimo de procurar sua família para discutir o caso e meses até que tivesse coragem de visitar um psiquiatra e contar-lhe os fatos.

Patrick era um psicopata sexual.

Depois da consulta, Carol conseguiu convencer o marido a procurar um psiquiatra. Este convocou outros médicos em consulta, os quais confirmaram que Patrick era mentalmente desequilibrado, sexualmente pervertido, sádico e masoquista.

Era remotamente possível, ainda que improvável, disseram os médicos, que ele fosse restituído a um estado aproximado do normal se fosse submetido a um longo tratamento. Patrick não quis consentir no tratamento. Carol resolveu separar-se dele e requerer à Igreja a anulação.

Na cúria diocesana, contou a sua história a um funcionário eclesiástico. Esperou ali enquanto o padre, que não tinha qualquer auxiliar de escritório à sua disposição, batia a máquina as declarações de Carol, que assinou a última página, sem que o padre lhe desse uma cópia em papel carbono.

Carol foi para casa e esperou. Os meses foram passando. De vez em quando, telefonava. Que estava acontecendo? Havia investigações em andamento. Havia uma base para a anulação de que a Igreja poderia tomar conhecimento? O padre não dava opinião. Poderia ela ajudar com novas informações? Ela seria chamada se houvesse necessidade.

O tom era sempre indiferente e reservado.

Uma coisa parecia estranha a Carol. Havia feito uma petição baseada no estado psiquiátrico de seu marido, uma série altamente técnica de fenômenos médicos. Mas os funcionários da diocese não tinham pedido laudos médicos nem tinham procurado os médicos que examinaram Patrick.

Já então, Carol aprendera a ter cautela em fazer perguntas ou sugestões. Conservou-se em silêncio.

Quase um ano depois de haver ela procurado a diocese pela primeira vez, recebeu um telefonema a respeito das provas médicas. O advogado diocesano lhe pedia que providenciasse sobre a remessa para a cúria dos laudos psiquiátricos.

Transcorreram mais alguns meses. Por fim, Carol recebeu uma carta que dizia que o que ela havia contado, os laudos médicos e os resultados da investigação diocesana tinham sido objeto de estudo na cúria e que a petição dela tinha sido rejeitada. A carta terminava com a seguinte frase: “Depois de muita deliberação, só lhe posso pedir que aceite a vontade de Deus Onipotente nesse assunto.” A cúria deixou de mencionar como fora determinada a vontade de Deus Onipotente!

Não lhe foi dito também o que havia realmente acontecido. A cúria tinha chegado à conclusão de que não podia ou não devia julgar o caso, que, portanto, fora rejeitado ad limina litis.

Isso às vezes acontece quando a pessoa não tem advogado. Pode haver fundamento para uma ação, mas o fundamento não figura ou não está convenientemente apresentado no primeiro e angustioso documento.

Na lei canônica — como em todas as leis latinas — a forma tem às vezes mais valor do que o conteúdo ou a intenção. Mas como poderia Carol — anglo-saxônica e sem trato das coisas legais — imaginar sequer esse fato? E, com uma cúria indiferente ou hostil, quem se sentiria obrigado a informar-lhe?

Mas Carol ainda estava querendo saber como deveria “aceitar a vontade de Deus Onipotente”.

Por fim, escreveu uma longa carta ao Arcebispo. Não houve resposta de Sua Excelência Reverendíssima. Dois meses depois, chegou uma nota da cúria, pedindo a sua presença. Compareceu. Fez alguns comentários incisivos sobre o direito que tinha a ser ouvida por um tribunal. Declarou que, se a Igreja se negasse a julgar-lhe o caso, ela o apresentaria a um tribunal civil... e abandonaria a Igreja.

Ação final! O tribunal ia julgar o caso. Mas ela teria de fazer uma petição formal. Ela já fizera a petição! Mas não na devida forma. Qual devia ser a forma? Falasse com um advogado canônico. Quais eram os advogados existentes na diocese? Havia uma lista que iriam procurar para ela. Por que não lhe haviam dito tantos meses antes que ela podia contratar um advogado? A resposta foi que ela não havia perguntado!

Por fim, ela arrancou da cúria todas as informações processuais — e um aviso de que o caso dela era de qualquer maneira fraco e de que ela provavelmente iria perdê-lo.

Nesse ponto, ao menos, a cúria foi total e corretamente franca. As petições baseadas em anormalidades mentais e sexuais são reconhecidamente difíceis de serem deferidas dentro do direito canônico. Eis algumas das razões para esse fato:

Não há uma definição canônica de loucura. É difícil em qualquer jurisdição equiparar a anormalidade à loucura. Carol não poderia, portanto, provar a incapacidade mental de contratar.

Não poderia provar que não tinha havido consumação — ainda que Patrick só tivesse tido relações normais com ela uma vez, exigindo daí por diante satisfações orais, anais e sádicas.

Não poderia evidentemente provar impotência. Não poderia provar erro de pessoa. Não poderia provar fraude porque Patrick poderia replicar dizendo que Carol tinha conhecimento dos seus vícios e consentira em casar-se apesar deles.

A alegação que ela acabou fazendo foi que o casamento não tinha validade em virtude de um defeito de consentimento da parte de Patrick. Por outras palavras, Patrick, em vista das suas obsessivas tendências sexuais, não podia prometer o que não estava em condições efetivas de cumprir.

A última informação que tivemos foi que o caso de Carol ainda está pendente do primeiro julgamento e que as suas esperanças de um veredicto favorável são, na melhor das hipóteses, remotas.

Nosso comentário. Há um conhecimento cada vez mais extenso das aberrações psicossexuais, mas não se toma providência alguma para reformar as leis canônicas com base nesse conhecimento novo. Justiça? Certamente não. Moralidade cristã? Proteção do vínculo? Há momentos em que os bizantinismos legais parecem uma blasfêmia.

Outro caso dos nossos arquivos:

Donald e Moira, dois anglicanos, casaram-se numa cerimônia religiosa em Londres, em 1950. Tinham feito o acordo de não ter filhos.

Ao fim de alguns anos, Moira abandonou Donald, que em seguida se divorciou dela sob a alegação de adultério. Moira foi para Portugal e ali se casou de novo. Donald acabou amando uma moça católica chamada Ruth. Foram juntos os dois consultar um padre católico sobre a sua situação.

O padre foi firme em dois pontos. O casamento anglicano era um casamento sacramental e válido. Não fora dissolvido por deserção, adultério, divórcio ou o novo casamento de uma das partes. Se houvesse, porém, um defeito que invalidasse o casamento, Donald podia requerer um decreto de nulidade e, se o conseguisse, casar-se com Ruth.

A exclusão dos filhos parecia constituir esse defeito que invalidava o casamento. Entretanto, isso tinha de ser provado por Donald. Antes que pudesse prová-lo, teria de obter permissão de Roma para iniciar a ação. Como um cristão anglicano, continuava a ser um cidadão de segunda classe.

O padre ofereceu-se para tratar do assunto com a cúria diocesana e com as autoridades de Roma. Nesse meio tempo, Donald escreveu a sua ex-esposa e pediu-lhe que afirmasse por escrito o fato da exclusão dos filhos do seu contrato. Ela concordou com isso.

Tudo certo daí por diante? Nada disso.

Em fevereiro de 1964, em colaboração com o padre seu amigo, Donald preparou a sua petição e entregou-a à cúria local. Um mês depois, a petição foi devolvida para alterações da forma. Fizeram-se as alterações. A petição foi mandada para Roma. Quatro meses depois, Roma concedeu permissão para que o caso fosse julgado.

Eis nas palavras de Donald o que aconteceu depois:

 

... Tudo então começou a ficar complicado. A cúria escreveu para Portugal, onde um padre local interrogou minha ex-esposa. Houve uma troca de correspondência interminável sobre a dificuldade de conseguir um interprete competente na aldeia onde ela morava. Por fim, o padre nosso amigo ofereceu-se para ir a Portugal a fim de interrogá-la em inglês. O oferecimento dele não foi aceito. Durante nove meses depois disso, nada aconteceu. Escrevi pessoalmente ao Legado Apostólico em Londres, pedindo-lhe que interviesse. Recebi uma carta gentil que dizia que se tratava de um assunto interno e que não tinha qualquer relação com ele.

Fui falar diretamente com o bispo. Disse-me ele que a razão da demora era que o seu gabinete estava sobrecarregado de trabalho e lutava com falta de pessoal. Isso aconteceu em abril. Por fim, a diocese resolveu dar início aos trabalhos do tribunal no dia 30 de setembro. Prestei depoimento e fui interrogado. Disseram-me que queriam novas declarações de minha mulher prestadas na Inglaterra. Estavam muito preocupados com “os perigos da tradução”. Minha mulher mandou dizer que não sairia de Portugal. Estávamos novamente num impasse. Quando nos queixamos, disseram categoricamente que a cúria dispunha apenas de tempo limitado para dedicar a casos matrimoniais.

O padre nosso amigo continuou a fazer pressão sobre o bispo. Por fim, nos deu esta notícia inacreditável: “O bispo diz que todos os casos do tribunal matrimonial estão parados. Sugere que o caso seja reaberto em outra diocese!”

 

O fim da história? Donald e Ruth perderam as esperanças de obter justiça e se casaram na justiça civil. O padre admitiu Ruth à comunhão, pois, como ele disse: “Ela não tem culpa de que a Igreja não possa decidir-se ou não possa fazer justiça por falta de pessoal.”

Outro caso? Este consta também dos nossos arquivos.

John e Emily, ambos católicos, casaram-se de acordo com as regras da Madre Igreja. John tinha tido uma educação católica rigorosa e muito boa instrução — o seu depoimento é preciso e revela íntimo conhecimento do direito civil e canônico.

O casamento não foi muito bem sucedido. Emily tinha pouco interesse pelo sexo. Em certa ocasião, recusou qualquer contato sexual durante dois anos. Teve dois filhos com John e se recusou a ter outros. John se conservou fiel durante todo o tempo, mas a sua tolerância foi-se esgotando.

Resolveu por fim levá-la para o estrangeiro num esforço para reanimar as relações entre ambos. Requereu os passaportes e, pela primeira vez, teve nas mãos a certidão de idade da mulher. Ela era dez anos mais velha do que constava da certidão de casamento! John compreendeu que a união era um fracasso irremediável e que todos os seus anos de tolerância tinham sido inúteis. A vida conjugal foi de mal a pior depois disso.

John foi pedir conselhos ao seu confessor. Apresentou a prova documental da fraude de sua mulher. Revelou o motivo da mesma. Durante o noivado, discutira com a noiva a questão da diferença de idade entre marido e mulher e tinha dito positivamente que não gostaria de se casar com uma mulher mais velha do que ele. Pergunta forçosa: Não tinha podido ver a idade dela? Resposta: Não podia e não vi. Não é à toa que dizem que o amor é cego!

Disse então o confessor:

— Se fez da idade dela uma condição explícita do casamento e ela ocultou a sua verdadeira idade, não é de fato casado. Tem dois caminhos: validar o casamento por um ato de consentimento agora ou terminá-lo agora pela separação, desde que não deve coabitar com uma mulher com quem não está casado. Deve então requerer no foro externo dos tribunais um decreto de nulidade a fim de ratificar legalmente a nulidade que existe de fato.

Assim, John, em plena consciência de que não estava casado, se separou da mulher e tratou de conseguir um decreto de nulidade.

O diálogo que se segue realizou-se na cúria. John, um homem meticuloso, registrou-o também.

— Meu confessor me diz que eu tenho direito a requerer a nulidade. Que devo fazer?

— Apresentar uma petição.

— Onde?

— Aqui na cúria.

— De que forma?

— Na forma que desejar.

— Quais são os meus direitos perante o tribunal?

— Será oportunamente informado.

— Quem me assistirá legalmente?

— Quem o senhor quiser.

— Como devo especificar os fundamentos da petição?

— Especifique os fundamentos que julga ter.

Isso levou John de volta ao ponto de partida: seu confessor. Este, forte em teologia moral, mas fraco em direito canônico, deu a John a sua opinião.

— Sua mulher é uma pessoa substancialmente diferente na lei da pessoa que ela alegava ser. É esse o âmago de suas razões.

Na realidade, o confessor estava errado. Dentro da lei, a “qualidade” era diferente, mas não a “pessoa”, John, porém, apresentou a petição de boa-fé.

Recebeu a resposta em três meses. Muito depressa, sem dúvida! A sua petição fora indeferida, mas ele tinha direito a apelar. Vimos esta carta. Omite uma informação muito importante, a saber, que o caso não fora submetido a julgamento, tendo sido rejeitado ad limina litis. Deixava também de informar a John os motivos dessa rejeição.

Desse modo, John, mal orientado pelo seu confessor e sem ter informação do tribunal sobre a verdadeira situação do seu caso, apresentou a sua apelação com os mesmos argumentos.

Depois de outros três meses, recebeu uma carta — mais breve do que a primeira — que dizia que a sua apelação fora negada. Não havia menção de que um julgamento não fora ordenado. Não se mencionava também o seu direito a uma apelação final para a Rota.

Foi deliberadamente omitida a informação? John, que ainda é um homem tolerante, não diz isso. Mas — sendo um moralista esclarecido e já agora um entendido razoável em assuntos legais — afirma que a falta de prestação das informações constituiu uma grave negligência, uma quebra da caridade e da justiça.

De qualquer maneira, sem saber como ou por que, John foi derrotado antes de começar. Começou então a fazer estudos particulares de direito canônico e, quando compreendeu como estivera mal orientado, decidiu ir a Roma para invocar o Direito do Peregrino, um processo atualmente abolido, e ser julgado perante a Rota.

Levou cinco anos para conseguir o dinheiro. Em Roma, consultou um ilustre advogado da Rota, um leigo. O advogado traçou as razões de nova petição, baseada dessa vez no efeito de consentimento. A essência das razões era a seguinte:

“Consenti em me casar com essa mulher acreditando que tinha a idade que me dizia. Não me teria casado com ela, e ela sabia perfeitamente disso, se tivesse conhecimento da verdadeira idade dela. Por outras palavras, fiz da idade dela uma condição explícita do contrato.”

John quis saber então das chances que tinha. A resposta do advogado foi clara.

— Se conseguir provar o que alega, obterá um decreto de nulidade.

Trataram então de avaliar as provas. A fraude era evidente. O termo de casamento, assinado pela mulher, consignava uma idade falsa. Mas a razão que a mulher tivera para a falsificação é que era o núcleo do caso.

John não tinha documentos, nem testemunhas para provar a sua alegação. A mulher confirmaria o que ele afirmava? Não, ela havia dito categoricamente que seria uma testemunha hostil e apresentaria outras testemunhas hostis. Assim sendo, o tribunal pesaria o documento falso contra a mulher e suas testemunhas. Se os juízes ficassem em dúvida, o vínculo seria favorecido.

Quanto tempo duraria o caso? O advogado foi honesto. Um caso duvidoso como aquele, com testemunhas em outro país, poderia durar cinco, seis, sete anos, talvez mais. Quanto custaria? Seria muito dispendioso, a não ser que John quisesse submeter-se a um exame de seus recursos. Esse exame também demoraria muito tempo. O advogado aconselhou John a pensar bem antes de comprometer-se numa longa, dispendiosa e duvidosa jornada.

John pensou em tudo cuidadosamente. Chegou à seguinte conclusão: Em consciência — isto é, de fato — não estaria casado. Podia ou não provar isso dentro de uma lei cujas normas, presunções e processos visavam a derrotá-lo. Resolveu não prosseguir.

Divorciou-se de sua primeira mulher e casou-se com outra católica numa cerimônia civil. Continua a ser católico. Não tem qualquer dúvida em sua consciência sobre o seu atual casamento. Comunga particularmente porque julga que é um direito que lhe cabe e tem o apoio de seu confessor sob o fundamento de que a Igreja não tem o direito de agravar a injustiça já infligida pelas suas leis deficientes.

O caso seguinte é estranho por vários motivos.

Em 1940, Sophie, uma católica americana, casou-se com Stephen, um inglês não batizado, numa cerimônia católica. Para que seu casamento fosse válido, ela teria necessidade de uma dispensa da Igreja. Não há registro de que a dispensa tenha sido concedida. Entretanto, há o registro de que Stephen foi batizado uma semana depois na mesma Igreja, pelo padre que celebrou o casamento. Desse modo, na opinião do padre ao menos, o casamento deve ter sido legalmente realizado.

O casamento não durou. Sophie voltou para os Estados Unidos e divorciou-se de Stephen. Alguns anos depois, sem revelar o seu primeiro casamento, ela se casou com um católico numa cerimônia católica.

Nada disso faz de Sophie uma pessoa particularmente simpática. Entretanto, o seu segundo casamento foi feliz e vários filhos nasceram. Sophie deve ter adquirido maior discernimento e maturidade e começou a fazer um exame de consciência. Aos olhos da Igreja, o seu segundo casamento não era absolutamente um casamento. Havia um impedimento — o seu primeiro casamento com Stephen. Para regularizar a sua situação, teria de provar que esse casamento jamais existira!

Assim, dezenove anos depois de seu primeiro casamento, quinze anos depois do segundo casamento, Sophie tratou de tranquilizar a sua consciência e assentar a sua posição legal na Igreja.

Um dos impedimentos ao casamento católico é chamado disparidade de culto. Isso significa que um cristão não se pode casar com um não cristão sem permissão especial. Não cristão, para os fins da lei, significa qualquer pessoa não batizada. No caso de Sophie, não havia registros para provar que a permissão fora concedida. Havia, porém, uma forte presunção de que devia ter havido permissão, pois o padre os casara e batizara Stephen em seguida. Lembrem-se, porém, do que já dissemos. Na lei latina, a forma é quase sempre mais forte do que o conteúdo ou a intenção. E, neste caso, a forma tinha mais peso do que a presunção. Não havia documento de dispensa. Não havia, portanto, dispensa.

Acontece que Stephen não tinha figurado em nada disso. Tinha desaparecido e ninguém sabia onde estava. Mas de repente apareceu em campo a madrasta de Stephen. O tribunal da cúria fora desenterrá-la dos arquivos. Afirmou ela que sabia que Stephen tinha sido batizado, sem saber onde ou quando. Não foi possível também encontrar qualquer documentação a esse respeito.

Assim, os juízes se viram diante de uma dúvida insolúvel. Invocaram a norma de Inocêncio III e declararam que o primeiro casamento de Sophie era válido e o segundo, não.

O caso foi em grau de apelação a um segundo tribunal e, depois, a um terceiro. Estes decidiram em favor de Sophie, sob o fundamento de que, embora existisse dúvida, esta era a favor de Sophie e que se devia conceder o benefício da dúvida a bem de uma família cristã estabelecida.

A decisão foi humana e pragmática. Alguns juristas se sentem propensos a encará-la como duvidosamente canônica. Os autores deste livro estão convencidos de que todas as dúvidas razoáveis devem ser resolvidas em favor da pessoa, haja ou não “uma família cristã estabelecida” envolvida no caso.

Para terminar, um caso de amor com um curioso desfecho.

Ernest, acatólico, casou-se com Hermione, católica, perante a justiça civil. O casamento não tinha validade por defeito de forma. Entretanto, o casal vivia feliz e teve vários filhos.

Um belo dia, Hermione sofreu um acidente grave e foi levada para um hospital. Com receio de morrer com a consciência pesada, chamou um padre e o marido. Uma cerimônia de casamento foi celebrada de acordo com todos os ritos e exigências da Santa Madre Igreja. O casamento deles passara a ser válido.

Hermione passou vários meses no hospital e, para o fim, ficou loucamente apaixonada por um médico católico. Fez uma petição de anulação alegando que o seu casamento-com Ernest não fora consumado!

A petição foi deferida. Por quê? Só o segundo casamento era válido. E Hermione provou que tinha sido incapacitada pela doença, tendo passado todo o tempo num leito de hospital numa enfermaria pública e que não poderia ter tido contato sexual com Ernest durante esse tempo.

A moralidade de seu ato não entrou em discussão. Esta se limitou aos fatos materiais. Hermione se casou então com o médico numa união legal, válida e sacramental!

Poderíamos multiplicar casos assim ao infinito e até à náusea. Qualquer canonista poderia apresentar centenas de casos mais complicados e mais meticulosamente argumentados do que os que mostramos. Cumprimos, porém, o nosso objetivo se conseguimos dar aos leitores uma idéia mais ou menos clara dos conceitos legais em que se baseia a lei canônica, os dilemas e contradições que nascem desses conceitos e o que pode acontecer a qualquer um que se veja envolvido no sistema legal da Igreja.

No próximo capítulo, procuraremos esclarecer os leitores sobre algumas extravagâncias legais e teológicas chamadas de privilégios.


11

 

PESSOAS PRIVILEGIADAS

 


Dentro das leis matrimoniais da Igreja Católica, toda pessoa batizada é cristã; toda pessoa sem batismo, não cristã.

A pessoa batizada tem direito a um privilégio dentro da lei. Uma pessoa não batizada não goza desse privilégio e não tem recurso contra a invocação do mesmo.

O privilégio neste caso é o divórcio — um verdadeiro divórcio com direito a novo casamento! O nome do privilégio é o Privilégio da Fé. Divide-se em duas partes: o Privilégio Paulino e o Privilégio Petrino.


1. O Privilégio Paulino


Dois não cristãos casam-se de acordo com os usos da sociedade em que vivem. Um deles se torna cristão. Se puder provar que o seu cônjuge constitui um obstáculo à prática de sua nova fé, pode requerer uma dissolução que, se for concedida, lhe permitirá casar-se de novo.

Desde que o não cristão não dispõe de recurso a título de defesa ou contestação, a palavra “privilégio” é bem usada. É um pouco mais difícil alegar que a justiça é bem atendida!


2. O Privilégio Petrino

 

Um chefe numa sociedade poligâmica da Nova Guiné tem seis esposas. Converte-se ao cristianismo. A poligamia não é permitida pela lei cristã. Que deve ele fazer?

Pode escolher qualquer das suas mulheres ou outra mulher e casar-se com ela de acordo com a lei cristã. É obrigado por justiça a dar garantias econômicas às mulheres rejeitadas, mas cabe-lhe o privilégio da escolha, em virtude de sua nova fé, e as esposas rejeitadas não têm direito a apelar de sua escolha.

Entretanto, o Privilégio Petrino vai muito mais adiante. A maneira pela qual funciona pode ser ilustrada pelo famoso caso de Helena.

A Helena de que se trata é a capital do Estado norte- americano de Montana. Em 1919, um homem não batizado se casou ali com uma mulher anglicana. O casamento foi consumado. Um ano depois, ele se divorciou dela mediante uma ação no foro civil.

Informou então ao vigário de sua paróquia que queria ingressar na Igreja Católica e casar-se com uma moça católica. O seu primeiro casamento era legítimo aos olhos da Igreja. Não podia, portanto, ser considerado dissolvido pela ação de divórcio civil.

O bispo de Helena ocupou-se do caso e o apresentou a Roma. Depois de quatro anos de investigações e correspondência, o Papa reinante baixou um decreto dissolvendo o primeiro casamento “em favor da Fé”.

A legitimidade do primeiro casamento era clara.

A dissolução foi de fato um divórcio, concedido a um católico recém-batizado.

A Igreja, portanto, alega e exerce o poder de conceder o divórcio e permitir novo casamento.

Para assim agir e conservar ao mesmo tempo a proposição discutível da absoluta indissolubilidade do casamento cristão, a Igreja criou uma curiosa ficção teológica e jurídica: o “casamento natural” em oposição ao “casamento sacramental”.

O “casamento natural” é definido como uma união legítima entre não cristãos — ainda chamados pelo Código de “infiéis” — ou como uma união legítima entre um cristão e um não cristão.

Sejamos justos. Todo código de leis humanas contém “ficções” de uma espécie ou de outra. Essas ficções são de fato uma acomodação pragmática a condições existenciais humanas. Uma sociedade anônima é uma dessas ficções. Cria-se uma entidade que goza de existência como pessoa jurídica, que pode fazer contratos e ser acionada. A presunção de morte pode criar outra dessas ficções. Um homem que se diverte feliz da vida em Acapulco pode ser considerado legalmente morto em Nova Orleans. Já vimos como um homem ou uma mulher pode ser legalmente impotente e, ao mesmo tempo, vigorosamente potente.

O problema dessas ficções jurídicas na Igreja é que, uma vez promulgadas sob a autoridade da Assembleia, os teólogos e, vamos dizer sem rodeios, os propagandistas pastorais tratam de justificá-las com uma lógica intrincada e sumamente acrobática a tal ponto que com o tempo assumem um caráter pseudo-sagrado e se tornam tão estreitamente entretecidas na trama da tradição que são julgadas incontestáveis.

Um problema ainda maior é que tais ficções, sendo com frequência mutuamente contraditórias, expõem o legislador cristão à justificável suspeita de dissimulação verbal e legal.

Assim, o “direito natural” — outra velha ficção que não deixa de ter utilidade — obriga todas as criaturas humanas a se fazerem mutuamente justiça em medida igual. Contradizer e superar o “direito natural” com uma ficção de “privilégio” é, no mínimo, um procedimento discutível.

Outra questão, muito mais fundamental, parece exigir uma discussão muito ampla:

“Como pode um homem ser, ao mesmo tempo, cristão e não cristão?”

Ridículo? De modo algum. Isso decorre diariamente da prática do batismo das crianças.

A doutrina atual da Igreja professa que o rito sacramental (misterioso) do batismo confere à criança o Dom da Fé e a filiação permanente à Assembleia dos Crentes. O Dom e a filiação são conferidos pelo próprio rito e não pelo consentimento pessoal da criança, porque esta é incapaz de consentir em qualquer coisa no momento.

Entretanto, a criança pode crescer, em virtude de várias circunstâncias, ignorante de sua incorporação à Igreja, privado de qualquer educação cristã e talvez incorporado a uma comunidade não cristã. Pode ainda rejeitar a fé conscientemente e de ânimo deliberado. É, em qualquer dos casos, um cristão? Diz a pessoa que não. Diz o bom senso que não. A lei diz que sim. E as leis matrimoniais tratá-la-ão como uma pessoa cristã sem exigir dela que faça um ato de conversão ou abjure das suas crenças não cristãs. Considerará o seu casamento com outro cristão como um casamento cristão.

Trata-se de outro interessante dilema criado pela tentativa de legislar para dois mundos diferentes num só código!

E isso nos leva a uma última curiosidade da prática pastoral católica, na qual a dissimulação e o absurdo se misturam em doses quase iguais.


12

 

O NÚMERO DO IRMÃO E DA IRMÃ

 

 

Se um homem e uma mulher contraíram um casamento que não tem validade aos olhos da Igreja e não pode ser regularizado por meios canônicos são obrigados a separar-se.

Se, entretanto, essa separação for cruel ou difícil em função da idade, da saúde, dos filhos ou da pobreza, a Igreja permitirá que vivam juntos, continuem a considerar-se como casados e recebam os sacramentos — sob uma condição principal: não devem ter contato sexual!

Muitos moralistas dotados de senso de humor julgam que o arranjo é uma maneira muito indireta de oferecer salvação ou de apaziguar um casal que não pôde obter justiça dos tribunais canônicos.

Os moralistas com conhecimento da história citarão a legislação da Igreja primitiva, que era muito mais humana, pois tolerava a coabitação plena e readmitia o casal na comunhão cristã depois de um período de penitência. Citaremos algumas das provas a esse respeito na segunda parte deste livro.

Todos os moralistas estão de acordo em que há dissimulação no caso. Alguns a justificam como um artifício legítimo para evitar o escândalo. Os outros rejeitam a idéia do escândalo na sociedade tolerante de hoje. Entretanto, a Igreja certamente agrava a dissimulação com as regras que liga a esse duvidoso privilégio.

Quem desejar valer-se dele, aqui tem as condições. O casal deverá apresentar-se ao padre da paróquia e comprometer-se sob juramento a guardar o celibato e não fazer o menor gesto no sentido da vida conjugal; que organizará a sua vida doméstica de modo a evitar o grave perigo de irem os dois juntos para a cama; que não será motivo de escândalo na comunidade; que assegurará ao confessor quatro vezes por ano que o juramento foi mantido e que receberá a comunhão numa paróquia onde nenhum dos dois seja conhecido.

Nas pesquisas que fizemos para este livro só deparamos com dois casais que haviam tentado esse arranjo. Um deles nos assegurou que se havia acomodado satisfatoriamente. Eram, porém, visivelmente dados ao uso do álcool. O outro casal confessou que tinha vivido assim durante algum tempo e tinha afinal desistido em vista da impossibilidade moral. Esse casal recebe agora os sacramentos das mãos de um padre tolerante que justifica as suas ações invocando uma prática e uma tradição da Igreja muito mais velhas.

Temos um comentário a fazer. Acreditamos que, abolindo práticas mais velhas, mais tolerantes e ainda assim legítimas, adotando certas interpretações rigoristas da teologia na sua presente doutrina oficial e atribuindo ou parecendo atribuir a certos pronunciamentos pastorais uma autoridade que de fato não têm, £, Igreja acabou recuando até um canto do qual só poderá sair com a espécie de lógica demente que discutimos em algumas destas páginas.

“Se isso é religião”, disse um pastor exasperado, prefiro unir-me aos infiéis que, afinal de contas, têm bom senso e compaixão”.


13

 

RAZÕES DAS QUEIXAS

 


Expusemos o fundamento das queixas. Cremos ter acrescentado evidência suficiente para termos direito a ser ouvidos pela Assembleia. Prestamos agora o nosso depoimento como se segue:

 

1. Os conceitos da pessoa humana em que se baseia o direito canônico são incompletos, superados, às vezes contraditórios e, em certos aspectos, anticristãos.


O homem é o que é, não o que uma lei diz que é.

O homem não é um conjunto de partes materiais. Não é também uma soma de qualidades psíquicas.

O homem é um animal, que vive numa dimensão física do tempo e do espaço. É um animal que sabe e tem consciência de que sabe, e é capaz em graus variáveis de ordenar-se em relação ao ambiente, a outros seres e à Fonte do Ser.

O homem é um ser único. Reconhece uma unidade em si mesmo. Reconhece uma unidade com os outros seres com quem vive. Reconhece também a diversidade — diversidade em si mesmo, diversidade nos outros seres. Nem todas as suas faculdades têm desenvolvimento igual. Nem todos os outros seres se desenvolveram como ele.

Muitos homens formam uma assembleia, mas a assembleia nunca forma um homem. Nem pode a assembleia abstrair as qualidades de muitos homens e criar com elas um novo homem — um homem jurídico, um homem corporativo, um homem cristão, um homem não cristão.

Muitas ciências podem fazer afirmações válidas acerca do homem. Nenhuma ciência já o definiu ou pode adequadamente defini-lo. A teologia cristã tem apenas uma afirmação a fazer sobre ele: é um ser criado pelo Ser Supremo, aberto ao Ser Supremo, necessitado do Ser Supremo, em associação e relação filial com o Ser Supremo e, como o próprio Ser Supremo, incompreensível.

Mais a lei canônica, um código feito pelos homens, diz justamente o contrário sobre ele.

A lei canônica diz que essa criatura incompreensível pode ser compreendida e julgada pelas regras da evidência humana.

A lei canônica diz que essa misteriosa unidade pode ser cindida, de modo que seja uma coisa de direito e outra coisa de fato.

A Igreja ensina que o homem é o sujeito e o objeto da salvação: salvar-se e resguardar-se para a sua união final com o Ser Supremo. Ao mesmo tempo, a lei canônica muitas vezes lhe nega os meios de salvaguarda: amor, apoio mútuo, um auxílio necessário contra essa solidão que é um gosto antecipado da condenação eterna.

A lei canônica diz que um homem deficiente não pode sequer usar as faculdades que tem para conseguir uma união de amor com outra pessoa que a isso esteja disposta.

A lei canônica põe a Assembleia acima dos homens sem os quais a Assembleia não poderia existir. Coloca uma instituição, o vínculo, acima daqueles para cuja salvaguarda foi feito o vínculo.

A lei canônica cria uma ficção, o homem jurídico, e coloca-o acima do homem existencial que é o autêntico Filho de Deus.

A lei canônica não leva em conta que o homem é aberto, móvel, em desenvolvimento. Ao invés disso, regula-o e julga-o em função de normas que são imóveis, definições que são estáticas e critérios que lhe degradam â misteriosa dignidade dada por Deus.

 

2. As presunções da lei canônica são todas voltadas contra o homem para cujo serviço e salvação é feita a lei.


A lei canônica presume um conhecimento suficiente da qualidade essencial do contrato de casamento por ambas as partes.

A presunção pode estar certa. Mas há uma possibilidade igual de que esteja errada. A experiência nos mostra todos os dias que até pessoas inteligentes têm enormes claros na sua compreensão, que os mesmos verbalismos suscitam conotações subjetivas vastamente diferentes. Dois homens que recitam o mesmo credo ou a mesma fórmula de contrato podem interpretar os termos de maneira contrária. Na melhor das hipóteses, a linguagem é um modo de comunicação insuficiente.

Justifica-se a presunção como um meio de efetuar o comércio normal da vida humana, mas não se justifica quando é inserida forçadamente por lei na vida moral de pessoas, no foro de sua consciência, onde a lei não tem direito de entrada.

Só o homem sabe o que sabe. E, ainda assim, muitas vezes não tem certeza.

A lei canônica presume uma intenção correta da parte de cada cônjuge.

Neste caso também, a presunção pode estar certa ou errada. Justifica-se também por motivos pragmáticos. E também o equilíbrio das probabilidades é por demais delicado para que possa pender para um lado ou para outro. Se nos perguntarem hoje quais eram as nossas intenções ontem, talvez as revelemos com sinceridade, mas com certeza as alteraremos sem ter consciência disso. Se nos fizerem a mesma pergunta daqui a dez anos, como poderemos dar qualquer resposta? O que estava errado na consciência subliminal subiu à superfície. Aquilo que julgávamos nossa intenção não o era absolutamente. O que pensávamos não foi o que exprimimos em palavras.

A lei canônica presume a potência, mas não a define com clareza. Define a potência do homem e da mulher de acordo com normas diferentes.

Isso dá em resultado uma lei má em qualquer sentido.

A lei canônica faz da impotência física um impedimento que invalida o casamento. Toma conhecimento limitado e vago das impotências psíquicas, que são muito mais comuns e constituem impedimentos muito mais graves à união física e psíquica no casamento.

Presume-se também a sanidade mental. Mas a sanidade não é definida em parte alguma da lei canônica, muito embora as sementes da insânia de uma espécie ou de outra possam já estar germinando antes do contrato de casamento.

A livre escolha é presumida. Mas a liberdade é definida apenas pelo que a anula ou impede. As indefiníveis limitações da liberdade — as confusões da emoção, os receios subliminares, os pesadelos que desafiam a expressão — tudo isso não pode ser alegado perante a lei.

A mais justa e menos justificável presunção é a que está na raiz de todos os processos canônicos, segundo a qual a descoberta da verdade, a obtenção de uma certeza absoluta ou pelo menos moral é mais importante do que fazer justiça às pessoas. Afirmamos que os processos legais — e até os métodos rigidamente inquisitoriais dos cânones — raramente estabelecem uma certeza absoluta, que a certeza moral é bastante rara e que uma probabilidade razoável deve ser a norma de um julgamento favorável.

Exigir mais do que isso, prolongar o processo em busca de uma certeza absoluta ou moral é cometer injustiça.

 

3. O favorecimento do vínculo acima das pessoas é injustificado e injustificável.


Os apologistas católicos têm tentado justificar essa norma legal sob o fundamento de que contribui para a ordem pública ou então para manter a santidade do vínculo.

Rejeitamos ambas as justificações. Afirmamos que o vínculo é sagrado precisamente porque foi feito para uma pessoa sagrada, o homem, e para sua segurança e salvação. O próprio homem forja o vínculo. Não é o vínculo que faz o homem. Este é que faz o vínculo, forja-o para si mesmo, porque ele corresponde à sua natureza misteriosa, à sua sinceridade, às suas necessidades e à sua associação na criação e na procriação com o Ser Supremo.

Se for preciso favorecer alguma coisa, só poderá ser o homem.

Ordem pública? Isso é uma ficção baseada num medo da desordem que é uma realidade. Negar ao homem um direito ou um direito presuntivo com receio de uma possível desordem na sociedade é um ato covarde.

Fiat justitia et ruat coelum! Faça-se justiça e caia o céu! Mas o céu não cairá. E se a justiça for apenas aproximada, ainda será melhor do que a falta de justiça.

 

4. A Igreja finge oferecer uma justiça que não dispensa, nem pode dispensar.


A acusação é grave e estamos cientes disso. Julgamos tê-la provado cabalmente.

A Igreja obriga os peticionários a procurarem justiça em tribunais que não têm tempo nem pessoal para examinar os casos.

Mantém nesses tribunais normas processuais arcaicas e ineficientes que retardam a decisão pelo espaço de anos.

Impõe métodos de inquisição mental e física que são atentatórios à dignidade humana.

Introduz em todas as normas e processos segundas intenções em favor do vínculo e não da pessoa.

Submete até os peticionários vitoriosos ao risco de um segundo julgamento por meio de uma apelação compulsória em favor do vínculo.

Exclui de sua organização judiciária as únicas pessoas que têm experiência direta do estado conjugal — os homens e mulheres casados e leigos.

Faz exigências exorbitantes e absurdas à paciência e à resistência moral de seus filhos para esconder os seus patentes erros.

Quando a paciência de seus filhos se esgota e eles procuram outros remédios em outros tribunais, sobrecarrega-os de sanções e estigmas, chegando a recusar-lhes a tradicional tolerância cristã.

Justiça retardada é justiça negada. Prometer uma justiça que não pode ser feita é uma hipocrisia gritante. Mas obrigar um homem a um recurso impossível e depois puni-lo quando ele, em vista apenas da sobrevivência, faz uma acomodação entre a sua consciência e as circunstâncias inevitáveis é certamente a mais monstruosa de todas as injustiças!

São estas as nossas razões. É o que pleiteamos perante a Assembleia. “Refutar ou reformar. Em nome de Deus, faça-se justiça!”


LIVRO 2

 

UM PROJETO DE REFORMAS


Baseado em conceitos cristãos da pessoa humana, da relação conjugal, da missão salvadora e da autoridade legislativa da Assembleia Cristã.


14

 

CONDICÕES PRÉVIAS PARA ÁS PROPOSTAS

 


Precisamos de reformas. Com urgência. Mas somos suficientemente realistas para saber que não iremos consegui-las — ao menos no clima atual — em circunstâncias que provoquem disputas doutrinárias ou impliquem para a Igreja uma retirada real ou aparente de suas trincheiras morais ou políticas.

Estabelecemos, portanto, os seguintes critérios para as nossas propostas:

1. As reformas propostas guardariam a atual doutrina oficial da Igreja sobre o matrimônio cristão.

Isto não quer dizer que os autores considerem fora de discussão a atual doutrina oficial. Significa apenas que uma revisão da atual doutrina oficial não é prevista pelas suas propostas.

 

2. As reformas propostas não exigiriam que a Igreja restabelecesse a prática do divórcio na Igreja.

Há fortes indícios de que isso seria possível. Há uma forte opinião em favor dessa possibilidade. Afirmamos categoricamente que a Igreja assim não procederá no futuro imediato. Em vista da confusão reinante em seus atuais tribunais, é muito melhor que assim não proceda!

 

3. As reformas propostas devem determinar uma solução rápida para os casos já na máquina.

É evidente que não deve haver dois sistemas oficiais de justiça que produzam consequências diversas para os requerentes de casos matrimoniais.

 

4. As reformas propostas devem afastar a Igreja o mais depressa possível da sua atual prática judiciária.

Não contestamos o direito de prática judiciária da Igreja como uma sociedade. O que dizemos é que a prudência e o baixo padrão da sua presente atuação impõem uma revisão radical de seus métodos.

 

Se nossas propostas atendem a esses critérios — e nós acreditamos firmemente que sim — segue-se uma conclusão clara e lógica. A Assembleia tem não só os meios mas também o dever moral de remediar uma injustiça patente e escandalosa.


15

 

A FINALIDADE DA REFORMA

 

 

O fim de todas as reformas neste particular é encontrar, dentro do Depósito da Fé, uma solução para os sofredores que suportam uma união conjugal intolerável. Cremos que a solução existe, sempre existiu e vem sendo obscurecida há muito tempo. Cremos que pode ser aplicada sem qualquer acrobacia ou ficção jurídica — e sempre com justiça, caridade e compaixão cristãs.

Usamos as palavras “Depósito da Fé” com deliberada intenção neste contexto.

O Depósito da Fé é uma expressão que descreve todo aquele acervo de verdade que está à disposição de todos os homens para bem viver e alcançar a salvação final.

Abrange o Depósito da Fé todas as verdades proporcionadas pela experiência, pela razão, pela intuição, pela tradição humana e pela Revelação Divina.

O Depósito da Fé é um corpo, uma unidade como é o homem e como é Deus. Desdenhar, desprezar ou dar falso relevo a qualquer parte desse corpo faz o homem correr perigo. Tentar dissociar-lhe as partes por meio de seleção partidária é provocar uma catástrofe.

Compreenda-se exatamente o que estamos dizendo. Isso é de vital importância. Todo conhecimento é uno, porque o seu objeto é uma criação unificada, a produção de um único ato criador pela Unidade Essencial. Por isso, uma verdade jamais contradiz outra, por mais difícil que seja perceber a relação entre elas. Por isso, um fenômeno não pode ser privado de existência por meio de sofismas ou casuística.

Sejamos diretos e específicos. Um exegeta que tentar adaptar um texto bíblico a uma idéia preconcebida está cometendo uma prevaricação. A sua tarefa é examinar o texto nas suas circunstâncias e conotações históricas e linguísticas e externar uma conclusão erudita sobre o seu sentido. Não se concebe que, além disso, toque as trombetas do propagandista.

Um historiador a quem não agrade o que encontrar na História da Igreja não tem o direito de ocultar ou de dourar os fatos. Pode apresentar uma interpretação baseada em sólida erudição. Mas não deve apresentar a interpretação como História. Um intérprete que toma partido não tem mérito e não presta serviço à verdade.

Um teólogo que arranca um fenômeno do seu contexto existencial para adaptá-lo a uma fórmula doutrinária incorre imediatamente em erro. Um fato fenomenal e uma verdade transcendental são partes da mesma unidade. Se a concordância entre ambos não é imediatamente aparente é porque a nossa apreensão é defeituosa ou a fórmula está incompleta.

Da mesma forma, um legislador que sobrecarrega a lei de ficções procura dissimular a sua incapacidade. Quando investe essas ficções de uma autoridade que não merecem, viola a verdade. Quando impõe sanções para proteger a autoridade, desacredita a autoridade.

Em resumo, é ao Depósito que é dado o assentimento de nossa fé. Quem ou o que dissociar o Depósito é falso a este

 

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A BASE DA REFORMA - A VERDADE

 

 

Com fundamento na experiência humana universal, temos as seguintes coisas como verdadeiras e, por verdadeiras, contidas no Depósito:

Um homem é uma criatura livre, necessitada e em desenvolvimento.

Uma mulher é uma criatura livre, necessitada e em desenvolvimento.

O casamento entre um homem e uma mulher é uma afirmação de suas mútuas necessidades. Ê um meio de atender a essas necessidades e de promover o mútuo desenvolvimento, de acordo com a natureza existencial de ambos.

O casamento não é apenas um contrato. Ê uma condição de vida em que se ingressa mediante um contrato.

O casamento não é apenas uma instituição. É uma condição de vida reconhecida como de caráter institucional na ordem social porque corresponde às necessidades do homem e da mulher, tais como são.

 

Com fundamento na Revelação, temos as seguintes coisas como verdadeiras e, por verdadeiras, contidas no Depósito:

O homem é uma criatura de origem divina, ordenada para um destino divino, a união com a Fonte do Ser.

A mulher é uma criatura de origem divina, ordenada para o mesmo destino divino.

O casamento humano, como um estado natural ao homem, é, portanto, de origem e ordenação divinas.

 

É claro que não há conflito entre as duas séries de proposições.

A Revelação proporciona simplesmente dois termos que faltam às verdades da experiência: uma origem para o homem, para a mulher e para a união de ambos e um fim ao qual estão destinados.

Em outras palavras, a Revelação afirma que homens e mulheres têm uma natureza que transcende as circunstâncias visíveis. Mas o homem observável é o denominador comum em que o crente e o descrente podem concordar e em geral concordam.

Há condições de acordo também quanto à natureza da união matrimonial.

É iniciado por consentimento mútuo (contrato). É orientado para o desenvolvimento mútuo. O desenvolvimento implica uma finalidade: a salvaguarda das pessoas graças ao conforto e apoio mútuos, a salvaguarda da raça graças à garantia de sua perpetuação. A Revelação não nega essa finalidade, mas estende-a até à união final com Deus do casal protegido ou aperfeiçoado.

A Razão e a Revelação estão de acordo em que quando, em vista de impedimentos insuperáveis, o desenvolvimento não é possível, a finalidade deixa de ser conseguida e a união perde o sentido e não tem validade. Neste caso, o contrato passa a não ter importância. Por conseguinte, é metaforicamente rasgado e a sociedade registra o fato.

Com fundamento na Revelação Cristã, temos as seguintes coisas como verdadeiras e, por verdadeiras, contidas no Depósito:

Por intermédio da Revelação Cristã, nela e por ela, Deus, o Ser Supremo, age sobre o homem e com o homem.

Quando o homem aceita ficar aberto à disposição de Deus e agir livremente em conjunção com o seu Criador, torna-se um cristão.

Ê necessário que afirme a sua aceitação e o seu consentimento por um ato público, simbólico e eficaz, o rito purificador do batismo.

Ê então uma nova pessoa, no sentido de que a sua relação com o Criador foi aperfeiçoada por um dom livre de Deus e pelo próprio consentimento livre do homem no amor.

O casamento de um homem e de uma mulher que estão, cada qual, nessa mesma relação com o Criador é um casamento cristão.

 

O casamento cristão é ainda um casamento humano. É iniciado pelo consentimento, orientado para o desenvolvimento e a plena realização da pessoa humana. Não é visivelmente diferente de outros casamentos humanos. É, entretanto, transcendentalmente diferente em virtude da aperfeiçoada relação das partes com o seu Criador e entre si.

É graças a essa relação aperfeiçoada que o casamento é indissolúvel.

Esclareçamos mais uma vez a natureza de nossa afirmação.

Dizemos que o casamento cristão não se toma indissolúvel por força de lei. É indissolúvel em vista da natureza da relação entre as partes e da sua relação aperfeiçoada em Cristo e por Cristo com o Criador.

Afirmamos, por outro lado, em perfeita conformidade com o Depósito, que o que parece um casamento cristão pode não o ser em realidade, porque a relação aperfeiçoada em que devia presumidamente ser baseado não existiu em primeiro lugar ou não pôde ter existência em virtude de defeitos insuperáveis nas próprias pessoas.

Afirmamos ainda que o colapso total de um casamento presuntivamente cristão fornece indícios presuntivos igualmente fortes de que os elementos essenciais — capacidade de desenvolvimento e relação plena dentro do vínculo — estavam desde o início ausentes.

A Igreja só impõe atualmente uma presunção legal: a existência da relação cristã aperfeiçoada. Admite a presunção contrária. Admite que a incapacidade de desenvolvimento e plena realização do vínculo priva este de validade. Mas define a incapacidade com critérios tão restritos que produz a alucinação jurídica de um homem inumano.

Propomos que esses critérios sejam abolidos e que outros mais lógicos e toleráveis sejam estabelecidos por lei. Sugerimos que sejam reconhecidas as seguintes proposições:

O homem é por natureza indefinível.

As suas relações com os seus semelhantes e com o seu Criador são igualmente indefiníveis.

A prova humana raramente pode estabelecer certezas absolutas ou sequer morais sobre essas relações tal como existem.

Pode ainda menos estabelecer com qualquer grau de certeza o estado de espírito, as convicções íntimas ou as capacidades de qualquer ser humano. Não pode dissociar por qualquer definição válida o passado e o presente de qualquer indivíduo.

Por conseguinte, desde que cada homem é o objeto particular de salvação e o objeto da infinita misericórdia de Deus, toda presunção que puder ser aceita em favor do homem, e da sua integridade, dignidade e bem-estar como ser humano e como filho de Deus, não só é permitida mas também necessária.


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ARGUMENTAÇÃO EM FAVOR DO NOVO CRITÉRIO

 

 

A argumentação começa pelo fato de que o homem é uma criatura em desenvolvimento. É mutável e está mudando. As circunstâncias que o cercam estão mudando também e com mais rapidez do que em qualquer outro período da História. O seu mecanismo de adaptação físico e psíquico está sendo submetido a enormes tensões e pressões.

O homem moderno vive quase sempre à beira da loucura num mundo que fugiu ao seu controle pessoal. As vítimas da sociedade contemporânea são legião. A lista das suas doenças é apavorante: esgotamento físico, doenças mentais, toxicomania, hostilidade anti-social, evasão anti-social e impotência emocional.

Para que o homem sobreviva, a sociedade tem de proporcionar — e ainda não o fez — tolerâncias suficientes para que essa criatura em transformação possa ajustar-se à mudança. A sociedade cristã — se é o que diz ser — deveria proporcionar mais tolerâncias do que qualquer outra. Está provado que não o faz. Mas pode e deve fazê-lo.

É um princípio de julgamento moral que a natureza de um ato é determinada não apenas pelo ato em si, mas pela disposição daquele que o executa. A imputabilidade no direito e na moral deve ser determinada por todas as peculiaridades pessoais do sujeito jurídico. Por outras palavras, um código legal moralmente válido deve procurar dar a qualquer homem uma justiça que se ajuste à sua constituição pessoal única. Quando deixa de fazer isso, falha no seu objetivo.

Parece uma insensatez insistir nesse ponto. Mas a verdade é que a lei ideal, do mesmo modo que o homem ideal, é uma ficção.

Todo legislador procura prover a muitas coisas ao mesmo tempo: fazer justiça, punir a delinquência, manter padrões predeterminados de comportamento social, proteger contra a dissimulação e conspiração, sustentar um regime político e atender à maioria dos eleitores.

A Igreja Católica Romana, como toda sociedade que legisla, tem sido vítima dessa diversidade de intenção. Tem, porém, menos desculpa do que outras sociedades, porque alega ter absoluto poder de legislar dentro de princípios absolutos no domínio da moral, da fé e da vida social.

Voltemos, pois, aos princípios!

O fato de que um casamento se desmoronou por completo determina uma possibilidade razoável, que pode ser determinada com razoável probabilidade, de que as partes preliminarmente careciam de capacidade para cumprir o contrato.

Nada há nisso de revolucionário. Está de acordo com toda a experiência humana.

A presunção é ainda mais forte na sociedade atual, em que os casamentos imaturos são muito comuns e em que o condicionamento dos jovens pelos meios de comunicação de massa pode deixá-los, durante muito tempo, fundamentalmente ignorantes da natureza e das obrigações do casamento cristão.

Por outro lado, a experiência quotidiana nos mostra que novas uniões — algumas delas ilegais pelo seu valor facial — produzem todos os fenômenos de um casamento cristão estável: amor, cuidado mútuo, promessa de desenvolvimento e realização plena, educação cristã dos filhos. Desde que os fenômenos não contradizem a verdade, é evidente que os cânones determinam com muita estreiteza as relações humanas.

O conhecimento é agora determinado pela simples afirmação da posse do conhecimento. O consentimento é determinado por uma forma de consentimento. A capacidade é determinada apenas como a capacidade de executar um único ato material, comum ao homem e ao animal. Nega-se a continuidade do homem como uma pessoa em desenvolvimento por não se querer relacionar a sua conduta antimarital com a sua conduta pós-marital, como, por exemplo, no caso dos problemas de desvio sexual. Do mesmo modo, o fato de um batismo cristão não basta para estabelecer o fato de que existe um casamento cristão. Tudo o que esse fato pode determinar é que duas pessoas batizadas se submeteram a uma forma de casamento cristão. Depois disso, começa a presunção.

Na preparação deste livro, falamos com centenas de pastores e dezenas de padres diretamente envolvidos em casos conjugais. Todos eles deram o seu testemunho, espontaneamente ou sob pressão, em aproximadamente os mesmos termos, dizendo:

Temos muitos casos em que sabemos, com tanta certeza quanto é dado a qualquer homem, que o casamento não tem validade. Nada podemos fazer porque temos de aplicar as normas da lei vigente e não as normas da experiência quotidiana.

Foram estas as palavras que nos disse um nobre bispo numa viagem de avião entre Londres e Nova York:

Se eu pudesse exercer na lei o mesmo critério a respeito de motivos e estados de espírito que eu exerço no confessionário, eu poderia riscar de meus livros da noite para o dia metade dos casos de casamento l Não o faço porque sou uma pessoa pública na Igreja, porque estou sujeito à vigilância e à sanção de Roma, porque tenho medo de criar um escândalo público de desobediência à lei. Mas creiam que me vejo em tão grandes dilemas de consciência como qualquer dos peticionários de meu tribunal.


Ainda não sabemos qual deveria ser o fator determinante: o perigo do escândalo ou o perigo de destruir um homem ou uma mulher?


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O MÉTODO DE DETERMINAÇÃO

 


Não sugerimos que qualquer presunção deva ser aceita sem uma determinação preliminar. Reconhecemos que isso não pode ser feito ligeiramente ou sem referência à prova e às alegações das partes em conflito.

Afirmamos, porém, que os métodos de determinação devem ser humanos e em conformidade com a dignidade humana, devem ser rápidos, tolerantes e visivelmente justos e devem afastar a Igreja para sempre das antiquadas intolerâncias do tribunal e da inquisição secreta.

Como pode ser feito isso? Propomos o seguinte:

1. Abolir por completo os tribunais diocesanos existentes e a Santa Rota Romana.

A maneira pela qual funcionam atualmente é um escândalo. Não se pode conseguir que funcionem de maneira melhor em vista da escassez de pessoal eclesiástico habilitado. Os processos antiquados impedem a justiça e criam injustiça. Os métodos inquisitoriais são estranhos e quase sempre incompreensíveis ao mundo não latino, cujos peticionários lutam com grandes desvantagens quando pleiteiam.

O mais importante de tudo é que esses tribunais não podem julgar o foro íntimo, mas as suas decisões — ou não decisões — penetram profundamente nele.

 

2. Abolir toda apelação obrigatória a Roma.

Os fatos divorciados das pessoas não são verdadeiramente suscetíveis de julgamento. Nenhum homem deve ser julgado à revelia. Nenhum juiz no mundo tem competência para julgar um caso de casamento com base em algumas folhas datilografadas e, ainda menos, uma tradução! E o direito romano, tanto civil quanto eclesiástico, é um código impraticável cheio de conceitos superados da pessoa humana.

 

3. Abolir imediatamente o “favor matrimonii”.

Isso permitiria que grande número de casos atualmente em andamento nos tribunais fossem decididos em favor de requerentes que já esperaram demais.

Nada disso é novo. Nada disso faz violência à tradição ou à doutrina cristã. Exprime uma opinião corrente atualmente em todos os níveis da Igreja. Ao contrário, afirma a autoridade pastoral e conduz a uma justiça rápida e visível iluminada pela claridade fraternal de toda a Assembleia Cristã. Fornece por fim um método pelo qual um cristão pode, em sã consciência, adaptar-se à existência num mundo pluralizado de que ele é, quer queira, quer não, um cidadão.

A única objeção que pode ser levantada — e trata-se de uma hipótese e não de um fato provado — é que tal sistema contribuiria para o relaxamento e o desrespeito do vínculo matrimonial. A nossa resposta é esta. Quem não respeita o vínculo não o respeita sob qualquer sistema. O sistema atual contribui para o relaxamento porque os requerentes de boa-fé são rejeitados e sabem que lhes é negada a justiça que procuram. Haverá sempre delinquentes e marginais da lei. Mas uma lei que cria delinquência é radicalmente má.

 

4. Dar um direito de decisão primária ao confessor nos casos óbvios.

Esse direito de decisão já é exercido por muitos confessores, mas de maneira ilegal. Constitui o que um escritor chamou de “tolerância por dissimulação”. A necessidade de dissimulação pode e deve ser eliminada.

Afirmamos que não há necessidade de discutir sobre o que vem a ser um caso óbvio. O mais cauteloso vigário de paróquia tem uma pasta cheia de tragédias que um julgamento tocado de compaixão resolveria.

 

5. Estabelecer em cada diocese um ou mais grupos pastorais com autoridade para tomar conhecimento de casos duvidosos ou controversos e propor uma decisão à ratificação do bispo.

Esses grupos devem ser constituídos de eclesiásticos e de leigos casados competentes em medicina, direito e relações domésticas.

Poderiam essas pessoas desempenhar uma dupla função de conselho e mediação para restaurar as uniões instáveis e de aplicação de normas cristãs e de bom senso para a determinação da validade ou não do vínculo.

Agindo dessa maneira, preservariam a autoridade da Igreja sobre o casamento cristão e ainda demonstrariam, visivelmente a ação da justiça e da caridade cristãs nas questões matrimoniais. Por seu intermédio, a mentalidade coletiva da Igreja poderia ser expressa. A sua experiência coletiva poderia com o tempo esclarecer muitas áreas obscuras da vida cristã e apontar o caminho para uma prática mais clara no futuro.

 

6. Proceder a uma revisão imediata da lei canônica em relação ao casamento.

A revisão deve ser imediata. A atual lei obriga homens e mulheres de boa-fé a desertarem. Sabem que têm apenas uma vida para viver e querem desesperadamente vivê-la com um mínimo de dignidade e de contentamento.

A revisão deve ser provisória e elaborada com tolerância suficiente para adaptá-la às condições locais.

A revisão deve ser feita não apenas por uma comissão de homens da Igreja mas também por um comitê técnico internacional de leigos casados.


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OS OBSTÁCULOS À REFORMA

 


Há muitos obstáculos à reforma. Nós os reconhecemos francamente e procuraremos discuti-los objetivamente. São os seguintes:

1. O número e a diversidade das pessoas afetadas.

Há no mundo mais de quinhentos milhões de católicos. Vivem em níveis diferentes de desenvolvimento social, com vários padrões de cultura e sob diversos sistemas políticos.

Todos efetuaram uma espécie de acomodação local com a lei tal como existe agora, por meio de tolerâncias locais, por indiferença ou pela rejeição tácita ou expressa.

Os italianos e os espanhóis se acomodaram à proibição do divórcio por um sistema de concubinato socialmente aceitável. A Igreja consegue conviver com o sistema e fechar os olhos à enorme injustiça feita às partes inocentes e aos filhos de uniões irregulares que nunca podem ser legitimados.

Entretanto, deve-se dizer que a lei de divórcio proposta na Itália encontrou surpreendente oposição de muitos dos leigos, não só dos que se opõem por motivos de consciência, mas também daqueles que acham o sistema atual agradável e não querem vê-lo perturbado por um sistema de divórcio que acarretará pensão alimentar, manutenção, divisão de bens e assim por diante.

Nas sociedades pluralizadas dos Estados Unidos, Inglaterra e Norte da Europa, o padrão é muito diferente, desde que o sistema do divórcio torna a concubinagem um passatempo difícil e muitas vezes dispendioso para pessoas casadas e faz a legitimação dos filhos uma justiça mínima a um novo ser humano.

Entre os pobres da América do Sul, onde as uniões temporárias são habituais e não constituem estigma, a lei é sem importância e as tolerâncias tácitas exercidas pelo clero são muito amplas.

Nos países dos ritos orientais, Grécia, Iugoslávia, Líbano, Síria e o resto, os católicos sentem-se injustamente privados pelos romanos de tolerâncias que eram correntes no Oriente desde o início e que seus irmãos das igrejas ortodoxas continuam a desfrutar.

Elaborar reformas que se ajustem a todas essas diversas situações é reconhecidamente difícil.

Uma coisa é clara demais: as reformas não podem ser efetuadas com rigorismo, mas apenas por dispositivos ditados pela tolerância cristã e pela compaixão.

 

2. A atual centralização da Igreja Católica Romana.

Devemos ter cuidado em especificar esse obstáculo.

A ordem hierárquica em que se funda a Igreja é tradicional e fundamental. É assim que a aceitamos.

O que constitui o obstáculo é a maneira pela qual essa hierarquia funciona no momento.

Eis como a organização funciona de fato:

O Papa é o chefe, investido de enorme poder. Os seus instrumentos de governo são as Sagradas Congregações e outros órgãos, que formam uma burocracia central, localizada em Roma.

Depois — não em categoria, mas em ordem administrativa! — vêm os patriarcas, arcebispos e bispos, aos quais é conferida a autoridade regional. Abaixo dos bispos estão os párocos e os padres assistentes. Ao fim de tudo, vêm os leigos que orçam em centenas de milhões!

Os leigos são o sujeito, o objeto e, neste caso, as vítimas da legislação hierárquica. Não têm voto na elaboração das leis, nem direito de apelar delas, nem participação na produção de mudanças para o futuro.

Apesar dos vastos poderes de que é investido — e também em consequência deles — o Papa está isolado e é infinitamente vulnerável. Citemos outro escrito:

O Papado é o cargo mais paradoxal do mundo; é o mais absoluto e, apesar disso, o mais limitado; o mais rico em rendimentos, mas o mais pobre em proventos pessoais. Foi fundado por um carpinteiro nazareno que não tinha onde descansar a cabeça, mas ê cercado de mais pompa e aparato do que é conveniente neste mundo faminto. Não possui fronteiras, mas está sujeito sempre à intriga nacional e à pressão partidária. O homem que o exerce alega ter uma garantia divina contra o erro, mas tem menos segurança de salvação do que o mais humilde de seus súditos. Pendem-lhe do cinto as chaves do reino, mas ele pode ver-se excluído para sempre da Paz da Eleição e da Comunhão dos Santos. Se ele diz que não sente a tentação da autocracia e da ambição está mentindo. Se não marcha às vezes em terror e não reza com frequência nas trevas, é um insensato.


Não é de esperar, portanto, que o homem que é o Papa reinante possa sempre tomar a iniciativa das reformas necessárias. Se as iniciar, a execução poderá encalhar na burocracia.

As reformas não poderão também partir da burocracia. Uma burocracia é, por sua própria natureza, conservadora e administrativa, preocupada com os métodos da legislação existente.

Um bispo pode fazer muito mais, desde que tenha esclarecimento, compaixão e grande coragem. A autoridade do bispo deriva diretamente dos Apóstolos. É paralela à autoridade do Papa. Um bispo tem com o Papa a mesma relação que S. Paulo tinha com S. Pedro.

Um pároco pode fazer muito, desde que tenha tenacidade e compaixão. Mas não pode legislar e é vulnerável à censura, à vigilância « às sanções canônicas.

Os leigos? Não sabem o que podem fazer. Ainda não foram ouvidos. O seu silêncio é um enorme obstáculo porque a opinião plena de toda a Igreja permanece sem expressão.

Só há uma maneira pela qual o obstáculo pode ser removido. O laicato deve organizar-se para apresentar as suas reivindicações e suas legítimas exigências aos seus bispos. Deve organizar-se ampla e fortemente, unindo as suas várias organizações através do mundo, de modo que as suas petições não possam ser enterradas nos arquivos da burocracia ou roubadas da sua energia pelas correções diplomáticas.

A hierarquia é uma função da Assembleia e existe para servir à Assembleia. Toda a Assembleia deve falar e a sua voz deve ser ouvida na Sé de Pedro.


3. A psicose do homem solteiro dentro da Igreja.

A expressão não é dos autores deste livro. Foi proferida pelo Patriarca Máximos IV, no Concilio Vaticano II.

Nós a aproveitamos para designar um grande obstáculo à reforma das leis matrimoniais: a saber, as leis são e continuarão a ser elaboradas por eclesiásticos celibatários, que podem conhecer a teoria, mas certamente não conhecem a prática do casamento.

A Igreja muito judiciosamente nomeia banqueiros para tratar dos seus assuntos de dinheiro. Por que nunca nomeou para o corpo judiciário da Rota homens e mulheres casados? Terá receio de seus filhos?

Ou a psicose do homem solteiro leva inevitavelmente ao bizantinismo com todas as suas conotações malsãs de segredo, eunuquismo, inflação da autoridade central e um desprezo maniqueísta da unidade do homem?

 

4. Falta de disposição a delegar autoridade dentro da Igreja.

A autoridade da Assembleia Católica Romana é investida no Pontífice reinante como Vigário de Cristo e Sucessor de Pedro.

Quem é investido de autoridade pode delegá-la no todo ou em parte.

A delegação do Pontífice às Sagradas Congregações é grande. Assim tem de ser. Mas a delegação das Congregações, nas quais tanto poder está implicado, é na melhor das hipóteses um ato relutante, eriçado de reservas e encaminhamentos.

A tendência de toda burocracia é centralizar, perpetuar suas funções e ampliá-las. A burocracia clerical se empenha tanto nisso quanto qualquer outra. Fala-se muito da luta entre conservadores e liberais dentro da Igreja. Seria mais exato defini-la como uma luta entre os centralizadores que querem ver cada vez maior poder investido em Roma e os bispos que querem maior emprego da autoridade episcopal nas áreas locais.

Os descentralizadores estão em desvantagem. Como os leigos, estão muito longe da sede do poder. Podem ser facilmente prejudicados pelos rumores, pelos comentários críticos e, às vezes, por notícias caluniosas em Roma. Mas têm poder e podem usá-lo com maior eficiência se tiverem compaixão e coragem — e estiverem preparados para travar de vez em quando renhidas batalhas com os burocratas.

Os que se têm saído melhor até agora das batalhas são aqueles que merecem o respeito, a afeição e a lealdade fraternal do seu povo, porque este encontrou neles intérpretes dignos de confiança de suas necessidades!

Neste ponto, há também fatores históricos em ação. A Igreja tem travado uma batalha longa e desvantajosa para manter o poder legislativo na sociedade civil — diante do que prova a História, é bom que tenha perdido a batalha. Onde ainda exerce influência por meio de concordata, a sua atuação política tende a ser suspeita. Está no mundo e é do mundo — em demasia para a tranquilidade de uma consciência cristã.

Temos ainda de apagar a lembrança das inquisições, das perseguições às minorias, dos Santos Impérios e dos chamados estados cristãos! Mas até os cristãos interpretam mal as lições da História!

 

5. Conceitos estáticos do homem e do casamento.

A especulação nunca foi mais animada na Igreja do que atualmente. A voz dos eclesiásticos nunca se fez ouvir com mais liberdade. A Inquisição desapareceu... quase. O Index não existe. Como então podemos formular a acusação de que os conceitos estáticos são um obstáculo à reforma?

Porque na Igreja há ainda um grande abismo escancarado entre o teólogo e o legislador. A opinião não é lei, como os veteranos do Vaticano sabem muito bem. A lei é que vale no fim porque a lei é o instrumento final do poder. E a lei é ainda o que era antes do Vaticano II, baseada nas mesmas presunções a respeito da pessoa humana e da relação matrimonial.

A doutrina oficial é estática também, como o vimos na questão anticoncepcional, e o teólogo liberal e o bispo de descortino cercam os seus pronunciamentos de cuidadosas atenuações de modo que se não lhes ponham em dúvida a ortodoxia e a obediência.

A liberdade de palavra não é ainda incentivada na Igreja. A crítica de pessoas ou de práticas é perenemente mal recebida. E, embora o Santo Ofício tenha outro nome agora, ainda é preciso ter muita bravura para dar opinião publicamente sobre a Doutrina da Fé.

Pode-se fazer isso em escritos polêmicos. Pode-se levantar a questão que se quiser numa comissão teológica — o que já é um grande avanço! Mas, no púlpito, não, ainda não! Nós, rebanhos famintos, erguemos a cabeça e não somos alimentados.

Apesar de todos esses obstáculos, ainda cremos que as reformas podem ser executadas, em plena conformidade com a sã doutrina, a prática venerável e as exigências da justiça e da caridade.

Assim cremos porque cremos que o Espírito de Deus está em ação na Assembleia, cujo descontentamento é um sintoma do dinamismo divino para a renovação. Os membros da Assembleia protestam porque se interessam. Estão inquietos porque têm fome e sede de justiça.

Quando ficam calados e indiferentes, estão perdidos para a Assembleia!

 

6. O conceito romano da lei e da legalidade.

É esse, em nossa opinião, o maior obstáculo.

Quem se embriagar num bar de Londres e bater num polícia será acusado de contravenção. Quem se embriagar num bar de Roma e bater num polícia será acusado de grave ofensa à majestade do Estado e passará de dois a três anos na cadeia. O conceito básico é diferente. Um polícia em Londres é um servidor do povo. Na Itália, um polícia é o representante do Estado, essa entidade misteriosa que existe à parte do povo.

Quem fumar maconha em Londres pode ser preso, indiciado, solto sob fiança e por fim julgado ou condenado a uma suspensão de sentença. Quem fizer a mesma coisa na Itália será preso sem direito a fiança e ficará na prisão até que o juiz o pronuncie para julgamento posterior ou o ponha em liberdade por falta de provas. Se a pessoa for solta, não poderá intentar ação por falsa prisão e ainda terá de pagar ao Estado as despesas com a sua subsistência durante a prisão injusta. Não há habeas corpus. O Estado é supremo. A pessoa é um súdito.

A lei da Igreja Católica Romana é a lei romana, pura e sem qualquer diluição de conceitos anglo-saxônicos ou de qualquer outra natureza. A lei é concebida, elaborada e promulgada em termos de referência romanos — mas as tolerâncias romanas não são escritas, nem reconhecidas, sendo, portanto, de difícil acesso.

Digamos isso de outra maneira. Na lei anglo-saxônica, as tolerâncias são inscritas na própria lei. Na lei romana, são aplicadas de maneira não legal até que se chegue a enfrentar a lei. Quando se chega à lei, não há mais remédio. O confronto entre a pessoa e o Estado — ou a Igreja! — dentro de um sistema latino é sempre desvantajoso para a pessoa porque o Estado é por conceituação auto-existente, autojustificante e obrigado à autojustificação.

É por isso que o sistema centralizado de direito e administração na Igreja divide e continuará a dividir a Assembleia. É por isso que precisamos de autonomia episcopal para aplicar um princípio universal — a Fé — por meio de normas legais locais.

Enquanto isso não acontecer, a Igreja continuará a ser dividida e o será ainda mais no futuro.

O princípio da conduta cristã não está em jogo. É a prática romana que obscurece o princípio. O homem deve ser julgado como ele é, no lugar onde está, por normas que compreenda. A Lei Romana como um código universal é letra morta e está matando a fé de milhões de pessoas.

Parece exagero? Afirmamos que não é.

Há poucas estatísticas fidedignas, mas, seja qual for a maneira pela qual se apurem os dados disponíveis ou calculados, o total chega a muitos milhões. E o problema é por sua própria natureza permanente e crescente. O descrédito para a Igreja continua e aumentará se as reformas não começarem desde já. As defecções de pessoas decentes e a perda de suas famílias para a Assembleia Cristã continuarão também, a não ser que se lhes apresente uma carinhosa solução cristã para os seus dilemas.


20

 

QUEM É RESPONSÁVEL?

 


As lamentações oficiais sobre o colapso da vida da família e a corrupção da moral não são absolutamente uma solução. A vida de família sempre foi instável — quando nada em consequência de repetidas guerras e das grandes ondas subterrâneas do desenvolvimento humano. Tivemos duas guerras mundiais em nossa geração. Assistimos à coletivização forçada de centenas de milhões de pessoas. A urbanização em massa das civilizações industriais tem exercido uma grande pressão perturbadora sobre as células sociais.

Mas a legislação vigente da Igreja não leva em conta os cataclismos e se esforça perigosamente por justificar a sua paralisação num mundo dinâmico.

Os legisladores primitivos eram mais bem avisados. Ainda no século VII havia leis que permitiam o novo casamento de uma pessoa cujo cônjuge tivesse sido capturado por piratas ou vendido como escravo.

Não se alegue também que as reformas devem ser lentas porque a revisão de um código exige muito tempo. Isso é um contra-senso especioso.

O Pontífice Romano tem o poder de estabelecer por um simples fiat uma vasta delegação de autoridade aos bispos locais e uma norma humana de julgamento que superaria todos os cânones existentes. O povo sabe que ele tem esse poder. Por isso, considera-o responsável pelas injustiças cometidas sob a sua autoridade. E, com isso, a sua autoridade é gravemente prejudicada desde que é nele investida para o serviço dos Servos de Deus, estejam onde estiverem.

Entretanto, os fiéis têm mais compaixão do seu Pontífice do que ele parece ter por eles. Têm pena dos fardos que lhe pesam nas costas, reconhecem a idade e as enfermidades que o afligem, eximem-no de culpa pessoal e presumem as mais elevadas intenções mesmo nos seus atos mais vacilantes. Mas não têm uma resistência e uma paciência infinitas e esperam — mas não esperarão todos, nem sempre — que o Construtor de Pontes lance o primeiro arco através do rio que separa muitos crentes de seus irmãos da Assembleia.

Os administradores da Igreja são responsáveis também, não porque exercem vastos poderes delegados, mas porque têm a missão de informar e assessorar o Pontífice. Alguns assim fazem. Outros, não. Alguns parecem cortesãos que se sentem no dever de louvar até as palavras mais insignificantes do Príncipe como se fosse uma revelação do Tabor. Paulo resistiu a Pedro, o Vigário de Cristo, quando ele tentou impor a circuncisão aos cristãos gentios. Do mesmo modo, todos os membros da hierarquia e da administração central têm o dever de apresentar franca e vigorosamente as necessidades da Assembleia ao Servo dos Servos de Deus.

Os bispos são responsáveis também porque são os chefes das igrejas locais, porque são os sucessores dos Apóstolos, têm a autonomia apostólica e estão em situação de coleguismo com Pedro. Se não levantarem a voz em favor de seus rebanhos — e muitos deles assim não fazem, enquanto muitos mais não são ouvidos quando o fazem — participam do escândalo manifesto de que estamos tratando.

Os padres são responsáveis também quando não têm a coragem de argumentar e contestar a bem das almas confiadas aos seus cuidados.

E os leigos, as centenas de milhões da Assembleia? São também responsáveis se ficam sentados em conforto e silêncio enquanto seus irmãos infelizes sofrem sob o peso da lei intolerável. Têm um nobre precedente para pleitear — precedente esse que tem sido por muito tempo obscurecido e esquecido — a prática da Igreja nos primeiros tempos. Iremos expô-lo nos capítulos seguintes.


LIVRO 3

 

AS TOLERANGIAS DA IGREJA PRIMITIVA

 

 

Expressas nos escritos dos primitivos Padres da Igreja, na legislação dos Sínodos e nos pronunciamentos dos Papas.


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QUE É TOLERÂNCIA?

 


A tolerância é uma palavra camaleônica. Pode assumir toda uma gama de colorações. Pode sugerir relaxamento, displicência, ceticismo, indiferença, senso de humor, um pouco de desprezo, uma variação aceitável de normas. O sentido em que aqui usamos a palavra é o mais primitivo: a capacidade de suportar a carga da fragilidade humana, de acomodar-se à mesma, de aceitá-la sem rancor e com uma intenção corretiva.

A tolerância nesse sentido é um aspecto da caridade cristã. É uma afirmação da natureza familial da Assembleia, de todo o lar humano. “Amai-vos uns aos outros, meus filhos!... carregai os fardos uns dos outros!”

A tolerância significa não apenas uma atitude passiva de suportar, mas uma atividade, um provimento dos meios pelos quais os encargos da existência possam ser atenuados. O Bom Samaritano é o protótipo do homem ativamente empenhado em carregar os fardos alheios.

Desse modo, quando falamos das tolerâncias da Igreja primitiva, não estamos falando de práticas relaxadas, de compromissos duvidosos, mas de providências ativas tomadas pela Assembleia em outros tempos para ajudar os seus membros a sobreviver às tragédias da vida e ficar ainda dirigidos por Cristo e centralizados em Cristo.

As tolerâncias da Igreja primitiva reconhecem ao mesmo tempo a perfeição do ideal cristão e as imperfeições daqueles que lutam por alcançá-lo. Exigem arrependimento e reforma, mas proporcionam os meios para ambas as coisas. Reconhecem a “Graça Divina” pelo que ela realmente é — não alguma coisa vaga discutida por teólogos e casuístas, mas um dom dos meios de salvação dentro, através e por meio da Assembleia Cristã, que Cristo instituiu para perpetuar a Sua missão salvadora. Quando essas tolerâncias são eliminadas ou negadas, uma parte do Dom da Salvação é negada também. E no mundo confuso e perturbador de hoje, quando o impacto de todos os acontecimentos é imediatamente sentido em todos os organismos humanos, mal podemos suportar a privação.

As pessoas têm mais consciência do seu eu do que jamais tiveram. Sabem mais sobre as suas funções orgânicas e mais sobre as complexidades de seu psiquismo do que seus antepassados. Graças a isso, têm mais consciência do mistério do seu eu. Mas quanto mais têm consciência do mistério, menos preparadas estão para aceitar soluções draconianas para os dilemas humanos ou respostas insuficientes às perguntas que a toda hora as afligem.

Uma encíclica papal, escrita no estilo formal e estéril dos tribunais, não causa impressão na alma pungentemente envolvida. Um sermão de meia hora aos domingos, didático ou moralista, deixa a alma ainda solitária. Dez minutos no confessionário para uma recitação ritual das faltas, conselhos rituais, uma absolvição ritual — tudo isso é pequeno consolo para os horrores de nosso tempo — tirania e genocídio, fome e as conspirações da violência.

Somos nós mesmos. Geramos outros seres. Como sobrevivemos, sãos e humanos, numa loucura de animais?

Estamos ficando cada vez mais isolados neste século de aglomerações. Há muito tempo fomos desligados da tribo. Agora, nas grandes cidades, estamos sendo desligados da família, o que constitui uma situação horrível e antinatural. Vivemos separados em caixões chamados apartamentos. Abrimos orifícios nas portas para espiar intrusos hostis e negar-lhes entrada. A economia capitalista nos força à competição. A economia socializada nos torna rivais numa burocracia. O eu é forçado a tornar-se uma função no coletivo. O coletivo teme o eu. O eu, no seu medo ou ódio do coletivo, ou se retrai numa escuridão fetal ou explode externamente numa crise revolucionária.

Seja como for, os riscos são enormes. A fuga para dentro do eu não tem ponto de chegada salvo o canto escuro de um quarto escuro, onde a alma se encolhe, cega, surda e muda, paralisada pelo medo de horrores anônimos. O eu em revolta se fragmenta em cólera, cobiça e violência até que nem todas as forças do rei — ou todos os médicos do mundo — poderão uni-lo de novo.

Os riscos para o eu são de dia para dia maiores enquanto novas energias são libertadas pela descoberta científica, pelas comunicações de massa e pelas transformações geopolíticas. A reação contra os riscos se torna mais forte também. A violência cria conspiração. A conspiração gera medo e fragmentação. E o eu em perigo, por falta de outra fraternidade, lança-se ao conflito. É o terror de nossos tempos. Tentamos sobreviver pela destruição.

Por isso, quando tentamos revelar mais uma vez as tolerâncias da Igreja primitiva, é para estudar a sua significação em face de nossas circunstâncias e para revitalizar a caridade e a compaixão em que se baseavam. Conhecemos a magistratura da Igreja. Ouvimo-la ser debatida — Deus nos ajude! — com muita frequência e muito vigor em nossos tempos. Mas ainda estamos à espera de ver a plena atuação do seu ministério — seu serviço de amor à família humana.


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DA HISTÓRIA E DOS HISTORIADORES

 

 

O homem é um criador natural de mitos. Dêem-lhe um fato desagradável e ele procurará eliminá-lo da existência por um golpe de magia. Se a magia falha, ele tentará proteger-se do desagradável, transformando o fato num mito, como a ostra faz uma pérola de alguma aspereza. É claro que a pérola é real, mas o mito é uma ilusão.

Um bom historiador trata de fatos verificados — agradáveis ou desagradáveis. Deve ser objetivo e imparcial. Deve fazer uso de todas as provas ao seu alcance. Não deve inventar provas, nem suprimi-las. Pode apresentar uma interpretação, mas deve baseá-la em sólida base de estudos. Não lhe são defesas as conjeturas. Mas não pode apresentar uma conjetura como uma proposição provada. Se falhar em qualquer dessas funções, será relegado às fileiras dos criadores de mitos, dos propagandistas, dos panfletários políticos ou dos incompetentes pura e simplesmente.

Por essa razão, pretendemos ter muita cautela no que escrevemos daqui por diante. Lemos livros de História, mas não alegamos ter erudição histórica. Reconhecemos nossa dívida para com outros estudiosos quanto a fontes e referências. Quando fizermos comentários, apresentá-los-emos como opiniões particulares. Não procuraremos dotá-los de uma autoridade fictícia.

Dito isso, façamos algumas distinções simples. A História registra o que aconteceu e o que os contemporâneos disseram sobre os acontecimentos. O que disseram contém exposição, descrição, comentário, crítica, exortação — a expressão de uma variedade de atitudes subjetivas em relação a um fato histórico.

O que foi feito e o que foi dito — às vezes o que não foi dito também — estabelecem o “clima do perigo”, uma indicação da maneira pela qual grupos de homens agiram e pensaram no tempo em questão. “Clima” é, sem dúvida, a soma de um número de variantes e contrários, sol e tempestade, alta e baixa pressão, nuvens e céu claro, mas exprime um padrão predominante que é uma espécie de constante.

Mas é preciso ter em mente que as variantes produzem a constante e que os contrários coexistem.

Quando um teólogo primitivo debatia a prática do divórcio era porque o divórcio era praticado no seu tempo. Quando bispos, sínodos ou papas legislavam pró ou contra certas licenças era em vista de situações existentes.

A sabedoria das suas opiniões, a retidão moral de suas decisões, o fato de tais decisões serem aplicáveis ou não aos nossos tempos — tudo isso está fora de questão presentemente.

Estamos interessados aqui nos fatos da tradição cristã. Os fatos são os seguintes: na solução dos problemas matrimoniais, havia muito maior tolerância na Igreja primitiva do que existe hoje em dia. O divórcio era permitido pela Igreja por várias razões. O novo casamento das pessoas divorciadas era permitido. O divórcio e o novo casamento eram objeto de legislação canônica tanto no Oriente quanto no Ocidente.

Apresentamos como prova o testemunho dos Padres da Igreja, dos sínodos e dos primeiros Papas.


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O TESTEMUNHO DOS PADRES DA IGREJA

 


De acordo com Vincent de Lerins (século V), os Padres da Igreja são

Os escritores da antiguidade cristã que, a seu tempo e no seu lugar, foram mestres reputados de uma fé em união com a Assembleia.


A Enciclopédia Britânica amplia um pouco a definição:

Os Padres da Igreja são os grandes bispos e outros eminentes mestres cristãos dos primeiros séculos que se distinguiam pela firmeza do julgamento e pela santidade da vida e cujos escritos ficaram como um tribunal de apelação para os seus sucessores, especialmente em referência a pontos controversos de fé ou de prática.


Os padres da Igreja são, portanto, testemunhas respeitáveis, para dizer o mínimo. Discordavam em muitos pontos, como os cristãos discordam hoje, mas o seu mérito como mestres não era prejudicado por isso nem a sua comunhão com a Assembleia foi desfeita. É claro que se viam muitas vezes num dilema, como nós. é também claro que eles se achavam na obrigação de afirmar a prática do bom senso cristão à solução de vidas humanas emaranhadas.

Tertuliano († 247) foi um dos maiores escritores cristãos do seu tempo. Foi ele quem escreveu a frase: “O sangue dos mártires é a semente da Igreja.” No fim da vida, ingressou na seita rigorista dos Montanistas que proibiam, entre outras coisas, o segundo casamento. Tertuliano faz três afirmações, das quais a terceira está em contradição com as duas primeiras.

No seu Tratado Contra Márcio, diz categoricamente:

O próprio Cristo defendeu a justiça do divórcio.

(Habet itaque et Christum assertorem iustitia divortii)


Na sua Carta à Esposa, escreveu:

Agora, com referência à fragilidade humana, vou falar de outra espécie de conduta. Somos obrigados a isso pelo exemplo de certas mulheres que, tendo tido a oportunidade de praticar a continência em virtude do divórcio ou da morte do marido, não só rejeitaram a oportunidade dessa vida perfeita, mas, tornando a casar, nem sequer respeitaram a regra de que deviam casar no Senhor.


Mais tarde, quando ingressou na seita Montanista, prescreveu com mais rigor:

Não temos permissão nem de casar, embora tenhamos afastado nossas mulheres.


Orígenes de Alexandria (183-254) estava ainda mais perto dos tempos apostólicos e proporciona uma enciclopédia de informações sobre o espírito da Igreja primitiva. Escreveu em grego. Estudou e ensinou em Alexandria, Roma, Arábia e Palestina. Foi preso e torturado na perseguição de Décio, mas sobreviveu para morrer em liberdade. A sua reputação de castidade e vida severa deu origem a uma lenda segundo a qual ele se havia castrado.

No seu Testemunho a Quirino, afirma a prática do divórcio, discorda dela mas oferece uma explicação atenuante:

Ainda agora, agindo neste caso fora das Santas Escrituras, alguns superiores da Igreja têm permitido que uma mulher se case enquanto seu marido ainda está vivo... Entretanto, não fizeram isso sem razão porque, ao que parece, tiveram condescendência além do prescrito e transmitido a fim de impedir consequências piores.


Lactantius Firmiancus (c. 250-330) foi um professor de retórica, nascido na África. Converteu-se ao cristianismo e na velhice foi professor de Crispus, filho do Imperador Constantino I. No seu livro Divinarum Institutionum, escreveu o seguinte:

Mas, como a mulher é constrangida pela obrigação da castidade a não desejar outro homem, o homem é sujeito também à mesma lei, porque Deus juntou marido e mulher no vínculo de um só corpo. Ordenou, portanto, que uma mulher não fosse rejeitada exceto quando provadamente culpada de adultério e que o vínculo do contrato conjugal nunca fosse dissolvido exceto o que a perfídia quebrou.


S. Basílio da Capadócia (330-379) é universalmente reconhecido com um dos grandes mestres da Igreja. Escreveu entre 344 e 375 uma série de cartas a Anfilóquio, bispo de Iconium. Essas cartas foram depois divididas em oitenta e cinco “cânones”. Muitas delas tratam da disciplina do casamento na Igreja. Há provas claras de uma disciplina respeitada, muito diferente da que existe hoje.

Dão ainda mais claro testemunho do caráter de Basílio, humano, tolerante, respeitador dos costumes decentes, apaixonadamente ortodoxo, mas nunca fanático.

Na leitura dos extratos seguintes dos cânones, é importante lembrar as distinções que se faziam naquele tempo no direito romano e no direito eclesiástico.

Adultério era a ofensa cometida com uma mulher casada por um homem, casado ou não.

Um homem casado que se deitava com uma mulher solteira cometia apenas fornicação.

Um marido podia divorciar-se da mulher por adultério. Uma mulher não tinha recurso, ainda que contra um marido adúltero.

 

Cânone 9. A declaração do Senhor de que não é permitida a separação num casamento exceto em vista de fornicação, aplica-se por igual a homens e mulheres, quando se consideram as consequências lógicas da idéia. Entretanto, o costume é diferente e nós encontramos mais exigências impostas às mulheres.

Cânone 9 (cont.) ... Mas o costume ordena também que o homem adúltero e os que estão na categoria de fornicadores não abandonem suas mulheres. Isso porque, se um desses homens for abandonado pela esposa, não digo que se possa tratar como .adúltera a mulher que depois se casar com ele.

Cânone 9 (cont.) ... Quanto ao marido que foi abandonado, pode ser desculpado (se torna a se casar) e a mulher que vive com ele em tais condições não é condenada. Não obstante, se o próprio homem abandonou sua esposa (inocente) e se ele se uniu a outra, neste caso é um adúltero, porque fez sua mulher legítima cometer adultério. E aquela que coabita com ele é também adúltera porque atraiu o marido de outra mulher.


Os cânones seguintes podem ser um choque para muitos católicos de hoje em dia. O primeiro indica uma atitude bem tolerante para com as uniões extraconjugais e o segundo indica que os novos casamentos ilegais recebiam um perdão em virtude do tempo decorrido e da penitência apropriada.

Cânone 26. A fornicação não é casamento; não é sequer início de casamento. É por isso que, se for possível induzir a separarem-se aqueles que já se uniram pela fornicação, isso é o melhor que se tem a fazer. Mas, se eles desejam absolutamente viver juntos, a penitência reservada para a fornicação lhes será imposta, mas sem separá-los, para que não haja um resultado pior.

 

Cânone 77. Quem abandona uma mulher à qual está legalmente unido para tomar outra está certamente sujeito à condenação como adúltero em virtude da sentença do Senhor; mas foi decidido pelos nossos Padres que os culpados devem fazer penitência em lágrimas durante um ano, que devem ser ouvintes dois anos e prostrados, três anos; no sétimo ano, estarão de pé junto aos fiéis e serão julgados dignos do ofertório se tiverem feito a penitência com lágrimas.


Santo Astério (morto c. 400) foi bispo de Amasia, na Ásia Menor. Foi um notável pregador na sua época e ainda existem vinte e um de seus sermões. Pregou claramente que só a morte e o adultério poderiam dissolver um casamento, dizendo:

Isso deve ser considerado como estabelecido e deve ser de sua inteira convicção que o casamento não pode ser dissolvido por qualquer causa, exceto a morte ou o adultério.


Santo Epifânio de Salamina (310-403) era natural da Palestina. Foi abade de Eleuterópolis, onde pregou e escreveu contra a heresia ariana e foi aclamado o “oráculo da Palestina”. Foi feito arcebispo de Salamina, em Chipre, no ano 367. A sua obra mais completa é o Panarion (remédio contra heresias). Declara ele nessa obra:

Quem não pode guardar continência depois da morte de sua primeira mulher ou quem se separou de sua mulher por uma razão válida como fornicação, adultério ou outro ato imoral, se ele toma outra mulher ou a mulher toma outro marido, a Palavra Divina não o condena nem o exclui da Igreja ou da vida, mas tolera o fato em vista da fraqueza dele. Não que esse homem possa ter consigo duas mulheres estando a primeira a gravitar ainda em torno dele; mas, se ele está realmente separado de sua primeira mulher, pode tomar outra de acordo com a lei, se tal for o seu desejo.


S. Cromácio de Aquiléia foi correspondente de São Jeronimo, Santo Ambrósio e outros contemporâneos ilustres. Sobrevivem dezessete de seus tratados, todos eles sobre o Evangelho de S. Mateus.

Salvo em consequência de adultério, não é permitido abandonar uma mulher; por isso, é claro que age contra a vontade de Deus quem imprudentemente presume separar por um divórcio ilícito um casamento unido por Deus...

Entretanto, do mesmo modo que não é legal abandonar uma esposa que leva uma vida casta e pura, é permitido abandonar uma mulher adúltera, porque ela se torna indigna da companhia do marido, ela que por pecar com o próprio corpo se atreveu a violar o templo de Deus.


S. Cirilo de Alexandria (376-444) foi Patriarca de Alexandria e presidiu o Concilio de Éfeso em 431. Leão XIII declarou-o Doutor da Igreja,

Cirilo declara categoricamente que o adultério dissolve o vínculo matrimonial, e acrescenta uma cláusula: “Acredito firmemente que Deus adaptou suas leis à medida da natureza humana”.

Por outro lado, reprovando o segundo casamento depois do divórcio, diz o seguinte:

Abandonando a mulher, ele lhe dá uma oportunidade de tornar a casar-se, o que é uma espécie de adultério, semelhante a um vínculo que ainda não está dissolvido.


Santo Agostinho, de Hipona (354-430), é o mais forte e mais arbitrário dos primitivos Padres da Igreja na defesa da absoluta indissolubilidade do casamento. É seu pensamento que, mais do que qualquer outro, dá corpo à atual doutrina oficial da Igreja. Entretanto, o próprio Santo Agostinho adverte da prática contrária que subsistia em seu tempo:

Todavia, como pode o marido ter permissão de casar-se com outra mulher depois de haver repudiado uma esposa adúltera, ao passo que a esposa não tem (permissão) de casar-se com outro homem depois de ter deixado um marido adúltero, não posso compreender...


S. Teodoro de Cantuária (602-690) nasceu em Tarso. É comumente considerado o segundo fundador de Cantuária (Canterbury) e o primeiro primaz da Igreja inglesa. Foi ele quem convocou o primeiro Concilio Nacional da Igreja Inglesa em Hereford, em 673. Os escritos sobreviventes dele estão contidos num documento chamado de Penitencial de Teodoro, o qual consiste nas suas decisões em assuntos disciplinares. Eis algumas de suas decisões:

XIII, 5. Se um escravo ou uma escrava foram unidos em matrimônio pelo senhor de ambos e, mais tarde, um deles, o escravo ou a escrava, se torna livre e o que permanece na escravidão não pode ter a sua liberdade comprada, o cônjuge livre tem permissão de se casar com uma pessoa livre.

31. O homem cuja mulher foi capturada pelo inimigo e não pode ser por ele recuperada tem permissão de tomar outra mulher; é melhor fazer isso do que cometer fornicação. E, se ela volta posteriormente, ele não é obrigado a recebê-la de volta se tem outra. Ela por sua vez pode tomar outro marido se antes disso só teve um.

61. Se a mulher foi tomada à força em cativeiro, o marido pode tomar outra mulher ao fim de um ano.

140. O leigo, cuja mulher o deixou, pode, com o consentimento do bispo, tomar outra mulher ao fim de dois anos.

24. Se essa mulher volta depois para ele, o homem não é obrigado a recebê-la se ela teve outro homem, mas ela pode tomar outro marido se só teve um antes. A mesma regra se aplica aos escravos de Ultramar.

20. Se uma mulher foi raptada à força para o cativeiro e não puder ser resgatada, o homem pode tomar outra ao fim de um ano.

21. Do mesmo modo, se ela foi tomada em cativeiro, o marido esperará cinco anos e do mesmo modo procederá a esposa se isso acontecer ao marido.

22. Se, portanto, o marido tomar outra mulher, deverá receber a primeira esposa se ela voltar do cativeiro e abandonar a segunda; de modo igual ao que foi dito acima procederá a mulher, se o mesmo acontecer ao marido.

19. Se uma mulher deixar o marido por desrespeito a ele e se negar a voltar e a reconciliar-se com o marido, será permitido a este, com o consentimento do bispo, tomar outra mulher ao fim de cinco anos.

143. Se a mulher de alguém cometeu fornicação, é permitido rejeitá-la e tomar outra.

II, 5. N° 5. Se a mulher de alguém comete fornicação, é permitido rejeitá-la e tomar outra; isto é, se o marido rejeita a mulher em vista de fornicação e ela foi sua primeira mulher, ele tem permissão de tomar outra esposa; ao passo que ela, se concordar em fazer penitência pelos seus pecados, poderá tomar outro marido ao fim de cinco anos.


Poderíamos apresentar muitas outras citações dos primeiros Padres da Igreja, mas parte do material disponível nos envolveria numa exegese histórica e num debate sobre interpretações em conflito que não nos julgamos capazes de empreender.

Afirmamos, porém, que o testemunho é claro. O divórcio e o novo casamento eram permitidos e serviam de objeto à legislação nos tempos patrísticos.

Sentimo-nos também justificados em apresentar um comentário pessoal.

Seja qual for o conflito de opinião, é claro que homens sábios e santos aplicaram aos seus julgamentos sobre o casamento dois princípios fundamentais da teologia cristã: o princípio da economia — que exige que o homem imperfeito coopere com o máximo da sua capacidade para realizar o ideal que lhe é proposto em Cristo; o princípio da equidade — que determina que lei alguma deve ser aplicada de maneira desproporcionada com o fim a que a lei visa — neste caso, a salvação da pessoa humana.


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O TESTEMUNHO DOS SINODOS

 


Os sínodos da Igreja proporcionam um testemunho importante, porque aprovaram leis e deram desse modo forma canônica a práticas locais ou regionais. O testemunho dos Sínodos é especialmente interessante porque mostra que leis completamente contrárias foram aprovadas sobre o mesmo assunto em épocas e lugares diferentes, mas por bispos em comunhão com a mesma Igreja Apostólica.

O Concilio de Aries (314) baixou vinte e dois artigos de lei. Eis um deles:

Cânone 10. Os que apreendem suas esposas em adultério e não estão proibidos de casarem-se, decide-se (placuit) que, tanto quanto possível, seja dado conselho de não tomarem outras esposas apesar do fato de que as esposas vivas sejam adúlteras.


Uma edição do século XVII dos atos desse concilio apresenta a seguinte citação de Santo Agostinho sobre essa decisão:

Os Padres desse famosíssimo concilio não cominam qualquer punição, mas dão apenas um conselho. Assim os Padres dizem que o assunto não é proibido.


O Concilio de Vannes (461 ou 465) determinou o seguinte:

Cânone 2. A respeito também dos que abandonaram suas esposas, como é dito no Evangelho “exceto por fornicação”, e sem provar o adultério se casaram com outras, decretamos que sejam igualmente banidos da comunhão para que os pecados postos de lado pela nossa indulgência não atraiam outros para a licenciosidade do erro.


O Concilio de Agde (506) foi realizado sob a presidência de S. Cesário de Aries. Entre outras coisas, tratou da dissolução do casamento da seguinte maneira:

Entretanto, os leigos que dissolvem a vida conjugal ou já a dissolveram, cometendo um grave pecado, e não apresentam quaisquer razões prováveis para a separação, dissolvendo por essa razão seus casamentos a fim de tentar casamentos ilegais ou proibidos — se eles, antes de terem submetido o motivo para a separação aos bispos provinciais e antes que as mulheres tenham sido julgadas culpadas pelo tribunal, as repeliram, esses maridos devem ser excluídos da comunhão eclesiástica e da santa assembleia do povo porque poluem a fé e o casamento.


O sínodo de Hereford (673) atesta a prática habitual na Inglaterra, dizendo:

Todos os padres devem publicamente admoestar as pessoas para que se abstenham de casamentos ilegais porque um casamento legal não pode absolutamente ser separado de acordo com o mandamento do Senhor, exceto por motivo de fornicação e exceto por mútuo consentimento e isto em vista do serviço de Deus.


O Concilio de Soissons (744) restringiu os motivos de divórcio e de novo casamento ao adultério por parte da mulher, dizendo:

Cânone 9. Decretamos igualmente que nenhum leigo tome como esposa uma mulher consagrada a Deus nem parenta dele, nem deverá em vida de um marido outro homem tomar-lhe a mulher, nem deverá a mulher cm vida de seu marido tomar outro homem, porque o marido não deve rejeitar sua mulher exceto por havê-la surpreendido em fornicação.


O Concilio de Verberie (752) fez decretos mais radicais e legislou em matéria de causas de divórcio e de novo casamento além do adultério:

Cânone 2. Se alguém estiver com sua enteada, não poderá ter nem a mãe, nem a filha dela, nem poderá ele ou ela a qualquer tempo casar-se com outra pessoa. Mas a mulher, se o desejar e se não puder guardar continência, depois de descobrir que sua filha esteve em adultério com seu marido, não terá contato carnal com ele e, se não desejar abster-se voluntariamente, poderá casar-se com outro.

Cânone 5. Se uma mulher procura em cumplicidade com outros causar a morte de seu marido e este mata o homem para defender-se e pode provar isso, esse marido, como nos parece, pode rejeitar a esposa e se o desejar tomar outra. A mulher emboscada estará sujeita a penitência e ficará sem esperança de casamento.

Cânone 9. Se um homem, obrigado por inevitável necessidade, fugiu para outro ducado ou província ou.se seguiu o seu senhor, a quem prometeu fé e fidelidade e a quem não pode, portanto, negar-se, e sua mulher, embora possa e tenha condições, não o acompanhar cm vista do amor aos seus pais ou parentes, deverá ficar para sempre sem se casar enquanto viver o marido a quem ela não acompanhou. Mas o homem que ficar em outro pais em vista de uma necessidade obrigatória e não tiver esperança de jamais voltar a sua terra e não puder viver em continência, poderá tomar outra esposa depois de ter feito penitência.

Cânone 10. Se o filho dormiu com sua madrasta, esposa de seu pai, nem ele (o filho), nem ela podem atingir o casamento. Mas esse homem (o pai), se o desejar, poderá ter outra esposa mas será melhor abster-se.

Cânone 11. Se alguém dormiu com sua enteada, estará sujeito à mesma sentença; e com a irmã de sua esposa, poderá ser tratado da mesma maneira.

Cânone 18. Quem fica com uma prima de sua esposa será privado de sua mulher e não terá qualquer outra; a mulher a quem ele teve pode fazer o que quiser. Isso a Igreja não aceita.

Cânone 21. Quem permite que a mulher tome o véu não pode aceitar outra esposa.


Um concilio em Roma durante o reinado do Papa Estêvão II (752-757) baixou o seguinte decreto:

Cânone 36. A ninguém é licito, exceto por motivo de fornicação, abandonar uma esposa com quem teve contato e casar-se com outra; se isso acontecer em outras circunstâncias, cabe ao transgressor voltar ao primeiro casamento. Se, entretanto, o homem e a mulher concordarem entre si separarem-se com a intenção exclusiva de seguir a vida religiosa, isso não será feito sem o conhecimento do bispo, a fim de que possa cada um ser interrogado em determinado lugar. Porque se o marido ou a mulher se opõe, o casamento não é dissolvido por esse motivo.


Um concilio de sessenta e dois bispos realizado em Roma, em 826, durante o reinado do Papa Eugênio II, promulgou esse mesmo Cânone 36 com essa mesma forma.

O Sínodo do Papa Leão IV, realizado em Roma em 853, tornou a promulgar os mesmos cânones. O interessante é que esses cânones, que permitiam o divórcio e novo casamento, foram decretados em Roma depois do pronunciamento rigorista de Compiègne, Friuli e Paris, de que passamos a tratar.

O Concilio de Compiègne (757) aprovou o Cânone 13, que permite que o cônjuge ingresse na vida religiosa com o consentimento do outro e concede a este o novo casamento. Em nota em apêndice a esse cânone se diz que o Legado Papal, Jorge, Bispo de Ostia, o aprovou.

Outras leis liberais foram também decretadas, como:

Cânone 6. Um franco aceitou de seu senhor um feudo em outra província e levou em sua companhia o seu vassalo. Quando, mais tarde, o senhor morreu, o vassalo continuou ali. Outro homem aceitou o mesmo feudo e, a fim de assegurar os serviços do mesmo vassalo, deu-lhe uma esposa do mesmo feudo e ele a teve durante algum tempo. Mas, tendo sido desconsiderado por esse senhor, ele rejeitou a esposa e voltou para a família de seu falecido senhor e tomou outra mulher. Foi decidido que pode ter aquela a quem tomou depois.

Cânone 8. Se um homem tem uma esposa legítima e seu irmão comete adultério com ela, esse irmão e essa mulher que cometeram adultério nunca terão (direito ao) casamento. O homem que era casado com ela terá o direito, se quiser, de tomar outra mulher.


O Concilio de Friuli (791) pronunciou, porém, nos termos mais rigorosos contra o divórcio, fosse qual fosse a razão:

Capítulo 10. Aprouve igualmente (decretar) que não será lícito ao marido, com o vínculo matrimonial dissolvido em consequência de fornicação, tomar outra mulher enquanto a esposa adúltera estiver viva, apesar do fato de ser ela adúltera... Portanto, ê preciso compreender categoricamente: não é lícito ao marido, nem pode ele com impunidade contrair segundo casamento enquanto estiver viva a esposa adúltera.

O Concilio de Paris (829) se pronunciou da mesma maneira:

Os que abandonam suas esposas por motivo de fornicação e tomam outras serão conhecidos como adúlteros pela lei do Senhor.


O Concilio de Nantes (875) decretou:

Cânone 12. Se a mulher de alguém cometeu adultério e isso foi descoberto pelo marido e tornado público, ele abandonará a mulher, se o desejar, por motivo de fornicação. Mas ela fará penitência pública durante sete anos. O marido, porém, não pode absolutamente tomar outra mulher enquanto ela viver.


Uma nota final: O Papa Celestino III (1191-1198) ratificou uma decisão diocesana que permitiu a uma mulher casar-se de novo depois que seu marido se tomara um apóstata da Fé. O seu sucessor, Inocêncio III, disse que a apostasia não constituía motivo para divórcio “apesar do fato de que um certo antecessor Nosso pensasse aparentemente de maneira diversa”.

Desse modo, encontramos leis pró e contra o divórcio dentro da mesma Igreja Cristã. Note-se que todos os sínodos foram no Ocidente, porque o divórcio e o novo casamento sempre foram concedidos na Igreja do Oriente antes mesmo da separação de Roma.

O comentário dos autores deste livro?

A doutrina oficial muda, a prática muda, a legislação muda porque todas essas coisas são variáveis na Igreja. O que sugerimos neste livro corresponde apenas em pequena parte às amplas tolerâncias de outros tempos. Afirmamos que nossas propostas têm a virtude da extrema moderação e fazem uma concessão sadia à arte do possível.

Examinemos agora uma das coisas que parecem — parecem apenas! — fazer impossível o possível, a decisão do Concilio de Trento. Preparem-se, portanto, os leitores para um pouco de história discursiva.


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O DIVÓRCIO E O CONCILIO DE TRENTO

 

 

Muita gente na Igreja, bispos, padres e leigos, acredita que a questão do divórcio e do novo casamento na Igreja foi encerrada definitivamente com o decreto do Concilio de Trento, formulado e aprovado a 11 de novembro de 1563.

Supomos que muitas das pessoas que acreditam nisso não reconheceriam o decreto se o vissem. Uma afirmação absurda? Na verdade, não. Vamos ver. Aqui estão duas versões do decreto. Qual é a autêntica?

 


VERSÃO 1

VERSÃO 2


Se alguém disser que o casamento pode ser dissolvido em razão do adultério do outro cônjuge e que ambos os cônjuges, ou ao menos o inocente que não foi a causa do adultério, podem contrair outro casamento enquanto o outro cônjuge estiver vivo; e que o homem que toma outra (mulher), tendo abandonado a adúltera, ou a mulher que se casa com outro, tendo abandonado o adúltero, não comete adultério, seja anátema.

Se alguém disser que a Igreja erra quando ensinou ou ensina, de acordo com a doutrina evangélica e apostólica, que o vínculo do casamento não pode ser dissolvido em razão do adultério de qualquer dos cônjuges; e que nenhum deles nem mesmo o inocente que não foi a causa do adultério pode contrair outro casamento enquanto o outro cônjuge está vivo e que aquele que tomou outra depois de abandonar a adúltera; e aquela que se casou com outro depois de abandonar o adúltero, comete adultério, seja anátema.

 

Ambas as versões são autênticas. A Versão 1 é a que foi submetida ao Concilio mas foi rejeitada. A Versão 2 é a que foi afinal aprovada e promulgada.

As razões da modificação e o seu sentido são o tema desta pequena digressão.

A finalidade geral do Concilio de Trento foi efetuar uma reforma interna da Igreja e definir a posição desta contra as doutrinas em conflito dos reformadores protestantes.

Na questão do casamento, dois pontos importantes estavam em jogo: o direito exclusivo da Igreja de determinar a validade do casamento cristão e o seu direito a regular as suas normas sem a intervenção do estado secular. Ambos os direitos se afirmam contra qualquer intervenção secular na questão do divórcio e de novo casamento.

A fim de afastar o casamento da interferência civil e abolir a prática dominante do casamento clandestino, o Concilio prescreveu uma forma obrigatória da Igreja, sem a qual o casamento não teria validade. Essa prescrição foi incorporada no decreto Tametsi, que é o que rege os católicos hoje e os impede de casarem-se pela lei civil.

Para resolver diretamente a questão do divórcio, a Versão 1 do decreto foi redigida e apresentada ao Concilio.

A discordância foi imediata e hostil. Um grupo de bispos, tendo à frente Pietro Laudi, Arcebispo de Creta, rejeitou o documento imediatamente por considerá-lo uma condenação da doutrina e da prática dos Padres da Igreja — o que sem dúvida era verdade! O Arcebispo de Granada proferiu uma frase contundente:

“Non placet igitur ut Sancti Doctores damnentur”.

 

Outro grupo estava disposto a transigir se o anátema e a condenação dos Padres da Igreja e da prática grega corrente fossem eliminados. Fazia parte desse grupo Giovanni Castagna, Arcebispo de Rossano, que mais tarde se tornou o Papa Urbano VII e morreu doze dias depois de sua eleição!

O Bispo de Segóvia, Martin de Ayala, se negou a aceitar a condenação dos Padres da Igreja e propôs uma conciliação sutil, a declaração de que “a Igreja não errou em professar a indissolubilidade do casamento”. Por outras palavras, a Igreja não estaria doutrinariamente errada professando uma opinião mais rigorosa do que professando uma mais liberal! O Bispo de Modena, Egidio Foscarari, propôs que o anátema se endereçasse apenas aos que negassem o direito da Igreja de proibir novo casamento depois do divórcio por adultério. Isso era também sutil. Deixava em aberto a questão doutrinária, deixava os Padres da Igreja incólumes e se concentrava no aspecto jurídico e disciplinar da questão.

A essa altura, o poder secular entrou em cena na pessoa dos Embaixadores da Sereníssima República de Veneza. Queriam que a redação não ofendesse os fiéis gregos que habitavam o extenso território mediterrâneo da República.

Conseguiram o seu intento. A revisão sugerida pelo Bispo de Segóvia foi aceita para a votação, com o acréscimo da expressão “de acordo com a doutrina evangélica e apostólica”. É essa a Versão 2, reproduzida acima.

O cânone foi aprovado por maioria de votos, mas não por unanimidade. Continua a ser lei.

A questão que ainda não se resolveu até hoje é a de que o mesmo representa! É uma definição doutrinária ou disciplinar?

Nesse ponto, também, a opinião legítima está dividida. Se é uma definição doutrinária, exprime exatamente aquilo que os padres conciliares de Trento não queriam exprimir, uma condenação direta dos primitivos Padres da Igreja.

Se é uma decisão disciplinar, neste caso é passível de modificação.

Nosso comentário? Nenhum. O comentário foi feito da seguinte forma pelo Concilio Vaticano II no seu Decreto sobre Ecumenismo:

... Se a influência dos fatos ou dos tempos determinou deficiências de conduta, de disciplina da Igreja ou até de formulação de doutrina (que se deve distinguir claramente do próprio depósito da fé) devem elas ser devidamente retificadas no momento oportuno.

 

Uma pergunta nossa: Qual é o momento oportuno para retificar a legislação sobre o casamento? Quando todos estivermos mortos e além da necessidade?


26

 

O COSTUME DOS HOMENS HONESTOS

 


Afirmamos em vários pontos deste livro que a doutrina oficial — enquanto distinta das verdades do Depósito de Fé — pode mudar. Isso não é novidade para os teólogos e os historiadores. Pode ser novidade para muitos leigos. Deveria dar uma pausa aos rigoristas da Igreja que vêem em todo crítico um rebelde e em todo reformador um inovador perigoso.

Citemos como um caso clássico a mudança na doutrina oficial da Igreja sobre a usura.

Durante muito tempo, a Igreja proibiu a cobrança de juros sobre empréstimos como contrária à Lei Divina.

O Concilio de Cartago (345) proibiu-a. O Concilio de Aix (789) procedeu da mesma forma.

O Papa Leão I proibiu o clero de cobrar juros e declarou que os leigos que os cobravam eram culpados de vergonhosa cobiça.

A partir do século XI, o direito canônico do Ocidente proibiu os juros de modo absoluto.

O Papa Alexandre III (1159-1181) declarou num decreto que nem o Papa tinha poderes para dispensar tal proibição.

O Concilio Geral de Vienne (1311) decretou que quem sustentasse que não era pecado cobrar juros devia ser punido como herege.

O Papa Urbano III (1185-1187) citou o Evangelho (Lucas, VI, 35) como uma proibição absoluta e divina contra os juros.

O Papa Benedito XIV baixou em 1745 uma encíclica, Vix Pervenií, na qual declarou que cobrar alguma coisa mais do que a quantia exata do empréstimo era um pecado.

É claro que se cobravam juros numa prática diária. As proibições eram discutidas, controvertidas e desafiadas tanto por teólogos quanto por leigos.

No fim, a razão e a experiência triunfaram e em 1830 a Sagrada Penitenciaria (tribunal pontifício) disse em resposta a perguntas que os que aceitavam juros moderados e estavam dispostos a aguardar uma decisão final da Igreja não deveriam ter escrúpulos de consciência.

Em 1889, a mesma Sagrada Penitenciaria tinha estabelecido como uma diretriz “o costume aceito entre os homens honestos”.

Atualmente, é claro, a própria Igreja está no mercado de dinheiro e lucra com a renda do dinheiro!

Sugerimos que “o costume dos homens honestos” pode ainda fornecer outras diretrizes úteis aos legisladores eclesiásticos!

É costume dos homens honestos indagar com interesse da situação dos seus semelhantes.

Achamos esse costume tristemente desusado na Assembleia Católica Romana. Ninguém pergunta aos fiéis como se sentem, que problemas têm, que sofrimentos suportam ou se lhes fazem a justiça a que têm direito.

Ao contrário, legisla-se para eles, escreve-se para eles, fala-se para eles ou sobre eles, sente-se por eles, reza-se por eles, fazem-lhes censuras como sujeitos ou objetos de escândalo como se fossem os proletários de um vasto Estado socialista cripto-cristão.

A Assembleia funciona hoje mais como uma empresa do que como uma família. A forma da família está presente, mas a vida de família, de indagação interessada e de serviço compassivo, se verifica fora dela. Os fiéis conhecem o seu bispo como uma fotografia no jornal ou como signatário de uma carta pastoral ocasional. O bispo toma decisões de que os fiéis não participam. Não é mais o pastor, mas um presidente que se entende com eles por intermédio de uma cúria, como um burocrata se entende com eles por intermédio de um exército de funcionários. A organização desumanizou-o, separando-o do povo. Há uma grande quantidade de fiéis e muito pouco dele.

Que pode ele apresentar deles mais que uma estatística? Que pode saber deles se nada lhes pergunta? Como pode ele cuidar de um anonimato coletivo?

É costume dos homens honestos concederem toda a liberdade que reclamam para si mesmos.

Esse costume é afirmado — muito tarde! — por um recente decreto do Vaticano II, mas negado pela comum prática dos seus administradores.

Há ainda vários Estados onde o divórcio civil é negado até aos que acreditam nele e onde essa negação é reforçada pela pressão política e hierárquica das autoridades católicas.

Isso representa uma invasão da liberdade de consciência do homem e não há referência insincera a uma nebulosa idéia de liberdade capaz de fazê-la esquecer. Citemos:

O exercício da autoridade na Igreja é encaminhar os cristãos à renúncia que sua fé exige deles e não impô-la. A Igreja não pode tomar decisões pessoais pelos seus membros. O motivo supremo do ato moral cristão é o amor. E a aplicação de qualquer tipo de pressão, ainda que essa pressão seja apenas social, ataca a integridade do amor cristão. A coação é estranha ao gênio do cristianismo e, se há um tipo de lei que não seja coatora, ninguém a descobriu ainda.

(John L. Mckenzie, em “O Jurista”)


Os homens honestos têm o costume de permitir e praticar o livre inquérito em todos os assuntos de interesse comum.

Não é absolutamente esse o costume atual da Igreja Católica. É um fato de experiência recente, mesmo nos mais altos conselhos da Igreja, que um papa reinante encerrou ou proibiu a discussão sobre certos assuntos vitais e se reservou o direito de decisão final sobre eles. Fazemos objeção a isso. Alegamos que há infração de nossa liberdade cristã.

Os assuntos nos tocam de muito perto. Tocam-nos em nossa vida e em nossa vida depois desta. Acreditamos na ação do Espírito, mas não acreditamos em iluminismo e somos cépticos em relação a revelações privadas.

Queremos saber, com profunda preocupação, quem está assessorando o Papa nesses assuntos de vida, morte e salvação; quem, se há alguém, lhe apresenta nosso conhecimento e nossa experiência de todas as emaranhadas questões em jogo; quem cuida por nós da lógica e da legalidade de suas decisões?

Não somos feitos para ser tangidos para a salvação como carneiros. Nós a aceitamos como um dom de amor por um ato de conhecimento. Por conseguinte, o conhecimento é de máxima importância para nós e ninguém tem o direito de negar-nos, por injunções de silêncio ou segredo, o conhecimento do que é feito em nossa Assembleia.

A religião é aquilo que vincula um homem porque ele deseja ser vinculado. Não é uma servidão. É a liberdade doa filhos de Deus.

É costume dos homens honestos aplicar os resultados da investigação e da experiência ao aperfeiçoamento diário da sociedade.

Não é esse o costume atual de nossa legislação eclesiástica. Ao contrário, os legisladores cristãos se esforçam por não tomar conhecimento da experiência e da prática de todas as sociedades circunvizinhas, bem como das descobertas da medicina, da psiquiatria e da sociologia. Assim fazendo, desunem o Depósito, desdenham a sua economia essencial e se tornam vulneráveis às acusações de reação e obscurantismo.

Citemos de novo:

O testemunho contínuo das nações, dos governos, dos juristas e até de todas as sociedades primitivas devia ser ouvido no Tribunal da teologia católica... O fato de que todas as civilizações, nações e denominações hoje em dia, embora deplorando o mal do divórcio, permitem a sua existência, exceto a Igreja Católica apenas, é por si mesmo um convite a novo estudo de todo o problema do ponto de vista da teologia católica esclarecida... Ainda que vários países tenham ido além do que os católicos considerariam os limites na sólida gestão dos assuntos públicos em relação ao divórcio, seria loucura negar que os homens responsáveis pelo governo das nações bem como os professores de Direito Civil estão tão empenhados em promover o bem comum e o avanço da moralidade quanto os representantes da Igreja e da Teologia Católica.

(Vítor J. Pospishil, “Divórcio e Novo Casamento”)


Parece um pedido modesto, um inquérito aberto, um re-estudo. Mas os obstáculos a um inquérito franco são quase insuperáveis para aqueles mais interessados.

Muitas autoridades da Igreja têm receio de um debate franco e isso por uma razão que reclama um esclarecimento.

A razão é a seguinte: muitos elementos do clero católico romano em posições altas ou baixas têm um incurável esnobismo em relação ao laicato. Falam e agem como se o Depósito de Fé fosse um monopólio sacerdotal. Ocupam há tanto tempo as sedes do poder que estão surdos à voz do povo.

Um julgamento rude? Talvez não tanto quando se lêem alguns dos pronunciamentos reproduzidos ipsis litteris de nossos arquivos.

Um discurso papal: “O divórcio é um sinal de perniciosa decadência moral... Os países sem divórcio ostentam uma civilização superior”.

Um culto cardeal: “Os que estão em concubinato vivem em pecado e devem ir para a Igreja”.

Um monsenhor do Vaticano: “Não podemos abrir o debate sobre a legislação do casamento porque nada há para debater”.

Um funcionário da Rota: “Creio que é muito mais eficiente permanecer nos canais”.

Um eminente canonista: “O casamento se tornou uma espécie de experiência. Muitos ingressam nele apenas por prazer”.

Um juiz diocesano: “A atitude moderna resulta da ideia que as pessoas têm de que a sua felicidade e conveniência são importantes”.

Outro juiz diocesano: “Não posso pessoalmente compreender como qualquer pessoa, católica ou protestante, possa realmente pensar em casar-se fora. É claro que não devem levar a sério os seus deveres religiosos”.

Um funcionário da Rota: “Tentamos ajudar, mas tem de ser por uma das razões da Igreja e não porque a relação seja odiosa a duas pessoas”.

Um padre de paróquia: “As pessoas só se interessam pelas leis da Igreja quando a lei é um obstáculo a alguma coisa que desejam”.

O esnobismo manifesto nesses e em semelhantes pronunciamentos, nas atitudes de obstrução e intolerância que descrevemos neste livro, é em parte o resultado da preparação eclesiástica, que ainda confina o homem numa disciplina restrita de estudo e o toma ignorante de todas as outras disciplinas além da sua.

Em parte é o resultado de um ministério celibatário que, por um lado, coloca um jovem padre, com uma série de idéias não experimentadas, com imediata autoridade sobre os fiéis e, pelo outro, absolve-o da dialética brutal das vidas deles. Em alguns, trata-se de uma incursão pela vontade de poder. Em todos, encontra-se o medo de que a crença não examinada, a vida não examinada possam não ser suficientemente fortes para resistir a um firme desafio.

Por outro lado — e falemos disso com gratidão! — há sempre os nobres indagadores, os santos pesquisadores, os reformadores francos e corajosos, certos da concordância final das coisas, que são no fundo os verdadeiros conservadores da Igreja viva.

Mas o problema permanece: como na sociedade hierárquica da Igreja podem ser aproveitados através da lei os frutos da experiência humana, como exprimir uma teologia evoluída num sistema jurídico que não evoluiu?

Há os que acreditam — e nós estamos com eles — que um código jurídico, distinto dos preceitos morais, não tem razão de ser numa sociedade cristã fundada sobre um convite divino a participar livremente de um plano divino.

Mas se devemos ter de qualquer maneira um código — e parece que é esse o caso — o único meio de fazê-lo mais ou menos viável numa sociedade pluralista é por intermédio de comissões assistentes permanentes de leigos, peritos nas disciplinas seculares, que possam desafiar com autoridade presunções, conceitos errados e legalismos tradicionais.

O cirurgião deve ser ouvido, bem como o clínico, o psiquiatra, o sociólogo. Todos eles têm o que dizer sobre o homem como ele é, como se desenvolve, como é limitado ou coagido pelo seu organismo ou pelo meio.

O jurista leigo deve ser ouvido também porque não se preocupa menos do que o canonista com a justiça individual ministrada para o bem comum. O perito em telecomunicações deve ser ouvido porque compreende o impacto das comunicações modernas e sabe como o controle das mesmas pode modificar a mentalidade e até a personalidade de indivíduos e sociedades.

As mulheres devem ser ouvidas — e devem falar bem alto — pois do contrário como pode uma legislação sadia abranger os direitos, as necessidades e a natureza especial do sexo feminino?

Se esses elementos não forem ouvidos, que nos restará? Uma vasta sociedade para a qual legisla uma pequena casta celibatária, auto-informada, autojustificada e auto-suficiente, corrompida em casos extremos numa tirania confessional sobre os ignorantes e numa conspiração confessional com os venais ou os poderosos. Isso já existiu em outros tempos. Ainda existe em certos lugares. Não nos podemos arriscar a que venha a renascer.

O povo de Deus tem medo de seus atuais ministros. Está e não sem razão — desconfiado e descontente.


LIVRO 4

 

O POVO DE DEUS


que tem estado por muito tempo em silêncio na sua Assembleia.


27

 

OS DESCONTENTES DA ASSEMBLEIA

 


Os descontentes da Assembleia Católica são profundos e perigosos. Assemelham-se mas não são idênticos aos descontentes de outras sociedades contemporâneas. Pedem uma discussão que vai muito além dos sintomas e questões, como a anticoncepção, o celibato e as batalhas curiais em tomo das definições da autoridade episcopal. O âmago da questão é a natureza da Assembleia, a sua razão de existir como uma sociedade e até que ponto a sua ordenação atual está de acordo com a sua natureza e a sua finalidade.

Os leigos devem também ser ouvidos nessas discussões. Devem ser ouvidos não por condescendência ou concessão, mas por direito. Não lhes deve ser negada a liberdade de filhos e filhas numa família, a liberdade de cidadãos livres na Cidade de Deus. Se a sua profissão de fé não os dotou dessa liberdade de acordo com a promessa, são verdadeiramente escravos — e não deram o seu assentimento à escravidão!

Os descontentamentos da Assembleia nascem de uma causa fundamental, a falta na Igreja atual de uma simples relação familial.

Queira-se ou não, reconheça-se ou não, somos irmãos numa família humana. Alguns dentre nós recebemos um dom — o dom de poder aceitar Jesus de Nazaré como o Filho de Deus e o portador de uma mensagem de salvação para nós e todos os outros seres humanos.

Esse dom faz de nós uma família dentro de uma família. Impõem-nos novas obrigações familiais mas não nos dispensa das que já temos. Empenhamo-nos na crença em Cristo, na esperança em Sua mediação redentora e no amor, n’Ele, através d’Ele e com Ele pela família humana.

Tudo mais é método e metodologia — um conflito de autoridades, uma dialética de teólogos, um embate de canonistas. Isso nos empobrece em lugar de enriquecer-nos.

Nós somos a Igreja — nós seres humanos em união com o ser divino-humano de Cristo. Somos a Assembleia e a Assembleia existe para nós e não nós para ela... “Quem por nós e por nossa salvação desceu do céu”.

Para tornar o argumento muito pessoal: nós, homem e mulher, criamos uma família e construímos um lar para ela. Eu, o homem, sou o seu chefe, mas não o seu senhor. Nós, os seres da família, somos a assembleia fundamental. Temos uma necessidade mútua de assistência, respeito e amor. Nós nos regulamentamos, mas a regulamentação tem o objetivo de amor e educação. Temos, no mais amplo sentido, uma fé comum e um código moral comum. Mas a fé é partilhada com amor e o sentido dos seus princípios é debatido com amor e o desejo de maior conhecimento. Se quebramos o código moral, nossa preocupação é corrigir a ruptura e manter o amor intacto. Sem a ruptura, o amor não poderá ser testado e talvez nunca possa ser conhecido.

Somos zelosos do código, mas tolerantes da violação. Sabemos que nós ou nossos filhos podemos de tal modo complicar nossa vida que tenhamos de viver durante anos numa situação anômala — um mau casamento, uma ligação, um filho ilegítimo. Não expulsamos os ofensores. Não proferimos julgamentos draconianos, nem impomos sanções por toda a vida. O eu — feito por Deus — tem de ser protegido e ajudado a desenvolver-se até à mais plena maturidade — salvação — de que é capaz.

A Assembleia Católica não funciona presentemente como uma família cristã, porque a comunicação dentro dela se interrompeu. Não temos voz na Assembleia dos eus.

Nossa verdadeira relação é de fato negada: do eu a Deus em união com outros eus que têm a mesma relação.

A Igreja, centralizada em Roma, sucumbiu a ilusões tipicamente romanas: que a ordem pode ser imposta pela legislação, que a natureza da fé pode ser conservada por meio da multiplicação das definições, que a centralização é o melhor meio de preservar a unidade, que a autoridade deve ser tão zelosamente guardada, tão incansavelmente exagerada como o nome dos antigos imperadores.

A experiência da família, a experiência da comunidade indicam conclusões inteiramente contrárias. Quando as leis se multiplicam, a lei cai em descrédito. A linguagem é um instrumento de comunicação imperfeito e nós somos constantemente forçados a suplementar-lhe as imperfeições por meio de códigos subsidiários e outras soluções. A linguagem especializada de teólogos e filósofos embalsama uma idéia como uma abelha no âmbar; mas a abelha está morta. Damos nosso assentimento a um Cristo vivo e a uma revelação viva por um ato de crença ilimitado por verbalismos humanos. Os verbalismos são instáveis e, com o tempo, tornam-se sem importância se não houver constantes explicações e interpretações. A unidade — “a unidade do Espírito no laço da fé” — não é necessariamente preservada por uma organização central de guardiões.

Nosso ato de fé é um livre sentimento a Cristo e a Sua revelação. Não podemos ser forçados a fazê-lo. Não podemos ser forçados por uma autoridade central a retirá-lo. O próprio ato nos une à comunidade dos crentes e estabelece a continuidade da comunhão entre nós.

E isso nos leva diretamente à tão falada questão da autoridade dentro da Assembleia.


28

 

A AUTORIDADE DENTRO DA ASSEMBLEIA

 


Qualquer autoridade estabelecida dentro da Assembleia é estabelecida por intermédio da Assembleia, a qual está em união com Cristo.

O Papa é eleito — escolhido — pela Assembleia. A voz da Assembleia é a única voz de Cristo que nos resta para fazer esse ato de escolha. O ritual da eleição papal afirma esse fato. “Acceptasne electionem?” (Aceitas a escolha que nós fizemos?)

Seja qual for a forma atual da eleição — e há margem para grandes discussões sobre isso também — o princípio estabelecido pelo Papa Leão, o Grande, ainda prevalece: “Aquele que deve governar todos deve ser escolhido por todos”.

Está há muito esquecido que o pastor e o bispo foram originariamente escolhidos pelos fiéis, para o serviço dos fiéis que existem na “unidade da fé”. A unidade da fé já está estabelecida. Não depende, nem pode depender, da autoridade do pastor.

O conceito da autoridade cristã como alguma coisa imposta aos fiéis é essencialmente anticristão. A apresentação do próprio Cristo foi feita sob a forma de um convite: “Vinde, segui-me.” O resumo de Seus ensinamentos foi amor, comunhão, comunicação — o dom livre do eu ao Outro e aos outros.

Parece-nos, portanto, que a verdadeira função da autoridade dentro da Igreja é recordar constantemente aos fiéis a união de amor que eles mesmos estabelecem com seu comum assentimento a Cristo e a Sua doutrina. Na Igreja mais primitiva, a mensagem de salvação (Kerygma) vinha em primeiro lugar e a exposição (didache) nasceu dela. Sem a Kerygma, a didache se reduz a um sistema de ética tão instável quanto os costumes dos homens com os seus hábitos e habitats variáveis.

O que está em questão hoje em dia na Igreja não é o “ensino do Reino de Deus” mas alguma das interpretações desse ensino, a lógica em que se baseia a interpretação e as leis pelas quais esta é imposta.

A Autoridade Apostólica é conferida por eleição. Mas a natureza e os limites da Autoridade Apostólica são ainda e devem continuar a ser um tema de legítima discussão. Mais ainda, o exercício da autoridade deve ser passível de discussão e exame — e, às vezes, de desafio. O próprio Paulo, o último a chegar, contestou ao Príncipe dos Apóstolos uma questão de liberdade cristã.

Pode ser negada a nós, que partilhamos como cristãos de sua comissão apostólica, a mesma liberdade?

A liberdade é um estado para ser alcançado e uma carga para ser levada. O assentimento da fé é um ato de libertação porque estabelece um sentido de crescimento para a pessoa humana, uma conformidade entre ela e os seus semelhantes, que se baseia na sua conformidade com o Cristo vivo.

Entretanto, os limites da liberdade, como os limites da autoridade, não estão ainda claramente definidos. De fato, nunca podem ser legitimamente definidos de qualquer maneira que restrinja a relação transcendental entre o homem e seu Criador. Por conseguinte, um desejo de ordem e uniformidade na Assembleia Cristã não é também uma razão legítima para defini-los de maneira muito rígida ou para manter certas definições muito rígidas que já foram formuladas.

Mais uma vez, estamos diante de um conceito tipicamente romano — segundo o qual o objeto das leis é a ordem pública e não a ministração de justiça aos indivíduos. O direito canônico é romano desde os seus alicerces. É, como já demonstramos, cheio de dispositivos armados a favor das instituições e contra as pessoas. Dizem-nos que está em processo de reforma. Mas os conceitos em que se baseia reclamam uma reforma tão radical quanto o próprio código.

Mas como podemos nós, sujeitos da lei proposta, provocar essa reforma tão necessária? Como poderemos unir-nos em vital debate com a comissão eclesiástica que está, neste momento, elaborando os novos cânones? Não temos comunicação direta com essa comissão e nenhuma esperança de diálogo. Em vista disso, publicamos opiniões, provocamos discussões. Alguns de nós violamos leis que cremos injustas na esperança de persuadir os legisladores a elaborar leis melhores.

Não acreditamos que todo aquele que protesta seja um cismático, um rebelde ou uma fonte de escândalo. Também não acreditamos que todo conservador prudente seja um reacionário tirânico. Acreditamos, porém, que certos primitivos princípios cristãos devem ser proclamados repetidamente do alto dos telhados. Os intérpretes da Palavra são Servos da Palavra. Cada um de nós, papa, bispo, padre, leigo é servo de seus irmãos em Cristo. A lei é feita para o homem e não o homem para a lei. O casamento cristão tem analogia com a união de Cristo com seu povo em perfeito amor. Não é um leito de Procrustes no qual a agonia da humanidade seja estendida de maneira intoleravelmente infinita.

Estamos com Cristo. Estamos com Pedro, a quem Nosso Senhor deu o primado entre aqueles a quem mandou. Mas Deus nos guarde dos secretários de Pedro e de suas rivalidades por demais manifestas!


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DO DOGMA, DA DEFINIÇÃO E DA INFALIBILIDADE

 


Para um cristão, confirmado pelo amor, o dogma e a definição são, num sentido muito real, sem importância.

O seu ato de crença em Cristo, em Seus ensinamentos e em Sua missão salvadora é um assentimento total não ao que se diz de Cristo, mas ao que Ele foi, fez e ensinou. Esse assentimento é um ato completamente diferente do ato de assentimento a um formulário de fé, seja este um credo, a definição de um Artigo de Fé ou a condenação de uma proposição heterodoxa.

Quando um cristão dá o seu assentimento a um credo ou a uma definição, está de fato dizendo: “Se esta fórmula exprime verdadeiramente, embora de maneira incompleta e imperfeita, o que Cristo é, foi e ensinou, já a aceitei. O resto é formalidade.”

O formulário não é Cristo. É um verbalismo humano usado para definir ou exprimir um aspecto da revelação de Cristo na linguagem no momento disponível. Sendo humano, é imperfeito. Desde que toda a linguagem é instável, a definição é instável. Como a linguagem é colorida por conotações subjetivas ou locais e conceitos correntes em determinada época histórica, a definição pode dar falsa impressão a um indivíduo ou a uma comunidade.

Por isso, é imprudente e perigoso fazer de uma definição a pedra de toque da identificação de um cristão, embora tenha ela os seus usos como uma pedra de toque da doutrina.

Exponhamos o assunto de outra forma. Os autores deste livro recitam ambos o Credo de Nicéia. Usamos ambos as mesmas expressões, algumas das quais representam conceitos que tinham naquele tempo um sentido que nos é estranho a nós ambos. Se nos perguntarem se o Credo exprime aquilo em que cremos sobre a Trindade e a Encarnação, responderemos que acreditamos no que Cristo ensinou sobre Si Mesmo e Seu Pai Celestial e a ação do Espírito e as nossas relações com Eles. Se nos circunscreverem às palavras sob pena de morte, não morreremos pelas palavras. Esperamos que nos seja dada a coragem de morrer pela Palavra que exprimem imperfeitamente e à maneira de outra época.

É por essa razão que nós que vivemos no mundo cremos aprender frequentemente de maneira mais verdadeira a natureza da vida cristã, das relações cristãs e da revelação cristã do que aqueles que vivem fora do mundo num ambiente protegido de elucubrações, erudição ou administração eclesiástica.

Infalibilidade? Isso tem muito menos relevância para nós do que aqueles que estão fora da Assembleia ou aqueles que estão dentro da Igreja institucional estarão dispostos a crer. O Papa tem a missão de pregar o que Cristo pregou, nem mais, nem menos. Quando ele se afasta dessa missão, isso nos afeta mas por outros motivos que não o da fé. O assentimento a um princípio de autoridade não é o mesmo que o assentimento aos atos ou raciocínios de uma autoridade. Aceitar uma lei ou discordar dela não afeta o nosso primeiro assentimento a Cristo e a Sua mensagem que fizemos sem a intervenção de um assistente. A Fé é nosso ponto de partida e esperamos que seja também nosso ponto de chegada. “Lutei o bom combate e conservei a fé”.

Nosso combate é ver a fé aplicada com justiça e caridade em nossa vida e na vida de nossos irmãos.

Os teólogos defendem muito a importância do dogma e da definição em vista das consequências, para a vida humana. Salientam, por exemplo, que se tanto a humanidade quanto a divindade de Cristo não forem reconhecidas, o conceito cristão de sua missão salvadora, a redenção, estará destruído. Isso é verdade. Mas nós, como cristãos, já estamos a par das consequências para a nossa vida sem a intervenção de lógicos ou formuladores. Sabemos que temos de morrer. A morte do Homem-Deus dá sentido a nossa mortalidade.

Por uma consequência mais adiantada, não temos receio do ecumenismo e da fraternidade, como muitos dos nossos ministros mais antigos parecem ter. Não vemos escândalo no exercício da tolerância e da compaixão fora das fórmulas da lei porque a caridade está acima da lei. Temos vergonha dessa “sutileza romana” que põe a letra acima do espírito e nos faz parecer aos olhos do mundo mais como retóricos e sofistas do que como criaturas que partilham de um Amor Divino gratuito.

Temos receio das novas leis em processo de elaboração e que sabemos que não darão expressão a nós, nem à caridade total em que nos baseamos.

Como sabemos que isso vai acontecer? Andem cá e escutem.


30

 

DA LEI NA ASSEMBLEIA

 


A Igreja sempre fez leis, boas e más, sobre tudo — da bênção dos animais das fazendas ao uso da tortura no interrogatório dos hereges.

Essas leis ou cânones foram coligidos em várias épocas, mas a primeira tentativa de selecioná-los e codificá-los num sistema foi iniciada em 1904 por ordem do Papa Pio X.

A idéia do projeto era perfeitamente lógica. As leis caem em desuso e se tomam mutuamente contraditórias. Têm de ser atualizadas em função das circunstâncias que mudam. É preciso estabelecer princípios de interpretação.

Entretanto, parece que ninguém formulou algumas perguntas importantes... Por que usar um código elaborado por seres humanos quando se tem uma lei de vida diretamente revelada pelo Onipotente? Por que não deixar as pessoas viverem sob as leis civis a que estão habituadas e orientá-las por meio dos ensinamentos cristãos e de ocasionais instruções de interpretação e disciplina para uma vida cristã em suas comunidades?

Ainda se fazem hoje em dia essas perguntas. Mostraremos dentro em pouco a resposta que lhes é dada. Voltemos a Pio X.

Nomeou ele um pequeno grupo de canonistas, na maioria italianos, para elaborar um código romano para a Igreja Romana, quer os seus membros vivessem na Groenlândia, em Hong-Kong ou no arquipélago das Molucas. Era a velha idéia da Roma Imperial transferida para um contexto moderno. Onde quer que se esteja, a lei de César se aplica com todas as suas prescrições, normas processuais, critérios e definições determinantes. Diante disso, há necessidade apenas de uma cautelosa e persistente propaganda para identificar a lei de César com a lei de Deus — e foi isso exatamente o que aconteceu. E os romanos estão fazendo com que isso aconteça outra vez com as novas revisões. Provas? Dá-la-emos num momento.

O Código de Direito Canônico tal como o temos agora foi promulgado por Benedito XV em 1917. Entrou em vigor — ou em fraqueza! — um ano depois. Todas as anomalias e injustiças que descrevemos neste livro e muitas outras surgiram dele.

Em 1959, João XXIII anunciou que pretendia convocar o Concilio Vaticano II. Na mesma ocasião e no mesmo contexto, propôs uma reforma do Direito Canônico, baseada nas conclusões e decisões do Concilio.

Em 1966 — as coisas marcham muito devagar na Igreja! — o Papa Paulo VI deu instruções aparentemente claras à Comissão. Disse ele que o novo código devia ser baseado em três critérios: experiência, necessidade e as diretrizes do Vaticano II. Em 1967, o assunto foi discutido pelo Sínodo dos Bispos era Roma.

Revelaram-se imediatamente discordâncias, rivalidades e confusões de conceito.

O Cardeal Felici, apresentando o documento sobre a reforma, propôs diretamente: “Convém que o novo código mantenha de toda a maneira o seu caráter jurídico.”

Um dos homens da sua comissão, Padre Bertrams, S. J., foi mais adiante. Declarou que a lei era um instrumento sacramental de salvação, sagrado e produtor de santidade, do que poderia razoavelmente parecer que a lei do homem devia ser ajustada à lei de Deus.

O Bispo Martensen, de Copenhague, se opôs a essas opiniões. Disse categoricamente que a lei não era e não podia ser identificada com o Evangelho, que não podia proporcionar a salvação e que a mensagem de Cristo não foi feita para ser codificada.

O Cardeal Suenens, da Bélgica, foi muito mais adiante. Disse ele que o máximo e o melhor que poderia ser feito era dar uma espécie de solução do direito comum aos problemas da vida cristã, que os leigos sabiam mais sobre o mundo do que os eclesiásticos e deviam, portanto, ser chamados a colaborar, que os casos matrimoniais deveriam ser tratados com presteza e humanidade e que os direitos pessoais deveriam ser sempre respeitados.

O Cardeal Leger, que era ao tempo o Primaz de Quebec, propôs que todo traço de romanismo deveria ser eliminado da lei e que o objetivo pastoral da lei tinha de ser salientado.

O Cardeal Urbani, de Veneza, disse que o código devia ser reduzido a uma série de princípios constitucionais simples — diretrizes para as decisões locais.

O Cardeal Dopfner, de Munique, tocou num ponto sensível. De acordo com ele, a lei não devia criar um conflito entre a prescrição legal e a consciência pessoal.

Até aí, muito bem.

Mas a discussão foi muito mais além. O Arcebispo Edelby, de Antióquia, externou o profundo receio de que qualquer código manufaturado em Roma correria o risco de “apresentar às Igrejas Orientais um fato consumado, com maior latinização das suas práticas e com a redução das suas maneiras de vida e disciplina completamente diferentes a um denominador comum”.

Uma voz romana se fez ouvir de novo — numa frase típica! O secretário da Comissão anunciou que a questão de códigos separados para o Oriente e o Ocidente estava encerrada. Haveria apenas um código básico para um e para outro, com margem para aplicação regional. Encerrada por quem? E por que motivo? E pode qualquer questão humana ser encerrada quando o homem é uma criatura aberta e em desenvolvimento?

A decisão final do Sínodo? Divisão e a designação de uma subcomissão para selecionar e exprimir as opiniões diversas dos Padres Sinodais.

Qual é a situação atual? Citemos o Padre Maurice Walsh, da Sociedade de Direito Canônico dos Estados Unidos:

Os canonistas americanos em geral sentem-se muito descontentes com a maneira pela qual se está processando a reforma do Direito Canônico. A verdade é que a mesma é feita em segredo sem suficiente difusão de opinião que vá além da mentalidade romana.

O futuro? Há ameaça de novas divisões na Assembleia já descontente. Citemos um canonista brasileiro, Monsenhor Moss Tapajós:

Temos sofrido na América Latina durante toda a nossa história em consequência de leis que nos são impostas pela Europa, leis feitas com mentalidade européia para condições européias, mas completamente desajustadas às nossas condições e à nossa mentalidade. Não estamos preparados para que o processo mais uma vez se repita. Se isso acontecer, as leis não serão observadas, pois nossas situações e necessidades culturais e sociais inteiramente diferentes tornam impossível a observância de leis européias. Por conseguinte, nunca poderemos aceitar uma lei de cuja elaboração não participarmos vitalmente. E a própria lei deve ser simplesmente uma lei fundamental ou constitucional, com tudo mais deixado às igrejas locais.

Os fiéis? Nós? Você, eu e a moça da casa vizinha? Nossa opinião não foi pedida. Discordamos — muitos de nós — do código atual. Poderemos discordar do novo também. Ao menos, nos reservamos nossos direitos sobre o assunto. Mas não basta uma opinião discordante. Como podemos, como devemos agir em discordância cristã?

Este, caros leitores, é o momento da verdade. Devemos afastar-nos da Assembleia, julgando-a irremediavelmente corrompida? Devemos permanecer e lutar — porque é preciso lutar! — para limpar a casa e mantê-la limpa, numa morada digna dos filhos do Pai Único?


31

 

DISCORDÂNCIA DO POVO DE DEUS

 


Um homem violento nos assalta; é lícito matá-lo para defender a única coisa que somos ou temos — nós mesmos.

Um governante nos ordena que abjuremos aquilo em que acreditamos; temos obrigação de morrer pela nossa crença e a Igreja nos dará palma do martírio.

Um grupo de canonistas anônimos, que trabalham em segredo, elabora uma lei que suprime nossa liberdade como pessoa, a liberdade de nossos irmãos, nosso livre acesso à vida sacramental da Assembleia, nossas relações privadas com nossas esposas — e somos obrigados a obedecer sob pena de pecado ou censura?

O absurdo é evidente. Contudo, é a esse absurdo que somos obrigados pelo atual Código de Direito Canônico e a que poderemos ser obrigados pelo novo. Nosso bispo é o pastor e doutrinador de nossa Assembleia. Nosso bispo determinou a prisão de um padre porque fez um protesto cristão contra a tirania de um Estado ditatorial — isso aconteceu neste ano na Espanha! Devemos considerá-lo ainda nosso pastor, não recorrer contra ele e não fazer um protesto público?

Outro absurdo. Entretanto, esse absurdo é especificado pelos cânones que fazem do bispo ofensor o árbitro final do seu próprio caso e nos punem se tentarmos incriminá-lo.

Nenhuma autoridade humana pode chegar a ponto de fazer-nos aceitar como verdadeira uma inverdade, como justa uma injustiça ou a abolir o nosso direito e o nosso dever de protestar contra um ato reprovável.

O próprio Nosso Senhor colocou a caridade acima de todas as leis e de todas as confissões e comunhões visíveis. Protegeu a mulher surpreendida em adultério das penalidades da lei mosaica. Louvou o estranho, o Samaritano, como o verdadeiro irmão porque cumpriu os deveres da fraternidade com um viajante ferido. Desafiando o costume local, expurgou em cólera o Templo dos vendilhões e usurários. Dividiu o pão e tomou vinho por amor com coletores de impostos, prostitutas e os réprobos de Sua sociedade.

Que lei, seja elaborada e promulgada por quem for, pode impedir-nos de imitar Seu protesto ou Sua caridade?

Cristo homem era um judeu que discordava, um herético formal. Foi também Deus em assentimento à bondade de Sua Criação e à mais nobre evolução do homem. A Sua atitude prescreve a nossa. Temos um compromisso com Ele e com mais ninguém.

Só por intermédio desse compromisso pode a nossa justiça ser mais abundante do que a dos nossos escribas e fariseus.

Nossa posição está prescrita. A prescrição foi confirmada nas seguintes palavras dos Padres do Vaticano II:

33. O laicato está unido no Povo de Deus e constitui o Corpo de Cristo sob uma Cabeça. Sejam quem forem, os leigos são chamados, como membros vivos, a empregar toda a sua energia pelo crescimento da Igreja e por sua contínua santificação.

(“Constituição Dogmática da Igreja”, Cap. IV)


As contingências não foram, porém, previstas: o fato de que existem leis más, que os canais da comunicação hierárquica podem ser obstruídos ou cerrados, que há bispos bons e maus, hábeis e obtusos, e que a burocracia ainda é dominada por velhos ciosos do poder que têm.

Assim, a missão cristã implica inevitavelmente discordância, protesto e ação positiva.

A Assembleia do Povo de Deus não é uma democracia. De acordo. Não é também uma oligarquia. Ê uma teocracia que tem Cristo à sua frente e a que cabe a missão de salvar pessoas — não formas, instituições e dignidades oficiais.

Os que pedem para a Igreja um controle jurídico ilimitado de todos os aspectos da vida humana não podem, em nossa opinião, sustentar que isso constitui uma posição cristã. Se assim procederem, destruirão a opção cristã, a livre escolha na qual se baseia a nossa salvação.

A missão da Igreja é transmitir a mensagem tal como lhe foi transmitida e demonstrar pelo testemunho vivo — e não por coerção jurídica — como ela pode ser aplicada às diversas circunstâncias da vida humana. Além disso, não tem mandato para agir porque Deus não lhe deu mandato de coerção. Se deu, chegaremos à impossível conclusão de que Seu mandato justificou os massacres dos cátaros, a morte ritual dos heréticos na fogueira, a expulsão dos judeus e as câmaras de tortura da Inquisição.

Entretanto, todas essas coisas foram justificadas na sua época. S. Roberto Belarmino assinou a sentença de morte de Giordano Bruno. Se escrevêssemos naquele tempo como escrevemos agora, teríamos sido queimados como Bruno no Campo das Flores. Como foram abolidas essas práticas monstruosas senão pelo protesto, pela revolta e pela defecção dos homens bons de uma família a que dantes amavam e respeitavam?

Não queremos mais defecções, mas elas ocorrerão se os legisladores continuarem a passar por cima do seu primeiro e único mandato.

No momento em que escrevemos estas linhas, padres se reúnem em protesto na Igreja Valdense em Roma para levar as suas queixas ao conhecimento do Pontífice e dos bispos do Sínodo. Não foi a Assembleia deles que lhes ofereceu um lugar de reunião, mas os valdenses, um grupo cristão pequeno e outrora perseguido. Foram atacados e ridicularizados naquela cidade que é mantida como santa por meio de concordata. Os que vieram da Espanha tiveram de chegar em segredo para escapar à polícia daquele Estado cristão. Quando voltarem, enfrentarão sanções canônicas e a ação da polícia civil. Entretanto, são irmãos nossos que vieram com risco para dar um testemunho de interesse cristão.

Para eles, como para nós, o tempo do testemunho é este — e não daqui a vinte anos quando nossos bispos divididos e nossa burocracia no Vaticano nos houverem apresentado o evangelho segundo os canonistas. Muitos de nós estaremos mortos a esse tempo e muitos mais além de qualquer cuidado.

Há males em nosso tempo e em nossa Assembleia que clamam por um pronto remédio. Os jovens nos acusam — e com razão — porque perpetuamos os males pelo silêncio e pactuamos com eles pela inação. Estão fazendo uma revolução própria, confusa, desorientada, muitas vezes apaixonada, mas curiosamente franciscana em muitas de suas manifestações. São eles que recebem cabeças quebradas e sentenças de prisão em consequência da guerra do Vietnam. São eles que protestam contra a tirania em Praga. São eles que estão planejando a revolução na América do Sul, onde a Igreja e o Estado ainda mantêm uma aliança perigosa em face da miséria das massas.

Os heróis deles são Che Guevara e Camilo Torres, o jovem padre que, desesperançado da Igreja na Colômbia, juntou-se aos guerrilheiros e foi morto de emboscada. Compreendem essa espécie de martírio. Aprovam-no e sofrem-no. Lêem notícias sobre os debates sinodais e as hesitações do Papa e se afastam cepticamente. Agora é o tempo aceitável para eles. É o dia da salvação, se tiver de vir a salvação.

A evolução gradativa é uma solução muito sem atrativos para os que estão colhidos na aceleração vertiginosa do século XX. A confiança na Igreja como uma força reformadora no mundo não será restaurada com pronunciamentos vacilantes e documentos cheios de reservas que descem do alto. Não há agora e não voltará a haver clima para a aplicação da pura razão romana aos assuntos dos homens. A caridade ativa é tudo de que nos poderemos valer para não abandonar de todo a missão cristã. O machado já está encostado às raízes da árvore. Se não mostrar frutos de justiça e misericórdia, ela está condenada à fogueira.

Como pode ser feito o protesto cristão? Só dentro da caridade, pois não nos atrevemos a substituir a tirania da reação pela tirania da revolução.

O bispo que mandou para a prisão o padre seu irmão se mostrou traidor à família. Mas ainda pertence à família. Não deve ser afastado do amor ou do carinho desta. Mas deve ser objeto de um protesto declarado. O abuso de autoridade que cometeu deve ser exposto para que seja corrigido. O seu povo deve fazer-lhe saber que não o considera digno. Se assim não fizer, terá compactuado com a sua traição. Se o Sumo Pontífice não o remover, o povo deverá remover-se dele, a fim de que ele sinta pelo seu rebanho a extensão* da falta cometida. Um grande princípio está em ação nesse caso: a autoridade é para serviço e não para tirania.

Um bispo proíbe o seu clero de unir-se ao povo numa manifestação pública contra a injustiça social ou a discriminação racial. A justiça exige que o clero ouça as razões. A caridade exige que se presumam as suas boas intenções. A prudência exige que sejam levados na devida conta os seus argumentos. Mas, uma vez feita justiça, satisfeita a caridade e atendida a prudência, se ele ainda for julgado em falta, o primado da consciência e o primado do povo de Deus como objeto da salvação devem prevalecer, realizando-se a manifestação.

É inútil esperar, porém, que toda a situação seja clara, que todo cristão que protesta possa ser visto como um herói e que todo vilão se apresente tal como é. O santo terá o seu nome rolado na lama e o oportunista receberá uma admoestação polida para ler na hora do café. O diplomata gozará sempre das suas imunidades ao passo que o esquálido Batista terá a cabeça servida num prato. Esses paradoxos fazem parte do testemunho. Sempre haverá quem julgue conveniente matar um homem ou uma reputação pelo bem do povo. Mas o testemunho, como o de quem o deu no tribunal de Pilatos e no Calvário, permanecerá. Basta que onze pobres homens se sintam comovidos por ele e teremos um começo.


32

 

O PROTESTO CONTRA A INJUSTIÇA MATRIMONIAL

 


Antes que nos dispuséssemos a escrever o presente capítulo, conversamos demoradamente com um bispo nórdico bem conhecido pelo seu zelo pastoral. Expusemo-lhe nosso dilema. Sentíamo-nos obrigados a revelar um escândalo a fim de que ele pudesse ser remediado. Acreditávamos dispor de remédios positivos para propor, em conformidade com a doutrina e a tradição. Sabíamos que a reforma iria demorar muito tempo, mas havia gente que tinha direito a imediata justiça. Estávamos, portanto, numa posição de protesto dentro da Assembleia. Como devia ser feito o protesto? Que remédio imediato podia ele sugerir, com base na sua experiência. especial?

O bispo é um homem judicioso, que cuida de suas palavras como cuida de seu povo.

Começou com um ato de modéstia.

— Não posso falar por outras comunidades. Não posso proferir julgamentos gerais sobre consciências individuais. Como bispo, estou encarregado de ensinar a regra de fé à minha Igreja e ajudar qualquer elemento de meu rebanho a aplicar essa regra às suas circunstâncias pessoais.

— Em sua comunidade, os católicos estão em minoria. Há, portanto, grande número de casamentos mistos. Exige que todos esses casamentos sejam celebrados numa igreja católica?

— O meu primeiro cuidado é com a estabilidade e a harmonia de todos os casais, para que as uniões sejam cristãs no verdadeiro sentido do termo. Se parece que essa estabilidade e essa harmonia podem ser desde o início ameaçadas por imposições rígidas e desiguais, estou pronto a afastá-las por meio de uma dispensa. Recomendo as formas legais e insisto na razão para elas. Mas estou sempre disposto a usar o meu critério pastoral na aplicação aos casos individuais. O respeito à pessoa humana é fundamental.

— Nem todos os bispos pensam ou agem assim.

— Não sou chamado a julgar os bispos meus irmãos. O que me interessa é o meu povo na minha diocese.

— Mas isso quer dizer que a justiça e a caridade são dispensadas de maneira desigual na comunidade cristã.

— Infelizmente, sempre foi. E sempre será. Cada homem age de acordo com as luzes que lhe foram dadas ou, pelo menos, deveria agir assim.

— Em sua comunidade, o índice de divórcios é muito alto.

— Infelizmente, é.

— Deve tratar então de um grande número de casos matrimoniais.

— É verdade.

— Trata esses casos de maneira jurídica ou confessional?

— De ambas as maneiras.

— Mas um tratamento confessional não é permitido pelo direito canônico vigente.

— Eu prefiro exprimir isso de maneira diversa. Um método jurídico é prescrito pela lei; um método confessional é reclamado pela justiça e pela caridade quando as normas jurídicas não podem ser aplicadas.

— Como aplica o método confessional?

— É um assunto confessional. Não me sinto com liberdade de discuti-lo senão em princípio.

— Qual é o princípio então?

— Há dois princípios fundamentais. O primeiro é que a pessoa deve ser salva, tendo a oportunidade diária de evoluir para a perfeição divina, por mais imperfeito que seja o seu estado atual. Os meios de salvação existem dentro da Igreja e eu não devo excluir da vida sacramental qualquer pessoa que deseje participar dela. O segundo princípio é o seguinte: o confessionário é o único tribunal em que eu posso verdadeiramente entrar no foro interno da consciência porque o penitente me pediu que assim o fizesse. Se eu posso absolver um assassino e admiti-lo à comunhão eucarística, não tenho certamente menor liberdade de ação num caso matrimonial.

— Quer dizer com isso que permite de fato uniões canonicamente irregulares e admite as partes à comunhão?

— Não. O que eu estou dizendo é que em meu julgamento confessional, cujas circunstâncias não me é permitido revelar, uniões que podem parecer canonicamente irregulares são de fato casamentos cristãos.

— Temos de dizer mais uma vez, com os fatos de nosso conhecimento, que nem todos os bispos pensam ou agem assim nesse particular.

— É claro que não. Mas repito que não os posso julgar.

— Mas que acontece ao fiel a quem tais bispos negam o recurso confessional que o senhor permite?

— Devo lembrar-lhe que uma pessoa tem o direito de escolher o confessor que desejar. Não é obrigado a submeter a sua consciência ao mais rigoroso juiz à sua disposição. Não é obrigado também a ter resistência espiritual em qualquer igreja diocesana. Um bispo é um ministrador de sacramentos; não tem o controle universal dos mesmos.

— Já lhe explicamos o projeto em que estamos trabalhando. Qual é sua opinião sobre o mesmo?

— Não li o que escreveram. Não posso julgar nem as intenções, nem a execução. São homens livres. Se têm uma acusação a fazer, procedam com lógica e honestidade.

— Concorda em que há o direito de fazer um protesto público na Assembleia?

— O direito, sim. Mas eu também tenho o direito de julgar cada protesto em função da sua justiça, caridade e eficácia. Não se pode alegar um direito para si mesmo e negá-lo aos demais.

— É a favor, então, de uma Igreja aberta?

— É claro que sim! Até, pensando bem, a pergunta é desnecessária. A Igreja é por sua própria natureza uma comunidade de testemunhas. Como se poderia dar testemunho senão abertamente?

— Mas não há segredo na Igreja?

— Eu sei disso. Trata-se de um mau hábito. Temos de desembaraçar-nos dele. Por outro lado, a pessoa reclama o direito ao sigilo de sua vida particular e tem de conceder o mesmo direito aos demais. Mas quando se trata de justiça, esta deve ser feita sem segredos e o fiel deve fazer parte plenamente da vida de sua Igreja.

Tudo isso era sensato, sólido e eminentemente tolerante. Entretanto, não tínhamos enfrentado ainda diretamente o problema dos homens e mulheres, esposos inocentes, que se viam diante de uma vida de celibato que não podiam suportar ou com uma união canonicamente irregular que os colocaria em oposição à lei. O bispo nos mostrara como determinava os casos dentro da sua jurisdição e como as pessoas podiam encontrar um julgamento liberal semelhante se soubessem aonde ir procurá-lo. Sentíamos que qualquer das soluções era insuficiente. Enveredamos então por outro caminho.

— O senhor, que é bispo, oferece um julgamento confessional baseado na tolerância. Outros bispos podem ou não fazer o mesmo. Mas isso representa apenas uma solução local para um problema universal. Ê isso o máximo que a Igreja pode fazer em face de tanto sofrimento?

O bispo levou muito tempo para responder a essa pergunta. Sabia que estava sendo solicitado a falar para que as suas palavras fossem registradas. Falou pesando bem o que dizia.

— Escute aqui! Vou começar com Santo Agostinho, que foi muito rigorista nesses assuntos. Houve sempre uma ponta de maniqueísmo nas suas atitudes sexuais e doutrinárias. Mas Santo Agostinho disse que uma Igreja Universal não pode ser uma igreja feita exclusivamente de puros. Quem é, afinal de contas, inteiramente puro? Parte-se, portanto, da imperfeição. Sabe-se que o bêbado voltará a beber. Sabe-se que o conquistador irá de novo para a cama. Mas permanecem na Igreja porque pertencem a ela e porque os dons que oferecemos são a única esperança que têm de cura e salvação. Um homem e uma mulher numa união estável de amor — ainda que seja ilegal e sem validade matrimonialmente falando, estão no mínimo um passo à frente do libertino casual. Estão praticando algumas virtudes cristãs, como tolerância, generosidade, condescendência, caridade recíproca. Vêm procurar-nos na Igreja. Se procedermos de acordo com a letra da lei, diremos que só os aceitaremos se forem perfeitos, se a união deles for perfeita. Não penso que possamos dizer isso. Não penso nem que devamos dizê-lo. Temos de mostrar-lhes a perfeição e como eles estão longe dela e como se podem esforçar por atingi-la. Mas se lhes recusarmos os meios — os sacramentos — como poderão chegar lá? Os perfeitos não precisam de sacramentos.

É claro que a Igreja tem de estar aberta para eles, com todos os seus recursos de salvação, como uma família está aberta a todos os seus filhos. Não me peçam que entre em particulares canônicos. Se quiserem, resumirei tudo em termos de arrependimento — o arrependimento como um rumo tomado em direção a Deus, embora não seja necessariamente uma chegada. Pedro negou Cristo três vezes, o que é coisa muito pior do que isso de que estamos falando. Mas Cristo não o rejeitou e a Igreja não o rejeitou. Nós também não podemos rejeitar um irmão e uma irmã honestos. Se nos procuram é porque estão em necessidade e nós devemos levá-los à Mesa da Ceia.

— Uma última pergunta. Isso que acabou de dizer não é um protesto?

— Diga que é uma afirmação e me pague um café.

Pagamos o café e acrescentamos um conhaque que bebemos fraternalmente. Foi uma espécie de ágape. Ele nos tinha dado esperança. As suas palavras lembravam muito Basílio, o Grande.


33

 

DA LEI MATRIMONIAL E DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA

 


Nosso mais sensato conselheiro neste livro foi um velho teólogo, que reside e ensina em Roma. Ê sábio e inteligente. É também um homem profundamente espiritual, cheio de afetivo zelo pelas pessoas.

Apresentamos-lhe o paradoxo clássico que descrevemos anteriormente neste livro: uma pessoa pode não ser casada de fato ou em consciência, mas se não puder provar isso perante os juízes da Rota de acordo com as regras da Rota, terá de continuar casada de direito.

A reação dele foi uma brusca e veemente contestação.

— É uma insensatez! É tão insensato quanto dizer que um inocente deve consentir em ser enforcado porque as provas circunstanciais dizem que ele é um assassino! Prender um homem a uma associação que não existe, excluí-lo de toda a esperança porque uma lei não pode ser atendida! É uma crueldade indescritível!

— Mas a lei existe e é aplicada.

— Então, em sã consciência, pode ser violada ou contornada. Ninguém tem o direito de mandar um inocente para a forca ou de colocar uma pessoa inocente no cavalete da tortura pelo resto da vida.

— Para todos os fins práticos, então, violar ou contornar essa lei significa pedir um divórcio civil e tornar a casar-se.

— Com efeito. Ou então contratar um casamento válido por mútuo consentimento sem formalidades legais — o qual sem dúvida é vulnerável à ação legal e à pressão social, além de acarretar graves desvantagens para os filhos.

— É isso o que o senhor recomenda?

— Não recomendo coisa alguma. Estamos discutindo princípios e não casos. O que eu digo é que lei alguma pode impor a morte ou o atroz sofrimento a uma pessoa inocente. E se se disser que a Lei Divina assim procede, empenharei a alma numa contestação.

— Mas lembre-se de que estamos falando de pessoas realmente inocentes na sua consciência e não de conspiradores, de desonestos ou daqueles que querem invadir para fins egoístas os justos direitos dos cônjuges.

— Quem é então o juiz da boa ou má disposição da pessoa implicada?

A Igreja afirma atualmente que só os seus tribunais podem dar um julgamento competente. É claro que estes estão manietados pelos cânones deficientes. Por conseguinte, a competência deles é prejudicada desde o início. Daí se infere, portanto, que o indivíduo interessado deve dirigir-se em primeiro lugar ao tribunal do confessionário e a conselheiros sábios em busca de orientação para uma justa decisão de consciência... Mas, em última análise, o confessor e o conselheiro espiritual se pronunciam de acordo com os fatos que lhes são comunicados pelo penitente. Assim, no fim, voltamos à consciência privada, ao momento em que o homem e Deus ficam em particular, frente a frente, e o filho diz ao Pai: “Julga-me! Sou inocente.” Pode-se enganar o mundo todo, desde que se tenha habilidade suficiente. Pode-se enganar a si mesmo, quando se é suficientemente cego. Mas não se pode usar de fraude na extrema relação entre si mesmo e o seu Criador. É nessa relação entre o homem livre e a Fonte do Ser que se efetua a salvação ou a condenação.

— Muito bem. A decisão está tomada. O indivíduo, inocente em consciência, procura uma solução extra canônica para o seu problema. Pode ou deve ele participar da vida sacramental da Igreja?

— Para mim, não existe a questão. Deve participar. Os sacramentos são a fonte da vida espiritual para ele.

— Mas os cânones o proíbem! Prevêem de fato uma exclusão automática — uma “excomunhão” latae seníentiae.

— Não! Isso só é previsto para o culpado. Uma pessoa inocente não pode merecer penalidade automática e, sem dúvida alguma, uma penalidade tão severa quanto a exclusão da fonte de sua vida espiritual.

— E se um bispo ou um pastor, sob a alegação de escândalo ou em vista de discordância com a decisão conscienciosa da pessoa, excluí-la formalmente dos sacramentos?

— Neste caso, em vez de criar um escândalo, entrando em luta aberta com a autoridade, a pessoa pode, por prudência, procurar os sacramentos em outra jurisdição.

— E se não puder fazer isso em vista de circunstâncias de pobreza ou isolamento?

— Será então, como muitas pessoas antes, como o próprio Cristo, uma vítima de injustiça. Deve concentrar-se na oração, ter a consciência tranquila e dar testemunho cristão de paciência, dignidade e probidade pessoal em quaisquer novas relações que tenha contraído. Ainda é um membro da Assembleia do Povo de Deus.

— Não tem receio de que o que nos disse e nós vamos divulgar possa ser causa de escândalo para muitos crentes?

— Não, não tenho esse receio. Estamos todos aqui para dar testemunho a Cristo de Quem foi dito que não quebraria o caniço esfolado ou apagaria a mecha fumegante. Estamos aqui para aplicar a economia da salvação, o serviço fraternal, a todos que o procurem. Estamos aqui para afirmar a equidade do julgamento cristão, quando as leis que foram feitas não o podem proporcionar.

— Quer falar sobre o exercício da autoridade neste particular?

— Só em termos gerais. Autoridade, hierarquia, prescrição pastoral — são todos elementos da economia divina de salvação de homens e mulheres. Tenho vivido a melhor parte de minha vida como um padre sob autoridade. Tenho visto a autoridade ser bem usada e mal usada. Aprendi talvez mais com essa experiência do que com todos os meus livros de estudo. A aprendizagem leva muito tempo. A economia não se torna imediatamente clara. Desejo, porém, que os homens investidos de autoridade escutem mais e se pronunciem menos. Com muita frequência, a Igreja se mostra como um corpo que tem boca mas não tem ouvidos.

— Por que acontece isso?

— Em parte, porque não há dispersão suficiente, delegação de autoridade. Em parte, porque não confiamos bastante na ação do Espírito entre o Povo de Deus e entre aqueles que, ainda que pareçam de fora, se unem a esse povo verdadeira e misteriosamente. Proclamamos a universalidade, mas de fato temos receio dela, como o homem primitivo tem medo da tribo vizinha e dota-a de atributos estranhos, perigosos e diabólicos. Penso que foi isso o que Cristo tinha em mente quando disse: “Se não fordes como criancinhas, não podereis entrar no reino de Deus”. As crianças se aceitam como são. Brincam, discutem, brigam, mas não têm ódio, nem fazem mistérios em separado.

Precisam de amor. Dão e recebem amor sem a intervenção da lei. Os mais velhos são seus servos porque suas necessidades impõem o serviço. E os mais velhos estão em dívida com elas pelo amor que recebem em troca...

E nesse ponto terminamos. Saímos para a rua empoeirada, onde as crianças brincavam despreocupadamente entre a algazarra e o estrépito da velha cidade.

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34

 

DO CASAMENTO TAL COMO O CONHECEMOS

 


Vamos falar agora do que conhecemos. Neste particular, não cedemos a ninguém. Temos vivido e ainda vivemos a experiência que registramos.

Dizemos do contrato que é apenas um ponto de partida para a união que esperamos que venha a nascer dele. É um momento de compromisso formal, condicionado pela relação que construímos antes dele e pelas idéias que temos de uma relação futura. Acreditamos, temos esperança mas não sabemos na verdade se a união será bem sucedida ou não. Temos ou julgamos ter uma certeza de amor naquele momento, mas não sabemos por que não experimentamos todos os encargos do amor. Não vimos todo o montante do custo contrato. Não pusemos à prova a nossa capacidade de pagá-lo. Temos sido companheiros por longo ou breve tempo. Apaixonamo-nos ou chegamos pouco a pouco ao amor. Chegamos em passos rápidos ou lentos ao começo de uma vida comum. Somos ainda secretos um com o outro, ainda misteriosos, porque ainda não fomos solapados pela experiência e pela interação recíproca sob a tensão da vida. Fazemos juntos o mesmo voto de fidelidade, de cuidado amoroso e de perseverança. Mas não podemos saber que tragédia, que guerra ou que cataclismo podem separar-nos da comunhão prometida.

A consumação? Diremos agora que não é nem a conclusão de união física. É um começo, quase sempre um começo incerto e insatisfatório de uma harmonia mútua que, se não for conseguida, poderá destruir o casamento. O ato de amor não tem sentido se não é feito com amor e se não leva ao amor. Divorciado do espírito e da emoção, não tem, nem pode ter, o caráter sacramental que lhe é atribuído. A simples invasão, a posse ou até o uso mútuo sem amor nada ratificam. Se os legalistas estão certos e nós estamos errados, regredimos então ao barbarismo das toalhas ensanguentadas expostas na janela e da lança triunfante cravada na terra à porta da tenda nupcial.

O êxtase dos corpos, a pequena morte é a primeira chave que abre o recinto do amor. Mas, uma vez que lá entramos, descobrimos outras portas que se abrem a um contato de mão, a um sorriso ou a um gesto que exprimem toda uma bíblia de sentimentos de união.

Somos os únicos que podemos falar com autoridade do caráter sacramental porque somos os únicos que lhe experimentamos o mistério. Experimentamos-lhe a santidade, a força e a graça com que nos arma para sermos, às vezes, mais bravos, menos egoístas e mais constantes do que por natureza somos. Quando estamos juntos e esperamos que um filho nasça ou morra, sabemos que há um sacramento entre nós e nos revoltamos com aqueles que pretendem defini-lo para nós. Quando dispensamos uma compaixão que nunca havíamos pensado possuir a uma companheira doente, sabemos que um dom está em ação dentro de nós. Quando nos afastamos de outras pessoas, sabendo que poderíamos amá-las também e talvez as amemos, temos consciência de alguma coisa que estabelece para nós uma exclusividade, uma qualidade de unidade que não poderíamos realizar em qualquer outra parte.

Sabemos também, à luz de nossa experiência, que há uniões que nunca alcançaram, nem podem alcançar, essa qualidade. Dizemos: “Nunca se deviam ter casado. Estão destruindo um ao outro.” Embora o detestemos, somos às vezes forçados a julgar que eles nunca realmente realizaram um casamento. Acreditamos que quase sempre julgamos com mais acerto do que o canonista celibatário que compulsa os seus livros à procura desta ou daquela definição que mais se ajuste à imensa variedade das incompatibilidades humanas.

Acreditamos no sacramento e na graça mútua que concede. Julgamos nem sempre erradamente que, quando não há graça concedida, não há sacramento — e não há coabitação compulsória que seja capaz de criá-lo!

Quanto aos filhos e a sua geração, não acreditamos que haja um mandamento divino para fazer nossas esposas conceberem até à exaustão como se fossem gado. Não acreditamos ainda que elas devam ter repouso e restauração com a privação da ternura e do amor sexual de que precisam e nós também. Foi-nos concedida a graça do respeito mútuo. Aprendemos até que ponto o movimento pode ser estendido, o amor dispensado e os encargos suportados. Precisamos das férias do amor sem cuidado, porque temos cuidado com a união que estabelecemos. Àqueles que nos reprovam sem saber, acusando-nos de sensualidade e irresponsabilidade, respondemos que não podem julgar porque não participam de nosso sacramento exclusivo.

Não podemos nem participar do sacramento de nossos filhos casados. Como pode alguém intrometer-se no nosso?

Da indissolubilidade dizemos, como matéria de experiência, que esta reside no compromisso que assumimos um com o outro. Se o nosso compromisso não foi total, o sacramento foi desde o início frustrado. Se ambos assumimos esse compromisso, nada nos separará. Nesse domínio, estamos fora do alcance da lei. Se não atingimos esse domínio, então já estamos desvinculados.

O amor é a essência de todos os sacramentos: do Batismo, que nos admite à família do Povo de Deus, da Penitência, que concede um afetivo perdão à delinquência, da Eucaristia, por intermédio da qual Cristo Se comunica numa assembleia de amor, da Ordem, em que um homem se dedica a um ministério de amor...

Se isso não é verdade, os sacramentos são formas estéreis, justamente sujeitas à estéril regulamentação dos legalistas.

Do desmoronamento do casamento, podemos dizer que é sempre uma confissão de insucesso — insucesso em conseguir a misteriosa união de amor que foi a promessa do contrato. Mas não podemos dizer, com qualquer sinceridade, que é esse o único insucesso humano que não merece segunda oportunidade. Há tantos imponderáveis em jogo que não é possível fazer um julgamento tão brutal. Há muitas tensões e pressões, muitas confusões e ignorâncias no homem e na mulher que não permitem condená-los, sejam inocentes ou culpados, depois de um insucesso, a uma aniquilante e inumana solidão. A idéia nos é tão repulsiva quanto a terrível visão de Santo Agostinho da vasta massa de réprobos repelidos pelo Deus que os fez simplesmente porque nunca foram batizados. Não podemos ver que sejamos obrigados a aceitar isso pela fé e temos o apoio da tolerante caridade dos primitivos Padres da Igreja e da opinião de teólogos e pastores de nosso tempo.

Não pregamos a licença. Ao contrário, preocupa-nos a estabilidade do casamento. Preocupa-nos mais, entretanto, a salvação das pessoas bem como da sua dignidade e da capacidade de viver uma vida plenamente humana — porque uma vida plenamente humana é o plano divino para elas.

Dizer que o plano deve ser perfeitamente realizado é presumir uma impossibilidade. O homem é obrigado a fazer tudo o que lhe for possível na economia da salvação. Exigir mais é criar uma tirania. Alegar que a todos os homens são dados os mesmos dons no mesmo grau é contradizer o Evangelho. Se a misericórdia é desmedida, como podemos limitá-la tão rigorosamente como agora fazemos?

Quanto aos casamentos mistos, dizemos que devem começar com um amoroso reconhecimento de igualdade. Como podemos dar testemunho do amor universal de Cristo se nossas leis fazem discriminação contra quaisquer de seus filhos sejam de que comunhão forem? Os dons da Fé, da Esperança e da Caridade nos são dados para que os dispensemos a todos. Não se destinam a ser embrulhados num guardanapo e enterrados para protegê-los de uma possível diminuição ou contaminação. Cristo se comunica por intermédio de nós que a Ele estamos unidos; não estamos encarregados de quebrar a comunicação. Os mistérios cristãos não nos dispensam do mistério natural da fraternidade no clã humano. Somos todos membros, um do outro. Não pode haver irmãos de dentro e irmãos de fora.

Conhecemos muito os casamentos extra canônicos. Alguns de nossos amigos os contraíram por esta ou aquela série de razões. Damos o testemunho de nossa experiência que esses casamentos são mais cristãos em natureza e em aspecto do que algumas uniões muito canônicas de que sabemos.

Marido e mulher vivem em fidelidade e afeição. Dão aos filhos amor, assistência e educação religiosa. Fazem caridade aos outros. Os frutos de sua vida são bons. São conhecidos e considerados como bons. Muitos deles desejam visivelmente juntar-se de novo à Assembleia do Povo de Deus.

Nas circunstâncias atuais — a menos que estejam preparados ou sejam incentivados a fazer um julgamento privado de sua situação — essa volta não é possível, exceto em condições moralmente impossíveis de separação ou do absurdo da ficção da vida como irmãos. Queremos que sejam trazidos de volta. Queremos que se comuniquem conosco, como verdadeiros irmãos e irmãs. A ausência deles é uma vergonha e uma tristeza para nós. Julgamos que tudo o que sofreram já é penitência suficiente — se de fato mereceram alguma penitência! Achamos que existem tolerâncias cristãs para a volta deles e que essas tolerâncias devem desempenhar papel ativo agora, não por dissimulação, mas por aquela condescendência que exprime o princípio divino da equidade.

Dos desvios sexuais temos um pouco mais do que simples conhecimento. Sabemos que destruição podem causar nas relações conjugais. Reprovamos com a maior veemência as inquisições clínicas impostas pelos atuais cânones, especialmente em relação a mulheres que sofrem de algum desvio. Afirmamos que tais inquisições degradam a dignidade da Igreja e a dignidade das pessoas. Somos de opinião que a maior discrição deve ser dada nestes casos na orientação, nos conselhos confessionais e na decisão sobre o caso matrimonial.

Mas, a respeito dos próprios desviados, recomendamos com o maior empenho a necessidade que têm de amor, compreensão e solicitude cristã. Estamos ainda muito longe de compreender a química complexa do organismo e o precondicionamento psíquico da aberração. Só sabemos é que cada homem tem o seu quinhão na economia da salvação e que esse quinhão deve ser-lhe mostrado e franqueado em espírito de caridade. Por si só, o desvio não é delinquência. Mas a delinquência pode ser criada pela falta de amor — e essa culpa pode-nos bem ser atribuída.

Se nos solicitarem, como às vezes acontece, julgamentos sociais, estamos preparados para dizer que qualquer relação que contém um elemento de amor e desprendimento é tanto melhor que a insensível exploração de um ser humano por outro.

Trata-se mais uma vez da possibilidade moral aberta a um ser humano em dado tempo e em determinadas circunstâncias. Ele é obrigado a escolher o melhor possível. Excluí-lo da comunhão salvadora porque ele não atingiu uma perfeição inatingível é cometer um crime contra ele. A definição de evolução de Teilhard de Chardin — Deus fazendo as coisas fazerem-se — se aplica também à ordem transcendental.

Em relação aos padrões sexuais de nossa sociedade, damos testemunho — como se houvesse necessidade disso! — de uma considerável licença. Damos testemunho também da terrível solidão do indivíduo nessa sociedade gregária mas mutável e da influência destruidora da publicidade de consumo na sua exploração de todas as inseguranças humanas.

Os jovens são estimulados a serem impossivelmente belos, impossivelmente sexuais, impossivelmente variados, impossivelmente empenhados — e são muitos os que acabam sendo intoleravelmente solitários. Os que não são tão jovens não deixam de ser vítimas também. Desse modo, o ato de amor é com muita frequência um ato de desespero e o caso de amor é quase sempre um caso de procura, decepção e solidão renovada.

Sabendo de tudo isso, envolvidos em tudo isso por intermédio de nossos filhos que crescem, pleiteamos e defendemos apaixonadamente a pertinência, a afirmação familial, o otimismo cristão e a simplicidade cristã dentro da Assembleia. Somos a cidade das testemunhas montada no alto da montanha — mas se o nosso testemunho não se aplicar ao sofredor e ao solitário, nós que damos o testemunho é que somos os culpados. Temos obrigação de ser todas as coisas para todos os homens, não simplesmente juízes e jurados ou melancólicos supervisores de suas loucuras!

Da esterilidade na Igreja: há uma praga de esterilidade sobre toda a vida litúrgica da Igreja. Usamos a palavra “litúrgica” no seu sentido mais amplo para descrever todas as atividades públicas dentro da Assembleia — o ritual, a administração dos sacramentos, a missa, a prática da vida sacerdotal e religiosa, a atividade missionária, a administração hierárquica.

Em todos os setores da vida da Igreja, estamos encerrados, em formas que, em virtude de séculos de uso, assumiram um caráter ficticiamente sagrado. Muitas das formas se associam com a riqueza, o privilégio clerical, a encenação eclesiástica, o triunfalismo, a monarquia, a exclusividade e a superstição residual. Enquanto servem de auxílio à piedade, à identificação ou à lealdade associativa, essas coisas têm algum valor, mas defendê-las como se fossem os últimos baluartes da crença é uma manobra perigosa e geradora de confusão.

É fácil demais censurar os excessos dos inovadores ritualistas, que estão mais preocupados com a teatralidade da religião do que com a sua substância. É fácil demais louvá-los como nobres revolucionários que apagam os últimos vestígios de superstição na Assembleia bimilenar. Ritos e reverências são artifícios humanos que exprimem e facilitam a relação transcendental entre a criatura e o’ Criador. Como todas as coisas humanas, devem ser tratados com respeito, mas não devem jamais tomar-se obstáculos à comunhão espiritual entre os homens de boa vontade.

O ritual é uma ajuda e um método para a prática da vida de caridade dos crentes. A autoridade é um instrumento a serviço da Assembleia dos Crentes. O dogma é uma codificação em termos humanos, e, portanto, imperfeitos, da substância da fé. A doutrina e a interpretação representam o esforço cristão de aplicar a Revelação à vida humana nas suas circunstâncias em rápida transformação.

O homem é o objeto de tudo isso — o homem capaz de autodestruição e capaz também de auto-salvação por um ato de amor a si mesmo, aos seus semelhantes e ao seu Criador em Quem eles e ele subsistem.

A rejeição da Assembleia, as tensões dentro da Assembleia começam quando as instituições são colocadas acima do homem. Arrefecem quando o homem assume o papel que Deus lhe deu, de filho e irmão dentro da Família.


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DOS LEGISLADORES CELIBATÁRIOS

 


Alguns dentre nós temos filhos no sacerdócio ou na vida monástica. Não temos dúvida em reconhecer que são mais entendidos do que nós em muitas matérias. Mas temos dúvidas em acreditar que eles ou os seus superiores eclesiásticos sejam competentes para legislar para nós quanto à conduta íntima de nossas vidas conjugais. Dizemos mais. Afirmamos que nenhum grupo de celibatários, por mais esclarecidos que sejam, são competentes para elaborar um simples código matrimonial local e muito menos um universal.

Não falamos aqui de princípios morais, mas da interpretação e da aplicação dos princípios morais por meio de um sistema jurídico tal como o atual Código de Direito Canônico.

Nossa objeção se baseia em dois motivos: a ignorância dos canonistas na prática do casamento e a inegável perícia que têm na prática do direito latino.

Aceitamos sem qualquer reserva que o estado conjugal exige uma mútua justiça. Mas a maneira de fazer essa justiça é um assunto tão complexo e tão particular às pessoas que nenhum código pode especificá-la.

Aceitamos que o casamento exige mútuo amor. Mas quem, sem experiência das sutilezas do amor, os modos descontínuos, desconcertantes e divergentes de exprimir amor, pode atrever-se a formular a mais elementar das leis sobre o assunto?

Aceitamos que o casamento é um mistério de salvação — e é essa a melhor definição que podemos dar de um sacramento. Mas o fato de que quem não está a par se atreva a legislar em relação a tal mistério é uma presunção que supera a compreensão. O que é pão para um é veneno para outro. O que numa união é êxtase, noutra é violação obscena. O que é culto para um é para outro uma blasfêmia primitiva. O melhor que qualquer pessoa pode dizer é que a união é o casamento e a não união é a nulidade. A definição mais sutil não abrangerá mais, a mais rude complacência não compreenderá menos.

Um legislador que elabore uma lei sem correspondência com a realidade para a qual legisla está numa posição insustentável. Um juiz que profere decisões de acordo com uma lei que sabe que é ou julga injusta lança o descrédito sobre si e sobre o princípio da lei.

A intrusão de terceiros — filhos, parentes, amigos e até os mais sábios conselheiros — numa relação entre marido e mulher é eivada de perigos. A intrusão de uma lei apoiada em solene autoridade e carregada de sanções espirituais é um risco enorme e injustificado. Quando a autoridade reside numa hierarquia celibatária chefiada por homens idosos, cuja experiência pastoral é na melhor das hipóteses remota, os riscos são então dobrados e redobrados.

O mais extraordinário paradoxo dentro da Igreja atualmente é que os legisladores, que se mostram dispostos a empenhar-se às regras mais íntimas sobre o casamento, são escandalosamente reticentes quanto à moralidade de matar, quanto ao direito de fazer guerra — mesmo uma guerra de extermínio! — e quanto às moralidades cruas e primitivas da arte de governar e do dinheiro, bem como da manipulação do homem pelo Estado. Não somos farejadores de heresia. Não temos tempo para isso, entregues que estamos às terríveis simplicidades da salvação. Mas percebemos nesse paradoxo a mácula da mais velha das heresias: que a matéria é má, o corpo é mau, o casamento é uma concessão ao mal e que só os puros que renunciaram ao mesmo podem legitimamente controlá-lo.

Percebemos ainda outro mal, ainda mais perigoso porque as pessoas que o praticam não têm consciência do mesmo. Uma consciência sensível, um sentimento de culpa — e quem pode julgar-se isento de culpa durante sua vida — transforma homens livres em escravos. O respeito à autoridade pode, quando injustamente explorado, tornar um homem vulnerável às intrusões da tirania.

O que nos perturba no código atual, o que tememos num novo código é a perícia em manipulação dos romanos. Se tiverem liberdade de ação com um documento e um conjunto de normas processuais, eles nos enrolarão e amarrarão durante meio século a um ponto de ordem! Qualquer observador do Concilio Vaticano II e dos Sínodos que se lhe seguiram tem de render penosa homenagem às finas mãos romanas que prepararam a documentação e a utilizaram durante semanas e meses a fim de sustar a discussão sobre questões inaceitáveis. Se fizeram isso também com a lenha verde — entre os seus pares episcopais — que não poderão fazer com lenha seca, entre um laicato leal mas exacerbado?

Os leigos têm sido muito mais pacientes com os seus pastores do que estes sabem. Têm observado os esforços nem sempre edificantes dos pastores para pôr em ordem a sua casa hierárquica. Os leigos têm tido pleno conhecimento dos segredos impostos e de um escandaloso hiato entre os fatos e os pronunciamentos romanos. Não tentaram impor-se aos seus ministros, a quem a sua caridade mantém num estado às vezes principesco. Têm sido muito leais e discretos. Mas cremos que agora eles gostariam de uma retribuição de lealdade, de paciência e tolerância e de serviço extrajurídico. Precisam de proteção contra as leis más vigentes e futuras. Na verdade pura e simples, exigem essa proteção de seus pastores, seus bispos, que são as únicas vozes presentemente ouvidas em Roma.

Nunca é demais repetir que o mandato da Igreja é dar testemunho de Cristo, de Sua presença salvadora e de Sua mensagem de salvação. Não lhe cabe impô-lo como um incubo nas relações matrimoniais que se aperfeiçoam n’Ele e são análogas à união d’Ele com a Assembleia.

Uma lei, se dela há necessidade, deve fazer parte do testemunho. Deve testemunhar da justiça e da caridade e o mistério predominante de todos nós. Mas como pode um legislador dar testemunho de um mistério que não experimentou? Como se pode querer que ele respeite o mistério se por definição o suprime?

Estamos vendo agora, em nosso tempo, os terrores que as definições draconianas fizeram cair sobre nós. Somos divididos por aquilo que devia unir-nos. Estamos aprisionados entre muralhas de papel. Somos excluídos da pura luz da revelação por montões de documentação, por decretos, comentários e dispositivos, por leis, precedentes e prescrições, por filosofia grega, filosofia árabe e categorias escolásticas, por divisões e subdivisões talmúdicas.

Estamos cansados desse encarceramento. Somos esmagados pelo mero peso da matéria impressa, pela pura algazarra das discussões esotéricas. Rezamos — só Deus sabe como rezamos! — por um homem que nos leve para a luz, para uma encosta verde e comece do princípio com a partilha do pão e uma bênção sobre nossa fome de justiça e de paz, bem como uma misericórdia um tanto incomum em nossas vidas.

De nossos ministros não solicitamos novas leis, mas um novo serviço de caridade. Não pedimos novas trancas em nossas janelas, mas nova esperança para nossos espíritos abatidos. Pedimos não fórmulas novas, mas uma renovação da fraternidade na Assembleia.

Parece estranho que tenhamos de pleitear e contestar com tanta veemência por coisas tão simples. Mas temos de pleiteai e contestar porque estamos a tal ponto invadidos que receamos a perda de nós mesmos — que é isso o que representa a perda de nossas almas.

Temos receios também por nossos filhos. É por eles, tanto quanto por nós, que nos batemos pela reforma. Nós — alguns de nós pelo menos — alcançamos penosamente uma liberdade suficiente para permanecer em posição segura na Fé, na Esperança e na Caridade, apesar dos desvarios da lei. Estamos dispostos a exercer nosso inerente sacerdócio para oferecer a outros a caridade que a lei recusa. Mas nossos filhos ainda não alcançaram essa liberdade, nem compreendem ainda os sofrimentos necessários para lá chegar. Por isso, não desejamos que a Assembleia lhes pareça estranha porque parece mais um tribunal do que uma casa de família. Passaram a desconfiar da lei porque esta pode mandá-los matar outros homens por uma causa em que não acreditam. Suspeitam da autoridade porque a viram ser abusada. Não confiam nas definições porque as têm visto muito exploradas por saltimbancos, mágicos e propagandistas baratos.

Compreendem o amor, necessitam de misericórdia, de tolerância e de uma impressão de assistência em todas as suas confusões. Aceitarão uma mensagem pura, lentamente e talvez experimentalmente, mas aceitá-la-ão realmente porque a desejam. Rejeitarão a Assembleia pura porque sabem, graças a uma amarga experiência, que a Assembleia pura é uma ilusão. Unir-se-ão, porém, à Assembleia dos Peregrinos, dos que procuram insatisfeitos, dos cegos, dos surdos, dos paralíticos, dos mutilados porque são peregrinos também, palmilhando o deserto na esperança de que a nuvem de hidrogênio se dissipe e possam ver, de relance ao menos, a Cidade de Deus.


RESUMO DAS RAZÕES

 


Sabemos que escrevendo este livro nos expusemos a um risco. Tornamo-nos vulneráveis à acusação de interesse pessoal, à interpretação errada, ao abuso, à calúnia e ao intrometimento em nossa vida particular.

Aceitamos esses riscos pessoais porque cremos que a causa é boa e que o nosso libelo poderá ser defendido num tribunal.

Há outros riscos também, talvez mais graves. Há riscos de escândalo para os fracos, de escândalo promovido pelos maliciosos, de divisões na Assembleia, de proposições isoladas do contexto e deturpadas para usos mesquinhos. Tentamos prudentemente pesar esses riscos e reduzi-los sempre que possível. Somos homens responsáveis. Passamos ambos mais de metade da vida no ofício da comunicação pública. Não desejamos empenhar-nos numa frivolidade.

Apresentamos as nossas razões, submetemo-las a debate e julgamos tê-las provado. Expusemos propostas de reformas concretas e, em nossa opinião, viáveis. Cremos que essas reformas se baseiam em sólida doutrina cristã e que elas poupam as atuais opiniões da Igreja. Demonstramos que nossas propostas são modestas e conservadoras em comparação com as amplas tolerâncias tradicionais da Igreja primitiva.

Prestamos depoimento com base em nossa experiência pessoal sobre o caráter sacramental do casamento cristão e sobre as dificuldades e os perigos de legislar nessa matéria dentro das normas jurídicas romanas. Discutimos e pleiteamos a aplicação de outras normas mais compatíveis com a justiça e a caridade cristãs e com a experiência humana em desenvolvimento.

Estamos ainda em risco porque, homens imperfeitos como somos, procuramos pleitear a causa de outros homens imperfeitos — aqueles que, na verdade, têm falhado em conseguir, muitas vezes miseravelmente, uma união conjugal cristã estável.

Reclamar justiça para os justos é fácil e edificante. Reclamar justiça para aqueles que demonstravelmente falharam numa relação humana é uma empresa muito menos simpática. É, entretanto, um fato histórico que as grandes reformas judiciárias, as grandes decisões legais que deram mais alguns direitos ao homem e lhe permitiram apreender com mais firmeza a liberdade e a justiça foram frequentemente feitas em torno de casos duvidosos, nos quais estavam envolvidas pessoas mal sucedidas e de má reputação.

Nós mesmos, os autores deste livro, somos testemunhas abaixo de perfeitas para a ação que pleiteamos. Um de nós é um anglicano e, portanto, fora da Assembleia Católica Romana e vulnerável à suspeita de partidarismo confessional. O outro é um católico divorciado, admitido por tolerância confessional à vida sacramental da Igreja, mas ainda assim exposto a quem quiser atacar a integridade de suas intenções. Mas, se os nossos testemunhos imperfeitos atraírem ao tribunal outros que possam apresentar melhor e mais forte testemunho para o nosso caso, teremos prestado algum serviço à Assembleia.

Aqui está então o resumo e a substância das nossas razões.

Todo homem e toda mulher participa por direito próprio da economia da salvação. Esse direito lhes é conferido pelo mérito dentro de Cristo. Qualquer lei ou sistema jurídico que transgrida esse direito, elimine-o ou lhe torne impossível o exercício é uma lei contrária à ordem divina.

A economia se baseia na caridade — amor. Não se baseia na lei. Sejam quais forem as leis feitas, devem todas dar testemunho da caridade e funcionar com a caridade.

Se essa base de amor for destruída, invadida ou eliminada por lei, a economia não se pode processar. Aplicar a um homem ou uma mulher uma lei que exige o que é moralmente impossível é suprimir a caridade, tomar a economia inoperante e violar o princípio fundamental da equidade.

A equidade de que falamos não é romana, nem anglo-saxônica, nem qualquer outra equidade humana. É a equidade divina, aquele amor, misericórdia e tolerância divinos que permitem que os caídos se levantem, os transgressores se arrependam, e os fracos ganhem força para outra ascensão rumo à Cidade de Deus. Cremos e pleiteamos que essa equidade divina deva ser mantida como o único fundamento de qualquer constituição de lei dentro da Igreja. Neste particular, acreditamos estar em posição segura e ortodoxa com os Padres da Igreja e o grande corpo dos cristãos atuais.

A experiência de escrever este livro foi rica para nós ambos. Pertencemos a assembleias cristãs tristemente separadas. Vimos que estamos fundamentalmente de acordo sobre todos os pontos essenciais da fé cristã. Exploramos a mentalidade um do outro e os sentidos que damos às palavras, aos símbolos e aos mistérios. Vimos com que facilidade homens de boa vontade podem cair em inimizade em torno de uma frase ou de um slogan e quanta paciência é necessária antes que nos esclareçamos mutuamente. Temos visto sofrimento e merecemos o privilégio de partilhá-lo com alguns dos sofredores. Às vezes, pudemos aliviar um pouco esse sofrimento e, por nossa vez, fomos consolados. Vimos como muitas pessoas decentes se debatem em confusão por falta de uma mão amiga, de uma palavra gentil que as oriente para uma solução simples e possível de seus problemas.

Falamos com centenas de homens da Igreja, de todas as idades e de muitas nacionalidades — pastores, professores, juristas, missionários. Alguns se mostraram consideravelmente sábios e uns poucos profundamente insensatos. Alguns concordaram com a nossa orientação. Outros, não. Só um ou outro contestou nosso direito a empenhar-nos na questão. Algumas das nossas conversas foram formais. Outras foram tremendamente livres de cerimônias — renhidas discussões que se prolongavam durante horas depois de almoços e jantares até que as esposas protestavam e as encerravam abruptamente. Mas em todas elas a preocupação era evidente, a preocupação da renovação embora muitas vezes os meios de renovação estivessem em discussão.

Foi muito estranho que os mais velhos é que estivessem dispostos a raciocinar mais cerradamente e a insistir com mais energia por uma regra de caridade cm lugar de uma regra de lei.

Era como se, tendo passado toda a vida em dedicação, estivessem frustrados e desiludidos com o pouco que a lei lhes havia permitido. Foram eles que nos deram mais coragem, que nos ensinaram a procurar as coisas simples e a não nos deixarmos desorientar pelas inovações opinativas.

Os moços nos deram esperança, porque eram esperançosos — cheios de energia, lúcidos e ansiosos por uma luta. Mas os velhos nos confirmaram na fé que já estava movendo a pesada montanha do Vaticano e na caridade que poderia explodir inesperadamente numa Assembleia já inquieta. Reconheceram com uma ponta de tristeza que a explosão só poderia ocorrer por milagre, mas disseram que acreditavam em milagres!

Nós também acreditamos em milagres. Entretanto, não somos suficientemente vaidosos para julgar que este livrinho seja capaz de realizá-los. Não somos teoristas cheios de idealismo, esperançados de que tenhamos um documento capaz de abalar os alicerces da Igreja Cristã. Não fizemos descobertas históricas radicais. Não abrimos horizontes novos em teologia especulativa, nem realizamos uma grande síntese entre o pensamento do século XX e o Depósito de Fé.

O máximo que podemos alegar é que demos um testemunho honesto daquilo em que honestamente acreditamos. Passamos quase três anos de nossa vida preparando e escrevendo este livro. Apresentamo-lo em boa-fé ao julgamento coletivo da Assembleia.

 

 

                                                                  Morris West

 

 

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